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Portuguese Pages 223 [272] Year 2015
FRIEDRICH SCHLEGEL
DA ESSÊNCIA DA CRÍTICA e outros textos
DA ESSÊNCIA DA CRÍTICA e outros textos
FRIEDRICH SCHLEGEL
Apresentação, Tradução e Notas
Bruno C. Duarte
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Tradução dos originais intitulados © KRITISCHE FRIEDRICH-SCHLEGEL-AUSGABE, II. BANO, Erste Abteilung, Charakteristiken und Kritiken I ( 1796-1801 ), Herausgegeben und eingeleitet von Hans Eichner. München, Paderborn, Wien, 1967, Verlag Ferdinand Schoningh. © KRITISCHE FRIEDRICH-SCHLEGEL-AUSGABE, III.
BANO, Erste Abteilung, Charakteristiken und Kritiken II ( 1802-1829), Herausgegeben und eingeleitet von Hans Eichner. München, Paderborn, Wien, 197 5, Verlag Ferdinand Schoningh.
Reservados todos os direitos de harmonia com a lei Edição da FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Av. de Berna I Lisboa 2015 Depósito Legal n. 388730/15 ISBN: 978-972 -31 - 1548-2 0
ÍNDICE
Apresentação
o o o o o 00 o o o o o o 00 o o o o o o 00 o o o o o o o o 00 o
Sobre o Meister de Goethe (1798) Sobre Lessing (1797)
o o o o o o o o o o o o o o 00 o
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Da Essência da Crítica
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Do Espírito Combinatório
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Do Carácter dos Protestantes
VII
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Os Pensamentos e Opiniões de Lessing (1804) Para Fichte
o o o o o o 00 o o o
o
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APRESENTAÇÃO
I. A importância de Friedrich Schlegel permanece hoje inestimável para qualquer entendimento do conceito, da função ou do exercício da literatura moderna. O seu nome é frequentemente referido e reconhecido como o de uma das figuras de maior relevância no domínio da reflexão crítica em geral. Não obstante, os termos desse reconhecimento afiguram-se muitas vezes vagos e indefinidos , ou acabam por reduzir-se a uma referência obrigatória, pontual, que parece ter tanto de incontornável como de exígua. Várias circunstâncias permitem iluminar, pelo menos em parte, as razões de uma tal recepção. A primeira delas é exterior, e refere-se naturalmente à identificação por assim dizer automática de Schlegel, em qualquer história da teoria ou das ciências da literatura, como primeiro porta-voz e cabeça de fila do movimento conhecido como Frühromantik, o chamado Primeiro Romantismo Alemão, cujo período mais significativo é geralmente circunscrito entre os anos de 1797 e 1801 . A esta imagem fixa - um " instantâneo" , no sentido estrito do termo-, repleta de lugares-comuns e de citações aparentemente prontas a usar, parece difícil contrapor o percurso [VII]
individual , árduo e dissentâneo de um único autor, necessariamente marcado por inúmeros desníveis , flutuações e obstáculos sucessivos. Ao mesmo tempo , o valor de antevi são que a instituição literária se habituou a reconhecer nos vários princípios e enunciados do ' Romantismo ' implica, como que por inerência , a assunção prévia desta identificação como um dado adquirido , um marco indelével na cronologia das ideias e concepções da literatura , que , por razões ligadas às exigências do compêndio e da sinopse, se coloca acima de qualquer dado ou de qualquer contingência que não sirvam imediatamente a função de simples exemplo . A isto vem juntar-se uma segunda circunstância, de cariz mai s específico. Schlegel foi reconhecidamente um autor muito prolífico , sob muitos aspectos atreito a uma certa ideia da desordem ou da dissipação. A abundância dos géneros em que escolheu apresentar o seu pensamento , que se vão intersectando sem fim ao longo de muitos anos , votou-o , aos olhos dos seus leitores potenciai s, a uma dispersão crescente , que resiste continuamente , por ser essa a sua natureza mai s própria , a todos os esforços de hierarquização e de síntese . O corpus geralmente contemplado em qualquer visão panorâmica da obra de Schlegel inclui por regra aqueles que são considerados unanimemente como os textos-chave do Primeiro Romanti smo: o ensaio de juventude Sobre o estudo da poesia grega ( 1795-1797), os Fragmentos Críticos do Lyceum der schonen Künste (1797) , o romance Lucinda (de 1799), assim como os vários fragmentos e ensaios integrados nos três volumes da [VIII]
revista Atheniium (publicada entre 1797 e 1800), entre os quais se contam por exemplo a Conversa sobre a poesia e o opúsculo Sobre a Filosofia - Para Dorothea . Não estranhamente , a grande maioria destes escritos adquirem a sua mais-valia antológica por via do fundo intemporal e da força de antecipação que os caracteriza. O seu valor testamentário , para o dizer com gravidade , garantiu-lhes sem surpresa o decreto da sua posteridade . De fora ficam porém vários outros textos , cuja motivação ou cuja forma contingente - a recensão de uma obra entretanto caída no esquecimento, por exemplo , o louvor de um autor que se tornou desconhecido ou passou a ser ignorado - parecem torná-los de algum modo impenetráveis ou distantes para os leitores de hoje. Ora é preci samente em alguns desses textos menos conhecidos , ditados quer por uma admiração profunda e pela atenção minuciosa que dedicam ao seu objecto , quer pela urgência da época e do juízo polémico que neles se encontram contidos , que emerge a contribuição maior de Schlegel para a hi stória e para o exercício fundador do conceito de crítica. Entre os vários motes fundamentais do seu percurso , este termo é sem sombra de dú vida o conceito operatório determinante no qual são expostos- e propriamente artilhados - todos os outros , uma roda do leme , se se quiser, capaz de fazer mover o conjunto das categorias que se vão erguendo à sua volta . Para o perceber, é preciso entrar em contacto directo com as páginas em que a questão é trazida à superfície . Desse impacto poderão então sobressair por si mesmas as si milaridades e as
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dissemelhanças entre a experiência vivida por Schlegel e a situação em que se encontra hoje , dentro e fora do nome " literatura", o conceito de crítica.
II.
