Voltaire Historiador - Uma introdução ao pensamento histórico na época do iluminismo 8530806395


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Voltaire Historiador - Uma introdução ao pensamento histórico na época do iluminismo
 8530806395

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VOLTAIRE HISTORIADOR UMA INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO HISTÓRICO NA ÉPOCA DO ILUMINISMO

TEXTOS DO TEMPO

Textos do Tempo traz a público uma seleção dos melhores produtos da historiografia profissional brasileira, empenhada em elucidar, mediante metodologias e técnicas inovadoras, os momentos decisivos de nossa história. Contempla também trabalhos reflexivos sobre a atividade do historiador, seja como pesquisador, seja como docente. Dirige-se a profissionais de História e Ciências humanas e a todos os amantes da boa

reflexão e leitura.

Jurandir Malerba

Coordenador da coleção

MARCOS ANTÔNIO LOPES

VOLTAIRE HISTORIADOR UMA INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO HISTÓRICO NA ÉPOCA DO ILUMINISMO

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EDITORA

Capa: Fernando Cornacchia

(Medalha desenhada por Warchter , 1772) Copidesque: Mônica Saddy Mart ins Revisão: Marlene M. de Almeid a Rabello

Dados Internacionais de Cata logação na Publicação (CIP) (Câmara

Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lopes, Marcos Antônio Voltaire historiador : Uma introduçã o ao pensamento histófico na época do Iluminismo / Marcos Ant ônio Lopes. — Campinas, SP : Papirus, 2001. — (Co leção Textos do Tempo) Bibliografia. ISBN 85-308-0639-5

1. História — Filosofia 2, Historiadores — França 4. Voltaire, 1694-1778 |. Título. Il. Série. 01-2213

3. Iluminismo

CDD-907.202

Índices para catálogo sistemático: 1. Voltaire como historiador : Biografia e obra

907.202

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:

O M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. - Papirus Editora Telefones: (19) 3272-4500 e 3272-4534 — Fax: (19) 3272-7578

Caixa Postal 736 - CEP 13001-970 - Campinas - SP - Brasil. E-mail: editora& papirus.com.br — wWww.pap irus.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial. Edi tora afiliada à ABDA,

AGRADECIMENTOS Um trabalho desta natureza — originalmente parte de tese de doutorado — reflete muitas fontes de inspiração, que foram se somando ao longo de mais de uma década, no âmbito da vida universitária. Beatriz Magalhães, Douglas Libby, Eliana Dutra e Lucília de Almeida Neves foram meus incentivadores da primeira hora, os mestres que me ensinaram os rudimentos do ofício, concedendo-me preciosas oportunidades de rejlexão e de trabalho. Carlos Baesse e Newton Bignotto, filósofos com os quais tive O privilégio de trocar impressões sobre a história das idéias políticas, ajudaram-me a definir os meus interesses intelectuais. O meu débito também para com Helenice Rodrigues e Janice Teodoro. Fregiientando seus cursos, pude alargar meus horizontes sobre a riqueza teórica da história intelectual e as complexas interfaces entre a história e a literatura. A minha sincera gratidão aos professores Elias Thomé Saliba e Norberto Luiz Guarinello, leitores minuciosos, e da mais elevada impiedade. Em diferentes ocasiões, mostraram-me os impasses de meu trabalho e as soluções mais viáveis para contorná-los. Gostaria de expressar a dívida de gratidão contraída para com Antônio Penalves Rocha, que teve a ousadia de embarcar em navegações de alia periculosidade, numa época em que não se aceitava ser timoneiro de empreitadas tão arriscadas. Desde 1992, quando concordou em dirigir minha dissertação de mestrado, ele vem me mostrando as pesadas exigências da pesquisa histórica, as suas alegrias, e as suas melancolias. Seu temperamento cético, sua crítica serena, junto com sua ironia, foram expedientes muito adequados para resfriar o entusiasmo às vezes demasiado do aprendiz. O seu controle de qualidade tem um preço dificil de saldar. mas sua larga experiência ajudou-me a distinguir os melhores caminhos para o rigor e a objetividade. Por último, mas não menos importante, meu reconhecimento ao CNPq, que proporcionou as condi-

ções necessárias para que este trabalho fosse concluído.

É preciso, ao ler-se uma história, ter-se em conta à época em que o autor a escreveu. Quem lesse apenas o cardeal de Retz, tomaria os franceses por seres furiosos, respirando somente a atmosfera da guerra civil, do facciosismo e da loucura. Voltaire, História de Carlos XH

Êo

Quero uma história fundada na verossimilhança e que não se assemelhe sempre a um sonho. Desejo que não tenha nada de trivial nem de extravagante. Apreciaria, sobretudo, que, sob o véu da fábula, deixasse transparecer ao olhar inteligente, alguma fina verdade que escapa ao vulgo. (...) Bem compreendeis que uma pobre moça que receia ver seu amado engolido por um grande peixe e ser ela própria decapitada pelo prôóprio pai tem muita necessidade de que a divirtam; mas tratai de divertir-me conforme o meu gosto. (...) Difícil coisa me ordenais — respondeu a serpente. Antigamente eu poderia fazervos passar alguns quartos de hora bastante agradáveis; mas perdi há algum tempo a imaginação e a memória. Ai! Onde estão os tempos em que eu divertia as damas? Voltaire, O touro branco

SUMÁRIO

PREFÁCIO

11

INTRODUÇÃO

17

1. EMBATES E COMBATES: O BATISMO DO HISTORIADOR NA ESCOLA DO ANTIGO REGIME

23 39

2. VOLTAIRE, INTERLOCUTOR DE BOSSUET 3. VOLTAIRE, HISTORIADOR DAS LUZES

65

4. O TEMPO VOLTAIRIANO: ACELERAÇÕES

85

5. DIÁLOGO DE SERPENTES: VOLTAIRE,

INTERLOCUTOR DE MAQUIAVEL CONCLUSÃO

101

FONTES

131

BIBLIOGRAFIA

133

127

PREFÁCIO

4 Voltaire: Moderno

ou tradicional?

Marcos Antônio Lopes sustentou em sua tese de doutorado “Vol-

taire: A história, o príncipe e a virtude”, defendida no Departamento de

História da Universidade de São Paulo (1999) — da qual este Voltaire historiador: Uma introdução ao pensamento histórico na época do Huminismo é uma síntese — que, geralmente, atribui-se a Voltaire uma originalidade que ele não possui. Ele não teria representado tanto uma ruptura modernizadora. Na verdade, Voltaire não se afastou muito dos temas tradicionais quanto às idéias políticas e à produção histórica. Nos capítulos 1 e 2, respectivamente, “Embates e combates: O batismo do historiador na escola do antigo regime” e “Voltaire, interlocutor de Bossuet”, ele aparece apenas como aquele que secularizou os conteúdos dos autores franceses e ingleses do século XVII. O que não é pouco e fez sua glória. Seu grande tema era ainda tradicional: a realeza, a monarquia absoluta, que é sua forma de governo favorita. Ele ainda constrói “Espelhos de príncipe”, instruindo o príncipe nas virtudes do bom governo e nos vícios que deveria evitar. O autor toma-o como um continuador da tradição, um

pedagogo dos reis. Em Voltaire, a vontade política é ainda individual e não geral. Ele estaria longe de ser um democrata moderno: tem horror à “canalha” ou a uma constituição elaborada e protegida por uma assembléia de cidadãos, símbolo do “moderno” em política. Temendo a guerra

11

civil, para ele, a vontade política ainda deve pertencer a um só e o súdito deve obedecer a um só. No entanto, para Voltaire, o rei deve ser filósofo, sábio, esc larecido.

Ele se refere ainda a um catálogo de valores quando reflete sobre a ação do príncipe: sabedoria, prudência, justiça, equidade, coragem, bra vura,

temperança, moderação, honradez, magnanimidade, clemên cia, glória, modéstia, magnificência, boa administração, pacificação do rei no. São valores dissociados da religião, mas que parecem ter ainda uma conota-

ção religiosa. É um catálogo político, que não quer oferecer ao príncipe uma

consciência de si, mas uma

consciência pública. Sua moral não é

cristã, mas há uma moral. Seu modelo de história é o tribunal. Ele condena e premia. Maquiavel e Voltaire são contrapostos no capítulo 5, que tem o

sugestivo e jesuítico título “Diálogo de serpentes”. Maquiavel, moderno, não se referia à ética, à moralidade.

E transformava virtudes em vícios.

Até a crueldade é aceitável se for politicamente eficaz. Voltaire, no entanto, ainda distingue vício e virtude, bem e mal. Só a virtude e o bem legitimam o poder do rei. Ambos defenderam um humanismo anticlerical, antiprovidencialista, dessacralizador da política e da história. Mas Maquiavel foi bem mais longe na separação da política dos preceitos religiosos. Em história, se comparado a Montesquieu e Rousseau, iluministas, Voltaire seria ainda um Bossuet. Em política, com sua distinção do vício e da virtude e em sua defesa corajosa da virtude, se comparado a Maquiavel,

ele seria ainda um são Luís IX! Também

como historiador ele foi moderno apenas em intenção.

Em seu Ensaio sobre os costumes, traçou um plano ambicioso de inovação da história, mas não o seguiu. Em suas grandes obras históricas, como História de Carlos XII, O século de Luís XIV, História do Império da Rússia sob Pedro, o Grande, faz ainda uma história-batalha, de reis, generais e política. Seu projeto de história moderna, ele não o realizou. Pretendia estender sua história aos homens comuns, ao comércio, aos modos de

pensar, aos costumes, temas ainda não tratados pelos historiadores. Mas sua prática de historiador foi submissa à política. Era o modo mais eficiente de aumentar

sua “glória literária”. Ele se dirigiu da poesia

e da

filosofia à história para, além de cultivar a vaidade, celebrar a memória de Luís XIV e defendê-lo dos ataques que sofria após sua morte. Via à

verdade histórica como a restauração da “avaliação justa” do passado. Pensava a história por grandes séculos e grandes reis. Para ele, o Século 12

de Luís XIV teria iniciado uma fase progressiva de Luzes. Lia a história como filósofo e criou a expressão “filosofia da história”, opondo-a à teologia da história predominante. Como historiador, tinha intenções inovadoras, defendia o verossímil contra a lenda e a superstição, valorizava a crítica documental, mas cometia anacronismos, não compreendia o sentimento relígioso e era mau leitor de

lendas e fábulas, em que não via informações históricas. Voltaire não reconhecia o valor histórico da imaginação e da mitologia. Mas o verossímil

é sempre verdadeiro? Isaiah Berlin acusa os historiadores iluministas de fazer projeções do presente no passado, acreditando haver leis eternas, que podem se apreendidas pela razão. Voltaire acreditava em uma linha ascendente de civilidade; não reconhecia a possibilidade de regressos. Sua concepção do tempo histórico, abordada no capítulo 4, “O tempo voltaíria-

no: Acelerações”, é linear e não cíclica. O passado é o local das trevas, do erro, da ignorância, da superstição, do fanatismo. Por isso, fez uma história intolerante, inflexível em relação às diferenças culturais. Para Berlin, teria sido preciso esperar o historicismo para que a alteridade do passado e das culturas fosse valorizada. Lopes defende Voltaire: ele seria, de certa forma, precursor do historicismo, pois considera alguns costumes de indígenas, russos, suecos, prussianos e extraterrestres melhores do que os franceses! No entanto, fez a história tradicional, biográfica, de reis, de grandes homens, guerras e política. Se ainda fazia a história biográfica e política tradicional, como pôde ser visto como um inovador da disciplina, um predecessor da historiografia do século XX, como reivindicam os Annales? Esta é a original hipótese deste trabalho: um Voltaire tradicional, conservador, malgré lui, ligado ainda ao passado medieval quanto a suas idéias políticas e históricas. Mas o autor quer ser justo. Não quer esvaziar sua originalidade, mas nuançar uma tradição que só enfatiza o aspecto

moderno de seu pensamento. No capítulo 3, “Voltaire, historiador das Luzes”, não nega o valor de Voltaire como moderno, só quer mostrar um outro aspecto. Para ele, houve exagero, uma mitificação do Voltaire

moderno. Há um Voltaire conservador, quase desconhecido, que convive com o revolucionário, sempre enaltecido. Voltaire estaria na fronteira

entre o Antigo Regime e o Iluminismo e não seria plenamente iluminista. A admiração do autor por Voltaire é profunda, mas estranha! Ele parece

querer destruí-lo! Afirma, entre outras intrigas, que seu pensamento político não é coeso, integrado, coerente, mas ziguezagueia, um “caos de

13

idéias claras”; é um mero historiógrafo, um cortesão a serviço do poder

real; não é pela mudança, pela revolução, mas pela ordem e progresso, que seria garantida pelo filósofo príncipe perfeito. É uma leitura de

Voltaire até certo ponto “chocante”. E muito interessante! O autor tem um estilo sereno, limpíssimo, clássico. Poderia ter temperado sua perspectiva sobre Voltaire usando artifícios voltairianos: o sarcasmo, a ironia, a citação contraditória contundente, o cinismo, o deboche, a réplica ácida, rápida

e lancetante. Assim como se estivesse servindo a Voltaire o seu próprio veneno. Penso que ele próprio o admiraria, se pudesse lê-lo. Mas o riso e o estilo de Voltaire são inimitáveis! Neste livro, sempre enfatizando o Voltaire-historiador, Lopes também deu atenção ao Voltaire-poeta, criador de contos inesquecíveis. Analisa seus textos ficcionais, que considera tão ou mais ricos do que os textos históricos, quanto à exposição das idéias políticas e à visão do príncipe. Voltaire, como historiador, era poeta, dramaturgo e filósofo. Seus contos, entre muitos outros, Zadig ou o destino, Cáândido ou o otimismo, Micrômegas, O ingênuo,

O homem dos quarenta escudos, A princesa da Babilônia, Memnon ou a

sabedoria humana, são divertidamente explosivos, “caixas de alfinetes”, como crítica social e análise política. Tudo é história nessa literatura engajada. O tema é recorrente: a educação do príncipe esclarecido, que expande as luzes da civilização. Ele afia o tom anticlerical, antijesuítico, anti-Leibniz, anti-Rousseau. Em seus contos, com uma linguagem fabulosamente clara, direta e ferina, Voltaire usa uma argumentação ao mesmo tempo rigorosa e cínica, contra a igreja, contra cruéis tiranos, sábios

ignorantes, padres concupiscentes e gananciosos. Apresenta sua visão da

história, ainda cristã (7), como um “vale de lágrimas”. A bela e amada Cunegundes, por quem Cândido, ingênuo, correra o “vale”, gemendo e chorando, mas cheio de esperança, terminara ressequida, alquebrada e promíscua! Irrisão! Em seu riso cínico das misérias humanas, no entanto, há uma nostalgia ou esperança de justiça, de paz, de moderação e tolerância. Um Voltaire moralista parece cultivar ainda o desejo de salvação!

Em sua face moderna, Voltaire, um intelectual avant la lettre, como Zola, como Sartre, acusou e combateu, solitário, por causas nobres, pela justiça, contra grupos organizados e fortes. Era um cultuador da razão,

independente, sem partido. Era o filósofo da tolerância em um mundo

abalado pelo fanatismo religioso. Propunha e defendia os direitos huma-

nos, a novidade do século XVIII. Foi um filósofo engajado. Suas obras

14

desafiaram todos os valores de seu tempo. Ele “começava o seu nome”:

foi insolente, irreverente, aventureiro do espírito, iconoclasta, tocou em

questões proibidas como religião, história e política. Foi perseguído, espancado, exilado. Um eterno fugitivo. Foi um inguisidor de inquísidores. Foi defensor de infelizes. Opôs-se à tortura. Denunciou a escravidão dos negros na América. Que maneira diferente, com tantos riscos, de “cuidar do seu próprio jardim”! Ele entortou o Antigo Regime, destruiu uma França e... abriu um novo tempo? Ou sua face dita “moderna” sería apenas uma reedição secular dos cavaleiros medievais, defensores de virgens e inocentes, uma enlouquecida defesa da tradição, como dom Quixote? Não teria sido mais um vaidoso cortesão em busca frenética da glória, do aplauso e do reconhecimento sobretudo da corte € dos reis?

Voltaire teria sido o assessor-filósofo do “rei esclarecido” ou o histrião, o camareiro, o historiador do rei crudelíssimo?

Este livro de Marcos Antônio Lopes revela sua enorme vontade e capacidade de trabalho, além de um grande e raro talento intelectual e literário. Ele leu a prolixa obra de Voltaire e o cita inúmeras vezes, comparou as obras de ficção e as históricas, entre si e entre elas, revelando domínio de seu objeto de trabalho. Formalmente, e este livro o demonstra, sua tese é exemplar: citações corretas, uso adequado da excelente bibliografia, diálogo crítico e respeitoso com o autor e seus comentaristas, sugestão de hipóteses fecundas quando a bibliografia não oferece saídas, um bom controle do peso e da medida dos temas tratados. Talvez pudesse ter melhorado ainda mais a qualidade do seu trabalho se tivesse feito uma

leitura mais atenta e densa do Voltaire-filósofo, o das

Cartas inglesas e do Dicionário filosófico. Mas, é claro, seu tema era Voltaire-historiador. Este livro se inspira um pouco na obra de Lucien Febvre quando procura situar em seu mundo, em seu tempo e em sua cultura, e em seus próprios termos, homens que a tradição apresenta como inovadores: Rabelais, Erasmo, Lutero, Margarida de Navarra. Ele pretendeu fazer o mesmo com o descrente e inovador Voltaire: inseri-lo em seu mundo, torná-lo um homem do Antigo Regime, ligado ainda à historiografia do século XVII e à tradição, a seu tempo e sua cultura, e

menos explosivo do que pareceu ser. Pode parecer uma leitura conser-

vadora de Voltaire. Mas Voltaire não era ainda conservador?

José Carlos Reis

15

INTRODUÇÃO

A vida de Voltaire começou por um escândalo, o caso Rohan, o mas infeliz incidente de 1726, que levaria o escritor a seu primeiro exílio, também aos bons anos vividos na Inglaterra, responsáveis por seu amadurecimento intelectual, bem como pelo desenvolvimento de suas preocupações científicas. A questão é muito clara. Nos quadros de uma sociedade aristocrática, na qual o privilégio de sangue marca o espaço hierárquico a ser ocupado por cada indivíduo, um burguês pretensioso irrompia do nada em trajetória fulgurante. No caso específico do cavaleiro de Rohan, conta-se que o jovem Voltaire havia tomado algumas pauladas sob encomenda, dias após ter respondido de forma insolente às zombarias de um gentilhomme incomodado pelo prestígio de que gozava nos salões parisienses. Como diz Guy Chaussinand-Nogaret, “é mais fácil a um medíocre levantar sua bengala que encontrar a boa réplica” (1994, p. 25). Em resumo, no século XVIII, bater num

escritor sem

berço

não

chegava realmente a ser crime e, sendo assim, Voltaire só estava procurando a lenha e o azeite para ser fritado. Guy Chaussinand-Nogaret (1994, p. 25) é voltairiano ao observar:

1.

A síntese do affaire Rohan: “Quem é esse sujeito que fala “Alguém, caro senhor, que não precisa de um grande nome, possui”, responde Voltaire (citado em Morineau 1980). O ainda teria dito: “Meu nome, eu o começo, & vós terminais

tão alto?”, indaga o aristocrata: porque faz respeitar aquele que burguês que n'a même un nom o vosso” (citado em Lagarde e

Michard 1956).

17

Um poeta espancado por um Rohan ainda era muita honra para ele. Alguém iria sé comprometer por um plebeu, quando um a poderosa família, da qual o chefe é cardeal, está em causa? Isso seria perigoso, mas, sobretudo, isso seria romper a solidariedade que unia os grandes na defesa de seus privilégios. A hora da justiça soa, mas é a justiça de casta. A família Rohan mobilizou-se, e foi a vítima a castigada: Voltaire fez uma nova estadia na Bastilha.

Em seu livro Voltaire, la légende de Saint Arouet , Jean Goldzink d Ãa entender que a formação do Voltaire intelectual se guiu uma certa receita, 1 ma receita franco-inglesa. “Como fazer, de um brilhante poe ta, um grande homem?”, indaga o autor. A resposta completa é um conjunto muito picante de in gredientes: Tome um poeta bem fresco, magro de preferência, de olhos vivos. Bata em neve

(...), o mais alto possível, suas duas tragédias e seu poema épico. Como acompanhamento, grandes legumes — condes, duques, marqueses e, da estação, uma grande rainha da França, da espécie dita polonesa (...) - e deixe mac erar no salão, sob os holofotes. Depois — vem uma operação que requer destreza da mão -, vire bruscamente o poeta, esfregue sem hesitar o dorso. em golpes secos, para tirar-lhe a consistência e, precavendo-se para que ele não ferva, coloque-o em lugar fres co (ou à sombra). Retire-o sem demora e envie-o bem agitado aos seus primos ingleses. Despeje-o entre Calais e Douvres. Acabe de o desengordurar completamente passando-o na farinha de seu banqueiro falido. Forre-o inteiramente com a língua de Albion. Não esqueça, evidentemente, do sal, da pimenta, dos temperos: ele o requer; pode-se enfeitar com uma pitada de ironia finamente picada. Apesar das aparências, “le chaud-froid de poête au beurre noir” permanece um prato tipicamente francês, que foi por longo tempo saboreado nas melhores casas como um regalo. (Goldzink 1994, p. 48)

Essa receita é sinônimo de vida aventurosa: fazer escândalo para ser perseguido, de fuga em fuga, de caçada em caçada, e sempre representar o papel da lebre levantada pelas matilhas e alcatéias justamente enfurecidas. Como lembra Guy Chaussinand-Nogaret (1994): “Ele havia sido cidadão quando a autoridade só reconhecia súditos; ele tinha usado e abusado de

uma liberdade que lhe recusaram; ele havia atacado os preconceitos e as tiranias, reparado injustiças, preenchido o universo de sua indignação e de sua beneficência”. Como ele mesmo confessou, e iria repetir no Dicionário filosófico, “Na França é preciso ser prego ou martelo: eu era prego”. Na época de Voltaire, a literatura mostrava -Se um ofício perigoso,

muito mais ainda para um escritor iconoclasta, que pelas mais divers as 18

acrobacias literárias a um só tempo arrebatava admiradores e espalhava o ódio, num contexto em que uma estrofe mais forte era suficiente para arruinar a reputação de uma vida inteira. Voltaire havia caído em desgraça diante de Luís XV, por ter tomado partído da duquesa du Maine, que desejou reviver contra a regência do duque de Orléans uma nova Fronda, ainda na menoridade do soberano.” “O Bem-Amado não gosta das pessoas letradas...”, faz-nos recordar Pomeau, acrescentando que o espírito de Voltaire era instrumento de tortura para o rei. Ele havia escrito uma sátira contra a Regência em 1717, o que lhe

valeu seu primeiro encarceramento. Nunca conseguiu se livrar do estigma de frondeur. Essa “filiação” até um tanto quanto ingênua iria lhe valer a

eterna antipatia de Luís XV, bem como seu exílio de 30 anos de Paris: 16.) ele nunca teve êxito em recobrar a inocência do autor inteligente, que respeita o rei, O primeiro-ministro, a Igreja, o chefe de polícia, e tudo o que tem alguma coisa a ver com eles” (Pomeau 1994a, p. 19). Mas, para cúmulo

de sua infelicidade, na monarquia francesa não havia lugar para ele. Luís

XV simplesmente não suportava ouvir seu nome. Anos mais tarde, Frederico

II pendurou-lhe os guizos dourados que perseguira na França durante tanto tempo, o que acabou por desabrochar nele uma crise de consciência. O sentimento de ser o instrumento de diversão de Frederico II era mais do que podia suportar; e ele era por demais irônico para não se sentir humilhado pelo espetáculo que representava nas cerimônias oficiais, quando se via constrangido

a levar no pescoço a grande chave que simbolizava suas funções de camareiro. Tinha ido à Prússia a fim de mostrar ostensivamente todo o brilho que se podia esperar de sua condição de filósofo; mas era grande a dificuldade que enfrentava para o êxito dessa demonstração. (...) Foi quando começou a duvidar da missão civilizadora do rei prussiano, e a querer devolver “sua famosíssima chave de camareiro”. (Lepape 1995) 2.

Outra poderosa razão de ojeriza viria anos mais tarde: “Luís XV não lhe perdoa o fato de ter

3.

As aprontações desse monarca são bem mais antigas, a primeira delas remonta ao ano de 1740. Voltaire havia acolhido com simpatia o espelho de príncipe desse monarca, intitulado

sido 'prussiano”, e sobretudo o fato de ser Voltaire” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 9).

O anti-Maquiavel (acerca da definição da obra do rei prussiano como espelho de príncipes, q.v. Godechot 1958, p. 317). Escreveu para esse livro um prefácio muito positivo, incensando

o que considerava o modelo dos monarcas virtuosos, o rei da paz, o príncipe civilizador. Tal texto circulara por toda a Europa literária. Então, Frederico II assume o poder na Prússia. Sua

primeira empreitada: a invasão de um cantão suíço. Como diz Pomeau, “O refutador de Maquiavel punha Maquiavel em prática. Metamorfose imprevista! Eis Voltaire na posição cômica do professor que louva em seu discípulo as qualidades das quais este, fazendo loucuras, desembaraça-se” (Pomeau 1994b, p. 69).

19

Constituindo-se no tolo do maquiavelismo da corte cle Frederico II, e sabedor de seu papel de histrião numa repúbl ica das letras em que todos os grandes personagens odiavam-se cordialmente , essa foi uma contundente derrota numa tentativa de aliança entre a filoso fia e o poder político. Essa consideração nos faz lembrar uma certa passag em de Montesquieu sobre Voltaire, que se perguntava: “É uma incógnita sabe r quem lhe fez mais Justiça, os que lhe deram mil louvores, ou os qu e lhe deram cem pauladas” (Montesquieu 1949, p. 122). Seu exílio na Inglaterra transformou o homem de letras em filósofo. Foi quando descobriu uma palavra-chave de seu vocabulár io: tolerância. Descobriu também que um escritor não poderia ser feliz numa monarquia católica. Sua maior amargura foi não poder oferecer La Henria de a Luís XV:

isso porque

o livro tocava, apesar de ser bastante elogioso para com

Henrique IV, em questões que não se devia discutir no século XVIII: his tória, política e religião.

Como diz Goldzink ao referir-se à tentativa do autor de aprovar em Versalhes, anos mais tarde, seu projeto de O século de Luis XIV, “a história da dinastia permanece sempre, ao longo do Antigo Regime, negócio de Estado, e o nome de Voltaire não era garantia suficiente de prudência” (1994, p. 70). Seu exílio na Inglaterra, por causa do caso Rohan, operou em seus horizontes intelectuais metamorfoses profundas. Seu diálogo direto com Berkeley e os filósofos ingleses levaram-no não só a descobrir a filosofia, mas a incorporar também a história em seu universo de preocupações, da mesma forma como passou a se interessar pela política e pela religião como temas relevantes: “Arouet de Voltaire toca em questões escabrosas, quer dizer religiosas, com um ardor suspeito, um proselitismo imprudente” (ibidem, p. 69). Voltaire pisaria em campos minados pelo Estado absolutista francês, em temas que a monarquia guardava a sete chaves. Ele mesmo reconheceria, já na condição de historiógrafo do rei, em 1745, que a história da França

exigia tal liberdade que só poderia ser escrita, verdadeiramente, fora da

França. Como aponta um de seus intérpretes: “Numa monarquia, o historiador

do

presente

permanece,

sempre,

mais

ou

menos

historiógrafo”

(Pomeau em Voltaire 1957, p. 16). De acordo com René Pomeau, “suas produções pseudoclássicas eram mais subversivas do que ele acreditava. Ele não havia conseguido para

sua Liga aprovação e privilégio, nem mesmo a aprovação tácita. (...) Então, coloca-se como o homem da grande emancipação. Os golpes de bastão do

cavaleiro de Rohan o colocam no bom caminho: ele perdia seu tempo 20

fazendo reverências em Fontainebleau; ele está melhor em seu lugar, no exílio, em Wandsworth, cidade dos quakers e dos huguenotes refugiados”

(Pomeau 1994a, p. 17). Surge então o pedagogo social, o defensor das aspirações da república das letras, o criador dos rudimentos do que ficaria conhecido mais tarde como a “opinião pública”. Durante todo o resto de sua vida fez chover sobre os padres o chumbo e o ferro de uma artilharia poderosa: a persuasão de sua arte literária. O sucesso de suas Cartas filosóficas, obra ma qual ressaltava o aterra, Ingl uma de za nde gra a e da ota esg sa nce fra ão naç uma de mo arcaís

regime do ica crít pela r opta o fê-l a, ern mod nte ame erb sob e ” osa tur «ha ven da. era mod cia dên cen des con uma de os íod per por a ead rem ent de Luís XV, , ções rsti supe suas em , sos abu seus em a gad afo ça, Fran a era “Que pobre país os homens têm em suas misérias, em comparação com a Inglaterra ativa, onde os de caráter e ousam pensar”, reflete René Pomeau acerca dos sentiment s Voltaire (1994a, p. 12) Perseguido pela polícia de Paris por suas diatribe y, com literárias, viveu exilado por mais de 30 anos. Primeiramente, em Cire e madame du Châtelet. Aí, “uma das mais notáveis aventuras intelectuais sentimentais da história da literatura começa” (Goldzink 1994, p. 58). Homem já maduro, esquecera completamente as lições que havia imposto a si mesmo, aplicando golpes sempre na linha da virilha de seus desafetos, que desde 1735 contavam-se em número bastante considerável não apenas na França, mas em toda a Europa, e que se multiplicavam com

extrema rapidez. É que, atacando Voltaire, já uma estrela de primeira

grandeza, tinha-se a chance de construir uma reputação.” Na célebre carta de Rousseau a Voltaire — que consumou um rompimento sem retorno —, datada de 7 de setembro de 1755, resposta enérgica à sátira ao “livro contra

o gênero humano”, de 30 de agosto do mesmo ano, o filósofo de Genebra

já observava que Voltaire era um alvo muito visado em toda a Europa: “As injúrias de vossos inimigos são o cortejo de vossa glória” (citado em

4.

No que diz respeito à anglomania voltairiana, Peter Gay também observa: “Voltaire extraiu as conclusões mais amplas possíveis desse contraste: A Inglaterra é livre, a França, uma terra de escravos; a Inglaterra é arrojada, a França, vítima das superstições” (Gay 1977, p. 223).

5. Mas nem sempre era só ciúme. A malevolência e a maldade também se juntavam para promover a desgraça de um escritor. No “Suplemento a O século de Luís XIV, Voltaire informa-nos sobre um desses golpes aplicados exatamente na linha da virilha: o seu affaire com o instrumento cego de Maupertuis, o jovem e ambicioso La Beau melle. Divulgou-se aos príncipes

da Europa que, em sua obra O século de Luís XIV, Voltaire teria afirmado coisas como: “O rei da Prússia cobre as pessoas de letras de benefícios pelos mesmos motivos que os príncipes da Alemanha cobrem de vantagens os anões e os bufões” (Voltaire 1957, p. 1.224).

21

Goldzink 1994, p. 142). O próprio Voltaire apontou, na “Ca rt a ao Jornal dos Sábios”, para o sentido dessas notas assassina s, feitas “pa ra humilhar um autor, para se fazer valer às suas expe nsas, enfim, para vender uma br ochura”

(1957,

p. 301).

E ainda

piores

que

esses

eram

os “escritores

famélicos que ousadamente tomam o título de historiador”, numa clara alusão aos plagiadores de seus livros (cf. HR 1957, p. 560).

Os capítulos que seguem objetivam situar à tra jetória intelectual de Voltaire, o que permitirá divisar como e por que ele definiu seus temas históricos, e por quais vias chegou à história, par a fazer do príncipe uma figura hiperbólica de sua trama. Como desdobra mento dessa análise, pretende-se comparar a história produzida nos séculos XVII e XVIII, com o propósito de enfatizar que, em seus textos históricos e em seus romances e contos, o enfoque do príncipe sofreu deslocamento s importantes de perspectiva, mas que sua imagem não deixou de ser o foc o da narrativa histórica.” Este livro se ocupa, fundamentalmente, da atividade do Voltaire historiador, dos seus instrumentos conceituais, da sua concepção do te mpo histórico, da sua luta contra a história lendária, sacral e prodigiosa. Enfocaremos ainda o Voltaire divulgador de uma história que segue o novo padrão filosófico das Luzes, mas que nunca desperdiça uma oportunidade para instruir os príncipes, mesmo que seja pela ficção literária. Se, em alguns aspectos, enfatizamos o Voltaire literário, em digressões talvez excessivas, foi sempre com o propósito de melhor compreender a concepção de temas centrais de suas Obras históricas, como a imagem do príncipe virtuoso em meio a sua obra civilizadora para se aproximar do ideal do bom governo. Dito de outra forma, pela análise historiográfica, nosso fio condutor segue fiel a uma pista central: o espaço da ação do soberano na história e a busca contínua da paz e da prosperidade. 6.

Para a designação de três obras de Voltaire recorrentemente citadas ao longo de nosso texto, utilizaremos formas abreviadas do título completo. Em alguns casos, quando não houver referência por extenso próxima às citações entre aspas, remeteremos o leitor a História do Império

7.

da Rússia

sob Pedro,

o Grande

pela indicação das letras HR,

em

itálico, entre

parênteses. A mesma convenção será aplicada a O século de Luís XIV, identi ficada pelas letras SLea História de Carlos XII, referenciada pelas iniciais HC. As obras serão citadas com seus títulos em português, mas é sempre ao texto original que remeteremos o leitor.

Sobre a questão da originalidade das idéias e da filosofia política do século XVIII, E. Cassirer afirma que, “no desenvolvimento do pensamento político do século XVIII, o período do Iluminismo revelou-se um dos mais férteis. (...) Contudo, a despeito desse profundo interesse por todos os problemas políticos, o período do Iluminismo não deu origem a uma nova

filosofia política. Estudando as obras dos mais famosos e influentes autores, somos surpreendidos pelo fato de nelas não se encontrar qualquer teoria completamente nova. As mesmas idéias são repetidas constantemente — e essas idéias não foram criadas pelo século XVII”

(Cassirer 1961, pp. 219-220).

22

Í

EMBATES E COMBATES: O BATISMO DO HISTORIADOR NA ESCOLA DO ANTIGO REGIME

Suas experiências são mais variadas, suas curiosidades mais

extensas que as de Montaigne. É uma festa para o espírito

encontrar todas as matérias, ou pouco falta para tanto, da cultura humana, repensadas e exprimidas no curso de uma longa “conversa” de mais de meio século, por um dos homens mais inteligentes e mais vivos que jamais existiu. René Pomeau

A longa trajetória intelectual de Voltaire poderia ser resumida da seguinte maneira: a busca frenética do triunfo, a glória literária perseguida a qualquer custo por um homem de admiráveis talentos. Como diria um de seus contemporâneos, La Harpe, por ocasião de sua morte: “Não lhe bastava ser o herói do século, ele desejava ser a novidade do dia”." Nesse mesmo sentido, um de seus historiadores reconhece que, “se ele se recusa a falar de si mesmo, deseja que todos falem. Que prodigiosa vaidade a sua! Ele é autor dramático, e ele é ator. Ele procura aplausos duplamente” (Pomeau 1994a, p. 8).

1.

Citado em Lepape 1995. E é fato que ele conseguiu as duas coisas. Como observa Isaiah Berlin, Voltaire tornou-se “o indivíduo mais famoso do século XVIIP” (Berlin 1979b, p. 113).

23

O

editor

mais

recente

de

seus

romances

e contos

ecoa

essas

considerações: “Ele tem necessidade de valorizar-se e de provar que é o melhor” (Guitton 1994, p. 15). Ser ignorado parece ter sido o maior flagelo de Voltaire. No espírito ars longa, vita brevis, confessava ser capaz de escrever uma carta em duas horas, mas necessitava de três meses para torná-la peça literária:

Contrariamente às idéias recebidas, Voltaire não tinha uma escrita flue nte. Vários contos, notadamente os mais importantes, permaneceram meses, e até anos, por terminar. Uma longa incubação podia preceder uma não menos longa gestação. (...) Os raros manuscritos conservados mostram que numerosos “estudos” precediam o quadro final. De uma edição à outra, o texto era melhorado. (Ibidem, p. 19)

Mas parece ser verdade que escreveu o Cândido em três dias. Isso revela um traço muito peculiar da personalidade desse autor, dess e “demônio que passou a vida com a pena na mão” (Biziêre e Solê 1993), “a libido sciendi dos teólogos, o desejo fervoroso do saber” (Goldzink 1994), haja vista que grande parte das suas aproximadamente 15 mil cartas preservadas — a chamada “literatura do prazer social” — é uma verdadeira aula de erudição. Nesse sentido, Voltaire é bem a expressão do fenômeno descrito por Paul Hazard para caracterizar o surto iconoclástico da cultura do século XVIII: “Os detentores de archotes avançavam, a verdade ia surgir dos esconderijos onde se acoitava. Chamavam a si próprios, orgulhosamente, amigos da verdade, os aletófilos. Numa medalha, cujo reverso representava Minerva, mandaram gravar a divisa sapere aude (Hazard 1989, p. 49). 2 No tempo de Voltaire, a história é um universo expandido, principalmente se comparada às possibilidades da história do século XVI e de boa parte daquela produzida no século XVII. A nova história dos filósofos e o trabalho dos eruditos — em sua maioria eclesiásticos -, em várias regiões, alargou o campo da pesquisa. Mas faltavam ainda bons explora2.

