Da Essência da Crítica e outros textos 9789723115482

Apresentação, tradução e notas de Bruno C. Duarte.

255 46 75MB

Portuguese Pages 223 [272] Year 2015

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD PDF FILE

Table of contents :
Apresentação
Sobre o Meister de Goethe (1798)
Sobre Lessing (1797)
Os Pensamentos e Opiniões de Lessing (1804)
Para Fichte
Introdução geral
Da Essência da Crítica
Excertos de cartas
Do Espírito Combinatório
Do Carácter dos Protestantes
BIBLIOGRAFIA
NOTA FINAL
Recommend Papers

Da Essência da Crítica e outros textos
 9789723115482

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

FRIEDRICH SCHLEGEL

DA ESSÊNCIA DA CRÍTICA e outros textos

DA ESSÊNCIA DA CRÍTICA e outros textos

FRIEDRICH SCHLEGEL

Apresentação, Tradução e Notas

Bruno C. Duarte

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

Tradução dos originais intitulados © KRITISCHE FRIEDRICH-SCHLEGEL-AUSGABE, II. BANO, Erste Abteilung, Charakteristiken und Kritiken I ( 1796-1801 ), Herausgegeben und eingeleitet von Hans Eichner. München, Paderborn, Wien, 1967, Verlag Ferdinand Schoningh. © KRITISCHE FRIEDRICH-SCHLEGEL-AUSGABE, III.

BANO, Erste Abteilung, Charakteristiken und Kritiken II ( 1802-1829), Herausgegeben und eingeleitet von Hans Eichner. München, Paderborn, Wien, 197 5, Verlag Ferdinand Schoningh.

Reservados todos os direitos de harmonia com a lei Edição da FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Av. de Berna I Lisboa 2015 Depósito Legal n. 388730/15 ISBN: 978-972 -31 - 1548-2 0

ÍNDICE

Apresentação

o o o o o 00 o o o o o o 00 o o o o o o 00 o o o o o o o o 00 o

Sobre o Meister de Goethe (1798) Sobre Lessing (1797)

o o o o o o o o o o o o o o 00 o

000000000000000000

00

oooooo · · · o · · · o o o o o o oo oooooooo o o o o o o o o o o o o o o o o o o oooo

00 0000 . . 00

00 00 00 00 0000 00 00 0000 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 . . 00 00 00 000000

Da Essência da Crítica

000000000000000000000000 00000000

Do Espírito Combinatório

145

oo.. .

000000 00000000 000

00 00 00 00 00 00 00 000000 00 0000 00 00 00 00 00 00

[V]

47 143

o

o

00 00 00 00 00 00 00 0000 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00000

Do Carácter dos Protestantes

VII

000000000

Os Pensamentos e Opiniões de Lessing (1804) Para Fichte

o o o o o o 00 o o o

o

155 191 203

APRESENTAÇÃO

I. A importância de Friedrich Schlegel permanece hoje inestimável para qualquer entendimento do conceito, da função ou do exercício da literatura moderna. O seu nome é frequentemente referido e reconhecido como o de uma das figuras de maior relevância no domínio da reflexão crítica em geral. Não obstante, os termos desse reconhecimento afiguram-se muitas vezes vagos e indefinidos , ou acabam por reduzir-se a uma referência obrigatória, pontual, que parece ter tanto de incontornável como de exígua. Várias circunstâncias permitem iluminar, pelo menos em parte, as razões de uma tal recepção. A primeira delas é exterior, e refere-se naturalmente à identificação por assim dizer automática de Schlegel, em qualquer história da teoria ou das ciências da literatura, como primeiro porta-voz e cabeça de fila do movimento conhecido como Frühromantik, o chamado Primeiro Romantismo Alemão, cujo período mais significativo é geralmente circunscrito entre os anos de 1797 e 1801 . A esta imagem fixa - um " instantâneo" , no sentido estrito do termo-, repleta de lugares-comuns e de citações aparentemente prontas a usar, parece difícil contrapor o percurso [VII]

individual , árduo e dissentâneo de um único autor, necessariamente marcado por inúmeros desníveis , flutuações e obstáculos sucessivos. Ao mesmo tempo , o valor de antevi são que a instituição literária se habituou a reconhecer nos vários princípios e enunciados do ' Romantismo ' implica, como que por inerência , a assunção prévia desta identificação como um dado adquirido , um marco indelével na cronologia das ideias e concepções da literatura , que , por razões ligadas às exigências do compêndio e da sinopse, se coloca acima de qualquer dado ou de qualquer contingência que não sirvam imediatamente a função de simples exemplo . A isto vem juntar-se uma segunda circunstância, de cariz mai s específico. Schlegel foi reconhecidamente um autor muito prolífico , sob muitos aspectos atreito a uma certa ideia da desordem ou da dissipação. A abundância dos géneros em que escolheu apresentar o seu pensamento , que se vão intersectando sem fim ao longo de muitos anos , votou-o , aos olhos dos seus leitores potenciai s, a uma dispersão crescente , que resiste continuamente , por ser essa a sua natureza mai s própria , a todos os esforços de hierarquização e de síntese . O corpus geralmente contemplado em qualquer visão panorâmica da obra de Schlegel inclui por regra aqueles que são considerados unanimemente como os textos-chave do Primeiro Romanti smo: o ensaio de juventude Sobre o estudo da poesia grega ( 1795-1797), os Fragmentos Críticos do Lyceum der schonen Künste (1797) , o romance Lucinda (de 1799), assim como os vários fragmentos e ensaios integrados nos três volumes da [VIII]

revista Atheniium (publicada entre 1797 e 1800), entre os quais se contam por exemplo a Conversa sobre a poesia e o opúsculo Sobre a Filosofia - Para Dorothea . Não estranhamente , a grande maioria destes escritos adquirem a sua mais-valia antológica por via do fundo intemporal e da força de antecipação que os caracteriza. O seu valor testamentário , para o dizer com gravidade , garantiu-lhes sem surpresa o decreto da sua posteridade . De fora ficam porém vários outros textos , cuja motivação ou cuja forma contingente - a recensão de uma obra entretanto caída no esquecimento, por exemplo , o louvor de um autor que se tornou desconhecido ou passou a ser ignorado - parecem torná-los de algum modo impenetráveis ou distantes para os leitores de hoje. Ora é preci samente em alguns desses textos menos conhecidos , ditados quer por uma admiração profunda e pela atenção minuciosa que dedicam ao seu objecto , quer pela urgência da época e do juízo polémico que neles se encontram contidos , que emerge a contribuição maior de Schlegel para a hi stória e para o exercício fundador do conceito de crítica. Entre os vários motes fundamentais do seu percurso , este termo é sem sombra de dú vida o conceito operatório determinante no qual são expostos- e propriamente artilhados - todos os outros , uma roda do leme , se se quiser, capaz de fazer mover o conjunto das categorias que se vão erguendo à sua volta . Para o perceber, é preciso entrar em contacto directo com as páginas em que a questão é trazida à superfície . Desse impacto poderão então sobressair por si mesmas as si milaridades e as

[lX]

dissemelhanças entre a experiência vivida por Schlegel e a situação em que se encontra hoje , dentro e fora do nome " literatura", o conceito de crítica.