São incluídos neste volume em primeiro lugar os ensaios Sobre o Meister de Goethe e Sobre Lessing , dois exemplos da forma em prosa que Schlegel denominou «Característica», um «género próprio» 1 no qual se trata muito preci samente de caracterizar um lndividuum - que pode ser quer a obra completa (o percurso e a formação, ocarácter) de um autor determinado , quer uma obra particular. SOBRE O MEISTER DE GOETHE , publicado no segundo fascículo do Atheniium em Junho de 1798 , representa um exemplo deste último caso - o estudo de uma única obra , Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (surgida entre 1795 e 1796)- e parece corresponder simetricamente a uma definição categórica que se encontra nos cadernos de apontamentos de Schlegel , na qual se diz da característica que ela «não deve ser um retrato do objecto , mas antes um ideal do género individual».2 1 Kriti sc he Friedrich-Schl egei-Ausgabe . Yo l. 16, Fragmente : ur Poesie und Literatur I. Ed . H . Eic hner. Munique . Paderbom . Viena. 198 1, p. 86. fr. 14. Sal vo outra indicação. as ci tações seg uintes refere m-se a esta edição. daqui em di ante designada por KA. seguido da referê ncia ao vol ume. número de pág in a e (entre parên tes is) número do frag mento citado: Ath . ass inala os fragmentos do Atheniium . ld . as Ideias . Lyc. os Fragmentos críticos do L.'·ceum der schonen Kiinste. 2 KA 16: 178 ( 11 33).
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Um ano antes, num dos seus fragmentos críticos do Lyceum der Schonen Künste (1797), Schlegel proclamava enfaticamente: «Alguém que caracterizasse convenientemente o "Meister" de Goethe teria dito na verdade , ao fazê-lo, aquilo de que soou a hora em poesia. Ser-lhe-ia possível, no que diz respeito à crítica poética, aposentar-se para todo o sempre.» 3 A característica Sobre o Meister de Goethe visava cumprir esta pequena grande profecia, de acordo com a ambição que lhe era própria- bem visível, de resto , na ambivalência lúdica do título: um ensaio sobre e para além do Meister, que designa a um tempo o nome da personagem principal do romance e o epíteto solene devido a Goethe. Contudo, não lhe foi possível ser fiel até ao fim a essa condição do aposentamento ou do derradeiro sair de cena. Schlegel nunca chegou a completar o seu ensaio, que ficou sem o anunciado seguimento, e, por isso, em estado de fragmento; em vez disso, propôs-se dedicar os seus esforços a «continuar o Sobre-o-Meister de um modo indirecto», algo que lhe parecia melhor do que fazê-lo «de modo directo» 4 • Nas suas numerosas menções e anotações sobre Goethe, que se prolongam até muito tarde, ele reviu substancialmente a sua interpretação inicial, e não deixou de pôr à prova e de criticar a estrutura e o funcionamento daquele que começara por considerar como o «primeiro romance propriamente sistemático» ou o «melhor filosofema poético natural», que aparece descrito no fragmento 3
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KA2 : 162(Lyc. l20). KA 24: 287 (carta a Caroline Schlegel. Maio de 1799) .
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216 do Atheniium como uma das «maiores tendências da época», a par da Doutrina da ciência de Fichte e da Revolução Francesa. 5 Sem partilharem a violência dos ataques de Novalis , as reservas de Schlegel a propósito do ' Wilhelm Meister ' sinalizam uma reacção de ambivalência , uma tensão que se prende essencialmente com o modo como essa obra em particular mostrava poder ao mesmo tempo convergir e colidir com a ideia da poesia romântica , e muito especialmente com a concepção ou re-concepção do romance que lhe estava associada , enquanto ponto de confluência e fusão das formas clássicas numa estrutura progressiva que abraça e envolve todas as categorias , da poesia à filosofia. Sob muitos aspectos , Schlegel projectou -no sentido positivo e negativo- na obra individual de Goethe a sua própria determinação em curso , a que se poderia chamar a experiência e a produção teóricas, do que deve e pode ser idealmente um romance , antecipando de certa maneira Lucinde, o romance experimental de 1799 , ou a raiz programática da Carta sobre o romance de 1800. Não restam dúvidas , em todo o caso , que Sobre o Meister de Goethe, considerado pela amplitude do seu gesto e enquanto forma exemplar da característica, representa, acima de tudo à vista da sua coerência interna , um exemplar acabado do que pode ser uma «obra de arte da crítica» .6 O ensaio contém, nas palavras de Schleiermacher, um amigo e colaborador próximo de Schlegel , não apenas 5
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K A 18: 230 (433 ): 83 (639) . KA 2: 253 (Ath. 439).
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algumas indicações importantes para «uma teoria do romance ainda por descobrir», mas essencialmente «uma introdução com vista a encontrar a mais nova particularidade da obra , penetrar nos mais profundos mistérios da sua composição , e compreender a relação do tema fundamental com os elementos circundantes, da intenção do artista com a tendência da obra» .7 Há muita justeza neste juízo: a atenção à estrutura e a intuição da forma são os principais pontos de apoio de Sobre o Meister de Goethe, que avança com segurança tanto no conhecimento quanto no acolhimento do seu objecto. Mais do que isso , a leitura proposta por Schlegel está assente numa correspondência directa entre a matéria da narrativa (o seu tema , o seu conteúdo) e as condições da sua génese e da sua composição. Pelo carácter do personagem principal , pela história interior do seu percurso como homem e como artista , entendida como um processo ininterrupto de educação e aperfeiçoamento , análogo à representação da história progressiva , dá-se a ver o princípio dinâmico que subjaz a toda a ideia - tão evidente quanto ambígua, para mais tratando-se de um conceito omnipresente na transição do século XVIII para o século XIX - da Bildung, formação ou cultura; de forma quase natural , o espírito que aspira a formar-se a si mesmo , na sua faculdade de receptividade e de aprendizagem da vida no ponto de contacto com a arte , encontra o seu correlato no «impulso 7 Schleiermac her. F.D. E.: Recensão de: Au gust Wilhe lm e Friedrich Schlege l. Características e Críticas . in : Schriften aus der Berliner Zeit 1800-1 802. Ed . G . Meckenstoc k . Kriti sche Gesamtausgabe Vo l. U3. Berlim . Nova Iorque . 1988. pp . 402-403.