Segundo Kant, em seu famoso ensaio sobre a natureza da filosofia das Luzes, “a ilustração é

libertação do homem de sua culpável incapacidade. A incapacidade si gnifica a imposs ibilidade de servir-se de sua inteligência sem a direção de outrem. Essa incapacidade é culpável,

porque sua causa não reside na falta de inteligência, mas na falta de decisão e corag em para

servir-se dela por si mesmo, sem a tutela de outro. dapere aude! Tenha o poder de servir-te de tua própria razão! — eis aqui o lema da ilustração” (Kant 198 |, p. 25). Acerca dosi gnificado

dessa palavra de ordem cf. também Cassirer (1994, p. 223) e Venturi (1971, pp. 35-47).

dores, pois os progressos da crítica documental no século XVII não foram acompanhados pelos que escreviam história apoiando-se em métodos mais rigorosos. No século XVIII, os historiadores multiplicam-se. Voltaire

será uma figura importante entre os partidários das novas exigências. Voltaire foi filósofo e historiador. Foí também

teórico da história,

isto é, metodólogo. Como reflete Carbonell, as relações entre a história e a filosofia são a marca do Século das Luzes. São relações tão íntimas que, por vezes, as duas palavras tornam-se sinônimas. (...) Numerosos filósofos se fizeram historiadores, como o escocês David Hume, que, depois de ter tentado ser o “Newton da psicologia”, escreveu uma História da Inglaterra (...). Ao contrário, historiadores houve que se fizeram filósofos; foi o caso do eclético Montesquieu, que, após as suas Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência (1734), publicou o Espírito das

leis (1748). Voltaire foi alternadamente filósofo e historiador — um historiador

versátil, com uma História de Carlos XII engendrada como romance de capa e espada,” um historiador pioneiro, de curiosidades inovadoras, em O século de Luís XIV (1751) e no Ensaio sobre os costumes (1756).

Filósofo da história — foi

ele quem forjou, em 1765, o neologismo “filosofia da história” —, Voltaire é também um filósofo sobre a história. (1987, pp. 104-105)

O espírito do historiador em Voltaire foi aguçado pelo olhar do filósofo. Sua argúcia filosófica foi instrumentalizada em sua obra contra as gerações dos historiadores-fabulistas que o antecederam. Os mitos políticos da história da França foram repudiados pela historiografia do Século das Luzes, enfocados como lendas de tempos de obscurantismo; passaram à condição de alvos preferidos na mira de Voltaire. Mas não estiveram apenas sob seu ataque. Analisando autores representativos como Louis de Beaufort, que revelou as fragilidades dos relatos lendários de Tito Lívio, Georges Lefebvre reconhece um tipo de lógica plenamente aplicável a Voltaire, ponto importante de discrepância da moderna historiografia das Luzes com a perspectiva que iria se consolidar a partir

do romantismo. Diz ele sobre Beaufort: “Seu ponto de vista se afasta da 3. 4. 5.

Para uma análise acerca do estilo literário arrebatador da História de Carlos XII, q.v. Fueter (1953, p: 27). “Se Montesquieu fundou a ciência social, Voltaire criou a história da civilização, e o Ensaio, apesar de todas as suas limitações, pode ser classificado como um dos mais importantes livros do século” (Bury 1971, p. 138). Sobre as circunstâncias do nascimento do conceito, q.v. Gusdorf (1960, p. 211).

visão atual da história, porque ele não suspeitava que as lendas ou as fábulas podiam conter uma base histórica” (1974, pp. 112-113). A obser-

vação é relevante e procedente, mas há certas nuanças que precisam ser consideradas.

Na História do Império da Rússia, ele admite que uma fábula pode conter a verdade, apesar de sua inverossimilhança. Ao abordar o reencontro de dois irmãos separados desde crianças, e o fato de que uma estrangeira cativa iria tornar-se uma imperatriz, ele observou: “Esse reconhecimento, por mais singular que pareça, não é tão extraordinário quanto a elevação de Catarina: um e outro são uma prova surpreendente do destino, e podem

prestar-se a nos fazer suspender nosso julgamento quando tratamos por fábulas tantos acontecimentos da Antiguidade, menos opostos talvez à ordem comum das coisas que a história dessa imperatriz” (HR 1957, p. 506) Mas há uma tendência marcante em considerar a fábula como a mais grosseira de todas as espécies de mentira que entulham os livros de história. Contudo, não é toda fábula que é ruim, porque ele sabe que é perfeitamente possível lançar sobre ela um olhar filosófico: “Ah! Se as fábulas nos são necessárias, que sejam, ao menos, o emblema da verdade. (...) Gosto das fábulas dos filósofos, rio daquelas das crianças e detesto as dos impostores” (Voltaire 1994). As fábulas predominaram por um longo tempo, porque são sedutoras aos olhos dos que lêem a história do maravilhoso e do fantástico no espírito das damas fúteis e desocupadas. Ler a história como filósofo, eis a receita voltairiana para libertá-la da insensatez dos prodígios e das aparições (Cf. HR 1957, p. 349). Seu horror aos historiadores fabulistas leva-o a um combate particular contra o que ele mesmo gostava de chamar de écrivains faméliques,

aqueles autores mortos de fome já citados, que escreviam mentiras para 6.

Acerca do insólito e do maravilhoso na literatura do século XVIII, em geral, e na obra de

Voltaire, em particular, E. Guitton assevera que, “por força de se falar do racionalismo das Luzes, acabou-se por esquecer que os philosophes não eram somente máquinas de pensar,

tinham também uma imaginação e um coração. Sobretudo Voltaire, tachado de insensível e relegado ao mundo das idéias ou, a rigor, aquele das belas causas”. E mais à frente, Guitton

vai afirmar que “os grandes pensadores do século XVIII — sem excetuar Voltaire (...) - eram sonhadores poderosos e, cada um a sua maneira, tinha assinado no berço um pacto com o

demônio do maravilhoso. (...) a arte de um escritor sempre ultrapassa as antinomias da razão e todo homem é tributário de forças ocultas que, tão distantes quanto possível das luzes do pensamento, fornecem-lhe, desde a infância, um reservatório de obsessões e de fantasmas”

(Guitton em Voltaire 1994, pp. 7-9).

vender brochuras. Foi por causa desses de Thou e daqueles La Beaumelle, desses Daniel e daqueles Mézeray e desses Nordberg e daqueles La Motraye, e tantos outros falsificadores da história, que Voltaire teve de se explicar sobre o rigor de sua pesquisa, no esforço de tornar seu trabalho confiável. As cartas com suas defesas e reflexões sobre a história, reunídas

nas Obras históricas, são muito eloquentes acerca do ambiente intelectual em que o historiador europeu do século XVIII estava inserido. Foi contra esses apóstolos do erro premeditado e do “tráfico insolente da mentira” que ele também escreveu o “Prefácio histórico € crítico”, texto relativamente extenso, preâmbulo de sua História do da Rússia sob Pedro,

Império

o Grande,

obra

do

ano

de

1759,

cujo

segundo tomo foi publicado em 1762. A maior e melhor parte desse texto são as setas venenosas atiradas contra a história prodígiosa dos chamados “graves personagens”,

que escrevem

história para ganhar o pão,

e que

têm a audácia de atender pelo nome de historiador. Seus lamentos contra as “obras impuras” — recordemos que alguns de seus textos foram plagiados — e contra a ganância dos editores, levou-o a seguinte consideração: E assim que fazem servir a bela arte da imprensa ao mais desprezível dos comércios. Um livreiro da Holanda produz um livro como um manufatureiro fabrica tecidos; e, infelizmente, encontram escritores que a necessidade os força Ed

a vender sua pena a esses mercadores (...); daí todos esses insípidos panegíricos

e esses libelos difamatórios dos quais o público está sobrecarregado; é um dos vícios mais vergonhosos de nosso século. (Voltaire 1957, p. 340)

No terreno da história das idéias políticas, o século XVIII começa a exprimir, de forma pronunciada, uma nova etapa do processo descrito por Ernst Cassirer (1961) como a dessacralização milenar do pensamento político, o mesmo fenômeno analisado por Eric Voegelin (1982) como a lenta vitória do agnosticismo sobre as formas teológico-religiosas na política. Entretanto, é preciso recordar que o fenômeno da secularização no Ocidente cristão não se verificou por uma invasão das idéias imanentistas sobre as concepções transcendentes na esfera da política. Nesse sentido, a reflexão de Hannah Arendt é bastante esclarecedora: Se, por “secularização”, nada mais se entende que o surgimento do secular e o concomitante eclipse de um mundo transcendente, então, é inegável que a moder-

27

na consciência histórica está estreitamente conectada com ela. Isso, cont udo, de modo algum implica a duvidosa transformação de categorias religios as e trans-

cendentais em alvos e normas terrenas imanentes, em que os hist oriadores das idéias

recentemente têm insistido. Secularização significa, antes de mais nada, simplesmente a separação de religião e política, e isso afetou ambos os lados de maneira tão fundamental que é extremamente improvável que haja ocorrido a grad ual transformação de categorias religiosas em conceitos seculares. (1972, p 102)

Contra o lendário e o maravilhoso

predominante

nos textos de

história, o século XVIII impõe a desconfiança e um estilo que começa a

cultuar, progressivamente, a explicação pela exposição clara e amparada

em fontes. Esse lento e progressivo deslizamento das idéias políti cas da esfera religiosa para o domínio profano irá refletir-se em cheio no discurso histórico de Voltaire. Aliás, sua obra constitui, talvez, o que há

de mais cristalino para a comprovação das teses de Cassirer e Voegelin. A realeza é um objeto frequente na análise histórica de Voltaire. Contudo, se perdeu sua sacralidade, não perdeu o seu “império”. Com efeito, o profundo interesse que Voltaire demonstra em relação a Henrique IV (Za Henriade), a Carlos XII (História de Carlos XII rei da Suécia), a Luís XIV (O século de Luís XIV), por exemplo, é sintomático de que há algo aí que ultrapassa as preocupações do historiador. De fato, são bem conhecidas as relações entre intelectuais e soberanos na Europa dos séculos XVII e XVIII. Nesse aspecto, a trajetória de Voltaire foi exemplar. Cortejador de cabeças coroadas, também foi muito cortejado por príncipes importantes.

Como vimos, ele era um dos mais apaixonados partidários da monarquia, e é bem possível que essa posição derive de sua convicção de que um poder forte e reconhecido por sua autoridade seja o único regime a guiar um grande Estado ao bom governo. Para ele, os governos mais relevantes da história da França foram aqueles nos quais o reconhecimento do poder real era mais visível. Esse período correspondia à época

inaugurada por Henrique IV, passando pelo ministério de Richelieu, para

culminar com Luís XIV. Em sua avaliação, o governo de Luís XV não era

mau, na verdade, era uma “idade de prata”, correspondendo a tempos até bem gloriosos, porque facilitado pela grande e difícil obra anterior de

consolidação da monarquia, protagonizada pelo Rei-Sol e por mais alguns poucos predecessores geniais.

28

ass

A historiografia contemporânea sempre desconfiou que Voltaire teria elevado demais a figura de Luís XIV com o propósito de rebaixar a de Luís XV, o que parece verossímil.” Numa análise sobre o conjunto da historiografia dos séculos XVII e XVII, Guy Bourdé e Hervé Martin consideram que “a subordinação da história à política é igualmente muito visível (...), quer se trate de defender o absolutismo real ou, pelo contrário, de apoiar as pretensões dos parlamentos. Os filósofos dirigem prioritariamente a sua mensagem aos príncipes (...), esperando assim incitá-los a trabalhar para a felicidade dos seus povos” (Bourdé e Martin sd. p. 62). Em O século de Luís XIV, imagens hiperbólicas sobre a personalidade do rei e suas realizações são referências que atravessam toda a obra. Voltaire leva a crer que grande parte dos escritos da posteridade foi obra de ingratos. Contra essa tradição, escreveu páginas inteiras, carregando em termos fortes. Os progressos que levaram à superação da história sagrada de Bossuet e dos historiadores do Grande Século são muito notáveis na primeira metade do século XVIII. Mas seria prudente nuançar essas virtudes secularizadoras no campo da história. De fato, a historiografia produzida no Antigo Regime, e muito mais ainda ao longo da primeira metade do século XVIII, esteve longe de constituir-se como um campo homogêneo de estudos. Nesse sentido, Charles-Olivier Carbonell (1987, p. 93) esclarece que, “da perspectiva da historiografia, o Grande Século e o Século das Luzes manifestam-se como contínuos e descontínuos. E já não há só uma história, mas histórias”.

Acerca desse caráter heterogêneo da história produzida na França do Antigo Regime, particularmente durante a Época Clássica e o Século das Luzes, é preciso considerar que se trata de fenômeno já muito antigo. Para Guy Bourdé e Hervé Martin, a diversidade nas formas de produzir obras de história é um fato verificável desde o fim da Idade Média. Segundo esses autores,

t. Como observa Peter Gay, “o declínio da cultura era um tema que obcecava Voltaire (...). Ele estava convencido de que o século de Corneille e Moliêre alcançara triunfos tão marcantes que deixara a seu sucessor uma Idade de Prata: a era de Luís XIV desbravara um vasto campo, tão vasto que a de Luís XV dele” (Gay 1977, p. 104).

só conseguiu cultivar uma pequena parte

a Idade Média conheceu uma grande variedade de tipos de historiadore s. A partir de então, não se poderá contentar em evocar, como fizemos, os sempiter nos Raoul Glaber, Joinville, Froissart e outros Comynes. Beard Guenée edificou uma autêntica sociologia do saber histórico, distinguindo os tipos de historiadores, segundo os locais onde exercem, mais do que segundo as épocas. (Bourdé e Martin, s.d., p. 40)

Mas, no século XVIII, as curiosidades diversificam-se ainda mais, a história se alarga: métodos, questões políticas, temas de geografia, cos tumes. Tudo o que se poderia esperar naquele novo regime inte lectual] passa a entrar em linha de consideração. A uma expansão do intere sse pelo passado corresponde uma grande diversificação de estilos. Pierre Chaunu (1985) amplia esse entendimento, na medida em que considera que a história era leitura garantida entre os franceses, que muito apreciaram, desde o início da Época Moderna, os livros da história lendária, os romances de reis e as grandes crônicas nacionais. Num quadro geográfico mais dilatado, as

tradições nacionais revelam-se bastante diversificadas, pouco ou quase nada havendo de comum entre as histórias produzidas na França, na Inglaterra, na Alemanha. Analisando as condições da produção historiográfica na Inglaterra de Edward Gibbon, Peter Gay considera o fenômeno daquilo que passa a constituir novidade no campo da história, em convivência com gêneros antigos, muito presentes e até revigorados pelo trabalho marcante de : j Re ds 8 intelectuais dos círculos eclesiásticos.

Do mesmo modo, Robert Nisbet fala da notável repercussão de

Bossuet, em pleno século de Montesquieu,

de Voltaire e dos enciclope-

distas: “É justo dizer-se do Discours — e não se lhe pode prestar maior

elogio — que

representou

Cidade de Deus 8.

havia

para

os séculos XVII

representado

para

e XVIII

os períodos

aquilo

que 4

posteriores ao

“Ainda nos anos 1750, quando Gibbon meditava sobre sua futura vocação, as histórias mais

populares sobre o mundo antigo eram os livros do jansenista francês Charles Rollin, que

publicara nos anos 1730 uma extensa História antiga e uma História romana igualmente

extensa, e cujas concepções históricas eram, quando menos, ainda mais subservientes aos imperativos religiosos do que as de Bossuet. (...) Quase todas as páginas da história mostram

“os preciosos passos e provas refulgentes desta grande verdade, a saber, que Deus dispõe todos os fatos como Senhor e Soberano Supremo; que apenas Ele determina o destino dos reis e à duração dos impérios; e que Ele transfere o governo dos reinos de uma a outra nação, em virtude das iniquidades e perversidades nelas cometidas”. (...) A história, em suma, corres-

ponde basicamente a um campo experimental da teologia, um conto edificante com à finalidade de resguardar o leitor a salvo no seio da Fé” (Gay 1990, p. 42).

30

compreenstto mui na tor se isso , Ora . 155) p. 85, (19 al” iev med e ano rom monárquico mo tis olu abs o , opa Eur na II XVI ulo séc do go lon ao , pois vel,

é o pano de fundo sempre presente em quase todas as cenas da vida política, social e religiosa. E tal consideração é tanto mais válida para a primeira metade do por ra ratu lite na da níti to mui va esta da ain Sol Reido gem ima século. A de m Alé . aire Volt de e ress inte nde gra O tra ons dem essa época, como bem o para açã pir ins de es font são os feit seus e XIV Luís , uais lect inte tema para

“os t, orge Pill e ann Suz rma afi o Com . opa Eur a toda cabeças coroadas em

(1981, p. ” XIV Luís ar imit a e r ira adm a uam tin con us ope soberanos eur o cultural íni dom “o que a erv obs é Rud s rge Geo o, mod mo mes 185). Do os nic etô uit arq es dor len esp Os as. letr às nas ape ou fin con francês não se ” ras gei ran est es cort nas s ore tad imi (...) o rad ont enc ham tin hes de Versal (1988, p. 216). e A crise da consciência européia dos anos 1680-1715, important opa Eur na ão zaç ili civ a nov uma de ção rma afi a a par ura fiss de o foc das Ocidental, foi um fenômeno que pertenceu apenas à uma parcela elites, a uma “fina película” desses segmentos sociais em alguns poucos países europeus, como a França, a Holanda e a Inglaterra. Isso para afirmar que as idéias que farão ruir o Antigo Regime, e que já estavam presentes no espírito de alguns pensadores desde a época de Bossuet, são uma espécie de veneno lento. Vai nesse sentido a análise de Suzanne Pillorget ao afirmar que, “na verdade, uma nova ideologia, fundamentalmente hostil às bases políticas e religiosas do século precedente, nasce durante a vida do Grande Rei. Mas sua expansão nos espíritos dá-se muito lentamente, e até meados do século apenas atinge um número restrito de membros da elite social” (1981, p. 185). Para Guy Chaussinand-Nogaret (1994, p. 11): A rotina recorta a história em séculos e reinados. Procedimento cômodo e frívolo que até pode, em alguns casos, revelar-se pertinente, mas que certamente não presta conta das revoluções da vida do espírito: aquilo que obedece a razões € a ritmos menos aritméticos. A aparente unidade do “século” de Luís XIV é somente uma ficção e o longo magistério desse monarca preenche, em verdade, duas idades do pensamento (...). Os anos 1690 marcam uma ruptura tão completa com a idade anterior que o conformismo imposto não é suficiente para camuflar a intensidade nem mesmo atenuar a cesura. Durante esses anos, a geração “clássica” acaba seu percurso.

31 2

EM,

Sobre o fraco enraizamento das novas perspectivas surgidas com

base em um maior desenvolvimento crítico entre os círculos int electuais nas sociedades européias mais avançadas, entre os últimos anos do séc ulo

XVII e as primeiras décadas do século seguinte, Pierre Barriêre (1963, pp. 251-252) argumenta que:

A mator parte das idéias filosóficas, ao menos aquelas que seriam verdadeiramen-

te assimiladas, não são novidades, e já estão no ar, como haviam estado as idéias

de Montaigne, de Descartes. Trata-se de precisá-las. Os filósofos as formularam, mas as fórmulas não alcançam senão um público culto, preparado, que pôde ampliar-se, mas que sempre foi bastante limitado. Seu significado é deformado frequentemente, seu alcance, por outro lado, é amiúde incompleto (...). As palavras mudam talvez mais que as coisas.

O

historiador

foi despertando

pouco

a pouco,

em

meio

aos

“debates e combates” que se seguiram à chamada crise da consciência européia. Mas, ao Voltaire-historiador, precedeu o Voltaire-poeta que, por sua vez, foi sucedido pelo Voltaire-filósofo; essas dimensões conviveram ao mesmo tempo na longa existência de monsieur Arouet. De fato, não há um tempo do Voltaire-historiador, haja vista que suas obras históricas

foram produzidas esparsamente, com diferença de muitos anos de umas para outras. Se levarmos em conta dois livros importantes, como a História de Carlos Xl e O século de Luís XIV, veremos que, quanto à publicação, estão separados por 20 anos, já que o primeiro veio à luz em 1731 e o outro, em 1751.

É preciso notar, no entanto, que O século de Luís XIV foi iniciado

no ano de 1732. Voltaire despendeu nessa obra sete anos de sua vida; em 1739, ainda trabalhava nela. Contudo, o livro permaneceu inédito até 1751, quando foi publicado na Prússia, reformulado e expandido, sob os auspícios de Frederico II. Esse livro custou muito caro a Voltaire, entre outras coisas, porque foi subtraído por um jovem destinado a um grande futuro,

Lessing.

Conta

Paul

Hazard

que,

procurando

por um

tradutor

alemão, o livro acabou por cair nas mãos do jovem Lessing, em seus anos rebeldes, que se afastou de Berlim levando consigo a obra, motivo de grande tormento para Voltaire (Hazard 1989, p. 389).

32

dir

0.000

oo... í

O

PD.

Voltaire tinha razão em se preocupar. Ao que parece, seu livro foi

um sucesso editorial:” teve oito edições em menos de dez meses, como

informa o texto “Avis du libraire” (Voltaire 1957, p. 614). A primeira edição foi publicada com o beneplácito de Frederico II. O autor reescrevia sua obra incessantemente, solicitando novas edições. Na edição de Leipzig, de 1752, a obra havia engrossado em um terço de seu volume original. Mas,

não

seria esse

o único

livro de Voltaire roubado

antes de ír à

em estampa. O Ensaio sobre os costumes, que vinha sendo publicado e aquel días, s algun por ar, amarg autor o fez ém tamb 1745, desde s parte

et mesmo sentimento de perda, como informa René Pomeau (“Notes variantes” em Voltaire 1957, p. 1.698). O século de Luís XIV é o desdobramento temático do Ensaio sobre os costumes, apesar de concebido muito tempo antes. Voltaire achava que O século de Luís XIV seria uma espécie de sequência cronológica daquela

obra, apesar de ter reduzido as dimensões de seu objeto. O fato é que O autor transferiu trechos inteiros de um livro para o outro nas edições sucessivas, conforme afirma Pomeau (ibidem, p. 1.702). Aliás, um livro de Voltaire parece ser uma obra sempre em aberto, e ele retomará

continuamente vários dos trabalhos que corisiderava incompletos. O século de Luís XIV e o Ensaio sobre os costumes sofreram alguns aditamentos importantes: “O que mostra bem o lugar da história no auge do esforço de toda uma vida” (Chaunu 1985, p. 261).

9.

“O sucesso de O século de Luís XIV excitava os apetites dos editores” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 8). Décadas mais tarde— anos 1778-1779 —, os textos de Voltaire teriam uma cotação

elevadíssima na disputada bolsa de investimentos editoriais. R. Damton mostra quanto o

editor Panckoucke estava disposto a desembolsar para adquirir da herdeira, madame Denis,

os manuscritos do patriarca (Darnton 1996, p. 313ss.). Acerca do estrondo provocado pela

obra de Voltaire, no presente e no futuro, Jean-Marie Goulemot e Éric Walter observam que, “no século XVIII, ele já estava no hit-parade da edição. Em 200 anos, suas obras completas foram publicadas seis vezes mais que as de Rousseau” (Goulemot e Walter 1984, p. 392). 10.

Seu historiador, René Pomeau, dá a entender que um dos livros mais reputados foi a obra de

quase meio século cheio de peripécias: “(...) ele não cessará de alimentar o texto do Ensaio, acrescentando muito, excluindo pouco, até a última revisão, alguns meses antes de sua morte, em 1778. A redação se estende, pois, a 34 anos entrecortados de longas interrupções” (Pomeau

em Voltaire 1990, p. 5). É interessante acompanhar nessa edição alguns fac-similes das anotações de Voltaire, observando seu hábito de reservar aproximadamente

um terço da

página para correções. Segundo Pomeau, o que se confirma por alguns manuscritos preser-

vados na coleção da Biblioteca de Leningrado, Voltaire tinha o hábito de colar tiras de papel sobre as frases a serem retificadas.

55 e

vião

E qual o caminho trilhado por esse aventureiro do espírito, no

melhor sentido possível da expressão,

que o levou à história, às idéias

políticas e, sobretudo, à realeza solar? Para alguns autores, com o Pierre Lepape (1995), por exemplo, tratou-se de uma conversão em nome de uma glória literária a ser dilatada, uma vez que, no terreno das vaidades intelectuais, Voltaire já havia se consolidado com sua dramat urgia, apesar

de algumas de suas peças terem conhecido enormes fracassos. Para Guy Bourdé e Hervé Martin (s.d., p. 69), Voltaire converteu-se progressivamente à história. A sua fama de poeta estava já solid amente estabelecida quando se lançou na História de Carlos XII (...). Foi ao compor as suas grandes epopéias, Édipo (1718) e La Henriade (1723), que adquiriu o gosto pelo estudo do passado. Nisso apenas abraçava o movimento do seu tempo. No fim do reinado de Luís XIV, muitos tinham o sentimento de terem vivido uma grande época e queriam erguer quadros para a posteridade. As desgraças de 1709-1710, tanto mais dolorosamente sentidas quanto a França se tornara “um todo regular em que cada linha culmina no centro” (Pomeau), apenas avivaram esse sentimento. Para além dessas razões conjunturais, atribuía-se uma atenção mais aguda à vida em sociedade e aos sistemas políticos. Participando desse entusiasmo, Voltaire aborda esse campo de estudo novo para ele como l a a literato e moralista.

Uma explicação que se deve considerar para a compreensão dessas

guinadas voltairianas para a história é realmente a sua paixão pela grande obra luiscatorziana, no domínio da conquista da civilização dos costumes e da criação e expansão da cultura letrada entre os franceses. Sentindo que, no reinado de Luís XV, faltavam-lhe espaço adequado e atmosfera respirável para estabelecer seu império particular no mundo intelectual,

e ainda constatando que, nos domínios das letras e das artes, houve um notável recuo em todas as manifestações culturais em relação à França de

Luís XIV, ele tenciona retornar àquele tempo, para assoprar as brasas das grandes conquistas passadas, e tentar recuperar a tradição perdida. 11.

É preciso observar que o crédito dado a Pomeau pelos autores pertence ao próprio Voltaire,

12.

Voltaire 1957, p. 8). “Luís XIV surge à maneira de um farol do modernismo, à luz do qual as contradições são, de

ou seja, O juízo de que a França se tornara “um todo regular em que cada linha culmina no centro” foi proposto pelo autor de O século de Luís XIV (cf. o “Prefácio” de Pomeau em alguma forma, transcendidas, sem contudo receber uma solução. As divergências entre os

autores parecem mesmo esquecidas. Com efeito, que ele seja considerado por Voltaire como

A partir de seu reinado pessoal, a figura de Luís XIV esteve no

centro de um conjunto complexo de imagens e símbolos, elaborado pelas mais diversas formas de manifestações culturais e artísticas. Para o seu tempo, ou até para alguns anos depois, isso é fato bem compreensível. Mas que estranha metamorfose fez com que o mito de Louis Dieudonné se mantivesse tão vivo na consciência dos franceses cultos décadas e décadas depois de sua morte? Por que Luís XIV como tema, como objeto de pesquisa? O fato é que, ser historiador, na França do século XVIII — como ser historiador em qualquer outra época —, implicava falar de determinados temas, estes por sua vez inseridos em períodos-chave da história do reino.

Antes de sua predileção por Luís XIV, Voltaire já havia passado por Henrique IV, noble sujet entre as histórias produzidas nessa época, mas havia abordado a vida desse monarca de excepcionais virtudes no espírito de um dramaturgo que desejava impressionar os amantes da literatura. Essa queda de Voltaire por Henrique IV foi imortalizada em algumas imagens. Os pintores Hudon — que retratou Voltaire em inúmeras cenas de sua vida cotidiana, a soldo de Catarina II — e Fauvel fixaram na tela uma Apparition d'Henry IVe um Voltaire accuelli aux Champs Elysées par Henry IV, cristalinos testemunhos de uma grande reverência.

Segundo Chaussinand-Nogaret, conio seus contemporâneos, Voltaire enxergava em Henrique IV o modelo dos soberanos esclarecidos. Ele consagrou um longo poema épico em dez cantos (...) publicados em 1723 com o título de La Ligue ou Henry Le Grand, tornado em seguida La Henriade. Inimigo do fanatismo, Henrique IV aí aparece como o

restaurador da paz religiosa, o apóstolo da tolerância, virtude essencial da qual depende a felicidade e o bem-estar. (1994, p. 20)!

Sobre a eleição dos temas relevantes da história no Antigo Regime,

Philippe Ariês tem uma explicação interessante, que denomina “saliências o motor do progresso da civilização ou, por Saint-Simon, Boulainvilliers e Montesquieu, “13.

como um usurpador, Luís XIV representa uma encruzilhada da história, a passagem de uma época antiga a um período completamente novo” (Ferrier-Caveriviêre 1985, p. 154). Na interpretação de E. Le Roy Ladurie, a época de Henrique IV é “suficientemente “coabitante” para merecer inteiramente a onda de nostalgia retrospectiva com que a inundarão um século mais tarde os filósofos da tolerância, à frente dos quais se inscreverá Voltaire” (Le Roy Ladurie 1994, p. 271).

35

que perfuram a superfície de um tempo demasiado unifor me”. Para Ariês as guerras de religião e Henrique IV foram, para os homens do século XVI, o primeiro relevo no horizonte. No século XVIII, a personalidade de Luís XIV os substituiu. Quando alguém se voltava par a o passado, ia direto a um desses altos períodos” (1989, p: 200). E em razão desses desvios da história efetiva, que de tempos em tempos parece precipitar-se no caos, que a figura imperial do príncipe surge na obra histórica de Voltaire. Com efeito, foi sempre um príncipe que a fez se desviar dessas rotas assassinas. Tangenciada pel o furor fanático num dado momento, Henrique IV debela os agentes da desordem, fazendo-a retornar ao curso natural: novamente descarrilada por um determinado período, Luís XIV a reconduz aos trilhos. Inequivocamente, o príncipe é a resposta ao problema da segurança e da ordem. Nesse LÊ

=

Fa

a

Cu

aspecto, a matriz do pensamento político voltairiano integralmente, aos séculos XVI e XVII.

pertence,

quase

Ao lançar seu olhar ao passado não muito distante da França, Voltaire percebeu temeroso o potencial de destruição das guerras civis. Como afirma George Huppert, “no domínio da política, esse medo se manifesta por um culto excessivo do absolutismo real, maneira de exorcizar o temor de um passado de guerras civis” (Huppert 1973). Essas subversões sazonais do curso natural da história, barrando o caminho de um regime crescente de paz e prosperidade, reforçam em Voltaire a aspiração a uma monarquia cuja soberania esteja inequívoca e acentuadamente concentrada nas mãos de um príncipe virtuoso.” =

“aa

14.

n

E

1

Substituiu, porém, sem anular. Com efeito, as guerras de religião são um tema histórico recorrente na enciclopédia voltairiana, em sua versão filosófica, histórica ou literária. Além da Henriade, inúmeros textos do autor analisam esse problema. Outro tema importante,

porque realça o vazio de poder e, por conseqgiiência, a instabilidade da ordem pública, será a Fronda. Ambos os eventos despertaram a atenção de Voltaire, muito provavelmente porque abriram

terreno para o advento

de pequenos

tiranos, que o autor abomina

e satiriza no

Dicionário filosófico (cf. 1978, verbete “Tirania”). Assim sendo, para essa dimensão do horizonte intelectual de Voltaire, parece perfeitamente aplicável o arrazoado de M. García-

Pelayo de que a soberania indivisível do príncipe foi “a esperança ancorada na ordem política 15.

como via de salvação pública” (García-Pelayo 1968).

Nesse sentido, sua expectativa corresponde à das sucessivas gerações do Antigo Regime,

definida por R. Mousnier nos seguintes termos: “O absolutismo era o desejo das multidões,

que viam sua salvação nas mãos de um único homem, encarnação do reino, símbolo vivo da ordem e da unidade almejadas” (Mousnier 1967, p. 119).

À

Voltaire chega à história guiado por Luís XIV, já que sua obra histórica anterior, 4 vida de Carlos XII, não era muito mais que uma monografia monocórdia, uma história-batalha agradável em certos aspectos, mas enfadonha em outros; não fosse sua arte genial de narrador € algumas reflexões sobre a história e o ofício de historiador no século XVIII, ela teria bem poucos atrativos, a não ser seu valor de documento. Para Nicole Ferrier-Caveriviêre (1985, pp. 123-124): A fraqueza de Luís XV lhe pesa; o octogenário Fleury o exaspera tanto lhe parece

pálido; (...) Ele gostaria que Luís XV governasse “pessoalmente com brilho”, a fim de que a França se tornasse um modelo para as outras nações. O presente não lhe trazendo senão o travo da decepção, volta-se em direção a um passado que se adapte melhor a seus desejos. O reino de Luís XIV inspira-lhe reflexões que têm o valor de réplicas e de lições endereçadas a Luís XV.

Mas opção, isto seu grande móveis de esplendor

há também outros indícios que ajudariam a explicar a sua é, sua chegada à história. No próprio Voltaire, descobrimos interesse pessoal. Em O século de Luis XIV, ele confessa os sua opção pelo tema, o brilho e a magnificência do rei: “O de seu governo sobre suas menores ações. Estava-se mais

ávido de saber das particularidades de sua corte, sobretudo na França,

que das revoluções de alguns Estados. Tal é o preço da grande reputação”

(SL 1957, p. 890). Parece haver uma ponta de nostalgia do autor sobre

uma época que ele teve a infelicidade de não ter vivido. Não teria ele visto, na época de Luís XIV, um tempo propício para si mesmo? Entretanto, essa explicação precisa levar em conta a participação de Voltaire no

diálogo com a tradição intelectual do século XVIII. É preciso compreender

essas defesas quase incondicionais de Luís XIV em seu contexto. Na época de Voltaire, houve uma tradição muito restritiva e até hostil à memória de Luís XIV, e ele estava empenhado em reunir elementos para

um contra-ataque.”

16.

Anos mais tarde, em fins da década de 1760, esses ataques relativamente isolados se transformariam em um fogo cerrado que era preciso enfrentar, caso Voltaire quisesse fazer frente àqueles que desonravam seu herói. E essa artilharia vinha dos fisiocratas, reunidos em torno de sua tribuna intelectual Ephémérides du citoyen. É dessa época o libelo contra esses personagens, o conto “O homem dos quarenta escudos” (1768).

57

Voltaire acompanhava com interesse as histórias es candalosas escritas e publicadas com o único fito de ganhar dinheiro. Se ntindo Luís XIV

injustiçado e a história desonrada, ele desabafa : “Ouso dizer que, impres-

sionado todo o tempo pela injustiça dos homens, fiz mu itas pesquisas para saber a verdade” (SL 1957, p. 945). Desse modo, é pre ciso considerar a sua

tendência — mesmo que não inteiramente despertada — de encarar desafios e defender causas novas. É mais ou menos como dizer: ret ire-lhe Calas no

início do dia, e ele se deitará com o cavaleiro de Ia Barre. Em sua fase de Cirey, madame du Chãtelet, newtoniana convicta, nã o reconhecia valor de

ciência na história. Voltaire quis provar-lhe o contrário, obte ndo o pretexto para dar vazão a uma necessidade pessoal. René Pomeau co nsidera que, além dessa amiga, Frederico II também está na gênese do Ensaio sobre os costumes e, portanto,

no seu apego ao

afirma Georges Gusdorf (1960, p. 222).

38

ofício de historiador

O mesmo

Z: VOLTAIRE, INTERLOCUTOR DE BOSSUET

(...) a história é a mestra dos príncipes, da qual podem eles aprender sem dor, passando o tempo e com singular prazer a melhor parte do que é requerido ao seu ofício. Jacques Amyot

O historiador inglês Peter Burke parece ter razão ao afirmar que,

“no século XVIII, houve um movimento internacional para a escrita de um tipo de história que não estaria confinada aos acontecimentos militares e políticos, mas relacionada às leis, ao comércio, à maniere de penser de uma determinada sociedade, com seus hábitos e costumes, com

o 'espírito da época” (Burke 1992, p. 19). Essa é, de fato, a ambição do

pensamento histórico do Iluminismo, conforme foi expresso por Turgot,

Condorcet e Voltaire. No campo da historiografia contemporânea, inúmeras são as referências à modernidade do pensamento histórico de Voltaire. Mas executou Voltaire o audacioso projeto elaborado no espírito de uma nova história, para ser lida com as exigências do olhar filosófico? Uma análise atenta de suas obras históricas parece revelar um descompasso acentuado entre programa e prática de pesquisa. Voltaire

sacrifica a história à crônica militar, apesar de algumas contribuições importantes como a desmistificação de lendas francesas consolidadas, como a travessia do Reno por Luís XIV — celebrada pela arte literária de Bossuet e Boileau —, o ataque e a ruína do providencialismo e, sobretudo,

39

a filosofia da prosperidade. Em seus textos históricos, Voltaire destaca à civilidade — prenunciando temas muito modernos -, para enfatizar as conquistas da era de Luís XIV.

Outros elementos de suas propostas de historiador são: sagacidade

crítica contra o fantástico e o inverossímil, exigência de clareza e concisão

de estilo, composição ordenada e equilibrada dos temas abordados, apego a provas documentais, valorização dos usos e costumes entre os

povos como assunto relevante. Em síntese, Voltaire traçou um programa ambicioso, mas não foi capaz de segui-lo; foi contundente em afirmar intenções, bem mais do que em cumpri-las. Porém, não se trata de esvaziar seu talento e originalidade, mas de tentar estabelecer um termo justo entre a herança recebida e o emprego “revolucionário” dela.

Se Voltaire foi, inegavelmente, a voz da vanguarda, em muitos aspectos, raciocinou e escreveu comungando das crenças de seu tempo, que não era só de luzes. Mas isso também já foi dito e provado, e não constitui preocupação deste trabalho. Com efeito, é preciso reconhecer que seus métodos de pesquisa, da forma como foram propostos em Observações sobre a história e Novas considerações sobre a história, Voltaire os recomendou para os outros, não para ele mesmo, esquivando-se de utilizar seu próprio roteiro, como reconhecem Bourdé e Martin (s.d.). O pensamento histórico de Voltaire estava ainda muito pautado por preocupações de natureza política. Veja-se seu O século de Luís XIV ou sua História de Carlos XII, rei da Suécia, ou mesmo o Compêndio sobre o século de Luís XVe a História da guerra de 1741, para citar apenas quatro obras históricas das mais significativas. A começar pelos títulos, tudo respira no interior de uma atmosfera política, quanto à forma e quanto ao fundo.

Voltaire utilizar-se-á de formas admiravelmente novas de apresentar seus temas históricos, de tecer sua narrativa, mas não foi muito além

de secularizar o conteúdo, quando comparado a autores franceses do século anterior. Essa é, sem dúvida, uma operação importante, suficiente para fazer a glória de qualquer intelectual, em seu próprio tempo ou na

posteridade. É muito mais nessa área que se concentra sua modernidade, e muito menos

na realização efetiva de seu programa.