II.

São incluídos neste volume em primeiro lugar os ensaios Sobre o Meister de Goethe e Sobre Lessing , dois exemplos da forma em prosa que Schlegel denominou «Característica», um «género próprio» 1 no qual se trata muito preci samente de caracterizar um lndividuum - que pode ser quer a obra completa (o percurso e a formação, ocarácter) de um autor determinado , quer uma obra particular. SOBRE O MEISTER DE GOETHE , publicado no segundo fascículo do Atheniium em Junho de 1798 , representa um exemplo deste último caso - o estudo de uma única obra , Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (surgida entre 1795 e 1796)- e parece corresponder simetricamente a uma definição categórica que se encontra nos cadernos de apontamentos de Schlegel , na qual se diz da característica que ela «não deve ser um retrato do objecto , mas antes um ideal do género individual».2 1 Kriti sc he Friedrich-Schl egei-Ausgabe . Yo l. 16, Fragmente : ur Poesie und Literatur I. Ed . H . Eic hner. Munique . Paderbom . Viena. 198 1, p. 86. fr. 14. Sal vo outra indicação. as ci tações seg uintes refere m-se a esta edição. daqui em di ante designada por KA. seguido da referê ncia ao vol ume. número de pág in a e (entre parên tes is) número do frag mento citado: Ath . ass inala os fragmentos do Atheniium . ld . as Ideias . Lyc. os Fragmentos críticos do L.'·ceum der schonen Kiinste. 2 KA 16: 178 ( 11 33).

[X]

Um ano antes, num dos seus fragmentos críticos do Lyceum der Schonen Künste (1797), Schlegel proclamava enfaticamente: «Alguém que caracterizasse convenientemente o "Meister" de Goethe teria dito na verdade , ao fazê-lo, aquilo de que soou a hora em poesia. Ser-lhe-ia possível, no que diz respeito à crítica poética, aposentar-se para todo o sempre.» 3 A característica Sobre o Meister de Goethe visava cumprir esta pequena grande profecia, de acordo com a ambição que lhe era própria- bem visível, de resto , na ambivalência lúdica do título: um ensaio sobre e para além do Meister, que designa a um tempo o nome da personagem principal do romance e o epíteto solene devido a Goethe. Contudo, não lhe foi possível ser fiel até ao fim a essa condição do aposentamento ou do derradeiro sair de cena. Schlegel nunca chegou a completar o seu ensaio, que ficou sem o anunciado seguimento, e, por isso, em estado de fragmento; em vez disso, propôs-se dedicar os seus esforços a «continuar o Sobre-o-Meister de um modo indirecto», algo que lhe parecia melhor do que fazê-lo «de modo directo» 4 • Nas suas numerosas menções e anotações sobre Goethe, que se prolongam até muito tarde, ele reviu substancialmente a sua interpretação inicial, e não deixou de pôr à prova e de criticar a estrutura e o funcionamento daquele que começara por considerar como o «primeiro romance propriamente sistemático» ou o «melhor filosofema poético natural», que aparece descrito no fragmento 3

~

KA2 : 162(Lyc. l20). KA 24: 287 (carta a Caroline Schlegel. Maio de 1799) .

[XI]

216 do Atheniium como uma das «maiores tendências da época», a par da Doutrina da ciência de Fichte e da Revolução Francesa. 5 Sem partilharem a violência dos ataques de Novalis , as reservas de Schlegel a propósito do ' Wilhelm Meister ' sinalizam uma reacção de ambivalência , uma tensão que se prende essencialmente com o modo como essa obra em particular mostrava poder ao mesmo tempo convergir e colidir com a ideia da poesia romântica , e muito especialmente com a concepção ou re-concepção do romance que lhe estava associada , enquanto ponto de confluência e fusão das formas clássicas numa estrutura progressiva que abraça e envolve todas as categorias , da poesia à filosofia. Sob muitos aspectos , Schlegel projectou -no sentido positivo e negativo- na obra individual de Goethe a sua própria determinação em curso , a que se poderia chamar a experiência e a produção teóricas, do que deve e pode ser idealmente um romance , antecipando de certa maneira Lucinde, o romance experimental de 1799 , ou a raiz programática da Carta sobre o romance de 1800. Não restam dúvidas , em todo o caso , que Sobre o Meister de Goethe, considerado pela amplitude do seu gesto e enquanto forma exemplar da característica, representa, acima de tudo à vista da sua coerência interna , um exemplar acabado do que pode ser uma «obra de arte da crítica» .6 O ensaio contém, nas palavras de Schleiermacher, um amigo e colaborador próximo de Schlegel , não apenas 5

6

K A 18: 230 (433 ): 83 (639) . KA 2: 253 (Ath. 439).

[XII]

algumas indicações importantes para «uma teoria do romance ainda por descobrir», mas essencialmente «uma introdução com vista a encontrar a mais nova particularidade da obra , penetrar nos mais profundos mistérios da sua composição , e compreender a relação do tema fundamental com os elementos circundantes, da intenção do artista com a tendência da obra» .7 Há muita justeza neste juízo: a atenção à estrutura e a intuição da forma são os principais pontos de apoio de Sobre o Meister de Goethe, que avança com segurança tanto no conhecimento quanto no acolhimento do seu objecto. Mais do que isso , a leitura proposta por Schlegel está assente numa correspondência directa entre a matéria da narrativa (o seu tema , o seu conteúdo) e as condições da sua génese e da sua composição. Pelo carácter do personagem principal , pela história interior do seu percurso como homem e como artista , entendida como um processo ininterrupto de educação e aperfeiçoamento , análogo à representação da história progressiva , dá-se a ver o princípio dinâmico que subjaz a toda a ideia - tão evidente quanto ambígua, para mais tratando-se de um conceito omnipresente na transição do século XVIII para o século XIX - da Bildung, formação ou cultura; de forma quase natural , o espírito que aspira a formar-se a si mesmo , na sua faculdade de receptividade e de aprendizagem da vida no ponto de contacto com a arte , encontra o seu correlato no «impulso 7 Schleiermac her. F.D. E.: Recensão de: Au gust Wilhe lm e Friedrich Schlege l. Características e Críticas . in : Schriften aus der Berliner Zeit 1800-1 802. Ed . G . Meckenstoc k . Kriti sche Gesamtausgabe Vo l. U3. Berlim . Nova Iorque . 1988. pp . 402-403.

[XIII]

inato da obra inteiramente organizada e organizadora em formar-se a si mesma num todo». Neste todo , um mundo dentro de outro mundo, movem-se um génio e uma grandeza próprias que ditam a sua «coesão espiritual» e põem a descoberto para o leitor a sua «personalidade e individualidade vivas» .8 Não se trata pois de fixar a obra ao género a que poderia pertencer, mas antes de ser capaz de apreendê-la e compreendê-la a partir de si mesma . Para descrever a articulação entre as várias partes do romance de Goethe , e a sua relação com a coesão do todo , nas suas unidade e indivisibilidade , Schlegel recorre a imagens sugestivas , como por exemplo a ideia de que cada livro retoma a forma interna do anterior à maneira de uma repetição musical , ou contém em si o germe do seguinte. Esta percepção arguta de uma organicidade e de uma vocação para o universal , deduzida do estudo empírico de um clássico moderno, irá conduzi-lo à intuição de uma obra que contém em si a faculdade de se apresentar, julgar e caracterizar a si mesma , isto é , de definir ela mesma , com base na sua autonomia e no seu fundo dinâmico , os princípios da sua poética , e que por isso põe em causa - sentencia - a relevância de qualquer juízo exterior. No entanto , e é este em grande medida o princípio de ousadia ou mesmo de bravura que destaca este ensaio , só uma tal obra está em condições de suscitar a verdadeira crítica , ou , melhor dizendo , de garantir um equilíbrio entre a crítica poética , fundada no modo como o leitor descreve a impressão subjectiva que teve da obra , e a irrupção do momento 8

KA 2: 13 1.

[XIV]

reflexivo , analítico-sintético que conduz à apreensão do seu todo. Do crítico, e em geral do «homem que é inteiramente homem , e assim sente e pensa», espera-se que tente «ir sempre mais fundo , se possível até ao centro, e saber como é construído o todo» . A sua dupla natureza responde à duplicidade constitutiva do próprio texto. É belo e necessário o entregar-se completamente à impressão de um poema , deixar que o artista faça connosco o que bem entender, e tal vez só em questões de pormenor sancionar o sentimento através da reflexão , e elevá-lo a pensamento , e , sempre que houver ainda motivo para duvidar ou litigar, resolvê- lo e completá-lo. É isto o principal , e o mai s essencial. Mas não é menos necessário ser capaz de abstrair-se de todo o particular, apreender numa oscilação o geral , abranger com a visão uma massa , e reter o todo , investigar até o que mais se esconde e ligar entre si o mais remoto .9

Num texto mais tardio, em 1808 , Schlegel , sempre a propósito do Meister , falará da necessidade de reconhecer a «natureza individual da obra» como ponto de partida essencial para pensar a relação entre a sua «forma exterior» e a sua «unidade interior», refutando assim o conceito de género como critério absoluto. A sua conclusão é então a de que Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister , que significam a «ligação e a mistura da arte representativa à visão e à formação do artista», pertencem de pleno direito à «poesia moderna» . O traço distintivo da arte poética

9

KA2 : 13 1.130-3 1.

[XV]

modema , dirá ainda, é «a sua relação precisa com a crítica e a teoria , e a influência decisiva desta última» .10 Na característica publicada no Athenaum em 1798 , esta intuição tem uma outra força: ao entrever no Wilhelm Meister uma «física poética da poesia», Schlegel identificou as condições da manifestação de uma poesia da poesia - tal como vi ria a ser enunciada no fragmento 238 do Athenaum, que põe a hipótese de uma «poesia transcendental » dedicada a unificar o ideal e o real " -,ao mesmo tempo que , no contexto de desdobramento implicado na sua crítica hermenêutica, que completa e excede a obra que tem diante de si, apontava para as potencialidades de uma crítica da crítica. Com efeito , todo o ensaio Sobre o Meister de Goethe não constitui apenas um testemunho explícito de um certo exercício da crítica, que dá nele os primeiros passos. M ais do que isso, ele indica também as ferramentas e os princípios bas ilares que vão convergindo na reflexão dada ou descoberta em potê ncia na própria obra, tanto quanto no olhar que o trabalho crítico lança sobre si mesmo (cujos exemplos maiores seriam aqui as várias alusões à acção da ironia , ou o modo como são prefiguradas as várias ramifi cações da poesia uni versal progressiva , expostas num outro célebre fragmento do A thenaum 12 ). Não surpreende por isso que Walter Benjamin tenha visto neste texto o único mome nto em que Schlegel, ao produzir uma recensão

° KA 3: 135- 136.1 38.

1

11

I~

KA 2: 204 (Ath . 238) . 134 . KA 2: 182 (Ath . 116).

[XVI]

que seria em igual medida «teoria da crítica» e «C rítica do romance goetheano», teria cumprido o seu «ideal de crítica» .13 O próprio modo de proceder desta característica, na qual- em conformidade com a tentativa de compreender uma obra unicamente a partir de si mesma - é visível a alternância entre a análise do particular e a perspectiva do universal, dá vida à definição da crítica proferida por Schlegel num dos seus fragmentos: Crítica não é outra coisa, na verdade , senão a comparação do espírito e da letra de uma obra, a qual é tratada como infinito , como absoluto e como indi víduo . -Criticar significa compreender um autor melhor do que ele se compreendeu a si próprio.- 14

III. Uma carta de 26 de Agosto de 1791 ao irmão August Wilhelm fazia já prever, de modo algo genérico , as intenções de Friedrich Schlegel quanto à concretização da característica como género: «estou convicto de que poderia ganhar o gosto a esta espécie de leitura- comparar no seu conjunto os textos e a vida de um grande homem e , a partir daí , constituir para mim um todo .» 15 É o que acontece no ensaio fragmentário SOBRE LESSING , publicado em

' ' Benjamin . W.: O conceito de crítica de arte no Romamismo Alemcio. Trad. Márci o Seligmann-Silva . São Paulo. 1993. p. 22 . 1 " KA 16: 168 (992 ). 15 KA 23: 22 .

[XVII]

1797 na revista Lyceum der schonen Künste de Johann Friedrich Reichardt , que visa a apresentação do carácter de um autor na sua totalidade. O texto é peremptório na sua declaração de princípios: está em causa a «tentativa de caracterizar o espírito de Lessing no seu todo», com o intento de sondar e determinar «O que ele era na verdade, o que queria ser e o que tinha de tornar-se no seu todo» .16 A estratégia dominante desta característica , recorrente em muitos dos textos de juventude de Schlegel , parece simples: é preciso denunciar a imagem distorcida do objecto-sujeito em causa , tornada omnipresente pela tradição vigente , para que se torne possível opor-lhe de seguida uma revolução interna, uma deslocação da sua matriz , capaz de fazer descarrilar o próprio conceito de representação. É preciso não apenas desconstruir, mas destruir a «impressão geral» e a «opinião dominante sobre Lessing», para que se torne possível constituir verdadeiramente, com justiça e de forma autónoma , um juízo imparcial , li vre a seu respeito . O primeiro passo é pois do domínio da polémica aberta: Schlegel toma por alvo a idolatria e a ponta de vulgaridade que abunda a seus olhos na recepção iluminista de Lessing. Daqui partirá um segundo impulso , uma in versão do ataque inicial numa operação de resgate do bom nome de Lessing , que tem em vista li vrá-lo preci samente da interpretação abusiva da sua obra , da reputação injusta e dos equívocos que a precedem , e reavaliar todo o seu carácter. 16

KA 2: 100 . 108.

[XVIII]

Na prática , isto passa em primeira instância pela refutação subtil da obra e mesmo da vocação poéticas de Lessing . Emitia Galotti constitui para Schlegel «um grande exemplo da álgebra dramática», embora desprovido de verdadeira «inteligência poética»: uma obra fria da razão , que , consequentemente , só pode ser admirada pela razão , uma obra fundamental que, não obstante toda a sua singularidade , se revela falha de brilho e intensidade . Só Nathan o sábio parece escapar a este veredicto , porquanto representa o «ponto culminante do génio poético de Lessing», sendo ao mesmo tempo um texto filosófico , e genuinamente clássico , inconcluído , inassimilável a qualquer interpretação definitiva ou a um qualquer género pré-determinado. É o «Lessing de Lessing, a obra por excelência entre as suas obras», o exemplo acabado do seu «cinismo superior», e o ápice da sua prosa , que cinge de modo efusivo e contraditório a forma dramática. 17 No ensaio sobre Georg Forster, também ele de 1797 , e também ele um tratado de reabilitação erigido sob uma égide essencialmente combativa, Schlegel tinha-se já referido a Lessing como o «Prometeu da prosa alemã» .18 Aqui , a compensação do que seria por assim dizer a falta de talento poético afigura-se como a grandeza instintiva , puramente individual , de Lessing como prosaísta , do «espírito comum» de que as suas obras são exteriorizações, e do espírito revolucionário que ele próprio revelou ser em todos os momentos. É claramente pelo sinal dessa 17 I

K A2 : 11 8 .1 24. K A 2:92.

[XIX]

' individualidade ' que Schlegel procura neutralizar o retrato predominante, para ele até aí distorcido , do «génio universal»19 de Lessing , desarticulando no sentido mais pleno o conjunto das suas virtudes , de modo a fixar por fim os traços de um único carácter num paralelismo perfeito com a liberdade do seu estilo e a sua autonomia como pensador. Em Lessing , os dois planos elevam-se reciprocamente: o seu lado insubmisso e incorruptível , a resistência e a robustez do seu temperamento , a «sagrada liberalidade» e o livre pensamento , a curiosidade e a «inquietude divina», e , assim também, a tendência marcadamente dialógica que exibe a sua escrita, a força do seu Witz, da sua natureza e do seu sentimento religioso , da sua polémica.

IV. Apesar dos planos para dar continuidade à característica Sobre Lessing, inicialmente previstos para o número seguinte do Lyceum, ela permaneceu inacabada , e só em 1801 Schlegel redigiu e publicou a - por ele assim chamada - CONCLUSÃO DO ENSAIO SOBRE LESSING , que , juntamente com o texto inicial , fazia parte do primeiro volume das Características e críticas, editadas nesse mesmo ano em conjunto com August Wilhelm Schlegel. Entre ambos os textos, é importante notá-lo , encontra-se o período de maior efervescência do chamado Romanti smo de Jena , assinalado por algumas das suas obras e actividades 19

KA 2: 104.

[XX]

mais marcantes , entre as quais se destacam a fundação e dissolução - de 1798 a 1800 - do Atheniium (que inclui peças fundamentais como os Fragmentos e as Ideias , a Conversa sobre a poesia, o tratado Sobre a filosofia, odiálogo Os quadros de A .W. Schlegel ou os Hinos à noite de Novalis) ou a publicação do romance Lucinde no ano de 1799- para nomear apenas alguns exemplos. A morte prematura de Novalis em 1801 , e a mudança de Schlegel para Dresden e depois para Paris , no ano seguinte, situam num ponto de viragem, num enclave, no sentido próprio, a sua Conclusão do ensaio sobre Lessing. Neste texto, que sob muitos aspectos vale por si mesmo , Schlegel retoma o móbil da sua contenda anterior, a saber, a afirmação veemente de que a tendência- a vocação mais íntima - de Lessing não se encontra do lado da imaginação poética ou da crítica da poesia, apenas para consumar por fim a deslocação dos planos: o movimento mais próprio do espírito de Lessing, que inclui também , não obstante todas as reservas, a sua propensão ou aptidão crítica, manifesta-se , na sua culminação, numa peculiar «mistura de literatura , polémica, Witz e filosofia» .20 Após este breve prelúdio , Schlegel suspende aparentemente o seu ímpeto polemista , para apresentar de chofre uma selecção dos seus próprios fragmentos , na sua maioria publicados previamente no Lyceum e no Atheniium , a que chama , na ocasião, «limalhas de ferro » . O desígnio deste estranho exercício de autocitação é bifurcado: por um lado , representa uma homenagem a Lessing, que 20

KA 2: 398.