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inato da obra inteiramente organizada e organizadora em formar-se a si mesma num todo». Neste todo , um mundo dentro de outro mundo, movem-se um génio e uma grandeza próprias que ditam a sua «coesão espiritual» e põem a descoberto para o leitor a sua «personalidade e individualidade vivas» .8 Não se trata pois de fixar a obra ao género a que poderia pertencer, mas antes de ser capaz de apreendê-la e compreendê-la a partir de si mesma . Para descrever a articulação entre as várias partes do romance de Goethe , e a sua relação com a coesão do todo , nas suas unidade e indivisibilidade , Schlegel recorre a imagens sugestivas , como por exemplo a ideia de que cada livro retoma a forma interna do anterior à maneira de uma repetição musical , ou contém em si o germe do seguinte. Esta percepção arguta de uma organicidade e de uma vocação para o universal , deduzida do estudo empírico de um clássico moderno, irá conduzi-lo à intuição de uma obra que contém em si a faculdade de se apresentar, julgar e caracterizar a si mesma , isto é , de definir ela mesma , com base na sua autonomia e no seu fundo dinâmico , os princípios da sua poética , e que por isso põe em causa - sentencia - a relevância de qualquer juízo exterior. No entanto , e é este em grande medida o princípio de ousadia ou mesmo de bravura que destaca este ensaio , só uma tal obra está em condições de suscitar a verdadeira crítica , ou , melhor dizendo , de garantir um equilíbrio entre a crítica poética , fundada no modo como o leitor descreve a impressão subjectiva que teve da obra , e a irrupção do momento 8
KA 2: 13 1.
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reflexivo , analítico-sintético que conduz à apreensão do seu todo. Do crítico, e em geral do «homem que é inteiramente homem , e assim sente e pensa», espera-se que tente «ir sempre mais fundo , se possível até ao centro, e saber como é construído o todo» . A sua dupla natureza responde à duplicidade constitutiva do próprio texto. É belo e necessário o entregar-se completamente à impressão de um poema , deixar que o artista faça connosco o que bem entender, e tal vez só em questões de pormenor sancionar o sentimento através da reflexão , e elevá-lo a pensamento , e , sempre que houver ainda motivo para duvidar ou litigar, resolvê- lo e completá-lo. É isto o principal , e o mai s essencial. Mas não é menos necessário ser capaz de abstrair-se de todo o particular, apreender numa oscilação o geral , abranger com a visão uma massa , e reter o todo , investigar até o que mais se esconde e ligar entre si o mais remoto .9
Num texto mais tardio, em 1808 , Schlegel , sempre a propósito do Meister , falará da necessidade de reconhecer a «natureza individual da obra» como ponto de partida essencial para pensar a relação entre a sua «forma exterior» e a sua «unidade interior», refutando assim o conceito de género como critério absoluto. A sua conclusão é então a de que Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister , que significam a «ligação e a mistura da arte representativa à visão e à formação do artista», pertencem de pleno direito à «poesia moderna» . O traço distintivo da arte poética
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KA2 : 13 1.130-3 1.
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modema , dirá ainda, é «a sua relação precisa com a crítica e a teoria , e a influência decisiva desta última» .10 Na característica publicada no Athenaum em 1798 , esta intuição tem uma outra força: ao entrever no Wilhelm Meister uma «física poética da poesia», Schlegel identificou as condições da manifestação de uma poesia da poesia - tal como vi ria a ser enunciada no fragmento 238 do Athenaum, que põe a hipótese de uma «poesia transcendental » dedicada a unificar o ideal e o real " -,ao mesmo tempo que , no contexto de desdobramento implicado na sua crítica hermenêutica, que completa e excede a obra que tem diante de si, apontava para as potencialidades de uma crítica da crítica. Com efeito , todo o ensaio Sobre o Meister de Goethe não constitui apenas um testemunho explícito de um certo exercício da crítica, que dá nele os primeiros passos. M ais do que isso, ele indica também as ferramentas e os princípios bas ilares que vão convergindo na reflexão dada ou descoberta em potê ncia na própria obra, tanto quanto no olhar que o trabalho crítico lança sobre si mesmo (cujos exemplos maiores seriam aqui as várias alusões à acção da ironia , ou o modo como são prefiguradas as várias ramifi cações da poesia uni versal progressiva , expostas num outro célebre fragmento do A thenaum 12 ). Não surpreende por isso que Walter Benjamin tenha visto neste texto o único mome nto em que Schlegel, ao produzir uma recensão
° KA 3: 135- 136.1 38.
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I~
KA 2: 204 (Ath . 238) . 134 . KA 2: 182 (Ath . 116).
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que seria em igual medida «teoria da crítica» e «C rítica do romance goetheano», teria cumprido o seu «ideal de crítica» .13 O próprio modo de proceder desta característica, na qual- em conformidade com a tentativa de compreender uma obra unicamente a partir de si mesma - é visível a alternância entre a análise do particular e a perspectiva do universal, dá vida à definição da crítica proferida por Schlegel num dos seus fragmentos: Crítica não é outra coisa, na verdade , senão a comparação do espírito e da letra de uma obra, a qual é tratada como infinito , como absoluto e como indi víduo . -Criticar significa compreender um autor melhor do que ele se compreendeu a si próprio.- 14
III. Uma carta de 26 de Agosto de 1791 ao irmão August Wilhelm fazia já prever, de modo algo genérico , as intenções de Friedrich Schlegel quanto à concretização da característica como género: «estou convicto de que poderia ganhar o gosto a esta espécie de leitura- comparar no seu conjunto os textos e a vida de um grande homem e , a partir daí , constituir para mim um todo .» 15 É o que acontece no ensaio fragmentário SOBRE LESSING , publicado em
' ' Benjamin . W.: O conceito de crítica de arte no Romamismo Alemcio. Trad. Márci o Seligmann-Silva . São Paulo. 1993. p. 22 . 1 " KA 16: 168 (992 ). 15 KA 23: 22 .