A tendência de

40

e

ur

di

acentuar a modernidade da obra histórica de Voltaire parece que surgiu em 1914, com o historiador germânico Fueter, quando afirmou que O

século de Luís XIV era um divisor de águas entre uma história antiga e uma história moderna. E

Ed

1

a

Em vários aspectos, Fueter e a tradição que se lhe seguíu têm razão e estamos bem longe de qualquer intenção que tenha por dedo negar ou minimizar a contribuição de Voltaire para a historiografia,” a do século XVIII e dos posteriores, mas apenas relativizar ou nuançar alguns pequenos exageros. Sua recepção foi considerável no século XIX, e aínda está bem viva, com sinais de grande vitalidade. Não se pode esquecer que Jacques Le Goff reivindica Voltaire como um dos grandes patronos da nova história. Não se trata, também, de opor um Voltaire-antigo a um Voltaíremoderno, sabendo de antemão que as duas dimensões coexistem em estado de relativa confusão no conjunto de sua obra. A tradição mais recente tem procurado analisá-lo pelo viés da inovação e nós, paradoxal e pretensamente inovadores, pretendemos enfocá-lo pelo viés conservador. Isso para dizer que, se o Voltaire-moderno nos interessa muito, iremos avaliá-lo naquilo que o caracteriza não somente como herdeiro, mas também como guardião do Antigo Regime, histórico e historiográfico. Ainda assim, ele continuaria moderno, a inspirar eternamente a história: não estão o príncipe e a política, hoje, em alta?

1.

“O primeiro livro de história moderna” (cf. a edição argentina, Historia de la historiografia

2.

Fala-se, com muita fregiência, em historiografia do Antigo Regime, deixando entrever o fato

moderna, Fueter 1953, p. 27).

de que houve verdadeiras escolas de pensamento histórico e, dentro destas, autênticas e bem

definidas correntes historiográficas. Isso é uma projeção da historiografia contemporânea (cf. Burke 1980). O que se reconhece como historiografia, nessa época, é uma verdadeira babel

de opiniões, que, se têm objetos históricos em comum, nada têm que unifique a visão sobre tais objetos. Dessa forma, soa anacrônico falar em historiografia do Antigo Regime, o que não é verdade quando se fala em historiadores desse período. Estes eram intelectuais mais ou menos independentes: padre, jurista, bibliotecário, filósofo, escritor, embaixador e historiógrafo. Este último não passava de panegirista, no dizer de J. Le Goff, que “ocupa apenas um cargo modesto. (...) a sua utilidade e a sua função: provar os direitos do rei e do reino, louvar as boas ações, dar exemplos à posteridade; tudo isso para a glória do rei e do reino” (1984, p. 195). Então, como falar com propriedade em historiografia numa época em que há uma história para cada historiador? O próprio Le Goff considera que “a história não é objeto de ensino. Aristóteles tinha-a retirado do mundo das ciências. As universidades medievais não a integraram entre as disciplinas

lecionadas. Jesuítas e oratorianos deram-lhe algum espaço nos seus colégios. (...) No fim do século XVIII, início do século XIX, universitários que não precisavam se preocupar com um público para quem a história era uma ciência ética, transformaram a história numa matéria de profissionais e especialistas” (ibidem, pp. 198 e 204).

ads

Es SEDES

41

Se é inegável que o autor de O século de Luís XIV promoveu uma

transposição dos métodos em relação à história do Grande Século, alterou

bem pouco o enredo. A histoire bataille esmoreceu um pou co, mas somente para ser substituída pela presença fulgurante de príncipes e

grandes homens.> Recorramos a um de seus mais reconh ecidos especia-

listas para esclarecer esse ponto: “De fato, em O século de Luís XIV, os 24 capítulos de história militar ocupam o primeiro e principal luga r. Se deduzirmos dez outros capítulos de “anedotas” e de política religiosa, a parte verdadeiramente nova limita-se a um capítulo de governo interior”, um de “finanças e regulamentos” e quatro sobre as ciências e as arte s” (Pomeau, “Prefácio”, em Voltaire 1957, p. 20).º Em síntese, se uma parte do cenário voltairiano é novo, é montado para exibir no proscênio os mesmos velhos personagens, atores da melhor parcela da sua ação dramática. Entretanto, para compreender o pensamento histórico de Voltaire na esfera mais estrita do poder real, acreditamos que não seja suficiente inserilo no quadro das realizações do pensamento histórico no século AVI, seria necessário apreender o que havia anteriormente na tradição da historiografia francesa. Isso porque, se há recusas contundentes em seus textos históricos em aderir ao regime historiográfico predominante no século XVII — e mesmo em relação às concepções que ainda vigoravam

3.

A história dos grandes homens, como veremos, não é uma exclusividade voltairiana entre os philosophes. No Discurso preliminar, que apresenta uma das obras-primas em arrojo e em modernidade, já no início da segunda metade do século XVIII, d' Alembert assim descreve os interesses da história: “A história da humanidade tem por objeto as ações ou o conhecimento do homem e, consegiientemente, é civil ou literária. Em outras palavras, está dividida entre os grandes gênios, entre os reis e os homens de letras, entre os conquistadores e os filósofos"”(citado em Darnton 1986, p. 256). No mesmo texto, o historiador norte-americano ressalta que “a última seção do Discurso preliminar propunha um tipo de visão da história baseado nos grandes homens, na qual todos os grandes homens eram filósofos” (ibidem, p. 265). Em outro texto — o “Avertissement” ao terceiro volume de seu grande projeto editorial —, d' Alembert admite que essas grandes estaturas pudessem ser reis, mas que tivessem sido benfeitores das ciências (ibidem, p. 356). 4. Mas, acerca do novo programa, houve quem afirmasse enfaticamente que “Voltaire professou toda sua vida esses princípios; foi em seu O século de Luís XIV que os seguiu com a maior consequência” (Fueter 1953, p. 27). E mais adiante: “O século de Luís XIV é a obra clássica de Voltaire. O plano e a execução concordam perfeitamente” (ibidem, p. 30). Contudo, concordamos com Gustave Lanson ao afirmar que os fazedores de teorias são os últimos à

aplicá-las (cf. Lanson 1960). E Franco Venturi nos fala de “uma nova historiografia, preparada

por Voltaire, e realizada por Gibbon, Robertson, Hume” (Venturi 197 l, p. 28).

O

européia, como Fénelon, o duque e memorialista Saint-Simon, o conde e historiador Boulainvilliers, o pastor e universitário Jurieu e o círculo dos intelectuais protestantes — todos favoráveis a um regresso da monarquia aos tempos antigos das liberdades populares —, comunga com eles admiração enorme pelo regime monárquico.” Em certa medida, ele seguirá alguns dos passos do Cisne de Cambrai, ao dar destaque aos interesses dos povos sobre a grandeza dos reis. Como o autor do Telêmaco, escreveu livros para ensinar a virtude aos príncipes. Nesse sentido, a obra de Voltaire está profundamente enraizada na tradição, no contributo dos ativadores da crise da consciência européia. Ele é o herdeiro direto e o mais legítimo de Boulainvilliers, quem primeiro lançou a idéia de uma história das nações, dos usos e costumes e das artes: “Mas, militante da liberdade, perdeu seu objeto de vista (...). Voltaire recolheu sua predicação e, com sua arte, sua clareza,

sua precisão, realiza seu projeto” (Chaussinand-Nogaret 1994, p. 58).

No que se refere à esfera do poder real, esse enraizamento das idéias de Voltaire parece ter sido um pouco mais profundo, encontrando

pontos de contato com a tradição de Bossuet e dos escritores dos séculos passados; estes não seriam “estaleiros abandonados”, para tomar de

empréstimo uma bela expressão de Paul Hazard. Portanto, tencionamos

E TE.

E

OO a

em seu tempo -, há algumas heranças entre a história que surgiu no Século das Luzes e a produzida no Grande Século. Ainda que ele tenha desenvolvido sobre o príncipe uma visão diametralmente oposta a alguns daqueles ativadores da nova consciência

5.

“Os últimos anos do reinado de Luís XIV deram testemunho do início de uma reação

aristocrática em que Fénelon, Saint-Simon, Boulainvilliers e outros instaram o rei a devolver

à nobreza o seu papel de comparte na governação” (Rudé 1988, p. 266). Acerca da tese aristocrática da história da França, desenvolvida pelo “nobre exclusivista” Boulainvilliers, o texto “Duas legitimações históricas da sociedade francesa no século XVIII”, de François Furet, é extremamente esclarecedor no que concerne aos recalques dos meios nobiliárquicos, privados de participação política a partir do advento do absolutismo luiscatorziano (cf. Furet,

6.

s.d., pp. 175-194).

“Gostaria fossem lançadas ao fundo do mar todas as histórias que traçam somente os vícios e furores dos reis. (...) Rogo a Deus que conheçamos dos príncipes apenas o bem que tenham feito! O universo seria enganado para o bem, e, talvez, nenhum príncipe ousaria dar exemplos

de maldade e tirania”, escreveu Voltaire em carta a Frederico II, em janeiro de 1738, revelando traços marcantes de seu anti-maquiavelismo. (Voltaire em Pomeau 1994b, p. 102). Q.v. a visão extremamente positiva de Voltaire sobre a obra de Fénelon n'O século de Luis XIV, 1957, p. 1.007ss.

43

realizar tal paralelismo para distinguir temas recorrent es nos dois, com o propósito

de mostrar que, se de fato escolhem

instrumentos

diferentes

para enfrentar seus problemas, estes têm muito em comu m. Nisso reside a nossa hipótese de trabalho, que bus ca ressaltar uma

visível linha de continuidade entre q tradiç ão historiográfica teológico-

religiosa do Grande Século e a história filosófic a e iluminista de Voltaire: as presenças marcantes da política e do prínci pe são os elementos temáticos que nos guiarão no estabelecimento dessa interface. Como

afirma René Pomeau (19944), “a história de Voltai re, como a de Bossuet, é a humanidade vista através de um temperamento ”. Nesse sentido, o

argumento de Ernst Cassirer, ao ressaltar um “desloca mento de acento” em detrimento de uma “radical mutação”, é tanto mais válido quando se enfoca o pensamento histórico de Voltaire e de seus cont emporâneos.” No Dicionário filosófico, Voltaire considera que “a história dos acontecimentos divide-se em sagrada e profana”, em certa med ida para destacar o fosso profundo que ele enxergou entre as formas de esc rever a história que havia antes de seu tempo e a maneira como ele pas sou a encarar essa área do saber. Com base em tal pressuposto, ou melhor, tomando essa observação como uma pista teórica, desenvolveremos algumas questões relevantes, aqui consideradas como antecedentes da historiografia do século XVIII, com a intenção de apontar a novidade voltairiana, e também os pontos de contato dessa nova história com a tradição anterior, seja recusando, seja modificando pressupostos considerados arcaicos e equivocados. Tenciona-se demonstrar que o afastamento do autor em relação aos

velhos gêneros preservados pela história do século XVII não foi tão notável quanto se apregoa, e que sua abordagem permanece fundamentalmente semelhante, ou seja, uma história de extração política, com um espaço marcante ocupado pela realeza e pela narrativa não apenas de grandes feitos militares como também de um autêntico catálogo de virtudes e vícios, abordagem típica da história no século XVII, e que alguns historiadores

7.

Mesmo nas ciências naturais, o Dezoito é apontado como tributário do Grande Século. Como

lembra Lucien Goldmann, “todas essas conquistas no campo da ciência positiva foram conquistas do século XVII, que o Século das Luzes praticamente herdou” (Goldmann 1967a, p. 6).

44

AT

caracterizaram como remanescentes bem preservados dos espelhos de príncipes da Idade Média (cf. Tyvaert 1974: Bluche 1986). Desse história

modo,

quais seriam

político-teológica

dos

as diferenças

autores

do

século

fundamentais XVII,

entre a

especialmente

Bossuet, e aquela do autor do Ensaio sobre os costumes? À primeira vista, a comparação parece ousada, e talvez até absurda, mas cremos que só à

primeira vista. Isso porque há também um catálogo de virtudes e vícios da realeza no século XVIII que o velho e surrado esquema medieval, revivido no século XVII, não esmoreceu por completo, e que a obra de Voltaire mantém

Merece

“Bossuet

à sua maneira.

atenção

escreveu

ad

o juízo de Georges usum

Delphini

seu

Lefebvre, ao afirmar que Discurso

sobre

a história

universal(...), e Voltaire não deixou de pensar, ao escrever seus livros de história, no “déspota esclarecido”, o príncipe filósofo por quem pronunciava seus anseios” (Lefebvre 1974, p. 17). E mais adiante: “Com essa obra

[Ensaio sobre os costumes] Voltaire continua, retoma a Bossuet, e ao mesmo tempo o contradiz. Continua, porque Bossuet havia chegado em

sua narrativa até Carlos Magno, ao passo que, depois de uma extensa introdução, o Ensaio parte, precisamente, de Carlos Magno. Contradiz, porque o pensamento de Voltaire deixa completamente à margem do campo da história a ação da providência” (ibidem, pp. 133-134).º Em sentido análogo, René Pomeau adverte: “Voltaire crê na providência, como Bossuet. Mas não crê que o homem possa ler na sucessão dos eventos os desígnios providenciais” (19944, p. 62). Contudo, para nossa análise, os termos dessa comparação são amplamente insuficientes. porque nosso objetivo é encontrar linhas de continuidade, que existem e que não são flagrantes. Achamos também que Voltaire é continuador do catolicíssimo Bossuet e que, apesar de julgá-lo positivamente, em aspectos literários, irá desmenti-lo frequentemente. De fato, Voltaire foi leitor atento de Bossuet, a quem admirava pelo vigor de seus escritos, entre eles, as Orações fúnebres. Nos últimos capítulos de O século de Luís XIV. ele considerou:

8.

Para Krzysztof Pomian, o que de certa forma revela uma tendência à indisciplina do Voltaire

historiador, “o verdadeiro ponto de partida de sua história é o tempo de Constantino que, para

ele, como para Vasari, é o responsável pela decadência de Roma” (1984, p. 126).

45

Só os franceses conseguiram sucesso nesse gênero de elogiiência. O mesmo Bossuet, algum tempo depois, criou outro gênero que não podia ter êxito senão nas suas mãos. Aplicou a arte da oratória à própria hist ória, que parece excluí-la, Seus Discursos sobre a história universal. compostos para a instrução do Delfim, não teve exemplo nem imitadores. Se o sistema por ele ado tado para conciliar à cronologia dos judeus com a das outras nações encont rou refutadores entre os sábios, seu estilo não encontrou senão admiradores. Causa assombro a força majestosa com que desenvolve os costumes, o govern o, a expansão e a queda dos grandes impérios, e os traços rápidos, de uma verdade enérgica, com que retrata e julga as nações. (Voltaire 1957)

Voltaire desmistifica Bossuet e seus contemporâneos em relação a vários temas. Como Etienne Pasquier havia desbaratado à ori gem troiana dos franceses, na segunda metade do século XVI, apoiandose em testemunhos históricos como os livros de César e T ácito, ele arr uinará a

visão de Bossuet de que a história antiga girava em torno do povo de Deus. Para Voltaire, os judeus são um marco como fundadores do monoteísmo, mas um povo bem fraco se comparado aos gregos e aos romanos. Paul Hazard, referindo-se ao Ensaio sobre os costumes, encontra certos parentescos teórico-metodológicos entre a história produzida por

Bossuet e pelo anti-Bossuet: “Falseado pela intenção prévia de se opor a Bossuet, e por isso mesmo caindo nos erros que condena — a pressa, as informações em segunda ou terceira mão, a compilação —, nem por isso deixa de ser um dos monumentos do século” (1989, p. 232). Ele tenciona repudiar a tradição de escrever somente historia magistra vitae. Mas o que consegue é uma inversão de valores e uma renovação de perspectiva. Há sempre uma lição a ser extraída de sua narrativa, embora ele tencione fazer crer que sua história seja uma história que ensina, aparentemente sem ter tal intenção. No Dicionário filosófico, pergunta-se: “qual é a história útil?” E a resposta será: “Aquela que nos mostra nossos deveres e direitos sem ter a aparência de nos querer

ensiná-los” (1978, p. 206). Georges Lefebvre escreveu que “Voltaire é o primeiro mestre da história racionalista e, em nossa opinião, o fundador da história verdadei-

ramente moderna” (1974, p. 131). Jacques Le Goff declara que a história 9.

46

“Voltaire é um anti-Bossuet tão resolutamente quanto é um anti-Pascal” (Gusdorf 1960, p. 223).

a

Pa

t

É

rito y

E

nova é herdeira legítima do Príncipe das Luzes. E os dois estão funda-

mentalmente corretos, porque há um programa novo na obra do Príncipe das Luzes, principalmente em partes do Ensaio sobre os costumes e de O século de Luis XIV. Mas é esse mesmo Ensaio que nos propicia boa parte desse estudo sobre a realeza, o que significa que, se Lefebvre e Le Goff estão corretos, também não estamos equivocados, basicamente porque

há propósitos diferentes em sua história.

Não há dúvida, ele quis estender sua história aos homens comuns,

aos temas até então sequer vislumbrados, como a história da cultura dos povos, não se dirigindo unicamente aos reis. O próprio Lefebvre lembra que, ao preocupar-se com o uniforme dos soldados, com a forma como estavam vestidos, fato inédito nas histórias-batalhas de então, ele já opera um grande avanço. Identificamos essa passagem na História do Império

da Rússia, que Voltaire aponta como uma inovação simples de Pedro, o Grande, mas que renderia frutos consideráveis. É que o encurtamento das roupas dos soldados lhes deu maior mobilidade, fato que acabou decidindo batalhas (cf. HR 1957, p. 448). Mas é nos reis que ele pensa como seus principais interlocutores e sua história seria sem dúvida a “sombra negra” — Le Goff — dos Annales, exatamente por ser predominantemente política. Em defesa de Voltaire,

seria o caso de indagar: como

teria ele podido

escapar à atração dos

grandes homens se, em nosso próprio século, gigantes entre os grandes se enamoraram por Lutero e Frederico I? Lefebvre (1974, p. 140) é taxativo ao afirmar que Voltaire não concede qualquer lugar ao povo, à massa da humanidade: Dessa maneira, encontra-se

obrigado, quase condenado, a conceder um posto

preponderante aos grandes homens e, ainda que não se tome a liberdade de dizer que um grande homem possa conseguir tudo, em suas explicações, apresenta as coisas como se os grandes homens tivessem sido mais relevantes ainda do que foram realmente. Assim sucede que não há nenhuma vida coletiva na história de Voltaire. O conjunto da nação, as massas majoritárias da humanidade não aparecem, e isso produziu consegiiências bastante graves do ponto de vista religioso, porque as religiões aparecem a ele como invenções astutas de pessoas que queriam viver às custas de seu próximo. (...) Essa é uma concepção anti-histórica.

Além do príncipe e dos outros temas já enunciados, há pelo menos um conceito geral favorecedor desse encontro entre Voltaire e Bossuet.

47

No que diz respeito à visão da história efetiva, a concepção de monsieur

de Comdon é convergente, em parte, com as idéias de mon sieur Arouet. Com efeito, na história de Bossuet, há uma idéia muito bem delineada de

progresso, ainda que seus valores sejam profundamente teológico-re ligiosos. Como bem demonstra Robert Nisbet, “o progresso da humanidade através do tempo tem tido um caráter essencialmente relígioso e Jesus Cristo e o estabelecimento do Cristianismo mantêm, na época de Luís XIV,

a mesma grandeza anterior” (1985, p. 153).

Voltaire está mais próximo de Bossuet do que se poderia imagin ar. Primeiramente, os dois são profundamente cartesianos.!º Depois, porque Voltaire também acreditava que o universo era regido por uma força divinamente motivada, o que está exposto com todas as letras no Dicionário filosófico, com a genial metáfora do “piparote inicial”. A diferença está na forma de atuar. Para Voltaire, não há relógio sem relojoeiro. Deus intervém claramente apenas uma vez, na figura de um

artífice; a máquina em movimento andará com os artifícios de sua engrenagem. Deus é uma força transcendente segundo a ótica da Águia

de Meaux, e está fora do mundo. Para Pomeau, “o deus de Voltaire é o deus de Newton, manifestado pela harmonia das esferas, deus sensível ao espírito, não ao coração” (Pomeau 19944, p. 42).

A

tendência dominante no pensamento histórico europeu do século XVII fez da história um gênero narrativo característico, em que cada obra constituía peça retórica, destinada a perseguir exigências

10.

Apesar de frequentemente ridicularizar Descartes, por considerar sua física fajuta, ele fará o elogio do Descartes-matemático em sua “Defesa de Luís XIV contra o autor das Efemérides” (cf. Voltaire 1957, p. 1285). Em seu texto introdutório ao Ensaio sobre os costumes, Pomeau considera Voltaire mais tributário da filosofia cartesiana do que ele próprio teria reconhecido, afirmando que, “do cartesianismo, ele herda o desprezo, não da história, mas das idéias gastas” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 37). O fato é que a imagem de Descartes encontrava-se meio desgastada entre os iluministas pelo acentuado viés metafísico de sua filosofia, principalmente na área da teoria do conhecimento. A doutrina das idéias inatas não combinava nem um pouco com a doutrina da experiência dos sentidos. Se os philosophes se renderam a um aspecto de sua filosofia, essas reverências foram dirigidas para o método, a dúvida metódica, a capacidade de formular perguntas e desvendar problemas. Como diz Robert Darnton, a propósito

de um amigo de Voltaire: “D' Alembert saudou Descartes o questionador, não Descartes metafísico”, o “líder de conspiradores”, que preparou uma revolução (Darnton 1986, p. 266).

Sobre a persistência da razão cartesiana no Dezoito, Goldmann observa que, “na verdade, no

século XVIII francês, os pensadores “extremistas” (...) conservaram a maior parte de elementos cartesianos em sua visão de mundo” (Goldmann 1967, p. 15).

morais, no que lançava mão de recursos já consolidados desde fins da Idade Média.

Acerca

dessas especificidades da historiografia do século

XVII, Charles-Olivier Carbonell (1987, p. 97) avalia:

Tida como inútil, a história não é ensinada a não ser ad usum Delphini. É certo que a história santa e os fatos da Antiguidade greco-romana são muitas vezes evocados, mas como ilustrações no curso de teologia, de línguas e literaturas antigas. É pela tradução de Salústio e Tito Lívio que se aprende a conhecer, de maneira desordenada, a história de Roma. Indiferente a períodos inteiros do passado — o da China e o da cristandade na época medieval —, a cultura clássica,

se bem que impregnada de história, é profundamente a-histórica.

As histórias produzidas na França ao longo do século XVII, sobretudo a partir da afirmação do absolutismo, durante os reinados de

Luís XIII e Luís XIV, constituem narrativas cujos temas centrais são as virtudes cristãs a serem prescritas à realeza. Nesse sentido, são autênticos catálogos de valores morais, destinados a formar e a guiar o monarca na condução e realização da ordem pública; e isso sem deixar de fixar-lhe, também, um rico receituário válido para a esfera da vida privada; essas

duas dimensões entrecruzam-se e confundem-se frequentemente. Uma clara avaliação sobre as regras desse discurso histórico é a que faz Paul Hazard em sua Crise da consciência européia (1971, pp. 34-35): A história é uma escola de moral, um tribunal soberano, um teatro para os bons príncipes, um cadafalso para os maus. Ensina a conhecer os caracteres, porque é uma “anatomia espiritual das ações humanas”. É, sobretudo, uma obra de arte. (...) Dramática, patética, exige uma encenação suntuosa; as batalhas, as conjurações, as revoluções, os cismas — excelente matéria, belos assuntos! Oratória,

aproxima-se da poesia, que também não passa de uma forma de elogiiência, uma elogiiência rimada. Nobre, o seu elemento natural é o sublime. Comporta necessariamente (é sua lei) discursos, descrições, máximas, análises, paralelos. (...) Em

suma, todos os historiadores desse tempo queriam ser Titos Lívios, ainda mais elogientes, mais floreados. E todos teriam, sem dúvida, aderido a fórmulas que um dos teorizadores do gênero, o padre Le Moyne, elaborava: “A história é uma narração contínua das coisas verdadeiras, grandes e públicas, escrita com engenho, eloquência e discernimento, para instrução dos particulares e dos príncipes e para o bem da sociedade civil”.

49

O fato mais visível é que, com base em exigências des sa natureza, a imagem do príncipe define-se com traços muito bem pronunciados impondo uma densa sombra sobre temas histór icos abordados de maneira ligeira, esquemática e anacrônica, de acordo com os recursos disponíveis à história do Grande Século. Qualquer desvio da narrativa em direção à outros temas nessas histórias, tais como batalhas ou milagres de santos, envia sempre à retomada da figura real, de alguma maneira relacionada

a esses grandes acontecimentos. É que os príncipes ocup am o proscênio

da história, guiando exércitos ou velando pela salvação pública, expres-

são-chave do vocabulário político do Antigo Regime. Os Discursos sobre a história universal não escapam a ess e modelo de espelhos de príncipes, fundado na história sagrada. Pelo contrário, acentuam todos os traços característicos do gênero. Como afi rma Bossuet, as histórias não são compostas senão por ações que os ocupam, e tudo nelas parece ser feito para seu uso. Se a experiência é necessária aos príncipes para adqui rir aquela prudência que leva a reinar bem, não há nada mais útil para sua instrução que acrescentar aos exemplos dos séculos passados as experiências por eles adquiridas todos os dias. (1860, p. 2)

Não há ocorrência digna de consideração por esses historiadores que não tenha a participação do soberano, sempre invocado como o símbolo mais perfeito da comunidade cristã. Como diz Michel Tyvaert, “ele é, em síntese, o centro sagrado de um universo religioso” (1974, p.

522). Na esfera do Estado-cerimonial e do poder-espetáculo, típicos da monarquia francesa no século XVII, a antropologia política tem reconhecido a posição privilegiada da figura do príncipe, marcada pela ocupação simbólica do espaço político. Como recorda Georges Balandier, as entradas reais nas cidades vinculavam a evocação mitológica a uma exaltação da monarquia e de sua missão; o príncipe era reconhecido na dupla figura de um imperador romano e de um defensor da cristandade, do

descendente dos troianos e de rei da nação reconhecida como filha mais velha da

Igreja. De fato, forma-se um repertório comum a toda a Europa ocidental. A transformação dos temas, dos símbolos e da linguagem artística é acompanhada de uma focalização do poder. Tudo se mostra e se diz que tenha relação a ele.

(Balandier 1982, p. 19)

50

Essas histórias-catecismo do século XVII, escritas para detentores efetivos de coroas, e para aqueles que lhes sucederão, assentam-se num conjunto de valores morais comuns para todos segundo o espírito do catolicismo da Contra-Reforma, que já não coincide com as virtudes e os vícios dos séculos precedentes. Há uma passagem célebre dos Díscursos em que Bossuet, ao mesmo tempo em que justifica a revogação do Edito de Nantes, fixa a imagem do Grande Reí, em que se nota a aparência ambivalente de Luís XIV, a tensão existente entre a sua natureza humana e a divina:

Considereis o tempo em que viveis e de qual pai Deus vos fez nascer. Um Rei tão grande se distingue mais pela fé que por suas outras admiráveis qualidades. Ele protege a religião dentro e fora do reino e até as extremidades do mundo. Suas leis são uma das mais fortes muralhas da Igreja. Sua autoridade, reverenciada tanto pelo mérito de sua pessoa quanto pela majestade de seu cetro, sustenta-se melhor quando defende a causa de Deus. Não mais se escuta blasfêmia; a impiedade treme diante dele. (...) Se ele ataca a Heresia por tantos meios, e mais ainda que seus predecessores, não é porque tema por seu trono: tudo está trangiúilo a seu redor, e suas armas são temidas por toda a terra; mas, é porque ele ama seus povos, e que, vendo-se elevado pela mão de Deus a uma autoridade que nada pode igualar no universo, não conhece dela melhor uso que o de fazer curar as chagas da Igreja. (Bossuet 1860, p. 333)

Mas, se os valores cristãos — positivos ou negativos — são comuns e reconhecidos como cânone pela comunidade dos historiadores, o terreno sempre esteve livre às mais diversas interpretações acerca de qual era o príncipe perfeito, o modelo a ser seguido, o paradigma de uma linhagem privilegiada de seres híbridos — misto de humano e de divino — € que se encontravam bem acima da escala miúda da humanidade. Isso para dizer que, no cômputo das virtudes e dos vícios desses infindáveis panegíricos compulsórios, nem sempre houve unanimidade entre os profissionais da história, sendo que um Hugo Capeto, um Filipe, o Belo — entre os reis da Idade Média —, e um Francisco I, um Henrique IV e um Luís XII — entre os príncipes modernos — podem ser fixados em quadros que realcem ora heroísmo ou vilania, ora contrição ou crueldade, em retratos os mais diversificados. Isso sem esquecer que, mesmo entre os

modelos supremos de soberanos, como Carlos Magno, Filipe Augusto e

São Luís, nunca houve uma hierarquia fixa, porque esses catálogos de

DP

SE

51

virtudes são cambiantes, variam de acordo com o espírito da época e segundo a escala dos valores morais cultivados neste ou na quel e século, neste ou naquele contexto. Na Renascença, tempo de guerras e de busca de gló rias militares,

Filipe Augusto

príncipes. IX será o sentações análise de

- o herói

de Bouvines

— é o predileto

entre

todos os

No Século dos Santos, sob o impacto da Reforma Católi ca, Luís modelo do príncipe perfeito. Acerca da história e das repreda realeza, desenvolvidas pelos historiadores do século XVII, a Michel Tyvaert (1974, p. 522) é bastante esclarecedora:

No interior de tal sistema, o tempo é essencialmente cíclico e repetitivo: os soberanos sucessivos devem assegurar a perenidade da função real respeitando as mesmas regras fundamentais, provando as mesmas qualidades. A história será, pois, por vocação, a guardiã dessa ordem vital, e as menores rupturas serão sancionadas diante de seu tribunal.

rei!

Esse Moisés tardio, querendo guiar o povo de Deus pela tutela do

foi um

grande

historiador

se considerados

os padrões

do ofício,

conforme estavam fixados e reconhecidos na segunda metade do século XVII. Seus textos apresentam muita erudição, fundada nas sagradas escrituras, além de apurado estilo literário, retórica arrebatadora, inúme-

ros exemplos edificantes de reis e profetas e, sobretudo, muita ação divina

no mundo natural e no universo moral. Esses são os elementos constitutivos de suas obras históricas e de pensamento político, que Bossuet maneja com rigor, com admirável talento, mas para servirem a uma causa última: a exaltação da nação e da monarquia, ambas personificadas pela realeza

cristocêntrica.

Como

lembra

François

Bluche,

“ele -se

tornou

teórico da monarquia absoluta para mostrar a seu aluno a grandeza de uma herança” (1986, p. 176). Grifamos a expressão monarquia absoluta para destacar uma nuança que pode dar margem a, pelo menos, um equívoco, classificado como um daqueles pecados mortais. Talvez caiba a esse propósito uma 11.

De acordo com o historiador norte-americano Joseph Strayer, os franceses representavam-se, desde a Idade Média, como o povo eleito, como continuadores da saga dos israelitas. A França

era uma terra santa, reino da justiça, da piedade e do saber (cf. Strayer 1970). Na época de Bossuet, essa crença ainda sobrevive, o que pode ser observado pela leitura de seus Discursos

e de sua Política.

52

breve digressão. O problema está no emprego dos termos “absolutismo” e “monarquia absoluta”. O primeiro conceito é obra da historiografia liberal do século XIX e agrega, portanto, uma conotação claramente pejorativa. Já “monarquia absoluta” pertence ao vocabulário político do Antigo Regime, sendo largamente utilizada por autores e monarcas dos séculos XVII e XVIII.

Como o termo “absolutismo”, que define uma ampla realidade

política comum a quase toda a Europa Ocidental na Época Moderna, “Antigo Regime” também pode levar a complicações se atentarmos para seu real significado. Isso para recordar que os dois conceitos não foram contemporâneos aos objetos ou realidades históricas que tencionam

exprimir e, ao que parece, Mirabeau foi o primeiro a falar num Antigo

Regime, para retratar o arcaísmo predominante na sociedade francesa anterior à Revolução. Nesse sentido, ambas as expressões são, a rigor, etiquetas póstumas (cf. Bonney 1989). É bom dizer que, da perspectiva de Bossuet e de seus contemporâneos, a sua época e o seu sistema político parecem ser expressões do melhor dos mundos já criados por Deus na história. A realeza sagrada e a sociedade hierárquica, antes de representar a injustiça e o atraso,

são elementos

constituintes

de uma

ordem política perfeita. Contudo, se avaliarmos os Discursos sobre a história universal e a

Política tirada das próprias palavras das Sagradas Escrituras, segundo os “12.

“Esta não significa um regime autocrático, mas um sistema centralizadore unificador, no qual a autoridade monárquica tende a dominar todos os grupos, todos os corpos contestatórios aspirando a um papel político” (Meyer 1989, p. 8). No que tange à esfera mais específica do pensamento político voltairiano, recorda Jacques Godechot que “o regime preconizado por Voltaire é um regime absoluto, mas do qual seriam banidos a injustiça e o arbítrio — objetos de sua luta -, e no qual o soberano seguiria os conselhos de filósofos como ele” (Godechot

13.

1958, p. 309). Com efeito, Pierangelo Schiera demonstra que “surgido talvez no século XVIII, mas difundido na primeira metade do século XIX, para indicar nos círculos liberais os aspectos negativos do poder monárquico ilimitado e pleno, o termo-conceito absolutismo espalhou-se desde esse tempo em todas as linguagens técnicas européias para indicar, sob a aparência de um fenômeno único ou pelo menos unitário, espécies de fatos ou categorias diversas da experiência política, ora (e em medida predominante) com explícita ou implícita condenação dos métodos de governo autoritário em defesa dos princípios liberais, ora, e bem ao contrário (com resultados qualitativa e até quantitativamente eficazes), com ares de demonstração da inelutabilidade e da conveniência, senão da necessidade, do sistema monocrático e centralizado para o bom funcionamento de uma unidade política moderna” (Schiera em Bobbio e: al. 1997, p. 1). Cf. na mesma obra o texto de Ettore Roteli sobre o Antigo Regime, pp. 29-32.

53

valores

aceitos

pela

posteridade,

esses

elementos

transformam-se em motivos pelos quais Bossuet não pode ser considerado hist oriador. Robert

Nisbet lembra que “ sua história mundial não planteia nenhum problema:

é muito franco ao explicitar que o tipo de hi stória universal que formulou

em seus Discursos não faz nenhum sentido sem a compreensão e q presença de Deus” (1985, p. 151). Enfocado em seu mundo, ele não foi apenas o preceptor do delfim, filho de Lu ís XIV, mas o mestre para sua geração e para várias outras que se seguiram no sé culo XVIII, e que não

haviam sido tocadas pelo movimento intelectual da s Luzes, ou que reagiram contra ele. Em seus Discursos, o autor de fine sua visão de

história e as estratégias para fixá-la em linguagem co mpreensível para o príncipe: Esta maneira de história universal é, em relação às histórias de cada país e de cada povo, o que é um mapa geral comparado a mapas particulares. Nos mapas particulares, vós vereis todo detalhe de um reino, ou de uma província; nos mapas

universais, aprendereis a situar essas partes do mundo em seu todo: vós vereis O

que Paris ou a Íle de France é no rei no, O que o reino é na Europa, e o que a Euro pa é no universo. Desse modo, as histórias particulares representam a consegiiência

das coisas acontecidas a um povo de forma detalhada: mas, a fim de tudo entender,

é preciso saber a relação que cada história pode ter com as outras, O que se faz por um resumo, em que se vê, de um relance, toda a ordem dos tempos. Um tal resumo, Monseigneur, propõe-vos um grande espetáculo. Vereis todos os séculos

precedentes se desenvolverem, por assim dizer, em poucas horas diante de vós; vereis como os impérios se sucedem uns aos outros, e como a religião, nos diferentes Estados, sustentam-se igualmente desde o começo do mundo até nosso tempo. É o resultado dessas duas coisas, quero dizer, da religião e dos impérios, que devereis imprimir em vossa memória; e, como a religião e o governo político são os dois pontos sobre os quais se desenvolvem as coisas humanas, (...) € descobrir por esse meio toda a ordem e toda a sucessão, compreendendo em seu pensamento tudo o que há de grande entre os homens, tendo, por assim dizer, o sentido de todas as coisas do universo. (Bossuet 1860, pp. 3-4)

A chegada de Bossuet à história não se deu meramente por uma paixão espontânea pelos estudos sobre o passado glorioso da monarquia

francesa.

Os

intérpretes

de

Bossuet,

entre

os quais Jacques

Truchet

Jacques Le Brun (1966 e 1967, respectivamente), avaliam que, sendo

e

homem de índole pragmática, um combatente, em sentido figurado, sua relação com a história foi essencialmente instrumental. Usava esse conhe-

54

dita

nt

cimento à maneira de um sabre, para brandi-lo contra os reis fracos e impenitentes, contra os hereges, contra os libertinos, enfim, contra todo aquele que se desviasse da ortodoxia católica segundo as tendências

fixadas pela corrente galicana. Sua pena é, sem sombra de dúvida, o equivalente a uma espada, para usar uma expressão dos nossos dias. E, nesse

sentido,

assemelha-se

a Voltaire

nas suas

obras

filosóficas.

Um

Voltaire com paramentos litúrgicos, diga-se. Um Voltaire ao avesso, um intelectual que constrói sua argumentação com base na fé inabalável em tudo aquilo que o Príncipe das Luzes dedicará sua existência a denunciar e a combater.

É preciso reafirmar ainda uma vez: o que nos ocupa nesses dois autores não é a problemática filosófica de suas obras, mas os textos

escritos no espírito de historiador, com a intenção precípua de demonstrar o que Voltaire representa tanto para a historiografia do seu tempo quanto para o pensamento histórico que veio depois dele. Dessa perspectiva, Bossuet é tomado como o paradigma de um século, o ponto culminante que nos permite entrever as principais regras do conhecimento histórico fixadas no Antigo Regime. Apesar de pertencer aos círculos eclesiásticos e fazer história ao gênero magistra vitae, Bossuet não incorre inocentemente nas convicções da maior parte dos historiadores de seu tempo e das gerações anteriores ao século XVII.