[XXI]

o ensaio de 1797 celebrava já como exímio fragmentista; por outro, essa homenagem, ou essa «oferenda sacrificial», como escreve Schlegel, é tudo menos passiva ou simplesmente laudatória. Com efeito , ela não só se ocupa em desenhar o carácter do objecto do seu louvor, como também em descrever o modo da sua aproximação a esse mesmo objecto , assimilando-lhe os traços e restituindo-os numa nova autoria e num outro texto, em nome de uma afinidade superior que busca superar-se a si mesma na sua própria descontinuidade. No cerne do ensaio está uma série de considerações sobre a correlação do particular e do todo no horizonte do conceito de uma «arte superior», entendida nas suas unicidade e indivisibilidade . A partir deste foco- a apreensão da obra individual ou completa de um autor como um todo , cuja impressão é preciso isolar para chegar a determinar a intenção e tendência do espírito que o habitam - são desenvolvidas, à maneira quer de um esboço , quer de uma série de alusões que se repetem e desdobram entre si, noções cruciais para todo o pensamento de Schlegel: a tentativa de uma fundamentação livre da crítica e do juízo , a potenciação gnoseológica da ironia e do Witz, a representação da polémica como princípio activo do cepticismo , o projecto de uma autonomia da enciclopédia como ciência das ciências por vir, ou a ideia de uma forma simbólica da filosofia. Para rematar o seu ensaio , Schlegel entrega-se a uma extensa diatribe em verso, no modo elegíaco-didáctico, intitulada "Hércules Musageta", na qual já sobra apenas [XXII]

uma única referência a Lessing, e que pode na verdade ser lida como uma característica de longo alcance, cuja sumptuosidade e cuja natureza, ao mesmo tempo torrencial e hermética , servem para evidenciar, num andamento contíguo e agora repleto de nomes, apóstrofes e sentenças, o gesto universal do soneto que servira de abertura à sua ' Conclusão'. A versificação irrefreável faz deste epílogo uma tocha acesa: à medida que vai girando em tomo de um núcleo- a génese da arte e da poesia universal como arquétipo análogo ao crescimento da natureza- cujas ramificações são infinitas, mobiliza na elegia um monumento cifrado de significação inesgotável.

v. Na conclusão do ensaio sobre Lessing de 1801 , Schlegel anunciava com alguma solenidade o seu «adeus crítico», para logo de seguida introduzir a ressalva de que tal não significava o abandono , mas antes a circunscrição das suas «experiências com as obras da arte poética e filosófica» a dois objectivos centrais: a constituição de uma «história da arte poética», por um lado, e a prática , necessariamente polémica , de uma «crítica da filosofia» , por outro. 21 Ambos os desígnios , que na verdade não limitam mas provocam a expansão ilimitada do trabalho crítico, começam também a ganhar forma num dos projectos mais ambiciosos de Schlegel nos anos imediatamente 21

KA2: 409

[XXIII]

posteriores: a edição da antologia OS PENSAMENTOS E OPINIÕES DE LESSING , publicada em 1804. O intuito monumental desta obra, composta por 3 volumes relativamente extensos, é posto em equilíbrio pela vontade férrea que ostenta o modo da sua composição. Schlegel descreve desta maneira a sua intenção geral: «caracterizar o espírito de Lessing no seu todo» , acompanhar «a história do seu espírito e do desenvolvimento do mesmo em todas as suas gradações, até às mais longínquas ramificações da sua formação». 22 Efectivamente, muito do que havia sido esboçado na conclusão de 180 I sobre o fito de apreender as leis do todo, exemplificado na convicção de que «SÓ se torna possível compreender inteiramente a obra [individual] no sistema de todas as obras do artista» 23 , transforma-se numa procura activa, isto é, num desejo de intervir nesse mesmo sistema. Quando se ambiciona encontrar o espírito comum e único de um único autor, e assim iluminar o conjunto da sua obra, é necessário em primeiro lugar dá-la a ler de certo e determinado modo, para ao mesmo tempo tornar possíveis as condições de um novo juízo sobre ela. As premissas são portanto as mesmas , mas chegou agora o momento de pôr mãos à obra. Os pensamentos e opiniões de Lessing, reunidos ecomentados a partir dos seus textos por Friedrich Schlegel (título completo da antologia) não constitui um florilégio iluminista dedicado à figura e à acção incontornáveis de 22

23

KA 3: 79-80 . KA 2:410.

[XXIV]

Lessing, nem uma selecta cujos fins didácticos estariam em harmonia com a prudência e a imparcialidade da exposição correspondentes. Pelo contrário , o procedimento de Schlegel é acima de tudo, e no sentido próprio , cortante: não apenas em virtude dos critérios da triagem e apresentação dos textos, como também do método da sua ordenação e disposição pela mão do antologista, que na prática os vai manuseando livremente, cortando alguns, abreviando ou fragmentando outros, chegando mesmo a continuar certos deles por sua própria iniciativa- como acontece por exemplo , no terceiro volume, com o assim chamado Fragmento de um terceiro diálogo de Ernst e Falk, o texto de Lessing datado de 1778-80. Num primeiro ângulo , é dada a palavra a Lessing , através da selecção dos seus ensaios e fragmentos, que permite em princípio restituir o seu estilo directo. No entanto, essa selecção envolve processos associativos , por vezes abertamente manipuladores , da letra em função do espírito: Schlegel diz repetidamente procurar a tendência geral , a lei dinâmica de progressão , o elo interno de ligação , o espírito unificador que faz da obra de Lessing um todo gravado no todo da história da literatura e da filosofia . Num segundo ângulo, é posta em marcha uma experiência , no sentido pleno do termo: na construção do 'seu' autor, a sua estrela polar, como dizia ainda a Conclusão de 180 I , Schlegel força e institui um regime de alternância dos seus textos com os de Lessing , de maneira a suscitar a determinação recíproca de uns pelos outros , e a confundir desse modo intencionalmente o esforço hermenêutico de [XXV]

interpretação e elucidação da obra com os princípios da sua organização e edição. Há algo de muito particular nesta interacção entre os dois pólos: a constituição dos escritos ' originais' é intercalada pelos comentários, não em separado, ou como uma simples nota prévia, mas obliquamente. No geral , Schlegel propõe , nas várias introduções e adendas que pontuam os escritos de Lessing , uma leitura radical que , à margem de uma objectividade dada ou já estabelecida, faz violência não só aos textos , como à posteridade em que estão prestes a cair. Como se pode adivinhar, no entanto , um tal gesto- que põe continuamente à prova uma ideia particular quanto à re-constituição de toda a obra de Lessing- tem tanto de apropriação do seu objecto quanto de dedicação ao mesmo, e, assim também , de criação. São precisamente esses ensaios, separados agora do contexto que os originou , sem no entanto deixarem de agir sob o seu signo , que constituem, numa veia aproxidamente sistemática, os testemunhos mais instantes e prementes legados por Schlegel sobre o que significava para ele o conceito de crítica. Schlegel abre a sua antologia de Lessing com uma dedicatória a FICHTE , uma carta aberta na qual são abordadas resumidamente muitas das suas inquietações constantes a respeito da relação da literatura com a filosofia , que se irão reflectir na sua «tentativa de apresentar de forma apropriada o espírito e os pensamentos de Lessing , o seu curso e a sua génese» .24 A interpelação directa , que sublinha ainda mai s a insistência de Schlegel em apresentar na 2

'

KA 3: 46.

[XXVI]

primeira pessoa o plano das suas investigações e o rumo das suas conclusões, estimula o tom confessional, a implicação biográfica de cada uma das questões que o ocupam , sobre o que representa um pensamento inteiramente autónomo e livre. Isto leva-o a formular com uma sinceridade circunspecta as polaridades que compõem e recompõem as suas observações: fragmento e todo, arte e ciência, leis da escrita e leis da reflexão, estilo e método , princípio e forma. Segue-se a Introdução geral , DA ESSÊNCIA DA CRÍTICA , um texto programático cujo cerne é na verdade uma narrativa de dois pesos. Schlegel conta e reconta nessa circunstância a história da crítica , desde a época áurea dos Gregos , em que ao florescimento da poesia e da literatura sucedeu a ciência completa da sua leitura, do seu conhecimento e da sua preservação , até ao caminho atribulado dos Modernos , em que tudo se passou por assim dizer ao contrário , ou avançou , pelo menos, aos solavancos e sem a linha clara de uma continuidade . Na Alemanha , em particular, o tempo da crítica não se seguiu ao tempo da poesia , e por essa razão - assim discorre Schlegel - se esvaíram o espírito próprio e a língua materna , e , assim também , caíram no esquecimento a intuição , a vocação e a sensibilidade poéticas. Aos seus olhos, a degeneração da poesia modema, e em particular de toda a literatura alemã , ocorrida no século XVIII , deveu-se à desordem e corrupção políticas da nação , tanto quanto à inacção ou inexistência de uma crítica erudita , capaz de se unir a essa poesia , instituíndo-a como clássica , ou pelo menos de a fazer persistir. [XXVII]

O resultado desse desacerto na ordem de sucessão de poesia e crítica, que descerra o sinal da sua separação, é o estado de declínio , de barbaridade do presente, que vive no estranhamento e no horizonte de extinção prematura do «espírito de toda a arte e de toda a ciência» .25 É sobre este pano de fundo que Schlegel começa a desenhar a silhueta de Lessing como representante do Génio ou do espírito alemão, moldando-a à imagem do libertador que «ergueu a sua cabeça acima do seu tempo» e que, ao fazê-lo, «começou por repelir o jugo, resistiu com bravura à baixeza vigente, sacudiu energicamente de cima abaixo a fantasmagoria do gosto francês , reduzindo-a a nada, e lançou as primeiras sementes para uma melhor literatura alemã» .26 Ora , o modo como um tal nascimento se afigura possível levanta de uma assentada a questão da acção ou - como Schlegel teria preferido dizer - da potenciação da crítica. Pois Lessing não se limitou a incorporar o espírito crítico, que se derrama sobre todos os domínios e esferas do saber, mas lançou os alicerces da crítica futura como «construção histórica do todo da arte e da arte poética» 27 , isto é , como constituição decisiva da literatura alemã por vir. Numa palavra , a crítica tem de reaparecer sob uma nova forma , não já para canonizar, mas para tornar possível, como pela primeira vez, a literatura. Este ponto de fuga é retomado no ensaio DO ESPÍRITO COMBINATÓRIO , que precede o segundo

25 26

27

KA 3: 55. KA 3:66. KA 3: 58 .

[XXVIII]

volume, composto por fragmentos de «conteúdo dramatúrgico , literário e polémico», no qual Schlegel volta a insistir no enquadramento retrospectivo da mesma constelação histórica: a situação particular dos Modernos - e assim também da Alemanha , onde, ao contrário do que aconteceu na Antiguidade , não existia uma literatura própria já constituída à qual se teria seguido a crítica, mas um surgimento simultâneo de ambas que fez degenerar toda a vida literária e cultural, quando não uma anteposição prematura da crítica - coloca-os também , por defeito , numa posição promissora e propícia ao nascimento de um novo conceito de crítica, dita «O suporte comum sobre o qual assenta todo o edifício do conhecimento e da língua», e de uma nova literatura , que , considerada «em toda a sua extensão», passará a representar o «conjunto mais vasto da Poesia de todos os povos antigos e modernos». 28 Uma vez mai s, o espírito crítico de Lessing serve para assinalar esta reviravolta: Schlegel aprofunda aqui alguns dos seus conceitos anteriores, como a relação entre o fragmento e o todo , a definição e o efeito do Witz , a polémica , a enciclopédia, entre outros. Do ponto de vista mai s geral , são várias porém as ocorrências em que os comentários de Schlegel denotam uma tendência já muito visível para posições conservadoras e até nacionalistas, que vi riam a acentuar-se nos anos após a sua conversão ao Catolicismo, em 1808. Na sua apresentação da correspondência de Lessing, por exemplo , é muito clara uma defesa quase

' ~ KA 3: 82. 55-57.