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1797 na revista Lyceum der schonen Künste de Johann Friedrich Reichardt , que visa a apresentação do carácter de um autor na sua totalidade. O texto é peremptório na sua declaração de princípios: está em causa a «tentativa de caracterizar o espírito de Lessing no seu todo», com o intento de sondar e determinar «O que ele era na verdade, o que queria ser e o que tinha de tornar-se no seu todo» .16 A estratégia dominante desta característica , recorrente em muitos dos textos de juventude de Schlegel , parece simples: é preciso denunciar a imagem distorcida do objecto-sujeito em causa , tornada omnipresente pela tradição vigente , para que se torne possível opor-lhe de seguida uma revolução interna, uma deslocação da sua matriz , capaz de fazer descarrilar o próprio conceito de representação. É preciso não apenas desconstruir, mas destruir a «impressão geral» e a «opinião dominante sobre Lessing», para que se torne possível constituir verdadeiramente, com justiça e de forma autónoma , um juízo imparcial , li vre a seu respeito . O primeiro passo é pois do domínio da polémica aberta: Schlegel toma por alvo a idolatria e a ponta de vulgaridade que abunda a seus olhos na recepção iluminista de Lessing. Daqui partirá um segundo impulso , uma in versão do ataque inicial numa operação de resgate do bom nome de Lessing , que tem em vista li vrá-lo preci samente da interpretação abusiva da sua obra , da reputação injusta e dos equívocos que a precedem , e reavaliar todo o seu carácter. 16
KA 2: 100 . 108.
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Na prática , isto passa em primeira instância pela refutação subtil da obra e mesmo da vocação poéticas de Lessing . Emitia Galotti constitui para Schlegel «um grande exemplo da álgebra dramática», embora desprovido de verdadeira «inteligência poética»: uma obra fria da razão , que , consequentemente , só pode ser admirada pela razão , uma obra fundamental que, não obstante toda a sua singularidade , se revela falha de brilho e intensidade . Só Nathan o sábio parece escapar a este veredicto , porquanto representa o «ponto culminante do génio poético de Lessing», sendo ao mesmo tempo um texto filosófico , e genuinamente clássico , inconcluído , inassimilável a qualquer interpretação definitiva ou a um qualquer género pré-determinado. É o «Lessing de Lessing, a obra por excelência entre as suas obras», o exemplo acabado do seu «cinismo superior», e o ápice da sua prosa , que cinge de modo efusivo e contraditório a forma dramática. 17 No ensaio sobre Georg Forster, também ele de 1797 , e também ele um tratado de reabilitação erigido sob uma égide essencialmente combativa, Schlegel tinha-se já referido a Lessing como o «Prometeu da prosa alemã» .18 Aqui , a compensação do que seria por assim dizer a falta de talento poético afigura-se como a grandeza instintiva , puramente individual , de Lessing como prosaísta , do «espírito comum» de que as suas obras são exteriorizações, e do espírito revolucionário que ele próprio revelou ser em todos os momentos. É claramente pelo sinal dessa 17 I
K A2 : 11 8 .1 24. K A 2:92.
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' individualidade ' que Schlegel procura neutralizar o retrato predominante, para ele até aí distorcido , do «génio universal»19 de Lessing , desarticulando no sentido mais pleno o conjunto das suas virtudes , de modo a fixar por fim os traços de um único carácter num paralelismo perfeito com a liberdade do seu estilo e a sua autonomia como pensador. Em Lessing , os dois planos elevam-se reciprocamente: o seu lado insubmisso e incorruptível , a resistência e a robustez do seu temperamento , a «sagrada liberalidade» e o livre pensamento , a curiosidade e a «inquietude divina», e , assim também, a tendência marcadamente dialógica que exibe a sua escrita, a força do seu Witz, da sua natureza e do seu sentimento religioso , da sua polémica.
IV. Apesar dos planos para dar continuidade à característica Sobre Lessing, inicialmente previstos para o número seguinte do Lyceum, ela permaneceu inacabada , e só em 1801 Schlegel redigiu e publicou a - por ele assim chamada - CONCLUSÃO DO ENSAIO SOBRE LESSING , que , juntamente com o texto inicial , fazia parte do primeiro volume das Características e críticas, editadas nesse mesmo ano em conjunto com August Wilhelm Schlegel. Entre ambos os textos, é importante notá-lo , encontra-se o período de maior efervescência do chamado Romanti smo de Jena , assinalado por algumas das suas obras e actividades 19
KA 2: 104.
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mais marcantes , entre as quais se destacam a fundação e dissolução - de 1798 a 1800 - do Atheniium (que inclui peças fundamentais como os Fragmentos e as Ideias , a Conversa sobre a poesia, o tratado Sobre a filosofia, odiálogo Os quadros de A .W. Schlegel ou os Hinos à noite de Novalis) ou a publicação do romance Lucinde no ano de 1799- para nomear apenas alguns exemplos. A morte prematura de Novalis em 1801 , e a mudança de Schlegel para Dresden e depois para Paris , no ano seguinte, situam num ponto de viragem, num enclave, no sentido próprio, a sua Conclusão do ensaio sobre Lessing. Neste texto, que sob muitos aspectos vale por si mesmo , Schlegel retoma o móbil da sua contenda anterior, a saber, a afirmação veemente de que a tendência- a vocação mais íntima - de Lessing não se encontra do lado da imaginação poética ou da crítica da poesia, apenas para consumar por fim a deslocação dos planos: o movimento mais próprio do espírito de Lessing, que inclui também , não obstante todas as reservas, a sua propensão ou aptidão crítica, manifesta-se , na sua culminação, numa peculiar «mistura de literatura , polémica, Witz e filosofia» .20 Após este breve prelúdio , Schlegel suspende aparentemente o seu ímpeto polemista , para apresentar de chofre uma selecção dos seus próprios fragmentos , na sua maioria publicados previamente no Lyceum e no Atheniium , a que chama , na ocasião, «limalhas de ferro » . O desígnio deste estranho exercício de autocitação é bifurcado: por um lado , representa uma homenagem a Lessing, que 20
KA 2: 398.
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o ensaio de 1797 celebrava já como exímio fragmentista; por outro, essa homenagem, ou essa «oferenda sacrificial», como escreve Schlegel, é tudo menos passiva ou simplesmente laudatória. Com efeito , ela não só se ocupa em desenhar o carácter do objecto do seu louvor, como também em descrever o modo da sua aproximação a esse mesmo objecto , assimilando-lhe os traços e restituindo-os numa nova autoria e num outro texto, em nome de uma afinidade superior que busca superar-se a si mesma na sua própria descontinuidade. No cerne do ensaio está uma série de considerações sobre a correlação do particular e do todo no horizonte do conceito de uma «arte superior», entendida nas suas unicidade e indivisibilidade . A partir deste foco- a apreensão da obra individual ou completa de um autor como um todo , cuja impressão é preciso isolar para chegar a determinar a intenção e tendência do espírito que o habitam - são desenvolvidas, à maneira quer de um esboço , quer de uma série de alusões que se repetem e desdobram entre si, noções cruciais para todo o pensamento de Schlegel: a tentativa de uma fundamentação livre da crítica e do juízo , a potenciação gnoseológica da ironia e do Witz, a representação da polémica como princípio activo do cepticismo , o projecto de uma autonomia da enciclopédia como ciência das ciências por vir, ou a ideia de uma forma simbólica da filosofia. Para rematar o seu ensaio , Schlegel entrega-se a uma extensa diatribe em verso, no modo elegíaco-didáctico, intitulada "Hércules Musageta", na qual já sobra apenas [XXII]
uma única referência a Lessing, e que pode na verdade ser lida como uma característica de longo alcance, cuja sumptuosidade e cuja natureza, ao mesmo tempo torrencial e hermética , servem para evidenciar, num andamento contíguo e agora repleto de nomes, apóstrofes e sentenças, o gesto universal do soneto que servira de abertura à sua ' Conclusão'. A versificação irrefreável faz deste epílogo uma tocha acesa: à medida que vai girando em tomo de um núcleo- a génese da arte e da poesia universal como arquétipo análogo ao crescimento da natureza- cujas ramificações são infinitas, mobiliza na elegia um monumento cifrado de significação inesgotável.
v. Na conclusão do ensaio sobre Lessing de 1801 , Schlegel anunciava com alguma solenidade o seu «adeus crítico», para logo de seguida introduzir a ressalva de que tal não significava o abandono , mas antes a circunscrição das suas «experiências com as obras da arte poética e filosófica» a dois objectivos centrais: a constituição de uma «história da arte poética», por um lado, e a prática , necessariamente polémica , de uma «crítica da filosofia» , por outro. 21 Ambos os desígnios , que na verdade não limitam mas provocam a expansão ilimitada do trabalho crítico, começam também a ganhar forma num dos projectos mais ambiciosos de Schlegel nos anos imediatamente 21
KA2: 409
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posteriores: a edição da antologia OS PENSAMENTOS E OPINIÕES DE LESSING , publicada em 1804. O intuito monumental desta obra, composta por 3 volumes relativamente extensos, é posto em equilíbrio pela vontade férrea que ostenta o modo da sua composição. Schlegel descreve desta maneira a sua intenção geral: «caracterizar o espírito de Lessing no seu todo» , acompanhar «a história do seu espírito e do desenvolvimento do mesmo em todas as suas gradações, até às mais longínquas ramificações da sua formação». 22 Efectivamente, muito do que havia sido esboçado na conclusão de 180 I sobre o fito de apreender as leis do todo, exemplificado na convicção de que «SÓ se torna possível compreender inteiramente a obra [individual] no sistema de todas as obras do artista» 23 , transforma-se numa procura activa, isto é, num desejo de intervir nesse mesmo sistema. Quando se ambiciona encontrar o espírito comum e único de um único autor, e assim iluminar o conjunto da sua obra, é necessário em primeiro lugar dá-la a ler de certo e determinado modo, para ao mesmo tempo tornar possíveis as condições de um novo juízo sobre ela. As premissas são portanto as mesmas , mas chegou agora o momento de pôr mãos à obra. Os pensamentos e opiniões de Lessing, reunidos ecomentados a partir dos seus textos por Friedrich Schlegel (título completo da antologia) não constitui um florilégio iluminista dedicado à figura e à acção incontornáveis de 22
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KA 3: 79-80 . KA 2:410.
[XXIV]
Lessing, nem uma selecta cujos fins didácticos estariam em harmonia com a prudência e a imparcialidade da exposição correspondentes. Pelo contrário , o procedimento de Schlegel é acima de tudo, e no sentido próprio , cortante: não apenas em virtude dos critérios da triagem e apresentação dos textos, como também do método da sua ordenação e disposição pela mão do antologista, que na prática os vai manuseando livremente, cortando alguns, abreviando ou fragmentando outros, chegando mesmo a continuar certos deles por sua própria iniciativa- como acontece por exemplo , no terceiro volume, com o assim chamado Fragmento de um terceiro diálogo de Ernst e Falk, o texto de Lessing datado de 1778-80. Num primeiro ângulo , é dada a palavra a Lessing , através da selecção dos seus ensaios e fragmentos, que permite em princípio restituir o seu estilo directo. No entanto, essa selecção envolve processos associativos , por vezes abertamente manipuladores , da letra em função do espírito: Schlegel diz repetidamente procurar a tendência geral , a lei dinâmica de progressão , o elo interno de ligação , o espírito unificador que faz da obra de Lessing um todo gravado no todo da história da literatura e da filosofia . Num segundo ângulo, é posta em marcha uma experiência , no sentido pleno do termo: na construção do 'seu' autor, a sua estrela polar, como dizia ainda a Conclusão de 180 I , Schlegel força e institui um regime de alternância dos seus textos com os de Lessing , de maneira a suscitar a determinação recíproca de uns pelos outros , e a confundir desse modo intencionalmente o esforço hermenêutico de [XXV]
interpretação e elucidação da obra com os princípios da sua organização e edição. Há algo de muito particular nesta interacção entre os dois pólos: a constituição dos escritos ' originais' é intercalada pelos comentários, não em separado, ou como uma simples nota prévia, mas obliquamente. No geral , Schlegel propõe , nas várias introduções e adendas que pontuam os escritos de Lessing , uma leitura radical que , à margem de uma objectividade dada ou já estabelecida, faz violência não só aos textos , como à posteridade em que estão prestes a cair. Como se pode adivinhar, no entanto , um tal gesto- que põe continuamente à prova uma ideia particular quanto à re-constituição de toda a obra de Lessing- tem tanto de apropriação do seu objecto quanto de dedicação ao mesmo, e, assim também , de criação. São precisamente esses ensaios, separados agora do contexto que os originou , sem no entanto deixarem de agir sob o seu signo , que constituem, numa veia aproxidamente sistemática, os testemunhos mais instantes e prementes legados por Schlegel sobre o que significava para ele o conceito de crítica. Schlegel abre a sua antologia de Lessing com uma dedicatória a FICHTE , uma carta aberta na qual são abordadas resumidamente muitas das suas inquietações constantes a respeito da relação da literatura com a filosofia , que se irão reflectir na sua «tentativa de apresentar de forma apropriada o espírito e os pensamentos de Lessing , o seu curso e a sua génese» .24 A interpelação directa , que sublinha ainda mai s a insistência de Schlegel em apresentar na 2
'
KA 3: 46.
[XXVI]
primeira pessoa o plano das suas investigações e o rumo das suas conclusões, estimula o tom confessional, a implicação biográfica de cada uma das questões que o ocupam , sobre o que representa um pensamento inteiramente autónomo e livre. Isto leva-o a formular com uma sinceridade circunspecta as polaridades que compõem e recompõem as suas observações: fragmento e todo, arte e ciência, leis da escrita e leis da reflexão, estilo e método , princípio e forma. Segue-se a Introdução geral , DA ESSÊNCIA DA CRÍTICA , um texto programático cujo cerne é na verdade uma narrativa de dois pesos. Schlegel conta e reconta nessa circunstância a história da crítica , desde a época áurea dos Gregos , em que ao florescimento da poesia e da literatura sucedeu a ciência completa da sua leitura, do seu conhecimento e da sua preservação , até ao caminho atribulado dos Modernos , em que tudo se passou por assim dizer ao contrário , ou avançou , pelo menos, aos solavancos e sem a linha clara de uma continuidade . Na Alemanha , em particular, o tempo da crítica não se seguiu ao tempo da poesia , e por essa razão - assim discorre Schlegel - se esvaíram o espírito próprio e a língua materna , e , assim também , caíram no esquecimento a intuição , a vocação e a sensibilidade poéticas. Aos seus olhos, a degeneração da poesia modema, e em particular de toda a literatura alemã , ocorrida no século XVIII , deveu-se à desordem e corrupção políticas da nação , tanto quanto à inacção ou inexistência de uma crítica erudita , capaz de se unir a essa poesia , instituíndo-a como clássica , ou pelo menos de a fazer persistir. [XXVII]
O resultado desse desacerto na ordem de sucessão de poesia e crítica, que descerra o sinal da sua separação, é o estado de declínio , de barbaridade do presente, que vive no estranhamento e no horizonte de extinção prematura do «espírito de toda a arte e de toda a ciência» .25 É sobre este pano de fundo que Schlegel começa a desenhar a silhueta de Lessing como representante do Génio ou do espírito alemão, moldando-a à imagem do libertador que «ergueu a sua cabeça acima do seu tempo» e que, ao fazê-lo, «começou por repelir o jugo, resistiu com bravura à baixeza vigente, sacudiu energicamente de cima abaixo a fantasmagoria do gosto francês , reduzindo-a a nada, e lançou as primeiras sementes para uma melhor literatura alemã» .26 Ora , o modo como um tal nascimento se afigura possível levanta de uma assentada a questão da acção ou - como Schlegel teria preferido dizer - da potenciação da crítica. Pois Lessing não se limitou a incorporar o espírito crítico, que se derrama sobre todos os domínios e esferas do saber, mas lançou os alicerces da crítica futura como «construção histórica do todo da arte e da arte poética» 27 , isto é , como constituição decisiva da literatura alemã por vir. Numa palavra , a crítica tem de reaparecer sob uma nova forma , não já para canonizar, mas para tornar possível, como pela primeira vez, a literatura. Este ponto de fuga é retomado no ensaio DO ESPÍRITO COMBINATÓRIO , que precede o segundo
25 26
27
KA 3: 55. KA 3:66. KA 3: 58 .
[XXVIII]
volume, composto por fragmentos de «conteúdo dramatúrgico , literário e polémico», no qual Schlegel volta a insistir no enquadramento retrospectivo da mesma constelação histórica: a situação particular dos Modernos - e assim também da Alemanha , onde, ao contrário do que aconteceu na Antiguidade , não existia uma literatura própria já constituída à qual se teria seguido a crítica, mas um surgimento simultâneo de ambas que fez degenerar toda a vida literária e cultural, quando não uma anteposição prematura da crítica - coloca-os também , por defeito , numa posição promissora e propícia ao nascimento de um novo conceito de crítica, dita «O suporte comum sobre o qual assenta todo o edifício do conhecimento e da língua», e de uma nova literatura , que , considerada «em toda a sua extensão», passará a representar o «conjunto mais vasto da Poesia de todos os povos antigos e modernos». 28 Uma vez mai s, o espírito crítico de Lessing serve para assinalar esta reviravolta: Schlegel aprofunda aqui alguns dos seus conceitos anteriores, como a relação entre o fragmento e o todo , a definição e o efeito do Witz , a polémica , a enciclopédia, entre outros. Do ponto de vista mai s geral , são várias porém as ocorrências em que os comentários de Schlegel denotam uma tendência já muito visível para posições conservadoras e até nacionalistas, que vi riam a acentuar-se nos anos após a sua conversão ao Catolicismo, em 1808. Na sua apresentação da correspondência de Lessing, por exemplo , é muito clara uma defesa quase
' ~ KA 3: 82. 55-57.