O seu apelo às lendas e aos fatos inverossímeis não constitui atitude ingênua, apesar de nelas ter crido. Tanto isso é verdade que ajudou a amplificar a célebre façanha de Luís XIV na travessia do Reno, uma das mais famosas cenas militares da história do Antigo Regime, juntamente com a rendição de Breda, protagonizada por Felipe II da

Espanha. E as cabeças esclarecidas de seu tempo sabiam que esse exploit

luiscatorziano não passava de um exagero, como dirá mais tarde Voltaire, em sua obra O século de Luís XIV, o que lhe valeu sentenças como “o Grande Inquisidor das idéias obscuras” (Hazard), ao mesmo tempo em que um chaos d'idées claires (Faguet).

Mas quais são os elementos da “arquitetura” do bispo de Meaux? Quais são seus recursos técnicos, quais são suas fontes, qual sua concepção

da história e do tempo, enfim, quais são suas matérias-primas e que tipo de emprego fez delas? É certo que o Grande Século conheceu vários estilos históricos, que vão da história lendária e prodigiosa à história erudita; contudo, as regras de um discurso histórico moderno, como passam a ser 55

reconhecidas na segunda metade do século XVII, eram: afirmar apenas o que os documentos dizem; ter olhar crítico para discernir se O que a documentação afirma é verdadeiro ou falso; e, sob retudo, reunir e confrontar documentos confiáveis. Estão aí os embriões da mo derna crítica históri-

ca, fruto do trabalho paciente dos eruditos do século XVII, que pouco a pouco chegam ao alcance teórico-metodológico dos historiad ores. O problema é saber se Bossuet é fiel a essas novas exi gências. Em sentido complementar, a presença de pressupostos teológico-re ligiosos em sua obra a desqualificam como interpretação da história?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que sua filosofia da his tória não é melhor nem pior do que qualquer outra. Isso significa que sua crença

na realização inexorável da paz de Deus sobre a terra, pela açã o dos reis cristãos, tem o mesmo status que a crença de boa parte dos philos ophes, que acreditavam no progresso sem peias como libertação da humanida de. Em síntese, as duas perspectivas correspondem a uma certa ordre du temps, e as duas revelaram-se igualmente falsas, pelo menos até o momento.“ Dessa maneira, o enfoque místico da história de Bossuet se integra plenamente nas convenções elaboradas e reconhecidas por sua época, transferindo-lhe esse autor arrojo e sofisticação muito peculiares, o que coloca sua obra bem acima dos textos contemporâneos de semelhante natureza.

Bossuet foi o fruto mais vigoroso do catolicismo francês, em meio aos vendavais da chamada crise da consciência européia. Viveu numa 14.

De acordo com Krzysztof Pomian, a história voltairiana é uma história de progressos nas mais diversas áreas, limitados no tempo e no espaço — a partir do século XVI na Europa. Portanto,

não é uma história do progresso, em sentido global (Pomian não estava muito convicto acerca da possibilidade de um ser caracterizado como mais um dos ficcionistas proféticos indícios de que tenha sido um adepto radical da profecia

1984, p. 128). O próprio Voltaire progresso inexorável, e não pode das Luzes. De fato, não há muitos maior do Iluminismo. Mas, com

certeza, é um adepto moderado, uma espécie de meio dourado, situando-se em algum lugar

entre Rousseau e Condorcet. A idéia de prosperidade relativa alcançada pelo trabalho, conforme definida na última cena do Cândido, parece caracterizar melhor sua visão sobre o caminho a ser trilhado pelos povos. Como diz Georges Rudé, “Voltaire, em particular, sofreu um abalo na sua crença no progresso com o catastrófico terremoto de Lisboa de 1755” (1988, p. 231). Para John Bury, “o otimismo de Voltaire estava sempre temperado com um certo cinismo. Mas a idéia de progresso está presente, ainda que de maneira moderada” (Bury 1971, p. 139). Segundo Friedrich Meinecke, “seu ideal “ilustrado” era demasiado egoísta e estava

demasiadamente unido aos interesses da alta sociedade francesa e européia para poder despertar aquela impetuosa força universal que produziu mais tarde a fé no progresso vitorioso

da humanidade” (Meinecke 1982, p. 91).

56

época de ímpeto religioso e ímpeto de poder, num “século XVII [que] era

cheio de Deus”. Conforme salienta Robert Nisbet (1985, p. 135):

Com exceção de Thomas Hobbes e de alguns outros, é impossível encontrar nomes verdadeiramente significativos nas ciências e nas artes, ou na filosofia e na teologia, que não tivessem sido profundamente religiosos. Aqui, deve-se incluir,

como veremos, até mesmo Isaac Newton, o maior cientista da época. Sua devoção

religiosa não era uma atitude aberrante em conseguência da senilidade, poís, da infância até a morte, foi a influência dominante em sua vida.

Mas, no plano menos teórico das grandes interpretações sobre os

fins últimos dos povos, ou seja, no domínio da pesquisa empírica, Bossuet

revela-se um pesquisador criterioso. Em primeiro lugar, leu com atenção os clássicos antigos e modernos.

Os especialistas encontraram em seus

fichários registros de notas de Maquiavel e Hobbes, monstros satânicos

da incredulidade, autores de duas obras diabólicas, O príncipe e O leviatã. Além disso, Bossuet conhecia muito bem os historiadores franceses. Nos Discursos sobre a história universal e na Politica tirada das próprias palavras das Sagradas Escrituras não cita nenhum autor contemporâneo,

costume de época, mas, aqui e ali, deixa entrever com quem escolhe dialogar a propósito de temas os mais variados. Seu diálogo com Maquiavel, por exemplo, expressa-se na defesa enfática que faz do caráter dinástico e hereditário da realeza.”

Suas fontes, constituídas não puramente pelos textos sagrados — ainda que estes sejam as principais — são alargadas por outros documentos. Desfrutando de posição privilegiada na corte de Luís XIV, teve acesso fácil a documentos, incluindo o acervo dos arquivos reais. Como homem da Igreja e intelectual reconhecido, a posição de Bossuet não é tranqúila. Não se pode esquecer que ele viveu aquele momento crucial da história

da Europa, qualificada por Paul Hazard como uma espécie de devastação

da crítica profana e erudita às várias retrancas da ortodoxia, crítica que

faz do Iluminismo um conjunto de meras retomadas de questões já muito desenvolvidas pelos Pierre Bayle, os Richard Simon, os Spinoza, os Fontenelle.!º “15.

16.

Acerca desse aspecto cf. Lopes 1997, especialmente capítulo 3.

Uma análise sintética, porém bastante esclarecedora acerca do potencial destrutivo da obra desses autores, foi realizada por Georges Gusdorf (1960, p. 200 ss.)

57 DP

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e

"O

nie

o SAE a

Ão apontar as inúmeras heranças do século XVIII em relação às

tradições intelectuais anteriores, Ernst Cassirer avalia que

a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com idéias originais e sua demonstração. (1994, p. 10)

Bossuet não viveu sua época como espectador. Entre os defensores da retaguarda da cultura européia, ele era a primeira vanguarda, a tropa de choque, a baioneta adaptada à ponta do fuzil. No tempo dos libertinos, numa época de dessacralização da política, ele combateu pelo direito divino dos reis com convicção inabalável. Além da realeza francesa, defendia uma época inteira: a ordem hierárquica do Antigo Regime, a sociedade aristocrática do absolutismo. Seu providencialismo histórico vinha se esboroando desde o humanismo do século XVI. Tratava-se, certamente, não de uma tendência conjuntural, mas de um movimento milenar. Estava parcialmente acabado um processo de demolição que durara muitos séculos, conforme demonstra Ernst Cassirer. O fato é que o direito divino dos reis já não era visto como algo sobrenatural, e sim como uma invenção relativamente recente de escritores políticos católicos dos séculos XVI e XVII (Cassirer 1961). Há uma melhor parte na obra histórica de Bossuet, aquela em que ele pousa de seus vôos místico-religiosos para transformar-se em intérprete de textos, em analista de documentos. Seus pequenos e grandes anacronismos

tornam-se

pecados

mortais

até

compreensíveis

quando

encarados como obra de uma historiografia ainda apoiada em parcos recursos: “Assim é que os maiores espíritos do século XVII são completa-

mente desprovidos do sentido histórico” (Gusdorf 1960, p. 195). não

O grande Montesquieu, o grande Voltaire, por exemplo,

foram

iludidos

pelas armadilhas

da alteridade? Não

também

é para

os

historiadores-filósofos das Luzes que Georges Gusdorf anota tratar-se sua história de uma “profissão de fé pré-fabricada” e em relação à qual Paul Hazard aponta o hábito esterilizante, a secura demasiada “que consistia em projetar o presente sobre o passado e condenar os homens de outrora

por haver cometido o erro de ser do seu tempo”? (Gusdorf 1960, p. 227; Hazard 1989, p. 229).

58

ERA

Ate

É até mais compreensível que, para Bossuet, os líbertinos de sua

época sejam os mesmos fariseus da antiga Palestina. Para ele, o judaísmo é o cristianismo que espera por sua época. Discorre sobre Augusto, Moisés, Ciro e Davi como se estivesse escrevendo a oração fúnebre do

príncipe de Condé. Bossuet fala de um mundo conhecido pela erudição

histórica consolidada há séculos. Analisando essa história como historia-

dor-crente, comete os mesmos equívocos que seus contemporâneos, por

acreditar piamente em todos os prodígios narrados na epopéia do povo de Deus. Em Bossuet, parece não haver diferenças culturais significativas entre povos separados no espaço por enormes distâncias e no tempo por dezenas de séculos.” Isso é compreensível. Bossuet é, ao mesmo tempo, o autor e o protagonista de uma história imóvel, porque a mudança é sempre fator da discórdia, do engano e do erro. Apenas o que permanece como era desde o princípio pode trazer os sinais da verdade. A Igreja e a monarquia são os pilares dessa história, uma história divinamente motivada.

Além do mais, sua periodização é duvidosa, estabelecida para servir à explicação do desenvolvimento do povo de Deus. E quanto às fontes? Já afirmamos que ele é conhecedor das obras de seu tempo e que valoriza o diálogo com a tradição. Retira dessa tradição o que acredita ser o melhor, ou seja, extrai-lhe algumas preocupações como os costumes das nações, suas leis e instituições. Mas predomina o moralismo cristão, mesclado com o enfoque da magistra vitae romana, as grandes lições da história a povos orgulhosos e a reis imprudentes. Em relação aos autores antigos, Bossuet devota-lhes confiança excessiva, caindo nos seus erros.

Confia em Heródoto e Tácito de olhos vendados, apesar de rejeitar o que lhe parece espetacular ou inverossímil quando os juízos não são pertinentes à visão cristã da história. O autor dos Discursos não se preocupa com a inserção dos fenômenos históricos que estuda, na forma como se enraízam nas sociedades antigas. Nesse sentido, os avanços da crítica dos textos “17.

“A história moderna, que tanto encanta Voltaire, deixa Bossuet embaraçado. À teologia da história não se cumpriu toda de uma vez no fim da história” (Chaunu 1985, p. 266, v. 1). E Georges

Gusdorf já havia notado:

“Na

medida em que continua

[a história efetiva da

cristandade], registrando as vicissitudes, os insucessos da Igreja, ela carrega o testemunho

contra a própria tese que Bossuet se esforça em sustentar” (Gusdorf 1960, p. 209).

59 pi

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sagrados, que uns poucos homens de seu tempo ajudaram a afirmar e aq difundir, constitui a obra perniciosa de alguns espíritos inquietos. A um homem da Igreja, ou melhor, ao primeiro eclesiástico da França, sobr e quem recai a responsabilidade de liderar os combates teóricos em nome da salvação pública, era difícil, senão impossível, ver os progresso s da crítica filológica como um efeito visível e louvável de uma tendência já desenvolvida nas sociedades européias desde fins da Idade Méd ia passando pelo Renascimento e pelo século XVII.

É conhecido

seu trabalho de perseguição a Richard Simon, o

oratoriano que ousou tratar os textos sagrados como pura gramática, e

que foi expulso de sua ordem. Paul Hazard nos conta a triste e cômica

história de um desses padres filólogos, contemporâneos de Simon, rodando uma barrica pelo mato, em plena calada da noite, cheia de estudos críticos das escrituras santas, para escapar da sanha de seus perseguidores em seu próprio meio (q.v. Hazard 1971). Isso era insuportável para Bossuet. Ele não compreendeu que as novas tendências culturais vividas em seu tempo eram obra de séculos de história. Ao abordar temas históricos, vê apenas a influência de grandes homens guiados pela Providência. Ao analisar a Reforma, caracteriza-a como a obra diabólica de algumas almas heréticas destinadas a arder na eternidade. A Reforma é analisada por ele como um mero conflito de idéias relígiosas. Lutero, Calvino e seus epígonos são as únicas e verdadeiras expressões de um fenômeno tratado apenas em sua superfície doutrinária. A um defensor da ortodoxia seria possível, ou conveniente, reconhecer que tal fenômeno retirou sua força de uma longa tradição de abusos e desregramentos, descendo desse modo ao leito profundo de aspirações sociais em diversas regiões da Europa? Desse modo, quando se procura história autêntica nas obras de Bossuet, o que se encontra são apenas indícios. Ele se detém em alguns domínios específicos, como a reflexão teológico-religiosa, a análise e o julgamento dos grandes indivíduos destinados a conduzir os homens, o sentido exemplar das intervenções prodigiosas de Deus no mundo natural e no mundo moral. Bossuet escreve para

amedrontar potenciais agentes de instabilidade no reino e é, acima de qualquer outra coisa, historiador-apóstolo, defensor de um poder político sacralizado, paladino de uma Igreja, ambos pilares de uma vontade superior.

Em sua visão de história, os séculos encadeiam-se seguindo um sentido predeterminado. Não há espaço para o acaso e o que ocorre com

a aparência de fortuito não é mais que a vontade de Deus se manifestando. Contudo, há uma nuança importante que cumpre destacar, sob pena

de trair seu pensamento. Não há dúvida de que Deus é seu principal personagem, mas não atua sozinho. Isso deve significar que não há uma

tirania da Providência interpondo-se no caminho da humanidade. Causas

humanas e naturais também fazem a história sagrada. Esse paradoxo foi apontado por Lefebvre, quando

considera que, nesse aspecto, Bossuet

aproxima-se e até iguala-se “aqueles a quem condena (...). Bossuet explica a história segundo o ponto de vista racionalista do humanismo e

do cartesianismo” (1974, pp. 100-101). E mais adiante: “Bossuet afirma, com efeito, a liberdade e a responsabilidade do homem; Lutero, pelo contrário, ensina a predestinação” (ibidem, p. 151). Como também adverte Jacques Le Goff em “Progresso/Reação”, “a

última grande obra dominada pela idéia de providência, o Discours sur Vhistoire universelle de Bossuet, não põe a existência de constantes na evolução das sociedades em conflito com a providência todo-poderosa e livre, mas não arbitrária” (Le Goff et al. 1984, p. 346). Sua periodização da história Antiga é equivocada, confusa, irreal, mas revela as preocupações de um pedagogo político realmente interessado em tornar a história uma matéria compreensível ao príncipe que tenciona instruir e formar. É-lhe impossível identificar com clareza os eventos anteriores ao nascimento de Cristo. A cronologia até então desenvolvida contava o tempo a

partir da idéia da criação do mundo.

Como recorda Hannah Arendt, “em violento contraste, coloca-se o

moderno cômputo de datas históricas, somente introduzidas no final do século XVIII, e que toma

o nascimento

de Cristo como

um

ponto de

inflexão a partir do qual o tempo é contado tanto para frente como para trás” (1972, p. 100). Segundo Reinhart Koselleck, “duas categorias temporais (...) tinham assegurado, até o século XVIII, a sucessão dos acontecimentos históricos e seu cálculo: o movimento das estrelas e a sucessão

dos soberanos e das dinastias” (1990, p. 48). É quando uma cronologia rigorosa entra em cena,

Ao propor a divisão dessa história em 12 grandes épocas, desde Adão, passando por Salomão, Jesus e Carlos Magno, o autor revela o que é importante considerar como objetos de estudo. A história do povo de

61

Deus e a história da França, em primeiro plano, ainda que Grécia e Roma figurem como temas muito relevantes. Detalhe importante: a história antiga termina com o império de Carlos Magno. Daí em diante, abre-se

uma nova idade: a era da realeza francesa. Mas, quando é preciso falar da história após a Idade Média, após o império carolí ngio, sua obra perde

o fôlego. Não que o tema lhe interessasse menos. A questã o é que o

conhecimento sobre a história desses séculos era mui to precário em seu tempo, a documentação, até então reconhecida como válida, ainda estava desorganizada, dispersa e escassa. Mas que importância tin ha isso se o

objeto central de sua história era demonstrar a verdade da religião cris tã,

prová-la aos incrédulos de seu tempo? De sua perspectiva, a história universal realiza-se no encontro da nação judaica com a cristã. Há sucessão, e nenhuma interrupção. O cristianismo estava enunciado, a história de Cristo e de seu triunfo já estava sendo escrita muito antes dele. Em suma, a história é unidade. Sua

metodologia nos Discursos sobre a história universal leva-o à reunir os acontecimentos em perspectiva sincrônica, o que forma a matéria da primeira unidade da obra. Na segunda parte do livro, comenta-os de forma a desenvolver e a explicitar sua filosofia da história como a realização do legítimo império e da verdadeira religião. Na terceira parte dos Discursos sobre a história universal, trata da ação dos grandes homens na história, que, em verdade, é a ação de Deus, sempre pronto a interferir, sempre atento para fazer a história retomar o curso por Ele previsto, seja inspirando os bons príncipes, seja castigando os maus reis. Como propôs o grande crítico literário francês do século XIX, Charles Sainte-Beauve (1928), os Discursos sobre a história universal

poderiam ser muito bem intitulados como Discursos sobre histórias sobrenaturais, tamanha a frequência de episódios nos quais interferem fenômenos transcendentes. Intelectual que vive e encarna o espírito da Contra-Reforma, Bossuet é bem a expressão do que Pierre Chaunu denomina — para qualificar a historiografia do século XVII —, de “parêntese cartesiano”. Isso para recordar que “Descartes sente o mais profundo desprezo pela história” (Lefebvre 1974, p. 97). Como diz Robert Nisbet, “esse era o raciocínio subjacente à posição de Descartes sobre todo o conhecimento para o qual fosse necessária a pesquisa empírica e documental. Descartes afirma, de forma irônica, que os historiadores são pessoas que passam suas vidas aprenden-

62 ms

ate

4

ai

do fatos sobre a vida romana que qualquer escrava analfabeta do tempo de Cícero conhecia perfeitamente” (1980, pp. 127-128).º Isso significa que,

nos movimentos

ascendentes

do pensamento

histórico nos três séculos da Época Moderna — que têm como príncipal

marco as propostas de história crítica dos humanistas italianos e franceses

— houve pontos importantes de desconexão. Segundo George Huppert, no

século XVII, a revolução cartesiana, juntamente com a presença sufocadora do Estado moderno absolutista, que só aceitava o discurso histórico que lhe cantasse louvores, empreendeu uma poderosa obra de demolição do conhecimento histórico, fazendo estancar os progressos da “história perfeita” dos historiadores-humanistas. Dessa maneira, o século XVII representa o que Roger Chartier chama de uma “aliança desfeita” entre uma história enriquecida por novos temas aliada a uma nova e rigorosa crítica documental (Chaunu 1976; Huppert 1973; Chartier em Ariês 1989). A historiografia francesa do século XVII, cuja maior expressão foi Bossuet, representa a vitória da história sagrada, marcando um ponto de inflexão bem pronunciado no desenvolvimento da historiografia do Antigo Regime. Para ser mais enfático, ela representa uma época de decadência ao divorciar-se das conquistas dos eruditos do século anterior. O padrão literário dessas obras passa pelos subterfúgios de uma história que deseja impressionar a imaginação, com passagens em que os autores

esforçam-se grandiosos

18.

por

mostrar

extraídos

da

elogiência

grande

Bíblia

ou

da

em

narrativas

história-pátria.

Em

de temas

Bossuet,

as

“Descartes rompeu completamente com a curiosidade renascente; seu desprezo pelo saber

histórico que existia em seu tempo procede, na realidade, de uma opção ontológica inspirada pelo mecanicismo, do qual o esforço objetiva constituir uma inteligibilidade de tipo espacial antes que temporal. (...) Se o programa pedagógico de Descartes exclui a história, é porque

esta significa, no sentido mais forte da expressão, uma perda de tempo” (Gusdorf 1960, pp.

192-193). Um texto que afronta de forma ousada e convincente as concepções mais genera-

lizadas acerca do conhecimento histórico em Descartes à luz da historiografia contemporânea,

e que aponta para um certo grau de incompreensão do valor e da influência efetiva do cartesianismo para o avanço da história, em sua dimensão res gestae, é o artigo de Elias Saliba,

para quem “a própria concepção de tempo contida em Descartes, aparentemente negadora da historicidade, aparece como flagrantemente contrária à noção de um tempo linear, irreversível e progressista; o tempo cartesiano é o tempo da consciência subjetiva, tempo produzido pela subjetividade contra o tempo dos relógios, dos calendários, dos almanaques e dos livros de horas” (Saliba 1988, p. 1.084). Desse modo, tais reflexões parecem sinalizar para o fato de

que a noção de temporalidade em Descartes não joga contra a historiografia contemporânea mas precisamente a favor, quando o interesse recai, hoje, sobre os diversos tempos da história.

63

façanhas de Moisés, de Davi, de Luís XIV, ent re outros personagens ilustres, são matéria-prima indispensável para a narrativa.

Se a história é sempre filha de seu tempo, para record ar uma frase famosa, essa parada ou retrocesso da história-discip lina tem explicações históricas. No caso da França, o fenômeno foi influe nciado por crises que

atravessaram todo o século XVII, como o ass assinato de um rei, as menoridades

de dois monarcas — Luís XII e Luís XIV — que implicaram contestações baronais, como a liderada por Gaston de Orléans e, mais tarde, o movimento da Fronda, no último grande combate das periferias contra o centro do poder, além de uma série de levantes camponeses e guerras europé ias. Pode-se afirmar, então, que a regressão metodológica no domínio da história-conhecimento, no século de Descartes, esteve sob o impacto de acontecimentos turbulentos, desestabilizadores da ordem política, e os autores de livros de história naquele período tenderão a fazer o elogio do Estado monárquico, personificado pelo príncipe cristão, único agente capaz de retomar o caminho da salvação pública do reino. Um século entrecortado por inúmeras dificuldades, uma orgia de guerras, para usar uma expressão do jurista contemporâneo Hugus Grotius, pode ser um balanço parcial, ainda que verdadeiro, do que foi o Grande Século. A história efetiva da Europa e da França no século XVII levou a história a engajar-se no esforço coletivo de construção do Estado, o tema mais privilegiado nos livros de história da época. Não se pretende discutir as filigranas dessa historiografia, descrevendo suas tendências e os diversos tipos de historiadores. Detivemo-nos nessas referências mais gerais à historiografia do século XVII com o objetivo de apontar alguns de seus elementos centrais, a sua natureza predominante, para poder destacar em quais obras esteve engajada a história no Século das Luzes e qual o lugar de Voltaire nessas aventuras do pensamento histórico. Como afirmava Harold Laski, em sua aula inaugural na cátedra de história das idéias políticas, no ano de 1926, não “podemos deixar de lado os historiadores. O que eles fazem sempre nos dá indicação do que sua época está pretendendo, ainda que indiretamente. A diferença na maneira como a história era escrita no século XVIII e como é escrita em nossa época não é uma mera diferença de instrumentos e técnica: é também uma diferença de ponto de vista social” (Laski 1980, p. 14).

3 VOLTAIRE, HISTORIADOR DAS LUZES

Mas é onde Voltaire não entra, porque, absolutamente, ele não quer entrar. E. Faguet

O século XVII acabara no desrespeito, o século XVIII começou na ironia (..) cuja razão de ser consistia em vingar o bom senso através da zombaria. (...) O mais ilustre representante

da espécie é Voltaire, tão maravilhosamente inteligente que,

quando não compreende, é porque não quer compreender. P. Hazard Mas sua crítica muito ousada tem feito,

até agora, mais bem do que mal. E. Fueter

Grandes interpretações sobre a visão de história que os europeus produziram no século XVIII existem em abundância. Sem dúvida, a literatura sobre o pensamento histórico na época do Iluminismo é desencorajadora no que se refere à profusão de estudos importantes, como os de E. Cassirer (1994), I. Berlin (1982), G. Gusdorf (1960). R. Koselleck (1979), M. Duchet (1995) e P. Gay (1977), para ficarmos em apenas alguns dentre inúmeros exemplos ilustres. Não se pretende aqui

avaliar essa literatura, mas apenas enfocá-la em perspectiva, para estabe-

65

lecer algumas interseções com a concepção de história especificamente desenvolvida por Voltaire. Quando o Príncipe das Luzes se mune de um arsenal de boas intenções, no sentido de ímpeto de realização, na pesquisa histórica de um leque amplo de novas propostas, faltam-lhe dados suficientes: documentação organizada e tradição crítica anterior. Ele vê apenas algumas árvores esparsas, não vê nenhuma floresta. Então, o pouco de pes quisa empírica que se encontra em seus livros históricos sobre usos e costumes — que alguns analistas colocam, não sem razão, na conta de história cultural — pode ser considerado muito, muitíssimo. Se, ao tentar empreender a escrita das realizações do espírito do homem, acaba descambando pela história militar e diplomática, está sendo dominado pelo espírito do tempo do qual tenta escapar, com uma parcela considerável de êxito para os padrões de tudo o que lhe antecedeu, no século anterior, e de quase tudo o que lhe sucedeu, no século XVIII francês. Em

seus textos teóricos, concebe

a história como

conhecimento

que avança, porque cada geração pode se apoiar na experiência das antecessoras. Em 1764, no verbete sobre a história, no Dicionário filosófico, ele avalia o que tinha sido a história anterior à que se praticava em sua época, e fala de novas obrigações, dos fardos aumentados significativamente pelo labor de homens de letras, que, como ele, haviam dedicado boa parte de suas vidas a especulações sobre a história: Discutiu-se tanto sobre essa matéria, que agora é preciso falar um pouco a seu

respeito. Sabe-se que o método e o estilo de Tito Lívio, sua gravidade, sua eloqgiiência sábia, convêm à majestade da república romana; sabe-se também que Tácito é feito mais para pintar tiranos; Políbio, para dar lições de guerra; Dionísio de Halicarnasso, para desenvolver as antigiiidades. Mas, se hoje em dia, modela-

mo-nos por esses grandes mestres, temos de suportar um fardo mais pesado do

que eles. Exigem-se dos historiadores modernos mais detalhes, fatos mais constatados, datas precisas, autoridades, mais atenção aos costumes, às leis, aos usos, ao comércio, às finanças, à agricultura, à população. Ocorre com a história o mesmo que com a matemática e a física: a estrada alongou-se prodigiosamente. Atualmente, é mais fácil fazer uma coletânea de jornais do que escrever a história.

(...) Essas regras são bem conhecidas, mas a arte de bem escrever a história sempre será rara. Há leis para escrever a história como há para todas as artes de espírito, mas, como

nestas, naquela também

(Voltaire 1978, pp. 208-209)

há mais preceitos do que grandes artistas.

Bourdé e Martin, a história de Voltaire, apesar de muito moderna, traz alguns vícios insuperáveis. Isso se deve a sua índole de Para

artista das letras, de virtuose em diversos gêneros literários. Ele havia

criticado a escuridão das metáforas dos autores do passado, mas, 20 escrever história, quer fazer a pintura das cenas que descreve. Daí deriva

sua concepção de história-quadro, cujos parâmetros são as regras estabelecidas em seu tempo: “Voltaire desenvolve seu tema à maneira de um

pintor da história” (Pomeau em Voltaire 1957, p. 10). Seguindo o impulso

de autor de peças teatrais, sua história é escrita em três atos. Em seu enredo, há quase sempre um preâmbulo, uma intriga e um desenlace. Para Bourdé e Martin, a História de Carlos XII é uma “tragédia em atos”. Ouçamos o próprio Voltaire definir a sua estratégia: “O meu segredo é forçar o leitor a dizer a si mesmo: Filipe V será rei? Ele será expulso da Espanha? A Holanda será destruída? Luís XIV sucumbirá?” (citado por Pomeau em Voltaire 1957, pp. 10-11). René Pomeau lembra que Voltaire teve êxito em emprestar a Carlos XII aquela quimera de heroísmo que

perseguiu em vão em suas tragédias. A história lhe detalhes e o ritmo vital que ele não soube inventar nas o mérito de ter animado essa matéria. Colocando-se mas transferindo-lhe aquela necessidade de grandeza pp. 10-11)

ajudou. Ela lhe forneceu os ações trágicas. Pertence-lhe em seu personagem? Não, que está em Voltaire. (1994,

Os principais fios condutores do olhar voltairiano serão as virtudes e os vícios de uma época, de um príncipe, de um povo; entretanto, ele se preocupa em utilizar documentos inéditos, incluindo novos objetos como o comércio internacional e as transformações no âmbito da cultura dos diferentes povos. Utiliza-se de livros de história, os do século XVII e os de seu tempo. Como vimos, era leitor atento de Bossuet, dos Discursos,

que achava texto de enorme força descritiva e de elevado valor literário." Entre as fontes históricas, não prescindia de memórias biográficas, gênero muito cultivado até o século XVIII. Como notou Cassirer, “ele se apóia em

investigações especializadas, amplas e muito profundas, e a acribia do historiador nada tem de estranha para ele” (1994, p. 298). Voltaire cita frequentemente suas fontes. Preocupado com a credibilidade de suas informações, remete incessantemente a seus testemu1.

Cf as notas críticas de Voltaire sobre Bossuet em O século de Luís XIV (1957, p. 1.005 ss.).

67

nhos. É assim que podemos encontrar a primeira história com certificado de garantia de que se tem notícia, pelo menos é o que fica subentendido

no texto “Aviso importante

Obras históricas. Tendo

sobre a História de Carlos XIP, reunido

seu livro combatido

nas

por todos os lados, até

mesmo por parte de testemunhas oculares da trajetória do rei da Suécia,

entre as quais o aristocrata La Motraye — embaixador de Luís XIV na Turquia —, ele se preocupa em reparar os erros em várias edições sucessivas.

A querela com La Motraye foi em 1740. Quase duas décadas depois, o Príncipe das Luzes ainda era alvo de ataques por sua biografia.

Voltaire havia se equivocado sobre a cor da farda que um general de Carlos XII usara num determinado cerco. Por essa bagatela, foi chamado de arquimentiroso por Nordberg, capelão de Carlos XII, que também escreveu uma história do rei, em vários volumes. Voltaire exibe em 1759

texto de outra testemunha, que é mais do que provável tenha solicitado. Trata-se de carta ditada ao conde de Tressan por ninguém menos que Stanislas, duque de Lorena e “por duas vezes rei da Polônia e por duas vezes destronado”, o amigo mais fiel de Carlos XII, e também amigo do próprio Voltaire: “O vivo interesse que temos pela glória de M. de Voltaire é aquele que todo homem honrado deve ter para os que constatam a verdade dos fatos nas histórias contemporâneas. Apressamos em demandar ao rei da Polônia a permissão de enviar a M. de Voltaire um certificado na forma de tudo o que sua majestade nos fez a honra de dizer” (“Aviso importante...” em Voltaire 1957, p. 318).? Além disso, há

um diálogo interno permanente entre suas obras, Voltaire remete incessantemente o leitor a suas diferentes obras, favorecido pelas reedições e reatualizações de seus livros. Ele reconhecia a importância da rigorosa crítica documental, mas

pecou por falta ao não acatar suas próprias prescrições. E não as acatou somente porque o tamanho da obra a realizar ultrapassava em muito os limites de um só indivíduo.? Incorreu em muitos equívocos e foi pródigo 2.

Acerca de suas preocupações com a fidedignidade de seus documentos, acompanhe o excesso

de zelo em “Prefácio histórico e crítico” à sua História do Império da Rússia (1957, p. 341ss.). 3. “Ora, quando se tratava de física newtoniana, Voltaire podia se contentar em vulgarizar Newton. Mas, em matéria de história, tudo estava por fazer, e o filósofo devia, ele mesmo, a história”. colocar a mão na massa. Antes de refletir sobre a história era preciso escrever

a para a proporção gigantesca da empreitada a ser encarada por Desse modo, Gusdorf apont212).

Voltaire (Gusdorf 1960, p.

em cometer injustiças. Isso porque

“trabalhava depressa e se tem repro-

vado o fato de ter cometido erros graves, uma vez que sua informação

era, frequentemente, superficial” (Lefebvre 1974, p. 142). Itinerante contumaz — inicialmente por força das perseguições que sofreu no

começo de sua trajetória, mas, depois, por puro prazer -, visitava inúmeros lugares, sempre em busca de documentação inédita.

Foram essas viagens que lhe permitiram desenvolver o sentido da relatividade dos valores e chegar à conclusão de que a diversidade das

culturas era um fato impossível de ser negligenciado numa obra intelectual, fosse ela científica ou de ficção. Esse relativismo, esse “método comparativo”,

mesmo

que um pouco duro em sua obra, representa uma

grande conquista. Os sucessivos e extraordinários deslocamentos de seus personagens, particularmente no conto filosófico Cândido, são a expressão cristalina da crença de que há uma enorme diversidade cultural entre as sociedades humanas e que viajar permite ao observador captar as nuanças da diversidade. Ele se ocupa em reconhecer Ja difference des temps et des lieux, como se expressou em sua História do Império da

Rússia (1957, p. 555).

É isso O que faz da visão voltairiana uma perspectiva essencialmen-

te histórica, mesmo quando não se trate propriamente de escrever história, e muitas das críticas dirigidas difusamente a ele por Isaiah Berlin, por exemplo, não são totalmente justas. Segundo Berlin, os historiadores do Iluminismo foram presas fáceis de projeções do presente no passado. Para ele, o historiador das Luzes crê que a realidade segue leis eternas, racionais, que podem ser apreendidas pela razão. História anacrônica quase toda essa história produzida no século XVIII, insensível, sobretudo,

as diferenças culturais nos estudos da Antiguidade hebraica e da Idade

4.

Sobre as fontes utilizadas para O século de Luís XIV, cf. Pomeau, “Prefácio”, em Voltaire 1957, pp. 14-15 e Goulemot 1990). Sua “Carta ao abade Dubos” também traduz seu esprit systématic — que não significa esprit de systême —, suas preocupações com a organização do trabalho intelectual e o rigor de sua pesquisa. O plano geral da obra aí se encontra detalhado,

junto com sua ousada intenção: “Difundir novas luzes sobre os mais belos dias da França” com objetividade e economia de palavras, porque “a vida é demasiadamente curta [e] o tempo

muito precioso para dizer coisas inúteis” (Voltaire 1957, p. 605). E por isso que, num livro de história, “o pueril não deve ser citado, e o absurdo não deve ser considerado” (SL 1957, p. 642). Fueter considera as cartas de Voltaire a Dubos e a Hervey — autênticos projetos de pesquisa - como o melhor testemunho pessoal sobre a origem da historiografia das Luzes em

suas relações com as tradições precedentes (q.v. Fueter 1953, p. 22).

69

Média, por exemplo. Para a superação desses embaraços, foi esperar pelo historicismo de Herder e pela descoberta tardia da

Vico (cf. Berlin 1982 e Cassirer 1994, p. 282).

Ora, ao estudar as tradições russas, Voltaire se esp anta. “Tudo isso está afastado de nossos costumes, e não é menos CHR 1957, p. 390). Quando fala no “valor do mérito ”, quando dos monarcas russos, chega a confessar à superiorid ade de

preciso obra de

E considera: respeitável” da sucessão

sua cultura política sobre os Estados meridionais da Europa, que se pautavam pela

hereditariedade e a primogenitura. Assim, é preciso nuançar afi rmações

como as de Isaiah Berlin, que nos fala de uma “vara de medir” , a nosso ver muito inflexível, quando aplicada a tomar as medidas da história produzida pelos philosophes, em especial a de Voltaire. Outros his toriadores vêem com melhores olhos essa linhagem de história pela qual se iniciou uma emergência de relativismo cultural” Acerca dos caminhos e descaminhos da história no século XVIII, especialmente a voltairiana, vejamos a reflexão de Isaiah Berlin (1982, p. 13): Herder foi quem ativou a idéia de que, visto todas as civilizações terem seus próprios pontos de vista e formas de sentir, pensar, atuar e criar seus próprios ideais coletivos, em virtude dos quais são civilizações, cada uma delas pode ser verdadeiramente compreendida e julgada apenas por sua própria escala de valores, suas próprias normas de pensamento e ação, e não pelas de quaisquer outras culturas, e muito menos por alguma escala absoluta, impessoal e universal, como a que os philosophes franceses pensavam ter ao seu dispor, quando tão arrogante e cegamente davam notas a todas as sociedades, passadas e presentes, louvavam

5.

René Pomeau

avalia que “as idéias de Voltaire possuem

analogia com as de Vico nos

Princípios de uma ciência nova. Mas Voltaire não parece conhecer Vico” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 34). Aqui está uma questão que intriga. Por que a recepção de Vico foi tão inexpressiva entre os philosophes? Segundo Franco Venturi, Vico foi “um homem estranho a seu tempo, porque estava atrasado e à frente dele” (Venturi 1971, p. 16). Para Robert Nisbet, “Vico — cuja vida abrangeu a última parte do século XVII e a primeira parte do século XVII — [foi] pouco conhecido por seus contemporâneos [tendo exercido] pouca influência em sua época: apesar da originalidade e criatividade de sua obra histórica, sociológica, filológica e econômica, optou por enquadrá-la na rigorosa perspectiva fornecida pela Providência e pela

fé na Igreja, cujo prestígio intelectual estava na ocasião decrescendo rapidamente” (Nisbet 1985, p. 170). Acerca da descoberta tardia de Vico q.v. também Whitrow 1993; Berlin 1982; Meinecke 1982).

6. Sobre o relativismo na obra dos iluministas, cf. o capítulo “The science of society: The first social scientists”, em Gay 1977, p. 319 ss.

70

REAL

ou condenavam

este ou aquele indivíduo, época ou civilização, estabeleciam

alguns modelos com caráter universal, e rejeitavam outros como bárbaros, depravados ou absurdos. Julgar ou, ainda pior, escarnecer ou zombar do passado de

acordo com pontos de vista próprios ou alheios leva indefectivelmente a uma grande distorção.

(...) Para eles, os homens

eram homens e possuíam traços

comuns em todas as épocas, quando o que mais importa são justamente suas diferenças, já que são elas as que os fazem ser o que são; é nisso que se expressa o gênio individual dos homens e das culturas.

Sem dúvida, a crença no caráter sobrenatural dos reis de curar pela

imposição das mãos — o toque taumatúrgico — é um bom exemplo de uma certa

dureza

do

olhar

voltairiano,

provavelmente

muito

fato de

pelo

envolver aspectos místicos e religiosos. Ao abordar a cerimônia do toque das escrófulas, Voltaire refere-se ao caráter sobrenatural dos reis nos seguintes termos: Em meio às humilhações desse rei fugitivo, e da liberalidade com que Luís XIV o tratou, era um espetáculo digno de alguma atenção ver Jaime tocar as escrófulas

no pequeno convento das inglesas; seja porque os reis ingleses se tenham atribuído esse singular privilégio, como pretendentes à coroa da França, seja porque,

desde

os tempos

de Eduardo

1, haja-se

criado essa cerimônia.

(SL

Voltaire 1957, p. 764)

Jaime II é abordado como o rei-jesuíta, de quem os franceses diziam: “Eis um homem que deixou três reinos por uma missa”. Escapamlhe em boa parte as implicações culturais de tal cerimônia, denotando o autor uma certa tendência de seu tempo de não reconhecer o profundo valor histórico e cultural de eventos dessa natureza. Uma tal posição representou alvo claro para as críticas da historiografia do romantismo, ainda que Cassirer tenha considerado que “homens como Hume, Gibbon,

Robertson, Montesquieu e Voltaire não pudessem ser acusados de falta de interesse e de sentido histórico” (1961, p. 214). Mas, se o mesmo Cassirer reconhece que a filosofia das Luzes olhava o passado sempre enxergando nele o presente, parece que a crítica dos historiadores românticos contém uma boa parcela de razão. Esses ataques do romantismo à história dos filósofos do século XVII

derivam da sensação de que havia lhes faltado um certo respeito para com

o

passado,

uma

certa

inteligência

realmente

compreensiva

em

71

relação a diferenças entre os tempos e as culturas. Como

diz Ernst

Cassirer, “para todos os pensadores do Iluminismo, o mito fora uma coisa bárbara, uma estranha e rude massa de idéias confusas e superstições

grosseiras, uma autêntica monstruosidade. Entre o mito e a filosofia, não

podia haver ponto de contato. O mito termina onde começa a filosofia —

tal como a noite dá lugar ao dia” (1961, p. 226).

Em sentido análogo, Jean Ehrard e Guy Palmade ressaltarão a dureza da história iluminista ao lembrar que o “racionalismo dos filósofos

trava o desenvolvimento do sentido histórico. É melhor racionalizar o irracional ou cobri-lo de sarcasmos à maneira de Voltaire? Em ambos os casos, a história é passada pelo crivo de uma razão intemporal. (...) Para Raynal, como para todo o “partido” filosófico, a história é o campo fechado onde razão e preconceito se defrontam” (citados em Le Goff 1984, p. 195).

Da mesma forma, salienta Robert Nisbet (1985, p. 176):

Na época de Vico — e ainda depois dele —, era comum a tendência a considerar as fábulas, as lendas e os mitos como 'sobrevivências' absurdas e desprovidas de sentido. Vico, muito antes de Herder, (...) viu nos mitos uma maneira intel igível

e racional de os homens primitivos atribuírem ordem e coerência ao mundo em sua volta. (...) Tanto faz se o que estudamos é um mito ou uma superstição, uma

obra de arte que sobrevive ao tempo ou uma teoria filosófica do universo ou da humanidade, o importante é não a considerarmos como parte de um princípio abstrato ou intemporal, mas como parte de uma cultura que se está realizando.

E talvez a historiografia de Herder e seus sucessores tenha tido tanto mais razão, uma vez que Voltaire e seus contemporâneos demonstraram uma notável inflexibilidade quando o problema era enfrentar os mitos das origens misteriosas, que tentavam compreender, pelo recurso a pressupostos simbólicos, às origens remotas e ao nascimento das nações. Nenhuma passagem nos textos históricos voltairianos é tão clara nesse sentido quanto um trecho do Dicionário filosófico: Os primeiros fundamentos de toda História encontram-se nas narrativas que os pais fazem aos filhos e que são transmitidas depois de geração em geração. Em sua origem, são mais ou menos prováveis (desde que não choquem o senso

comum), mas perdem gradualmente a probabilidade em cada geraç ão. Com o tempo, a fábula cresce e a verdade diminui: por esse motivo, todas as origens dos povos são absurdas. Assim, por exemplo, durante muitos séculos, os egípcios

j

m

teriam sido governados por deuses e semideuses, até que finalmente teriam tido reis durante 11 mil e 300 anos, sendo que, nesse espaço de tempo, o sol teria

mudado quatro vezes de origem e de ocidente. Os anais de todas as nações modernas não são menos fabulosos. Ás coisas prodiígiosas e improváveis devem

ser relatadas algumas vezes como prova da credulidade humana — pertencem à história das opiniões e das tolices, mas seu campo é vasto. (Voltaire 1978, p. 204)

Para além desses anacronismos, quando a questão é interpretar mitos, Voltaire acentua o determinismo climático, perspectiva já muito

antiga na historiografia do Antigo Regime, posto que anunciada por Jean Bodin na segunda metade do século XVI. Desse modo, sua obra histórica está bem próxima da obra de Montesquieu. Enfatiza o clima, elemento favorável ou não para Oo surgimento e o sucesso das civilizações. Nos Ensaios sobre os costumes, ele vai afirmar que “três coisas influem sem cessar sobre o espírito dos homens, o clima, o governo e a religião”. Contudo, relativizará sua influência ao reconhecer que diferentes civilizações viveram nas mesmas regiões, sob influências semelhantes, mas tiveram destinos diversos. Para Voltaire, o grande diferencial será o tipo de solução que cada povo encontra, por sua capacidade de trabalho.”

Ernst Cassirer aponta uma diferença substancial entre a história produzida por Montesquieu e a escrita pelo Príncipe das Luzes: “O centro de gravidade da história foi (...) deslocado, segundo uma intenção metodológica consciente, da história política para a história do espírito. Aí reside o traço característico que distingue nitidamente Voltaire de Montesquieu”

(1994, p. 292). Paradoxalmente, quem faz “história do espírito” é Voltaire, apesar do Espírito das leis. Cassirer está falando da natureza mais profunda

dessas histórias. Mas isso não deve significar que, no plano temático, ele abandone os temas políticos, como as batalhas, os tratados e os reis.

Não se pode negar que seus livros de história são bem documentados, que já não constituem textos cujas evidências sejam meramente obras de autoridade. Entretanto, é preciso enfatizar que sua preocupação com a erudição e a crítica documental rigorosa foi definida, de forma decisiva e marcante, por influência de um erudito solitário e, curiosamente, clérigo. Segundo Pierre Chaunu, esse foi um encontro profícuo, porque marcou uma confluência de idéias destinada a um grande futuro, 7.

“Esse roçador de horta no país de Gex está persuadido de que o homem pode, se ele deseja, vencer o desafio de um território” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 42).

73

qual seja, a vitória da história crítica, que passa a integrar o horizonte de suas reflexões, num conjunto importante de novos temas.*

Como os historiadores eruditos do século XVI, os Jean Bodin, os Etienne Pasquier, os François Hottman, os La Popeliniére, o Príncipe das

Luzes coteja seus testemunhos. Certo de que a história é uma forma inexata

de conhecimento, em que conta a informação mais detalhada e fidedigna,

é preciso confrontar o que se puder encontrar como evidência. O resultado final será uma relativa aproximação da verdade. Nesse sentido, Voltaire prenuncia alguns elementos encontráveis apenas na historiografia do século XX, como a convicção de que há quase tantas histórias quanto há historiadores. Mas sua confiança excessiva no que é verossímil, segundo René

Pomeau,

“leva-o a se enganar,

verossímil” (19944, p. 64). Esse mesmo

porque

a verdade

nem

sempre

é

autor considera:

Voltaire sabe, sem dúvida, que o verdadeiro não coincide sempre com o verossímil. (...) Contudo, fia-se geralmente nas verossimilhanças, porque acredita na

natureza humana 'da qual o fundo é igual em toda parte”. Resta saber o que natureza. E é aqui que Voltaire frequentemente se engana, definindo natureza os hábitos da Europa contemporânea. Ele se recusa a admitir autêntica uma regra de sucessão matriarcal [identificando] a natureza patriarcado. (Pomeau em Voltaire 1990, p. 20)

8.

é essa como como com o

Para Chaunu, “sem os beneditinos de Saint Maur, Voltaire não poderia ter escrito o Essai sur les moeurs. Do encontro da erudição com a História das Luzes, a parada de Voltaire em Senones é figura e símbolo. Em 1754, Voltaire, na sua errância perpétua, deteve-se um instante em Senones. Cínico, escreveu: “Ide à casa de vossos inimigos para vos abastecerdes em artilharia”. Dom Calmet (1672-1757), esse poço de ciência, autor, entre outras coisas, da

história da Lorena na Gallia Christiana, repleta de lugares em elevações, de igrejas desapa-

recidas, que causam, ainda hoje, a admiração dos arqueólogos, pôs-se ao trabalho, sem qualquer malícia, para seu hóspede. (...) Junto desse poço de ciências, Voltaire procura as origens dos mandamentos da Igreja. Segue, com olhar inquieto, o velho içar-se até o cimo das estantes sobre escadotes

bamboleantes

para alcançar enormes

volumes.

E Jean

Orieux

exclama: “Bem aventurada parada. Eis o diabo feito ermitão (...). Podemos vê-lo, esse clérigo

anticlerical, esse católico formado de catolicismo e de rebeldia. Podemos vê-lo em sua casa.

Ele respira o ar de sua infância estudiosa, o ar de sua verdadeira família, o ar de Luís, o Grande.A biblioteca excita-o: ela é tão rica quanto a de Saint-Germain-des-Prés! A frugali-

dade do refeitório (...), essa douta linguagem dos monges o encantaram, o trabalho, a paz, a

doçura: é seu ideal, ele o encontra em Senones. Ele disse que lá viveu deliciosamente. Não disse devotamente. Ninguém lho perguntou”. O encontro de Senones é o encontro, por assim

dizer, de uma nova problemática de história total com a segunda vaga da erudição crítica no seu apogeu” (Chaunu 1976, pp. 60-61).

74

Ao desvendar uma “antropologia voltairiana” em textos de variada

natureza

do autor, Michele

Duchet

depara-se com

a dureza de sua

perspectiva que, em certos casos, toca as raias da incompreensão, e que o leva a classificar certos usos e costumes em sociedades extra-européias ou como “invenções do deboche” ou como “fábulas de viajantes”. Para Voltaíre,

é simplesmente impensável que um rei em Cochin transmita seu poder ao

filho de sua irmã, e não a seu primogênito. E acerca disso vaí afirmar no Ensaio: “Uma tal regra contraria demasiadamente a natureza. Não há homem, absolutamente, que queira excluir seu filho de sua herança” (citado em Duchet 1995, p. 310). Como observa Duchet, “é-lhe mais fácil admitir os erros e as loucuras do espírito humano, os excessos da superstição e os furores do

despotismo que colocar em xeque a idéia de uma moral universal” (ibidem, p. 311). Isso foi o que Paul Hazard considerou, mais genericamente, como o demônio da geometria, “que continuava a vingar-se quando aconselhava a encarar o verossímil como critério único da verdade” (1989, p. 231). Contudo, parece que há aqui uma filigrana digna de nota. Sendo Voltaire um historiador de passadas largas, no sentido de que lidava com temas amplos e cronologias extensas, o apego ao verossímil era um expediente útil, já que lhe permitia ganhar tempo, dispensando-o do ônus da prova. Outra guinada voltairiana, no sentido de avançar em relação à crítica historiográfica de seu tempo, é a ampliação temática que empreende. Nas Novas considerações sobre a história, obra publicada em 17774, suas preocupações vão ao encontro de uma história que focaliza a economia das nações, a força transformadora dos indivíduos anônimos, a ação construtiva dos homens comuns, recusando a antiga ênfase na história dos grandes indivíduos: Depois de ter lido três ou quatro mil descrições de batalhas e o teor de algumas centenas de tratados, achei que não tinha ficado muito instruído. Só tinha aprendido acontecimentos. (...) A Espanha seria mais rica antes da conquista do Novo

Mundo do que hoje? Qual tinha sido o aumento da população entre o tempo de Carlos V e o de Filipe IV? (...) Eis um dos objetos da curiosidade de quem quer que pretenda ler a história na qualidade de cidadão e filósofo. Estará bem longe de se contentar com esse conhecimento; desejará saber por que é que uma nação foi poderosa ou impotente no mar, como € até que ponto ela enriqueceu. (...) As

modificações nas leis e nos costumes serão, enfim, o seu grande objeto. Saber-se-

1a assim a história dos homens em lugar de se saber uma pequena parte da história

dos reis e das cortes. (Voltaire 1957, p. 47)

15

Uma simples leitura de O século de Luís XIV é suficiente para perceber o quanto Voltaire abandona seu programa de trabalho quando

escreve

seu

maior

livro de

história.

Ora,

O século

de Luís XIV tem

pretensão de agregar todo o conjunto temático que ele havia vislumbrado

à

com grande penetração, com a enorme sensibilidade de quem Jfareja uma descoberta importante. Ele realmente tencionou condensar toda a história

de um século num livro, toda a história compreendida como a abordagem dos temas relevantes.

O seu O século de Luis XIVé bem mais um Luís XIV no século. Muito pouco há ali sobre usos e costumes, ou seja, sobre o espírito e à cultura de uma época, um muito pouco que se torna ainda mais escasso e insatisfatório quando se coloca no outro lado da balança temática a coleção de eventos militares e os fatos pertencentes à diplomacia internacional. O pretenso historiador das nações revela-se o competente analista de batalhas. Contudo, uma coisa é dizer que ele não executou seu projeto na íntegra. Outra, muito diferente, é afirmar que aquilo que realizou não foi importante, ou melhor, paradigmático. Falamos até este ponto do Voltaire historiador sem perder de vista o intelectual de múltiplas faces. Antes de concluir este capítulo, gostaríamos de abordar brevemente um tema historiográfico relativamente recente, o do intelectual interventor — consoante as preocupações da história intelectual francesa, tendo em Edgar Morin um de seus nomes de maior expressão —, cujo nascimento é identificado em fins do século passado. Mas dataria mesmo esse “batismo” do intelectual de fins do século XIX da mobilização nacional francesa em torno do caso Dreyfus? Não se poderiam encontrar no século XVIII os principais fundamentos que caracterizam o intelectual contemporâneo? Enfim, Voltaire foi um intelectual digno desse nome já em sua acepção presente ou não passou muito mais de um escritor solitário, excêntrico e egoísta, apenas preocupado com sua ânsia

de glória, com a busca da consagração a qualquer custo? É possível, e bem

provável,

que toda essa ênfase na gênese do

intelectual em fins do século XIX se relacione a um desses estereótipos que, mesmo desbaratados por judiciosos estudos, sempre sobrevivem ou são ressuscitados para atender a certos modismos do universo acadêmico.

De fato, até hoje, o século XVIII é concebido como uma época intelectualista, ensimesmada em discussões filosóficas abstratas sem conexão com a realidade social. Ora, nas décadas de 1930 e 1940, Ernst Cassirer

76

já se ocupava em desmistificar tal juízo. Para ele, os filósofos da Ilustração

moviam-se na esfera daquilo que Kant conceituaria anos mais tarde como

o “primado da razão prática”. Não se envolver e deixar de responder às coerções impostas por seu mundo é um enfoque enganoso para retratar o século XVIII do ponto de vista da ação de seus intelectuais. Para Cassirer (1961, p. 222):

Eles nunca aceitaram uma distinção irredutível entre a razão teorética e a razão

prática. Não separavam a especulação da vida. Nunca existiu talvez uma harmo-

nia mais completa entre a teoria e a prática, entre o pensamento e a vida, que no

século XVIII. Todos os pensamentos eram postos imediatamente em ação; todas as ações encontravam-se subordinadas a princípios gerais e eram julgadas de acordo com os modelos teoréticos. Foi essa característica que deu à cultura do século XVIII sua força e sua profunda unidade. A literatura e a arte, a ciência e a filosofia tinham um centro comum e cooperavam para o mesmo fim.

Se intervir na realidade política e social de seu tempo é suficiente

para caracterizar O intelectual em seu significado mais recente, Monsieur

Arouet incorpora muito bem as palavras de Sartre quando diz que “cada um de meus atos coloca em jogo o sentido do mundo e o lugar do homem dentro do universo”. Intelectual interventor, no sentido de que participa

ativamente de variados processos que mobilizam uma incipiente opinião pública, cujo exemplo emblemático é o caso Calas, ele tenciona exercer um “império intelectual”, à moda do Século das Luzes, por seu espírito de conquista e o anseio de dominação cultural.? Com efeito, o paradigma intelectual voltairiano fundamenta-se sobre a seguinte questão: conduzir os segmentos dirigentes do poder político pela via esclarecida da razão iluminista, mesmo que essa intenção última traduza um enorme e insaciável apetite pelo próprio poder, ainda que na condição de coadjuvante, ou seja, filósofo ou pedagogo de cabeças cingidas por coroas.

No século XIX, o grande Michelet enfocou outras dimensões nas

atitudes do Voltaire interventor, quando afirmou que este havia tomado

para si as dores do mundo: “Tudo o que o fanatismo e a tirania sempre fizeram de pernicioso ao mundo, foi a Voltaire que fizeram, é a ele que 9.

“Mais engajado que Montesquieu e Rousseau, ele intervém frequentemente nos eventos.

Emissário oficioso, negocia em Berlim. (...) Exorta Catarina a agir firme em Constantinopla. (...) Toma partido na guerra civil de Genebra” (Pomeau 1994b, p. 11).

4

RR

À ME

se decapita em São Bartolomeu, é a ele que se enterra nas minas do novo mundo, é a ele que o parlamento de Toulouse suplicia com Calas... Ele chora,

ele

ri nos tormentos,

riso terrível,

ao

qual

se desmoronam

as

bastilhas dos tiranos, os templos dos fariseus” (citado em Biziêre e Solé 1993, p. 258). Algo claramente inspirado nisso encontramos na biografia de Jean Orieux: “Quando se esquarteja Calas em Toulouse, escutamos se

elevar, de Genebra, o grito de dor e de indignação de Voltaire, que se

sente torturado. Não é somente Calas o atingido, é a humanidade que é ferida; é Voltaire, vocês e eu” (Orieux 1994, p. 11). E bom lembrar que Jean Goldzink considera essa premiada obra de Orieux como uma espécie de decalque do livro de Desnoireterres, texto em relação ao qual o próprio Orieux reconhece o débito, na sua “Introdução”. Diz Goldzink (1994, pp. 184-185): “Elegante floreio, ornado de fantasias, sobre o plano de Desnoireterres — o Antigo Testamento que guiou o povo voltairiano por 120 anos”. Mas Orieux é citado numa atualizada bibliografia sobre o “estado presente dos estudos voltairianos”, por aquele que é talvez o maior especialista em Voltaire, o que parece evidenciar o valor do trabalho (cf. Pomeau 1994a, p. 198).

E certo que, no século XVIII, não existia o “nome” — a palavra “intelectual” em seu sentido recente!” — e nem sequer havia o “número” — =

um grupo de eruditos compacta e organicamente engajados em causas variadas (o combate contra as perseguições sofridas pela Encyclopédie mobilizou umas poucas cabeças) —, mas os “valores”, estes já eram bastante 10.

De acordo com Carlo Marletti, a palavra intellectuel apareceu na língua francesa na segunda metade do século XIX. O que havia de mais próximo a ela anteriormente era o conceito inteligencija, neologismo de um romancista russo que Turgueniev acabou divulgando. De todo modo, assevera Marletti, “essa palavra (intellectuel) provavelmente já estava em uso

antes, em alguns círculos literários e políticos, mas seu registro de nascimento, isto é, sua

oficialização, remonta ao célebre Manifeste des intellectuels, publicado no diário Aurore de

14 de janeiro de 1898. (...) Recebido com desconfiança nos dicionários e considerado frequentemente como gíria ou expressão depreciativa, o termo intelectuais conserva ainda o sentido político que recebeu, como se fosse um nome de guerra no conflito entre conserva-

dores e progressistas em torno do caso Dreyfus” (Marletti em Bobbio et al. 1997, p. 637;

acerca do affaire Dreyfus, q.v. Bobbio 1997, p. 123ss.). Para Norberto Bobbio, “o nome é relativamente recente, mas o tema é antigo. (...) Que esses sujeitos históricos sejam chamados

“intelectuais há cerca de um século não deve obscurecer o fato de que sempre existiram os temas que são postos em discussão quando se trata do problema dos intelectuais, quer esses sujeitos tenham sido chamados, segundo os tempos e as sociedades, de sábios, sapientes, doutos, philosophes, clercs, hommes de lettres, literatos etc.” (Bobbio 1997, pp. 109-110; acerca desse conceito, q.v. também Sirinelli 1996).

claros e não cremos que Voltaire achasse idéias malucas e extemporâneas paradoxos maniqueístas entre bem e mal, justo e injusto. Mas, então, o que caracteriza o intelectual, segundo os pressupostos da história intelectual” Ter

adquirido retórica e é um dos na defesa

notoriedade colocando sua verve, ou melhor, seus dotes de seu prestígio pessoal a serviço do bem-estar de seus compatríotas princípios integrantes de seu perfil. Além disso, o fato de se bater de valores universais como a verdade e a justiça.

Ora, Voltaire realizou algumas notáveis intervenções públicas, conse-

guindo revisões de alguns processos e as devidas reabilitações de seus indiciados: “Por sobre as fronteiras, por fim senhor de si mesmo, ele vaí, de cólicas em vapores, ocupar-se infatigavelmente de tudo aquilo que não percebe um homem de letras tradicional” (Goldzink 1994, p. 98). Desse modo, fez o mesmo que Emile Zola, e talvez até bem mais do que Zola, haja vista estar-se no século XVIII, em plena idade do arbítrio dos reis, da intolerância clerical e das mais variadas formas institucionalizadas de violência.

Nesse sentido, o neologismo “intelectual” aplica-se inteiramente ao Príncipe das Luzes, designando uma espécie de vanguarda intelectual solitária e iconoclasta. Mas há algo mais. Voltaire foi também um generalista, um iluminista no sentido pleno da palavra. Em verdade, encarna o ideal do homem renascentista, conforme define a filósofa e historiadora

húngara Agnes Heller (1985), ou seja, o sábio que transita com desenvoltura pelos mais diversos campos do conhecimento, indo da crítica literária à física e à matemática, sem deixar de passar pela dramaturgia, pelo jornalismo, pela filosofia, pela política e pela história. Certamente, todas as ações voltairianas constituíram-se em atos pessoais por excelência. Voltaire atuou contra grupos relativamente organizados, grupos esses engajados num combate sem tréguas contra ele. Mas, muitas vezes acuado, Voltaire jamais constituiu seu próprio grupo. Foi um combatente solitário que não dispensava propriamente 11.

Voltaire era uma dessas mentes enciclopédicas: “Poeta, dramaturgo, ensaísta, historiador. novelista, filósofo, cientista amador, seu direito à imortalidade reside em seu caráter polêmico e em seu domínio do ridículo, no que, até hoje, não tem paralelo” (Berlin 1979b, p. 113).

Acerca desse caráter enciclopédico de sua cultura, ele se exprimiu em sua “Carta a M. Pitor”:

“Eu sou como os pequenos riachos: eles são transparentes porque são pouco profundos” (citado em Lanson 1960, p: 72). E André Versaille acrescenta: “Voltaire pensa como Pascal “é bem mais belo saber alguma coisa de tudo que saber tudo de uma coisa"” (Versaille 1994, p. 35). Por essas múltiplas virtudes, René Pomeau denominou-o “Voltaire, o multiforme” (Pomeau 1994€, p. 15).

aliados, mas que era incapaz de mantê-los em torno de si. O que tornou

sua voz suficientemente amplificada em suas intervenções públicas não foi certamente sua “filiação” a este ou aquele grupo, mas sua celebridade,

justificada por seu talento literário colossal e pelo poder cinicamente destrutivo de seus textos. Seu valor intelectual foi reconhecido mesmo entre os círculos mais conservadores, não apenas em seu tempo, mas em meio aos ventos mais conservadores da cultura européia do Dezenove. O ultra Joseph de Maistre afirmara, por exemplo, em seus Sermões de São Petersburgo, que “O grande crime de Voltaire é o abuso do talento e a prostituição de um gênio criado para celebrar Deus e a virtude. (...) Paris O coroou, Sodoma o teria banido” (citado em Rónai 1996, p. 1.010). Voltaire esteve só; não pertenceu a nada que se assemelhe ao “partido dos intelectuais” em nossa sociedade contemporânea.!2? Mas ele representou, mesmo sozinho, um partido inteiro, pela força devastadora de seu discurso. O fato de Voltaire ter o peso de uma corporação, por seus talentos superlativos, havia sido apontado por Frederico II no “Elogio de Voltaire”: “Pode-se dizer, se me é permitido me exprimir assim, que o senhor

de Voltaire sozinho valia por toda uma

Rónai 1986, de memória de Michelet conjunto de

academia”

(citado em

p. 1.010). Nesse sentido, uma passagem famosa, que citamos por não recordar exatamente a autoria — mas cremos que é —, também nos dá bem a medida da substância explosiva do sua obra, no que tange à força criadora do intelectual para a

constituição de um

novo mundo.

Diz a passagem

que “a Itália teve o

Renascimento e a Alemanha, a Reforma. A França não teve Renascimento nem Reforma, mas teve Voltaire, que representou para ela o Renascimen-

to, a Reforma e metade da Revolução”.

Isso pode muito bem significar um determinado emprego da arte de escrever, aquele da pena como uma espada afiada; aliás, a pena cortante 12.

Para Franco Venturi, os intelectuais das Luzes não formaram “um partido, uma corrente

13.

Teria sido Voltaire o homem que abalou o trono e o altar? Sobre esse assunto existem nuanças que é preciso destacar quando se avalia o conteúdo político da obra histórica, filosófica e

única”: “O partido dos filósofos não estava suficientemente unido nem suficientemente decidido para se colocar à cabeça da opinião pública” (Venturi 1971, pp. 24-29). literária do Príncipe das Luzes. No que se refere à monarquia,

nenhuma visada, entre os

grandes pensadores franceses do século XVIII, é mais conservadora que a sua. Como nos

ensina Pomeau, “o espírito voltairiano é mais profundamente “Tevolucionário”, no sentido de

que espera operar uma “revolução do espírito humano”” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 31). pn 80

É

S A, Sy

1

.

E

F

ke

nunca será um instrumento rebelde em suas mãos. Com efeito, a atitude

voltairiana é bem a antecipação da divisa de Balzac: “o que começou pela espada,

eu finalizarei com

a pluma”

(citado em Curtius 1996, p. 237).

Manejava-a com a maestria de um esgrimista perfeito. O fato é que, com

Monsieur de Voltaire, a literatura foi arregimentada pela primeira vez em

peça

de artilharia pesada,

num

século XVIII marcado

pela voga do

anticlericalismo, pela crítica impíiedosa dos desvarios da Igreja, dos excessos do absolutismo monárquico e dos privilégios da sociedade aristocrática. Na época de Voltaire, o espírito dos tempos define-se pela filosofia secularizada e pelo pensamento despido das fórmulas e convenções teológico-religiosas, até onde isso era possível no século XVIII. O século de Voltaire cria um novo padrão de homem de letras, “apóstolo” da razão, à maneira dos escritores heterodoxos — os chamados líbertins — da idade clássica, a exemplo de Pierre Gassendi e Pierre Bayle, este último o infatigável descobridor de erros, o homem que ensinou aos homens a necessidade das idéias próprias, “dando-nos um dicionário de reflexões — a primeira obra do gênero em que se poderia aprender a pensar”, como ele anotou n'O século de Luís XIV (cf. Voltaire 1957, p. 1008). Destes e de outros iconoclastas da idade clássica, Voltaire será como uma espécie de reencarnação tempestuosa, principalmente porque exercerá maior influência em seu próprio tempo. Sua enorme admiração por Pierre Bayle pode ser mais bem compreendida na descrição que faz dele Georges Lefebvre: “Esse espírito crítico que Bayle aplica a seus textos não tem limites, não sente respeito algum por nenhuma autoridade e, principalmente, pela história sagrada e as Escrituras; desse modo, abriu caminho para Voltaire, provavelmente seu melhor discípulo” (1974, p. 113). Em sentido análogo, Guy Chaussinand-Nogaret observa que a obra desse autor realizou uma “verdadeira sabotagem crítica, obra-prima de ceticismo elegante e polido, obra de uma razão crítica que esconde suas temeridades sob uma divertida brincadeira já bastante voltairiana. (...). Em

síntese, [Bayle foi] o arquétipo militantismo” (1994, p. 13).

de Voltaire,

menos

o sarcasmo

e o

Bayle foi um renome imenso, uma reputação não arrastada pelo

vento, e que retumbou com estrépito por toda a primeira metade do século XVIII, e até mais além (cf. Hazard 1989, p. 41). Pretendendo representar a lei de Deus ou do Estado, em nome da razão universal,

Voltaire deve denunciar os despotismos, as injustiças e as mentiras. Ataca O

E RE SR

81

preferencialmente o clero, por reconhecer, nesse meio, a principal fonte do mal, que não hesita em convocar a violência como prima ratio quando caberia um honesto combate de idéias. Intelectual do Iluminismo, imagem bastante perfeita do individualismo renascentista, que se traduz por uma visão personalista e egocêntrica da vida, Voltaire deixou-se guiar, em muitos casos, por idea is bem ao gosto de nosso tempo: a defesa de direitos humanos fundam entais,

como o direito de voz e de defesa, numa época em que nem seq uer eram

cogitados. Nesse sentido, Voltaire já participa do espírito do intelectual, conforme o entendemos contemporaneamente. Além do mais, Vai vestirse de guia intelectual para esclarecer o mundo, a partir da tomada de consciência do ridículo e do absurdo da existência de práticas como as rodas de tortura, as lettres de cachet, a desproporção entre delito e pena, e uma série de mazelas peculiares ao Antigo Regime. Como apontou Eric Hobsbawm (1998, p. 215), ele irá denunciar veementemente a tortura de negros escravos no Suriname. A crítica a que

se refere o historiador inglês diversos textos de Voltaire, Dicionário filosófico — quando regalos europeus implicavam do. Ouçamos Voltaire em seu

encontra-se no Cândido — e em outros como o Ensaio sobre os costumes e O constata que certas comodidades e certos um custo humano exageradamente elevaturbilhão intitulado Cândido:

Quando se aproximavam da cidade, encontraram um negro caído no chão, não

tendo mais que metade do vestuário, isto é, umas calças de pano azul: faltavam aquele pobre homem a perna esquerda e a mão direita. - Meu Deus! — disse-lhe Cândido em holandês. — Que fazes aí, meu amigo, no horrível estado em que te vejo? — Espero meu patrão, o famoso negociante sr. Vanderdendur. - E foi osr. Vanderdendur quem te deixou nesse estado? — Sim. É o costume — disse o negro. — Por todo vestuário, dão-nos umas calças duas vezes por ano. Quando trabalhamos nas usinas de açúcare o rebolo nos apanha o dedo, cortam-nos a mão; quando

tentamos fugir, cortam-nos a perna: incorri em ambos os casos. É por esse preço que os senhores comem açúcar na Europa. (Voltaire 1994, pp. 261-262)!4

14.

E, no capítulo 12, do Ensaio sobre os costumes; “Se eles querem fugir, cortamo-lhes a perna ,

e se se tenciona fazê-los voltar ao engenho, damo-lhes logo uma perna de pau, Isso feito, ousamos falar de direitos dos povos” (1990, p. 416).

82

Em Voltaire, a literatura é mais que nunca um espelho do tempo. Hanna Arendt (1985), ao analisar a violência, conta que Mao Tsé-tung acreditava que o “poder brota do cano de uma arma”. Essa imagem é

muito sugestiva e talvez bastante apropriada para a análise da ídéia que Voltaire fazia acerca das relações intelectual-poder. Em Voltaire, o poder parece que estava na ponta de uma pena, empunhada sem propósitos violentos, mas que sempre causava brechas consideráveis. Com seus escritos, ele entortou o Antigo Regime, força de sua consciência crítica.

fazendo-o cambalear diante da

Se Voltaire foi um escritor ocupado consigo mesmo e com sua ansiedade megalômana por glória literária, como demonstrou Pierre Lepape, personificou também o mais moderno espírito do filósofo engajado, aplicado que estava em produzir uma literatura de choque. Mas será que podemos confiar nessa repulsa voltairiana à violência da escravidão, principalmente quando se sabe que o empresário Voltaire possuía investimentos consideráveis nos territórios franceses ultramarinos? Ora, seu “pensamento político” jamais será uma linha reta. Na verdade, é bem sinuoso e apresenta ambigúidades que não se deve desconsiderar. E isso é tanto mais verdadeiro posto que o mesmo

Voltaire, que,

num conto filosófico de 1759, coloca-se contra a escravidão, irá pronunciar-se favoravelmente a ela ao afirmar que a humanidade, tal como está constituída, não pode subsistir se não houver um número infinito de pessoas úteis, que não disponham de qualquer propriedade. Essa passagem nos faz recordar uma interrogação levantada por René Pomeau acerca das sinuosidades voltairianas e das ambigúidades que espalhou pela história das idéias: “Dividido entre seu amor pela liberdade e sua

admiração pelo despotismo esclarecido, Voltaire não prepara as hesitações da burguesia francesa, indo do cesarismo napoleônico ao liberalismo de M. Thiers?” (“Prefácio” em Voltaire 1957, p. 23). Na Espanha, “as obras de Voltaire, proibidas no não podem se infiltrar senão sob títulos falsos ou sob o (Réau 1951, p. 80). Robert Darnton relata as perigosas pelos transportadores de livros quando flagrados com 15.

conjunto em 1762, véu do anonimato” peripécias vividas obras de Voltaire e

ire entre De acordo com M. Duchet, “esse interesse pela condição legal do escravo situa Volta em termos jurídicos, € não põe ema probl o ou coloc ele, como u: squie Monte de pulos discí os (Duchet 1995, em questão O princípio mesmo da escravidão, mas apenas suas modalidades”

). p. 320). Acerca da escravidão em sua obra, cf. também Gay (1977, p. 407ss.

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outros sortimentos de impiedades” (Darnton 1992). E a esse res peito, Paul Hazard lembra que “quando o poder tem contra si o público, nunca impede

que os livros se imprimam e se difundam” (1989, p. 95). A censur a parece

que fez de Voltaire um campeão dos best sellers na segunda metade do século XVIII. Como lembra Darnton, alguns autore s, “como Voltaire e Mercier, dominam o mercado, inundando-o com um fluxo contínuo de textos; (...) o fenômeno Voltaire é excepcional. A inf ernal fábrica em Ferney só diminui sua produção com a morte do patriarca em 1778, desencadeando no decorrer da década de 1780 uma guerra pela edição de suas obras

completas” (Darnton 1992, p. 153). O próprio Voltaire manifestou-se sobre a liberdade de expressão,

sobre a “liberdade de pena”. No Dicionário filosófico, observou que os efeitos de uma leitura não estão no próprio texto, mas na disposição ou indisposição do leitor. Conheço muitos livros enfadonh os, dizia Voltaire, mas não sei de nenhum que tenha causado prejuízo real. Tod a censura e repressão não impediram que ele fosse um dos autores mais lid os durante o século XVIII, e que continuasse tendo seus livros muito pro curados ao longo do século XIX. Quando da morte violenta de Luís XVI, fato que chocou toda a Europa monárquica, Catarina proíbe a Enciclopédia na Rússia, obra que visava aniquilar o cristianismo e as monarquias, ordenando confiscar todas as traduções de Voltaire, cujas idéias tinham transformado os franceses em “canibais embrutecidos” (cf. Réau 1951, p. 369). O fato que melhor revela a grande repercussão do autor, no âmbito da posteridade, é que seus livros são queimados na França ainda no século XIX, pelos ultras, defensores de Luís XVIII contra o ataque dos liberais (cf. Lévêque 1950). Como tentamos sugerir e demonstrar, a pura e simples inserção do Voltaire historiador no conjunto do pensamento

histórico do Iluminismo

pode deixar de fora da análise alguns aspectos que fazem de sua obra um foco de fissura no pensamento histórico do Dezoito, no período anterior às grandes conquistas do historicismo. Isso porque Voltaire, apesar de suas conhecidas prevenções, foi notavelmente capaz de reconhecer a relatividade de determinados aspectos em diferentes culturas, o que aparece de maneira esparsa em alguns trechos de sua obra, mais frequentemente como ameaças de utilização de uma visada relativista que propriamente aplicação

dessa mesma perspectiva.

84

COXA

4 O TEMPO VOLTAIRIANO: ACELERAÇÕES

O tempo adere ao pensamento do historiador assim como a terra se prende à pá do jardineiro. F. Braudel

É simplesmente impossível dizer a última palavra acerca da idéia

de tempo histórico em Voltaire. Abordar simplesmente o assunto já se afigura atitude bastante temerária. Isso porque não percebemos uma ordem rigorosa desse problema nem mesmo o menor esforço de sua parte com o objetivo de uma conceituação mais extensa e rigorosa sobre a matéria. Seria realmente anacrônico esperar uma resposta explícita de Voltaire a esse respeito. De mais a mais, o volume de sua obra inibe esse

esforço. É bom lembrar, ainda, que o século XVIII assistiu à convivência

de noções diversas do tempo da história entre aqueles que escreveram sobre ela. Contudo, o problema do tempo histórico em Voltaire nos leva a sua concepção do príncipe como agente privilegiado da realização do bom governo, e é com esse enfoque geral que trataremos da questão.

Acerca do tempo histórico em Voltaire, é preciso levantar, de início, uma aparente contradição. Sendo a Idade Média uma noite de tormentas, como explicar a crença num fluxo ascendente de civilidade, traço

característico de sua concepção? De que modo sustentar uma ascensão inexorável da civilidade, se havia um abismo de escuridão entre a Antiguidade Clássica e o tempo presente? Parece que isso se resolve com

uma certa idéia de plenitude de uma única época. Até aí, o progre sso calçou “sapatos de chumbo”, para usar uma imagem de Paul Hazard A partir daí, uma linha de continuidade do tempo histórico passa a exis tir de modo mais perceptível. Essa idade da plenitude é o século de Luís XIV.

Então, a continuidade do progresso passará a ser uma constante. Tudo o mais em direção ao passado — excetuadas as ilhas de prosperid ade

definidas em sua teoria dos grandes séculos, com a qual abre sua obra

maior, O século de Luís XIV — é “idade de ferro”.

A dedicação de Voltaire ao “século de Luís XIV” deve-se ao fato de

ele ter atribuído a esse período a paternidade inequívoca dos grandes progressos sentidos e vividos no decorrer de sua longa existência. Seu interesse em ressaltar a dilatação da civilidade e o refinamento das regras de bem viver e falar o conduziu ao Grande Rei. Aliás, os seus príncipes-modelo serão tanto mais exaltados consoante a contribuição que deram para o refinamento da vida social. Quando lhes canta os louvores, não é por “ter mantido uma tradição, conservado ou restaurado o passado. Ele os celebra como os artesãos autoritários do progresso” (Pomeau 19944, p. 80). Seus temas históricos, se não são exatamente contemporâneos ao autor, estão, em sua maior parte, muito próximos a ele; é inegável que Voltaire se debruça com mais interesse sobre questões que lhe propiciem compreender a história do tempo presente. Como afirma um de seus mais representativos intérpretes, “Voltaire faz história pensando no presente. Debruçado sobre a ação, ele busca no passado lições, ou melhor: armas; (...) Ele é, talvez, o único historiador que escreveu história para maldizer os bons velhos tempos” (Pomeau 19944, pp. 69-71). Ao que parece, Voltaire vive o futuro com expectação, porque é nessa dimensão que concentra suas mais caras esperanças para o gênero humano. Apesar do “travo da decepção”, ele se interessa pela história do tempo presente. É essa história que lhe atrai a atenção, a ponto de ter escrito muito mais textos sobre temas contemporâneos do que sobre assuntos de maior profundidade cronológica.? Voltaire recusará o enrai1. “O histórico não é o antigo, o ultrapassado, o inatual, mas o centro mesmo da atualidade, 2.

aposta do futuro” (Gusdorf 1960, p. 225). Em P. Gay, encontramos uma justificativa para o fato de que, no século XVIII, algumas

pessoas tendiam a cair no canto de sereia da história anti ga: Asrazões pelas quais 'os homens sempre deploraram o presente e exaltaram o passad o” repousam no desejo de escapar da própria miséria” (1977, p. 97). “e

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zado pressuposto, em seu tempo, de que a história mais digna é a história antiga. Escrevendo na década de 1770, contra alguns fisiocratas, que combatiam Colbert e Luís XIV, ele observou a esse propósito: “Seja dada

à razão, que enfraquece algumas vezes na velhice, preservar-me desse defeito demasiado ordinário de elevar o passado às expensas do presente. Eu sei que a filosofia, os conhecimentos úteis, o verdadeiro espírito nunca

fizeram tantos progressos entre os homens de letras quanto nos dias que

estou vivendo” (1957, p. 1.284)?

O que há de mais considerável no conjunto de seus textos históricos situa-se no século XVII. Ele crê ser mais relevante aquela

história que deu origem ao seu próprio mundo. Nas “Remarques sur ["histoire”, Voltaire considera que os homens precisam ter alguma tintura da história antiga, mas os aconselha a começar sua instrução pelo estudo da história “no tempo em que ela se torna verdadeiramente interessante” para os franceses de seu tempo, ou seja, por volta do fim do século XV,

porque aí estão as fundações de sua época (Voltaire 1957, p. 44). O valor que atribui à história mais recente está exposto também no texto Novas considerações sobre a história: “Enfim, essa história antiga me parece, em relação à moderna, o que são as velhas medalhas quando comparadas às moedas correntes; as primeiras estão restritas aos gabinetes; as segundas circulam no universo, pelo comércio dos homens” (ibidem, p. 49).

À sua teoria dos grandes séculos parece camuflar uma concepção de cronologia que não é nova na Europa, datando da Renascença, sendo

depois fixada por Cellarius em meados do século XVII. De fato, a idéia de quatro idades de esplendor se reduziria a duas grandes épocas, em pares contíguos: séculos de Péricles e de Augusto, séculos dos Médicis e de Luís XIV, sem solução de continuidade no interior de cada par; ou, se

quisermos, Grécia e Roma num extremo, Itália e França no outro. Não há 3.

4.

“Defesa de Luís XIV contra o autor das Efemérides”, texto de 1775. E Voltaire faz o seu desabafo um pouco adiante: “Hoje, está na moda degradar os grandes homens”, resposta

também endereçada a Rousseau, que ousara falar de Pedro da Rússia, em termos incompatiíveis (1957, p. 1.289).

Na interpretação de Emst R. Curtius, “o classicismo do século de Péricles é inserido — um

tanto violentamente = na época de Alexandre” (Curtius 1996, p. 334). Para Georges Gusdorf,

“sua história possui uma única dimensão, ela desconhece a multiplicidade dos tempos, a diversidade das épocas. Ela não simpatiza, ela julga; ela condena em bloco tudo o que não está de acordo com os valores que defende (...) ela pretende inscrever o conjunto do passado

no espaço mental do presente” (Gusdorf 1960, p. 226).

ruptura verdadeira abismo entre elas.

no interior das duas grandes épocas, porém,

há um

Mas, contrariando Gusdorf, pensamos que Voltaire identifica saltos qualitativos tanto no que se refere a paralelos entre as duas épocas — e nesse sentido ele está do lado dos “Modernos” — quanto no que tange ao desenvolvimento

dentro dos pares. Os romanos

tendem

a suplantar os

gregos, e o século de Luís XIV ultrapassa o dos Médicis. Vejamos alguns

exemplos tomados à história da França. O importante mecenato de Francisco I não tem qualquer importância perto da realização de Luís XIV; a obra civilizadora de Richelieu é pouco considerada. Em suma, Voltaire vai observar que os franceses passaram a existir depois de Luís XIV, e que, antes desse rei, eram até merecedores das injúrias dos italianos, que os

tomavam por bárbaros (cf. SL 1957, p. 618).

Se adotarmos essa idéia de uma época de plenitude como válida para a interpretação do tempo histórico em Voltaire, a perspectiva de Georges Lefebvre se torna insuficiente. Diz Lefebvre que, “em virtude do

papel que atribui aos indivíduos e ao acaso, [a história iluminista] elimina

também a noção de desenvolvimento histórico, a continuidade, ao passo que sua concepção determinista do mundo deveria, pelo contrário, pôr essa continuidade em evidência” (1974, p. 128). O que o autor tenciona apontar é uma contradição na história dos contemporâneos de Voltaire, porque, se não há continuidade quanto ao passado, haverá a partir do tempo presente. A nosso ver, o que se assemelha a uma contradição, ao menos nos textos voltairianos, constitui, na verdade, uma limitação

voluntária. É mais ou menos como dizer: o passado não valeu a pena, construamos o futuro com os recursos que o presente nos entrega.” Dessa

concepção

extremamente

otimista do tempo

de Luís XIV

resulta a imagem de um reino e de um rei sem rival nem paralelo na história. A figura de Luís XIV será o ponto de referência da história efetiva

5.

Logo nas primeiras páginas de O século de Luís XIV, Voltaire revela sua visão da época de

maior esplendor em todos os tempos da aventura humana pela Terra: “em todas as épocas

produzem-se heróis e políticos (...). Mas qualquer pessoa que pense, e, o que é ainda mais raro, qualquer um que tenha gosto, conta apenas quatro séculos na história do mundo. (JO

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quarto é o chamado século de Luís XIV, e talvez seja aquele dos quatro que mais se aproxime da perfeição (...)”. E mais à frente: “Volto a atenção a todas as nações do mundo, e não encontro nenhuma que tenha tido dias mais brilhantes que a francesa de 1655 a 1704” (Voltaire 1957, pp. 616-617).

da Europa, mesmo

antes de o príncipe desempenhar qualquer papel

relevante em sua tapeçaria política. Antes de tornar-se propriamente o grande rei maquinista, ele é um vulto que já aparece sempre ao fundo:

no tempo da menoridade, na época em que assumiu o poder etc. Desde

o início, o monarca será representado muito acima do tamanho natural. Como diz o autor, em sua “Carta a Milord Hervey”, que antecede O século de Luís XIV, “não apenas se fizeram grandes coisas sob seu reinado, como foi ele quem as fez” (1957, p. 611). Essa concepção do tempo acelerando-se por grandes saltos parece permitir uma leitura identificada com a idéia de idade mítica.

O texto de Jacques Le Goff (“Idades míticas”) instiga-nos a essa aplicação, na medida em que afirma que, “para dominar o tempo e a história e satisfazer as próprias aspirações de felicidade e justiça ou os temores em face do desenrolar ilusório ou inquietante dos acontecimentos, as sociedades humanas imaginaram a existência, no passado e no

futuro, de épocas excepcionalmente felizes ou catastróficas e, por vezes, inseriram essas épocas originais ou derradeiras numa série de idades,

segundo uma certa ordem” (1984, p. 311). O mesmo afirma Cassirer, mas com referência explícita a nosso autor: “Mesmo Voltaire *encontrou no passado os seus próprios ideais; eis porque o culminar da sua obra é Le siecle de Louis XIV” (citado em Le Goff 1984, p. 347).

Está claro que uma tal interpretação da história, conforme aborda-

da por Le Goff, nasce e floresce em sociedades cuja matriz de pensamento político e de visão cosmológica é essencialmente transcendente. Mas o século de Luís XIV parece constituir, em Voltaire, uma espécie de época de ouro, segundo o sentido clássico que a expressão comporta. Idade mítica, provavelmente, mas com sua dimensão apenas fundadora. Isso porque tal noção não vem acompanhada por seu corolário natural, a idéia de decadência, noção típica de concepções cíclicas do tempo, ainda presentes no século XVIII.

6.

Em L'ordre du temps, K. Pomian mostra que, ao longo do século XVII, nem mesmo o já

triunfante fio condutor de uma ampla interpretação do sentido da história, a idéia de progresso,

era capaz de eliminar antigas idéias remanescentes sobre o tempo histórico: “As relações entre o tempo cíclico e o tempo linear tornaram-se, nos séculos XVII e XVIII um foco de controvérsias

e um problema para aquele que queria chegar a uma posição cronosófica global e coerente”. E

mais adiante: “No curso do século XVIII, afirmam-se filosofias da história que definem a direção

do tempo como uma regressão” (Pomian 1984, pp. 53 e 58, respectivamente).

Como observa Pierre Chaunu, o tempo de Voltaire é um tempo próximo: O século de Luís XIV, cujo exemplo

propôs aos déspotas esclarecidos, é para ele e para toda a Europa das Luzes o

ponto de partida de uma nova idade; o seu tempo histórico é o das etapas da

civilização. (...) Essa preferência por um tempo próximo, que é um tempo denso, não exclui a preocupação com um passado remoto que recua ao começo da história da civilização. Ocasião para vibrar algumas setas. O século XVIII tem a preocupação das origens. (Chaunu 1985, pp. 261-262, v. 1)

Outra nuança, se desejarmos aplicar essa leitura à noção voltairiana do tempo histórico, é a de que o dito “século de Luís XIV” não é visto como paraíso, perspectiva até estranha no enquadramento de um autor extremamente impermeável ao sentido simbólico e aos mitos das origens. Essa época Voltaire a vê sob o signo de um desenvolvimento fantástico. O que nos permite conjetura dessa natureza é o festival de hipérboles

com que circunscreve esse tempo. Com efeito, o século de Luís XIV não marca um início ideal do mundo, mas apenas uma etapa de arrancada numa escalada sem retorno aos tempos de obscurantismo. Nesse sentido, em sua tipologia dos grandes séculos, as conquistas da época de Filipe da Macedônia e de Alexandre Magno, de Augusto e de César, bem como

dos Médicis vêm casar-se com uma verdadeiro progresso das nações.

época

ainda maior. Aí começa

o

Como diz Paul Hazard, “Voltaire respira, retoma coragem, recupera a alegria, quando chega a um dos séculos que se assemelham a habitações acolhedoras no meio de desertos selvagens” (1989, p. 233). Voltaire recusa os mitos, mas, sem criar propriamente o mito de Luís XIV, foi seu

maior artífice no século XVIII, ao afirmar que “o recer as opiniões dos homens, tem consagrado de tudo o que se tem escrito contra ele, não se nome sem respeito, e sem unir a ele a idéia de memorável” (SL 1957, p. 950).

tempo, que faz amadusua reputação; e apesar pronunciará nunca seu um século eternamente

A exemplo de Campanella que, como sabemos, morreu na França,

exaltando o reinado de Luís XIII, após amargar longos anos de prisão na Itália, Voltaire também vê “a França como a monarquia do século da

felicidade [e em Luís XIV] o monarca universal da Idade de Ouro” (Le Goff 1984, p. 334). De qualquer forma, o Príncipe das Luzes fundou a tradição que pretendia ao transformar num período histórico completo e autôno-

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mo uma época restrita a não mais que 25 anos, que se estende dos anos 1661 à Revogação do Edito de Nantes, em 1685. Mas, o que vem a ser esse “Século de Luís XIV”, imortalizado por ele? Dirigindo-se, por carta, em 1740, ao ministro da justiça da Inglaterra, milord Hervey, Voltaíre se exprime sobre a questão: Sobretudo, não vos zangueis tanto comigo por haver eu chamado o último século,

o século de Luís XIV. Bem sei que Luís XIV não teve a honra de ser nem o soberano nem o benfeitor de um Boyle, de um Newton, de um Halley, de um Addison, de um Dryden; mas, no século que se denomina de Leão X, foi esse papa

Leão X o autor de tudo? Não houve outros príncipes que contribuíram para ilustrar e esclarecer o gênero humano? Entretanto, o nome de Leão X prevaleceu por ter ele encorajado as artes mais do que qualquer outro. E que rei, pois, nesse sentido, prestou maior serviço à humanidade do que Luís XIV? Que rei espalhou mais benefícios, manifestou mais bom gosto e destacou-se pela construção dos mais belos edifícios? Não fez ele tudo que podia fazer, sem dúvida porque era homem; fez, porém, mais do que qualquer outro, porque era um grande homem. (Voltaire 1957, p. 608) Pierre Barriêre observa: Na realidade, o que se chama o “Século de Luís XIV” (...) é mais um sistema cuja perfeição foi alcançada em torno de Luís XIV talvez mais que em e por Luís XIV (...) que as idéias tenham saído da pessoa ou que a pessoa haja sido modelada pelo papel que assumia, pouco importa. Sem dúvida, houve um esforço renovado para

criar outras pessoas suscetíveis de substituir esta, o Delfim, o duque de Borgonha, o futuro Luís XV; em vão, o milagre não se reproduzirá. Então, Luís XIV

permanece como um símbolo, o de uma época que teve prazer em imaginar uma humanidade superior de reis (...). Nesse sentido simbólico é que se pode falar do “Século de Luís XIV”, associando assim na mesma fórmula o século e o homem que ele representa. (Barriêre 1963, p. 91)

É preciso notar que, em O século de Luís XIV, há uma organização

rigorosamente linear dos eventos analisados. A abordagem das matérias salta de grande evento em grande evento. No início dos parágrafos ou no interior deles, aparece o ano que o autor coloca em foco. Quase nada escapa dessa regra de analista, o que também

parece ser válido para a

avaliação de outras obras, como a História de Carlos XIe a História do Império da Rússia. Mas não se trata, evidentemente, de um método cronológico aplicado à moda antiga. Voltaire recheia sua narrativa com análises sagazes,

91

que o distancia da secura dos anais, daquela nua e crua narrativa dos eventos. Nesse ponto, rompe mais uma vez com a história dos Mézeray e dos Daniel, porque, por trás das cabeças reluzentes de grandes príncipes, faz surgir partes dos membros de seus súditos: “Historiador de circunstânci a, mas historiador por vocação, ele desloca o centro da história do príncipe em direção aos povos” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 33). No que se refere ao Ensaio sobre os costumes, sua concepção do tempo histórico altera-se radicalmente. Com passadas mais largas, e um olhar que tenciona abarcar o universo, ele rompe as regras que se havia imposto. Sua perspectiva das ilhas de excelência, sua teoria dos grandes séculos perdem o alcance. A teoria dos grandes séculos só se encaixa quando a análise recai sobre as nações ocidentais. Não houve um século de Péricles na

Índia, seguido de suas respectivas épocas de ouro. O máximo que pode acontecer é Voltaire encontrar um déspota esclarecido avant la lettreem alguma

região da Ásia. O imperador da China, por exemplo, que pune os súditos desobedientes fazendo-os desfilar sem chapéu três meses inteiros nas procissões, em vez de aplicar-lhes uma tortura física ou a pena capital. A idéia de que o tempo histórico é descontínuo, para valorizar sua

realização criadora, afirma-se, de modo mais claro, no Século das Luzes.” Mas essa idéia já existia no século anterior, evoluindo “para transformar-se em opinião bastante comum entre os hommes de lettres do século XVIII

(...). O século XVII (...) encarava

o progresso como

um acúmulo

de

conhecimentos através dos séculos, ao passo que, para o século XVIII, a

palavra implicava uma “educação da humanidade' (...) cujo fim era coincidir com a maioridade do ser humano” (Arendt 1985, pp. 14-15). Sobre esse aspecto, Cassirer aponta na mesma direção, ao considerar que “esses [os intelectuais], se olhavam para o passado, era na intenção de preparar um melhor futuro. O futuro da humanidade, a criação de uma nova order política e social, era seu grande tema e sua real preocupação” (1961, p. 225). Esse é o pressuposto para a idéia de progresso, pela

?.

Contudo, o próprio Pomeau considera, como boa síntese para o Ensaio sobre os costumes, à

seguinte definição: “Uma história dos costumes com aparência événementielle” (Pomeau em Voltaire 1990, p. 34).

8. “Esse afastamento do conceito de moderno em relação à Antigilidade constitui pouco a pouco, no século XVII, uma história evolucionista e uma teoria do progresso. Depois da história

providencialista da Igreja, depois da história cíclica dos humanistas e dos reformados, é

chegado o tempo de uma história aberta” (Furet, s.d., p. 195).

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conexão entre as gerações sucessivas. As várias épocas apóiam-se umas nas outras para construir a evolução das sociedades,

Para efeito de uma melhor ilustração do tempo histórico na obra

de Voltaire, tentemos contrapô-lo à concepção maquiaveliana. Inegavelmente, há uma contradição insuperável entre eles como historiadores: suas concepções sobre tempo histórico. Ambas as visões percebem a

história como um movimento dinâmico, mas, onde Maquiavel só enxerga

ordem/desordem, sem solução de continuídade, Voltaire vê exatamente a relação oposta, que perdura até o século XVII, com a definitiva arrancada do dito século de Luís XIV.

O historiador de Florença trabalha no interior de uma concepção cíclica do tempo histórico. Nesse aspecto, manteve-se completamente fiel à tradição da historiografia humanista do Quatrocentos, pautada pela

perspectiva de que a história gira sobre as “rodas da vicissitude”? Sua novidade: desacelerações bruscas e decadência são as regras que imprimem a marca mais profunda no movimento histórico. Ao estudar a história de Florença, num período que considerava marcado pela corrupção dos valores políticos e morais, esteve sob o impacto de seu contexto,

época por ele considerada uma espécie de fundo do poço da história. O fim da República florentina e o triunfo dos Médicis representavam uma parada brusca, porque culminava na decadência das

formas políticas. Como afirma Newton Bignotto, “os autores antigos viam no movimento do tempo o motor para o aparecimento da diversidade constitucional, ao passo que Maquiavel enxergava apenas a alternância entre a ordem e a desordem” (1996, p. 188). No mesmo sentido vai a argumentação de Robert Nisbet quando lembra que “Maquiavel vê, na história, altos e baixos, assim como retornos cíclicos (ricorsi). Essa mente extraordinária não aceitava qualquer crença num progresso da humanidade, em longo prazo, que fosse irreversível” (1985, p. 118).ºº 9.

10.

Como afirmou Francis Bacon, em seu ensaio “Of vicissitude of things”, para caracterizar as arrancadas, derrapagens e freadas da história humana, “não é bom contemplar por muito tempo o girar dessas rodas da Vicissitude, sob pena de termos vertigem” (citado em Whitrow p. 153). 1997, Em sentido análogo, Reinhart Koselleck considera que seria possível, a essa história, até mesmo o conhecimento do futuro: “Não nos surpreenderemos de ver o modelo cíclico anti go,

valorizado por Maquiavel, beneficiar-se de um emprego generalizado. A faculdade de repetição própria a essa experiência da história prendia ao passado o futuro previsível” (1990, p. 31).

A concepção voltairiana do tempo histórico é bem mais desenvol.

vida, uma vez que incorpora as conquistas dos séculos XVII e XVIII sobre o humanismo

do

século

XVI,

época

em

que

Maquiavel

escreveu

sua

Istorie Fiorentine. A esse propósito, faz sentido a referência de Hanna Arendt (1985), que, citando o filósofo russo Herzen, observa que “o desenvolvimento humano é uma forma de injustiça cronológica, uma vez que aos retardatários é dado tirar proveito do trabalho de seus predeces-

sores sem pagar o mesmo preço”. Nesse caso, onde estaria de fato o mérito de ressaltar a superioridade dos modernos na famosa “Battle of the Books” — título da obra escarnecedora de Swift (1704) —, que se iniciou na Itália do século XVII, alastrando-se por toda a Europa e arrastando-se até Condorcet, na segunda metade do século XVIII francês? O tempo histórico de Voltaire não conhece regressões periódicas das sociedades, e o conceito de corrupção, que em Maquiavel abrange o mundo

moral, político e natural, no Príncipe das Luzes é, no máximo, uma parada esporádica, uma tendência passageira a ser superada. Isso para dizer que ele concebe o tempo como uma aceleração progressiva, linear e contínua, Sua visão de progresso pode ser caracterizada como a perspectiva contemporânea solidamente constituída em nosso século XX, a de que “o avanço

do inferior para o superior deve parecer tão real e certo como qualquer outro aspecto das leis da natureza” (Nisbet 1985, p. 17). Voltaire vê o progresso atuando em todos os campos, mas principalmente na língua. Foi por isso que formulou a questão: como pôde a história da França começar com São Bartolomeu e terminar com La Fontaine? Ênfase

posta também nas artes, nas ciências e na técnica. Em Voltaire, progresso técnico e aprimoramento moral da humanidade andam juntos, concepção

que motivou suas virulentas estocadas contra Rousseau. Não houve propriamente uma idade de ouro, mas houve uma idade de decadência, a Idade Média. A única época capaz de lembrar uma hipotética idade de ouro é o seu próprio tempo, preparado por Luís XIV. Para Voltaire, o começo da história havia sido infeliz, mas o porvir seria promissor. Um traço da historiografia do século XVIII, do qual Voltaire dá mostras de reconhecer e compreender como de suma importância, é a

“cadência” diferenciada das sociedades no tempo, ou seja, a relatividade

dos valores culturais. Contudo, sua capacidade de se espantar diante do passado verdadeiramente não é muito notável: a Voltaire falta maior clareza de que as sociedades, passadas e presentes, estavam constituídas

94

y ds específicos, ou seja, por concepções por tempos muito diversas do mundo moral e da natureza. go históricos

culturaís

Sua concepção de que a natureza humana seria maís ou menos idêntica em todas as épocas é sintomática dessa carência, ou melhor, dessa

falta de sensibilidade quase voluntária de nosso autor. Mas não se pode deixar de reconhecer que o pensamento histórico das Luzes conectou mundos separados por enormes distâncias, fazendo-nos crer na continuída-

de entre as várias épocas pela recusa das interpretações cíclicas que envolvem destruição e colapso total das culturas. Ao se aproximar das sociedades antigas, Voltaire acabou pecando por excesso de familiaridade. Como lembra Pierre Barriêre (1963, p. 233), “Rousseau toma evidentemente a sério sua prosopopéia de Fabrício; Cincinato, como temos dito, incorpora-se a Washington e a Franklin; Mably e outros sociólogos tornam popular a dura igualdade lacedemônia. A Antigúidade da formação intelectual tende a passar à vida, em uma deformação recíproca de uma e outra”. Desse ponto de vista, um outro autor considera

que “a filosofia abole a história quando nega a diferença entre o passado e o presente e reduz as diferenças históricas ao tempo presente do

Espírito. A consciência histórica historicista nasce da compreensão dessa diferença e da renúncia a procurar a fórmula básica da história do mundo”

(Reis 1996, p. 8).

O Iluminismo inaugura um novo tipo de anacronismo em sua crença de que os mesmos valores atravessam os tempos sem maiores

embaraços. Para Cassirer, o pensamento das Luzes tinha dificuldades em

entender o que estava distante e lhe era estranho. De acordo com ele, essa época “expiou com sobras o seu erro. Essa suficiência do 'eu sei mais' (...) gerou inúmeros preconceitos que ainda hoje impedem um julgamento isento do Iluminismo” (1994, p. 14). Voltaire crê na evolução de uma |1. Empregamos a expressão no sentido utilizado por Reinhart Koselleck: “O tempo histórico — Se essa noção pode ter sentido — está ligado a conjuntos de ações sociais e políticas, a seres humanos concretos, ativos e passivos, às instituições e organizações que deles dependem. Todos adotam modos de execução precisos, inerentes somente a eles com, a cada vez, um ritmo temporal próprio” (1990, p. 10). Uma avaliação crítica acerca da especificidade do tempo

histórico

na obra de Koselleck

pode

ser encontrada

em

Reis (1994).

Acerca

da

necessidade de reconstrução dos diferentes tempos da história pelo historiador, que tenciona

I2.

enfocar um objeto a ele estranho, q.v. Saliba (1988). Sobre esse problema, cf. a mesma obra, página 301, na qual o autor aborda a contribuição

original de Hume, que irá flexibilizar essa perspectiva.

SRS

95

natureza humana sempre igual a si mesma num núcleo vital - o das paixões, das virtudes, dos vícios —, mas que conhece desenvolvimentos

uma

vez que é de sua natureza

perfeição.

evoluir para um

estágio de maior

Segundo Georg Gadamer, o Século das Luzes alimentou a ousadia de pensar que era a expressão de toda a evolução da história humana. Portanto, seria natural que a história iluminista tivesse sido filosófica. A consumação do progresso, o estado qualitativo último (cf. Gadamer 1988: Cassirer 1994, p. 290). Já para Berlin, a filosofia das Luzes caracteriza-se por uma “arrogância cultural”, o que redunda em consideráveis anacro-

nismos, como os de Montesquieu em seu estudo sobre a Roma antiga (cf.

Berlin 1982).

Nessa historiografia, há poucas nuanças e tudo é mais ou menos semelhante a tudo. A esse propósito, Hannah Arendt (1972, pp. 102-103) reflete: No momento em que se separa inteiramente uma idéia de sua base na experiência real, não é difícil estabelecer uma conexão entre ela e praticamente qualquer outra idéia. Em outras palavras, se admitimos que existe algo como um reino inde-

pendente de idéias puras, todas as noções e conceitos não podem deixar de ser inter-relacionados, pois, nesse caso, todos devem sua origem à mesma fonte: uma

mente humana concebida em sua subjetividade extrema, entretendo-se para sempre com suas próprias imagens, infensa à experiência e sem relação com o mundo, quer seja o mundo concebido como natureza, quer como história.

Na obra histórica de Voltaire, não nos parece haver um radical fechamento ao sentido da alteridade, das nuanças impostas pelo tempo às culturas em meio a seu devenir histórico. Mas, se não há uma decisiva

dureza, passado, França e impulso

há de fato uma fraca atitude de estranheza em relação ao principalmente no âmbito de seus estudos sobre a história da da Europa. Decorre disso não haver também a necessidade do metodológico do desenraizamento, do auto-exílio do historiador

em relação ao seu próprio tempo, à maneira de um viajante experiente que, ao penetrar em sociedades exóticas, procura imergir em seus

próprios valores, na intenção de compreender o que, a princípio, se lhe

éRR

DER

ee

E

a

96

da.

afigura extravagante ou carente de sentido.

3

Inegavelmente, a fita métrica de Voltaire — para empregar em outros termos a expressão de Berlin — é mais inflexível na análise do passado europeu do que nas interpretações das variadas culturas extra-européias.

Isso porque ele as capta muito mais em termos geográficos do que propriamente temporais. Nessa dimensão, tais culturas fazem fronteira com

a sua própria época. Isso para dizer que ele não faz história dos chineses no tempo, mas faz história da China em relação à história da Europa, quase

sempre a do tempo presente. Se os diferentes tempos da história da Europa são mais ou menos semelhantes, em sua escala extra-européia, serão praticamente idênticos. Portanto, como deixar de notar as enormes discre-

pâncias entre os usos e costumes que se apresentam ao vivo a quaisquer olhos que estejam abertos?

Tal atitude em relação à história, em que se reconhecem os diferentes tempos históricos, mesmo que diante de apenas um século, será obra do historicismo”? alemão, destinado a se propagar pelo pensamento histórico europeu a partir de fins do século XVIII. No século XVII, os historiadores também estavam a descoberto nessa matéria. Para Bossuet, por exemplo, em sua ânsia de fazer valer uma verdade católica, o tempo histórico era sempre igual. Havia uma identidade eterna no

tempo.

Mas é preciso afirmar que ler o Ensaio sobre os costumes é viajar

por todos os continentes. Apesar de ver o mundo como um “teatro de

orgulho

e erro”, como

escreveu

no

Poema

sobre o desastre de Lisboa

(citado em Lagarde e Michard 1956), a tese da obra está nos progressos

das nações através dos séculos, sempre proporcionados pelo avanço das

ciências e das artes. A visão de Voltaire faz a história dar saltos. Na história

dos povos cristãos, imperou a barbárie até o século XvIl.* “13. 4.

15.

Uma conceituação sintética do historicismo — mas nem por isso superficial — pode ser

encontrada no texto de Sergio Pistone em Bobbio et al. (1997, pp. 581-584). Segundo Robert Nisbet, os historiadores que se seguiram a Herder “tinham um profundo Tespeito por todas as incontáveis e sutis diferenças que caracterizam a vida dos indivíduos e das nações. Sentir e gozar essas diferenças, simpatizar com todas as formas da vida nacional era, para eles, o verdadeiro objetivo e o maior encanto do conhecimento histórico. Para Herder, cada nação era somente uma voz individual numa harmonia universal que tudo abrangia” (1985, pp. 228-229). Acerca de Herder e de sua influência no pensamento histórico germânico e europeu, q.v. Cassirer (1994, p. 307ss.). Acerca do uso e abuso de Voltaire em relação ao termo “bárbaro”, M. Duchet lembra que o

autor o emprega nada menos que sete vezes no capítulo de conclusão do Ensaio: “A palavra

está em relação com um conjunto de termos como ferocidade, grosseria, ignorância, imbecilidade, absurdo, fanatismo, que são de emprego mais restrito, no mesmo campo lexical” (Duchet 1995, p. 313).

97

Apesar de sempre se referir a uma época de barbárie, a tempos

góticos, Voltaire já participa, em alguma medida, da tipologia trinitária que

se vai consolidando progressivamente ao longo do século XVIII: selvageria-barbárie-civilização (cf. Furet, s.d., p. 202). Contudo, não conseguim os distinguir uma abordagem conceitual desse problema em nenhum de seus textos, até onde alcança nossa memória. Ao que parece, “barbárie” não é propriamente um estágio de civilização, em perspectiva diacrônica, mas

um estado de espírito dos povos em sua marcha no tempo. Para Voltaire, parece haver barbárie entre selvagens e civilizados todas as vezes que a loucura e a violência tomam de assalto o gênero humano. Em seu conto filosófico O ingênuo, por exemplo, ele dá mostras de que o estado selvagem não antecede, necessariamente, ao de barbárie, num sentido cronológico estrito, mas lhe é inferior, em nível de civilidade, ao mesmo tempo em que pode ser até superior — em alguns aspectos — ao próprio modus vivendi europeu contemporâneo. Isso porque há também a barbárie dos civilizados. Com efeito, há um pronunciado relativismo histórico nessa obra. As diatribes do Huron, principalmente aquelas dirigidas ao poder e aos padres, bem o demonstram. Ocorre que a palavra “bárbaro” assume uma conotação extremamente negativa em

seu vocabulário histórico e político, podendo significar qualquer atitude ou comportamento incompatível com o gênero humano, em qualquer época e em qualquer lugar. Depois do século XVII, foi um desfile de conquistas do gênero humano. Ao avaliar a obra de Jacob Burckhardt, Peter Gay considera que o

grande

historiador

suíço

enxergou

muros

elevados

onde



havia

alamedas conectando a Idade Média à Renascença; nas suas próprias palavras, Burckhardt ergue “altas cercas entre épocas históricas onde, na verdade, estendiam-se largas pontes” (Gay 1990, p. 158). Essa imagem é sugestiva, além de verdadeira, uma vez que a historiografia contemporânea tem ultimamente acentuado a Renascença como herdeira das realizações da Idade Média, muito mais que das influências da cultura greco-romana, como adverte Jean Delumeau (1984) em sua análise sobre “a | promoção do Ocidente”.

Ão que parece, a reflexão de Peter Gay também é pertinente à análise da idéia de tempo histórico em Voltaire, porque, para o Patriarca

de Ferney, a época de Luís XIV destroça por completo o “edifício gótico medieval”. O Voltaire historiador preocupa-se em ser preciso quanto aos £”

96

wi

tim

bao Ei

eventos. Contudo, não faz da cronologia um meio de vída para sua

história. Para Pierre Chaunu, “sua cronologia situa-se no meio termo entre a periodização tradicional, que é catastrófica, e o tempo contínuo e cíclico de Kant e Hegel” (Chaunu 1985, p. 261, v. 1).

Essa

interpretação

interpretações

talvez

cíclicas do tempo

seja

acertada,

haja

histórico, herdadas

vista

que,

se as

do humanismo

renascentista, tendem a identificar a última época — no caso, o século de Luís XIV — como a fase que abre o período de declínio e queda, em Voltaire, há margem para um desenvolvimento em espiral, porque a

história se faz por marchas e contramarchas.

É bom

lembrar que a

concepção hegeliana da história passa pela idéia de uma aceleração progressiva da humanidade, engatada com a noção da existência de um povo universal-histórico que, em cada grande época, encarna o espírito do progresso. Desse modo, a história da humanidade é a história da preponderância de uma nação no conjunto da civilização. Não há regressão e quem vem por último encontra-se em condições de ser superior aos predecessores. Para J.M. Goulemot,

no verbete do Dicionário de ciências históri-

cas, não há margem para dúvida de que Voltaire “recusa uma visão cíclica da história, necessariamente pessimista, para substituí-la por uma visão linear do devir histórico, revelando uma crença no progresso do espírito humano” (Goulemot em Burguiêre 1990). Para K. Pomian, o próprio programa voltairiano já é indício e prova suficiente para se ter certeza de que Voltaire vê a história transcorrer numa perspectiva linear: “Ora, estes objetos — população, manufaturas, comércio — tornam particularmente flagrante o caráter linear e cumulativo do tempo”. E mais à frente: “Dito de outra forma, um retorno à barbárie parece, de hoje em diante, excluído. O tempo, que era oscilatório no passado, torna-se linear”

(Pomian 1984, pp. 56 e 125, respectivamente).

Em conclusão, a história de Voltaire não é servida em fatias cronológicas menores, mas em grandes porções. A visão de conjunto

predomina sem qualquer sombra de dúvida. Sua tendência em periodizar a história suplanta a necessidade de datá-la. O seu tempo histórico está

calcado em uma periodização implícita. Não que o autor desconsidere as datas precisas. Mas vai privilegiar as passadas largas. Isso para dizer que a idéia de grandes épocas, a divisão da história por séculos, por exemplo,

é recorrente em sua obra. É muito comum ele tomar os reinados para

E

a

&

B

SRS

%

99

demarcar sua história.! De fato, ele é muito bom em perceber grandes tendências, os traços mais fortes que definem uma época inteira, Essa história por atacado encontra-se sintetizada logo no início de O século de

Luís XIV, quando expõe sua concepção dos grandes séculos da história,

os séculos de Péricles, de Augusto, de Leão X e, o maior de todos, o de

Luís, o Grande (Voltaire 1957, pp. 616-617).

Um exemplo dessa estratégia pode ser encontrado em suas obras de ficção, nas Cartas de

Amabed, mais especificamente, texto no qual situa sua narrativa nos seguintes termos: “Ano correspondente ao nosso de 1512, tempo em que reinava Babar na Mongólia, Ismael Sophi na Pérsia, Selim na Turquia, Maximiliano I na Alemanha, Luís XII na França, Júlio II em * Roma, Joana, a Louca, na Espanha, Manuel em Portugal” (Voltaire 1994, p. 681).

Eme

16.

5 DIÁLOGO DE SERPENTES: VOLTAIRE, INTERLOCUTOR DE MAQUIAVEL

Voltaire era um desses antigos alunos, mordendo o seio que outrora o havia alimentado. E. Le Roy Ladurie Ele, que, para pensar, tem necessidade de se apoiar sobre um

inimigo, encontra em Bossuet seu socorro providencial, de um predecessor a imitar, e de uma filosofia a combater. René Pomeau

Este capítulo é dedicado ao processo de dessacralização do pensamento histórico, no qual Voltaire certamente ocupa uma posição de relevo. Após já ter confrontado Voltaire com Bossuet, não seria despropositado contrapô-lo a Maquiavel. Seguindo a orientação de Edouard Fueter, que afirmou ser Maquiavel o melhor parceiro de Voltaire em

história, tencionamos analisar a contribuição dada por Voltaire à secula-

rização da história-disciplina.” O fato é que a análise da dimensão política da história e da idéia de tempo histórico em Voltaire leva-nos a aproxi-

má-lo de outros historiadores da Europa antiga. Escolhemos o autor de 1.

“Com quem melhor se pode comparar Voltaire, por sua posição na história da historiografia,

é com Maquiavel” (Fueter 1953, p. 24). Mas Fueter não desenvolve seu propósito, limitan-

do-se ao paralelo num breve parágrafo acerca do governo da França e de Florença. Com outros interesses, tentaremos uma análise comparativa de ambos.

101

O príncipe como um possível interlocutor — ainda que Pierre Bavle também apareça em nossa trama — por acreditar que esse confronto

poderá resultar numa discussão que aponte elementos esclarecedores da demolição voltairiana da história sagrada. Alguns detalhes acerca da contribuição de Maquiavel para a dessacralização da história e da política

talvez possam permitir-nos divisar algumas interseções ao longo de uma tradição de aproximadamente dois séculos.

Eles viveram em sociedades diferentes e encontram-se separados no

tempo por dois séculos inteiros. Além disso, perseguiram, na política e na história, elementos diferentes, marcados que estavam pelo padrão cultural de sua época, pelas preocupações inerentes a seus respectivos contextos. Apesar de temperamentos diversos — Maquiavel era homem comedido, retraído a seu pequeno círculo de amizades (Bignotto 1998; Cassirer 1961), Voltaire tinha uma personalidade solar, gostava de brilhar em grandes rodas

e até de representar suas próprias peças —, quando aproximados no campo intelectual, revelam vários pontos de contato. Foram homens de visão secularizada, e que se dedicaram, cada qual a seu modo, à história e à

política. O Príncipe das Luzes não concordará plenamente com o secretário florentino

em

política — o venenoso

Maquiavel,

como

se expressou

prefácio da obra de Frederico II? Contudo, admira-o como “Maquiavel é, aliás, um excelente historiador” “

no

historiador:

Ernst Cassirer (1961) afirma que muitas coisas ditas por Maquiavel

estavam destinadas a ser, no século XVIII, “o grão que alimentava os moinhos dos filósofos franceses”, apesar de numerosas dissidências. Após ter analisado a recepção hostil que o pensamento de Maquiavel recebeu no Século dos Santos, Ernst Cassirer considera que “os pensadores do século XVIII, os filósofos do Iluminismo, viram o caráter de Maquiavel a uma luz mais favorável. Num certo sentido, Maquiavel parecia ser o seu 2. No dizer de Koselleck, na Época Moderna, “a neutralização da consciência pela política favorece a secularização da moral. (...) Mas, a diminuição da religiosidade que condiciona o Estado lhe é fatal, pelo fato de que os temas antigos se repetem numa forma secularizada. A moral que aspira à política será o grande tema do século XVII” (Koselleck 1979, p. 32).

gênero humano que, enfim, a virtude tenha sido mais bem ornada que o vício” (Voltaire em Pomeau 1994b, p. 70).

Mas o verá negativamente como teórico da política, como a mente que infectou todas as cortes

2

pre e

da Europa (SL 1957, p. 797).

poa

102

seja. (...) Reputo-o melhor pensado e escrito que o de Maquiavel, e é uma felicidade para O

os

4.

“O veneno de Maquiavel é demasiadamente público, e será preciso que o antídoto também o

am

3.

aliado

natural.

Quando

Voltaire desfechou

seu ataque contra a Igreja

católica, quando pronunciou o famoso 'Ecrasez Pinfâme”, podia consíderar a si próprio um continuador de Maquiavel” (Cassirer 1961, p. 156). E,

Maquiavel,

de

fato,

enxergou

a política

ao perceber na ação

por

um

viés

análogo

ao

de

do príncipe o meio mais eficaz de

alcançar a ordem. Não a ação pura e simplesmente justificada pela astúcia

e força de explosão do príncipe, mas a ação justificada por princípios legais, de acordo com o sentido peculiar que essa expressão possuía no século XVIII. Em Voltaire, o espaço da virtik encontra embaraços éticos

muito consistentes. O príncipe só terá as mãos livres se agir de acordo

com a justiça e, mais importante do que isso, dentro da lei.

Se a obra de Maquiavel representou, no século XVI, um poderoso curto-circuito na tradição do pensamento político, mutatis mutandis, o curto-circuito voltairiano no pensamento histórico tem dimensão quase proporcional. E esse paralelo é tanto mais válido porque o discurso de Voltaire tem a mesma natureza que o discurso do autor de O príncipe. Ora, essas duas figuras iconoclásticas estão separadas por dois densos séculos de história européia, mas a luta de Voltaire toca em aspectos que Maquiavel havia apontado como um sério problema para a constituição de um

Estado nacional autônomo:

a presença

da Igreja e seu caráter

paradoxal, qual seja, ser forte demais para impedir a centralização política e a constituição de uma monarquia nacional autônoma, e fraca demais

caso lhe interessasse empreendê-la. Deriva disso o seu desejo de assistir ao tempo de uma Itália livre e “despadrada”, ou seja, livre da ação nociva dos clérigos, que fizeram dos homens seres fracos, descrentes e divididos.

Para ambos, a Igreja é uma cidadela monstruosa, visão que aproxima o humanismo maquiaveliano do humanismo de extração iluminista. A implicação teórica dessa real, ostensiva e incômoda presença traduz-se pela poderosa influência clerical no pensamento político; daí

Maquiavel ser o proponente de uma política como categoria autônoma,

desembaraçada de qualquer pressuposto teológico religioso, a religião passando a ser reconhecida apenas como instrumento ideológico, que permite ao soberano empregá-la como guia eficaz de manipulação de

seus súditos. É nesse sentido que se pode falar, com razão, de uma

concepção sociológica e de um emprego instrumental da religião admiravelmente modernos na obra do historiador florentino. Aí está, sem

dúvida, a grande contribuição de Maquiavel como o encarregado do

e

103

detonador

que

fará

ruir os

pilares

da

arquitetura

medieval

da

teoria

política, e é dessa forma que seu título de fundador da teoria política

moderna é perfeitamente justo e legítimo. A grande obra de demolição da teologia e do providencialismo na tradição ocidental encontra nele seu

engenheiro mais eficaz. Ernst Cassirer considera-o uma espécie de clímax da dessacralização da cultura no Ocidente. Em matéria de religião, Voltaire seguiu algumas das pegadas de Maquiavel. Como ele, também utilizou a religião com propósitos instrumentais.” Não apregoava o deísmo” ao povo, por achar que se tratava de um tema perigoso e algo muito sofisticado para poder ser metabolizado de forma adequada. Assim é que, em matéria de religião, não convinha falar de deísmo e de outras novidades perto da criadagem, porque temia por suas louças e baixelas; mas achava que era necessário dar ao povo algo em que crer.” Para Paul Hazard, “Voltaire apôs ao deísmo sua marca indelével.

Foi ele quem o remodelou; ou, se quisermos usar uma outra metáfora, foi ele quem filtrou a poção; e, ao acabar o trabalho, restava apenas um puro licor cristalino” (1989, p. 370). Odiando o catolicismo, o Patriarca de

Ferney defendia a religião para as massas, expediente eficaz de mantê-las em ordem, por meio de um catecismo que promete o fogo do inferno a todo aquele que se rebelar contra a ordem pública do príncipe. Como ele mesmo afirmou, “se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo” (citado em Lefebvre 1974, p. 136).º

5.

“Afirmou-se, e com razão, que o deísmo e o teísmo foram as primeiras concessões ideológicas

7.

“A sabedoria consiste em favorecer as Luzes, mas sem ruptura aberta na ordem social, e sem

da burguesia ao temor que já lhe começava a inspirar o povo: a religião, considerada supérflua para os homens cultos, seria útil para manter ignorante a massa dos espoliados” (Goldmann 1967, p. 11). 6. Deísmo ou teísmo? Se atentarmos para o fato de que os dois conceitos preservam a crença na existência de um Deus transcendente, Voltaire é deísta e teísta. Se levarmos em conta O anticlericalismo e o antiprovidencialismo do autor, ele tende mais para o deísmo, forma pela qual, aliás, é mais comumente definido por seus intérpretes. escandalizar aos pobres de espírito. (...) Incapaz de abstrações, a massa dos indivíduos deve ser mantida nos quadros doutrinais e disciplinares das igrejas estabelecidas. Diderot e Voltaire exprimem um estado de espírito comum aos deístas, aos olhos dos quais a religião da razão não impulsiona à descristianização dos povos” (Gusdorf 1972, p. 31).

8. O Estado “não poderia tolerar a predicação do ateísmo, porque, sem a crença em Deus, é impossível governar as massas” (Fueter 1953, p. 26).

|

104

"

PRA

Mi fotarir

GAS TENS

A teoria do direito divino dos reis, com Voltaire, estava destinada

a perder grande parte de seu prestígio e caráter sobrenatural, passou a ser concebida, no contato com as idéias políticas e a história crítica de

Voltaire, como lenda de criação relativamente recente, obra de escritores

políticos e panegiristas dos dois séculos anteriores, e não como uma suposta lei divina, oriunda de uma tradição imemorial. Como recorda François Bluche em sua monumental biografia de Luís XIV: “Certamente, não se pode confundir monarquia absoluta e direito dívino; recusando o direito divino, Voltaire e Frederico II serão partidários convictos da

monarquia absoluta” (1986, p. 188).

O humanismo do Quinhentos, além das obras de arte (escultura, pintura, arquitetura), expandiu-se pela alta literatura, considerada nos campos da história e da filosofia política. No tempo de Maquiavel, a história passa de uma fase retórico-política a um discurso crítico que não pretende apenas expor e narrar fatos, mas ordená-los de forma coerente e racional, buscando um sentido, uma lógica para os acontecimentos. Há toda uma reflexão sobre os métodos a serem empregados pelo historia-

dor-humanista. Maquiavel foi um de seus maiores representantes. Pode ser considerado um dos precursores da chamada bhistoire accomplie francesa da segunda metade do século XVI, voltada para a crítica das

fontes, para a recusa dos mitos fundadores e, sobretudo, para a crença de

que se poderia alcançar a verdade plena sobre o passado. O historiador deixa de ser um mero ensaísta, no sentido de que seu trabalho não possuía uma rigorosa base documental, para passar a ser um profissional que lida com fontes primárias. Nesse sentido, desmistifica-se uma série de mitos muito antigos. Esse tipo de história nova floresceu, sobretudo, na Itália e na França da segunda metade do século XVI (cf. Huppert 1973). A história já não é só exaltação ou puro relato, mas explicação inteligível. No século XVII, a Contra-Reforma, com a ascensão do absolutismo monárquico, irá contrapor-se a essa perspectiva crítica da história. Mesmo a Revolução Científica é marco desse retrocesso. Para Descartes, a história, sendo uma ciência do particular, não era capaz de explicar coisa alguma. Daí ter sofrido um ofuscamento em seu rigor teórico-metodológico, voltando a ser obra, predominantemente, de panegiristas da realeza e de outras casas dinásticas. Como afirma Georges Gusdorf (1960, p. 189), “na falta de uma metodologia precisa, que determine os alvos da pesquisa bem como sua direção e seus meios, a história mantém-se como

105

gênero literário, antes que um saber organizado. Ela vai, assim, permanecer por um tempo fora da reforma epistemológica empreendi da no século XVII pelos promotores do mecanicismo”.

Ao longo do século XVI, a história crítica desenvolveu-se com Os

humanistas da Renascença européia, que se encarregaram de jogar por terra uma série de mitos como a “doação de Constantino” e à “origem troiana dos franceses”, buscando na crítica filológica e em fontes mais idôneas os acontecimentos do passado, mas evitando a filosofia da história, como, por exemplo, o “drama da salvação”, explicaçã o escatológica para o sentido e fim último da humanidade. Os humanistas italianos no século XVI desenvolveram uma perspectiva de tempo cíclico, alt ernando a história com períodos de luz e sombras, ignorância e esclareci mento, ascensões e declínios. Foi assim que a Idade Média tornou-se um abismo de trevas, precedendo uma época de conquista e avanços. Mas, como se afirmou, esse foi apenas um foco de fissura numa literatura amplamente dominada por recursos de retórica escolástica transcendente, e que não pôde encontrar descendência no século XVII, época que marca o triunfo do Estado absolutista. O gênero histórico que retorna com ímpeto são os “romances de reis”, com o elogio da monarquia e de seu núcleo sagrado: a realeza cristocêntrica de Jaime I e Bossuet.

Maquiavel, como historiador e como escritor político, representa um verdadeiro divisor de águas na tradição das idéias políticas. O bem e o mal já não são valores morais válidos. Sua ética é de tipo diferente. Para ele, a política não se desenvolve numa dimensão cristã do tempo e do espaço, sendo desencadeada para atender somente aos exclusivos imperativos do Estado, de sua lógica e de sua razão superiores. Rechaça a visão teológica da história e, por conseguinte, a ética que a acompanha. O interesse de Maquiavel é captar o sentido da história no passado, à moda de Tucídides, para poder orientá-la, criá-la ou moldá-la para o futuro, segundo as necessidades do presente. Para ele, isso era possível, basicamente porque, por seu conceito

de “natureza humana”, a sociedade não é um caos, regendo-se até por

leis muito rigorosas. Ele vê na história a mesma estrutura, válida em todas as épocas, a ponto de concluir que quem conhece uma sociedade, conhece todas (cf. Maquiavel 1982, especialmente, Castruccio Castracani” e “A arte da guerra”).

106

“Vida

de

O pensamento de Maquiavel é o fruto mais maduro do humanis-

mo. Pecou tanto por excesso, em seus conceitos políticos, que acabou por fazer o humanismo entrar em rota de colisão com a visão religiosa

predominante em sua época. Ao renegar o providencialismo, o Deus ex machina na história, desencadeou um debate secular entre sua obra e as várias tradições do pensamento político europeu. Bossuet foí um de seus

melhores interlocutores, a propósito do príncipe por direito hereditário

ou por virtiy. O autor de O príncipe foi inegavelmente um condottierdo e

pensamento, ao fazer sustentar o poder sobre uma base quase exclusiva: o valor pessoal. A religião é entendida como sustentáculo ideológico do poder, quando utilizada de forma hábil pelos governantes, porque canaliza energias primitivas, mas vigorosas, do povo para a defesa da estabilidade e da ordem política. A grande ruptura do humanismo maquiaveliano está no fato de que foi capaz de denunciar aquilo que certos intelectuais de seu tempo já haviam percebido: as relações entre os homens e, sobretudo, entre os Estados, não podem ser reguladas segundo preceitos religiosos e normas evangélicas. Ele submeteu completamente os princípios da moral cristã à política, que passam a ser empregados apenas em certos casos estratégicos. Ampliou o conceito de virtix, já utilizado em sua época para exaltar a força e o talento de alguns indivíduos notáveis, a sua capacidade de abrir caminho mesmo contra a mais rigorosa adversidade, desde que possua valor suficiente para avaliar as circunstâncias e aguardar o momento adequado para agir. Castruccio Castracani parece ser concebido por Maquiavel como uma dessas criaturas modelares. Recolhido no esterco, acabou por tornar-se príncipe de cidades. Esse seu fascínio se traduz também a propósito de um outro antigo

personagem.

Segundo

Maquiavel,

Hiero

de

Siracusa

havia

sido

um

político tão formidável que, ainda na condição de um simples particular,

dizia-se dele que “nada lhe faltava para reinar, a não ser um reino”. Para

Maquiavel, o Estado é pura obra de arte do príncipe, daí sua grande admiração pelos principados novos em detrimento dos Estados dinásticos

(cf. Maquiavel 1982, sobretudo os primeiros parágrafos de O príncipe). O príncipe é o instrumento agregador da sociedade civil, o agente criador da ordem pública. Pela literatura política, Maquiavel celebrou o valor intrínseco do homem mais do que qualquer outro humanista.

ENA

107

O historiador florentino rompe com o passado ao pôr o homem diante de si mesmo, e não mais de um sistema de val ores teológico-reli-

giosos. Os homens são predominantemente maus, acredita Maquia vel, constituindo essa diretriz de pensamento numa realista e, porque não

dizer, honesta reação ao moralismo

clerical de sua época. Ele deu 40

humanismo uma tensão nova, ativa e cientificamente conduzida . Repre-

sentou uma enorme fratura na antiga moldura do pensam ento político. Sua obra consiste numa tomada radical de consciência do homem. Sofreu

os ataques de um sistema de crenças hostil a sua forma de rac ionalidade. Ainda que rigorosamente aplicado na prática do corpo a cor po político até por príncipes eclesiásticos da estirpe de um Richel ieu e de um Mazzarino, e por políticos muito anteriores ao maquiavel ismo como sistema teórico da política, seu pensamento expressa valores uni versais.

A Europa cristã leu atentamente Maquiavel, mas fingiu ignorá-lo. Bossue t dialoga com ele, mas nem sequer cita seu nome. Seu humanismo foi libertador, no sentido de que criou os fundamentos para a reflexão política do mundo contemporâneo, ainda que de forma velada. Como afirmou um historiador do pensamento científico, “Maquiavel não aspira a criar uma nova lógica. Simplesmente a põe a funcionar. O imoralismo de Maquiavel é pura lógica” (Koyré 1982). Maquiavel é um

autêntico representante do humanismo renascentista, que irá influenciar a cultura européia do Setecentos, mas seria um equívoco reconhecê-lo como sua síntese, ou melhor, sua expressão. Isso porque existiram outras concepções da história e da política, como, por exemplo, as várias linhagens de utopias, conforme expressas nos textos de Bacon, Morus e Campanella. Em

resumo,

no domínio do humanismo,

a Itália foi a autêntica

escola da Europa nos séculos XV e XVI. Recuperou os escritos da Antiguidade em pesquisas exaustivas, eliminando o que Jean Delumeau denomina de “leituras defeituosas”. Apesar de seus traços pagãos na Itália,

principalmente,

tentou fundir ao cristianismo o amor à vida terrena e à

beleza, que tinham sido os referenciais do mundo antigo. O homem foi

situado no centro das preocupações espirituais e dos estudos científicos. Para o humanista, “no fundo dã alma humana, há Deus” (Delumeau 1984).

Daí não ter abandonado as preocupações morais na política, na história e na filosofia. Não podendo realizar projetos práticos, enveredou

108

tato

para as utopias. O humanismo foi um empreendimento de reforma moral e intelectual que se pode resumir em uma fórmula: a criação de um tipo mais elevado de humanidade.

O humanismo foi como que uma espécie

de “consciência da Renascença” européia até meados do século XVI,

esgotando-se, a partir de então, nas areias movediças das controvérsias.

O humanismo conheceu variações regionais, ou melhor, nacionais: em diferentes países da Europa, teve expressões muito peculiares, não se

alinhando necessariamente com o modelo/padrão italiano. Ao contrário dos filósofos escolásticos, que usaram a filosofia grega para provar a verdade das doutrinas cristãs, os humanistas italianos usavam o conhecimento clássico para alimentar seu novo interesse pela vida terrena. O homem poderia alcançar a excelência pela virtude de seus próprios esforços. Prende-se a esse ideal um certo embrião da idéia de progresso, a convicção de que o saber não conhece limites e de que os contemporâneos poderiam muito bem superar os antigos em sabedoria. Para a história, Voltaire realiza façanhas do mesmo quilate que Maquiavel realizou para a teoria política. Em primeiro lugar, sua luta é contra o providencialismo e, por isso mesmo, suas batalhas teóricas são travadas em nome de um acentuado anticlericalismo. E o que há de original nisso? Praticamente nada. Os artífices franceses da “crise da

consciência européia” já haviam trazido suas pedras para calçar a estrada da dessacralização da natureza e da sociedade. Em fins do século XVII, Voltaire mal havia nascido e Pierre Bayle já proclamava que os vícios e as virtudes de todas as igrejas praticamente as igualavam, negando-lhes qualquer suposta superioridade, ao mesmo tempo em que lhes esvaziando os discursos que tentavam legitimar o império dessa ou daquela crença. Em seu Dicionário histórico e crítico —- uma “coletânea de erros” (Cassirer) —, na sua Crítica da história do calvinismo, e em outras obras

declaradamente relacionados à qualificando-as substantiva das 9.

voltadas à polêmica predileta de seu tempo — os assuntos religião —, Pierre Bayle nivelou por baixo as igrejas, como seitas capciosas, responsáveis pela parte mais chagas e mazelas da cristandade.”

“Desde Bayle, vozes cada vez mais numerosas se elevaram para dizer que não era somente possível, mas mesmo preferível, privar-se de uma religião revelada institucional, para fundar uma moral autêntica e eficaz. A idéia de que a religião seria nociva ao estabelecimento de uma vida moral digna desse nome foi muitas vezes exposta” (Domenech 1989, p. 17). Voltaire levou muito a sério essa orientação. Como diz Isaiah Berlin, ele foi “o amigo de reis e o

j

4

FAUNA

109

Como disse Cassirer acerca da obra desse endiabrado personagem

da história das idéias do século XVII, “o mal fundamental que cumpre

combater não é, portanto, o ateísmo, mas a idolat ria, não a descrença, mas a superstição. Essa máxima de Bayle é uma antecipação da tese

central do enciclopedismo francês em matéria de crítica religiosa” (1994, p. 222). Franco Venturi (1971, p. 6) considera que ele já é um intelectual do novo século. Voltaire será discípulo convicto das idéias de Bayle. Na

reflexão de Cassirer,

“restava ainda uma

tarefa por realizar, da qual

Voltaire se encarregou: a de trazer à luz o tesouro soterrado no Dicionário de Bayle sob uma avalanche de erudição histórica e teológ ica” (1994, p. 229).

A exemplo de Bayle, Voltaire acreditava que ao homem não era necessária uma religião, pois existem mui castos cristã os bem mais depravados que o mais celerado dos libertinos. Por isso, uma moral revelada não está mais credenciada para guiar os homens pela vid a que qualquer outra moral. Antes pelo contrário, porque o homem ver dadeiramente bom é capaz de agir no bem sem temer o fogo do inferno e sem

proceder interesseiramente, aguardando recompensas. ao término de sua existência. É possível encontrar mais boa-fé e probidade em pagãos que em cristãos, por mais piedosos que estes pareçam. E seria um erro,

também, considerar que é o paganismo o que os torna mais virtuosos. É

um estilo de vida simples que impede os homens de serem arrastados pelo orgulho e pela ambição. Como diz Voltaire em sua História do Império da Rússia, “um ambicioso hipócrita vai sempre mais longe que um simples fanático”. E sabemos, ainda por Voltaire, que a hipocrisia é mais perigosa que o fanatismo, porque é fria e calculada, e pode fazer dele um emprego eficiente. Os jesuítas da revogação do Edito de Nantes que o digam. inimigo implacável da Igreja Romana e, mesmo, de todas as Instituições cristãs” (Berlin

1979b, p. 113). Mas essa reflexão na obra de Bayle parece perder um pouco de sua

originalidade quando recordamos, com Quentin Skinner, que Erasmo e Morus — indo à casa

de seus amigos para se abastecer de artilharia, isto é, recorrendo à própria tradição bíblica e patrística — já pensavam analogamente pelo menos um séculoé meio antes, ainda que de forma infinitamente mais moderada: “Erasmo sempre insistiu em que a perfeição do cristianismo

não pode consistir, em absoluto, na filiação à Igreja ou na acei tação de seus vários dogmas. Morus leva essa tese a sua conclusão lógica, que implica ser plenamente possível alguém ser um perfeito cristão sem ter conhecimento algum da Igreja ou de qualquer de seus do gemas” (Skinner 1996, pp. 251-252).

110

Sim

Em seu Voltaire,'º

Gustave Lanson afirma que as Cartas íngiesas

foram “a primeira bomba lançada contra o Antigo Regime” (p. 52). Em

Voltaire e o Século das Luzes, Guy Chaussinand-Nogaret vaí declarar que esse livro “foi como se ele tivesse ateado fogo ao navio” (1994, p. 31). Aproveito essas imagens para su gerir que os contos filosóficos de Voltaire

também se empenharam em espalhar montes de ruínas por seu efeito

altamente corrosivo, e foram como várias cargas de dinamite atiradas sobre a fortaleza clerical do Antigo Regime.

O fato de que quase todas essas obras tenham sido condenadas pela Igreja é significativo e exprime o desconforto dos segmentos que

representavam a ortodoxia, a apreensão de estarem diante de um mal potencialmente devastador. De fato, parece haver mais impíiedades nesses contos do que em um século inteiro de história intelectual francesa. Pensando nessa parte da enciclopédia voltairiana, fica bem fácil compreender o arrazoado de Paul Hazard quando diz que o século XVII operou “a maior modificação que a literatura alguma vez terá sofrido”, tornando-se um tanque de guerra em meio à batalha campal das luzes contra as trevas (1989, p. 207). A inteligência do autor é veneno instilado num corpo político já bastante paralisado pela decrepitude de seus princípios morais e de seus

valores culturais.

Papas

e clérigos, no atacado e no varejo, são os que

mais sofrem com o cinismo falsamente cândido do autor, com suas chicotadas banhadas em sal e vinagre.” Alexandre VI — homem “mancha-

do de incestos” — é, de longe, seu clérigo preferido, se assim se pode expressar. Não é à toa que dedica a ele um verbete inteiro no Dicionário filosófico (artigo “Fé”) e os alfinetes mais agudos em diversos textos. Ele O considera uma espécie de personificação dos vícios da humanidade. As Pilhérias voltairianas, principalmente as que envolvem membros da Igreja, são armas destruidoras nas mãos de um fuzileiro que não costumava perder o tiro.2

E

10. 11.

12.

De 1960, edição revista por R. Pomeau. Trata-se, junto com o livro de Desnoireterres, de um

monumento dos estudos voltairianos. Sua primeira edição data de 1906.

“Ele usa, às vezes, de má fé, por uma boa causa, colocando o sarcasmo a serviço do bom

senso. Em sua mão, brincadeira, alegria e ironia são armas implacáveis e sem caridade quando se trata de desmistificar” (Méthivier 1972, p. 85). “Ele não tem nenhum escrúpulo em sacrificar os meios ao fim” (Biziére e Solé 1993, p. 258).

Segundo Pomeau, a “operação Ecrlinf” (écrasez Pinfâme) foi o grande affaire de sua vida, a

e

, EO

Hi

Suas histórias de padres libidinosos e libertinos fizeram mais estragos à república clerical francesa que a Encicl opédia e mil outros tratados de erudição; o voltairianismo foi um fenôme no de cultura no século XVIII não apenas francês, mas europeu; fez a litera tura assumir encargos novos, chamar para si novas responsabilidades: “Voltaire , juntamente com seu inimigo Jean-Jacques, habituou os france ses a esperar do gênio literário outra coisa além de diversão: um a direção de consciência”

(Pomeau 1994, p. 26).

Na época de Voltaire, a literatura deixou de ser uma busca exclusiva de estética, consoante os valores da Idade Clássica, ditados

pelos Boileau-Despréaux e outros medalhões da Academia Francesa, para tornar-se instrumento de crítica e máquina de demolição: “Vo ltaire nunca separou seu ofício de homem de letras de seu engajament o político. A literatura é, de início, um dever cívico, e a filosofia o sinôni mo transcendente da cidadania” (Chaussinand-Nogaret 1994, p. 147). Fazem eco a essas observações as de Jean Goldzink (1994, p. 176): Ninguém

o precedeu,

ninguém

o acompanhou

nessas missões impossíveis a serviço das causas perdidas. Rousseau recusa-se em nome de verdades universais, d'Alembert, em nome da prudência, mãe da moderação, e Diderot confia suas veemências aos manuscritos ou a testas-de-ferro (Raynal). Deixaremos aos fariseus saber se essas intervenções foram “puras”! Elas desenham, na história nem sempre gloriosa dos intelectuais, uma fronteira ardente, indelével. *

ponto de ter acreditado na possibilidade do advento de uma reli gião natural, desconsiderando o profundo sentimento religioso dos franceses: “Ele se propôs a nada menos que realizar uma segunda Reforma, reduzindo o cristianismo às proporções modestas de um deísmo. Ele se gaba de ter feito “mais que Lutero e Calvino” — não sem exagero: esse foi sempre o seu grande desígnio, e se ele o tivesse podido alcançar, teria transformado radicalmente O espírito da religião e o estatuto do clero” (Pomeau 1994b, p. 11). E Voltaire não estava sozinho nessã “operação Ecrlinf”. Robert Darnton mostra a dimensão que essa cruzada na literatura obteve no mercado editorial da segunda metade do Século das Luzes. Dimensionando O lugar de Voltaire

nesse

combate,

o historiador

norte-americano

observa:

“A

categoria

'religião”

consiste sobretudo em obras polêmicas, das quais muitas são escritas por Voltair e. É como

se, na luta contra “a infame”, assistíssemos a uma divisão de tarefas: Holbach e os seus encarregavam-se dos canhoneios teóricos intensivos, ao passo que os voltairianos, agindo

como a cavalaria ligeira da insolência, faziam rir à custa da adversária” (Darnton 1992, p.

13,

156). Como também afirma Jacques Domenech, a crítica do ateu d'Holbach “vai mais longe que a de Voltaire. Entretanto, ambos dividem a mesma hostilidade em relação à Igreja” (Domenech 1989, p. 19). Acerca de d'Alembert, Robert Darnton leva a pensar que, ao menos em tese, ele esboçou as

Embarquemos em alguns de seus romances e contos — tomando em perspectiva os textos históricos —, para discutir alguns outros temas pertinentes

à

história

iluminista

de

Voltaire.

Sem

dúvida,

os

contos

filosóficos são uma diversão, apesar de que nem tudo ali seja engraçado.

Mas, despertar o riso é, sem dúvida, um dos principais objetivos do autor.

Entretanto, há cenas que não conseguem penetrar o tempo; há situações

cômicas que não conseguem ultrapassar dois séculos e meio de história.

Ficaram datadas, congeladas num passado que só faz sentido para o autor e as prováveis vítimas de seu escárnio. Uma simples ilustração disso, com um exemplo mais concreto: em termos gerais, o que um jesuíta tem que o faz tão pior que um dominicano

ou que um franciscano? Nada. Mas foram os La Chaise as eminências

pardas por trás da revogação do Edito de Nantes. O Voltaire historiador parece não saber que essa foi uma circunstância fortuita; prefere apegar-

se à tese da astúcia, da hipocrisia e do amoralismo sem peias dos jesuítas, idéia que ele não criou, mas amplificou tanto quanto pôde: a do espírito calculista que é capaz de conciliar o inconciliável, que não vê contradição em acender uma vela para Deus e outra para o diabo. Entretanto, encontramos em Paul Hazard um elemento que talvez ajude a compreender essa predileção do Príncipe das Luzes pelos jesuítas: “Ora, Os jesuítas representam a aristocracia das ordens; ferindo-os, atingir-se-ão as constituições de todas as ordens” (1989, p. 105). Gustave Lanson parece ir um pouco mais adiante nessa análise ao considerar que OS jesuítas sempre pretenderam unir ainda mais intimamente Igreja e Estado (cf. Lanson 1960). Voltaire pretendeu desatar esse nó, que tem feito

da história o perpétuo desfile da demência dos homens.

Não é despropositado enxergar nesses diálogos voltairianos um autêntico combate de ordens: a da pequena confraria do célebre monge de Ferney contra os mais prestigiosos confessores da Europa. No conto filosófico O ingênuo, ambientado na época de Luís XIV, mais precisamente no ano de 1689, a revogação do Edito de Nantes é analisada como uma

reações típicas do intelectual interventor: “O Discours préliminaire abunda em metáforas

violentas e heróicas: quebra de grilhões, véus arrancados, entrechoque de doutrinas, invasão de cidadelas. (...) celebrou o homem de letras como o guerreiro solitário, na luta pela civilização, e prosseguiu emitindo uma declaração de independência para as gens de lettres como grupo social” (Darnton 1986, pp. 267-268).

DONDE

115

cabala de jesuítas, destinada a desencaminhar um príncipe que mantinha relações muito frias com Roma: Um homenzinho de preto tomou então a palavra e expôs habilmente as queixas da companhia, Referiu-se com tanta energia à revogação do Edito de Nantes, deplorou de modo tão patético a sorte de 50 mil famílias fugitivas e de 50 mil outras convertidas pelos dragões, que o Ingênuo, por sua vez, desatou em pranto. — Como se explica então — dizia ele — que tão grande rei, cuja glória se estende até os hurões, prive-se de tantos corações que poderiam amá-lo e de tantos braços que poderiam servi-lo? — É que o enganaram, como aos outros grandes reis. Convenceram-no de que, logo que dissesse uma palavra, todos os homens pensa-

riam como ele, e que nos faria mudar de religião como o seu músico Lulli muda em um instante os cenários de suas óperas. Não só perde ele de 500 a 600 mil súditos muito úteis, como os faz inimigos seus; e o rei Guilherme, que é atualmente senhor da Inglaterra, constituiu vários regimentos desses mesmos franceses que poderiam combater por seu monarca. Tanto mais espantoso é esse desastre, porquanto o papa reinante, a quem Luís XIV sacrifica parte do povo, é seu inimigo declarado. Vêm ambos mantendo, há nove anos, uma querela violenta, que atingiu tais extremos que a França pensou ver enfim quebrar-se o jugo que há tantos séculos a submete esse estrangeiro, e que, principalmente, não lhe mandaria mais

dinheiro, o que é o primeiro móvel dos assuntos deste mundo. Parece, pois,

evidente, que enganaram esse grande rei no tocante aos seus interesses e à extensão de seu poder, frustrando-lhe também a magnanimidade do coração. (Voltaire 1994, p. 516)

Tudo não passou de uma conspiração. Mas como seria possível enganar Luís XIV nessa matéria, um rei que Voltaire estimava como criatura dotada de têmpera inquebrantável, quando se tratava de velar

pelo bem de seus súditos? Ora, da mesma forma que um jesuíta influencia negativamente o rei, havendo as mesmas circunstâncias, “mandriões sagrados” de outras ordens também poderiam tê-lo feito. Bastaria que um deles fosse confessor de Luís XIV na época. De fato, nenhum católico na França morria de amores pelos huguenotes em 1685, que lá viviam 14.

Vejamos a sua defesa em texto de não-ficção: “Ele tinha juízo saudável e correto, mas,

desconhecendo a história de seu próprio reino, podia ser facilmente seduzido por um

confessor, por um ministro (...). Fizeram-no sempre acreditar que era suficientemente grande para dominar, de uma só vez, todas as consciências. Ele foi enganado, como seria ainda pelo

jesuíta Le Tellier. Não o teriam ludibriado se alguém lhe houvesse dito que ele era bastante grande para se fazer obedecido igualmente pelas duas religiões rivais” (“Defesa de Luís XIV contra o autor das Efemérides”, Voltaire 1957, p. 1.291).

114

g +

e

mantendo uma “fidelidade heróica” (Bluche) tal a hostilidade do ambíente. Há uma longa tradição de ódio entre as duas facções, jamais arrefecida

por acordos impossíveis de serem acatados de ambas as partes, tal o clima de fervor e fanatismo de lado a lado ao longo de todo o Antigo Regime.

Nesse caso, onde está o maior equívoco do Príncipe das Luzes? É

que a revogação do Edito de Nantes o rei assinou seguindo imperativos religiosos, como

o compromisso

de ser o defensor perpétuo

da Igreja

contra as heresias. Na cerimônia de sagração dos reis da França, havia um artigo, motivado pelo combate aos cátaros do século XII, que lembrava aos príncipes seu compromisso de erradicar heréticos denunciados pela

Igreja. A revogação coincide com a fase devota de Luís XIV, a fase de Madame de Maintenon, descrita pelo duque de Saint-Simon em suas Memórias (cf. Saint-Simon 1951). François Bluche considera o que foi reconhecido como verdade

suprema pela Europa católica de 1685, o fato de que a revogação do Edito de Nantes foi uma escolha salomônica digna apenas de um grande rei: “Será a realização — tardia, inoportuna, mas estrita e lógica — da promessa real feita pelo primogênito da Igreja” (Bluche 1986, p. 21). E esse historiador não exime o monarca de sua responsabilidade, como fez Voltaire, ao procurar compreender alguns de seus móveis mais profundos: “A simples lembrança da formação religiosa do jovem rei mostra que seu antiprotestantismo e seu antijansenismo são descendentes de seu catecismo de criança, logo anco-

rados em sua sensibilidade devota” Cibidem, p. 14).

Qual seria, pois, o sentido de toda essa cólera diabólica de Voltaire contra os epígonos de Santo Inácio?” De fato, em sua obra, e isso de uma maneira geral, sempre haverá um jesuíta destinado a expiar as mazelas da humanidade. Um jesuíta e um judeu, sem sabermos ao certo qual deles é o pior, mas tendo claro que se trata sempre de demônios. Para essas dicotomias voltairianas, que pertencem ao século XVIII e lá devem permanecer, não vem ao caso tentar estabelecer um ranking da maldade

15.

Muitíssimo curioso o paralelismo feito por Georges Gusdorf ao aproximar Voltaire de Lucien Febvre; curioso e pertinente, pois, mutatis mutandis, não estaria Febvre levando adiante, com

suas resenhas assassinas e seus artigos demolidores, a obra da crítica historiográfica voltai-

riana? Diz Gusdorf: “Voltaire não fez nenhum esforço para compreender Loyola, ao passo

que Lucien Febvre, por exemplo, que não tinha nada de luterano, consegue, pelo recurso da simpatia, reconstituir um admirável retrato do Lutero histórico” (Gusdorf 1960, p. 26).

115

e da hipocrisia. Contudo, deve-se reconhecer, não é preciso ser necess ariamente jesuíta para estar em desgraça perpétua. verve

Há exemplos de frades de todas as espécies sendo supliciados pela

voltairiana.

Um

retrato do

que

pode

haver

de mais

sórdido

no

gênero humano está fixado no franciscano Fa Tutto, das Cartas de Amabed: traiu seu discípulo acusando-o aos inquisidores, deitou-se com sua mulher e ainda tentou cavar a perdição de ambos

na fogueira. O

personagem Fa Tutto encarna uma instituição e um mundo marcados pelos vícios da intolerância, da descrença e da hipocrisia, haja vista o frade não crer numa só palavra que prega aos fiéis. Talvez ele seja o equivalente literário do cardeal de Retz da vida real, a quem Voltaire considerava um homem de admiráveis talentos, mal empregados. Encontramos Retz, n'O século de Luís XIV. nos anos tormen-

tosos da Fronda, o aventureiro “tão imprudente quanto audacioso”, a pregar a mentira pelo simples prazer de fomentar a discórdia. Mas, em assuntos de religião, nosso autor é uma fonte que “deve ser lida com desconfiança”, com as mesmas precauções que recomenda aos autores de seu tempo, porque cometedores contumazes de injustiças e anacronismos. Voltaire estudou no Louis Le Grand, o célebre colégio dos jesuítas. Amparou, em sua estância de Ferney, um antigo professor do Louis le Grand, o padre jesuíta Adam. Quando Diderot lhe perguntou qual o sentido de viver acompanhado por um jesuíta, ele teria satirizado: por minha vontade viveria com dois, para me confessar duas vezes ao dia.

Seu protetor na juventude, Châteneuf, com quem sempre se entendeu bem, também era clérigo. Entretanto, como historiador da religião,

Voltaire é um ótimo inquisidor. Frita no azeite de uma ironia arrasadora

todos os “bonzos” que encontra pelo caminho, termo que ele foi buscar na cultura oriental para ressaltar a dissimulação e a impiedade dos padres. Sobre estes, Voltaire sempre faz protestos de confiança e simpatia:

“É máxima bastante conhecida que os monges são criaturas que se unem

sem

se conhecer,

vivem

sem

se estimar

e morrem

sem

se lamentar”

(Voltaire 1994a, p. 652). Como diz René Pomeau, “Voltaire poderia dar tentações a uma crítica psicanalítica. Sua imaginação tem um lado mórbido. Ele enxerga — irresistivelmente — no padre, 'o homem negro”,

mau e, no limite, sanguinário” (1994a, p. 32). Nos contos, muitas vezes é

possível descobrir, sob a batina dessas figuras ignóbeis ou por trás de

j

116

à a

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a

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determinados raciocínios, algumas grandes personalidades da história da

França e da Europa. Nos contos filosóficos, há, de fato, uma preocupação em estabele-

cer diálogo constante com a tradição intelectual, a de seu tempo e a anterior. O matemático, filósofo e historiador germânico Leibniz será uma

das figuras mais visadas pelo Príncipe das Luzes. Ernst Cassirer lembra

que “é verdade que Voltaire, no Cândido, exerce seu espírito à custa da Teodicéia de Leibniz” (1994, p. 59). Mas, antes de explorarmos essa ironia

voltairiana, é preciso fazer justiça a Leibniz, uma das maiores estaturas intelectuais da história da cultura ocidental em todos os tempos. Nesse caso, temos uma situação bem semelhante à vivida por Sócrates, espetado pela pena satírica de Aristófanes. Como bem lembra Jean Goldzink, “Leibniz, gênio universal, não teria nenhuma necessidade de Voltaire nem de Pangloss para atravessar os séculos. Estranhas relações da literatura e da filosofia” (1994, p. 100). Nos contos filosóficos, encontramos esse ilustre personagem nas mais diversas latitudes; ele é tema recorrente no Cândido e não deixa de ser torturado como poeta sonhador no Memnon ou a sabedoria bumana: “Ah! — exclamou

Memnon — Bem se vê que certos poetas, certos filósofos, não têm razão nenhuma em dizer que tudo está bem” (Voltaire 1994, p. 134). Em matéria de religião, o Voltaire historiador só vê a árvore. Deixa-se cegar pelo argueiro do anticlericalismo. Não consegue divisar a

floresta do sentimento religioso, vigorosa desde tempos remotíssimos na história da Europa cristã. Curiosamente, defende uma religião de Estado. E mais paradoxalmente, arvora-se em escudeiro de todas as crenças religiosas, mas para marcar posição contra a Igreja católica. Na última fase de sua vida, seu anticlericalismo não tem apenas motivações políticas, ou melhor, não é o fruto puro e simples da personalidade do autor. Passa a alimentar-se de uma visão avançada do que deve ser uma nação economicamente pujante. O fato é que, em seus irrefreáveis massacres ao mundo clerical, Voltaire passa a incluir motivações econômicas. Para ele,

a Igreja é um cancro a ser extirpado da vida das nações.

Com efeito, é uma instituição onerosa, além do que é responsável

por uma esterilização das forças produtivas, do que há de mais caro a um 16.

Entretanto, em O século de Luís XIV, obra séria e bem-comportada, pode-se encontrar um retrato bastante respeitoso do filósofo alemão (cf. Voltaire 1957, p. 1.026).

Je

e.

A =

is



ea A

117

reino: os homens. Viver de rapinagens é um estilo que o autor reprova

sem maiores considerações na História de Jenni ou o sábio e o ateu: “Este homem é judeu; precisa, pois, ser queimado; e todos os seus bens me

pertencem: eis um péssimo argumento” (Voltaire 1994, p. 537). Como um

Maquiavel

flamejante

no

século

XVIII,

ele

brada

no

O

homem

dos

quarenta escudos: é preciso desfradar o mundo, porque os padres são pesos-mortos, são “parricidas”, seres hostis à humanidade, mesmo que se desconsidere a sucessão de horrores que foi e tem sido a história da Igreja. Seria um grande serviço prestado às nações do mundo a supressão completa, ou pelo menos a redução de todas as ordens religiosas. Assim procedendo, devolver-se-iam à pátria cidadãos e cidadãs que sacrificaram temerariamente a sua liberdade em uma época em que as leis não permitem que se disponha de um fundo de dez soldos de renda; tirar-se-iam esses cadáveres dos túmulos: seria uma verdadeira ressurreição. As suas casas seriam prefeituras, hospitais, escolas, fábricas. A população aumentaria e todas as artes seriam mais bem cultivadas. Poder-se-ia ao menos limitar o número dessas vítimas voluntárias, fixando o

número dos noviços. A pátria teria mais homens úteis e menos infelizes. É o sentir

de todos os magistrados, é o desejo unânime do público desde que os espíritos se esclareceram. O exemplo da Inglaterra, e de tantos outros Estados, é uma prova evidente da necessidade de tal reforma. Que seria hoje da Inglaterra se, em vez de 40 mil marinheiros, tivesse 40 mil padres? Quanto mais se multiplicam as artes, mais necessário é o número de súditos laboriosos. Há, sem dúvida, pelos claustros, muitas inteligências sepultadas, que estão perdidas para o Estado. É preciso, para que um reino floresça, o mínimo possível de padres e o máximo possível de artesãos. À ignorância e a barbárie de nossos pais, longe de constituir uma regra

para nós, não são mais que um aviso para fazermos o que eles fariam se estivessem em nosso lugar, com as nossas luzes. (...) Os monges são parricidas que aniquilam

uma posteridade inteira. Noventa mil enclausurados, que berram ou fanhoseiam latim, poderiam dar, cada um, dois súditos ao Estado: o que soma 180 mil homens,

que eles fazem perecer ainda em germe. Ao cabo de cem anos, a perda é imensa,

coisa que se demonstra por si mesma. (...) Ora, é claro que, se todos os jovens de

ambos os sexos se enclausurassem, o mundo pereceria; já só por isso a fradaria é inimiga da natureza humana, independentemente dos terríveis males que algumas

vezes lhe causou. (Voltaire 1994, pp. 652-654)

Esse quadro nos remete à mesma imagem que Voltaire tencionou fixar na sua bem mais circunspecta História de Carlos XII, escrita nos idos de 1731. Segundo Voltaire, Pedro, o Grande havia criado uma lei sábia

118

que impedia os homens a serviço do Estado, os burgueses e os míneiros de passar ao claustro. E acrescenta algumas paginas à frente: “Não é a

escassez de dinheiro, mas a raridade de homens e de talentos o que torna um império fraco” (HC 1957, p. 74). Nas “Anecdotes sur le czar Pierre le Grand”, Voltaire observa a esse mesmo propósito: “Para ter mais súditos,

ele quis ter menos monges, e ordenou que, doravante, não se poderia

329). p. (1957, anos” 50 dos antes ro claust entrar para o Voltaire declarou guerra à Igreja por dezenas e dezenas de vezes, e os combates foram sempre encarniçados de parte a parte. Ele concebia a sua condição humana como responsável por condená-lo a víver “nas convulsões da inquietude”, que, apesar dos pesares, era preferível à “letargia do tédio”, segundo se expressou nas palavras de seu personagem

Martin, no final do Cândido (cf. Voltaire 1994, p. 298). Mas nenhum desses

enfrentamentos foi mais aterrorizante para a república punhal envenenado, que ele intitulou “De la maladie, de la mort et de Papparition du jésuite Berthier” — 1759, Cândido —, enterrado até o cabo no peito de um jesuíta

clerical que um de la confession, o mesmo ano de de Paris.

Nesse texto, Voltaire narra a desdita do editor do influente Journal de Trévoux, o impiedoso perseguidor dos enciclopedistas, acometido de mal

súbito

ao

folhear

alguns

exemplares

do

seu

próprio

jornal.

O

diagnóstico taxativo de vários médicos impotentes diante da virulência do mal: tendência à morte rápida provocada pela ação devastadora de substância maligna. O antídoto? Voltaire prescreve a receita: une page de VEncyclopédie trempée dans du vin blanc. Não houve recurso, o veneno era mais forte e o infeliz jesuíta manda notícias do inferno, já condenado por Voltaire à danação eterna (cf. Voltaire 1994, p. 309ss.). O padre Daniel, historiador francês que viveu na confluência dos

séculos XVII e XVIII, mas, por mal de seus pecados, também

jesuíta, é

uma figura recorrente nos textos do autor do Cândido. Voltaire o tem em

elevada consideração como historiador, por ter sido capaz de conciliar o

inverossímil com o impossível. Quando o assunto é história, esse personagem é seu alvo predileto, com muitas aparições no incontável repertó-

rio de empalamento intelectual. Não é necessária muita imaginação para reencontrá-lo várias e várias vezes na narrativa ficcional voltairiana, seja 17.

O autor trata desse mesmo tema em algumas passagens de sua História do Império da Rússia (cf. Voltaire 1957, p. 429ss.).

119

em referências explícitas, seja na condição de uma ser pente, que, sob o pretexto de fazer o bem e dilatar o conhecimento do passado, acaba por

semear mentiras, juntamente com uma sucessão de absurdos. É justamen.

te o padre Daniel que está presente no conto O touro branco, utilizado

por nosso

grand mangeur de jésuites (Goulemot

e Walter)

com o

propósito de refletir sobre quais deveriam ser, em mea dos da década de 1770, as reais e mais relevantes preocupações da história a ser produz ida

em seu tempo. Ouçamos este estranho diálogo:

Essas histórias me aborrecem — respondeu a bela Amaside, que tinh a inteligência e bom gosto. (...) As histórias que podiam contar à tataravó da tata ravó da minha

avó já não servem para mim, que fui educada pelo sábio Mambrés e que li o Entendimento humano, do filósofo egípcio chamado Locke, e da Matr ona de Éfeso. Quero uma história que seja fundada na verossimilhança e que não se assemelhe sempre a um sonho. Desejo que não tenha nada de trivial nem de extravagante. Desejaria sobretudo que, sob o véu da fábula, deixasse transpar ecer aos olhos exercitados, alguma fina verdade que escapa ao vulgo. Estou cansada do Sol e da Lua de que uma velha dispõe ao seu bel-prazer, das montanhas que dançam, dos rios que remontam a sua fonte e dos mortos que ressuscitam; mas, quando essas tolices são escritas em estilo empolado e ininteli gível, aí, sim, é que me desgostam horrivelmente. Bem compreendeis que uma pobre moça que receia ver seu amado engolido por um grande peixe e ser ela própria decapitada pelo próprio pai tem muita necessidade de que a divirtam; mas tratai de divertir-me conforme o meu gosto. (...) Difícil coisa me ordenais — respondeu a serpente — Antigamente, poderia eu vos fazer passar alguns quartos de hora bastante agradáveis; mas perdi há algum tempo a imaginação e a memória. Ai! Onde estão os tempos em que eu divertia as damas? (Voltaire 1994, pp. 762-763)

No conto filosófico O touro branco, publicado nos últimos anos de sua vida — considerando-se que esse texto veio a público em 1773 -, Voltaire faz sua profissão de fé numa história renovada segundo os novos padrões e os rigores impostos pelas Luzes: verossimilhança com elegância e rigor com objetividade e sentido são novos ingredientes que não devem faltar a essa Clio de tempos de filosofia e de razão. Como diz Paul Hazard, “foi ele (...) quem fez da verdade o sinônimo

da clareza” (1989, p. 373). A rigor, essa serpente que fala pode muito bem ser o perseguido jesuíta Daniel como qualquer outro daqueles disseminadores de fábulas. A zoologia mítica, que o Príncipe das Luzes vai buscar na tradição judaico-cristã, se, por um lado, revela o seu interess e e, ao

120

mesmo tempo, o seu desprezo pela relígião, é feita também com o fito claro de envenenar a história dos jesuítas e dos palradores sobre uma

história deficiente e caduca, que sequer é capaz de “divertir as damas”.*

O Cândido é, do início ao fim, a história a um só tempo da riqueza e da relatividade dos costumes, pela “ação de uma inteligência implacável, de uma ironia sem piedade; um gesticular de fantoches, uma dança macabra de títeres cômicos” (Hazard 1989, p. 301). Parece que o autor o escreveu

para todas as circunstâncias da vida, reais, prováveis, imaginárias e deliran-

tes. Num sentido mais amplo, é também uma aula sobre os primórdios do historicismo. Alguns anos após Cândido — 1768 —, ele já dava mostras de sua notável capacidade de apreender sutilezas históricas e culturais. No conto 4 princesa da Babilônia, é capaz de expressar numa piada sua visão sensível das culturas; é capaz de enfatizar a relatividade das coisas explorando o cômico de situações absurdamente ridículas, como o célebre concurso de virilidade a que se submeteram gratuíta e afoitamente os monarcas mais poderosos da Antigúidade oriental, a saber, o rei dos citas,

o rei da Índia e o faraó do Egito:

Começaram as provas. Retiraram de seu estojo de ouro o arco de Nemrod. O mestre de cerimônias, seguido de 50 pajens e precedido de 20 trombetas, apresentou-o ao rei do Egito, que o fez benzer por seus sacerdotes; e, tendo-o colocado sobre a cabeça do boi Ápis, não mais duvidou de alcançar essa primeira vitória. Desce

à arena,

experimenta

o arco, esgota

suas

forças, faz contorções

que

provocam o riso do anfiteatro e até fazem Formosante sorrir. Aproxima-se dele o seu grande esmoler, e diz-lhe: — Que Vossa Majestade renuncie a essas honras vãs,

que não são mais que as do músculo e nervos: triunfareis no resto. Vencereis o leão, pois tendes o sabre de Osíris. A princesa da Babilônia deve pertencer ao príncipe que tenha mais inteligência, e já tendes decifrado enigmas. Deve ela desposar o mais virtuoso, e vós o sois, pois fostes educado pelos sacerdotes do Egito. O mais generoso deve vencer, e vós a presenteastes com os dois mais belos crocodilos e os dois mais belos ratos que havia no Delta. Possuís o boi Ápis e os livros de Hermes, que são a coisa mais rara do Universo. Ninguém vos pode disputar Formosante. (Voltaire 1994, pp. 3568-559) 2

18.

19.

Sobre a história entediante de Daniel e outros padres é interessante acompanhar as invectivas

da “Carta a M. Nordberg”, o confessor de Carlos XII (Voltaire 1957, especialmente p. 310,

em que trata dos dois deveres do historiador: não entediar e não caluniar).

A inspiração para essas tragédias patéticas ele foi buscar na literatura oriental, no Ramaiana.

mais especificamente no prodígio realizado pelo príncipe Rama que, como Amazan, também

disputava a preferência de uma princesa, e que partiu um arco que muitos homens não

conseguiam erguer.

121

Como

assevera

René

Pomeau,

“a tragédia

patética é necessária a

sua higiene psicológica (...) Ele busca, desse modo, sistematicamente,

situações perturbadoras” (19944, pp. 49-51). É pre ciso reconhecer: croco-

dilos e ratos são repugnantes apenas a não-eg ípcios, isto é, o resto do

mundo. Entretanto, é possível questionar essa sua “compreensão” sobre as diferenças culturais. Quando disposto, ex punha os mais diversos sistemas filosóficos com admirável clareza. Mas, quando tomado de

indisposição, revelava-se um “entortador” de idéias. Nesse sentido, parece que certos historiadores de Voltaire têm raz ão. Ele sabia das coisas, possuía uma grande capacidade de compreensã o, mas não relutava em sacrificá-la quando o problema era fazer espírito. E esse dilema voltairiano, quase sempre resolvido em favor do espírito, não está posto apenas na obra literária, na qual o autor pode usar e abusar. Veremos adiante que essa tendência é recorrente em todas as obras de historiad or. Foi essa sua queda para a incompreensão premeditad a que o levou

ao sacrifício de Leibniz, de Rousseau e de tantos out ros. São famosas as críticas de Voltaire ao melhor dos mundos, ao discur so contra o gênero

humano e outras peripécias. Leibniz havia sido consel heiro político do austero Frederico Guilherme I — o rei-sargento —, em relaçã o ao qual nunca caiu em desgraça. Robert Nisbet recorda que Leibniz havia tratad o da idéia da “necessidade absoluta” das coisas no universo. Segundo Nisbet, foi dessa doutrina de necessidade que Leibniz derivou sua famosa conclusão de que este é o melhor dos mundos possíveis — inferência que Voltaire iria mais tarde a ridicularizar; entretanto, a ênfase deve ser atribuída à palavra “possível”. Leibniz, em momento algum, acreditou que tudo no mundo fosse “bo m” e que não existisse o mal, como Candide gostaria que acreditássemos. (1985, p. 167)

Não sendo um pensador político da envergadura de um Montes-

quieu, de um Rousseau, suas idéias nesse terreno, apesar de interessantes,

carecem de rigor e organização: “Voltaire é bastante problemas das instituições. Idealista, ele quer mudar homens”

(Pomeau

19944,

pp.

24-25).

Sendo

fraco

indiferente aos “o espírito dos

como

teórico

da

política, e guiado por um acentuado anticlericalismo, ele tende para o

pragmatismo. Seus combates contra a intolerância e o fan atismo reduzem

consideravelmente o alcance de suas reflexões política s, quase as restringindo à cultura do Antigo Regime. Desse modo, Ernst Cassirer nos faz compreender melhor essas atitudes voltairianas ao ressaltar “a atitude

122

apa:

cética em face da religião, eis o que caracteriza a própria essência do

Iluminismo” (1994, p. 189). E essa consideração é aínda maís válida para o pensamento francês, o mais anticlerical de toda a Europa. Mas, quanto a isso, Voltaire não incorrerá nos excessos de um d'Holbach, este último causador de incômodo e mal-estar, por seu radicalismo, até mesmo no

círculo da vanguarda dos enciclopedistas.

Acerca desse aspecto, um de seus historiadores observa: Pode-se dizer que Voltaire fecha os olhos para a tirania de Frederico e Catarina II, porque esses monarcas fornecem um bom exemplo, exercendo uma repressão sobre o clero. Se ele aprova Choiseul, que se mostra pouco favorável aos filósofos, pode-se dizer que é porque esse ministro, livre pensador, consuma a supressão dos jesuítas. Em seu entusiasmo, Voltaire esquece certos aspectos deploráveis da política “progressista”. Ele discorre com uma lamentável discrição sobre os crimes de Pedro I e Catarina II. (Pomeau 1994a, p. 15

Pouco lhe importava se os xeques-mates inflígidos à Inglaterra, à

Áustria e à França por Frederico II fossem proporcionados por “jogadas

proibidas”, como observou Paul Hazard. Entretanto, há nuanças que talvez relativizem o que Pomeau chama de “lamentável discrição”. Segundo Guy Chaussinand-Nogaret, Voltaire tinha consciência dos limites do despotismo esclarecido, de certa forma concebendo a ação civilizadora que ocorria por baixo das botas dos reis como uma espécie de mal necessário numa época favorável ao progresso dos povos. Então,

convinha

antes

louvar

as

boas

ações,

que

certamente

vinham manchadas por uma nódoa de crimes, porque o tempo era propício ao advento do progresso, mas ainda não era exatamente a época de plenitude do progresso: Suas relações com Catarina, Frederico e outros monarcas europeus, o elogio excessivo desses Salomões e outras Semíramis, levam à confusão. Somos tentados a pensar que, para Voltaire, como para outros tenores filosóficos do século, o “despotismo esclarecido” constituía um ideal político, ao passo que este não era,

em seus espíritos, senão uma etapa necessária que justificava a barbárie da Europa. (...) O melhor regime, segundo Voltaire, não é certamente o despotismo esclarecido. (Chaussinand-Nogaret 1994, pp. 104-105)

20.

A mesma passagem, ligeiramente alterada, pode ser encontrada também em Pomeau (1994, p. 38).

123

À originalidade de Voltaire revela-se nos resultados que alcança ao transformar tais idéias sobre a história, a religião e a política em método

de interpretação do mundo. Ele não recusa Deus como força que coloca em movimento a natureza e tudo o que há no universo. Entretanto, interdita-lhe qualquer possibilidade de ação. Sua metáfora do “piparote

inicial”, da forma como está colocada no Dicionário filosófico, é expres-

siva a esse respeito ao afirmar que, lançado o mundo

ao movimento

perfeito das leis universais e eternas, o criador retira-se de cena, e seria

reduzir em muito sua perfeição acreditar que tal força intervirá em qualquer fenômeno, seja para punir os homens, seja para reformar a natureza. Em síntese, corrigir a criação é negar-lhe a perfeição, constituindo-se Deus num perfeito “monarca constitucional”, segundo a imagem de Georges Lefebvre, simplesmente porque segue as leis após tê-las sancionado (Lefebvre 1974, p. 115).? Ernst Cassirer considera que, no quadro geral da filosofia das Luzes, o milagre é como uma espécie de usurpação da ordem natural, uma desconsideração das leis universais e, por isso mesmo, antidivino (cf. Cassirer 1994, p. 254). Como observou Hannah Arendt, na época em que se processa mais acentuadamente a secularização das idéias no Ocidente moderno, pela separação da política e da religião, “o problema não era negar a existência de Deus, mas descobrir no domínio secular um significado independente e imanente, que nem mesmo Deus pudesse alterar” (1972, p. 104). O corolário natural dessa perspectiva é o reconhecimento de que as sociedades humanas estão entregues ao próprio homem. Tudo que aí ocorre de grande ou pequeno, para o bem ou para o mal, é responsabi21.

“Newton conserva Deus, e assim faz seu discípulo Voltaire, aluno dos Jesuítas. Mas, para Voltaire, esse já não é o Deus vivo do Antigo Testamento, não é Jesus Cristo ressuscitado, sempre vivo, invisível ou sob a aparência da hóstia, sempre presente, o Redentor e o Salvador. é o “eterno relojoeiro”, o mecânico, um princípio racional antes que uma pessoa ” (Mousnier 1989, p. 221). Para Michêle Duchet, “Voltaire é acentuadamente mecanici sta, como quase todos os sábios e os filósofos da primeira metade do século. Como eles, está persuadido de que tudo é matéria e movimento, de que a natureza é uniforme e “segue invariavelmente as

mesmas regras" (Duchet 1995, p. 283). Mas, como afirma essa mesma autora, ele estava

atrasado, por sua concepção deísta, em relação a todas as descob ertas científicas que não se

encaixavam em sua filosofia ou a desmentiam. Suas explicações para a existência de fósseis

em determinadas regiões da Terra são francamente pré-científicas. É o que lembra Gustave

Lanson: “Os peixes fósseis dos Alpes eram as sobras do café da manhã dos vi ajantes e as conchas fósseis caíram dos chapéus dos peregrinos” (Lanso n 1960, p. 73).

124

lidade direta dos indivíduos. Nos textos voltairianos, há uma recusa entre enfática em reconhecer qualquer intervenção, seja na natureza, seja

os homens,

que não possua causas naturais e compreensíveis. Decorre

dessa perspectiva boa parte de sua concepção crítica dos acontecimentos. A regra geral é acreditar apenas no que seja crível, havendo ou não evidências, e jamais crer no inverossímil, apesar de qualquer evidência.

As reflexões teóricas de Voltaire sobre a verdade em história se espraiaram

por muitos de seus textos e é comum encontrá-las em profusão também em romances e contos.

É preciso aprender a duvidar, assevera Voltaire. Ele se espanta e se indigna com os leitores de Plutarco, de Heródoto e de outros autores antigos e modernos. E citando Aristóteles, adverte: “A incredulidade, nós

o sabemos, é o fundamento de toda sabedoria (...). Essa máxima é muito

boa para quem lê a história, e sobretudo a história antiga” (*Qu'il faut savoir douter”, Voltaire 1957, p. 311). Esse texto foi escrito para ele se defender dos ataques contra a História de Carlos XII, na qual narra os

prodígios do rei sueco.

Segundo

Voltaire, os feitos desse monarca

não

seriam tomados como verídicos se não houvesse testemunhos oculares e fidedignos

sobre

eles.”

Apareceria

à posteridade

como

uma

heróica

extravagância a resistência do “Cabeça de Ferro” em Bender, cidade da Turquia, em que 300 suecos enfrentaram 30 mil turcos e tártaros.

A interpretação do affaire Calas e da travessia do Reno marca bem a recusa de Voltaire ao inverossímil, ao lendário e ao prodigioso, elementos comuns na literatura anterior e nas obras de seu próprio tempo. Não é ele o autor da expressão “enciclopédias do fantástico” para caracterizar tais obras? Acerca da necessidade de estar atento para enfocar o mundo com olhar crítico, o Príncipe das Luzes recomenda no Ensaio

sobre os costumes: “Um leitor informado notará facilmente que deve crer apenas nos grandes acontecimentos que possuam verossimilhança e olhar com compaixão todas as fábulas que o fanatismo, o espírito romanesco e a credulidade acumularam em todos os tempos” (1990). 22.

Recurso saudável à história produzida na época das Luzes, e que também não foi exclusividade

de Voltaire. Como observa Fueter, esses historiadores “trabalhavam, de preferência, com os séculos

XVI

e XVII,

onde

se encontravam

em

terreno

seguro.

(...) Como

os grandes

florentinos, as obras mais solidamente fundamentadas são as que tiravam sua interpretação do passado mais recente, e para as quais a tradição oral podia suprir os estudos eruditos

preparatórios” (Fueter 1953, p. 20).

125

Nessa tentativa de fazer falar sobre um tema comum esses mon stros

sagrados da dessacralização da história, que a arrancaram de seu éden

clerical, é possível deduzir, tomando como fundamento à sempre consis-

tente argumentação de Edward Hallet Carr, que a razão ilumin ista fo; realmente a potência fundadora da historiografia moderna. Se, de fato, ela acabou mantendo uma visão teleológica judaico-cristã, radicalizando bem menos que Maquiavel, secularizou, no entanto, o obj etivo, tornan-

do-se capaz de “restaurar o caráter racional do própri o processo histórico. A história tornou-se o progresso para a meta de perfeição da situação

SR

humana na terra” (Carr 1985, pp. 94-95).

CONCLUSÃO

Concluímos o livro, entedíiamos — por pouco, não caluniamos — é nosso cerco ainda não está feito. Isso porque nos fica a impressão, desalentadora, de que Voltaire é tão inexpugnável quanto a história do abade Vertot, e que teria ainda muito mais a dizer sobre nosso tema se

soubéssemos arrancar-lhe outras respostas. Como afirmou Jean Orieux, “quando nos aproximamos dele: tudo é claro. Quando nos aprofundamos em sua vida, o volume dos fatos, as piruetas do personagem, suas contradições, seus subterfúgios dão vertigem. (...) A vida de Voltaire é um balé. Nada é mais revelador da natureza profunda de Voltaire que a

rapidez.

Ele muda

de tom, de tema, de rosto, numa

cadência

incrível”

(Orieux 1994, p. 7ss.). Desse modo, temos a sensação de que será preciso abordá-lo outra vez, e outra, e mais outra, na tentativa de nos aproximarmos um pouco mais empaticamente de seu pensamento tortuoso. E, nesse aspecto, é preciso dar razão ao crítico literário francês, Emile Faguet: ele continua sendo um caos de idéias claras.

A esse respeito, em seu “Suplemento a O século de Luís XIV, encontramos uma arguta lição teórico-metodológica, quando afirma que “o caráter de cada homem é um caos, e o escritor que tenciona desvendar

esse caos, depois de séculos, faz um outro” (1957, p. 1.257). A nosso ver. nada mais pertinente em matéria de história das idéias. Assim, nosso compromisso é continuar revolvendo esse caos, fazendo do Príncipe das Luzes um tema em aberto, o objeto de um programa que apenas acabou de começar. Com esse estudo, descobrimos apenas uma mina preciosa,

197

dispondo de recursos ainda bem precários para explorá-la em seus veios mais ricos.

Mutatis mutandis, gostaríamos de afirmar, recordando uma passagem de Montaigne, sua admiração incondicional pelo velho Plutarco, que, em história, “meu homem” é Voltaire. Como lembra Orieu x, “tal homem

merece que se lhe consagre alguns anos. A dizer a verdade, não há nisso nenhum

mérito. É por prazer que escolhemos viver em comp anhia do

homem mais inteligente, mais erudito, o mais delicado com seus amigos

e seus hóspedes, o mais impertinente por vezes, e o mais surpreendente” (Orieux 1994, p. 11). Dediquemos a ele, então, pelo menos mais uma década de estudos e leituras. Ele certamente nada perderá, e teremos aprend ido algumas lições importantes. De fato, quantos temas históricos nos ofe recem seus textos? Entre outros, uma abordagem dos conceitos de virti e fortuna parece um estudo pertinente e relevante, porque o tema é rec orrente em seus livros. Aproximá-lo de Erasmo, que também escreveu abu ndantemente sobre o príncipe, não nos parece despropositado, haja vist a que esses dois intelectuais, em tempos diversos, ocuparam um papel seme-

lhante no cenário cultural europeu. É por isso que Erasmo é frequente-

mente apontado, com razão, como uma espécie de Voltaire avant la lettre. Ademais, o voltairianismo não traz em si alguns elementos do ire nismo erasmiano?

Além disso, comparar sua concepção de história e de política com a de Montesquieu é outro desafio interessante, principalmente se pens armos em focar a imagem de Luís XIV como o ponto de contato desse diálogo. A recepção do pensamento histórico voltairiano na obra de Michelet — tema soprado por René Pomeau num de seus incontáv eis textos, sempre esclarecedores — e talvez nas de outros historia dores

franceses dos séculos XIX — como Ernest Lavisse e dois representantes da

dita escola capetiana do século XX, como Jacques Bain ville e Pierre Gaxotte — seria uma oportunidade para alargar nossos con hecimentos. Como horizonte temático que integraria todos os referido s autores nessa pesquisa, poder-se-ia propor a idéia de nação e o papel civilizador da monarquia

em

três tempos

quistas e republicanos.

distintos, pelo viés de historiadores

monar-

E o que dizer dos contos filosóficos, outro monumento do planeta Voltaire? Ao que nos pareceu, estes se conf iguram em trincheiras estraté128

o”

El

:

NA Tot

Pesa

=

dd

políticos. as tem os iad var de o içã pos pro a pel s ada tom em ser a gicas, a par as tem de el táv sgo ine ial anc man um é or aut so nos que ece par Enfim,

a pesquisa histórica, sempre suscetível de uma nova investida, para ima máx r, favo so nos em po tem o r usa os bam sai ão, Ent . ruir inst e rtir dive que, aliás, lhe era extremamente cara.

Jacques Le Goff disse, em seu verbete-manifesto “A história nova”, que “antes de tentar definir a história nova de hoje, há que se recordar a

longa e ilustre linhagem de que descende. (...) Efetivamente, a história nova pode, para além da “escola dos Anais”, reivindicar para si alguns dos

maiores nomes da história, a partir do século XVII” (Le Goff et al. 1990, p. 265). E ele reivindica Voltaire numa longa citação das Novas conside-

rações sobre a história, identificando-o como o ousado autor do grande

projeto da história nova, e mais Chateaubriand, Michelet e François Simiand, como executores de tal programa. O curioso é que, no Dicionário de Le Goff, Chartier e Revel, não há o espaço de um verbete para o, por assim dizer, pai da nova história; e nem para Chateaubriand, ao passo que Michelet e Simiand lá figuram. Contudo, no Dicionário de ciências históricas, André Burguieére corrigiu essa ingratidão filial num verbete assinado por J.M. Goulemot. Mas, sem dúvida, é fazer justiça a Voltaire saudar as suas apostas. Ao realçar o ambicioso programa traçado por Voltaire, parece que Le Goff não tenciona falar em pesquisas realizadas, mas em manifesto, em ameaças expostas no futuro do presente ou no futuro do pretérito, ou seja, num nível intencional puramente especulativo e teórico (cf. Le Goff

et al. 1990, pp. 265-266). É muito mais em torno de um programa que

Voltaire passeia, hoje, em triunfo.

Voltaire não aplicou seu programa na íntegra e, diríamos — para sermos justos —, que não o aplicou na extensão imaginada, naquilo que tinha de mais inovador. Mas cabe constatar que o fato de o ter enunciado, mesmo sem desenvolvê-lo quanto pretendia, foi mais que suficiente para fazer sua glória. Portanto, a nouvelle histoire de Jacques Le Goff herdou — se é que ele realmente acredita nessa patronagem — muito mais um roteiro,

uma

carta de intenções

mente uma história.

bem

circunstanciada,

mas

não

propria-

Isso porque a história nova que Voltaire propõe parece sofrer de uma espécie de bulimia: quer devorar tudo o que não foi ainda tocado, mas, estranhamente, ao se aproximar de seu alimento, perde subitamente 129

a voracidade.

Tendo

de colher seus

frutos em

galhos

mais

elevados,

inexpugnáveis para seus recursos, deixou a tarefa apenas começada. No capítulo XI de O século de Luis XIV, cujo título é “Évacuation de la Hollande. Seconde conquête de la Franche-Comté”, o autor enuncia qual género de história se propõe a escrever: “Creio ser necessário dizer aqueles que poderiam ler esta obra que devem se lembrar de que essa não é absolutamente uma simples relação de campanhas, mas, antes, uma história dos costumes dos homens” (SL 1957, p. 723). Sem atentarmos para o título do referido capítulo, e para todos os demais

que

lhe

sucedem

na

obra,

até

o KXV,

suponhamos

que

ele

realmente tenha inovado em relação à história de seus predecessores, que sua pesquisa tenha agregado aspectos novos. Contudo, o fato concreto é que, apesar desses enunciados promissores, ele vai direto aos príncipes, aos generais e à guerra, em longas narrativas. Isso para dizer que, num

confronto do tipo “antigo versus moderno”, na obra histórica de Voltaire —à luz da historiografia atual —, um empate parece ser o termo mais justo, pois, como afirma inteiramente nova 1960, p. 102).

Lanson, “a novidade na obra nem a tradição simplesmente

de Voltaire nunca é tradicional” (Lanson

Nesse sentido, cremos que o destaque proposto por Pierre Barriêre nos idos dos anos 1950 ainda continua oportuno: “Atribui-se a Voltaire o mérito de haver estabelecido os primeiros modelos da verdadeira história; o elogio é, sem dúvida, excessivo e apenas se considera o que ele acrescenta em originalidade, além de seu talento de escritor, às concepções antigas” (1963, p. 298). As concepções antigas, frisa Barriêre. Mas achamos que há algo mais na história voltairiana. Isso pode muito bem significar que, se nosso homem não se encontrava à altura de levar a bom termo a história nova que impôs a si mesmo, sua história se encontra, no entanto, numa posição que a torna suficientemente elevada para ser

livremente reivindicada como inspiradora de qualquer corrente do pensamento histórico contemporâneo, não sendo apanágio da nouvelle



—a

cl

e

histoire nem de qualquer outro círculo de historiadores.

130

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à CRIANÇA

HISTORIADOR

VOLTAIRE Livro

QUE

PRETENDE

SENTA,

NOS

TEXTOS

MUITO

VOLTAIRE

MOSTRAS



E A QUE

DE

TRANSFORMA-

PROFUNDAS

AS

ATENTAMENTE

ACOMPANHAVA

DE UM

A HISTÓRIA

SOBRE

REFLEXÃO

TEXTOS,

SEUS

EM

POLÍTICA.

FILOSÓFICOS,

NOTÁVEL E SURPREENDENTE

DE

ANTIGO

SE APRE-

VOLTAIRE

CONTOS

E NOS

HISTÓRICOS

COMO UM REPRESENTANTE GÊNERO

QUE

DEMONSTRAR

ÇÕES QUE OCORRIAM NA EUROPA DO SÉCULO XVIII. =

Este

GRANDE

AUTORIDADE

CIVILIZADOR

É

A SEU

O

PRÍNCIPE

VOLTAIRE

QUE

FEZ

UM

A

UM

RESPONDER

PARA

A NECESSIDADE

DE

FUNDAR

CAPAZ

DE

TORNAR

POLÍTICA DOS

MUNDO

O CAÓTICO

HABITÁVEL IMAGENS

DE

TIPO

DE

TESE

FILOSÓFICO:

PROBLEMA

NOVO

A

INTELECTUAL

ESFORÇO

ELEVADO UM

SUSTENTA

LIVRO

VIRTUOSO,

PRINCÍPIO

ESSE

HOMENS. A

DAÍ

DE

PROFUSÃO

RESPEITO.

CConTUDO, AO DAR SUAS ÚLTIMAS PINCELADAS NO RETRATO DO SEU PRÍNCIPE

TRAÇOS NOTÁVEL

PERFEITO, VOLTAIRE

ACABARÁ

SE

FORMOU:

DA CULTURA

NA

MODERNIDADE,

DE ALGUMAS PENSAMENTO

FÓRMULAS

QUAL NÃO QUE

CONSEGUE

POR EXPRIMIR OS

APESAR

DE

SUA

DESEMBARAÇAR

SE

NA TRADIÇÃO

SE ARRASTAVAM

DO

POLÍTICO DESDE TEMPOS LONGÍNQUOS.

ISBN

1º ed.

85-308-0639-5

917 885301806392

PAPIRUS

EDITORA