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Portuguese Pages [1034] Year 2014
Sete co lun as em esc rita hi eráti ca de um dos papi ros da XII d in asti a (c. 1980- 1 765 a.C.) q ue co ntêm o Conto do Ca m ponês Eloquente, provave lm ente todos prove ni entes da reg ião teba na.
TEXTOS DA LITERATURA EGÍPCIA DO IMPÉRIO MÉDIO Textos hieroglíficos, transliterações e traducões comentadas '
Telo Ferreira Canhão
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Reservados todos os direitos de harmonia com a lei Edição da FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN 2014 Depósito legal n.2 366851/13 ISBN: 978-972-31-1508-6
Aos meus Pais, Joel e Madalena, que passeiam a sua imortalidade no Sekhet-Iaru
À minha Mulher, Maria do Rosário, e Filhos, Rita e Guilherme. dos idiomas e de organização e disciplinização da linguagem e respectivo enquadramento gramatical que, com o decorrer dos tempos, se tornou cada vez mais num sistema metódico, coerente e organizado. É com a linguagem, sejam os signos de comunicação gráficos, sonoros ou outros, que se transmite o que se pensa e, sem dúvida, que as palavras escritas «receberam a tarefa e o poder de "representar o pensamento" », como diz o Michel Foucault 1. Isto porque a escrita é simplesmente a representação gráfica da fala que, por sua vez, é a representação do pensamento. Por outro lado, a palavra escrita, ao contrário da oral que é efémera, perdurará tanto tempo quanto o suporte onde foi registada e a qualidade do material de registo utilizado. Assim, quando surgiu,
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a tarefa daqueles que escrevem e para sublinhar o valor intemporal do acto de escrever, que os letrados egípcios tanto cultivaram. A verdade é que, dizia já o escriba egípcio de há três mil e duzentos anos, muitos túmulos de pedra se desmoronaram e caíram no esquecimento, e com eles o nome dos seus proprietários, mas no entanto, os nomes dos escritores serão sempre recordados. Esta eternidade obtida através da recordação do nome de uma pessoa por invocação dos outros, não é exactamente a mesma visão de imortalidade das crenças ancestrais egípcias que preservavam o corpo do defunto e, através do culto funerário, invocavam o nome que estava registado em todos os suportes físicos da sua capela funerária, dando-lhe diariamente comida e bebida para a sua sobrevivência no Além, através da recitação de fórmulas de oferenda. No Império Novo houve uma grande crise de valores e o
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avanço da piedade pessoal multiplicou-se numa diversidade de novas práticas e no «esquecimento» de outras. Em todo o caso, este texto faz um certo paralelismo entre esses dois tipos diferentes de memórias. Na tradição da Instrução de Kheti, neste texto oriundo de Deir el-Medina, que foi usado com finalidades pedagógicas para aprendizagem dos novos escribas, pelo menos nas escolas locais, o que mais impressiona é o facto de mencionar oito autores «clássicos», os melhores, quatro dos quais podem ser os mesmos que se incluem nesta colectânea. Dos restantes, um outro já foi referido nesta introdução. A IMORTALIDADE DOS ESCRITORES Para seres bem sucedido nisto, torna-te hábil na escrita: Aqueles escribas conhecedores do tempo dos sucessores dos deuses, aqueles que anunciam o futuro, os seus nomes perdurarão pela eternidade, ainda que tenham partido no fim das suas vidas e que todos os seus parentes estejam esquecidos. Eles não fizeram para si pirâmides de cobre com uma estela de metal do céu. Eles não trataram de deixar herdeiros, filhos para pronunciar o seu nome. Mas eles fizeram herdeiros no que escreveram e nas instruções que aí deixaram. Eles fizeram do rolo de papiro um sacerdote leitor e da tabuinha de escrever um sacerdote sameref6 . As instruções são a sua pirâmide,
26 O
sacerdote sameref era um sacerdote funerário, normalmente um dos filhos do defunto. Aliás, s3-mr f significa «seu filho amado»; cfr. L M. ARAÚJO, O clero do deus Amon no Antigo Egipto, pp. 203, 310 e 319.
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o cálamo o seu filho, a pedra lisa a sua mulher. Dos grandes aos pequenos (todos) serão seus filhos, porque o escriba é o chefe de todos. Os pórticos que construíram para as capelas funerárias ruíram, os seus sacerdotes do k.a 27 desapareceram, as suas estelas funerárias estão cobertas da poeira do chão e os seus túmulos estão esquecidos. Mas pronunciam-se os seus nomes por causa dos seus rolos de papiro, escritos quando eles ainda estavam perfeitos. E a memória disto faz com que eles atinjam os limites da eternidade. Torna-te um escriba! Põe isso no teu coração que o teu nome virá à existência por causa disso mesmo. Valem mais os rolos de papiro do que as estelas funerárias, do que construir um sólido túmulo. Eles agem como capelas funerárias e pirâmides para quem desejar que seja pronunciado o seu nome. É certamente vantajoso na necrópole um nome que está na boca da humanidade! Um homem morre, o seu corpo está (estendido) no chão e toda a sua família foi entregue à terra, mas o que ele escreveu faz com que seja recordado pela boca de quem disser a palavra. Um rolo de papiro é mais útil do que uma casa construída ou uma capela funerária no Ocidente. Melhor do que esplêndidas casas de campo ou uma estela comemorativa doada a um templo.
27 Os hemu-lat (/:zmw-H) eram os sacerdotes funerários que prestavam o culto ao defunto osirificado e justificado; cfr. Idem, p. 202.
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Há agora alguém como Hordedef? Há outro como Imhotep? Não nasceu ninguém na nossa geração como Neferti e Kheti, o primeiro deles (todos). Deixa-me lembrar-te os nomes de Ptahemdjehuti e Khakheperréseneb. Há outro como Ptahhotep ou igual a Kaires? Aqueles que sabem prever o futuro, o que sai da sua boca vindo à existência pode ser encontrado nas (suas) palavras. Eles deram filhos a outros como herdeiros dos seus (próprios) filhos . Eles ocultaram a sua magia da terra inteira para ser lida nas (suas) instruções. Eles partiram, os seus nomes podem ter sido esquecidos, Mas o que escreveram faz com que sejam recordados. Papiro Cltester Be11tty IV(BM ESA 10684), verso, da coluna 2, linha 5, à coluna 3, linha 11.
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CONVENÇÕES
1. Corno era vulgar nos textos egípcios antigos, todos os documentos utilizados, estão escritos em linhas e colunas, e a sua leitura orienta-se da direita para a esquerda. À semelhança de trabalhos idênticos, para facilitar a compreensão da transliteração e da tradução portuguesa, colocadas em paralelo com a escrita hieroglífica, apresentamos todos os textos hieroglíficos apenas em linhas e orientados da esquerda para a direita. 2. Em parte dos textos a contagem de páginas e linhas é assinalada e numerada no início de cada urna, através de sinais do tipo 3-r: colocados superiormente, em que o primeiro número refere a página e o segundo a linha dessa página. Para os restantes optou-se por não referir a página e fazer urna contagem contínua das linhas usando urna sinalética semelhante, 2f. 3. Também na margem esquerda dos textos hieroglíficos surgirão destacadas indicações respeitantes ao início da utilização de cada manuscrito, bem corno mudanças de recto para verso. Quando um texto tem urna única fonte a primeira destas duas indicações não é necessária. 4. A Instrução Lealista apresenta-se corno excepção à regra anterior. Na margem esquerda do texto hieroglífico surgirão informações que correspondem, tanto quanto possível, à indicação dos manuscritos utilizados em cada momento. O tipo de contagem de linhas hieroglíficas utilizado em todos os outros textos não é possível neste, urna vez que ele foi reconstituído através da junção de diferentes e múltiplos documentos e para cada linha hieroglífica são indicados, normalmente, vários documentos. Essa informação está colocada segundo a ordem de utilização em cada linha, com referência à obra de G. Posener. Quando urna linha não apresenta essa informação é porque ela é a mesma da linha anterior. Em lugar da contagem de linhas usaremos a divisão que G. Posener fez em parágrafos, por sua vez divididos em frases, com três pequenas alterações nos parágrafos 1, 8 e 9. Não utilizaremos a separação estela/cópias cursivas de G. Posener, ou a versão curta/versão longa de P. Vernus, mas
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apresentaremos apenas um texto que resulte o mais completo possível. Contudo deixamos uma chamada de atenção para o facto de poderem existir diferentes traduções, que dependem da selecção de fontes. Pelo nosso lado, privilegiaremos a Estela de Sehetepibré enquanto possível. 5. G. M40, G. A1 ou G. G39, significam: caracter da lista de Gardiner M40, A1 ou G39. Excepcionalmente surgirá também a abreviatura H. (Hieroglyphica) antecedendo o número de um caracter28 . 6. O Glyph 1.2 for Windows (WinGlyph) permite colocar sobre os signos de decifração duvidosa ou incerta os traços oblíquos e paralelos 0~) mas, por vezes, a deterioração de espaços de reduzida dimensão (1 ou 2/4 de um caracter num grupo de três ou quatro caracteres, por exemplo) não pode ser assinalada. De qualquer modo, através do que resta em bom estado, estes caracteres são facilmente reconhecíveis. Como o nosso estudo não trata da decifração dos papiros mas da transliteração e tradução dos hieróglifos, julgamos poder prescindir destas pequenas perdas pondo a tónica no cruzamento das diversas opiniões dos especialistas, de modo a obtermos uma transliteração e uma tradução o mais de acordo possível com o contexto e com o cotexto. 7. No texto hieroglífico, um hieróglifo com um ponto de interrogação ~ representa um caracter incerto mas provável; ~ representa uma área deteriorada; ~~ é uma área deteriorada mais extensa, com a indicação da estimativa do número de caracteres ou grupos de caracteres perdidos. Para uma melhor compreensão de algumas passagens, dentro dos sinais ()aparecem hieróglifos ou palavras omissas no manuscrito, bem como hipóteses de restauro; contudo, nalguns casos, sobretudo quando é apenas um ou dois caracteres, por comparação com outras passagens, foram colocados sob uma área deteriorada. Na transliteração, as reticências [... ] indicam a impossibilidade de transliterar uma ou 28
Ver A. G ARDINER, Egyptian Grammar, pp. 438-548; N . (ed s.), Hieroglyphica.
DER PLAS
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G RJMA L,
J. HALLOF,
O.
VAN
mais palavras devido à existência de um ou vários caracteres ilegíveis; os parêntesis rectos [ ] com algo escrito, apresentam propostas de solução para essas situações. Na tradução, os parêntesis rectos [ ] ou encerram a tradução mais provável para os espaços não transliterados, ou a explicitação de afirmações menos claras; os parêntesis curvos ( ) contêm palavras que, embora não sendo expressas no texto hieroglífico, são subentendidas pelo contexto; as chavetas I } serão usadas quando houver caracteres, palavra, frase ou outro sinal excedentário. Seguindo o exemplo de egiptólogos como K. Sethe, A. Erman ou G. Lefebvre, algumas partes poderão ser reconstituídas por comparação com outras passagens do mesmo papiro ou «por comparação com obras mais recentes, representando-se o que estaria aí» 29 . 8. Nalguns textos, em particular na Instrução de Kheti, mantemos tanto quanto possível a transliteração em conformidade com o que está no texto hieroglífico que seguimos. Mas porque algumas frases seriam totalmente incompreensíveis, fazemos a tradução já corrigida, esclarecendo em nota de rodapé as opções tomadas. 9. Os textos hieroglíficos não separavam as palavras com espaços, nem apresentavam quaisquer marcas de pontuação; na escrita hierática surgem, em bastantes e diversificados manuscritos, pequenos pontos encarnados que separam conjuntos de palavras gramaticalmente organizadas. Possivelmente eram usados como ajudas para a correcta respiração que uma boa leitura exige ou então como marcas gráficas de versos compostos por dois ou três cola cada. Em qualquer dos casos, separam conjuntos de palavras gramaticalmente organizadas. Sempre que os encontrámos nos manuscritos utilizados, fizemos o seu registo. Por vezes foi necessário corrigir o seu posicionamento. A pontuação que apresentamos na tradução portuguesa deriva da junção de uma vertente mais objectiva, a estrutura gramatical, com outra mais subjectiva, a percepção do tradutor. 29
G. L EFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens, p. 70.
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10. As frases a encarnado reproduzem o original, correspondendo nuns casos a palavras de abertura, noutros a palavras que iniciavam novas secções, e noutros, ainda, serviam para introduzir as falas dos intervenientes. De um modo geral, corno refere E. Hornung, «a escrita cursiva serve-se sempre da cor encarnada para articular e sublinhar»30 • Por este motivo mantivemos a cor encarnada tanto na transliteração corno na tradução, urna vez que facilita também a orientação na leitura. 11. Ao longo da tradução, todas as chamadas de nota, quer digam respeito ao texto hieroglífico, quer à sua transliteração ou tradução, aparecem nos respectivos lugares mas concentradas na linha de tradução. Todas elas estão concentradas no final de cada capítulo. 12. No caracter G. 050, que integra, por exemplo, as palavras sp e sp-sn, não foi possível incluir o pontilhado que preenche a circunferência deste caracter, que representa urna eira circular cheia de grão.
30
E.
H ORNUNG,
L'Esprit du Temps des Pharaons, p. 15.
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1. KHUFU E OS MAGOS
1.1. Proveniência, datação e localização dos manuscritos. Sinopse
Do conto Khufu e os Magos existe um único manuscrito: o Papiro de Berlim 3033, mais conhecido por Papiro Westcar. Segundo R. Lepsius, o papiro ter-lhe-ia sido dado por Miss Mary Westcar, em 1838, quando da sua estadia em Inglaterra (1838-1839). Contudo, a história regista aqui uma pequena imprecisão: Miss Westcar casara cerca de vinte anos antes (3 de Junho de 1819), vivia em Itália quando Lepsius esteve em Inglaterra e nunca foi ao Egipto. Então o que terá acontecido? Os pais, John e Mary Westcar, eram amigos e vizinhos do Dr. John Lee, advogado, antiquário e patrono da ciência, associado também a outro papiro, um papiro judicial da colecção de lord Amherst. Um sobrinho, Henry Westcar, o único elemento da família que visitou o Egipto, tê-lo-á trazido para Inglaterra em 1824 e dado ao Dr. Lee. Lepsius visitou Lee em 1838, que lhe terá facultado o papiro para estudo, tendo-o mantido na sua posse até à morte. Depois do seu falecimento, em 1886, foi encontrado pelo seu filho entre os seus papéis, que o doou ao Museu de Berlim1. Embora a. cólofon não tenha sobrevivido, acredita-se que não é o original, que seria, provavelmente, da XII dinastia ou mesmo anterior, sendo uma cópia de cerca de 1600 a. C., ou seja, do Segundo Período Intermediário, mais precisamente da época dos Hicsos, da XV ou XVI d inastia 2 . Tem um comprimento de 1,69 metros e cerca de 33,5 cm de largura, podendo ter tido cerca de 38/39 cm de largura, uma vez que
1 R. W.
D AWSON e E. P. U PHILL, Who Was Who in Egyptology, pp. 241-242 e 438. A. ERMAN, Die Miirchen des Pap1;rus Westcar, I, p. 1; G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens, p. 70; R. B. PARKINSON, The Tale of Sinuhe, p. 105. 2
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o texto praticamente não tem margens. O seu estado de conservação não é dos melhores, tendo o início muito estragado, faltando aí uma ou mais páginas. São nove páginas no recto, complementadas com mais três no verso, no fim das quais o texto acaba abruptamente, tendo-se perdido também o final do conto. Alterna passagens mais claras com outras mais obscuras. Pelo meio tem algumas zonas muito mal tratadas, havendo mesmo buracos no papiro. Tem sido numerado página a página iniciando-se a contagem em 1.12. Numa escrita hierática bastante cursiva apresenta-se só redigido em linhas, que variam de página para página: ... +12+25+25+25+25+26+26+ 26+27+26+26+ 26+ ... , num total de 295 linhas, algumas com muitas falhas 3 . Uma vez que se apresenta o texto hieroglífico e a tradução em paralelo, opta-se por uma contagem do número de linhas por página, mas contabilizando um total de 297 linhas porque se conta com as linhas 24 e 25 da primeira página, que são linhas intercalares mas perfeitamente integráveis em relação à estrutura apresentada. Não se segue, portanto, o tipo de contagem de cinco em cinco linhas adoptado por outros tradutores, sobretudo quando não é apresentado o texto hieroglífico 4 . Outra particularidade deste manuscrito é que, ao contrário da maioria dos restantes papiros aqui tratados, em vez de apresentar apenas um conto, encerra uma série de cinco contos, que se ligam artificialmente uns aos outros e dos quais só três estão completos. É evidente que, não havendo princípio nem fim, tanto é possível que fossem originalmente cinco como um outro número qualquer. G. Lefebvre, por exemplo, tendo por base a hipótese de Khufu ter tido nove filhos e o facto de cada conto ser introduzido por um filho
3
A. ERMAN, Die Mà'rchen des Pap1;rus Westcar, pp. 73-84. A. ERMAN, Die Mà'rchen des Papyrus Westcar, II; A. M. BLACKMAN, The Story of King Kheops and the Magicians; R. B . PARKINSON, The Tale of Sinuhe; G. L EFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens; M . LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature, I. 4
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diferente, chega a abordar a possibilidade de os contos poderem ter sido originalmente nove 5. Embora se confrontem outras fontes, este trabalho segue, fundamentalmente, as leituras dos papiros realizadas por A. Erman e K. Sethe. Aliás, quase toda a segunda parte da própria obra de A. Erman apresenta o estudo paleográfico do papiro6 .
Sinopse. O rei Khufu combate o tédio ouvindo contos fantásticos, cada um apresentado por um filho diferente, onde a magia é o aspecto principal. Primeiro conto: Apenas se conhece a oferenda funerária com que termina o conto e com a qual o rei Khufu agradece ao rei Djoser7 e ao seu primeiro sacerdote leitor, d e quem se desconhece o nome, pelo prodígio que acabara de lhe ser relatado. Segundo conto: É vulgarmente designado por «O marido enganado>>. O filho do rei, o futuro soberano Khafré, conta que quando o primeiro sacerdote leitor Ubainer acompanhou o segundo rei da III dinastia, Nebka8, mais conhecido por Sanakht, ao templo de Ptah em Mênfis, a sua mulher cometeu adultério. Tendo-lhe sido relatado o caso por um fiel servidor, logo ele fez uma escultura de cera de um crocodilo e lhe leu uma fórmula mágica. Levado pelo criado com instruções precisas, o crocodilo de cera transforma-se num crocodilo verdadeiro capturando o homem, quando ele procedia ao habitual banho no lago da casa de Ubainer, depois de consumado o acto libidinoso. Sete dias o crocodilo e o homem ficaram no fundo do lago até Ubainer regressar. Voltou com o rei, a quem pôs a par da situação. Ora nessa altura o homem ainda estava vivo, sendo condenado à morte pelo rei, que o ofereceu ao crocodilo. A mulher do primeiro sacerdote
5
G. L EFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens, p. 71. A. ERMAN, Die Miirchen des Papyrus Westcar, II, p. 1-84. 7 Vide nota 6 da tradução deste texto. 6
8
Idem .
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leitor também foi condenada à morte pelo faraó, mas pelo fogo . O conto termina com uma oferenda funerária exactamente igual à do primeiro conto, só mudando os nomes dos homenageados. Terceiro conto: Conhecido como , ou , tem agora como relator o príncipe Bauefré. Procurando ocupar o tempo do rei Seneferu, o seu sacerdote leitor chefe, chamado Djadjaemankh, propõe-lhe um passeio pelo lago do palácio, numa barca movida pelas mais belas raparigas. Durante o passeio, uma delas deixa cair à água um brinco novo, parando de remar e chamando assim a atenção do rei. Recusou continuar a remar e respondeu ao rei não querer que ele lhe substituísse o brinco perdido por outro mas que recuperasse o seu. Sem outra solução, o rei chama Djadjaemankh para resolver a situação. Por artes mágicas este coloca metade da água do lago sobre a outra metade e apanha o brinco, devolvendo-o à dona. Volta a pôr o lago como dantes e acabaram todos em grande festa. Também este conto termina com a mesma oferenda funerária igual à do primeiro, só tendo mudado o nome dos contemplados. Quarto conto: Hordedef, outro filho de Khufu, introduz o conto . Cansado de ouvir falar de prodígios de outros tempos, diz ao pai que conhece um mago capaz de fazer coisas excepcionais, como repor uma cabeça decepada no seu lugar, com a consequente restituição de vida. Hordedef é, então, encarregue de o ir buscar, tarefa que cumpre com rapidez. Uma vez na corte, o mago Djedi apresenta as suas habilidades, recusando-se a provocar a morte de um ser humano, mas quando o rei procura a resposta da maior das suas preocupações ligada à construção da sua pirâmide, que é saber a quantidade das câmaras secretas do santuário de Tot, Djedi foge à resposta e introduz o quinto conto, falando de três crianças que um dia seriam reis em todo o Egipto e levando o rei a querer deslocar-se ao local do seu nascimento, para encontrar a solução do seu problema. Quinto conto: O nome que lhe é atribuído hoje é indiscutível, , ou , embora na altura relatada não fizesse qualquer sentido. Mas o tratamento corrente
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de «anexo ao quarto conto»9 não é correcto. Pelo contrário, ele é o clímax deste texto. Os outros contos é que lhe são «anexos». Aliás, como se disse, este quinto conto é e, mais adiante, «anexo ao quarto conto: o nascimento dos reis d a V dinastia» (W. K. SIMPSON, The Literature of Ancient Egypt, p. 15; G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens, pp. 72, 86).
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1.2. Texto hieroglífico, transliteração e tradução comentada
1.12
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Então disse 1 a majestade do rei do Alto e do Baixo Egipto Khufu 2, justo de voz 3 : 1.13
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< 'l M
= A-ilT_)J -DO=r > A-JJ o i1'= """=>GI 1 1
[ímí dí.tw m3r t 1000]
«Que sejam feitas oferendas4 de mil pães,
l !: ~ fz[ n.la] ds 100
cem jarros de cerveja, 1.14
Qf\ < ~ l)RJ 11&~1 ~ ~~~:: 11 > íw3 [1 sntr p 3d 2]
um boi e duas bolas de incenso
< -A- > ~~~~~ [n] nsw-bít çjsr m3r-brw
... ao 5 rei do Alto e do Baixo Egipto Djoser6, justo de voz, 1.15
T
( [:=; ~~1J = 1 ) [fznr rdít dí .tw 1ns 1]
e juntamente que seja oferecido um bolo, a0~ -Jll(?~ m rk ít.[k] nb-k3 m i r-brw
no tempo do teu pai Nebka 11 , justo de voz,
62
1.20
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wrj3f r /:lwt-nfr nt fpt/:1 nb] rn!J-t3wy
quando ele se dirigia 12 ao templo de Ptah, senhor de Ankhtaui 13 1.21
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cheia de roupa ...... ............ 1s. A
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