[XXIX]
beligerante da língua alemã contra o predomínio da literatura francesa e da falsa imitação da Antiguidade que esta arrasta consigo . Essa visão algo unilateral , na qual é novamente notório o propósito não apenas de desligar Less ing do Ilumini smo , mas de ver nele o princípio de insurreição contra os males trazidos por toda a tradição dominante , arrastados agora até ao limiar do século XIX, é intensificada na Introdução que precede os textos filosófico-religiosos de Lessing- A edu cação do género humano , os Diálogos maçónicos (Ernst e Falk) e mesmo Nathan o Sábio, em rigor uma obra dramática-, na terceira parte da antologia . Neste texto , intitulado DO CARÁCTER DOS PROTESTANTES , Schlegel dá largas à sua vontade de projecção e de síntese, quando , numa exposição tão ambígua quanto tendenciosa, torce e retorce os conceitos de religião positiva (o Catolicismo) e religião negativa (o Protestantismo), até entrever na segun da um reflexo da primeira , ou na simultaneidade de ambas a fec undidade mais própria do Cristiani smo. Desse e de outros desenvolvimentos procede a tentativa de entronizar Less ing como o «arauto da nova religião», e logo , poder-se- ia acrescentar, como predecessor da mesma aspiração que ditou a viragem ' religiosa' do Primeiro Romanti smo. Os primeiros andamentos deste ensaio contêm no entanto, a pretexto de uma caracterização da essência e do espírito do Protestantismo como «espírito do pensamento livre e da liberdade pensante», passagens luminosas sobre a afinidade entre a polémica e a crítica. que é importante conhecer. [XXX]
VI. Em última instância , as considerações contidas na obra Os pensamentos e as opiniões de Lessing encontram o seu ponto de convergência numa espécie de caracterização aberta- por vezes mais sequencial, por vezes sincopada- do conceito de crítica, e muito do que afirma Schlegel aplica-se em rigor ao seu próprio papel não apenas de organizador mas de fabricador ou crítico fundador da obra de Lessing , em linha com a sua definição do espírito combinatório. Ao atravessar na diagonal, em jeito de prólogo , o problema da essência da crítica , que acabará por subsumir abruptamente numa alusão à união da filosofia e da história, Schlegel chega à visão de uma crítica que , «mais do que o comentário de uma literatura já constituída , terminada , declinante, seria antes o organon de uma literatura ainda por cumprir, ainda por formar, ou mesmo ainda por começar[ .. .] uma crítica , por conseguinte , que não se destinaria meramente a esclarecer e a preservar, mas que seria antes ela própria produtiva , pelo menos indirectamente, através de uma condução , de uma disposição , de um estímulo .» 29 Toda a antologia de Lessing, a começar pelos ensaios que descrevem a posição estratégica e a sede de intervenção que ela defende. pode perfeitamente ser considerada como um preâmbulo experimental - na teoria e na prática - desta crítica em si mesma producente e produtiva de uma literatura ainda inexistente. c9 K A 3: 2.
[XXXI]
Goethe , juntamente com uma sinopse dos principai s momentos que compõem a acção do romance .
[PUBLICAÇÃO]
Goethe dedicou-se ao Wilhelm Meister durante várias décadas, sob diferentes forma s e segundo perspecti vas di stintas. Existe uma versão preliminar do romance , com o título A missão teatral de Wilh elm Meister , iniciada em 1777 e interrompida com o início da viagem a Itália , no verão de 1786. Este estudo permaneceu fragmentário. e viria a ser publicado apenas no início do século XX. Só por volta de 1791 , e depoi s mais resolutamente em 1794 , Goethe retomou o trabalho no seu romance , introduzindo contudo numerosas alterações em relação ao primeiro esboço (que é em parte resumido e reescrito nos primeiros quatro Livros) e chamando-lhe agora Os anos de aprendi:::.agem de Wilhe/m Meister . Esta obra foi publicada gradualmente num período de doi s anos: os primeiros três volumes. editados no decorrer de 1795 , contêm os Livros I a VI: o quarto e último volume , publicado em Outubro de 1796. inclui os restantes Li vros VII e VIII. No prolongamento de todo este material. mas implicando já uma determinada autonomia. é importante referir ainda o romance tardio intitulado Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister. que existe em duas versões: uma prime ira , ainda incompleta. de 1821. e uma outra. posterior e integral , de 1829 . [2]
[SINOPSE]
Os anos de aprendi::_agem de Wilhelm Meister (1795-1796) conta a história de Wilhelm , o filho de um próspero comerciante, destinado a seguir as pisadas do seu pai , que todavia se vê tentado pelo mundo do teatro e da arte. Quando por um acaso e devido a um equívoco se descobre traído pela mulher por quem se apaixonara, a actriz Mariane , Wilhelm renuncia à sua ambição de tornar-se o «criador de um futuro teatro nacional » e escolhe afastar-se. lançando-se pouco mais tarde numa viagem de negócios. Pelo caminho, no entanto, acaba por juntar-se a uma companhia de actores e dedica-se de novo ao teatro e ao ideal da representação. Acompanham-no os actores Philine. Laertes e o casal Melina , Mignon. uma criança que Wilhelm salva de um grupo de saltimbancos e que adopta como sua. e ainda um velho tocador de harpa . Depois de uma passagem pelo castelo de um Conde. e por entre várias peripécias e aventuras. a companhia faz-se de novo ao caminho. quando é assaltada por um bando de malfeitores . Wilhelm fica ferido . mas é salvo por uma jovem mulher, descrita como uma ' bela amazona ' . que ficará retida na sua memória por muito tempo . Wilhelm parte ao encontro do seu amigo Serlo , encenador e director de teatro . Da colaboração entre ambos resulta uma representação do Hamlet. na qual Wilhelm interpreta o papel principal : o seu fascínio por Shakespeare. que Jarno. um oficial associado à nobreza e conselheiro do príncipe. lhe dera a conhecer. é visível em muitas digressões e diálogos da obra. Pouco tempo depois . porém ,
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a companhia de Serlo entra em declínio , e a ruptura com Wilhelm torna-se inevitável. Entretanto , Wilhelm acompanha os últimos momentos de Aurelie. a irmã de Serlo , acometida de um mal incurável. Esta conta-lhe a infidelidade de Lothario , o seu amante de outrora , e faz Wilhelm prometer que levará até ele uma carta com as suas últimas palavras. Wilhelm decide-se de novo a partir. O encontro de Wilhelm com Lothario, um aristocrata enérgico e pragmático, introduz um ponto de viragem em todo o romance. Pouco a pouco, Wilhelm vai entrevendo a lógica que encadeia imperceptivelmente todos os acontecimentos da sua vida até esse momento , e não é pequena a sua surpresa ao ver que nada foi obra do acaso. Por detrás de tudo o que sucedeu e continua a suceder, ele descobre a influência decisiva de uma comunidade secreta , a Sociedade da Torre , representada pela figura do abade , que , após uma cerimónia solene, em que reaparecem várias das figuras com que se tinha cruzado , lhe entrega a sua ' Carta de Guia do Iniciado ' . É Jarno , também ele afinal um membro da Sociedade , quem por fim dá a ler a Wilhelm o pergaminho em que estão escritos os seus próprios Anos de Aprendizagem . Todas as personagens aparecem então como que suspensas por fios invisíveis e ligadas entre si por uma mão intangível mas agente , que as faz ressurgir a uma outra luz. Assim é posto a descoberto o destino de Mariane e do seu filho Felix , que Wilhelm reconhecerá como seu . ou a identidade de Mignon e do harpista , mantida incerta por longo tempo ; mas também a verdadeira origem da ·bela [4]
amazona', Natalie , irmã de Lothario , prometida a Wilhelm por uma lei da necessidade , ou o papel de Jarno e do abade como condutores do seu destino. Movido pela consciência da sua nova situação , Wilhelm abre mão das suas aspirações iniciais e do fundo incondicional , incomensurável dos seus ideais artísticos. A sua renúncia final ao teatro dá lugar à sua iniciação na vida activa , sob o signo de uma união com a nobreza e do impul so livre da razão, do equilíbrio e da limitação próprios da realidade.
[GÉNESE E ESTRUTURA]
Na oscilação entre o seu teor e a sua progressão, Os anos de aprendi::_agem de Wilh elm Meister descreve a articulação de duas partes fundamentais , a saber, o domínio da subjectividade convocado pelo tema da formação individual e artística da figura principal (exposto nos Livros 1-V) , por um lado , e a sua recondução no sentido de uma utopia ou de um ideal social e político de tendência reformista (Livros VII- VIII), por outro. As duas metades encontram-se ligadas por um breve interlúdio (o Livro VI) , apresentado sob a forma de uma narrati va si ngular, aparentemente autónoma e exterior ao romance, mas na verdade deci siva para o seu desenlace . Todo o livro tenta mostrar como o desejo da Bildung, da formação e do conhec imento de si presentes no desígnio de Wilhelm. no mome nto em que escolhe devotar a sua vida à arte - «aperfeiçoar-me a mim próprio , tal qual como estou, foi , obscuramente , o meu desejo e a minha intenção, desde a [5]
juve ntude» (Li vro V, Cap . 3) -. ganha forma, no conjunto da sua ex periê ncia indi vidual, como uma complexa arte da vida. Goethe vai construindo le ntamente a históri a do perc urso de Wilhe lm através da sobre pos ição e co ntraposição de vári os ele mentos, mostrando de cada vez a e ncru zilhada em que se e ncontra o seu ' he ró i': no início, o confro nto dá-se e ntre as condições de uma ex istência burguesa e o mundo do teatro; de pois , e ntre o ideal da arte da representação e as condições reais da sua execução , exempli ficadas no fre nte-a-fre nte com a nobreza; no fi nal, ent re a vocação artística incondic ional e a esfera da acção e da vida práti ca. A í res ide, sob o ri sco de alguma simpli ficação . o pano de fund o de toda a obra, desenrolada sob o signo desse co ntraste ou dessa contradi ção . Em termos ge rais , a transição do projecto ini cial A missão teatral de Wi lh elm Me isrer para a versão fi nal de Os anos de aprendi::::agern de Wilhelm Me ister ev idencia neste último um alargame nto da perspecti va. do estil o e da construção. uma passagem do se u Ensaio sobre o estilo nas primeiras e nas últimas obras de Goeth e, que integra a Conversa sobre a Poesia (1800), Schlege l pressentiu muito c lara me nte esta transformação. No mo me nto e m que proc ura e luc idar aquilo que e nte nde ser a uni ve rsalidade e o carác ter progress ivo da escrita de G oethe . no que di z respeito ao seu modo de tratar «O ideal de um a fo rm a» . ele crê descobrir na própria natureza indi visa do romance de 1795-1796 - paralelame nte às suas outras qu alidades, a «ind ividualidade» e o «es pírito anti go» , que apontam para a «harmoni a do cláss ico e do ro mânti co»
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- uma duplicidade fundamental: «a obra é feita por duas vezes, em dois momentos criadores, partindo de duas ideias . A primeira era simplesmente a de um romance de artista; agora, porém , a obra, surpreendida pela tendência do seu género, tornou-se subitamente muito mais vasta do que a sua primeira intenção. e a esta veio juntar-se a teoria da cultura da arte de viver, e converteu-se no génio do todo. » (KA 2: 346-347) Na sua recensão das ' Obras de Goethe· (Ed. Cotta. 1806). que viria a publicar em 1808 nos Anuários de Literatura de Heidelberg, Schlegel voltará a reflectir, desta feita com maior distância e de modo mai s geral , sobre Os anos de aprendi~agem de Wilhelm Meister , cujos méritos, do ponto de vista da língua e do estilo. da inventividade e da execução, lhe surgem então a uma nova luz; ao mesmo tempo , insiste na complexidade da noção de Bildung. «O conceito principal para o qual tudo nesta obra está orientado e converge como num ponto central » . (KA 3: 131 , 128)
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SOBRE O MEISTER DE GOETHE
Sem altivez e sem ruído , tal como se descerra em silê ncio a formação de um espírito cheio de aspirações , e da mesma maneira que o mundo em dev ir emerge suavemente do seu interior, ass im tem início esta clara história. O que aqui sucede e o que aqui é dito não tem nada de extraordinário, e as figuras que aparecem em primeiro lugar não são nem grandiosas, nem magníficas: uma velha matreira , que tem constantemente na mira o seu próprio proveito e toma partido pelo pretendente mai s abastado; uma jovem , a quem resta apenas libertar-se dos estratagemas da perigosa tutora , para se entregar impetuosamente ao seu amado; um jovem puro , que dedica a uma actriz o belo ardor do seu primeiro amor. 1 E , no entanto , tudo está presente diante dos nossos olhos, seduz-nos e chama por nós. Os contornos são si mples e leves, mas precisos, apurados e seguros. O mais pequeno traço é significativo , cada pincelada uma leve alusão, e tudo é posto em relevo por meio de contrastes claros e vivos . Nada há aqui 1
Sc hlege l alude aqui às personage ns inic iais do romance de Goethe Os a11os de apre11di~agem de \Vilhelm Meisrer . publicado em 1795-1796 . que constitui o objecto de todo o seu ensaio: a uma ou tra carta de 6 de Setembro. a Elise Reimarus. di z ainda: