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Portuguese Pages 207 [105] Year 2006
Jacques Le Coff Nicolas Truong
Uma história do corpo na Idade Média TRADUÇÃO
Marcos Flaminio Peres REVISÃO TÉCNICA
Marcos de Castro
-
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Rio de Janeiro
2006
COPYRIGHT
©
2003,
Sumário
Éditions Liana Levi
TÍTULO ORIGINAL
Une histoire du corps au Moyen Age CAPA
Evelyn Grumach PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite PREFÁCIO: AS AVENTURAS DO CORPO
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES L528h
INTRODUÇÃO:
DE LIVROS, RJ.
Le Goff, Jacques, 1924Uma história do corpo na Idade Média / Jacques Le Goff, Nicolas Truong; tradução Marcos Flamínio Peres; revisão técnica Marcos de Castro. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Tradução de: Une histoire du corps au Moyen Age Inclui bibliografia ISBN 85-200-0674-4 1. Corpo humano - Aspectos sociais. 2. Corpo humano - História. 3. Civilização medieval. L Truong, Nicolas. lI. Título.
06-1094
CDD - 306.4 CDU - 316.728
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Direitos desta tradução adquiridos pela CMLIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA RECORD LIDA. Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Te!.: PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ -
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HISTÓRIA DE UM ESQUECIMENTO
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1. Quaresma e Carnaval: uma dinâmica do Ocidente A GRANDE RENÚNCIA
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O tabu do esperma e do sangue 38 A sexualidade, ápice da depreciação 41 Teoria e prática 45 Raizes da repressão: a Antigüidade tardia 47 O cristianismo, operador da grande reviravolta 49 A mulher, subordinada 52 Estigmas e {lagelaçâo 55 O magro e o gordo 57 A REVANCHE DO CORPO
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Serpente de pedra contra dragão de vime O trabalho entre castigo e criação 64 A dádiva das lágrimas 69 Levar o riso a sério 75 Os sonhos sob vigilância 79
20922-970
Impresso no Brasil 2006 5
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2. Viver e morrer na Idade Média o CAMINHO
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HISTÓRIA
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As idades da vida
O esporte?
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"Eles dormiam juntos?" Enfim a criança aparece
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o HOMEM-MICROCOSMO
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A cabeça ou o coração? 162 Como os olhos na cabeça 163 O Estado é um corpo 164 A cabeça revirada 167
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A cabeça sobre os pés MORTOS E MORIBUNDOS: GLORIOSOS OU ATORMENTADOS
O breviário dos moribundos
121
120
169
O rei e o santo 170 O corpo da cidade 171
124
3. Civilizar o corpo A GULA E A GASTRONOMIA
CONClUSÃO:
UMA HISTÓRIA LENTA
173
131 NOTAS
133
Duas alimentações, duas culturas: um encontro
Nu ou vestido?
159 160
A UTILIZAÇÃO POLÍTICA DA METÁFORA CORPORAL
Uma sociedade de assistência
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134 BIBLIOGRAFIA
138
A ENCENAÇÃO DO CORPO
157 158
A mão, instrumento de ambigüidade
113
Sob a máscara de Galeno 114 Os limites da medicina escolástica
As boas maneiras
153
156
A cabeça, função dirigente O fígado, grande perdedor
108
A "boa mistura" e a teoria dos quatro humores Irmão corpo 111
Presença dos mortos
147
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4. O corpo como metáfora
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O doente, rejeitado e eleito
Abrir o corpo
IDADE
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O coração, corpo do delírio
A urina e o sangue
NA
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Prestígio e malignidade da velhice A DOENÇA E A MEDICINA
CORPO
O CORPO EM TODOS OS SEUS ESTADOS
A monstruosidade DA VIDA
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139 íNDICE ONOMÁSTICO
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A beleza feminina entre Eva e Maria O banho 144 Uma civilização dos gestos
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MÉDIA
Prefácio As aventuras do corpo
"Uma história mais digna desse nome do que os tímidos ensaios a que hoje nos reduzem nossos meios daria espaço às aventuras do corpo. "
Marc Bloch, A sociedade feudal (1939)
Por que o corpo na Idade Média? Porque ele constitui uma das grandes lacunas da história, um grande esquecimento do historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem corpo. Como se a vida dos homens se situasse fora do tempo e do espaço, reclusa na imobilidade presumida da espécie. Com freqüência, tratavase de pintar os poderosos, reis e santos, guerreiros e senhores e outras grandes figuras de mundos perdidos que era preciso reencontrar, engrandecer e, por vezes, até mitificar, à mercê das causas e necessidades do momento. Reduzidos a sua parte colocada à mostra, esses seres estavam despossuídos de sua carne. Seus corpos não passavam de símbolos, representações e figuras; seus atos, apenas sucessões, sacramentos, batalhas, acontecimentos. Enumerados, escritos e inscritos, como 9
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em tantos marcos que pretendem pontuar a história universal. Quanto a essa maré humana que cercava e concorria para sua glória ou seu fracasso, os nomes plebe e povo bastavam para contar sua história, seus arrebatamentos e suas atitudes, seus modos de agir e suas aflições. Michelet é uma exceção e causa escândalo ao atribuir um papel histórico importante à fístula de Luís XlV. O curioso estudo, baseado na hereditariedade, do doutor Auguste Brachet, médico e positivista, discípulo de Littré - Pathologie mentale des rois de France (1903) -, não exerceu influência sobre a historiografia. Somente o marxismo, na periferia da história, antes considerado ideologia e filosofia, quisera subverter essa concepção tradicional da historiografia, em particular com a noção da luta de classes. Dando espaço à "longa duração" e à sensibilidade, à vida material e espiritual, o movimento da história chamado de "Annales" quis promover uma história dos homens, uma história total, uma história global. Pois, se a história foi freqüentem ente escrita do ponto de vista dos vencedores, como dizia Walter Benjamin, também - denunciava Marc Bloch - foi por muito tempo despojada de seu corpo, de sua carne, de suas vísceras, de suas alegrias e desgraças. Seria preciso, portanto, dar corpo à história. E dar uma história ao corpo. Pois o corpo tem uma história. A concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas. Da ginástica e do esporte na Antigüidade greco-romana ao ascetismo monástico e ao espírito cavalheiresco da Idade Média, quanta mudança! Ora, onde há mudança no tempo, há 1
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história. A história do corpo na Idade Média é, assim, uma parte essencial de sua história global. A dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta de tensões: entre Deus e o homem, entre o homem e a mulher, entre a cidade e o campo, entre o alto e o baixo, entre a riqueza e a pobreza, entre a razão e a fé, entre a violência e a paz. Mas uma das principais tensões é aquela entre o corpo e a alma. E, ainda mais, as tensões no interior do próprio corpo. De um lado, o corpo é desprezado, condenado, humilhado. A salvação, na cristandade, passa por uma penitência corporal. No limiar da Idade Média, o papa Gregório, o Grande, qualifica o corpo de "abominável vestimenta da alma". O modelo humano da sociedade da alta Idade Média, o monge, mortifica seu corpo. O uso do cilício sobre a carne é o sinal de uma piedade superior. Abstinência e continência estão entre as virtudes mais fortes. A gula e a luxúria são os maiores pecados capitais. O pecado original, fonte da desgraça humana, que figura no Gênesis como um pecado de orgulho e um desafio do homem lançado contra Deus, torna-se na Idade Média um pecado sexual. O corpo é o grande perdedor do pecado de Adão e Eva assim revisitado. O primeiro homem e a primeira mulher são condenados ao trabalho e à dor trabalho manual ou trabalho de parto acompanhados de sofrimentos físicos - e devem ocultar a nudez de seus corpos. Dessas conseqüências corporais do pecado original a Idade Média tirou conclusões extremas. No século XIII, entretanto, a maior parte dos teólogos ressalta o valor positivo do corpo neste mundo. São Boaventura sublinha a excelência dos altares, que, em virtude do primado do movimento de baixo para cima, corresponde à orientação da alma em direção a Deus. Insiste igualmente na 1 1
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importância da condição sexuada, que colabora para a perfeição da natureza humana preservada após a ressurreição em direção ao Paraíso, não para a concepção, que não tem mais razão de ser, mas para a perfeição e a beleza dos eleitos. Mais ainda, para Santo Tomás de Aquino o prazer corporal é um bem humano indispensável que deve ser regido pela razão em prol dos prazeres superiores do espírito, as paixões sensíveis contribuindo, assim, para o dinamismo do impulso espiritual. 1 Por outro lado, o corpo é glorificado no cristianismo medieval. O acontecimento capital da história - a encarnação de Jesus - foi o resgate da humanidade pelo gesto salvador de Deus, do filho de Deus, tomando um corpo de homem. E Jesus, Deus encarnado, venceu a morte: a ressurreição de Cristo funda o dogma cristão da ressurreição dos corpos, crença desconhecida no mundo das religiões. No além, homens e mulheres reencontrarão um corpo, para sofrer no Inferno, para, graças a um corpo glorioso, usufruir licitamente do Paraíso, onde os cinco sentidos estarão em festa: a visão na plenitude da vista de Deus e da luz celeste, o olfato no perfume das flores, a audição na música dos coros angelicais, o paladar no sabor dos alimentos celestes e o tato no contato com o ar precioso do céu. Nesse "belo século XIII" do desabrochar do gótico, dois personagens emblemáticos encarnam a atitude paroxística dos cristãos em relação ao corpo. O primeiro é o rei da França Luís IX (São Luís), que humilha seu corpo até o mais alto grau que sua devoção lhe permite, de modo a fazer jus à salvação. O segundo é o grande São Francisco de Assis, seu modelo, que foi quem melhor viveu no próprio corpo a tensão que atravessa o Ocidente medieval. Asceta, ele subjugou 1 2
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seu corpo em suas mortificações. Mas, jogral de Deus, pregando a alegria e o riso, ele venerou o "irmão corpo" e foi recompensado recebendo os estigmas, marcas de identificação do sofrimento de Cristo. O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração. O cadáver, por exemplo, é ao mesmo tempo matéria pútrida repugnante, imagem da morte produzida pelo pecado original e matéria a venerar: nos cemitérios levados do exterior para o interior das cidades ou contíguos às igrejas nas aldeias, o cadáver de cada cristão e de cada cristã é incensado fora da Iiturgia dos funerais e, sobretudo, os corpos veneráveis de santos milagrosos em seus túmulos e suas relíquias corporais. Os sacramentos santificam os corpos, do batismo à extrema-unção. A eucaristia, centro do culto cristão, é o corpo e o sangue de Cristo. A comunhão é uma refeição. No Paraíso, uma tensão, uma questão, anima os teólogos medievais, cujas respostas e opiniões divergem. Os corpos dos eleitos reencontrarão a nudez da inocência primitiva ou manterão, da passagem pela história, o pudor que irá cobri-los com uma veste, certamente branca, mas dissimuladora de um resquício de vergonha? Enfim, durante a cristandade medieval, o corpo sobre a terra foi uma grande metáfora que descrevia a sociedade e as instituições, símbolo de coesão ou de conflito, de ordem ou de desordem, mas sobretudo de vida orgânica e de harmonia. Ele resistiu igualmente à sua derrocada. Se os estádios e as termas, os teatros e os circos antigos desapareciam na Idade Média, nas praças públicas, nos sonhos com o país dos prazeres, nas algazarras e nos carnavais, o corpo humano e social se diverte e se debate, à sombra da Quaresma perpétua dos 13
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clérigos e ocasional dos leigos. Antes de retomar a esse ponto e aprofundar a pesquisa, vamos traçar as grandes linhas desse esquecimento do corpo pelos historiadores. E refinemos ainda mais a proposta, do corpo ao corpo imperfeito entre os historiadores e as práticas corporais até a necessidade de aventurar-se nos territórios do corpo na Idade Média, em companhia daqueles que tentaram remediar essa situação.
A Idade Média de que se fala com freqüência aqui é a Idade Média tradicional dos séculos V ao xv. Jacques Le Goff propôs igualmente que nos interessássemos por uma Idade Média que duraria, em sua essência, até o fim do século XVIII - até a Revolução Francesa e a Revolução Industriale que incluiria o Renascimento dos séculos XVcXVI, que ele considera um Renascimento medieval.
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Introdução História de um esquecimento
o corpo foi esquecido pela história e pelos historiadores. Ora, ele foi e continua a ser o ator de um drama. Abrupta, a fórmula ignora a diversidade dos discursos e dos percursos, a pluralidade das pesquisas históricas. O enunciado da regra despreza a exceção, pois novas abordagens delinearam-se, desde os trabalhos de Norbert Elias sobre as civilizações dos costumes, as pesquisas de Marc Bloch e de Lucien Febvre sobre as mentalidades medievais ou as de Michel Foucault sobre a loucura na era clássica, o nascimento da prisão e da clínica, assim como suas últimas reflexões sobre o antigo "cuidado de si". Até então, e com a notável exceção de Jules Michelet - que, no século XIX, desejava "evocar, refazer, ressuscitar as eras" pela "ressurreição integral do passado", já sugerindo alguma coisa nessa passagem -, a história do corpo foi esquecida. A despeito de algumas descobertas salutares, como a da história da sexualidade por volta dos anos 1960 e 1970 - tributárias, por vezes até o paroxismo, da demanda social expressa pelas preocupações do presente e que irão tanto mascarar quanto marcar a história do corpo -, o modo de se vestir, de morrer, de se alimentar, de trabalhar, de morar, de habitar sua carne, de desejar, de sonhar, de 1 5
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rir ou de chorar não atingiu o estatuto de objeto digno de interesse histórico. Na disciplina histórica reinou por muito tempo a idéia de que o corpo pertencia à natureza, e não à cultura. Ora, o corpo tem uma história. Faz parte dela. E até a constitui, assim como as estruturas econômicas e sociais ou as representações mentais, das quais ele é, de certa maneira, o produto e o agente. A exceção notável de Michelet merece atenção.' Explicando a atitude singular e solitária que o levou a redigir O povo (1837), obra destinada a conhecer "a vida do povo, seus trabalhos, seus sofrimentos", Michelet confessa que os detalhes esparsos que ele reúne a fim de constituir sua empreitada não são "nem pedra, nem calhau, mas os ossos de meus pais". Exemplo de um método histórico encarnado que se propõe a ressuscitar os corpos dos homens do passado, mas também a intuição da importância do corpo através das eras, quando ele escreve, em A feiticeira (1862), que "a grande revolução que as feiticeiras realizam, o maior passo às avessas contra o espírito da Idade Média, é o que se poderia chamar de reabilitação do ventre e das funções digestivas". E observa que havia na Idade Média "partes do corpo que são nobres e outras não, aparentemente plebéias". Enquanto a escolástica se fechava na esterilidade da moral ascética, diz ele, a feiticeira, "realidade quente e fecunda", redescobria a natureza, a medicina, o corpo. Michelet vê na feiticeira, portanto, uma outra Idade Média. Não aquela que, "sob o nome de Satã, perseguia a liberdade", mas uma Idade Média em que se exibe o corpo, tanto em seus excessos como em seus sofrimentos, tanto em sua pulsão de vida como através de suas epidemias. "Falar de Satã talvez fosse uma manei-
ra de exprimir um mal-estar que se situa 'em alguma outra parte' na consciência ou na sociedade e, antes de tudo, no corpo", observa a etnógrafajeanne Favrer-Saada.' "Michelet o detecta - mais fortemente que seus sucessores, historiadores, etnógrafos e folcloristas - quando declara que as três funções da feiticeira referem-se ao corpo: 'Curar, fazer amar, trazer de volta os mortos. '" Em seu penetrante Michelet (1954), Roland Barthes insiste na dupla face desse "comedor de história", tão sensível às manifestações do corpo através da história - ao sangue, particularmente - que ele mesmo trabalhou para um corpo "doente de história". Michelet comedor de história: "Ele a 'rói', isto é, ao mesmo tempo ele a percorre e a engole. O gesto corporal que melhor dá conta dessa dupla operação é a marcha", explica Roland Barthes. Michelet doente da história: "O corpo inteiro de Michelet torna-se o produto de sua própria criação, e estabelece-se uma espécie de simbiose surpreendente entre historiador e História", prossegue. ''As náuseas, as vertigens, as opressões não decorrem apenas das estações e dos climas; é o próprio horror da história contada que as provoca: Michelet tem dores de cabeça 'históricas'. Não vejam aí nenhuma metáfora, trata-se de fato de uma dor de cabeça real: setembro de 1792, as primícias da Convenção, o Terror, tantas doenças imediatas, concretas como dores de dente. [...] Estar doente da História é não apenas constituir a História como um alimento, como um peixe sagrado, mas também como um objeto possuído; as 'dores de cabeça' históricas não têm outra finalidade a não ser constituir Michelet como devorador, sacerdote e proprietário da História." Foi só a partir de seu mergulho nas ciências sociais, contudo, que a história cedeu espaço às "aventuras do corpo"
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nas quais Marc Bloch recomendava envolver-se. Na confluência da sociologia e da antropologia, Marcel Mauss (18721950) foi o primeiro a se interessar pelas "técnicas do corpo". Em 1934, quando de sua comunicação na Sociedade de Psicologia, o autor do Essoi sur le dou declara que entende por essa expressão "os modos como os homens, sociedade por sociedade, de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos".' Partindo de considerações científicas assim como de observações empíricas e pessoais - o modo de nadar, de correr ou de cavar a terra -, Marcel Mauss faz das "técnicas do corpo" a entrada ideal para a análise do "homem total" através da história e do estudo das sociedades. "Uma espécie de revelação me ocorreu no hospital",' escreve. "Eu estava doente em Nova York. Eu me perguntava onde eu já havia visto moças andando como as minhas enfermeiras. Eu dispunha de tempo para refletir sobre isso. Descobri enfim que fora no cinema. De volta à França, observei, sobretudo em Paris, a freqüência desse andar; as moças eram francesas e caminhavam também dessa maneira. De fato, os modos de andar americano, graças ao cinema, começavam a chegar até nós. Era uma idéia que eu podia generalizar. A posição dos braços, das mãos, enquanto se caminha, forma uma idiossincrasia social, e não somente um produto de não sei quais arranjos e mecanismos puramente individuais, quase inteiramente psíquicos." A técnica é entendida aqui por Marcel Mauss como "um ato tradicional eficaz", e o corpo, como "o primeiro e mais natural instrumento do homem". Recorrendo à noção de "habitus", termo que reencontramos na escolástica medieval - que designa, segundo Tomás de Aquino, uma "disposição habitual"- e que Mauss retoma, com razão, do "psicólogo" Aristóteles, o sociólogo mostra
que essas técnicas que regem o corpo "variam sobretudo conforme as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios". O que Marcel Mauss entrevê e generaliza para a antropologia e a sociologia aplica-se igualmente à história e se dirige ao historiador. Nascimento e obstetrícia, reprodução, nutrição, esfregação, lavagem, ensaboadura ... Enumerando todas as "técnicas do corpo" do homem, Marcel Mauss mostra que o corpo é e tem uma história. "A noção de que deitar-se na cama é algo natural é completamente inexata", escreve a propósito das "técnicas do sono", evocando sobretudo o modo de dormir em pé dos massais ou sua própria experiência de sono rudimentar nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. ''A maneira de sentar-se é fundamental", observa a propósito das "técnicas do repouso". Mauss chega até a distinguir "a humanidade agachada e a humanidade sentada" e deplorar que nós, ocidentais, "não sabemos mais nos agachar", sinal, para ele, do absurdo e da inferioridade "de nossas raças, civilizações e sociedades" em relação ao resto da humanidade que continua a adotar essa posição prática e estratégica. "Enfim", diz ele a seu auditório, "é preciso saber que a dança enlaçada é um produto da civilização moderna. O que demonstra que coisas inteiramente naturais para nós são históricas." O corpo tem, portanto, uma história. E a história do corpo talvez tenha começado com essa conferência de Marcel Mauss. De qualquer modo, foi o início da antropologia histórica, a que se liga este ensaio. Em sua "Introduction à l'ouvre de Marcel Mauss", Claude Lévi-Strauss destacou muito bem o quanto o conjunto das "ciências humanas" devia ao sobrinho de Émile Durkheim e,
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sobretudo, a esse texto sobre "as técnicas do corpo", no qual é estudado "o modo como cada sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo.:" Entretanto, prossegue Lévi-Strauss, "na verdade ninguém ainda abordou essa tarefa imensa de que Mauss sublinhava a necessidade urgente, a saber, o inventário e a descrição de todos os usos que os homens, ao longo da história e ao redor do mundo, fizeram e continuam a fazer de seus corpos. Nós colecionamos os produtos da indústria humana; recolhemos os textos escritos e orais. Mas continuamos a ignorar as possibilidades tão numerosas e variadas de que é suscetível esse instrumento , entretanto universal e colocado à disposição de cada um, que é o corpo do homem; nós continuamos a ignorá-Ias, sa~vo aquelas, sempre parciais e limitadas, que entram nas eXIgências de nossas culturas particulares". A constância do esquecimento do corpo está aqui manifesta. A história do corpo é, sem cessar, rechaçada, programada, reivindicada. Mas tão pouco praticada e assumida. Entretanto, alguns anos depois das observações fundamentais de MareeI Mauss, se difundia uma das maiores contribuições à história do corpo, comA civilização dos costumes e A dinâmica do Ocidente, de Norbert Elias (1897-1990), duas partes de uma mesma obra consagrada ao estudo do "processo civilizador". 5 A obra desse sociólogo alemão refugiado do nazismo na Inglaterra só seria conhecida mais tarde." Nessa empreitada de sociologia histórica, Norbert Elias busca compreender o "processo civilizador" - que repousa, simplificando, no autocontrole da violência e na interiorização das emoções - por meio do estudo dos costumes e das "técnicas do corpo", sobretudo na Idade Média e no Renascimento. 2
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Formado em medicina, em filosofia e sobretudo na sociologia de Max Weber na República de Weimar em plena revolução psicanalítica, Norbert Elias eleva as funções corporais ao nível de objeto histórico e sociológico. E não importa quais. Redigido entre 1936 e 1937 e publicado em 1939, quando seu autor já havia fugido da Alemanha nazista, A civilização dos costumes leva a sério o que a inúmeros pesquisadores parecia fútil: os modos à mesa, as maneiras, autorizações ou proibições de assoar o nariz, de escarrar, de vomitar, de defecar, de urinar, de copular ou de lavar-se. Por meio dos manuais de civilidade, de que é exemplo o de Erasmo, no século XVI, Elias mostra, por sua vez, que essas funções corporais ditas naturais são culturais, isto é, históricas e sociais. ''A atitude do corpo, os gestos, as roupas, a expressão do rosto, todo o comportamento exterior que o tratado detalha é a expressão do homem em seu conjunto", escreve. Norbert Elias sabia: além da redução tradicional do corpo à natureza, a resistência ou a repugnância em estudar tais fenômenos, julgados indignos ou ignóbeis no seio de uma dada cultura, talvez seja uma das razões por que a história do corpo levou tanto tempo para se realizar. "Nossa consciência não está sempre a ponto de operar um tal retorno à primeira fase de nossa história", escreve. "Não temos mais o hábito da franqueza ingênua com a qual Erasmo podia deter-se em todos os domínios do comportamento humano: para nossa sensibilidade, ele ultrapassa freqüentemente o limite do tolerável. Mas este, precisamente, faz parte dos problemas que são o objeto de nosso estudo." A incorporação das restrições e das normas sociais evolui: vergonha, constrangimento e pudor têm uma história. E o "processo civilizador" do Ocidente, que visa a fazer recuar, 2 1
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interiorizar e tornar privados os gestos que os homens assimilaram de sua condição animal, passa por um corpo igualmente ator e receptor desse processo. A invenção da escarradeira, do lenço ou do garfo, por exemplo, testemunha uma codificaçâo social das "técnicas" corporais. Pouco a pouco, estas se controlam, se dissimulam, se civilizam: "Profundamente incorporados e sentidos como naturais, esses sentimentos levam à formalização das regras de conduta, que constroem um consenso em torno dos gestos que convém ou não convém fazer - gestos que contribuem, em contrapartida, para moldar a sensibilidade. "7 Até as contribuições fundamentais da "sociogênese" e da "psicogênese" formuladas por Norbert Elias - "a história de uma sociedade se reflete na história interna de cada indivíduo", escreve -, apenas O outono da Idade Média (1919), de Johan Huizinga, havia, no século XX, aproximado a disciplina histórica de uma atenção particular ao corpo. Como testemunha o capítulo dessa obra tanto científica quanto poética consagrado ao "amargo sabor da vida", no qual o historiador holandês pede ao leitor para "lembrar-se dessa receptividade, dessa facilidade de emoções, dessa propensão às lágrimas, dos retornos espirituais se se quiser conceber o amargor do gosto, a violência da cor que tinha a vida naquele tempo"." Mas será preciso aguardar Lucien Febvre (1878-1956) e, sobretudo, Marc Bloch (1886-1944), isto é, os trabalhos da "escola dos Annales", para que a intuição histórica se beneficie de uma verdadeira atenção e se transforme realmente em um programa de pesquisa. Em sua Apologia da histeria,' texto inacabado e publicado por Lucien Febvre em 1949, Marc Bloch não deseja separar o homem de suas vísceras. O cofundador da revista Annales (1929)1° chega a escrever que "o 22
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bom historiador se assemelha ao ogro da lenda. Lá onde ele fareja a carne humana, sabe que está sua caça". Pois, "por trás dos traços sensíveis da paisagem [os instrumentos ou as máquinas], por trás dos escritos mais desinteressados e das instituições aparentemente mais completamente desligadas daqueles que as estabeleceram, estão os homens que a história quer apreender". Uma constante atravessa toda sua obra: Marc Bloch se recusa a mutilar o homem de sua sensibilidade e de seu corpo. Ora, se é de fato necessário que exista "na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente, sem o que os próprios nomes de homem e sociedade não diriam nada", prossegue ele, é forçoso constatar que "o homem também mudou muito: no seu espírito e, sem dúvida, até nos mais delicados mecanismos de seu corpo. Sua atmosfera mental se transformou profundamente; sua higiene, sua alimentação, não menos". Desde seu primeiro livro, Os reis taumaturgos (1924), fonte da história das mentalidades e do corpo, dos rituais e do gestual, fundamento da antropologia política histórica em que o historiador estuda a cura milagrosa das escrófulas pelos reis da França e da Inglaterra através do simples toque das mãos, até sua Apologia da história, Marc Bloch não deixará de manifestar sua sensibilidade de historiador em relação às "técnicas do corpo". E é em La société [éodale" que ele afirma que uma história "mais digna desse nome do que os tímidos ensaios a que hoje nos reduzem nossos meios daria espaço às aventuras do corpo". Fuzilado pelos alemães em 1944 sem ter desenvolvido esse projeto, ele nos deixou, contudo, várias pistas a serem seguidas. Por acaso ou necessidade, inúmeros intelectuais "mergulhados em tempos sombrios", para retomar a expressão cara 2 3
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a Hannah Arendt, parecem ter atribuído um lugar particular ao corpo. Desde seus exílios nos Estados Unidos, quando procuram compreender "por que a humanidade, em vez de se empenhar na busca de condições verdadeiramente humanas," afunda" em uma nova forma de barbárie", os filósofos e sociólogos Max Horkheimer e Theodor Wiesengrund Adorno insistem também, em uma de suas "notas e esboços", na "importância do corpo" na história ocidental. Para os dois representantes do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt (1923-1950), "a Europa tem duas histórias: uma, bem conhecida e escrita; a outra, subterrânea. A segunda é constituída pelo destino dos instintos e das paixões humanas rechaçadas, corrompidas pela civilização", escrevem em 1944 na Dialética do esclarecimento. 12 Para os fundadores da Escola de Frankfurt, que se propõem a reler o conjunto da cultura ocidental tendo como medida o terror nazista, "o regime fascista atual, no qual tudo o que estava escondido vem à luz, revela a relação entre a história manifesta e a face obscura, negligenciada nas lendas oficiais dos Estados nacionalistas assim como pelos progressistas que os criticam". A história do corpo seria, assim, o impensado da civilização ocidental. A meio caminho do marxismo e do freudismo, Horkheimer e Adorno pensam que "o corpo explorado devia representar o mal para os inferiores, e o espírito - ao qual os outros dispunham de todo o tempo para se dedicar -, o bem supremo. Esse estado de coisas permitiu à Europa realizar suas criações culturais mais sublimes, mas o pressentimento do embuste evidente desde o início reforçou, assim como o controle exercido sobre o corpo, o amor-ódio por esse corpo que impregnou o pensamento das massas ao longo dos séculos e encontrou sua expressão autêntica na língua de Lutero". 24
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Lugar, sede e agente do "processo civilizador" em Norbert Elias, o corpo por tanto tempo reprimido é percebido por Horkheimer e Adorno como a instância de uma vingança, o processo de uma barbárie: "Nesse rebaixamento praticado pelo homem em relação a seu próprio corpo, a natureza se vinga pelo fato de o homem tê-Ia reduzido ao estado de objeto de dominação, de matéria bruta. Essa necessidade de ser cruel e de destruir resulta de um recusa orgânica de toda relação íntima entre o corpo e o espírito." É uma mesma vontade de interrogar e de criticar a racionalidade ocidental que irá conduzir Michel Foucault (19261984) a integrar o corpo em uma "microfísica dos poderes". De sua História da loucura (1961) aLa Naissance de Ia clinique (1963) até sua História da sexualidade (1976-1984) e, mais particularmente, em Vigiar e punir (1975), obra-prima sobre "o nascimento da prisão", Michel Foucault se interroga sobre a maneira como "o corpo é diretamente mergulhado em um campo político." Pois, escreve, "as relações de poder operam nele uma apreensão imediata: elas cercam-no, marcamno, educam-no, supliciam-no, submetem-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem dele sinais". Do ritual político do suplício que se estende até a segunda metade do século XVIII até a "ortopedia social" que é levada a cabo na reforma do sistema penal, quando a Europa se cobre de prisões, um "saber" do corpo, que é também um poder sobre o corpo, Foucault acompanha o movimento de uma sociedade que irá tender mais a "vigiar" do que "punir", a educar mais do que castigar. Em uma expressão que não deixa de lembrar aquela de Marcel Mauss, Michel Foucault mostra que uma "tecnologia política do corpo" difusa, irredutível apenas às instituições de coerção, se instala na 25
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Europa. "Trata-se de substituir as técnicas punitivas - que se apossam do corpo no ritual dos suplícios ou que se dirigem à alma - na história desse corpo político", escreve ele. Enquanto os teóricos da Escola de Frankfurt buscam fazer emergir "a história subterrânea" da Europa, sobretudo por meio da história do corpo, sucessivamente "objeto de atração e de repulsão", Michel Foucault se interroga sobre o lugar do corpo no quadro de um "biopoder", isto é, de um poder "cuja mais alta função a partir de então talvez não seja mais a de matar, mas a de cercar a vida de parte aparte", escreve em A vontade de saber. Em 1984, ano de sua morte, Michel Foucault dará uma seqüência inesperada a essa primeira parte da História da sexualidade, com O uso dos prazeres e O cuidado de si, em que figura sobretudo um capítulo sobre o corpo. Michel Foucault estuda aí - à luz do livro de Jackie Pigeaud sobre a doença da alma" - as concepções e as práticas do corpo a partir da medicina antiga. Mas ele conclui, e convém citar essa passagem tão esclarecedora: "Entre essas recomendações dietéticas e os preceitos que se poderão encontrar mais tarde na moral cristã e no pensamento médico, as analogias são numerosas: princípio de uma economia estrita tendo em vista a escassez; obsessão pelas infelicidades individuais ou pelas doenças coletivas que podem ser suscitadas por um desregramento da conduta sexual; necessidade de um domínio rigoroso dos desejos, de uma luta contra as imagens e de uma anulação do prazer como finalidade das relações sexuais. Essas analogias não são semelhanças distantes. Continuidades podem ser recuperadas. Algumas são indiretas e passam pela intermediação das doutrinas filosóficas: a regra do prazer que não deve ser uma finalidade transitou no cristianismo provavelmente mais por intermédio dos filó26
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sofos do que dos médicos. Mas há também continuidades diretas; o tratado de Basile d'Ancyre sobre a virgindade - seu autor passa, de resto, por ter sido médico - refere-se a considerações manifestamente médicas. Santo Agostinho serve-se de Soranus em sua polêmica contra Julien d'Ecbane. [...] Retendo-se apenas esses traços comuns, pode-se ter a impressão de que a ética sexual atribuída ao cristianismo ou mesmo ao Ocidente moderno já havia se instalado, pelo menos em relação a certos princípios essenciais, na época em que a cultura greco-rornana atingia seu ápice. Mas isso seria desconhecer as diferenças fundamentais que dizem respeito ao tipo de relação e, portanto, à forma de integração desses preceitos na experiência que o sujeito tem de si mesmo." Michel Foucault toca aqui no cerne do problema que nos propomos analisar. Ao mostrar a continuidade entre a Antigüidade e o cristianismo primitivo, ele insiste nas diferenças e nas novidades que separam a ética corporal - aqui, sexual - da religião de Estado que irá se impor na Europa medieval daquela dos tempos greco-rornanos. Impossível mencionar aqui todos os historiadores que, na esteira (ou como crítica aos) dos autores mencionados anteriormente, farejaram a carne humana como "historiadores ogros", como dizia Marc Bloch. Vários deles acompanharão essa viagem, participarão dessas "aventuras do corpo" na Idade Média. Entre eles, é preciso mencionar Ernst H. Kantorowicz (1895-1968), cujoLes deux corps du roi (1957), embora contestável, constitui um monumento no estudo da teologia medieval e ao qual iremos nos referir ao analisar as metáforas corporais da Idade Média; Mikhail Bakhtin (18951975), que, com A cultura popular na Idade Média e no 2 7
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Renascimento: O contexto de François Rabelais (1970), orientou a presente obra em direção à oposição entre Quaresma e Carnaval e forneceu preciosas análises do nascimento do riso e do cômico nas praças públicas; Georges Duby (1919-1996), com sua contribuição ao feudalismo e às mulheres (Le Chevalier, Ia femme et le prêtre, 1981; Dames du XIP siêclei, não necessita mais de explicações e Mâle Moyen Âge, por exemplo, irá alimentar nossa reflexão sobre o lugar do corpo da mulher no Ocidente medieval. Mais recentemente, Paul Veyne e Peter Brown não deixaram de trazer suas contribuições críticas para a "renúncia à carne" que marca a Antigüidade tardia e a sociedade romana. A sociologia - sobretudo com Émile Durkheim, que via o corpo como "fator de individuação"ls -, a antropologia - Maurice Godelier e Michel Panoff recentemente buscaram compreender como as sociedades representam para si mesmas "a produção do corpo humano"16 -, a filosofia, que, de Platão a Espinosa, de Diderot a Merleau-Ponry, não deixou de se interrogar sobre as relações entre a alma e o corpo, são disciplinas que a pesquisa histórica não pode ignorar. A psicanálise, igualmente, não pode ser descartada, de tal forma sua preocupação em dar razão ao corpo, do sonho ao desejo, da histeria ao prazer, foi essencial para que a história efetuasse sua guinada corporal, como testemunham, entre outros, os trabalhos de Michel de Certeau (1925-1986).17 Uma tal lista e tais dívidas relativizam a premissa de partida. Como escreveu Michel Foucault, "a história do corpo, os historiadores se lançaram sobre ela há muito tempo". Mas, a despeito desses tributos e contribuições, trata-se de continuar a reparar esse esquecimento, isto é, de devolver ao corpo na Idade Média sua razão de ser. Por que a
Idade Média? Primeiramente porque, não importa qual seja a novidade na guinada das atitudes em relação ao corpo e à sexualidade, que, como bem mostraram Michel Foucault, Paul Veyne, Aline Rousselle e Peter Brown, se manifestou no Império Romano antes mesmo da Antigüidade tardia, a Idade Média, desde o triunfo do cristianismo nos séculos IV e V,provocou quase uma revolução nos conceitos e nas práticas corporais. Em seguida, porque a Idade Média aparece, mais do que qualquer outra época - ainda que situemos seu término no final do século XV -, como a matriz de nosso presente. Muitas de nossas mentalidades e muitos de nossos comportamentos foram concebidos na Idade Média. Isto é válido também para as atitudes em relação ao corpo, ainda que as duas reviravoltas principais tenham ocorrido no século XIX (com o ressurgimento do esporte) e no século XX (no domínio da sexualidade). É de fato na Idade Média que se instala esse elemento fundamental de nossa identidade coletiva que é o cristianismo, atormentado pela questão do corpo, ao mesmo tempo glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado. É na Idade Média que vemos se formarem o Estado e a cidade "moderna", de que o corpo será uma das mais prolíficas metáforas e cujas instituições o irão modelar. Antes de ir mais adiante no que diz respeito à importância do corpo na Idade Média, é preciso lembrar, ainda uma vez, que a Idade Média não foi um tempo de trevas nem uma longa transição estagnada. Os progressos técnicos são aí decisivos: o novo arado, o sistema de rotação trienal ou ainda a grade, por exemplo, que se vê sobretudo na tapeçaria de Bayeux, marcam o início da agricultura moderna. O moinho é sem dúvida a primeira máquina do Ocidente, mas a principal fonte de energia
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continua a ser o corpo humano, tornado mais eficaz e mais produtivo. As revoluções do artesanato aproximam-se do nascimento da indústria: o ofício de tecelão se aperfeiçoa, a fabricação de tecidos se desenvolve, a construção está em expansão e surgem as primeiras minas. No plano cultural, é na Idade Média que se estabelecem o desenvolvimento urbano e as novas estruturas da cidade, centro de produção (e não somente de consumo), centro de diferenciação social (o corpo do burguês não é o corpo do artesão ou do operário), centro político (os cidadãos formam um corpo), centro cultural em que o corpo não ocupa o mesmo lugar fundamental que ocupa no campo (a Idade Média é a época de uma sociedade composta por 90% de camponeses, que executam trabalhos físicos); é também na Idade Média que se desenvolve a prática da escrita, uma outra prática com as mãos." O teatro, proibido como pagão e blasfemo, renasce em princípio nos conventos e nas igrejas, em torno de temas religiosos, como o drama pascal, o drama da crucificação e da ressurreição de Jesus Cristo ou, no jogo do Apocalipse, como evocação dos corpos massacrados pelo Anticristo e dos três cavaleiros da fome, da peste e da guerra salvos à espera do Juízo Final. Mas renasce sobretudo nas cidades a partir do século XIII. Assim, Arras viu sucederem-se "jogos" teatrais que sugerem a imagem de um festival de Avignon medieval. No século Xv, diante das catedrais, os mistérios apresentam a história santa em espetáculos corporais. O crítico russo Mikhail Bakhtin, não sem algum exagero, fez das praças públicas urbanas o lugar de renascimento do riso, das brincadeiras e das farsas improvisadas. Essa Idade Média da nossa infância, que não é nem negra nem dourada, se instaura em torno do corpo martirizado e
glorificado de Cristo. Ela cria novos heróis, santos, que são, em princípio, mártires em seus corpos. Mas, a partir do século XIII, com a Inquisição, ela também faz da tortura uma prática legítima que se aplica a todos os suspeitos de heresia, e não somente aos escravos, como na Antigüidade. Por que o corpo na Idade Média? Porque o corpo é o lugar crucial de uma das tensões geradoras da dinâmica do Ocidente. Naturalmente, o lugar central atribuído ao corpo não é uma novidade no Ocidente: basta lembrar o culto de que ele foi objeto na Grécia Antiga, por exemplo, quando seu arrebatamento e sua estetização ultrapassaram amplamente a cultura do corpo praticada na Idade Média pelos cavaleiros nas guerras e nos torneios ou pelos camponeses nos jogos rústicos. Mas, ainda que se assista na Idade Média a uma derrocada das práticas corporais, assim como à supressão ou ainda ao confinamento dos lugares do corpo da Antigüidade, o corpo se torna paradoxalmente o coração da sociedade medieval. Como sugere Jean-Claude Schmitt, grande historiador dos gestos do Ocidente medieval, é necessário defender que "a partir do século V, a questão do corpo alimentou o conjunto dos aspectos ideológicos e constitucionais da Europa medieval"." De um lado, a ideologia do cristianismo, tornado religião de Estado, reprime o corpo e de outro, com a encarnação de Deus no corpo de Cristo, faz do corpo do homem "o tabernáculo do Espírito Santo". De um lado, o clero reprime as práticas corporais, de outro, as glorifica. De um lado, a Quaresma se abate sobre a vida cotidiana do homem medieval, de outro, o Carnaval se entrega a seus exageros. Sexualidade, trabalho, sonho, formas de vestir, guerra, gesto, riso ... O corpo na Idade Média é uma fonte de debates, alguns dos quais ressurgem contemporaneamente.
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Provavelmente não é por acaso que o único fundador e representante da escola histórica chamada dos Annales que se interessou pela questão do corpo tenha sido um historiador da Idade Média, bem como um dos intelectuais mais sensíveis às convulsões do mundo contemporâneo: Marc Bloch. Este ensaio, modesta tentativa de "conceder espaço às aventuras do corpo", traz sua marca, sobretudo por esse preceito metodológico e ético que o leva a formular que "se a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado, não é menos verdade que é preciso compreender o passado através do presente". Pois o corpo é hoje a sede da metamorfose dos novos tempos. Da demiurgia genética às armas bacteriológicas, do tratamento e da abordagem das epidemias modernas às novas formas de dominação no trabalho, do sistema da moda aos novos modos de nutrição, da glorificação dos cânones corporais às bombas humanas, da liberação sexual às novas alienações, o desvio pela história do corpo na Idade Média pode permitir compreender um pouco melhor nosso tempo, tanto por suas convergências surpreendentes como por suas irredutíveis divergências.
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1. Quaresma e Carnaval:
uma dinâmica do Ocidente
Na Idade Média o corpo é, reiteremos, o lugar de um paradoxo. Por um lado, o cristianismo não cessa de reprimi-lo. "O corpo é a abominável roupa da alma", diz o papa Gregório, o Grande. Por outro, ele é glorificado, sobretudo por meio do corpo padecente de Cristo, sacralizado na Igreja, corpo místico de Cristo. "O corpo é o tabernáculo do Espírito Santo", diz Paulo. A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado original - transformado na Idade Média em pecado sexual- quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão. A vida cotidiana dos homens da Idade Média oscila entre a Quaresma e o Carnaval, um combate imortalizado por Pieter Bruegel no célebre quadro de 1559, O Combate do Carnaval e da Quaresma. De um lado, o magro, do outro, o gordo. De um lado, o jejum e a abstinência, do outro, banquetes e gula. Essa oscilação tem a ver, provavelmente, com o lugar central que o corpo ocupa no imaginário e na realidade da Idade Média. As três ordens que compõem a sociedade tripartite medieval,oratores (aqueles que rezam), bel/atores (aqueles que combatem) e laboratores (aqueles que trabalham), são em parte 3 5
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definidas por sua relação com o corpo. Os corpos sadios dos padres, que não devem ser nem mutilados nem estropiados; os corpos dos guerreiros, enobrecidos por suas proezas de guerra; os corpos dos trabalhadores, esgotados pela labuta. As relações entre a alma e o corpo são, por sua vez, dialéticas, dinâmicas, e não antagônicas É preciso lembrar: não é a Idade Média que separa a alma do corpo de maneira radical, mas, sim, a razão clássica do século XVII. Ao mesmo tempo alimentada pelas concepções de Platão, segundo as quais a alma preexiste ao corpo - filosofia que irá alimentar o "desprezo pelo corpo" dos ascetas cristãos, como Orígenes (c. 185-c. 252) -, mas ao mesmo tempo penetrada pelas teses de Aristóteles, segundo o qual "a alma é a forma do corpo", a Idade Média concebe que "cada homem se compõe, assim, de um corpo, material, criado e mortal, e de uma alma, imaterial, criada e imortal".' Corpo e alma são indissociáveis. "Ele é exterior (joris), ela é interior (intus), e se comunicam através de toda uma rede de influências e signos", resume Jean-Claude Schrnitt.! Vetor dos vícios e do pecado original, o corpo também é o vetor da salvação: "O Verbo fez-se carne", diz a Bíblia. Como um homem, Jesus sofreu. Mas o que se convencionou chamar Idade Média' foi, de início, a época da grande renúncia ao corpo.
A GRANDE RENÚNCIA
As manifestações sociais mais ostensivas, assim como as exultações mais íntimas do corpo, são amplamente reprimidas. É na Idade Média que desaparecem sobretudo as termas,
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o esporte, assim como o teatro herdado dos gregos e dos romanos; e os próprios anfiteatros, cujo nome passará dos jogos de estádio às disputas do espírito teológico no seio das universidades. Mulher diabolizada; sexualidade controlada; trabalho manual depreciado; homossexualidade no princípio condenada, depois tolerada e enfim banida; riso e gesticulação reprovados; máscaras, maquiagem e travestimentos condenados; luxúria e gula associados ... O corpo é considerado a prisão e o veneno da alma. À primeira vista, portanto, o culto do corpo da Antigüidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida social. São os Padres da Igreja que introduzem e fomentam essa grande reviravolta conceitual, com a instauração do monaquismo. "O ideal ascético" conquista o cristianismo por meio de sua influência na Igreja e se torna o pilar da sociedade monacal, que, na alta Idade Média, buscará se impor como o modelo ideal da vida cristã. Os beneditinos consideram a ascese o "instrumento de restauração da liberdade espiritual e de retorno a Deus": "É a libertação da alma da argola de ferro e da tirania do corpo." Existem dois aspectos fundamentais: "A renúncia ao prazer e a luta contra as tentações.?" Vindo do Oriente e dos Padres do Deserto, o ascetismo beneditino atenua o rigor no tratamento do corpo. Encontrase aí a palavra de ordem discretio, isto é, moderação. Diante da instauração do feudalismo, a reforma monástica do século XI e do início do século XII, sobretudo na Itália, acentuou a repressão do prazer - e, principalmente, do prazer corporal. O desprezo pelo mundo - palavra de ordem da espiritualidade monástica - é antes de tudo um desprezo pelo corpo. A reforma acentua a privação e a renúncia no domínio alimentar (jejuns e proibições de certos alimentos) e a irnpo-
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sição de sofrimentos voluntários. Os piedosos leigos (é o caso do rei da França, São Luís, no século XIII) podem se submeter a mortificações corporais comparáveis àquelas que se infligem os ascetas: o uso do cilício, a flagelação, a vigília, dormir diretamente sobre O solo ... A partir do século XII, o desenvolvimento da imitação de Cristo na devoção introduz, entre os leigos, práticas que remetem à Paixão de Cristo. Devoto de um Deus sofredor, São Luís será um Rei-Cristo, um rei sofredor. Essas práticas se manifestam freqüentemente por iniciativa dos leigos e, em particular, das confrarias de penitentes. É o caso em Perugia, em 1260, onde os leigos organizam uma procissão expiatória ao longo da qual os participantes se flagelam publicamente. A manifestação obtém um grande sucesso e se espalha pela Itália central e setentrional. A Igreja as mantém sob controle, ampliando os períodos em que a alimentação dos fiéis é submetida a restrições. A partir do século XIII, o calendário alimentar compreende abstinência de carne três vezes por semana, jejuns na Quaresma, no Advento, nas Têmporas", na vigília das festas e às sextas-feiras. Por meio do controle dos gestos, a igreja impõe ao corpo um policiamento no espaço e, por meio dos calendários de proibições, lhe impõe um policiamento no tempo.
o tabu do esperma e do sangue É no alvorecer de um tempo em que se instala, no Ocidente pelo menos, uma religião oficial e uma nova ordem - o cris"Liturgia antiga: três dias de jejum e abstinência no início de cada estação do ano. (N. do T.)
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rianismo - que se materializa a repugnância em relação aos fluidos corporais: o esperma e o sangue. Esse "mundo de guerreiros" reprova, com efeito, o sangue. A sociedade medieval é, desse ponto de vista, um mundo de paradoxos. Em um certo sentido, é possível até afirmar que a Idade Média descobriu o sangue. Em seu Michelet,5 Roland Barthes insiste nessa questão decisiva e problemática: "Séculos inteiros se acabam nos avatares de um sangue instável", escreve ele. "O século XIII na lepra, o século XIV na peste negra." Na Idade Média, o sangue é a pedra-de-toque das relações entre as duas ordens superiores da sociedade: oratores e bellatores. A característica da última categoria, a dos guerreiros, que concorre e se encontra em conflito permanente com a primeira, a dos clérigos, é de derramar sangue. Ainda que a proibição nem sempre seja respeitada, os monges, guardiães do dogma, não devem lutar. A distinção social entre os oratores e os bellatores se dá, portanto, em torno desse tabu. Razão social, estratégica e política, mas também teológica, já que o Cristo do Novo Testamento diz que não é preciso derramar sangue. Cristo é contradição e paradoxo, visto que a prática cristã é fundada sobre o sacrifício de uma vítima, santa, mas ensangüentada. De resto, a eucaristia renova sem cessar esse sacrifício: "Este é meu corpo, este é meu sangue", diz Jesus a seus discípulos durante a Ceia. A liturgia fundamental do cristianismo, missa e eucaristia, em parte um sacrifício do sangue. Assim, o sangue se torna o pilar da hierarquia social. Entre clérigos e leigos, já que a nobreza, pouco a pouco, se converte a essa concepção, essa invenção que constitui o único elemento permanente e consubstancial de seu grupo social é adotada. Desde a mais alta Idade Média, a antífona aparece: 39
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"Nasce-se
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de sangue nobre."!
O sangue como definição
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parentesco entre os nobres, porém, só surge tardiamente. É apenas a partir do século XIV que os descendentes diretos dos reis serão chamados
"príncipes
de sangue".
É só na
Espanha de fins do século XV que aparece, em oposição aos judeus, a noção de "pureza de sangue". Mas o tabu do sangue permanece. da situação de relativa inferioridade Média
é imputada
Uma das várias razões da mulher na Idade
a suas menstruações,
ainda que Anita
Gueneau-jalabert" tenha observado que a teologia medieval não retomou as proibições apontadas no Antigo Testamento a respeito das mulheres menstruadas. A transgressão da proibição eclesiástica feita aos esposos de copular durante o período da menstruação teria por conseqüência o nascimento de crianças com lepra, "a doença do século", dir-se-ia hoje, que encontra aqui sua explicação mais corrente. O esperma também é nódoa. A sexualidade, associada a partir do século XII ao tabu do sangue, é assim o ápice da depreciação corporal. O cristianismo medieval privilegia o pecado em relação à desonra. O espiritual sobrepuja o corporal. O sangue puro de Cristo é mantido a distância do sangue impuro dos homens. Ele é chamado Madalena
de Sangue Precioso,
que os anjos e Maria
teriam recolhido ao pé da cruz e do qual numero-
sas igrejas reivindicavam
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a propriedade
durante a Idade Mé-
dia, a exemplo de Bruges e, sobretudo, de Mântua. O culto do Santo Sangue se deu pelo sucesso do tema literário e cavalheiresco do Santo Graal. Entretanto, as fraternidades de sangue não existem no Ocidente medieval.
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A sexualidade, ápice da depreciação É verdade que, como lembra Jacques Rossiaud," os documentos em que se baseiam os historiadores refletem somente o pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos que, devido a seus sados no ascetismo.
votos de castidade, eram largamente verÉ verdade que os discursos dos leigos
que chegaram até nós são freqüentemente aqueles dos tribunais em que eles acusam, testemunham e se defendem, incorporando o discurso dominante com a finalidade de pleitear suas causas. Quanto aos romances, contos e fábulas, eles extraem suas histórias, farsas e intrigas do dia-a-dia do "homem medieval". Mas, como lembra Georges Duby, esses exemplos se situam "em uma representação amor e da sexualidade"."
convencional
do
Assim, é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade Média é majoritariamente
desvalorizado,
as pulsões e o dese-
jo carnal, amplamente reprimidos. O próprio casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. A cópula só é compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar. "O adúltero é também aquele apaixonado de modo demasiadamente ardente por sua mulher", repetirão os clérigos da Igreja. Prescreve-se, desse modo, o domínio do corpo; as práticas "desviantes"
são proibidas.
Na cama, a mulher deve ser passiva, o homem, ativo, mas moderadamente, sem arrebatamento. No século XII, apenas Abelardo (1079-1142), pensando talvez em sua Heloísa, chegará a dizer que a dominação masculina "termina no ato conjugal, em que homem e mulher detêm igual poder sobre o corpo 4 1
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do outro". Mas, para a maior parte dos clérigos e dos leigos, o homem é um possuidor. "O marido é proprietário do corpo de sua mulher, ele tem direto de posse sobre ela", resume Georges Duby. Toda tentativa contraceptiva
é pecado mortal para os
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uma hierarquia
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entre os comportamentos
sexuais lícitos. No mais alto grau está a virgindade, sua prática, é denominada
que, em
castidade. Depois vem a castidade
na viuvez e, enfim, a castidade no interior do casamento.
Se-
teólogos. A sodomia é uma abominação. A homossexualidade - após ter sido condenada, depois tolerada, a ponto de cons-
gundo o Decreto de Graciano, um monge de Bolonha (c. de 1140-113 O), "a religião cristã condena o adultério em ambos
tituir-se no século XII, segundo BosweU, em uma cultura "gay"
os sexos do mesmo modo", mas trata-se de um ponto de vista
no próprio seio da Igreja - torna-se, a partir do século XIII, uma perversão por vezes associada ao canibalismo. As palavras
teórico mais do que uma realidade prática: os tratados o coitus falam quase exclusivamente do homem.
fazem as coisas. E novos termos que surgem na Antigüidade tardia, depois na Idade Média, tais como caro (a carne), luxuria (a luxúria), fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cristão da ideologia anticorporal. A natureza humana designada pelo termo caro é, dessa maneira, sexualizada e abrirá as portas ao "pecado contra a natureza". O sistema será definitivamente ajustado no século XII com a instalação da reforma gregoriana. "Gregoriana" seu nome ao papa Gregório VII (1073-1083).
porque deve "Reforma"
es-
Uma regulação
sem precedentes
da guerra evitará que o
sangue seja vertido de maneira pecaminosa. tismo é posto em circulação
sobre
Mas o pragma-
diante das ameaças "bárbaras"
ou "heréticas". Assim, o cristianismo, tornado religião de Estado, instala aquilo que Santo Agostinho chama de "a guerra justa" tbellum justum), que servirá - até nossos dias, aliás para justificar tanto as causas mais nobres quanto as mais vis. Santo Agostinho dirá que a guerra é justa se ela não é provocada
"pela vontade de destruir, a crueldade
na vingan-
sencial, já que consiste em um grande aggiornamento realizado pela Igreja cristã a fim de purgar sua instituição do tráfico
ça, o espírito implacável não apaziguado,
de funções
e completadas pelo Decreto de Graciano, depois pelo canonista
eclesiásticas
(simonia)
assim como dos padres
nar e outras atitudes semelhantes",
o desejo de domi-
recomendações
retomadas
concubinários (nicolaísmo). Sobretudo, a reforma gregoriana separa os clérigos dos leigos. Os primeiros, em especial a par-
Rufino na Summa decretorum (c. de 1157). Da mesma forma, a Igreja impõe aos leigos a "cópula jus-
tir do primeiro Concílio de Latrão, deverão, no seio do novo
ta" -
modelo que é o monaquismo,
da Igreja se manifestará, na prática, por meio de manuais destinados aos confessores, os penitenciais, em que são reperto-
voca a corrupção
abster-se de verter o que pro-
da alma e que impede o espírito de descer:
o esperma e o sangue. Instala-se, um mundo de celibatários.
desse modo, uma ordem,
Quanto aos segundos, deverão se
servir de seus corpos de maneira salutar e salvadora no interior de uma sociedade aprisionada no casamento e no modelo patrimonial, monogâmico e indissolúvel. 42
a saber, o casamento. A dominação
riados os pecados penitências
da carne, associando-os
que lhes correspondem.
Worms, intitulado,
ideológica e teórica
aos castigos e às
O manual do bispo de
como outros, Decreto, e escrito no início
do século XI, perguntará ao homem casado se ele "se acasala por trás, à maneira dos cães". E irá condená-Io, se for o caso, 43
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a fazer "penitência por dez dias a pão e água". Deitar-se com o marido durante a menstruação, antes do parto ou ainda no dia do Senhor, por exemplo, levará a castigos semelhantes. Beber o esperma do marido, "a fim de que ele te ame mais graças a teus procedimentos diabólicos", prossegue esse mesmo Decreto para uso das mulheres, será passível de sete anos de penitência. Felação, sodomia, masturbação, adultério, seguramente, mas também a fornicação com os monges, são, um a um, sucessivamente condenados. Assim como os supostos fantasmas dos maridos - que ensinam muito mais sobre os delírios dos teólogos do que sobre aqueles dos penitentes colocados dessa maneira no índex -, à imagem daqueles supostos procedimentos das mulheres que, é estipulado, escondem um peixe vivo em seu sexo, "mantendo-o aí até que ele morra e, após tê-lo cozido, o dão de comer a seu marido para que ele se apaixone mais por ela[s]". Trata-se aí daquilo que Jean-Pierre Poly chamou de "os amores bárbaros". Esse controle sexual matrimonial, preconizando também a abstinência durante as quaresmas normais (Natal, Páscoa, Pentecostes) e outros períodos de jejum e de continência, influirá tanto nas mentalidades medievais quanto na demografia, bastante afetada por esses 180 ou 185 dias, aproximadamente, de liberdade sexual autorizada. No século XII, o teólogo parisiense Hugues de Saint-Victor (morto em 1141) chegará mesmo a dizer que a sexualidade conjugal decorre da fornicação: ''A concepção das crianças não se faz sem pecado", dispara. A vida dos casados revela-se de uma dificuldade sem igual, mesmo que "a espiritualização do amor conjugal", como escreve Michel Sot,10"vá salvar o corpo que a teologia iria eliminar". Amor pelo outro corpo e amor por Deus de fato se confundem em numerosos textos, a ponto mesmo de 44
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edulcorar excessivamente o Cântico dos Cânticos, obra bíblica repleta de erotismo, em um diálogo entre a humanidade pecadora e a santa e salutar divindade. Assim, segundo as Sentenças de Pierre de Lombard (c. de 1150), os maridos poderão enfim se ligar "conforme o consentimento das almas e conforme a união dos corpos". Teoria e prática
o que
ocorre, no plano da moral sexual da Idade Média, justamente com esse lugar-comum a propósito do qual Kant trouxe uma contribuição inteiramente racionalista e crítica: "Isto é bom na teoria, mas não vale nada na prática"? Antes do século XII, ainda é possível ver - o fenômeno, entretanto, permanece limitado - clérigos brigando, ainda que por mulheres e concubinas e não com elmos e armas. Da parte dos leigos, abundam rixas e combates, e os prazeres da carne - irredutíveis apenas à sexualidade - caminham bem. A aristocracia permanece o que era então quando de seu período "bárbaro", isto é, polígama. A distinção social determina as práticas corporais e a seqüência das proibições. O domínio da luta estende-se já à sexualidade. As aventuras extraconjugais brilham nas grandes famílias nobres. Do lado dos ricos, a poligamia é praticada e, na verdade, admitida. Do lado dos pobres, a monogamia instituída pela Igreja é mais respeitada. Quanto à abstinência, ela é, como lembra Jacques Rossiaud, "uma virtude muito rara" e "reservada a uma elite clerical, já que a maior parte dos clérigos seculares vive em regime de concubinato, quando não são abertamente casados". O confessor de São Luís, por exemplo, insiste no respeito escrupuloso à abstinência 45
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conjugal por parte de Luís IX, devido ao caráter excepcional desse comportamento. O último rei da França a praticar a poligamia foi Filipe Augusto, cujo reinado (1180-1223) situa-se no auge desse período decisivo. Viúvo, casado novamente com a dinamarquesa Ingeburge, ele não pode honrar sua nova mulher. Esse todopoderoso abandona então o leito conjugal, mantém uma relação fora do casamento e pratica, desse modo, a bigamia. Uma atitude inaceitável para a Igreja, que o excomunga. Ele então retoma Ingeburge da Dinamarca, sem entretanto levá-Ia para sua cama, mas encerrando-a em um convento. Ela se recusa a voltar a seu país, como lhe é imposto. Adepta de uma França que a adotou, Ingeburge será honrada, não por seu marido, mas por uma corte que lhe oferece sua deferência, sua confiança e a venera. Essa mulher fora do comum suscitará, de resto, a composição, por um artista anônimo, do mais belo saltério da Idade Média, o Saltério de Ingeburge - obra de uma força estética e teológica sem igual, em que toda a história da humanidade cristã é representada, da Criação ao fim da História, passando pela Encarnação e o Juízo Final. Por ocasião do milênio medieval, o sistema de controle sexual e corporal irá evoluir. O triunfo deste com a grande reforma gregoriana no século XII marca igualmente a época de seu relativo declínio. As práticas sexuais, herdadas do mundo e do modo de vida greco-latino ou pagão, perduram. A castidade dos monges é escarnecida em numerosas farsas populares, em que se ridicularizam os clérigos concubinários, e a virgindade voluntária ou imposta reflui. A Idade Média que está acabando oscila entre a repressão e a liberdade sexual aceita ou reencontrada. O século XIV em crise irá preferir repovoar a Terra mais do que o Céu e irá naturalizar os valo46
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res sexuais. Assim, como escreve Georges Duby, "a guerra não é mais entre o carnal e o espiritual, mas entre o natural e aquilo que o contraria". No entanto, a execração dos homossexuais ou dos "afeminados", por exemplo, se intensificará no século Xv, salvo em lugares específicos, como Florença. A tensão, a dinâmica do Ocidente, ainda é perceptível nessas oscilações. A nova ética sexual da Igreja se impõe, contudo, 110 imaginário e na realidade do Ocidente medieval. E isso por muito tempo. Talvez até em nossa era, que conheceu desde os anos 1960 uma liberação sexual sem precedentes. Raizes da repressão: a Antigüidade
tardia
A fim de compreender os pilares dessa "grande renúncia", con-
vém voltar ao início. Essa evolução fundamental da história do Ocidente, que é a recusa da sexualidade e a "renúncia à carne", se produziu, de início, sob o Império Romano, no interior daquilo que se chamou paganismo e que Michel Foucault decifrou de modo pioneiro na História da sexualidade. O historiador Paul Veyne" situa essa mudança precisamente nos últimos anos do século II da era cristã, quando do reinado do imperador Marco Aurélio, entre 180 e 200. É certo que, em todo caso, o estoicismo do imperador, banhado de ascetismo e fundado no domínio de si, sempre em luta contra a depravação das paixões, "adquire acentos pessoais". 12 O ato sexual, por exemplo, encontra-se reduzido a "uma fricção de ventres e à ejaculação de um líquido viscoso acompanhada de um espasmo"." Em seus Pensamentos, em que se dirige a si mesmo, Marco Aurélio (121-180) explica a razão de tal depreciação. O sábio deve apresentar a sua consciência uma verdade nua a fim de melhor subtrair-se a suas paixões 4 7
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depravadas: "Assim são essas imagens que vão até as próprias coisas e penetram nelas de modo a fazer ver o que elas são; e tal é o modo como é preciso proceder durante toda a vida; lá onde as coisas têm um valor demasiadamente grande, desnudáIas; ver claramente sua vulgaridade, extrair-lhes todos os detalhes de que se ornam." De algum modo, o terreno já estava bem preparado para que o cristianismo realizasse essa grande reviravolta do corpo contra si mesmo. "Os cristãos não reprimiram absolutamente nada, a coisa já estava feita", chega a declarar Paul Veyne. '~s continuidades muito estreitas que se podem constatar entre as primeiras doutrinas cristãs e a filosofia moral da Antigüidade", escreve Michel Foucault," testemunham o fato de que não é "de modo algum exato" pensar que o paganismo e o cristianismo constituem duas antípodas da teoria e da prática sexuais. A caricatura, com efeito, espreita. No paganismo dos gregos e dos romanos, o culto do corpo e a liberdade sexual. No cristianismo, a castidade, a abstinência e a busca doentia da virgindade. Os trabalhos de Paul Veyne e Michel Foucault mostram claramente que um "puritanismo da virilidade" existe antes da guinada decisiva do alto Império Romano (séculos 1-11) em direção ao cristianismo. "Entre a época de Cícero e o século dos Antoninos, * passou-se um grande acontecimento ignorado: uma metamorfose das relações sexuais e conjugais; ao sair dessa metamorfose, a moral sexual pagã se encontra idêntica à futura moral cristã do casamento", escreve Paul Veyne."
"Nome dado aos imperadores romanos que sucederam os flavianos ou a dinastia Flávia. São eles: Nerva (96-98), Trajano (98-117), Adriano (117-138), Antonino Pio (138-161), Marco Aurélio (161-180) e Cômodo (180-193). (N. do T.)
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A Idade Média dará um impulso muito mais forte a essa depreciação corporal e sexual por meio de seus ideólogos, na seqüência de Jerônimo e Agostinho, como Tomás de Aquino, assim como por seus praticantes, os monges, que irão instalar por muito tempo na sociedade o elogio e a prática, globalmente respeitada, da virgindade e da castidade.
o cristianismo,
operador da grande revirava/ta
É preciso um grande operador ideológico, assim como estruturas econômicas, sociais e mentais correspondentes, para que a reviravolta se opere. O agente dessa reviravolta, dessa recusa, é o cristianismo. Assim, a religião cristã institucionalizada introduz uma grande novidade no Ocidente: a transformação do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalência, assim como nenhum termo dessa equação figura no Antigo Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho. É a vontade de saber que conduz o primeiro homem e a primeira mulher, tentados pelo demônio, a comerem a maçã da árvore do conhecimento. A despossuir Deus, de algum modo, de um de seus atributos mais determinantes. A carne permanece fora dessa queda. "O Verbo se fez carne", pode-se ler no Evangelho de João (I, 14). A carne é assim pouco suspeita, já que foi resgatada pelo próprio Jesus, que, no episódio da Santa Ceia, assegura a vida eterna àqueles que comerem de sua carne e beberem de seu sangue (o pão e o vinho). Certamente há várias premissas de uma diabolização do sexo e da mulher em Paulo, provavelmente tributária dos tor49
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volúpias impudicas [...], mas investi-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo e não busqueis contentar a carne em sua avidez." Antes de sua conversão, Agostinho já havia pressentido que "a lei do pecado estava em (seus) membros". Ei-lo confortado, assim como sua mãe, banhada em alegria por esse homem novo que agora se aproxima dela e da Igreja. "O homem novo" do cristianismo tomará assim o caminho de Agostinho, longe do barulho das tavernas, do furor do desejo e dos tormentos da carne. Dessa forma, a condenação da luxúria (luxuria) será acompanhada freqüentem ente da condenação da gula (gula) e do excesso de bebida e de alimentação (crapula,
mentos de sua vida pessoal. "Se vivêsseis na carne, morreríeis" (Romanos, VIII, 3-13) pois "é o espírito que vivifica" (VI, 63), declara. A carne "não serve para nada", já que Deus colocou à prova seu próprio filho ao lhe dar um corpo humano, "demasiado humano", para retomar a fórmula de Nietzsche. A condenação do "pecado da carne" é assim conduzida por uma hábil reviravolta ideológica. Paulo, levado por sua crença na proximidade do fim do mundo, trará uma nova pedra ao edifício doutrinal anti-sexual: "Eu vos digo, irmãos: o tempo é curto. Que a partir de agora aqueles que têm mulher vivam como se não a tivessem mais", declara em sua epístola aos coríntios (I Coríntios, VII, 29). A fornicação, que aparece no Novo Testamento, a concupiscência de que falam os Padres da Igreja e a luxúria que condensa todas as ofensas feitas a Deus no sistema dos "pecados capitais", estabelecidos entre os séculos V e XII, tornamse pouco a pouco a tríade da reprovação sexual dos clérigos. Se São Paulo não faz mais do que esboçar essa grande reviravolta, Santo Agostinho (354-430), testemunha e desbravador da nova ética sexual do cristianismo na Antigüidade tardia, lhe fornece sua legitimidade existencial e intelectual. O autor das Confissões e de A cidade de Deus é um convertido, cuja história é bem conhecida. Após anos de prazer, de errância e de transgressão na África romana do século IV, entre Tagasta e "Cartago de Vênus", esse filho da piedosa Mônica (e de Patricius, não nos esqueçamos), esse jovem bolsista tornado um administrador arrivista se volta para a religião cristã quando de uma experiência mística em um jardim de Milão, onde, doente e torturado, ouve uma voz lhe dizer: "Tome, leia." O que ele lê é o livro do Apóstolo que escreve: "Não vivais nos festins, nos excessos de vinho, nem nas
A transformação do pecado original em pecado sexual é tornada possível por meio de um sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e deformações de todos os gêneros. A interpretação tradicional afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhecimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se sem grandes dificuldades. "Não lhes bastou delirar em relação aos gregos, eles também o fizeram em relação aos próprios Profetas. O que prova bem claramente que eles não viram a divindade da Escritura", sublinha Espinosa a propósito desses oradores da Igreja que monopolizaram a religião de Cristo e "dos quais nenhum tinha o desejo de instruir o povo, mas de embriagá-lo de admiração, de repreender publicamente os dissidentes, de ensinar apenas coisas novas, insólitas, próprias para encher o vulgo de espanto"." A influência de San-
o
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gastrimargia) .
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to Agostinho, sobretudo, será grande. Com a notável exceção de Abelardo e de seus discípulos, os teólogos e os filósofos reconhecerão que o pecado original é ligado ao pecado sexual, por intermédio da concupiscência. Ao fim de uma longa caminhada, ao preço de ásperas lutas ideológicas e de condicionamentos controle
corporal
práticos, o sistema de
e sexual instala-se,
século XII. Uma prática minoritária
portanto,
a partir do
estende-se à maioria dos
homens e das mulheres urbanos da Idade Média. E é a mulher que irá pagar o tributo mais pesado por isso. Por muitos e muitos anos.
doutrinal
sim, a subordinação também corporal.
do corpo parece, portanto,
total." As-
da mulher possui uma raiz espiritual, mas ''A mulher é fraca", observa Hildegarde
de
Bingen no século XII, "ela vê no homem aquilo que pode lhe dar força, assim como a lua recebe sua força do sol. Razão pela qual ela é submetida ao homem e deve sempre estar pronta para servi-lo." Segunda e secundária,
a mulher não é nem
o equilíbrio nem a completude do homem. Em um mundo de ordem e de homens necessariamente hierarquizado, "o homem está em cima, a mulher embaixo", Klapisch-Zuber." O corpus da interpretação
gem, à nossa semelhança", 1,26-27),
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isto é, "homem e mulher" (Gênesis,
os Padres e os clérigos preferem a versão da mode-
lagem divina de Eva a partir da costela de Adão (Gênesis, 11, 21-24). Da criação dos corpos nasce, portanto, a desigualdade original da mulher. Uma parte da teologia medieval segue o passo de Agostinho, que faz remontar a submissão da mulher antes da Queda. O ser humano é portanto cindido: parte superior (a razão e o espírito) está do lado masculino parte inferior
(o corpo, a carne), do lado feminino.
As
a a ,
Con-
fissões de Agostinho são a narrativa de uma conversão, por meio da qual o futuro bispo de Hipona conta, igualmente, como a mulher em geral - e a sua em particular - foi um
A mulher, subordinada A derrota
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escreve Christiane
dos textos bíblicos dos Padres
da Igreja dos séculos IV e V (como Ambrósio, Jerônimo, João Crisóstomo e Agostinho) é incansavelmente retomado e repetido na Idade Média. Assim, a primeira versão da Criação presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais desfavorável à mulher. Ao Deus criou "o homem à nossa ima-
obstáculo à sua nova vida de homem da Igreja. Oito séculos mais tarde, Tomás de Aquino (c. 1224-1274) se afastará em parte do caminho traçado por Agostinho, porém sem fazer com que a mulher entre no caminho da liberdade e da igualdade. Embebido do pensamento de Aristóteles (384-322
a.Ci), para quem "a alma é a forma do corpo", To-
más de Aquino recusa e refuta o argumento
dos dois níveis de
criação de Agostinho. Alma e corpo, homem e mulher foram criados ao mesmo tempo. Assim, masculino e feminino são , ambos, a sede da alma divina. Entretanto, o homem dá provas de mais acuidade na razão. E sua semente é a única que, durante a copulação, eterniza o gênero humano e recebe a bênção divina. A imperfeição do corpo da mulher, presente na obra de Aristóteles e na de seu leitor medieval Tomás de Aquino, explica as raízes ideológicas da inferioridade feminina, que, de original, se torna natural e corporal. Tomás de Aquino, entretanto,
mantém
uma igualdade
teórica entre o
homem e a mulher, observando que, se Deus quisesse fazer da mulher um ser superior ao homem, ele a teria criado de
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sua cabeça e, se decidisse fazer dela um ser inferior, ele a teria criado de seus pés. Ora, ele a criou do meio de seu corpo para ressaltar sua igualdade. Também é preciso destacar que a regulamentação do casamento pela Igreja irá exigir o consentimento mútuo dos cônjuges e, embora essa prescrição nem sempre tenha sido respeitada, ela marca um avanço no estatuto da mulher. Do mesmo modo, se é possível afirmar que o grande impulso do culto da Virgem tem repercussões sobre uma promoção da mulher, a exaltação de uma figura feminina divina só pode reforçar uma certa dignidade da mulher, em particular da mãe e, através de Santa Ana, da avó. A influência de Aristóteles sobre os teólogos da Idade Média não traz benefício à condição feminina. Assim, depois dele, a mulher é considerada "um macho defeituoso". Essa fraqueza psíquica tem "efeitos diretos sobre seu entendimento e sua vontade", ela "explica a incontinência que marca seu comportamento; ela influi em sua alma e em sua capacidade de elevar-se à compreensão do divino", escreve Christiane Klapisch-Zuber. O homem será, por conseqüência, o guia dessa pecadora. E as mulheres, que não possuíam voz na história, vão oscilar entre "Eva e Maria, pecadora e redentora, megera conjugal e dama cortês". 19 A mulher irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sexual. Pálido reflexo dos homens, a ponto de Tomás de Aquino, que às vezes segue o pensamento comum, dizer que "a imagem de Deus se verifica no homem de uma maneira que não se verifica na mulher", ela é subtraída até mesmo em sua natureza biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação apenas ao sexo masculino. "Essa Idade Média é masculina, deci-
Se a dor (dolor) das mulheres depende da teologia e da Bíblia, o dolorismo conhecerá, por sua identificação com o Cristo
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didamente", escreve Georges Duby. "Pois todos os discursos que chegam até mim e sobre os quais me informo são feitos por homens, convencidos da superioridade de seu sexo. É apenas a eles que ouço. No entanto, eu os escuto falando antes de tudo de seu desejo e, por conseqüência, das mulheres. Eles têm medo delas e, para se afirmarem, desprezamnas." Boa esposa e boa mãe, as homenagens que o homem rende à mulher assemelham-se, por vezes, a desgraças, se levarmos em conta o vocabulário corrente entre os operários e os artesãos do século Xv, que falam de "cavalgar", "justar", "lavrar" ou "roissier" (bater e espancar) as mulheres. "O homem se dirige à mulher como se dirige à latrina: para satisfazer uma necessidade"," resume Jacques Rossiaud. Ao mesmo tempo, os confessores tentam refrear as pulsões masculinas por meio das proibições, mas também controlando a prostituição nos bordéis e nos banhos públicos, esses lugares de exutório. As prostitutas, cuja "condição é vergonhosa", e "não aquilo que elas obtêm", escreve Tomás de Aquino, encontram-se, pois, em grandes ou pequenos bordéis comunais ou privados, banhos públicos e outros lupanares, vindas dos arredores da cidade, onde exercem "o mais antigo ofício do mundo", freqüentemente após terem sido violadas por grupos de jovens que buscam, por sua vez, exercer e aguçar sua virilidade. Relegadas, mas igualmente reguladoras da sociedade, as prostitutas vivem em seus corpos as tensões da sociedade medieval. Estigmas e flagelação
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sofredor, uma breve e relativa expansão na Idade Média, por meio dos estigmas e das flagelações. Os estigmas são as marcas das feridas de Cristo durante a Paixão. São Paulo aplica o termo às marcas físicas dos golpes que sofreu por amor ao Senhor (Epístola aos gálatas, 6, 17), e São Jerônimo lhes atribui um sentido ascético. Eles darão lugar, no século XIII, a um fenômeno novo, voluntário ou involuntário. Uma das primeiras estigmatizações conhecidas é a da beguina Maria d'Oignies (morta em 1213). A mais célebre, que causou sensação e se inscreveu espetacularmente na história religiosa, é a de Francisco de Assis, ocorrida em 1224, dois anos antes de sua morte. Dos estigmas da beguina Elisabete de Spalbeck (morta em 1270) jorrava sangue às sextas-feiras e ela trazia na cabeça marcas de picadas de espinhos. Os estigmas de Santa Catarina de Sena (morta em 1380), recebidos durante um êxtase, em 1375, eram invisíveis e se manifestavam por meio de violentas dores internas. Os estigmas são um aspecto do movimento crescente de conformidade psicológica com o Cristo sofredor que tende, a partir do século XIII, a se tornar um selo de santidade, um signo da efusão do Espírito Santo. Mas surgem apenas em um pequeno número e têm uma influência reduzida sobre os critérios de santidade, que permanecem sobretudo no nível da devoção e do comportamento e que se encontram em especial entre as mulheres. Tendo também como pano de fundo a invocação da Paixão de Cristo, a flagelação na Idade Média quase sempre encontra hostilidade por parte da Igreja. Manifestações leigas e populares, os movimentos de flagelação eram uma espécie de peregrinação executada carregando-se uma cruz ou um estandarte, pés descalços, o corpo semidesnudo, em meio a aclamações e 56
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cantos sagrados. Essas manifestações eram acompanhadas de um rito penitencial por excelência, a autoflagelação. Também aconteciam como movimentos pela paz. Esses rituais produziam-se sobretudo em períodos de crise social e religiosa, em particular sob a influência dos movimentos milenaristas, especialmente, no século XIII, aqueles decorrentes das teorias de Gioacchino da Flore. A primeira grande crise de flagelação aconteceu em 1260 em Perugia e expandiu-se em direção ao norte da Itália e para além dos Alpes, na Provence, até a Alsácia, Alemanha, Hungria, Boêmia e Polônia. Uma outra grande crise ocorreu em 1349, provocada pela peste negra, em especial na Alemanha e nos Países Baixos. Os flagelantes se entregavam a graves atos de violência, com freqüência anticlericais e anti-semitas. A flagelação, que não havia se introduzido entre as práticas ascéticas monásticas do Ocidente, mostra por meio de seu relativo fracasso que o exemplo do Cristo sofrendo não resultava em uma martirização importante do corpo. Este permanecia objeto de respeito no Ocidente, senão de outros prazeres, como o sadomasoquismo.
o magro e o gordo A grande recusa do corpo não é, entretanto, redutível à sexualidade ou ao sofrimento voluntário de uma minoria atuante de religiosos. Vimos que a luxúria passa a ser cada vez mais associada àgula, termo latino cuja tradução habitual, em francês "gourmandise", não é inteiramente satisfatória, já que as recomendações da Igreja se dirigem tanto à boca" quanto aos "Sentldo figurado de goela, que é o significado primário de gula, em latim. (N. do T.)
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prazeres alimentares. Pecados da carne e pecados da boca caminham de mãos dadas. Assim, a embriaguez é reprimida, por um lado, porque as conversões ao cristianismo se davam sobretudo entre os camponeses e os "bárbaros", muito apreciadores de bebedeiras, que era o caso de conter; por outro, ., e, d a "b oa carne " e d"o sexo " porque os peca d os d a carne, Isto se encontram freqüentemente associados à embriaguez. A indigestão é igualmente associada ao pecado. A abstinência e o jejum dão o ritmo, portanto, do "homem medieval". O domínio do corpo é acompanhado do domínio do tempo, que, como o espaço, é uma categoria fundamental da sociedade hierarquizada da Idade Média. Esse novo mundo, esse novo modo de inscrição corporal, concentra-se na Quaresma, esses 40 dias de penitência e de jejum que, desde sua difusão no século IV, precedem e preparam a festa da Páscoa, estendendo-se depois ao Natal e ao Pentecostes. Nas representações sociais, a Terça-Feira Gorda é o dia de Carnaval pois precede a Quarta-Feira de Cinzas, que inaugura o período de jejum. O Carnaval chega a ser personificado e se torna um personagem popular, assim como seu contrário, a "velha Quaresma" e seu cortejo de penitentes. Durante os períodos de quaresma, é praticada a abstinência, ainda que o consumo de peixes ou laticínios, por exemplo, seja permitido. Outros períodos, mais reduzidos ou fragmentados, acompanham o período quaresmal ou tomam seu lugar. De um certo ponto de vista, pode-se considerar que, para os clérigos, a existência se resume a uma quaresma perpétua. Numerosos conventos, e também aldeias, constroem, então, açudes artificiais nas proximidades, que ainda se podem observar hoje. Charcos e açudes constituem assim um verda-
A Igreja consegue, portanto, abafar o paganismo. Mas aquilo que os doutrinários cristãos consideram "a anticivilização" sobrevive e renasce. Os florescimentos populares do corpo seguem, de fato, paralelos às flagelações e mortificações de certos adeptos. "Não se sabe o que pode o corpo", escreverá Espinosa em sua Ética.22 Do ponto de vista histórico, pode-se ao menos constatar que ele demonstra repugnância à sua reprovação, mesmo sob o jugo e o controle ideológico mais poderoso do momento. Disseminadas sobretudo no meio rural- que constitui, é preciso lembrar, 90% do território e da população da Europa
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deiro reservatório de peixes de água doce para os dias de jejum e para a vida de todos os dias. O jejum é relativamente respeitado mesmo entre os leigos, como mostrou Jean-Louis Flandrin-' em seus trabalhos, antes dos quais era comum afirmar-se que os períodos de quaresma não eram observados. Jean-Louis Flandrin mostra que - ainda que os dados que ele analisa digam respeito majoritariamente às categorias favoreci das da sociedade - a curva dos nascimentos declina nove meses após os períodos de jejum, o que prova o respeito às restrições. Pois a Igreja proibia muito estritamente a prática do sexo durante os dias de penitência. Gordo oposto ao magro, Carnaval que se empanturra contra Quaresma que jejua, a tensão que atravessa o corpo medieval é, portanto, exatamente aquela ilustrada por Pieter Bruegel em O Combate do Carnaval e da Quaresma.
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-, as práticas pagãs perduram e se enriquecem. Às vezes, os devaneios dizem mais sobre isso do que as práticas. Assim, o país de Cocanha, uma das raras utopias da Idade Média e que aparece muito precisamente em um fabliau* de 1250, descreve um território imaginário onde não se trabalha, onde tudo é luxo e volúpia. Os campos de verduras prontas para serem consumidas, de sebes formadas de salsichas que, apenas colhidas e devoradas, brotam em seguida, viram a cabeça dos habitantes desse país imaginário. As cotovias já caem inteiramente assadas nas bocas dos felizes mortais e a semana é composta de quatro quintas-feiras, esse dia de repouso legado a nossas escolas, antes que a quarta-feira se tornasse o dia de folga nos pátios escolares, como hoje em dia. Banquetes em oposição ao corpo flagelado, desregramento contra ascese, as festas do Carnaval burlesco, com essas danças, as caroles, consideradas obscenas pelo clero, opõem-se à Quaresma dos jejuns. A civilização do Ocidente medieval é, no nível do símbolo, o fruto da tensão entre Quaresma e Carnaval. Quaresma, já o vimos, é esse período de jejum originário da nova religião, o cristianismo. E a cultura dessa anticivilização não encontra melhor maneira para se exprimir do que através do Carnaval, que se instala verdadeiramente no século XII, isto é, em pleno triunfo da reforma gregoriana, para cul-
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minar, no século XIII, no próprio coração das cidades. O Carnaval é banquete, a exaltação do burlesco, da boa carne. Apesar dos trabalhos sobre o mundo rural, ainda faltam informações sobre esses corpos liberados nessas intermináveis festas da boca e da carne. Provavelmente porque o aspecto sexual não havia adquirido a importância que tem no Carnaval do Rio, no Brasil, por exemplo. O tempo de Dionísio retorna, contudo, no Carnaval. Na linha dos trabalhos de etnólogos fundadores, Emmanuel Le Roy Ladurie mostrou claramente corno o Carnaval de Rornans," essa grande festa de inverno do século XIv, que ocorre da festa da Candelária até a Quarta-Feira de Cinzas, é, para os habitantes dessa pequena cidade do Dauphiné", a ocasião de "enterrar suas vidas de pagãos", de "entregar-se a uma última intemperança paganizante antes de penetrar nos tempos de ascese" fixados pela Igreja; isto é, antes da "entrada na triste Quaresma". Tudo o que a Igreja reprime se exprime ao longo desse período de ranchos de mascarados, em que os valores se invertem e em que se pratica a sátira. "O corpo digerindo é rei", prossegue Emmanuel Le Roy Ladurie, à imagem do Bonhomme, esse personagem típico do país de Cocanha, que distribui as mais apetitosas iguarias em meio à alegria geral, antes de ser fustigado, e depois morto, à véspera do início do período de jejum.
Serpente de pedra contra dragão de vime "Palavra de origem picarda que equivale ao frâncico (dialeto da região da fiede-France) [able, "fábula". Gênero literário de difícil definição, produzido entre 1159 e 1340 sobretudo no norte da França, de onde provêm 38 dos 72 [abliaux cuja origem pode ser determinada. Pode ser um conto em versos para rir (Ioseph Bédier), um texto breve, de duzentos a quinhentos versos, que se fecha com uma lição moral (Dominique Boutet) e que valoriza o maravilhoso (Rosanna Brusegan). Cf. Hilário Franco Júnior, Cocanha: a história de um país imaginário, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. (N. do T.)
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O crítico russo Mikhail Bakhtin, em seu famoso estudo sobre Rabelais," mostrou de maneira interessante que a Quaresma "Antiga província da França, que corresponde atualmente aos departamentos de Isêre, Hutes-Alpes e Drôme. (N. do T.)
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deriva da tristeza medieval, enquanto o Carnaval está do lado do riso e da Renascença. Essa abordagem é, no entanto, caricatural. Por um lado, porque a Renascença enquanto tal não existiu." Por outro, porque a oposição entre Quaresma e Carnaval já está presente na Idade Média, como prova a história da fachada de Notre-Darne, na qual é conveniente deter-se." Pois essa fachada é dupla. Uma parte é devotada a São Marcelo; a outra, a São Dionísio. São Marcelo (morto em 436) deveria ter exercido o papel de primeiro bispo da cidade de Paris, o de santo protetor. De sua origem humilde até sua popular santidade, a história de sua surpreendente ascensão social e episcopal é contada por Venance Fortunat, seu biógrafo e hagiógrafo. Como o recrutamento das autoridades religiosas na alta Idade Média se fazia sobretudo no seio da aristocracia, o de São Marcelo, portanto, beira o milagre. Uma série de milagres, precisamente, vai permitir a esse santo literalmente incomparável conquistar o coração dos parisienses. O mais determinante entre eles será o de expulsar um monstro uma serpente-dragão - que semeia o pânico nos arredores de Paris, a futura capital dos Capetos, mais exatamente no vale do Biêvre, que segue o atual bulevar Saint-Marcel, lugar do milagre. Diante do povo reunido, São Marcelo de fato expulsa esse animal, considerado pelos clérigos O símbolo do diabo e de Satã, assim como o indicam os textos do Gênesis. Esse ato é o ápice de sua carreira taumatúrgica e social. A despeito de devoções locais por outros Marcelo (como pelo santo papa Marcelo, martirizado sob Maxêncio em 309, ou por São Marcelo de Chalon), o culto de "São Marcelo caçador de dragão" parecia portanto bem estabelecido. Entre os séculos X e XII, suas relíquias chegam a ser
transportadas para Notre-Dame de Paris onde ficaram junto às de Santa Genoveva. Ora, no curso da história, São Marcelo será destronado por um outro santo protetor: São Dionísio, em honra do qual () rei Dagoberto (morto em 638) fez construir uma igreja abacial, a atual basílica de Saint-Denis, que se tornará a sede do culto da monarquia dos Capetos e da ideologia nacionalfrancesa. Assim, o culto de São Marcelo refluiu principalmente em torno do século XIII, até ser completamente esquecido. E seu dragão foi o objeto de uma infelicidade e de uma reinterpretação que podem ser observadas na fachada de NotreDame. Com efeito, o São Marcelo esculpido em 1270 na porta de Sainte-Anne mata o dragão enterrando seu cajado na garganta do animal, enquanto no milagre contado por Fortunat o protetor de Paris não faz mais do que expulsá-lo da cidade. A explicação dessa baixa, desse refluxo, liga-se inteiramente à tensão entre a Quaresma e o Carnaval que atravessa a longa Idade Média. Pois o dragão merovíngio de São Marcelo talvez não seja o símbolo diabólico forjado pela Igreja. Com efeito, o sentido da vitória do santo sobre o dragão - fenômeno lendário real naquilo que revela das mentalidades coletivas - é antes social, popular, psicológico e material do que espiritual. O santo matador de répteis vence o inimigo público, não o mal evangélico. Através desse gesto, ele veste o manto de chefe de uma comunidade urbana - não seus hábitos de bispo. Ele é o caçador, não o pastor. E, mais ainda, domador antes que matador. Pois São Marcelo não mata o animal, assim como São Jorge derruba o dragão, mas doma-o, passando sua estola em torno de sua nuca, como nos informa sua biografia. Personificação das forças fertilizantes e destrutivas da água no Egito, símbolo do sol na China, o
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dragão comporta numerosas ambivalências, como demonstra seu estudo antropológico. A serpente-dragão de São Marcelo aparece antes como aquela do folclore renascente. Louis Dumont mostrou (La Tarasque, 1951) que uma domesticação semelhante de um monstro se encontra no século XV na procissão da tarasca, em Tarascon. Pois a instauração do Carnaval em Paris no século XII irá se fazer em torno das procissões de rogação, essas liturgias públicas que visavam a afastar um flagelo, durante as quais o povo jovial lança frutas e doces na garganta de uma grande serpente de vime. Essa serpente é a serpente de São Marcelo, mas bem distante da representação clerical de Notre-Dame, Trata-se de ritos folclóricos, de manifestações da cultura pagã que perduram. Essas procissões apóiam-se na lembrança de São Marcelo para evocar, diante da Quaresma, a figura contestatória da civilização: o Carnaval. Serpente de pedra da Igreja contra o dragão de vime popular: o combate da Quaresma e do Carnaval constitui, de parte a parte, a realidade e o imaginário do Ocidente medieval. O trabalho entre castigo e criação A tensão entre o corpo glorificado e o corpo reprimido estende-se a todos os domínios da vida social, como o ilustra o lugar reservado ao trabalho manual, sucessivamente, alternativamente e por vezes simultaneamente desprezado e valorizado. A história lingüística da Idade Média é testemunha disso. As duas palavras que designam o trabalho são opus e labor. Opus (a obra) é o trabalho criador, o vocábulo do Gênesis que define o trabalho divino, o ato de criar o mundo e o homem à sua imagem. Desse termo derivará operari (criar
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uma obra), operarius (aquele que cria) e que dará mais tarde no francês "ouvrier", isto é, o trabalhador da era industrial. Às palavras laudatórias "obra-prima" e "mestre-de-obras" se oporá o pejorativo "mão-de-obra", voltado para os mecanismos do maquinário. Labor (a pena), o labor, o trabalho laborioso, está do lado do erro e da penitência. Convém acrescentar o termo e a noção de ars (arte), que se declina sobretudo com o de artiflex (artesão), positivo mas limitado ao domínio técnico. Em sua acepção moderna, a palavra "trabalho" só se imporá verdadeiramente em francês nos séculos XVI e XVII. Sua origem provém do baixo latim tripalium, o nome da máquina de três pés destinada a ferrar os animais indóceis, tornada a maneira corrente de designar um instrumento de tortura. Os ofícios da Idade Média não escaparão a esse duplo movimento de valorização e desvalorização. Le livre des métiers ["O livro dos ofícios"], que o preboste real parisiense Étienne Boilleau redige por volta de 1268, enumera perto de 130. Mas o tabu do sexo, do sangue e do dinheiro separa os ofícios autorizados das profissões ilícitas. Prostitutas, médicos e comerciantes pagarão a conta da condenação dessas várias modalidades de corrupção. Os textos bíblicos fornecem inúmeros exemplos de reprovação do trabalho, embora com nuanças notáveis. Antes da Queda, "o senhor tomou, pois, o homem, e o colocou no paraíso da felicidade, para que ele o cultivasse e o conservasse", diz o Gênesis (lI, 15). Depois o homem pecador será castigado pelo trabalho: "Tu ganharás teu pão com o suor de teu rosto" (111,17-19). Assim, "o Senhor expulsou o homem do paraíso da felicidade para que ele trabalhasse a terra da qual havia sido criado" (I1I,23), estabelecendo a partir daí um paralelo entre o traba65
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lho terrestre e o trabalho paradisíaco. Ao lado do homem condenado ao trabalho manual, a mulher do Gênesis dará à luz "na dor" (III, 16-19), será condenada aos trabalhos do parto. Nas maternidades de hoje, pode-se observar que as salas de parto às vezes ainda são chamadas de "salas de trabalho", sobrevivência dessa queda original cristã reinterpretada na época medieval. Na alta Idade Média, isto é, do século V ao XI, o trabalho é considerado uma penitência, uma conseqüência do pecado original. O mundo greco-rornano, que separa os escravos trabalhadores e os mestres que se entregam ao otium, isto é, ao lazer e ao ócio -, otium cum dignitate, ócio louvável, como o será, diante da voga do trabalho manual, o ócio monástico -, pesa sobre os comportamentos da sociedade feudal, onde os eclesiásticos de nível superior (bispos, cônegos, abades) são, em sua maior parte, oriundos da aristocracia. As práticas dos "bárbaros" e dos grupos guerreiros que vivem na abundância do butim subtraído das populações pilhadas influem igualmente na desvalorização social do trabalho manual, assim como o primado da vida contemplativa na civilização judaico-cristã. Até o século XII, os monges são essencialmente beneditinos. De fato, a Regra de São Bento fixa a prática do trabalho manual nos mosteiros, mas apenas enquanto penitência, obediência à lei expiatória imposta ao homem quando da queda do jardim do Éden. Os laboratores são os camponeses (agricolae, rustici), os trabalhadores do campo. A partir do século VIII, os termos originários da palavra labor, como labores, que designam mais os frutos do trabalho do que castigo, são os signos tangíveis de uma valorização do trabalho agrícola e rural. O trabalho oscila, portanto, entre seu caráter nobre e o 66
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ignóbil, isto é, segundo a etimologia, "não nobre". A tensão se manifesta entre a espiritualidade e a atividade, como testemunha, nos textos dos Evangelhos, a figura de Maria, a contemplativa, oposta à de Marta, a trabalhadora. As ordens monásticas chegam até a criar um tipo de sociedade cindida entre os monges em tempo integral, voltados para a vida espiritual, e os irmãos leigos ou convertidos, religiosos de segunda ordem que asseguram a subsistência do grupo através do trabalho manual. De resto, há sempre irmãos leigos ou convertidos nas Ordens Mendicantes de hoje em dia, verdadeiro desafio para numerosos franciscanos e dominicanos contemporâneos que se entregam atualmente a essa delicada questão, a qual perpetua uma espécie de "luta de classes" no interior do catolicismo. Um compromisso semântico já foi encontrado: o abandono do termo "lai", que é a forma medieval de "leigo", em favor da expressão "monge cooperador", considerado mais conveniente neste início de século XXI. A partir do século XI e até o século XIII, ocorre uma revolução mental: o trabalho é valorizado, promovido, justificado. Para o melhor e para o pior, aliás. De um lado, os vagabundos são expulsos ou condenados a trabalhos forçados. De outro, os ofícios vis ou ilícitos até então proibidos aos clérigos e desaconselhados aos leigos são reabilitados, como aqueles que exigem derramamento de sangue, como o de açougueiro ou cirurgião ou ainda o de limpar a imundície, como os tintureiros, assim como aqueles destinados a acolher os estrangeiros, a exemplo dos albergueiros, suspeitos igualmente de freqüentarem as prostitutas. Somente a prostituição, cúmulo da concupiscência, e o jogral, arquétipo de uma prática gestual assimilada à possessão demoníaca, permanecerão, em princípio, proibidas no século XIII. 6 7
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A Renascença do século XII, que, além do retorno aos clássicos da Antigüidade, se funda sobre a razão e faz dos contemporâneos "modernos" inovadores e criadores (o impulso escolástico que se manifestará nas universidades vem daí), apóia-se na concepção do homem criado à imagem de Deus. O homem que trabalha é concebido antes como um cooperador do divino, um "homem-Deus", do que como um pecador. Cada indivíduo, cada categoria, reivindica seu estatuto de trabalhador, até o próprio São Luís, que exerce seu "ofício de rei": rei pacificador e rei guerreiro." Uma verdadeira moda se apodera do trabalho. A ponto de um provérbio - "o trabalho supera a proeza" - significar claramente que as peripécias do valente cavaleiro que se entrega ao combate e ao amor cortês vêm depois da dignidade e do valor do trabalho. É nesse contexto que Francisco de Assis (c. 1181-1226), uma das figuras mais impressionantes de uma Idade Média evocadora de modernidade, hesita entre o trabalho e a mendicância, considerada vergonhosa pelos leigos. Qual é a melhor coisa a fazer: viver trabalhando ou mendigar recebendo esmolas? São Francisco opta pela mendicância porque vê nela uma forma de devoção superior. "Pobreza na alegria": tal será seu preceito, sua palavra de ordem, seu engajamento para seguir "nu o Cristo nu"." Mas a resistência à valorização do trabalho manual se organiza. "Não sou um trabalhador manual [ouvrier des mains]", declara o poeta Rutebeuf." O que é uma forma de retomar a seu modo o termo "operário" [ouvrier], que se enobrecera, recuperando em seu próprio proveito a dicotomia da antiga hierarquia. "Eu sou um criador, não um trabalhador manual", é o que ele diz, em essência. O trabalho intelectual é, assim,
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promovido e referendado, sobretudo no seio das universidades." A divisão do trabalho prossegue, em benefício de uma classe de proprietários que amarra o operário e o camponês à terra e à ferramenta. A resposta a essa submissão às ocupações servis se encontrará uma vez mais no imaginário medieval que, do país de Cocanha ao Roman de Ia Rose, * ressuscitará a Idade de Ouro e o ideal da lassidão. Imaginário, mas também existem inclinações revolucionárias, quando um pregador partidário da revolta dos camponeses da Inglaterra, no século XlV, irá declarar: "Quando Adão plantava e Eva fiava, onde estava o fidalgo?" Uma forma de recusar a hierarquia social e sugerir que a condição humana repousa no trabalho, do qual a nobreza se afastou. Em seu próprio proveito.
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A dádiva das lágrimas "Eu tinha uma bela doença que assombrou minha juventude, mas muito própria a um historiador. Eu amava a morte. Havia vivido nove anos à porta do cemitério Pêre-Lachaise, então o meu único passeio. Depois, morava perto do Biêvre, ** no meio de grandes jardins de conventos, outros sepulcros. Eu levava uma vida que o mundo poderia ter considerado enterrada, não tendo nenhuma sociedade a não ser a do passado e, por amigos, os povos sepultos. Refazendo suas len-
"Chamado de poesia didática, o Romance da Rosa destinava-se a ensinar as regras da galanteria, na primeira parte, e o saber da época, na segunda. Guilherme de Lorris escreveu 4.058 octossílabos entre 1225 e 1240, e João de Meung escreveu 17.722 versos entre 1275 e 1280. (N. do T.) uRio que desemboca nos esgotos de Paris. (N. do T.)
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das, eu despertava neles mil coisas desaparecidas. Certas canções de ninar que eu mantinha em segredo eram de efeito seguro. Pelo sotaque, eles acreditavam que eu era um dos seus. O dom que São Luís pede e não obtém, eu a tenho: das lágrimas.'"
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Esse belo texto é de Jules Michelet. Do historiador romântico, "ressuscitador" de mortos e cavaleiro andante, esse curto extrato do prefácio de 1869 que ele redige para sua MoyenÂge [Idade Média] nos fala do método, inseparável dessa "doença" de juventude, mas também de uma espécie de graça que ele obtém, "o dom das lágrimas". Do rei dos Capetos, ele sublinha um fato comprovado, revela um ponto sensível, uma espécie de calcanhar-de-aquiles: São Luís tinha dificuldade de chorar e, no entanto, amava o pranto. Pois este era para ele o sinal do reconhecimento divino de sua vida de obediência e de penitência, a prova de que ele o recompensava por sua devoção, fazendo brotar em suas maçãs do rosto a água purificadora. Entretanto, nos diz seu confessor, Geoffroy de Beaulieu, "o rei abençoado desejava maravilhosamente a graça das lágrimas e lamentava a seu confessor que as lágrimas lhe faltavam, e ele lhe dizia, bondosamente, humildemente e em particular que, quando se recitavam em litania estas palavras: 'Belo Senhor Deus, rogamos que concedeis fonte de lágrimas', o santo rei dizia devotamente: 'Senhor Deus, eu não ouso reclamar fonte de lágrimas, bastam-me pequenas gotas de lágrimas para regar a aridez de meu coração.' E algumas vezes ele admitiu em particular a seu confessor que o Senhor por vezes lhe concedia algumas lágrimas na prece: quando ele as sentia escorrerem suavemente sobre suas maçãs do rosto até a sua boca, ele as saboreava muito suavemente não apenas com o coração, mas também com o paladar". 7
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Volúpia das lágrimas por vezes concedidas a um rei desarmado em face do que se pode qualificar de arrependimento seco. Pois, se São Luís não chora ao longo das biografias, ele não deixa de implorar "uma fonte de lágrimas", isto é, um sinal da graça divina, e não apenas aquilo que a tradição monástica considera um mérito, uma recompensa, uma sanção da penitência. Como a manifestação humanas se tornou
mais ostensiva da dor e da tristeza
um valor? O operador
ideológico
dessa
grande guinada é, uma vez mais, o cristianismo. Como o chama o historiador Piroska Nagy em seu estudo sobre a dádiva das lágrimas, a nova religião de Estado promove uma "inversão de valores pregada por Cristo"." Valorizadas no Antigo Testamento - "Bem-aventurados aqueles que choram, pois ele serão consolados", diz Cristo no Sermão da Montanha -, as lágrimas inscrevem-se na "renúncia à carne" que ocorre durante a nova história ocidental
do corpo que se escreve na
Idade Média. Os Padres do Deserto da Síria e do Egito são os primeiros a fazer do pranto um dos centros da vida espiritual. Para esses cristãos militantes, trata-se de "reconstruir completamente a estrutura da personalidade humana, agindo diretamente sobre os corpos"." Esse ideal ascético, lançado por Antão por volta de 270 e por outros monges eremitas dos séculos III ao V, torna-se pouco a pouco o modelo do monaquismo medieval. Como sublinha Piroska Nagy, "a valorização do pranto e o sentido das lágrimas são estreitamente ligados ao destino que o cristianismo atribui ao corpo. Se a exortação a chorar participa da renúncia à carne no cristianismo da Antigüidade tardia, é antes de tudo porque o pranto se inscreve na economia dos líquidos dos corpos que o asceta deve dominar. Be7 1
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das, eu despertava neles mil coisas desaparecidas. Certas canções de ninar que eu mantinha em segredo eram de efeito seguro. Pelo sotaque, eles acreditavam que eu era um dos seus. O dom que São Luís pede e não obtém, eu a tenho: 'o dom das lágrimas.''' Esse belo texto é de Jules Michelet. Do historiador romântico, "ressuscitador" de mortos e cavaleiro andante, esse curto extrato do prefácio de 1869 que ele redige para sua Moyen Âge [Idade Média] nos fala do método, inseparável dessa "doença" de juventude, mas também de uma espécie de graça que ele obtém, "o dom das lágrimas". Do rei dos Capetos, ele sublinha um fato comprovado, revela um ponto sensível, uma espécie de calcanhar-de-aquiles: São Luís tinha dificuldade de chorar e, no entanto, amava o pranto. Pois este era para ele o sinal do reconhecimento divino de sua vida de obediência e de penitência, a prova de que ele o recompensava por sua devoção, fazendo brotar em suas maçãs do rosto a água purificadora. Entretanto, nos diz seu confessor, Geoffroy de Beaulieu, "o rei abençoado desejava maravilhosamente a graça das lágrimas e lamentava a seu confessor que as lágrimas lhe faltavam, e ele lhe dizia, bondosamente, humildemente e em particular que, quando se recitavam em litania estas palavras: 'Belo Senhor Deus, rogamos que concedeis fonte de lágrimas', o santo rei dizia devotamente: 'Senhor Deus, eu não ouso reclamar fonte de lágrimas, bastam-me pequenas gotas de lágrimas para regar a aridez de meu coração.' E algumas vezes ele admitiu em particular a seu confessor que o Senhor por vezes lhe concedia algumas lágrimas na prece: quando ele as sentia escorrerem suavemente sobre suas maçãs do rosto até a sua boca, ele as saboreava muito suavemente não apenas com o coração, mas também com o paladar".
Volúpia das lágrimas por vezes concedidas a um rei desarmado em face do que se pode qualificar de arrependimento seco. Pois, se São Luís não chora ao longo das biografias, ele não deixa de implorar "uma fonte de lágrimas", isto é, um sinal da graça divina, e não apenas aquilo que a tradição monástica considera um mérito, uma recompensa, uma sanção da penitência. Como a manifestação mais ostensiva da dor e da tristeza humanas se tornou um valor? O operador ideológico dessa grande guinada é, uma vez mais, o cristianismo. Como o chama o historiador Piroska Nagy em seu estudo sobre a dádiva das lágrimas, a nova religião de Estado promove uma "inversão de valores pregada por Cristo"." Valorizadas no Antigo Testamento - "Bem-aventurados aqueles que choram, pois ele serão consolados", diz Cristo no Sermão da Montanha -, as lágrimas inscrevem-se na "renúncia à carne" que ocorre durante a nova história ocidental do corpo que se escreve na Idade Média. Os Padres do Deserto da Síria e do Egito são os primeiros a fazer do pranto um dos centros da vida espiritual. Para esses cristãos militantes, trata-se de "reconstruir completamente a estrutura da personalidade humana, agindo diretamente sobre os corpos"." Esse ideal ascético, lançado por Antão por volta de 270 e por outros monges eremitas dos séculos 11Iao V,torna-se pouco a pouco o modelo do monaquismo medieval. Como sublinha Piroska Nagy, "a valorização do pranto e o sentido das lágrimas são estreitamente ligados ao destino que o cristianismo atribui ao corpo. Se a exortação a chorar participa da renúncia à carne no cristianismo da Antigüidade tardia, é antes de tudo porque o pranto se inscreve na economia dos líquidos dos corpos que o asceta deve dominar. Be-
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ber pOUCOreduz a quantidade de líquidos presentes no corpo e, portanto, a incitação ao pecado; do mesmo modo, chorar expele esses líquidos e evita assim seu US0 pecaminoso pelos
Das lágrimas de Cristo aos prantos proféticos de João, o Novo Testamento fornece uma matéria importante para conferir às lágrimas uma positividade que a Igreja irá explorar
corpos na sexualidade". Mas as lágrimas vão adquirir outro sentido no meio monástico da reforma gregoriana. A tensão entre a recusa do corpo e a encarnação irá fazer oscilar o significado das lágri-
amplamente.
mas em prol de uma certa corporeidade. tornar o sinal da imitação, da encarnação
As lágrimas irão se de Cristo no ho-
mem. Jesus chora por três vezes na Bíblia. A primeira vez foi pela morte de seu amigo Lázaro. Antes mesmo de ressuscitá-
10, perturbado
por sua emoção, pela de Marta, de sua irmã Maria e a do povo judeu reunido em lágrimas, "Jesus então chorou" oão, 11, 35). A segunda vez foi quando ele entrou
a
em Jerusalém e lamentou a sorte dessa cidade fadada à destruição. "Quando ele se aproximou da cidade e a percebeu, chorou por ela. Ele dizia: 'Se tu também tivesses sabido, nesse dia, como encontrar a paz ... ! Mas, infelizmente, isso foi escondido de teus olhos!'" - pode-se ler no Evangelho de Lucas. O outro momento em que Cristo chora ocorre às vésperas da crucificação, no monte das Oliveiras, quando está
A dádiva das lágrimas tornar-se-á mesmo um
critério de santidade a partir do século XI. Mérito ou dádiva, virtude ou graça, habitus (isto é, segundo Tomás de Aquino, uma "disposição habitual") ou carisma, os homens piedosos estão em busca de lágrimas. Entretanto, isso não é verdade para a alta Idade Médiaa despeito da regra de São Bento, que prescreve os prantos penitenciais -, que de modo algum se volta para a dádiva das lágrimas. Uma situação que se explica "pelo grau de cristianizaçâo à época: a preocupação principal era mais a cristianização exterior, ritual e coletiva, do que a introspecção, qual mesmo seus especialistas,
à
os monges, só irão dar aten-
ção pouco a pOUCO".33 A guinada se dará por volta do ano 1000, com os reformadores do monaquismo, como Pedro Damião (1007-1072), monge eremita e depois bispo de Óstia, e João de Fécamp (morto em 1078). Este último, por exemplo, escreverá em sua Oração pela graça das lágrimas, uma invocação inteira-
fazendo suas orações. Esse episódio é particularmente impressionante, pois Cristo chora por si mesmo (Hebreus, 5, 7).
mente espiritual cuja ambivalência dos aspectos corporais, para
Trata-se, de algum modo, de um momento de "depressão" ao longo do qual Jesus chora por sua própria Paixão, pensando que pode ser abandonado por seu pai. O Evangelho de Lucas apresenta outra versão, na qual Cristo, "tomado de angústia, [... ] orava mais intensamente, e seu suor se tornou como coá-
"Doce Cristo, bom Jesus, assim como te desejo, assim como oro para ti com todo meu espírito, dá-me teu amor santo e casto, que ele me preencha, me tenha, me possua inteiramente. E me dê o sinal evidente de teu amor, a fonte abundante das lágrimas que escorrem continuamente, e desse modo essas
gulos de sangue que caíam sobre a terra" (22,44). A simbologia dos líquidos corporais é, uma vez mais, impressionante. E o corpo torna-se o veículo entre o divino e o humano.
mesmas lágrimas darão prova de teu amor por mim." Evitemos, contudo, psicanalisar apressadamente tais propostas, de tal modo as categorias mentais da Idade Média são
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não dizer sexuais, não deixará o leitor moderno
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irredutíveis a suas gangas históricas, a suas inscrições simbólicas. A certeza é que as lágrimas são percebidas como uma espécie de fecundidade de origem divina. Elas possuem, como diz Roland Barthes, um "poder germinador" de que Michelet será dotado. Dádiva das lágrimas da graça são, assim, estimadas e premiadas. Igualmente em relação às lágrimas de prece e penitência. "ls qui luget": na Idade Média o monge se define, portanto, como "aquele que chora". E "aquele que não pode chorar seus pecados não é um monge", responde uma santa mulher ao monge Walter, que deseja adquirir junto dela a graça das lágrimas. Assim, Michelet tem razão quando escreve que, com as lágrimas, "eis todo o mistério da Idade Média". E de ver nelas uma característica maior do período gótico: "uma lágrima, uma só, lançada sobre os fundamentos da Igreja gótica, basta para evocá-Ia", escreverá igualmente. Pois as lágrimas não inundam apenas os corpos dos mais devotos e dos santos tocados pela graça de Deus, "elas escorrem em límpidas lendas, em maravilhosos poemas e, acumulando-se em direção ao céu, cristalizaram-se em gigantescas catedrais que querem elevar-se ao Senhor!". Em 1919, o historiador Johan Huizinga, prefigurando a história das sensibilidades que estava por vir, não estava enganado ao evocar "essa receptividade, essa facilidade de emoções, essa propensão às lágrimas" próprias da Idade Média, que ele atribui, talvez muito rapidamente, ao "amargor do gosto" e à "violência da cor que tinha a vida naquele tempo"." E Roland Barthes, como refinado farejador dos sentimentos e dos sedimentos históricos e biográficos, não está equivocado quando interpreta a importância em Michelet da dádiva das lágrimas recusada a São Luís. "Outro meio de incubação: as lágrimas"," escreve ele. ''As lágrimas
são uma dádiva. São Luís em vão as pedia a Deus. O próprio Michelet conheceu o poder germinador das lágrimas; não lágrimas mentais, lágrimas de metáfora, mas lágrimas de água c sal, que vêm aos olhos, à boca, ao rosto ..." Entretanto, as lágrimas da Idade Média não são apenas espirituais: elas permitem a Deus passar pelo corpo, elas oferecem a possibilidade, embora caprichosa e aleatória, de mobilizar o corpo para atingir o divino. ''Alegria, lágrimas de alegria", escreverá Pascal no século XVII. "Pobreza na alegria", repete, no século XIII, São Francisco, e Chiara Frugoni pôde chamar São Francisco de "o santo que sabia rir". O riso franciscano é uma exceção. Pois o riso na Idade Média é banido, desterrado, deixado para mais tarde. Ele está do lado do demônio. É da parte do Diabo.
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Levar o riso a sério "O riso é próprio do homem." Essa definição de Aristóteles - autor tão célebre e tão celebrado na Idade Média, sobretudo a partir dos séculos XII e XIII, a ponto de ser tratado de "o Filósofo", apesar das reticências da Igreja - não será suficiente para resgatar o riso do opróbrio em que foi lançado pelo menos até o século XII. Na Idade Média, não é preciso buscar na espécie as causas da reprovação do riso, mas no espaço. Pois o corpo não escapa a uma visão do espaço dividido entre o alto e o baixo, a cabeça e o ventre. Corrigindo a tradição filosófica antiga, a Idade Média repousa, na realidade, mais sobre a oposição entre o alto e o baixo, o interior e o exterior, do que sobre a divisão entre a esquerda e a direita, a despeito do fato de que Cristo, no fim dos tempos, fará com que os justos se sentem à sua direita. O gesto de Clemente de Alexandria (morto por
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volta de 215), que, em um texto pioneiro e fundador, O pedagogo, afasta os estímulos ao riso, lembra aquele de Platão, que, emA República, joga o poeta para fora da cidade. Pois o riso conduz às ações "baixas". O corpo é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo). Ele dispõe de filtros que podem servir para distinguir o bem do mal: olhos, orelhas e boca. A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne. Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do corpo. Hoje ainda, aliás, o riso licencioso, o riso vulgar, é chamado "abaixo da cintura". A Regra do mestre, na qual se inspirou São Benedito no século VI, é aqui muito clara: o riso caminha através do corpo desde suas partes baixas, passando do peito para a boca. Desta última também podem sair tanto falas de devoção, de piedade e de prece quanto falas descomedidas e blasfemas. A boca é, na Regra do mestre, um "ferrolho"; os dentes, uma barreira que deve conter a torrente de insanidades que podem ser veiculadas pelo riso. Pois o riso é uma "desonra da boca". O corpo deve ser aqui um escudo diante dessa caverna do Diabo. O historiador John Morreall tem razão: é preciso levar o riso a sério." Pois o riso nasce do corpo e diz muito sobre o lugar que o Ocidente medieval lhe atribui. E sua recusa, seguida de sua integração progressiva através do processo de civilização que ocorre no Ocidente, segue os mesmos caminhos cronológicos e simbólicos do sonho. Assim, em um primeiro momento, dos séculos IV ao X aproximadamente, o riso é abafado. As raízes dessa desvalorização são numerosas. Em primeiro lugar, se Cristo chora por três vezes no Novo Testamento, ele não ri. São Basílio, grande legislador grego cristão, que reco76
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mendava aos monges um uso moderado e temperado da hilaridade, insistiu bastante nesse fato. "O Senhor, ensinanos o Evangelho, tomou para si todas as paixões corporais inseparáveis da natureza humana, como afadiga", escreve ele nas Grandes regras que redige entre 357 e 358. "Ele se imbuiu dos sentimentos que dão testemunho da virtude de uma pessoa - por exemplo, manifestou piedade pelos aflitos. Todavia, e as narrativas evangélicas o atestam, ele jamais cedeu ao riso. Ao contrário, proclamou infelizes aqueles que se deixam dominar pelo riso." A questão não é anedótica. No século XIII, a Universidade de Paris reservará a essa questão uma de suas sessões de discussão abertas ao grande público, chamadas "quodlibet", na qual os partidários da definição do Filósofo - "o riso é próprio do homem" - se opõem à atitude que a vida de Cristo - que jamais ri - parece induzir. Mas, em face da ameaça do riso que rompe a humildade do silêncio (taciturnitas) da vida monástica, a Regra do mestre será aplicada a partir do século VI. Outras regras se seguirão, por vezes com mais nuanças. "O monge raramente deve rir", diz a regra de São Ferréolo de Uzês, A de [São] Colombano (morto em 615) estipula que, "aquele que rir escondido na assembléia, isto é, no ofício, será punido com seis chibatadas. Se gargalhar, ele jejuará, a menos que o tenha feito de maneira perdoável". A Regra do mestre inscreve a repressão do riso, por muito tempo, em uma antropologia e uma fisiologia cristãs: "O instrumento do gênero humano é nosso pobre pequeno corpo", diz o mestre. Resta a esse "pequeno corpo" a possibilidade de fechar a porta da boca ao riso diabólico sobre o qual o clero se concentra. "Quanto às bufonarias, às falas ociosas que levam ao riso, nós as condenamos à reclusão perpétua e não permi77
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timos ao discípulo abrir a boca para tais propósitos",
prosse-
gue ele. A Regra de São Bento sublinha o risco de romper silêncio, de estorvar fundamentos
a humildade
o
do monge, que é um dos
dos pais do monaquismo.
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O contraponto ao riso abafado reside já na prática, através dos "jogos de monges" (joca monacorum), esses divertimentos escritos
na Bíblia que circulam
nos mosteiros.
Os
senhores feudais, de resto, nada ficam a dever ao gab, que
Mas, perto do século XII, o riso será pouco a pouco rea-
lembra as histórias marselhesas,
nas quais os cavaleiros
exa-
bilitado, porque mais controlado. Tomás de Aquino segue os passos de seu mestre, Alberto Magno que considerava que o riso terrestre era uma prefiguração da felicidade paradisíaca,
geram suas proezas guerreiras. São Luís será mesmo um rei risonho, um rei engraçado (rex facetus), como o havia sido
e atribui um estatuto
joinville. Se se ri melhor em língua vernácula, é em parte porque o latim irá entrar em declínio a partir do século XIII.
teológico
positivo ao riso. Sobretudo
porque a Bíblia também fornece razões tanto para recomendá10 quanto para condená-Io. Uma alternativa que se enraíza nas duas espécies de riso que a língua hebraica admite. A primeira é o sâkhaq, o riso alegre; o segundo,
o
lâag, o riso da
zombaria. O Antigo Testamento conta que Sara, companheira do velho Abraão, pôs-se a rir quando Deus anunciou-lhe que ela
Henrique
11, da Inglaterra,
cerca de um século antes, diz
Assim, como diz Mikhail Bakhtin, uma "cultura do riso" instala-se nas cidades, nas quais o homem medieval "sente a continuidade
da vida na praça pública,
misturado
à multidão
durante o Carnaval, onde seu corpo está em contato com o de pessoas de todas as idades e de todas as condições". Antes dos períodos de jejum, o riso atravessava os dias alegres das festas populares, festas dos Loucos, festa do Asno e outros
e seu marido iam ter um filho. Esse anúncio, feito a uma mulher idosa, de oitenta e seis anos, e a um homem centená-
carnavais e confusões.
rio, provocou sua hilaridade. No nascimento do filho prometido, um nome lhe será dado: Isaac, que significa "riso",
que "contrastava brutalmente com o jejum passado ou iminente", prossegue Bakhtin. A literatura testemunha essa libe-
segundo um vocábulo
ração, a exaltação desse "corpo grotesco". O riso de Rabelais no século XVI é, ainda que isso desagrade aos glorificadores
herdado
riso alegre e não zombeteiro.
do termo sâkhaq, isto é, do
Personagem
inteiramente
tivo, Isaac é uma figura bíblica que permite a reabilitação
posido
da Renascença,
Uma "libertação
do riso e do corpo"
um riso medieval.
riso. Assim, o riso pode ser percebido como o atributo dos eleitos, ser considerado um estado a que o homem deve se
Os sonhos sob vigilância
dedicar e aspirar. Mais do que reprirni-lo, a Igreja, distanciando-se da pressão monástica, irá controlar o riso. E separar o bom do mau, o divino do diabólico. O riso lícito, o riso dos
Na Antigüidade, a interpretação dos sonhos era uma prática corrente. Nas feiras, nos mercados, adivinhos populares exer-
sábios, é o sorriso, do qual se pode dizer que foi uma invenção da Idade Média, mas que se pode considerar igualmente em sua singularidade, ou como um simples riso mitigado. 78
cem seu ofício, interpretam os sonhos dos cidadãos por uma soma módica, um pouco à moda de nossas adivinhas do destino e outras cartomantes. Em suas casas ou em um templo, 79
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intérpretes de ofício davam aos homens da Cidade, como verdadeiras especialistas, as chaves das significações de seus sonhos. Os oniromantes talvez não fossem tão estimados quanto os agoureiros e os arúspices, esses padres que lêem nas entranhas das vítimas ou no vôo das asas e são ouvidos e consultados com mais freqüência. Aparições, sombras ou fantasmas, os sonhos do paganismo grego ou romano provêm do mundo dos mortos. Os "falsos" e "verdadeiros" sonhos são cuidadosamente separados, como em Homero, na Odisséia, onde Penélope percebe as duas portas do sonho, uma de marfim, de onde saem os sonhos enganadores, outra de chifre, de onde emanam os sonhos que se realizam. Ou em Virgílio, que, na Eneida e na esteira de Homero, distingue sonhos enganadores e sonhos anunciadores. Numerosas teorias oscilam entre valorização e desqualificação. Pitágoras, Demócrito e Platão acreditam em sua veracidade. Diógenes e Aristóteles desvalorizam-nos e aconselham a incredulidade a seu respeito. Tipologias estabelecem-se, como a de Cícero, que, em De divinatione (I, 64), distingue três fontes do sonho: o homem, os espíritos imortais e os deuses. Os Anciãos classificavam-nos igualmente de acordo com sua natureza e estabeleciam uma hierarquia entre os sonhadores. É no fim do século IV que Macróbio (c. de 360-422) fornece à cultura pagã seu tratado dos sonhos mais acabado. Em seu Comentário ao sonho de Cipião, o polígrafo e enciclopedista, membro de um grupo de vulgarizadores da ciência e da filosofia antigas, distingue cinco categorias de sonhos: somnium, oisio, oraculum, imsomnium e uisurn, Dois dentre eles não têm "nenhuma utilidade nem significação". O primeiro é o insomnium, o sono perturbado, que se torna8
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rá, com Ernest jones," psicanalista e biógrafo de Freud, o pesadelo. O segundo é o uisum, forma de fantasma, de vagabundagem onírica ilusória. São "falsos" sonhos, para retomar as categorias de Homero e Virgílio. Os três outros anunciam o futuro. De modo velado para o sonho enigmático que é o somnium; de maneira segura para o profético uisio; por intermédio dos pais, dos sacerdotes ou mesmo da divindade, que previnem claramente a pessoa adormecida de um acontecimento que está para ocorrer, no sonho oracular (oraculum). Na época em que as interpretações pagãs e cristãs se interpenetravam, isto é, do século II ao IV, os homens oscilam entre o interesse manifesto (sonhos de conversão, de contato com Deus ou de martírio), a inquietude patente e a incerteza. Um "semi-herético", Tertuliano, propõe entre 210 e 213 o primeiro Tratado sobre os sonhos do Ocidente cristão. Fiel às interrogações de seu tempo, esta no man's /and em que se encontram uma alma e um corpo perdido entre o sono e a morte o inquieta. Mas ele recusa fazer disso algo próprio do homem. Pois o sonho é para ele um fenômeno humano universal de que não escapam nem as crianças nem os bárbaros: "Quem poderia ser tão estranho à condição humana para não ter percebido uma vez uma visão fiel?", pergunta-se em seu De anima. Tertuliano elabora em seguida uma tipologia dos sonhos que classifica segundo a origem: os demônios, Deus, a alma e o corpo. Os sonhos que se produzem ao final do sono são ligados, segundo ele, à posição da pessoa adormecida assim como à sua alimentação. Uma vida sóbria favorece os sonhos de êxtase. Quando o cristianismo se impõe como a ideologia dominante, a partir do século IV, a questão do sonho, um dos fe81
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nômenos mais enigmáticos da humanidade, não pode ser evitada pela religião no poder. A herança da cultura pagã inquieta e angustia antes de tudo. Pois não há mais bons ou maus demônios, como na época greco-romana. Somente anjos e demônios, isto é, de um lado a milícia de Deus, de outro a malícia do Diabo. E é Satã em pessoa que, no mais das vezes, envia aos homens essas "poluções noturnas", interferindo assim entre Deus e a humanidade, colocando em curto-circuito o intermediário eclesiástico. lndissociavelmente ligado ao corpo, o sonho vai ser colocado do lado do Diabo pelo cristianismo triunfante. Outro motivo de descrédito: com a religião de Cristo instituída, o futuro não pertence aos homens ávidos de conhecer seus desdobramentos, como no tempo do paganismo, mas a Deus, o único a saber: "Que aqueles que observam os augúrios ou os auspícios ou os sonhos ou todo tipo de adivinhação, segundo o hábito dos pagãos, ou que introduzem em suas casas homens que conduzem investigações através da arte da magia ... que eles se confessem e façam penitência durante cinco anos", impõe um cânone do primeiro concílio de Ancira, * em 314. A diabolização do sonho é uma resposta hábil a uma cultura pagã das interpretações das verdades ocultas no além, que deve se realizar, no presente, através da mediação e do controle das autoridades eclesiásticas. O sexo, enfim, constitui um dos motivos de suspeição mais importantes da Igreja no que diz respeito ao sonho. À noite, a carne desperta, palpita, aguilhoa o corpo luxuriante. Tentações de que Santo Antão será uma vítima exemplar e triunfante. E mal-estar geral diante dos sonhos, de que Santo •Atual Ancara. (N. do T.)
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Agostinho - embora ator do primeiro sonho de conversão, no célebre episódio do sonho do jardim de Milão - será uma das figuras incontestes. Com certeza, na prática, o povo recorreu aos intérpretes, mágicos - e charlatães, o mais das vezes - a fim de dar sentido a esse desregramento sensorial. Mas a noite dos sonhos vigiados abate-se sobre o Ocidente por muito tempo. O francês medieval, que brinca com a vizinhança de "sonho" (songe) e "mentira" (mensonge), reflete essa suspeição. Condenação moral, mas também distinção social. Pois a igualdade em face do sonho não existe. Apenas uma elite tem o "direito" de sonhar: os reis e os santos, depois, a rigor, os monges. No Antigo Testamento, onde se sonha muito mais do que no Novo, o faraó sabe num sonho que deve deixar partir os judeus se quiser desvencilhar-se das sete pragas do Egito. Constantino e Teodósio, o Grande, os dois fundadores da cristandade, frustram as linhas de seus inimigos por meio da interpretação dos sonhos. "Com esse sinal tu vencerás", ouve Constantino antes de entregar-se à batalha em Maxência, na ponte de Milvius, enquanto vê no céu a cruz de Cristo e sonha à noite que Deus lhe ordena que faça representar a cruz no alto de um estandarte. Da mesma maneira, o Carlos Magno de La Chanson de Roland sonha de maneira profética por quatro vezes, que também é o número de momentos decisivos. Sonhos reais, mas também sonhos de santos, são elevados ao nível divino. Toda a vida de São Martinho é, segundo seus hagiógrafos, ritmada pelos sonhos. O primeiro será o da conversão. Na noite que se segue à partilha de metade de seu manto com um pobre, Cristo lhe aparece: "O que fizeste a um dos mais humildes foi a mim que fizeste", ele lhe diz. O segundo é o marco de sua ação de missionário. Outro, conta83
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do por Sulpício Severo, será o anúncio de sua morte a fim de que ele possa se preparar para ela. Os santos e, logo, os monges, esses heróis que buscam imitá-Ias, beneficiam-se assim de sonhos cheios de significados. Mas, para o resto da humanidade, o sonho é desaconselhado. Sonhos vigiados e corpos controlados: os homens devem abster-se de beber demais, pois a embriaguez favorece as visões pecaminosas. Clérigos e leigos devem igualmente evitar ingerir alimentos demais, pois a indigestão alimenta as tentações. A forma corporal da tentação é a visão, um dos cinco sentidos mais essenciais na Idade Média, pois um sonho é um ato, uma narrativa em que se vê. De resto, a doutrina cristã distingue a categoria inferior dos "sonhos", designados pelo substantivo somnium, que provém da raiz latina sommus (sono), das nobres "visões" (visiones) que deixam entrever uma verdade escondida, no estado de vigília ou de sono. O francês medieval conhece apenas a palavra "songe", à qual se acrescentará a palavra "rêue" a partir do século XVII. Uma reviravolta decisiva se dá a partir do século XII, quando ocorre uma democratização dos sonhos. Revolução urbana e reforma gregoriana enfraquecem o isolamento e o prestígio monásticos. Os sonhos escapam do espaço fechado do claustro, se dessacralizam, tornam-se um fenômeno humano. Os sonhos ganham corpo e oscilam entre a psicanálise e a medicina. Um renascimento que é acompanhado de teorias e interpretações novas. Ao mesmo tempo freira visionária e médica, Hildegarde de Bingen indica, em seu tratado intitulado Causae et curae que o sonho é um atributo normal do "homem de bom humor". Portadora de uma concepção do homem e da mulher na qual o espírito não está separado do corpo, a abadessa
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recusa em sua retórica, porém, a corporeidade do sonho e, por vezes, até o onirismo. Jean-Claude Schmitt demonstrou bem a origem dessa "recusa do sonho" que figura em certos textos: "Seria preciso que Hildegarde, porque era uma mulher, dissesse e mostrasse em imagens que ela não havia sonhado, de modo que suas falas, ainda que ela fosse uma mulher, pudessem ser recebidas como autênticas. "38 A nova interpretação dos sonhos também se liga à teoria dos humores e à fisiologia dos sonhadores. Contra os "fantasmas diabólicos", Hildegarde de Bingen aconselha aos sonhadores "envolverem o corpo do paciente, em forma de cruz, com uma pele de alce e uma pele de cabrito, pronunciando exorcismos que expulsarão os demônios e reforçarão as defesas do homem"." Sonho e medicina, psicofisiologia e psicopatologia estão, desse modo, imbricados. "Mesmo os sonhos que parecem ilusórios ensinam muito ao homem sobre seu estado futuro", propõe Pascoal, o Romano, em seu Livro do tesouro escondido, que testemunha a reviravolta do cristianismo no que diz respeito à interpretação dos sonhos. A Idade Média renascente reata com o sonho, provavelmente sob a influência da cultura e da ciência antigas transmitidas pelos bizantinos, os judeus e os árabes. "Os homens cujos sonhos são verdadeiros são sobretudo aqueles de uma constituição temperada", diz, por exemplo, o filósofo árabe Averroé, retomado em língua latina. Uma mestiçagem de que é testemunha a floração dos "chaves dos sonhos" que vêm do Oriente. Um renascimento em que a literatura será agente e testemunha. Assim, Le Roman de Ia Rase, de Guilherme de Lorris e João de Meung," bestseller incontestável da Idade Média, é um romance onírico que se desenrola na primeira pessoa: "Em meu vigésimo ano de vida, nessa época em que o amor
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reclama aos jovens seu tributo, eu havia me deitado uma noite como de costume e dormia profundamente quando tive um sonho muito bonito e que me agradou bastante, mas nesse sonho não havia nada que os fatos confirmassem ponto por ponto. Quero contar-vos para vos alegrar o coração ..." Trata-se de um artifício literário, mas significativo de uma mudança de tom, de estatuto e de concepção. A autobiografia onírica, que aparece na Antigüidade e no mundo cristão nascente com as Confissões de Santo Agostinho, desabrocha na Idade Média através de várias narrativas, como aquelas das conversões do monge Otloh de SaintEmmeran (c. de 1010-1070) e do jovem oblato Guibert de Nogent (c. de 1055-1125). Ou ainda nos sonhos de Helmbrecht pai, esse camponês modelo da literatura alemã do século XIII, que tenta colocar seu filho delinqüente no bom caminho por meio de quatro sonhos "alegóricos" (isto é, enigmáticos, mas sem que se lance mão de uma interpretação sábia) ou "teoremáticos" (que fazem ver diretamente aquilo que anunciam)." A introspecção onírica se estende, a "subjetividade literária?" se afirma e o sujeito humano obtém reconhecimento. A nova atração pelo sonho não significa, contudo, o fim de um corpo concebido como o receptáculo da alma. E o Roman de Ia Rase pode ser lido igualmente como uma prevenção contra a alma errante que deixa o corpo adormecido: "É assim que várias pessoas, em suas loucuras, acreditam ser estries [feiticeiras] errando pela noite com a Dama Abúndia;"
'Rainha de um grupo de fadas muito recorrente no imaginário medieval, entra à noite nas casas para banquetear-se e puxar as crinas dos cavalos, Ela figura, por exemplo, no Roman de Ia Rase. (N. do T.)
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elas contam que os terceiros filhos têm essa faculdade de fazer isso três vezes por semana; essas feiticeiras se lançam em todas as casas, não temem nem as chaves nem as trancas e entram por fendas, buracos nas portas e através de casas e locais ermos, e o provam dizendo que as estranhezas a que assistiram não lhes ocorreram em seus leitos, mas são suas almas que agem e correm assim pelo mundo. E fazem crer às pessoas que, se durante essa viagem noturna virarem os corpos para o outro lado, as almas não teriam como entrar de volta nos corpos. Mas isso é uma loucura horrível e uma coisa impossível, pois o corpo humano é apenas um cadáver quando não carrega mais dentro de si uma alma." O Ocidente medieval retoma o onirismo do paganismo, modernizando-o e codificando-o. Instaura-se, pouco a pouco, um gestual onírico. Na maior parte das imagens medievais, o sonhador se encontra deitado em um leito, sobre o lado direito, o braço direito sob a cabeça. Postura do corpo dominado contra imposturas do corpo desenfreado: o gesto do sonhador é cuidadosamente codificado pelo imaginário medieval, que exprime a expectativa da intervenção divina. Se as representações e as autobiografias dos sonhadores são freqüentes, será preciso, contudo, aguardar o século XVI e a aquarela de Albrecht Dürer (1525) para que apareça uma imagem onírica, aquela de um pesadelo em que o pintor vê um dilúvio abater-se sobre sua região. "Quando a primeira tromba-d'água caindo sobre o solo se aproximou, ela se precipitou com uma tal rapidez, com um tal mugido, levantando uma tal borrasca, que fiquei aterrorizado, e, ao despertar, todo o meu corpo tremia e levei muito tempo para me recompor. Levantando-me de manhã, eu pintei tal como vira o que está acima [sobre a tela]. Em cada coisa, 8 7
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Deus é perfeito", ele observa embaixo de seu desenho. Ainda que humanizado e racionalizado entre os séculos XII e XIII, o sonho é um Graal, onde Deus permanece a finalidade. Ele será decisivo, de resto, na invenção do purgatório, intermediário entre o inferno e o paraíso, esse terceiro lugar inventado pelo cristianismo na segunda metade do século XII, no qual uma visão arrebata os fiéis.
2. Viver e morrer na Idade Média
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o que é viver
e morrer na Idade Média? É certamente difícil dar uma resposta única e unívoca a essa questão, mesmo que a história das mentalidades e a antropologia histórica venham se aventurando nos territórios do corpo e da vida cotidiana medievais. A maneira de "viver sua vida" modelada pelo estado social e as proibições religiosas variavam no espaço da cristandade e evoluíram durante a longa Idade Média, mesmo se nos detivermos no século xv. De um lado há o "amargo sabor da vida", de que falava o livro singular e precursor de Johan Huizinga, Eautomne du Moyen Âge [O outono da Idade Média]. "Quando o mundo era cinco séculos mais jovem que hoje", escrevia Huizinga em 1919, "os acontecimentos da vida se destacavam com os contornos bem definidos. Da adversidade à felicidade, a distância parecia grande. Toda experiência tinha ainda esse grau do imediato e do absoluto que têm o prazer e a dor no espírito de uma criança." Para esse historiador, que não utiliza a palavra "outono" ao acaso, a vida das mulheres e dos homens do século XV assemelhava-se a essa estação em que se exacerbam e se exasperam todas as fecundidades e todas as contradições da natureza. Como escrevia no século XVI o poeta Agrippa d' Aubigné, "uma rosa de outono é, mais do que qualquer outra, refinada". Assim, "contra a adversidade 9 1
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e a indigência",
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prossegue Huizinga,
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"havia menos atenua-
ção do que hoje; elas eram mais temíveis e mais cruéis. A doença e a saúde apresentavam um contraste maior; o frio e
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A resposta do cristianismo à persistência e à resistência do corpo, sobretudo através das práticas populares, consistirá, portanto, em civilizar, em enquadrar suas irredutíveis manifestações.
as trevas do inverno eram males sentidos de forma mais dura. Usufruía-se mais avidamente da riqueza e das honras, pois elas contrastavam, mais ainda do que em nossos dias, com a miséria circundante".
Na impossibilidade de controlá-Io, de domá-Io completamente, a Igreja busca codificá-Ia. Dominar a vida e a morte.
Por outro lado, e para não dar apenas um exemplo, há a posição do historiador Philippe Ariês sobre a morte na Idade
Mas de que vida falamos? E de qual duração? Nesse ponto, as pesquisas históricas desenvolvem-se, reforçadas sobre-
Média, que ele considera menos áspera, menos dura e mais doce do que hoje em dia. ''Assim'', escreve ele em seus Essais sur l'bistoire de Ia mort en Occident [Ensaios sobre a história
maneira
da morte no Ocidente] (1975), "morre-se há séculos ou milênios. Em um mundo submetido à mudança, a atitude tradicional diante da morte aparece como uma massa de inércia e de continuidade. A atitude antiga, na qual a morte é ao mesmo tempo familiar, próxima
e atenuada,
indiferente,
opõe-se à
cemitérios
pela investigação ainda encontram
arqueológica. dificuldades
As escavações
nos
para determinar
a
expectativa de vida dos homens da Idade Média, mas permitem considerar que a mortalidade infantil era muito importante. Entretanto, a diminuição de cáries dentárias, por exemplo, é testemunha
de um progresso da alimentação
e do
saber dietético dos homens daquele tempo, que atribuem uma nova importância a seus corpos.
nossa, onde a morte assusta a tal ponto que não ousamos dizer seu nome." Essa "morte domesticada", de que fala Ariês,
O método mais grosseiro para determinar a expectativa de vida consistiria em reler o início de A Divina Comédia. No iní-
parece opor-se à aspereza da vida dos homens da Idade Média em seu período final, de Huizinga.
vida ... " E o poeta tinha trinta e três anos naquele momento. Mas
Seria muito cômodo dizer que a verdade se situa entre essas duas concepções, voluntariamente reduzidas aqui a suas caricaturas. Digamos simplesmente que, através do exame da velhice, tomada das "velhinhas"
entre o prestígio ridicularizadas
da idade e a malignidade
em numerosos
textos medie-
vais, através da atitude em relação ao doente, ao mesmo tempo rejeitado e eleito, ou ainda do corpo dos mortos, atormentados ou gloriosos, é ainda a tensão, que atravessa o corpo de parte a parte, que permite esboçar o que podia significar viver e morrer na Idade Média. 92
cio desse texto, Dante escreve: "No meio do caminho de minha nada de científico pode ser deduzido desses versos. Dante sem dúvida escreveu isso porque se trata da idade de Cristo no momento de sua crucificação. Com freqüência, os historiadores com formação em demografia estimam que a esperança de vida se situava, em média, entre trinta e cinco e quarenta anos.
As idades da vida Por outro lado, as idades da vida dependem, na Idade Média, de um verdadeiro saber herdado da Antigüidade, que será 9 3
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reinterpretado
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pelo cristianismo
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em um sentido muito mais
escatológico, orientando a vida do homem em direção à história da saúde. Como observa Agostino Paravicini Bagliani, "a cultura medieval acolheu todos os grandes esquemas das idades da vida que haviam sido desenvolvidos pelos Antigos, sobretudo aqueles que se fundavam nos algarismos 3, 4 e 7".1 O algarismo 3 é o de Aristóteles, que, na Retórica, considera que a vida é composta de três fases: crescimento, estabilidade e declínio. Arco biológico no qual a idade madura é o ápice: "Todas as qualidades úteis que a juventude e a velhice possuem separadamente, a maturidade as possui reunidas; mas, em relação aos excessos e erros, ela está na medida média e conveniente." Uma imagem que a Idade Média em geral, e Dante em particular, vai retomar por sua própria conta. Este último dirá que "a vida não é mais do que um subir e descer", situando a "perfeita natureza" do homem na idade madura, isto é, aos trinta e cinco anos. Com muita freqüência na Idade Média, a idade girando em torno dos trinta anos será considerada idade perfeita",
pois Cristo, diz Jerônimo,
morreu
"a
"comple-
tando o tempo de duração de sua vida em seu corpo". Já Abelardo situa "a idade perfeita e madura" aos trinta anos, idade que corresponde à de Cristo quando foi batizado. Assim se imporá a idéia de que essa idade do batismo, da morte e da ressurreição de Cristo seria igualmente a idade ideal do padre. O algarismo 4, o mais importante na Idade Média, provém do filósofo grego Pitágoras, que, de acordo com Diógenes
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paralelismo não termina aí. Em Celsus e Galeno, os elementos (água, terra, ar, fogo) e os temperamentos que provêm dos líquidos corporais (sangue, bile, pituíta e atrabílis) correspondem igualmente às idades da vida. Essas quatro idades da vida serão encontradas
na Idade
Média, sobretudo em Alberto, o Grande, porque tinham "a vantagem de dar conta das mudanças importantes do corpo humano e de uma visão biológica mais cadenciada (trinta, quarenta e sessenta anos)", lembra Agostino Paravicini Bagliani. Mas principalmente porque essas especulações antigas se ajustavam com perfeição às quatro estações que Deus, segundo o Gênesis, criou no quarto dia da Criação. "O algarismo 4", prossegue, "permitia, portanto, a perfeita combinação com o próprio fundamento da antropologia antiga e medieval, segundo a qual o homem é um microcosmo,
isto é, um cosmo
em miniatura." A simbólica é aqui determinante. O algarismo 7 é igualmente uma herança grega, retomada por Isidoro de Sevilha, que distingue o período que vai do nascimento ao sétimo ano (infantia), dos sete aos quatorze anos (pueritia), dos quatorze aos vinte e oito anos (adulescentia), dos vinte e oito aos cinqüenta anos (juventus), dos cinqüenta aos setenta anos (gravitas), depois dos setenta anos (senectus) e além, com a palavra senium, que corresponde à senilidade. As cinco e as seis idades da vida são um legado dos Padres da Igreja. A Idade Média tardia inventará apenas as 12 idades
vinte anos a cada parte". A esses quatro segmentos correspondem os quatro humores descritos pela medicina de Hipó-
da vida, como ilustra Les douze mais figurez, poema anônimo do século XIV que funda a evolução fisiológica do homem no transcorrer do ano. A Idade Média conserva assim o biologismo dos Antigos, mas o supera ou o atenua por meio de
crates: a criança é úmida e quente; o jovem é quente e seco; o homem adulto é seco e frio; o velho é frio e úmido. O
nio, mas de caminhada contínua em direção ao reino de Deus.
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Laércio, "divide a vida do homem em quatro partes, atribuindo
uma releitura simbólica. Os cristãos não falam mais de
declí-
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Segundo Agostinho, o velho chega a ser considerado até um novo homem que se prepara para a vida eterna.
"Eles dormiam juntos?" A historiadora Irénée Marrou se interrogava: "Os amantes cantados pelos trovadores dormiam juntos?" Georges Duby se colocava a mesma questão. Ela permanece em aberto. Pois as relações entre o corpo e o amor não caminhavam juntas na Idade Média. De um lado, os romances corteses exaltam o amor, de outro a Igreja o parte ao meio ou o limita ao quadro estrito do casamento que se regulariza a partir do século XI. Mas a literatura provavelmente embeleza a realidade. O amor cavalheiresco ou "cortês" era talvez uma maneira de aliviar as carências sexuais e passionais de um tempo pouco propício às folias do corpo e aos arroubos do coração tal qual os pintavam os romances ou as canções. As guerras e as Cruzadas deixam pouco espaço ao romance, ainda que vários dos cruzados partissem em direção a Jerusalém com a finalidade de arranjar esposa, como atesta no século XII o cronista Foucher de Chartres, diante do celibato que o crescimento demográfico provocara. Nessas narrativas, após a troca de olhares - que mostra uma vez mais até que ponto a visão é um sentido primordial na Idade Média - e passada a paixão fulminante, o apaixonado se mostrava ora enamorado, ora suplicante, amante coroado por um beijo, depois, enfim, amante carnal. O Roman de Ia Rose dá lições sutis e excelentes de prazer sexual: "E quando eles passam à prática, que cada um faça sua tarefa tão habilmente e com uma precisão tal que o prazer venha no mesmo momento tanto para um quanto para outro ... Não é 96
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necessário que um deixe o outro para trás: eles não devem deixar de navegar até que ambos cheguem juntos ao porto; é então que eles conhecem o prazer completo." Volúpia e licenciosidade, erotismo e carícias, as histórias corteses são, com freqüência, histórias de adultérios, como para Tristão e Isolda ou Ginevra e Lancelote. Mas a Igreja velava, por meio das confissões que perseguiam os erros para converter os leigos à moral ascética, freqüentemente ajudados pelas famílias que desejavam arranjar casamentos, submetidos, contudo, ao consentimento mútuo desde o século XII. A Igreja concedia, entretanto, esse "tempo para beijar" de que fala Jean-Louis Flandrin e que se situa entre 91 e 185 dias por ano. O Carnaval do coração se manifesta sob a Quaresma do corpo. A fórmula é um pouco abrupta e peremptória, mas a Idade Média sem dúvida ignorou aquilo que chamamos amor. A palavra chega a ser pejorativa. Amor significa a paixão devoradora e selvagem. O termo caritas terá preferência, porque supõe uma devoção que implica formas de sensibilidade em relação ao próximo (com freqüência, pobre ou doente), mas livre de toda conotação sexual. Claro que os trovadores cantam o fin'amors, esse amor refinado chamado cortês porque nasceu nas cortes feudais da Provença. Mas a depreciação do amor em relação ao caritas não se modificará. O que não quer dizer que os homens e as mulheres da Idade Média não conheçam os arroubos do coração ou as folias do corpo, que ignorem o prazer carnal e a afeição pelo ser amado, mas o amor, sentimento moderno, não era um fundamento da sociedade medieval. Apenas Heloísa e Abelardo parecem constituir exceção. Eles estariam mesmo na origem, já que a autenticidade de sua 97
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correspondência é quase certa, da expressão do sentimento amoroso. Ambos, por exemplo, escapam às regras habituais do casamento. Mas, mesmo no caso dessa união extraordinária entre uma jovem de quinze anos e um mestre já maduro, oriundo da pequena nobreza e que será castigado por isso devido à maquinação de Fulbert, o tutor de Heloísa, o amor jamais é dito em primeira pessoa. E Heloísa e Abelardo
dei-
xarão de fora de seu amor o filho que tiveram. Chegou-se até a ver no amor cortês a imagem de uma homossexualidade recalcada. Esta, tolerada entre os gregos e os romanos, foi vigorosamente condenada pelo cristianismo. Mas, em particular no século XII, a homossexualidade parece ter sido tolerada, a ponto de fazer daquele século o século de Ganimedes.ê Depois, a partir do século XIII, a homossexualidade
foi definitiva e rigorosamente
que, no século Xv, tenha sido largamente cidade como Florença."
condenada,
mesmo
praticada
em uma
medieval-
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que, lembremos,
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ainda é 800/0 rural -
molda de
parte a parte a realidade e o imaginário. Uma relação de proximidade e de familiaridade se estabelece com os animais, mundo privilegiado dos símbolos. E de fantasmas. O erotismo emerge igualmente nas margens, nas miniaturas, em que se vê aparecer o corpo sob uma forma jamais representada em outro lugar. As margens são espaços de prazeres, de divertimentos, de ornamento. Elas são também - e sobretudo, talvez - espaços de anticensura, onde os temas escandalosos ou lúbricos
podem
florescer.
O corpo se liberta nas
margens." Assim, o erotismo também ilustra bem essa tensão que atravessa a Idade Média e combate uma idéia tenaz, a de uma época hostil ao corpo. Como escreve um jovem historiador, citando contribuições decisivas de Huizinga, Bakhtin e Eco, "o alegre saber erótico inventado na Idade Média depende da ambivalência, isto é, da mistura de gêneros. Os fabliaux participam ao mesmo tempo da obscenidade e do refinamento, a lírica ocidental mistura continuamente
sentimento
e sensuali-
Os homens e as mulheres da Idade Média conheciam o erotismo, apesar do anacronismo do termo, pois a palavra - origi-
dade, o encontro
nária do nome da divindade grega do amor e do desejo, Erossó irá adquirir seu sentido contemporâneo no século XVIII? É
das mulheres entregue ao Senhor penetrante, uma freira aleita um macaco à margem do romance de Lancelote, os claustros
difícil duvidar disso, de tal forma as canções e os [abliaux, as esculturas e as miniaturas transbordam de figuras obscenas, de
são habitados por monstros de pedra. Então, o espírito vivifica
posições perturbadoras,
místico com o divino manifesta-se no corpo
a carne. E o corpo tem uma alma.'
de corpos a corpos desenfreados.
Um erotismo inteiramente particular se desenvolve na Idade Média: o erotismo animalizado. Os manuais dos confes-
Enfim a criança aparece
sores atestam o esforço desses fantasmas e dessas práticas que unem os animais entre si ou ainda - metaforicamente, fora mesmo dos casos denunciados de bestialidade verdadeira -
A Idade Média mostra um relativo desinteresse
os homens aos animais, uniões que a Igreja condena, persegue e pune. A presença da floresta e dos campos na sociedade
tanto entre as mulheres das camadas superiores da sociedade quanto entre aquelas das classes sociais inferiores.
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pela mulher
grávida, que não é objeto de nenhuma atenção particular. Essa indiferença,
ou, antes, essa neutralidade,
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pode ser observada
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São Luís, por exemplo, leva sua mulher consigo à cruzada, durante a qual ela dá à luz em pleno período de guerras. A atenção dada à gravidez é tão frágil que, quando ele é feito prisioneiro pelos egípcios e sua mulher obtém o resgate para comprá-lo de seus raptores, está grávida de oito meses. Um episódio da vida da mulher de seu filho e sucessor, Filipe, o Ousado, que seguiu o marido na última cruzada de São Luís em Cartago, confirma esse interesse. Quando seu marido tornado rei volta para a França, ela, grávida, o acompanha em seu retorno, que faz por terra, à exceção da passagem da Tunísia para a Sicília. E na Calábria, quando atravessa a cavalo uma torrente avolumada pelas chuvas, ela cai e mor-
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O autor cita oportunamente lia florentino,
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a confissão de um pai de famí-
Filippo di Bernardo Manetti, recolhida
em sua
ricordanza e em que ele evoca a perda de seu filho único, levado, como sua mulher e sete de suas filhas, pela peste de 14491450. Esse testemunho de ternura paternal é, de forma semelhante, particularmente revelado r da relação que se estabelece entre o corpo da criança morta e o de Cristo, assim como da admiração de um pai por seu filho, que, antes de morrer, chega a se comportar como um bom cristão perfeito: "Chegado a seu fim, foi uma coisa admirável
vê-lo, nessa idade
ainda verde e fresca dos quatorze anos e meio, consciente de
re, assim como a criança que carrega. Portanto, não há um cuidado particular com a mulher grávida de classe alta. Como também não há com as camponesas, que continuam a traba-
que ia morrer ... Por três vezes ele se confessa em sua doença
lhar durante a gravidez. O interesse pela criança na alta Idade Média é tão pequeno a
espectadores ficaram tomados de emoção; enfim, tendo pedido o óleo muito santo e continuando a orar com os religiosos
ponto de Philippe Ariês ter chegado à conclusão de que não
que o cercavam, ele entregou pacientemente sua alma a Deus,"! Mas, ao lado do amor paternal e maternal, há o lugar que
existia nenhum, o que provocou a indignação de seus leitores e de inúmeros medievalistas. Em grandes linhas, é preciso, contudo, dar razão a esse "historiador do domingo"," como ele próprio se definia. Mas convém distinguir os problemas. De um lado, há o amor maternal e paternal, que constitui um dos raros sentimentos eternos e universais que se podem encontrar em todas as civilizações, em todas as etnias, em todas as épocas. Nesse ponto, Didier Lett permitiu "rever a imagem tradicional do pai medieval" - isto é, do pater familias, que se acreditava indiferente, autoritário e todo-poderoso sobre o corpo e a alma de sua prole -, sobretudo através do estudo das narrativas dos milagres, em que se vê, ao longo dos episódios trágicos, toda a extensão da afeição paternal na Idade Média," 1o
com uma grande diligência, pois recebeu o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo com tanta contrição e reverência que os
a criança ocupa na sociedade. Nosso mundo atribuiu-lhe lugar central, sobretudo particularmente,
onde
nos países mediterrâneos, seu estatuto
decorre
um
e na Itália daquele
da
"criança-rei". Ora, a Idade Média, com toda evidência, não atribuiu à criança uma tal dimensão. A importância dada à criança irá crescer, no entanto, a partir do século XIII. A princípio, e como sempre acontece na Idade Média, um sentimento poderoso vai buscar seu fundamento e sua legitimação na religião. É portanto
com a promoção
do menino Jesus que se
promove a criança, sobretudo através da redação de inúmeros Evangelhos apócrifos contando a vida do pequeno Jesus. Brinquedos de puxar e acalentar igualmente se multiplicam,
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visíveis nas miniaturas ou descobertos nas escavações arqueológicas. Acentuam-se as manifestações transbordantes de dor pela morte de uma criança, enquanto, anteriormente, sua freqüência havia produzido não uma indiferença, mas uma ausência de manifestação social a esse respeito. Esse aumento de atração e de interesse pela criança manifesta-se igualmente por meio da extraordinária voga da Natividade na liturgia e na iconografia medievais. As representações da Natividade adquirem assim, ao final desse período, um caráter muito mais realista, irmanando-se nesse aspecto à evolução da arte medieval em geral. A representação do nascimento de Cristo torna-se uma verdadeira cena de parto, com uma virgem dando à luz e servidoras que lavam a criança em uma bacia, enquanto nas representações anteriores o espectador podia ver apenas a presença de um São José com expressão de dúvida, resmungão mesmo, e freqüentemente risível, que, em um canto do quadro, tinha o ar de estar se perguntando como esse nascimento havia sido possível. Depois, no fim da Idade Média, o pai desaparece das representações da Natividade. Aproximando-se da realidade medieval, "o parto é antes de tudo um acontecimento familiar a que os homens não têm o direito de assistir"." Por outro lado, a criança é mais bem apresentada, com referência implícita ao Menino Jesus, cujo culto se desenvolve a partir do século XIII. A iconografia busca devolver a formosura, senão a beleza, do corpo e do rosto da criança. Os anjinhos (putti) multiplicam-se na arte religiosa. Enfim, a criança aparece. Mais do que nunca no Ocidente medieval, o sacramento essencial é o batismo. O costume consiste em batizar a criança o mais cedo possível, em seguida ao nascimento, pois ganha corpo, no fim da Idade Média e particularmente no século 1 02
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xv, um medo muito forte: o de os bebês morrerem sem terem sido batizados. O destino no além, dessas crianças mortas sem batismo, preocupa muito os teólogos e os confessores, principalmente Santo Tomás de Aquino. Os grandes escolásticos do século XIII concluem que as crianças mortas sem batismo serão privadas da eternidade do Paraíso. Elas viverão eternamente no limbo, em um limbo especial, chamado limbus puerorum (limbo das crianças), no qual os pequenos humanos não são vítimas de nenhum tratamento ruim, mas são privados da visão de Deus. Ainda que tenha se multiplicado no século XV aquilo que se chamou de "os santuários de extensão da vida", para os quais se levam as crianças natimortas e onde a tradição quer que elas reencontrem a vida temporariamente para serem batizadas. As crianças não batizadas beneficiam-se, portanto, de uma pausa em relação à morte a fim de escapar ao limbo. Mais uma vez, e ainda que não consista na imersão em uma bacia, o batismo das crianças, sacramento fundamental dos cristãos, permanece mais do que nunca um gesto corporal. Prestígio e malignidade da velhice Como vimos, a expectativa de vida é pequena na Idade Média. Os velhos são mais ou menos considerados uma exceção. Certos textos falam com freqüência de uma pessoa ou personagem que é velho quando ele não tem mais do que quarenta e cinco anos. Se se observar a duração da vida dos reis da França, é excepcional morrer com mais de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos. Os espaços sociais nos quais os homens e as mulheres têm vida mais longa adquirem um prestígio crescente. Isso é verdade sobretudo nos meios que adotam 1 03
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uma alimentação mais selecionada e seguem uma dieta mais sadia, a saber, os meios monásticos. Ao longo da Idade Média, os velhos beneficiaram-se, assim, dessa imagem dos velhos monges. Além disso, em uma época marcada pela ausência de arquivos ricos, a memória torna-se o apanágio dos velhos. E, como os homens da Idade Média atribuem muita importância à ancestralidade de um costume ou de uma tradição, a população consulta-os a respeito de todos os assuntos, como o caso daqueles velhos de um domínio da Ile-de-France a quem a mãe de São Luís, Branca de Castela, pergunta até quando irá o jugo dos servos, pedindo sua libertação. O caso das mulheres velhas é diferente. Antes de se tornar uma feiticeira em potencial, a velha tem, com efeito, má reputação. Um termo que se encontra com freqüência nos textos, e em particular nessas histórias edificantes chamadas de exempla, ilustra essa reprovação: vetula, a saber, a "velhinha", que serve sempre para designar uma personagem maléfica. Por conseqüência, e como ocorre freqüentem ente na Idade Média, a velhice é objeto de uma tensão - entre o prestígio da idade e da memória e a malignidade da velhice, a feminina em particular. Assim como em relação às crianças, situados entre a inocência (jesus disse: "Deixai vir a mim as criançinhas") e a malignidade suposta daqueles que ainda não entraram naquilo que já se chama de "a idade da razão", presas fáceis do diabo tentador, a velhice oscila entre a admiração e a reprovação. Do mesmo modo que o Menino Jesus é central na promoção da criança na Idade Média, a imagem dos patriarcas do Antigo Testamento é muito valorizadora para os velhos. Em todo velho, percebe-se Abraão. Mas, sublinha Didier Lett, "ele é igualmente denegrido pela imagem de decrepitude física e moral que apresenta e que lembra aos cristãos o pecado original"."
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A DOENÇA E A MEDICINA
As epidemias da Idade Média são freqüentemente evocadas, mais particularmente a peste. Com razão, aliás, pois essa infecção bacteriana comum aos homens e aos roedores fez numerosas devastações. Bastaram quatro anos para que a peste bubônica, ou "peste negra", dizimasse um quarto da população ocidental, entre 1347 e 1352. Como lembra Jacques Berlioz, essa epidemia "abre e fecha a Idade Média", e a estigmatiza com o selo desse flagelo." A primeira peste bubônica - chamada assim por causa da íngua que acusa a presença, sob a pele, do bacilo infeccioso - apareceu pela primeira vez entre 541 e 767, sem encontrar, contudo, as condições para um grande desenvolvimento. A segunda, a mais devastadora, pode ser claramente datada em razão das circunstâncias de sua aparição. A epidemia se iniciou na colônia genovesa de Caffa, no mar Negro, levada à Itália pelos navios. Em Caffa, com efeito, "bárbaros" mongóis que assediaram a colônia haviam lançado sobre os muros cadáveres empestiados, conscientes do caráter contagioso e mortal dessa doença. Graças a essa astúcia mórbida, eles conseguiram matar os colonos genoveses e se apossar da fortaleza. Os sobreviventes do combate espalharam esse bacilo nas cidades européias da Península, que, através da expectoração, se transmite de pessoa a pessoa. 12 Esse combate marca o início da "peste negra" e constitui um dos primeiros episódios da história da arma bacteriológica, já utilizada, segundo o Antigo Testamento, durante o episódio da "peste dos Filisteus". Segundo as historiadoras Jole Agrimi e Chiara Crisciani, a peste introduziu na Idade Média, de maneira brutal, "uma morte de tipo novo, repentina e selvagem. A doença identificava-se, 1 05
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assim, com a morte". 13 "Um terço do mundo morreu", chegou a escrever o cronista francês Froissart sobre essa doença nova. ''As relações entre a comunidade dos vivos e o mundo dos defuntos ficaram transtornadas. Os cortejos e as cerimônias tradicionais de luto tiveram de ser proibidos em numerosas cidades. Os mortos eram empilhados diante das portas das casas. O enterro, se fosse possível, era sumário, e o ritual era reduzido ao mínimo", prosseguem Jole Agrimi e Chiara Crisciani. A imaginação tem dificuldade em ressuscitar um tal clima de medo e pânico, de dores corporais e espirituais. As recomendações sanitárias do Tratado da peste (Tractatus de pestilentia), de Pietro da Tossigno, permitem dar uma idéia das precauções exigidas para se proteger do flagelo, lembrando aquelas que nossos contemporâneos seguiram quando da epidemia de pneumopatia atípica (SARS),declarada e provavelmente nascida no sudeste da Ásia: "É preciso evitar cuidadosamente os debates públicos, quando for possível, a fim de evitar que os hálitos se misturem e que uma só pessoa possa infectar várias. É preciso, portanto, permanecer só e evitar aqueles que vêm de um lugar cujo ar está infectado." Apesar das recomendações, a "peste negra" assinala seus limites, como "a falência da medicina escolástica", que se acha impotente para domar o flagelo, mergulhando assim a profissão de médico em uma crise profunda: a corporação entra em competição, naquele momento, com a dos cirurgiões e a dos barbeiros, que viviam até então em uma relativa complementaridade. Mas, além do fato de que o foco da atenção sobre a peste contribui para alimentar uma "lenda negra" da Idade Média, ela oculta a realidade do estado sanitário dos "homens frágeis" desse tempo, cujos "corpos", escreve Jacques Berlioz, "são submetidos aos imprevistos do meio ambiente". A histó106
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ria das doenças é antes de tudo a das endemias, a das doenças mais constantes. À imagem da "suette", doença que consiste em uma febre muito forte, produzindo suores intensos e que apareceu no fim da Idade Média, no século XlV. A exemplo da tuberculose ou das "escrófulas", isto é, da adenite tuberculosa. À imagem também da lepra, que se estende pela Europa a partir do século VII e constitui "o maior problema sanitário da Idade Média". 14 Mas a lepra constitui também uma questão espiritual, pois, na Idade Média, não há doença que atinja o corpo como um todo que não seja simbólica. O leproso é assim um pecador que busca libertar sua alma e seu corpo de suas imundícies, em particular da luxúria. O corpo sofredor do leproso é a lepra da alma. Considera-se com freqüência que o leproso foi engendrado por seus pais em períodos durante os quais a copulação é proibida aos cônjuges (Quaresma, vigílias de dias santos etc.). Propriamente falando, a lepra é o produto do pecado, e do pior deles: o pecado sexual." As raízes dessa degradação vêm de longe: "Tanto quanto durarem suas feridas", diz o Levítico (13,46), o leproso será "impuro, sim impuro; ele habitará só e sua casa ficará fora do campo." Os leprosários (havia dois mil deles na França em 1226) vão se tornar, dessa forma, os locais de desterro - aqueles dos "hereges", de que os leprosos são uma metáfora -, de segregação e de punição, que, como Michel Foucault mostrou a propósito da loucura, irá preparar outros. Pela cerimônia da morte civil, o leproso se tornava um morto-vivo, privado de seus bens, distanciado de sua família e de seu ambiente social e material. Autorizado a sair, ele deveria evitar qualquer contato agitando sua barulhenta matraca, cujo ruído o identificava. Essa doença e a heresia são freqüentemente associadas: "Como a lepra, a heresia é 1 07
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uma doença da alma que se exprime simbolicamente através de um corpo doente, a ser extirpado do corpo sadio da Igreja. No século XII, o monge Guilherme, dirigindo-se ao herege Henrique de Lausanne, o acusa nestes termos: 'Tu também, tu és um leproso, ferido pela heresia, excluído da comunidade pelo julgamento do padre, de acordo com a lei, caminhando com a cabeça descoberta, vestido com farrapos, teu corpo coberto por uma roupa infecta e repugnante, tu deves gritar continuamente que és um leproso, um herege e um impuro, e deves viver só, fora do acampamento, isto é, fora da Igreja. "'16 Como sempre, a metáfora é polivalente. O beijo nos leprosos, de que Cristo deu o exemplo, é uma marca de grande piedade. São Luís esforçava-se para isso. "Para os médicos da Antigüidade", escreve o grande historiador do pensamento médico Mirko D. Grmek, "todas as doenças eram somáticas. As doenças da alma não passavam, para eles, de invenção dos moralistas. O resultado dessa tomada de posição era a divisão do campo das doenças psíquicas entre os médicos e os filósofos. Mas para o homem da Idade Média, tanto nas civilizações cristãs quanto no mundo islâmico, não era possível separar os acontecimentos corporais de sua significação espiritual. Concebia-se a relação entre a alma e o corpo de uma maneira tão estreita e imbricada que a doença era necessariamente uma entidade psicossomática."!" Por essa razão, a maior parte dos milagres atribuídos aos santos são milagres de cura.
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po" é apenas, pensa-se, a parte visível. "Símbolo por excelência do pecado", o leproso é também "a imagem de Cristo que toma para si todas as imundícies do corpo e que se faz o mais abjeto entre os abjetos para salvar a humanidade"." A tensão aqui é manifesta: "O doente é um rejeitado assim como um eleito". Um preceito da Bíbliaé aqui determinante: "Christus medicus"; Cristo é um médico: médico do corpo - de que são testemunhas suas curas miraculosas -, médico da alma - já que ele mostrou ao homem o caminho da salvação. "Cristo é também um medicamento, pois ele também foi utilizado para curar as feridas de nossos pecados. Enfim [...], ele indica ao doente o valor do sofrimento e da paciência silenciosa enquanto medicamento do espírito; e ele nos ensina a paciência da caridade, confiando-nos também, através de sua ressurreição, a garantia do resgate da carne", resumem Jale Agrimi e Chiara Crisciani. Cristo é igualmente um corpo doente, um corpo que sofre.
A "boa mistura" e a teoria dos quatro humores
A tensão que atravessa o corpo na Idade Média é novamente perceptível nessa doença da alma, da qual "a corrupção do cor-
Assim, a arte de curar não está apenas do lado do Diabo, mas também do lado de Deus. A Igreja travou um combate obstinado contra os curandeiros mágicos vindos do paganismo "bárbaro", seguidores de Satã, que de modo algum se mostra mais nefasto do que na possessão dos corpos, numa mistura de sedução e violência. Jean-Pierre Poly,aliás, descreveu bem esses "encantos da possessão" e esses "encantamentos do corpo" que a Igreja combateu. 19 A medicina, portanto, irá se desenvolver principalmente em torno da patologia dos humores, isto é, da "teoria dos quatro humores". Habitualmente atribuída ao médico grego Hipócrates (cerca de 460-377 a.C), a patologia aparece em um texto de seu genro Políbio, igualmente originário da ilha
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o doente,
rejeitado e eleito
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de COSo"O corpo do homem contém sangue, fleuma, bile amarela e bile escui a", escreve ele na Natureza do homem. Eis o que constitui a natureza do corpo; eis o que é a causa da doença ou da saúde. Nessas condições, há saúde perfeita quando esses humores estão em uma justa proporção entre si, tanto do ponto de vista da qualidade quanto da quantidade, e quando sua mistura é perfeita. Há doença quando um desses humores, em quantidade muito pequena ou muito grande, se isola, e não é apenas o lugar que ele abandonou que adoece, mas o local em que ele irá se fixar e se acumular - em conseqüência de um entupimento excessivo - também provoca sofrimento e dor. Essa maneira de considerar a doença uma perturbação
das
relações entre os quatro humores irá estender-se ao conjunto da medicina ocidental. Mas convém lembrar um texto decisivo de Alcmeão de Croton (c. 500 a.C), médico e filósofo da Itália meridional, segundo o qual, recorda seu doxógrafo, "a saúde se
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social. "Uma nova 'arte médica' constitui-se justamente com a finalidade de ajudar a natureza humana em seus esforços para conservar e reencontrar as boas proporções e o equilíbrio, tanto no interior do corpo quanto em suas relações com o exterior", resume Mirko D. Grmek. Se a medicina hipocrática não retomará a terminologia
de Alcmeão, a idéia da "boa mistura" irá
trilhar seu caminho, sobretudo através do médico grego Galeno (c. 131-c. 201), que permanecerá uma das referências obrigatórias da arte médica medieval. Assim, no século VII, Isidoro de Sevilha (570-636) poderá afirmar, em suas Etimologias, que todas as doenças "nascem dos quatro humores" e que "a saúde é a integridade do corpo e a boa mistura da natureza no que diz respeito ao quente e ao úmido". Para retomar essa metáfora sanitária, a "boa mistura"
da
medicina medieval é a de Galeno e de Aristóteles. Aos quatro humores do galenismo juntam-se, com efeito, as quatro causas aristotélicas, simplificadas em numerosos tratados: "a causa eficiente é o ato médico ou o próprio
médico; a causa mate-
mantém pelos direitos iguais [isonomia] das qualidades, úmido, seco, quente, azedo, doce e outros, enquanto o reino exclusivo [monarchia] de um dentre eles produz a doença. As doenças
rial é o corpo humano; a causa instrumental, a lanceta, o escalpelo ou qualquer outro meio terapêutico; e a causa final é o restabelecimento da saúde", resume Danielle jacquart." Uma mistura dogmática que as universidades medievais, como
ocorrem, no que diz respeito ao agente, por causa do excesso de
a de Salerno em particular,
não deixarão de comentar.
calor ou de secura; no que diz respeito à origem, devido à falta ou excesso de alimentação; no que diz respeito ao lugar, no sangue, na medula e no cérebro [...]. Às vezes, elas também decor-
Irmão corpo
rem de causas externas, tais como a água, o lugar, as fadigas, a angústia ou coisas análogas. A saúde, conclui Alcrneão, é a [boa] mistura". Esse texto ilustra da melhor forma possível que a isonomia, isto é, o equilíbrio dos elementos corporais, assegura a saúde tanto no corpo humano quanto no corpo
Com a Renascença do século XII - que, como já vimos, corresponde ao desabrochar do indivíduo -, o corpo do homem sofrendo em sua carne é levado mais em conta. Antes do século XII, observa Georges Duby em Mâle Moyen Âge21 [Idade Média masculina], "a cultura 'feudal' aparece muito
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pouco preocupada - em todo caso, muito menos que a nossa - com os sofrimentos do corpo". Se rejeita a idéia simplificadora da dureza e da rudeza da vida medieval, Georges Duby insiste na ideologia militar e masculina da época. "Darás à luz na dor", diz Deus a Eva na Bíblia. "Ganharás o pão com o suor de teu rosto", anunciou a Adâo. Assim, haverá não somente morrer, mas também sofrer. Ao homem o labor, à mulher a dolor. "Decorre daí que a dor é, em princípio, assunto de mulher e que o homem, por conseqüência, deve desprezá-Ia. O homem digno desse nome não sofre; em todo caso, ele não deve manifestar que sofre, sob risco de se encontrar desvirilizado, de retroceder, de ser rebaixado ao nível da condição feminina", prossegue Duby. Mas "essa frieza não durou". A partir do fim do século XII, com efeito, opera-se o refluxo. O dolorismo, então, torna-se admissível. São testemunhas sobretudo a atenção e as louvações de São Francisco de Assis àquilo que ele chama de "irmão corpo". No que diz respeito às doenças e à relação com o corpo, São Francisco é, assim como em relação a numerosos outros assuntos, um personagem fascinante.v Trata-se, em princípio, de um homem doente, que sofre dos olhos e do sistema digestivo. E, se ele retoma a idéia dominante segundo a qual o corpo é o instrumento do pecado e até "o inimigo" que é preciso dominar e mortificar, este último permanece um "irmão", e as doenças, "nossas irmãs". Assim, se São Francisco se reporta ao único médico que ele reconhece, Cristo, ele aceita consultar os médicos do papa diante da insistência de irmão Elias, citando uma fala do Eclesiastesmais do que significativae determinante para o destino e o impulso da medicina: "O AItíssimo criou a medicina da terra, e o sábio não a desprezará" (XXXVIII, 4). Assim, "as louvações de São Francisco ao 'irmão corpo', os 112
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conselhos dirigidos por Hubert de Romans aos irmãos sobre a necessidade de se evitarem as mortificações físicas e as negligências 'higiênicas' que enfraquecem são prova de soberba e mostram que o corpo se tornou um valor que se deve sempre utilizar com fins espirituais, mas através de caminhos que não sejam sempre aqueles do sofrimento e da paciência"." Em resumo, os homens da Idade Média podem recorrer a um outro médico além de Cristo. Pouco a pouco, os médicos da alma - os padres - se distinguem daqueles do corpo os médicos -, que vão se tornar ao mesmo tempo sábios e profissionais, assim como uma corpo ração, um corpo de ofício. Surgem escolas de medicina, assim como universidades em que homens se formam em uma ciência que é considerada, sem dúvida, um dom de Deus, mas, igualmente, um ofício. Os médicos trabalham, pois, como profissionais pagos (mais para os ricos, nada ou quase nada para os pobres), não devido à terapia ou socorro que trazem (que são dons de Deus), mas "devido à preparação e ao trabalho que lhes exigiram muito zelo e fadiga"."
A urina e o sangue Para o estabelecimento dos diagnósticos, a prática antiga fundada sobre a tomada do pulso e o exame da língua foi eclipsada por uma técnica nova: a uroscopia, ou exame da urina, difundida pelos bizantinos e os salernitanos e melhorada por Gilles de Corbeil (1165-1213). Esse método necessitava de um recipiente de vidro (matula), que se tornou a insígnia corporativa dos médicos, que tenderam a reduzir a semiologia médica à uroscopia. Ao lado dela, a sangria, outra conseqüência da teoria dos humores, era larga e sistematicamente praticada. 113
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Por exemplo, de modo regular nos mosteiros e nos conventos. Estamos muito próximos de Moliêre e de seus médicos.
Sob a máscara de Galeno
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não é a minha demanda que pleiteio, mas a dos árabes." Quando um médico medieval aplica um método que lhe parece novo, ele declara, portanto, que o leu em Galeno. Isso supõe que a medicina medieval não ficou tão estagnada como se tende a acreditar.
Prova isso mesmo que não
Com freqüência, insistiu-se no nível muito frágil da medicina medieval, livresca mais que experimental, e cujos remédios
existissem universidades de medicina na época - com a notável exceção da de Salerno, na Itália -, o fato de que os
eram sistematicamente os mesmos de Galeno. Essa visão popularizada pelo filósofo inglês Roger Bacon, que, em De
grandes personagens demonstram sua preocupação em recorrer na maior parte do tempo aos grandes médicos, em grande
erroribus medicorum (c. 1260-1270),
parte judeus, o mais das vezes cirurgiões. Ainda que, depois da separação entre a cirurgia e a medicina através do Concílio de Tours (1163), a cirurgia tenha
fustiga a "multidão
de
médicos" que se dedica a "brigar por questões sem fim e com argumentos inúteis" - não poderia, contudo, resumir a medicina escolástica medieval. De um lado porque "os médicos medievais não se desinteressaram da experiência", desde que esta estivesse, entretanto, "sustentada pela razão", como demonstrou
Danielle jacquart." De outro lado, porque a atri-
buição a Galeno de numerosos remédios esconde as invenções propriamente medievais. Galeno é uma máscara. Pois, sob a pressão ideológica da Igreja, a Idade Média é uma crítica teórica da novidade. E as descobertas trás do biombo dos Antigos.
médicas se escondem
de-
No século XII, um intelectual inglês, Adelardo de Bath, escreveu, com efeito: "Nossa geração tem essa falha enraizada, que é a de recusar tudo aquilo que pareça vir dos Modernos. Da mesma forma, se me ocorre uma idéia pessoal, se quero torná-Ia pública, eu a atribuo a algum outro e declaro que 'foi um outro que disse, e não eu' e, para que acreditem inteiramente em mim, digo, a respeito de todas as minhas opiniões, que são de 'um outro inventor, e não minhas'. Para evitar o inconveniente de se pensar que eu, ignorante que sou, extraí de mim mesmo as minhas idéias, faço crer que as tirei de meus estudos árabes. Assim, 114
sido progressivamente continuará
rebaixada ao nível dos ofícios manuais,
a haver "grandes" cirurgiões, em particular aqueles
ligados aos reis e aos papas e lecionando nas universidades, tais como Henrique de Mondeville (c. 1260-c. 1320), cirurgião de Filipe, o Belo, e sobretudo Guy de Chauliac (c. 12981368), médico e cirurgião dos papas de Avignon (Clemente VI, Inocêncio VI e Urbano VI), formado pela Universidade de Montpellier,
cuja "grande cirurgia", realizada em 1363, se
impôs por mais de duzentos anos." Outra preocupação em relação ao corpo:
Galeno havia
introduzido a noção de "luta ativa contra o sofrimento e a doença", e os médicos e cirurgiões da Idade Média tentaram criar uma anestesia cirúrgica, em particular com uma "esponja sonífera" embebida em suco de meimendro, de ópio e de cânhamo-da-índia. Mas essas técnicas não funcionaram bem, e será preciso aguardar o século XIX para se obter uma anestesia geral. Contrariamente à idéia segundo a qual a Idade Média fazia pouco do sofrimento físico, a medicina medieval buscou os meios para atenuá-Io. 115
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Os limites da medicina escolástica Assim, "uma das façanhas da Idade Média foi impor à sociedade e ao mundo sábio, de maneira irreversível, o estatuto intelectual da medicina", escreve Danielle jacquart." O galenismo, isto é, a remissão quase sistemática às teorias de Galeno, permite, na virada dos séculos XI e XII, "lançar nas trevas do charlatanismo toda prática que não respondesse à doutrina comum ente admitida". Entretanto; a despeito de notáveis exceções, como Mondeville, a medicina científica demora a decolar na Idade Média. Mirko D. Grmek chega a observar que "os procedimentos diagnósticos dos médicos da Idade Média acusam um recuo em relação à prática clínica antiga. O exame de pulso e de urina foram levados a refinamentos sem ligação com a realidade patológica. Do mesmo modo, o diagnóstico astrológico desenvolveu-se como conseqüência prática da idéia segundo a qual os acontecimentos no corpo humano correspondiam às posições dos corpos celestes". Uma vez mais, a explicação para isso reside na tensão que atravessa o Ocidente medieval. Na Idade Média, o corpo em si não existe. Ele é sempre penetrado pela alma. Ora, sua saúde é predominante. Assim, a medicina é antes de tudo uma medicina da alma, que passa pelo corpo sem jamais reduzirse a ele. "Tachada de impotente sem a ajuda divina, a medicina que hoje chamamos científica era minoritária", escreve Bernard Lançon em La médecine dans I'Antiquité tardive et le haut Moyen Âge [A medicina na Antigüidade tardia e na alta Idade Média]. "Aarte médica irá extrair daí, porém, uma popularização de seus métodos e uma exaltação de sua imagem. Pensando medicamente o mundo, os Padres da Igreja 116
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conferiram-lhe, enquanto essa arte era ridicularizada ou vilipendiada, uma amplitude e uma dignidade sem precedentes. Tanto mais que Deus, os santos, os bispos, os clérigos eram considerados médicos. Proponho defender esse paradoxo: diminuída cientificamente e não rebaixada pelo apadrinhamento cristão, a medicina, ao mesmo tempo, foi exaltada por ele. Isso terá conseqüências para sua história na Idade Média. [...] Na ordem dos valores e das divisões do mundo, os únicos arcediagos eram, a partir de então, os santos, vivos ou mortos. Os médicos, cuja presença é atestada nos santuários de cura, encontravam-se reduzidos ao nível de simples assistentes. A medicina carnal foi, portanto, absorvida pela medicina espiritual. Medicina das almas, ela tomava para si, ao mesmo tempo, o corpo pa decente. " A hipótese é esclarecedora, pois permite compreender esse duplo movimento de exaltação e distanciamento da medicina científica. A partir do momento em que é preciso cuidar do corpo tendo em vista a salvação, o recurso ao milagre se mostrará fértil. Primado do corpo, mas primado da alma a ser salva do pecado. Assim, "se a Idade Média contribuiu muito pouco para a elaboração do modelo médico da doença, ela valorizou seu sofrimento. Ligando a etiologia da doença ao pecado, fez da doença uma via de redençâo"." Será preciso aguardar um novo contexto ideológico para que a medicina entre em um processo científico determinante para o corpo dos homens, com o risco de subtrair-lhe sua dimensão espiritual e simbólica: o século XVII. Mas a medicina medieval trouxe também importantes inovações técnicas, sobretudo no domínio da cirurgia: trepanação, redução das fraturas, operação da fístula anal, ligadura das hemorróidas, hemóstase por cauterização, extração de cor117
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metálicos com a ajuda de um ímã, sutura das
feridas do peito." Igualmente, a farmacologia medieval enriqueceu-se consideravelmente, em particular com o álcool e o mercúrio. Pois o álcool é uma descoberta da Idade Média. A destilação do vinho faz-se a princípio nos conventos para fabricar medicamentos. A primeira fase da história do álcool é
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do hospital medieval, lugar público e gratuito da caridade. Bem organizados, sem dúvida alguma, já que os hospitais distinguem "os verdadeiros e os falsos pobres, os verdadeiros e os falsos doentes, os doentes moralmente aceitáveis e aqueles que não o são"." Mas, na teoria, o hospital acolhe todos os
assim uma fase medicamentosa.
homens e de todas as condições, a exemplo dos domínios eclesiásticos aos quais são freqüentemente ligados. A distin-
Uma sociedade de assistência
ção social, contudo, escapa à Regra. De um lado, o espaço privado e doméstico do médico "sábio"; de outro, o socorro ao pobre doente no hospital, que só mais tarde se tornará um verdadeiro
lugar de cuidados e curas.
Esses limites da medicina medieval vão ser temperados pela sociedade de assistência que surge então, sobretudo através do desenvolvimento do hospital, em torno de dois valores cardeais da sociedade medieval, que são a caridade (caritas) e a enfermidade (infirmitas). Acaritas, elo do amor paternal entre Deus
Abrir o corpo
e os homens, decorre igualmente da fraternidade humana, já que, para amar Deus, é preciso amar nossos irmãos, diz a Igreja.
dissecação: "As primeiras dissecações aparecem no ensino médico no primeiro quartel do século XIII, em Bolonha, por volta de
Já a infirmitas, mais socialmente desvalorizada porque designa a fraqueza corporal e a dependência, torna-se pouco a pouco a condição de todos os "homens frágeis" daquele tempo, a condição da humanidade após o pecado original.
1340, em Montpellier, e em 1407, em Paris, onde só se tornarão regulares a partir de 1477", sublinha Marte-josé Imbault. A lenda negra de uma Idade Média obscurantista é resis-
Mas, numa época em que não é raro encontrar, em uma estrada, uma praça ou uma igreja, homens doentes e pobres,
o respeito
ao corpo retardou por muito tempo as práticas de
tente em relação a esse assunto, pois "a Igreja nunca proibiu explicitamente a dissecação do corpo humano", lembra Danielle
a enfermidade e a assistência não se reduzem à virtualidade, à teoria, ao conceito. A Regra de São Bento prega assim a hos-
Jacquart. Somente as violações de sepulturas e os roubos de cadáveres eram perseguidos. Não eram tanto os anatomistas que eram visados pelas proibições eclesiásticas - sobretudo
pitalidade,
pela decretal promulgada
"a assistência aos enfermos",
que devem ser servi-
pelo papa Bonifácio VIII em 1299
dos exatamente como se serviria Cristo em pessoa. Pois Jesus diz: "Eu estava doente e vós me visitastes."
-, mas a moda que consistia em distribuir os despojos dos defuntos assim trinchados em vários locais de sepultamento. A
A cantas, primeira das virtudes teologais, assim como a infirmitas, freqüentemente associada à pobreza e à doença, vão se constituir em poderosas alavancas para o nascimento
dissecação médica não era proibida. Mesmo Galeno, o mestre dos médicos medievais, praticava a dissecação de animais. Assim, em Bolonha, em Salerno, em Montpellier, em Paris, a dis-
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secação do corpo humano tornou-se uma prática pública e didática. O saber livresco predomina, entretanto. A abertura dos corpos era freqüentemente destinada a confirmar ou ainda a verificar Galeno. Como resume justamente DanielIe Jacquart, "o corpo era 'lido' antes de ser visto".
MORTOS E MORIBUNDOS: GLORIOSOS OU ATORMENTADOS
Cada civilização define-se pela maneira como enterra seus mortos, pelo modo como a morte é vivida e representada. O Ocidente medieval não escapa a essa regra. Desde os trabalhos fundadores de Johan Huizinga a propósito do "lamento pela brevidade das coisas terrestres" e o "júbilo pela saúde da alma", que constituem, segundo ele, os dois extremos do pensamento clerical medieval em relação à morte, as pesquisas históricas se enriqueceram com avanços preciosos, como os de Philippe Ariês," para quem a "morte domesticada" da alta Idade Média precedeu uma visão mais dramática do falecimente"," a partir dos séculos XII e XIII. "Não há dúvida de que na Idade Média", escreve Norbert Elias em um texto crítico e esclarecedor," "falava-se mais francamente e mais correntemente do que hoje sobre a morte e a agonia [...], o que não quer dizer que elas fossem mais tranqüilas." Para Norbert Elias, com efeito, Philippe Ariês "busca fazer com que partilhemos de sua hipótese, segundo a qual os homens, outrora, morriam na paz e na tranqüilidade. É somente na época contemporânea, segundo ele, que as coisas passam a ocorrer de outra maneira. Com espírito romântico, Ariês lança um olhar cheio de desconfiança - em nome de um passado melhor - sobre um presente ruim". Ora, continua 120
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Elias, "ao longo dos numerosos séculos da Idade Média, o medo da morte também não se situava sempre no mesmo nível social. E aumentou de maneira considerável ao longo do século xrv. As cidades cresciam; A peste se espalhava por toda parte, varria a Europa e reforçava esse medo. Nos escritos e nas imagens aparecia o tema das danças macabras. Uma morte tranqüila no passado? Como essa perspectiva é unilateral!". Trata-se, portanto, de inverter a perspectiva. Ou, antes, de modificar a abordagem. Pois a morte está em outro lugar. Sem remeter as concepções de Ariês ao limbo do romantismo e do passadismo, o historiador Michel Lauwers tem razão em propor que, "mais do que a morte, os sentimentos e as atitudes que ela suscitou, são os mortos, os cuidados de que são objeto, o lugar e o papel que os vivos lhes atribuem que parecem constituir, para o medievalista, um objeto de história pertinente". Pois a morte é apenas um momento do sistema cristão, que liga este mundo ao além. O estudo da atitude em relação ao corpo dos mortos e dos moribundos permite, assim, tentar reencontrar os sentimentos medievais em relação a esse acontecimento singular e universalmente partilhado.
o breuiârio dos moribundos Com o tratado "dos cuidados devidos aos mortos", escrito por Agostinho em 421 e 422, a Igreja encontra seu breviário dos moribundos e sela "a carta funerária do Ocidente". Orar, celebrar a eucaristia e dar esmola por intenção dos defuntos - tais são as três maneiras de consolar os mortos segundo as regras eclesiásticas. Somente a morte da alma parece preocupar a Igreja, a extinção do corpo significando que a alma se liberta de 12 1
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seu invólucro carnal para juntar-se ao reino de Deus. Não é o normal, tolerado pela Igreja em um primeiro momento. Desde a Antigüidade, com efeito, os vivos se ocupavam dos corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em particular, eram encarregadas de lavá-los, de prepará-l os para juntarem-se ao reino dos mortos que, segundo a crença, retornavam às vezes para atormentar a alma dos vivos. Com o cristianismo, estabelece-se uma hierarquia entre os defuntos, sem colocar em questão as práticas herdadas do paganismo. Somente as sepulturas dos santos, dignificadas e manipuladas de diferentes maneiras, podiam ser objeto de celebração e veneração. Reza-se para os mortos, é certo, mas com a intercessão de novos heróis, os santos. Este mundo e o além comunicam-se. Assim, escreve Peter Brown, "a fronteira imemorial entre a cidade dos vivos e a dos mortos foi finalmente rompida"." Pouco a pouco, entretanto, a Igreja se encarrega dos defuntos. Nos séculos VIII e IX, em particular, ela se põe a condenar as práticas funerárias "supersticiosas". Missas dos mortos e orações estendem-se por todo o Ocidente. ''Ao contrário das necrópoles antigas, que acolhiam todos os mortos sem distinção, os cemitérios medievais, consagrados e bentos, submetidos à autoridade eclesiástica, foram progressivamente reservados apenas aos fiéis", resume Michel Lauwers. Os monges da época carolíngia, eles próprios "mortos no mundo", intervêm, então, como verdadeiros especialistas na memória dos defuntos e na separação da alma em relação ao corpo. Tornam-se os intermediários obrigatórios, os agentes indispensáveis da "passagem", praticando a última confissão, a extrema-unção ou redigindo os testamentos. A Igreja, então, monopoliza o corpo dos defuntos, hierarquizado segundo o prestígio social. Mas o costume e o uso perduram. "Nos 1 22
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campos e nas cidades, os cemitérios permaneceram locais de refúgio, de asilo, de reunião, de regozijo, lugares em que se fazia a justiça, onde se concluíam acordos, onde se negociavam mercadorias", explica. O corpo social resiste à cristianização da morte. A Quaresma controla a vida até o falecimento, mas o Carnaval não arrefece. Dança-se até sobre os restos dos defuntos, tanto para aproximar-se deles quanto para mantêlos a distância. Nos anos 1030, a fim de unificar e controlar práticas e calendário funerários, monges de Cluny inventam uma festa anual de todos os defuntos, o 2 de novembro. "Graças à nova festa", defende Michel Lauwers, "mais nenhum defunto escapava, pelo menos idealmente, à Igreja." Uma mudança ocorre entre o fim do século XII e o início do século XIII: a morte se individualiza. Colocando as confissões no centro da cristandade por ocasião do concílio de Latrão IV,a teologia estimula a guinada para a individualizaçâo, o exame de consciência, a introspecção. Fim do anonimato, túmulos com estátuas deitadas representando os mortos, desmembramento dos cadáveres reais destinados a multiplicar os locais de culto ou ainda, ao contrário, defesa da integridade dos despojos, o corpo dos defuntos é objeto de uma atenção particular. Em todo caso, a partir do século XIII, os ritos funerários da Igreja triunfam sobre os usos habituais. Os corpos dos defuntos trocam as casas pelas igrejas, que regulamentam os funerais. Esse fenômeno é igualmente o da urbanização dos mortos, inseparável da urbanização da sociedade medieval. O juridismo se impõe, sobretudo através do ressurgimento dos testamentos. O recurso ao imaginário ou à ficção jurídica permite até distinguir "os dois corpos do rei", como mostrou o grande historiador Ernst Kantorowicz. De um lado, 1 23
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o corpo físico do rei (ou do príncipe) extingue-se no dia de sua morte, mas, de outro, seu corpo político perdura e se perpetua." "O rei está morto, viva o rei!", declara-se de maneira ritual e solene a partir do século xv. Parece, todavia, que Kantorowicz exagerou um pouco o uso e a importância dos dois corpos do rei. Os homens da Idade Média, aí incluídos os clérigos, tinham uma concepção muito mais concreta do corpo do soberano. Pouco países, aliás, vêem essa concepção triunfar. Sob esse aspecto, a Inglaterra constitui uma exceção. E provavelmente não é por acaso que a expressão "o rei está morto, viva o rei" foi introduzida na França no século Xv, quando o país estava sujeito aos ingleses.
Presença dos mortos No "outono da Idade Média", as epidemias isolam mais que individualizam. Freqüentemente distantes de seus pais ou expulsos de suas terras, os vivos "descobrem" a morte. "Os temas macabros, representações de corpos em decomposição e jazendo descarnados, destinados sem dúvida a causar medo, a incitar ou a provocar arrependimento (assim como o faziam numerosas 'artes de morrer', amplamente difundidas a partir de meados do século XV), mostram também o pavor recente diante da perda da individualidade", escreve Michel Lauwers. "Talvez representassem o protesto de uma sociedade diante da solidão e do abandono." Talvez estejam aí Ariês e Elias reconciliados em uma dupla refutação. Pois se a "morte tranqüila" do primeiro não parece ter sido o quinhão dos homens da Idade Média, "a solidão dos moribundos" do segundo não é apanágio apenas dos contemporâneos. Em todo caso, uma coisa é certa: a presença dos mortos 124
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é repleta de significados na Idade Média. Na realidade como no imaginário. A partir do século XII, Hellequin, o "rei dos mortos", que reina sobre uma horda de cavaleiros danados e outros anões luciferianos, espreita nos desvios dos caminhos, nas beiradas das florestas. É preciso evitar encontrá10, ele e sua sinistra família - "a mesnie Hellequin"* -, de medo de partir e acabar no inferno. Há apenas uma maneira de escapar disso: preservar em seu corpo, até a morte, a marca, o traço indelével que certifica a autenticidade da aparição. Assim, as narrativas de espectros se desenvolvem, sobretudo a partir dos séculos X e XI. Esses espectros que atormentam os vivos são com freqüência "mortos prematuros" ou "anormais", isto é, fantasmas de pessoas que sucumbiram violentamente: vítimas de assassinatos, mulheres dando à luz, crianças não batizadas ou ainda os suicidas. As aparições são de mortos que reclamam os "sufrágios" dos vivos (missas, esmolas e outras preces) a fim de escapar ao purgatório, objeto de tarifação e mercantilização. Por habilidade e por convergência doutrinal, a Igreja acompanha e encoraja a difusão dessas narrativas, até então remetidas à superstição e ao paganismo. Paradoxalmente, o corpo é atingido por suas aparições fantasmagóricas. "Longe de atingir apenas o espírito do sonhador ou o do visionário, elas podem agir em seu corpo; longe de serem totalmente imateriais, elas podem possuir uma certa corporeidade; longe de serem totalmente indiferentes ao corpo do morto, elas podem, no caso da aparição de um
"No imaginário medieval, o Hellequin é o mensageiro do Diabo, que conduz um grupo de demônios ("a mesnie Hellequin"), Dele teria derivado, já em uma versão burlesca, o Arlequim da commedia de/l'arte. (N. do T.)
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morto, manter relações com o cadáver", destaca]ean-Claude Schmitt, em seu grande estudo sobre os espectros." De fato, em numerosas narrativas, estes queimam os vivos. Conta-se mesmo, em um famoso exemplum do século XIII e em A lenda dourada, de ]acopo da Varazze, que, para convencer o mestre universitário Seria da vaidade de seu saber, "o espectro deixa cair sobre sua mão uma gota de suor incandescente, que, instantaneamente, o atravessa de um lado a outro". Os fantasmas saem dos túmulos, atormentam os vivos, chegam até a lutar com eles ou bebem seu sangue, em particular nas impressionantes narrativas de Yorkshire de fins do século XII. Shakespeare é bem um homem da Idade Média. Assim como os dos santos, cujo "odor de santidade" escapa dos cadáveres, os corpos dos espectros não se putrefazem. Os corpos dos santos e dos ruins escapam assim à dura lei fisiológica. Uma nova arte, originária das representações medievais da morte, frustra também todas as regras da biologia: a arte macabra. O tema das "três mortes e das três vidas", de origem incerta, estende-se no Ocidente a partir do século XIII. Trata-se de um diálogo entre três jovens e três cadáveres com a finalidade de fazê-Ias compreender a sorte de cada um: "O que vós sais, nós o fomos", diz o primeiro morto. "O que nós somos, vós o sereis." Certos historiadores e semiólogos viram na palavra "macabro" uma onomatopéia que daria a entender, na língua, o choque de ossos, outros viram uma dança dos esqueletos (mactorum chorea). Seja o que for, a arte macabra, isto é, as obras relativas ao cadáver, triunfa, sobretudo na dança. Como observa André Corvisier, "os poemas dos mortos são em princípio formas de sermão"." Dirigem-se, portanto, à alma em primeiro lugar, mas a obsessão pelo cadáver em 12 6
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decomposição é onipresente, como para lembrar a igualdade que une os homens de uma sociedade, porém fortemente hierarquizada na morte: "E, se serão comidos por vermes/ Vossos corpos, infelizmente, olhai para vós mesmos/ Mortos, apodrecidos, fétidos, descobertos/ Como somos, assim sereis vós", cantam os poetas. E, para completar a sátira social, dizse do cadáver do rei: "Não é nada além de carne para os vermes/ Todos estando aos vermes destinados." Mas a arte macabra se estende a todas as formas de representação, iconográficas em particular. Afrescos, esculturas, miniaturas, gravuras ou cartas de jogar, a imagem - esse "livro do pobre" - infunde nos espíritos o terror da morte e a aversão ao cadáver que se desenvolve no século XlV, isto é, na Idade Média tardia. A peste e a lepra contribuem incontestavelmente para esse medo renovado. Prefere-se então a representação do cadáver ao esqueleto, até então mais amável e quase cômico. O transi* (aquele que passou) ou as estátuas de mortos fazem então sua aparição sobre os túmulos e sepulturas cristãos, como a do cardeal Lagrange, na França, sobre o túmulo do qual se encontra representado um cadáver que remete à sua vaidade e à sua humildade: "Tu serás logo como eu, um cadáver medonho, pasto dos vermes." Contrariamente à nossa época, quando o medo parece estar focalizado na dor e na agonia, o maior temor dos homens da Idade Média era a morte súbita. Com uma morte precipitada, corria-se o risco de morrer em estado de pecado mortal e, assim, reforçavam-se as chances de ser condenado ao inferno. Como ensina o Evangelho de Mateus, no fim dos "Figura escultórica da Idade Média ou da Renascença que representa um cadáver devorado pelos vermes. (N. do T.)
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tempos, quando do Juízo Final, Deus separará os maus justos. De um lado, os "bodes" irão encontrar o caldeirão diabo e o fogo eterno do inferno, de outro, as "ovelhas" rão conduzidas ao jardim do paraíso. A conduta da vida
dos do sede-
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ças mortas sem batismo, que, como vimos, é uma espécie de peneira destinada a poupá-Ias do suplício do inferno, metáfora é ainda corporal: a goela. Pois, como mostrou notavelmente
ruja
Jérôme Baschet em seu
termina o destino após a morte. Aos pecadores, o inferno; aos piedosos, o paraíso. As mulheres e os homens da Idade
estudo sobre as representações do inferno na França e na Itália, a goela torna-se, a partir do século XI, "o motivo quase
Média são invadidos por esse pensamento, te celeste ou funesto.
obrigatório
por esse horizon-
A essa dualidade do além, o cristianismo do Novo Testamento acrescenta o episódio da ressurreição dos corpos que se segue ao Juízo Final. Como lembra jérôrne Baschet, "o destino no além não é apenas a sobrevivência
da alma, é também o
destino eterno do corpo ressuscitado. Os condenados serão, portanto, atormentados, em seu corpo e em sua alma, e os
da representação
infernal", que se pode observar
sobretudo nos tímpanos das catedrais de Paris, de Chartres ou de Bourges." Trata-se, em um primeiro momento, da goela imunda e gigante do Leviatã, monstro da mitologia fenícia que engole os danados. A pior das dores do inferno é, mais uma vez, corporal: é a danação, visão da SantÍssima Trindade.
que consiste na privação da
Assim, destaca Jérôme Baschet,
eleitos se beneficiarão, na beatitude celeste, de um corpo glorioso, dotado de dons maravilhosos,
deslocando-se
sem esforço,
radiante de luz, de uma perfeita beleza e eterna juventude. Tal é a redenção que o cristianismo promete, no outro mundo, a esse corpo que ele consagra neste mundo ao desprezo"." A partir da segunda metade do século XII, surge um terceiro lugar, uma espécie de sala de espera, inventada para os pecadores comuns, isto é, os mais numerosos: o purgatório." Nesse lugar subterrâneo, as almas dotadas de um tipo de corpo eram atormentadas como no inferno, mas com a esperança de sair, de que o tormento
termine. E, pela graça de
Deus, mas também com a ajuda da Igreja, que tinha o poder de diminuir os dias de pena pela outorga das "indulgências", havia esperança de reencontrar o corpo glorioso do paraíso.
o inferno aparece como um poder animal, manifestando uma hostilidade devoradora sublinhada por suas presas afiadas, sua mandíbula caricata e seu olhar hipnótico. No meio da agitação das chamas e das serpentes, os demônios, de corpos animalescos e monstruosos, se movimentam com suas garras e suas armas. Entre os danados, empilhados de maneira confusa ou postos a ferver em um caldeirão, reconhece-se com freqüência, por seus barretes, reis e bispos (também os há no paraíso!), assim como o avaro, com sua bolsa em torno do pescoço, e a luxuriosa, mordida nos seios e no sexo por serpentes ou sapos. A partir do século XIv, a imagem infernal do Leviatã cede cada vez mais espaço ao "imperador da dor", isto é, a Satã, como
A morte torna-se assim "o salário do pecado". A geografia do além enriquece-se igualmente nos dois limbos, o dos patriarcas (libertados por Jesus no Antigo Testamento) e o das crian-
escreve Dante. "Vê-se igualmente diversificarem-se os suplícios:
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enforcamento, amputação, castração, o corpo colocado para assar em um espeto, esfolamentos ... O abundante repertório dos cas-
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tigos da justiça terrestre é convocado e até largamente ultrapassado por esse imaginário sádico", escreveJérôme Baschet. "Além disso, existe a preocupação de adaptar o castigo à falta cometida: os coléricos se apunhalam mutuamente, os avaros são marcados com ouro fundido, os sodomitas são empalados, os orgulhosos são esmagados sob os pés de Satã, os luxuriosos, unidos em uma cópula eterna (no fogo!), os glutões são colocados diante de uma mesa sem poder comer." Assim, como diz jean-Claude Schmitt, na Idade Média "os mortos estavam no centro da vida, como o cemitério estava no centro da aldeia"." A tensão que atravessa o corpo na Idade Média é ainda manifesta no caso da morte: "A alma é 'espiritual', mas 'passível': ela é torturada no inferno ou no purgatório por um fogo ou um frio que os homens da Idade Média [...] imaginam tão concretamente que os chamam de 'corporais'." De fato, constata jean-Claude Schrnitt, a cristianização medieval jamais pôde resolver a contradição entre duas de suas exigências mais profundas: "De um lado, o desejo de negar o corpo para melhor voltar-se para Deus e, portanto, assimilar o 'espiritual' ao imaterial; de outro, a necessidade de imaginar o visível, portanto, de situá-Ia no espaço e no tempo, de conceber lugares, formas, volumes e corpos de onde eles deveriam ter sido excluídos."
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3. Civilizar o corpo
Na impossibilidade de controlá-lo completamente, a Igreja irá dedicar-se a codificar, regulamentar, arregimentar o corpo. Herdando comportamentos antigos e pagãos que refuta, recusa, acompanha ou acomoda, ela se apropria das práticas corporais. Arte culinária, beleza, gestos, amor, nudez... todos os domínios da vida social e privada que colocam em jogo o corpo vão ser inseridos nessa nova ideologia que triunfa na Europa. Mas tratase de uma evolução de longa duração. O cristianismo instituído e a sociedade de corte nascente vão "civilizar o corpo" através da instituição das boas maneiras. Entretanto, o corpo resiste. No universo das margens e das narrativas literárias em que o erotismo e a nudez, por exemplo, se fazem ver. Nas festas populares em que os homens se divertem. No imaginário do país da Cocanha. Atravessado por essas contradições e essas oposições, o corpo em perpétuo movimento irá deixar grandes contribuições para a nossa civilização- a saber, uma certa concepção de civilização de que retivemos aqui alguns traços, exemplos e domínios entre numerosos testemunhos.
A GULA E A GASTRONOMIA
A tensão que atravessa o corpo no Ocidente medieval permanece viva, apesar de tudo. É pelo corpo que passam a peni1 33
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tência e o ascetismo, a mortificação e os jejuns. Um dos piores pecados é a gula (a goela), quase sempre associada à luxúria. Os monges desenvolverão, assim, um regime alimentar específico, uma dietética do corpo. Em um primeiro momento, a carne será proscrita, em proveito dos peixes e, melhor ainda, dos legumes, isto é, plantas e ervas selvagens para os eremitas que pensavam, assim, aproximar-se mais da imagem do jardim do Éden. Mas as correspondências e as convergências sociais e políticas entre a aristocracia e o alto clero irão aos poucos aproximar suas práticas alimentares. A carne reaparecerá nos mosteiros. Mas, ao mesmo tempo, a alimentação é, como vimos, um dos principais motivos de prazer. A civilização dos costumes alimentares irá progredir, portanto, de acordo com dois caminhos diferentes. Por um lado, por meio de um regime dietético, em geral oriundo das práticas alimentares monásticas e, por outro lado, através da busca - nas classes superiores da sociedade, nobres e burguesas, mas também eclesiásticas - dessa forma de refinamento que transforma a alimentação em cultura, a cozinha em gastronomia. E que dará uma respeitabilidade ao prazer. Duas alimentações, duas culturas: um encontro A Idade Média herda dois modelos alimentares opostos: a civilização do trigo e a civilização da carne. A primeira, mais precisamente, composta da tríade trigo-vinho-óleo, é a da Antigüidade mediterrânea dos gregos e dos romanos. A segunda pertence às populações bárbaras, os germânicos em particular, com freqüência lançadas pelos autores antigos nas trevas da bestialidade. Trata-se, seguramente, de um esquematismo, quase uma caricatura. Os bárbaros, igualmente, comiam 134
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e cultivavam cereais, de onde provinha sua bebida "nacional", a cervoise de cevada, que será destronada a partir do século XIV pela cerveja feita de lúpulo. Por sua vez, os romanos criavam animais e consumiam carne. Mas a oposição entre esses dois modelos exacerba-se nos séculos III e IV,quando o Império Romano é ameaçado. Para vários romanos, com efeito, a oposição entre uma civilização do trigo e uma civilização da carne assemelhava-se à oposição entre civilização e barbárie. Mais tarde haverá uma na oposição entre a cerveja, pagã e popular, e o vinho, cristão e aristocrático. No entanto, isso não impedirá os franciscanos de distinguir, no século XIII, os "conventos de vinho" e os "conventos de cervoise", sem estabelecer hierarquia entre eles. Como observou Massimo Montanari, "a simbiose entre esses dois mundos e essas duas culturas irá se dar porque os próprios vencedores do conflito, os Bárbaros, que se tornaram a classe dirigente na Europa medieval, cedem ao encanto do modelo romano e aceitam seus valores".' Mas não é necessário neglicenciar a força do cristianismo nessa conversão dos bárbaros ao modelo alimentar antigo: o pão, o vinho e o óleo são alimentos sagrados e litúrgicos, essenciais para essa nova religião que amplia seus domínios. Dito isto, a tensão permanece manifesta entre esses dois modelos, sobretudo através da promoção da floresta no espaço e no imaginário medievais.' A Idade Média irá, com efeito, civilizar a floresta, ao mesmo tempo detestável e desejável, buscada e evitada. Reserva de caça, espaço de colheita, lugar de pesca e de apicultura, caça e criação de animais em semiliberdade, a floresta em que fervilha todo um mundo de "boisilleurs", como diz Marc Bloch, torna-se um local de produção que completa o modelo agrícola e vitícola. O Grande Porco, animal célebre e celebrado das florestas, torna-se qua1 35
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se o equivalente da Grande Mãe, a Terra dos povos mediterrâneos. Em resumo, os modelos germânicos e romanos se encontram, a fim de criar uma cultura alimentar específica na Idade Média. Cereais e legumes, carnes e peixes: um modelo misto se estabelece pouco a pouco no Ocidente medieval. Ricos e pobres irão beneficiar-se dessa alimentação equilibrada. Sofre-se pouco com escassez e penúria na alta Idade Média, sobretudo devido à fraca pressão demográfica, mas igualmente porque a alimentação nesse período é sem dúvida mais equilibrada do que se acreditou por muito tempo. A horta, local de produção privativo, é isenta de imposto, contribuindo assim para as necessidades diárias. Desse modo, a Idade Média tende ao equilíbrio alimentar, que, provavelmente, não é sinônimo de segurança, de tal forma abundam os fIagelos, desigualdades e doenças. Antes do século IX, a caça era livre. O porco negro, mais próximo do javali que do porco que conhecemos hoje, era rei. O vinho triunfava, mesmo que a cervoise ainda servisse de símbolo ostentado pelos pagãos diante da sacralidade cristã. A água era suspeita devido aos germes e às doenças que veicula. Ao trigo dos agricultores romanos, a Idade Média dava preferência freqüentemente ao centeio e à aveia, à cevada e à espelta, ao milho miúdo e ao sorgo. As aves domésticas eram particularmente estimadas, enquanto a caça, cujo valor simbólico é muito grande, usufruía de um papel alimentar muito menos importante do que se acredita. A sociedade medieval estava mesmo em busca de um capão, pois conhecia o valor gustativo da carne de um galo castrado (outro "saber do corpo", animal desta vez). Trata-se de "civilizar o corpo": é lógico, portanto, que a sociedade medieval seja atraída mais por essas aves domésticas do que pela carne "báar b ara " d a caça. 1 36
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O desequilíbrio é antes social do que estritamente nutritivo, mais quantitativo que qualitativo. A distinção social passa pela alimentação. Prestígio da corpulência e do apetite ("não é digno de reinar sobre nós aquele que se contenta com uma refeição frugal", teria dito o arcebispo de Metz ao duque de Spoleto quando este foi reivindicar a coroa do rei dos francos), banquetes e festins: a aristocracia nobre e guerreira exalta a abundância, de que o país de Cocanha é o equivalente imaginário e popular. Pois, com a expansão demográfica dos séculos IX e X sem dúvida nenhuma, graças a essa situação de relativo equilíbrio alimentar -, os recursos silvestres e pastorais, em constante diminuição, são pouco a pouco confiscados pelas camadas superiores, que se apropriam dos espaços de produção e de caça. ''A abolição ou, pelo menos, a regulamentação muito estrita dos direitos de exploração dos espaços incultos - que foi perseguida de maneira sempre mais sistemática a partir da metade da Idade Média - talvez seja o acontecimento maior da história alimentar", propõe Massimo Montanari. Assim, "a alimentação das classes inferiores foi, desde então, essencialmente fundada sobre produtos de origem vegetal (cereais ou legumes), enquanto o consumo de carne (sobretudo de caça, mas também, de modo geral, de carne fresca) tornou-se o apanágio de um pequeno número e foi percebido cada vez mais claramente como sinal exterior de prestígio".' No lugar da oposição entre a civilização do pão e a da carne, que separava a civilização dos antigos e a dos bárbaros, aparece então a oposição entre pobres e ricos, que, de algum modo, se reveza com ela ou a substitui. Farinha e vegetais constituem, então, o regime alimentar comum dos camponeses mais humildes. O pão é considerado mais de acordo com o nível e a atividade dos laboratores. Carnes ovinas e até, de 1 37
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preferência, bovinas, enfeitam as mesas dos novos e ricos urbanos. A carne também é assimilada ao poder, à força, aos músculos, obtida graças ao corpo-a-corpo guerreiro e glorioso entre o homem e o animal. As boas maneiras Mas o esforço para civilizar o corpo prossegue. Como mostraram Norbert Elias, de modo precursor, e Jean-Louis Flandrin," na seqüência, a civilização dos costumes passa pelas boas maneiras e as artes da mesa. A preocupação com a distinção social e a busca quase obsessiva dos prazeres, isto é, os excessos alimentares da nobreza e da burguesia, conduzirão a essa forma de refinamento que transforma o alimento em cultura, e a cozinha, em gastronomia. Manuais de receitas culinárias nascem entre os séculos XIII e XlV. Sabores (a força dos temperos, tais como a pimenta, a canela ou o gengibre, a alfazema ou a galanga, a doçura do mel e das frutas secas, a acidez do agraço e do suco de limão), cores (o amarelo do açafrão, o branco da amêndoa, o vermelho do purê de morangos ou de cerejas), misturas (doce e salgado), cozidos (os assados são com freqüência preferidos às carnes e peixes fervidos), molhos e doces, toda uma arte da culinária vem juntar-se à arte de amar, lisonjear e desejar que anima as mesas burguesas, assim como as das cortes européias.' Se a mulher cozinha nas choupanas populares e aprende com a própria mãe, o cozinheiro profissional é um coquinarius, isto é, um comerciante que vende em barracas o fruto de sua arte. O chefe ligado a um mestre, o cozinheiro (coquus em latim) ou mestre-cuca, é uma pessoa importante nas grandes casas. A refeição, comum ou excepcional, é um ato social, codificado, hierarquizado, "que ao mesmo tempo distingue e une"." Plano da mesa, or1 38
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dem das refeições, serviço: uma civilização do corpo instalase com as artes da mesa e as boas maneiras. Proibição de cuspir, de assoar o nariz, de oferecer a um conviva um pedaço que se tenha previamente mordido ... a Idade Média civiliza as práticas alimentares. Não se come mais estirado, como entre os romanos, mas sentado. Com os dedos, é verdade, mas de acordo com regras estritas, à imagem dos comedores de carneiro assado em pedaços na esfera cultural islâmica. Uma distância conveniente entre os convidados também é algo a respeitar. O ápice material dessa "civilização dos costumes" será a invenção do garfo, que, após a Idade Média, virá de Bizâncio, via Veneza.
A ENCENAÇÃO DO CORPO
A civilização dos costumes na Idade Média é uma civilização dos gestos. Nesse mundo idealmente voltado para a espiritualidade, a renúncia à carne e os templos de pedra, o gestual não tem nada de natural. Nessa sociedade fortemente ritualizada, os gestos - as mãos juntas da prece, o beijo de homenagem vassala, promessas e contratos orais - os movimentos e as atitudes do corpo estão no centro da vida social. As representações e os hábitos também. O corpo dos eleitos estará nu ou vestido no Paraíso?, perguntam-se os teólogos medievais. Essa questão, como várias outras que dizem respeito ao corpo, está longe de ser anódina para uma sociedade que balança entre o desprezo e a glorificação do corpo. Assim, a nudez irá oscilar entre o apelo à inocência de antes do pecado original, a beleza dada por Deus aos homens e às mulheres e a luxúria. Assim, a beleza feminina oscilará entre Eva, a tentadora, e Maria, a redentora. Igualmente, as roupas caminharão entre a armadura 1 39
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e o ornamento. Quanto aos banhos e às saunas, que são com muita freqüência associados à prostituição, se não encontram seu estatuto e sua estatura antigos, constituem, à sua maneira, ocasiões de civilizar o corpo, que, por meio de numerosas representações, se coloca em cena. Nu ou vestido? Contrariamente à idéia consagrada, os homens da Idade Média não odiavam a nudez. É verdade que a Igreja a condenou. Mas o corpo nu permanece no centro de uma desvalorização e de uma promoção. O cristianismo rompe claramente com as práticas antigas, sobretudo as da ginástica - do grego gymnos, que quer dizer nu -, que os atletas exerciam despojados de toda roupa. Mas, a partir do momento em que o casamento se institui no horizonte da procriação, os casais são autorizados a dormirem nus, como atestam várias representações. Apesar disso, mesmo no estágio do casamento, o nu permanece uma situação perigosa. E a representação de cônjuges nus em um leito pode ser percebida como um sinal de luxúria. Apenas o contexto permite determinar se se trata de licença ou de obediência às leis do casamento e da procriação. Assim decaída, a nudez oscila entre a beleza e o pecado, a inocência e a malignidade. Adão e Eva são a encarnação da ambivalência da nudez humana na Idade Média. De um lado, são representados tentando esconder sua nudez, punição pelo pecado original. Mas, de outro, seus corpos - que evocam tanto a inocência original quanto o pecado - devem ser a ocasião de figurar a beleza dada por Deus ao homem e à mulher. A partir do século XIII, a freqüência das representações de Adão e Eva testemunha essa atração da nudez física humana sobre os medievais. 14
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Assim, nas representações da ressurreição dos mortos, os corpos saindo do caixão e do túmulo não são esqueletos, mas já estão vestidos com seu corpo de carne. Entretanto, o nu está em geral do lado do perigo, se não do mal. Ele está do lado da selvageria e da loucura. Quando, no romance de Chrétien de Troyes, o cavaleiro Yvain enlouquece e foge para a floresta, onde vive como um animal, ele se desfaz de todas as suas roupas. O nu é também uma das principais manifestações de risco moral, que são a falta de pudor e o erotismo. A roupa, ao contrário, é não somente adorno, mas também proteção e armadura. À nudez vêm se opor o hábito monástico e o uniforme militar, em particular. A passagem da nudez à roupa faz-se, para os personagens mais eminentes da sociedade, segundo ritos significativos: é a ordenação do monge e do clérigo, a investidura do cavaleiro. Quando da consagração dos reis, o abandono das roupas anteriores e a adoção de hábitos reais constituem um dos ritos de passagem mais importantes. A roupa manifesta aí sua natureza contraditória de despojamento e de vestimenta. Um caso particularmente impressionante é o de São Francisco de Assis, que manifesta sua conversão e seu engajamento no apostolado por meio de dois atos públicos de desnudamento. O primeiro, para mostrar sua renúncia solene de seus bens, de sua condição social, de toda a sua riqueza, consistiu em desnudar-se em presença do bispo, de seu pai e do povo de Assis. O segundo foi pregar nu no púlpito da catedral. São Francisco executa, ao pé da letra, a palavra de ordem proclamada, na virada do século XII para o XIII, pelos devotos da renúncia e da pobreza: "Seguir nu o Cristo nu." A literatura mostra bem como o ideal da cortesia se exprime muito especialmente através do jogo entre a nudez e a vestimenta. 1 41
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Os heróis corteses, homens e mulheres, são belos. Na mulher, a beleza dos cabelos, valorizada por suas tranças, realça a beleza do corpo nu, enquanto o corpo do homem cortês se oferece especialmente à admiração e ao desejo de sua dama e das outras mulheres que podem vê-lo. Lancelote, herói dos romances arturianos, é belo da cabeça aos pés: cabelos, olhos, boca, pescoço e ombros, braços, quadris, coxas e pernas. Mas heróis e heroínas corteses impõem-se também pela beleza de suas roupas, favorecendo, assim, o desenvolvimento da moda. A nudez cortês é ambígua. Ela pode ser um hino à beleza física, mas também um aguilhão da sexualidade e da luxúria. É entre a beleza do corpo nu e a beleza da roupa, entre a inocência e o pecado, que o homem e a mulher da Idade Média se servem de adornos ou do despojamento de seus corpos. A nudez permanece um problema e a sede de uma tensão mesmo depois da morte, quando os corpos ressuscitados chegam ao paraíso. Os corpos dos eleitos ficarão nus ou vestidos? Essa questão atormenta vários teólogos. Pois as duas posições são sustentadas e sustentáveis. A solução mais puramente teológica é a da nudez, já que, após o Juízo Final, o pecado original será apagado para os eleitos. Como a roupa é uma conseqüência da queda, não há nenhuma necessidade de usá-Ia. Para outros, a nudez não depende tanto da teologia quanto da sensibilidade e do pudor. Contudo, parece que a maioria dos teólogos optou pela nudez, mas, uma vez mais, enquadrada, codificada e "civilizada" à sua maneira pelo cristianismo triunfante.
A beleza feminina entre Eva e Maria Eva e Maria constituem os dois pólos da beleza feminina na Idade Média. A oposição exprime a tensão que existe no pró142
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prio coração da imagem da mulher. De um lado, existe Eva, a tentadora e, mais particularmente, a pecadora, que provém de uma leitura sexuada do pecado original. Mas, ao mesmo tempo, a Idade Média não esqueceu que o Deus do Gênesis criou a mulher para que ela fosse a companheira do homem, a fim de não deixá-lo só. Eva representa, assim, essa auxiliar do homem que lhe é necessária. Por outro lado, a Eva da criação e de antes do pecado original está nua, aliás como Adão. E a arte medieval, de que o casal da Criação será um dos grandes temas, introduz o nu feminino na sensibilidade da época. Através dessa referência paradisíaca, dessa presença da nudez, dessa psicologia da tentação, a Idade Média descobre a beleza feminina. François Villon dirá admiravelmente: "Corpo feminino que é tão soe] [suave]." Eva é uma das encarnações da beleza que leva a Idade Média à descoberta do corpo e sobretudo do rosto feminino, em numerosos retratos. Diante de Eva, Maria aparece como uma redentora. É a beleza sagrada diante da beleza profana. E a beleza feminina é feita do encontro entre essas duas belezas. Mas, se o corpo de Maria não é um objeto de admiração, seu rosto, sim. E é o duplo rosto da mulher Eva e da mulher Maria que produz essa promoção do rosto feminino, que se impõe sobretudo a partir do fim da Idade Média, a partir do século XIII, com o gótico." Esse tema e essa oposição são encontrados entre as virgens sábias e as virgens loucas. Esse tema vem de uma parábola de São Mateus (25, 1-13): "Dez jovens aguardam a chegada do esposo. Quando ele chega enfim, cinco dentre elas mantiveram suas lâmpadas abastecidas com óleo e acesas. _ são as sábias; cinco deixaram-nas se apagar - são as lou-. cas." O evangelista conclui: "Velai, portanto, pois não sabeis 1 43
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nem o dia nem a hora." O tema foi explorado pela escultura gótica para encarnar o duplo rosto da mulher e atrair a atenção para sua presença e seu comportamento físicos.
O banho Assim como o desaparecimento dos estádios sublinha a supressão do esporte na Idade Média, o desaparecimento das termas sublinha a supressão dos banhos públicos. Isso levou Michelet a escrever em La sorciêre [A feiticeira]: "Nenhum banho durante mil anos." Essa asserção é falsa: os homens da Idade Média banhavam-se. Estamos mal informados sobre as práticas individuais e domésticas do banho na Idade Média. Por outro lado, vemos desenvolver-se, particularmente na Itália, um verdadeiro termalismo. É preciso notar que esse termalismo parece não ter sofrido nenhuma influência do desenvolvimento dos banhos públicos que continuam em Bizâncio e nascem no Oriente no século VII sob os omíadas, e que os abássidas difundiram no Magreb, no Oriente próximo e até na Espanha, a ponto de se poder falar de um "paradigma do universalismo muçulmano". Essa prática termal é o hammam, ao qual o mundo cristão medieval é impermeável. Mas, por outro lado, na Itália, em particular na Toscana, mas também na Espanha cristã, na Inglaterra ou na Alemanha, sítios termais aparecem em torno das chamadas bacias. O exemplo mais célebre é o de Pozzuoli, ao norte de Nápoles, cuja reputação é sublinhada no século XIII pela grande difusão de um poema de Pietro d'Eboli, De balneis Puteolaneis, de que alguns manuscritos são ricamente ilustrados. O corpo que se banha é bom para se mostrar em um contexto que pode evocar o batismo. Por outro lado, os banhos públicos desenvolvem-se na maior 144
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parte das cidades da cristandade, aí incluídas as pequenas cidades: são os banhos de estufa. Mas eles não recuperarão as práticas sociais das termas antigas. Eles não são, em sua origem, locais de encontros, conversações, de bebedeiras, de festins. Uma derivação bem conhecida das estufas e duramente estigmatizada pela Igreja na Idade Média é, contudo, a prostituição. Por vezes, explicou-se a diferença do desenvolvimento entre os hammans muçulmanos e as estufas cristãs por uma diferença no sentimento de pudor. Não é nada disso. É preciso aguardar a Renascença para que os homens e as mulheres da Europa condenem a nudez que praticam cada vez menos em público. Nos banhos de estufa ou ainda no leito, os homens e as mulheres da Idade Média não recusam a nudez. Uma civilização dos gestos Antes do século XIII, quando o crescimento do comércio da cidade e da administração favorece o desenvolvimento da escrita, a sociedade medieval é antes de tudo oral. Os gestos vão assim adquirir uma amplitude particular, mesmo que a escrita, propriedade quase exclusiva dos clérigos, seja igualmente um gesto, manual, importante e respeitado. Contratos e juramentos são acompanhados de gestos. Quando do ritual de homenagem vassalar e de investidura, o vassalo coloca suas mãos juntas entre as de seu suserano, que fecha as suas sobre elas: é a imixitio manuum. Depois o beijo (osculum) assinala e significa que o seu senhor o adotou em sua família," Assim, os vassalos o são "de boca e mão". Prece, bênção, incensamento, penitência ... todos os domínios da liturgia ou da fé são investidos pelo gestual. As canções de gesta exaltam o gênero literário mais comum na Idade Média. Pois o gesto envolve inteiramente o 145
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corpo e o ser: a expressão exterior do homem (joris) dá a ver as manifestações e movimentos interiores (intus) da alma. Mas é preciso distinguir os gestos (gestus) da gesticulação (gesticulatio), isto é, das gesticulações e de outras contorções que lembram o diabo. Aqui, a tensão é ainda percebida. Por um lado, o gesto exprime a interioridade, a fidelidade e a fé. Por outro, a gesticulação é o sinal da malignidade, da possessão e do pecado. Assim, os jograis serão perseguidos; o riso, provavelmente devido à deformação da boca e do rosto que provoca, será condenado; a dança irá oscilar entre dois modelos bíblicos opostos: de um lado, o exemplo positivo da dança do rei Davi, e de outro, a dança de Salomé diante da cabeça decapitada de João Batista, eminentemente negativo. Todavia, a dança jamais será digna aos olhos da Igreja, que condena as deformações do corpo, as contorções e outros rebolados corporais. Do mesmo modo, condena-se o teatro. Jean-Claude Schmitt, grande analista dos gestos medievais, tem razão em dizer, portanto, que "falar dos gestos é, em primeiro lugar, falar do corpo"." E, em sua tentativa bem-sucedida de identificar "a razão dos gestos" no Ocidente medieval, ele conclui: "Assim, o gesto é ao mesmo tempo exaltado e fortemente suspeito, onipresente e, contudo, subordinado. Ainda que domado pela moral ou pelas regras do ritual, jamais o corpo se dá por vencido; quanto mais se fecha sobre ele e seus gestos o círculo das normas e da razão, mais exacerbam-se também outras formas de gestualidade, lúdicas (com os jograis), folclóricas e grotescas (com o Carnaval) ou místicas (com os devotos e os flagelantes da Idade Média tardia)." Por trás dos gestos, Quaresma e Carnaval travam ainda um corpo-a-corpo. E a fala, como o riso, é também um fenômeno corporal, passa pela boca, esse filtro imperfeito que deixa escapar os palavrões e as blasfêmias tanto quanto as preces ou as prédicas. 146
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o CORPO EM TODOS OS SEUS ESTADOS De um lado, o gesto (gestus) é codificado e valorizado pela sociedade medieval, de outro, a gesticulação (gesticulatio) é associada à desordem e ao pecado. O mesmo vale para as contorções e as deformações. Mas o corpo não deixa de estar em movimento, transbordando. No imaginário medieval, os monstros povoam a literatura e a iconografia, as narrativas de viagens e as margens dos manuscritos. Se se perpetua ao longo dos séculos e das civilizações, o monstro desabrocha na Idade Média, que talvez tenha "mais necessidade dele", propõe o historiador Claude-Claire Kappler, na era da dupla inimiga que o gestus e a gesticulatio formam, na época em que as deformidades e as anormalidades são comuns e comumente depreciadas. O esporte desaparece na Idade Média. Se os jogos subsistem, a prática antiga não existe mais: estádios, circos e ginásios desaparecem, vítimas da ideologia anticorporal. Entretanto, os homens da Idade Média jogam e fazem esforço físico. Embora mais como antes, e ainda menos do que hoje, desde que o século XIX, desejando sobretudo reatar com os exercícios antigos, definiu e instaurou aquilo que chamamos de esporte. A monstruosidade Os monstros são onipresentes no imaginário medieval e na iconografia. Alguns provêm da Bíblia, como Leviatã, outros, da mitologia greco-romana, como a hidra, e muitos são "importados" do Oriente. No imaginário da Índia, que foi um reservatório onírico do Ocidente medieval, existe uma profusão de monstros que, segundo uma etimologia manipulada, mostra a capacidade de Deus em criar uma infinidade de 147
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seres além do homem. Como bem analisou Claude-Claire Kappler, os monstros podem ser classificados segundo sua particularidade corporal. 10 Existem monstros aos quais falta algo de essencial (cabeça, olhos, nariz, língua etc.), existem aqueles nos quais certos órgãos (orelhas, pescoço, um pé, lábio inferior, órgãos sexuais) são hipertrofiados, reduzidos à unidade (ciclope ou, ao contrário, multiplicados (duas cabeças, dois corpos, vários olhos, braços, dedos ou artelhos). Existem monstros cujo corpo é de uma grandeza ou pequenez excepcionais: gigantes e anões. Os monstros provêm de uma mistura de gêneros (vegetal e humano, por exemplo, como a mandrágora, cujas raízes têm forma humana, homem ou mulher) ou, sobretudo, são muitos os monstros por hibridismo, humanos com cabeça de animal, animais com cabeça ou tronco humanos, tais como as sereias, as esfinges, os centauros e a interessante Melusina, mulher com cauda de serpente ou de peixe que ela dissimula, de modo que exerça um papel conjugal, maternal e social." Existem homens peludos, que podem viver como homens "selvagens", tema iconográfico na moda no século XIV e, sobretudo, no século xv. Existem também monstros destruidores: antropófagos e dragões devoradores. Se a mistura dos sexos resulta em andróginos encarnando os fantasmas sexuais dos cristãos medievais, as cores julgadas anormais, em particular a da pele negra, permitem entrever as tendências racistas ligadas à cor da pele. A Índia do sonho medieval é povoada de ciclopes, de homens que têm olhos sobre o torso, os ombros ou o umbigo, homens que têm apenas um pé desmesurado que eles levam à cabeça para fazer sombra - são os ciapodos. E essas criaturas são, em geral, caracterizadas por anomalias físicas, o que faz do monstro uma testemunha importante da história do
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corpo. São Bernardo, ao condenar os monstros de pedra dos claustros de Cluny, é testemunha, apesar de tudo, do fascínio que eles provocam: "O que vêm fazer, nos claustros, sob os olhos dos irmãos ocupados em rezar, essa galeria de monstros ridículos, essa confusa beleza disforme e essa bela deformidade?" O imaginário do corpo monstruoso tem livre curso nas representações dos dragões, aos quais é confrontado um São Jorge. Com freqüência, o Diabo toma uma forma monstruosa para apavorar o homem. E o mundo da monstruosidade é bastante vasto para oferecer monstros até ao simbolismo positivo, como o licorne, por exemplo, símbolo da virgindade. Mesmo aí, existe a tensão.
o esporte? Os historiadores por muito tempo se perguntaram se "o homem medieval" havia praticado esporte. Ora, parece que os exercícios físicos da Idade Média não se ligam nem ao esporte antigo (grego, em particular) nem ao moderno, isto é, tal como ele foi codificado desde o século XIX. O "esporte medieval" não apresenta nem o caráter de referência à sociedade de organização institucional, nem as condições econômicas que foram as do esporte na Antigüidade ou quando de seu renascimento, no século XIX. Os exercícios físicos, porém, tiveram grande importância na Idade Média. Chegaram mesmo a fazer parte daquilo que Norbert Elias chamou de o "processo civilizador", que consiste sobretudo em "civilizar o corpo". Ora, se aceitarmos a definição de esporte que ele oferece em Sport et civilisation, 12 parece difícil empregar o termo "esporte" para designar os jogos corporais medievais. Pois o esporte não é apenas um
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"combate físico não violento", mas também uma prática que postula a igualdade social dos participantes, necessita de um lugar específico e reproduzível para a sua prática (estádio, ginásio etc.), de regras compartilhadas pelos adversários, assim como um calendário de competições que lhe seja próprio. Como observa Roger Chartier sobre essa obra-prima sempre discutida, "a continuidade do vocabulário ou a similitude dos gestos, com efeito, não devem confundir: entre os esportes modernos e os jogos tradicionais, as diferenças são mais fortes que as permanências". Uma primeira característica dos exercícios físicos medievais reside na separação quase completa entre os jogos corporais cavalheirescos, destinados a adquirir uma formação militar e a exibir as práticas particulares das camadas superiores da sociedade, e os jogos populares. Essa distinção social manifestou-se em particular nos torneios, a respeito dos quais Georges Duby sublinhou, em Le dimanche de Bouuines, 13 que suscitavam uma vasta organização e respondiam a motivações econômicas, pouco diferentes daquelas solicitadas pelo esporte moderno e contemporâneo. Em uma palavra, a organização de um torneio não é a mesma de um jogo. Não há equipes regulares, nem estádios, para apontar apenas as características mais notáveis. O outro conjunto de exercícios físicos praticados na Idade Média é o das camadas inferiores da sociedade, particularmente dos camponeses. Esses exercícios comportam também um aspecto guerreiro ou indicam no mínimo combates de defesa. Eles se reagrupam freqüentemente em torno da luta. Mas as coletividades medievais praticam igualmente outros jogos, que se tornarão, com a competição e a codificação, "esportes". Entre esses jogos, dois se impõem por sua importância e 15
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notoriedade na vida cotidiana dos homens e das mulheres da Idade Média. O primeiro, que sempre foi visto como o ancestral do tênis, é o jogo da péla, que de bom grado podemos aproximar da pelota basca. O segundo é a sou/e, em que se acreditou ver o ancestral do futebol. Ora, nem um nem outro são praticados como esporte. Resta que, como Bernard Merdrignac, em particular, destacou em seu livro contestável, mas sugestivo, Le sport au Moyen Âge [O esporte na Idade Média]," a civilização medieval concedeu bastante espaço ao "corpo em movimento". E é preciso dar todas as dimensões a essas manifestações que, além dos gestos, implicam jogos de bolas, as quais aparecem como acessórios importantes ligados às práticas do corpo. É preciso acrescentar - e aqui ainda -, seja no quadro dos divertimentos cavalheirescos e senhoriais, seja no quadro das festas populares, os exercícios daqueles que eram chamados, em geral, de jograis. O que implica usos do corpo claramente distintos daqueles a que se reduziram os jograis nas épocas moderna e contemporânea, no quadro de uma organização e de uma atividade que aparecerá somente no século XVI: o circo. Nada de estádio, nada de circo na Idade Média. Nada de esporte. Pois não existe lugar específico reservado a essas práticas. Campos, vilarejos, praças: são sempre espaços improvisados que servem de terreno para o desenrolar das fortes tensões e das "excitações agradáveis" do corpo, isto é, do corpo-a-corpo em público, para retomar o vocabulário de Norbert Elias. É possível hoje, todavia, ver a continuidade dos exercícios e jogos da Idade Média no cabo-de-guerra ou na luta que se pratica nos campos, quando das indulgências, na Bretanha. Mas, se é preciso reconhecer a importância e a existência das manifestações físicas medievais, não se pode associá-Ias ao esporte. 15 1
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Após seu eclipse na Idade Média, profundas mudanças sociais e culturais explicam o renascimento do esporte no século XIX. A introdução da concorrência, em particular, que, com a revolução industrial, se estende para além da esfera econômica. Assim nascem os esportes coletivos de jogos de bola, que levam à constituição de equipes. Nascidos nos colégios ingleses com a sociedade aristocrática moderna, o rúgbi e o futebol estendem-se à Europa inteira. Este será mais tarde, ainda entre os anglo-saxões, o caso do boxe, com a instituição de novos locais de exercícios esportivos, como o ringue. O desenvolvimento da ginástica, essencialmente nos países germânicos e escandinavos, com o nascimento da "ginástica sueca", acompanhará a nova cultura e a nova ideologia do corpo no século XIX, em resposta aos princípios de higiene. Ao higienismo vem juntar-se uma outra ideologia corporal: a performance, que será mais individual- sobretudo no quadro do atletismo - do que coletiva. O retorno da velha ideologia antiga em um contexto inteiramente diferente: mens sana in corpore sano (uma mente sadia em um corpo sadio). Todo esse feixe de fatores econômicos e sociais, simbólicos e políticos, contribui para desenvolver, no século XIX, uma ideologia que, saltando no tempo por cima da Idade Média, pretendeu-se ligar à prática e à ideologia da Antigüidade greco-romana e que resultou na criação dos Jogos Olímpicos, em 1896. Aqui, portanto, a Idade Média não é um antepassado.
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4. O corpo como metáfora
Estado, cidade, Igreja, universidade, humanidade ... O corpo torna-se, na Idade Média, uma metáfora. Sem dúvida, isso não é novidade no Ocidente. EmA República, Platão já havia imposto um modelo organicista à sua "cidade ideal", distinguindo e separando a cabeça (o filósofo rei) do ventre (os agricultores) e dos pés (os guardas). Mais tarde, Hobbes retomará, em seu Leviatã (1651), a imagem de um Estado simbolizado pelo corpo de um gigante, um soberano formado pelo corpo da multidão da sociedade humana. É na Idade Média, contudo, que se enraíza o uso da metáfora do corpo para designar uma instituição. A Igreja, como comunidade de fiéis, é vista como um corpo do qual Cristo é a cabeça. 1 As cidades, sobretudo através do impulso das conjurações e das comunidades urbanas, tendem a formar igualmente um "corpo místico".' As universidades funcionam como verdadeiros "corpos de prestígio";' Mas talvez seja em torno da questão política que se ligue e se jogue a sorte da metáfora corporal na Idade Média, enquanto se desenvolve a analogia entre o mundo e o homem. O homem torna-se um universo em miniatura. E um corpo nu, como em uma magnífica miniatura de um manuscrito da cidade de Lucca do Livres des oeuvres divines de Hildegarde de Bingen (Liber divinorum operum), datado do século XII, 155
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reproduz em tamanho pequeno o mundo no centro do qual ele se encontra.
obedecer, pois ele transforma o alimento em sangue, que é enviado, pelas veias, a todo o corpo. É desse modo que a Idade Média herda metáforas antigas.
o HOMEM-MICROCOSMO
o coração, corpo do delírio
o tema
Do século XIII ao século Xv, a ideologia do coração se expande e prolifera através de um imaginário que chega por vezes ao delírio. No fim do século XII, o teólogo Alain de Lille já exalta "o coração, sol do corpo". É como ilustra, sobretudo, o tema do coração devorado, que se insinua na literatura francesa do século XIII. Do Lai d'Ignauré, amante de doze damas que os doze maridos enganados matam após tê10 castrado e ter-lhe arrancado o coração, dando-o de comer (com o falo) às doze infiéis, ao Roman du châtelain de Couci et de Ia dame de Fayel, em que uma mulher é também vítima de uma cruel refeição, na qual deve comer o coração de seu amante," as narrativas eróticas e corteses testemunham essa presença obsessiva. Na melancolia saturniana do outono da Idade Média, no século Xv, a alegoria do coração inspira ao bom rei Renato o livro do Coeur d'amour épris;' Nesse século Xv, exaspera-se o tema do martírio do coração, lugar privilegiado do sofrimento. É preciso ir além dos limites cronológicos da Idade Média tradicional, o século Xv, para poder avaliar a evolução da imagem do coração. No fim do século XVI, e sobretudo no XVII, um lento "progresso" da metáfora do coração irá levar à devoção do Sagrado Coração de Jesus, avatar barroco da mística do coração preparada desde o século XII com o "muito doce coração de Jesus" de São Bernardo e a transferência da chaga do Cristo crucificado do lado direito para o lado es-
do "homem-microcosmo" se expande na filosofia do século XII, no seio da escola de Chartres com o tratado de Bernard Silvestre De mundi universitate sive megacosmus et microcosmus [Sobre o universo do mundo ou megacosmo e microcosmo), com a extraordinária abadessa Hildegarde de Bingen e a não menos surpreendente Herade de Landsberg, em Hugues de Saint-Victor, em Honorius Augustodunensis. Esse tema será legado à literatura enciclopédica e didática do século XIII. No mundo sublunar proveniente de Aristóteles e sob a influência dos astros desenvolvida por uma astrologia triunfante, o corpo tornouse a metáfora simbólica do universo. As metáforas corporais se articularam na Antigüidade, principalmente em torno de um sistema caput-venter-membra (cabeça-entranhas-membros), ainda que, evidentemente, o peito (pectus) e o coração (cor), como sedes do pensamento e dos sentimentos, tenham se prestado a usos metafóricos. Em relação às entranhas, o fígado (hepar, em grego, ou, mais freqüentemente, jecur ou jocur) desempenhou um papel simbólico particularmente importante. A princípio, na adivinhação herdada dos etruscos, que faziam dele uma espécie de órgão sagrado, em seguida, em sua função de sede das paixões. No apólogo de Menenius Agrippa segundo Tito Lívio, é o ventre (designando o conjunto das entranhas) que exerce no corpo o papel de coordenação e ao qual os membros devem 1 56
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querdo, O lado do coração. Na mesma época, no século Xv, o coração da Virgem é perfurado pelos gládios das sete dores." Desde o século XVI, irrompe na espiritualidade mística, no franciscano João Vitrier e no cartuxo João Lansperge, a importância e a polissemia do vocábulo "coração". A devoção ao Sagrado Coração de Jesus desenvolve-se na época "barroca" da Idade Média, nos escritos de Santa Gertrudes de Helfta (morta em BOlou 1302), e de João de Lansperge, mestre dos noviços da cartuxa de Colônia de 1523 a 1530.7 É surpreendente ver que, nas instruções deixadas por São Luís, antes de sua morte, a seu filho, o futuro Filipe I1I, assim como à sua filha Isabel, a dupla corpo/alma nunca aparece, e a metáfora antitética que exprime a estrutura e o funcionamento do indivíduo cristão é a da dupla corpo/coração. O coração absorveu tudo o que há de espiritual no homem." A cabeça, função dirigente A cabeça (caput) era para os romanos - como para a maior parte dos povos - a sede do cérebro, órgão que contém a alma, a força vital da pessoa e que exerce no corpo a função dirigente. O historiador Paul-Henri Stahl mostrou bem como as práticas de decapitação - muito presentes nas sociedades arcaicas e medievais - testemunham essas crenças nas virtudes da cabeça. A caça às cabeças foi animada pelo desejo de anular e, com freqüência, de apropriar-se - pela posse do crânio - da personalidade e do poder de um estrangeiro, de uma vítima ou de um inimigo." O valor simbólico da cabeça se reforça singularmente no sistema cristão, pois ela é enriquecida pela valorização do alto no subsistema fundamental alto/baixo, expressão do princí1 58
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pio cristão da hierarquia: não apenas Cristo é a cabeça da Igreja, isto é, da sociedade, mas também Deus é a cabeça de Cristo. "Cristo é o chefe de todo marido, mas o chefe da mulher é o marido. E o chefe de Cristo é Deus", diz Paulo em sua primeira Epístola aos Coríntios (11, 3). A cabeça é assim, de acordo com a fisiologia antiga, o princípio de coesão e de crescimento (Epístola aos Colossenses, 2, 19). O reforço metafórico do coração é ainda maior. Não somente, como Xavier-Léon Dufour destacou, o coração é, no Novo Testamento, "o lugar das forças vitais", mas, geralmente empregado em um sentido metafórico, ele designa igualmente a vida afetiva e a interioridade, "a fonte dos pensamentos intelectuais, da fé, da compreensão". Ele é "o centro das escolhas decisivas, da consciência moral, da lei não escrita, do encontro com Deus".'? O coração é definido por Aristóteles como a origem da sensação, e o aristotelismo medieval retoma o tema. Santo Agostinho faz do coração a sede do "homem interior". No século XII, século da proclamação do amor, afirmam-se paralelamente o amor sagrado, exaltado sobretudo em numerosos comentários ao Cântico dos Cânticos, e o amor profano, que toma as formas do amor cortês. No domínio da simbologia política do coração, o costume em relação aos reis e aos poderosos de dividir os corpos após a morte multiplica a construção de "túmulos do coração". Filipe, o Belo, em seu conflito com o papado, pratica uma verdadeira "política do coração".
O fígado, grande perde dor Há, em contrapartida, um "perdedor" nessa configuração metafórica: o fígado. Não apenas seu papel na adivinhação 159
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- já arcaica e sempre "estrangeira" entre os romanos - havia sido completamente apagado devido à recusa cristã de todas as formas de adivinhação pagãs, como vimos a respeito da interpretação dos sonhos, mas seu estatuto "fisiológicosimbólico" sofrera uma forte degradação. Segundo Isidoro de Sevilha, representante do saber "científico" de base, misturando fisiologia e simbolismo moral no domínio das metáforas corporais da cristandade medieval, "In jecore autem consistit voluptas et concupiscentia" ("o fígado é a sede da concupiscência"). Essa frase conclui a definição da função fisiológica desse órgão:
o fígado tira seu nome do fato de que é a sede do fogo que sobe ao cérebro (etimologia extraída de jacio e jeci, que querem dizer expelir, lançar ou enviar). Daí ele se espalha para os olhos e para os outros sentidos e membros e, graças a seu calor, transforma o suco tirado do alimento em sangue que ele oferece a cada um dos membros para que cada um destes dele se alimente. o fígado
- diz-se igualmente "ventre" ou "entranhas" - é, assim, transferido para um ponto inferior, para abaixo da cintura, ao lado das partes vergonhosas do corpo. E tornase a sede da luxúria, dessa concupiscência que, desde São Paulo e Santo Agostinho, o cristianismo persegue e reprime. A mão, instrumento de ambigüidade No sistema da simbologia corporal, a mão adquire, na Idade Média um lugar excepcional, representativo das tensões ideológicas e sociais do período. Ela é em princípio o signo da 16
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proteção e do comando. É antes de tudo o caso da mão de Deus saindo do céu para guiar a humanidade. Ela também é a operadora da prece que define o clérigo e, mais amplamente, o cristão, cuja figura mais antiga foi a do suplicante. * Ela executa os gestos por excelência. Mas é também o instrumento da penitência, do trabalho inferior. É com o duplo sentido contraditório de resgate e de humilhação que São Bento inscreve o trabalho manual no primeiro nível dos deveres do monge, sem que ele contribua para a reabilitação geral do trabalho. Como já vimos, o poeta Rutebeuf afirmou orgulhosamente no século XIII: "Não sou trabalhador manual." Essa ambigüidade da mão encontra-se no gesto simbólico da vassalagem, a homenagem, que se encontra no coração do sistema feudal. O vassalo coloca suas mãos entre as do senhor em sinal de obediência mas também de confiança. Outra parte do corpo sela a harmonia simbólica do senhor e do vassalo: a boca, por meio do beijo simbólico da paz. E esse beijo é um beijo na boca. Ele passa para o domínio da vassalagem cortês: é o símbolo do amor cortês entre o cavaleiro e sua dama.
A UTILIZAÇÃO POLíTICA DA METÁFORA CORPORAL
As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais que utilizam ao mesmo tempo partes do
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corpo e o funcionamento do corpo humano ou animal em seu conjunto remontam à alta Antigüidade. O apólogo dos membros e do estômago, que produziu uma das mais célebres fábulas de La Fontaine, remonta pelo menos a Esopo (fábulas 286 e 206) e foi encenado em um episódio tradicional da história romana: a ida da plebe para o monte Sagrado (que foi substituído, nas narrativas mais tardias, pelo Aventino) em 494 a.c. Segundo Tito Lívio (Il, XXXII), o cônsul Menênio Agripa teria dado fim à ocupação lembrando ao povo, com a ajuda dessa fábula, não apenas a solidariedade necessária entre a cabeça (o Senado romano) e os membros (a plebe), mas a subordinação obrigatória destes àquela. Logo, é provável que a utilização política das metáforas corporais seja um legado da Antigüidade greco-rornana ao cristianismo medieval. Podem-se notar essas mudanças de configuração dos valores que continuam a se servir de dados pagãos, mas modificando o sentido, deslocando as ênfases, substituindo certos valores por outros, impondo desvalorizações e valorizações aos usos metafóricos.
mesma função, do mesmo modo nós todos, tal como somos, formamos apenas um corpo em Cristo, sendo cada um, por sua vez, membros uns dos outros", afirma Paulo em sua Epístola aos Romanos (12,4-5). Paulo faz até um paralelo entre a dominação do homem sobre a mulher e a de Cristo sobre a Igreja: "O marido é o chefe (cabeça) da mulher, assim como Cristo é o chefe da Igreja e é o salvador de seu corpo, mas, assim como a Igreja é submetida a Cristo, da mesma forma as mulheres são submetidas a seus maridos em todas as coisas" (5-23). Trata-se aqui de dominação e de sujeição. Estamos no campo do poder, ainda que se trate somente do poder marital. Essa concepção prevalece juntamente com a do corpo místico de Cristo, isto é, a eclesiologia medieval." Ela insinua-se na ideologia política na época carolíngia: o império, encarnação da Igreja, forma um só corpo do qual Cristo é o chefe e o qual ele dirige na terra por intermédio de duas pessoas: "a pessoa sacerdotal e a pessoa real", isto é, o papa e o imperador ou o rei."
A cabeça ou o coração? O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo no binômio cabeça/coração. O que dá toda força a essas metáforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comunidade de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça. Essa concepção dos fiéis como semelhantes a membros múltiplos, levados por Cristo à unidade de um só corpo, foi estabelecida por São Paulo. 11 ''Assim como temos muitos membros em um só corpo, e todos esses membros não têm a
A utilização metafórica das partes do corpo esboçada durante a alta Idade Média se politiza sucessivamente na época carolíngia, quando da reforma gregoriana, e, enfim, no século XII, que foi particularmente entusiasta dessa comparação. Um texto bastante interessante a esse respeito é o tratado intitulado Contra os simoníacos (1057), escrito por um monge loreno que se tornou cardeal, Humbert de Moyenmoutier, um dos principais promotores da reforma dita "gregoriana". Ele combina, com efeito, o famoso esquema trifuncional da sociedade, que conhece seu primeiro período de sucesso no
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Como os olhos na cabeça
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Ocidente medieval!' - funções do sagrado, do guerreiro e do trabalhador - com uma imagética organicista. Segundo a ideologia dos padres reformadores do momento, esse monge insiste na superioridade dos clérigos sobre os leigos, assim como na subordinação das massas populares em relação aos clérigos e aos nobres leigos: ''A ordem clerical é a primeira na Igreja, assim como os olhos na cabeça. É dela que fala o Senhor quando diz: 'Aquele que vos toca, toca a pupila de meu olho' (Zacarias, 2, 8). O poder leigo é como o peito e os braços, cuja força está acostumada a obedecer à Igreja e a defendê-Ia. Quanto às massas, associáveis aos membros inferiores e às extremidades do corpo, são submetidas aos poderes eclesiásticos e seculares, mas, igualmente, são-Ihes indispensáveis. "15
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não falo dos diretores de prisão, mas dos "condes" do tesouro privado, especifica ele, evocam a imagem do ventre e dos intestinos, que, se são sobrecarregados por uma avidez demasiado grande e se retêm seu conteúdo com muita obstinação, provocam inumeráveis e incuráveis doenças e, por meio de seus vícios, podem levar à ruína completa do corpo. Os pés, que aderem sempre ao solo, são os camponeses. O governo da cabeça lhes é tanto mais necessário à medida que são confrontados com numerosos desvios em sua caminhada sobre a terra a serviço do corpo e têm necessidade do apoio mais justificado para se manterem em pé, sustentarem e moverem a massa de todo o corpo. Retire do corpo mais robusto o apoio dos pés e ele não avançará mais apenas com suas forças, mas ou se arrastará vergonhosa e deploravelmente e sem sucesso sobre as mãos ou se deslocará como animais selvagens.
é um corpo
A utilização política da metáfora organicista atinge sua definição clássica no Policraticus de João de Salisbury (1159). "O Estado (Respublica) é um corpo", escreve ele. E continua:
o príncipe ocupa no Estado o lugar da cabeça, ele é submetido ao Deus único e àqueles que são seus segundos na terra, pois no corpo humano também a cabeça é governada pela alma. O senado ocupa o lugar do coração, que dá seus impulsos às boas e más obras. As funções dos olhos, dos ouvidos e da língua são asseguradas pelos juízes e pelos governadores das províncias. Os "oficiais" e os "soldados" (officiales e milites) podem ser comparados às mãos. Os assistentes regulares do príncipe são os fIancos. Os questores* e os escrivães - eu "Antigos magistrados romanos. (N. do T.)
Essas linhas surpreendem por seu caráter arcaico, mal adaptado às realidades institucionais e políticas da Idade Média. O senado e os questores, por exemplo, são anacrônicos. De fato, João de Salisbury apresenta esse texto como parte de um tratado de educação política que Plutarco teria composto para o imperador Trajano. Essa atribuição é, naturalmente,
falsa. Os exegetas desse texto pensam em geral que
se trata de um texto grego posterior,
traduzido
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para o latim, o qual João de Salisbury teria inserido em seu tratado, conservando a falsa atribuição a Plutarco que circulava nos meios letrados do século XII. Mas outros comentaristas tendem a pensar que se trata de um plágio de texto antigo forjado pelo próprio filósofo da escola de Chartres. Em todo caso, o texto chamado Institutio de Trajano) é ao mesmo tempo a ex-
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humanista,
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característica do que se chama a Renascença do século XII, e a exposição de um tema freqüentemente retomado pelos espelhos dos príncipes do século XIII e da baixa Idade Média. Pouco importa aqui a atribuição desse texto - que emana, aliás, de um dos grandes pensadores políticos da Idade Média -, interessante como testemunha do funcionamento medieval da metáfora organicista no domínio político. As funções superiores são divididas entre a cabeça, o príncipe (ou, mais precisamente, nos séculos XII e XIII, o rei) e o coração, esse hipotético senado. Na cabeça instalam-se os homens honrados da sociedade, como os juízes e outros representantes da cabeça ante as províncias simbolizadas pelos olhos, as orelhas, a língua - símbolos expressivos do que se chamou de monarquia administrativa ou burocrática. Todas as outras categorias socioprofissionais são representadas por partes menos nobres. Funcionários e guerreiros são assimilados às mãos, parte do corpo de estatuto ambíguo, entre a desconsideração do trabalho manual e o papel honroso de braço secular. Os camponeses não escapam da comparação com os pés, isto é, com a parte mais baixa do corpo humano, que, entretanto, o mantém de pé e lhe permite caminhar. O texto insiste igualmente no papel fundamental dessa base do corpo social, na linha dos escritores eclesiásticos dos séculos XI e XII, que sublinharam a situação dramática das massas rurais, alimentando as ordens superiores e atraindo seu desprezo e sendo objeto de sua exploração. Mas os mais mal localizados são os representantes específicos da terceira função, aqueles que encarnam a economia e, mais especificamente, a administração do dinheiro. O pensamento antigo e o pensamento cristão irmanam-se no desprezo a essa acumulação de riquezas, situada nas dobras ignóbeis do ventre e dos 1 66
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intestinos, definitivamente degradadas, caldeirão de cultura das doenças e dos vícios, sede de uma obscena prisão de ventre dos estoques reunidos por um Estado parcimonioso, avaro, sem generosidade e sem largueza. A cabeça revirada O episódio mais interessante no que diz respeito à utilização política das metáforas corporais situa-se na virada do século XIII para o século XlV, no quadro do violento conflito que opôs o rei da França, Filipe IV, o Belo, ao papa Bonifácio VIII. Como no tempo dos Libelli de lite, isto é, dos Opuscules sur les quereles (entre o papa e o imperador), os opúsculos nascidos da querela das Investiduras nos séculos XI e XII, a polêmica fez nascer, sob uma forma mais moderna (pois a opinião pública estava aí implicada, muito além dos grandes leigos e eclesiásticos), uma leva de tratados, de libelos e de panfletos. Foi em um tratado anônimo, Rex pacificus, composto em 1302 por um partidário do rei, que a metáfora do "homem-microcosmo" viu-se empregada de maneira particularmente interessante. Segundo esse tratado, o homem-microcosmo da sociedade tem dois órgãos principais: a cabeça e o coração. O papa é a cabeça que dá aos membros, isto é, aos fiéis, a verdadeira doutrina e exorta-os a realizar as boas obras. Da cabeça partem os nervos, que representam a hierarquia eclesiástica que une os membros entre si e a seu chefe, Cristo, de quem o papa tem o lugar e que assegura a unidade da fé. O príncipe é o coração, de onde partem as veias que distribuem o sangue. Igualmente, do rei provêm os decretos, as leis, os costumes legítimos que transportam a substância nu1 67
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trit~va, isto é, a justiça, para todas as partes do organismo social. O sangue é o elemento vital por excelência o mais . ' Im.portante de todo o corpo humano, resultando daí que as velas são mais preciosas que os nervos e que o coração supera a cabeça. O rei é, portanto, superior ao papa. ~rês ?ut~os argumentos vêm completar a demonstração. O pnmeiro e tomado da embriologia e prolonga a simbologia corporal. No feto, o coração aparece antes da cabeça; o reinado, portanto, precede o sacerdócio. Por outro lado as autoridades confirmam a superioridade da cabeça sobre o coração. E o autor do tratado arrola em sua defesa Aristóteles Santo Agostinho, São Jerônimo e Isidoro de Sevilha. ' Enfim, existe uma prova por meio da etimologia, obedecendo a uma outra lógica que não a da lingüística moderna. Em grego, rei se diz basileus, que viria de basis. Por conseqüência, o rei é a base da sociedade. O autor de Rex pacificus não se embaraça com esse escamoteamento que faz passar o príncipe da cabeça ao coração e do coração à base. Por toda parte existe a prioridade do príncipe ou do Estado. A conclusão, portanto, é um compromisso. Apaga-se a hierarquia entre o coração e a cabeça em prol de uma coabitaç~o na autonomia: "De tudo isso resulta claramente que aS~Imcomo no corpo humano existem duas partes principais, com funções distintas, a cabeça e o coração, ainda que um não usurpe o ofício do outro, assim no universo também existem duas jurisdições separadas, a espiritual e a temporal, tendo atribuições bem distintas." Por conseqüência, príncipe~ e papas devem se manter, um e outro, em seus lugares. A unidade do corpo humano é sacrificada no altar da separação do espiritual e do temporal. A metáfora organicista se desfaz. 16 A concepção de um duplo circuito que habitaria o corpo 1 68
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do homem, o dos nervos a partir da cabeça, o das veias e das artérias a partir do coração, concepção que autoriza a utilização metafórica dessas duas partes do corpo para explicar a estrutura e o funcionamento do corpo social, corresponde bem à ciência fisiológica da Idade Média, legada por Isidoro de Sevilha e reforçada pela promoção simbólica e metafórica do coração na Idade Média. Eis o que diz sobre a cabeça Isidoro de Sevilha: ''A primeira parte do corpo é a cabeça, e ela recebeu esse nome, caput, porque todos os sentidos e os nervos (sensus omnes et nervi) têm aí sua origem (initium capiunt) e toda fonte de força brota daí. "17 E sobre o coração: "O coração (cor) vem de uma palavra grega (kardian) ou de cura (cuidado, preocupação). Nele, com efeito, reside, toda a solicitude e toda a causa da ciência. Dele partem duas artérias, das quais a esquerda tem mais sangue e a direita, mais espírito, e é por isso que tomamos o pulso no braço direito. "18
A cabeça sobre os pés
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Para Henri de Mondeville, cirurgião de Filipe, o Belo, quase contemporâneo do autor anônimo de Rex Pacificus e ele mesmo autor de um tratado de cirurgia, composto entre 1306 e 1320, ao qual Marie-Christine Pouchelle consagrou um belo livro já citado," o coração adquiriu uma importância primordial. Tornou-se o centro metafórico do corpo político. A centralidade atribuída ao coração exprime a evolução do Estado monárquico, no qual o que importa mais não é tanto a hierarquia vertical expressa pela cabeça e ainda menos o ideal de unidade, da ligação entre o espiritual e o temporal, característica de uma cristandade ultrapassada que voa em pedaços, mas a centralização que se realiza em torno do príncipe. 1 69
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Henri de Mondeville apóia essa nova fisiologia política sobre uma ciência do corpo humano que prolonga o saber de Isidoro de Sevilha, mas se inclina em favor do coração, graças ao qual é possível pensar metaforicamente o estado nascente: "O coração é o órgão principal por excelência, que dá a todos os outros membros do corpo o sangue vital, o calor e o espírito. Ele se encontra no meio do peito, como o quer seu papel, como o rei no meio de seu reino." Quem é o soberano do corpo?, pergunta Marie-Christine Pouchelle à obra de Henri de Mondeville. A resposta é inequívoca: o coração, isto é, o rei. Mas, de modo geral, a cabeça permanece ou se torna o chefe do corpo político. No início do século Xv, um jurista de Nímes, Jean de Terrevermeille, teórico da monarquia, em seus três Tractatus, escritos em 1418 -1419 para sustentar a legitimidade do delfim Carlos (o futuro CarIos VII) e que, no fim do século XVI, servirão à causa de Henrique de Navarra (o futuro Henrique IV), sustenta que "o corpo místico ou político do reino" deve obedecer à cabeça, que representa o princípio de unidade essencial e assegura a ordem na sociedade e no Estado. Ela é o membro principal ao qual os outros membros devem obedecer. E, como uma sociedade de duas cabeças seria monstruosa e anárquica, o papa é apenas uma cabeça secundária (caput secundarium), como dirá também Jean Gerson." Assim, ousaríamos dizer, eis a cabeça recolocada sobre os pés."
da França conquistou, na Idade Média, um poder taumatúrgico, o de curar os doentes das afecções cutâneas, das escrófulas, nome da adenite tuberculosa. Essa cura é obtida por meio de uma cerimônia organizada em certos dias e em certos lugares (por exemplo, no claustro da abadia de SaintDenis): o "toque das escrófulas", pelo qual o rei curava O corpo do doente. O santo medieval tem também um poder que passa pelo corpo e dirige-se com freqüência ao corpo. Como reconheceu Peter Brown, o santo é um "morto excepcional": são seu cadáver e seu túmulo que curam os doentes que se aproximam deles e chegam a tocar seja uma parte de seu cadáver tornado relíquia corporal, seja seu túmulo. Sua eficácia se exerce sobretudo em relação ao corpo: cura das doenças, recuperação dos estropiados - e em particular dos corpos fracos e ameaçados: crianças, mulheres em trabalho de parto, velhos. Mais ainda, no século XIII, a devoção a Cristo, o desejo de identificação com ele, leva São Francisco de Assis a receber em seu corpo as marcas de Jesus crucificado: os estigmas. A partir do século XIII, o desenvolvimento de uma devoção leiga mórbida associa uma elite penitencialleiga à herança do ascetismo monástico da alta Idade Média: é o caso das práticas de flagelação que se manifestam em 1260 e no século XlV.
o rei e o santo
A cidade não se presta tão facilmente quanto a Igreja ou a Respublica à simbólica corporal. Mas certas concepções medievais da cidade favorecem metáforas anatômicas e biológicas subjacentes.
Uma utilização simbólica do corpo serve para reforçar o poder dos dois "heróis" da Idade Média: o rei e o santo. O rei 17
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É em princípio a afirmação, vinda da Antigüidade e retransmitida por Santo Agostinho, segundo a qual não são as pedras - as das muralhas, dos monumentos e das casas que fazem a cidade, mas os homens que a habitam, os cidadãos, os cives. A idéia é retomada com força pelo dominicano Alberto Magno, em meados do século XIII, em uma série de sermões pronunciados em Augsburgo e que constituem uma espécie de "teologia da cidade". A outra concepção que leva a visão da cidade a uma metáfora de tipo corporal é a da cidade como "sistema" urbano." A metáfora corporal afIora também a respeito de certos componentes essenciais da cidade. A cidade medieval é um centro econômico e, mais que um mercado, um centro de produção artesanal- os artesãos urbanos organizam-se em "corpos de ofício"." A cidade medieval é também um centro religioso, mais do que no campo, no qual aldeia e paróquia se identificam, a paróquia urbana, freqüentemente ligada ao bairro, é um "corpo de fiéis", dirigido por um pároco. Em todas essas abordagens, o que se afirma é a idéia da necessidade solidária entre o corpo e os membros. A cidade, à imagem do "corpo social", é e deve ser um conjunto funcional de solidariedades de que o corpo é o modelo.
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Conclusão Uma história lenta
A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado em história uma vantagem, um interesse suplementar. O corpo ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta, que é, em profundidade, a das idéias, das mentalidades, das instituições e mesmo a das técnicas e das economias, esse interesse dá um corpo, o corpo. Não somente desde a pré-história, mas desde os tempos históricos aos quais podemos remontar, o corpo passa por mudanças, em sua realidade física, em suas funções, em seu imaginário. Mas em relação ao corpo há poucos acontecimentos e ainda menos revoluções, como a que a medicina dos séculos XIX e XX, por exemplo, lhe trará. Não há dúvida de que a elaboração bastante diligente de uma dietética monástica e o surgimento fulminante da peste negra em 13471348 constituem acontecimentos de uma história "rápida" do corpo. Mas, por outro lado, os acontecimentos fundamentais, que foram o desaparecimento do esporte e do teatro ou ainda o banimento do nu, já antigo, só foram produzir suas conseqüências lentamente. Do mesmo modo, a lenta "revolução agrícola" dos séculos X-XII, a introdução de novas culturas e novas formas de cultivo, a evolução dos gostos 1 73
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culinários e o desenvolvimento da gastronomia foram acontecimentos lentos quanto à sua repercussão sobre o corpo. Vê-se desenvolver na Idade Média um fenômeno que introduz mais rapidez em seus efeitos sobre o corpo: a moda. Se dispusermos de uma boa documentação, em particular iconográfica, e de obras pioneiras sobre a história da moda indumentária na Idade Média, fenômenos sociais e culturais mais intimamente ligados ao corpo são ainda um terreno em estado bruto para a pesquisa histórica: a cabeleira, o bigode, a barba.' Conhece-se um pouco melhor a evolução da arte de enfeitar o rosto, entre as mulheres, e a maquiagem. O feudalismo desenvolveu o prestígio e a atração dos homens espadaúdos. O fascínio pelos "grandes dolicocéfalos loiros" fez da louridão um elemento característico da beleza física, recusada por esse "pequeno homem negro", Francisco de Assis. A braguilha aparece no século Xv, de modo cada vez mais provocante, sobretudo depois do uso que fez dela Rabelais, o que inicia uma longa história. Falou-se aqui do papel exercido pelas imagens e pela simbologia da cabeça e do coração. No século XV desenvolve-se, na literatura e na arte, reflexo sem dúvida da evolução científica e social, o tema dos cinco sentidos. Um exemplo espetacular disso é dado pelo simbolismo da célebre tapeçaria da Dame à Ia /icorne, que pode ser observada no museu nacional da Idade Média, em Paris. Pode-se dizer que o sentido predominante na Idade Média foi a visâo.? De fato, a Idade Média inventou, em torno de 1030, os óculos, que, primeiramente como curiosidade que entrou na moda, depois como auxiliares da visão, se difundiram rapidamente. No Inferno, é em primeiro lugar a visão que recebe em cheio o fulgor das chamas luciferianas, enquanto o olfato é atacado pelo mau 1 74
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cheiro. No Paraíso, é a vista que, dessa vez, recompensa o corpo ressuscitado do eleito, que se entrega à contemplação divina. O dramaturgo Feo Belcari de Florença diz no início de sua peça Abraão e Isaac, representada em 1449:
o olho
é chamado a primeira de todas as portas,
Por onde o Espírito pode aprender e apreciar A orelha vem em segundo, com a fala por guia, Que dá à inteligência força e vigor.
Essa concepção é, sem dúvida, mais intelectual do que afetiva. Mas, desde o século XVI, os tempos modernos irão representar os cinco sentidos, no seio de um humanismo preocupado em valorizar o homem por inteiro. Esse humanismo, sistema de um homem dotado de um corpo civilizado, foi a Idade Média que criou. O grande, sábio e pobre François Villon é o maravilhoso e o melhor intérprete daquilo que se tornou a sensibilidade ao corpo no Ocidente do século xv. Com os versos de Villon, exala-se em princípio o testemunho do lugar assumido pelo coração na existência e no destino do homem. É ele que se esforça para dirigir o corpo, um corpo que o poeta, reencontrando a atitude de Dante, vive em seus trinta anos e que faz dialogar com seu coração no poema Le débat du coeur et du corps de Villon [O debate do coração e do corpo de Villon]: "Tens trinta anos! É a idade de um mulo", a boa idade para dobrar seu corpo às recomendações do coração, isto é, da consciência. O coração deve então conduzir o jogo da vida humana. Villon mobiliza todos os seus sentidos, todos os seus membros - "olhos, orelhas, boca e nariz, e vós também, sentido do toque" - e todo o seu corpo para louvar a corte, 1 75
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"felicidade dos franceses" e "reconforto dos estrangeiros" em sua Louange à Ia cour [Louvor à corte]. Villon canta a inefável beleza e o encanto do corpo feminino, que é tão "soef", isto é, doce e suave. Mas Villon se vê assim como condenado, como enforcado, encarnando a derrota do coração, o corpo cadavérico e pútrido em Épitaphe de Villon en forme de ballade [Epitáfio de Villon em forma de balada]:
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e de um corpo decrépito e mortal. Esse filho do século e da Igreja, que o educou, conhece a Quaresma. Mas canta e exalta também o Carnaval. Seu Testament [Testamento] imita os Antigos, mas termina em uma procissão burlesca que anula as hierarquias sociais e na qual a pregnância da animalização se torna um meio "de introduzir as atividades fisiológicas do corpo, de levar tudo ao domínio corporal, que é universal, ao beber e ao comer, à digestão, à vida sexual"." Máscaras, jogos verbais e lexicais, fronteiras permeáveis entre o homem e o animal, prostitutas, macacos, gesticulações, contorções, metamorfoses, risos, choros, ironias e troças ... Villon exacerba as tensões da Idade Média fenecente. É o respeito ao coração, mas também a vingança do corpo que ele exprime. Medo, obsessão, sedução da morte e exaltação da beleza física: a tensão corporal torna-se existencial. O corpo tem, portanto, uma história. O corpo é a nossa história.
"Quanto da carne, que muito comemos, Está hoje devorada e em fermentação, E nós, os ossos, a cinza e pó vamos volver.'
E o que dizer do corpo devastado da bela armeira: "O que restou dessa fronte lisa, desses cabelos loiros, dessas sobrancelhas arqueadas, desse grande entreolhas, desse olhar vivo que seduzia os mais malvados, desse belo nariz reto, nem muito grande, nem muito pequeno, dessas pequenas orelhas bem desenhadas, desse queixo com covinha, desse claro rosto bem traçado, desses belos lábios vermelhos? "Desses bonitos pequenos ombros, desses braços longos e dessas mãos finas, desses pequenos mamilos, desses quadris carnudos, altos, claros, bem-feitos para os torneios amorosos, desse grande dorso, desse pequeno orifício colocado sobre grossas coxas firmes no meio de seu pequeno jardim? ''A fronte vincada, os cabelos grisalhos, as sobrancelhas caídas, os olhos apagados, que lançavam olhares e risos que atingiram vários infelizes, nariz adunco, privado de beleza, orelhas pendentes, peludas, rosto pálido, sem vida e descolorido, queixo enrugado, lábios rachados ..." No outono na Idade Média, Villon exprime magnificarnente a tensão exacerbada de um corpo belo e prazeroso
HISTÓRIA
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Notas
Prefácio 1. Édouard-Henri Weber, "Corps", in: André Vauchez, (org.), Dictionnaire encyclopédique du MoyenÂge, tomo I, Paris, Cerf, 1997.
Introdução: História de um esquecimento 1. Jules Michelet, Oeuvres completes, sob a direção de Paul Viallanei, Paris, Flammarion, 1971. Igualmente La sorciêre, Paris, Flammarion, coleção "GF", 1966. Edição brasileira: A feiticeira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992. Sobre a visão maravilhosa da Idade Média proposta por Jules Michelet em 1833, depois sombria e tenebrosa, a partir de 1855, ver Jacques Le Goff, "Le Moyen Âge de Michelet", in: Un autre Moyen Âge, Paris, Gallimard, coleção Quarto, 1999. 2. Jeanne Favret-Saada, Critique, abril de 1971, retomado em Corps pour Corps. Enquête sur Ia sorcellerie dans le bocage (com Josée Contreras), Paris, Gallimard, 1981. Ver também, da mesma. autora, Les mots, Ia mort, les sorts, Paris, Gallimard, 1977. 3. MareeI Mauss, "Les teehniques du corps", (1934), [ournal de Psychologie, XXXII, 3-4 (1936), in: Sociologie et antbropologie, Paris, PUF, 1950; reedição pela coleção Quadrige, 2001. Edição brasileira: Sociologia e antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003. 4. Claude Lévi Strauss, "Introduction à l'oeuvre de Mareei Mauss", in Mareei Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, PUF, 1950. Edição brasileira: "Introdução à obra de Mareei Mauss", in: Sociologia e antropologia, São Paulo, Cosae & Naify, 2003.
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1. Quaresma e Carnaval: uma dinâmica do Ocidente 1. Jean-Claude Schmitt, "Corps et âme", in: Jacques Le Goff e jeanClaude Schmitt (orgs.), Dictionnaire raisonné de l'Occident médiéual, Paris, Fayard, 1999. Edição brasileira: Dicionário temático do Ocidente medieval, 2 vols., São Paulo/Bauru, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Edusc, 2002. 2. Jean-Claude Schmitt, La raison des gestes dans l'Occident médiéual, Paris, Gallimard, coleção Bibliothêque des Histoires, 1990. 3. Ver especialmente "Un long Moyen Âge", in: Jacques Le Goff, (com a colaboração de Jean-Maurice de Montrémy), À Ia recherche du Moyen Âge, Paris, Louis Audibert, 2003. Edição brasileira: Em busca da Idade Média, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
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12. Les Stotciens, direção
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2002. 24. Mikhail Bakhtin, I.Oeuvre de François Rabelais et Ia culture populaire au Moyen Âge et sous Ia Renaissance, brasileira:
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lE
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estabelecido 1989 e 1990.
e traduzido
por
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2. Viver e morrer na Idade Média 1. Agostino Paravicini Bagliani, "Les âges de Ia vie", in: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.), Dictionnaire raisonné de l'Occident médléuol, Paris, Fayard, 1999.
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5. 6.
7.
i.