[XXIX]

beligerante da língua alemã contra o predomínio da literatura francesa e da falsa imitação da Antiguidade que esta arrasta consigo . Essa visão algo unilateral , na qual é novamente notório o propósito não apenas de desligar Less ing do Ilumini smo , mas de ver nele o princípio de insurreição contra os males trazidos por toda a tradição dominante , arrastados agora até ao limiar do século XIX, é intensificada na Introdução que precede os textos filosófico-religiosos de Lessing- A edu cação do género humano , os Diálogos maçónicos (Ernst e Falk) e mesmo Nathan o Sábio, em rigor uma obra dramática-, na terceira parte da antologia . Neste texto , intitulado DO CARÁCTER DOS PROTESTANTES , Schlegel dá largas à sua vontade de projecção e de síntese, quando , numa exposição tão ambígua quanto tendenciosa, torce e retorce os conceitos de religião positiva (o Catolicismo) e religião negativa (o Protestantismo), até entrever na segun da um reflexo da primeira , ou na simultaneidade de ambas a fec undidade mais própria do Cristiani smo. Desse e de outros desenvolvimentos procede a tentativa de entronizar Less ing como o «arauto da nova religião», e logo , poder-se- ia acrescentar, como predecessor da mesma aspiração que ditou a viragem ' religiosa' do Primeiro Romanti smo. Os primeiros andamentos deste ensaio contêm no entanto, a pretexto de uma caracterização da essência e do espírito do Protestantismo como «espírito do pensamento livre e da liberdade pensante», passagens luminosas sobre a afinidade entre a polémica e a crítica. que é importante conhecer. [XXX]

VI. Em última instância , as considerações contidas na obra Os pensamentos e as opiniões de Lessing encontram o seu ponto de convergência numa espécie de caracterização aberta- por vezes mais sequencial, por vezes sincopada- do conceito de crítica, e muito do que afirma Schlegel aplica-se em rigor ao seu próprio papel não apenas de organizador mas de fabricador ou crítico fundador da obra de Lessing , em linha com a sua definição do espírito combinatório. Ao atravessar na diagonal, em jeito de prólogo , o problema da essência da crítica , que acabará por subsumir abruptamente numa alusão à união da filosofia e da história, Schlegel chega à visão de uma crítica que , «mais do que o comentário de uma literatura já constituída , terminada , declinante, seria antes o organon de uma literatura ainda por cumprir, ainda por formar, ou mesmo ainda por começar[ .. .] uma crítica , por conseguinte , que não se destinaria meramente a esclarecer e a preservar, mas que seria antes ela própria produtiva , pelo menos indirectamente, através de uma condução , de uma disposição , de um estímulo .» 29 Toda a antologia de Lessing, a começar pelos ensaios que descrevem a posição estratégica e a sede de intervenção que ela defende. pode perfeitamente ser considerada como um preâmbulo experimental - na teoria e na prática - desta crítica em si mesma producente e produtiva de uma literatura ainda inexistente. c9 K A 3: 2.

[XXXI]

Goethe , juntamente com uma sinopse dos principai s momentos que compõem a acção do romance .

[PUBLICAÇÃO]

Goethe dedicou-se ao Wilhelm Meister durante várias décadas, sob diferentes forma s e segundo perspecti vas di stintas. Existe uma versão preliminar do romance , com o título A missão teatral de Wilh elm Meister , iniciada em 1777 e interrompida com o início da viagem a Itália , no verão de 1786. Este estudo permaneceu fragmentário. e viria a ser publicado apenas no início do século XX. Só por volta de 1791 , e depoi s mais resolutamente em 1794 , Goethe retomou o trabalho no seu romance , introduzindo contudo numerosas alterações em relação ao primeiro esboço (que é em parte resumido e reescrito nos primeiros quatro Livros) e chamando-lhe agora Os anos de aprendi:::.agem de Wilhe/m Meister . Esta obra foi publicada gradualmente num período de doi s anos: os primeiros três volumes. editados no decorrer de 1795 , contêm os Livros I a VI: o quarto e último volume , publicado em Outubro de 1796. inclui os restantes Li vros VII e VIII. No prolongamento de todo este material. mas implicando já uma determinada autonomia. é importante referir ainda o romance tardio intitulado Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister. que existe em duas versões: uma prime ira , ainda incompleta. de 1821. e uma outra. posterior e integral , de 1829 . [2]

[SINOPSE]

Os anos de aprendi::_agem de Wilhelm Meister (1795-1796) conta a história de Wilhelm , o filho de um próspero comerciante, destinado a seguir as pisadas do seu pai , que todavia se vê tentado pelo mundo do teatro e da arte. Quando por um acaso e devido a um equívoco se descobre traído pela mulher por quem se apaixonara, a actriz Mariane , Wilhelm renuncia à sua ambição de tornar-se o «criador de um futuro teatro nacional » e escolhe afastar-se. lançando-se pouco mais tarde numa viagem de negócios. Pelo caminho, no entanto, acaba por juntar-se a uma companhia de actores e dedica-se de novo ao teatro e ao ideal da representação. Acompanham-no os actores Philine. Laertes e o casal Melina , Mignon. uma criança que Wilhelm salva de um grupo de saltimbancos e que adopta como sua. e ainda um velho tocador de harpa . Depois de uma passagem pelo castelo de um Conde. e por entre várias peripécias e aventuras. a companhia faz-se de novo ao caminho. quando é assaltada por um bando de malfeitores . Wilhelm fica ferido . mas é salvo por uma jovem mulher, descrita como uma ' bela amazona ' . que ficará retida na sua memória por muito tempo . Wilhelm parte ao encontro do seu amigo Serlo , encenador e director de teatro . Da colaboração entre ambos resulta uma representação do Hamlet. na qual Wilhelm interpreta o papel principal : o seu fascínio por Shakespeare. que Jarno. um oficial associado à nobreza e conselheiro do príncipe. lhe dera a conhecer. é visível em muitas digressões e diálogos da obra. Pouco tempo depois . porém ,

[3]

a companhia de Serlo entra em declínio , e a ruptura com Wilhelm torna-se inevitável. Entretanto , Wilhelm acompanha os últimos momentos de Aurelie. a irmã de Serlo , acometida de um mal incurável. Esta conta-lhe a infidelidade de Lothario , o seu amante de outrora , e faz Wilhelm prometer que levará até ele uma carta com as suas últimas palavras. Wilhelm decide-se de novo a partir. O encontro de Wilhelm com Lothario, um aristocrata enérgico e pragmático, introduz um ponto de viragem em todo o romance. Pouco a pouco, Wilhelm vai entrevendo a lógica que encadeia imperceptivelmente todos os acontecimentos da sua vida até esse momento , e não é pequena a sua surpresa ao ver que nada foi obra do acaso. Por detrás de tudo o que sucedeu e continua a suceder, ele descobre a influência decisiva de uma comunidade secreta , a Sociedade da Torre , representada pela figura do abade , que , após uma cerimónia solene, em que reaparecem várias das figuras com que se tinha cruzado , lhe entrega a sua ' Carta de Guia do Iniciado ' . É Jarno , também ele afinal um membro da Sociedade , quem por fim dá a ler a Wilhelm o pergaminho em que estão escritos os seus próprios Anos de Aprendizagem . Todas as personagens aparecem então como que suspensas por fios invisíveis e ligadas entre si por uma mão intangível mas agente , que as faz ressurgir a uma outra luz. Assim é posto a descoberto o destino de Mariane e do seu filho Felix , que Wilhelm reconhecerá como seu . ou a identidade de Mignon e do harpista , mantida incerta por longo tempo ; mas também a verdadeira origem da ·bela [4]

amazona', Natalie , irmã de Lothario , prometida a Wilhelm por uma lei da necessidade , ou o papel de Jarno e do abade como condutores do seu destino. Movido pela consciência da sua nova situação , Wilhelm abre mão das suas aspirações iniciais e do fundo incondicional , incomensurável dos seus ideais artísticos. A sua renúncia final ao teatro dá lugar à sua iniciação na vida activa , sob o signo de uma união com a nobreza e do impul so livre da razão, do equilíbrio e da limitação próprios da realidade.

[GÉNESE E ESTRUTURA]

Na oscilação entre o seu teor e a sua progressão, Os anos de aprendi::_agem de Wilh elm Meister descreve a articulação de duas partes fundamentais , a saber, o domínio da subjectividade convocado pelo tema da formação individual e artística da figura principal (exposto nos Livros 1-V) , por um lado , e a sua recondução no sentido de uma utopia ou de um ideal social e político de tendência reformista (Livros VII- VIII), por outro. As duas metades encontram-se ligadas por um breve interlúdio (o Livro VI) , apresentado sob a forma de uma narrati va si ngular, aparentemente autónoma e exterior ao romance, mas na verdade deci siva para o seu desenlace . Todo o livro tenta mostrar como o desejo da Bildung, da formação e do conhec imento de si presentes no desígnio de Wilhelm. no mome nto em que escolhe devotar a sua vida à arte - «aperfeiçoar-me a mim próprio , tal qual como estou, foi , obscuramente , o meu desejo e a minha intenção, desde a [5]

juve ntude» (Li vro V, Cap . 3) -. ganha forma, no conjunto da sua ex periê ncia indi vidual, como uma complexa arte da vida. Goethe vai construindo le ntamente a históri a do perc urso de Wilhe lm através da sobre pos ição e co ntraposição de vári os ele mentos, mostrando de cada vez a e ncru zilhada em que se e ncontra o seu ' he ró i': no início, o confro nto dá-se e ntre as condições de uma ex istência burguesa e o mundo do teatro; de pois , e ntre o ideal da arte da representação e as condições reais da sua execução , exempli ficadas no fre nte-a-fre nte com a nobreza; no fi nal, ent re a vocação artística incondic ional e a esfera da acção e da vida práti ca. A í res ide, sob o ri sco de alguma simpli ficação . o pano de fund o de toda a obra, desenrolada sob o signo desse co ntraste ou dessa contradi ção . Em termos ge rais , a transição do projecto ini cial A missão teatral de Wi lh elm Me isrer para a versão fi nal de Os anos de aprendi::::agern de Wilhelm Me ister ev idencia neste último um alargame nto da perspecti va. do estil o e da construção. uma passagem do se u Ensaio sobre o estilo nas primeiras e nas últimas obras de Goeth e, que integra a Conversa sobre a Poesia (1800), Schlege l pressentiu muito c lara me nte esta transformação. No mo me nto e m que proc ura e luc idar aquilo que e nte nde ser a uni ve rsalidade e o carác ter progress ivo da escrita de G oethe . no que di z respeito ao seu modo de tratar «O ideal de um a fo rm a» . ele crê descobrir na própria natureza indi visa do romance de 1795-1796 - paralelame nte às suas outras qu alidades, a «ind ividualidade» e o «es pírito anti go» , que apontam para a «harmoni a do cláss ico e do ro mânti co»

l6 l

- uma duplicidade fundamental: «a obra é feita por duas vezes, em dois momentos criadores, partindo de duas ideias . A primeira era simplesmente a de um romance de artista; agora, porém , a obra, surpreendida pela tendência do seu género, tornou-se subitamente muito mais vasta do que a sua primeira intenção. e a esta veio juntar-se a teoria da cultura da arte de viver, e converteu-se no génio do todo. » (KA 2: 346-347) Na sua recensão das ' Obras de Goethe· (Ed. Cotta. 1806). que viria a publicar em 1808 nos Anuários de Literatura de Heidelberg, Schlegel voltará a reflectir, desta feita com maior distância e de modo mai s geral , sobre Os anos de aprendi~agem de Wilhelm Meister , cujos méritos, do ponto de vista da língua e do estilo. da inventividade e da execução, lhe surgem então a uma nova luz; ao mesmo tempo , insiste na complexidade da noção de Bildung. «O conceito principal para o qual tudo nesta obra está orientado e converge como num ponto central » . (KA 3: 131 , 128)

[7]

SOBRE O MEISTER DE GOETHE

Sem altivez e sem ruído , tal como se descerra em silê ncio a formação de um espírito cheio de aspirações , e da mesma maneira que o mundo em dev ir emerge suavemente do seu interior, ass im tem início esta clara história. O que aqui sucede e o que aqui é dito não tem nada de extraordinário, e as figuras que aparecem em primeiro lugar não são nem grandiosas, nem magníficas: uma velha matreira , que tem constantemente na mira o seu próprio proveito e toma partido pelo pretendente mai s abastado; uma jovem , a quem resta apenas libertar-se dos estratagemas da perigosa tutora , para se entregar impetuosamente ao seu amado; um jovem puro , que dedica a uma actriz o belo ardor do seu primeiro amor. 1 E , no entanto , tudo está presente diante dos nossos olhos, seduz-nos e chama por nós. Os contornos são si mples e leves, mas precisos, apurados e seguros. O mais pequeno traço é significativo , cada pincelada uma leve alusão, e tudo é posto em relevo por meio de contrastes claros e vivos . Nada há aqui 1

Sc hlege l alude aqui às personage ns inic iais do romance de Goethe Os a11os de apre11di~agem de \Vilhelm Meisrer . publicado em 1795-1796 . que constitui o objecto de todo o seu ensaio: a uma ou tra carta de 6 de Setembro. a Elise Reimarus. di z ainda: