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Portuguese Pages 516 [515] Year 2021
Situando o self
Reitora Vice-Reitor
Márcia Abrahão Moura Enrique Huelva
EDITORA
Diretora
Conselho editorial
Germana Henriques Pereira
Germana Henriques Pereira (Presidente) Fernando César Lima Leite Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende Carlos José Souza de Alvarenga Estevão Chaves de Rezende Martins Flávia Millena Biroli Tokarski Jorge Madeira Nogueira Maria Lidia Bueno Fernandes Rafael Sanzio Araújo dos Anjos Sely Maria de Souza Costa Verônica Moreira Amado
Seyla Benhabib
Situando o self Gênero, comunidade e pós-modernismo na ética contemporânea
Tradução Ana Claudia Lopes Renata Romolo Brito Revisão técnica Yara Frateschi
EDITORA
Para Wolf, que frequentemente discorda.
Sumário Prefácio à edição brasileira 11 Agradecimentos 25 Introdução A ética comunicativa e as reivindicações de gênero, de comunidade e do pós-modernismo 27 Parte I: Modernidade, moralidade e vida ética 1. À sombra de Aristóteles e Hegel: a ética comunicativa e as atuais controvérsias na filosofia prática 67 Ceticismo acerca do princípio de universalização: no melhor dos casos, inconsistente, e, no pior, vazio? 76 O correto e o bem 105 Sobre a distinção entre justiça, moralidade e política 127 Sobre o problema do caráter e da motivação moral 134 Julgar em contexto versus rigorismo baseado em princípios 143
2. Autonomia, modernidade e comunidade: comunitarismo e teoria crítica social em diálogo 149 A teoria política e o desencantamento com a modernidade 149 A crítica ao self “desonerado” e a prioridade do correto sobre o bem 156 A política da comunidade: a resposta integracionista versus a resposta participativa à modernidade 170
3. Modelos de espaço público: Hannah Arendt, a tradição liberal e Jürgen Habermas 187 Hannah Arendt e o conceito agonístico de espaço público 189 O modelo liberal de espaço público como “diálogo público” 202 O modelo discursivo de espaço público 223 Críticas feministas à distinção público/privado 231
4. Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt 247 Juízo e considerações morais 248 Juízo e ação 254 Em direção a uma fenomenologia do juízo moral 261 Juízo na filosofia moral de Kant 265 Perspectivas neokantianas e neoaristotélicas sobre o juízo 275 Os fundamentos morais da política na obra de Arendt 283
Parte II: Autonomia, feminismo e pós-modernismo 5. O outro generalizado e o outro concreto: a controvérsia Kohlberg-Gilligan e a teoria moral 301 A controvérsia Kohlberg-Gilligan 301 Justiça e self autônomo nas teorias do contrato social 314 O outro generalizado versus o outro concreto 326 O “outro generalizado” versus o “outro concreto”, uma reconsideração 340
6. O debate sobre mulheres e teoria moral revisitado 359 Filosofias morais universalistas e o desafio de Carol Gilligan 362 Gênero e diferença na controvérsia Gilligan 388
7. O feminismo e a questão do pós-modernismo 409 A “condição pós-moderna” segundo Lyotard 411 O fim da episteme da representação 415 A amizade do feminismo com o pós-modernismo 431 O ceticismo feminista com o pós-modernismo 437 Feminismo como crítica situada 468 O feminismo e o recuo pós-moderno da utopia 476
8. Sobre Hegel, mulheres e ironia 481 Algumas perplexidades metodológicas de uma abordagem feminista 481 As mulheres no pensamento político de G. W. F. Hegel (1770-1831) 487 A questão do amor livre e da sexualidade: a pedra no sapato de Hegel 500
Prefácio à edição brasileira Yara Frateschi Nos ensaios reunidos em Situando o self: gênero, comunidade e pós-modernismo na ética contemporânea, publicado em 1992, Seyla Benhabib se engaja em uma operação de salvamento do universalismo moral e político, certa de que, para impedir o seu naufrágio, era urgente lançar ao mar os preconceitos sexistas da tradição bem como as ilusões metafísicas do Esclarecimento. Assim como naquele fim de século a tradição universalista se via fortemente confrontada por críticas feministas, comunitaristas e pós-modernas, hoje as suspeitas são renovadas – particularmente no Brasil – pelas teóricas feministas negras e pela crítica decolonial. A proposta benhabibiana de um universalismo interativo pode lançar outras luzes sobre a atual confrontação teórica e também pode ser iluminada por ela. Em disputa, mais uma vez, está o legado da modernidade. Como indica o título, situar o self é o caminho filosófico trilhado por Benhabib na busca por responder às potentes críticas que teóricas feministas, autoras e autores pós-modernos e comunitaristas endereçaram ao sujeito desinserido, descorporificado e portador de uma racionalidade autolegisladora, que a tradição colocou no centro da moralidade universalista. Benhabib concorda de maneira abrangente com esses críticos e críticas a respeito do
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formalismo, do excesso de racionalismo e do sexismo característicos dessa concepção do self moral. Ela discorda, entretanto, de que as críticas neo-hegelianas, neoaristótelicas, pós-modernas e feministas em voga a partir do final dos anos 1970 significam um golpe fatal no universalismo moral. A sua aposta é a de que um universalismo interativo, que leve a sério a concretude das pessoas – particularidades históricas e culturais, desejos, necessidades e gênero – e baseado em uma racionalidade comunicativa seja capaz de se livrar das ilusões e dos preconceitos tradicionais e, assim, voltar a ser (se é que algum dia tenha sido) convincente. As reflexões de Seyla Benhabib sobre a ética contemporânea no contexto de uma teoria crítica da sociedade e da cultura remontam ao seu livro anterior, Crítica, norma e utopia: um estudo dos fundamentos da teoria crítica (1986). Desde os seus primeiros escritos, ela mantém com Jürgen Habermas uma aliança crítica, a que ela mesma se refere como uma “oposição leal”.1 Embora Habermas tenha chegado perto de superar as ilusões e as limitações da tradição, pelas suas mãos a ética do discurso ainda correria o risco
Seyla Benhabib, “Rhetorical affects and critical intentions: a response to Ben Gregg”, Theory and society, v. 16, n. 1, jan. 1987, p. 156. Para uma análise dessa “oposição leal”, conferir a tese de doutorado de Ana Claudia Lopes, Norma e utopia: a transformação da ética do discurso na teoria crítica de Seyla Benhabib, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.
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de cair em uma falácia racionalista de tipo kantiano ao ignorar as circunstâncias contingentes, históricas e afetivas que fazem os indivíduos adotarem um ponto de vista ético-universalista em primeiro lugar.2
Em termos filosóficos, a ética do discurso não passaria incólume a uma atualização da crítica de Hegel a Kant. Embora tenha corrigido o “erro fundamental de Kant” ao romper com o modelo monológico de raciocínio moral, Habermas insiste, de acordo com Benhabib, em privilegiar os aspectos generalizáveis dos agentes morais em detrimento das suas particularidades, e em privilegiar as questões de justiça em detrimento das questões de boa vida. Além de pender desnecessariamente para o formalismo e para o universalismo legalista, a deontologia forte que sustenta essa visão desconsidera uma das principais contribuições do feminismo para a teoria política ocidental que é justamente o questionamento da separação rígida entre questões de justiça e boa vida, entre o público e o privado. Para corrigir o excesso de kantismo da ética do discurso, mas sem precisar despedir-se definitivamente de Kant, Benhabib a tempera inusitadamente com ingredientes aristotélicos e hegelianos. Do caldeirão da bruxa emergem as contribuições mais significativas da teoria do universalismo interativo: a proposta de que os agentes morais sejam considerados de duas perspectivas distintas Seyla Benhabib, Critique, norm and utopia: a study of the foundations of critical theory, Nova York, Columbia University Press, 1986, p. 298.
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e complementares, isto é, como outros generalizados e como outros concretos; o procedimento moral da mentalidade alargada; a concepção narrativa das ações e da identidade; e a substituição da perspectiva moral exclusivamente centrada na justiça por uma eticidade pós-convencional. Os ensaios reunidos na primeira parte do livro são dedicados a montar uma intricada e inesperada trama teórica capaz de tornar o compromisso com o cerne universalista e igualitário da moralidade kantiana compatível com a sensibilidade ao contexto da moralidade aristotélica. É com Hannah Arendt que Seyla Benhabib tece a trama e cria uma solução filosófica para a antiga e sempre renovada questão da relação entre o universal e o particular, que remonta pelo menos a Platão e Aristóteles. Na segunda parte do livro, disposta a enfrentar os preconceitos sexistas da tradição universalista, ela encontra em Carol Gilligan uma inspiração para defender algo que parecia contraditório para o debate da época (e que talvez nem mesmo Gilligan teria autorizado): a compatibilidade entre uma visão ética de princípios com a ética do cuidado e da solidariedade. Em Situando o self, a reformulação da ética comunicativa e do universalismo moral e político para salvá-los da tradicional exclusão da alteridade e das questões de gênero se realiza em grande medida com a inclusão dessas duas mulheres – Hannah Arendt e Carol Gilligan – na longa conversa entre homens que tem sido tanto a história da filosofia quanto a da teoria crítica, salvo raras 14
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exceções.3 Na filosofia prática de Arendt – que estrutura o primeiro conjunto de ensaios e toda a reformulação filosófica da ética do discurso – e na crítica feminista de Gilligan à restrição do domínio moral promovida por Kohlberg – ponto de partida da segunda parte do livro – Benhabib encontra recursos teóricos para suavizar as fronteiras entre tradições rivais cuja oposição radical não dá mais conta da complexidade dos desafios e dos compromissos teóricos contemporâneos. Com ambas, sobretudo com Arendt, ela se prepara para defender um universalismo sensível ao contexto e feminista, pasmem os puristas de todos os lados. A disposição para colocar tradições teóricas rivais em diálogo é uma marca do modo benhabibiano de fazer filosofia. q “A ética do discurso está situada em algum lugar entre liberalismo e comunitarismo, universalismo kantiano e Sittlichkeit [eticidade] hegeliana”, diz Benhabib nos agradecimentos do livro, comunicando que a radicalidade do embate entre neoaristotélicos, neo-hegelianos e neokantianos – envolvendo, por exemplo, Alasdair MacIntyre, Michael Sandel, Charles Taylor e John Rawls – obsta a combinação entre perspectivas orientadas para a justiça e para a Conferir o artigo de Ingrid Cyfer “Razão, Narrativa e Corpo no modelo de self de Seyla Benhabib”. Dissonância: Revista de Teoria Crítica, Campinas, v. 2, 2018, p. 43-65.
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felicidade, entre uma moralidade baseada em princípios e o juízo contextualizado. O cerne da reformulação que ela faz da tradição universalista repousa na ideia segundo a qual a construção do juízo moral requer o exercício do “pensamento alargado”, tal como Arendt teria definido esse procedimento a partir de uma apropriação do juízo estético kantiano, ou seja, nos termos da disposição para considerar as perspectivas das outras pessoas.4 O procedimento de universalização, repensado arendtianamente como reversibilidade de perspectivas, além de não ser monológico, envolve ainda disposição para compreender as perspectivas das outras pessoas – seus desejos, necessidades e histórias de vida – e envolve também sensibilidade para a escuta. O que Benhabib faz diferentemente de Arendt é orientar esse procedimento pelos princípios do respeito moral universal e da reciprocidade igualitária a fim de evitar que a ênfase no particular recaia em relativismo moral e se veja presa dentro dos limites de valores paroquiais antiuniversalistas. Esses são os elementos da eticidade pós-convencional que ela coloca no lugar de uma perspectiva exclusivamente centrada na justiça. De um ponto de vista estritamente liberal, essa ética exigiria demais dos agentes. Mas Benhabib não esconde suas exigências e já vinha prometendo, desde o livro de 1986, transfigurar a visão 4
Eu tratei desse tema em “Universalismo interativo e mentalidade alargada em Seyla Benhabib: apropriação e crítica de Hannah Arendt”, Ethic@, Florianópolis, v. 13, 2014, p. 363-385.
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burguesa e liberal do universalismo para torná-lo mais condizente com uma concepção de política democrática radical, participativa e pluralista. Para ela, o bom juízo – orientado por princípios mínimos e preocupado com as outras pessoas – requer o cultivo da mentalidade alargada que, por sua vez, é um tipo de imaginação moral que floresce quando se compartilha certa cultura pública que convida constantemente o indivíduo a desafiar o interesse próprio e as preferências individuais. A justiça, imprescindível para a democracia, não esgota o campo da moralidade, de modo que a construção de uma eticidade universalista requer ainda uma ética política preocupada com práticas, instituições e valores cívicos que fomentem a habilidade da mentalidade alargada, o compromisso com a igualdade e com os direitos humanos. A visão ética de Benhabib não pode, portanto, prescindir do cultivo de um ethos público e da participação democrática, ao mesmo tempo em que sustenta uma utopia comunicativa inconformada com os limites do liberalismo. A utopia de Benhabib é comunicativa na medida em que aposta que o diálogo radicalmente aberto e sem restrições de neutralidade, orientado pela disposição de compreender os outros e levá-los em consideração, é imprescindível para o combate de preconceitos enraizados e para a transformação moral das pessoas. O âmbito da justiça não é suficiente para promover as mudanças culturais e de valores requeridas em sociedades ainda muito desiguais e preconceituosas. 17
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No entanto, a tradição universalista – desde as primeiras teorias contratualistas até Rawls e de certa maneira também até Habermas – privilegia o ponto de vista da justiça e sustenta uma concepção reducionista do self moral que considera como relevantes apenas suas características generalizáveis. O resultado é o apagamento das diferenças, o que é particularmente revelador dos preconceitos sexistas da tradição filosófica. Desde as primeiras teorias do contrato social (com Hobbes, Locke, Rousseau e Kant), as experiências das mulheres são consideradas irrelevantes dos pontos de vista moral e político e as questões de gênero, removidas do campo da justiça. Enquanto isso, são homens os que podem conquistar a autonomia tão valorizada pela modernidade e que podem se empenhar na criação das bases legítimas da vida social. Desse modo, a crítica feminista das teorias contratualistas feita por Benhabib na segunda parte do livro mostra que o universalismo que sustentam é substitucionalista na medida em que as experiências de um grupo específico de sujeitos – homens, brancos, adultos e proprietários – são consideradas como paradigmáticas das experiências de todos os seres humanos. Consequentemente, o ideal de autonomia que fomentam é burguês e masculino, uma vez que a autonomia está restrita a um grupo social específico e carrega seus valores. É um ideal erigido pela fantasia narcisista de que podemos chegar pelo uso individual da razão ao que é bom
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para todas as pessoas; um ideal que desconsidera que somos seres relacionais, vinculados e dependentes mutuamente. Para corrigir esse caminho sexista trilhado pela tradição e em diálogo com a psicologia moral de Gilligan, Benhabib propõe que o self moral seja considerado em duas perspectivas complementares e não mais antagônicas, ou seja, como outro generalizado e outro concreto. Na primeira perspectiva, as diferenças são abstraídas e nós consideramos o outro como um ser racional portador dos mesmos direitos e deveres que pretendemos atribuir a nós mesmos; na segunda, o outro é considerado a partir de sua história e identidade singulares. O universalismo interativo pode corrigir a tendência excludente (burguesa, sexista – e também racista, acrescento) do universalismo substitucionalista porque, como esclarece Benhabib, está seriamente comprometido com as diferenças entre as pessoas. O exercício da mentalidade alargada, que Benhabib emprestou de Arendt para transformá-lo em procedimento de universalização, não acontece efetivamente se a alteridade não puder aparecer pela voz da outra pessoa, pela narrativa da própria história, que conta quem ela é, o que quer e precisa. “Nem a concretude nem a alteridade do ‘outro concreto’ podem ser conhecidas na ausência da voz do outro”.5 A narrativa permite a individuação que a tradição confiscou para um único grupo social. Embora sem dialogar com as feministas negras de sua época 5
Seyla Benhabib, Situando o self: gênero, comunidade e pós-modernismo da ética contemporânea, p. 350.
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(o que é uma pena, pois a sua análise da questão de gênero teria se enriquecido pela crítica antirracista e pela abordagem interseccional da identidade), Benhabib parte de um princípio próximo ao de Patrícia Hill Collins em Pensamento feminista negro (1990): o ponto de vista e as experiências da outra pessoa emergem no espaço público mediante o exercício insubstituível da autodefinição. Assim, Benhabib e Collins, apesar de não se referirem uma à outra, concordam que não cabe a mim determinar quem você é, o que quer e necessita, projetando-me em você e predefinindo suas especificidades como se fossem as minhas. Para a autora de Situando o self, o antídoto contra o substitucionalismo (que poderia ser também contra o substitucionalismo reiterado por certas visões do feminismo, embora Benhabib não vá tão longe), capaz de purgar o universalismo dessa tendência histórica de exclusão, é justamente a interação comunicativa orientada pela sensibilidade para ouvir as narrativas das outras e dos outros diferentes. A revisão da noção tradicional de self moral de acordo com as perspectivas complementares do outro generalizado e do outro concreto permite, em uma abordagem feminista, que aquela oposição tradicional entre autonomia e dependência seja revista para que a visão ética de princípios se torne compatível com a visão ética baseada no cuidado e na solidariedade. Para sustentar um ideal de autonomia, a ética contemporânea não precisa nem deve continuar
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a negar que nós, enquanto seres morais, passamos nossas vidas vinculados a uma “teia de assuntos humanos” ou a uma “rede de cuidado e dependência”, nas palavras de Hannah Arendt e Carol Gilligan respectivamente. O universalismo interativo reivindica a integração entre autonomia e solidariedade e reconhece, ao mesmo tempo, os limites de uma visão ética centrada exclusivamente no cuidado. A máfia, alerta Benhabib, não deixa de ser uma organização baseada no cuidado e na responsabilidade mútua entre os seus membros. Entretanto, nesse tipo de comunidade a solidariedade interna é conquistada com desprezo e desrespeito pelas pessoas que não fazem parte do grupo, quando não às custas das suas vidas (como nas milícias). Nesse ponto, Benhabib considera o universalismo kantiano “indispensável”.6 q A pertinência das críticas comunitaristas, pós-modernas e feministas não leva Benhabib a se despedir do universalismo, mas sim dos excessos racionalistas e das tendências antidemocráticas da tradição universalista. Jogadas ao mar as tralhas metafísicas e os preconceitos sexistas, ela pode reiterar o seu compromisso com os valores modernos da autonomia, do pluralismo, da reflexividade Seyla Benhabib, Situando o self: gênero, comunidade e pós-modernismo na ética contemporânea, p. 382.
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e da tolerância. O limite do acordo de Benhabib com os críticos do universalismo é justamente o compromisso com esses valores (mesmo de Arendt ela se afasta em função do suposto “modernismo relutante” arendtiano, e de Gilligan, pelo risco de essencializar o gênero). Assim sendo, embora concorde com os comunitaristas quando criticam os liberais pela separação excessivamente rígida entre as questões de justiça e as questões de boa vida, ela se afasta deles (sobretudo de Sandel e de MacIntyre) por defenderem um tipo de visão integracionista da comunidade, a qual tende a negar os valores modernos de autonomia e pluralismo. Ainda que concorde com os neoaristotélicos quando acusam os neokantianos de separarem indevidamente a ética universalista de princípios da ética da virtude, despede-se deles quando o preço a pagar pela reentrada em cena da virtude cívica é o abandono dos princípios normativos indispensáveis em sociedades plurais que se pretendem democráticas. Por fim, embora concorde em linhas gerais com Jean-François Lyotard, Michel Foucault e particularmente com Jacques Derrida na denúncia de que a tradição logocêntrica ocidental exclui e relega às margens os “outros” da razão (mulheres, inclusive), não pode aceitar, contudo, a radicalização dessa crítica, que vai na direção de rifar as normas legais, morais e políticas de escolha e autodeterminação. Para Benhabib, a crítica social consequente com as lutas feministas necessita das normas da autonomia e da racionalidade dos procedimentos democráticos que esses autores 22
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pós-modernos e seus aliados e aliadas se regozijam em descartar, embora, na verdade, as pressuponham. Ao dialogar com autoras feministas como Judith Butler, Nancy Fraser e Iris Young naquele fim de século, Benhabib insiste nos limites e na precariedade da aliança entre feminismo e pós-modernismo.7 A necessária crítica do sujeito moderno desinserido e descorporificado não significa o abandono integral de todos os seus atributos, tais como a reflexividade e a capacidade de agir por princípios; situar o self não implica negar toda e qualquer forma de autonomia; admitir que a identidade e a subjetividade são estruturadas em contexto, pela linguagem e pelos códigos simbólicos disponíveis em uma cultura, não implica negar a possibilidade do rearranjo das significações da linguagem e da variação desses códigos simbólicos; admitir que o sujeito é generificado heteronomamente, não implica negar que possa variar as normas de gênero; rejeitar a história única e as pretensões hegemônicas de qualquer grupo para representar as forças da história, não implica decretar a morte da história; a crítica das grandes narrativas não precisa nos confinar nas pequenas ou no saber local. De acordo com a autora, Para uma análise da disputa teórica com Iris Young, conferir a dissertação de mestrado de Jéssica Omena Valmorbida, Espaço público e outro concreto em Seyla Benhabib, FFLCH, USP, São Paulo, 2018, especialmente o capítulo 3. Conferir também, de Felipe Gonçalves Silva, “Iris Young, Nancy Fraser e Seyla Benhabib: uma disputa entre modelos críticos? In: Marcos Nobre (org.), Curso livre de teoria crítica, Campinas: Papirus, 2008, p. 199-226. v. 1
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enfim, nem toda filosofia orientada normativamente precisa ser a-histórica, e há algum lugar entre uma crítica estritamente situada e uma crítica que se pretende completamente transcendente. Filósofa feminista, Benhabib é intransigente em defender que a morte da metafísica não implica a da filosofia, que é imprescindível para uma crítica social feminista. Qualquer projeto de emancipação feminina requer um ideal regulador de agência, autonomia e ipseidade das mulheres. Filósofa feminista, Benhabib quer nos convencer de que, para submeter a tradição filosófica ocidental ao escrutínio da crítica, não é preciso torná-la monolítica, e de que, para avaliar criticamente a história da filosofia de uma perspectiva de gênero, não é preciso nivelar essa história e ofuscar as ricas diferenças conceituais que podem nos auxiliar a pensar à luz dos desafios do presente. Desmascarar e recusar o sexismo dos filósofos clássicos – como ela faz com Hegel no ensaio que encerra o livro – é uma urgência para a filosofia prática contemporânea, mas nem por isso precisamos nos privar de pensar com eles. Benhabib pensa com e contra, com e contra Aristóteles, Kant, Hegel e Arendt. Situando o self é, no final das contas, um lindo elogio da filosofia.
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Agradecimentos Muitos dos ensaios que compõem este livro foram inspirados por um encontro mais próximo que tive com a teoria política liberal e as críticas comunitaristas a ela dirigidas durante minha estada no Departamento de Governo da Universidade de Harvard, de 1987 a 1989. Esse debate me levou a articular de modo mais preciso as premissas que a teoria crítica contemporânea, e em particular a ética do discurso, compartilha com a teoria política e moral liberais, ao mesmo tempo que tem em comum com o comunitarismo raízes profundas na crítica de Hegel à filosofia moral kantiana. A ética do discurso está situada em algum lugar entre liberalismo e comunitarismo, universalismo kantiano e Sittlichkeit [eticidade] hegeliana.* Agradeço a Judith Shklar, Michael Sandel, Stephen Macedo, Shannon Stimson e Nancy Rosenblum por inúmeras conversas inspiradoras e oportunas sobre o liberalismo e seus críticos. Também gostaria de agradecer a minhas amigas feministas Nancy Fraser, Iris Young e, em particular, Drucilla Cornell, por me fazerem enxergar a importância política e moral do pós-modernismo para as mulheres. Devo um tipo diferente de agradecimento a um outro grupo de amigos e colegas: Kenneth Baynes e Maurizio Passerin d’Entrèves, que comigo estudaram, e que, por meio [N.T.] Sittlichkeit é em geral traduzido para o português como “eticidade”. No inglês, é traduzido como “ethical life” (vida ética) [A. C. L.].
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de seus próprios trabalhos sobre o liberalismo e o comunitarismo contemporâneos, influenciaram e inspiraram meus pensamentos. É um prazer não só a eles ter ensinado, mas também com eles ter aprendido. Por fim, conversas ao longo dos anos com T. A. McCarthy, Richard J. Bernstein, Jean Cohen, Andrew Arato e Alessandro Ferrara não apenas foram inspiradoras, mas fortaleceram a minha sensação de que a tradição da teoria crítica está bastante viva. Agradecimentos especiais a Fred Dallmayr, que, em uma cuidadosa e judiciosa revisão de uma primeira versão da presente coletânea, ofertou-me recomendações decisivas sobre todo o conjunto. O mais antigo desses ensaios, “Epistemologies of postmodernism” [“Epistemologias do pós-modernismo”] (parcialmente incluído no capítulo 7), foi escrito em 1984; o restante foi completado e publicado entre 1987 e 1990. Agradeço aos editores dos livros e periódicos nos quais esses artigos foram anteriormente publicados, sinalizados no final de cada ensaio. Todos os ensaios foram revisados para inclusão neste volume. Também gostaria de agradecer ao Departamento de Filosofia da State University of New York, em Stony Brook, e particularmente a Don Ihde, então Decano de Humanidades, por me oferecer um semestre sabático de pesquisa que me permitiu concluir os últimos detalhes deste livro. Como sempre, foi um prazer trabalhar com a equipe e os editores da Polity Press, particularmente com Ann Bone, e com Maureen MacGrogan, da Routledge.
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INTRODUÇÃO
A ética comunicativa e as reivindicações de gênero, de comunidade e do pós-modernismo À medida que o século XX aproxima-se de seu fim, não resta dúvida de que estamos enfrentando mais que o fim cronológico de uma época. Para invocar uma distinção familiar aos gregos, não é apenas kronos que domina nossas vidas, mas também kairós, nosso tempo vivido, o tempo imbuído de significado simbólico, está envolvido em uma luta de forças sobre a qual temos uma compreensão muito vaga no presente. Os muitos “pós-ismos” que circulam em nossas vidas intelectuais e culturais, como pós-humanismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-fordismo, pós-keynesianismo, pós-história, são, em certo nível, meras expressões de uma percepção fortemente compartilhada de que certos aspectos de nosso universo social, simbólico e político foram profunda e, provavelmente, irreversivelmente transformados. Em períodos de profundas transformações como esses, enquanto contemporâneos de uma época, é mais provável que enxerguemos de forma distorcida. Não temos o privilégio da visão retrospectiva; não somos como a “coruja de Minerva” que só abre suas asas ao anoitecer. Enquanto intelectuais engajados,
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não podemos escrever do ponto de vista privilegiado “do cinza que se pinta no cinza”,* tampouco assim o queremos. Contrariamente a esse prognóstico hegeliano de que “chegamos ao fim da história”, prognóstico recentemente recuperado por Francis Fukuyama – nosso estudioso contemporâneo de Hegel tal como lido através das lentes de Alexandre Kojève –,1 o presente abriga muitas ironias, contradições e perplexidades. A expressão “simultaneidades não simultâneas” ou ungleichzeitige Gleichzeitigkeiten, de Ernst Bloch, é mais adequada para capturar o espírito fraturado de nosso tempo.2 Entre as muitas ironias nutridas por esse espírito fraturado está certamente o fato de que, enquanto os ideais culturais e políticos da modernidade – e entre eles o que Richard Rorty chamou
[N.T.] Referência ao prefácio da Filosofia do Direito, de Hegel [A.C.L.]. Francis Fukuyama argumentou que as transformações na União Soviética e na Europa Oriental mostram que efetivamente atingimos “o fim da história” (“The end of History?”, The National Interest, p. 3-18, 1989). Evidentemente, não se trata do sentido trivial de que o tempo agora ficará parado, mas do sentido de que o kairós econômico e político do futuro (quanto tempo dura o futuro?) não acrescentará nada de novo aos princípios do capitalismo ocidental e da democracia liberal. Assim como Hegel enxergou o Estado moderno francês pós-revolucionário, que se baseava nos princípios do direito da pessoa e do direito de propriedade, como representando o fim conceitual da história da liberdade, Fukuyama também acredita que a segunda metade do século XX fez com que o capitalismo e democracia liberal prevalecessem sobre seus inimigos, a saber, fascismo e comunismo. Ver ibid., p. 9 et seq.
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Ver Ernst Bloch, Erbschaft dieser Zeit, Frankfurt, Suhrkamp, 1973, publicado pela primeira vez em 1935.
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Introdução
de “metanarrativas das democracias liberais” –3 tornaram-se suspeitos para as vanguardas humanistas e artísticas das sociedades ocidentais do capitalismo tardio, os desenvolvimentos políticos na Europa Oriental e na União Soviética deram a esses mesmos ideais um novo sopro de vida. Enquanto os povos do Leste Europeu e da União Soviética foram às ruas e, em nome da democracia parlamentar, do Estado de Direito e da economia de mercado, desafiaram a política estatal e a potencial ameaça de tropas estrangeiras, o discurso acadêmico das últimas décadas, particularmente sob o rótulo de “pós-modernismo”, produziu um clima intelectual profundamente cético em relação aos ideais morais e políticos da modernidade, do Esclarecimento e da democracia liberal. O atual clima de ceticismo nos círculos intelectuais, acadêmicos e artísticos quanto à continuidade do “projeto da modernidade” baseia-se em uma compreensível desilusão com uma forma de vida que ainda perpetra guerras, armamentismo, destruição ambiental e exploração econômica à custa da satisfação de necessidades humanas básicas com dignidade humana; com uma forma de vida que ainda relega um status político e moral de segunda classe a muitas mulheres, povos não cristãos e não brancos; com uma forma de Ver Richard Rorty, “Habermas and Lyotard on postmodernism”, Praxis International, v. 4, n. 1, p. 110 et seq., abr. 1994. Ver também “The contingency of a liberal community”, In: Contingency, irony and solidarity, Cambridge University Press, Cambridge, 1980, p. 44 et seq.
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vida que corrói as bases da coexistência solidária em nome do lucro e da competição. Se a forma de vida das democracias de massa do capitalismo avançado pode se reformar a partir de dentro é uma questão premente. Minha convicção, todavia, é a de que o projeto da modernidade só pode ser reformado a partir de dentro dos recursos intelectuais, morais e políticos que se tornaram possíveis e disponíveis para nós por meio do desenvolvimento da modernidade em uma escala global desde o século XVI. Entre os legados da modernidade que hoje precisam ser reconstruídos, e não indiscriminadamente destruídos, estão o universalismo moral e político comprometido com os ideais, agora aparentemente suspeitos e “fora de moda”, do respeito universal a cada pessoa em virtude de sua humanidade; da autonomia moral do indivíduo; da igualdade e da justiça econômica e social; da participação democrática; das mais amplas liberdades civis e políticas compatíveis com princípios de justiça; e da formação de associações humanas solidárias. Este livro procura reconstruir esse legado a partir da seguinte pergunta: o que está vivo e o que está morto nas teorias universalistas morais e políticas do presente após as críticas que lhes foram dirigidas por comunitaristas, feministas e pós-modernos? De modo mais específico, ao enfrentar e aprender com as reinvindicações feitas pelo feminismo, pelo comunitarismo e pelo pós-modernismo, este livro é uma tentativa de defender a tradição universalista diante dessa crítica feita em três frentes. 30
Introdução
Críticos comunitaristas ao liberalismo, como Alasdair MacIntyre, Michael Sandel, Charles Taylor e Michael Walzer, questionaram os pressupostos epistemológicos e a visão normativa das teorias políticas liberais. Pensadoras feministas como Carol Gilligan, Carole Pateman, Susan Moller Okin, Virginia Held, Iris Young, Nancy Fraser e Drucilla Cornell deram continuidade à crítica comunitarista ao “self desonerado” [unencumbered self] das visões liberais. Elas também assinalaram que nem liberais nem comunitaristas superaram a cegueira de gênero de modo a incluir as mulheres e suas atividades em suas teorias da justiça e da comunidade. Embora compartilhem com comunitaristas e feministas o ceticismo em relação às metanarrativas da modernidade e do Esclarecimento liberal, os pós-modernos – rótulo um tanto vago por meio do qual passamos a designar as obras de Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard, entre outros – radicalizaram essa crítica a ponto de questionar o ideal de um sujeito autônomo da ética e da política e os fundamentos normativos da política democrática como um todo. Cada uma dessas correntes de pensamento contribuiu para uma severa reconsideração da tradição do Esclarecimento na ética e na política, que se estende de Immanuel Kant a John Rawls e Jürgen Habermas. Eu gostaria de isolar três temas gerais em torno dos quais essa reconsideração do universalismo do Esclarecimento iniciada pelo feminismo, pelo comunitarismo e pelo pós-modernismo 31
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deve ser continuada. Comunitaristas, feministas e pós-modernos 1) expressaram ceticismo em relação a uma razão “legisladora”, a qual pretende ser capaz de articular as condições necessárias de “um ponto de vista moral”, de uma “posição original”, ou de uma “situação ideal de fala”; 2) questionaram o ideal abstrato e desinserido, distorcido e nostálgico do ego masculino autônomo privilegiado pela tradição universalista; 3) desmascararam a incapacidade dessa razão legisladora universalista para lidar com a indeterminidade e a multiplicidade de contextos e situações de vida com os quais a razão prática é sempre confrontada. Vou argumentar neste livro que há um poderoso cerne de verdade nessas críticas, e que as teorias universalistas contemporâneas devem levar a sério as reivindicações comunitaristas, feministas e pós-modernas. Não obstante, nem as presunções de uma razão legisladora, nem a ficção de um ego desinserido, masculino e autônomo, tampouco a indiferença e a insensibilidade ao raciocínio contextual são o sine qua non da tradição universalista na filosofia prática. Uma defesa pós-Esclarecimento do universalismo, sem arrimos metafísicos e jactâncias históricas, ainda é viável. Esse universalismo seria interativo e não legislador, ciente das diferenças de gênero e não cego ao gênero, sensível ao contexto e não indiferente à situação. O objetivo dos ensaios reunidos no presente volume é argumentar em favor desse projeto pós-Esclarecimento de universalismo interativo.
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Introdução
Ao colocar em diálogo discursos intelectuais do presente que são rivais entre si e ao sopesar as reinvindicações de uns contra os outros, pretendo suavizar as fronteiras que amiúde foram traçadas entre as teorias universalistas e as posições feministas, as aspirações comunitaristas e o ceticismo pós-moderno. Essas oposições e contraposições são muito simples para apreender o entrecruzamento complexo dos compromissos teóricos e políticos no presente. Um universalismo feminista, por exemplo, é uma possibilidade discursiva, e não uma mera contradição em termos; do mesmo modo, a despeito de quão contraditórias sejam suas mensagens políticas, comunitarismo e pós-modernismo são aliados, e não oponentes, em suas críticas ao progresso e à modernidade. Ao focar na natureza frágil e inconstante dessas alianças e confrontos conceituais, espero iluminar os potenciais contraditórios do momento presente em nossas vidas intelectuais. Minha esperança é criar rachaduras e fissuras suficientemente largas no edifício das tradições discursivas para que, através delas, possa brilhar um novo raio de razão que ainda reflita a dignidade da justiça junto com a promessa da felicidade. Uma premissa central deste livro é que os insights mais importantes da tradição universalista na filosofia prática podem ser hoje reformulados sem que nos comprometamos com as ilusões metafísicas do Esclarecimento. Trata-se das ilusões de uma razão transparente para si mesma e fundamentada em si mesma, a ilusão 33
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de um sujeito desinserido e descorporificado, e a ilusão de se ter encontrado um ponto de vista arquimediano situado para além das contingências históricas e culturais. Essas ilusões há muito deixaram de convencer. Mas, uma vez que o tempo que nos demoramos na companhia dessas ilusões e desfrutamos de seu calor reconfortante sempre depende da intensidade de uma despedida genuína, declaro aqui o meu próprio adeus a esses ideais. Pensadores do Esclarecimento, de Hobbes e Descartes a Rousseau, Locke e Kant, acreditavam que a razão é uma disposição natural da mente humana que, quando conduzida por uma educação adequada, pode descobrir certas verdades. Além disso, presumia-se que a clareza e a distinção dessas verdades ou a vivacidade de seu impacto sobre nossos sentidos seriam suficientes para garantir o acordo intersubjetivo entre mentes racionais que pensariam de forma semelhante. Mesmo Kant, cuja revolução copernicana revelou a contribuição ativa daquele que conhece no processo de conhecer, fundiu a descoberta dessas condições sob as quais a objetividade da experiência era possível com as condições sob as quais a verdade ou a falsidade das proposições pode ser constatada. Em contrapartida, parto da premissa de que devemos distinguir entre as condições para a constatação da validade de asserções e aquelas características que pertencem ao aparato cognitivo do sujeito humano e que o levam a organizar a realidade experiencial e perceptiva de
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Introdução
determinada maneira.4 Uma tal reformulação pragmático-universal da filosofia transcendental, como a empreendida por Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas,5 é pós-metafísica no sentido de que a verdade não é mais pensada como um atributo psicológico da consciência humana, ou como propriedade de uma realidade distinta da mente, ou como consistindo no processo pelo qual “dados” na consciência são correlacionados a “dados” na experiência. Na justificação e validação discursiva de pretensões de verdade, nenhum momento é privilegiado como uma estrutura evidencial dada que não possa mais ser questionada. É o discurso da comunidade de investigadores (Charles Sanders Peirce) que primeiro atribui um valor evidencial ou de outro tipo a aspectos de nossa consciência ou experiência, e que os mobiliza como fatores que sustentam as A discussão de Wilfried Sellars sobre esse assunto, que é, afinal, uma reafirmação da crítica de Hegel à “certeza sensível” no primeiro capítulo da Fenomenologia do espírito, foi bastante influente no meu pensamento. Ver Wilfried Sellars, “Empiricism and the philosophy of mind”, In: Science, perception and reality, Nova York: Humanities, 1963, p. 127 et seq., e, para uma formulação mais recente, ver Michael Williams, Groundless belief: an essay on the possibility of epistemology, New Haven, Yale University Press, 1977, esp. p. 25 et seq.
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Ver Karl-Otto Apel, “From Kant to Pierce: The semiotic transformation of transcendental logic”, In: Towards a transformation of philosophy, trad. de Glyn Adey e David Frisby, Londres, Routledge, 1980, p.77-93; ver também Jürgen Habermas, “What is universal pragmatics?”, In: Communication and the evolution of society, trad. e intr. de Thomas McCarthy, Boston, Beacon, 1979, p. 1-69; id. “Wahrheiststheoren”, In: Walter Schulz; Helmuth Fahrenbach, Wirklichkeit und Reflexion, Pfüllingen, Neske, 1973; e, mais recentemente, Jürgen Habermas, Post-metaphysisches Denken, Frankfurt, Suhrkamp, 1989.
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pretensões de veracidade de nossas crenças. No contínuo e potencialmente interminável discurso da comunidade de investigação, não há “dados”, só existem aqueles aspectos de consciência e realidade que podem a qualquer momento entrar como evidência em nossas deliberações e que consideramos convincentes para respaldar nossas afirmações. Assim, o primeiro passo na formulação de uma posição universalista pós-metafísica é a mudança de um conceito substancialista de racionalidade para um conceito discursivo e comunicativo de racionalidade. O segundo passo decorre do reconhecimento de que sujeitos de razão são criaturas finitas, corporificadas e frágeis, e não cogitos descorporificados ou unidades abstratas de apercepção transcendental às quais podem pertencer um ou mais corpos. A tradição empirista que, ao contrário de Descartes e Kant, descreveria o self como, digamos, um “não sei o quê” ou como um “amontoado de impressões”, não chega a ignorar o corpo, mas procura formular a unidade do self dentro do modelo da continuidade da substância no tempo. Em oposição à recusa do corpo, em um caso, e à redução da identidade do self à continuidade de uma substância, no outro, pressuponho que o sujeito de razão é um infante humano cujo corpo só pode ser mantido vivo, cujas necessidades só podem ser satisfeitas e cujo self só pode se desenvolver dentro da comunidade humana na qual nasceu. O infante só se torna um “self”, um ser capaz de discurso [speech] e ação, ao aprender a interagir em uma 36
Introdução
comunidade humana. O self se torna um indivíduo na medida em que se torna um ser “social” capaz de linguagem, interação e cognição. A identidade do self é constituída por uma unidade narrativa que integra o que “eu” posso fazer, fiz e farei com aquilo que você espera de “mim”, interpreta como sendo o significado dos meus atos e intenções, deseja para o meu futuro etc. Nem a concepção do Esclarecimento de um cogito desinserido nem a ilusão empirista de um self que é algo como uma substância fazem jus aos processos contingentes de socialização mediante os quais um infante se torna uma pessoa, adquire linguagem e razão, desenvolve um senso de justiça e autonomia, e se torna capaz de projetar uma narrativa no mundo da qual ela não é apenas autora mas é também atriz. A “estrutura narrativa das ações e da identidade pessoal” é a segunda premissa que nos permite ir além dos pressupostos metafísicos do universalismo do Esclarecimento. Se a razão é uma conquista contingente de criaturas linguisticamente socializadas, finitas e corporificadas, então as pretensões legisladoras da razão prática também devem ser entendidas em termos interacionistas. Podemos marcar aqui um deslocamento da racionalidade legisladora para a racionalidade interativa.6 Esse deslocamento altera radicalmente a conceitualização do No capítulo 5, “O outro generalizado e o outro concreto: a controvérsia Kohlberg-Gilligan e a teoria moral”, uso os termos universalismo “substitucionalista” e “interativo” para marcar esse contraste.
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“ponto de vista moral”. O ponto de vista moral não é um centro arquimediano a partir do qual o filósofo moral finge ser capaz de mover o mundo. Antes, o ponto de vista moral articula um certo estágio no desenvolvimento de seres humanos linguisticamente socializados quando começam a raciocinar sobre regras gerais que governam sua existência mútua a partir do ponto de vista de um questionamento hipotético: sob quais condições podemos dizer que essas regras gerais de ação são válidas não simplesmente porque eu e você fomos levados a acreditar nelas, ou porque meus pais, a sinagoga, meus vizinhos, minha tribo dizem que deve ser assim, mas sim porque essas regras são equânimes, justas, imparciais, no interesse mútuo de todos? O ponto de vista moral corresponde ao estágio de raciocínio alcançado por indivíduos para os quais emerge uma disjunção entre, de um lado, a validade social das normas e dos arranjos institucionais normativos e, de outro, sua validade hipotética do ponto de vista de algum padrão de justiça, equidade e imparcialidade. “Diga-me, Eutífron,” é a questão socrática, “algo é piedoso porque é amado pelos deuses ou os deuses o amam porque é piedoso?”* No primeiro caso, o que é moralmente válido é ditado pelos deuses da minha cidade, no segundo, até os deuses da minha cidade reconhecem a presença de padrões de justiça e piedade que seriam válidos para todos. O ponto de vista moral corresponde ao [N.T.] Referência a Platão, Eutífron, 10a [A.C.L.].
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Introdução
estágio de desenvolvimento de indivíduos e coletividades que se moveram da identificação do “dever” com o “socialmente válido”, e, portanto, de uma compreensão “convencional” da vida ética para uma postura de questionamento e raciocínio hipotético. A maior parte das altas culturas da história humana que diferenciam entre o mundo natural e o mundo social é capaz de produzir esse questionamento e essa disjunção entre “o dever moral” (das moralische Sollen) e a “validade ou aceitabilidade social” (soziale Geltung).7 O tipo de universalismo desenvolvimental defendido por Kohlberg e Habermas por vezes esteve sujeito a uma leitura equivocada no sentido de que Sócrates e Jesus, Buda ou Francisco de Assis, por serem membros de culturas anteriores ao Esclarecimento e à modernidade ocidentais na história mundial, deveriam ser considerados em um “nível inferior de desenvolvimento moral” a Voltaire e Nietzsche, Kant ou Karl Marx! Obviamente, trata-se de uma visão absurda que cheira ao evolucionismo satisfeito de si mesmo dos séculos XVIII e XIX. Argumentei em outro lugar que esse é um equívoco grosseiro particularmente a respeito da obra de Habermas, ver Seyla Benhabib Critique, norm and utopia: a study of the foundations of critical theory, Nova York, Columbia University Press, 1986, p. 253 et seq. Embora a relação das posições morais do universalismo cognitivo com a modernidade seja complexa, o que tratarei em muitos dos capítulos subsequentes, a interpretação desenvolvimental do ponto de vista moral de modo algum autoriza a interpretação da história mundial e das culturas humanas como se fossem estágios no crescimento de um superego expandido. Eu recuso as tentativas de aplicação de um esquema cognitivo desenvolvimental com um ponto final teleológico para a história mundial e para as culturas. Pode-se utilizar um esquema muito mais fraco de distinções entre modalidades de tradições culturais pré-convencionais, convencionais e pós-convencionais, sem que se tenha de sustentar que essas modalidades são sequências “naturais” da evolução que invariavelmente se dão em um curso normal de “desenvolvimento”. Pois, no caso do desenvolvimento individual, é a interação de um indivíduo finito e corpóreo com o mundo social e físico que inicia o aprendizado nesse indivíduo, ativa a
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Os elementos de um universalismo pós-metafísico e interativo são: a reformulação pragmático-universal das bases de validade de pretensões de verdade nos termos de uma teoria discursiva da justificação; a concepção de um self humano corporificado e inserido cuja identidade é constituída narrativamente, e a reformulação do ponto de vista moral como a conquista contingente de uma forma interativa de racionalidade em lugar do ponto de vista atemporal de uma razão legisladora. Tomadas em conjunto, essas premissas formam uma concepção ampla de razão, self e sociedade. Qual é o status dessas premissas no projeto de um universalismo interativo e pós-metafísico? Talvez essa questão possa ser mais bem abordada se contrastarmos os argumentos de John Rawls a favor de uma “concepção política de justiça” com a concepção ampla de razão, self e sociedade delineada acima. Na sequência das objeções levantadas por comunitaristas como Michael Sandel, particularmente a respeito do conceito de self e da concepção de bem pressuposta ou ao menos sugerida por sua teoria da justiça, John Rawls distinguiu entre a concepção “metafísica” e a concepção “política” de justiça. memória e a reflexão e efetua progressões para estágios “superiores” e mais integrados de compreensão de situações e solução de problemas. O “sujeito” da história mundial, em contrapartida, é, no melhor dos casos, uma abstração e, no pior, uma ficção. Não se pode atribuir a essa ficção uma fonte dinâmica de interação e aprendizado que impele os indivíduos. Apesar de considerar as categorias de “moralidades pré-, pós- e convencionais” descritivamente úteis para se pensar a respeito dos padrões de raciocínio normativo nas culturas, não atribuo qualquer necessidade teleológica à progressão de um estágio ao outro.
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Enquanto a concepção metafísica de justiça implicaria premissas filosóficas fundamentais sobre a natureza do self, sobre uma visão de sociedade e até mesmo sobre um conceito de racionalidade humana, a concepção política parte de pressupostos sobre o self, sobre a sociedade e sobre a razão que não foram formulados nos termos de alguma doutrina abrangente, mas sim nos termos de certas ideias intuitivas fundamentais consideradas como latentes na cultura política pública de uma sociedade democrática.8
Rawls acredita na tarefa legisladora da razão e limita o escopo da investigação filosófica em conformidade com concepções sobre o que é apropriado para a cultura pública das democracias liberais. Ele formula suas pressuposições filosóficas de modo que sejam resultado de um “consenso sobreposto” e que, com isso, sejam aceitáveis para a autocompreensão implícita dos atores públicos de um regime democrático [democratic polity].* Os ensaios reunidos 8
John Rawls, “The priority of right and ideas of the good”, Philosophy and Public Affairs, v. 17, n. 4, p. 51-76, Fall 1988, p. 252.
[N.T.] Para a presente tradução, polity foi em geral vertido como “regime”, “regime político” e “constituição política”, preservando algo da polissemia do termo. Cabe notar que, em seu livro anterior, Critique, norm, and utopia, Nova York, Columbia University Press, 1986, Benhabib afirma entender polity como “a unidade pluralista e democrática, composta de muitas comunidades, mas unida por uma organização política, administrativa e jurídica. Polities podem ser Estados-nação, Estados multinacionais, ou uma federação de grupos nacionais e étnicos distintos” (p. 351. Cf. também: id., Dignity in adversity, Cambridge, Polity, 2011, p. 189) [A.C.L.].
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neste livro não restringem o escopo da investigação normativa às limitações efetivamente existentes nos discursos públicos de democracias realmente existentes. Em última análise, as concepções de self, razão e sociedade e as visões a respeito da ética e da política são inseparáveis. Essas concepções de self, razão e sociedade não devem ser consideradas como elementos de uma Weltanschauung [visão de mundo] “abrangente” que não possam ser posteriormente contestados, mas devem ser entendidas como pressuposições que estão sempre sujeitas a contestação e investigação. Como argumento adiante, esses pressupostos sobre self, razão e sociedade são as pressuposições “substantivas” sem as quais nenhum “procedimentalismo”, incluindo o próprio programa de Rawls de um “consenso sobreposto”, pode ser convincentemente formulado. Há um tipo de análise filosófico-normativa de pressuposições fundamentais que serve para colocar a investigação ética no contexto mais amplo dos debates epistêmicos e culturais em uma sociedade. Tal análise de pressuposições não deve ser vista como a tentativa de oferecer uma doutrina moral abrangente aceitável para todos, mas como o desencobrimento dialético de premissas e argumentos implícitos não só nos debates culturais e intelectuais contemporâneos, mas também nas instituições e práticas sociais de nossas vidas. Em linguagem hegeliana, esse seria o estudo da ética como uma doutrina
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Introdução
do “espírito objetivo”. Nos meus termos, esse é um estudo da ética no contexto de uma teoria crítica da sociedade e da cultura.9 Embora eu continue o amplo deslocamento filosófico da razão legisladora para a razão interativa iniciado especialmente pela obra de Jürgen Habermas, neste livro me distancio de modo crucial da sua versão de uma ética do discurso ou comunicativa. Procuro sublinhar, enfatizar e até mesmo radicalizar aqueles aspectos de uma ética do discurso que são universalistas sem serem racionalistas, que procuram o entendimento entre os seres humanos ao mesmo tempo que consideram o consenso de todos uma ilusão contrafactual, e que são sensíveis a diferenças de identidade, de necessidades e de modos de raciocínio sem obliterá-las por detrás de alguma concepção uniforme de autonomia moral racional. Há três focos decisivos em torno dos quais proponho salvar a ética do discurso dos excessos do legado racionalista do Esclarecimento. São eles: a conceitualização do ponto de vista moral à luz da reversibilidade de perspectivas e o cultivo do “pensamento representativo” nos termos de Hannah Arendt; “generificar” [en-gendering] o sujeito do raciocínio moral, não para relativizar as demandas morais de modo que se adequem às diferenças de gênero, mas para torná-las sensíveis ao gênero e 9
Abordei a lógica e as pressuposições da teoria crítica social em meu livro Critique, norm, and utopia, Nova York, Columbia University Press, 1986. O presente volume continua a investigação do projeto da ética comunicativa delineada no capítulo 8 daquela obra.
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cientes das diferenças de gênero; desenvolver uma fenomenologia rudimentar do juízo moral com vistas a mostrar de que modo uma moralidade universalista baseada em princípios e um juízo moral sensível ao contexto podem ser combinados. Meu objetivo é situar a razão e o self moral de maneira mais decisiva nos contextos de gênero e de comunidade, ao mesmo tempo que insisto no poder discursivo dos indivíduos para contestar essa situacionalidade em nome de princípios universalistas, identidades futuras e comunidades ainda não descobertas. O capítulo 1, intitulado “À sombra de Aristóteles e Hegel: a ética comunicativa e as atuais controvérsias na filosofia prática”, apresenta os contornos gerais da minha tentativa de defender a ética comunicativa ao mesmo tempo que levo em consideração as críticas de neoaristotélicos como Hans-Georg Gadamer e Alasdair MacIntyre, de um lado, e de neo-hegelianos como Charles Taylor, de outro. Começo procurando uma resposta para a clássica objeção hegeliana ao universalismo ético formalista, segundo a qual procedimentos de universalização são, na melhor das hipóteses, inconsistentes e, na pior, vazios. Ao aplicar essa objeção ao caso da ética do discurso, sustento que nem a inconsistência nem a vacuidade são defeitos inevitáveis de um modelo de raciocínio moral concebido conversacionalmente. O que proponho é uma reformulação procedimental do princípio de universalização de acordo com o modelo de uma conversação moral na qual é indispensável a capacidade de reverter perspectivas, ou seja, 44
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a disposição para raciocinar a partir do ponto de vista dos outros e a sensibilidade para ouvir suas vozes. Seguindo Kant, Hannah Arendt conferiu uma brilhante formulação a essa intuição central das teorias éticas e políticas universalistas: O poder do juízo repousa em um acordo potencial com os outros, e o processo de pensamento que está ativo no julgamento de algo não é um diálogo entre mim e eu mesma, como o processo de pensamento do raciocínio puro, mas se encontra, sempre e primariamente, mesmo quando estou completamente sozinha ao tomar uma decisão, em uma comunicação antecipada com os outros com quem sei que devo finalmente chegar a algum acordo. […] E esse modo alargado de pensamento, que enquanto juízo sabe como transcender suas limitações individuais, não pode funcionar em estrito isolamento ou solidão; ele precisa da presença de outros “no lugar dos quais” deve pensar, cujas perspectivas deve levar em consideração e sem os quais jamais teria a oportunidade de operar.10
A espinha dorsal da minha reformulação da tradição universalista na ética é essa construção de um “ponto de vista moral” segundo o modelo de uma conversação moral na qual se exercita a arte do “pensamento alargado”. O objetivo dessa conversação não é a unanimidade ou o consenso (Einstimmigkeit ou Konsens), mas a 10
Hannah Arendt, “The crisis in culture”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Nova York, Meridian, 1961, p. 220-221.
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“comunicação antecipada com os outros com quem sei que devo finalmente chegar a algum acordo” (Verständigung). Essa distinção entre “consenso” e “chegar a um acordo” nem sempre foi levada em conta nas objeções à ética comunicativa. Por vezes, o próprio Habermas exagerou o caso ao insistir que o propósito do procedimento de universalização na ética deveria ser o desvelamento ou descobrimento de algum “interesse geral” com o qual todos consentiriam.11 Minha proposta é considerar o conceito de “interesse geral” na ética e na política mais como um ideal regulador e menos como o conteúdo de um consenso substantivo. Na ética, o procedimento de universalização, se entendido como uma reversibilidade de perspectivas e como a disposição para raciocinar a partir do ponto de vista do outro (dos outros), não garante o consenso, mas demonstra vontade e prontidão para buscar o entendimento com o outro e para alcançar algum acordo razoável em uma conversação moral em aberto. Do mesmo modo, na política, é menos importante que “nós” descubramos “o” interesse geral, e mais importante que as decisões coletivas sejam alcançadas por meio de procedimentos radicalmente 11
Ver, particularmente, a confiança contínua de Habermas no conceito de “interesse geral”, formulado primeiro no contexto de sua teoria da crise de legitimação, e, subsequentemente, no contexto de sua teoria moral. Jürgen Habermas, Legitimation crisis, trad. de Thomas McCarthy, Boston, Beacon, 1975, p. 111 et seq.; id., “Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso”, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, [1983] 1989, p. 61 et seq.; ver também minha crítica no capítulo 1 adiante.
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abertos e equânimes para todos. Acima de tudo, essas decisões não podem excluir a voz daqueles cujos “interesses” talvez não sejam formuláveis na linguagem corrente do discurso público, mas cuja própria presença na vida pública acabe por violar as fronteiras entre necessidades privadas e reivindicações públicas, infortúnios individuais e agravos coletivamente representáveis. Uma das consequências de se reformular a universalização nos termos do modelo da reversibilidade de perspectivas e do cultivo do “pensamento alargado” é que a identidade do self moral também tem de ser reconceitualizada. Mais precisamente, essa reformulação nos permite questionar aquelas pressuposições do “universalismo legalista” que, de Kant a Rawls, privilegiaram uma determinada noção de self moral. Para que se possa pensar a universalização como reversibilidade de perspectivas e como uma busca para compreender o ponto de vista do(s) outro(s), os outros devem ser vistos não apenas como outros generalizados, mas também como outros concretos. De acordo com o ponto de vista do “outro generalizado”, cada indivíduo é uma pessoa moral dotada dos mesmos direitos morais que nós mesmos; essa pessoa moral é também um ser racional e atuante, capaz de um senso de justiça, de formular uma visão do bem e de se empenhar para conquistá-la. O ponto de vista do outro concreto, por sua vez, exige que vejamos toda pessoa moral como um indivíduo único, com determinada história de vida, disposição e talentos, assim como com necessidades e 47
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limitações. Uma das consequências de se limitar os procedimentos de universalização ao ponto de vista do outro generalizado é que o outro enquanto distinto do self desaparece do discurso moral universalizante. Como argumento no ensaio “O outro generalizado e o outro concreto”, não pode haver reversibilidade coerente de perspectivas e de posições a não ser que seja preservada a identidade do outro enquanto distinto do self, não somente no sentido de alteridade corpórea, mas enquanto um outro concreto. Eu concebo a relação do outro generalizado com o outro concreto segundo o modelo de um continuum. Em primeiro lugar, há o compromisso universalista de considerar cada indivíduo como um ser merecedor de respeito moral universal. Essa norma, que compartilho com a tradição liberal, é institucionalizada em um regime democrático por meio do reconhecimento de direitos civis, legais e políticos – os quais refletem a moralidade do direito ou, se se prefere, os princípios de justiça de um regime político bem ordenado. O ponto de vista do outro concreto, por sua vez, está implícito naquelas relações éticas nas quais nós sempre já estamos imersos no mundo da vida. Ser membro de uma família, uma mãe ou um pai, um cônjuge, uma irmã ou um irmão, significa saber como raciocinar a partir do ponto de vista do outro concreto. Não se pode agir nesses relacionamentos éticos, da maneira que nos é exigido agir nesse tipo de relacionamento, sem que se seja capaz de pensar a partir do ponto de vista de nossa filha ou filho, cônjuge, irmã ou irmão, mãe ou 48
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pai. Fazer parte desse tipo de relacionamento ético significa que, enquanto indivíduos concretos, sabemos o que é esperado de nós em virtude dos tipos de vínculos sociais que nos unem ao outro. Se os pontos de vista do outro generalizado e do(s) outro(s) concreto(s) são pensados como existindo em um continuum que se estende do respeito universal por todas as pessoas enquanto pessoas morais, em uma ponta, ao cuidado, solidariedade e solicitude exigidos e mostrados a nós por aqueles com quem nos relacionamos de modo mais próximo,12 na outra, então a primazia do domínio jurídico nas teorias universalistas tradicionais e o foco exclusivo nas relações de justiça têm de ser alterados. Eu argumento, contra Kohlberg e Habermas, que as relações de justiça não esgotam o domínio moral, ainda que nele ocupem uma posição privilegiada (ver p. 374 et seq.). Para introduzir novamente uma locução hegeliana, a vida ética circunscreve muito mais do que o relacionamento entre outros generalizados portadores de direitos. Ainda que a tradição kantiana distinga legalidade de moralidade, uma tendência da ética kantiana que persiste até hoje é a de modelar vínculos éticos Isso, claro, não significa que apenas a família ou os grupos de parentesco definam esse espaço para nós. Nas sociedades modernas, a maioria dos indivíduos recria estruturas familiares e de parentesco em outras bases que não as de linhagem sanguínea; a relação de amizade, que é uma vinculação especial entre dois indivíduos que ultrapassa e, às vezes, vai contra as demandas de parentesco, nacionalidade, etnicidade e política, é uma das mais estimadas dimensões da vida cotidiana sob as condições da modernidade.
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segundo vínculos jurídicos (rechtsfroemmig). Do ponto de vista do universalismo interativo que procuro desenvolver neste livro, o problema surge de modo diferente: minha questão é como a vida ética deve ser pensada – a vida na família tanto quanto a vida no Estado constitucional moderno – a partir do ponto de vista de uma moralidade pós-convencional e universalista. Em alguns momentos, Hegel argumentou como se “o ponto de vista moral” e a Sittlichkeit [eticidade] fossem incompatíveis, mas a tarefa realmente desafiadora sugerida por sua Filosofia do Direito é a de conceber o ponto de vista moral universalista como situado dentro de uma comunidade ética. Eu chamo isso de uma Sittlichkeit pós-convencional. É essa busca por uma “Sittlichkeit pós-convencional” que distingue minha visão da de pensadores comunitaristas, como Michael Sandel e Alasdair MacIntyre em particular. No capítulo “Autonomia, modernidade e comunidade: comunitarismo e teoria crítica social em diálogo”, argumento que há duas vertentes do pensamento comunitarista a respeito da questão sobre a reconstituição de uma comunidade sob as condições da modernidade. Descrevo a primeira como “integracionista”, e a segunda como “participacionista”. Enquanto o primeiro grupo de pensadores procura reconstituir a comunidade por meio do resgate e da recuperação de uma visão integrativa de valores e princípios fundamentais, os participacionistas concebem essa comunidade como emergindo da ação comum, do engajamento e do debate nos 50
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domínios cívicos e públicos de sociedades democráticas. Eu recuso a visão integracionista de comunidade por ser incompatível com os valores de autonomia, pluralismo, reflexividade e tolerância nas sociedades modernas. Na constituição dessa Sittlichkeit [eticidade] pós-convencional por meio da política participativa [participatory] em um regime político democrático, a faculdade do “pensamento alargado” tem um papel crucial. Esse foi um dos principais insights de Hannah Arendt e, em última instância, o motivo para que ela tenha considerado o juízo como uma faculdade política, e não como uma faculdade moral. Ao “pensar com Arendt contra Arendt” em muitos dos capítulos a seguir, procuro tornar sua concepção de pensamento alargado proveitosa tanto para a moralidade como para a política. No regime político democrático, o hiato entre as demandas por justiça, que articulam princípios do moralmente correto, e as demandas por virtude, que definem a qualidade de nossas relações com outros no mundo da vida, pode ser transposto pelo cultivo das qualidades de amizade cívica e solidariedade. As qualidades da amizade cívica e da solidariedade fazem a mediação entre os pontos de vista dos outros “generalizados” e dos outros “concretos”, ao nos ensinar a raciocinar, compreender e apreciar o ponto de vista de “outros concretos coletivos”. Tal compreensão, entretanto, é um produto da atividade política. Não pode ser realizada nem pelo teórico político nem pelo agente moral in vacuo, pois, como 51
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bem sabia Arendt, a multiplicidade de perspectivas que constituem o político só pode ser revelada àqueles que estão dispostos a se engajar na incursão da contestação pública. A qualidade do mundo público de ser constituído por perspectivas só pode se manifestar para aqueles que “se unem na ação em concerto”. O espaço público é formado por meio dessa ação em concerto. Em uma Sittlichkeit pós-convencional, a esfera pública é o domínio crucial de interação que faz a mediação entre as instituições macropolíticas de um regime democrático e a esfera privada. A esfera pública é um tema comum a muitos dos capítulos deste livro. Eu estabeleço um contraste entre os modelos liberal, arendtiano e habermasiano de esfera pública. Como representante da posição liberal, é escolhido o modelo proposto por Bruce Ackerman de uma conversação pública sob as restrições da neutralidade. Meu argumento é que a restrição da neutralidade limita ilicitamente a agenda da conversação pública e exclui particularmente aqueles grupos, como mulheres e negros, que não são parceiros tradicionais no diálogo liberal. Sustento que a política democrática redefine e reconstitui a linha entre o correto [right] e o bem,* a justiça e a boa vida. Embora essa dimensão agonística e contestatória da política esteja no coração da obra de Hannah Arendt, o que faz [N.T.] Apesar da sedimentação de “o justo e o bem” no vocabulário em português, optamos por traduzir right (na forma substantiva, e em contraste com good) como “correto” [A.C.L.].
*
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Introdução
com que seu conceito de espaço público seja tão deficiente do ponto de vista das sociedades modernas complexas é uma restrição similar àquela introduzida por Ackerman com seu conceito de “neutralidade liberal”. Arendt também procura limitar o escopo e a agenda da esfera pública por meio de pressuposições essencialistas sobre o “lugar natural” das atividades humanas e a natureza “política” e “não política” de certos topoi de debate. Em contraposição, defendo um modelo radicalmente procedimental de esfera pública, cujo escopo ou agenda não podem ser limitados a priori e cujas linhas podem ser redesenhadas pelos participantes da conversação. Meu modelo aqui é o conceito habermasiano de uma esfera pública que incorpore os princípios de uma ética do discurso. Uma das principais contribuições do pensamento feminista para a teoria política na tradição ocidental é a de ter questionado a linha divisória entre o público e o privado. Feministas argumentaram que a “privacidade” da esfera privada, que sempre incluiu as relações do homem chefe de família com sua esposa e filhos, tem sido como um vidro opaco que torna invisíveis e inaudíveis as mulheres e suas esferas tradicionais de atividade. As mulheres e as atividades nas quais foram historicamente confinadas, tais como a criação dos filhos, os cuidados da casa, a satisfação das necessidades emocionais e sexuais do homem, os cuidados com os doentes e idosos, até muito recentemente foram colocadas para fora do território da justiça. As normas de liberdade, igualdade e 53
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reciprocidade pararam na porta de casa. Passados dois séculos das Revoluções Francesa e Americana, a entrada das mulheres na esfera pública está longe de acabada, a divisão do trabalho baseada no gênero na família ainda não é objeto de reflexão moral e política, e a mulher e suas preocupações ainda são invisíveis nas teorias contemporâneas de justiça e comunidade. Não é meu propósito lamentar a invisibilidade de gênero no pensamento contemporâneo, mas sim perguntar: que consequências essa invisibilidade tem para as teorias em questão? Uma teoria da moralidade universalista ou da esfera pública não pode simplesmente “ignorar” as mulheres e posteriormente ser “corrigida” ao reinseri-las na imagem em que estavam ausentes. A ausência das mulheres aponta para algumas distorções categoriais no interior dessas teorias; o que significa que, porque excluem as mulheres, essas teorias são sistematicamente enviesadas. A exclusão das mulheres e de seus pontos de vista não é só uma omissão política e um ponto cego moral, mas constitui também um déficit epistemológico. Eu chamo atenção para os déficits epistemológicos do universalismo contemporâneo nas seguintes áreas. Em primeiro lugar, argumento que a negligência das teorias universalistas em relação às emoções morais e às interações morais cotidianas com outros concretos está diretamente relacionada à divisão do trabalho baseada no gênero nas sociedades ocidentais que se seguiram à modernidade. A justiça torna-se o núcleo da vida moral coletiva quando, com o 54
Introdução
advento da economia de troca capitalista, as unidades familiares extensas da Antiguidade e da Idade Média perdem suas funções produtivas e se tornam meras unidades reprodutivas cuja função é satisfazer as necessidades corpóreas e psicossexuais cotidianas de seus membros. Em segundo lugar, todo conceito de espaço público pressupõe uma delimitação correspondente do privado. No capítulo intitulado “Modelos de espaço público: Hannah Arendt, a tradição liberal e Jürgen Habermas”, mostro que essas teorias da esfera pública são cegas ao gênero na medida em que ou traçam uma fronteira rígida e dogmática entre o público e o privado (Arendt), ou, como é o caso de Habermas, desenvolvem oposições binárias que excluem da discussão pública a tematização dos assuntos mais importantes para as mulheres. As oposições entre “justiça” e “boa vida”, “interesses generalizáveis” versus “interpretações de necessidades privadas”, entre “normas públicas” e “valores privados” têm a consequência de deixar a linha entre o público e o privado basicamente onde sempre esteve, a saber, entre, de um lado, as esferas públicas do regime político e da economia e, de outro, o âmbito doméstico-familiar. Ao travar uma batalha dialética com Habermas, procuro reconstruir seu modelo de esfera pública de modo a tanto acomodar as críticas feministas como também auxiliar as feministas em nosso próprio pensamento sobre esferas públicas alternativas. Por fim, há uma relação entre a negligência em relação ao problema do juízo moral nas teorias universalistas e a negligência em 55
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relação às mulheres e suas atividades. Uma vez que, tradicionalmente e ainda hoje, a esfera de atividade das mulheres concentra-se na esfera privada – na qual as crianças são criadas, as relações humanas são mantidas e as tradições humanas são transmitidas e continuadas –, a experiência feminina tem sido mais afinada com a “estrutura narrativa da ação” e com o “ponto de vista do outro concreto”. Como as mulheres tiveram de lidar com indivíduos concretos, com suas necessidades, talentos, quereres e habilidades, sonhos e fracassos, elas, em suas capacidades de cuidadoras primárias, tiveram de exercitar o discernimento nas demandas do particular. Em certo sentido, a arte do particular tem sido o domínio das mulheres, assim como “a teia de histórias”, que, nas palavras de Hannah Arendt, constitui o quem e o quê de nosso mundo compartilhado. É no contexto da discussão acerca da teoria do juízo de Hannah Arendt que traço os contornos de uma fenomenologia do juízo moral que, todavia, seria compatível com uma moralidade universalista e baseada em princípios. Uma das pedras angulares da crítica pós-moderna às grandes narrativas da tradição ocidental logocêntrica é a alegação de que a cegueira de gênero das teorias universalistas aponta para uma falha epistêmica mais profunda, e que não se trata apenas de uma questão de indiferença moral ou de inclinação política. Se há um compromisso que une pós-modernos, de Foucault a Derrida e Lyotard, é esta crítica à racionalidade ocidental tal como vista 56
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da perspectiva das margens, do ponto de vista do que e de quem essa racionalidade exclui, reprime, deslegitima, considera louco, imbecil ou infantil. Em suas impactantes genealogias da razão, Foucault desencobre as práticas discursivas que traçaram a fronteira entre loucura e civilização, saúde e doença mental, criminalidade e normalidade, desvio e conformidade sexuais.13 Foucault mostra que o outro da razão vem assombrar essa mesma razão. A persistência do outro dentro do texto da metafísica ocidental, as contínuas tentativas dessa metafísica de apagar a presença do outro no jogo infindável de oposições binárias é a linha mestra do pensamento de Jacques Derrida, desde seu primeiro ensaio sobre “os fins do homem” aos seus mais recentes comentários sobre “a força da lei”.14 Obviamente, seria um erro pensar que, no pensamento de Jacques Derrida, o outro não passa de um nome [nomer] atribuído a um gênero, raça, povo ou região geopolítica do mundo que seriam excluídos. Para Derrida, tal como para Hegel, nenhuma Para uma primeira, mas extremamente esclarecedora, formulação do propósito da “investigação genealógica”, ver Michel Foucault, “Nietzsche, genealogy, history”, In: Language, counter-memory, practice: selected essays and interviews, ed. e intr. de Donald F. Bouchard, Nova York, Cornell University Press, 1977, p. 139-165.
13
Jacques Derrida, “The ends of man”, reimpresso em Kenneth Baynes, James Bohman e Thomas McCarthy (ed.), After philosophy: end or transformation?, Cambridge, MA, MIT Press, 1987, p. 125-161; ver também Jacques Derrida, “The force of law: the mythical foundation of authority”, no volume especial “Deconstruction and the Possibility of Justice”, Benjamin N. Cardozo law review, v. 11, n. 5/6, p. 919-1047, jul./ago. 1990.
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identidade pode ser constituída sem diferença; o outro nunca é meramente um outro, mas é sempre também um em-si e para-si. Porém, para Hegel, há um momento em que a identidade supera a diferença ao se “apropriar” dela, ao simular que o “outro” é algo meramente posto (etwas gesetzt) que o sujeito idêntico a si mesmo pressupõe (vorausgesetzt); para Derrida, a diferença é irredutível e nunca se evapora no jogo imperialista de pôr suas pressuposições, o qual os sujeitos hegelianos sempre jogam. A diferença que não pode ser eliminada é differánce, o ato e o processo contínuo de diferenciação. Ainda que não haja identidade, há, no entanto, mais que uma simples relação contingente entre o logocentrismo do Ocidente e o gesto imperialista com que o Ocidente se “apropria” de seu(s) outro(s), simulando, como no conceito hegeliano, que eles eram suas próprias pressuposições rumo à autorrealização [self-fullfilment]. O Oriente existe para tornar o Ocidente possível, a África existe para que a civilização ocidental possa cumprir sua missão, a mulher existe para, em seu útero, ajudar o homem a efetivar a si mesmo etc. A lógica das oposições binárias é também uma lógica de subordinação e dominação. Na obra de Jean-François Lyotard, a exclusão epistêmica do outro tem também implicações morais e políticas, ainda que de maneira alguma possa ser a elas reduzida. Em A condição pós-moderna, Lyotard contrasta as “grandes narrativas” do Esclarecimento com os petits récits [pequenas narrativas] de mulheres, 58
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crianças, loucos e primitivos. A exclusão da pequena narratividade, argumentou Lyotard, era um aspecto da grandiosa visão da tradição ocidental modernizante. No entanto, A condição pós-moderna deixa ambíguo se, por “narratividade”, Lyotard entendia um tipo de filosofia da linguagem ordinária à la Wittgenstein, uma tradição hermenêutica do juízo à la Gadamer, ou um tipo de imaginação poética como a que Richard Rorty defende. Talvez as três tenham sido pensadas. Em trabalhos subsequentes, como Le Différend, Just gaming e Heidegger e os judeus,15 há uma vinculação entre os limites do racionalismo e a ética e a política do outro. Tal como o capítulo “Feminismo e a questão do pós-modernismo” esclarece, pensadores pós-modernos, tanto na crítica às ilusões do logocentrismo como na defesa do ponto de vista do(s) outro(s), têm sido aliados cruciais para o feminismo contemporâneo. Ao focar no problema do sujeito, na questão das grandes narrativas, nos padrões de racionalidade e crítica, elaboro um diálogo entre alegações pós-modernas fracas e fortes e posições/oposições feministas. O pós-modernismo é um aliado com o qual o feminismo não pode reivindicar identidade, mas apenas uma solidariedade parcial e estratégica. Dada sua atitude infinitamente cética e subversiva 15
Ver Jean-François Lyotard, The Differend: phrases in dispute, trad. de G. van den Abeele, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1979; e id., Heidegger and the Jews, trad. de Andreas Michel e Mark Roberts, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990. [Ed. bras.: Heidegger e os judeus, trad. de Ephraim F. Alves, Petrópolis: Vozes, 1994].
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com relação a pretensões normativas, justiça institucional e lutas políticas, o pós-modernismo certamente revigora. Porém o pós-modernismo também debilita. A chamada crítica à “política da identidade”, que agora domina o pensamento feminista, não é só um reconhecimento da necessidade de uma “política do arco-íris”, como alegou Iris Young.16 A crítica à “política da identidade” tenta substituir a visão de um sujeito autônomo e generificado pela visão de um self fraturado e opaco; “a ação sem agente” torna-se o paradigma da atividade subversiva de selves que gozosamente negam sua própria coerência e regozijam-se de sua opacidade e multiplicidade. Essa concepção problemática do self é a radicalização da crítica nietzschiana à modernidade em nome de uma estética do cotidiano. É Zaratustra que pode ser a um só tempo ovelha e leão, sábio e rebelde. Para as mulheres, a transcendência estética do cotidiano é, sem dúvida, uma tentação. Mas, precisamente porque as histórias das mulheres quase sempre foram escritas por outros para elas, precisamente porque o seu próprio “senso de self” sempre foi tão frágil e sua habilidade para assegurar o controle sobre as condições de sua existência sempre foi tão rara, essa concepção do self me parece fazer da necessidade virtude. Não menos importante é que o tipo de crítica social requerido para as lutas das mulheres não é sequer Ver Iris Young, “The ideal of community and the politics of difference”, republicado em Linda Nicholson (ed.), Feminism and postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 300-301.
16
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possível sem que sejam postuladas as normas jurídicas, morais e políticas de autonomia, escolha e autodeterminação. O modernismo estético sempre dependeu de modo parasitário das conquistas da modernidade nas esferas do direito e da moralidade – na medida em que o direito da pessoa moral de perseguir seu senso de bem, por fraturado, incoerente e opaco que seja, deve primeiro ter sido ancorado no direito e na moralidade antes que possa se tornar uma opção rotineira para selves lúdicos. A esse respeito, como em muitos outros, o pós-modernismo pressupõe um superliberalismo, mais pluralista, mais tolerante, mais aberto ao direito à diferença e à alteridade do que as versões mais contidas e sóbrias apresentadas por John Rawls, Ronald Dworkin e Thomas Nagel. No que me concerne, isso não é problemático. O que é desconcertante, contudo, é a facilidade com que pós-modernos presumem ou até mesmo postulam esses valores hiper-universalistas e superliberais de diversidade, heterogeneidade, excentricidade e alteridade. Ao fazê-lo, contam com as mesmas normas de autonomia dos sujeitos e de racionalidade dos procedimentos democráticos que, por outro lado, parecem tão jubilosamente descartar. Qual conceito de razão, qual visão de autonomia nos permitem resguardar esses valores e as instituições nas quais esses valores florescem e se tornam modos de vida? A essa questão pós-modernos não têm resposta – talvez porque, no mais das vezes, enquanto filhos da Revolução Francesa,
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tanto usufruíram dos privilégios do moderno que se tornaram blasés diante desses privilégios. Este livro termina como começou, em um cabo de guerra com Hegel. “Sobre Hegel, mulheres e ironia” reúne diferentes linhas de argumentação. Ao examinar a relação de Hegel com o movimento dos primeiros românticos no círculo de Jena e, em particular, ao atentar para a vida de Caroline Michaelis von Schlegel Schelling, uma das primeiras mulheres “modernas”, mostro que a questão das mulheres na filosofia de Hegel não é apenas um resultado conceitual que se segue necessariamente de uma série de oposições binárias que definem a lógica das relações de gênero em sua filosofia. Tampouco o confinamento das mulheres a uma visão tradicionalista de Sittlichkeit [eticidade] na Filosofia do Direito é meramente uma consequência das limitações históricas do tempo de Hegel. Hegel poderia ter argumentado de outra forma, como fizeram alguns de seus contemporâneos, e, de modo mais notável, o jovem Friedrich von Schlegel. Não obstante, ele escolheu não fazê-lo; ele não se compeliu a fazê-lo. Hegel escolheu não extrair as consequências da modernidade na vida ética também para a esfera das relações pessoais, íntimas e sexuais entre homens e mulheres. Ele se recusou a aceitar os ideais de igualdade heterossexual e reciprocidade igualitária defendidos, ao menos por um curto período de tempo, por seus amigos românticos. Ainda, como mostra a pessoa de Caroline von Schlegel Schelling, as mulheres 62
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não podem deixar de ter uma relação ambivalente com a modernidade, que, de um lado, promete tanto a elas e, de outro, constantemente subverte sua própria promesse du bonheur [promessa de felicidade]. Ao se juntar aos exércitos revolucionários franceses e à breve república de Mainz, Caroline me parece ter se dado conta da dialética do republicanismo burguês, a qual inicialmente permitiu que as mulheres participassem na esfera pública apenas para, num segundo momento, escorraçá-las de volta para casa. A recuperação de um senso de ironia diante do projeto moderno e de estupefação com suas reviravoltas dialéticas é mais adequada não apenas em relação aos dilemas do feminismo contemporâneo, mas também diante de uma época que se aproxima de seu fim.
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Parte I Modernidade, moralidade e vida ética
1.
À sombra de Aristóteles e Hegel: a ética comunicativa e as atuais controvérsias na filosofia prática Na introdução de Revisions: changing perspectives in moral philosophy, Stanley Hauerwas e Alasdair MacIntyre escrevem: Não é a primeira vez que a ética entrou na moda. E a história sugere que, naqueles períodos em que a ordem social fica inquieta, e fica até mesmo abalada, com o enfraquecimento de seus vínculos morais e a pobreza de sua herança moral, e buscamos o auxílio do filósofo moral e do teólogo, essas disciplinas talvez não estejam prosperando de modo a oferecer o tipo de reflexão e de teoria moral de que a cultura verdadeiramente precisa. A bem dizer, vez ou outra, pode ser que as mesmas causas que conduziram ao empobrecimento da experiência moral e ao enfraquecimento dos vínculos morais também tenham contribuído para a formação de um tipo de teologia e de filosofia moral que são incapazes de prover os recursos de que se carece.1
Caso essa declaração seja vista como um indicativo algo acurado do Zeitgeist da teoria ética hoje, trata-se certamente de um mau presságio para mais um programa de universalismo e formalismo 1
Stanley Hauerwas e Alasdair MacIntyre, Revisions, Notre Dame, IN, University of Notre Dame Press, 1983, p. vii.
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ético na tradição kantiana. Tal formalismo ético é considerado como parte do projeto de racionalismo do Esclarecimento e do projeto político do liberalismo, e o argumento é que precisamente esses legados intelectuais e políticos são um aspecto, se não a causa principal, da crise contemporânea. Para que seja digna de crédito, a ética do discurso ou comunicativa deve ser capaz de enfrentar os tipos de desafios colocados por MacIntyre e Hauerwas. A ética comunicativa ou discursiva, tal como formulada por Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas ao longo das duas últimas décadas, é informada pelas tradições de pensamento anglo-americana e continental e é testemunha de uma instigante interação entre ambas as tradições. Esse projeto foi influenciado pela obra de filósofos morais como Kurt Baier, Alan Gerwith, H. M. Hare, Marcus Singer e Stephen Toulmin, acerca do raciocínio moral e da universalização na ética.2 Mas, sobretudo, foi no construtivismo neokantiano de John Rawls e na teoria moral cognitivo-desenvolvimental de Lawrence Kohlberg que Apel e
2
Ver Kurt Baier, The moral point of view, Nova York, Random House, 1965 (edição abreviada); Alan Gerwith, Reason and morality, Chicago, University of Chicago Press, 1978; H. M. Hare, Freedom and reason, Oxford, Oxford University Press, 1963; Marcus Singer, Generalizability in ethics: an essay in the logic of ethics with the rudiments of a system of moral philosophy, Nova York, Alfred Knopf, 1961; Stephen Toulmin, The place of reasons in ethics, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1953.
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Habermas encontraram os projetos de filosofia moral mais aparentados aos seus no mundo anglo-americano.3 O insight central da ética do discurso ou comunicativa provém das teorias modernas da autonomia e do contrato social, como foram articuladas por John Locke, Jean-Jacques Rousseau e, em particular, Immanuel Kant. Afirma-se que são válidas somente aquelas normas e ordenamentos institucionais aos quais, em decorrência de empreenderem determinadas práticas argumentativas, os indivíduos possam consentir ou consentiriam livremente. Apel sustenta que essas práticas argumentativas podem ser descritas como “uma comunidade ideal de comunicação” (die ideale Kommunikationsgemeinschaft), ao passo que Habermas as nomeia “discursos práticos”. Ambos concordam que essas práticas argumentativas são o único procedimento plausível à luz do qual podemos pensar o princípio de “universalização” kantiano na ética hoje. Em vez de perguntar o que um agente moral individual poderia querer ou quereria, sem contradição consigo mesmo, que fosse uma máxima universal para todos, pergunta-se: quais normas ou instituições os membros de uma comunidade real ou ideal de comunicação acordariam como sendo representativas de seus interesses comuns depois de empreenderem um tipo especial Ver John Rawls, A theory of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1972; id., “Kantian constructivism in moral philosophy: The Dewey Memorial Lectures 1980”, Journal of Philosophy, n. 77, p. 515-517, set. 1980; Lawrence Kohlberg, Essays on moral development, São Francisco, Harper and Row, 1984. v. 1: The philosophy of moral development; v. 2: The psychology of moral development.
3
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de argumentação ou conversação? O experimento mental silencioso exigido pelo teste de universalização kantiano é substituído pelo modelo procedimental de uma práxis argumentativa. Neste capítulo, eu gostaria de aceitar o desafio que foi colocado para a ética comunicativa por um ponto de vista que descreverei em linhas muito gerais como “neoaristotélico” e “neo-hegeliano”. Desde as críticas de Aristóteles, na Ética Nicomaqueia e na Política,4 à teoria de Platão sobre o Bem e o Estado Ideal, e desde a crítica de Hegel, em muitos de seus escritos, à ética kantiana,5 as teorias éticas formalistas e universalistas têm sido continuamente desafiadas em nome de alguma comunidade ético-histórica concreta ou, na linguagem hegeliana, de alguma Sittlichkeit [eticidade]. Com efeito, Apel e Habermas admitem que não se pode ignorar as lições da crítica de Hegel à moralidade kantiana.6 Se eles integraram de modo Em The basic works of Aristotle, ed. e trad. de Richard McKeon, Nova York, Random House, 1966.
4
Para a crítica do jovem Hegel a Kant, ver “The spirit of Christianity and its fate”, em G.W. F. Hegel, Early theological writings, trad. de T. M. Knox, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971, p. 182-302; id., Hegel’s phenomenology of spirit, trad. de A. V. Miller, Oxford, Clarendon, 1977, cap. 6, seção C; Hegel’s philosophy of right, trad. de T. M. Knox, Oxford, Oxford University Press, 1973, §40, adendo, p. 39 et seq.; id., Science of logic, trad. de A. V. Miller, Nova York: Humanities, 1969, p. 133 et seq.
5
Karl-Otto Apel, “Kant, Hegel und das aktuelle Problem der normativen Grundlagen der Moral und Recht”, In: Dirskurs und Verantwortung, Frankfurt, Suhrkamp, 1988, p. 69-103; id., “Kann der post-kantische Standpunkt der Moralität noch einmal in substantielle Sittlichkeit ‘aufhoben’ werden?”, In: ibid., p. 103-154; Jürgen
6
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exitoso essas lições à ética comunicativa, é algo que merece ser examinado mais detidamente. Antes de mais nada, um esclarecimento terminológico. Nas discussões recentes, o termo “neoaristotelismo” tem sido usado para se referir a três vertentes de análise social e de argumentação filosófica que nem sempre são claramente distinguidas. Particularmente no contexto alemão, esse termo foi identificado a um diagnóstico social neoconservador sobre os problemas das sociedades do capitalismo tardio.7 Considera-se que as sociedades do capitalismo tardio padecem de uma perda de orientação moral e quase civilizacional causada pelo individualismo excessivo, pelo libertarianismo e pela temeridade geral do liberalismo diante da tarefa de estabelecer valores fundamentais. Nem a economia capitalista e a modernização social nem as mudanças tecnológicas são vistas como causas basilares da atual crise; em vez disso, o liberalismo político e o pluralismo moral são considerados as principais causas dessa situação. De Robert Spaemman a Allan Bloom, essa posição encontra hoje veementes defensores.
Habermas, “Moralität und Sittlichkeit: Treffen Hegels Einwände gegen Kant auch auf die Diskursethik zu?”, In: Wolfgang Kuhlmann (ed.), Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 16-38. 7
Herbert Schnädelbach, “Was ist Neoaristotelismus?”, In: Wolfgang Kuhlmann (ed.), Moralität und Sittlichkeit, op. cit., p. 38-64, traduzido [para o inglês] como “What is Neoaristotelianism?”, Praxis international, v. 7, n. 3-4, p. 225-238, out. 1987-jan. 1988.
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O termo “neoaristotélico” também é amiúde usado para designar a posição de pensadores como Alasdair MacIntyre, Michael Sandel, Charles Taylor e Michael Walzer, que lamentam o declínio das comunidades políticas e morais nas sociedades contemporâneas.8 Mas, diferentemente dos neoconservadores, os neoaristotélicos “comunitaristas” são críticos ao capitalismo contemporâneo e à tecnologia. A recuperação da “comunidade” não precisa significar nem necessariamente significa a recuperação de algum esquema fundamentalista de valores; antes, as comunidades podem ser reconstituídas pela reafirmação do controle democrático sobre as megaestruturas desenfreadas da tecnologia e do capital moderno. Comunitaristas compartilham com neoconservadores a crença de que os legados formalista, a-histórico e individualista do Esclarecimento estão historicamente implicados nos desdobramentos que 8
Para uma excelente pesquisa sobre as diversas vertentes de neoaristotelismo nas discussões contemporâneas, e, em particular, sobre as importantes diferenças entre as tendências neoaristotélicas alemã e anglófona, ver Maurizio Passerin d’Entrèves, “Aristotle or Burke? Some Comments on H. Schnäldenbach’s ‘What is Neoaristotelianism?’”, Praxis international, v. 7, n. 3-4, p. 238-246, out. 1987-jan. 1988. Estritamente falando, nem a posição de Michael Walzer nem a de Charles Taylor podem ser facilmente assimiladas ao neoaristotelismo. Apesar de aceitar uma ética filosófica hermeneuticamente inspirada, Walzer não reaviva a tradição aristotélica das virtudes, como fazem MacIntyre e, em menor medida, Sandel. A recente publicação de Sources of the self: the making of modern identity, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1989, de Charles Taylor, indica o alcance em que essa posição é profundamente devedora da modernidade e da cultura moderna. Como Hegel, Taylor permanece um crítico do universalismo, só que a partir de dentro do horizonte da modernidade. Ver próximo capítulo.
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levaram ao declínio da comunidade como um modo de vida. Particularmente hoje, argumentam, esse legado do Esclarecimento tolhe a nossa imaginação e empobrece nosso vocabulário moral de tal forma que nem sequer conseguimos conceitualizar soluções para a crise contemporânea das democracias do Estado de bem-estar social que transcendessem a tríade “direitos-prerrogativa-justiça distributiva” [rights-entitlement-distributive justice] do liberalismo político. Por fim, “neoaristotelismo” refere-se a uma ética filosófica hermenêutica que tem como ponto de partida a compreensão aristotélica da phronesis [prudência ou sabedoria prática]. Hans-Georg Gadamer foi o primeiro a recorrer ao modelo de phronesis de Aristóteles como uma forma de juízo sobre particulares contextualmente inserido e situacionalmente sensível.9 Gadamer sintetizou de modo tão poderoso a teoria ética aristotélica e a crítica de Hegel a Kant que, após sua obra, essas duas vertentes de pensamento quase se tornaram indistinguíveis. Da crítica de Aristóteles a Platão, Gadamer destrinçou o modelo de uma razão prática situacionalmente sensível, a qual sempre opera no pano de fundo da compreensão ética compartilhada de uma comunidade.10 Da crítica Hans-Georg Gadamer, Truth and method, Nova York, Seabury, 1975.
9
10
Hans-Georg Gadamer, “Hermeneutics as practical philosophy”, In: Reason in the age of science, trad. de Frederick G. Lawrence, Cambridge, MA, MIT Press, 1981, p. 88-113. Não incluí Hannah Arendt nessa categorização porque em questões morais, em oposição à filosofia política, Arendt permaneceu uma pensadora kantiana. Trato de alguns aspectos dessa interpretação admitidamente não
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de Hegel a Kant, Gadamer tomou emprestado a intuição de que todo formalismo pressupõe uma abstração do contexto e de que não há ética formal que não contenha algumas pressuposições materiais concernentes ao self e às instituições sociais.11 Assim como não pode haver compreensão que não esteja situada em algum contexto histórico, também não pode haver um “ponto de vista moral” que não seja dependente de um ethos compartilhado, mesmo que seja o do Estado moderno. O ponto de vista moral kantiano só é inteligível à luz das revoluções da modernidade e do estabelecimento da liberdade como um princípio do mundo moderno. Essas três vertentes – um diagnóstico social neoconservador, uma política da comunidade e uma ética filosófica de uma razão prática historicamente informada – formam os elementos centrais da posição neoaristotélica contemporânea. O presente capítulo aborda o neoaristotelismo não como diagnóstico social ou como filosofia política, mas primariamente como ética filosófica. As implicações políticas e sociais das posições neoaristotélica e comunitarista serão discutidas no próximo capítulo.
unívoca da obra de Hannah Arendt no capítulo 4 adiante, “Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt”. 11
Cf. Hans-Georg Gadamer, “Hegel’s philosophy and its aftereffects until today” e “The heritage of Hegel”, In: Reason in the age of science, trad. de Frederick G. Lawrence, Cambridge, MA, MIT Press, 1981, p. 21-38 e 38-69; id., Hegel´s dialectic, trad. de P. Christopher Smith, New Haven, Yale University Press, 1976.
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Passo agora a formular uma série de objeções à ética comunicativa. Algumas versões dessas objeções foram proferidas em diferentes momentos contra teorias éticas de tipo kantiano por pensadores inspirados em Aristóteles e Hegel. Meu objetivo é mostrar que essas objeções não conseguem dar um coup de grâce (um golpe de misericórdia) em uma teoria ética universalista reformulada dialogicamente. Um intercâmbio sério entre essa teoria ética universalista, a qual não pressupõe nem o individualismo metodológico nem o a-historicismo da ética kantiana tradicional, e um neoaristotelismo hermeneuticamente inspirado permite que vejamos que algumas oposições e exclusões tradicionais na filosofia moral não mais são convincentes. Essas oposições, entre universalismo e historicidade, entre uma ética de princípio e uma ética de juízo contextual, ou entre cognição ética e motivação moral, dentro dos limites entre os quais corre boa parte dos debates recentes, não são mais ponderosas. Assim como não é o caso que não possa haver um universalismo ético historicamente informado, igualmente não é o caso que todo neoaristotelismo tenha de defender uma teoria conservadora de ética comunal. Neste capítulo, ocupo-me em indicar como essas falsas oposições podem ser transformadas em um conjunto mais frutífero de disputas entre dois tipos de teorização ética que marcaram a tradição filosófica ocidental desde seus primórdios com o desafio de Sócrates aos sofistas e sua condenação à morte pela cidade de Atenas.
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Ceticismo acerca do princípio de universalização: no melhor dos casos, inconsistente, e, no pior, vazio? Em inúmeras ocasiões, Hegel criticou a fórmula kantiana, “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”, como sendo, no melhor dos casos, inconsistente e, no pior, vazia.12 Hegel argumentou que o teste de que uma máxima possa ou não ser universalizada não poderia por si só determinar sua correção moral. Como ele observou em seu ensaio de juventude sobre o direito natural, se eu devo ou não devolver depósitos a mim confiados é respondido afirmativamente por Kant com o argumento de que seria autocontraditório querer que depósitos não existissem. O jovem Hegel responde que não há contradição em querer uma situação em que depósitos e propriedade não existam, a não ser, é claro, que tenhamos outros pressupostos sobre necessidades humanas, escassez de recursos, justiça distributiva e afins. A partir unicamente da pura forma da lei moral não se segue nenhuma máxima concreta de ação, e, caso se siga, é porque outras premissas não identificadas foram contrabandeadas no argumento.13 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. de Paulo Quintela, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 223, AK VI:225 (Os Pensadores).
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G. W. F. Hegel, Natural law [1802-1803], trad. de T. M. Knox, introd. de H. B. Acton. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1975, p. 77-78.
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Em vista dessa crítica hegeliana, que ainda hoje influencia as discussões sobre a ética kantiana,14 teóricos morais kantianos oferecem duas linhas de resposta: primeiro, uma parte aceitou a crítica de Hegel de que o procedimento formal de universalização não produz nenhum teste determinante sobre a correção das máximas; admite-se que é preciso pressupor uma concepção minimamente compartilhada de bens e desejos humanos como fins da ação e que os princípios de ação devem ser testados nesse pano de fundo. Essa linha de resposta enfraqueceu a distinção kantiana entre autonomia e heteronomia ao aceitar que os fins da ação possam ser ditados por características contingentes da natureza humana em vez de serem ditados unicamente pela razão prática pura. A lista de “bens básicos” de John Rawls, os quais agentes racionais quereriam a despeito de quaisquer outros bens que também queiram, é o melhor exemplo da introdução de pressupostos materiais acerca de desejos humanos no argumento de universalização. O teste de universalização não seria sobre se queremos ou não tais bens, e sim sobre os princípios morais que guiariam a sua distribuição futura.15 Outros filósofos morais kantianos, notadamente Onora O’Neill e
Para algumas considerações recentes sobre a crítica de Hegel à ética kantiana, ver Jonathan Lear, “Moral objectivity”, In: S. C. Brown (ed.), Objectivity and cultural divergence, Cambridge, uk: Cambridge University Press, 1984, p. 153-177.
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O princípio de universalização kantiano não dita, é claro, qualquer conteúdo específico para os princípios de justiça; ao contrário, esse princípio é operativo na construção da “posição original” enquanto o ponto de observação privilegiado a partir do qual se entra em deliberações acerca de questões de justiça. Cf. Rawls, A theory of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1972.
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Alan Gerwith, recusaram-se a abandonar o programa kantiano puro, e procuraram expandir o princípio de não contradição das máximas ao considerar mais atentamente as características formais da ação racional. O’Neill, por exemplo, distingue entre “inconsistência conceitual” e “inconsistência volitiva” com vistas a diferenciar os tipos de incoerência na ação.16 “A máxima não universalizada,” ela escreve, “incorpora uma contradição conceitual somente se visa objetivos mutuamente incompatíveis, e, desse modo, não se pode, em qualquer circunstância, agir segundo essa máxima com êxito”.17 A inconsistência volitiva, em contrapartida, ocorre quando o agente racional viola o que O’Neill nomeia “princípios da intenção racional”.18 A aplicação da universalização às máximas de ação para testar tanto sua consistência conceitual como sua consistência volitiva evita, argumenta O’Neill, “a escolha sombria entre a trivialidade e o rigorismo implausível”.19 De maneira similar, Alan Gerwith desenvolve a ideia de “condições racionais da ação” com vistas a delas derivar máximas de ação não triviais e intersubjetivamente vinculantes.20
Onora O’Neill, “Consistency in Action”, In: Nelson T. Potter, Mark Timmons (ed.). Morality and universality, Dordrecht, Reidel, 1985, p. 159-186.
16
Ibid., p. 168.
17
Ibid., p. 169.
18
Ibid., p. 169.
19
Ver Alan Gerwith, Reason and morality, Chicago, University of Chicago Press, 1978, p. 48-129.
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Ambas as estratégias têm problemas. No primeiro caso, ao permitir a entrada de pressuposições materiais sobre desejos e natureza humana, corre-se o risco de enfraquecer a distinção entre a teoria moral kantiana e teorias morais de tipo utilitarista ou aristotélico. O resultado é um certo ecletismo na estrutura da teoria. A segunda posição corre um perigo diferente: ao focar exclusivamente nas condições da intenção ou ação racional, como O’Neill e Gerwith fazem, pode-se perder de vista a questão da validade moral intersubjetiva. Afinal, o princípio de universalização kantiano foi formulado para gerar máximas de ação moralmente vinculantes que possam ser reconhecidas por todos. Como Alasdair MacIntyre mostra em sua pungente crítica a Gerwith, a partir da premissa de que eu, enquanto agente racional, exijo que certas condições da ação sejam atendidas, não se segue necessariamente que você tenha uma obrigação de não me impedir de gozar dessas condições.21 As bases dessa obrigação permanecem obscuras, e, no entanto, a exigência da universalização foi pensada precisamente para produzir essas bases. Para colocar nos termos de Apel e Habermas, a análise da estrutura racional da ação de um agente isolado produz uma teoria moral egológica que não pode justificar a validade moral intersubjetiva. Em vez de perguntar o que eu, enquanto agente moral racional isolado, tenciono ou quero sem contradição que seja uma máxima 21
Alasdair MacIntyre, After virtue, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1984, p. 67.
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universal para todos, a teórica da ética comunicativa pergunta: quais princípios de ação podemos todos reconhecer ou concordar como sendo válidos ao empreendermos um discurso prático ou uma busca mútua por justificação? Com essa reformulação, a universalização é definida nos termos de um procedimento intersubjetivo de argumentação orientado para a obtenção de acordo comunicativo. Essa reformulação acarreta uma série de mudanças importantes: em vez de pensar o procedimento de universalização como um teste de não contradição, pensamos a universalização como um teste de acordo comunicativo. Não procuramos o que não seria autocontraditório, mas o que seria mutuamente aceitável por todos. Além disso, há uma mudança do modelo de ação estratégica ou com respeito a fins, de um agente isolado que tenciona um resultado específico, para o modelo de ação comunicativa, que é discurso e ação compartilhados com outros. O que se ganhou com essa reformulação em vista da objeção hegeliana? Será que simplesmente não empurramos o problema de um procedimento para outro? Em vez de derivar princípios morais de algum procedimento de coerência conceitual ou volitiva, não estamos agora simplesmente derivando-os de nossa definição da situação conversacional? Teóricos podem construir ou desenhar conversações para gerar determinados resultados: as condições prévias de uma conversação podem garantir que determinados
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resultados vão se seguir.22 Em um artigo anterior, formulei esse problema da seguinte maneira: ou os modelos de discurso prático e da comunidade ideal de comunicação são definidos tão minimamente a ponto de serem triviais em suas implicações; ou há outras premissas substantivas controversas guiando seu desenho, as quais não pertencem às condições mínimas que definem a situação argumentativa, e, nesse caso, esses modelos são inconsistentes.23 Retornamos à “escolha sombria” entre a trivialidade e a inconsistência (para alterar ligeiramente a acertada formulação de Onora O’Neill). Sugiro que a saída desse dilema é optar por uma construção forte e possivelmente controversa do modelo conversacional que, ainda assim, conseguiria evitar as acusações de dogmatismo e/ou circularidade.24 Penso da seguinte maneira: o que Habermas anteriormente chamou de condições de uma “situação ideal de fala”, e que no ensaio “Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso” é chamado de “pressuposições comunicativas
Cf. Michael Walzer, “A critique of philosophical conversation”, Philosophical forum, v. 21, n. 1/2, p. 182-197, Fall/Winter 1989-1990, esp. p. 185 et seq.; também publicado em Michael Kelly, Hermeneutics and critical theory in ethics and politics, Cambridge, MA, MIT Press, 1990.
22
Seyla Benhabib, “The methodological illusions of modern political theory: the case of Rawls and Habermas”, Neue Hefte für Philosophie, n. 21, p. 47-74, Spring 1982.
23
Desenvolvi esse argumento de modo mais detido em “Liberal dialogue vs. a discourse theory of legitimacy”, In: Nancy Rosenblum (ed.), Liberalism and the moral life, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1989, p. 143-157.
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universais e necessárias do discurso argumentativo”25 implica pressupostos éticos fortes. Essas condições ou pressuposições exigem: 1) que reconheçamos o direito de todos os seres capazes de discurso e ação a serem participantes na conversação moral – o que vou chamar de princípio do respeito moral universal; 2) essas condições também estipulam que dentro dessas conversações cada um dos participantes tenha os mesmos direitos simétricos a diferentes atos de fala, a iniciar novos tópicos, pedir reflexão sobre as pressuposições da conversação etc. – vou chamar essa condição de princípio da reciprocidade igualitária.26 As próprias pressuposições da situação argumentativa têm, assim, um conteúdo normativo que precede a própria argumentação moral. Mas é mesmo possível evitar as acusações de circularidade e dogmatismo? Uma das principais discordâncias entre Apel e Habermas diz respeito precisamente a essa questão da justificação das restrições da conversação moral. Apel sustenta que: Se, por um lado, uma pressuposição não pode ser questionada na argumentação sem autocontradição performativa real, e se, por outro lado, não pode ser fundamentada dedutivamente sem uma petitio principii Jürgen Habermas, “Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso”, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 61-141, esp. p. 109.
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No capítulo 5 traço uma distinção mais clara entre as normas de reciprocidade “formal” e “complementar”.
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lógico-formal, então ela pertence àquelas pressuposições pragmático-transcendentais da argumentação que é preciso sempre (já) ter aceitado caso o jogo de linguagem da argumentação seja significativo.27
Para Apel, o princípio de que todos os seres capazes de discurso e ação são membros potenciais da mesma comunidade de comunicação comigo e que todos os seres capazes de discurso e ação merecem tratamento igual e simétrico são duas dessas condições. Em vista dessa estratégia apeliana de fundamentação última (Letztbegründung), Habermas argumenta que uma justificação tão forte da ética comunicativa pode fracassar e talvez nem sequer seja necessária. Em lugar de considerar as restrições normativas da comunidade ideal de comunicação como sendo “reveláveis” por meio de um ato de autorreflexão transcendental, Habermas argumenta que as consideremos como “pressuposições pragmático-universais” de atos de fala que correspondem ao know-how de agentes “morais” competentes no estágio pós-convencional. Todavia, como Thomas McCarthy assinalou, não há uma descrição unívoca do know-how de atores morais que alcançaram o
Karl-Otto Apel, “The problem of philosophical fundamental grounding in light of a transcendental pragmatics of language”, In: Kenneth Baynes, James Bohman, Thomas. A. McCarthy (ed.), After philosophy, Cambridge, MA, MIT Press, 1987, p. 277.
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estágio pós-convencional de raciocínio moral.28 A descrição de Habermas para esse know-how é uma entre muitas outras, como as de John Rawls e de Lawrence Kohlberg. No estágio de raciocínio moral pós-convencional, reversibilidade, universalidade e imparcialidade, sob alguma descrição, são aspectos do ponto de vista moral, mas o verdadeiro ponto de disputa filosófica é a descrição aceitável ou adequada dessas restrições formais. O apelo à psicologia e ao desenvolvimento morais não nos exime do processo justificatório. Lawrence Kohlberg estava errado ao pensar que o “dever” pode ser deduzido do “ser”. A estrutura formal do raciocínio pós-convencional permite uma série de interpretações morais substantivas e essas interpretações sempre ocorrem ao se pressupor um horizonte hermenêutico de normas e valores que se tornaram aspectos de um mundo da vida moderno. Em oposição à estratégia de Letztbegründung, de Apel, e à de um “argumento transcendental fraco” baseado na reconstrução racional de competências, de Habermas, eu gostaria de defender um “universalismo historicamente autoconsciente”. Os princípios de respeito universal e de reciprocidade igualitária são nossa elucidação filosófica dos constituintes do ponto de vista moral a partir de dentro do horizonte hermenêutico normativo da modernidade. Esses princípios Thomas McCarthy, “Rationality and relativism: Habermas overcoming of hermeneutics”, In: John Thompson, David Held (ed.), Habermas: critical debates, Cambridge, MA, MIT Press, 1982. p. 74.
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não são a única interpretação admissível dos constituintes formais da competência de atores morais pós-convencionais, tampouco são pressuposições transcendentais inequívocas que têm de ser reconhecidas por todo agente racional que faça uma profunda reflexão. Chega-se a esses princípios mediante um processo de “equilíbrio reflexivo”, em termos rawlsianos, por meio do qual alguém, como um filósofo, analisa, refina e julga as intuições morais culturalmente definidas à luz de princípios filosóficos articulados. Ao final desse processo de equilíbrio reflexivo chega-se a uma “descrição densa” das pressuposições morais do horizonte cultural da modernidade. Os passos que levam ao estabelecimento das normas de respeito moral universal e de reciprocidade igualitária podem ser formalizados do seguinte modo: 1. Uma teoria filosófica da moralidade tem de mostrar onde reside a justificabilidade de juízos morais e/ou asserções normativas. 2. Justificar significa mostrar que, se eu e você discutíssemos sobre um juízo moral particular (“foi errado não ajudar os refugiados e deixá-los morrer no mar aberto”) e um conjunto de asserções normativas (“A educação deve ser gratuita para todos durante os primeiros dezoito anos de vida”), poderíamos, em princípio, chegar a um acordo razoável (rationales Einverständnis). 3. Deve-se chegar a um “acordo razoável” sob condições que correspondem à nossa ideia de um debate justo.
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4. Essas regras de debate justo podem ser formuladas como as pressuposições “pragmático-universais” do discurso argumentativo e estas podem ser estabelecidas nos termos de um conjunto de regras procedimentais. 5. Essas regras refletem o ideal moral de que devemos respeitar uns aos outros como seres cujo ponto de vista é merecedor de igual consideração (o princípio do respeito moral universal) e que, além disso, 6. devemos tratar uns aos outros como seres humanos concretos cuja capacidade de expressar esse ponto de vista devemos aprimorar ao criar, sempre que possível, práticas sociais que incorporem o ideal discursivo (o princípio da reciprocidade igualitária). Do modo como reformulei esse programa de justificação fraca historicamente autoconsciente, os passos 5 e 6 são normas morais substantivas. O passo 5 é a norma do respeito universal. Qual é força do “dever” que se liga a ela? Não se chega a esse “dever” mediante uma dedução filosófica dos passos de 1 a 4. Uma estratégia de justificação fraca consiste em mostrar que não há uma única cadeia dedutiva de raciocínio que estabeleça esse princípio, mas que há uma família de argumentos e considerações, cada qual corroborando a centralidade desse princípio como uma norma moral básica. Um dos argumentos que levam à plausibilidade da norma do respeito universal é, com efeito, um argumento “pragmático universal”. Funciona da seguinte maneira: Toda argumentação implica respeito pelos parceiros de conversação; esse respeito pertence à ideia de uma 86
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argumentação justa; ser um parceiro competente nesse tipo de conversação exige, assim, reconhecer o princípio do igual respeito. Nesse sentido, o passo 5 é uma explicitação do conteúdo normativo material da ideia de argumentação, debate justo etc. Note-se, porém, que esse argumento deixa em aberto a questão sobre quem ou quais grupos humanos são dignos de serem considerados como “parceiros de conversação” e quais não são. Ainda falta o passo que leva da especificação das regras de debate e argumentação justos à norma moral material do respeito moral universal por todos. Agora, um segundo argumento que sustenta os ideais de respeito universal e reciprocidade igualitária procede da teoria da ação social. A norma da “reciprocidade” está inserida nas próprias estruturas de ação comunicativa nas quais todos somos socializados, pois a reciprocidade exige que sejamos tratados de modo igual pelos outros na medida em que somos membros de um grupo humano particular.29 Toda ação comunicativa exige simetria e reciprocidade de expectativas normativas entre os membros de um grupo. Com efeito, tornar-se membro de um grupo humano inclui ser tratado de acordo com tal reciprocidade. “Respeito” é uma atitude e um sentimento moral primeiramente adquirido por meio desses processos de socialização comunicativa. As bases do respeito podem ser perturbadas Jürgen Habermas, “Consciência moral e agir comunicativo”, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 190-204.
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caso não haja condições para o desenvolvimento de um sentimento de valor próprio e de apreço dos outros; o respeito pode deixar de ser um aspecto de nossa experiência de vida sob condições de guerra e hostilidade, que levam ao colapso da mutualidade; e, por fim, o respeito pode minguar em uma cultura entregue à indiferença extrema e a formas de individualismo atomizado. Por conseguinte, em um nível, a ideia intuitiva subjacente às normas de respeito universal é antiga e corresponde à “regra de ouro” da tradição – “Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles”. A universalização nos ordena a reverter perspectivas entre os membros de uma “comunidade moral” e a julgar a partir do ponto de vista do(s) outro(s). Essa reversibilidade é essencial para os laços de reciprocidade que unem as comunidades humanas. Todas as comunidades humanas definem alguns “outros significativos” em relação aos quais reversibilidade e reciprocidade têm de ser exercidas – sejam membros de meu grupo de parentesco, minha tribo, minha cidade-estado, minha nação, meus correligionários. O que distingue as teorias éticas “pré-modernas” das “modernas” é o pressuposto destas de que a comunidade moral é coextensiva a todos os seres capazes de discurso e ação e, potencialmente, a toda a humanidade.30 Nesse sentido, a ética comunicativa configura um A questão a essa altura é: como podemos conceitualizar nossas obrigações morais para com os tipos de seres que são ou parcial ou completamente incapazes de discurso e ação? Estou pensando em infantes e crianças pequenas,
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pessoas com deficiência de fala e auditiva, pessoas com deficiência intelectual. Não menos importante é a possibilidade de uma relação ética com a natureza e os seres vivos em geral. Alguns acreditam que o fato de que a teoria comunicativa teve pouco a dizer sobre esses fenômenos é sinal de uma cegueira e de uma aporia essenciais nessa teoria. Ver Micha Brumlik, “Über die Ansprüche Ungeborener und Unmündiger: Wie advocatorischist die diskursive Ethik?”, In: Wolfgang Kuhlmann (ed.), Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 265 et seq. Aqui posso apenas sugerir que caso o princípio de corporificação [principle of embodiedness] seja salientado, e caso seja feita uma distinção adequada entre cognitivismo ético e racionalismo ético, como é sugerido adiante, então está aberto o caminho para uma formulação comunicativa, mas não racionalista, da relação com o corpo, com as emoções e com a natureza. Se a comunicação não for entendida estrita e exclusivamente como linguagem, mas se gestos corporais, comportamento, expressões faciais, mímica e sons são também vistos como modos não linguísticos, porém linguisticamente articuláveis, de comunicação, então a “comunidade ideal de comunicação” estende-se para muito além da pessoa adulta capaz de pleno discurso e ação responsabilizável [accountable action]. Toda mãe ou pai de um bebê sabe que o ato de comunicação com um ser que ainda não é capaz de discurso e ação é a arte de ser capaz de entender e antecipar aqueles sinais corpóreos, choros e gestos que expressam as necessidades e os desejos de outro ser humano, e de agir para satisfazê-los. Toda comunicação com um infante pressupõe contrafactualmente que aquele infante é um ser que deve ser tratado como se tivesse quereres e intenções plenamente desenvolvidos. Eu diria que isso também é verdade em relação a pessoas com deficiência intelectual e com transtornos mentais. Na maternidade, na criação, no cuidado e na educação estamos o tempo todo pressupondo contrafactualmente a igualdade e a autonomia do ser cujas necessidades estamos satisfazendo ou de cujo corpo e mente cuidamos, tratamos ou treinamos. Quando essa pressuposição contrafactual de igualdade falha – não igualdade de capacidades, mas igualdade de pretensões –, o que se segue é uma pedagogia ruim e, do mesmo modo, um cuidado, maternidade ou criação sufocantes, superprotetores ou punitivos. Nesse sentido, há mais uma continuidade entre as práticas do discurso argumentativo entre adultos e as práticas de comunicação não linguísticas do que admitiriam os
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modelo de conversação moral entre membros de uma comunidade ética moderna para os quais as bases teológicas e ontológicas da desigualdade entre seres humanos foram radicalmente colocadas em questão. Não se trata de uma admissão dogmática em favor da modernidade, pois mesmo esse “dogma” da modernidade, se se prefere, pode ser contestado dentro da própria conversação moral. O racista, o sexista ou o fanático podem contestar o princípio de respeito moral universal e de reciprocidade igualitária dentro da conversação moral, mas se quiserem estabelecer que sua posição é a correta, não simplesmente porque é a posição do mais forte, têm de convencer com argumentos. As pressuposições da conversação moral podem ser disputadas dentro da própria conversação, mas, caso sejam suspendidas por completo ou violadas, o que se segue é uso críticos à teoria comunicativa. Em ambos os casos, para que se estabeleça uma comunicação bem-sucedida, é preciso pressupor contrafactualmente a igualdade de pretensões do ser com quem se comunica, é preciso se colocar em relação recíproca perante essas necessidades, pretensões e demandas. Uma questão em aberto é se esse insight concernente aos aspectos não linguísticos, mas linguisticamente articuláveis, da comunicação é também uma base suficiente para elaborar os aspectos éticos da relação com as emoções, com o corpo e com a natureza. Para uma tentativa muito interessante de basear uma ética ecológica no princípio das expressões da natureza e na nossa capacidade para entendê-las (por exemplo, a morte de uma floresta pode ser entendida analogamente à perda de um dos nossos membros corporais; vazamentos de petróleo podem ser pensados como úlceras e lacerações cutâneas), ver o trabalho de Konrad Ott, “Zum Verhältnis von Ökologie und Moral”, apresentado no Seminário de Pós-Graduandos da Faculdade de Filosofia da Universidade de Frankfurt.
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de força, violência, coerção e repressão. Assim se evita a acusação de circularidade: por permitir que as pressuposições da conversação moral sejam questionadas dentro da própria conversação, essas pressuposições são colocadas dentro do escopo da argumentação. Mas, uma vez que se trata de regras pragmáticas necessárias para a continuidade da conversação moral, podemos apenas colocá-las entre parênteses para disputá-las, mas não podemos suspendê-las completamente. Digamos que o jogo virou. Fica por conta do crítico desse universalismo igualitário mostrar, com boas razões, por que alguns indivíduos deveriam ser efetivamente excluídos da conversação moral devido a determinadas características. Agora, defensores do não igualitarismo – homens e mulheres são “por natureza” diferentes e, por isso, devem ter direitos e privilégios diferentes; a raça branca é “por natureza” superior às outras e, por isso, deve receber direitos “superiores” aos de outras raças; praticantes da “única verdadeira” religião estão mais próximos das verdades de Deus e, por isso, devem ter mais autoridade do que praticantes de falsas religiões para decidir sobre assuntos morais coletivos – combinam a esse tipo de alegação também a crença de que essas afirmações podem ser demonstradas como “válidas” mesmo para os grupos aos quais se designa tratamento desigual. Apenas os casos muito extremos de sexismo, racismo e fanatismo religioso consideram vão ou desnecessário qualquer tipo de discussão. Mulheres não deveriam apenas ser tratadas de modo diferente, 91
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mas deveriam “querer” ser tratadas de modo diferente por assentir ao fato de que isso é “natural”; povos não brancos deveriam aceitar voluntariamente a superioridade do homem branco e serem gratos por isso; infiéis deveriam ser convertidos para enxergar o verdadeiro caminho para Deus. Argumentos não igualitários não raro exigem que outros “enxerguem” a validade desses princípios. E aqui reside o paradoxo desse não igualitarismo: para que seja “racional”, esse não igualitarismo deve ganhar o assentimento daqueles que serão tratados de modo desigual; mas conquistar esse assentimento significa permitir a entrada dos “outros” na conversação. Contudo, se esses “outros” podem enxergar a racionalidade da posição não igualitária, também podem disputar sua justiça. A capacidade de assentir implica a mesma capacidade de dissentir, de dizer não. Portanto, ou o não igualitarismo é irracional, isto é, não pode ganhar o assentimento daqueles para os quais se dirige, ou é injusto, porque exclui a possibilidade de ser rejeitado por aqueles aos quais se endereça. Por certo, nosso mundo moral e político é caracterizado mais por lutas até a morte entre oponentes morais do que por uma conversação entre eles. Essa admissão revela a fragilidade do ponto de vista moral em um mundo de poder e violência, mas não se trata de uma admissão de sua irrelevância. Ideologias políticas, assim como formas mais sutis de hegemonia cultural, sempre procuraram tornar plausível a perpetuação de violência e poder para aqueles que 92
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mais sofreram com suas consequências. Quando tal ideologia e tal hegemonia deixam de servir para justificar essas relações, podem se seguir lutas por reconhecimento moral que levam à morte. Como um teórico crítico social, o filósofo se ocupa em desmascarar os mecanismos de perpetuação de ideologias políticas e hegemonia cultural; como um teórico moral, o filósofo tem uma tarefa central: esclarecer e justificar aqueles padrões normativos à luz dos quais essa crítica social é exercida.31 Retomemos uma vez mais a objeção hegeliana: pode uma teoria ética universalista que concebe a universalização na ética como uma conversação moral governada por determinadas restrições procedimentais evitar a “escolha sombria” (O’Neill) entre a trivialidade e a inconsistência? A crítica de Hegel pressupõe, mas não explicita, uma distinção entre a universalização enquanto procedimento de teste e a universalização enquanto procedimento para geração de máximas. 31
O meta-status dessa crítica – se essa crítica carece de ser filosoficamente embasada em algum sistema de normas aceitáveis em geral, ou se pode ser exercida de modo imanente, internamente apelando, criticando, ou explicitando a falsidade das normas de uma determinada cultura, comunidade ou grupo – é o que divide de modo decisivo teóricos sociais como Habermas e Michael Walzer. Também em vista da extensão do acordo substantivo entre os dois sobre a necessidade da reconstrução democrático-radical das sociedades do capitalismo tardio, o status dessas discordâncias metafilosóficas – imanente ou transcendental; relativista ou universalista – merece ser investigado. Para Walzer, ver Interpretation and social criticism, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1987. Ver também o capítulo 7 adiante para uma discussão mais extensa sobre as fragilidades da perspectiva da crítica cultural “interna” ou “situada”.
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Enquanto procedimento de teste da validade intersubjetiva de princípios morais e normas de ação, a ética comunicativa não é nem trivial nem inconsistente; enquanto procedimento para geração de princípios válidos de ação, o modelo da conversação moral é um caso-teste necessário, mas não suficiente, que exige contextualização adequada em cada caso. Em outras palavras, podemos dizer que um curso de ação cujo princípio passou no teste de universalização é moralmente permissível, mas, ao mesmo tempo, afirmar que era a coisa errada a se fazer naquelas circunstâncias. O teste de universalização deveria produzir padrões do que é moralmente permissível e moralmente condenável em geral; no entanto, esses testes de maneira alguma são suficientes para estabelecer o “moralmente bom”, seja no sentido do que é permitido, seja no sentido do que é moralmente meritório em qualquer contexto. Habermas formula o teste de universalização do seguinte modo: “se as consequências e efeitos colaterais, que previsivelmente resultam de uma obediência geral da regra controversa para a satisfação dos interesses de cada indivíduo, podem ser aceitos sem coerção* por todos”.32 O que estamos perguntando não é se, com base nesse procedimento, o teórico moral pode deduzir princípios * [N.T.]: Em português, zwanglos, nesse caso, pode ser vertido como “sem coação” ou “sem coerção”, enquanto em inglês é vertido como freely. Quando freely não aparece em citação direta da obra de Habermas, optei por traduzi-lo como “livremente” [A.C.L.]. 32 Jürgen Habermas, “Notas Programáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso”, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 116, grifo no original [trad. mod. – A.C.L.].
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morais concretos que guiam a ação. A adoção de “todos os conteúdos,” escreve Habermas, mesmo que digam respeito a normas de ação fundamentais, têm de passar a depender de discursos reais (ou de discursos de defesa conduzidos como substitutos deles).33
Ainda que este princípio de universalização (“U”) não tenha sido pensado para gerar princípios concretos ou normas de ação, pode esse princípio servir como procedimento de teste para determinar o que é moralmente permissível ou condenável? Enquanto procedimento de teste, “U” ordena que empreendamos um experimento mental contrafactual no qual entramos em diálogo com todos aqueles que seriam potencialmente afetados por nossas ações. Consideremos algumas máximas morais padrão para avaliar o que se ganhou com essa reformulação. Tome-se o exemplo usado por Kant, “depósitos que nos foram confiados devem ser devolvidos, pois, do contrário, não haveria propriedade.”* A questão relevante é: o princípio “deve Jürgen Habermas, “Notas Programáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso”, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 117 [trad. mod. – A.C.L.]. * [N.T.] Nessa formulação do exemplo do depósito, Benhabib já incorpora a objeção hegeliana. Na Crítica da razão prática (Ak V 27-8) e em Da expressão corrente... (Ak VIII 286-7), Kant refere-se a um depositum ou a um bem (Gut) confiado por outrem para exemplificar a pergunta sobre uma máxima específica poder ser convertida em lei prática universal. É Hegel quem destaca a contradição mencionada por Benhabib e interpreta o depósito especificamente como propriedade (Eingentum). Cf. n. 13 anterior. [A.C.L.] 33
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haver propriedade” satisfaz ao teste de que “as consequências e efeitos colaterais, que previsivelmente resultam de uma obediência geral da regra controversa para a satisfação dos interesses de cada indivíduo, podem ser aceitos sem coerção por todos”? A resposta é que tanto a existência de relações de propriedade como o seu oposto podem ser adotados por atores morais como máxima coletiva de suas ações caso as consequências desses arranjos possam ser livremente aceitas por todos para a satisfação dos interesses de cada um. Em outras palavras, a existência ou não de relações de propriedade não pode ser determinada por meio de uma dedução moral. Contrariamente ao que Kant presumiu, inúmeras formas de relações de propriedade são moralmente permissíveis, contanto que sirvam à satisfação dos interesses de cada indivíduo e sejam livremente aceitas por todos. Kant estava errado ao tentar gerar um imperativo categórico para preservar relações de propriedade; o que está em questão não é a propriedade enquanto tal, mas outros valores morais, como o bem-estar geral e o modo correto de se distribuir recursos escassos. Nesse aspecto, o procedimento de universalização na ética comunicativa se defende da crítica de Hegel a Kant. No entanto, tal como formulado por Habermas, “U” também leva a consequências moralmente perturbadoras e contraintuitivas. Tomemos a máxima “Não infligir sofrimento desnecessário”. Se devemos ou não infligir sofrimento desnecessário é determinado pela possibilidade de todos os concernidos aceitarem livremente 96
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as consequências e os efeitos colaterais que se pode esperar da observância geral de uma norma controversa, em vista da satisfação dos interesses de cada indivíduo. Podemos imaginar uma situação na qual seria do interesse de cada indivíduo e livremente aceito por todos que eles seriam não apenas perpetradores, mas também recebedores de sofrimento desnecessário? A resposta a essa pergunta parece depender de uma equivocidade em relação a “interesses”. Suponhamos que haja sádicos e masoquistas entre nós que interpretam seus interesses como consistindo precisamente na oportunidade de infligir e receber tal sofrimento.34 Podemos dizer Reconheço que ao usar esse exemplo estou convidando o contra-argumento de que essa é uma forma moralista de enxergar os fenômenos de sadomasoquismo, a qual não faz jus às complexidades dessa prática em termos psicossexuais e culturais. A complexidade psicossexual dessa prática não é argumento suficiente contra a imoralidade do sadomasoquismo, na medida em que essa prática viola os princípios do respeito moral e da reciprocidade igualitária entre seres humanos. No entanto, eu concordaria com a posição libertariana, e também mantenho que, desde que se desenrolem com o consentimento explícito de dois adultos e não resultem em “dano cruel e incomum” às partes, essas práticas devem ser toleradas no regime democrático-liberal. Não é da alçada do Estado moderno promover a virtude na vida privada; contudo, o ponto de vista do teórico da ética do discurso tem de ir além da perspectiva do “legislador”, com vistas a uma promoção utópica de modos de interação social e de solidariedade que efetivem a norma da reciprocidade igualitária. Ao argumentar que sadomasoquistas podem estar errados na percepção de seus próprios interesses como residindo na inflicção e recepção de punição física e psicológica, não argumento como um legislador kantiano, mas como uma teórica moral que reconhece que a moralidade é parte de um universo maior de cultura e valores. A ética comunicativa projeta um modo de vida utópico no qual a mutualidade, o respeito e a reciprocidade se tornam a norma entre seres humanos enquanto selves concretos, e não apenas enquanto agentes jurídicos.
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que, nessas condições, Neminem laede (A ninguém prejudiques) deixa de ser um princípio moralmente válido? Em outras palavras, o que parece ser a virtude de “U” no exemplo da propriedade, que é sua indeterminação, é sua fraqueza no segundo caso. Mas o mínimo que uma teoria ética universalista deve fazer é cobrir o mesmo terreno daquilo que Kant descreveu como “deveres negativos”, isto é, deveres de não violar os direitos da humanidade em si mesmo e nos outros. Não obstante, “U” não parece fazer isso. Acredito que a dificuldade é que Habermas conferiu a “U” uma tal formulação consequencialista que sua teoria está agora sujeita aos tipos de argumentos que teóricos deontológicos sempre apresentaram exitosamente contra utilitaristas. Sem algumas restrições mais fortes sobre como interpretar “U”, corremos o risco de regredir diante das conquistas da filosofia kantiana e diante de sua distinção entre deveres positivos e negativos. O imperativo categórico mostra que é moralmente condenável o que vai contra o que Kant chama de “deveres negativos” – não mentir, não ferir, não trapacear, e de forma alguma violar a dignidade da pessoa moral. Deveres morais positivos não podem ser deduzidos somente a partir do procedimento de universalização, mas requerem em sua concretização o juízo moral contextual.35 Como sugeri anteriormente, a versão de “U” da ética comunicativa deve fornecer critérios para distinguir entre o 35
Ver a excelente discussão de Barbara Herman, “The practice of moral judgement”, Journal of Philosophy, p. 414-436, ago. 1985.
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moralmente permissível e o moralmente condenável sem, todavia, ser capaz de produzir critérios adequados da ação moralmente boa, virtuosa ou apropriada para qualquer circunstância. Albrecht Wellmer, Agnes Heller e Otfried Höffe recentemente levantaram críticas mais drásticas à ética comunicativa: argumentam que, mesmo enquanto procedimento de teste para o que é intersubjetivamente permissível, “U” é ou demasiado indeterminado, ou demasiado complexo, ou demasiado contrafactual. Na aguda formulação de Heller: Em uma palavra, se buscarmos orientação para nossas ações aqui e agora na filosofia moral, não obteremos nenhuma orientação positiva a partir da versão habermasiana do imperativo categórico. Ao contrário, o que poderíamos obter é uma limitação substantiva a nossas intuições intelectuais: nós, enquanto indivíduos, só deveríamos reivindicar validade universal para aquelas normas morais que podemos presumir que todos aceitariam como válidas em uma situação ideal de reciprocidade simétrica.36
Agnes Heller, “The discourse ethics of Habermas: critique and appraisal”, Thesis Eleven, n. 10-11, p. 5-17, 1984-1985, esp. p. 7. Ver também Albrecht Wellmer, “Ethics and dialogue: elements of judgement in Kant and discourse ethics”, In: The persistence of modernity, trad. de David Midgley, Cambridge, Polity, 1991; Otfried Höffe, “Kantian skepticism toward the transcendental ethics of communication”, In: Seyla Benhabib e Fred Dallmayr (ed.), The communicative ethics controversy, Cambridge, MA, MIT Press, p. 193-220.
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Albrecht Wellmer escreve: Se interpretarmos “U” como uma explicação de nossa compreensão prévia de validade moral, isso significa que nossas convicções morais e nossos juízos morais devem envolver apenas aqueles juízos cujas consequências e efeitos colaterais – resultantes, para cada indivíduo, da observância geral de uma norma específica – pudessem ser livremente (zwanglos) aceitos por todos. A meu ver, contudo, isso tornaria os juízos morais justificados uma completa quimera (Ein Ding der Unmöglichkeit).37
Heller argumenta que a teoria habermasiana não tem salvação, porque, para todos os efeitos, trata-se de uma teoria de “legitimação, e não de validação”.38 Wellmer recomenda que interpretemos os ideais de “acordo” ou “consenso racional” como princípios reguladores, mas afirma que, na solução de problemas morais reais sob condições morais reais, podemos apenas pensar o que a pessoa razoável, ou aqueles juízes competentes, ou aqueles afetados por nossas ações, diriam caso fossem suficientemente razoáveis, de boa vontade e competentes ao julgar.39
Albrecht Wellmer, “Ethics and dialogue: elements of judgement in Kant and discourse ethics”, In: The persistence of modernity, trad. de David Midgley, Cambridge, Polity, 1991, p. 154-155 (excertos de minha própria tradução do alemão – S.B.). [Ethik und Dialog, Frankfurt, Suhrkamp, 1986, p. 63].
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Agnes Heller, “The Discourse Ethics of Habermas: critique and appraisal”, Thesis Eleven, n. 10-11, p. 8, 1984-1985. Albrecht Wellmer, op. cit., p. 64.
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Eu considero que a resposta de Wellmer enfraquece a distinção entre justificação e contextualização. Ao mesmo tempo que concordo que a contextualização é indubitavelmente crucial para o juízo moral em situações reais, penso que a resposta de Wellmer reduz o teste da validade do juízo moral a uma questão de phronesis. Estou interessada em examinar se há algo, quaisquer diretrizes, no procedimento da ética do discurso que possa colocar uma “limitação substantiva à nossa intuição intelectual”, no sentido de um critério insuficiente, mas necessário. Heller considera que apenas colocar essas limitações seria uma conquista muito pequena para uma teoria moral. Na minha opinião, porém, para uma teoria moral universalista que é autoconsciente do horizonte histórico da modernidade no qual se situa, seria suficiente o bastante lograr uma tal limitação substantiva a nossas intuições. Quero sugerir que, na verdade, “U” é redundante na teoria de Habermas, e que adiciona pouco mais do que uma confusão consequencialista a “D” – a premissa básica da ética do discurso. “D” determina que só podem reivindicar validade aquelas normas que encontrem (ou poderiam encontrar) a aprovação de todos os concernidos em sua capacidade de participantes em um discurso prático. “D” em conjunto com aquelas regras de argumentação que regem os discursos, cujo conteúdo normativo resumi como os princípios de respeito moral universal e de reciprocidade igualitária, são, a meu ver, bastante adequados para servir como o único teste de universalização. 101
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A principal diferença entre minha proposta e a de Habermas é que, para ele, “U” tem o efeito de garantir o consenso. Todos poderiam livremente consentir com algum conteúdo moral desde que seus interesses não fossem violados. Mas a dificuldade das teorias consensuais é tão velha quanto o dito de Rousseau – “on le forcera d’être libre” [“forçá-lo-ão a ser livre”].* O consenso por si só não pode jamais ser critério de algo, seja de verdade, seja de validade moral; antes, é sempre a racionalidade do procedimento para a obtenção do acordo que é de interesse filosófico. Devemos interpretar o consenso não como um objetivo final, mas como um processo para a geração cooperativa de verdade ou de validade. A intuição central subjacente aos procedimentos de universalização modernos não é que todos poderiam concordar ou concordariam com o mesmo conjunto de princípios, mas que esses princípios tenham sido adotados como resultado de um procedimento, seja de raciocínio moral seja de debate público, que podemos considerar como “razoável e equânime”. Não é apenas o resultado do processo do juízo moral que conta, mas é o processo para a obtenção desse juízo que desempenha um papel em sua validade e, eu diria, em seu valor moral. Consenso é um termo enganoso para capturar a ideia central subjacente à ética comunicativa, a saber, a geração processual de acordos razoáveis sobre princípios morais por meio de uma conversação moral em [N.T.] Referência ao Contrato social, I, cap. 7, §8 [A.C.L.].
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aberto. Meu argumento é que essa intuição nuclear, aliada a uma interpretação das restrições normativas da argumentação à luz dos princípios de respeito moral universal e de reciprocidade igualitária, é suficiente para cumprir o que “U” foi pensado para cumprir, mas ao preço de uma confusão consequencialista. Retornemos mais uma vez ao princípio “Não infligir sofrimento desnecessário” para testar esse argumento.40 De acordo com minha formulação, temos de imaginar se eu e todos aqueles cujas ações me afetariam, e por cujas ações eu seria afetado, poderíamos adotar esse princípio de ação ao empreendermos uma conversação moral regida pelas restrições procedimentais de respeito universal e de reciprocidade igualitária. Ao adotar a perpetração de sofrimento desnecessário como norma de ação, porém, estaríamos efetivamente corroendo a própria ideia de diálogo moral. Mas seria absurdo querer adotar como válido ou como correto um princípio de ação – o da Wellmer também discute esse princípio em “Ethics and dialogue”, In: The persistence of modernity, trad. de David Midgley, Cambridge, Polity, 1991, p. 156 et seq. Seu argumento é que, uma vez que a aceitação dessa norma eliminaria precisamente casos como o do direito legítimo à autodefesa e à punição justificada, a ética do discurso nos obriga a pensar o que é moralmente correto apenas em relação a condições ideais contrafactuais, não em relação a condições reais. Wellmer conclui que as condições da ação prenunciadas em “U” podem ser pensadas como aquelas apropriadas para um “reino dos fins”. Mas o fato de que, na vida real, devemos sempre abrir exceções justificadas para tais regras morais gerais pouco tem a ver com a questão sobre nossa teoria moral ser ou não capaz de justificar o que intuitivamente sabemos ser um princípio moral, nesse caso, não infligir sofrimento desnecessário.
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perpetração de sofrimento arbitrário – que prejudicaria ou colocaria em risco a própria possibilidade de uma conversação contínua entre nós. Uma vez que essa conversação contínua envolve a manutenção de relações de respeito universal e reciprocidade igualitária, caso nos empenhássemos na perpetração de sofrimento desnecessário, corroeríamos as próprias bases de nosso relacionamento moral contínuo. Nesse sentido, a universalização não é apenas um procedimento formal, mas envolve também a projeção utópica de um modo de vida no qual reinam respeito e reciprocidade. Há uma consequência interessante aqui: quando transferimos o ônus do teste moral na ética comunicativa do consenso para a ideia de uma conversação moral contínua, começamos a perguntar não o que todos concordariam ou poderiam concordar como sendo moralmente permissível ou condenável enquanto resultado de discursos práticos, mas o que seria permitido ou mesmo necessário do ponto de vista da continuidade e da manutenção da prática da conversação moral entre nós. A ênfase agora é menos no acordo racional e mais na manutenção daquelas práticas normativas e relacionamentos morais nos quais o acordo razoável pode florescer e continuar como um modo de vida.
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O correto e o bem Críticos favoráveis à ética comunicativa persistentemente assinalaram que este projeto formula um modelo de legitimidade política, e não um modelo de validade moral. Perguntar se certos arranjos institucionais normativos seriam ou poderiam ser livremente adotados por todos como sendo do seu interesse comum é precisamente continuar a ideia central das tradições do contrato social e do direito natural moderno de Locke e Rousseau a Kant.41 Enquanto muitos concordam que um princípio como o do consenso racional é fundamental para as ideias modernas de justiça e legitimidade democrática, tantos outros discordam que esse princípio possa servir como um procedimento moral que seria pertinente para guiar a ação e o juízo individuais. De acordo com minha interpretação, o princípio básico da ética do discurso em conjunto com as restrições normativas da argumentação podem servir como “testes substantivos” de nossas intuições morais. Além disso, se não queremos alijar por completo a distinção entre contextualização e justificação na ética, ainda podemos preservar o modelo de uma conversação moral que ocorre sob as restrições de discursos como um teste limitante para nossas intuições e Cf. Albrecht Wellmer, The persistence of modernity, trad. David Midgley, Cambridge, Polity, 1991, p. 194-195; Agnes Heller, “The discourse ethics of Habermas: critique and appraisal”, Thesis Eleven, n. 10-11, p. 9, 1984-1985.
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juízos sobre aquilo que é moralmente permissível ou condenável. Fica claro então que se a ética do discurso é um modelo de legitimidade ou um modelo de validade moral depende das implicações e da serventia que esse modelo tenha para guiar a ação moral e o juízo moral individuais. Precisamente porque penso que, se interpretada adequadamente, a ética do discurso pode ter essas implicações, gostaria de sugerir que a restrição da ética comunicativa unicamente a um modelo de legitimidade política não é convincente. A ética comunicativa promove uma perspectiva universalista e pós-convencional em todas as relações éticas: tem tanto implicações para a vida familiar quanto tem para as legislaturas democráticas. Enquanto alguns críticos à ética do discurso querem considerá-la como um programa de legitimidade política, outros, de uma orientação mais neoaristotélica, argumentam que nenhum princípio de legitimidade pode ser formulado sem a pressuposição de alguma teoria substantiva sobre a boa vida. Bastante alinhados com a crítica de Hegel a Kant, esses aristotélicos contemporâneos, e, em especial, críticos comunitaristas ao liberalismo, afirmam que a própria ideia de uma ética universalista mínima, supostamente neutra diante da multiplicidade de formas de vida éticas, é insustentável. As objeções de Charles Taylor à ética comunicativa
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seguiram essa linha de argumentação.42 Em geral, essa questão vem sendo tratada como a do “correto” versus o “bem”. De saída, é preciso distinguir a versão liberal-comunitarista dessa controvérsia e a controvérsia tal como se coloca para a ética comunicativa. A primeira controvérsia concerne à possibilidade de que, tal como formulados particularmente por John Rawls e Ronald Dworkin, os princípios liberais de justiça sejam “neutros” no sentido de permitir a coexistência de diversas formas de crenças, sistemas de valores e estilos de vida no regime político, ou se esses princípios não apenas pressupõem como privilegiam um modo de vida específico – digamos, um modo de vida individualista, centrado nas virtudes do Estado de Direito às expensas da solidariedade, da privacidade às expensas da comunidade, e da justiça às expensas da amizade. Enquanto liberais continuam a almejar tal neutralidade, comunitaristas insistem no caráter ilusório dessa aspiração liberal.43 Esse debate entre liberais e comunitaristas não pode ser simplesmente estendido à ética comunicativa pela evidente razão de que, ainda que a ética comunicativa tenha inquestionáveis implicações institucionais (cf. p. 127-134 adiante), nem Apel nem
Charles Taylor, “Die Motive einer Verfahrensethik”, In: Wolfgang Kuhlmann (ed.), Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 101 et seq.
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Ver Michael Sandel, “Introduction”, In: Michael Sandel (ed.), Liberalism and its critics, New York University Press, 1984, p. 4 et seq.
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Habermas desenvolveram uma teoria normativa da justiça a partir da ética comunicativa. Quando colocada para a ética comunicativa, a questão do “correto” versus o “bem” assume diversas dimensões que até aqui não foram distinguidas. Em primeiro lugar, temos a pergunta sobre como a distinção entre questões de “justiça” e de “boa vida” deve ser inscrita na ética comunicativa. Habermas formulou essa distinção à luz de certos pressupostos concernentes ao campo de investigação [object domain] adequado para a teoria moral sob as condições da modernidade. Grosso modo, seu argumento é que a teoria ética moderna deve se restringir à articulação de uma concepção universalista mínima de justiça. Todas as outras questões morais que dizem respeito a virtudes, a emoções morais e a condutas de vida são assuntos que pertencem ao âmbito da “vida ética”. Essas questões não são universalizáveis e nem formalizáveis. No próximo capítulo, vou defender que, ao restringir o domínio da teoria moral moderna unicamente a questões de justiça, esse argumento é insustentável. Em segundo lugar, temos o problema de como uma metateoria da justificação moral pode limitar nossas concepções sobre o bem moral. No vocabulário que se tornou familiar a partir de Uma teoria da justiça, de Rawls, podemos dizer que uma ética deontológica – que, como a ética comunicativa, privilegia o “correto” – estabelece certas restrições sobre o que pode ser defendido como concepções de “bem”. Mas como
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é possível justificar essas restrições? Elas não acabam colocando em xeque a neutralidade moral do quadro de referência ambicionado?44 Para responder a essa objeção extremamente importante, eu gostaria de distinguir entre “neutralidade filosófica”, “neutralidade moral” e “neutralidade político-legislativa”. Filosoficamente, a ética comunicativa baseia-se em certos pressupostos epistemológicos, psicológicos e históricos, como foi discutido nas seções anteriores deste capítulo. Não existe justificação “filosoficamente neutra” para uma metaética procedimental do diálogo. Aqui, é preciso adentrar a incursão filosófica e oferecer as melhores, mais convincentes e instruídas razões que se possa pensar para sustentar determinada posição.45 Para uma primeira versão dessa objeção, ver a crítica de Thomas Nagel à “posição original” de Rawls em “Rawls on Justice”, In: Norman Daniels (ed.), Reading Rawls, Oxford, Oxford University Press, 1975, p. 97 et seq.
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Em Patterns of moral complexity, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, Charles Larmore procurou delinear os contornos de uma “justificação neutra da neutralidade política” – sobre como este princípio caracterizou a atitude do Estado liberal com relação a concepções de bem controversas, ver ibid. p. 51-56. Em um artigo posterior, Larmore reconsidera essa posição e sugere que “a neutralidade política é um princípio moral que estipula as condições sob as quais princípios políticos podem ser justificados”, e que, em última instância, essa justificação da neutralidade política é fornecida por uma concepção “moral” que repousa sobre as duas normas de “diálogo racional” e “igual respeito”. Ver Charles Larmore, “Political liberalism”, Political Theory, v. 24, n. 2, ago. 1990, p. 342 e p. 347. Embora eu tenha reservas sobre a concepção restritiva de política, entendida somente nos termos da ação do Estado e suas agências, a qual Larmore compartilha com uma extensa tradição liberal, considero sua discussão nesse último artigo de grande valia para iluminar o problema da “neutralidade” também do ponto de vista da ética comunicativa. Também para o teórico da
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A “neutralidade moral” é uma questão diferente. Aqui o problema é se o que se concebe como correto na ética comunicativa pode acomodar uma variedade de concepções de bem, ou se a ética comunicativa privilegia certas formas de boa vida em detrimento de outras. Alasdair MacIntyre argumentou de modo plausível que a distinção entre metaética e ética substantiva quase sempre é espúria, na medida em que uma metaética filosófica, incluindo uma teoria da justificação moral, tem implicações morais substantivas.46 Essa objeção poderia ser colocada nos seguintes termos: “Uma vez que a sua metateoria de justificação procedimental, concebida como um diálogo que ocorre sob as restrições do discurso prático, define o ‘ponto de vista moral’ à luz de um compromisso mínimo com a justificação discursiva, você não acaba impedindo que sejam consideradas ao menos como formas de bem aquelas concepções de bem nas quais a justificação discursiva não tem qualquer função?” Certamente, o ponto de vista da ética comunicativa foi possibilitado pela cultura da modernidade, na qual a justificação de normas e valores e o seu questionamento reflexivo tornaram-se um modo de vida. A pressuposição sociológica da ética comunicativa é que ética comunicativa, “neutralidade” diz respeito ao tipo de justificação oferecida pelo Estado democrático e por outras instituições públicas para justificar certas normas, leis e instituições. Ver alguns dos primeiros ensaios de MacIntyre: “Ought”, “Some more about ‘ought’”, In: Against the self-images of the age, Notre Dame, University of Notre Dame, 1978, p. 136-157 e 157-173 respectivamente.
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as esferas do direito e da moralidade, por um lado, e a moralidade individual e outras formas de vida ética coletiva, por outro, foram separadas ou diferenciadas umas das outras. Para dar um exemplo simples dessa diferenciação: em um país que goza de um código de direito civil moderno e secular, a decisão de dois indivíduos de se casarem, contanto que não haja impedimentos legais contra sua união, como a falsificação do estado civil anterior, é uma escolha “moral” pessoal na qual outras “considerações éticas” como a religião de um dos parceiros, sua profissão, origem social, estilo de vida etc., podem e geralmente exercem um papel – mas enquanto considerações individuais que não podem e não deveriam ser impingidas pelo sistema jurídico. Ainda que os membros de uma mesma fé tendam a casar-se entre si, não seria “moralmente” nem “politicamente” neutro que o Estado proibisse casamentos entre membros de fés distintas. Em termos hegelianos, no direito abstrato do Estado moderno (legalidade), moralidade e vida ética tornaram-se esferas e práticas distintas. Mediante seus próprios recursos, o indivíduo, enquanto um membro de todas essas esferas, deve integrar as reivindicações de cada esfera para consigo. O questionamento reflexivo dos modos de vida e dos conceitos de bem é institucionalizado com a separação completa de cada uma dessas três esferas sob as condições da modernidade. Essa diferenciação constitui a primeira pressuposição histórico-social da ética comunicativa.
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Há ainda uma outra condição para que a ética comunicativa emergisse como caracterizando o “ponto de vista moral”. Nos termos de Max Weber, o “desencantamento” do mundo, a separação do bom, do verdadeiro e do belo, ou a separação de ciência, ética, estética e teologia, foi iniciada, ainda que não completada, como processos culturais e cognitivos. No mundo moderno, os sistemas abrangentes de valores do passado – os quais integravam tanto as teorias cosmológicas como uma certa compreensão de natureza com a crença de que essas teorias e essa compreensão ditavam uma regulação normativa específica da ordem social, pois a ordem social estava fundada em um tal sistema natural – foram sujeitados a um desmembramento radical. A separação de fato e valor, embora seja uma conquista contingente da ciência moderna, uma vez em curso, coloca encargos adicionais de justificação para as alegações daqueles que tomariam como ponto de partida sua unidade dada.47 Criacionismo e sociobiologia são duas correntes recentes de pensamento que procuram subverter essa diferenciação de valores. Os criacionistas relativizam as pretensões de verdade da ciência moderna ao contrapô-las a convicções religiosas e à palavra das escrituras entendidas como uma fonte de conhecimento válido igualmente digna de crédito. A sociobiologia, quando usada para extrair consequências normativas concernentes a papéis sociais e à divisão do trabalho social, comete o equívoco de atribuir autoridade a pressupostos científicos na esfera das normas morais e políticas. Em ambos os casos, os proponentes dessas posições procuram contornar os processos específicos de validação e argumentação, o uso de regras de evidência e inferência que foram desenvolvidas dentro dessas esferas. O criacionismo viola regras científicas de evidência e inferência, já a sociobiologia confunde a lógica da argumentação moral, que sempre
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A ética comunicativa pressupõe os processos dessa “diferenciação de valores”, que decentraliza nossa visão de mundo ao cognitivamente distinguir entre o conhecimento da natureza e a justificação de normas. Os processos de diferenciação de valores também dão início a tradições de justificação discursiva em esferas de valor independentes. Desde o século XVI, a ciência moderna, por exemplo, assim como a teologia e a crítica de arte, desenvolve métodos e procedimentos para a avaliação de pretensões de validade em seu próprio âmbito. A lógica cumulativa de processos de justificação discursiva “específicos de cada esfera” não pode ser simplesmente subvertida. Esses processos de diferenciação de valores e de diferenciação social são as condições históricas e culturais para a possibilidade de uma ética comunicativa.48 considera regras gerais de ação com respeito a ação futura de uma coletividade, com a lógica dos fatos científicos. Mesmo que todas as comunidades animais conhecidas e outras comunidades primatas na natureza fossem baseadas em uma divisão sexual do trabalho que confinou o cuidado dos jovens às mulheres, não se seguiria que esta divisão do trabalho baseada no gênero seja a única que deveríamos adotar como uma norma de nossa ação coletiva. Para que essa última conclusão seja estabelecida, é preciso primeiramente considerar a questão de se é justo, equânime, moralmente bom e no interesse de todos que a divisão do trabalho baseada no gênero seja organizada desse modo em nossas sociedades. Isso, evidentemente, não significa que as alegações da sociobiologia não possam ser introduzidas como razões em um processo argumentativo. Mas, tomadas por si sós, essas alegações não podem ser a base de validade para normas gerais de ação política e moral sem que primeiro passem no teste de justificação discursiva. O reconhecimento dessa “contingência” histórica e sociológica da ética comunicativa, como prática e como ideal normativo, é o que distingue o tipo de
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universalismo historicamente autoconsciente que defendo dos programas de justificação mais forte de Habermas e Apel. Mesmo diante dessa admissão, um relativista cultural poderia ainda insistir que esta ética simplesmente privilegia as instituições e princípios de sociedades democráticas ocidentais e seculares, e os ostenta como constituintes do ponto de vista moral. A meu ver, um enfrentamento sério das alegações do relativismo cultural deveria encarar pelo menos três tipos diferentes de questões. Em primeiro lugar, há questões metodológicas e epistemológicas sobre a compreensão e a valoração das culturas históricas – tanto das que nos são contemporâneas como das que pertencem ao passado. Eu rejeito a incomensurabilidade radical de quadros de referência conceituais, e sustento que a compreensão do passado, assim como a de outras culturas que nos são contemporâneas, ocorre como um diálogo hermenêutico. Em um diálogo como esse, trazemos nossas próprias pressuposições para a conversação, ajustamos essas pressuposições à luz da resposta do outro, reformulamos ainda outro conjunto de questões, e assim por diante. Cf. as reflexões de grande valia de Bernard Williams sobre os confrontos “reais” e “nocionais” com outras culturas, ao pensar sobre essas questões em Ethics and the limits of philosophy, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1985, p. 160 et seq. Em segundo lugar, há questões sociológicas sobre a relevância mundial da modernidade e o seu desenvolvimento em uma escala mundial desde o século XVII. O relativismo cultural radical, que considera outras culturas como ilhas isoladas de autonomia cultural, é sociológica e historicamente pobre – esse é um argumento que não posso defender plenamente neste livro, mas, de modo simples, a interação em escala mundial entre culturas e civilizações vem acontecendo ao longo da história, e nós ainda temos uma compreensão bastante incompleta dos processos por meio dos quais culturas interagiram e influenciaram umas às outras. O que desesperadamente precisamos da história e das ciências sociais hoje são estudos desses processos interculturais [cross-cultural] de interação, influência e luta. A história de um imperialismo cultural ocidental uniforme, que, ao longo do século XIX, alastra-se pelo mundo como uma doença, é no máximo meia-verdade. O Ocidente e seu(s) “outro(s)” encontraram-se muito antes, e foi apenas com o desenvolvimento do capitalismo e da ciência e tecnologia modernas que o “Ocidente” pôde se afirmar como uma realidade histórico-mundial. Mas a
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redução desse processo complexo a uma história linear do imperialismo ocidental é um produto da ideologia política do final dos anos 1960, a qual acreditava na periferia “pura e inocente” circundando a metrópole “corrupta”. A falência desse tipo de “terceiro-mundismo” nativista tem sido mostrada pelo menos desde as guerras nacionalistas entre China e Vietnã. Uma análise sensata e incisiva sobre o fenômeno do nacionalismo em escala mundial é feita por Benedict Anderson em Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism, Londres, Verso, 1983. [Ed. bras.: “Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo”, trad. de Denise Bottman, São Paulo, Companhia das Letras, 2011.]. Em terceiro lugar, relativistas culturais dão uma resposta fácil a questões jurídicas, políticas e morais extremamente complexas que surgem conforme o mundo se torna um e conforme a humanidade deixa de ser apenas um ideal regulador para se tornar cada vez mais uma realidade. A esse respeito, minha impressão é que as diversas convenções internacionais, da Declaração Universal dos Direitos Humanos aos princípios da Carta 77* assinada pelos Estados europeus, indicam uma consciência normativa em escala mundial que claramente desmente uma posição relativista radical. Filósofos de gabinete do relativismo cultural fariam bem, penso, em considerar o nível existente de cooperação e acordo internacionais ao refletirem sobre o grau em que a comunicação e a colaboração através das culturas se tornou uma realidade – um fato, assim como uma norma. A lastimável confusão em alguns círculos supostamente de esquerda sobre essas questões produziu um triste estado de coisas no qual foi Margaret Thatcher quem primeiro partiu na defesa moral e política de Salman Rushdie, e não os progressistas que procuravam maneiras de apaziguar as sensibilidades “culturalmente relativas” de tiranos, fanáticos e reacionários hostis à liberdade de pensamento e opinião. Ver o comovente artigo de James Fenton sobre Salman Rushdie, “Keeping up with Salman Rushdie”, New York Review of Books, v. 38, n. 6, 28 mar. 1991, p. 26 et seq. * [N.T.] Carta 77 é uma iniciativa civil na então República Socialista da Checoslováquia. O manifesto em favor dos direitos humanos, que dá nome ao movimento, foi assinado por intelectuais, ativistas e artistas, isto é, por membros da sociedade civil, e, diferente do que o texto sugere, não foi assinado por Estados europeus [A.C.L.].
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Agora a questão da neutralidade moral retorna com um novo ímpeto. Christos Mantziaris escreve: A ética comunicativa de Benhabib “estabelece um modelo de conversação moral entre membros de uma comunidade ética moderna para os quais as bases teológicas e ontológicas da desigualdade humana foram radicalmente questionadas”. A circularidade no argumento em defesa da neutralidade política49 torna-se evidente caso a ética comunicativa seja confrontada com a justificação de normas propostas por portadores de diferentes concepções de bem que não foram necessariamente desenvolvidas no quadro de referência da moralidade pós-convencional pressuposta na “comunidade ética moderna”.50
Eu gostaria de sugerir que, embora a ética comunicativa não seja “moralmente neutra”, uma vez que privilegia uma cultura secular, universalista e reflexiva na qual debate, articulação e disputa sobre questões de valores e sobre concepções de justiça e de boa vida tornaram-se um modo de vida, a ética comunicativa possui uma virtude cognitiva singular quando comparada a sistemas de moralidade 49
Embora Mantziaris escreva “neutralidade política”, é mais apropriado chamar o problema em questão “neutralidade moral”. Discuto a neutralidade política no capítulo 3 adiante.
Christos Mantziaris, “On the observation of community: an observation of Kymlicka and Benhabib”, artigo apresentado para discussão no Departamento de Filosofia da J. W. Goethe Universität, Frankfurt am Main, 18 jun. 1990, p. 25.
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convencional, a saber, uma reflexividade abrangente. Por “sistema moral convencional”, entendo aquele no qual uma distinção entre a aceitação social e a validade hipotética passou a ser articulável, mesmo que uma justificação possível de normas seja que “elas são boas e justas porque refletem o nosso modo de vida, o qual é superior aos dos outros”.51 Em contrapartida, enquanto um sistema de moralidade O exemplo clássico aqui é a crítica de Aristóteles à instituição da escravidão entre cidades-estado gregas rivais e sua proposta de que os gregos não deveriam escravizar uns aos outros, mas que não seria moralmente repreensível escravizar os “bárbaros”, isto é, os persas, que não são gregos e cuja língua e costumes ele não compreende. Ver Aristóteles, “The Politics”, In: The Basic Works of Aristotle, ed. e introd. de McKeon, p. 1134, 1255a29 et seq. Se fosse possível imaginar uma conversa entre Aristóteles e um teórico da ética comunicativa, seria do seguinte modo:
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Teórica da ética comunicativa: Aristóteles, considero objetável seu argumento de que é justo escravizar não gregos, pois não vejo como e sobre quais fundamentos morais você pode justificar essa prática. O fato de que vocês acabaram vencendo os persas de modo algum é justificativa suficiente para isso. Já que você aceita que Príamo, Heitor e Electra não deveriam ser escravizados, por que então escravizar Dario? Aristóteles: A escravidão é justa se reflete as distinções de virtude natural entre seres humanos. Assim como a razão deve governar a vontade, e a vontade deve governar os apetites da alma de um homem justo e moderado, é correto que todos aqueles que não possuem a faculdade deliberativa obedeçam àqueles que a possuem. Teórica da ética comunicativa: Como você sabe que eles não possuem a faculdade deliberativa? Ainda que você os chame “hoi barbaroi”, aqueles que não falam mas balbuciam “bar-bar-bar”, eles parecem falar do mesmo modo que nós; eles também se mostram bastante capazes de planejamento militar, e quase derrotaram vocês, gregos. A posse de linguagem e de planejamento estratégico militar não é um indício de que possuem faculdade deliberativa? Aristóteles: Sim, pode ser que tenham. Mas para eles é “sem autoridade”.
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Teórica da ética comunicativa: O que você quer dizer com isso? Eles podem ou não exercer essa faculdade? Aristóteles: Quero dizer que se eles verdadeiramente possuíssem a faculdade deliberativa, e deliberassem corretamente, fariam as coisas da mesma maneira que nós. Eles não têm regime constitucional [constitutional government], tratam suas mulheres como escravos, seus deuses são muito diferentes. Teórica da ética comunicativa: Mas o modo como eles são diferentes de vocês é tão diferente do modo que vocês, gregos, são diferentes entre si? Aristóteles: Sim. Apesar das diferenças em nossas constituições e em algumas de nossas leis, somos todos gregos, compartilhamos os mesmos deuses, a mesma língua. Eles são persas. São tão diferentes que quase não podem ser considerados humanos, pois não fazem as coisas do modo como fazemos. E o modo como fazemos as coisas é justo e é melhor, pois corresponde à ordem da natureza. Teórica da ética comunicativa: Perdoe-me, Aristóteles, mas, de onde falo hoje, é claramente falsa sua afirmação de que, porque corresponde à ordem da natureza, apenas a maneira como os gregos fazem as coisas é humana. Não há “uma ordem da natureza” e “um jeito de fazer as coisas”. Temos aprendido no curso da história que as línguas humanas podem ser traduzidas, que os persas antigos não simplesmente balbuciavam “bar-bar-bar” – como vocês, gregos, pensavam –, mas que conversavam, e que, assim como vocês, tinham cultura, civilização e religião. O fato de que são diferentes, não os torna em nada menos humanos; agora, você pode não considerar bom e justo o fato de que suas mulheres sejam escravas. Eu também não considero (embora deva acrescentar que a relação com as mulheres na Grécia Antiga também não é propriamente motivo de orgulho). Se você pretende demonstrar a eles a superioridade do seu modo de vida, da sua politeia, deve convencê-los com razões, exatamente como Platão procura convencer os outros em seus diálogos. Em todo caso, eu gostaria de assinalar que, mesmo na sua cultura, havia os estoicos, que acreditavam na irmandade universal de todos os homens, e que não aceitariam a alegação de que diferente significa não humano. Embora em alguma medida soe cômico e absurdo, esse diálogo me parece uma caracterização acurada de um ponto de vista moral convencional, de cuja perspectiva os limites do universo social equivalem aos limites do domínio moral enquanto tal. Entre nós e Aristóteles há o inegável horizonte hermenêutico da
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pós-convencional, a ética comunicativa distingue entre modos de argumentação que levam à validade hipotética. Assim, nenhum modo de vida é prima facie superior ao outro, e a validade prima facie que é conferida a determinadas práticas normativas não pode ser dada como certa caso não se possa demonstrar com razões, para os outros que não são membros desse modo de vida e mesmo para céticos dentro desse modo de vida, o porquê dessas práticas serem mais justas e equânimes do que outras. Note-se que o defensor de uma moralidade convencional não está excluído da conversação, mas os tipos de razões que essa pessoa traz para a conversação moral não é suficientemente universalizável do ponto de vista de todos os envolvidos. Suponha que você é membro da dissidência mórmon ou de uma dinastia árabe, e que considera a poligamia como o modo moralmente correto de viver. Os ensinamentos de Joseph Smith ou de Maomé, o Profeta, garantem-lhe que a poligamia é justa. Contudo, você consegue imaginar uma situação na qual possa justificar para outros que não são mórmons ou muçulmanos tradicionalistas (pois não tradicionalistas também não aceitam a poligamia) que a poligamia é a mais justa ordem matrimonial entre os sexos? É muito provável que essa conversação termine no apelo à veracidade última do único ensinamento verdadeiro, à interpretação modernidade, a experiência de todas as guerras, revoluções, revoltas e lutas que decisivamente levaram ao estabelecimento da igualdade humana universal como uma norma, ainda que não como um fato.
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correta da palavra do Corão, ou talvez até mesmo ao fato de que as mulheres são naturalmente inferiores aos homens e que, portanto, devem ser por eles protegidas e devem se submeter à autoridade deles. Agora, como uma defensora da ética comunicativa, sei que aqueles que observam rigorosamente uma moralidade convencional têm uma barreira cognitiva para além da qual não vão argumentar; que vão invocar certos tipos de razões que dividem os participantes da conversação moral entre os de dentro e os de fora, entre aqueles que compartilham seus pressupostos e aqueles que não compartilham. Porque estão dispostos a barrar a conversação e porque têm de se afastar do processo de justificação reflexiva para não reduzir suas visões de mundo a pó, a posição de adeptos de moralidades convencionais não é abrangente e reflexiva o bastante. Eles não conseguem se distanciar de sua própria posição e aceitar que é possível que seja moralmente correto não praticar a poligamia. E aqui está o paradoxo do “ponto de vista moral convencional” em um universo discursivo que experienciou a diferenciação e a reflexividade de valores. Se o adepto de uma moralidade convencional está disposto a admitir que práticas que contradizem sua posição também podem ser morais, então já não é mais um moralista convencional.52 Pois, desse modo, o que decide se uma prática é ou não Para um tratamento clássico dos paradoxos das visões de mundo tradicional e convencional, ver Karl Mannheim, Ideology and utopia, trad. de Louis Wirth and Edward Shils, Nova York, Harcourt, Brace and World, 1936, p. 229 et seq.
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moral não é se essa prática corresponde ao sistema de crenças que lhe é conferido pelo livro sagrado ou pela revelação, mas que há outros critérios mediante os quais isso é estabelecido. Talvez se tenha que conceder que mesmo membros de uma religião diferente que não praticam a poligamia estejam “moralmente corretos”. Mas se se pode conceder isso, então também se pode conceder que há um passo além da moralidade convencional, talvez algum ideal comum de humanidade, do qual esses preceitos morais extraem sua força vinculante. Nesse sentido, a reflexividade moral e o convencionalismo moral não são incompatíveis, mas, em um universo desencantado, limitar a reflexividade é indício de um déficit de racionalidade. Isso significa que apenas um ponto de vista que possa questionar radicalmente todos os procedimentos de justificação, incluindo o seu próprio, pode criar condições para uma conversação moral que seja aberta e racional o bastante para incluir outros pontos de vista, incluindo aqueles que vão se retirar da conversação moral em algum ponto. Nesse sentido, a ética comunicativa “tem um trunfo” diante de outros “pontos de vista morais” menos reflexivos. A ética comunicativa pode coexistir com e reconhecer os limites cognitivos desses pontos de vista, pois não só é ciente de outros sistemas morais como representantes de um “ponto de vista moral” (mesmo que se trate de um que não mais possa ser defendido com bases racionais), mas também é ciente das condições históricas que tornaram seu próprio ponto de vista 121
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possível. Não obstante, essa reflexividade seguramente não é uma defesa de um monismo ou fanatismo moral. Não há razão para que não se respeite um modo de vida que considera que o jogo da justificação moral tem seus limites e que o mais importante não é discutir incessantemente sobre o bem, mas fazer o bem. Ainda assim, temos de admitir que apenas um modo de existência coletiva baseado em normas que aceitem a instituição da justificação moral como um modo de vida pode ser tolerante e pluralista o suficiente para corroborar o direito de todos aqueles que se subtraem desse modo de vida. Desse modo, a ética comunicativa não é “moralmente neutra”, pois mantém que apenas certas posições morais são abrangentes e reflexivas o bastante para gerar normas de coexistência e conduta que seriam aceitáveis para todos em uma sociedade moderna. Com essas considerações, chego ao terceiro sentido de “neutralidade” comumente invocado em debates sobre o correto e o bem, a saber, a “neutralidade política e jurídica”. Em minha discussão sobre a teoria da neutralidade liberal de Bruce Ackerman, no terceiro capítulo, vou distinguir de modo mais explícito os significados de neutralidade jurídica e de neutralidade política. Para o momento, porém, é suficiente dizer que “neutralidade” é um termo um tanto inanimado e disforme para defender os valores de tolerância, pluralidade e diferença que uma teoria deontológica como a ética comunicativa, que restringe nossa concepção do moralmente bom à luz de um procedimento de justificação moral, gostaria de promover. Não se pode entender pelo termo “neutralidade” 122
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que teorias éticas universalistas sejam indiferentes diante de um modo de vida baseado na violência, em comparação com um modo de vida baseado na democracia parlamentar, ou que sejam incapazes de escolher entre um modo de vida calcado nas escrituras, em comparação com um modo de vida que considera as mulheres como seres morais iguais imbuídas do direito e da capacidade para escolher e perseguir suas concepções de bem. O que se deveria entender por “neutralidade” é que as normas incorporadas nas instituições públicas e jurídicas de nossa sociedade deveriam ser abstratas e gerais o suficiente para permitir o florescimento dos mais diversos modos de vida e das mais diversas concepções de bem. É a pluralidade, a tolerância e a diversidade na cultura, na religião, no estilo de vida, nos gostos estéticos e na expressão pessoal que devem ser encorajadas; mas, para encorajar o florescimento desses valores e práticas, é preciso que se seja o defensor entusiasta de uma visão moral de universalismo pós-convencional. Precisamente porque um quadro de referência como esse pode colocar em questão todas as suas pressuposições, e precisamente porque está pronto para submeter ao debate seus princípios fundamentais, esse quadro de referência pode fornecer as bases para a filosofia pública de um regime político pluralista, tolerante e liberal-democrático. Embora não seja apenas uma filosofia pública da justiça, a ética comunicativa compartilha com outras teorias neokantianas, como a de Rawls, a virtude de ser uma teoria da coexistência em conformidade com princípios sobre o moralmente correto. “O pluralismo de escolhas de vida, estilos e buscas morais” talvez seja 123
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uma construção mais apropriada para capturar o sentido de neutralidade “política” e “legislativa” que defendo aqui. Nesse contexto, há, sem dúvida, um dilema que qualquer teórico liberal e qualquer teórico da ética comunicativa têm de enfrentar. Para o defensor da ética comunicativa, mais ainda que para o teórico liberal, sua posição ética envolve um compromisso forte com as normas de respeito moral universal e reciprocidade igualitária. Um compromisso como esse seria também compatível com as consequências do pluralismo, da tolerância e da experimentação acima defendidas? Nem sempre. E nos casos em que há um conflito entre as metanormas da ética comunicativa e as normas específicas de um modo de vida moral, estas devem ser subordinadas àquelas. Em situações de coexistência de diferentes comunidades éticas em um regime político, os direitos humanos universais e de cidadania têm precedência sobre as normas específicas de uma comunidade ética especifica. Para exemplificar: tanto o teórico liberal como o teórico da ética comunicativa concordariam que o Estado democrático moderno deve tolerar a dissidência mórmon, assim como deve permitir a continuidade do modo de vida muçulmano ortodoxo. No entanto, a prática da poligamia, que também é parte do sistema de crenças desses grupos religiosos, não deve ser compactuada pelo Estado.53 Membros desses grupos Em 9 de abril de 1991, o New York Times relatou que polígamos, muitos dos quais mórmons fundamentalistas, começavam a “vir a público” e a fazer pressão
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para receber mais tolerância, mais respeito, maior aceitação pública e, em última análise, proteção legal. A sucursal no estado de Utah da União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union – ACLU), requereu à “sua matriz que tornasse o reconhecimento legal da poligamia uma causa nacional, tal como a dos direitos de gays e lésbicas” (Dirk Johnson, “Polygamists emerge from secrecy, seeking not just peace but respect”, New York Times, 9 de abril de 1991, A22). O argumento usado para defender uma maior tolerância e, em última análise, a legalização da poligamia, não só pela sucursal da ACLU, mas pelos próprios praticantes da poligamia (especialmente mulheres), é uma reivindicação sobre a “diversidade de estilos de vida”. O artigo cita a fala do prefeito Dan Barlow, que tem cinco esposas, de que “nessa época liberal, em que se compactua com estilos de vida alternativos, é o ápice da insanidade censurar um homem por ter mais de uma família”. Também é citada a fala de uma advogada, que é uma entre nove esposas, de que “essa é a maneira ideal para uma mulher ter uma carreira e filhos”. São muitos os pontos dignos de nota nessa história. Primeiro, a própria poligamia está sendo justificada ao público a partir de uma perspectiva pós-convencional. Os mórmons fundamentalistas têm suas crenças religiosas privadas, mas na arena pública do Estado democrático liberal utilizam a linguagem secular da tolerância moral e do reconhecimento dos direitos civis de grupos dissidentes e de minorias – querem ser reconhecidos pelo Estado como “praticantes de um estilo de vida diferente”, e, desse modo, aceitam a pluralidade legítima de estilos de vida no Estado liberal. Segundo, a advogada citada usa uma lógica feminista às avessas ao exaltar a poligamia como um modo de vida que garante a solidariedade feminina no cuidado das crianças, na administração doméstica etc. Sem dúvida, a autoestima dessa mulher está tão distante das considerações bíblicas sobre a fragilidade e a dependência femininas que ela chega a conceber a poligamia quase como uma versão dos anos 1990 de uma “comunidade hippie”! Vemos aqui um caso muito interessante da maneira como as linguagens pública e privada se entrelaçam, e como a moralidade privada religiosa e convencional de indivíduos e seitas acaba sendo infiltrada e influenciada pela moralidade pós-convencional do Estado democrático liberal para produzir uma amálgama que, sociologicamente, pode ser denominada “religiosidade ou tradicionalismo secundário” [secondary traditionalism or religiosity]. Mesmo as práticas e escolhas ditadas pela religião são apresentadas no vocabulário plenamente secular das “escolhas de estilos de vida”.
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não deveriam ganhar reconhecimento legal para a prática da poligamia, ainda que, resguardado o igual consentimento entre homens e mulheres adultos em suas práticas variadas, o Estado não deva perseguir aqueles que praticam a poligamia. Mas, por exemplo, se a esposa de um mórmon denuncia que está sendo mantida em cárcere privado e que seu casamento foi forçado, celebrado sem seu consentimento, o Estado deve defender a vida, a liberdade e a segurança dessa mulher contra o marido acusado. As metanormas da ética comunicativa, como respeito moral universal e reciprocidade igualitária, estão amiúde incorporadas nas constituições das democracias liberais como princípios básicos de direitos humanos, civis e políticos. Esses direitos são os princípios morais mais básicos aos quais se deve recorrer em uma situação de conflito prima facie ético entre diferentes modos de vida. O sistema jurídico moderno faz a mediação entre as pretensões conflitantes de diferentes formas de vida, estilos de vida e visões do bem. Nos casos de um conflito entre os princípios do direito que tornam possível a coexistência entre adeptos de concepções de bem divergentes e princípios de outras concepções mais parciais de bem, que sabemos que não podem ser generalizadas para além de seus adeptos específicos, o correto prevalece sobre aquela concepção particular de bem. A ética comunicativa é uma teoria deontológica na medida em que constrange concepções do bem moral de acordo com certas restrições em procedimentos de justificação moral. Não é “neutra”, 126
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quer no sentido de ter pressuposições filosóficas fracas, quer no sentido de ser indiferente diante de modos de vida concorrentes. Porém a ética comunicativa é reflexiva e permite um questionamento não dogmático de suas pressuposições; é pluralista e tolerante, na medida em que promove a coexistência de todos os modos de vida compatíveis com a aceitação do quadro de referência de direitos universais e justiça. Nesse sentido, também na ética comunicativa, o correto é anterior ao bem, mas o correto em si mesmo promove uma visão da boa vida que nutre as normas de respeito universal e de reciprocidade igualitária. Sobre a distinção entre justiça, moralidade e política A insistência de neoaristotélicos e neo-hegelianos na centralidade de um ethos compartilhado ou de uma Sittlichkeit [eticidade] concreta na conceitualização e resolução de questões morais tem implicações inevitáveis também no domínio da ação política. Se esse ethos compartilhado e essa Sittlichkeit não são vistos como constituindo o horizonte hermenêutico inevitável a partir do qual e perante o qual as questões e os problemas morais são sempre formulados, mas se são considerados como o padrão normativo à luz do qual se avalia as ações individuais, então a moralidade se torna subordinada ao ethos coletivo de uma comunidade.
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Como o jovem Hegel, com um quê saudosista, escreveu a respeito da polis: Enquanto homens livres, os gregos e os romanos obedeciam a leis por eles mesmos formuladas, obedeciam a homens aos quais eles mesmos indicaram para o exercício público, lutaram em guerras nas quais eles mesmos decidiram, entregaram suas propriedades, esgotaram suas paixões e sacrificaram suas vidas por milhares em vista de um fim que também era deles […]. Tanto na vida pública como na vida privada e doméstica, cada indivíduo era um homem livre, um homem que vivia por suas próprias leis. A ideia (Idee) de seu país ou de seu Estado era a realidade mais elevada e invisível para a qual ele se empenhava, que o impelia ao esforço; era a finalidade de seu mundo, ou, aos seus olhos, a finalidade do mundo, um fim que ele encontrava manifesto na realidade de sua vida cotidiana ou para o qual ele mesmo cooperava para manifestação e manutenção.54
Sem dúvida alguma, essa idealização da polis grega tem de ser hoje explicada mais à luz da atitude do romantismo alemão em relação à antiguidade grega do que julgada como um retrato historicamente acurado da sociedade grega. Como o próprio Hegel maduro reconheceu, os direitos de consciência e de bem-estar subjetivo G. W. F. Hegel, “The positivity of the Christian religion”, In: Early theological writings, trad. de T. M. Knox, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971, p. 154.
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estão entre os constituintes da liberdade moral do indivíduo, e as buscas individuais nunca poderão ser completamente integradas dentro de uma totalidade ética concreta. A divisão da vida ética em família, sociedade civil e Estado sob as condições da modernidade também significa que, potencialmente, os ditames da consciência e do bem-estar individuais, por um lado, e as reivindicações das instituições – família, mercado e Estado – podem sempre colidir. Em uma famosa passagem da Filosofia do Direito, Hegel defendeu o direito de anabatistas e de Quakers de recusarem o serviço militar no Estado moderno com o argumento de que o Estado é forte o bastante para permitir a dissensão sem que se esfacele diante dela.55 Tanto em sua teoria das instituições representativas, e, mais ainda, em suas reflexões sobre a guerra e a história mundial, Hegel fez da “autopreservação” do universal o objetivo normativo ao qual a moralidade tem de estar subordinada. A política, compreendida como a esfera governada pelos ditames da autopreservação e do bem-estar das coletividades, é contraposta pelo Hegel maduro ao “universalismo” e ao “cosmopolitismo abstrato” da ética kantiana. Nos debates contemporâneos, é possível reconhecer esse precedente hegeliano em duas acusações frequentemente levantadas contra a ética comunicativa. Primeiro, supõe-se que a ética comunicativa leve a consequências anti-institucionais e fundamentalmente 55
Hegel‘s Philosophy of right, trad. de T. M. Knox, Oxford, Oxford University Press, 1973, p. 168-169, nota adicionada ao parágrafo 270.
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anarquistas na vida política;56 segundo, supõe-se que a ética comunicativa seja “moralista” ao ponto de ser um completo utopismo no domínio da política. Imagine conduzir um discurso prático sobre questões de relações internacionais, segurança estatal, ou mesmo sobre política bancária e fiscal, sob as restrições de uma situação ideal de fala! A relação estratégica e instrumental das partes entre si é tão fundamental na constituição dessas macroinstituições da vida política que o tipo de utopismo moralista advogado por partidários da ética do discurso, assim argumenta o realista político, só vai resultar em confusão e insegurança. No domínio da política, o realismo esclarecido por uma ética da responsabilidade, no sentido weberiano, é a melhor abordagem.57 Diante da acusação de anti-institucionalismo é preciso dizer que, ainda que tenha implicações institucionais, a ética do discurso não é uma teoria das instituições. Se interpretados como princípios, sejam de legitimidade, sejam de validade moral, nem “D” nem “U” podem produzir uma teoria concreta das instituições,
Cf. Robert Spaemann, “Die Utopie der Herrschaftsfreiheit”, Merkur, n. 292, p. 735-752, ago. 1972; Niklas Luhmann e Jürgen Habermas, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie: Was leistet die Systemforschung? Frankfurt, Suhrkamp, 1976.
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Cf. Herman Lübbe, “Are norms methodically justifiable? A reconstruction of Max Weber’s reply”, In: Seyla Benhabib e Fred Dallmayr (ed.), The communicative ethics controversy, Cambridge, MA, MIT Press, p. 256-270.
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mas ambos têm implicações institucionais.58 Pensadores institucionalistas como Lübbe e Niklas Luhmann afirmam que a manutenção de qualquer instituição concreta a partir das demandas do consenso racional tornaria a vida impossível. Dentro das restrições das instituições, os processos decisórios, limitados por espaço e tempo e por recursos escassos, devem ser respeitados. Esperar pelo consenso racional de todos nessas circunstâncias paralisaria a vida institucional ao ponto de um colapso. Essa objeção é justificada, mas confunde níveis. A teoria do discurso não desenvolve um modelo positivo das instituições em funcionamento, as quais, afinal, sempre estarão sujeitas a restrições espaço-temporais assim como a restrições de recursos escassos e pessoais. A teoria do discurso desenvolve um critério normativo e crítico a partir do qual é possível julgar os arranjos institucionais existentes, na medida em que os arranjos em vigor reprimem um “interesse generalizável”. Este apelo ao “interesse generalizável reprimido” não precisa ser entendido à maneira rousseauniana.59 Em sociedades complexas, é pouco provável que 58
Para uma instigante ponderação sobre as implicações da ética do discurso para a teoria crítica dos novos movimentos sociais no Ocidente e em sociedades soviéticas, ver Andrew Arato and Jean Cohen, Civil society and political theory, Cambridge, MA, MIT Press, 1992.
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Abordei de modo detido as dificuldades do conceito de “interesse generalizável reprimido” em Critique, norm, and utopia, Nova York, Columbia University Press, 1986, p. 310 et seq.
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possa haver uma definição e especificação do interesse generalizável reprimido que encontre o consenso de todos. Mas é possível usar esse critério como um padrão de medida crítico por meio do qual a sub-representação, a exclusão e o silenciamento de certos tipos de interesses são descortinados. Em outras palavras, não é tanto a identificação do “interesse geral” que está em jogo, mas o desencobrimento daqueles interesses parciais que se representam como se fossem gerais. O pressuposto é que as instituições podem funcionar como canais de exclusão e silenciamento ilegítimos, e, como vou desenvolver nos próximos dois capítulos, a tarefa de uma teoria do discurso crítica é desenvolver uma presunção moral em favor da democratização radical desses processos. O que institucionalistas negligenciam é que o poder não é apenas um recurso social a ser distribuído, como se fosse pão ou automóveis. Poder é também uma grade sociocultural de interpretação e comunicação. O diálogo público não é exterior às relações de poder, mas é constitutivo dessas relações. Nos modelos de discurso público de uma sociedade há sempre certas restrições implícitas, as quais, tomadas em conjunto, podem ser entendidas como constituindo a “metapolítica do diálogo institucional”.60 Como um teórico crítico, o interesse é identificar no presente essas relações sociais, estruturas de poder e grades socioculturais de comunicação e interpretação Ver See Nancy Fraser, “Toward a discourse ethic of solidarity”, Praxis international, v. 5, n. 4, jan. de 1986, p. 425.
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que limitam a identidade das partes no diálogo, que estabelecem a agenda das questões apropriadas ou não para o debate institucional, e que santificam o discurso de alguns como sendo a linguagem do público em detrimento do discurso de outros. Certamente, este não é o único ponto de vista a partir do qual se pode entender e avaliar as instituições; eficiência, estabilidade e previsibilidade também são critérios relevantes. Não obstante, assumir que todos os discursos de legitimidade são contraprodutivos ou anarquistas é disfarçar autoritarismo político em crítica pós-Esclarecimento ao Esclarecimento. Em seu ensaio “Is the ideal communication community a utopia?” [É a comunidade ideal de comunicação uma utopia?], Karl-Otto Apel aborda amplamente a questão do conteúdo utópico e suas implicações para a ética comunicativa.61 A seu ver, seria utópico, no sentido negativo de extrema irrelevância, exigir que todas as instâncias de ação estratégica, individuais ou coletivas, fossem governadas pelas normas da ação comunicativa, cujo objetivo é alcançar entendimento mútuo e reciprocidade. No entanto, é uma questão tanto moral como política perguntar quais são os limites da ação estratégica coletiva e individual e refletir sobre como mediar as exigências do interesse próprio com os princípios morais de mutualidade e entendimento cooperativo. Uma vez que o problema Karl-Otto Apel, “Is the ideal communication community a utopia?”, In: Seyla Benhabib e Fred Dallmayr (ed.), The communicative ethics controversy, Cambridge, MA, MIT Press, p. 23 et seq.
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é reformulado dessa maneira, toda uma gama de ponderações interessantes começa a surgir. A oposição rígida entre utopismo político e realismo político deve ser rejeitada. A ética comunicativa antecipa estratégias não violentas de resolução de conflitos e, do mesmo modo, encoraja métodos cooperativos e associativos de resolução de problemas. A projeção de instituições, práticas e modos de vida que promovem estratégias de resolução de conflitos não violentas e métodos associativos para resolução de problemas é uma questão tanto de imaginação política como de fantasia coletiva. Longe de ser utópico no sentido de ser irrelevante, em um mundo de completa interdependência entre povos e nações, no qual as alternativas estão entre a colaboração não violenta e a aniquilação nuclear, a ética comunicativa pode abastecer nossas mentes com a dose suficiente de fantasia para pensarmos para além das velhas oposições entre utopia e realismo, contenção e conflito. Desse modo, mesmo hoje, ainda podemos dizer: “L’imagination au pouvoir!” [“A imaginação no poder!”]. Sobre o problema do caráter e da motivação moral Desde Kant, uma das principais fragilidades das teorias éticas cognitivas e procedimentais é o tratamento reducionista das bases emocionais e afetivas do juízo e da conduta morais. As teorias éticas neokantianas do século XX em larga medida rejeitaram a psicologia 134
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moral dualista de Kant e o seu tratamento repressivo da sensualidade e das emoções, sem deixar de conservar a distinção entre “ação feita por dever” e “ações autointeressadas”. Não obstante, a rejeição do tratamento kantiano das bases emocionais e afetivas da ética não redundou em uma atenção renovada para essas questões. Foi só recentemente que Amelie Rorty, Martha Nussbaum, Annette Baier e Lawrence Blum, do lado estadunidense do oceano, e Ursula Wolff, na Alemanha, assim como teóricas morais feministas, como Virginia Held e Sara Ruddick, desenvolveram um rico e significativo conjunto de obras que analisou as emoções morais e o caráter moral.62 Da parte daqueles que defendem a ética comunicativa, será que o descaso até agora com essa questão aponta não apenas para um ponto fraco na teoria, mas para um ponto inteiramente cego? Eu gostaria de sugerir que com muita frequência o cognitivismo ético é confundido com o racionalismo ético, e que a negligência com as bases afetivas e emotivas da ética é um resultado do Cf. Amélie Rorty, “Community as the context of character”, In: Mind in action: essays in the philosophy of mind, Boston, Beacon Press, 1988, parte 4, p. 271-347; Martha Nussbaum, The fragility of goodness, Cambridge, Cambridge University Press, 1986; Annette Baier, “What do women want in moral theory”, Nous, n. 19, p. 53-63, 1985; id. “Hume: The women’s moral theorist?”, In: E. F. Kittay e Diana T. Meyers (ed.), Women and moral theory, New Jersey, Rowman and Littlefield, 1987, p. 37-56; Lawrence Blum, Friendship, altruism and morality, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1980; Ursula Wolff, Das Problem des moralischen Sollens, Berlin, de Gruyter, 1983; Virginia Held, “Feminism and moral theory”, In: Kittay e Meyers (ed.), Women and moral theory, op. cit.; Sara Ruddick, Maternal thinking, Boston, Beacon Press, 1989.
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“racionalismo” estreito de boa parte das teorias éticas neokantianas. Por “cognitivismo ético” compreendo a visão segundo a qual juízos e princípios éticos têm um cerne cognitivamente articulável e que não são meros enunciados de preferências, tampouco meros enunciados de gosto. Juízos e princípios éticos implicam pretensões de validade do tipo “X é correto” (onde X se refere a um princípio de ação ou a um juízo moral), o que significa que “Posso justificar para você com boas razões por que se deve respeitar, apoiar, concordar com X”. Nesse sentido, o cognitivismo ético está em oposição ao decisionismo, que reduz esses princípios e juízos a um “eu quero” que não pode ser ulteriormente questionado. O cognitivismo ético também está em oposição ao emotivismo ético, que confunde asserções como “É errado abusar sexualmente de crianças” com afirmações como “Gosto de sorvete Häagen-Dasz”. Em contrapartida, por “racionalismo ético” entendo uma posição teórica que considera os juízos morais como cerne da teoria moral e que, além disso, ignora que o self moral não é um geômetra moral, mas um ser corporificado, finito, passível de sofrimento e emotivo. Nós não nascemos racionais, mas adquirimos racionalidade por meio de processos contingentes de socialização e formação da identidade. Neoaristotélicos e feministas argumentaram que fomos crianças antes de sermos adultos, que, enquanto crianças, só pudemos sobreviver e nos desenvolver dentro de redes de dependência com os outros, e que essas redes de dependência constituem os 136
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“vínculos morais” que continuam a nos atar mesmo quando somos adultos morais. Nos termos de Virginia Held, ao ignorar a genealogia do self moral e o desenvolvimento da pessoa moral a partir de redes de dependência, teóricos universalistas costumam enxergar o agente moral como o homem adulto, chefe de família, que transaciona no mercado ou no regime político com outros que são iguais a ele.63 Desde Rousseau, a demanda tem sido a de tornar l’homme pleno novamente, tornando-o ou um Burgher completo ou um citoyen. O enviesamento “racionalista” das teorias universalistas na tradição kantiana tem pelo menos duas consequências. Ao ignorar ou mesmo ao abstrair os aspectos inseridos, contingentes e finitos dos seres humanos, essas teorias são cegas à variedade e riqueza, assim como à importância, do desenvolvimento das emoções e do caráter. Esses aspectos são entendidos como processos que antecedem a “genealogia” do self moral adulto; parecem constituir o pano de fundo turvo e sombrio, e, em geral, materno, do qual emerge a luz da razão. Essa negligência com as origens contingentes da personalidade e do caráter morais também leva a uma visão distorcida sobre determinadas relações humanas e sobre a textura moral dessas relações. Teóricos éticos universalistas e procedimentalistas costumam confundir o ideal moral de autonomia com a visão do self como Virginia Held, “Feminism and moral theory”, In: Kittay e Meyers (ed.), Women and moral theory, New Jersey, Rowman and Littlefield, 1987, p. 114 et seq.
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um “cogumelo” (Hobbes).64 Longe de ser uma descrição do “ponto de vista moral”, as abstrações do estado de natureza assim como as noções da posição original são, no mais das vezes, projeções do ideal de autonomia moral que reflete apenas a experiência do homem chefe de família. Mas vamos proceder com cautela aqui: não estou argumentando que não seja possível uma articulação verdadeiramente universalista do ponto de vista moral, a qual inclua as experiências de mulheres e crianças, mães e irmãs, assim como de irmãos e pais. A meu ver, a cegueira de gênero de boa parte das teorias universalistas contemporâneas não compromete o universalismo ético enquanto tal, apenas mostra a necessidade de julgar o universalismo contra seus próprios ideais e de forçá-lo a deixar claro seus pressupostos injustificados. As atuais construções do “ponto de vista moral” privilegiam de modo tão unilateral ora o homo economicus, ora o homo politicus, que excluem de seu alcance todas as relações familiares e as outras relações pessoais de dependência. Enquanto tornar-se um adulto autônomo significa declarar independência vis-à-vis essas relações, o processo de amadurecimento moral não precisa ser tratado nos termos do modelo fictício do rapaz do século XIX que sai de casa para se tornar, “do nada”, um self-made man no mundo imenso e selvagem. A autonomia moral também pode ser entendida como Discuto o enviesamento de gênero nas concepções modernas de autonomia em “O outro generalizado e o outro concreto”, capítulo 5, adiante.
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crescimento e mudança, sustentada por uma rede de relações. As construções modernas e contemporâneas do ponto de vista moral são como lentes distorcidas de uma câmera: se você focar muito mal, a cena à sua frente não só se torna turva como pode perder todos os contornos, ao ponto de se tornar irreconhecível. Do mesmo modo, a construção daqueles procedimentos morais que têm de agir como “limites substantivos a nossas intuições” não deve estar tão fora do foco que, ao olhar através deles, perdemos os contornos e a textura morais dessas relações pessoais. A visão moral é uma virtude moral, e a cegueira moral é a incapacidade para enxergar a textura moral da situação com a qual uma pessoa se defronta.65 Desde o século XVIII, o racionalismo ético promove uma forma de cegueira a respeito da experiência e demandas morais de mulheres, crianças e “outros não autônomos” e, do mesmo modo, promove um manuseio grosseiro da textura do pessoal e do familial. Os pontos de vista do “outro generalizado” e do “outro concreto”, que serão desenvolvidos adiante, são necessários para expandir o universalismo moral e cognitivo para além de suas limitações racionalistas. A ética comunicativa é, a meu ver, uma forma de cognitivismo ético que até agora foi apresentada como uma forma de racionalismo ético. A afirmação de que juízos sobre justiça constituem o Amélie Rorty, “Virtues and the vicissitudes”, In: Mind in action: essays in the philosophy of mind, Boston, Beacon Press,1988, p. 314 et seq.
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núcleo duro de toda teoria moral é um caso particular desse racionalismo (ver adiante p. 161 et seq., p. 372 et seq.). Como vou argumentar no próximo capítulo, essa distinção rígida entre juízos de justiça e de boa vida não se sustenta nem mesmo do ponto de vista das restrições de uma teoria do discurso. Além disso, o privilégio de juízos morais e a negligência com as emoções e o caráter morais também não se sustentam. Há uma curiosa inconsistência aqui. A teoria da competência comunicativa desenvolve uma concepção pós-Esclarecimento de razão e enxerga a razão como a aquisição contingente de seres capazes de linguagem e ação para articular e sustentar pretensões de validade intersubjetivas.66 A teoria da ética comunicativa não raro parece perpetrar as ilusões do Esclarecimento sobre o self moral racional como um geômetra moral. Se é esse o caso, como é possível sustentar que o modelo de um diálogo moral universalista, concebido de acordo com as restrições formais dos discursos, pode servir como uma versão defensável do “ponto de vista moral”? Minha resposta é que, se não enxergarmos esses discursos em termos legalistas, como se articulassem o ponto de vista de “outros generalizados” portadores de direitos, e se os compreendemos como a continuação das conversações morais ordinárias nas quais procuramos lidar com, prezar e compreender o Ver especialmente as reflexões de Herbert Schnädelbach em “Remarks about Rationality and Language”, In: Seyla Benhabib e Fred Dallmayr (ed.), The communicative ethics controversy, Cambridge, MA, MIT Press, p. 270 et seq.
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ponto de vista de outros concretos, não temos de nos submeter às lentes distorcidas do universalismo procedimental.67 Argumentar que os ideais contrafactuais de reciprocidade, de igualdade e da “força suave da razão” estão implícitos nas próprias estruturas da ação comunicativa é argumentar que o “ponto de vista moral” articula de modo mais preciso aquelas estruturas implícitas de discurso [speech] e ação dentro das quais a vida humana se desdobra. Cada vez que dizemos a uma criança: “E se as outras crianças te empurrassem na areia, como você se sentiria?”; e cada vez que dizemos a uma companheira ou companheiro ou a um familiar: “Não sei se entendi corretamente o que você disse. Você quis dizer que...”, estamos tomando parte em conversações morais de justificação. E se estou correta ao afirmar que nosso objetivo é o processo desse diálogo, conversação ou compreensão mútua, e não o consenso, então a teoria discursiva pode representar o ponto de vista No capítulo 3, “Modelos de espaço público: Hannah Arendt, a tradição liberal e Jürgen Habermas”, e no capítulo 4, “Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt”, examino melhor essas questões. Minha posição é que é inadequado restringir a ética do discurso unicamente ao ponto de vista de questões públicas sobre justiça, como frequentemente faz Habermas; mas, por outro lado, também não penso que seja defensável uma ética restrita ao ponto de vista de outros concretos, sem os princípios universalistas que sustentam a justiça em sociedades modernas. Argumento em favor de uma mediação das perspectivas do outro generalizado e do outro concreto ao investigar de que modo um ponto de vista pós-convencional e universalista poderia formar normas públicas de coexistência tanto quanto normas privadas de amor, cuidado e amizade.
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moral sem ter que invocar a ficção do homo economicus ou do homo politicus. Saber como sustentar uma relação humana contínua significa saber o que significa ser um “eu” [I] e um “mim” [me], saber que eu sou um “outro” para você e que, do mesmo modo, você é um “eu” para si mesmo e um outro para mim. Hegel chama a essa estrutura “reconhecimento recíproco”. Ações comunicativas são ações por meio das quais sustentamos essas relações humanas e por meio das quais praticamos a reversibilidade de perspectivas implícita nas relações humanas adultas. O desenvolvimento dessa capacidade de reverter perspectivas e o desenvolvimento da capacidade de assumir o ponto de vista moral estão intimamente ligados. Em última análise, a universalização exige que pratiquemos a reversibilidade de perspectivas estendendo-a ao ponto de vista da humanidade. Essa capacidade é essencial para que se seja um bom parceiro na conversação moral e é também favorecida pela própria prática da conversação moral. Na conversação, preciso saber como escutar, preciso saber como entender seu ponto de vista, preciso aprender a representar para mim o mundo e o outro tal como você os enxerga. Se eu não puder escutar, se não puder entender, e se não posso representar, a conversação termina, redunda em uma contenda ou talvez nunca comece. A ética do discurso projeta essas conversações morais, nas quais o reconhecimento recíproco é exercido, até uma comunidade utópica de humanidade. Mas a capacidade e a disposição [willingness] dos indivíduos para tanto começa com a 142
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admoestação dos pais à criança: “E se os outros jogassem areia no seu rosto ou te empurrassem na piscina, como você se sentiria?”. Julgar em contexto versus rigorismo baseado em princípios Aristóteles considerava a phronesis, ou a sabedoria prática concernente aos particulares, como a conquista suprema da paideia e do caráter moral. Uma crítica comum às teorias éticas de matriz kantiana é que substituem a arte do juízo moral por um rigorismo ético de princípios.68 Por justificável que seja essa crítica, a discussão acerca do juízo moral por ambos os grupos concorrentes nesse debate não avançou muito. A metáfora do “arqueiro acertando o alvo”, a linguagem do discernimento e da cegueira morais, ainda é predominante em muitos dos tratamentos recentes dessa questão. Se podemos registrar uma certa impaciência com neoaristotélicos a esse respeito, é preciso também admitir que a distinção entre “justificação” e “contextualização”, tal como elaborada por Apel e por Habermas, não pode eximir os teóricos do discurso da análise sobre o que é que fazemos quando presumidamente 68
Para um recente tratamento da crítica hermenêutica da teoria ética desse ponto de vista, cf. Ronald Beiner, “Do we need a philosophical ethics? Theory, prudence and the primacy of ethos”, Philosophical forum, v. 20, p. 230 et seq., n. 3, Spring 1989.
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contextualizamos princípios morais e sobre como essa atividade se relaciona com o julgar [work of judging].69 Obviamente, há uma diferença entre a aplicação contextual de uma receita de bolo em nossas cozinhas, em vista dos ingredientes e dos utensílios de que dispomos, e a chamada “contextualização” de princípios morais. Para que o modelo discursivo possa atuar como um “limite substantivo a nossas intuições” sobre o que é moralmente permissível ou condenável, é preciso mostrar como o modelo procedimental da conversação moral desenvolvido até agora está envolvido no processo de juízo moral. Eu gostaria de sugerir que se há certas habilidades morais e cognitivas envolvidas na aquisição de juízos perspicazes, adequados, sensíveis e elucidativos, essas habilidades guardam uma “familiaridade” com as habilidades e as virtudes conversacionais envolvidas na prática contínua do discurso e do diálogo morais. Há uma exigência cardinal do juízo contextual que, de Immanuel Kant a Hannah Arendt, foi sugerida pela maior parte dos autores que abordaram o problema do juízo moral, e esta é a capacidade
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Cf. Jürgen Habermas,“Consciência moral e agir comunicativo”, Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 209 et seq., no qual os trabalhos de Norma Hann e Carol Gilligan são discutidos; Apel, “Kann der postkantische Standpunkt der Moralität noch einmal in substantielle Sittlichkeit ‘aufgehoben’ werden?”, In: Dirskurs und Verantwortung, Frankfurt, Suhrkamp, 1988, p. 103 et seq.
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para, nas palavras de Hannah Arendt, o “pensamento representativo”.70 Na descoberta da “mentalidade alargada”, feita por Kant em sua teoria do juízo reflexionante, Arendt divisou um modelo para o tipo de validade intersubjetiva cujo juízo tinha de ser submetido ao domínio público. O juízo envolve a capacidade de representar para si mesmo a multiplicidade de pontos de vista, a variedade de perspectivas, as camadas de significado que constituem uma situação. Essa capacidade representativa é crucial para o tipo de sensibilidade a particulares que a maioria concorda ser central para o juízo bom e perspicaz. Quanto mais pudermos identificar os diferentes pontos de vista a partir dos quais uma situação pode ser interpretada e deslindada, mais teremos sensibilidade às particularidades das perspectivas envolvidas. Noutros termos, o juízo envolve certas habilidades “interpretativas” e “narrativas”, as quais, por sua vez, implicam a capacidade para exercitar uma “mentalidade alargada”. Essa mentalidade alargada pode ser descrita precisamente como o exercício da reversibilidade de perspectivas determinado pela ética do discurso. A ligação entre o modelo universalista de uma conversação moral e o exercício do juízo moral é a capacidade para reverter perspectivas morais, ou o que Kant e Arendt chamaram de “mentalidade alargada”. Em “Juízo e os fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt”, vou discutir de modo mais detido Ver Hannah Arendt, “The crisis in culture”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Nova York, Meridian, 1961, p. 21-22.
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por que as habilidades narrativas e interpretativas envolvidas no juízo implicam a reversibilidade de perspectivas morais. O que procurei sugerir até aqui é que, se entendemos os discursos como conversações morais nas quais exercitamos a reversibilidade de perspectivas, seja por efetivamente escutar a todos os envolvidos, seja por representar imaginativamente para nós mesmos as muitas perspectivas de todos os envolvidos, então esse procedimento é também um aspecto das habilidades de imaginação e narrativa morais que estão envolvidas no juízo moral, o que mais estiver envolvido. Não há incompatibilidade entre o exercício da intuição moral guiada por um modelo igualitário e universalista de conversação moral e o exercício do juízo contextual. Justamente ao contrário, os tipos de habilidades interpretativas e narrativas que são essenciais para o bom juízo, caso não sejam guiadas por princípios morais, podem também facilmente ser usados para propósitos “amorais”. O exercício do bom juízo pode também significar a manipulação de pessoas – presumivelmente, bons administradores, políticos, terapeutas, estrategistas, trabalhadores sociais e mesmo professores de crianças pequenas, todos exercem “bom juízo”, nem sempre em prol da reciprocidade moral ou com respeito ao aprimoramento da integridade moral daquele sobre o qual tal juízo é exercido. O juízo moral por si só não é a totalidade da virtude moral. Também aqui precisamos de um limite substantivo a nossas intuições: apenas o juízo guiado pelos princípios de respeito moral universal e reciprocidade igualitária é “bom” juízo moral, no 146
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sentido de ser eticamente correto. Juízos que não são limitados por esses princípios podem ser “brilhantes”, “precisos”, “perspicazes”, mas também podem ser imorais ou amorais. Isso não significa que em um universo fragmentado de valores não seja preciso fazer, em não poucas situações, um malabarismo entre princípios morais e outros fins políticos, artísticos ou administrativos. As teorias kantianas prestaram pouca atenção a essa “fragmentação de valores” e às consequências que uma afinação e um balanceamento de nossos compromissos morais com outros valores têm para a condução de nossas vidas. Aqui atingimos uma fronteira em que a teoria moral desemboca em uma teoria mais ampla de valores, e, eu diria, na cultura em geral. A moralidade é um domínio central do universo de valores que define as culturas, e são as culturas que fornecem padrões motivacionais e interpretações simbólicas à luz dos quais os indivíduos pensam as histórias narrativas, projetam suas visões de boa vida, interpretam seus “dados”, e assim por diante. Desse modo, uma teoria moral é limitada, por um lado, pelas macroinstituições de um regime político, pela política, administração e mercado, dentro dos limites nos quais as escolhas concernentes à justiça são feitas. Mas, por outro lado, a teoria moral é limitada pela cultura, o repertório de interpretações da boa vida, as projeções das visões de felicidade e realização e os padrões de personalidade e socialização que nela encontramos. Esses dois domínios formam o contexto ético mais amplo do qual a moralidade não é senão um aspecto. Porém a relação entre a moralidade e 147
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esse contexto ético amplo não é o que os neoaristotélicos e o jovem Hegel gostariam que pensássemos. Nas condições da modernidade, como o velho Hegel sabia, o ponto de vista moral sempre julga as instituições das quais é uma parte; e o indivíduo moral moderno exerce autonomia ao se distanciar das interpretações culturais dadas dos papéis sociais, das necessidades e das concepções de boa vida. Nesse sentido, a disputa entre teóricos do discurso e neoaristotélicos e neo-hegelianos está no coração de uma disputa sobre a modernidade e sobre se a teoria moral moderna desde Kant é cúmplice no processo de desintegração da personalidade e da fragmentação dos valores que se supõe ser a nossa condição geral hoje. O próximo capítulo, “Autonomia, modernidade e comunidade: comunitarismo e teoria crítica social em diálogo”, trata dessa questão mais ampla sobre a modernidade e seus descontentes. Este capítulo foi originalmente escrito como posfácio para The communicative ethics controversy, ed. de Seyla Benhabib e Fred Dallmayr, Cambridge, MA, MIT Press, p. 330-369, sob o título “Communicative ethics and contemporary controversies in practical philosophy”. Foi republicado com pequenas revisões em Philosophical forum, edição especial sobre Hermenêutica em Ética e Teoria Social, organizador convidado Michael Kelly, v. 21, n. 1-2, 1989, p. 1-32. A atual versão foi reescrita no contexto do presente volume. Gostaria de agradecer aos meus colegas Kenneth Baynes e Dick Howard por seus comentários e críticas a uma versão anterior deste artigo.
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Autonomia, modernidade e comunidade: comunitarismo e teoria crítica social em diálogo A teoria política e o desencantamento com a modernidade Max Weber caracterizou a emergência da modernidade no Ocidente como um processo de “racionalização” e “desencantamento”.1 Particularmente na última década, essa concepção de modernidade como um processo de “desencantamento” foi substituída por um desencantamento com a própria modernidade. Se em algum momento as democracias industriais ocidentais “modernizadas” se consideraram o padrão normativo por meio do qual se mediria o desenvolvimento evolucionário de outras sociedades, hoje se propaga a visão de que a própria modernidade, longe de ser um padrão de medida normativo, é um estágio histórico a ser superado no caminho para uma sociedade “pós-moderna” ou “pós-industrial”. Como Claus Offe sugeriu, essa mudança de perspectiva alterou o contexto científico-social no qual atualmente se encontra o termo modernidade. A questão de Max Weber, “qual cadeia de Max Weber, “Science as a vocation”, In: From Max Weber: essays in sociology. H. H. Gerth e C. W. Mills (ed. e trad.), Nova York, Free Press, 1974, p. 155.
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circunstâncias conduziu ao fato de que justamente no Ocidente, e somente no Ocidente, apareceram fenômenos culturais que, todavia – ou ao menos assim gostaríamos de pensar –, repousam em uma linha de desenvolvimento que tem significado e validade universais?”,2 foi substituída por uma atitude mais cautelosa e ambígua com relação a nossa própria sociedade. A ironia dessa modificação, tal como enxerga Clauss Offe: não é tanto que o olhar esteja afastado dos “outros” ou da história, e esteja mirando as próprias condições contemporâneas e estruturais, mas sim que a situação das sociedades “modernas” pareça tão bloqueada, carregada de mitos, paralisias, e restrições ao desenvolvimento, quanto certa vez diagnosticou a teoria da Max Weber, The protestant ethic and the spirit of capitalism, trad. de Talcott Parsons, Nova York, Scribners, 1958, p. 13. A ambivalência na maneira como Weber coloca esta questão dificilmente pode ser ignorada: por um lado, ele qualifica a “inevitável e justificável” natureza dessa interrogação com a observação parentética de que “nós”, filhos da Kulturwelt europeia, “gostaríamos de pensar” que esses desenvolvimentos têm significado e validade universais. Com isso, ele sugere que essa interrogação é muito mais consequência de nossa perspectiva, que é apenas nosso “interesse cultural” que nos motiva a colocar essa questão. Por outro lado, esse perspectivismo nitidamente contrasta com o universalismo expresso no corpo principal do texto: é “inevitável e justificável” que problemas da história universal sejam examinados sob essa luz. A tensão entre as posições universalista e perspectivista denunciada por essa questão percorre o corpus dos escritos de Weber sobre racionalidade e racionalização. Modifiquei a tradução de Talcott Parsons, seguindo o original em alemão [S.B.]. Ver Max Weber, “Die Protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus”, In: Gesammelte Aufsätze zur Religionsoziologie. J. Winckelman (ed.), Tübingen: Mohr, 1922, p. 1.
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modernização como sendo o caso para as sociedades “pré-modernas”. De qualquer modo, “modernidade” não é mais o ponto de chegada exclusivo do desenvolvimento de outros, mas sim, ao contrário, é o precário ponto de partida para desenvolvimentos posteriores de nossa própria sociedade (“ocidental”).3
O corrente ceticismo com a modernidade e com o estágio de desenvolvimento alcançado pelas sociedades modernas altera de modo significativo nossa compreensão de duas das mais importantes teorias políticas da última década. Liberalismo e marxismo, enquanto as duas filosofias políticas mais importantes do século XIX, também têm sido mais estreitamente identificados com o projeto da modernidade. Ambos compartilham a concepção prometeica de humanidade, pois concebem a humanidade como se apropriando de uma natureza essencialmente maleável, desdobrando seus talentos e poderes ao longo do processo, e vindo a se modificar mediante o processo de modificação da realidade exterior. No atual clima de desencantamento com a modernidade, esse legado prometeico do liberalismo e do marxismo sofreu consideráveis ataques. A crítica comunitarista ao liberalismo tem suas raízes no mesmo sentimento de desencantamento com o projeto da modernidade que a crítica pós-moderna ao marxismo. Diante do Claus Offe, “Modernity and modernization as normative political principles”, Praxis international, v. 7, n. 1, p. 2 et seq., abr. 1987.
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mito da humanidade prometeica, comunitaristas argumentam que a concepção liberal de progresso histórico é ilusória e que a história acarretou perdas irreversíveis, como a perda de um sentido coerente de comunidade e de um vocabulário moral que fosse parte de um universo social compartilhado. De modo similar, pós-modernos argumentam que não existe uma “metanarrativa” da história que recapitule o conto do Geist [espírito] ou do proletariado, da liberdade e da contínua emancipação humana. O marxismo não apenas falhou em apreciar a irreversibilidade na história, mas, enquanto ideologia de diversas das elites modernizadoras do terceiro mundo, vem sendo cúmplice na destruição de comunidades tradicionais e das vidas de povos pré-modernos.4 Para os pós-modernos, de modo diferente dos comunitaristas, o aspecto objetável do conceito prometeico de sujeito não é o descaso com os vínculos comunitários constitutivos que essa visão parece implicar, e sim o caráter repressivo [repressiveness] dessa compreensão de sujeito. O self prometeico privilegia o controle sobre a jouissance [gozo] (Lacan) e sobre a gozosa fruição da alteridade; em sua busca narcisista pela dominação da natureza, ele é possuído por uma lógica instrumental e não consegue apreciar o modo de ser dos “outros” não instrumentais. A concepção de uma humanidade homogênea como senhora da natureza destrói aqueles “outros” cuja subjetividade pode consistir Jean Baudrillard, The mirror of production, trad. de Mark Poster, St. Louis: Telos, 1975.
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precisamente em sua proximidade com a natureza e na negação da instrumentalidade. Esses outros são os chamados “primitivos”, crianças, loucos, e, para alguns, mulheres.5 Em sua crítica à modernidade e ao liberalismo, comunitaristas e pós-modernos inadvertidamente ecoam muitos dos temas dos pensadores da primeira geração da Escola de Frankfurt, em especial as palavras de Adorno e de Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. O desencobrimento do lado mais sombrio dos ideais liberais de crescimento econômico e progresso científico, a memória das relações humanas não instrumentais, e mesmo a crítica à subjetividade repressora que é sempre pensada como acompanhando a dominação da natureza, estão entre os temas, agora bem conhecidos, desta obra.6 Ironicamente, hoje essa renovação dos temas da Cf. Jean-François Lyotard, The postmodern condition: a report on knowledge, trad. de Geoff Bennington e Brian Massumi, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984, p. 27. A compreensão de que todos esses grupos de indivíduos representam o “outro” da razão é repleta de dificuldades, pois, ao afirmar isso, estamos definindo suas identidades apenas com respeito ao que esses indivíduos não são. Creio que esse tipo de categorização dos “outros” da razão é, em sua atitude cognitiva, tão imperialista quanto a razão instrumental por ele criticada. Isso porque qualquer definição da identidade de um grupo que não seja em termos de suas experiências constitutivas próprias, mas em termos de sua vitimização por outros, reduz a subjetividade desse grupo ao discurso dominante e não permite uma apreciação da maneira pela qual se pode questionar esse discurso dominante. Penso que esta é a face de Jano do pós-modernismo em relação ao feminismo e à autonomia cultural. Para uma discussão das implicações que o pós-modernismo carrega para o feminismo, ver capítulo 7.
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Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialética do Esclarecimento, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
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Dialética do Esclarecimento tem como o pano de fundo uma mudança de paradigma na teoria crítica da “crítica da razão instrumental” para a “crítica da racionalidade comunicativa”. Esta mudança de paradigma iniciada pela obra de Jürgen Habermas levou a teoria crítica contemporânea para mais perto do liberalismo de John Rawls do que dos críticos ao liberalismo. No debate em curso entre o liberalismo e as críticas comunitaristas e pós-modernas, onde deve se situar a teoria crítica social contemporânea? O propósito deste capítulo é responder a essa questão ao colocar em diálogo comunitarismo e teoria crítica social e, em particular, o projeto da ética comunicativa. O comunitarismo e a teoria crítica social contemporânea compartilham alguns princípios epistemológicos e visões políticas fundamentais. A rejeição de concepções a-históricas e atomistas de self e sociedade é comum a ambos, assim como a crítica à perda do senso de espírito público e da política participativa nas sociedades contemporâneas. Enquanto a teoria crítica de Jürgen Habermas, e, de modo mais específico, suas análises das contradições das sociedades modernas, pode fornecer ao comunitarismo uma visão diferenciada sobre os problemas sociais de nossas sociedades, a insistência comunitarista para que a teoria política e moral contemporânea enriqueça sua compreensão sobre o self e baseie sua visão de justiça em uma visão mais vibrante de comunidade
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política oferece uma correção ao formalismo excessivo das teorias deontológicas e centradas na justiça. Enquanto uma teoria política, o “comunitarismo” deve ser primeiramente identificado via negativa, isto é, menos nos termos da filosofia política e social positiva que oferece do que à luz da poderosa crítica ao liberalismo que desenvolveu. É por conta de sua crítica compartilhada ao liberalismo que pensadores como Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, Michael Walzer e Michael Sandel têm sido chamados de comunitaristas.7 É claro que essa abordagem não deveria sugerir nem que o comunitarismo seja uma escola, no sentido de que se poderia falar da Escola de Frankfurt, tampouco que não haja interessantes e importantes diferenças entre esses autores. Todavia, uma vez que meu objetivo é estabelecer um diálogo intraparadigmático, isto é, um diálogo através das tradições, em alguma medida terei de minimizar as diferenças interparadigmáticas. Embora todos os elementos filosóficos da crítica ao liberalismo definida como comunitarista já tenham sido tratados por Roberto Mangabeira Unger em Knowledge and politics (Nova York, Free Press, 1975, p. 29 et seq.), a posição de Unger é mais intrincada na medida em que seu diagnóstico da condição das sociedades modernas é centrado menos na perda da comunidade do que nos paradoxos do Estado de bem-estar social e no declínio do Estado de direito; cf. id. Law in modern Society, Nova York, Free Press, 1976. A esse respeito, Unger está mais próximo da tradição da teoria crítica social do que outros comunitaristas, e sua posição exigiria um tratamento independente. Dois ensaios recentes de Charles Taylor e Michael Walzer, escritos em resposta a uma série de críticas liberais e nos quais eles refletem sobre suas próprias posições après la lutte (por assim dizer), são extremamente relevantes para avaliar o estado atual do debate. Ver Charles Taylor, “Cross-purposes: The liberal-communitarian debate”, In: Nancy Rosenblun (ed.). Liberalism and moral life, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1989, p. 159-183; Michael Walzer, “The communitarian critique of liberalism,” Political theory, v. 18, n. 1, p. 6-23, fev. 1990.
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É possível distinguir a crítica comunitarista ao liberalismo em um componente epistemológico e um componente político. A crítica epistemológica tem como foco a incoerência do projeto do Esclarecimento de justificar a moralidade e de fornecer fundamentos normativos para a política mediante o dispositivo de um contrato voluntário entre agentes livres e autônomos. A crítica política ao liberalismo desenvolvida por comunitaristas é mais variada. No que se segue, pretendo isolar duas questões centrais de disputa entre comunitarismo e teoria crítica social: 1) a crítica ao “self desonerado” e à prioridade do correto sobre o bem; 2) a política da comunidade e a resposta integracionista versus a resposta participativa à modernidade. A crítica ao self “desonerado” e a prioridade do correto sobre o bem Comunitaristas criticam o ponto de vista epistêmico do Esclarecimento com base no argumento de que tanto esse ponto de vista como as filosofias políticas liberais que dele se seguiram pressupõem um conceito incoerente e empobrecido de self humano. Para enxergar o mundo do modo sugerido por todos os que acreditam no ponto de vista arquimediano, devemos ser determinados tipos de pessoas. Porém, argumentam os comunitaristas, os tipos de pessoas que somos e a perspectiva epistêmica exigida pelo liberalismo do 156
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Esclarecimento são antitéticos. Só podemos adotar “a visão de lugar algum” (Thomas Nagel) exigida pelo liberalismo kantiano caso também possamos nos conceber como selves “desonerados”. Em sua influente crítica a John Rawls, Michael Sandel procurou conectar essa concepção de self desonerado ao compromisso, interno ao pensamento liberal, com a prioridade do correto sobre o bem. Não vou me ocupar aqui de uma discussão detalhada dessa crítica ou de uma avaliação das respostas que vêm sendo formuladas em defesa de Rawls contra Sandel.8 O que me interessa é a seguinte questão: não obstante o fato de que Habermas também rejeita a visão do self desonerado, ele não extraiu algumas das consequências que os comunitaristas presumem que se seguem dessa rejeição.9 A constituição intersubjetiva do self e a evolução 8
Ver Amy Gutmann, “Communitarian critics of liberalism”, Philosophy and public affairs, v. 14, n. 3, p. 311 et seq., Summer 1985; Charles Larmore, Patterns of moral complexity, Nova York, Cambridge University Press, 1987; Will Kymlicka, Liberalism, community and culture, Oxford, Oxford University Press, 1989.
O tratamento claro e incisivo de Will Kymlicka para essa questão em “Liberalism and comunitarianism” mostra que os próprios comunitaristas (em particular, Taylor, Sandel e MacIntyre) são inconsistentes em suas posições, pois, em certo sentido, também aceitam que “a pessoa é anterior aos seus fins”, e não apenas “constituída” por suas ligações (Philosophy and Public Affairs, v. 18, n. 2, jun. 1988, p. 181-204, aqui, p. 192, grifo no original). Ao argumentar em favor do liberalismo, Kymlicka salienta precisamente aquelas qualidades da individualidade autônoma que a teoria crítica também valoriza: a reflexividade diante do conjunto de objetivos pessoais na vida e da determinação de interesses pessoais; a capacidade para se afastar e questionar aqueles compromissos constitutivos nos quais nascemos ou nos quais, às vezes, somos “lançados”, e eu acrescentaria a
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capacidade para “agir por princípios”. Tanto o liberalismo como a teoria crítica estão comprometidos com uma visão de self autônomo. Os desacordos surgem em torno de outra questão: na medida em que filósofos liberais procuram reformular concepções de self sem importar pressupostos de uma teoria filosófica abrangente, mas à luz da articulação de concepções de personalidade e agência publicamente compartilhadas, eles enfraquecem suas próprias visões morais e são levados a uma incoerência conceitual. O quadro conceitual por meio do qual liberais afirmam suas noções de pessoa segue uma lógica dualista. Por um lado, há um mundo de influências “causadoras” [causatives] que moldam uma pessoa, como linguagem, cultura e comunidade, que são, por assim dizer, os dados de ação fenomênica [phenomenal agency] neste mundo. Por outro lado, há os “fundamentos racionais”, mediante os quais os indivíduos assumem uma atitude de escolha e reflexão com relação às características dadas de suas vidas, corpos e comunidades – a posição da ação inteligível [noumenal agency]. Kymlicka repete essa concepção ao escrever: “Em qualquer caso, esta solução está em contraste com a posição liberal, a qual deseja uma sociedade que seja transparentemente inteligível – onde nada opera pelas costas de seus membros – onde todas as causas são transformadas em razões” (“Liberalism and comunitarianism”, Philosophy and Public Affairs, v. 18, n. 2, jun. 1988, p. 196-197, grifo meu). Hegelianos argumentariam que, para compreender a realidade da linguagem, da cultura, da sociedade e das instituições, esse contraste entre “causas” e “razões” é espúrio. Como MacIntyre e Taylor muito bem ressaltaram, na explicação da ação humana, da cultura e da sociedade, a linguagem da causalidade reduz a relação interpretativa do self com o seu mundo à relação externa de dois corpos entre si. Mas a ação humana só pode ser entendida ao se compreender a linguagem de razões e o quadro de referências interpretativo dentro do qual agentes enxergam seu mundo. Evidentemente, uma explicação “causal” que ultrapasse a mera interpretação hermenêutica é possível e até mesmo desejável. Nas ciências sociais, esse tipo de explicação tem de começar com uma “realidade sempre já interpretada”. Teóricos críticos sociais, tal como os neo-hegelianos MacIntyre e Taylor, partem da primazia do quadro de referência interpretativo sobre a linguagem empirista das causas. Enquanto para Kymlicka a visão de uma sociedade que seja “transparentemente inteligível” torna-se um imperativo moral, teóricos críticos, junto com hegelianos, insistem que o próprio contraste entre “causas” e “razões” precisa ser reformulado à luz
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da identidade do self por meio da interação comunicativa com outros têm sido uma ideia central do trabalho de Habermas desde seu preliminar ensaio “Trabalho e interação: notas sobre a filosofia do espírito de Hegel em Jena”.10 Habermas com frequência formula este insight concernente à constituição intersubjetiva da identidade do self nos termos de George Herbert Mead. O “eu” só se torna um “eu” entre um “nós”, em uma comunidade de discurso e ação. A individuação não precede a associação; antes, são os tipos de associações que habitamos que definem os tipos de indivíduos que nos tornaremos.11 Em sua teoria da ética comunicativa, contudo, Habermas acompanha Rawls e Kohlberg ao defender um enfoque deontológico e a prioridade do correto sobre o bem.12 Habermas é
das dimensões interpretativas das ações humanas, das instituições e da cultura. Para uma formulação inicial, ver Charles Taylor, “Interpretation and the sciences of man”, Review of Metaphysics, v. 25, 1971, p. 3-5; Alasdair MacIntyre, Against the self-images of the age, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1978, especialmente capítulos 18-22; Jürgen Habermas, On the logics of social sciences, trad. de Shierry Weber Nicholsen e Jerry A. Stalk, Cambridge, MA, MIT Press, 1989; Richard Bernstein, Restructuring social and political theory, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1978. Jürgen Habermas, Theory and practice, trad. de John Viertel, Boston, Beacon Press, 1973, p. 142-70.
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Id., “Moral development and ego identity”, In: Communication and the evolution of society, trad. e intr. de Thomas McCarthy, Boston: Beacon Press, 1979, p. 93 et seq.
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Id., “Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso” In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 61 et seq.
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claramente inconsistente ou é possível que, contrariamente ao que Sandel presume, uma teoria ética deontológica e uma determinada concepção de self não estejam mutuamente implicadas? A defesa de um enfoque deontológico na teoria de Habermas assume uma forma diferente da que encontramos na Teoria da justiça, de John Rawls. Enquanto Rawls distingue entre a justiça, entendida como a virtude básica de um sistema social, e o domínio da teoria moral em geral, no qual uma teoria do bem completa está em operação,13 Habermas está comprometido com a alegação mais forte de que, após a transição para a modernidade e a destruição da visão teleológica de mundo, a teoria moral só pode ser deontológica e deve se concentrar em questões de justiça. Acompanhando Kohlberg, ele insiste que não se trata apenas de uma evolução historicamente contingente, mas que “juízos de justiça” efetivamente constituem o núcleo duro de todos os juízos morais. Habermas escreve: Uma tal ética [...] apresenta de modo estilizado questões de boa vida, e questões de boa vida em conjunto com questões de justiça, com vistas a, mediante essa abstração, tornar as questões práticas acessíveis ao processamento cognitivo.14
13
John Rawls, A theory of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1972, §60 et seq., p. 398 et seq.
Jürgen Habermas, “A reply to my critics”, In: John Thompson e David Held (ed.). Habermas: critical debates, Cambridge, MA, MIT Press, 1982, p. 246.
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Não é que a deontologia descreva um tipo de teoria moral, em contraposição a uma teoria teleológica; para Habermas, juízos deontológicos sobre justiça e reivindicações de direitos definem o domínio moral na medida em que podemos dizer qualquer coisa cognitivamente significativa sobre esses fenômenos. Como podemos de fato defender a tese de que juízos de justiça e direito constituem o domínio moral? Consigo divisar dois argumentos distintos na obra de Habermas sobre essa questão, mas não considero nenhum dos dois satisfatório. Primeiro, Habermas assume que apenas juízos de justiça possuem uma estrutura formal claramente discernível, e, assim, podem ser estudados nos termos de um modelo evolucionário, ao passo que juízos concernentes à boa vida seriam amorfos e não se prestariam ao mesmo tipo de estudo formal.15 Essa observação, sem dúvida, longe de justificar a restrição do domínio moral a questões de justiça, poderia também levar à conclusão de que seria preciso desenvolver uma teoria ética menos formalista. Essa é uma conclusão que foi exitosamente defendida por Bernard Williams, em seu livro Ethics and the limits of philosophy [A ética e os limites da filosofia], e por Charles Taylor, em diversos artigos.16 Para uma discussão recente no contexto do debate Kohlberg-Gilligan, ver Habermas, “Consciência moral e agir comunicativo”, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 216. Cf. minha discussão sobre a distinção entre “justiça” e “boa vida” no capítulo 6.
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Ver Bernard Williams, Ethics and the limits of philosophy, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1985; Charles Taylor, “The diversity of goods”, In:
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Segundo, Habermas sustenta que a evolução dos juízos de justiça está intimamente vinculada à evolução das relações self-outro. Juízos de justiça refletem uma diversidade de concepções de relações self-outro, o que quer dizer que a formação da identidade do self e dos juízos morais concernentes à justiça estão intimamente ligados. Isso porque a justiça é a virtude social por excelência.17 Mais uma vez, pode-se objetar que a evolução das relações self-outro é sempre acompanhada pelo desenvolvimento de autocompreensão e autovaloração, e que, mesmo que a justiça seja, por excelência, a soma das virtudes para com os outros, a consideração das virtudes para consigo mesmo e a sua importância para a teoria moral não está excluída. Se se compreende a defesa de Habermas de uma ética deontológica como uma alegação a respeito do campo de investigação adequado da teoria moral, não vejo qualquer argumento decisivo em favor de uma visão tão restritiva sobre o que a teoria moral pode esperar alcançar. Ainda assim, talvez nem sequer seja necessário caracterizar o insight básico da ética comunicativa nos termos de uma teoria formalista e orientada para a justiça. Em outras palavras, a interpretação deontológica forte que Habermas atribui à ética comunicativa pode ser distinguida do insight básico desse projeto. Entendo Philosophical papers, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 230-47. v. 2: Philosophy and the human sciences. Ver Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, In: Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 148.
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esse insight básico da seguinte maneira: a equidade das normas morais e a integridade dos valores morais só pode ser estabelecida mediante um processo de argumentação prática,18 o qual permita aos participantes plena igualdade para iniciar e continuar o debate e para sugerir novos temas na conversação. Assim entendida, a ética comunicativa é uma teoria da justificação moral. A justificação na ética deveria ser considerada uma forma de argumentação moral. O que Thomas Scanlon escreveu em defesa de seu conceito de contratualismo também pode ser aplicado à ética comunicativa. O tipo de argumentação mais ou menos moral com o qual estamos familiarizados talvez permaneça como a única forma de justificação na ética. […] o que uma boa teoria filosófica deveria fazer é fornecer uma compreensão mais clara sobre ao que equivalem as Naturalmente, existem algumas restrições nas argumentações práticas, como igualdade e simetria de oportunidades para iniciar discussão e debate etc., que são nomeadas “deontológicas” por natureza. Estas são regras fundamentais da argumentação que têm como objetivo garantir a “equidade” do resultado ao assegurar a “equidade” do processo mediante o qual o resultado é obtido. Nesse sentido, na ética comunicativa, o “bem”, tal como possa ser acordado pelos participantes no discurso prático, é constrangido pelo “correto”, isto é, pelas condições de argumentação e debate justo. Esse é o motivo pelo qual a ética comunicativa permanece uma teoria deontológica; mas, diferente da versão de Habermas, prefiro defender uma interpretação “deontológica fraca” segundo a qual tanto questões de justiça como questões de boa vida, tanto de normas como de valores, podem estar sujeitas ao debate e ao teste discursivos em uma conversação em aberto – cujo objetivo não é o consenso e sim “chegar a um entendimento”.
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melhores formas de argumentação e a que tipo de verdade elas nos permitem chegar.19
Em uma conversação de justificação moral como a que é concebida pela ética comunicativa, os indivíduos não têm de se enxergar como selves “desonerados”. Não é necessário que se definam de modo independente dos fins que acalentam ou das ligações constitutivas que os tornam quem são. Ao adentrar no discurso prático, os indivíduos não estão adentrando em uma “posição original”. Não se pede que definam a si mesmos de um modo que seja radicalmente contrafactual em relação a suas identidades cotidianas. Esse modelo de argumentação moral não define previamente o conjunto de questões que podem ser legitimamente levantadas na conversação, tampouco parte de um conceito desonerado de self. Na ética comunicativa, os indivíduos não estão por detrás de qualquer “véu de ignorância”. Assim, contrariamente à crítica de Sandel a Rawls, o próprio modelo da ética comunicativa sugere que uma teoria moral procedimental, a qual, à luz de uma concepção de justificação moral, restringe o que pode ser definido como o bem moral, não precisa aderir a um conceito “desonerado” de self. Em um aspecto crucial, a ética comunicativa endossa a compreensão moderna do self e defende Thomas M. Scanlon, “Contractualism and utilitarianism”, In: Amartya Sen e Bernard Williams (ed.), Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge University Press, 1984. p. 107.
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que a autonomia moral não significa apenas o direito do self de questionar religião, tradição e dogma social, mas também o direito do self de se distanciar dos papéis sociais e de seus conteúdos ou de assumir um “papel de distanciamento reflexivo”. Em sua crítica ao “self desonerado”, comunitaristas costumam não distinguir adequadamente entre o significado de comunidades constitutivas para a formação da identidade do self e uma atitude convencionalista ou conformista em relação a papéis, o que consistiria em um reconhecimento não crítico da “minha posição e seus deveres” (F. H. Bradley). Comunitaristas parecem amiúde confundir a tese filosófica concernente ao significado das comunidades constitutivas para a formação da identidade pessoal com uma atitude convencionalista e moralmente conformista. A conquista especificamente moderna de podermos criticar, desafiar e questionar o conteúdo dessas identidades constitutivas e os deveres e obrigações prima facie que essas identidades nos impõem não deveria ser rejeitada.20 Caso contrário, comunitaristas estão em uma posição difícil 20
Ao longo da história existiram indivíduos morais exemplares que, precisamente porque poderiam empreender esse questionamento e reflexão, tornaram-se de fato os heróis morais de nossa cultura e civilização: não só Sócrates, mas Antígona, não só Buda, mas Maimônides, não só os estoicos, mas o profeta Amós, todos questionaram a autoridade dos deveres e obrigações convencionais de suas culturas e sociedade. Que, precisamente porque estavam inseridos em seu universo cultural e carregavam sua autoridade moral, eles o tenham feito em nome de outros valores que consideravam inquestionáveis, não prejudica meu argumento. A “racionalização das esferas de valor” (Max Weber) sob as
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para distinguir sua ênfase nas comunidades constitutivas de uma aprovação ao conformismo social, ao autoritarismo e, do ponto de vista das mulheres, ao patriarcalismo.21 Em contrapartida, a ética comunicativa desenvolve uma concepção da pessoa que torna central esse insight, e atribui a indivíduos a capacidade e a disposição condições da modernidade significa que cada vez mais os “dados morais” da tradição são colocados em questão, e que, além disso, a atitude de rebelião moral e de questionamento, antes privilégio e virtude de heróis, profetas e sábios morais, agora passa a ser “rotineira” conforme as sociedades modernas passam a definir os deveres e as obrigações que se seguem dos papéis sociais em normas e regras cada vez mais abstratas, formais e impessoais. De maneira simples, como um funcionário de uma empresa moderna, para além daquilo que é ditado pela divisão funcional do trabalho na empresa, você não deve qualquer tipo de gratidão pessoal e obediência a seus superiores. Conforme as obrigações sociais tornam-se cada vez mais abstratas, essas obrigações permitem aos indivíduos uma maior latitude para que preencham por si mesmos as “rachaduras”. Que muitas secretárias mulheres, por exemplo, frequentemente façam café para seus chefes comumente homens, que agendem partidas de golfe para eles, ou solicitem a limpeza, não é parte da divisão funcional do trabalho na empresa. Esses padrões de interação são criticados precisamente porque dão continuidade a formas de dependência paternalistas, patrimonialistas e pré-modernas. Isso, claro, não significa que a lógica das diferenças de gênero e papéis sociais não se reafirma de outras maneiras no mercado de trabalho moderno. Secretárias ainda continuam a fazer o café, a terem que ser bonitas e bem vestidas, e a serem “mães” não apenas de seus chefes mas também de outros colegas de trabalho. Mas uma secretária moderna que se recusa a agir dessa maneira e que questiona o que é esperado que ela faça não é uma sábia moral ou uma heroína, ela está simplesmente assumindo uma das posturas morais que a vida no mundo moderno a permite assumir. 21
Este ponto é argumentado de modo cogente por Marilyn Friedman em “Feminism and modern friendship: dislocating the community”, Ethics, v. 99, n. 2, p. 275-290, jan. 1989.
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para assumir um distanciamento reflexivo e a capacidade e a disposição para tomar em consideração o ponto de vista dos outros envolvidos em uma controvérsia e a raciocinar a partir de seu ponto de vista. Naturalmente, esses pressupostos concernentes ao self não são “fracos” e incontroversos. Pressupõe-se que os indivíduos têm a Bildung ou a formação psíquico-moral que torna a adoção da reflexividade e do universalismo da ética comunicativa tanto motivacionalmente plausível como racionalmente aceitável. Enquanto uma teoria procedimental de argumentação moral, a ética comunicativa está baseada em certas pressuposições substantivas. A meu ver, isso é inevitável. Todas as teorias procedimentais têm de pressupor alguns compromissos substantivos. A questão é se esses compromissos substantivos são apresentados como certezas teóricas cujo status não pode ser posteriormente questionado, ou se podemos conceber a ética do discurso de maneira tão radicalmente reflexiva que mesmo as pressuposições do discurso podem ser desafiadas, colocadas em questão e debatidas (ver p. 84 et. seq.). Uma vez que discursos práticos não predefinem teoricamente o domínio do debate moral e uma vez que indivíduos não têm de abstrair de suas ligações e crenças cotidianas ao iniciar uma argumentação, não podemos impedir que não apenas questões de justiça mas também de boa vida serão tematizadas no discurso prático, tampouco que as pressuposições do próprio discurso serão elas mesmas questionadas. Um modelo de ética comunicativa que 167
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considere a teoria moral como uma teoria da argumentação não precisa ficar restrito à prioridade da justiça. Não vejo razão para que também as questões sobre boa vida não possam se tornar assuntos dos discursos práticos. Claramente, discursos práticos não vão produzir concepções de boa vida igualmente aceitáveis para todos, nem é desejável que o façam. Porém, ao contrário do que Habermas às vezes sugere, nossas concepções de boa vida, assim como nossas concepções de justiça, são assuntos sobre os quais o debate intersubjetivo e a reflexão são possíveis, ainda que o consenso sobre esses assuntos, para não mencionar a legislação, não seja o objetivo. A linha entre as questões de justiça e as de boa vida não é dada por algum dicionário moral, mas se desenvolve como resultado de lutas históricas e culturais. Isso não significa que linha alguma precise ser traçada entre as questões de justiça e as de boa vida, entre a esfera pública e a esfera privada. Como vou argumentar nos capítulos 3 e 6, não é a classificação moral de problemas que vai ajudar nessa tarefa, mas a articulação daqueles princípios e valores que gostaríamos de promover e acalentar em um regime político democrático. Assim, em conclusão, concordo com os críticos à deontologia, como Williams, Taylor e Sandel, que uma teoria deontológica forte que considera a justiça como o centro da moralidade restringe de modo desnecessário o domínio da teoria moral e distorce a natureza de nossas
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experiências morais.22 Mas um modelo de ética comunicativo e universalista não precisa ser entendido de modo tão forte. Uma teoria como essa pode ser entendida como defendendo uma deontologia “fraca”, de acordo com a qual o estabelecimento argumentativo de normas é o critério central de validade dessas normas. Uma teoria como essa pode também permitir o debate moral sobre nossas concepções de boa vida, tornando-as assim acessíveis à reflexão moral e à transformação moral. Sem dúvida, este é um resultado muito mais fraco do que preferiria um teleologista forte, mas resta a esse teleologista mostrar que, sob as condições da modernidade, é efetivamente possível formular e defender uma concepção unívoca de bem humano. Até aqui, Habermas está correto: sob as condições da modernidade e a subsequente diferenciação das esferas de valor da ciência, da estética, do direito, da religião e da moral, não podemos mais formular uma visão abrangente do bem humano. Com efeito, como muito bem revela a definição de boa vida oferecida por Alasdair MacIntyre, “a vida despendida em procurar a
Em sua teoria ética, Habermas não só ignora virtudes para consigo mesmo, mas restringe a esfera da justiça unicamente ao domínio público-institucional e, desse modo, ignora as estruturas de justiça informal, tal como formam nossas relações cotidianas dentro da família e com os amigos. Como argumento no capítulo 5 adiante, uma consequência desse enviesamento na teoria ética é a exclusão do domínio da justiça de todos os assuntos relacionados ao gênero e o seu banimento para a esfera privada. Cf. tb. Norma Haan, “An interactional morality of everyday life”, In: Norma Hann et al. (ed.), Social science as moral inquiry, Nova York, Columbia University Press, 1983, p. 218 et seq.
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boa vida para o homem”,23 enquanto modernos, temos de viver com uma variedade de concepções de bem. Se a boa vida será realizada como alguém que luta pelo fim da fome na África, um participante da resistência no gueto de Varsóvia, uma Madre Teresa ou uma Rosa Luxemburgo, a teoria ética não pode julgar previamente; quando muito, a teoria moral moderna pode nos fornecer alguns critérios bastante gerais mediante os quais avaliamos nossas intuições acerca da validade básica de determinados cursos de ação e a integridade de determinados tipos de valores. Não considero que a pluralidade e a diversidade de concepções de bem com a qual temos de viver em um universo desencantado ou a perda de certeza na teoria moral sejam uma causa de aflição. Sob as condições da diferenciação de valores, temos de conceber a unidade da razão não como a imagem de uma esfera de vidro transparente e homogênea dentro da qual podemos encaixar todos os nossos compromissos cognitivos e valorativos, mas mais como pedaços e peças de cristais dispersos cujos contornos brilham em meio aos escombros. A política da comunidade: a resposta integracionista versus a resposta participativa à modernidade É possível distinguir a disputa acerca do conceito de self e da deontologia em um aspecto moral e um aspecto político. Na teoria Alasdair MacIntyre, After virtue, Notre Dame, Notre Dame University Press, 1981, p. 204.
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moral, deontologia implica que concepções de justiça devem preceder às de boa vida, tanto no sentido de limitar o que pode ser legitimamente defendido como a boa vida, como no sentido de quais concepções de justiça podem ser justificadas independentemente de concepções particulares de boa vida. No domínio político, deontologia significa que os princípios básicos de uma ordem justa deveriam ser moralmente neutros, tanto no sentido de permitir que os cidadãos busquem e acalentem as mais diversas concepções de boa vida, como também no sentido de que as liberdades básicas dos cidadãos jamais devem ser cerceadas em prol de alguma concepção específica de bem social ou de bem-estar. Os argumentos que examinei até agora concerniam apenas às reivindicações morais a favor da deontologia. Boa parte dos comunitaristas rejeita a deontologia no domínio da teoria moral e argumenta que concepções de justiça necessariamente implicam certas concepções de boa vida. Os argumentos políticos a favor da deontologia costumam ter mais peso para pensadores liberais e é sobre essas questões que pensadores comunitaristas vem sendo mais severamente criticados. Em suas críticas a Rawls, comunitaristas não se concentraram no primeiro princípio de justiça, a saber, o princípio da mais extensa liberdade básica igual,24 tampouco questionaram o ordenamento dos dois princípios de justiça e a prioridade da liberdade. 24
Ver Rawls, A theory of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1972, §11, p. 60 et seq.
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Em alguma medida, é essa falta de explicitação sobre a questão da “prioridade da liberdade” que fez com que críticos contemporâneos assumissem que comunitaristas são defensores de unidades sociais pequenas, indiferenciadas e homogêneas, particularmente propensas à intolerância, ao exclusivismo, e até mesmo a formas de racismo, de sexismo e de xenofobia.25 Em sua interessante análise sobre essas questões em Patterns of moral complexity [Padrões de complexidade moral], Charles Larmore sustenta que o comunitarismo segue a tradição do “romantismo político”, cuja principal característica é a busca pela reconciliação de ideais pessoais e políticos.26 Ao defender uma posição que denomina de liberalismo “modus vivendi”, Larmore escreve: No entanto, apenas isso pertence ao cerne da tradição liberal. Concepções sobre o que deveríamos ser como pessoas são um objeto permanente de disputa em torno do qual a ordem política deveria tentar permanecer neutra. Melhor faríamos se reconhecêssemos que o liberalismo não é uma filosofia do homem, mas uma filosofia da política […]. Isso significa que devemos adotar uma atitude mais positiva em relação à
Ver H. N. Hirsch, “The threnody of liberalism”, Political theory, v. 14, n. 3, p. 423-449, ago. 1986; Iris Young, “The ideal of community and the politics of difference”, Social theory and practice, v. 12, n. 1, p. 2-25, Spring 1986.
25
26
Charles Larmore, Patterns of moral complexity. Cambridge, Cambridge University Press, 1987, p. 119.
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“separação de domínios” liberal do que os românticos políticos e mesmo alguns liberais têm demonstrado.27
Tenho dúvidas de que seja possível defender o liberalismo sem o recurso a uma “filosofia do homem” ou somente com base naquilo que John Rawls recentemente chamou de “consenso sobreposto”.28 O que me interessa é a afirmação de Larmore de que a “reconciliação” dos ideais políticos e pessoais ou das diversas esferas sociais é a marca do comunitarismo contemporâneo, do mesmo modo que é a característica distintiva do romantismo político desde Herder e da reação conservadora à Revolução Francesa. O pensamento político comunitarista de fato contém duas linhagens, uma linhagem reconciliacionista, ou o que prefiro chamar de “linhagem integracionista”, e uma linhagem “participativa”. É a hesitação entre essas duas linhagens que torna o pensamento comunitarista vulnerável à acusação de violar a prioridade da liberdade. De acordo com a primeira concepção, os problemas de individualismo, anomia e alienação nas sociedades modernas só podem ser resolvidos com a recuperação ou revitalização de algum esquema de valores coerente. Esse sistema de valores coerente pode 27
Charles Larmore, Patterns of moral complexity. Cambridge, Cambridge University Press, 1987, p. 129. John Rawls, “Justice as fairness: political, not metaphysical”, Philosophy and public affairs, v. 14, n. 3, p. 223 et seq., Summer 1985.
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ser uma religião, como esperavam Novalis e alguns românticos alemães,29 ou pode ser uma “religião cívica”, cujos princípios inculcariam a virtude no cidadão como Rousseau sonhou.30 Em outro sentido, é possível considerar esse esquema de valores como um “código de civilidade”, o qual sobrevive, na visão de MacIntyre, nas comunidades judaicas ortodoxas, nas comunidades gregas e nas comunidades irlandesas;31 ou como uma concepção de amizade e solidariedade que molda e confere profundidade ao caráter moral, como evoca Sandel.32 Em qualquer dos casos, é característico da visão integracionista salientar o restabelecimento de valores, a reforma de valores ou a regeneração de valores, e negligenciar soluções institucionais. Em contrapartida, a noção que vou chamar de “participacionista” enxerga os problemas da modernidade menos na perda de um sentido de pertencimento [belonging], unidade [oneness] e solidariedade e mais no sentido de uma perda de agência e eficácia
29
Ver Charles Novalis, “Christendom or Europe”, In: Hymns to the night and other selected writings, trad. e introd. de Charles E. Passage, Nova York, Library of Liberal Arts, 1960, p. 45 et seq.
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, trad. de Lourdes Santos Machado, São Paulo, Abril Cultural, 1973 [1762], IV, cap. 8, p. 143 et seq. (Os Pensadores, 24).
30
31
Alasdair MacIntyre, After virtue, Notre Dame, University of Notre Dame Press, p. 234, 244-245.
32
Michael Sandel, “The procedural republic and the unencumbered self”, Political Theory, v. 12, n. 1, 1984, p. 81 et seq.
174
Autonomia, modernidade e comunidade
políticas. Essa perda de agência política não é uma consequência da separação entre o pessoal e o político ou da diferenciação das sociedades modernas nos domínios político, econômico, cívico e íntimo-familiar. Essa perda pode ser uma consequência da contradição entre as esferas diversas, a qual reduz as possibilidades de agência em uma esfera com base na posição que se ocupa em uma outra esfera (como quando as repúblicas burguesas nascentes cercearam os direitos de cidadania com base na renda e na ocupação e negaram o direito de voto aos trabalhadores assalariados). Mas essa perda pode ser também resultante do fato de que o pertencimento [membership] às esferas diversas passa a ser mutuamente exclusivo devido à natureza das atividades envolvidas, ao passo que a exclusividade mútua entre as esferas é reforçada pelo sistema (tome-se os deveres da maternidade e as aspirações públicas das mulheres na economia, na política ou na ciência, e o fato de que os recursos públicos não são usados para fornecer melhores, mais facilmente disponíveis e mais acessíveis formas de cuidados para crianças). A visão participacionista não considera as diferenciações sociais como um aspecto da modernidade que precisa ser superado. Antes, participacionistas advogam pela redução de contradições e irracionalidades entre as esferas diversas e pelo encorajamento de princípios não exclusivos de pertencimento entre as esferas. Pensadores comunitaristas nem sempre são claros sobre qual perspectiva pretendem destacar diante dos problemas das sociedades 175
Situando o self
modernas, e seus críticos liberais estão corretos ao se concentrarem nessa ambivalência. Ao se concentrarem seja no libertarianismo de Nozick,33 seja no liberalismo de bem-estar de Rawls, comunitaristas contemporâneos estão preocupados com o liberalismo do Estado de bem-estar social do pós-Segunda Guerra.34 Eles enfocam um problema que é central para o Estado de bem-estar social enquanto uma formação política, a saber, os princípios e critérios de justiça distributiva. Michael Walzer e Charles Taylor concordam que não pode haver um único princípio de justiça distributiva que possa ser aplicado a todos os bens sociais. Como afirma Walzer: bens sociais diferentes devem ser distribuídos por razões diferentes, de acordo com procedimentos diferentes, por agentes diferentes; e todas essas diferenças derivam de compreensões diferentes dos próprios bens sociais.35
Em segundo lugar, nossas sociedades operam com base em princípios de distribuição diferentes e às vezes mutuamente exclusivos, Cf. Charles Taylor, “Legitimation crisis?” e “The nature and scope of distributive justice”, In: Philosophical papers, Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 248-318, v. 2: Philosophy and the human sciences.
33
Ver Michael Walzer, Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade, trad. de Jussara Simões, rev. tec. de Cícero Romão Dias Araújo, São Paulo, Martins Fontes, 2003.
34
Ibid., p. 5 [trad. mod. – A.C.L.].
35
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como necessidade, pertencimento, mérito, contribuição. “O que tudo isso significa,” escreve Taylor, é que temos de abandonar a busca por um conjunto único de princípios de justiça distributiva. Ao contrário, uma sociedade moderna pode ser vista sob perspectivas diferentes e mutuamente irredutíveis, e, consequentemente, pode ser julgada por princípios de justiça distributiva independentes, mutuamente irredutíveis.36
Em terceiro lugar, a busca por um único e abrangente princípio de justiça distributiva que possa ser aplicado em todas as esferas só parece plausível aos liberais contemporâneos devido ao quadro de referências filosófico que escolhem para colocar a questão. Nos termos de Taylor, ao proceder da perspectiva do indivíduo enquanto portador de direitos, esses autores pretendem ser capazes de formular a questão da justiça distributiva tão somente nos termos de demandas conflitantes por direitos de diferentes indivíduos. Tanto Taylor como Walzer concordam que, se a questão é colocada desse modo, então de fato esses indivíduos escolheriam algo como o princípio da diferença rawlsiano.37 Taylor recusa esse quadro de referência com base em sua crítica moral à deontologia e argumenta Charles Taylor, “The nature and scope of distributive justice”, In: Philosophical papers, Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 312, v. 2: Philosophy and the human sciences.
36
Michael Walzer, Esferas da justiça, trad. de Jussara Simões, rev. tec. de Cícero Romão Dias Araújo, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 106; Charles Taylor, op. cit., p. 308 et seq.
37
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que diferentes princípios de justiça distributiva estão relacionados a diferentes concepções de bem, e estas, por sua vez, estão relacionadas a diferentes compreensões da natureza de nossas associações humanas.38 De modo similar, para Walzer, a própria comunidade política tem de ser adotada como o “cenário apropriado para a justiça”, e não alguma “posição original”,39 pois a própria comunidade é também um bem, e talvez o bem mais importante, a ser distribuído. Essas críticas à busca por uma teoria unificada da justiça distributiva também podem ser formuladas em uma linguagem “integracionista” e em uma linguagem “participativa”. Taylor e Walzer seguem a linha integracionista quando salientam que o cenário apropriado para a justiça é a própria associação política, e que, além disso, a justiça deve ser pensada tendo como base as compreensões compartilhadas que são acolhidas pelos membros desse tipo de comunidade. Sociedades modernas não são comunidades integradas em torno de uma única concepção do bem humano ou mesmo de uma compreensão compartilhada do valor de pertencer à comunidade. Questões de justiça distributiva surgem precisamente porque não existe uma tal compreensão compartilhada entre os membros da
Charles Taylor, “The nature and scope of distributive justice”, In: Philosophical papers, Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 291, v. 2: Philosophy and the human sciences.
38
Michael Walzer, Esferas da justiça, trad. de Jussara Simões, rev. tec. de Cícero Romão Dias Araújo, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 36-37.
39
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comunidade política, mas, como Taylor e Walzer também reconhecem, essas sociedades são marcadas por uma “pluralidade” de visões de bem e sobre o bem da própria associação. Se é assim, a busca por um esquema publicamente aceitável de distribuição justa não é tão despropositada como eles nos fizeram acreditar, pois a questão sobre como se deve distribuir bens, serviços, renda etc. entre grupos primários que não compartilham as mesmas concepções morais não é nem irrelevante nem disparatada. Em sua crítica epistêmica à perspectiva do “indivíduo-portador-de-direitos”, Taylor e Walzer por vezes hipostasiam o que o próprio Taylor descreveu como o “quadro filosófico” da comunidade40 e o tratam como se fosse não apenas um quadro metodológico, mas também uma realidade política viva. Embora o objetivo de Michael Walzer em Esferas da justiça seja promover uma concepção de justiça igualitária e participativa, cuja principal tarefa é possibilitar uma igualdade complexa e impedir a “dominação ilegítima” de um conjunto de bens por outros (de cargos públicos e de votos em troca de dinheiro, por exemplo), em seu apelo contínuo a “compreensões compartilhadas” de bens sociais, Walzer também incorre em uma linguagem integracionista. Uma vez que seu objetivo é proceder de modo imanente e fenomenológico,41 as definições e compreensões de 40
Charles Taylor, “The nature and scope of distributive Justice”, In: Philosophical papers, Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 297 et seq., v. 2: Philosophy and the human sciences.
41
Michael Walzer, Esferas da justiça, uma defesa do pluralismo e da igualdade, trad.
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significado social disponíveis e compartilhadas têm de ser seu ponto de partida. Esse ponto de partida, contudo, faz com que Walzer por vezes desentenda que o que ele está fazendo não é apenas uma redescrição fenomenológica do que agentes em nossos tipos de sociedades pensam sobre bens diversos; antes, Walzer pratica uma “hermenêutica normativa”, a qual, em suas intenções, não está muito distante do “equilíbrio reflexivo” rawlsiano. Partindo de visões e compreensões compartilhadas sobre determinados bens, como cidadania ou assistência à saúde, por exemplo, Walzer está refinando, sistematizando, tornando coerente, criticando e substituindo por uma compreensão “melhor” as visões comuns sobre essas questões. Esferas da justiça abunda em exemplos desse tipo, mas o mais significativo é a notável discussão de Walzer sobre a questão de imigrantes com visto de trabalho nas sociedades europeias ocidentais. Walzer não hesita em ir muito além do consenso político predominante sobre essa questão tanto na Europa Ocidental como nos Estados Unidos para defender o direito de naturalização desses trabalhadores, e não apenas o direito de residência permanente, mas também o direito de cidadania. Walzer escreve: Cidadãos democráticos têm, então, uma escolha: se pretendem trazer novos trabalhadores, precisam estar preparados para ampliar seu próprio pertencimento político; se não estão dispostos a aceitar novos de Jussara Simões, rev. tec. de Cícero Romão Dias Araújo, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 32-33.
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membros, precisam encontrar outros meios, dentro dos limites do mercado de trabalho doméstico, para ter o trabalho social necessário executado.42
Walzer não disputa o direito dessas comunidades de fazer uma escolha ou a outra, mas deixa bem claro o que ele, enquanto teórico político, acredita ser correto: “A justiça política é uma barreira ao status permanente de estrangeiro – seja para indivíduos particulares, seja para uma classe de indivíduos variáveis”.43 Essa última sentença em particular é um bom exemplo da natureza “participativa” do argumento de Walzer. A distinção entre esses dois modos de abordar os problemas da modernidade e da política permite que vejamos de modo mais claro a relação entre a obra de Habermas e alguns dos projetos comunitaristas contemporâneos. A defesa da modernidade à luz do princípio de participação pública é um aspecto essencial da obra de Habermas desde Mudança estrutural na esfera pública, um de seus primeiros trabalhos.44 Ao inverter a avaliação pessimista da modernidade como uma “dialética do Esclarecimento”, Habermas 42
Michael Walzer, Esferas da justiça, uma defesa do pluralismo e da igualdade, trad. de Jussara Simões, rev. tec. de Cícero Romão Dias Araújo, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 80-81 [trad. mod. – A.C.L.]. Ibid., p. 80 [trad. mod.].
43
Finalmente está disponível uma tradução para o inglês deste trabalho originalmente publicado em 1962. Ver Jürgen Habermas, The structural transformation of the public sphere, trad. de Thomas Burger, Cambridge, MA, MIT Press, 1988. [Ed. Bras.: Mudança estrutural da esfera pública, trad. de Denilson Werle, São Paulo, Unesp, 2014].
44
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ressaltou que a modernidade não significa apenas diferenciação, individuação e cisão. A emergência de uma esfera pública autônoma de raciocínio e discussão políticos também é central para o projeto dos modernos. As irracionalidades das sociedades modernas derivam, por sua vez, de diversos fatores: em primeiro lugar, o acesso à esfera pública sempre foi limitado por considerações particularistas de classe, raça, gênero e religião; em segundo lugar, cada vez mais, o dinheiro e o poder, e não a geração consensual de normas, tornam-se os modos mediante os quais os indivíduos definem o liame social e distribuem os bens sociais. No vocabulário de Walzer, Habermas enxerga nas sociedades modernas uma tendência para uma “igualdade simples”, impelida pelo predomínio de dinheiro e poder como media das atividades de coordenação. Em terceiro lugar, na medida em que dinheiro e poder tornam-se cada vez mais princípios autônomos da vida social, os indivíduos perdem um sentido de agência e eficácia. Eles não conseguem enxergar a natureza do liame social e tampouco compreender seu significado. O resultado é alienação política, cinismo e anomia. Em quarto lugar, as demandas por um maior distanciamento de papéis sociais e a contínua sujeição da tradição à crítica e revisão em um universo desencantado dificulta, para os indivíduos, o desenvolvimento de um sentido coerente de self e de comunidade sob as condições da modernidade. Essas tendências só podem ser combatidas mediante a expansão da participação cognitiva dos indivíduos nos diferentes ramos do 182
Autonomia, modernidade e comunidade
conhecimento que hoje se tornaram monopólio de especialistas, e mediante o aumento das possibilidades de escolhas de vida significativas para os indivíduos. Em outras palavras, em cada um dos casos, a solução é superar os problemas das sociedades modernas mediante a extensão do princípio da modernidade, a saber, a participação ilimitada e universalmente acessível a todos na geração consensual dos princípios que governam a vida pública. Sem dúvida, Habermas por vezes apresentou esses insights na linguagem do liberalismo tradicional. No entanto, sua concepção participativa de vida pública, assim como sua insistência de que somente com mais democratização, e não menos, é possível resolver os problemas da modernidade, claramente transcendem a tradicional preocupação liberal com as liberdades negativa e positiva e apontam na direção de uma crítica comunal-participativa [participatory-communalist] das sociedades de bem-estar social contemporâneas. Assim, a seu ver, a tarefa da justiça distributiva seria aprimorar as possibilidades dos cidadãos para um maior exercício efetivo de agência e controle políticos. Com efeito, é porque a ênfase está na justiça participativa, e não na distributiva, que os “discursos práticos” são tão vazios e não produzem soluções específicas na teoria de Habermas. Tal como Walzer, Habermas considera a tentativa do teórico político de fornecer um padrão
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de medida normativo aos cidadãos como uma usurpação de seu direito a uma política democrática.45 Se se entende que, em lugar de uma reestruturação integracionista, a teoria política comunitarista defende uma reestruturação participacionista da nossa vida política, então essa teoria não está sujeita à acusação de romantismo político, pois o participacionismo não implica nem desdiferenciação, nem homogeneidade de valores, nem mesmo reeducação de valores. O participacionismo não é uma resposta aos dilemas da identidade moderna, ao estranhamento, à anomia e à falta de um lar. Pois, no modelo participacionista, o sentimento público encorajado não é reconciliação e harmonia, mas agência e eficácia políticas, ou seja, a percepção de que temos voz nos arranjos econômico, político e cívico que definem a nossa vida em comum, e de que as ações de cada um fazem diferença. Isso pode ser conquistado sem uma homogeneidade de valores entre os indivíduos. Sem dúvida, é provável que uma sociedade extremamente atomizada destrua as opções e motivações para a agência política, ao passo que uma vida política vibrante e participativa pode se tornar central para a formação e o florescimento da identidade pessoal. Do mesmo modo, enquanto a prevalência Ver Michael Walzer, “Liberalism and the art of separation”, Political theory, p. 315-330, ago. 1984; Jürgen Habermas, “Legitimation problems in the modern state”, In: Communication and the evolution of society, trad. de Thomas McCarthy, Boston, Beacon Press, 1979, p. 179 et seq.
45
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de certos tipos de sistemas de valores públicos torna a opção participacionista ora mais ora menos provável, um sentido ampliado de agência e eficácia político-públicas contribui para a revitalização de certos tipos de valores. Essa ênfase na participação política e no aprofundamento da democratização dos processos de tomada de decisão na vida social é algo que a teoria crítica de Jürgen Habermas compartilha com a tradição comumente referida como a da “virtude republicana ou cívica”, a qual se estende de Aristóteles a Maquiavel, aos humanistas Renascentistas, a Jefferson, Rousseau e Hannah Arendt. Claramente, essa tradição também tem sido uma fonte de inspiração para os comunitaristas contemporâneos. A distinção crucial entre a visão participativa da teoria crítica contemporânea e a tradição da “virtude cívica” é que, em geral, pensadores desta tradição formularam suas concepções de política participativa em manifesta hostilidade para com as instituições da sociedade civil moderna, como o mercado. Pensa-se que “virtude” e “comércio” são princípios antitéticos. Nas palavras de Hannah Arendt, sob as condições da modernidade, a política é reduzida à administração. Com isso, a política participativa é considerada possível para uma nobreza fundiária de virtude cívica ou para os cidadãos da polis grega, mas não para sociedades modernas complexas com suas altamente diferenciadas esferas da economia, do direito, da política, da vida civil e familiar. 185
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Devemos à obra de Jürgen Habermas o enriquecimento de nossa compreensão sobre as possibilidades sociais e culturais da modernidade, de tal maneira que nem as comunidades de virtude nem os contratos autointeressados podem ser vistos como se exaurissem o projeto moderno. A visão moderna e participativa de Habermas distingue a política da ética comunicativa tanto do liberalismo como da tradição republicana da “virtude cívica”. Vou me referir a esse modelo de política como o “modelo discursivo de legitimidade”. No próximo capítulo, vou explorar as diferenças entre o “modelo discursivo de legitimidade”, a visão política do republicanismo cívico de Hannah Arendt, e a concepção de diálogo liberal de Bruce Ackerman. Este artigo foi originalmente apresentado em 1987 na convenção da American Political Science Association, em Chicago. Foi publicado, como minha contribuição ao Festschrift em comemoração ao sexagésimo aniversário de Jürgen Habermas, em Cultural-political interventions in the unifinished project of Enlightenment, ed. de Axel Honneth, Thomas McCarthy, Claus Offe e Albrecht Wellmer, Cambridge, Mass., MIT Press, 1992. Foi revisado para inclusão no presente volume.
186
3.
Modelos de espaço público: Hannah Arendt, a tradição liberal e Jürgen Habermas A arte de fazer distinções é sempre uma tarefa difícil e arriscada. Distinções podem tanto iluminar como obscurecer um assunto. Fica-se ainda sempre vulnerável a objeções em relação à classificação correta do pensamento de certos autores. Este capítulo vai passar ao lado de questões de classificação e interpretação histórica a fim de delinear três diferentes concepções de “espaço público” que correspondem a três correntes principais do pensamento político ocidental. O aspecto do espaço público comum à tradição da “virtude republicana” ou da “virtude cívica” é descrito como “agonístico”, e o pensamento de Hannah Arendt será o principal ponto de referência. A segunda concepção é fornecida pela tradição liberal, e particularmente por aqueles liberais que, começando com Kant, fazem da questão de uma “ordem pública justa e estável” o centro de seu pensamento político. Essa concepção será chamada de modelo “legalista” de espaço público. O último modelo de espaço público é o modelo implícito na obra de Jürgen Habermas. Esse modelo, que pensa uma reestruturação
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democrático-socialista das sociedades capitalistas tardias, será chamado de “espaço público discursivo”. Ao situar o conceito de “espaço público” nesse contexto, a discussão é restringida, de início, à teoria política normativa. O sentido mais amplo do termo Öffentlichkeit [esfera pública], que inclui um público literário, artístico e científico, não será de interesse aqui; pois quaisquer outras aplicações ou ressonâncias que eles possam ter, os termos “público”, “espaço público” e “res publica” nunca perderão seu enraizamento íntimo no domínio da vida política. Essa abordagem ajudará a enfatizar certas diferenças bastante significativas entre teorias políticas que, na superfície, parecem conceder um lugar central ao “espaço público” ou à “publicidade” na vida política. Não apenas existem diferenças importantes entre essas três concepções de espaço público, mas duas dessas perspectivas são seriamente limitadas em sua utilidade para analisar e avaliar o discurso político e os problemas de legitimação em sociedades capitalistas avançadas e, possivelmente, até no que agora está sendo chamado de sociedades “no estilo soviético”.1 Quando comparado às concepções arendtiana e liberal, a força do modelo habermasiano está no fato de que V. Andrew Arato, “Civil Society Against the State: Poland 1980-81”, Telos, 47, 1981, p. 23-47, e “Empire vs. Civil Society: Poland 1981-82”, In: Telos, 50, 1981-1982, p. 19-48; Andrew Arato e Jean Cohen, Civil society and political theory, MIT Press, Cambridge, Mass., 1992; John Keane (ed.), Civil society and the State: new European perspectives e democracy and civil society (ambos Verso, Londres, 1988).
1
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questões acerca da legitimidade democrática em sociedades capitalistas avançadas são centrais. Ainda assim, se esse modelo tem recursos o suficiente para nos ajudar a pensar a transformação da política em nossos tipos de sociedades é uma questão em aberto. Tendo como ponto de referência o movimento das mulheres e a crítica feminista em relação à distinção público/privado, as seções finais deste capítulo irão investigar o modelo discursivo do espaço público a partir desse ponto de vista. Hannah Arendt e o conceito agonístico de espaço público Hannah Arendt é a pensadora política central desse século cuja obra nos lembra com grande pungência dos “tesouros perdidos” de nossa tradição de pensamento político e, especificamente, da “perda” do espaço público, de der öffentliche Raum [o espaço público], sob as condições da modernidade. A maior obra teórica de Hannah Arendt, A condição humana, é normalmente – e também injustificadamente – tratada como uma obra política antimodernista. Nessa obra, por “ascensão do social”, Arendt quer dizer a diferenciação institucional das sociedades modernas em domínios políticos estritos, por um lado, e o mercado econômico e a família, por outro. Como resultado dessas transformações, processos econômicos que até então estavam confinados ao “domínio sombrio do lar” se emanciparam e se tornaram assuntos públicos. Esse mesmo processo histórico 189
Situando o self
que deu origem ao Estado constitucional moderno também trouxe consigo a “sociedade”, esse domínio da interação social que se coloca entre o “lar”, por um lado, e o Estado político, por outro.2 Um século atrás, Hegel havia descrito esse processo como o desenvolvimento, no meio da vida ética, de um “sistema de necessidades” (System der Bedürfnisse), de um domínio de atividade econômica governado pela troca de mercadorias e pela busca pelo interesse-próprio econômico. A expansão dessa esfera significou o desaparecimento do “universal”, do interesse comum pela associação política e pela res publica do coração e das mentes dos homens.3 Arendt vê nesse processo o obscurecimento da política pelo “social” e a transformação do espaço público da política em um pseudoespaço de interação em que indivíduos não mais “agem”, mas “apenas se comportam” como produtores econômicos, consumidores e moradores de cidades urbanas. Esse relato implacavelmente negativo acerca da “ascensão do social” e do declínio do domínio público foi identificado como o núcleo do “antimodernismo” político de Arendt.4 De fato, em certo Hannah Arendt, The human condition, 8 ed., University of Chicago Press, Chicago, 1973, p. 38-49.
2
V. G. W. F. Hegel, Rechtsphilosophie (1821), p. 189 et seq.; traduzido por T. M. Knox como Hegel’s philosophy of right, Londres, Clarendon,1973, p. 126 et seq.
3
Cf. a introdução de Christopher Lasch ao número especial dedicado a Hannah Arendt de Salmagundi, n. 60 (1983), p. V et seq.; Jürgen Habermas, “Hannah Arendt’s communications concept of power,” Social research, Hannah Arendt memorial issue, n. 44, 1977, p. 3-24.
4
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nível, o texto de Arendt é um tributo ao espaço político agonístico da polis grega. O que perturba o leitor contemporâneo é, talvez, menos a imagem nobre e altamente idealizada da vida política grega, que Arendt esboça, e mais sua negligência com a seguinte constelação de problemas. O espaço político agonístico da polis só era possível porque vastos grupos de seres humanos, como mulheres, escravos, trabalhadores, não cidadãos residentes e todos os não gregos eram excluídos desse espaço; e porque esses grupos excluídos tornaram possível, por meio de seu “trabalho” pelas necessidades diárias da vida, esse “tempo livre para a política” que poucos aproveitavam; em contraste, a ascensão do social foi acompanhada pela emancipação desses grupos do “interior sombrio do lar” e pela sua entrada na vida pública. A crítica de Arendt a esse processo é também uma crítica ao universalismo político como tal? A “recuperação do espaço público” sob as condições da modernidade é necessariamente um projeto elitista e antimodernista, que mal pode ser reconciliado com a demanda pela emancipação política universal e pela extensão universal dos direitos da cidadania que acompanharam a modernidade desde as revoluções americana e francesa?5 No entanto, é bastante enganoso ler Hannah Arendt principalmente como uma pensadora nostálgica. Ela dedicou tanto espaço em sua obra para analisar os dilemas e as perspectivas da política Para uma crítica favorável a Hannah Arendt, seguindo essas linhas, cf. Hanna Pitkin, “Justice: on relating public and private”, Political theory, 9.3, 1981, p. 327-352.
5
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sob condições da modernidade quanto o dedicou para analisar o declínio do espaço público na modernidade. Mas se não devemos ler seu relato sobre o desaparecimento do domínio público como uma Verfallsgeschichte (uma história de declínio), como devemos interpretá-lo? A chave aqui está na metodologia singular de Arendt, que concebe o pensamento político como “contar histórias”. Sob essa perspectiva, sua “história” da transformação do espaço público é um “exercício” de pensamento. Esses exercícios de pensamento escavam sob os escombros da história a fim de recuperar aquelas “pérolas” da experiência passada, com suas camadas de significado sedimentadas e escondidas, de modo a separar delas uma história que pode orientar a mente no futuro.6 A vocação do teórico como “contador de histórias” é o fio unificador das análises políticas e filosóficas de Arendt desde as origens do totalitarismo, passando pelas suas reflexões sobre as revoluções americana e francesa até a sua teoria do espaço público, e também suas últimas palavras no primeiro volume de A vida do espírito sobre o “pensar”. V. Hannah Arendt, Men in dark times, Nova York e Londres, Harcourt, Brace and Jovanovich, 1968, p. 22; “Preface”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Cleveland e Nova York, Meridian, 1961, p. 14. Existe um excelente ensaio, de David Luban, que é uma das poucas discussões na literatura que lida com a metodologia de contar história de Hannah Arendt, cf. D. Luban, “Explaining Dark Times: Hannah Arendt’s theory of theory”, In: Social Research, 5.1, p. 215-247; v. também E. Young-Bruehl, “Hannah Arendt als Geschichtenerzaehlerin,”, In: Hannah Arendt: Materialien zu lhrem Werk, Europaverlog, Munich, 1979, p. 319-327.
6
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[...] juntei-me claramente às fileiras daqueles que, já há algum tempo, vêm tentando desmontar a metafísica e a filosofia, com todas as suas categorias, do modo como as conhecemos, desde o seu começo, na Grécia, até hoje. Tal desmontagem só é possível se aceitarmos que o fio da tradição está rompido e que não podemos reatá-lo. Historicamente falando, o que de fato se partiu foi a trindade romana que por milhares de anos uniu religião, autoridade e tradição. A perda dessa trindade não destrói o passado [...]. O que se perdeu foi a continuidade do passado [...]. Aquilo com o que se fica, então, é ainda o passado, mas um passado fragmentado, que perdeu sua certeza de avaliação.7
Lido sob essa luz, o relato de Arendt sobre a “ascensão do social” e o declínio do espaço público sob as condições da modernidade podem ser vistas não como um Verfallsgeschichte nostálgico, mas como uma tentativa de pensar através da história humana sedimentada em camadas de linguagem. Devemos aprender a identificar esses momentos de ruptura, deslocamento e desarticulação na história. Nesses momentos, a linguagem é a testemunha das mais profundas transformações que acontecem na vida humana. Esse Begriffsgeschichte [história conceitual] é uma rememoração, no sentido de um ato criativo de “rememorar”, quer dizer, de juntar as 7
Hannah Arendt, The Life of the Mind, v. 1: Thinking, Nova York, Harcourt, Brace e Janovich, 1977, p. 212. [Hannah Arendt. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 159-60].
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“memórias” de um todo,* de um repensar que liberta os potenciais perdidos do passado. A história das revoluções [...] poderia ser contada na forma de uma parábola, como a lenda de um antigo tesouro que, sob as circunstâncias mais diversas, surge de modo abrupto e inesperado, para de novo desaparecer, sob diferentes condições misteriosas, como se fosse um fogo-fátuo.8
Ainda assim, o pensamento de Arendt não está livre de pressupostos que derivam de uma Ursprungsphilosophie [Filosofia das origens] que postula um estado ou um momento temporal original, como a fonte privilegiada a que devemos retraçar o fenômeno a fim de capturar seu significado “verdadeiro”. Em oposição à ruptura, deslocamento ou desarticulação, essa perspectiva enfatiza a continuidade entre o passado original e a condição presente, e busca descobrir na origem a essência perdida e escondida do fenômeno. Há realmente duas tendências no pensamento de Hannah Arendt, uma que corresponde ao método da historiografia fragmentária, e inspirado em
* [N.T.]: Benhabib faz um jogo de palavras com o termo “remembering”, diz ela: “‘re-membering’, that is, of putting together the ‘members’ of a whole”. Remember significa lembrar ou recordar, e member significa parte ou membro, daí “juntar as ‘partes’ de um todo”. [R.R.B] 8 Hannah Arendt, “Preface”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Cleveland e Nova York, Meridian, 1961, p. 5.
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Walter Benjamin,9 e outra inspirada pela fenomenologia de Husserl e Heidegger, de acordo com a qual toda memória é uma recordação mimética das origens perdidas do fenômeno, como se este estivesse contido em alguma experiência humana original. Em concordância com esta última abordagem, há vários lembretes em A condição humana do “significado original da política” ou da distinção “perdida” entre o “privado” e o “público”.10 O conceito que talvez melhor ilustre a ambiguidade de Arendt entre a história fragmentária e Ursprungsphilosophie é o conceito de “espaço público”. Essa figura topográfica do discurso é sugerida cedo em sua obra, ao fim de Origens do totalitarismo, para comparar várias formas de regime político [political rule]. O governo constitucional é comparado a mover-se dentro de um espaço em que a lei funciona como as cercas erigidas entre os edifícios, e orientamo-nos em território conhecido. A tirania é como o deserto; sob condições de Cf. a afirmação de Arendt com a nota A anexada à edição inglesa de “Theses on the philosophy of history”, de Benjamin, (que Arendt editou em inglês): o historicismo se contenta com o estabelecimento de uma conexão causal entre vários momentos na história. Mas nenhum fato que é causa é, por essa mesma razão, histórico. Ele se torna, na verdade, histórico postumamente, por meio de eventos que podem ser separados dele por mil anos. Um historiador que o toma como seu ponto de partida, para de contar a sequência de eventos, como as contas de um rosário. Em vez disso, ele prende a constelação que sua própria era formou à uma constelação anterior definitiva. Assim, ele estabelece uma concepção do presente como o “tempo do agora”, que é matizado com partes de um tempo messiânico”, In: Walter Benjamin, Illuminations, ed. e intro. H. Arendt, Nova York, Schocken, 1969.
9
10
Arendt, The human condition, 8 ed., University of Chicago Press, Chicago, 1973, p. 23, 31 et seq.
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tirania, movemo-nos em um espaço desconhecido, vasto e aberto, em que a vontade do tirano de vez em quando recai sobre alguém, como uma tempestade de areia que surpreende o viajante do deserto. O totalitarismo não possui uma tipologia espacial: ele é como um cinturão de ferro, que comprime as pessoas cada vez mais próximas umas das outras até que elas se tornam uma só.11 De fato, se o conceito de “espaço público” de Arendt for localizado no contexto de sua teoria do totalitarismo, ele adquire um foco bastante diferente daquele dominante em A condição humana. Os termos “agonístico” e “associativo” podem capturar esse contraste. Segundo a perspectiva “agonística”, o domínio público representa aquele espaço de aparências em que a grandeza moral e política, o heroísmo e o prestígio, são revelados, exibidos e compartilhados com os outros. Esse é um espaço competitivo, em que se compete por reconhecimento, prestígio e aclamação; em última análise, é o espaço em que se busca a garantia contra a futilidade e a passagem de todas as coisas humanas: Pois a polis era para os gregos, como a res publica para os romanos, em primeiro lugar a garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à imortalidade, dos mortais.12 Arendt, The origins of totalitarianism, Nova York, Harcourt, Brace and Jovanovich, 1968, cap. 13, p. 466.
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Arendt, The human condition, 8 ed., University of Chicago Press, Chicago, 1973, p. 56. [Arendt, A condição humana, p. 66].
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Em contraste, a perspectiva “associativa” do espaço público sugere que tal espaço emerge quando e onde, nas palavras de Arendt, “homens agem em concerto”.13 Nesse modelo, o espaço público é o espaço “em que a liberdade pode aparecer”.14 Ele não é um espaço em um sentido topográfico ou institucional: uma assembleia municipal ou a praça da cidade em que as pessoas não “agem em concerto” não é um espaço público nesse sentido arendtiano. Mas uma sala de jantar privada em que as pessoas se reúnem para ouvir um Samizdat ou em que dissidentes se encontram com estrangeiros podem se tornar espaços públicos; assim como um campo ou uma floresta também podem se tornar um espaço público se eles são o objeto e o lugar de uma “ação em concerto”, de um protesto para parar a construção de uma rodovia ou de uma base aérea militar, por exemplo. Essas localidades topográficas diversas se tornam espaços públicos na medida em que se tornam os “locais” de poder, 13
A negação persistente de Hannah Arendt da “questão das mulheres” e sua inabilidade de relacionar a exclusão das mulheres da política a essa concepção do espaço público, agonística e dominada por homens, é espantosa. A “ausência” das mulheres como atores políticos coletivos, na teoria de Arendt – indivíduos como Rosa Luxemburgo estão presentes –, é uma questão difícil, mas começar a pensar sobre isso significa, primeiramente, desafiar a separação entre privado-público em seu pensamento, na medida em que ela corresponde à tradicional separação das esferas entre os sexos (homens = vida pública; mulheres = esfera privada). Eu exploro essas questões mais extensivamente em The reluctant modernism of Hannah Arendt (Sage, Beverly Hills, em preparação). Arendt, “Preface”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Cleveland e Nova York, Meridian, 1961, p. 4.
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da ação comum coordenada por meio do discurso e da persuasão. A violência pode ocorrer em privado e em público, mas sua linguagem é essencialmente privada porque é uma linguagem de dor. A força, como a violência, pode ser localizada em ambos os domínios. De certa forma, ela não possui linguagem, e a natureza permanece sua fonte por excelência. Ela se move sem precisar persuadir ou machucar. Poder, entretanto, é a única força que emana da ação, e provém da ação mútua de um grupo de seres humanos: uma vez agindo, é possível realizar coisas, e então se tornar uma fonte de um tipo diferente de “força”. A distinção entre os modelos “agonal” e “associativo” corresponde à experiência grega em oposição à experiência moderna da política. O espaço agonal da polis foi possível graças a uma comunidade moralmente homogênea e politicamente igualitária, mas exclusivista, em que a ação pode também ser revelação do self aos demais. Sob condições de homogeneidade moral e política, e da falta de anonimato, a dimensão “agonal”, a competição por excelência entre iguais, pode acontecer. Mas porque o espaço público moderno é essencialmente poroso, nem o acesso a ele nem sua pauta de debate pode ser predefinida pelo critério de homogeneidade política ou moral. Com a entrada de cada novo grupo no espaço público da política, após as revoluções francesa e americana, o âmbito do público foi estendido. A emancipação dos trabalhadores tornou as relações de propriedade questões público-políticas; 198
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a emancipação das mulheres significou que a família e a chamada esfera privada se tornaram questões políticas; a obtenção de direitos por povos não brancos e não cristãos colocou questões culturais do self coletivo, e representações do outro, na pauta da discussão pública. Não apenas a pauta da discussão é o “tesouro perdido” das revoluções que, eventualmente, todos podem participar, mas, além disso, quando a liberdade emerge da ação em concerto, não pode haver uma pauta que predefina o tópico da conversação pública. A distinção entre o “social” e o “político” não faz sentido no mundo moderno, não porque toda política se tornou administração e porque a economia se tornou o “público” por excelência, como Hannah Arendt pensou, mas principalmente porque a luta para tornar algo público é uma luta por justiça. Talvez o episódio que melhor ilustre esse ponto cego no pensamento de Hannah Arendt seja aquele da dessegregação das escolas em Little Rock, Arkansas. Arendt comparou as exigências dos pais negros, apoiadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, para que seus filhos fossem aceitos em escolas que previamente apenas admitiam brancos, ao desejo do parvenu social de ganhar reconhecimento em uma sociedade que não se importava em admiti-lo. Dessa vez Arendt não conseguiu fazer uma “distinção refinada” e confundiu uma questão de justiça pública – igualdade de acesso educacional – com uma questão de preferência social – quem são meus amigos e quem eu convido para jantar. Conta a seu favor, 199
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entretanto, o fato de que, após a intervenção do romancista negro Ralph Ellison, ela teve a delicadeza de reverter sua posição.15 Na raiz das indecisões de Arendt, nessa questão, está um problema mais importante, a saber, seu essencialismo fenomenológico. De acordo com pressupostos essencialistas, o “espaço público” é definido ou como um espaço em que apenas um certo tipo de atividade, isto é, a ação, em oposição ao trabalho e à fabricação, acontece, ou ele é delimitado a partir de outras esferas “sociais”, com referência ao conteúdo substantivo do diálogo público. Ambas as estratégias levam a becos sem saída. Notemos que a diferenciação entre tipos de atividade em trabalho, obra e ação e o princípio do espaço público operam em níveis diferentes. Diferentes tipos de atividade, como obra e trabalho, podem se tornar o locus do “espaço público” se forem desafiados e colocados em questão reflexivamente a partir do ponto de vista das relações de poder assimétricas que os governam. Para dar alguns exemplos: obviamente, as “cotas de produtividade” nas fábricas, quantas peças por hora um trabalhador deve produzir, pode se tornar um assunto de “interesse público” se a legitimidade, o direito e as razões daqueles que estabelecem as cotas forem desafiados. Igualmente, como experiências recentes V. Hannah Arendt, “Reflections on Little Rock,” Dissent, 6.1, Winter 1959, p. 45-56; Ralph Ellison in Who Speaks for the Negro?, R. P. Warren (ed.), Nova York, Random House, 1965, p. 342-344; e Arendt, em carta para Ralph Ellison, em 29 de julho, 1965, citada por Young-Breuhl, Hannah Arendt: for love of the world, New Haven, Yale University Press, 1982, p. 316.
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nos mostraram, mesmo as questões mais complexas de estratégia nuclear, como o número de ogivas nucleares em um míssil, o tempo necessário para desativá-los etc., podem ser “recuperados” por um público sob condições de legitimação democrática, e se tornar parte do conteúdo de nossa “res publica”. Arendt, em contraste, relegou certos tipos de atividade, como a obra e o trabalho e, por extensão, a maioria, se não todas, as questões de economia e tecnologia, exclusivamente para o domínio “privado”, ignorando que essas atividades e relações, na medida em que se baseiam em relações de poder, também podem se tornar assuntos de disputa pública. Igualmente, a tentativa de definir o “espaço público”, ao especificar o conteúdo da conversação pública, é em vão. Mesmo em termos arendtianos, o efeito de uma ação coletiva em concerto será colocar sempre itens novos e inesperados na pauta do debate público. A própria Arendt, no modelo “associativo”, desenvolveu um conceito de espaço público que não é substantivo, mas procedimental, e que de fato é compatível com essa perspectiva. O que é importante aqui não é tanto o conteúdo do discurso público, mas sim a forma como esse discurso acontece: força e violência destroem a especificidade do discurso público ao introduzir uma linguagem “muda” de superioridade física e coerção, e ao silenciar a voz da persuasão e da convicção. Apenas o poder é gerado pelo discurso público e é sustentado por ele. Do ponto de vista desse modelo procedimental, nem a distinção entre o social e o político 201
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nem a distinção entre obra, trabalho e ação são relevantes. O que está em jogo é o questionamento reflexivo de problemas por todos aqueles afetados pelas suas previsíveis consequências e pelo reconhecimento de seu direito de questioná-los. Quando comparadas às reflexões de Hannah Arendt, a vantagem do conceito liberal de espaço público é que a ligação entre poder, legitimidade e discurso público se torna mais explícita. Ainda assim, esse modelo também é mais estéril que o modelo arendtiano, na medida em que concebe a política de forma demasiadamente próxima à analogia das relações jurídicas, perdendo, dessa forma, a ênfase na espontaneidade, na imaginação, na participação e no empoderamento, que Arendt acreditava ser a marca da política autêntica quando e onde ela acontecia. O modelo liberal de espaço público como “diálogo público” Com seu modelo de “diálogo liberal”, Bruce Ackerman expressa uma doutrina fundamental do liberalismo contemporâneo: liberalismo é uma forma de cultura política em que a questão da legitimidade é a questão suprema.16 Liberalismo é uma forma de falar sobre o poder e publicamente justificá-lo, uma cultura política de diálogo público, baseada em certos tipos de restrições conversacionais. A restrição conversacional Bruce Ackerman, Social justice in the liberal state, Yale University Press, New Haven, 1980, p. 4.
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mais significativa no liberalismo é a neutralidade, que determina que nenhuma razão, em um discurso de legitimação, pode ser uma boa razão, caso ela requeira que o titular do poder afirme duas pretensões: a) que sua concepção de bem é melhor do que a afirmada pelos outros cidadãos; ou que b) independentemente de sua concepção de bem, ele é intrinsecamente superior a um ou mais dos demais cidadãos.17 Bruce Ackerman baseia sua defesa do diálogo público “não em alguma característica geral da vida moral, mas no modo característico pelo qual o liberalismo concebe o problema da ordem pública”.18 Sua questão é: como grupos primários diferentes, dos quais apenas sabemos que não compartilham a mesma concepção de bem, podem “resolver o problema da coexistência de uma forma razoável”.19 Ackerman acredita que os cidadãos em um Estado liberal devem ser guiados por um Imperativo Pragmático Supremo (IPS), que estabelece que eles devem estar dispostos a participar de um diálogo contínuo sobre sua concepção de bem com outros cidadãos que não são membros de seu grupo primário. Ackerman se preocupa em encontrar uma justificação para esse imperativo que não caia nas três armadilhas que tradicionalmente afetam as filosofias morais do liberalismo. É preciso encontrar uma Bruce Ackerman, Social justice in the liberal state, Yale University Press, New Haven, 1980, p. 11.
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“Why Dialogue?”, Journal of Philosophy, 86, Jan. 1989, p. 8.
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Ibid., p. 9
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justificação para o IPS que não se baseie em prioridades [trumping], isto é, em afirmar desde o início uma perspectiva moral como superior às outras. Além disso, não se pode presumir, como o fazem os utilitaristas, que existe um manual de tradução neutro o suficiente em sua linguagem e nos termos dos quais nossos vários compromissos morais podem ser formulados. De acordo com Ackerman, esse manual de tradução violaria o senso de bem de uma das partes. Finalmente, não se pode pedir aos participantes que assumam uma “perspectiva transcendental” como uma precondição para iniciar um diálogo. Essa perspectiva transcendental, digamos, o ponto de vista da “posição original” ou o da “situação ideal de fala”, abstrai-se tão radicalmente da condição das diferenças existentes, que ela força os participantes do diálogo público a assentir a verdades morais que eles não apoiam. A solução para isso é o caminho da “restrição conversacional”. Quando você e eu aprendemos que discordamos sobre uma ou outra dimensão da verdade moral, não devemos procurar por algum valor comum que irá triunfar sobre esse desacordo; nem devemos tentar traduzir nosso desacordo moral em uma estrutura supostamente neutra; nem devemos buscar transcender nosso desacordo conversando sobre como uma criatura hipotética o resolveria. Nós devemos simplesmente não dizer absolutamente nada sobre esse desacordo e tentar resolver nosso problema invocando premissas sobre as quais nós de fato concordamos.
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Ao nos restringirmos dessa forma, não precisamos perder a chance de conversarmos uns com os outros sobre nossos desacordos morais mais profundos, em inúmeros outros contextos mais privados. Ao limitar a conversação dessa forma, podemos, como alternativa, usar o diálogo para propósitos pragmaticamente produtivos: identificar premissas normativas que todos os participantes políticos acham razoáveis (ou, pelo menos, não desarrazoados).20
A justificação pragmática da “restrição conversacional” não é moralmente neutra; essa justificação supera certas concepções de boa vida na medida em que as torna privadas e as coloca para fora da pauta do debate público no Estado liberal.21 Não apenas Bruce Ackerman, “Why Dialogue?”, Journal of Philosophy, 86, Jan. 1989, p. 16-17, grifos meus. Ackerman não é claro se, por princípio de “restrição conversacional” e “neutralidade”, ele que dizer a versão afirmada em seu artigo mais recente, que na verdade remove concepções morais controversas da pauta pública do debate no Estado liberal, ou se ele quer dizer a versão defendida em Social justice in the liberal State, que restringe os tipos de fundamentos que se pode apresentar ao justificar sua concepção de bem, sem, entretanto, excluir essas concepções de serem manifestadas em público, v. Social justice in the liberal State, p. 11. Eu não tenho dificuldades em aceitar o segundo argumento, por razões explicadas no capítulo 2, e relativas à lógica das argumentações morais. É a sua versão mais recente que considero indefensável. A resposta de Ackerman aos seus críticos, “What is neutral about neutrality?”, também não esclarece melhor a questão, v. Ethics, 93, jan. 1983, p. 372-390.
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Eu modifiquei este parágrafo nesta versão deste artigo. Meu argumento original, que mantinha que a posição de Ackerman “superava” as perspectivas daqueles grupos primários que não viam “a paz pública e a ordem” como o bem supremo,
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membros de certos grupos religiosos, que podem ainda querer converter outros à sua fé, mas também todos os grupos que trabalham por uma mudança radical da estrutura social teriam de se retirar da arena pública do Estado liberal para outros contextos mais “privados”. A diferença entre minha defesa de uma ética comunicativa, que também “supera” certas perspectivas convencionais da moralidade, e a defesa de Bruce Ackerman das restrições conversacionais é que, no modelo do discurso prático, que provém da ética comunicativa, nenhum ponto de debate e nenhuma concepção de boa vida estão impedidos de serem exprimidos na arena pública do Estado liberal. Ackerman e eu concordamos que as perspectivas convencionais da moralidade provavelmente não são imparciais e compreensivas o suficiente para permitir a coexistência pública de concepções de boa vida diferentes e que competem entre si. Portanto, elas não servem como fundamentos morais de um Estado não tocava exatamente no ponto. Já que todos nós, teóricos da ética comunicativa, não menos que os teóricos liberais, estamos preocupados com a coexistência civil e pacífica em sociedades modernas e complexas, as perspectivas de grupos que rejeitam esses princípios de coexistência claramente apresentam um caso-limite para nossas considerações. Suas perspectivas, entretanto, dificilmente podem ser consideradas como o caso representativo dos quais deve-se proceder ao deliberar sobre esses assuntos. A questão da marginalização política, cultural e moral é uma questão extremamente difícil de resolver em sociedades que são, cada vez mais, multinacionais, multirraciais e multiculturais. Meu pressuposto é que o modelo de espaço público radicalmente aberto e igualitário que eu defendo tem uma chance maior de dar acesso aos marginalizados à pauta do diálogo público, assim eliminando algumas das causas de sua marginalidade.
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liberal-democrático. Ainda assim, deve-se permitir que elas existam em um Estado desse tipo, como concepções parciais de bem que desfrutam de um fórum público equitativo, juntamente com outras perspectivas mais abrangentes.22 Parte da dificuldade da posição de Ackerman provém de uma falta de precisão em relação ao que constitui a “pauta do Estado liberal”. Ackerman quer dizer, com essa frase, a Constituição e os debates no nível da Suprema Corte, ou ele quer dizer a imprensa eletrônica e impressa, ou outros fóruns públicos, como malas-diretas, reuniões abertas etc.? As mesmas restrições de neutralidade podem não ser automaticamente válidas para todos os fóruns públicos em nossas sociedades; é por isso que os conflitos entre o direito constitucional à liberdade de expressão e a prática real das associações e dos cidadãos tendem a ser um aspecto recorrente de uma sociedade liberal-democrática. Por exemplo, o racismo na mídia pode ser permitido? A liberdade artística nos permite encenar peças que algumas pessoas consideram “antissemitas”? Eu concordo inteiramente com Ackerman que certas formas de restrições conversacionais podem ser completamente apropriadas e desejáveis para o sistema legal nas sociedades modernas. Como argumentei no capítulo 2, o que se quer dizer, nesse contexto, com o termo “neutralidade” é que as normas incorporadas nas instituições públicas e jurídicas das nossas sociedades devem ser tão abstratas e gerais de modo a permitir o florescimento de várias formas de vida diferentes, e muitas concepções de bem diferentes. É a pluralidade, tolerância e diversidade na cultura, na religião, nos estilos de vida, no gosto estético e nas expressões pessoais que devem ser encorajadas. Em uma situação de conflito entre concepções de bem diversas, deve-se apelar aos princípios incorporados nas constituições das democracias liberais, como os direitos civis e políticos básicos. O sistema jurídico moderno realiza a mediação das demandas conflitantes entre várias formas de vida, estilos de vida e perspectivas de bem. Nos casos em que há um conflito entre os princípios da justiça – que tornam possível a coexistência entre adeptos de concepções de bem divergentes – e os princípios de outras concepções mais parciais de bem – das quais sabemos que eles não podem ser generalizados para além dos seus adeptos específicos –, a justiça tem prioridade sobre essa concepção particular de bem. Isso parece-me ser a única concepção de “neutralidade” defensável em um Estado liberal; mas o
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A justificação pragmática não apenas supera como também “transcende” essas concepções parciais, porque requer que as partes da conversação concordem em “não dizer nada sobre” os desacordos fundamentais. Não fica claro por que esse acordo em não falar sobre desacordos fundamentais em público é uma presunção menos opressora ou controversa que um “véu da ignorância”, que requer que simulemos ignorância sobre nossa concepção de bem. Se estou profundamente comprometida com a crença de que as concepções prevalentes de divisão sexual do trabalho em nossas sociedades são moralmente erradas porque elas oprimem as mulheres e impedem a plena expressão de si mesmas como seres humanos, por que eu deveria concordar em não fazer o melhor que posso para tornar essa uma questão pública e para convencer os outros de meu ponto de vista? Ou suponhamos que eu seja um membro da oposição israelense à ocupação da Cisjordânia e dos territórios de Gaza. Eu considero essa ocupação errada não por razões pragmáticas, mas por razões morais, porque acredito que a ocupação está modelo de restrição conversacional que Ackerman tem em vista não apenas limita as formas de justificação a serem usadas pelas principais instituições públicas em nossas sociedades, como a Suprema Corte, o Congresso e outras; em vez disso, ele limita a extensão do debate em um Estado liberal, que pode, muito bem, envolver concepções de bem divergentes, incompatíveis ou mesmo hostis. Contanto que essa conversação agonística não leve à imposição de uma compreensão de bem sobre todas as outras como uma forma de vida oficialmente sancionada, não há razão por que essas concepções parciais de bem não possam aparecer, competir e argumentar umas com as outras, no espaço público de um Estado liberal.
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corrompendo os valores éticos do povo judaico. Posso muito bem estar ciente de que, sob as condições atuais, a opinião pública está tão dividida que não tenho chances de conquistar assentimentos; ainda assim, não é razoável de minha parte buscar o fórum mais amplo possível de discussão e participação públicas para expressar minhas perspectivas, em vez de, como Ackerman defende, concordar em não falar sobre o que é de maior interesse para mim? Ou a justificação de Ackerman do IPS se baseia em fundamentos morais mais fortes do que ele admite ou ele não pode reivindicar o status supremo que o IPS deveria possuir.23 Não é concebível que existam situações em que restringir o diálogo público, em uma constituição política, possa ser uma opção moralmente desejável. Os exemplos mais frequentemente citados são considerações de segurança nacional ou o que a tradição costumava chamar de “raison d’état”. Eu devo admitir que sou extremamente cética até mesmo em relação a esses casos que parecem de início plausíveis moralmente, em que se levaria à imposição de “leis da mordaça” em uma sociedade. Levemos em consideração o caso da supressão, pelo Departamento de Estado e por alguns funcionários dos meios de comunicação, das notícias da exterminação de judeus e da construção de campos de concentração na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. A fim de não exacerbar a pressão pública para que os Estado Unidos entrassem na guerra, o governo temporariamente censurou as notícias. É tão claro, no entanto, qual é o melhor argumento em um caso como esse? As considerações de segurança nacional dos EUA naquele momento na história eram tão claramente superiores às reivindicações morais dos judeus europeus em demandar, de qualquer um, socorro e um fim de seu extermínio? E não seria mais desejável, por razões morais, para o público americano ser informado de imediato, e tanto quanto o possível, dessas circunstâncias, em vez de sob condições de um esforço de guerra cuidadosamente orquestrado? (Cf. David S. Wyman, The abandonment of the Jews (Pantheon, Nova York, 1984). Ironicamente, enquanto essas linhas estão sendo escritas, o comando militar das Forças Aliadas no Golfo Pérsico e os meios de comunicação estão lutando
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Mas o caminho da restrição conversacional é de fato tão arbitrário? Por que não o considerar como uma daquelas restrições procedimentais do diálogo, com que todos nós temos de concordar, por motivos razoáveis e morais, ou até mesmos por motivos completamente pragmáticos? A ideia de restrição conversacional, como foi apresentada até aqui, pressupõe uma epistemologia moral questionável, que implicitamente justifica uma separação entre o público e o privado que é opressiva em relação a certos grupos. Por esses motivos, também seu poder de persuasão moral é limitado.
pela justificação e pela extensão da censura militar na cobertura dos eventos no Golfo. Nenhuma das partes dessa controvérsia questiona o princípio de que, em uma situação de guerra, a fim de não violar a segurança das tropas, ou revelar informações sobre a logística, transporte e equipamentos secretos, certas restrições devem ser respeitadas. Para além dessas regras de restrições jornalísticas autoimpostas, o exercício de censura pelos militares viola o direito do público de saber e de formar uma opinião a respeito de um assunto tão crucial quanto guerra e paz. A situação no Golfo Pérsico mostra mais uma vez a incompatibilidade entre democracia e “leis da mordaça” em uma sociedade. Acredito que o ônus moral da prova, em casos em que essas restrições sobre a liberdade de expressão e o livre fluxo de informações são impostas, recai quase sempre nos ombros dos defensores da “lei da mordaça”. Ainda assim, todo regime político em que o discurso político é uma instituição respeita certas restrições para o uso da liberdade de expressão; além disso, indivíduos e associações podem ser guiados por um certo senso do que é o “discurso público” apropriado. Uma teoria filosófica e moral do diálogo público, que vê o diálogo como um procedimento para a legitimação moral, aceita garantias constitucionais à liberdade de expressão, bem como sugere algumas normas de diálogo público. Mas, na medida em que essa teoria também é crítica das relações existentes, essa perspectiva pode questionar tanto as práticas jurídicas existentes quanto os códigos culturais do discurso, do ponto de vista de uma norma moral.
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Com “epistemologia moral” do modelo da restrição conversacional, eu quero dizer o seguinte: o teórico liberal da restrição conversacional pressupõe que grupos primários da conversação já sabem de antemão quais são seus desacordos mais profundos, antes mesmo de iniciar a conversação. Esses grupos já parecem convencidos que um problema particular é uma questão moral, religiosa ou estética, em oposição a uma questão de justiça distributiva ou de política pública. Embora possamos discutir legitimamente as questões do segundo tipo, diz o teórico liberal, convém nos abstrairmos das primeiras. Tomemos, entretanto, questões como aborto, pornografia e violência doméstica. Que tipo de questões são essas? São questões de “justiça” ou de “boa vida”? O teórico moral ou político não possui um dicionário moral ou uma geometria moral nesse assunto de forma a ajudá-lo a classificar essas questões como assuntos de “justiça” ou de “boa vida”. Em parte, é o diálogo público irrestrito que nos ajudará a definir a natureza das questões que estamos debatendo. Certamente, como cidadãos e teóricos, adentramos a luta pública com um conjunto de opiniões, princípios e valores mais ou menos articulados e previamente formados. Como cidadãos e teóricos democráticos, nós somos participantes em um debate, mas não devemos buscar definir a pauta desse debate. Nós podemos, com base em princípios e valores mais ou menos fundamentados, querer sustentar que o aborto deveria ser considerado um assunto de escolha individual para as 211
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mulheres envolvidas; mas não é um consenso (inexistente) sobre qual tipo de questão é esta que nos leva a essa posição. Pelo contrário, nossa perspectiva é informada pelos princípios de autonomia moral e escolha moral, o direito das mulheres à autorrealização e alguma sensibilidade para os aspectos frequentemente trágicos e irreconciliáveis de nossos compromissos de valor. De fato, os cidadãos devem se sentir livres para apresentar, nas palavras de Bruce Ackerman, “todo e qualquer argumento moral no campo conversacional”. Pois apenas após o diálogo ser aberto dessa forma radical podemos ter certeza de que chegamos a um acordo sobre uma definição mutuamente aceitável do problema, e não que chegamos a um consenso de concessões. A questão da pornografia ilustra bem o meu ponto. Essa questão tem causado tanto dissenso e criado alianças tão estranhas e profanas – como a aliança entre Andrea Dworkin e Jerry Falwell – que é o exemplo paradigmático do tipo de desacordo moral que o modus vivendi liberal pode insistir para que concordemos em não discordar publicamente sobre ela. Se a pornografia deve ser definida como uma questão de limitações razoáveis a serem impostas aos direitos de liberdade de expressão da Primeira Emenda; se a pornografia deve ser pensada como uma questão moral e privada, relacionada a questões de estilo e preferência sexual; se a pornografia deve ser pensada como uma questão de sensibilidade estético-cultural e como uma questão de fantasia artística – nós 212
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simplesmente não podemos saber, antes que o processo de diálogo público irrestrito tenha ocorrido. Tal como Ackerman, eu não quero viver em uma sociedade que não consegue distinguir entre a revista Hustler e O apanhador no campo de centeio, de Salinger, ou em uma sociedade que colocaria Henry Miller e D.H. Lawrence na companhia de Garganta profunda. Por mais suscetível que se possa ser ao tradicional medo liberal de que a conversação pública ilimitada possa erodir aquelas poucas garantias constitucionais em que acreditamos, a reprivatização de questões que se tornaram públicas apenas gera confusão conceitual, ressentimento político e indignação moral. Considero que limitações ao conteúdo e ao alcance do diálogo público para além das garantias constitucionais da liberdade de expressão são desnecessárias. Uma teoria normativa com essas restrições conversacionais não consegue se tornar um modelo crítico de legitimação. Uma limitação adicional do modelo liberal de espaço público é que ele frequentemente concebe as relações políticas de forma muito semelhante ao modelo das relações jurídicas. A principal preocupação, expressada na ideia de “neutralidade dialógica”, é a da coexistência legítima de diferentes grupos, cada um subscrevendo a uma concepção diferente de bem em uma sociedade pluralista. O justo em sociedades modernas, diz-se, deve ser neutro em relação aos pressupostos fundamentais sobre a boa vida. Neutralidade é, de fato, um dos pilares do sistema jurídico moderno: a lei promulgada, 213
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moderna, diferentemente da lei consuetudinária antiga, não deve moldar “eticamente” o caráter, mas deve prover o espaço em que indivíduos autônomos podem perseguir e desenvolver várias concepções de boa vida. Mesmo sob condições de uma sociedade moderna, pluralista e democrática, entretanto, a política trata de algo diferente da “neutralidade”. A política democrática desafia, redefine e renegocia as divisões entre o bom e o justo, o moral e o legal, o privado e o público. Pois essas distinções, na forma como foram estabelecidas pelos Estados modernos, ao final de lutas sociais e históricas, contêm dentro de si o resultado de concessões e acordos históricos de poder. Para ilustrar esse ponto: antes do surgimento de um movimento forte da classe trabalhadora e do consequente estabelecimento de medidas do tipo do bem-estar social nos países europeus e na América do Norte, questões relacionadas à saúde dos trabalhadores no local de trabalho, problemas de acidentes no trabalho e, nos nossos dias, os efeitos colaterais nocivos de certos produtos químicos, eram frequentemente vistos pelos empregadores como questões de “segredos comerciais” ou “privacidade dos negócios”. Como um resultado de lutas políticas, a definição dessas questões foi transformada de segredos comerciais e práticas privadas de negócios para questões centrais de “interesse público”. O princípio da neutralidade liberal não é útil para guiar nossos pensamentos nesses assuntos. Tudo o que ele diz é que uma vez que essa redefinição e 214
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essa renegociação política entre o correto e o bem tenha ocorrido, então a lei deve ser neutra; quer dizer que o OSHA (Office of Safety and Health Administration ou Gabinete de Segurança e Administração de Saúde) deveria ser neutro ao aplicar essa legislação a lavanderias chinesas, restaurantes italianos ou à companhia Lockheed. Mas o diálogo público não é sobre o que todas as lavanderias chinesas, todos os restaurantes italianos ou a corporação Lockheed sabem que concordam, mesmo antes de entrarem na incursão pública; em vez disso, o diálogo público significa desafiar e redefinir o bem coletivo, e o próprio sentido de justiça como um resultado da incursão pública. O princípio liberal de neutralidade dialógica, enquanto expressa um dos princípios fundamentais do sistema jurídico moderno, é demasiadamente restritivo e insensível em sua aplicação às dinâmicas das lutas de poder nos processos políticos reais. Uma vida pública, conduzida de acordo com o princípio de neutralidade dialógica liberal, não apenas não teria uma dimensão agonística da política, nos termos arendtianos, mas talvez restringiria, ainda mais severamente, o âmbito da conversação política de uma forma que seria contrária aos interesses dos grupos oprimidos. Todas as lutas contra a opressão no mundo moderno começam ao redefinir o que previamente foi considerado “privado”, que foram consideradas questões não públicas e não políticas, como assuntos de interesse público, como questões de justiça, como locais de poder que precisam de legitimação discursiva. A esse respeito, o movimento das mulheres, o movimento pacifista, 215
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o movimento ecológico e os novos movimentos de identidade étnica seguem uma lógica similar. Não há muito espaço no modelo liberal de neutralidade para pensar sobre a lógica dessas lutas e desses movimentos sociais. Na linguagem arendtiana, o liberalismo ignora a dimensão “agonística” da vida pública-política. Isso não é uma grande surpresa dadas as preocupações históricas das quais surgiu o liberalismo político e para as quais ele buscou respostas, como os limites do poder do Estado absolutista e os problemas relacionados à tolerância religiosa. A procura por uma ordem política justa, estável e tolerante é a marca distintiva da teoria política liberal. Essa busca também levou a um foco excessivo, no liberalismo contemporâneo, nos limites e na justificação do poder do Estado e de outras agências públicas, negligenciando outras dimensões da vida política, como a vida nas associações e movimentos políticos, grupos de cidadãos, reuniões municipais e fóruns públicos. Nas palavras perspicazes de Benjamin Barber, dentre as condições cognitivas do liberalismo contemporâneo, parece haver “uma antipatia à democracia e às suas estruturas institucionais fundamentais (participação, educação cívica, ativismo político) e uma preferência por versões fracas, e não fortes, da vida política, em que cidadãos são espectadores e clientes enquanto políticos são profissionais que governam de fato...”.24 Com certeza, esse não é Benjamin Barber, The conquest of politics: liberal philosophy in democratic times, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1988, p. 18.
24
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o lugar para resolver o velho conflito entre liberalismo e democracia. A observação de Benjamin Barber é bastante acertada na medida em que nos ajuda a entender por que o conceito de “espaço público”, como um espaço de deliberação política, ação e trocas, tem esse papel mínimo no liberalismo contemporâneo. É como se, uma vez que a “assembleia constitucional”, em que selecionamos os princípios de uma associação política justa, se encerra, os cidadãos de um estado liberal se retiram para suas residências privadas e abandonam a arena democrática da troca política. O contraste entre deliberação democrática, do tipo da vislumbrada por Arendt e Barber, e a concepção liberal de diálogo público pode ser bem capturada quando justaposta à ideia de “razão pública livre”, de John Rawls. Rawls especifica esse princípio da seguinte maneira: Assim como uma concepção política de justiça precisa de certos princípios de justiça para a estrutura básica especificar seu conteúdo, ela também precisa de certas diretrizes de investigação, e de regras, reconhecidas publicamente, de avaliação de evidência para governar sua aplicação. Caso contrário, não existe uma maneira acordada para determinar se esses princípios estão sendo satisfeitos, e para estabelecer o que eles requerem de instituições particulares, ou em situações particulares [...] E dado o fato do pluralismo, não há, na minha opinião, alternativa prática melhor do que nos limitarmos aos métodos compartilhados pelo, e ao conhecimento público
217
Situando o self
disponível ao, senso comum, e aos procedimentos e às conclusões da ciência, quando ambos não forem controversos.25
Rawls acrescenta a observação muito importante de que: “A máxima de que a justiça não deve apenas ser feita, mas deve ser vista, é válida não apenas para a lei, mas também para a razão pública livre”.26 A ideia de que a justiça das instituições esteja “sob o olhar público”, por assim dizer, para que o público a escrutine, a examine e reflita sobre ela, é fundamental. Um dos dogmas centrais do liberalismo, e um que possui suas raízes na primazia política do consentimento das teorias do contrato social, é o reconhecimento de que a legitimação do poder ou o exame da justiça das instituições é um processo público, aberto para a participação de todos os cidadãos. Do ponto de vista de um modelo discursivo de legitimidade, isso também é crucial. Notemos, entretanto, que, para Rawls, “razão pública livre” não descreve o tipo de raciocínio usado pelos cidadãos e seus representantes na constituição política. Sem dúvidas, Rawls gostaria que eles exercitassem sua “razão pública livre” dessa maneira. Mas, na forma como a ideia de uma razão pública livre foi formulada, ela se aplica menos a um processo de discussão democrática ou debate parlamentar e mais ao raciocínio de um John Rawls, “The idea of an overlapping consensus”, Oxford journal of legal studies, 7.1, 1987, p. 8.
25
Ibid., p. 21.
26
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Modelos de espaço público
corpo investigativo parlamentar, ou o tipo de investigação que uma agência federal pode conduzir ao determinar se um hospital que recebe fundos públicos também cumpriu com os regulamentos da ação afirmativa. Na perspectiva de Rawls, razão pública livre é a maneira em que associações públicas prestam contas pelos seus feitos e conduzem seus negócios em uma constituição política.27 Enquanto há pouca dúvida de que esse princípio da razão pública livre expresse uma regra normativa, que comanda a responsabilidade pública das instituições fundamentais de uma sociedade liberal-democrática, consideremos também o que falta nesse princípio. Todos os elementos contestatórios, retóricos, afetivos e emocionais do discurso público, com todos os seus excessos e virtudes, estão ausentes dessa perspectiva. Razão pública livre não é um raciocínio público exercido livremente, com toda a exasperadora bagunça ideológica e retórica que ele envolve. Novamente, ao criticar Ackerman, Benjamin Barber mostra bem esse ponto. É a neutralidade que destrói o diálogo, pois o poder da fala política está em sua criatividade, sua variedade, suas sutilezas e complexidades, seu potencial para expressão empática e afetiva – em outras Essa conexão entre modelos de raciocínio apropriado para os órgãos corporativos e a ideia de razão pública livre está mais clara em: John Rawls, “On the idea of free public reason”, palestra ministrada na conferência Liberalism and the moral life, na City University of New York, em abril de 1988.
27
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palavras, em seu caráter profundamente paradoxal e dialético, alguns diriam.28
Certamente, não podemos nos focar apenas nos diálogos de Abraham Lincoln, Adlai Stevenson e Jesse Jackson, e excluir as menos enobrecedoras explosões de Richard Nixon, Fidel Castro ou Nikita Khrushchev. O que a observação de Barber captura, ainda assim, é a dimensão afetiva, contestatória e ilimitada do político por meio da qual a razão pública livre pode assumir um caráter de “raciocínio compartilhado”. A essa concepção de discurso público contestatório29 ou de raciocínio compartilhado, o teórico liberal responderá que, por mais que essa visão seja sublime e enobrecedora, a perspectiva agonística da política deixa as comportas abertas para o capricho das decisões da maioria. O que aconteceria se maiorias não tão nobres desafiassem os princípios da neutralidade e as linhas entre o correto e o bem de maneira a nos levar ao fanatismo religioso, à perseguição de minorias impopulares, à invasão do Estado nos domínios da vida privada, ou mesmo a tolerar a vigilância dos
Barber, The conquest of politics, p. 151.
28
Eu devo essa frase a Nancy Fraser, que a apresentou no contexto de sua discussão sobre os discursos do Estado do bem-estar. Cf. Nancy Fraser, Unruly practices: power, discourse and gender in contemporary social theory, Cambridge, Polity, 1989, p. 144 et seq.
29
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Modelos de espaço público
pais pelos seus filhos, de um cônjuge pelo outro, tudo em nome de algum bem compartilhado? Em resposta a essas preocupações, John Rawls sugere que certos assuntos devam ser retirados da pauta política do Estado liberal, na medida em que: Eles são parte dos princípios fundamentais públicos de um regime constitucional, e não um tópico adequado para legislação e debate público contínuos, como se eles pudessem mudar a qualquer momento, de uma forma ou de outra.30
A rejeição da escravidão e da servidão e a garantia para todas as religiões de igual liberdade de consciência estão entre os tópicos que devem ser retirados da pauta pública do Estado liberal, de acordo com Rawls. Ele acrescenta: Claro, que certos assuntos sejam tirados da pauta política não significa que uma concepção política de justiça não deva explicar por que isso foi feito. De fato, como observei acima, uma concepção política de justiça faz precisamente isso.31
Essa preocupação liberal padrão sobre o efeito corrosivo de uma política majoritária desenfreada sobre as liberdades civis e políticas é, acredito, incontestável. As perspectivas agonísticas do político John Rawls, “The idea of an overlapping consensus”, Oxford journal of legal studies, 7.1, 1987, p. 14, nota 22.
30
Ibid.
31
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frequentemente não prestam atenção às precondições institucionais que devem ser atendidas para que essa política aconteça. Mas, para sociedades democráticas e complexas, o contraste entre as concepções “agonísticas” e “legalísticas” do espaço público pode ser demasiadamente simplista, na medida em que uma estrutura jurídico-constitucional e liberal, que garante igualdade de direitos civis e políticos, como também direitos de consciência, é uma precondição para a participação na cidadania universal. Como devo explorar no próximo capítulo, em suas reflexões sobre o conceito kantiano de juízo, Hannah Arendt confrontou-se com a questão que o teórico liberal chamaria de direitos e liberdades fundamentais, e que eu chamo de fundações normativas do político. Ela não conseguiu oferecer uma solução satisfatória para esse problema e a questão dos pressupostos normativos da política atravessa sua obra como um fio de Ariadne, desde duas reflexões melancólicas sobre “o direito a ter direitos”, em Origens do totalitarismo, a suas meditações sobre constituições, em Sobre a revolução.32 Se os modelos agonístico e legalista do espaço público são insuficientemente complexos para lidar com as realidades de sociedades modernas altamente pluralísticas e distintas e devem ser vistos como complementares e não como excludentes um do outro, então é plausível presumir que uma concepção mais adequada de espaço 32
V. Hannah Arendt, The origins of totalitarianism, parte 2, cap. 5, e On Revolution, Nova York, Viking, 1969, p. 147 et seq.
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Modelos de espaço público
público deveria combinar as duas dimensões. Embora não tenha sido frequentemente apresentado dessa forma, o princípio habermasiano de Öffentlichkeit pode preencher esse requisito. O espaço público discursivo é o correlato sociológico essencial do conceito de legitimidade do discurso. É nesses espaços discursivos que esses diálogos de legitimidade se extinguem. Na próxima seção, explorarei essas características do conceito de Habermas de Öffentlichkeit, mas também gostaria de mostrar como a dimensão contestatória do discurso público é anulada, nesse modelo, pelas rígidas separações que Habermas faz entre “justiça” e “a boa vida”, “necessidades” e “interesse”, “valores” e “normas”. O modelo discursivo de espaço público Desde Mudança estrutural da esfera pública, Habermas analisou o desenvolvimento de sociedades modernas sob a luz da ampliação da esfera de participação pública.33 Junto com a diferenciação social e a criação de esferas de valores independentes, a modernidade traz consigo uma possibilidade tripla.34 No domínio das instituições, a J. Habermas, Structural transformation of the public sphere, trad. de Thomas Burger, Boston, MIT Press, 1989; publicado originalmente como Strukturwandel der Öffentlichkeit, Luchterland, Darmstadt e Neuwied 1962.
33
34
O que se segue é um resumo condensado do argumento do segundo volume de The theory of communicative action e em particular o capítulo sobre a “Dialética da Racionalização”, Boston, Beacon, 1985.
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geração consensual de normas gerais de ação por meio de discursos práticos toma o lugar central. No domínio da formação de personalidade, o desenvolvimento de identidades individuais se torna cada vez mais dependente de atitudes críticas e reflexivas dos indivíduos ao tecerem juntos uma história de vida coerente para além dos papéis convencionais e definições de gênero. Autodefinições – quem alguém é – se tornam cada vez mais autônomas diante das práticas sociais estabelecidas e cada vez mais fluidas quando comparadas aos entendimentos rígidos dos papéis. Da mesma forma, a apropriação de tradições culturais se torna mais dependente de uma hermenêutica criativa de intérpretes contemporâneos. A tradição, no mundo moderno, perde sua legitimidade de simplesmente ser válida porque é como foi no passado. A legitimidade da tradição repousa, agora, em suas apropriações criativas e engenhosas, tendo em vista os problemas de significação no presente. Visto dessa forma tripla, o princípio da participação, longe de ser antítese da modernidade, é um dos seus pré-requisitos principais. Em cada domínio – sociedade, personalidade e cultura – no funcionamento da vida institucional, na formação de personalidades estáveis ao longo do tempo e na continuidade da tradição cultural, o esforço reflexivo e a contribuição de indivíduos tornam-se cruciais. Colocado nesse contexto sociológico mais amplo, o significado de participação é alterado. O foco exclusivo na participação “política” é deslocado para um conceito compreendido muito mais 224
Modelos de espaço público
inclusivamente de “formação discursiva da vontade”. A participação não é vista como uma atividade que é possível, apenas e tão somente, em um domínio político definido estreitamente, mas como uma atividade que pode ser realizada também nas esferas social e cultural. Participar na iniciativa de cidadãos de limpar uma baía poluída não é menos político que debater em periódicos culturais a apresentação pejorativa de certos grupos em termos de imagens estereotipadas (combatendo o sexismo e o racismo na mídia). Esse conceito de participação, que enfatiza a determinação de normas de ação por meio de debates práticos entre todos os afetados por essas normas, tem uma vantagem característica sobre a concepção republicana ou cívica de virtude ao articular uma visão de política em conformidade com as realidades das complexas sociedades modernas. Essa compreensão moderna da participação produz uma nova concepção do espaço público. O espaço público não é compreendido agonisticamente, como um espaço de competição por aclamação e imortalidade entre a elite política; ele é visto democraticamente como a criação de procedimentos por meio da qual aqueles afetados pelas normas sociais gerais e pelas decisões políticas coletivas têm uma voz ativa na sua formulação, estipulação e adoção. Essa concepção de público também é diferente da concepção liberal; pois embora Habermas e os pensadores liberais acreditem que a legitimação em uma sociedade democrática só possa resultar de um diálogo público, no modelo habermasiano esse diálogo não se 225
Situando o self
sustenta sob os limites da neutralidade, mas é julgado de acordo com o critério representado pela ideia de um “discurso prático”. A esfera pública passa a existir quando e onde todos os afetados pelas normas sociais e pelas políticas gerais de ação se envolvem em um discurso prático, avaliando sua validade. Com efeito, pode haver tantos públicos quanto há debates gerais e controversos sobre a validade de normas. A democratização, em sociedades contemporâneas, pode ser vista como um aumento e um crescimento de esferas públicas autônomas entre os participantes. Como Jean Cohen observou astutamente: Tanto a complexidade quanto a diversidade, dentro das sociedades civis contemporâneas, exigem a colocação da questão da democratização em termos de uma variedade de processos, formas e locais diferenciados, dependendo do eixo de divisão considerado. De fato, há uma afinidade eletiva entre o discurso ético e a sociedade civil moderna enquanto terreno em que a pluralidade institucionalizada das democracias pode surgir. 35
Agora, esse modelo de uma pluralidade de espaços públicos que surge, nas sociedades modernas, em torno de questões contestadas de interesse geral transcende a dicotomia entre política da maioria versus garantias constitucionais de liberdades civis, discutida na Jean Cohen, “Discourse ethics and civil society”, In: Philosophy and social criticism, 14.3-4, 1988, p. 328.
35
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Modelos de espaço público
seção anterior. Como explicado previamente, o modelo discursivo de legitimidade e a visão discursiva do espaço público são radicalmente procedimentais. Elas apresentam o diálogo normativo como uma conversação de justificação, que acontece sob as restrições de uma “situação ideal de fala”. As restrições normativas da situação ideal de fala ou dos discursos práticos foram especificadas como as condições de respeito moral universal e reciprocidade igualitária. A presença dessas restrições evita os dilemas dos resultados simplórios de políticas majoritárias. Kenneth Baynes explicou bem esse ponto: “Se não existem restrições substantivas sobre o que pode ser introduzido no discurso prático, o que pode evitar seu resultado de entrar em conflito com algumas de nossas convicções morais profundamente arraigadas? O que pode evitar que os participantes concordem com qualquer coisa ou, talvez mais plausivelmente, que nunca cheguem a qualquer acordo geral?”.36 Baynes sugere que a imposição de certas restrições aos discursos é a única forma de evitar esse dilema. Ainda assim ele enfatiza, bastante na linha de uma sugestão feita anteriormente, que as “restrições impostas ao discurso estão” elas mesmas “sujeitas à justificação discursiva”37 e acrescenta, além disso:
36
Kenneth Baynes, “The liberal/communitarian controversy and communicative ethics”, In: Philosophy and social criticism, 14.3-4, 1988, p. 304. Ibid. V. minha discussão sobre essa questão acima, p. 88-91.
37
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Situando o self
Em um nível menos fundamental, muitas das restrições podem muito bem ser impostas aos discursos em vista de questões e tarefas à mão. É razoável presumir, por exemplo, que os discursos e as liberdades básicas especificadas pelo primeiro princípio de Rawls, e contidos na Constituição dos EUA, serviriam como restrições na maioria dos debates públicos, retirando tópicos de pauta por causa de sua natureza profundamente pessoal ou de sua conexão íntima com esferas reconhecidamente privadas. Entretanto, a discussão sobre a natureza e o âmbito desses direitos é sempre algo que pode se tornar objeto do debate público. À medida que os argumentos sobre os direitos se tornam mais estritamente associados a interpretações específicas de bens sociais, o que vale como um bom argumento, sem dúvida, dependerá mais fortemente das práticas e dos significados compartilhados que compõe o mundo da vida cotidiano [...].38
Como a citação revela, há, para a maioria dos teóricos comunicativos ou teóricos do discurso, uma tensão entre o desejo de que o diálogo sem restrições não seja sujeito às tradicionais restrições liberais, por um lado, e o desejo de que procedimentos de decisão da maioria não corroam os direitos e as liberdades civis, por outro. Eu concordo com Baynes que é plausível formular as “restrições normativas dos discursos” como restrições cuja justiça e adequação podem se tornar, elas mesmas, tópicos de debate. As restrições 38
Kenneth Baynes, “The liberal/communitarian controversy and communicative ethics”, In: Philosophy and social criticism, 14.3-4, 1988, p. 305, grifos meus.
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Modelos de espaço público
normativas dos discursos práticos ocupariam o mesmo lugar nas teorias discursivas de legitimidade e do espaço público que os direitos e as liberdades básicas rawlsianos, especificados no primeiro princípio de justiça, ocupam em sua teoria.39 Onde eu me diferencio tanto da formulação de Rawls, acerca de manter certos tópicos “fora dos limites”, e do desejo de Baynes, de remover esses tópicos da pauta do discurso, é na questão do procedimento. Direitos humanos, civis e políticos básicos, como garantidos na Declaração de Direitos da Constituição dos EUA e como incorporados nas constituições da maioria dos governos democráticos, não estão nunca “fora da pauta” da discussão e do debate público. Eles são simplesmente normas institucionais, constitutivas e regulamentares do debate em sociedades democráticas, que não podem ser transformadas ou revogadas por simples decisões da maioria. A linguagem que mantém esses direitos fora da pauta descaracteriza a natureza do debate democrático em nossos tipos de sociedades; ainda que não possamos modificar esses direitos sem procedimentos políticos e jurídicos extremamente elaborados, estamos sempre disputando seu significado, sua extensão e sua jurisdição. O debate democrático é como um jogo de bola em que não há um árbitro para interpretar 39
O passo que liga as normas do “respeito moral universal” e “reciprocidade igualitária” aos direitos e liberdades básicos não é muito grande, mas é um passo que não será empreendido nesse ensaio. É suficiente afirmar que uma teoria do discurso de direitos e liberdades básicas precisa ser desenvolvida.
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definitivamente as regras do jogo e sua aplicação. Em vez disso, no jogo da democracia, as regras do jogo, não menos que a interpretação delas e mesmo a posição do árbitro, são essencialmente contestáveis. Mas a contestação não significa nem a completa revogação dessas regras nem o silêncio sobre elas. Quando direitos e liberdades básicas são violados, o jogo da democracia é suspenso e se torna ou um regime marcial, ou uma guerra civil, ou uma ditadura; quando políticas democráticas estão funcionando efetivamente, o debate sobre o significado desses direitos, o que eles nos garantem ou não, seu âmbito e aplicação são o conteúdo da política. Na ética comunicativa e na política democrática, assumimos uma distância crítica e reflexiva precisamente em relação àquelas regras e práticas que inevitavelmente sustentamos. Não podemos desafiar a interpretação específica desses direitos e liberdades básicos em uma democracia sem levá-los completamente a sério; da mesma forma, não podemos questionar a textura e a natureza de nossos compromissos morais na ética comunicativa sem um permanente e contínuo envolvimento com eles no nível cotidiano. A teoria discursiva da legitimidade e do espaço público transcende então a tradicional oposição entre políticas da maioria versus garantias liberais dos direitos e liberdades básicas, na medida em que as condições normativas do discurso são, como direitos e liberdades básicos, regras do jogo que podem ser contestadas dentro do jogo desde que se aceite obedecer a elas e se aceite jogar o jogo 230
Modelos de espaço público
de fato. Essa formulação me parece corresponder à realidade do debate democrático e do discurso público em democracias reais muito mais do que o modelo liberal de convenções constitucionais. Nas políticas democráticas, nada está realmente fora da pauta do debate público, mas há regras fundamentais do discurso que são tanto constitutivas quanto regulatórias, de tal maneira que, embora o que elas signifiquem para a troca democrática seja em si mesmo contestado, as regras em si não podem ser suspensas ou revogadas por simples procedimentos majoritários. Tendo argumentado que o modelo discursivo de legitimidade e o modelo discursivo do espaço público capturam o papel do debate democrático com mais sucesso que as versões arendtiana e liberal, gostaria de me voltar para uma questão que me permitirá explorar mais especificamente algumas das limitações do modelo discursivo. Críticas feministas à distinção público/privado Qualquer teoria da publicidade, espaço público e diálogo público precisa pressupor alguma distinção entre o público e o privado. Na tradição do pensamento político ocidental, e até os nossos próprios dias, a forma em que a distinção entre as esferas pública e privada foi elaborada serviu para confinar as mulheres e as esferas de atividades tipicamente femininas, como afazeres doméstico, reprodução, nutrição e cuidado com crianças, doentes 231
Situando o self
e idosos a um domínio “privado”, e para mantê-las fora da pauta pública no Estado liberal. Essas questões foram frequentemente consideradas assuntos de boa vida, de valores e interesses não generalizáveis. Junto a seu banimento, nos termos de Arendt, ao “interior obscuro do lar”, elas foram tratadas, até recentemente, como aspectos “naturais” e “imutáveis” das relações humanas. Elas permaneceram pré-reflexivas e inacessíveis à análise discursiva. Grande parte de nossa tradição, quando considera o indivíduo autônomo ou o ponto de vista moral, implicitamente os define da perspectiva do homo politicus ou do homo economicus, mas dificilmente como o self feminino.40 Desafiar a distinção contemporânea entre discurso moral e discurso político, na medida em que eles privatizam essas questões, é central para a luta das mulheres que pretendem tornar essas questões “públicas”. “Privacidade”, “direitos de privacidade” e a “esfera privada”, invocados pela tradição moderna do pensamento político, incluem pelos menos três dimensões distintas: em primeiro lugar, a privacidade foi compreendida como a esfera da consciência moral e religiosa. Como resultado da histórica separação entre igreja e Estado nos países da Europa ocidental e da América do Norte, e como uma consequência do desenvolvimento da filosofia e da ciência modernas, assuntos de fé última em relação ao significado da 40
Cf. “O outro generalizado e o outro concreto: a controvérsia Kohlberg-Gilligan e a teoria moral”.
232
Modelos de espaço público
vida, do bem maior, e de grande parte dos princípios inescapáveis de acordo com os quais devemos conduzir nossas vidas passam a ser vistos como “insolúveis” racionalmente e como questões sobre as quais os próprios indivíduos deveriam decidir de acordo com os ditados de suas próprias consciências e perspectivas de mundo. Com o surgimento da modernidade ocidental, um segundo grupo de direitos da privacidade acompanhou o consequente estabelecimento da separação liberal entre igreja e Estado. São os direitos de privacidade relativos a liberdades econômicas. O desenvolvimento do capitalismo e das relações de commodities no mercado não significam apenas “a ascensão do social”, nos termos arendtianos. Juntamente com a socialização da escolha, quer dizer, junto com o declínio do tipo de subsistência de economias domésticas e o eventual surgimento de mercados nacionais, acontece um desenvolvimento paralelo que estabelece a “privacidade” dos mercados econômicos. Nesse contexto, “privacidade” significa, em primeiro lugar, a não interferência pelo Estado político no livre fluxo das relações de commodities, e em particular, a não intervenção no livre mercado da força de trabalho. O significado final de “privacidade” e de “direitos de privacidade” é o da “esfera íntima”. Esse é o domínio do lar, da satisfação das necessidades diárias da vida, da sexualidade e da reprodução, do cuidado com as crianças, os doentes e os idosos. Como o estudo pioneiro de Lawrence Stone sobre as origens e transformações 233
Situando o self
das primeiras famílias burguesas mostra,41 desde o início havia tensões entre a autoridade patriarcal permanente do pai, na família burguesa, e concepções de igualdade e consentimento em desenvolvimento no mundo político. Enquanto o cidadão burguês masculino batalhava por seus direitos à autonomia nas esferas religiosa e econômica, contra um Estado absolutista, suas relações dentro do lar eram definidas por pressupostos não consensuais e não igualitários. Questões de justiça eram, desde o início, restritas à “esfera pública”, enquanto a esfera privada era considerada fora do domínio da justiça. Com certeza, com o surgimento de movimentos autônomos de mulheres nos séculos XIX e XX, com a entrada maciça das mulheres na força de trabalho neste século, com a aquisição do direito de voto, esse quadro se transformou. A teoria política e moral contemporânea, entretanto, continua a negligenciar essas questões, e ignora as transformações da esfera privada que resultam de mudanças enormes na vida das mulheres e dos homens. Embora, conceitualmente, assuntos de justiça e assuntos de boa vida sejam diferentes da distinção sociológica entre as esferas pública e privada, a fusão frequente entre as liberdades religiosas e econômicas e as liberdades da intimidade, sob o título de “privacidade” ou de “questões privadas da boa vida”, teve duas consequências: primeiro, L. Stone, The family, sex and marriage in England, edição abreviada, Nova York, Harper and Row, 1979.
41
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Modelos de espaço público
a teoria normativa política e moral contemporânea, não excluindo a ética do discurso de Habermas, é “cega ao gênero”, quer dizer, essas teorias ignoram a questão da “diferença”, a diferença nas experiências dos sujeitos masculinos versus as experiências dos sujeitos femininos em todos os domínio da vida. Em segundo lugar, as relações de poder na “esfera íntima” foram tratadas como se elas nem sequer existissem. A lente idealizadora de conceitos como “intimidade” não permite que se veja que o trabalho da mulher na esfera privada, como o cuidado das crianças e a administração da casa, não é remunerado. Consequentemente, as regras que regem a divisão sexual do trabalho na família foram colocadas fora do âmbito da justiça. Como com qualquer outro movimento de liberação, o movimento contemporâneo das mulheres, ao tematizar as relações de poder assimétricas em que a divisão sexual do trabalho entre os gêneros repousa, está tornando o que antes era considerado assunto “privado”, de boa vida, em questões “públicas”, de justiça. Nesse processo, a linha entre o privado e o público, entre questões de justiça e assuntos da boa vida, é renegociada. Certamente, uma teoria normativa, e em particular uma teoria crítica social, não pode tomar as aspirações de quaisquer dos atores sociais como verdadeiras e ajustar seu critério crítico para satisfazer as demandas de um movimento social particular. Compromisso com a transformação social e, ainda assim, uma certa distância crítica, mesmo em relação às demandas daqueles com quem ele 235
Situando o self
se identifica, são essenciais para a vocação do teórico como um crítico social. Por essa razão, o propósito dessas considerações finais não é criticar a teoria crítica de Habermas simplesmente ao confrontá-la com as demandas do movimento das mulheres. Pelo contrário, meu objetivo é apontar uma área de falta de clareza conceitual, como também uma área de contestação política nos debates contemporâneos. Qualquer teoria do público, da esfera pública e da publicidade pressupõe uma distinção entre o público e o privado. Esses são os termos de uma oposição binária. O que o movimento das mulheres e as teorias feministas mostraram nas últimas duas décadas é que os modos tradicionais de elaborar essa distinção fazem parte de um discurso de dominação que legitima a opressão e a exploração das mulheres no domínio privado. Mas o modelo discursivo, precisamente porque provém de uma norma de igualdade recíproca fundamental, e precisamente porque projeta a democratização de todas as normas sociais, não pode impedir a democratização das normas familiares e também das normas que regulam a divisão de trabalho com base no gênero dentro da família.42 Se nos discursos a pauta da conversação está radicalmente aberta, se os participantes podem trazer todo e qualquer assunto 42
Nancy Fraser colocou essas considerações incisivamente em seu “What’s critical about critical theory? The case of Habermas and gender”, Feminism as critique, Seyla Benhabib e Drucilla Cornell (ed.), Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987, p. 31-56.
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Modelos de espaço público
para análise e questionamento crítico, então não há como pré-definir a natureza das questões discutidas como sendo questões públicas de justiça versus questões privadas da boa vida. Distinções como as entre justiça e boa vida, normas e valores, interesses e necessidades são “subsequentes”, e não anteriores, ao processo discursivo de formação da vontade. Na medida em que essas distinções são renegociadas, reinterpretadas e rearticuladas como o resultado de um discurso radicalmente aberto e procedimentalmente justo, elas podem ser elaboradas de inúmeras maneiras. Assim, há tanto uma “afinidade eletiva” quanto uma certa tensão entre as demandas dos movimentos sociais como o movimento das mulheres e a ética do discurso. Deixe-me explicar. A afinidade eletiva, para usar a frase feliz de Max Weber, entre a ética do discurso e movimentos sociais como o movimento das mulheres deriva do fato de que ambos projetam a extensão de uma moralidade igualitária e pós-convencional nas esferas da vida que até então foram controladas pela tradição, pelos costumes, pelas expectativas rígidas de papéis sociais e pela inteiramente desigual exploração das mulheres e de seu trabalho. A ética do discurso, assim como o movimento das mulheres, argumenta que apenas relações de reciprocidade igualitária, baseadas no respeito mútuo e no compartilhamento entre as partes envolvidas, podem ser justas de um ponto de vista moral. As relações convencionais e as expectativas de papéis sociais, como as expectativas entre “esposa” e “marido”, “pais” e “filhos”, são então 237
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abertas para questionamento, renegociação e redefinição. Como eu vou argumentar no capítulo 6 adiante, há também uma afinidade eletiva entre o compromisso com uma ética do diálogo e os ideais feministas. De muitas formas, o movimento contemporâneo das mulheres é a culminação da lógica da modernidade, que projeta a negociação discursiva das normas sociais, a apropriação flexível da tradição e a formação de autoidentidades e histórias de vida fluidas e reflexivas. A tensão entre a ética do discurso e os modelos de legitimidade e espaço público que derivam dele, por um lado, e as reivindicações do movimento das mulheres, por outro, recai principalmente43 Nancy Fraser argumentou que o modelo de espaço público de Habermas também é incompatível com as aspirações feministas na medida em que ele é unitário, em oposição a um modelo múltiplo, disperso e plural; ele é excessivamente racionalista e privilegia o discurso racional em detrimento dos modos mais evocativos ou retóricos do discurso público; e ele é pudico na medida em que minimiza o papel do corpo e dos elementos carnavalescos na autoapresentação pública. Eu concordo com Fraser sobre as duas últimas críticas, embora, em minha opinião, elas não afetem o próprio princípio da esfera pública, que é a necessidade de uma justificação discursiva da política democrática. Essas observações apenas destacam a necessidade de dar uma formulação menos racionalista a esse princípio do que o próprio Habermas fez. No que concerne à acusação de monismo versus uma pluralidade de espaços públicos, acredito que Fraser interpretou mal Habermas, e que, em princípio, pode haver tantos públicos quanto há discursos em relação a normas controversas. Assim, há hoje nos EUA um “público” no debate da pornografia, em que legisladores, a comunidade artística, as várias instituições religiosas e o movimento das mulheres, com seus teóricos e ativistas, são participantes. A “esfera pública” do debate sobre pornografia não tem, necessariamente, a mesma extensão da esfera pública do debate sobre política externa, em que todos os cidadãos estão mais ou menos envolvidos. Eu não vejo nenhuma evidência, textual ou
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sobre os limites muito rígidos que Habermas tentou estabelecer entre assuntos de justiça e assuntos da boa vida, interesses públicos versus necessidades privadas, valores sustentados privadamente e normas publicamente compartilhadas. Mas, como sugeri anteriormente, é apenas o processo irrestrito do discurso e não algum cálculo moral que nos permitirá reestabelecer esses limites, uma vez que seu significado tradicional foi contestado.
em qualquer outra forma, de que o conceito de esfera pública de Habermas precisa ser monístico. Cf. Nancy Fraser, “Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy,” em Habermas and the Public Sphere, Calhoun (ed.), p. 109-142; para as formulações recentes de Habermas nesse assunto, conferir a seguinte afirmação: “A ideia da soberania popular é desmaterializada (entsubstantialisiert) nesse processo. Mesmo a sugestão de que uma rede de associações pode assumir o lugar do corpo do povo, agora deslocado, permanece por demais concretista. Soberania, que está agora completamente dispersa, nem mesmo se incorpora nas mentes dos membros associados [da comunidade política – S.B.], em vez disso – se é que ainda podemos usar o termo incorporação [embodiment] –, é naquelas formas de comunicação sem sujeito que regulam o fluxo da opinião discursiva e da formação da vontade que essa soberania encontra seu lugar. A regulação da opinião e da formação da vontade por meio dessas redes de comunicação sem sujeito dá origem a conclusões falibilistas que, presumimos, incorporam a razão prática. Quando a soberania popular se torna sem sujeitos, anônima e é dissolvida em processos de intersubjetividade, ela se limita a procedimentos democráticos e a ambiciosas pressuposições comunicativas a respeito de sua implementação. J. Habermas, “Ist der Herzschlag der Revolution zum Stillstand gekommen? Volkssouveränität als Verfahren. Ein normativer Begriff der Öffentlichkeit?”. Em Die Ideen von 1789 in der deutschen Rezeption, ed. Forum für Philosophie Bad Homburg, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1989, p. 7-37, 30-31.
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Diante dessa reivindicação, Habermas, como também os teóricos políticos liberais, poderia responder que essa posição incita a corrosão dos direitos de privacidade e a total invasão do Estado no domínio do indivíduo. A questão, eles argumentarão, não é se essas distinções precisam ser reconceitualizadas, mas onde a linha entre o público e o privado será colocada como um resultado dessa reconceitualização discursiva. Em termos mais familiares: a teoria do discurso possibilita uma teoria de direitos individuais que garante a privacidade, ou é simplesmente uma teoria da participação democrática que não respeita os limites legais das liberdades individuais? A tensão entre políticas democráticas e as garantias liberais dos direitos constitucionais, que afirmei ter sido resolvida pela teoria do discurso, retorna mais uma vez. Deixe-me sugerir, e ironicamente contra o próprio Habermas, por que o tipo de discurso sobre a família e a divisão do trabalho com base no gênero iniciada pelo movimento das mulheres é uma instância de democratização da esfera pública e por que o modelo discursivo pode acomodar esses desafios à distinção público/privado. Em princípio, o modelo discursivo é baseado em um forte pressuposto de autonomia individual e consentimento. Assim, mesmo em discursos que renegociam limites entre o privado e o público, o respeito pelo consentimento dos indivíduos e a necessidade de seus insights, adquiridos voluntariamente, sobre a validade das normas gerais garantem que essa distinção não pode ser reelaborada de forma
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Modelos de espaço público
a prejudicar, pôr em risco e restringir essa autonomia de escolha e insight. Eu concordo com Cohen, que escreve: Embora nesse caso, também, processos discursivos de formação da vontade decidam os limites entre o privado e o público, eles não podem abolir inteiramente o privado. De fato, as próprias metanormas do discurso asseguram a autonomia da consciência moral individual. Se todos aqueles afetados precisam de uma igual oportunidade de assumir papéis no diálogo, se o diálogo precisa ser livre e sem restrições, e se cada indivíduo pode mudar o nível do discurso, então o discurso prático pressupõe indivíduos autônomos, com a capacidade de desafiar qualquer consenso, partindo de um ponto de vista baseado em princípios. As próprias regras que enfatizam a discussão e a busca cooperativa pelo consenso pregam a distinção entre moralidade e legalidade. Ao articular as metanormas do princípio de legitimidade e dos direitos democráticos, a ética do discurso fornece a justificação para a autonomia da moralidade, baseada, dessa forma, em sua autolimitação.44 Jean Cohen, “Discourse ethics and civil society”, In: Philosophy and social criticism, 14.3-4, 1988, p. 321. Cf. também a sugestão de Cohen: “Na verdade, contudo, a ética do discurso pressupõe logicamente ambas as classes de direitos. Ao basear direitos não em uma ontologia individualista, como liberais clássicos o fizeram, mas na teoria da interação comunicativa, temos uma razão forte para enfatizar o conjunto de direitos à comunicação [...] Os direitos à privacidade deveriam ser afirmados por causa da necessidade de reproduzir personalidades autônomas sem as quais o discurso racional seria impossível... Desse ponto de vista, os direitos à comunicação nos apontam ao domínio legítimo para formular e defender direitos.
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Eu concordo com Cohen que a própria lógica dos discursos permite-nos desafiar as compreensões tradicionalistas da divisão público/privado, mas que os próprios recursos do modelo discursivo de publicidade também proíbem a elaboração dessas distinções de maneiras que prejudicariam a autonomia e o insight dos indivíduos envolvidos. Tendo argumentado até aqui, é possível sugerir por que o modelo discursivo pode servir como uma norma de legitimidade democrática e de discurso público em sociedades como a nossa, em que a linha entre o público e o privado está sendo fortemente contestada. Mas não é apenas a teoria do discurso que tem de ser confrontada com as reivindicações feministas; a teoria feminista, ela mesma, precisa imensamente de um modelo de espaço público e de discurso público que a faça retornar para uma política de empoderamento. A crítica feminista do modelo habermasiano deve ser complementada pela apropriação, pelas feministas, de uma teoria crítica da esfera pública. Sem dúvida, nossas sociedades estão passando por enormes transformações no presente. Nas democracias ocidentais, sob o impacto da “corporatização”, dos meios de comunicação de massa e do crescimento de associações políticas com estilo empresarial, como PACs (Political Action Committees ou Comitês de Ação Política) Os direitos da personalidade identificam os sujeitos que possuem o direito a ter direitos”. Ibid., p. 327. Cf. também Baynes, “The liberal/communitarian controversy and communicative ethics”, p. 304 et seq.
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Modelos de espaço público
e outros grupos lobistas, a esfera pública da legitimidade democrática encolheu. Na campanha presidencial americana de 1988, o nível do discurso público e do debate, tanto em termos de substância quanto de estilo, diminuiu tanto, que as maiores redes de comunicação como CBS e ABC foram compelidas a realizar sessões de análises autorreflexivas sobre suas próprias contribuições, enquanto mídia eletrônica, para o declínio do discurso público. O cidadão autônomo, cujo julgamento racional e participação era o sine qua non da esfera pública, foi transformado em um “cidadão consumidor” de imagens e mensagens empacotadas, ou o “alvo de correio eletrônico” de grandes grupos e organizações lobistas.45 Esse empobrecimento da vida pública foi acompanhado pelo Kiku Adatto forneceu um estudo empírico impressionante sobre as transformações da cobertura televisiva das eleições presidenciais pelos três maiores noticiários da ABC, CBS e NBC, de 1968 a 1988. Duas descobertas empíricas se destacaram mais salientemente e indicam por que “o espaço público democrático” é cada vez menos uma realidade na vida política americana. Adatto informa que: “O ‘sound bite’ médio, ou bloco de discurso ininterrupto, caiu de 42.3 segundos por candidato à presidência, em 1968, para apenas 9.8 segundos, em 1988. Em 1968, quase a metade de todos os ‘sound bites’ tinham 40 segundos ou mais, comparado com menos de um por cento em 1988... Em 1968, na maior parte do tempo, nós víamos os candidatos nos noticiários noturnos, nós também os ouvíamos falar. Em 1988, o oposto era verdadeiro; na maior parte do tempo que nós os víamos, alguma outra pessoa, normalmente um repórter, é que estava falando”. Adatto observa que, nesse processo, “a televisão deslocou a política como foco da cobertura... as imagens que antes formavam o pano de fundo dos eventos políticos – o cenário e a cenografia – agora ocupam o primeiro plano”. V. Kiku Adatto, “Sound bite democracy: network evening news presidential campaign coverage” Research Paper R-2, Joan Shorenstein Barone Center on press, politics and public policy, June 1990, p. 4-5.
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crescimento da sociedade da vigilância e do voyeurismo, por um lado (Foucault), e pela “colonização do mundo da vida”, por outro (Habermas). Não apenas a vida pública foi transformada, a vida privada também passou por enormes mudanças e apenas algumas delas podem ser bem-vindas, por promover os valores da legitimidade democrática e da formação discursiva da vontade. Como a socióloga Helga Maria Hernes observou, em alguns aspectos, as sociedades do estado de bem-estar social são aquelas em que a “reprodução” se tornou pública.46 Entretanto, quando questões como criação dos filhos, cuidado com os doentes, com os mais jovens e com os idosos, liberdades reprodutivas, violência doméstica, abuso infantil e a constituição das identidades sexuais se tornam “públicas” em nossas sociedades, no mais das vezes o resultado foi uma “burocracia disciplinadora patriarcal capitalista”.47 Essas burocracias frequentemente retiraram o poder das mulheres e determinaram a pauta da participação e do debate público. Ao refletir sobre essas questões, como feministas, nos faltou um modelo crítico de espaço público e de discurso público. Aqui é onde, como feministas, devemos não apenas criticar a teoria social de Habermas, mas entrar em uma aliança dialética com ele. Um modelo crítico Helga Maria Hernes, Welfare state and woman power: essays in State feminism, Londres, Norwegian University Press, 1987.
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Cf. Nancy Fraser, Unruly practices: power, discourse and gender in late-capitalist social theory, cap. 7, “Women, welfare, and the politics of need interpretation.”
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de espaço público é necessário para que possamos elaborar a linha entre “juridificação”, “Verrechtlichung” nos termos de Habermas, por um lado, e tornar “público”, no sentido de tornar acessíveis ao debate, à reflexão, à ação e à transformação moral-política, por outro lado. Tornar questões de interesse comum públicas, nesse segundo sentido, significa torná-las cada vez mais acessíveis à formação discursiva da vontade; significa democratizá-las; significa trazê-las para os padrões da reflexão moral compatíveis com identidades autônomas pós-convencionais. Como feministas, nos faltou um modelo crítico que pudesse distinguir entre a administração burocrática das necessidades e o empoderamento democrático coletivo sobre elas. No mais das vezes, os debates entre as feministas foram bloqueados pelas alternativas de um reformismo liberal legalista (a pauta do NOW (Organização Nacional de Mulheres); as posições da ACLU (União das Liberdades Civis Americanas), e um feminismo radical que mal pode esconder seu próprio autoritarismo moral e político.48 48
Para um exemplo muito bom da primeira tendência, conferir Rosemarie Tong, Women, sex and the law, Rowman and Littlefield, Totowa, NJ, 1984; para a segunda tendência, conferir a obra de Catharine MacKinnon, e a surpreendente ortodoxia marxista do Estado e da lei, aos moldes da “volta do reprimido”, em seus escritos, cf. seu artigo antigo “Feminism, marxism, method and the State: an agenda for theory”, Signs, 7.3, Spring 1982, p. 514 et seq.; “Feminism, marxism, method and the State: towards a feminist jurisprudence”, Signs, 8, Summer 1983, p. 645 et seq.; e o mais recente Feminism unmodifted: discourses on life and law, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1987.
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Por razões que já explorei, alguns modelos do espaço público discutidos nesse ensaio são severamente limitados para nos ajudar a lidar com essa tarefa. O modelo agonístico de Arendt está em desacordo com a realidade sociológica da modernidade, como também com as lutas políticas modernas por justiça. O modelo liberal de espaço público transforma o diálogo político de empoderamento em um discurso jurídico sobre liberdades e direitos básicos de forma rápida demais. O modelo discursivo é o único que é compatível tanto com as tendências sociais gerais de nossas sociedades quanto com as aspirações emancipatórias de novos movimentos sociais, como o movimento das mulheres. O procedimentalismo radical desse modelo é um critério importante para desmistificar discursos de poder e suas pautas implícitas. Em uma sociedade em que a “reprodução” se tornou pública, os discursos práticos têm de ser “feminizados”. Essa feminização do discurso prático significará, mais que qualquer coisa, desafiar dualismos normativos que não foram examinados antes, como entre justiça e boa vida, normas e valores, interesses e necessidades, do ponto de vista de seu contexto e subtexto de gênero. Este artigo, revisado para este volume, foi apresentado pela primeira vez na conferência sobre Habermas e a esfera pública, na University of North Caroline em Chapel Hill, em setembro de 1989, e publicado em Habermas and the public sphere, editado por Craig Calhoun, Cambridge, Mass: MIT Press, 1992, p. 73-98.
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4.
Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt Em uma constituição política democrática, o acordo entre os cidadãos, gerado por meio de processos de diálogo público, é central para a legitimação de instituições básicas. Esses diálogos testam a lógica por trás dos grandes arranjos de poder das sociedades. Insights sobre a justiça ou a injustiça, a equidade ou a iniquidade desses arranjos, obtidos como resultado dessas trocas dialógicas, resultam em ganhos de conhecimento público por meio da deliberação pública. Mesmo quando esses processos de diálogo nos convencem de que essas estruturas de poder precisam ser alteradas, quando atingimos esse juízo como um resultado de políticas participativas, não apenas temos a garantia de que podemos sustentar nossa posição com um argumento que se baseia em princípios, mas também, e mais importante, nós formamos um juízo ao submeter nossa opinião ao teste do juízo dos outros. Talvez o resultado mais importante desses autênticos processos de diálogo público, quando comparados à mera troca de informações ou à mera circulação de imagens, é que, quando e se eles ocorrem, essas conversações públicas resultam no cultivo da faculdade de julgar e na formação de uma
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“mentalidade alargada”. Este capítulo explora o juízo como uma faculdade moral e política, inspirando-se na releitura de Hannah Arendt da Crítica da Faculdade de Julgar de Kant Juízo e considerações morais As reflexões incompletas de Hannah Arendt sobre o juízo, que deveriam compor o terceiro volume de sua última obra, A vida do espírito, são enigmáticas. A qualidade desconcertante dessas reflexões deriva menos do fardo, que recai sobre estudantes contemporâneos de seu pensamento, de tentar compreender e completar por meio da imaginação o que a autora podia ter pretendido dizer, mas não conseguiu dizer em vida. Essa perplexidade hermenêutica surge de três conjuntos de alegações que Arendt elabora sobre o juízo e que permanecem em tensão entre si. Primeiramente, na introdução do primeiro volume de A vida do espírito, Arendt esclarece que sua preocupação com as atividades mentais de pensar, querer e julgar tem duas origens diferentes.1 O impulso imediato veio de ter assistido ao julgamento de Eichmann, em Jerusalém; a incitação adicional, mas igualmente importante, foi fornecida pelo seu desejo de explorar a contraparte Hannah Arendt, The life of the mind, v. 1: Thinking, Nova York e Londres, Thinking, Harcourt, Brace and Jovanovich, 1977, p. 3; o volume 2 de The Life of the Mind é Willing (1978).
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da vita activa (que na tradução inglesa apareceu enganosamente como A condição humana*), na vita contemplativa. Ao cunhar a frase “banalidade do mal”, e ao explicar a qualidade moral dos feitos de Eichmann, em termos outros que não sua natureza monstruosa ou demoníaca, Arendt estava ciente de que ia contra a tradição do pensamento ocidental, que via o mal em termos metafísicos, como depravação, corrupção e pecado absolutos. A qualidade mais marcante de Eichmann, ela afirmou, não era a estupidez, a maldade ou a depravação, e sim o que ela descreveu como “ausência de pensamento” [thoughtlessness].** Isso por sua vez a levou à seguinte questão: Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo e o que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar? [...] seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chama a atenção independentemente de resultados e conteúdo [N.T.]: Como também na tradução brasileira. [R.R.B] ** [N.T.]: Em Eichmann em Jerusalém [Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999], a tradução foi “inconsciência”, “irreflexão”, “desapego” (p. 310-311). Arendt foi muito criticada pela escolha desse termo, que em inglês quer dizer negligência, e ao responder às críticas ela afirmou que queria a raiz da palavra, que é o não-pensar. Em A vida do espírito [Hannah Arendt. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002], foi traduzido por irreflexão. Em outro momento, Arendt usa “absence of thinking”, referindo-se a “thoughtlessness”. [R.R.B] *
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específico – estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os “condicione” contra ele?2
Arendt continuou a perseguir essa questão na palestra “Pensamento e considerações morais”, publicada na Social research em 1971, na mesma época em que estava compondo o volume O pensar. Novamente, ela perguntou: Será que nossa capacidade de julgar, de distinguir o certo do errado, o belo do feio, depende de nossa faculdade de pensar? Serão coincidentes a incapacidade de pensar e um fracasso desastroso daquilo a que normalmente chamamos consciência moral?3
Como essas passagens indicam, ao abordar o problema do juízo, Arendt estava interessada fundamentalmente nas relações internas entre pensar e julgar como faculdades morais. Ela estava preocupada com o juízo como a faculdade de “distinguir o certo do errado”. Em segundo lugar, e em contraste com seu interesse no juízo como uma faculdade moral, Arendt também se concentrou no juízo como uma faculdade retrospectiva de obter significado a partir do Hannah Arendt, The life of the mind, v. 1: Thinking, Nova York e Londres, Thinking, Harcourt, Brace and Jovanovich, 1977, p. 5 [Hannah Arendt. A vida do espírito, p. 6-7].
2
Hannah Arendt, “Thinking and moral considerations: a lecture”, republicado em Social research, edição de aniversário de 50 anos, (Spring/Summer 1984), p. 8. [No Brasil: Hannah Arendt, A dignidade da política, p. 146.]
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passado, como uma faculdade essencial à arte de contar histórias [storytelling]. No postscriptum do volume O pensar, ela delineia brevemente como se propõe a lidar com o problema do juízo no volume 3. Ela ainda pretende discutir o juízo na forma como está relacionado com “o problema da teoria e da prática, [e com] qualquer tentativa de chegar a uma teoria até certo ponto plausível da ética”.4 No entanto, o último parágrafo do postscriptum volta-se da ética para os problemas da história. Ela pretende negar o direito da história de ser o último juiz – “Die Weltgeschichte ist das Weltgericht” [“A história mundial é o tribunal do mundo”] (Hegel) – sem negar a importância da história. Como Richard Bernstein e Ronald Beiner observaram, nessas reflexões posteriores o interesse de Arendt parece ter mudado do ponto de vista do ator, que julga para então agir, para o ponto de vista do espectador, que julga a fim de obter significado a partir do passado.5 Em terceiro lugar, as reflexões de Arendt sobre o juízo não apenas oscilam entre o juízo como uma faculdade moral, que guia a ação, versus o juízo como uma faculdade retrospectiva, que guia o espectador ou o contador de história. Há uma perplexidade filosófica ainda Arendt, Thinking, p. 216. [Hannah Arendt, A vida do espírito, p. 163.]
4
Ronald Beiner, “Hannah Arendt on Judging”, In: Hannah Arendt, Lectures on Kant’s political philosophy, University of Chicago Press, Chicago, 1982, p. 117ss; R. J. Bernstein, “Judging: the actor and the spectator”, In: Philosophical profiles, University of Pennsylvania Press, Philadelphia, 1986, p. 221-238. Cf. também a discussão de Arendt sobre a distinção entre o ponto de vista do ator e do espectador nessas Lectures, p. 44 et seq., 54 et seq.
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mais profunda sobre o status do juízo em sua obra. Essa perplexidade está relacionada com sua tentativa de reunir a concepção aristotélica de juízo, como um aspecto da phronesis, com uma compreensão kantiana de juízo, isto é, como a faculdade de “pensamento alargado” ou “pensamento representativo”. Como Christopher Lasch observou: Por um lado, a defesa de Arendt do juízo como uma virtude política por excelência parece levar a uma concepção aristotélica da política como um ramo da razão prática. Por outro lado, o apelo a Kant como a fonte de suas ideias sobre o juízo indica uma concepção de política bastante diferente, em que a ação política deve ser fundamentada não nas artes práticas, mas em princípios morais universais [...]. A discussão de Arendt sobre o juízo, em vez de esclarecer a diferença entre as concepções antiga e moderna de moralidade e política, parece confundi-las.6
Neste capítulo, proponho examinar alguns desses enigmas hermenêuticos ao focar, em particular, em um aspecto das reflexões de Arendt sobre o juízo. Embora Arendt nunca tenha, ela mesma, cumprido sua “tentativa de chegar a uma teoria até certo ponto plausível da ética” e, em vez disso, tenha chamado o juízo de “a mais política” de todas as nossas faculdades cognitivas, eu pretendo argumentar que a caracterização arendtiana da ação, por meio das categorias Christopher Lasch, “Introduction”, Salmagundi, edição especial Hannah Arendt, Christopher Lasch (ed.), n. 60, 1983, p. xi.
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de natalidade, pluralidade e narratividade, nos proporciona uma moldura esclarecedora para analisar o juízo, não apenas como uma faculdade política, mas também como uma faculdade moral; além disso, embora Arendt tenha nos proporcionado um ponto de partida intrigante para pensar sobre a inter-relação de moralidade e política, ela mesma foi induzida ao erro nessas questões por um conceito quase intuicionista de consciência moral, de um lado, e por um conceito excepcionalmente restrito de moralidade, de outro. Meu propósito é pensar com Arendt contra Arendt. Eu seguirei suas reflexões inconclusas sobre o juízo para desenvolver uma análise fenomenológica do juízo como uma faculdade moral, mas, ao mesmo tempo, criticarei sua separação problemática entre moralidade e política. Entretanto, eu também colocarei as meditações de Arendt sobre essa questão no contexto de alguns debates contemporâneos em filosofia prática, entre neoaristotélicos e neokantianos. Essa linha de análise vai permitir que eu volte para a dificuldade levantada por Christopher Lasch. É possível que a tentativa de Arendt de juntar a preocupação aristotélica com particulares em questões práticas com um ponto de vista moral universalista e baseado em princípios não seja simplesmente confusa, mas contenha um insight que mereça ser desenvolvido. A doutrina incompleta do juízo de Arendt, ao enfraquecer a oposição entre o juízo contextual e uma moralidade universalista, pode nos ajudar a enxergar além de algumas posições falsas da teoria política e moral contemporânea. 253
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Juízo e ação Deixe-me começar com uma observação geral. Falamos de juízo em muitos domínios. Juízos legais, juízos estéticos, juízos médicos, juízos terapêuticos, juízos musicais, juízos militares, juízos interpretativo-hermenêuticos, todos fazem parte de nosso vocabulário comum, tanto quanto o juízo político e o moral. Juízos morais e juízos políticos diferem desses outros exercícios de juízo em um aspecto. Prima facie, nos domínios da lei, da estética, da medicina, da terapia, da música e da interpretação hermenêutica de textos, parecemos prontos a admitir que aqueles que exercem o juízo estão de posse de um corpo especial de conhecimento e possuem uma especialidade ou experiência particular relacionada ao exercício frequente desse corpo de conhecimento. O exercício do juízo nesses domínios evoca imediatamente uma distinção entre os especialistas, ou os profissionais, e o público leigo que não possui nem esse corpo especializado de conhecimento, nem a experiência em seu exercício. No caso do juízo moral e político, a questão é diferente. Uma vez que eu considero o juízo moral como fundamentalmente distinto de todas as outras formas de juízo em um aspecto crucial, como explicarei mais adiante, tratarei aqui, primeiro, do juízo político. À primeira vista, não parece haver nenhuma razão para que não devamos atribuir o exercício especializado do juízo político a certos 254
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indivíduos especiais, como estadistas, diplomatas, representantes eleitos, administradores e semelhantes. De fato, podemos assumir, idealmente, mesmo quando não na prática, que uma das razões para que esses indivíduos ocupem as funções que ocupam é a sua habilidade de exercer os tipos de juízo exigidos deles pelos seus cargos. Esse modelo de juízo político, que o vê como uma forma de opinião especializada, é inadequado da perspectiva de uma teoria da democracia. Mesmo que nos abstenhamos por um momento da questão da democracia representativa versus democracia participativa, o exercício do juízo político em uma constituição política democrática não pode ser relegado apenas aos especialistas. Mesmo em modelos restritos de democracia representativa, espera-se que o público, os cidadãos, seja capaz de exercer seu juízo político pelo menos no dia da eleição. Os cidadãos, em uma constituição política democrática, são capazes de exercer juízo em várias áreas. Primeiramente, eles têm de ser capazes de julgar a relação entre o que é possível em um sistema social e político e o que é desejável a partir de algum ponto de vista normativo de justiça, equidade, igualdade e liberdade. Em segundo lugar, eles têm de ser capazes de julgar a capacidade de um indivíduo específico ou de uma organização específica de exercer seu mandato. Finalmente, eles têm de ser capazes de julgar as consequências previsíveis de suas escolhas a partir do ponto de vista do passado, presente e futuro de sua constituição política.
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Modelos participativos de democracia veem a participação como um bem em si mesmo, que deve ser ampliado tanto quanto possível. Nessas teorias, tanto os domínios em que o público tem o direito de exercer o juízo político, quanto as possibilidades institucionais para esse exercício se tornam questões políticas. Tanto uma crítica à cultura dos especialistas, quanto a transferência do poder e da prerrogativa do juízo dos especialistas para o público são consideradas essenciais para a constituição de um ethos democrático. Em outras palavras, a própria definição de juízo político – o que é, quem tem o direito de exercê-lo e como as pessoas podem exercê-lo de maneira mais ampla – é em si mesma uma questão política e normativa, que invoca princípios do que é politicamente desejável, como também invoca avaliações cruciais do que é politicamente viável. Não é possível haver uma teoria do juízo político neutra em relação aos valores; uma teoria do juízo político é em si mesma uma teoria normativa sobre a ordem política mais desejável. Essa qualidade contestável e contestada do juízo político joga uma nova luz sobre outros domínios do juízo – legal, estético, terapêutico, militar e médico. Em cada um desses domínios, o juízo, como um processo social de apropriação e exercício de conhecimento, pode se tornar uma questão política que envolve debate e contestação acerca dos limites, deveres e capacidades da autoridade do especialista em relação ao público leigo.
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O juízo moral difere desses outros domínios em um aspecto crucial: o exercício do juízo moral é disseminado e inevitável; de fato, seu exercício é coextensivo com relações de interação social no mundo da vida em geral. O juízo moral é aquilo que “sempre já” exercitamos em virtude de estarmos imersos em uma rede de relacionamentos humanos, que constitui nossa vida juntos. Enquanto é possível haver um debate razoável sobre exercer ou não um juízo jurídico, militar, terapêutico, estético ou mesmo político, no caso do juízo moral essa opção não existe. O domínio da moral é tão profundamente enredado com aquelas interações que constituem nosso mundo da vida que fugir do juízo moral é o mesmo que parar de interagir, de falar e de agir na comunidade humana. Para justificar minha afirmação de que o juízo moral é aquilo que “sempre já” exercitamos em virtude de estarmos imersos em uma rede de relações humanas, quero começar por relembrar as características mais notáveis da ação, como Arendt as apresenta em A condição humana.7* Elas são a natalidade, a pluralidade e a imersão da ação em uma teia de interpretações que eu chamarei de “narratividade”. Natalidade é como um “segundo nascimento”, de acordo com Arendt. É aquela qualidade por meio da qual nos inserimos no mundo, dessa vez não pelo simples fato de nascermos, mas por meio do início de palavras e feitos. Esse início de palavras e feitos, que Hannah Arendt, The human condition, University of Chicago Press, Chicago, 1958, utilizei a edição de 1973. Abreviado no texto como HC. * [N.T.] A edição brasileira, de 2017, foi abreviada como ACH [R.R.B]. 7
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Arendt nomeia “o princípio do começar” (HC, p. 177/ACH, p. 220), é tão inevitável quanto o próprio fato do nascimento. A criança se torna um membro de uma comunidade humana à medida que ela aprende a iniciar o discurso e a ação. Embora seja um aspecto inevitável da aculturação humana, a condição da natalidade não implica determinismo. Da mesma forma que cada falante de uma língua tem a capacidade de gerar um número infinito de sentenças gramaticalmente bem formadas, o agente de feitos tem a capacidade de iniciar aquilo que é sempre inesperado e improvável, e que, mesmo assim, pertence ao repertório possível das ações e condutas humanas. Enquanto a ação corresponde ao fato do nascimento, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como um ser distinto e singular entre iguais. (HC, p. 178/ACH, p. 221).
A pluralidade, que é revelada no discurso, está enraizada no fato da igualdade humana, que, nesse contexto, não significa igualdade moral ou política, mas, em vez disso, significa uma igualdade genérica da constituição humana, que permite aos humanos entenderem uns aos outros (HC, p. 175/ACH, p. 217). Enquanto, no caso de outras espécies, essa igualdade genérica define a individualidade de cada membro da espécie, no caso dos humanos a distinção dos indivíduos entre si é revelada por meio do discurso. Podemos dizer que a capacidade humana de usar o discurso leva a uma diferenciação 258
Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt
do repertório de atividades para além daquelas que são específicas da espécie, como também permite o surgimento de uma subjetividade diferenciada na vida interior do self. O discurso diferencia a ação do mero comportamento; aquele que fala também é aquele que pensa, sente e experimenta de determinada maneira. A individuação do self humano é simultaneamente um processo pelo qual esse self se torna capaz de agir e de expressar a subjetividade do agente. Discurso e ação se relacionam fundamentalmente, e “grande parte dos atos, senão a maioria deles”, observa Arendt, “[é] realizada na forma de discurso” (HC, p. 178/ACH, p. 221). Discurso e ação possuem uma qualidade reveladora; eles revelam o “quem” [whoness] do agente. Essa revelação do “quem” do ator é sempre uma revelação para alguém que é semelhante. Apenas se a outra pessoa é capaz de compreender o significado de nossas palavras, como também o “quê” [whatness] de nossos feitos, é que podemos dizer que a identidade do self foi revelada. Ação e discurso, portanto, são essencialmente interação. Eles acontecem entre humanos. Narratividade, ou a imersão da ação na rede de relacionamentos humanos, é o modo pelo qual o self é individuado e os atos são identificados. Tanto o “quê” [whatness] do ato quanto o “quem” [whoness] do self são revelados a agentes capazes de compreensão comunicativa. As ações são identificadas narrativamente. Alguém sempre faz isso ou aquilo em algum ponto no tempo. Identificar uma ação é contar a história de seu início, de seu desenrolar e de 259
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sua imersão na rede de relações constituída por meio das ações e das narrativas dos outros. Da mesma forma, o “quem” [whoness] do self é constituído pela história de uma vida – uma narrativa coerente da qual somos sempre o protagonista, mas nem sempre o autor ou produtor. Narratividade é o modo pelo qual as ações são individuadas e a identidade do self é constituída. Evidentemente, essas afirmações em relação ao papel da narrativa na individuação das ações e da constituição da identidade do self não são incontestes. A tradição filosófica tende a ver esses fenômenos de acordo com os modelos de substância e acidentes, ou de uma coisa e suas propriedades. O self se torna o “eu não sei o quê” que subjaz às suas ações ou as suspende. As ações, por sua vez, não são consideradas como feitos significativos que revelam algo para alguém, mas sim como propriedades de corpos. O self em que Hume tropeçou enquanto meditava em sua consciência, ou o “Eu” kantiano que acompanha todas as minhas representações, não é o self na comunidade humana, o self que age e interage, mas o self qua pensador, qua sujeito de uma consciência retirada do mundo. Há uma conexão fundamental entre o fato de a tradição ignorar a questão do juízo na vida moral e a negligência em relação à especificidade da ação como discurso e ação ou interação comunicativa. Assim que vemos a ação como interação, realizada diante dos outros e na companhia dos outros, o papel do juízo emerge em pelo menos
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Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt
três áreas relevantes da interação moral.8 Elas são: a avaliação dos deveres dos indivíduos, a avaliação das ações dos indivíduos para o cumprimento desses deveres e a avaliação das máximas dos indivíduos como incorporadas, expressadas ou reveladas nas ações. Em direção a uma fenomenologia do juízo moral Ainda que o choque de deveres morais seja um tópico frequentemente reconhecido na filosofia moral, o exercício do juízo relacionado à avaliação dos deveres do indivíduo em situações particulares surge mesmo quando não existe esse choque. Consideremos um dever moral como a generosidade. Como um agente reconhece essa situação particular como sendo uma situação que demanda o dever de generosidade? Suponhamos que, por alguma circunstância, cujos detalhes não são exatamente claros, um amigo que trabalha no setor editorial acaba por dilapidar a fortuna da família e está altamente endividado. Precisamos primeiramente determinar se essas circunstâncias particulares são circunstâncias em que o dever da generosidade tem uma reivindicação sobre o que devemos fazer. Mas como podemos determinar as reivindicações das circunstâncias sobre nós? Observemos que essa questão não diz respeito ao dever moral pelo qual um agente reconhece 8
Para uma discussão iluminadora sobre o juízo moral, V. Charles Larmore, “Moral judgment,” Review of Metaphysics, 35, Dec. 1981, p. 275-296.
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que deva ser generoso. Diz respeito à interpretação do dever de generosidade nesse caso particular. Um indivíduo que dissipa a fortuna da família, por seus próprios feitos, merece generosidade? Se eu sei, pela história prévia dessa pessoa, de sua tendência a ser negligente com dinheiro, isso influencia ou deve influenciar minha deliberação sobre esse assunto? A regra geral sobre generosidade – ajudar aqueles em necessidade – não nos ajuda aqui, porque a questão é se essa situação particular é uma situação em que essa regra leva a uma reinvindicação moral sobre mim. Minha primeira tese é: O exercício do juízo moral, que está relacionado à identificação epistêmica de situações e circunstâncias humanas como moralmente relevantes, não ocorre de acordo com o modelo de subsunção de um particular a um universal. Por “moralmente relevante”, quero dizer uma situação ou circunstância definidas de tal forma que levaria à formulação de um dever moral prima facie entre os envolvidos. E quanto à avaliação da ação de um indivíduo nesse caso? Suponhamos que eu resolva a situação apresentada decidindo por ajudar meu amigo. Como esse ato de generosidade deve ser executado? Enquanto no primeiro caso estávamos perguntando se essa é uma situação moralmente relevante para mim porque ela me impõe o dever da generosidade, agora estamos perguntando o que devo fazer para cumprir esse dever. Suponhamos que, após a decisão de ajudar esse amigo, eu me dirija a ele, no meio de uma grande festa, e diga que sei que ele está falido e que aqui está certo valor 262
Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt
em dinheiro que, espero, ele usará melhor no futuro. Eu agi generosamente? Eu humilhei esse indivíduo? Eu simplesmente exibi meu desejo egoísta de ser elogiado na frente dos outros? Em outras palavras, o que eu faço, o curso de ação eu tomo, envolve alguma habilidade interpretativa de ver meu ato não apenas como relacionado a mim, mas também como ele será percebido e compreendido pelos outros. Eu tenho de ter imaginação moral suficiente para saber as possíveis descrições ou narrativas às quais minha ação pode ser subsumida. Minha segunda tese é: A identidade de uma ação moral não é uma identidade que pode ser construída à luz de uma regra geral que impera sobre casos particulares, mas implica o exercício da imaginação moral, que ativa nossa capacidade para pensar as possíveis narrativas e descrições à luz das quais nossas ações podem ser compreendidas pelos outros. Finalmente, voltemo-nos para a avaliação da máxima de um indivíduo. Pode parecer que, pelo menos, essa área de considerações morais está imune à indeterminação interpretativa do juízo moral e da imaginação moral. Podemos afirmar que eu sei o que eu quero fazer e quais são minhas intenções mesmo quando minha capacidade de compreender e de prever o que outros pensam ou podem pensar, como eles podem interpretar minhas ações, seja limitada ou simplesmente sem grande interesse para mim. De fato, há frequentemente um choque entre o “quê” [whatness] de um feito aos olhos dos outros e o “quem” [whoness] do agente que o realiza. Os atores 263
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também estão sujeitos às ações; eles não apenas agem, mas se tornam objeto da narrativa dos outros. Apesar dessa divergência entre intenção e ação, frequentemente observada e inevitável, as ações revelam nossas intenções logo que se tornam uma parte do mundo, e às vezes nós não sabemos quais são ou quais seriam as nossas intenções até que nossas ações tenham se tornado parte do mundo. Ao formular intenções, nós projetamos nós mesmos e nossa história narrativa no mundo e queremos ser reconhecidos como o agente disso ou daquilo. Nós identificamos nossas intenções em termos de uma narrativa da qual nós mesmos somos autores. Essa narrativa implica tanto o conhecimento do nosso passado quanto uma projeção do self e dos nossos desejos para nosso futuro. Ela também antecipa o significado que esse passado e esse futuro podem ter, e terão, aos olhos dos outros. O self não é apenas um “eu”, mas também um “mim” [me], um que é percebido pelos outros, interpretado e julgado pelos demais. As perspectivas do “eu” e do “mim” devem, de alguma maneira, integrar-se para conseguir tornar comunicáveis as minhas intenções. Minha terceira tese é esta: A avaliação das máximas da intenção de um indivíduo, na medida que incorporam princípios morais, requer a compreensão da história narrativa do self que é um ator; essa compreensão revela tanto autoconhecimento quanto conhecimento de si mesmo como visto pelos outros.
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Juízo e fundamentos morais da política no pensamento de Hannah Arendt
O que descrevi até aqui pode ser considerado uma fenomenologia do juízo moral. Argumentei que se alguém parte do modelo de ação moral como interação comunicativa, como discurso e feito, o juízo moral é relevante em três domínios: na avaliação de situações moralmente relevantes, na identificação de ações moralmente corretas e na interpretação das intenções e máximas do agente moral. A avaliação de situações moralmente relevantes não pode ser explicada à luz do modelo de juízo subsuntivo; a identificação de ações moralmente corretas requer a imaginação de possíveis descrições e narrativas sob as quais elas recaem; e a interpretação das intenções e máximas do indivíduo implica a compreensão de histórias narrativas – tanto a sua própria quanto as dos demais. Juízo na filosofia moral de Kant A caracterização de Arendt da ação humana em termos de natalidade, pluralidade e narratividade nos fornece um excelente início para desenvolver uma fenomenologia do juízo moral. Gostaria agora de me voltar brevemente ao status do juízo na filosofia moral de Kant. Porque, como Richard Bernstein também notou, um dos aspectos mais desconcertantes da discussão de Arendt sobre o juízo consiste no seguinte:
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Arendt bem sabia que, ainda que invocasse o nome de Kant, ela estava radicalmente se afastando de Kant. Não há dúvida de que em Kant a “habilidade de distinguir o certo do errado” é uma questão da razão prática e não da faculdade do juízo reflexivo, que ascende dos particulares para os gerais ou universais.9
A questão é se o papel bastante superficial que o juízo moral tem na filosofia prática de Kant não está relacionado à sua metafísica dos dois mundos e à depreciação da ação, que é consequência dessa metafísica. Ao explicar a relação de Arendt com Kant nesses assuntos, é necessário primeiramente considerar a teoria da ação de Kant. Na realidade, Kant não ignorou completamente o papel do juízo na filosofia prática. O juízo, “como uma faculdade de pensar o particular sob o universal”, é juízo determinante quando o universal é dado e o particular deve apenas ser subsumido a ele.10 Ele é um juízo reflexivo se apenas o particular é dado e o universal tem de ser encontrado. Uma vez que, de acordo com Kant, a lei moral, enquanto guia universal da ação moral, está dada em todas as circunstâncias, o juízo moral é determinante e não reflexivo. Gostaria de questionar se, mesmo de acordo com o próprio raciocínio de Kant, os juízos morais
Richard Bernstein, “Judging – the Actor and the Spectator,” p. 232-233.
9
Immanuel Kant, The critique of judgment, traduzido e com um índice analítico de J. C. Meredith, Clarendon, Oxford, 1964, p. 18. Essa edição será abreviada no texto como CrJ, também consultei Kritik der Urteilskraft, em Kants Werke, Akademie- Textausgabe, v. 5, Walter de Gruyter, Berlin, 1968.
10
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podem ser simplesmente determinantes, quer dizer, se simplesmente implicam a subsunção de um particular a uma lei universal. Na seção “Da típica da faculdade de julgar prática pura”, na Crítica da razão prática, Kant afirma: para saber se uma ação, possível para nós na sensibilidade, é ou não o caso que está submetido à regra, precisa-se da faculdade de julgar prática, pela qual aquilo que foi dito na regra universalmente (in abstracto) é aplicado a uma ação in concreto.11
Esse problema apresenta dificuldades especiais. Já que uma ação determinada pela lei da razão prática não deve ter nenhum outro fundamento para sua ocorrência que a concepção da lei moral, e já que “todos os casos de ação possível”, de acordo com Kant, “só podem ser empíricos, isto é, pertencentes à experiência e à natureza”, é absurdo querer encontrar um caso no mundo sensível que permita a aplicação da lei da liberdade a ele.12 Kant resume a dificuldade: Ao invés disso, o bem moral é algo suprassensível quanto ao objeto, para o qual, portanto, não pode ser encontrado algo correspondente em nenhuma intuição sensível, e a faculdade de julgar sob leis 11
Immanuel Kant, “Critique of Practical Reason,” em Critique of Practical Reason and other Writings in Moral Philosophy, tradução e introdução L. W. Beck, Nova York e Londres, Garland, 1976, p. 176. [Ed. bras.: Immanuel Kant . Crítica da razão prática. Tradução de Monique Hulshof. Petrópolis: Vozes, 2016]. Ibid.
12
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da razão prática pura parece, por isso, estar submetida a dificuldades particulares, que se baseiam no seguinte: uma lei da liberdade deve ser aplicada às ações/ enquanto acontecimentos que ocorrem no mundo sensível e que nessa medida pertencem, portanto, à natureza.13
Nessa discussão, Kant assume que toda ação é um evento do mundo e nelas recaem leis naturais. Ainda assim, para a liberdade ser possível, ele também tem de admitir que embora todas as ações, uma vez realizadas, se tornem eventos no mundo, algumas ações têm de ser causadas apenas pela ideia de uma lei moral. O que distingue a ação moral da ação não moral é o fundamento de sua determinação, quer dizer, a natureza dos princípios que exclusivamente governam as máximas de um indivíduo. Além disso, apenas essas ações podem ser moralmente boas. Como é frequentemente o caso, em suas considerações nesse assunto Kant funde duas questões. A primeira é uma questão que podemos chamar de epistemologia das ações humanas. Como elas podem ser identificadas e individuadas? A metafísica dos dois mundos de Kant, o numênico e fenomênico, leva-o a considerar que todas as ações uma vez que se tornam feitos no mundo são 13
Immanuel Kant, “Critique of Practical Reason,” em Critique of Practical Reason and other Writings in Moral Philosophy, tradução e introdução L. W. Beck, Nova York e Londres, Garland, 1976, p. 177. [Ed. bras.: Immanuel Kant . Crítica da razão prática. Tradução de Monique Hulshof. Petrópolis: Vozes, 2016].
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eventos. Entretanto, o problema não é se as ações são também eventos, mas se a linguagem dos eventos naturais é epistemologicamente adequada para descrever as ações humanas. Mesmo como eventos no mundo, as ações humanas só podem ser compreendidas com referência a razões, quer dizer, com referência aos fundamentos ou princípios que agem como suas causas. As razões são de natureza tal que necessitam ser compreendidas; só podem ser descritas a partir das perspectivas próprias dos participantes ou atores. Eu não estou sugerindo que uma ciência que objetiva a ação humana não seja possível, sugiro apenas que o entendimento – Verstehen – também é um componente essencial de qualquer ciência da ação humana. Sob o feitiço das promessas exageradas das ciências newtonianas, Kant dissolve toda a distinção entre as ciências naturais, humanas e sociais, e simplesmente assume que uma ciência natural, uma ciência newtoniana da ação humana, é possível. A segunda questão que guia Kant é a distinção entre o moralmente correto e o moralmente bom. Ações que são moralmente corretas estão em conformidade com a lei moral; mas apenas aquelas que têm o dever de ser em conformidade com a lei moral como seu único fundamento, ou propósito motivacional, são moralmente boas. A distinção entre o moralmente correto e o moralmente bom não é contraintuitiva, pois é possível fazer a coisa certa pelas razões erradas. As intenções do agente são obviamente um componente essencial da qualidade moral ou da virtude de uma ação, embora de 269
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forma nenhuma sejam o seu único componente. Onde Kant parece errar, entretanto, é em sua insistência em que nós não podemos, nunca, de forma alguma, saber se uma ação foi moralmente virtuosa nesse sentido, já que o moralmente bom resiste à incorporação no mundo fenomênico. Poderíamos dizer, juntamente com Hegel, que “a pureza do coração” se torna uma quimera na filosofia moral de Kant. Assim que é incorporada na ação e vira parte do mundo, ela se torna impura; ainda assim, incorporar a boa vontade na ação é a única marca da liberdade e da dignidade moral. Portanto, parece que somos livres apenas quando agimos, mas nos tornamos não livres tão logo agimos. A saída para esse dilema, eu gostaria de sugerir, não é negar a distinção entre o moralmente bom e o moralmente correto, mas rejeitar a metafísica dos dois mundos da teoria kantiana em favor de uma epistemologia social que possa fazer justiça à descrição e à explicação da ação e da interação humanas.14 Assim, embora Kant 14
Kant retorna para a questão do juízo moral em Metaphysik der Sitten [Metafísica dos costumes], dessa vez no contexto de distinguir deveres perfeitos de imperfeitos. Deveres perfeitos, como dizer a verdade e manter promessas, são aqueles em que a ação em si mesma é diretamente determinada pela lei moral; deveres imperfeitos, como generosidade e benevolência, são aqueles cujas máximas, e somente elas, são determinadas pela lei moral (p. 230 et seq., 250 et seq.). Essa distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos corresponde àquela entre o moralmente correto e o moralmente bom; enquanto os primeiros são subsumidos sob o “Rechtslehre” (doutrina do direito), os segundos são subsumidos sob o “Tugendlehre” (doutrina da virtude). Kant admite que, em virtude da latitude permitida aos deveres imperfeitos – empenho pela sua própria perfeição e pelo bem-estar dos outros –, esses deveres requerem o exercício da faculdade
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não ignore o papel do juízo na filosofia prática, suas reflexões, nesse assunto, soçobram no problema da metafísica dos dois mundos, e impedem um exame mais detalhado do que pode estar envolvido no exercício do juízo moral. Eu já argumentei que a avaliação dos deveres de um indivíduo, em um caso concreto, depende do reconhecimento de certas situações como sendo moralmente relevantes, e que esse juízo não pode ser explicado à luz do modelo subsuntivo. Além disso, a identificação de ações moralmente corretas requer – pace Kant – o exercício da imaginação na articulação de possíveis narrativas e descrições de atos [act descriptions] sob as quais nossos feitos podem recair; finalmente, a interpretação das ações e das máximas de um indivíduo implica a compreensão da história narrativa do self e dos outros. Essas operações hermenêutico-interpretativas constituem um aspecto da contextualização de todos os princípios morais em casos específicos. O juízo não é uma faculdade de subsumir o particular ao universal, mas uma faculdade de contextualizar o universal de tal modo que ele tenha relevância para o particular. do juízo. Essa faculdade deve determinar como a “máxima deve ser aplicada em casos específicos”, isso, por sua vez, requer outra máxima subsidiária de aplicação, e assim pousamos em um “casuísmo moral” (p. 256). Na perspectiva de Kant, quanto mais amplo o domínio de um dever imperfeito, mais ampla é a possibilidade para o exercício moral da faculdade do juízo. Kant encerra essas deliberações, de forma um tanto rápida, com a observação de que a ética está preocupada não tanto com o juízo, mas sim com a razão (p. 256). V. Immanuel Kant, Metaphysik der Sitten, K. Vorlaender (ed.), Philosophische Bibliothek, v. 42, 4. ed., Felix Meiner, Hamburg, 1966.
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Estamos agora em posição para responder a questão de por que Arendt, que repetidamente enfatiza que o juízo é uma faculdade de “distinguir o certo do errado”, e não apenas o belo do feio, continuou a apelar para a doutrina do juízo reflexivo de Kant como um modelo de juízo em geral?15 Claramente, não é de proveito algum, para Arendt, a metafísica dos dois mundos e a depreciação da ação humana que dela resulta. A esse respeito, Kant apenas compartilha o desprezo pela vita activa característico da tradição filosófica como um todo. O que Arendt viu na doutrina do juízo estético de Kant foi outra coisa. Na concepção kantiana do juízo reflexivo, restringido pelo próprio Kant ao domínio estético – aos olhos de Arendt, erroneamente –, Arendt descobriu um procedimento para determinar validade intersubjetiva no domínio público. Esse tipo de validade intersubjetiva claramente transcende a expressão da simples preferência, ao mesmo tempo que fica aquém da validade
Cf. Hannah Arendt, “Introduction,” Thinking, p. 5; Hannah Arendt, “Thinking and moral considerations,” p. 8. Nós também sabemos, pelas notas dos seus alunos que assistiram a seu curso sobre a Crítica da Faculdade de Julgar de Kant, na University of Chicago, em 1971, que “Embora Kant tenha removido questões do certo e do errado da esfera do juízo (estético) reflexivo... Arendt mesma estava convencida de que, ao fazer isso, ele cometera um grande erro” Michael Denneny, “The privilege of ourselves: Hannah Arendt on judgment”, In: Hannah Arendt: the recovery of the public world, M. A. Hill (ed.), Nova York, St. Martin’s, 1979, p. 266.
15
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certa e a priori demandada pela razão kantiana. Relembremos a descrição de Kant do “juízo reflexivo”:16 por sensus communis se deve entender a ideia de um sentido de comunidade, isto é, uma faculdade de julgamento que em sua reflexão toma em consideração (a priori) o modo de representar de todos os demais, para como que vincular o seu juízo à razão humana como um todo, escapando assim à ilusão que, a partir de condições subjetivas privadas – que podem facilmente ser tomadas por objetivas [...]. Isso só acontece na medida em que vinculamos nosso juízo a outros juízos, não tanto efetivos quanto antes possíveis, e nos colocamos no lugar de todos os demais [...].
Em seu ensaio “A crise na cultura”, Arendt fornece uma interpretação iluminadora sobre essa passagem. Ela afirma: O poder do juízo repousa em um acordo potencial com os outros, e o processo de pensamento que está ativo no julgamento de algo não é um diálogo entre mim e eu mesma, como o processo de pensamento do raciocínio puro, mas se encontra, sempre e primariamente, mesmo quando estou completamente sozinha ao tomar uma decisão, em uma comunicação Kant, Critique of Judgment, p. 151; Cf. a discussão de Arendt dessa passagem em suas Lectures on Kant’s political philosophy, p. 71 et seq. [KANT, I. Crítica da Faculdade de Julgar. Tradução de Fernando Costa Mattos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. §40. Do gosto como uma espécie de sensus communis.]
16
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antecipada com os outros com quem sei que devo finalmente chegar a algum acordo. O juízo obtém sua validade específica desse acordo potencial. Isso significa, por um lado, que esse juízo deve se libertar das “condições privadas subjetivas”, quer dizer, das idiossincrasias que naturalmente determinam a atitude de cada indivíduo em sua privacidade e que são legítimas desde que se mantenham apenas como opiniões privadas, inadequadas para entrar na praça pública e sem validade no domínio público. E esse modo alargado de pensamento, que enquanto juízo sabe como transcender suas limitações individuais, não pode funcionar em estrito isolamento ou solidão; ele precisa da presença de outros “no lugar dos quais” deve pensar, cujas perspectivas deve levar em consideração e sem os quais jamais teria a oportunidade de operar.17
A resposta, então, para a questão de por que Arendt não explorou seu afastamento de Kant nesses assuntos é, primariamente, porque, na descoberta de Kant da “mentalidade alargada”, Arendt viu o modelo para o tipo de validade intersubjetiva que poderíamos esperar atingir no domínio público. Entretanto, o fato de ela ter visto a mentalidade alargada como especificamente política e não moral se deve à sua própria concepção estreita do domínio moral.
Arendt, “Crisis in culture”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Nova York, Meridian, 1961, p. 220-221.
17
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Perspectivas neokantianas e neoaristotélicas sobre o juízo Antes de explorarmos a relação entre moral e política no pensamento de Arendt, temos de considerar a seguinte objeção ao que foi dito até aqui: é de fato possível combinar uma fenomenologia do juízo moral, baseada em uma concepção arendtiana de ação, com um modelo kantiano de validade intersubjetiva? Enquanto a primeira linha de pensamento é mais característica de uma tradição aristotélica com ênfase no contexto e em particulares narrativos, o modelo kantiano do juízo reflexivo não faz essa referência a contextualização, e nos ordena a abstratamente “pensar a partir das perspectivas de todos os demais”. Enquanto no modelo aristotélico é a qualidade exemplar do juízo do phronimos que garante sua validade, no modelo kantiano o fundamento da validade de nossos juízos (estéticos) é sua comunicabilidade universal com a esperança de ganhar o assentimento de todos. Claro que sugerir que Arendt, ou qualquer outra pessoa, poderia simplesmente combinar ou integrar esses modos de pensamento em uma unidade sem atritos seria o equivalente a querer tornar o círculo quadrado. Há pressupostos metafísicos fundamentais dividindo Aristóteles e Kant, e esses pressupostos subjazem suas teorias éticas e políticas. Ainda assim, em debates contemporâneos entre kantianos e aristotélicos, esses pressupostos metafísicos dificilmente desempenham algum papel. Neoaristotélicos como Gadamer, Taylor e MacIntyre não baseiam suas filosofias práticas nem em uma 275
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teleologia metafísica aristotélica, nem em uma teoria aristotélica da forma e da matéria. Igualmente, neokantianos, como Rawls, Gerwirth, Apel e Habermas, rejeitam a metafísica dos dois mundos de Kant, como também sua teoria newtoniana da ação. A questão central no debate atual é se um ponto de vista moral universalista deve ser formalista, a priori e insensível ao contexto, ou se o universalismo moral pode ser reconciliado com uma sensibilidade ao contexto.18 É nessa conjuntura que a síntese arendtiana, prima facie implausível, de elementos aristotélicos e kantianos, se prova frutífera. Aqui posso apenas sugerir qual poderia ser uma contribuição arendtiana para esse debate. Arendt insinuou que, intrínseco ao modelo kantiano de “juízo reflexionante”, pode haver uma concepção de racionalidade e de validade intersubjetiva que nos permite manter um ponto de vista moral universalista baseado em princípios, enquanto ainda reconhecemos o papel do juízo moral contextual nos assuntos humanos. Deixe-me expandir. Consideremos primeiramente uma objeção kantiana à fenomenologia do juízo moral apresentada acima. O que você descreveu, um kantiano pode contestar, é uma arte de astúcia nos assuntos humanos “eine Geschicklichkeit auf Menschen und ihren Willen Einfluss zu haben” – uma certa habilidade em influenciar Para uma recente tentativa de reconciliar universalismo e juízo moral, v. o ensaio instrutivo de Otfried Höffe, “Universalistische Ethik und Urteilskraft: ein Aristotelisher Blick auf Kant,” em Zeitschrift für philosophische Forschung, 44.4, 1990, p. 539-563.
18
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os outros e as suas vontades.19 Certamente, continua a objeção, as habilidades hermenêuticas e interpretativas que você descreve são relevantes quando se está em companhia humana e para a sociabilidade humana, mas o que lhes empresta sua qualidade moral é que elas são guiadas por princípios morais. Na ausência desses princípios morais, essas habilidades hermenêutico-interpretativas podem ser utilizadas para manipular as pessoas ou para produzir uma aparência de virtude sem sua existência. Como Kant incisivamente escreve: “Ebenso gibt es Sitten (Conduite) ohne Tugend, Hoeflichkeit ohne Wohlwollen, Anstaendigkeit ohne Ehrbarkeit, usw.” [“Da mesma forma, não pode haver conduta ética (conduite em francês) sem virtude, polidez sem boa vontade e decência sem honradez”].20 Essa objeção kantiana se aplica a todas as variantes das teorias neoaristotélicas em que o relacionamento do juízo moral com os princípios morais e os fundamentos de validade desses últimos restam incertos. Como mostra o debate sobre o significado mais amplo ou mais restrito do conceito aristotélico de prudência, ou phronesis, há algumas ambiguidades cruciais nesse conceito.21 Por vezes, a phronesis é interpretada em um sentido estrito, como impondo uma escolha de meios Kant, Critique of Judgment, p. 9.
19
Ibid., p. 50.
20
V. R. Sorabji, “Aristotle on the role of intellect and virtue”, e David Wiggins, “Deliberation and Practical Reason”, ambos em Essays on Aristotle’s Ethics, A. O. Rorty (ed.), University of California Press, Berkeley, 1980 p. 201-221 e 221-241, respectivamente.
21
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para um fim determinado cuja validade em si não é investigada. Outros, como Gadamer, interpretam a phronesis mais amplamente, como requerendo não apenas o conhecimento dos meios, mas também dos fins que constituem nossa vida como um todo.22 Ainda assim, comparemos a seguinte afirmação, de Verdade e método, em que Gadamer reverte ele próprio para a linguagem aristotélica da “visão” e do “arqueiro acertando o alvo”23 ao descrever as atividades do phronimos. Daí se segue, afinal, que todas as ações éticas exigem gosto – não como se essa avaliação mais individualizada da decisão fosse a única determinante para elas, mas por ser um momento imprescindível. É realmente um desempenho de fato indemonstrável acertar no que é correto e dar um disciplinamento à aplicação do universal, da lei dos costumes (Kant), uma disciplina que a própria razão não está em condições de fornecer. É assim que o gosto, embora não seja certamente o fundamento, é decerto a mais elevada perfeição do julgamento ético.24* H. G. Gadamer, Truth and method, tradução G. Barden and J. Cumming, Nova York, Seabury, 1975, p. 287.
22
Cf. Aristotle, Nicomachean Ethics, In: Basic works of Aristotle, edição e introdução de R. McKeon, Nova York, Random House, 1966, p. 1114b5 et seq., 1142a25 et seq.
23
Gadamer, Truth and method, p. 37-38. [H. G. Gadamer, Verdade e método, RJ: Vozes, 1997, p. 89]. * [N.T.]. Benhabib usa a tradução para o inglês de 1975, porém enquanto na tradução inglesa consta moral decisions, como tradução para sittlichen Entscheidungen do original, ela usa moral actions. A tradução em português, baseada na edição da Vozes de 2007, foi alterada para refletir isso. [R.R.B] 24
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Gadamer não colapsa totalmente a distinção entre gosto e moralidade porque admite que o gosto não é o fundamento de validade do juízo moral. Mas ele também não nos diz qual o fundamento do juízo moral. Os princípios morais são vistos como incorporados no horizonte de nossas tradições, que constituem nossa comunidade ética. Claro, Gadamer não tem em mente uma aplicação mecânica desses princípios ou uma obediência cega aos hábitos. Toda aplicação envolve interpretação, e toda interpretação envolve compreensão. Ao continuar uma tradição, nós não simplesmente a aplicamos, nós a cointerpretamos, a codefinimos e a reinterpretamos. Entretanto, é preciso haver alguns princípios, os kantianos insistiriam, para distinguir entre tradições que merecem ser preservadas e tradições que não merecem ser preservadas, entre práticas éticas que merecem ser compartilhadas e práticas que devemos rejeitar, mesmo quando são nossas próprias tradições e práticas. Podemos conceder a Gadamer que esses critérios serão, eles mesmos, incorporados em uma ou outra tradição ou em uma ou outra prática, que eles podem ser transmitidos do passado ou podem ser inspirados por esperanças utópicas para o futuro. De um ponto de vista kantiano, a questão crucial é se o exercício do juízo é guiado por princípios morais que refletem uma moralidade universalista, ou se esse exercício não se orienta por princípios morais e, em vez disso, são governados por um casuísmo situacional. Em outras palavras, um kantiano contemporâneo pode admitir que 279
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as afirmações de Kant sobre o juízo moral ser meramente subsuntivo, como também a teoria da ação de Kant, são inadequadas e precisam ser rejeitadas. Ainda assim, esse kantiano também pode insistir que uma distinção entre o juízo moral e o princípio moral precisa ser feita, e que o primeiro deve ser guiado por uma moralidade universalista que considere todos os seres humanos como fins em si mesmos. Nessa linha, Barbara Herman defendeu que a moralidade kantiana carece de “regras de relevância moral” que permitem aos agentes identificar situações, máximas e descrições de atos moralmente relevantes.25 Ela afirma, contudo, que essas regras de relevância moral poderiam muito bem ser formuladas dentro de uma estrutura kantiana, insistindo que o juízo moral, mesmo assim, precisa ser guiado por princípios morais universalistas. Essa distinção entre juízo moral e princípios morais, entre regras gerais que guiam e governam nossa conduta e nossa ação moral e a forma específica que essas regras assumem em ações, situações e eventos específicos nos ajudam a ver como pode ser criado um espaço na teoria kantiana para o exercício do juízo moral. Apenas essa distinção não é suficiente para estabelecer que uma moralidade universalista e o juízo contextual são, de fato, incompatíveis. Se, como é normalmente assumido como sendo o caso, a lei moral nos impõe abstrairmos dos detalhes situacionais e pensarmos o que poderia ser 25
Barbara Herman, “The Practice of Moral Judgment,” Journal of Philosophy, Aug. 1985, p. 414-436.
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válido para todos os seres racionais simpliciter, então realmente não há essa compatibilidade, porque o princípio kantiano nos imporia exatamente o oposto do que o juízo moral requer. É nesse contexto que se tornam relevantes a fórmula de Kant para o juízo reflexivo, cujo único fundamento de validade é sua comunicabilidade universal com a esperança de ganhar o assentimento de todos, e a leitura de Arendt desse juízo como um procedimento de “mentalidade alargada”. “Aja de tal modo que a máxima de suas ações possa sempre ser uma lei universal da natureza” pode ser reformulado como “Aja de tal modo que a máxima de suas ações leve em consideração a perspectiva de todos os outros de uma maneira a colocá-lo em uma posição a ‘cortejar o consentimento deles’.” Esse procedimento de mentalidade alargada e juízo moral contextual não são de maneira alguma incompatíveis. O princípio moral da mentalidade alargada nos ordena a ver cada pessoa como alguém a quem eu devo o respeito moral de considerar sua perspectiva. Esse é o cerne universalista-igualitário da moralidade kantiana. Ainda assim, “pensar do ponto de vista de todos os outros” requer precisamente o exercício do juízo moral contextual. Eu isolei anteriormente três aspectos em que o exercício do juízo moral era crucial: primeiro, o reconhecimento de situações moralmente relevantes; segundo, o exercício da imaginação moral na articulação de possíveis descrições de ato, por meio das quais nossos feitos podem ser interpretados; terceiro, a interpretação das 281
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ações e máximas de uma pessoa à luz da história narrativa do self e dos outros. Cada um desses aspectos do juízo moral requer, para o seu exercício bem-sucedido, a capacidade de se adotar o ponto de vista do outro. Quanto mais perspectivas humanas pudermos trazer para nossa compreensão da situação, mais provável será que reconheçamos sua relevância ou importância moral. Quanto mais perspectivas formos capazes de fazer presentes para nós, mais aptos ainda estaremos para avaliar as possíveis descrições de ato por meio das quais os outros identificarão nossos feitos. Finalmente, quanto mais formos capazes de pensar a partir da perspectiva dos outros, mais seremos capazes de tornar vívidas para nós as histórias narrativas dos outros envolvidos. O juízo moral, quaisquer que sejam as outras capacidades cognitivas que ele possa requerer, certamente deve envolver a capacidade para a “mentalidade alargada”, ou a capacidade de formar uma opinião “em uma antecipada comunicação com os outros, com quem eu devo eventualmente chegar a um acordo” (Arendt). Essa capacidade para o juízo não é empatia, como Arendt também observa,26 pois ela não significa assumir ou aceitar emocionalmente o ponto de vista do outro. Significa apenas tornar presentes para si mesmo as reais ou possíveis perspectivas dos outros envolvidos, e se eu posso “cortejar o consentimento deles” ao agir da 26
Arendt, “The crisis in culture”, In: Between past and future: six exercises in political thought, Nova York, Meridian, 1961, p. 221.
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forma que eu ajo. Se esse pensamento a partir do ponto de vista de todos os outros deve ser distinguido da empatia, então como podemos compreendê-lo? Para Kant, isso não era um problema, já que ele assumiu que, pensando por um, um ser puramente racional poderia pensar por todos. Se nós rejeitamos o a apriorismo kantiano, e sua assunção de que, como selves morais, somos todos de alguma forma idênticos; se, em outras palavras, nós distinguirmos uma moralidade universalista baseada em princípios da doutrina de Kant da racionalidade a priori, então eu gostaria de sugerir que devemos pensar nessa mentalidade alargada como uma condição de diálogo real ou simulado. “Pensar da perspectiva de todos os outros” é saber “como ouvir” o que o outro está dizendo ou, quando as vozes dos outros estão ausentes, imaginar para si mesmo uma conversação com o outro como meu parceiro de diálogo. A “mentalidade alargada” é mais bem realizada por meio de uma ética dialógica ou discursiva. Os fundamentos morais da política na obra de Arendt Há alguma razão para assumirmos que esse modelo procedimental da mentalidade alargada, que nos impõe que de fato nos engajemos ou simulemos em pensamento um diálogo moral com todos os concernidos, nos ajudaria a recuperar aquela ligação entre pensamento, juízo e considerações morais que Hannah Arendt 283
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buscava? É novamente uma das perplexidades do pensamento arendtiano sobre essas questões que, enquanto ela prontamente reconhece a relevância da “mentalidade alargada” como um princípio no domínio público-político, em suas considerações sobre a moralidade ela retrocede ao modelo platônico da unidade da alma consigo mesma. Em seu ensaio “Pensamento e considerações morais”, de 1971, seguindo Sócrates em Górgias, ela descreveu a consciência como a harmonia ou a unicidade da alma consigo mesma.27 Ainda que eu não queira negar a relevância dessa experiência para considerações morais, penso que Arendt assumiu depressa demais que um ponto de vista moral, baseado em princípios, poderia emergir a partir do desejo do self por unidade e consistência. Deixe-me apenas lembrá-los das famosas linhas de Walt Whitman: “Contradigo a mim mesmo? Muito bem, então contradigo a mim mesmo, sou vasto, contenho multidões.”28 Arendt, “Thinking and Moral Considerations,” p. 30. A passagem discutida por Arendt é a seguinte: “Seria melhor para mim que minha lira ou um coro por mim regido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e que multidões de homens discordassem de mim, do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”. (tradução para o inglês e ênfase de Arendt). Cf. Gorgias, em The Collected Dialogues of Plato, Edith Hamilton and Huntington Caims (ed.), Bollingen Series 71, Princeton University Press, Princeton, NJ, 1973, p. 265. [Hannah Arendt. A dignidade da política, p. 162].
27
Walt Whitman, “Song of Myself,” Leaves of grass and selected prose, edição e introdução por John Kouwenhoven, Nova York, Modern Library, 1950, estrofe 51, p. 74. [Do I contradict myself? Very well then I contradict myself, I am large, I contain multitudes]
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Enquanto Arendt enfatizava a harmonia como a experiência moralmente relevante, ela considerava a pluralidade como o princípio político par excellence. Porém, por meio dessa ênfase na unidade ou harmonia, ela apresentou uma concepção quase intuicionista de juízo moral. Pois, se a base de validade de nossos juízos morais é que eles nos permitem “ficar em casa com nós mesmos”, não estamos, na realidade, tornando a validade uma questão de idiossincrasias da psique individual? Não era uma das características mais desconcertantes de Eichmann, aos olhos de Arendt, precisamente o fato de ele estar “em casa” consigo mesmo? Arendt não consegue nos convencer que possam ser reconciliadas uma atitude de investigação e reflexão moral, como a determinada pelo procedimento da mentalidade alargada, e a ênfase platônica na unidade ou harmonia da alma consigo mesma. De fato, a capacidade para a mentalidade alargada pode muito bem levar ao conflito moral e à alienação, entretanto, em um mundo em desalinho, uma atitude de alienação moral pode ser mais adequada ao mundo que uma atitude de simples harmonia consigo mesmo. Há uma ironia nessas reflexões. Os tipos de situações históricas que levaram Arendt a suas meditações sobre o pensamento e sobre considerações morais, principalmente o nacional-socialismo e o stalinismo no nosso século, são justamente casos em que a intersubjetividade constitutiva do mundo social foi tão dilacerada e danificada que a motivação e a capacidade para se envolver na 285
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mentalidade alargada desapareceram. Em outras palavras, uma possível objeção arendtiana ao modelo de diálogo real ou simulado que eu apresentei pode ser o fato de que esse modelo revela a utopia do pensamento moral ao extremo. Pois esses tipos de atitudes morais parecem desaparecer justamente quando mais precisamos deles, naquelas situações de convulsão moral e política em que o tecido das interações morais que constituem nossa vida diária está tão destruído que desaparece da consciência dos indivíduos a obrigação moral de pensar nos outros como pessoas cuja perspectiva eu devo ponderar igualmente junto com a minha. Há, é verdade, uma clivagem entre princípio moral e realidade histórica. A questão acerca de quando um ponto de vista moral de mentalidade alargada baseado em princípios pode tornar-se ou deixa de tornar-se a cultura moral de uma sociedade não pode ser respondida por argumentos filosóficos relacionados à sua validade ou à sua desejabilidade. Entretanto, essa admissão não é equivalente à aceitação da impotência diante da história que o velho Hegel, pelo menos, sempre viu como o preço que uma ética kantiana tinha de pagar pelo seu formalismo. Podemos nomear essa questão como o problema da mediação dos princípios morais e da cultura moral. É nesse ponto, quando estamos justamente preocupados em mediar um ponto de vista moral baseado em princípios com as práticas histórias e sociais reais, que a questão de uma ética política surge. Uma ética política se preocupa com a criação 286
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de instituições, com a formação de práticas e a manutenção de valores cívicos que cultivem a capacidade da mentalidade alargada e o compromisso com a igualdade universalista que os inspiram. Aqui eu devo me distanciar de Arendt. A própria Arendt separava radicalmente considerações morais de ação política. Embora sua própria teoria política do espaço público, da comunidade, do poder e da participação pareçam-me inconcebíveis sem uma implícita ética política da mentalidade alargada, em seu livro Sobre a revolução, Arendt parte de uma concepção extraordinariamente estreita da moralidade. Como é bastante conhecido, sua maior crítica aos revolucionários franceses era que, em sua tentativa de estabelecer uma república da virtude, eles só conseguiram estabelecer uma república do terror.29 “Pureza de Hannah Arendt, On revolution, Nova York Viking, 1969, p. 68 et seq., 81 et seq. Para uma preocupação similar com a relação entre moralidade e política no pensamento de Hannah Arendt, cf. J. Habermas, “Hannah Arendt’s communications concept of power,” Social research, 44, 1977, p. 3-25. Eu concordo com George Kateb, que escreve: “Meu medo é que o julgar seja um apoio muito frágil para a esperança de manter uma concepção grega de ação, apenas ligeiramente alterada, enquanto reduz os perigos de sua imoralidade encorajada... Tudo que a faculdade de julgar pode garantir é que aqueles que são reconhecidos com iguais serão levados em conta. A demanda de que todos sejam reconhecidos como iguais, que não se iguale a humanidade com seu próprio grupo, não decorre necessariamente da atividade de julgar”, In: Hannah Arendt: politics, conscience, evil, Rowman and Allanheld, Totowa, NJ, 1983, p. 38-39. Precisamente por essa razão, é importante distinguir entre juízo moral e princípios morais, como também deixar explícito os fundamentos do seu conceito do que é político.
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coração”, na perspectiva dela, não tem lugar na política. Arendt aqui não distingue entre o moralmente bom e o moralmente correto. O bem moral, a virtude, diz respeito, de fato, àquelas disposições, traços de caráter, emoções e intenções que levam a uma conduta virtuosa. O moralmente correto diz respeito a nossas ações e interações públicas que afetam, influenciam e refletem sobre a dignidade moral e o valor moral do outro como um ente público. Assim, uma possível resposta à separação de Arendt entre moralidade e política é argumentar, com Kant e com a teoria política liberal moderna, que há uma fundação moral para a política na medida em que qualquer sistema político incorpora princípios de justiça. Na teoria kantiana, esse domínio cobre o Rechtslehre [doutrina do Direito], a saber, aqueles direitos humanos e princípios públicos da legislação que incorporam o respeito pelo valor moral e a dignidade moral do outro. Isso é o que John Rawls reformula em sua teoria da justiça como princípios fundamentais da justiça que devem governar as instituições básicas das sociedades. Entre a “república do terror” e a “república da virtude”, poderíamos dizer, há uma concepção de uma “sociedade justa e bem-ordenada”, que incorpora princípios morais básicos em suas instituições econômicas e macropolíticas.30
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John Rawls, A theory of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, p. 51 et seq.
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É possível dar um passo além ao explorar esse tópico da ética política sem destruir totalmente a distinção entre o correto e o bem. Esse passo adicional envolveria o encorajamento e o cultivo de um ethos público de participação democrática. Entre as instituições básicas de uma constituição política, que incorporam os princípios do moralmente correto, e o domínio das interações morais no mundo da vida, em que a virtude frequentemente vem à tona, estão as práticas cívicas e as associações de uma sociedade em que os indivíduos se encontram uns com os outros não como puros sujeitos jurídicos, nem como agentes morais sob vínculos de obrigações éticas uns com os outros, mas como agentes públicos em um espaço político. A lacuna entre as demandas da justiça, que expressam o moralmente correto, e as demandas da virtude, que definem a qualidade de nossas relações com os outros no mundo da vida cotidiano, pode ser superada ao cultivarmos as qualidades da amizade e solidariedade cívicas. Essas atitudes morais da amizade e da solidariedade cívicas envolvem a extensão da simpatia e da afeição, que naturalmente sentimos por aqueles mais perto de nós, a grupos maiores de seres humanos, e assim elas personalizam a justiça. Considerando que, particularmente de uma perspectiva kantiana, é habitual ver aqui uma ruptura entre a virtude pública da justiça impessoal e a virtude privada da bondade, é possível vislumbrar não a sua identidade, mas a sua mediação.
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Por tornar a perspectiva de todos os envolvidos em uma situação de diálogo o sine qua non do ponto de vista moral, o modelo discursivo da ética, que impõe a mentalidade alargada, nos permite pensar nessa continuidade e mediação. Pois a articulação das perspectivas de todos os envolvidos requer, de fato, uma vida pública e cívica em que o direito à opinião e à ação sejam garantidos.31 A articulação das diferenças por meio de associações cívicas e políticas é essencial para que compreendamos e passemos a apreciar a perspectivas dos outros. Os sentimentos de amizade e solidariedade originam-se justamente mediante a extensão de nossa imaginação moral e política – não no vácuo, ou via um experimento de pensamento rawlsiano – mas por meio da confrontação real, na vida pública, com o ponto de vista daqueles que são, de alguma forma, estranhos para nós, mas que se tornam conhecidos por nós por meio de sua presença pública, como vozes e perspectivas que temos de levar em conta. Há, portanto, uma ligação fundamental entre uma cultura cívica de participação pública e a qualidade moral da mentalidade alargada. A mentalidade alargada, que moralmente nos obriga a pensar do Sobre os direitos de opinião e ação, que Arendt descreve como o “direito a ter direitos”, v. Arendt, Imperialism, em The origins of totalitarianism, parte 2, Nova York, Harcourt, Brace and Jovanovich, 1968, p. 176-177. Para um ensaio provocativo que explora e argumenta contra a veia antidemocrática no pensamento de Arendt, cf. Sheldon Wolin, “Hannah Arendt: Democracy and the Political,” Salmagundi, edição especial H. Arendt, Christopher Lasch (ed.), n. 60, 1983, p. 3-19. A concepção alternativa do político, que Wolin delineia nesse ensaio, contudo, deve bastante às opiniões de Arendt em The Human Condition; Cf. Wolin, p. 17-19.
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ponto de vista de todos os outros, politicamente requer a criação de instituições e práticas por meio das quais a voz e a perspectiva dos outros, frequentemente desconhecidas por nós, podem ser expressas por seu direito próprio. Um dos maiores enganos da teoria moral kantiana é assumir que os princípios da mentalidade alargada podem ser concebidos via o experimento de pensamento isolado de um pensador. Esses experimentos de pensamento solitários frequentemente substituem o ponto de vista de todos pelo ponto de vista de uma parte privilegiada. De fato, dificilmente isso pode ser diferente. Pois “pensar do ponto de vista de todos os outros”, na filosofia moral kantiana, é equivalente a pensar do ponto de vista de apenas um, que é igual a todos os outros em virtude de ser um agente autônomo e puramente racional. Uma vez que rejeitamos a metafísica de dois mundos da teoria kantiana, como também a definição de nossas identidades morais em termos puramente racionais, e prosseguimos para as perspectivas da natalidade, pluralidade e narratividade da ação, temos de perceber que “pensar do ponto de vista de todos os outros” implica compartilhar certa cultura pública em que todos os outros podem articular, de fato, o que pensam e quais as suas perspectivas. O cultivo da imaginação moral de uma pessoa prospera nessa cultura em que a perspectiva autocentrada do indivíduo é constantemente desafiada pela multiplicidade e diversidade de perspectivas que constituem a vida pública.
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Nesse sentido, Hannah Arendt estava correta ao sustentar que o juízo é a mais política de todas as faculdades humanas, pois leva à recuperação de uma das qualidades do mundo público em que a ação acontece, isto é, a recuperação da qualidade de ser constituído por perspectivas. Onde eu me separo de Arendt, entretanto, é na sua tentativa de restringir essa qualidade do espírito apenas ao domínio político, ignorando assim o juízo como uma faculdade moral. As consequências da posição de Hannah Arendt são, por um lado, a redução do raciocínio moral baseado em princípios ao ponto de vista da consciência, que é identificada com a perspectivas do self unitário e, por outro lado, uma separação radical entre moralidade e política que ignora justamente os princípios normativos que parecem ser incorporados nos conceitos fundamentais de sua própria teoria política, tais como espaço público, poder e comunidade política. Tentei mostrar que a própria teoria da ação arendtiana pode se tornar produtiva para a investigação do juízo moral e que, além disso, essa teoria da ação leva à reformulação da essência da teoria moral kantiana nos termos de um processo dialógico de mentalidade alargada. Minhas reflexões finais tentaram fazer uma mediação entre essa perspectiva da mentalidade alargada e sua incorporação a uma cultura pública de ethos democrático. Este artigo foi originalmente apresentado no Hannah Arendt Memorial Symposium on Political Judgment, realizado na New School for Social Research no outono de 1985. Gostaria de agradecer a
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Albrecht Wellmer e Charles Taylor pelos comentários a essa palestra e ao leitor anônimo da revista Political Theory pelas suas críticas úteis. Eu revisei e expandi a versão publicada que apareceu em Political Theory, 16.1, fevereiro de 1988, p. 29-51; republicada com a permissão da Sage Publications, Inc.
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Parte II Autonomia, feminismo e pós-modernismo
A primeira metade deste livro tratou principalmente da justificação, do escopo e das implicações institucionais da ética comunicativa ou discursiva. Investiguei as relações entre ética comunicativa, de um lado, e comunitarismo, liberalismo e uma concepção arendtiana de “virtude cívica”, de outro. Ao eliminar algumas das formulações excessivamente racionalistas elaboradas por Jürgen Habermas para a ética comunicativa, coloquei no centro da ética do discurso menos o télos de um consenso motivado racionalmente e mais o procedimento em aberto de uma mentalidade alargada, a saber, a capacidade para reverter perspectivas em disputas práticas em geral e a habilidade para raciocinar do ponto de vista de outros envolvidos. Esse princípio de “reversibilidade de perspectivas”, que também é central para a psicologia moral cognitivo-desenvolvimental de Lawrence Kohlberg, nem sempre recebeu o destaque merecido nas formulações da ética comunicativa. Por conseguinte, o projeto de uma ética comunicativa com frequência é disposto nos termos de uma teoria consensual racionalista de tipo rousseauniana, ou então é identificado com as ilusões transcendentais da teoria moral kantiana em geral.1 Minhas 1
Infelizmente, uma série de comentadores bastante atentos insiste em interpretar a teoria moral de Habermas ao abstrai-la completamente de sua teoria social da modernidade, e, além disso, em não perceber o quanto Habermas aceitou a crítica de Hegel a Kant. Um ponto que constantemente se perde nesses comentários é o modo como Habermas, ao retomar o “interacionismo simbólico” de George Herbert Mead, procurou dar concretude ao insight de Hegel sobre a constituição social e cultural da identidade do self. Como representantes dessas posições, cf. Raymond Geuss, The idea of a critical theory: Habermas and the
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investigações na parte I procuraram combater essas interpretações ao enfatizar o caráter situado do programa da ética comunicativa dentro do horizonte hermenêutico da modernidade e ao salientar as contingentes pressuposições culturais, institucionais e emotivas da capacidade para assumir o “ponto de vista dos outros” e reverter perspectivas no raciocínio moral. No capítulo anterior, sugeri que o bom juízo moral, o que quer mais que implique, deve também incluir a capacidade de julgar do ponto de vista do outro. Os próximos dois capítulos, que tratam da controvérsia Kohlberg-Gilligan na teoria e na psicologia morais recentes, são cruciais para o argumento geral desenvolvido neste livro por uma série de razões. Em primeiro lugar, se o procedimento de universalização na ética é reformulado nos termos de uma reversibilidade de perspectivas e do cultivo do “pensamento alargado”, então é preciso investigar um pouco mais a questão sobre os “outros” cujo ponto de vista somos convidados a compreender e a representar para nós mesmos. No quinto capítulo, tomando emprestado alguns Frankfurt school, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 65 et seq.; e, em uma publicação mais recente, Jeffrey Stout, Ethics after Babel: the language of morals and their discontents, Boston, Beacon, 1988, p. 166, 263. Uma vez que o próprio Stout está interessado em uma “crítica social com os dois olhos abertos” (ver Ethics after Babel, op. cit., p. 266 et seq.), penso que um enfrentamento mais sério da teoria da ação comunicativa de Habermas, enquanto uma teoria sociológica e uma crítica de nossas sociedades, teria revelado muitos pontos em comum e, do mesmo modo, daria às observações decisivas de Stout uma base mais sólida na teoria social contemporânea.
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Parte II
insights de Carol Gilligan e desenvolvendo suas implicações para a epistemologia moral, proponho que pensemos o self moral não apenas como um outro “generalizado” mas também como um outro “concreto”. Em segundo lugar, a crítica de Carol Gilligan à psicologia moral cognitivo-desenvolvimental de Lawrence Kohlberg é em muitos aspectos semelhante às minhas próprias desconfianças com os enviesamentos racionalistas e a orientação exclusiva para a justiça da versão habermasiana da teoria do discurso. Além disso, a obra de Gilligan também ecoa algumas das preocupações comunitaristas acerca das linhas rígidas que dividem justiça e boa vida, uma ética de princípios universalistas e uma ética de virtude e caráter. A crítica de Gilligan a Kohlberg questiona de modo radical o “enviesamento de justiça” ou “jurídico” das teorias morais universalistas; essa crítica nos permite reexaminar uma sugestão feita na introdução deste livro de que os insights da moralidade universalista poderiam ser hoje remodelados nos termos da procura por uma “Sittlichkeit [eticidade] pós-convencional”, em lugar de uma perspectiva moral centrada na justiça. Como vou argumentar nos próximos dois capítulos, a obra de Gilligan nos fornece insights bastante originais a esse respeito. Por fim, a pesquisa de Carol Gilligan como um todo tem implicações extremamente interessantes para “a questão das mulheres” na ciência e na filosofia. Qual mudança, se alguma, ocorre na ciência e na filosofia se mulheres não apenas fazem teoria, mas também se tornam “objetos” da ciência e da 299
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filosofia? Como a descoberta de “gênero” como uma categoria analítica de pesquisa influencia as interpretações padrão da moralidade e da justiça? É possível reconciliar o insight da teoria feminista de que a diferença de gênero é central e ubíqua em nossas vidas com o tipo de universalismo interativo defendido neste livro? Não é o universalismo, qualquer que seja seu tipo, kantiano ou habermasiano, incompatível com os objetivos e insights do feminismo? Essas são as questões centrais que serão examinadas na parte II.
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5.
O outro generalizado e o outro concreto: a controvérsia Kohlberg-Gilligan e a teoria moral Pode haver uma contribuição feminista para a filosofia moral? Quer dizer, aquelas mulheres e homens que consideram o sistema sexo-gênero de nossas sociedades opressivo e que concebem a emancipação das mulheres como essencial para a libertação humana podem criticar, analisar e, quando necessário, substituir as categorias tradicionais da filosofia moral com vistas a contribuir para a emancipação das mulheres e a libertação humana? Ao colocar em foco a controvérsia gerada pela obra de Carol Gilligan, este capítulo procura delinear uma tal contribuição feminista para a filosofia moral. A controvérsia Kohlberg-Gilligan A pesquisa de Carol Gilligan na psicologia moral cognitiva e desenvolvimental recapitula um padrão que nos foi apresentado por Thomas Kuhn.1 Ao notar a discrepância entre as alegações do paradigma de pesquisa original e os dados, Gilligan e seus Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions, 2. ed, Chicago, University of Chicago Press, 1970, p. 52 et seq.
1
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colaboradores num primeiro momento ampliam esse paradigma para acomodar os resultados anômalos. Essa ampliação lhes permite divisar alguns outros problemas sob uma nova luz. Em seguida, o paradigma básico, a saber, o estudo do desenvolvimento do juízo moral segundo o modelo de Lawrence Kohlberg, é fundamentalmente revisado. Gilligan e seus colaboradores passam a sustentar que a teoria kohlbergiana é válida apenas para medir o desenvolvimento de um único aspecto da orientação moral, o qual se centra em justiça e direitos. Em um artigo de 1980, “Moral development in late adolescence and adulthood: a critique and reconstruction of Kohlberg’s theory” [“O desenvolvimento moral na adolescência tardia e na idade adulta: crítica e reconstrução da teoria de Kohlberg”], Murphy e Gilligan observam que os dados sobre o juízo moral de um estudo longitudinal com 26 graduandos avaliado no manual revisado de Kohlberg reproduzem seus achados anteriores de que uma porcentagem significativa de indivíduos parece regredir na passagem da adolescência para a idade adulta.2 A persistência dessa regressão relativista sugere a necessidade de revisar a teoria. Nesse artigo, Murphy e Gilligan propõem uma distinção entre “formalismo pós-convencional” e “contextualismo pós-convencional”. Enquanto 2
John Michael Murphy e Carol Gilligan, “Moral development in late adolescence and adulthood: a critique and reconstruction of Kohlberg’s theory”, Human Development, v. 23, n. 2, p. 77-104, 1980.
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O outro generalizado e o outro concreto
o tipo de raciocínio pós-convencional soluciona o problema do relativismo ao construir um sistema que deriva uma solução para todos os problemas morais a partir de conceitos como contrato social ou direitos naturais, a segunda abordagem encontra a solução nos termos de que “embora nenhuma resposta possa ser objetivamente correta no sentido de ser livre de contexto, algumas respostas e alguns modos de pensar são melhores que outros” (ibid., p. 83). A ampliação do paradigma original, de formalista pós-convencional para contextual pós-convencional, faz com que Gilligan perceba outras discrepâncias na teoria sob uma nova luz, e, dentre essas discrepâncias, a mais notável é a constante baixa pontuação das mulheres em comparação com seus colegas homens. A distinção entre a orientação ética de justiça e direitos e a orientação ética de cuidado e responsabilidade permite que ela considere o desenvolvimento moral das mulheres e suas capacidades cognitivas de um novo modo. O juízo moral das mulheres é mais contextual, mais imerso nos detalhes de relacionamentos e narrativas. Isso mostra uma maior propensão para assumir o ponto de vista do “outro particular”, e que as mulheres mostrariam ter mais perícia em revelar sentimentos de empatia e simpatia exigidos para tanto. Uma vez que essas características cognitivas são vistas não como deficiências, mas como componentes essenciais do raciocínio moral adulto no estágio pós-convencional, a aparente confusão moral do juízo das mulheres converte-se em um sinal de sua força. Concordando 303
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com Piaget que a teoria desenvolvimental parte de seu vértice de maturidade, “o ponto em direção ao qual o progresso é traçado”, uma mudança na “definição de maturidade”, escreve Gilligan, “não apenas altera a descrição do estágio mais elevado mas remodela a compreensão do desenvolvimento, modificando toda a explicação”.3 A contextualidade, a narratividade e a especificidade do juízo moral das mulheres não é um sinal de fraqueza ou deficiência, mas a manifestação de uma visão de maturidade moral que considera o self como um ser imerso em uma rede de relações com outros. De acordo com essa concepção, o respeito às necessidades de cada um e a mutualidade de esforços para satisfazê-las amparam o desenvolvimento e o crescimento morais. Ao serem confrontados com esse tipo de questionamento, é comum que os partidários de um paradigma de pesquisa anterior respondam ao argumentar que: a) a base de dados não embasa as conclusões extraídas pelos revisionistas; b) algumas das novas conclusões podem ser conformadas à teoria antiga; e c) o paradigma novo e o anterior têm campos de investigação diferentes e, afinal, não dizem respeito à explicação do mesmo fenômeno.
3
Carol Gilligan, In a different voice: psychological theory and women’s development, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1982, p. 18-19.
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O outro generalizado e o outro concreto
Em sua resposta a Gilligan, Kohlberg seguiu todas as três opções. a) A base de dados Em “Synopses and detailed replies to critics”, publicado em 1984, Kohlberg argumenta que, no que concerne ao raciocínio sobre justiça, os dados disponíveis sobre o desenvolvimento moral cognitivo não relatam diferenças entre crianças e adolescentes de ambos os sexos.4 “Os únicos estudos,” ele escreve, que regularmente mostram diferenças entre os sexos são aqueles com adultos, em geral com mulheres casadas e donas de casa. Muitos dos estudos que comparam homens e mulheres adultos sem o monitoramento de diferenças de educação e emprego […] relatam diferenças entre os sexos em favor dos homens. (p. 347).
Kohlberg afirma que estes últimos achados não são incompatíveis com sua teoria.5 Pois, de acordo com essa teoria, a conquista dos Lawrence Kohlberg, Charles Levine e Alexandra Hewer, “Synopses and detailed replies to critics”, In: Lawrence Kohlberg, Essays on moral development, San Francisco, Harper and Row, 1984. v. 2: The psychology of moral development, p. 341.
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Ainda há questões sobre o modo como os dados sobre o desenvolvimento moral das mulheres devem ser interpretados. Para estudos que têm como foco homens na adolescência tardia e na idade adulta e que mostram diferenças entre os sexos: James Fishkin, Kenneth Keniston e Catherine MacKinnon, “Moral reasoning and political ideology”, Journal of Personality and Social Psychology, v. 27, n. 1, p. 109-119, jul. 1973; Norma Hann, Jeanne Block e M. Brewster Smith, “Moral reasoning of young adults: political-social behavior, family background, and
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estágios quatro e cinco depende de experiências de participação, responsabilidade e assunção de papéis em instituições secundárias da sociedade, tais como o local de trabalho e o governo, das quais as mulheres foram e ainda são em grande medida excluídas. Os dados, ele conclui, não prejudicam a validade de sua teoria, mas mostram a necessidade de monitorar fatores como educação e ocupação quando se avalia diferenças entre os sexos no raciocínio moral adulto. personality correlates”, Journal of Personality and Social Psychology, v. 10, n. 3, p. 184-201, nov. 1968; Constance Boucher Holstein, “Irreversible, stepwise sequence in the development of moral judgment: a longitudinal study of males and females”, Child Development, v. 47, n. 1, p. 51-61, mar. 1976. Enquanto é muito claro que as evidências disponíveis não colocam em questão o modelo de desenvolvimento em sequência de estágios enquanto tal, a presença predominante da diferença entre sexos no raciocínio moral faz com que surjam questões sobre o que exatamente este modelo está avaliando. Norma Hann resume essa objeção ao paradigma kohlbergiano do seguinte modo: “Portanto, o raciocínio moral de homens que vivem em sociedades racionalizadas e técnicas, e que raciocinam no nível de operações formais e defensivamente intelectualizam e negam detalhes interpessoais e situacionais, é especialmente favorecido no sistema de classificação kohlbergiano” (“Two moralities in action contexts: relationships to thought, ego regulation and development”, Journal of Personality and Social Psicology, v. 36, p. 287, 1978, grifo meu). A meu ver, os estudos de Gilligan também embasam o resultado de que a inapropriada “intelectualização e negação de detalhes interpessoais e situacionais” constitui uma das principais diferenças nas abordagens masculina e feminina de problemas morais. É por isso que, como argumento no texto, a separação nítida entre desenvolvimento do ego e desenvolvimento moral, como delineada por Kohlberg e por Habermas, é inadequada para lidar com esse problema, uma vez que certas atitudes egoicas – defensividade, rigidez, incapacidade de empatia, falta de flexibilidade – parecem ser privilegiadas em detrimento de outras, como atitudes não repressoras com emoções, flexibilidade e presença de empatia.
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b) Conformidade com a teoria antiga Kohlberg passa a concordar com Gilligan que “o reconhecimento de uma orientação de cuidado e responsabilidade alarga proveitosamente o domínio moral” (Kohlberg, “Synopses”, p. 340). A seu ver, contudo, justiça e direitos, cuidado e responsabilidade, não são duas trajetórias do desenvolvimento moral, mas duas orientações morais. A orientação dos direitos e a orientação do cuidado não são bipolares ou dicotômicas. Antes, a orientação do cuidado e da responsabilidade está direcionada principalmente para relações de obrigação especial para com familiares, amigos e membros do grupo, “relações que com frequência incluem ou pressupõem obrigações gerais de respeito, equidade e contrato” (p. 349). Kohlberg evita a conclusão de que essas diferenças estejam fortemente “relacionadas ao sexo”; em vez disso, ele considera a escolha da orientação como “sendo sobretudo uma função de cenário e dilema, não de sexo” (p. 350). c) O campo de investigação das duas teorias Em uma resposta anterior a Gilligan, Kohlberg argumentou do seguinte modo: As ideias de Carol Gilligan, embora interessantes, não foram exatamente bem recebidas por nós por duas razões […]. Estas, pensamos, eram proveitosas para Jane Loewinger no estudo dos estágios do desenvolvimento do ego, mas não para o estudo da
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dimensão especificamente moral no raciocínio […]. Seguindo Piaget, eu e meus colegas até agora tivemos a máxima confiança de que o raciocínio sobre justiça se presta a uma análise formal estruturalista ou racionalista […], ao passo que questões sobre a natureza da “boa vida” não são tão acessíveis a esse tipo de tratamento.6 Lawrence Kohlberg, “A reply to Owen Flanagan and some comments on the Puka-Goodpaster exchange”, Ethics, v. 92, p. 514-6, abr. 1982. Cf. também Gertrud Nunner-Winkler, “Two moralities? A critical discussion of an ethic of care and responsibility versus an ethics of rights and justice”, In: W. M Kurtines and J. L. Gewirtz (ed.). Morality, moral behavior and moral development, Nova York, John Wiley, 1984, p. 355. Não está claro se essa questão é, como Kohlberg e Nunner-Winkler sugerem, uma questão de distinção entre desenvolvimento “egoico” ou “moral”, ou se a teoria moral cognitivo-desenvolvimental não pressupõe um modelo de desenvolvimento do ego que entra em conflito com variantes de orientação mais psicanalítica. Com efeito, para combater a acusação de “maturacionismo” ou “nativismo” em sua teoria, o que implicaria que os estágios morais são dados a priori da mente que se desdobram de acordo com sua lógica própria, a despeito da influência da sociedade ou do ambiente sobre eles, Kohlberg argumenta da seguinte maneira: “Estágios são equilíbrios que surgem da interação entre o organismo (com suas tendências estruturantes) e a estrutura do ambiente (físico ou social). Estágios universais morais são tanto uma função de características da estrutura social (tais como instituições de direito, família, propriedade) e interações sociais nas diferentes culturas, como são também produtos das tendências estruturantes gerais do organismo cognoscente” (Lawrence Kohlberg, op. cit., p. 521). Se é esse o caso, então a teoria moral cognitivo-desenvolvimental deve também pressupor que há uma dinâmica entre self e estrutura social mediante a qual o indivíduo aprende, adquire ou internaliza as perspectivas e as sanções do mundo social. Mas os mecanismos dessa dinâmica podem incluir aprendizado, assim como resistência, internalização, assim como projeção e fantasia. A questão não é tanto se o desenvolvimento moral e o desenvolvimento egoico são distintos – que podem ser conceitualmente distintos, e, contudo, estarem relacionados na história do self –, mas se o modelo de desenvolvimento egoico
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Em 1984, em sua resposta às críticas, Kohlberg refina ainda mais a distinção entre o desenvolvimento moral e o do ego. Ele divide o domínio egoico em funções cognitivas, interpessoais e morais (“Synopses”, p. 398). No entanto, uma vez que o desenvolvimento do ego é uma condição necessária, mas não suficiente, para o desenvolvimento moral, a seu ver, o desenvolvimento moral pode ser estudado independentemente do desenvolvimento do ego. Em vista desse esclarecimento, Kohlberg considera o estágio do “contextualismo pós-convencional” de Murphy e Gilligan mais condizente com questões egoicas, em oposição ao desenvolvimento moral. Ainda que não queira afirmar que a aquisição de competências morais termina com a chegada da idade adulta, Kohlberg insiste que os estudos com adultos tanto sobre o desenvolvimento moral como sobre o desenvolvimento egoico revelam apenas a presença de estágios “suaves” e não estágios “duros”. Os estágios duros são consecutivamente irreversíveis e integralmente ligados um ao outro, no sentido de que um estágio subsequente resulta de um estágio que o precedeu e apresenta uma solução melhor para problemas enfrentados no estágio anterior.7 pressuposto pela teoria de Kohlberg não é distorcidamente cognitivista na medida em que ignora o papel de afetos, resistência, projeção, fantasia e mecanismos de defesa em processos de socialização. Para essa formulação, ver Jürgen Habermas, “Interpretive social science vs. hermeneuticism”, In: Norma Haan et al. (ed.), Social science as moral inquiry, Nova York, Columbia University Press, 1983, p. 262.
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Caberá aos historiadores mais novos da ciência decidir se, com essas admissões e modificações, a teoria kohlbergiana entrou na fase do “ad hocismo”, nos termos de Imre Lakatos,8 ou se o questionamento de Gilligan, assim como os de outros críticos, moveram esse paradigma de pesquisa para uma nova fase na qual novos problemas e conceitualizações conduzirão a resultados mais frutíferos. O que me concerne nesse capítulo é a seguinte questão: o que a teoria feminista pode contribuir para esse debate? Uma vez que o próprio Kohlberg considera essencial para a sua teoria uma interação entre a filosofia normativa e o estudo empírico do desenvolvimento moral, os insights da teoria e filosofia feminista contemporâneas podem repercutir sobre alguns aspectos de sua teoria. Eu gostaria de definir duas premissas como constituintes da teorização feminista. Em primeiro lugar, para a teoria feminista, o sistema sexo-gênero não é um modo contingente, mas um modo essencial no qual a sociedade é organizada, simbolicamente dividida e experiencialmente vivida. Por sistema “sexo-gênero” entendo a constituição histórico-social e simbólica bem como a interpretação das diferenças anatômicas entre os sexos. O sistema sexo-gênero é a grade através da qual o self desenvolve uma identidade corporificada, um modo de ser em um corpo e de se viver o corpo. Imre Lakatos, “Falsification and the methodology of scientific research programs”, In: Lakatos e A. Musgrave (ed.), Criticism and the growth of knowledge, Cambridge, Cambridge University Press, 1970, p. 117 et seq.
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O self se torna um eu na medida em que se apropria, a partir da comunidade humana, de um modo de experienciar física, social e simbolicamente sua identidade corporificada. O sistema sexo-gênero é a grade através da qual sociedades e culturas reproduzem indivíduos corporificados.9 Em segundo lugar, os sistemas sexo-gênero historicamente conhecidos contribuíram para a opressão e a exploração das mulheres. A tarefa da teoria crítica feminista é desmascarar esse fato e desenvolver uma teoria que seja emancipatória e reflexiva e que possa ajudar as mulheres em suas lutas para superar a opressão e a exploração. A teoria feminista pode contribuir para essa tarefa de duas maneiras: ao desenvolver uma análise diagnóstico-explicativa da opressão das mulheres que atravessa história, cultura e sociedades; e ao articular uma crítica utópico-antecipatória das normas e dos valores de nossa sociedade e cultura atuais de modo a projetar novos modos de convivência [togetherness], de nos relacionarmos conosco e com a natureza no futuro. Enquanto o primeiro Deixe-me explicar o estatuto dessa premissa: eu a caracterizaria como uma “hipótese de pesquisa de segunda ordem” que orienta a pesquisa concreta nas Ciências Sociais e que pode, por sua vez, por ela ser falseada. Não se trata de uma profissão de fé sobre o modo como o mundo é: a universalidade intercultural e transistórica do sistema sexo-gênero é um fato empírico. Além disso, não é de modo algum uma proposição sobre o modo como o mundo deve ser. Ao contrário, o feminismo questiona de modo radical a validade do sistema sexo-gênero na organização de sociedades e culturas e advoga a emancipação de homens e mulheres das grades opressivas e não questionadas desse quadro de referência.
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aspecto da teoria feminista exige pesquisa científico-social e crítica, o segundo é sobretudo normativo e filosófico: abarca o esclarecimento de princípios morais e políticos tanto no nível metaético, com respeito a sua lógica de justificação, como no nível normativo e substantivo, com referência a seu conteúdo concreto.10 Neste capítulo, vou me ocupar em articular essa crítica utópico-antecipatória das teorias morais universalistas a partir de uma perspectiva feminista. Pretendo argumentar que, não apenas na teoria de Kohlberg mas também nas teorias universalistas e contratualistas de Hobbes a Rawls, a definição do domínio moral, assim como do ideal de autonomia moral, faz com que a experiência das mulheres seja uma experiência privada e que seja excluída da consideração de um ponto de vista moral (parte 2). Nessa tradição, o self moral é visto como um ser desinserido e descorporificado. Essa concepção de self reflete aspectos da experiência masculina; o “outro relevante” nessa teoria não é nunca a irmã, mas sempre o irmão. Essa visão de self, pretendo argumentar, é incompatível com o próprio critério de reversibilidade e universalização advogado por defensores do universalismo. Uma teoria moral universalista restrita ao ponto de vista do “outro generalizado” resvala em
Para um melhor esclarecimento desses dois aspectos da teoria crítica, ver Seyla Benhabib, Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory, Nova York, Columbia University Press, 1986, parte 2: “The transformation of critique”.
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incoerências epistêmicas que comprometem sua pretensão de satisfazer adequadamente reversibilidade e universalização (parte 3). As teorias morais universalistas na tradição ocidental, de Hobbes a Rawls, são substitucionalistas, no sentido de que o universalismo por elas defendido é sub-repticiamente definido pela identificação das experiências de um grupo específico de sujeitos como o caso paradigmático dos seres humanos enquanto tais. Esses sujeitos invariavelmente são homens brancos, adultos, que são proprietários ou ao menos profissionais com formação. Eu gostaria de distinguir o universalismo substitucionalista do universalismo interativo. O universalismo interativo reconhece a pluralidade de modos de ser humano e as diferenças entre seres humanos sem endossar todas essas pluralidades e diferenças como moral e politicamente válidas. Enquanto concorda que as disputas normativas podem ser resolvidas racionalmente e que equidade, reciprocidade e algum procedimento de universalização são constituintes, isto é, condições necessárias do ponto de vista moral, o universalismo interativo considera a diferença como um ponto de partida para a reflexão e para a ação. Nesse sentido, “universalidade” é um ideal regulador que não nega nossa identidade corporificada e inserida, mas tem como objetivo o desenvolvimento de atitudes morais e o encorajamento de transformações políticas que possam produzir um ponto de vista aceitável para todos. Universalidade não é o consenso ideal de selves definidos ficticiamente, mas o processo concreto na política e na moral da luta por autonomia de selves corporificados e concretos. 313
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Justiça e self autônomo nas teorias do contrato social Kohlberg define o campo de investigação privilegiado da filosofia e da psicologia morais do seguinte modo: Dizemos que juízos ou princípios morais têm como função central a resolução de conflitos interpessoais ou sociais, isto é, conflitos de reinvindicações ou de direitos […]. Assim, juízos ou princípios morais implicam uma noção de equilíbrio ou reversibilidade de reivindicações. Nesse sentido, em última instância, esses conflitos envolvem alguma referência à justiça, ao menos na medida em que definem estágios estruturais “duros”. (“Synopses”, p. 26).
A concepção de Kohlberg do domínio moral baseia-se em uma diferenciação forte entre justiça e boa vida.11 Essa é também uma das pedras angulares de sua crítica a Gilligan. Embora reconheça que a elucidação de Gilligan sobre uma orientação de cuidado-e-responsabilidade “amplia de modo muito produtivo o domínio moral” (“Synopses”,
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Embora frequentemente invocada por Kohlberg, Nunner-Winkler e Habermas, ainda não está claro como essa distinção é feita e como é justificada. Por exemplo, a distinção justiça/boa vida corresponde a definições sociológicas de público versus privado? Se sim, o que significa “privado”? A violência contra mulheres é um assunto “privado” ou “público”? Como argumentei anteriormente no terceiro capítulo, as definições sociológicas relevantes do privado e do público estão se modificando em nossas sociedades, tal como se modificaram historicamente. Para mais detalhes ver adiante p. 378 et seq.
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p. 340), Kohlberg define o domínio de relações especiais de obrigação para o qual cuidado e responsabilidade são orientados do seguinte modo: as esferas de parentesco, amor, amizade e sexo, que suscitam considerações de cuidado, são comumente entendidas como sendo esferas de tomada de decisão pessoal, como são, por exemplo, os problemas de casamento e divórcio. (p. 229-230).
Supõe-se então que a orientação do cuidado concerne a domínios que são mais “pessoais” do que “morais no sentido do ponto de vista formal” (p. 360). Questões sobre boa vida, pertencentes à natureza de nossas relações de parentesco, amor, amizade e sexo, por um lado, estão incluídas no domínio moral, mas, por outro lado, são designadas como questões “pessoais” em oposição a questões “morais”. Kohlberg tem como ponto de partida uma definição de moralidade que começa com Hobbes, a reboque da dissolução da visão de mundo cristã-aristotélica. Os sistemas morais antigo e medieval, em contrapartida, exibem a seguinte estrutura: uma definição do homem-como-ele-deve-ser, uma definição do homem-como-ele-é, e a articulação de um conjunto de regras ou preceitos que podem conduzir o homem de como ele é para o que ele deve ser.12 Nesses sistemas morais, as regras que governam relações justas entre a comunidade humana estão inseridas em uma concepção mais Alasdair MacIntyre, After virtue, Notre Dame, In: University of Notre Dame Press, 1981, p. 50-51.
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ampla de boa vida. Essa boa vida, o télos do homem, é ontologicamente definida com referência ao lugar do homem no cosmos. A destruição da concepção teleológica de natureza antiga e medieval mediante o ataque feito pelo nominalismo medieval e pela ciência moderna, a emergência das relações de troca capitalistas e a subsequente divisão da estrutura social em economia, constituição política, associações civis e a esfera doméstico-íntima, alteram radicalmente a teoria moral. Teóricos modernos alegam que os propósitos últimos da natureza são desconhecidos. A moralidade é assim emancipada da cosmologia e de uma visão de mundo que tudo abrange e que limita normativamente a relação do homem com a natureza. A distinção entre justiça e boa vida, tal como formulada pelos primeiros teóricos contratualistas, tem como objetivo defender essa privacidade e autonomia do self, primeiro, na esfera religiosa, e, em seguida, também nas esferas científicas e filosóficas do “livre pensamento”. A justiça por si só torna-se o centro da teoria moral quando indivíduos burgueses em um universo desencantado se deparam com a tarefa de criar para si mesmos as bases legítimas da ordem social. O que “deve ser” é agora definido como o que todos teriam racionalmente acordado com vistas a garantir a paz civil e a prosperidade (Hobbes, Locke), ou então o “dever” é derivado exclusivamente da forma racional da lei moral (Rousseau, Kant). Desde que as bases sociais de cooperação e as demandas dos indivíduos 316
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por direitos sejam respeitadas, o sujeito burguês autônomo pode definir a boa vida como ditam sua mente e consciência. A transição para a modernidade não apenas torna privada a relação do self com o cosmos e com as questões últimas sobre a religião e sobre o ser. Primeiro, com a modernidade ocidental, a concepção de privacidade é alargada de tal modo que subsume a esfera doméstico-familiar. Relações de “parentesco, amizade, amor e sexo”, tal como Kohlberg as entende, passam a ser vistas como esferas de “tomada de decisão pessoal”. Nos primórdios da teoria moral e política moderna, contudo, a natureza “pessoal” das esferas não significa o reconhecimento da igual autonomia feminina, mas sim a remoção das relações de gênero da esfera da justiça. Enquanto o homem burguês celebra sua transição da moralidade convencional para a pós-convencional, das regras de justiça socialmente aceitas para a geração de regras à luz dos princípios de um contrato social, a esfera doméstica permanece no nível convencional. A esfera da justiça em Hobbes, passando por Locke e Kant, é considerada como o domínio no qual homens chefes de família e independentes transacionam uns com os outros, ao passo que a esfera íntima-doméstica é colocada para fora do território da justiça e restringida às necessidades reprodutivas e afetivas do pater familias burguês. Agnes Heller chamou esse domínio de “lar das emoções” [“household of emotions”].13* Um domínio inteiro da Agnes Heller, A theory of feelings, Assen: Van Gorcun, 1979, p. 184 et seq. * [N.T.]: Heller refere-se a um “household of feelings”, um “lar dos sentimentos” [A.C.L.] 13
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atividade humana, a saber, a nutrição e a criação, a reprodução, o amor e o cuidado, que se tornam o quinhão das mulheres no curso do desenvolvimento da sociedade burguesa moderna, é excluído de considerações morais e políticas e relegado ao âmbito da “natureza”. Por meio de uma breve genealogia histórica das teorias do contrato social, pretendo examinar a distinção entre justiça e boa vida tal como é traduzida na cisão entre o público e o doméstico. Essa análise também nos permitirá enxergar o ideal implícito de autonomia acalentado por essa tradição. Nos primórdios da filosofia política e moral moderna repousa uma metáfora poderosa: o “estado de natureza”. Por vezes, essa metáfora é tomada como um fato. Assim, em seu Segundo tratado sobre governo civil, John Locke nos lembra de “dois homens numa ilha deserta, mencionados por Garcilasso de la Vega […] ou […] um suíço e um índio, nas florestas da América”.14 Em outros momentos, é reconhecida como uma ficção. Assim, Kant rejeita os devaneios pitorescos de seus predecessores e transforma o “estado de natureza” de um fato empírico em um conceito transcendental. O estado de natureza passa a representar a ideia do Privatrecht [direito privado] sob o qual estão subsumidos o direito de John Locke, “O segundo tratado sobre o governo: um ensaio referente à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil”, In: Dois tratados sobre o governo, trad. de Júlio Fischer, São Paulo, Martins Fontes, 1998, cap. 2, §14, p. 393.
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propriedade e os “direitos pessoais de natureza real” [“auf dingliche Natur persönlichen Rechte”],* os quais o homem chefe de família
[N.T.] No original, lê-se: “‘thinglike rights of a personal nature’ [‘auf dingliche Natur persönliche Rechte’]” (p. 155), e, em nota, Benhabib indica como referência Immanuel Kant, The metaphysical elements of justice, trad. de John Ladd, Nova York, Liberal Arts Press, 1965, p. 55 (Ak VI:257). É provável, no entanto, que tenha havido um erro na indicação da paginação, além de um equívoco, da parte de Benhabib, na tradução e na citação da expressão em alemão. Em Ak VI:257, Kant discute o caráter provisório da posse no estado de natureza, anterior à constituição civil. Já em Ak VI:357, o autor inicia a justificação de ter introduzido, em sua Doutrina do Direito, um direito pessoal de tipo real (auf dingliche Art persönlichen Rechts), “pelo qual se pode possuir as pessoas como se fossem coisas, […] ainda que não, por certo, no sentido de tratá-las como coisas em todos os aspectos” (id. Metafísica dos costumes, trad. de C. A. Martins, B. Nadai, D. Kosbiau e M. Hulshof, Petrópolis, Vozes, 2013, p. 163, Ak VI: 358, grifo do original). O direito pessoal de tipo real é aquele que regula as relações domésticas – especificamente, “O direito conjugal”, “O direito dos pais” (sobre os filhos) e “O direito do chefe de família” (sobre “os empregados e empregadas da casa”) (cf. ibid., p. 81-89, §22-30, Ak VI 276-284). Ladd traduz esse direito como personal right of a real kind, Benhabib teria pretendido corrigir a tradução de dingliche e substituiu real por thinglike; além disso, a autora substitui Art por seu sinônimo Natur, altera a declinação de persönlich e leva Recht para o plural. Em vista disso, entendeu-se que Benhabib teria pretendido escrever “‘personal rights of a thinglike nature (‘auf dingliche Natur persönlichen Rechte’)”, mas trocou as posições de personal e thinglike. Note-se que o pequeno equívoco – que, no contexto, não acarreta prejuízo conceitual – provavelmente decorre da contraposição feita por Kant, em Ak VI:357, entre um “direito real de tipo pessoal” (auf persönliche Art dinglichen Rechts) e um “direito pessoal de tipo real”; Kant descarta o primeiro, o direito real de tipo pessoal, “pois não se pode pensar um direito de uma coisa em relação a uma pessoa” (Metafísica dos costumes, op. cit., p. 162, Ak VI:357). Embora, em vista da opção de Benhabib e da emenda aqui sugerida, teria sido possível traduzir thinglike como “similar a uma coisa”, no caso, “direitos pessoais similares [aos direitos em relação] a uma coisa”, optou-se por manter “real”, acompanhando a tradução consolidada para o português. [A.C.L.]
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exerce sobre sua esposa, filhos e criados.15 Thomas Hobbes é o único que combina fato e ficção e, contra todos os que consideram estranho “que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar e destruir uns aos outros”,16 solicita a cada homem que não acredita “nesta inferência, feita a partir das paixões” que reflita sobre os motivos por que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; quando vai dormir tranca suas portas; mesmo quando está em casa tranca seus cofres […]. Não significa isso acusar a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? (Leviatã, XIII).
O estado de natureza é o espelho desses primeiros pensadores burgueses, no qual eles e suas sociedades são magnificados, purificados e refletidos em sua verdade [verity] nua e original. O estado de natureza é pesadelo (Hobbes) e utopia (Rousseau). Nele, o homem burguês reconhece, além de suas falhas, medos e angústias, também seus sonhos. O conteúdo variável dessa metáfora é menos importante do que sua mensagem simples e profunda: no princípio, o homem Id., Metafísica dos costumes, op. cit., p. 162, Ak VI:257.
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Thomas Hobbes, Leviatã, trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 3 ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 [1651] (Os Pensadores), Cap. XIII, p. 76 [trad. mod.]. As próximas citações dessa obra referem-se a esta edição.
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era só. Mais uma vez, é Hobbes quem dá a esse pensamento a formulação mais clara: consideremos os homens […] como se nesse instante acabassem de brotar da terra, e repentinamente (como cogumelos) alcançassem plena maturidade, sem qualquer espécie de compromisso entre si.17
Essa visão dos homens como cogumelos é uma imagem definitiva de autonomia. A mulher, a mãe da qual todo indivíduo nasceu, é agora substituída pela terra. A negação de que se tenha nascido de uma mulher libera o ego masculino do vínculo de dependência mais básico e natural. A imagem também não é diferente para o nobre selvagem de Rousseau, o qual, vagando a esmo pelas florestas, de quando em quando encontra uma fêmea e então busca repouso.18 A metáfora do estado de natureza fornece uma concepção do self autônomo: trata-se de um narcisista que enxerga o mundo à sua imagem, que não tem consciência dos limites de seus próprios desejos e paixões, e que não pode ver a si mesmo pelos olhos de um outro. O narcisismo desse self soberano é destruído pela presença do outro. Como Hegel exprime:
17
Thomas Hobbes, Do cidadão, trad., intr. e notas de Renato Janine Ribeiro, 3 ed., São Paulo, Martins Fontes, 2002, cap. VIII, §1, p. 135.
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Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, trad. de Lourdes Santos Machado, São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores, 24).
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Para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si: ela veio para fora de si. Isso tem dupla significação: primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha numa outra essência. Segundo, com isso ela suprassumiu o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas é a si mesma que vê no Outro.19
A história do ego masculino autônomo é a saga desse sentido inicial de perda em confrontação com o outro e a recuperação gradual dessa ferida narcísica original por meio da experiência desenganadora da guerra, do medo, da dominação, da angústia e da morte. O último episódio nesse drama é o contrato social: o estabelecimento da lei para governar a todos. Tendo sido expulsos por seus irmãos de seu universo narcísico para um mundo de insegurança, esses indivíduos têm de reestabelecer a autoridade do pai na imagem da lei. O primeiro indivíduo burguês não só não tem mãe como também não tem pai; antes, ele se empenha em reconstituir o pai à sua própria imagem. O que é comumente celebrado nos anais da teoria moral e política moderna como o alvorecer da liberdade é precisamente essa destruição do patriarcado político na sociedade burguesa. A constituição da autoridade política civiliza a rivalidade entre irmãos ao desviar sua atenção da guerra para a propriedade, da vaidade para a ciência, da conquista para o luxo. O narcisismo original G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, trad. de Paulo Meneses, 9 ed., Petrópolis, RJ, Vozes, 2014, §179, p. 143.
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não é transformado; só agora os limites do ego são claramente definidos. A lei reduz a insegurança, o medo de ser engolfado pelo outro, ao definir o meu e o teu. O ciúme não é eliminado, mas domado; contanto que cada um possa manter o que é seu e adquira mais pelas regras equânimes do jogo, tem o direito de fazê-lo. A competição é domesticada e canalizada para a aquisição. A lei refreia a angústia ao definir de modo rígido os limites entre o self e o outro, mas a lei não cura a angústia. Permanece a angústia de que o outro está sempre à espreita para se imiscuir no seu espaço e se apropriar do que é seu; a angústia de que você será subordinado à vontade dele; a angústia de que um grupo de irmãos vai usurpar a lei em nome da “vontade de todos” e vai destruir a “vontade geral”, a vontade do pai ausente. A lei ensina como reprimir a angústia e como conter o narcisismo, mas a constituição do self não é alterada. O estabelecimento de direitos e deveres privados não faz com que as feridas internas do self sejam superadas; só as força a se tornarem menos destrutivas. Esse dispositivo imaginário do começo da teoria moral e política moderna teve uma influência decisiva e surpreendente sobre a consciência moderna. De Freud a Piaget, o relacionamento com o irmão é entendido como a experiência humanizadora que nos ensina a nos tornarmos adultos sociais e responsáveis.20 Sigmund Freud, Moses and monotheism, trad. de Katharine Jones, Nova York, Random House, 1967, p. 103 et seq.; Jean Piaget, O juízo moral na criança, trad. de Elzon Lenardon, 4. ed, São Paulo, Summus, 1994, p. 50 et. seq. Cf. o seguinte
20
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Como resultado da influência decisiva dessa metáfora sobre a nossa imaginação, também nos tornamos herdeiros de uma série de preconceitos filosóficos. Também para Rawls e Kohlberg o self autônomo é desinserido e descorporificado; imparcialidade moral é aprender a reconhecer as demandas do outro que é exatamente igual a si; equidade é justiça pública; um sistema público de direitos e deveres é o melhor modo para arbitrar conflitos, para distribuir recompensas e para se fazer reivindicações. Só que esse é um mundo curioso. É um mundo onde os indivíduos são adultos antes de terem nascido; onde meninos são homens antes de terem sido crianças; um mundo onde nem mãe nem irmã ou esposa existem. O problema não é o que Hobbes afirma sobre homens e mulheres, ou o que Rousseau considera ser o papel de Sofia na educação de Emílio. A questão é que a experiência das primeiras mulheres modernas não tem lugar nesse universo. A mulher é simplesmente o que o homem não é, isto é, as mulheres não são autônomas e independentes, e, na mesma chave, não são agressivas, mas carinhosas, não são competitivas, mas generosas, comentário sobre as brincadeiras de meninos e meninas: “A observação mais superficial foi suficiente para mostrar que, em linhas gerais, as meninas têm o espírito jurídico muito menos desenvolvido que os meninos. Não conseguimos, de fato, descobrir entre elas um jogo coletivo que apresentasse tantas regras e, sobretudo, uma coerência tão bela na organização e codificação dessas regras como acontece no jogo de bolinhas anteriormente estudado” (O juízo moral na criança, trad. de Elzon Lenardon, 4. ed., São Paulo, Summus, 1994, p. 69).
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não são públicas, mas privadas. O mundo do feminino é constituído por uma série de negações. Ela é simplesmente o que ele não é. Sua identidade é definida por uma falta – a falta de autonomia, a falta de independência, a falta do falo. O homem narcisista assume que ela é exatamente como ele, mas no sentido oposto. Não são apenas os preconceitos misóginos da nascente teoria moral e política moderna que conduzem à exclusão das mulheres. É a própria constituição de uma esfera de discurso que bane o feminino da história para o domínio da natureza, da luz do público para o interior do lar, do efeito civilizador da cultura para o fardo repetitivo da nutrição e da reprodução. A esfera pública, a esfera da justiça, caminha para a historicidade, já a esfera privada, a esfera do cuidado e da intimidade, é imutável e intemporal. Essa esfera nos atrai para a terra mesmo quando nós, como cogumelos hobbesianos, nos empenhamos para dela nos afastarmos. A desistoricização do domínio privado significa que, enquanto o ego masculino celebra sua passagem da natureza para a cultura, do conflito para o consenso, as mulheres permanecem em um universo intemporal, condenadas a repetir os ciclos da vida. Essa cisão entre a esfera pública da justiça, na qual a história é feita, e o domínio atemporal do lar, no qual a vida é reproduzida, é internalizada pelo ego masculino. As dicotomias não estão apenas no lado de fora, mas também no de dentro. O ego masculino é ele mesmo dividido em pessoa pública e indivíduo privado. Dentro do seu peito chocam-se a lei da razão e a inclinação da natureza, o 325
Situando o self
brilho da cognição e a obscuridade da emoção. Atribulado entre a lei moral, o céu estrelado sobre si e o corpo terrestre sob seus pés,21 o self autônomo luta por unidade. Mas o antagonismo – entre autonomia e nutrição, entre independência e vinculação, entre soberania do self e relações com os outros – permanece. No discurso da teoria moral e política moderna, essas dicotomias são reificadas como sendo essenciais para a constituição do self. Enquanto os homens humanizam a natureza exterior por meio do trabalho, a natureza interior permanece a-histórica, sombria e obscura. Eu gostaria de sugerir que a teoria moral universalista contemporânea herdou essa dicotomia entre autonomia e nutrição, entre independência e vinculação, entre esfera da justiça e domínio doméstico e pessoal. Essa herança se torna mais visível na tentativa de restringir o ponto de vista moral à perspectiva do outro “generalizado”. O outro generalizado versus o outro concreto Eu gostaria de descrever duas concepções de relações self-outro que delimitam tanto as perspectivas morais como as estruturas interacionais. Vou chamar a primeira de ponto de vista do “outro generalizado”22 e a segunda de ponto de vista do “outro concreto”. 21
Immanuel Kant, Crítica da razão prática, trad. de Monique Hulshof, Petrópolis, Vozes, 2016. p. 203, Ak V:161/A288.
22
Embora o termo “outro generalizado” seja emprestado de George Herbert Mead, minha definição é diferente da dele. Mead define o “outro generalizado” da
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O outro generalizado e o outro concreto
Na teoria moral contemporânea essas concepções são vistas como incompatíveis, até mesmo como antagônicas. Essas duas perspectivas refletem as dicotomias e cisões da primeira teoria moral e política moderna entre autonomia e nutrição, independência e vinculação, o público e o doméstico e, de modo mais amplo, entre justiça e boa vida. Tanto o conteúdo do outro generalizado como o do outro concreto é moldado por essa caracterização dicotômica que herdamos da tradição moderna. O ponto de vista do outro generalizado exige que vejamos todo e cada indivíduo como um ser racional que possui os mesmos direitos e deveres que gostaríamos de atribuir a nós mesmos. Ao assumir esse ponto de vista, abstraímos da individualidade e da identidade concreta do outro. Assumimos que o outro, como nós mesmos, é um ser que tem necessidades concretas, desejos e seguinte maneira: “A comunidade organizada ou grupo social que confere ao indivíduo sua unidade de self pode ser chamada o ‘outro generalizado’. A atitude do outro generalizado é a atitude de toda a comunidade” (George Herbert Mead, Mind, self and society: from the standpoint of a social behaviorist, ed. e intr. de Charles W. Morris, Chicago, University of Chicago Press, 1955, p. 154). Entre essas comunidades, Mead inclui um time de futebol, além de associações políticas, corporações e outras classes sociais e subgrupos mais abstratos, tais como as classes de devedores e de credores (ibid., p. 157). O próprio Mead não limita o conceito do “outro generalizado” ao que é descrito no texto. Ao identificar o “outro generalizado” com o sujeito legal e jurídico definido abstratamente, teóricos contratualistas e Kohlberg se afastam de Mead. Mead critica a tradição do contrato social precisamente por distorcer a gênese psicossocial do sujeito individual, cf. ibid., p. 233.
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Situando o self
afetos, mas que aquilo que constitui sua dignidade moral não é o que nos diferencia uns dos outros, e sim aquilo que nós, enquanto agentes racionais capazes de discurso e ação, temos em comum. Nossa relação com o outro é regida pelas normas da igualdade formal e da reciprocidade: cada uma ou cada um tem a prerrogativa de esperar e presumir de nós o que podemos esperar e presumir dela ou dele. As normas de nossas interações são primariamente públicas e institucionais. Se eu tenho direito a X, então você tem o dever de não me impedir de usufruir de X e vice-versa. Ao tratar você de acordo com essas normas, eu corroboro na sua pessoa os direitos de humanidade e tenho uma pretensão legítima de esperar que você faça o mesmo em relação a mim. As categorias morais que acompanham essas interações são aquelas de direito, obrigação e prerrogativa [entitlement], e os sentimentos morais correspondentes são aqueles de respeito, dever, merecimento e dignidade. Em contrapartida, o ponto de vista do outro concreto exige que vejamos todo e cada ser racional como um indivíduo com uma história concreta, identidade e constituição emocional-afetiva. Ao assumir esse ponto de vista, abstraímos daquilo que constitui o que temos em comum e focamos na individualidade. Procuramos compreender as necessidades do outro, suas motivações, o que ela ou ele procura e o que ela ou ele deseja. Nossa relação com o outro é regida pelas normas da equidade [equity] e da reciprocidade complementar: cada uma ou cada um tem a prerrogativa de esperar e presumir do outro formas 328
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de comportamento por meio das quais o outro se sente reconhecido e corroborado enquanto um outro concreto, um ser individual com necessidades específicas, talentos e capacidades. Nesse caso, nossas diferenças se complementam mais do que se excluem. As normas de nossa interação são, em geral, normas não institucionais, embora não sejam exclusivamente privadas. Trata-se das normas de amizade, amor e cuidado. Essas normas exigem de diferentes maneiras que eu manifeste mais do que uma simples asserção de meus direitos e deveres diante das suas necessidades. Ao tratar você de acordo com as normas de amizade, amor e cuidado, eu corroboro em você não apenas a sua humanidade mas a sua individualidade humana. As categorias morais que acompanham essas interações são aquelas de responsabilidade, vinculação e compartilhamento. Os sentimentos morais correspondentes são aqueles de amor, cuidado e simpatia, e solidariedade. A perspectiva do “outro generalizado” é predominante na psicologia moral e na teoria moral universalista contemporâneas. Em seu artigo “Justice as reversibility: the claim to moral adequacy of a highest stage of moral development” [“Justiça como reversibilidade: a reivindicação da adequação moral de um estágio mais elevado de desenvolvimento moral”], por exemplo, Kohlberg argumenta que: o juízo moral envolve assunção de papéis, envolve assumir a perspectiva dos outros concebidos como sujeitos e coordenar essas perspectivas […]. Segundo,
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juízos morais equilibrados envolvem princípios de equidade de justiça. Uma situação moral em desequilíbrio é aquela em que estão presentes reinvindicações conflituosas e não resolvidas. Uma resolução da situação é aquela na qual a cada um é “dado o que é seu” de acordo com algum princípio de justiça que possa ser reconhecido como equânime por todas as partes conflitantes envolvidas.23
Kohlberg considera o conceito rawlsiano de equilíbrio reflexivo como uma formulação paralela das ideias básicas de reciprocidade, igualdade e equidade, intrínsecas a todos os juízos morais. O “véu de ignorância” rawlsiano, no juízo de Kohlberg, não exemplifica apenas a ideia de universalização formalista mas também a de reversibilidade perfeita.24 A ideia subjacente ao véu de ignorância é descrita do seguinte modo: Lawrence Kohlberg, “Justice as reversibility: the claim to moral adequacy of a highest stage of moral judgment”, In: Essays on moral development, San Francisco, Harper and Row, 1984, v. 1: The philosophy of moral development, p. 194.
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Todas as formas de reciprocidade compreendem alguma concepção de reversibilidade, mas as concepções de reversibilidade variam em grau: a reciprocidade pode se restringir à reversibilidade de ações, mas não à de perspectivas morais, a modelos de comportamento, mas não aos princípios que subjazem a geração de tais expectativas de comportamento. Para Kohlberg, o “véu de ignorância” é um modelo de reversibilidade perfeita, pois detalha o procedimento da “assunção ideal de papéis” ou da “dança das cadeiras moral”, no qual quem decide “tem de consecutivamente se colocar de modo imaginativo no lugar de cada um dos outros atores e considerar as alegações que cada um faz de seu ponto de vista” (Lawrence Kohlberg, “Justice as reversibility: the claim to moral adequacy
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Aquele que decide deve inicialmente fazê-lo de um ponto de vista que ignora a sua própria identidade (véu de ignorância) sob o pressuposto de que as decisões são regidas pela maximização de valores de um ponto de vista do egoísmo racional na consideração do interesse de cada parte. (“Justice as reversibility”, p. 200, grifo meu).
O que eu gostaria de questionar é o pressuposto de que “assumir o ponto de vista dos outros” é verdadeiramente compatível com essa noção de equidade entendida como o raciocínio por detrás de um “véu de ignorância”.25 O problema é que o cerne defensável of a highest stage of moral judgment”, In: Essays on moral development, San Francisco, Harper and Row, 1984, v. 1: The philosophy of moral development, p. 199). Minha questão é: há quaisquer “outros” reais por detrás do “véu de ignorância” ou elas e eles são indistinguíveis do self? Não considero problemático o argumento geral de Kohlberg de que o ponto de vista moral exige reciprocidade, igualdade e equidade. A reciprocidade não é só um princípio moral fundamental, mas define, como argumentou Alvin Gouldner, uma norma social fundamental e talvez o próprio conceito de uma norma social (Cf. Gouldner, “The norm of reciprocity: A preliminary statement”, American Sociological Review, v. 25, p. 161-78, abr. 1960). A existência de relações sociais contínuas em uma comunidade humana exige alguma definição de reciprocidade nas ações, expectativas e reivindicações do grupo. O cumprimento dessa reciprocidade, em qualquer interpretação que lhe seja dada, seria então considerado equidade pelos membros do grupo. Do mesmo modo, membros de um grupo vinculados por relações de reciprocidade e equidade são considerados iguais. O que muda ao longo da história e da cultura não são essas estruturas formais implícitas na própria lógica das relações sociais (poderíamos até mesmo chamá-las universais sociais), mas sim os critérios de inclusão e exclusão. Quem constitui os grupos humanos relevantes: senhores ou escravos,
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da ideia de reciprocidade e equidade passa a ser identificado com a perspectiva de um outro generalizado desinserido e descorporificado. Agora, uma vez que Kohlberg apresenta a seus sujeitos de pesquisa dilemas morais construídos hipoteticamente, seria possível pensar que sua concepção de “assumir o ponto de vista do outro” não está sujeita às restrições epistêmicas que se aplicam à posição original rawlsiana. Os entrevistados de Kohlberg não estão por detrás de um véu de ignorância. No entanto, a própria linguagem em que os dilemas kohlbergianos são apresentados já incorpora essas restrições epistêmicas. Por exemplo, no famoso dilema de Heinz, como em outros dilemas, as motivações do farmacêutico enquanto um indivíduo concreto, assim como a história dos indivíduos envolvidos, são excluídas como sendo irrelevantes para a definição do problema moral em questão. Nesses dilemas, os indivíduos e suas posições morais são representados por meio da abstração da história narrativa do self e de suas motivações. Gilligan também observa que a epistemologia moral implícita dos homens ou mulheres, gentios ou judeus? De modo similar, quais aspectos do comportamento humano e dos objetos do mundo têm de ser regulados pelas normas de reciprocidade? – nas sociedades estudadas por Lévi-Strauss, algumas tribos trocam conchas do mar por mulheres. Por fim, em quais termos a igualdade entre membros de um grupo é estabelecida: seria gênero, raça, mérito, virtude ou prerrogativa? Nitidamente, Kohlberg pressupõe uma interpretação igualitário-universalista para reciprocidade, justiça e igualdade, de acordo com a qual todos os seres humanos, em virtude de sua mera humanidade, devem ser considerados seres portadores de direitos e deveres recíprocos.
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dilemas kohlbergianos frustra as mulheres, que querem exprimir esses dilemas hipotéticos em uma voz mais contextual, afinada com o ponto de vista do outro concreto. O resultado é que: ainda que, no estudo sobre o aborto, muitas das mulheres claramente articulem uma posição metaética pós-convencional, não se considera que qualquer uma delas se baseie em princípios nos seus juízos morais normativos sobre os dilemas hipotéticos de Kohlberg. Apesar disso, o juízo das mulheres assinala uma identificação da violência inerente ao próprio dilema, a qual se entende que prejudica a justiça de qualquer uma de suas possíveis resoluções. (Gilligan, In a diferente voice, p. 101).
Por meio de uma crítica imanente às teorias de Kohlberg e Rawls, pretendo mostrar que a desconsideração do outro concreto conduz a uma incoerência epistêmica nas teorias morais universalistas. O problema pode ser apresentado do seguinte modo: de acordo com Kohlberg e Rawls, a reciprocidade moral envolve a capacidade de assumir o ponto de vista do outro, de se colocar imaginativamente no lugar do outro, porém, sob as condições do “véu de ignorância”, o outro enquanto diferente do self desaparece. Nesse caso, em um sentido diferente das teorias contratualistas precedentes, o outro não é constituído por meio de projeção, mas como uma consequência da abstração total de sua identidade.
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As diferenças não são negadas; elas se tornam irrelevantes. O self rawlsiano não conhece seu lugar na sociedade, sua posição de classe ou status; não conhece sequer sua sorte na distribuição de recursos e aptidões naturais, sua inteligência, força e afins. Tampouco, por outro lado, conhece sua concepção de bem, as particularidades de seu plano de vida racional, ou mesmo as características especiais de sua psicologia tais como sua aversão ao risco ou sua propensão ao otimismo ou ao pessimismo.26
Ignoremos por um momento se esses selves, que também não conhecem “as circunstâncias particulares de sua própria sociedade”, podem saber qualquer coisa que seja relevante para a condição humana, e, em lugar disso, perguntemos: esses indivíduos são mesmo selves humanos? Em sua tentativa de fazer jus à concepção kantiana de ação inteligível [noumenal agency], Rawls repete um problema básico da concepção de self kantiana, a saber, que selves inteligíveis [noumenal] não podem ser individuados. Se tudo o que lhes pertence enquanto criaturas corporificadas, afetivas e passíveis de sofrimento, sua memória e história, seus laços e relações com os outros, deve ser subsumido ao mundo fenomênico, então o que nos resta é uma máscara vazia que é todos e ninguém. Michael Sandel ressalta que a dificuldade da concepção de self de Rawls deriva de John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §24, p. 137.
26
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sua tentativa de ser consistente com o conceito kantiano de self autônomo, como um ser que escolhe livremente seus próprios fins na vida.27 Não obstante, esse conceito moral e político de autonomia incorre em uma metafísica de acordo com a qual é significativo definir um self independentemente de todos os fins que ela ou ele possa escolher e de toda e qualquer concepção de bem que possa sustentar.28 Nesse ponto, devemos perguntar se a identidade de qualquer self humano pode ser definida com referência somente à sua capacidade para agência. A identidade não se refere somente ao meu potencial de escolha, mas refere-se à realidade das minhas escolhas, isto é, como eu, enquanto um indivíduo finito, concreto e corporificado, formulo e moldo as circunstâncias de meu nascimento e de minha identidade familiar, linguística, cultural e de gênero, em uma narrativa coerente que se torna minha história de vida. Com efeito, se recordamos que todo ser autônomo é alguém que nasceu entre outros, e não um ser “não vinculado a outro por laços morais prévios,”29 como Rawls, acompanhando Hobbes, presume, a questão passa a ser: de que modo essa criatura finita e corporificada compõe em uma narrativa coerente todos aqueles episódios de escolha e Michael J. Sandel, Liberalism and the limits of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1982, p. 9.
27
Ibid., p. 47 et seq.
28
John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §22, p. 128.
29
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limitação, agência e sofrimento, iniciativa e dependência? O self não é uma coisa, um substrato, mas o protagonista do conto de uma vida. A concepção de selves que podem ser individuados antes de seus fins morais é incoerente. Não podemos saber se um tal ser era um self humano, um anjo ou o Espírito Santo. Se esse conceito de self como um cogumelo, por detrás de um véu de ignorância, é incoerente, o que se segue é que não há verdadeira pluralidade de perspectivas na posição original rawlsiana, mas apenas uma identidade previamente definida [definitional identity]. Para Rawls, como Sandel observa, nossas características individuantes são dadas empiricamente pela concatenação distintiva de quereres e desejos, objetivos e atributos, propósitos e fins, que vêm a caracterizar os seres humanos em sua particularidade.30
Mas como podemos saber quais são esses quereres e desejos a despeito de conhecermos algo sobre a pessoa que tem esses quereres, desejos, objetivos e atributos? Acaso existe uma “essência” da cólera que é a mesma para cada indivíduo encolerizado? Uma essência da ambição que é distinta de selves ambiciosos? Eu não consigo entender como características individuantes são atribuídas a um self transcendental que pode ter todas e nenhuma delas, que pode ser todas ou nenhuma. Michael J. Sandel, Liberalism and the limits of justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1982, p. 51.
30
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Se selves que são epistemológica e metafisicamente anteriores às suas características individuantes, como Rawls assume que sejam, não podem ser propriamente selves humanos; se, portanto, não há uma pluralidade por detrás do véu de ignorância, mas só uma identidade previamente definida, então isso tem consequências para os critérios de reversibilidade e universalização que supostamente são constituintes do ponto de vista moral. A identidade previamente definida acarreta uma reversibilidade incompleta, pois o principal requisito da reversibilidade, a saber, uma distinção coerente entre mim e você, entre o self e o outro, não pode ser mantido sob essas circunstâncias. Sob as condições do véu de ignorância, o outro desaparece. Já não é mais plausível sustentar que esse ponto de vista possibilita uma universalização adequada. Kohlberg enxerga o véu de ignorância como aquilo que exemplifica tanto a reversibilidade como a universalização. Trata-se da ideia de que “temos de estar dispostos a aceitar o juízo ou decisão de quando trocamos de lugar com os outros na situação que está sendo julgada.”31 Mas a questão é: qual situação? As situações morais podem ser individuadas a despeito do que sabemos sobre os agentes envolvidos nessas situações, sobre suas histórias, atitudes, características e desejos? Posso descrever uma situação como sendo de arrogância ou de orgulho Lawrence Kohlberg, “Justice as reversibility: the claim to moral adequacy of a highest stage of moral judgment”, In: Essays on moral development, San Francisco, Harper and Row, 1984, v. 1: The philosophy of moral development, p. 197.
31
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ferido sem saber algo sobre você enquanto um outro concreto? Posso saber como distinguir entre uma quebra de confiança e uma gafe inofensiva sem conhecer sua história e seu caráter? Situações morais, tal como atitudes e emoções morais, só podem ser individuadas caso sejam avaliadas à luz do que sabemos sobre a história dos agentes nelas envolvidos. Enquanto todo procedimento de universalização pressupõe que “casos iguais devem ser tratados de modo igual” ou que eu deveria agir de tal modo que deveria também querer que todos ajam do mesmo modo que eu agiria em uma situação semelhante, o aspecto mais difícil de qualquer procedimento desse tipo é saber o que constitui uma situação “igual” ou o que significaria para um outro estar em uma situação exatamente como a minha. Esse processo de raciocínio, para ser plenamente viável, deve abarcar o ponto de vista do outro concreto, pois situações, para parafrasear Stanley Cavell, não se apresentam como “envelopes e canários,” prontos para definição e descrição, “nem como maçãs maduras para serem classificadas”.32 Quando discordamos moralmente, por exemplo, não discordamos apenas dos princípios envolvidos; muito frequentemente, discordamos porque o que eu vejo como uma falta de generosidade da sua parte é por você interpretado como seu direito legítimo de fazer ou de não fazer algo; discordamos Stanley Cavell, The claim of reason, Oxford, Oxford University Press, p. 265.
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porque o que você vê como ciúmes da minha parte, eu vejo como meu desejo de receber mais da sua atenção. A teoria moral universalista negligencia essa moralidade interacional e cotidiana e presume que o centro de nossa teoria moral são o ponto de vista público da justiça e as nossas personalidades quase-públicas como indivíduos portadores de direitos.33 Kohlberg salienta a dimensão da assunção ideal de papéis, ou a assunção do ponto de vista do outro, no juízo moral. Porque define o outro como outro generalizado, ele perpetua, contudo, um dos erros mais fundamentais da teoria moral kantiana. O erro de Kant foi pressupor que eu, enquanto um agente racional puro raciocinando por mim mesmo, poderia chegar a uma conclusão que seria aceitável para todos em todos os tempos e lugares.34 Na teoria moral kantiana, 33
A crítica mais instigante ao descaso de Kohlberg com a moralidade interpessoal foi desenvolvida por Norma Hann em “Two moralities in action contexts: relationships to thought, ego regulation and development”, Journal of Personality and Social Psicology, v. 36, p. 286-305, 1978. Haan relata que a “formulação da moralidade formal parece se aplicar melhor a tipos especiais de dilemas hipotéticos e regidos por regras, a situação paradigmática nas mentes dos filósofos ao longo dos séculos” (ibid., p. 302). O raciocínio interpessoal, em contrapartida, “surge dentro do contexto de diálogos morais entre agentes que procuram conquistar um acordo balanceado, baseado em concessões a que chegaram ou na descoberta conjunta de interesses que possuem em comum” (ibid. p. 303). Para um tratamento mais amplo ver também Norma Haan, “An interactional morality for everyday life”, In: Norma Haan et al. (ed.), Social science as moral inquiry, Nova York, Columbia University Press, 1983, p. 218-251.
Cf. Ernst Tugendhat, “Zur Entwicklung von moralischen Begründungstrukturen im modernem Recht”, Archiv für Recht und Sozialphilosophie, v. 68, p. 1-20, 1980.
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agentes morais são como geômetras localizados em salas diferentes que, raciocinando cada um por si e por si mesmo, chegam todos à mesma solução de um problema. Acompanhando Habermas, gostaria de chamar esse modelo de raciocínio moral de modelo de raciocínio moral “monológico”. Na medida em que interpreta a assunção ideal de papéis à luz do conceito rawlsiano de um “véu de ignorância”, Kohlberg também considera o processo silencioso de pensamento de um self isolado que imaginativamente se coloca na posição dos outros como a forma mais adequada de juízo moral. Minha conclusão é que uma definição de self que esteja restrita ao ponto de vista do outro generalizado torna-se incoerente e não individua selves. Nenhum procedimento de universalização coerente pode ser levado a cabo sem que se assuma o ponto de vista do outro concreto, pois não possuímos as informações epistêmicas necessárias para julgar minha situação moral como sendo “igual” ou “diferente” da sua. O “outro generalizado” versus o “outro concreto”, uma reconsideração Nas seções anteriores deste capítulo, argumentei que a distinção entre justiça e boa vida, a restrição do domínio moral a questões de justiça, assim como o ideal de autonomia moral presente nas teorias discutidas, tornam privada a experiência das 340
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mulheres e acarretam uma cegueira epistemológica em relação ao outro concreto. A consequência dessa cegueira epistemológica é uma inconsistência interna nas teorias morais universalistas, uma vez que estas definem “assumir o ponto de vista do outro” como essencial para o ponto de vista moral. O meu objetivo foi tomar as teorias morais universalistas nos seus próprios termos e mostrar mediante uma crítica imanente, primeiro, da metáfora do “estado de natureza” e, em seguida, da “posição original”, que a concepção de self autônomo implicada nesses experimentos de pensamento é restrita ao “outro generalizado”. A distinção entre o outro generalizado e o outro concreto suscita questões na teoria moral e política. Pode-se perguntar se seria mesmo possível definir um ponto de vista moral sem o ponto de vista do outro generalizado. Uma vez que nossas identidades enquanto outros concretos é o que nos distingue uns dos outros segundo diferenças de gênero, raça, classe e cultura, assim como capacidades naturais e psíquicas, uma teoria moral restrita ao ponto de vista do outro concreto não seria uma teoria racista, sexista, relativista cultural e discriminatória? Além disso, sem o ponto de vista do outro generalizado, uma teoria política da justiça adequada às sociedades modernas complexas é impensável. Seguramente, direitos devem ser um componente essencial desse tipo de teoria. Por fim, a perspectiva do “outro concreto” define nossas relações como privadas, não institucionais, relacionadas a amor, cuidado, amizade e intimidade. 341
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Essas atividades são tão específicas em relação ao gênero? Não somos todos “outros concretos”? A distinção entre o “outro generalizado” e o “outro concreto”, tal como delineada até agora nesse capítulo, não é uma distinção prescritiva, mas é uma distinção crítica. Meu objetivo não é prescrever uma teoria moral ou política consoante com o ponto de vista do outro concreto. Como argumentei ao longo da parte I, meu propósito é desenvolver uma teoria moral universalista que defina o “ponto de vista moral” à luz da reversibilidade de perspectivas e de uma “mentalidade alargada”. Uma teoria moral desse tipo permite reconhecer a dignidade do outro generalizado por meio do reconhecimento [acknowledgment] da identidade moral do outro concreto. O universalismo substitucionalista descarta o outro concreto por trás da fachada de uma identidade previamente definida de todos como seres racionais, já o universalismo interativo reconhece que todo outro generalizado é também um outro concreto. Para melhor ressaltar essa distinção entre o universalismo “substitucionalista” e o interativo, eu gostaria de examinar aqui uma série de respostas às minhas críticas à “posição original” rawlsiana.35 Em um esclarecedor artigo intitulado “Reason and feeling in thinking about justice” [“Razão e sentimento no pensamento sobre a justiça”], Susan Moller Okin argumentou que as 35
As seções seguintes deste artigo são novas e não constavam na versão original.
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contínuas críticas feitas pelas teóricas feministas à Teoria da justiça, de John Rawls, baseiam-se em uma má compreensão do dispositivo central da “posição original” na teoria rawlsiana.36 Okin propõe um tratamento alternativo desse dispositivo, “o qual,” ela argumenta, é consistente com muito do que ele [Rawls] afirma sobre [a posição original] e muito mais compatível com seu próprio tratamento do desenvolvimento moral. É esse tratamento alternativo do que se passa na posição original que me faz sugerir que não se é forçado a escolher entre uma ética da justiça e uma ética da simpatia ou do cuidado, tampouco entre uma ética que salienta a universalização e uma que leva em consideração as diferenças.37
Okin teve de dedicar um tempo considerável para desembaraçar a versão alternativa que ela propõe das frequentes representações da “posição original” como um modelo de “escolha racional” feitas pelo próprio Rawls. A seu ver, não faz sentido considerar a posição original como um dispositivo moral que representa o raciocínio de indivíduos “mutuamente desinteressados” que perseguem seus interesses, quando esses indivíduos nem sequer conhecem seus interesses, uma vez que esses interesses são “distintos e diferenciados”38 uns dos outros. Okin argumenta que, para todos os efeitos, 36
Susan Moller Okin, “Reason and feeling in thinking about justice”, Ethics, v. 99, n. 2, p. 229 et seq., jan. 1989. Ibid., p. 238.
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Ibid., p. 242
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não é a imagem de maximizadores mutuamente desinteressados que captura a intenção de Rawls, mas, antes, empatia, benevolência e igual preocupação com os outros tal como consigo mesmo. Ela escreve: A posição original exige que, enquanto sujeitos morais, consideremos as identidades, os objetivos e as ligações de todas as outras pessoas, não obstante o quão diferentes elas sejam de nós, como de igual preocupação com nós mesmos. Se nós, que sabemos quem somos, devemos pensar como se estivéssemos na posição original, temos então de desenvolver consideráveis capacidades para empatia e poderes para nos comunicarmos com os outros sobre como são as vidas humanas que são diferentes. Mas isso não basta para sustentar em nós um senso de justiça. Uma vez que sabemos quem somos e quais são nossos interesses particulares e concepções de bem, precisamos também de um compromisso sério com a benevolência, com cuidar de todos e cada outro como de nós mesmos.39
Ao frisar os aspectos de benevolência, cuidado e empatia, como sendo centrais ao projeto rawlsiano, Okin sem dúvida contribuiu para uma compreensão mais rica da obra de Rawls. Basta recordar a seguinte passagem da seção “A moralidade dos princípios” em que Rawls escreve: 39
Susan Moller Okin, “Reason and feeling in thinking about justice”, Ethics, v. 99, n. 2, p. 246, jan. 1989.
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também acontece que o senso de justiça é contínuo ao amor pela humanidade. […] a benevolência fica sem rumo quando os muitos objetos de seu amor se opõem entre si. Os princípios de justiça são necessários para orientá-la. A diferença entre os princípios de justiça e o amor pela humanidade é que o amor pela humanidade é supererrogatório, ultrapassa as exigências morais e não invoca as isenções permitidas pelos princípios de obrigação e dever naturais. No entanto, está claro que os objetos desses dois sentimentos estão intimamente relacionados e que são em grande parte definidos pela mesma concepção de justiça.40
Conferir aos sentimentos morais de cuidado, benevolência e amor à humanidade, seu devido lugar na teoria da justiça de Rawls certamente reduz a oposição rígida entre razão e sentimento, justiça e cuidado. Esse desencobrimento das bases emocionais ou afetivas da teoria rawlsiana, contudo, não responde à crítica de “incoerência epistêmica” que levantei na anteriormente (cf. p. 326-340). Meu argumento não é que os agentes rawlsianos sejam egoístas, mas que sejam selves “desinseridos” e “descorporificados”, supostamente aptos para raciocinar do ponto de vista de todos os demais por detrás de um “véu de ignorância”. Meu argumento é que, sob as condições epistêmicas do “véu de ignorância”, o outro enquanto John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §72, p. 476.
40
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distinto do self desaparece porque os critérios relevantes para individuar entre selves estão ausentes. A própria Okin admite isso quando, ao considerar por que os selves rawlsianos não podem ser maximizadores racionais de interesses, pergunta: Mas qual o sentido de falar em indivíduos mutuamente desinteressados que perseguem seus interesses quando, na medida que seus interesses são distintos e diferenciados, eles os desconhecem?41
Selves que desconhecem seus interesses distintos podem também não ter informações adequadas sobre os interesses de outros relevantes. Tudo o que realmente sabem sob as condições do “véu de ignorância” é que é razoável presumir que todos e cada um teriam certos interesses bastante gerais, por exemplo, em assegurar um certo padrão de bem-estar material com dignidade. Rawls então pede que imaginemos qual distribuição de bens materiais seria mais racional e razoável escolher em circunstâncias nas quais não soubéssemos quem somos, não soubéssemos quais são nossos talentos e capacidades, classe, gênero e raça etc. Em vez de pensar do ponto de vista de todos os envolvidos, isto é, em vez de reverter perspectivas e perguntar a nós mesmos “como de fato seria raciocinar do ponto de vista de uma mulher negra, mãe, destinatária de um programa social?”, o que se pede é que pensemos qual 41
Susan Moller Okin, “Reason and feeling in thinking about justice”, Ethics, v. 99, n. 2, p. 242, jan. 1989.
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distribuição de bens materiais seria mais racional e razoável adotar caso não soubéssemos, de modo geral, que nossa sociedade é tal que é possível que se seja uma mulher negra, solteira, mãe de três filhos, destinatária de programas sociais, que vive em uma área urbana em rápida decadência.42 Não há qualquer injunção moral na posição original para encarar a “alteridade do outro” [otherness of the other], e, seria possível dizer, para encarar as “alteridades” dos outros [their alterity], suas irredutíveis distinção e diferença em relação ao self. Não duvido que o respeito pelo outro e por sua individualidade seja uma preocupação central que orienta a teoria rawlsiana; o problema, porém, é que as pressuposições kantianas que também orientam a teoria rawlsiana têm um peso tão grande que a equivalência de todos os selves qua agentes racionais predomina e sufoca qualquer reconhecimento sério da diferença, da alteridade e do ponto de vista do “outro concreto”. Okin escreve: Em “The methodological illusions of modern political theory”, examinei algumas das dificuldades relacionadas à compreensão de Rawls sobre as ciências sociais. Por detrás das condições do “véu de ignorância”, permite-se aos indivíduos o conhecimento de “fatos sociais gerais” (ver John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §24, p. 137 et seq.). Eu pergunto se é possível separar tão nitidamente o geral e o particular nos dados científico-sociais, como presume Rawls, e quanto efetivamente seria preciso saber sobre sociedade e história para que se estivesse apto a construir teoricamente o ponto de vista das pessoas “menos favorecidas”. Ver Seyla Benhabib, “The methodological illusions”, Neue Hefte für Philosophie, v. 21, p. 47-74, Spring 1982. Adiante, retomo o problema das “pessoas menos favorecidas” na teoria de Rawls.
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pensar como uma pessoa na posição original não é ser um ninguém descorporificado. Isso, como os críticos corretamente assinalaram, seria impossível. Antes, trata-se de pensar do ponto de vista de todos, de todo “outro concreto” que poderíamos ser.43
Vou insistir mais uma vez nesta questão: na construção da posição original rawlsiana, há realmente “outros concretos” por detrás de um “véu de ignorância”? A questão é tanto epistêmica como política. Vamos começar relembrando que certamente nós nunca estamos nem estaremos em uma “posição original”. Esse dispositivo tem como objetivo “tornar nítidas para nós mesmos as restrições que parece razoável impor a argumentos que defendem princípios de justiça e, portanto, aos próprios princípios”.44 A posição original tem como objetivo ilustrar a concepção de justiça como equidade. Nesse sentido, Okin está correta em afirmar que “nós, que sabemos quem somos, devemos pensar como se estivéssemos na posição original”45 e não soubéssemos quem somos. Agora, como sabemos quem os outros são? A primeira resposta é que evidentemente carregamos conosco para a posição original todo o conhecimento, 43
Susan Moller Okin, “Reason and feeling in thinking about justice”, Ethics, v. 99, n. 2, p. 248, jan. 1989. John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §4, p. 18.
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Susan Moller Okin, op. cit., p. 246.
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informações, assim como os pressupostos e preconceitos, que temos sobre os “outros” devido ao que anteriormente fomos na sociedade. A segunda resposta é que esse conhecimento e esses pressupostos são então, por assim dizer, “desativados” por detrás do “véu de ignorância” de modo que o que sabemos sobre os “outros” é que estamos todos “numa situação semelhante” e que há uma “simetria das relações de todos para com todos”.46 Assim, por um lado, selves na “posição original” carregam consigo para o processo de deliberação imaginária todos os pressupostos e preconceitos que os orientam na vida cotidiana; por outro lado, esses pressupostos e preconceitos não são verdadeiramente “desarmados”, isto é, confrontados, discutidos, encarados e elaborados em um diálogo aberto com outros concretos, em vez disso, eles são simplesmente “desativados”, isto é, colocados atrás de um “véu de ignorância”. Há, portanto, um perigo bastante real de que, ao não permitir que se encare a “alteridade” do outro, a posição original, apesar de todas as intenções de Rawls em contrário, possa deixar todos os nossos preconceitos, mal-entendidos e hostilidades na sociedade exatamente como são, só que escondidos por trás de um véu. Em contraposição, apenas um diálogo moral que seja verdadeiramente aberto e reflexivo e que não funcione com limitações epistêmicas desnecessárias pode conduzir a uma compreensão mútua da alteridade.
As duas últimas citações são de John Rawls, A theory of justice, §3, p. 12.
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Nem a concretude nem a alteridade do “outro concreto” podem ser conhecidas na ausência da voz do outro. O ponto de vista do outro concreto emerge como um ponto de vista distinto apenas como um resultado de autodefinição. É o outro quem nos torna cientes tanto de sua concretude como de sua alteridade.47 Concordando com a crítica de Okin às objeções à posição rawlsiana que apresentei anteriormente, Will Kymlicka recentemente escreveu que: “O fato de que se solicita às pessoas que, ao pensar sobre os outros, raciocinem abstraindo-se de suas próprias posições sociais, talentos naturais e preferências pessoais, não significa que elas devam ignorar as preferências particulares, os talentos e a posição social dos outros […]. Benhabib presume que a posição original opera ao exigir dos contratantes que considerem os interesses de outros contratantes (que todos se tornam ‘outros generalizados’ por detrás do véu de ignorância)” (Will Kymlicka, Contemporary political philosophy: an introduction, Oxford, Clarendon, 1990, p. 274). Kymlicka assinala que por detrás do véu de ignorância já não importa quem, se alguém, ocupa esta posição, ou quais são os interesses de quem ocupa. Citando Jean Hampton, ele conclui que “o que importa são os desejos e objetivos de cada membro real de sua sociedade, pois o véu o força a raciocinar como se ele fosse qualquer um deles […]. Ambos os dispositivos, contratantes imparciais e partidários do ideal [ideal sympathizers], operam ao exigir que as pessoas considerem os outros concretos” (ibid.). Tenho duas objeções a esse argumento: em primeiro lugar, como assinalado no texto, há um déficit epistêmico na construção da posição original que não permitiria que os indivíduos descobrissem os desejos e objetivos de “cada membro real de sua sociedade”. O que saberíamos sobre os outros “reais” só seria ou por meio de informações parciais que tivemos antes de entrar no experimento de pensamento da “posição original” ou por pressupor que o outro é tão semelhante a nós que podemos seguramente atribuir a ela a mesma concatenação de necessidades e interesses que atribuímos a nós mesmos. Creio que, de um ponto de vista moral, nenhum dos procedimentos é suficientemente satisfatório, uma vez que se permite evitar um aspecto crucial da experiência moral, a saber, o reconhecimento da alteridade do outro e a necessidade de se alcançar
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Sem engajamento, confrontação, diálogo e até mesmo uma “luta por reconhecimento”, no sentido hegeliano, tendemos a constituir a alteridade do outro por meio de projeção e fantasia ou a ignorá-la na indiferença. Eu, portanto, confio muito menos do que Okin (e mesmo do que Gilligan) nos sentimentos de empatia e benevolência; pois, como Arendt também observou,48 a capacidade para exercer uma “mentalidade alargada”, a habilidade para tomar o um ponto de vista compartilhado ao tomar conhecimento dessa alteridade. Em segundo lugar, na posição original rawlsiana, os pontos de vista dos “outros concretos” são construídos mediante uma série de idealizações e qualificações. Como Rawls deixou bem claro em escritos posteriores a Uma teoria da justiça, sua intenção não era partir de uma concepção de self baseada em pressuposições metafísicas fortes, mas, antes, construir uma concepção de “pessoa” enquanto agentes morais e públicos que têm “um plano de vida racional à luz do qual organizam seus esforços mais importantes e alocam seus diferentes recursos (incluindo os da mente e do corpo) de modo a perseguir suas concepções de bem sobre uma vida plena, se não do modo mais racional, ao menos do modo mais sensato (ou satisfatório)” (John Rawls, “The priority of right and ideas of the good”, Philosophy and public affairs, v. 19, p. 254, 1988). Enquanto esses esclarecimentos posteriores elucidam os aspectos “construtivistas”, não os aspectos metafísicos, do procedimento rawlsiano, eu ainda argumentaria que, por detrás do dispositivo do “véu de ignorância”, indivíduos não podem ser individuados e, desse modo, distinguidos uns dos outros, e que ainda estamos raciocinando do ponto de vista do outro “generalizado”; os outros concretos são de fato tão somente “pseudo-outros” e “pseudoconcretos”. Kymlicka não aceita essa conclusão, pois muito prontamente pressupõe que a psicologia do “contratante imparcial” e do “observador ideal” sejam plausíveis. Como minha discussão do ponto de vista “do indivíduo menos favorecido” adiante indica, considero esse ponto problemático. Hannah Arendt, “Crisis in culture”, In: Between past and future, Cleveland, Meridian, 1961, p. 221.
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ponto de vista do outro em consideração, não é empatia, embora a esta esteja relacionada. Empatia significa a capacidade para “sentir com, sentir junto”. Ainda assim, precisamente indivíduos bastante empáticos podem também ser aqueles a quem falta uma “mentalidade alargada”, pois sua natureza empática pode dificultar a delimitação de limites entre self e outro de modo que o ponto de vista do “outro concreto” possa emergir. Ironicamente, concordo aqui muito mais com Rawls, do que com Okin ou Gilligan, em que, “porque os objetos da benevolência” – e, eu acrescentaria, da empatia – se opõem uns aos outros, são necessários princípios, instituições e procedimentos para possibilitar a articulação da voz dos “outros”. Há um determinado momento no argumento de Uma teoria da justiça em que a questão do “outro concreto” retorna, mas fica pendente, sem qualquer tipo de resolução. Rawls propõe que o segundo princípio seja lido de modo a implicar que “as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de modo a serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado aos menos favorecidos e (b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades”.49 Como podemos identificar o indivíduo “menos favorecido” na sociedade? Esse ponto coloca a teoria de Rawls em questões extremamente complexas sobre comparações de utilidade intersubjetiva, mas, de modo mais John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §13, p. 83.
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significativo, o processo moral e político por meio do qual cidadãos em um regime democrático poderiam aprender a identificar “os menos favorecidos” é colapsado. Rawls reincide em um raciocínio “substitucionalista” quando de fato assume que podemos, para propósitos de distribuição, identificar “as expectativas de homens representativos”.50 Mas quem são os “menos favorecidos” em nossa sociedade? A mulher negra, mãe de três filhos, destinatária de um programa social? O branco, operário da indústria automobilística de Detroit, pai de quatro filhos, que perde seu emprego depois de 20 anos de trabalho? A dona de casa suburbana divorciada, que teve de vender a casa e tudo o que tinha, e que não tem experiência suficiente para entrar no mercado de trabalho? etc. Não vejo uma resolução satisfatória para essa questão dentro do escopo de Uma teoria da justiça.51 John Rawls, A theory of justice, 2. ed., Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, §12, p. 70.
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Toda essa questão toca o difícil problema de comparações de utilidade intersubjetiva na teoria econômica. Mas antes mesmo que se aborde esse conjunto de comparações, há outra questão a ser enfrentada: certamente, do ponto de vista das políticas distributivas, que orientam os princípios segundo os quais instituições alocam recursos escassos, pode ser necessário construir alguma ficção sobre o “indivíduo menos favorecido”. A teoria moral, contudo, e particularmente uma teoria da justiça para um regime democrático, tem de se preocupar com o processo de diálogo público mediante o qual indivíduos chegam a uma compreensão dos sofrimentos, misérias e humilhações de todos os concidadãos que são bastante diferentes deles mesmos. Alcançar uma definição do “indivíduo menos favorecido” depende muito mais da promoção de um processo de compreensão moral e política em uma sociedade não
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Desse modo, em última análise, minha crítica a Rawls é procedimental: critico a construção da “posição original” nos termos de um processo de deliberação individual implausivelmente restrito, em lugar de um processo em aberto de argumentação moral coletiva. Como argumentei em vários dos pontos anteriores, o modelo da ética do discurso ou comunicativa deve ser preferido a este pois institucionaliza um diálogo real entre selves reais que são tanto “outros generalizados”, considerados enquanto agentes morais iguais, quanto “outros concretos”, isto é, indivíduos com diferenças irredutíveis. Tanto a “posição original rawlsiana” como o modelo habermasiano de “ética do discurso” são idealizações cujo objetivo é caracterizar o ideal de imparcialidade ou o que significa assumir um ponto de vista moral. As diferenças entre essas idealizações centram-se nos seguintes pontos: de acordo com a ética do discurso, o ponto de vista moral não deve ser fundamentalmente entendido como um processo de pensamento hipotético conduzido isoladamente pelo agente moral ou pelo filósofo moral, mas, antes, deve ser construído como uma situação dialógica real na qual agentes morais comunicam-se uns com os outros. Em segundo lugar, o modelo de discurso não impõe quaisquer restrições epistêmicas ao raciocínio moral e à disputa moral, pois, quanto mais os agentes morais dispõem de conhecimentos uns sobre os outros, igualitária [inegalitarian], ainda muito dividida em linhas de classe, raça e gênero.
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suas histórias, as particularidades, a estrutura e o futuro de suas sociedades, mais racional será o resultado de suas deliberações. A racionalidade prática também abarca a racionalidade epistêmica, e mais conhecimento, ao invés de menos, contribui para um juízo mais informado e racional. Julgar racionalmente não é julgar como se não se soubesse o que se poderia saber (o efeito de se projetar um “véu de ignorância”), mas julgar à luz de todas as informações disponíveis e relevantes. Em terceiro lugar, se não há quaisquer restrições de conhecimento a serem impostas em tal situação argumentativa, também se segue que não há assunto privilegiado de discussão moral. No modelo discursivo, os agentes morais não estão limitados a raciocinar somente sobre os bens primários que se supõe que querem, independentemente do que mais queiram. Ao contrário, tanto os bens que desejam como seus próprios desejos podem se tornar objeto de discussão moral. Por fim, nesses discursos morais, os agentes também podem alternar entre níveis de reflexividade, isto é, podem introduzir metaconsiderações sobre as próprias condições e restrições sob as quais tal diálogo acontece e podem avaliar sua equidade. Não há um fechamento da reflexividade nesse modelo como há no modelo rawlsiano. Uma consequência desse modelo de ética comunicativa ou discursiva seria que a linguagem dos direitos pode então ser questionada à luz das nossas interpretações de necessidades, e que o campo de investigação da teoria moral é alargado ao ponto de que 355
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não apenas questões sobre justiça mas também questões sobre a boa vida são deslocadas para o centro do discurso. O modelo de ética do discurso ou comunicativa subverte a distinção entre uma ética de justiça e direitos e uma ética de cuidado e responsabilidade na medida em que desloca os limites do discurso moral ao ponto em que visões sobre necessidades e interesses que amparam reivindicações por direitos tornam-se visíveis. Chegamos aqui à conclusão já obtida no final do capítulo 3, a saber, a necessidade de reconsiderar, revisar e talvez rejeitar as dicotomias entre justiça e boa vida, interesses e necessidades, normas e valores, sobre as quais repousa o modelo discursivo na interpretação de Habermas. O próximo capítulo vai, nesse sentido, considerar o desafio colocado pela obra de Gilligan para a ética do discurso; pois, certamente, o que eu gostaria de alegar em favor desse modelo e a maneira pela qual pretendo nele assimilar os insights de Gilligan difere do que o próprio Habermas escreveu em resposta ao trabalho de Gilligan. Ironicamente, o que eu afirmo serem as virtudes do modelo discursivo, em comparação com modelo rawlsiano, Habermas dispersa e recua quando, de modo muito parecido a Lawrence Kohlberg, passa a distinguir de modo acentuado entre desenvolvimento moral e egoico, justiça e boa vida, normas e valores, necessidades e interesses. No entanto, a duradoura contribuição de Carol Gilligan para a teoria moral e para a psicologia moral é ter nos tornado cientes dos modelos implícitos de ipseidade [selfhood], autonomia, imparcialidade e justiça, que são sustentados 356
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e privilegiados por um raciocínio dicotômico como esse. O ideal de autonomia nas teorias morais universalistas da tradição do contrato social até as obras de Rawls e Kohlberg baseia-se em uma política implícita que define o “pessoal”, no sentido de uma esfera doméstica/ íntima, como a-histórico, imutável e permanente, removendo-o, assim, de discussão e reflexão. Necessidades, interesses, assim como emoções e afetos, são então considerados propriedades de indivíduos, das quais a filosofia moral rechaça o exame com o argumento de que isso poderia interferir na autonomia do self soberano. O que Carol Gilligan ouviu são todos aqueles silenciamentos, protestos e objeções vocalizadas por mulheres que se depararam com modos de colocar dilemas morais que lhes pareciam alheios, e que se defrontavam com concepções de ipseidade que as tornavam insensíveis. Apenas se pudermos compreender por que essa voz tem sido tão marginalizada na teoria moral e como os ideais dominantes de autonomia moral em nossa cultura, assim como a definição privilegiada de esfera moral, continuam a silenciar as vozes das mulheres, teremos uma esperança para nos mover para uma visão mais integrada de nós mesmos e de nossos parceiros humanos como outros generalizados e também como “outros concretos”. Versões anteriores deste capítulo foram apresentadas na conferência “Women and morality”, State University of New York, Stony Brook, 22-24 mar. 1985, e no curso de Filosofia e Ciência
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Social na Inter-University Center em Dubrovnik, Iugoslávia, 2-4 abr. 1985. Gostaria de agradecer aos participantes de ambas as reuniões por suas críticas e sugestões. Larry Blum e Eva Feder Kittay fizeram valiosas sugestões para correções. O comentário de Nancy Fraser sobre este trabalho, “Toward a discourse ethics of solidarity”, Praxis international, v. 5, n. 4, p. 425-30, jan. 1986, assim como seu “Struggle over needs”, in Unruly practices, Cambridge, Polity Press, 1989, foram cruciais para me ajudar a articular as implicações da posição aqui defendida. Outras versões deste capítulo foram publicadas em uma coletânea resultante da conferência “Women and moral theory”, organizada por Eva Feder Kittay e Diana T. Meyers, Women and moral theory, Totowa, NJ, Rowman and Littlefield, 1987, p. 154-178, e em Seyla Benhabib e Drucilla Cornel (orgs.), Feminism as critique, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
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6.
O debate sobre mulheres e teoria moral revisitado O debate contemporâneo sobre mulheres e teoria moral, que em 1982 foi incitado pela publicação de Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta, de Carol Gilligan, gerou até agora uma literatura impressionante e de natureza verdadeiramente multidisciplinar. Refletindo sobre os vários temas e desacordos desse debate, podemos isolar, além de seus méritos, insights e elegância intrínsecos, várias razões pelas quais o trabalho de Gilligan se tornou o foco de uma intensa controvérsia que, curiosamente, não se agravou. Uma voz diferente reflete um amadurecimento dos estudos das mulheres dentro do domínio da “ciência normal”, no sentido da expressão dado por Thomas Kuhn. Assim como a obra de Nancy Chodorow, Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher, na teoria da socialização, as obras A feeling for the organism [Um sentimento pelo organismo] e Reflections on gender and science [Reflexões sobre gênero e ciência], de Evelyn Fox Keller, nos estudos sociais da ciência, e a obra The man of reason [O homem de razão], de Geneviève Lloyd, na história da filosofia, a obra de Gilligan mostrou as consequências de se levantar a “questão das mulheres” a partir
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dos parâmetros do discurso científico estabelecido. Depois que as mulheres são colocadas em cena, seja como objetos da pesquisa científico-social, seja como os sujeitos que conduzem essa investigação, os paradigmas estabelecidos são abalados. A definição dos campos de investigação de um paradigma de pesquisa, suas unidades de medida, seus métodos de verificação, a alegada neutralidade de sua terminologia teórica e as pretensões de universalidade de seus modelos e metáforas são todos postos em questão. O trabalho de Gilligan na teoria do desenvolvimento moral e cognitivo reiterou uma experiência que as historiadoras já haviam encontrado em seu próprio campo de pesquisa. Joan Kelly Gadol descreveu essa experiência em um artigo intitulado “The social relations of the sexes: methodological implications of women’s history” [“As relações sociais dos sexos: implicações metodológicas da história das mulheres”], de 1975, da seguinte maneira: Quando nós olhamos para a história para compreender a situação das mulheres, já estamos supondo, evidentemente, que que a situação das mulheres é um assunto social. Mas a história, assim que nos deparamos com ela, não parece confirmar essa percepção [...] No momento em que isso for feito – no momento em que se admitir que as mulheres são uma parte da humanidade no sentido mais amplo –, o período ou o conjunto de eventos com os quais lidamos assumem um caráter ou significado completamente diferente do que é normalmente aceito. De fato, o que surge
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é um padrão bastante regular de relativa perda de status para as mulheres em períodos das chamadas mudanças progressistas [...] De repente, vemos essas eras com uma nova visão, uma visão em dobro – e cada olho vê uma imagem diferente.1
Kelly Gadol descreve uma “visão duplicada”, cada olho vendo algo diferente. Gilligan escreve sobre ouvir uma voz diferente. Em cada caso, a experiência é a mesma. A questão das mulheres – mulheres como objetos de pesquisa e como sujeitos que conduzem essa pesquisa – perturba paradigmas estabelecidos. As mulheres descobrem diferenças onde antes a unidade prevalecia; elas percebem dissonância e contradição onde anteriormente reinava a uniformidade; elas notam o duplo sentido de palavras onde anteriormente o significado dos termos havia sido dado como certo; e elas estabelecem a permanência da injustiça, da desigualdade e da regressão em processos que eram anteriormente caracterizados como justos, igualitários e progressivos. Na discussão que se segue, vou isolar dois grandes grupos de questões dentre o complexo conjunto de problemas, dentro e fora dos limites da teoria feminista, que a obra de Gilligan suscitou. Enquanto a segunda parte desse capítulo analisará o status 1
Joan Kelly Gadol, “The social relations of the sexes: methodological implications of women’s history”, In: Women, history and theory, University of Chicago Press, Chicago, 1984, p. 1-14, principalmente p. 2-3.
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metodológico da categoria de “gênero” e a questão da “diferença” na pesquisa de Gilligan sobre as mulheres e a teoria moral, na primeira parte continuarei a explorar as implicações da pesquisa de Gilligan para a filosofia moral universalista. Filosofias morais universalistas e o desafio de Carol Gilligan Sem dúvida, o amplo reconhecimento da obra de Carol Gilligan e a controvérsia que ela gerou não ocorreram apenas porque ela espelhava o amadurecimento dos estudos das mulheres dentro dos paradigmas da ciência normal; igualmente significativo foi o fato de que os tipos de questões que Gilligan levantou contra o paradigma kohlberguiano também estavam sendo levantadas contra as filosofias universalistas morais neokantianas por um crescente e influente número de críticos. Como expus anteriormente, esses críticos comunitaristas, neoaristotélicos e mesmo neo-hegelianos do kantismo, como Michael Walzer, Michael Sandel, Alasdair MacIntyre e Charles Taylor questionaram, do mesmo modo que Gilligan, o formalismo, o cognitivismo e as pretensões de universalidade das teorias kantianas. Da mesma forma que Gilligan desafiou a separação entre forma e conteúdo na avaliação do juízo moral, também MacIntyre argumentou que nenhum princípio moral substantivo poderia ser
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deduzido da pura forma da lei moral.2 Assim como Gilligan relatou a sensação de espanto das pesquisadoras diante de uma linguagem da moral que colocava até mesmo os mais pessoais de todos os dilemas, por exemplo, o aborto, em termos de direitos formais, também Michael Sandel sustentou que uma constituição política baseada apenas no modelo procedimental e jurídico das relações humanas careceria de uma certa solidariedade e profundidade de identidade.3 E da mesma maneira como Gilligan duvidou que o modelo kohlberguiano de desenvolvimento do juízo moral pudesse reivindicar a universalidade que ele pretendia diante das dificuldades que esse modelo encontrou ao considerar o juízo e o sentido do self das mulheres,4 outros críticos, como Taylor e Walzer, questionaram se a forma dos juízos morais de justiça poderia ser tão nitidamente isolada do conteúdo das concepções culturais de boa vida.5 Houve então uma convergência notável entre o tipo de crítica feminista
2
Alasdair MacIntyre, After virtue, University of Notre Dame Press, Notre Dame, 1981, p. 44 et seq. Michael Sandel, “The Procedural Republic and the Unencumbered Self”, In: Political Theory, 12.1, 1984.
3
4
Gilligan permaneceu notavelmente em silêncio sobre a questão da relatividade cultural e étnica do paradigma kohlbergiano. Charles Taylor, “Die Motive einer Verfahrensethik”, In: Wolfgang Kuhlmanm (ed.), Moralität und Sittlichkeit, Suhrkamp, Frankfurt, 1986, p. 194-217; Michael Walzer, Interpretation and social criticism, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1987.
5
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de Gilligan ao universalismo kantiano e as objeções levantadas por esses outros pensadores.6 No entanto, exatamente quais implicações se deve extrair dos achados de Gilligan, achados que foram refreados com o tempo, para as filosofias morais universalistas? A obra de Gilligan sugere, e até autoriza, a substituição de uma ética da justiça por uma ética do cuidado? A minha posição nessa complexa questão é que a obra de Gilligan até hoje não nos fornece razões suficientes para rejeitar filosofias morais universalistas. Gilligan não explicou em que consistiria “uma ética do cuidado”, em oposição a uma “orientação ética ao raciocínio do cuidado”, nem forneceu a argumentação filosófica necessária para formular uma concepção do ponto de vista moral ou da imparcialidade diferente da kohlberguiana. Muitas de suas formulações, pelo contrário, sugerem que ela gostaria de ver a ética da justiça complementada por uma orientação ética ao cuidado.7 Essas abordagens são complementares e não antagônicas. 6
Nós exploramos as semelhanças e as tensões dessas abordagens na introdução de Feminism as critique, Seyla Benhabib and Drucilla Comell (ed.), University of Minnesota Press, Minneapolis, 1987.
7
Owen Flanagan e Kathryn Jackson dão uma visão geral, muito clara e útil, dos problemas envolvidos nas várias formulações de Gilligan, até agora, relativas às duas perspectivas. Eles escrevem: “seu recente trabalho ainda vacila entre as ideias de que as duas éticas são alternativas incompatíveis uma a outra, mas são ambas adequadas de um ponto de visa normativo; de que elas são complementos um a outra, envolvidas em algum tipo de interação tensa; e de que cada uma é deficiente sem a outra e deve ser integrada. V. “Justice, care,
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Sem dúvida, também é possível tentar formular uma “ética feminina do cuidado”,8 mas essa não é uma implicação que encontra apoio na própria obra de Gilligan. Precisamente porque eu não penso que uma teoria moral adequada para o modo de vida das sociedades modernas complexas possa ser formulada sem alguma especificação universalista da imparcialidade e do ponto de vista moral, acredito que é mais frutífero ler a obra de Gilligan não como uma rejeição indiscriminada do universalismo – para a qual há pouca evidência em seus próprios textos –, mas como uma contribuição para o desenvolvimento de uma compreensão da vida ética que é pós-convencional, não formalista e sensível ao contexto. Tentarei especificar essa afirmação partindo de uma análise perspicaz, feita por Lawrence Blum, da relação entre as perspectivas da justiça e do cuidado. Em um recente artigo, “Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory” [“Gilligan e Kohlberg: implicações para uma teoria moral”], Lawrence A. Blum delineia uma resposta hipotética a and gender: the Kohlberg-Gilligan debate revisited”, Ethics, 97, April 1987, p. 622-637, principalmente p. 628. 8
V. Nel Noddings, Caring: a feminine approach to ethics and moral education, University of California Press, Berkeley, 1984. O raciocínio dicotômico de Noddings, que distingue categoricamente entre “direito e justiça” como masculinos e “receptividade, conectividade e reatividade entusiasmada” como femininas, está em profundo desacordo com minhas tentativas, e com as de Gilligan, de tentar superar essas dicotomias categóricas em uma abordagem mais integrada do raciocínio moral e do juízo moral. V. Noddings, p. 2 et seq., para uma afirmação particularmente veemente.
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Carol Gilligan, resposta que poderia ser dada pelos defensores da “concepção imparcial da moralidade”. Imparcialismo é entendido, nesse contexto, como caracterizando não apenas a visão de moralidade de Lawrence Kohlberg, mas como sendo a concepção dominante de moralidade na filosofia moral contemporânea anglo-americana, que forma o cerne tanto de uma concepção kantiana de moralidade, quanto de importantes vertentes no pensamento utilitarista (e, de modo mais geral, consequencialista).9
Imparcialismo exige que o ponto de vista moral articule impessoalidade, justiça, racionalidade formal e princípio universal. Blum sugere, então, que a relação entre moralidades imparciais e a moralidade do cuidado pode ser concebida de oito diferentes formas: 1. Pode-se negar que a orientação para o cuidado constitua uma posição moral genuinamente distinta do imparcialismo. “Agir a partir do cuidado é na verdade agir por princípios talvez complexos, mas ainda assim completamente universalizáveis, gerados em última análise a partir de um ponto de vista imparcial”.10 2. É possível argumentar que, embora cuidar dos outros constitua um conjunto genuinamente importante de preocupações e
Lawrence A. Blum, “Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory”, Ethics, 98, April 1988, p. 472-491; principalmente p. 472.
9
Ibid., p. 477.
10
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relacionamentos na vida humana, ainda assim essas preocupações são mais pessoais que morais.11 3. Essa posição admite que preocupações com cuidado e responsabilidade nos relacionamentos são verdadeiramente morais (em oposição a serem meramente pessoais), mas afirma que essas preocupações são ou secundárias aos princípios da imparcialidade, justiça e universalidade, ou parasitárias em relação a esses princípios ou menos importantes que eles.12 4. O cuidado, afirma-se, é genuinamente moral e é uma orientação moral distinta da imparcialidade, mas é inadequado porque não pode ser universalizado. É possível argumentar que uma ética do cuidado é, em última análise, inadequada de um ponto de vista moral porque os objetos de nosso cuidado e compaixão não podem nunca abranger toda a humanidade, mas devem sempre permanecer particulares e pessoais. Uma ética do cuidado pode, assim, retroceder para uma ética de grupo convencional, para a qual o bem-estar do grupo de referência é a essência da moralidade. Esse grupo de referência pode ser a família, a nação, um grupo de afinidade particular – digamos, um grupo político ou grupo artístico de vanguarda – a O próprio Lawrence Kohlberg subscreve, em diferentes pontos no debate, a alguma versão da maioria das posições a serem apresentadas nessa enumeração. Algumas das ambivalências em suas respostas a Gilligan foram delineadas anteriormente, cf. p. 305-309, 314.
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Blum, “Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory”, Ethics, 98, April 1988, p. 478.
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quem o indivíduo deve uma lealdade especial. Uma ética do cuidado produz uma moralidade de grupo não universalizável. 5. De acordo com essa posição, a diferença entre uma ética do cuidado e uma ética da imparcialidade está nos “objetos de avaliação moral” ou na “interpretação do domínio da moral”. Enquanto o cuidado diz respeito a avaliação de pessoas, motivos e caráter, a imparcialidade diz respeito à avaliação de ações, princípios e regras da vida institucional. 6. Enquanto o cuidado e a responsabilidade são respostas morais apropriadas em certas situações, alega-se que considerações de uma concepção imparcial do correto definem os limites dentro dos quais é permitido que o cuidado guie nossa conduta. “Considerações de imparcialidade têm prioridade sobre considerações decorrentes do cuidado; se aquelas entram em conflito com essas, é o cuidado que deve ceder”.13 7. A posição 7 pode ser vista como uma elaboração da posição 6. Enquanto considerações de cuidado são genuinamente morais, ainda assim sua possibilidade de justificação última “baseia-se na capacidade dessas considerações serem validadas ou afirmadas a partir de uma perspectiva imparcial”.14
13
Blum, “Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory”, Ethics, 98, April 1988, p. 479. Ibid., p. 481.
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8. A última posição sugere que no estágio final e mais maduro do raciocínio moral, as perspectivas de “justiça e cuidado” serão integradas para formar um único princípio moral.15 Usando esse esquema, primeiro examinarei minuciosamente a resposta de Habermas ao desafio colocado pela obra de Gilligan. Em seguida, vou sugerir como, em minha própria compreensão da ética do discurso como um modelo conversacional da mentalidade alargada, uma resposta diferente a Gilligan se torna não apenas possível, mas também desejável. a) Em “Consciência moral e agir comunicativo”, Jürgen Habermas sugere que Carol Gilligan – particularmente em seu artigo escrito em coautoria com J. M. Murphy “Moral development in late adolescence and adulthood: a critique and reconstruction of Kohlberg’s theory” [“Desenvolvimento Moral na Adolescência Tardia e na Idade Adulta: uma crítica e reconstrução da teoria de Kohlberg”] – não consegue separar o complexo conjunto de problemas que surge quando, na transição da adolescência para a idade adulta, o mundo da vida cotidiano de nossa comunidade perde sua validade prima facie para o indivíduo e passa a ser julgado a partir de um ponto de vista moral. Habermas afirma: Blum, “Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory”, Ethics, 98, April 1988, p. 482. Blum se refere aqui à posição de Kohlberg em “Synopses and detailed replies to critics”, V. Kohlberg, com Charles Levine e Alexandra Hewer, Essays on moral development, Harper and Row, San Francisco, 1984, v. 2: The psychology of moral development, p. 343.
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Assim, a formação do ponto de vista moral vai de mãos dadas com uma diferenciação no interior do domínio prático: as questões morais, que podem em princípio ser decididas racionalmente do ponto de vista da possibilidade de universalização dos interesses ou da justiça, são distinguidas agora das questões valorativas, que se apresentam do ponto de vista mais geral como questões do bem viver e que só são accessíveis a um debate racional no interior do horizonte não problemático de uma forma de vida historicamente concreta ou de uma conduta de vida individual. A eticidade concreta de um mundo da vida ingenuamente acostumado é caracterizada pela fusão de questões morais e valorativas. Apenas em um mundo da vida racionalizado questões morais se tornam independentes de questões da boa vida.16
De que modo essa observação se relaciona com o argumento de Gilligan e Murphy em prol da necessidade de formular uma posição “pós-convencional contextualista” que levará em conta os dilemas de se aplicar princípios éticos em situações de vida complexas? Na leitura de Habermas, “Carol Gilligan não separa suficientemente do problema cognitivo da aplicação, o problema motivacional do ancoramento dos discernimentos morais”.17 Pois tanto J. Habermas, “Moral consciousness and communicative action,” em Moral consciousness and communicative action, trad. de Christian Lenhardt e Shierry Weber Nicholsen, MIT Press, Boston, 1990, p. 178. [Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 212-213].
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Ibid., p. 179. [Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, p. 214].
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o problema cognitivo de como fazer juízos morais sensíveis ao contexto quanto o problema motivacional de como agir em situações de vida concretas de acordo com princípios cuja validade é hipoteticamente reconhecida surgem apenas quando o ponto de vista moral foi abstraído de certezas provindas de um modo de vida compartilhado e esse modo de vida foi submetido ao teste hipotético de imparcialidade. Em outras palavras, embora Gilligan e Murphy tenham apontado um problema importante – isto é, como agentes morais que atingiram um estágio pós-convencional do raciocínio moral se comportam e julgam em situações de vida concretas –, seus insights relacionam-se à “aplicação” de uma moralidade universalista e pós-convencional a situações de vida. Desse modo, o programa de um “contextualismo pós-convencional” não tem relevância para a justificação ou delineação do domínio moral. Habermas concorda com uma das objeções iniciais que Kohlberg apresenta contra Gilligan, de que a obra dela confunde “questões de justiça” com aquelas da “boa vida”, obscurecendo assim os limites do domínio moral.18 “A isso corresponde, no que concerne à conduta de vida individual, a distinção entre os aspectos da autodeterminação e da autorrealização”, afirma Habermas. J. Habermas, “Moral consciousness and communicative action,” em Moral consciousness and communicative action, trad. de Christian Lenhardt e Shierry Weber Nicholsen, MIT Press, Boston, 1990, p. 180. [Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 216].
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Muitas vezes, as questões relativas à preferência por formas de vida ou por objetivos de vida (ideais do ego) e mesmo as questões relativas à valoração dos caracteres e modos de agir só se colocam depois de respondidas as questões morais no sentido mais estrito.19
Com essa resposta, Habermas sustenta que os tipos de questões levantadas por Gilligan pertencem não ao centro, mas às margens da teoria ética, e que se trata de “anomalias” ou problemas residuais de um paradigma científico de modo geral adequado. Usando o esquema de Lawrence Blum, podemos dizer que, para Habermas, as relações entre a orientação para a justiça e a orientação para o cuidado seguem as posições 1 e 2. Quer dizer, questões de cuidado e responsabilidade para com os outros, as quais surgem das relações especiais que mantemos com eles, são “questões valorativas da boa vida” relacionadas a formas de vida ou a objetivos de vida e à “avaliação de tipos de personalidade e modos de ação”. Nas sociedades modernas, em que questões morais de justiça foram distinguidas de questões valorativas de boa vida, relações e obrigações de cuidado e responsabilidade são assuntos “pessoais” de autorrealização. Como boa parte dessa discussão de Gilligan é expressada na linguagem da terminologia própria de Habermas, derivada de J. Habermas, “Moral consciousness and communicative action,” em Moral consciousness and communicative action, trad. de Christian Lenhardt e Shierry Weber Nicholsen, MIT Press, Boston, 1990, p. 180. [Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, p. 216].
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sua teoria social, um exemplo pode nos ajudar a compreender melhor a posição de Habermas. Tomemos o princípio, atualmente aceito de forma bastante geral, de que os membros mais jovens de uma família não devem continuar o negócio familiar ou a profissão do pai, mas devem seguir a carreira ou o modo de vida mais compatível com suas habilidades e talentos. Historicamente, esse princípio originou-se com o consequente desenvolvimento de uma economia de mercado universal e com a declínio contínuo da unidade familiar como uma unidade econômica de produção no mundo moderno. Enquanto na maioria das formações econômicas pré-capitalistas – e mesmo em algumas formas de capitalismo mercantil e industrial –, as gerações dentro de uma única família agiam como uma unidade econômica na forma da empresa familiar ou da firma familiar, com a expansão do capitalismo e o contínuo declínio do sistema de propriedade feudal, os filhos deixaram de seguir os passos dos pais e deixaram de assumir a vocação ou o negócio da família. Com o tempo, aceitou-se que as crianças, e principalmente as crianças do sexo masculino, poderiam e deveriam seguir a vocação mais adequada a seus talentos. As expectativas morais que governavam a vida familiar na maioria dos países ocidentais até o fim da década de 1920 ou de 1930 foram submetidas a uma diferenciação. A escolha de uma carreira pela geração mais jovem não é mais uma questão “moral” de obrigação devida aos outros membros da família, e em particular ao pater famílias, mas um assunto “valorativo” de boa vida. 373
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Agora, para a família liberal moderna, a questão de se o primogênito menos talentoso deve ir a uma faculdade privada mais cara em vez de se mandar a filha mais nova e mais talentosa para cursar medicina continua a ser um problema moral, pois isso envolve uma questão de justiça, de interesses conflitantes por recursos escassos. Mas nem a decisão de um filho de estudar administração nem a decisão do outro de estudar medicina são questões morais, essas decisões tornaram-se assuntos valorativos de boa vida. Ainda assim, essa conclusão é profundamente contraintuitiva e distante da realidade moral cotidiana. Se meu exemplo captura corretamente o que Habermas quer dizer, então há algo profundamente estranho em sua insistência de que essas questões são “pessoais” em vez de “morais”. De fato, essa afirmação vai de encontro às nossas intuições morais tanto quanto a afirmação de Kohlberg de que as esferas de parentesco, amor, amizade e sexo, que despertam considerações de cuidado, são normalmente compreendidas como esferas de tomada de decisão pessoais, como são, por exemplo, os problemas de casamento e divórcio.20
Essas questões são obviamente tanto pessoais como altamente morais. Mesmo em sociedades modernas altamente racionalizadas, Kohlberg, “Synopses and detailed replies to critics”, In: Lawrence Kohlberg, Essays on moral development, San Francisco, Harper and Row, 1984, p. 229-230, v. 2: The psychology of moral development.
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em que a maioria de nós somos assalariados e cidadãos políticos, as questões morais que mais nos preocupam e que nos tocam mais profundamente se originam não de problemas de justiça na economia e na constituição política, mas, precisamente, originam-se da qualidade de nossas relações com os outros nas “esferas de parentesco, amor, amizade e sexo”. Podemos lamentar a esterilidade de nossas vidas políticas como cidadãos, como também ansiar por uma vida cívica mais vibrante e atraente, sem dúvida defendi essa posição em muitos pontos acima. Podemos nos opor fortemente ao fato de que nossos arranjos econômicos são extremamente injustos e extremamente imorais do ponto de vista da satisfação das necessidades básicas de milhões de pessoas na Terra, porém nada disso diminui o fato de que as questões morais que tocam mais profundamente o cidadão democrático e o agente econômico surgem no domínio pessoal. Como podem Habermas e Kohlberg defender uma posição contraintuitiva como essa, que é contrária à fenomenologia de nossa experiência moral? Vamos analisar mais a fundo o argumento que distingue questões morais de justiça de assuntos valorativos da boa vida. b) Minha tese é que tanto Habermas quanto Kohlberg fundem o ponto de vista de uma moralidade universalista com uma definição restrita do domínio moral centrado em torno de “questões de justiça”. Entretanto, esses são assuntos diferentes. A forma como definimos o domínio da moral é um assunto distinto dos tipos de restrições justificatórias às quais cremos que os juízos, princípios e 375
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máximas morais devam se submeter.21 O universalismo, na teoria moral, opera no nível da especificação de formas aceitáveis de Há um breve reconhecimento desse ponto no artigo de Habermas “Justice and solidarity: on the discussion concerning ‘Stage 6’”, [“Justiça e solidariedade: sobre a discussão a respeito do sexto estágio”]: “Mas justificações por meio da ética procedimental se aplicam com a mesma naturalidade aos princípios da justiça distributiva... ou aos princípios do cuidado e ajuda àqueles em necessidade; ou a convenções de autocontrole, de consideração pelos outros, de veracidade e do dever de iluminar os outros, assim por diante”. Philosophical forum, 21.1-2, Fall- Winter 1989-1990, p. 43. Entretanto, esse ponto permanece sem desenvolvimento e sua consequência permanece incerta, pois, se a ética procedimental se aplica a questões de justiça distributiva, como também aos princípios do cuidado e às várias formas de virtudes relativas ao próprio indivíduo, então o domínio moral não diz respeito apenas a questões de justiça, mas também diz respeito a questões valorativas referentes à boa vida. Ou Habermas quer dizer que a teoria procedimental se aplica a esses fenômenos como “consideração, veracidade” e outros semelhantes na medida em que, e apenas na medida em que, elas podem ser reconceitualizadas como questões de justiça? Enquanto não é difícil imaginar como o cuidado e a ajuda aos outros, assim como a veracidade, podem ser fenômenos morais de justiça e questões de boa vida, para o indivíduo e para a coletividade, é mais difícil perceber como “consideração pelos outros” e “autocontrole” podem ser classificadas como fenômenos de justiça. Habermas não pode ter as duas coisas: por um lado, ele insiste que há uma distinção clara entre questões de justiça e assuntos de boa vida, e que a ética do discurso diz respeito apenas ao primeiro; por outro lado, ele quer definir o princípio do discurso não como delimitando o domínio moral, mas como especificando níveis e formas do argumento moral justificável. Como defendi no texto, é esta última posição que é mais defensável, enquanto a primeira claramente deve ser abandonada. A questão não é a definição do domínio moral, ou o que são ou não são questões morais; obviamente tanto questões de justiça quanto questões de boa vida são assuntos morais. A questão é, sim, como circunscrever o domínio da autonomia individual (juridicamente e politicamente) em que escolhas referentes a diferentes formas de boa vida são exercitadas de tal maneira que são compatíveis com princípios universalistas de justiça. V. minha discussão sobre “neutralidade” no capítulo 1.
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justificação de princípios, juízos e máximas morais. Na moralidade, “universalismo” implica, antes de tudo, um compromisso com o igual valor e a dignidade de cada ser humano em virtude de sua humanidade; além disso, a dignidade do outro como um indivíduo moral é reconhecida por meio do respeito que mostramos às suas necessidades, interesses e pontos de vista em nossas deliberações morais concretas. O respeito moral é manifestado nas deliberações morais ao levar em conta o ponto de vista do outro, enquanto um outro generalizado e concreto. Em terceiro lugar, o universalismo implica um compromisso de se aceitar como válidas as normas e as regras de ação intersubjetivas geradas por discursos práticos que ocorrem sob as restrições especificadas anteriormente (v. p. 81 et seq). O procedimento de universalização, na ética, em vez de especificar o próprio domínio moral, especifica um modelo de deliberação individual e coletivo e impõe restrições aos tipos de justificação que levam a certas conclusões. Um exemplo pode ajudar a explicar isso. Vamos supor que, em uma família com três irmãos, um deles está com problemas financeiros e não consegue pagar suas contas. O ponto de vista moral do cuidado, que Gilligan, Lawrence Blum e eu mesma reconhecemos, afirmaria que existe aqui uma reivindicação moral prima facie, a saber, a reivindicação de que nós, se fôssemos os irmãos mais bem-sucedidos da família, teríamos uma obrigação moral de ajudar esse irmão. Essa obrigação moral surgiria da natureza especial dos relacionamentos que mantemos 377
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com esse indivíduo em particular. A obrigação pode ou não ser interpretável como uma obrigação de justiça. Se nós, como irmãos mais velhos, chegamos onde chegamos na vida ao aproveitarmos a herança da família, deixando o irmão mais novo desamparado, então a situação moral é também uma situação de justiça e do que é moralmente devido ao irmão mais novo. Mas se nós devemos nossa posição na vida a nada além de nosso próprio trabalho duro e à nossa boa sorte, então a obrigação devida ao outro irmão não é uma questão de justiça. De um ponto de vista kantiano, essa obrigação seria interpretada como uma obrigação de “benevolência”. De fato, frequentemente mantém-se que, no que diz respeito à obra de Gilligan, a ética do cuidado e da responsabilidade abrange o mesmo domínio do que o próprio Kant classificou como “deveres positivos” de benevolência ou altruísmo. O domínio da moral, afirma-se, é distinto da supererrogação [supererogation] ou do altruísmo, embora tais atos possam coroar um caráter virtuoso.22 Em oposição a essa classificação de questões de cuidado como se fossem questões de supererrogação ou altruísmo, gostaria de argumentar, novamente junto a Gilligan e Blum e contra Habermas e Kohlberg, que obrigações e relações de cuidado são genuinamente See G. Nunner-Winkler, “Two moralities? A critical discussion of an ethic of care and responsibility versus an ethic of rights and justice”, In: Morality, moral behavior, and moral development, W. M. Kurtines and J. L. Gewirtz (ed.), Nova York, Wiley, 1984, p. 348-361.
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morais, pertencentes ao centro e não às margens da moralidade. Se, na situação descrita acima, os familiares envolvidos não veem ou mesmo reconhecem que há uma situação moral, em outras palavras, se eles não identificam essa situação como sendo “moralmente relevante”, então lhes falta senso moral. Ainda assim, a situação moralmente relevante não é uma situação de justiça. Não haveria nada “injusto” na decisão de dois irmãos mais velhos de não ajudar o mais novo, mas seria algo moralmente “insensível”, desprovido de generosidade e preocupação com suas ações. Diferentemente de Habermas e Kohlberg, eu não estou pronta para afirmar que “insensibilidade, falta de generosidade e falta de preocupação” são categorias valorativas e não morais; que elas pertencem à qualidade de nossas vidas em conjunto em vez de pertencer aos procedimentos gerais para regular conflitos intersubjetivos de interesses. Uma afirmação como essa é uma redução desnecessária e injustificada do domínio da moral e não é consequência de uma posição moral universalista. Uma posição moral universalista com base na mentalidade alargada nos fornece um procedimento para julgar a validade de nossos juízos também nesse contexto. O que um compromisso com o universalismo na ética requer de nós, nesse contexto, é agir de tal forma que seja consistente com o respeito pela dignidade e o valor de todos os indivíduos envolvidos e uma disposição de resolver assuntos controversos por meio de uma discussão, aberta e irrestrita, sobre tudo. O que isso 379
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significa concretamente? Os irmãos mais bem-sucedidos e o irmão mais novo deveriam estar dispostos a se envolver em um discurso sobre as necessidades deste e as responsabilidades e expectativas daqueles. O respeito pelo valor e pela necessidade do irmão mais novo como um outro concreto e um outro generalizado exige nada menos que isso. O resultado de um discurso como esse, entretanto, não é determinado pelo procedimento do próprio discurso. É, de fato, possível para todos os envolvidos chegar à conclusão de que a ajuda financeira dos irmãos mais velhos não é desejável a essa altura, porque pode reforçar padrões de dependência, criar ressentimentos etc. É também possível decidir que, com alguma ajuda nesse momento crucial, o irmão mais novo possa se encaminhar para uma existência mais autossuficiente. Procedimentos não determinam resultados específicos; eles limitam os tipos de justificação que podemos dar para nossas ações, juízos e princípios. Como delineei no capítulo 1, a ética do discurso é uma teoria moral universalista e deontológica, em que concepções do correto limitam o bem. É neste ponto que eu me separo de uma perspectiva do cuidado e me junto novamente aos universalistas. Até aqui, argumentei que a definição ou especificação do domínio da moral e o âmbito de justificação ou argumentação requeridos por um compromisso com o universalismo devem ser distinguidos um do outro. Se o universalismo é interpretado de forma procedimental, como deve ser, então esse procedimento pode ser aplicado 380
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para testar a validade dos juízos morais, princípios e máximas, mesmo em situações que, de acordo com as definições de Habermas e Kohlberg, parecem estar relacionadas com “questões valorativas da boa vida” e não com “assuntos morais de justiça”. Questões de cuidado são assuntos morais e também podem ser tratadas a partir de um ponto de vista universalista. Esse universalismo fornece as restrições dentro das quais a moralidade do cuidado deve operar. c) Se retornarmos para o esquema de Lawrence Blum discutido acima, então minha posição seria representada pelas teses 4, 6 e 7. Questões de cuidado são genuinamente morais, ainda assim a perspectiva do cuidado não equivale a uma teoria moral com uma versão distinta de um ponto de vista moral (tese 4). Considerações de uma moralidade universalista, de fato, definem os limites dentro dos quais as preocupações de cuidado devem ser permitidas a operar, e esses limites têm prioridade sobre o cuidado, se necessário (tese 6); e considerações de cuidado devem ser “validadas ou afirmadas a partir de um ponto de vista imparcial” (tese 7). Deixe-me voltar ao exemplo dado anteriormente para explicitar isso mais claramente. Suponhamos que os membros dessa família são parte do clã de Don Corleone (O Poderoso Chefão) e pertencem à Máfia. A Máfia é uma organização baseada no cuidado e na responsabilidade mútua em relação aos membros do próprio clã ou família estendida, ainda assim, essa moralidade do cuidado é acompanhada por uma moralidade de injustiça e desprezo em relação à vida, dignidade ou propriedade dos não membros do grupo. 381
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Os teóricos do cuidado precisam especificar o critério de acordo com o qual esses clãs como a Máfia devem ser considerados “imorais” do ponto de vista de uma moralidade do cuidado. Eu considero o universalismo kantiano indispensável a essa altura. Uma moralidade do cuidado pode simplesmente retroceder à posição de que o que é moralmente bom é o que é melhor para aqueles que são como eu. Essa afirmação não é diferente de defender que o que é melhor moralmente é o que mais me agrada. A tese 6 afirma que a moralidade universalista deve definir os limites dentro dos quais as preocupações de cuidado podem operar. No caso de nosso exemplo, isso significaria que os irmãos mais velhos não poderiam recomendar ao irmão mais novo, a partir de um ponto de vista moral, que o assassinato de X seria um modo apropriado de colocar sua vida financeira em ordem; e nenhuma outra recomendação que viole a dignidade e o valor da outra pessoa poderia ser consistente com o ponto de vista moral. O correto limita os preceitos da conduta moral e do bom juízo. Não seria moral recomendar para o irmão mais novo, por exemplo, que ele deveria casar-se com uma mulher rica e assim colocar sua vida em ordem, porque isso seria tratar a mulher envolvida como um meio para um fim, o que seria incompatível com sua dignidade humana. Como a tese 7 afirma, considerações de cuidado “devem ser validadas ou afirmadas a partir de uma perspectiva imparcial”. O princípio de que “membros de uma família devem mostrar apoio, preocupação e 382
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cuidado uns com os outros” é, a meu ver, justificável para todos e não apenas para alguns, porque se pudéssemos participar de um discurso prático e considerar se um mundo em que as famílias não exerçam nenhuma solidariedade seria mais aceitável para todos os envolvidos que um mundo em que as famílias demonstrem apoio e solidariedade, poderíamos todos concordar que esta última alternativa seria do interesse de todos os envolvidos. Há uma distinção entre dizer que “membros de famílias judaicas, irlandesas ou italianas devem demonstrar apoio, preocupação e cuidado uns com os outros” e a afirmação de quem quer que nós sejamos, e qualquer que seja nosso passado, um mundo em que famílias e arranjos domésticos semelhantes à família demonstrem apoio, preocupação e cuidado uns com os outros seria preferível a um mundo em que isso não acontecesse. Esta última é uma reivindicação moral universalizável, enquanto a primeira permanece uma articulação etnocêntrica de uma moralidade de grupo que gera uma consequência dupla: a solidariedade do grupo pode frequentemente ser conseguida às custas do desrespeito moral e desprezo por indivíduos que não são membros desse grupo. Suponhamos, no entanto, que um teórico mais estritamente kantiano nos questione sobre o status da reivindicação “um mundo que seria preferível a”: essa é uma reivindicação utilitária ou consequencialista? Estou defendendo que a soma da felicidade e do bem-estar nesse universo seria maior que em outro? Em algum nível, claro, essas considerações sobre famílias moralmente intactas 383
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derivam de uma preocupação com o bem-estar humano e o seu florescimento. Metateoricamente, comprometo-me com a posição de que o procedimento discursivo sozinho define a validade de normas morais gerais, sem quaisquer princípios morais adicionais de utilidade ou bem-estar humano. Ainda assim, como uma teórica discursiva, que também é uma feminista, a necessidade e o bem-estar do outro concreto me preocupam tanto quanto a dignidade e o valor do outro generalizado. Também quanto a isso, Habermas e Kohlberg rejeitaram de maneira muito rápida um insight central de Gilligan e de outras feministas: que nós somos crianças antes de sermos adultos, e que a criação, o cuidado e a responsabilidade em relação aos outros é essencial para que nos desenvolvamos em indivíduos moralmente competentes e autossuficientes. Ontogeneticamente, nem a justiça nem o cuidado têm precedência; cada um deles é essencial para o desenvolvimento de um indivíduo adulto e autônomo, a partir da criança humana frágil e dependente. Não apenas como crianças, mas também como seres concretos e corporificados, com necessidades e vulnerabilidades, emoções e desejos, nós passamos nossas vidas presos em uma “teia de assuntos humanos”, nas palavras de Hannah Arendt, ou em uma rede de “cuidado e dependência”, nas palavras de Carol Gilligan. A filosofia moral moderna e particularmente moralidades universalistas de justiça enfatizaram nossa dignidade e valor como sujeitos morais ao custo de esquecer e reprimir nossa 384
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vulnerabilidade e dependência como selves corpóreos. Essas redes de dependência e a teia de negócios humanos em que estamos imersos não são simplesmente como roupas que não nos servem mais ou como sapatos que deixamos para trás. São os vínculos que nos unem; os vínculos que moldam nossas identidades morais, nossas necessidades e nossas perspectivas da boa vida. O self autônomo não é o self desencarnado. A teoria moral universalista precisa reconhecer as experiências profundas na formação do ser humano a que correspondem a justiça e o cuidado. Gilligan formulou a interdependência da justiça e do cuidado da seguinte forma: Teoricamente, a distinção entre justiça e cuidado atravessa as divisões correntes entre pensamento e sentimento, egoísmo e altruísmo, razão teórica e razão prática. Tal distinção chama atenção para o fato de que todas as relações humanas, públicas e privadas, podem ser caracterizadas tanto em termos de igualdade quanto em termos de afeiçoamento [attachment], e que tanto desigualdade quanto indiferença [detachment] constituem motivos para a preocupação moral. Como todas as pessoas são vulneráveis tanto à opressão quanto ao abandono, duas perspectivas morais – uma de justiça, uma de cuidado – reaparecem na experiência humana. As injunções morais de não agir injustamente em relação aos outros e de não virar as costas a alguém em necessidade capturam essas diferentes preocupações.23 Carol Gilligan, “Moral Orientation and Moral Development”, Women and moral theory, E. F. Kittay and Diane T. Meyers (ed.), Totowa, NJ, Rowman and Littlefield, 1987, p. 20.
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O contínuo desafio colocado pelas descobertas de Gilligan às filosofias morais universalistas é como reconhecer a centralidade da justiça como também do cuidado nas vidas humanas, e como expandir o domínio moral para incluir considerações de cuidado sem desistir das limitações justificatórias impostas à articulação da moral pelo universalismo. Há um reconhecimento tardio de algumas das questões levantadas pelo debate com Gilligan no artigo de Habermas intitulado “Justice and solidarity: on the discussion concerning ‘Stage 6’” [“Justiça e solidariedade: sobre a discussão a respeito do sexto estágio”]. Comentando os últimos esforços de Kohlberg de integrar justiça e benevolência em uma perspectiva moral unificada, Habermas defende: Assim, a perspectiva que complementa aquela do tratamento igual dos indivíduos não é a da benevolência, mas a da solidariedade. Esse princípio está enraizado na compreensão de que cada pessoa deve assumir responsabilidade pela outra porque, como coassociadas, todas devem ter, de forma semelhante, um interesse na integridade do contexto de sua vida compartilhada. A justiça concebida deontologicamente requer solidariedade como seu lado reverso [...] Toda moralidade autônoma tem de servir a dois propósitos ao mesmo tempo: ela faz valer a inviolabilidade de indivíduos socializados ao requerer tratamento igual e, portanto, respeito igual pela dignidade de cada um; e protege relações intersubjetivas de reconhecimento mútuo ao 386
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requerer a solidariedade dos membros individuais de uma comunidade na qual foram socializados. Justiça diz respeito à igual liberdade de indivíduos únicos e capazes de autodeterminação, enquanto solidariedade diz respeito ao bem-estar de coassociados que estão, em última estância, vinculados a uma forma de vida intersubjetivamente compartilhada [...].24
As similaridades dessas duas formulações são impressionantes. Gilligan escreve sobre “igualdade e afeiçoamento”, da necessidade de “não agir injustamente em relação aos outros” e de “não virar as costas a alguém em necessidade”. Habermas escreve sobre “solidariedade”, sobre o interesse que cada um tem em proteger “relações intersubjetivas de reconhecimento mútuo”.25 Certamente, também há diferenças de ênfase. Para Habermas, a justiça é suavizada pelo “reconhecimento mútuo” (Anerkennung) entre os indivíduos do bem-estar de cada um; para Gilligan, justiça deve ser temperada pelo cuidado e por um reconhecimento mútuo de dependência e vulnerabilidade. Ainda assim, em ambas as formulações, os ideais de autonomia moral e justiça são rastreados até suas fundações em frágeis relações humanas e, dessa forma, “ajustados”.
Habermas, “Justice and Solidarity,” p. 47.
24 25
O tema do “reconhecimento mútuo” e o significado dessas relações de reconhecimento para a teoria moral estão no centro de Habilitationsschrift, “Kampf um Anerkennung. Ein Theorieprogram im Anschluss an Hegel und Mead”, de Axel Honneth, submetido a University of Frankfurt, 1990.
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O outro generalizado da perspectiva da justiça é sempre, também, um outro concreto, e podemos reconhecer essa concretude do outro ao relembrar essas relações humanas de dependência, cuidado, compartilhamento e mutualidade dentro das quais cada criança humana é socializada. Se a teoria feminista lembrou as moralidades universalistas da tradição kantiana da necessidade de compensar “a vulnerabilidade de criaturas vivas, que por meio da socialização são individuadas de tal modo que elas não podem nunca afirmar sua identidade apenas por si mesmas...”,26 então uma mudança significativa de paradigma está ocorrendo nessas teorias – uma mudança de paradigma que descrevo na introdução desta obra como um afastamento do “universalismo legislativo e substitucionalista para um universalismo interativo”. Gênero e diferença na controvérsia Gilligan A obra de Carol Gilligan desafia as teorias morais universalistas da tradição kantiana a expandir sua definição do domínio moral, as desafia a questionar seus ideais de self autônomo à luz das experiências das mulheres e crianças, e ainda as desafia a reconhecer que a teoria moral universalista também deve prestar atenção à voz dos “outros excluídos”. Nos últimos anos, o debate sobre as Habermas, “Justice and Solidarity,” p. 46.
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mulheres e a teoria moral também esteve no centro da preocupação geral da teoria feminista com a questão da “diferença”. Algumas das críticas mais veementes levantadas contra a obra de Gilligan foram expressas por feministas que entendem que Gilligan hipostasiou ilegitimamente a “voz” da mulher branca, heterossexual e profissional como a voz de todas as mulheres.27 Enquanto para as disciplinas acadêmicas estabelecidas, o próprio fato da “diferença” é uma questão subversiva, para a teoria feminista a existência da diferença, a explicação de sua construção ideológica e a explicação de sua constituição social e histórica é a tarefa central. A voz das mulheres é realmente uma voz “diferente”? É possível haver uma “voz da mulher” independentemente das diferenças de raça e classe, e abstraída do contexto social e histórico? Qual a origem da diferença, identificada por Gilligan, no raciocínio moral entre homens e mulheres? A análise de Gilligan da tendência das mulheres a raciocinar a partir de uma abordagem de “cuidado e responsabilidade” não repete meramente os estereótipos estabelecidos da feminilidade? Para desvendar as muitas questões envolvidas, irei distinguir entre a abordagem metodológica, a abordagem reducionista e a abordagem pós-moderna à questão da diferença das mulheres na teoria moral. V. Linda Nicholson para uma afirmação anterior sobre essa crítica: “Women, morality and history,” Social research, special issue on Women and morality, 50.3, Autumn 1983, p. 514-537.
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Aspectos metodológicos Em reflexões posteriores sobre seu trabalho, Gilligan observou ter deliberadamente chamado sua obra de “em uma voz diferente” e não de uma “voz das mulheres”.28 Ela não estava preocupada em identificar a “diferença de sexo no raciocínio moral”, como seus críticos sustentaram. Em vez disso, ela comparou a experiência das mulheres com a teoria psicológica – o subtítulo do seu livro –, a fim de mostrar que a exclusão das mulheres e de suas experiências das principais correntes de teorias da psicologia do desenvolvimento no campo da psicologia gerou vários modelos e hipóteses que não são nem “universais” nem “neutros”. “Gênero” não era uma categoria analítica e metodológica que orientava os primeiros trabalhos de Gilligan. Para ela, a identificação empírica da diferença de gênero parece ter precedido o uso do gênero como uma categoria explícita de pesquisa. Por “gênero”, quero dizer a construção diferenciada de seres humanos em tipos masculino e feminino. Gênero é uma categoria relacional. É uma categoria que busca explicar a construção de um certo tipo de diferença entre os seres humanos. Teóricas feministas, quer psicanalistas, Carol Gilligan, Ellen C. Dubois, Mary C. Dunlop, Catharine A. MacKinnon, Carrie J. Menkel-Neadow, “Feminist discourse, moral values and the law: a conversation”, The 1984 James McCormick Mitchell Lecture, Buffalo law review, 34.1, Winter 1985, principalmente p. 39.
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quer pós-modernas, quer liberais, quer críticas, concordam com o pressuposto de que a constituição das diferenças de gênero é um processo social e histórico, e que o gênero não é um fato natural. Além disso, e embora haja alguma discordância sobre essa questão, eu concordo com o trabalho recente de Londa Schiebinger, Judith Butler e Jane Flax29 de que a própria oposição entre sexo e gênero deve ser questionada. Não é como se a diferença sexual fosse meramente um fato anatômico. A construção e interpretação da diferença anatômica são em si mesmas um processo social e histórico. É um fato que o macho e a fêmea da espécie são diferentes, contudo, esse fato em si é também construído socialmente. Identidade sexual é um aspecto da identidade de gênero. Sexo e gênero não se relacionam entre si assim como natureza e cultura. A própria sexualidade é uma diferença construída culturalmente. É a ausência de gênero como uma categoria de pesquisa na obra de Gilligan que criou algumas das mais sérias desconfianças sobre suas conclusões. Linda Kerber observa essa questão em seus
V. Londa Schiebinger, “Skeletons in the closet: the first illustrations of the female skeleton in eighteenth-century anatomy,” The making of the modern body: sexuality and society in the nineteenth century, Catherine Gallagher and Thomas Laquer (ed.), University of California Press, Berkeley, 1987, p. 42-83; Judith Butler, “Variations on sex and gender: De Beauvoir, Wittig and Foucault”, Feminism as critique, Benhabib and Cornell (ed.), p. 128-143; Jane Flax, “Postmodernism and gender relations in feminist theory” Signs, 12.4, 1987, p. 621-643. Eu discuto certas divergências com Butler e Flax no próximo capítulo.
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comentários intitulados “Some cautionary words for historians” [“Algumas palavras de advertência para historiadores”].30 Uma voz diferente é parte de uma enorme redefinição feminista do vocabulário social. O que era antes descartado como fofoca pode agora ser apreciado como a manutenção da tradição oral; o que era antes desvalorizado como meros afazeres domésticos pode ser compreendido como reprodução social e uma enorme contribuição ao produto interno bruto. Gilligan é revigorante em sua insistência em que o comportamento antes menosprezado como vazio, indeciso e humilhantemente “efeminado” deva ser, ao contrário, valorizado como complexo, construtivo e humano. Ainda assim, esta historiadora, ao menos, é assombrada pelo argumento de que nós já ouvimos isso antes, paramentado em uma linguagem diferente. Algumas variantes dele são tão velhas como a própria civilização ocidental; central para as tradições de nossa cultura foi a atribuição da razão aos homens e do sentimento para as mulheres[...]. A tradição antiga tem sido reforçada, por muito tempo, pela explícita socialização que arroga poder público aos homens e relega as preocupações domésticas às mulheres, uma socialização por vezes defendida com argumentos de praticidade e conveniência, outras vezes com argumentos da biologia. 30
L. Kerber, “Some cautionary words for historians”, In: “On ‘In a different voice’: an interdisciplinary forum”, Signs, 11.2, Winter 1986, p. 304-310, principalmente p. 306; v. também Linda Nicholson “Women, morality and history”, p. 514-537, para preocupações similares sobre a obra de Gilligan.
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Embora agora Gilligan pareça acrescentar argumentos da psicologia, seu estudo pressupõe, por vezes, que o comportamento de gênero é biologicamente determinado e, outras vezes, que esse comportamento é também aprendido, ainda que isso ocorra em um estágio de socialização precedente ao que os analistas anteriores haviam admitido.
Kerber levanta uma boa questão. Entretanto, não é muito convincente que Gilligan tenha pensado que os estilos de raciocínio moral que ela identificou em sua pesquisa e a preferência das mulheres em raciocinar mais frequentemente em um estilo em vez de em outro refletisse alguma essência universal e ontológica chamada “feminilidade”. O problema da diferença de gênero é muito mais complicado em sua obra e, em última análise, repousa na a-historicidade do quadro dentro do qual Gilligan – pelo menos inicialmente – definiu a sua pesquisa. Essa teoria, na forma que foi desenvolvida por Piaget e Kohlberg, está preocupada com ontogenia, quer dizer, o desenvolvimento individual, e não com a filogenia, quer dizer, o desenvolvimento da espécie. Essa teoria gera um modelo para explicar como o desenvolvimento do juízo moral de uma criança e de um adolescente é um processo de amadurecimento, envolvendo uma interação entre os potenciais da mente humana em estruturar a experiência e o ambiente. Essa interação entre o self e o mundo cria certas incongruências e crises conforme a criança cresce. Essas incongruências e crises não podem 393
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ser resolvidas com o padrão de raciocínio moral anterior e requerem que se passe para um estágio de raciocínio moral “superior”. Kohlberg defende que os estágios de raciocínio moral “superiores” não são simplesmente estágios de desenvolvimento posteriores; eles também são mais “adequados” para a resolução dos dilemas morais, a partir de um ponto de vista cognitivo e filosófico. O objeto dessa teoria é, por definição, neutro em relação ao gênero; pois essas habilidades são consideradas como específicas da espécie. É claro, essa teoria tem um subtexto de gênero. Como o aprendizado moral resulta de certos tipos de atividades, poderíamos muito bem perguntar que atividades são essas para os meninos e para as meninas. Os jogos infantis são neutros em relação ao gênero? Lembremos da observação de Piaget de que, em seus jogos com bolinhas de gude, os meninos mostram um grau de precisão e de complexa atenção às regras e uma propensão para negociações regidas por regras que ele não encontra em jogos de meninas.31 Além disso, como sua teoria alega que o desenvolvimento de níveis “superiores” de raciocínio moral está atrelado às oportunidades do self em assumir diferentes papéis na vida social, podemos muito bem esperar que, em um universo generificado, os tipos de papéis que homens e mulheres assumirão serão diferentes.
Jean Piaget, The moral judgment of the child, trad. de Marjorie Gabain, Nova York, Free Press, 1965, p. 77.
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Carol Gilligan rejeitou a neutralidade em relação ao gênero do modelo de Kohlberg em um nível diferente. Em vez de se focar no subtexto de gênero das atividades e papéis sociais, ela focou-se nos padrões de personalidade. Gilligan contou com o trabalho de Nancy Chodorow em The reproduction of mothering. Em resumo, Chodorow sustenta que os processos de separação e individuação pelo quais cada criança humana deve passar ocorrem diferentemente para os membros do sexo masculino e feminino. No caso de um menino, a separação e a individuação envolvem o estabelecimento de uma identidade de gênero que é o oposto da principal figura cuidadora, a mulher, embora não necessariamente da mãe biológica. Tornar-se um menino significa tornar-se não apenas outro que não a mamãe, mas diferente dela; isso envolve reprimir aqueles aspectos de sua pessoa mais intimamente identificados com a mãe. Para meninas, tornar-se uma menina significa tornar-se diferente da mamãe, mas também parecida com ela. A identidade de gênero é estabelecida por volta da idade de dois anos e meio a três anos. Em uma sociedade patriarcal, baseada na depreciação e opressão das mulheres, a identidade de gênero caminha lado a lado com a internalização daquelas atitudes que também desvalorizam e desmerecem as mulheres. Gilligan e Chodorow concordam que as consequências desse desenvolvimento psicossexual da criança são certos padrões de personalidade entre os adultos da espécie. O membro do sexo 395
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masculino tem um senso dos limites do ego mais firmemente estabelecido; a distinção entre o self e o outro é mais rígida. Para os membros do sexo feminino, os limites entre o self e o outro são mais fluidos. As mulheres são mais predispostas a mostrar sentimentos de empatia e simpatia pelo outro. Cada um desses padrões de personalidade traz consigo, também, certas deformações. Membros do sexo masculino experimentam intimidade e formação de vínculos como uma ameaça a sua pessoa, enquanto membros do sexo feminino têm dificuldade de estabelecer um firme senso de identidade e individualidade diante das reivindicações dos outros. Esse modelo psicossexual, como sabemos agora, não é uma teoria que explica o surgimento da diferença de gênero; ele simplesmente nos fornece um esquema para a “reprodução” dessa diferença. Nesse modelo, a figura materna já é uma mulher; o pai está ausente durante os primeiros três anos da criança. Também se presume que o cuidado materno é socialmente desmerecido pelo contexto social, de forma que a criança do sexo masculino aprende a associar essa atividade com características e valores negativos, ou pelo menos com características e valores altamente ambivalentes. O modelo de Chodorow pressupõe a diferença de gênero em sua forma moderna característica; ele não explica sua constituição histórica e social. Esse modelo pressupõe o menosprezo patriarcal dos atributos do gênero feminino; ele explica sua reprodução, mas não sua origem histórica. Na medida em que Gilligan confiou nesse 396
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modelo, ela também não explicou a construção social do gênero. Por um lado, ela identificou a negligência das principais correntes da teoria psicológica em relação ao gênero, por outro, ela chamou atenção à persistência dessa negligência, dentro dessas teorias, como um subtexto permanente, mas não explícito. Linda Kerber está correta, então, ao afirmar que a diferença de gênero é deixada sem explicação na obra de Gilligan. Para essa tarefa, devemos sair da teoria moral e ir para uma teoria social das relações de gênero; devemos deixar para trás a teoria psicológica em favor de uma sociologia histórica do desenvolvimento e constituição do gênero. Gênero, como uma categoria analítica, subverte assim os limites estabelecidos entre as disciplinas. Objeções reducionistas Enquanto feministas e historiadores das mulheres, como Linda Kerber, criticam a obra de Carol Gilligan metodologicamente por negligenciar a historicidade de seus resultados e por ignorar os determinantes históricos da diferença das mulheres que ela identificou na teoria moral, outros argumentam que o tipo de “diferença” que Gilligan descreveu como sendo primeiramente, senão exclusivamente, feminina era opressiva. Claudia Card e Catharine MacKinnon expressaram a visão de que a moralidade do “cuidado
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e da responsabilidade” é uma versão da moralidade do escravo nietzschiana.32 Card afirma: O estudo dos valores das mulheres poderia se beneficiar de Nietzsche, cujos escritos sobre ética se relacionam diretamente com as consequências da dominação e da subordinação para o desenvolvimento do caráter e de ideais. Embora seu alvo fosse a ética cristã, suas ideias são aplicáveis aos valores das mulheres identificados recentemente.33
Seguindo Nietzsche, Card pleiteia uma consideração “do lado avesso da ética das mulheres”.34 Para Nietzsche, moralidade é uma V. Claudia Card, “Women’s voices and ethical ideals: must we mean what we say?” Ethics, 99.1, Oct. 1988, p. 125-136. A preocupação de Card com a forma em que uma ética do cuidado pode esconder ou silenciar os sentimentos de agressão ou manipulação entre as partes que são cuidadas, e a preocupação com o modo em que uma ética do cuidado, com sacrifícios demais, pode causar profundas distorções de personalidade – pensemos nas formas extremas de amor de mãe e solicitude maternos – são bem-vindas. Ainda assim, não é justo com Gilligan afirmar que ela idealiza a “abordagem do cuidado”. A própria Carol Gilligan chama atenção, em vários momentos, aos perigos da autoanulação e da abnegação aos quais as mulheres particularmente estão sujeitas, cf. In a different voice: psychological theory and women’s development, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1982, p. 64 et seq., 123 et seq. V. também a contribuição de Catharine A. MacKinnon a “Feminist discourse, moral values and the law: a conversation”, The 1984 James McCormick Mitchell Lecture, Buffalo law review, 34.1, Winter 1985, p. 25 et seq.
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Card, op. cit., p. 130.
33
Ibid., p. 135.
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sublimação do impulso vital do mais forte em dominar o mais fraco; as origens da moralidade são os controles internalizados, impostos ao mais forte pelo mais fraco, de tal modo que o mais fraco não seja prejudicado.35 MacKinnon não se volta para Nietzsche, mas sim para a teoria de luta de classes marxista. Assim como as “ideias dominantes” são as ideias das “classes dominantes”, as concepções morais dominantes são o resultado de um sistema de opressão de gênero e classe baseado na heterossexualidade compulsória. Na perspectiva de MacKinnon, Gilligan, em última análise, fez pouco mais que elevar ao status científico a imagem de “boa menina” que a cultura heterossexual tem das mulheres e cujo propósito é “domesticar” as mulheres ao retratá-las como “gentis, carinhosas e responsáveis”. Ela defende: Por outro lado, o que é exasperante sobre o livro (o que é uma coisa muita pesada de se dizer sobre um livro [quer dizer, Uma voz diferente – S.B.] que é tão ponderado, gracioso e delicado em seu toque emocional), e essa é uma irritação política, é que ele F. Nietzsche, The genealogy of morals, trad. Francis Golffing, Nova York, Doubleday, 1956, p. 170 et seq. É surpreendente que as feministas não exerçam mais cuidado ao apropriar-se das categorias nietzschianas, já que as categorias “naturalistas” de Nietzsche da diferença humana, como entre “fraco” e “forte”– sem mencionar sua real e profunda aversão às mulheres – são bastante incompatíveis com a premissa fundamental da teoria feminista de que a “diferença” – não apenas entre homens e mulheres, mas entre o “fraco” e o “forte”, entre o “judeu” e o “ariano” – não é natural, mas uma construção sociocultural.
35
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negligencia o nível explanatório. Ela também encontrou a voz da vítima – sim, mulheres são um grupo vitimizado. A articulação da voz da vítima é crucial porque as leis sobre a vitimização são tipicamente feitas por pessoas com poder, e vêm de uma perspectiva com poder [...]. Mas me perturba a possibilidade de as mulheres se identificarem com o que é um estereótipo feminino valorado positivamente. É o “feminino”.36
Essas apropriações feministas das perspectivas nietzschiana e marxista reduzem os problemas normativos da justiça e da moralidade em sociedades complexas a simples padrões de camuflagem de interesse e poder. Ambas as visões são, em última análise, profundamente antipolíticas: para Nietzsche, a visão final é a de uma utopia estética da sabedoria, em que um erudito sábio, Zaratustra, atinge um estado de autonomia para além da comunidade. Mas se, em vez de repetir os mestres pensadores do passado, nós aplicássemos a metodologia feminista à utopia moral final de Nietzsche, descobriríamos aqui mais uma vez uma versão do ego masculino autônomo – sem dúvida apresentado agora não como o severo legislador kantiano, mas como o herói artístico, poético e multifacetado, mas por demais masculino, – Zaratustra, “que é cordeiro
Gilligan et al., “Feminist discourse, moral values and the law: a conversation”, The 1984 James McCormick Mitchell Lecture, Buffalo law review, 34.1, Winter 1985, p. 73-74.
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e leão” ao mesmo tempo.37 Esse ideal arcaico do herói masculino, belo e sábio, dificilmente é o lugar a que o debate contemporâneo sobre mulheres e a teoria moral deve nos conduzir. O tratamento reducionista de Nietzsche em relação à moralidade, em seus primeiros escritos, está ligado à utopia estética de um homem belo que vive “para além do bem e do mal” em suas obras posteriores. A teoria marxista reducionista da moralidade, que vê a moralidade como sendo a mera expressão dos interesses das classes dominantes, por sua vez, é inseparável da utopia de uma sociedade de reconciliação total. Assim como todo conflito interpessoal e todo conflito por recursos escassos irão acabar com a eliminação do conflito de classe, também cessarão de existir a “diferença de gênero” com a eliminação do regime atual de gênero, ou, na linguagem de MacKinnon, com o fim do regime da “heterossexualidade compulsória”.38 O “domínio do homem sobre a Mark Warren usa a apropriada expressão de “conservadorismo neoaristocrático” para caracterizar a ideologia política de Nietzsche, mas distingue entre os insights de Nietzsche sobre relações de poder e suas opiniões políticas, v. Nietzsche and political thought, MIT Press, Cambridge, Mass., 1988, p. 3. Apesar dos elegantes e convincentes tratamentos dados ao pensamento político de Nietzsche, como o de Warren, permaneço cética a respeito de sua utilidade para a teoria feminista, e acredito que apropriações de Nietzsche pelas feministas geram mais problemas que insights, como também argumentarei contra Judith Butler, no próximo capítulo.
37
V. sua afirmação: “Dominação e submissão transformadas em sexo, transformadas em diferença de gênero, constituem o conteúdo social suprimido das definições de gênero de homens e mulheres” In: “Feminist discourse, moral values and the law: a conversation”, The 1984 James McCormick Mitchell Lecture, Buffalo law review, 34.1, Winter 1985, p. 27.
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mulher” será substituído pela “administração de coisas”. No caso de MacKinnon, então, a utopia não é a de um belo homem arcaico, mas a imagem de uma sociedade de perfeito poder, transparente e racionalmente regulada em sua totalidade. Se, entretanto, se aceita, como eu aceito, que nem o conflito interpessoal, nem a escassez econômica e nem as fontes da vulnerabilidade e necessidade humanas são suscetíveis de serem completamente eliminados, mesmo em uma sociedade mais justa, a teoria moral não pode ser rejeitada como se simplesmente representasse as ideias dominantes da heterossexualidade compulsória. Sempre haverá uma necessidade de regular as fontes da disputa e do conflito humano e de proteger os compromissos de uma existência humana compartilhada. Uma afirmação como a seguinte, que se origina em uma série de oposições dogmáticas – como entre moralidade e política, e entre liberalismo e radicalismo –, indica muito claramente que a compreensão de MacKinnon da política, como também da moralidade, tem mais em comum com as utopias autoritárias da política leninista do que com a tradição da teoria crítica marxista: Na minha opinião, adotar a abordagem das diferenças é adotar uma abordagem moral, ao passo que criticar a hierarquia é adotar uma abordagem política. Adotar uma perspectiva da diferença é também adotar uma perspectiva liberal (embora essa perspectiva, claro, inclua também um conservadorismo também), e adotar a perspectiva de que nós estamos
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lidando com uma hierarquia é adotar uma abordagem radical. Eu também penso que fazer questões de gênero virarem a chamada diferença de gênero é, em última análise, adotar uma perspectiva masculina. Portanto, eu chamo de masculinista a abordagem das diferenças. A posição de que o gênero é, primeiramente, uma hierarquia política de poder é, em minha opinião, uma posição feminista.39
O lado avesso dessa negação da política é uma política autoritária que porá fim a toda diferença, controvérsia, conflito e violência entre os seres humanos.40 Relutâncias pós-modernas Claudia Card e Catharine MacKinnon prescindiriam do ideal de autonomia e talvez até mesmo de toda moralidade. Feministas pós-modernas, em contrapartida, se esforçam para desenvolver um conceito de self “descentrado” e “fraturado”, no lugar do self “conectado” ou “relacional” que elas creem ser privilegiado na obra de Gilligan. Em “Feminist discourse, moral values and the law: a conversation”, p. 21-22.
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Para uma análise das visões, frequentemente contraditórias, do político na obra de Marx, e na tradição marxista, v. Jean Cohen, Class and civil society: the limits of Marxian critical theory, University of Massachusetts Press, Amherst, 1982; Dick Howard, The Marxian Legacy, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1988; Seyla Benhabib, Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory, Nova York, Columbia University Press, 1986, parte 1.
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Jane Flax e Iris Young, inspiradas pelas críticas pós-modernas ao “self identitário”, desafiaram o self “relacional”. Elas argumentam que a tradição da filosofia ocidental sempre priorizou identidade em detrimento da diferença, unidade em detrimento da multiplicidade, permanência em detrimento da mudança. O sujeito do discurso filosófico ocidental é constituído ao preço de reprimir a diferença, excluir a alteridade [otherness] e desmerecer a heterogeneidade. De Platão a Kant, passando por Descartes, o self é um substrato unitário e idêntico; a razão reina sobre as paixões, o “eu” reina sobre a vontade, a alteridade precisa ser suprimida. Young argumenta que a perspectiva do self conectado e empático pressupõe um estado em que as pessoas deixam de ser opacas, deixam de ser o outro, deixam de ser não compreendidas e, em vez disso, fundem-se, tornam-se mutuamente compassivas, compreendendo umas às outras como compreendem a si mesmas. Esse ideal de uma subjetividade compartilhada ou da transparência dos sujeitos uns em relação aos outros nega a diferença no sentido de uma assimetria básica entre os sujeitos.41
Não é só a transparência intersubjetiva pressuposta que é repreensível, mas igualmente repreensível é a ficção do sujeito como um centro unificado do desejo, 41
Iris Young, “The ideal of community and the politics of difference”, Social theory and practice, 12.1, Spring 1986, p. 10.
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porque o sujeito não é uma unidade, ele não pode estar presente para si mesmo, conhecer a si mesmo. Eu não sei sempre o que eu quero dizer, o que eu preciso, o que eu quero ou desejo, porque nada disso surge de alguma fonte no ego [...] Consequentemente, qualquer sujeito individual é uma disputa de diferenças que não pode ser compreendida [...] o sujeito é (uma) presença heterogênea.42
Young conclui que o conceito cartesiano/kantiano do self unitário, como também a teoria feminista do self relacional, perpetram uma “metafísica da presença” e uma “lógica da identidade”. A posição de Young é que a visão de Gilligan sobre o self, longe de desafiar as perspectivas tradicionais de autonomia e selfhood na tradição filosófica ocidental, retém suas premissas fundamentais ao pressupor que os sujeitos possam verdadeiramente entender uns aos outros e que o indivíduo seja um coerente sujeito de desejo. Mas a reivindicação de Young de que a responsabilidade e o cuidado mútuos devem pressupor uma “transparência” de entendimento é exagerada. Esse entendimento perfeito, ou convergência de espíritos, poderia talvez ser uma crítica justa à perspectiva kantiana dos selves numênicos, mas nem o meu conceito de “outro concreto”, que Young também critica, nem a perspectiva de Arendt da “mentalidade alargada” precisam pressupor que exista sempre um estado 42
Iris Young, “The ideal of community and the politics of difference,” Social theory and practice, 12.1, Spring 1986, p. 11.
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de perfeito entendimento. Young não presta atenção à distinção entre “consenso” e “chegar a um entendimento” apresentada acima. É certo que teorias racionalistas do Esclarecimento e, em particular, a teoria da democracia de Rousseau baseavam-se na ilusão de que um consenso perfeito era possível; mas o modelo dialógico de ética, defendido neste livro, visa um contínuo processo de conversação em que a compreensão e a incompreensão, o acordo como também o desacordo estão entrelaçados e sempre operando. O próprio compromisso com a conversação como meio pelo qual a mentalidade alargada deve ser atingida sugere a infinita possibilidade de revisão e indeterminidade de significado. A objeção de que o self visto como um centro unificado do desejo é uma ficção novamente exagera a questão. Young parece celebrar heterogeneidade, opacidade e diferença às custas de diminuir a importância de um núcleo coerente de identidade individual. Nem toda diferença empodera, nem toda heterogeneidade pode ser celebrada; nem toda opacidade leva a uma sensação de florescimento de si. Não precisamos pensar em “identidades coerentes” no mesmo sentido da uniformidade dos objetos físicos. Podemos pensar em coerência como uma unidade narrativa. O que faz uma história ser unitária pode ser o ponto de vista daquele que a conta, o ponto de vista daquele que a escuta ou alguma interação entre o significado transmitido e o significado recebido. A identidade pessoal não é diferente. Como Hannah Arendt enfatizou: desde 406
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que nascemos estamos imersos em “uma teia de narrativas” da qual somos tanto o autor quanto o objeto. O self é tanto o contador de contos como aquele sobre quem os contos são narrados. O indivíduo com um sentido coerente de identidade do self é aquele que consegue integrar esses contos e perspectivas em uma história de vida que tenha significado. Quando a história de uma vida só pode ser contada a partir da perspectiva dos outros, então o self é uma vítima e um sofredor que perdeu o controle de sua existência. Quando a história de uma vida só pode ser contada do ponto de vista do indivíduo, então um self tal como esse é um narcisista e um solitário que pode ter alcançado a autonomia sem solidariedade. Um sentido coerente do self é atingido com a integração bem-sucedida de autonomia e solidariedade, ou com a correta mistura de justiça e cuidado. Apenas justiça e autonomia não podem sustentar e nutrir aquela teia de narrativas em que o sentido de selfhood dos seres humanos se desenvolve; mas solidariedade e cuidado sozinhos não podem elevar o self ao nível de ser o sujeito e também o autor de uma história de vida coerente. Com essas considerações nós atingimos algumas questões fundamentais sobre o núcleo normativo do feminismo contemporâneo, a saber, se o feminismo deve comprometer-se com a reconstrução ou desconstrução da tradição filosófica ocidental. O que o pós-modernismo e uma desconstrução da tradição prometem ao feminismo? Feminismo e pós-modernismo são aliados? Quais são seus pontos em comum e 407
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quais as tensões entre eles? O próximo capítulo analisará a aliança contemporânea entre feminismo e pós-modernismo. Uma versão anterior, e muito mais curta, deste artigo apareceu em “The debate over women and moral theory revisited”, em Feministische Philosophie, Herta Nagl-Docekal (ed.), Oldenbourg, Vienna/Munich, 1990, p. 191-201.
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7.
O feminismo e a questão do pós-modernismo Talvez nenhum outro texto tenha marcado tanto a discussão contemporânea sobre os complexos fenômenos culturais, intelectuais, artísticos, sociais e políticos que passamos a designar como “pós-modernismo” do que o breve tratado de Lyotard sobre A condição pós-moderna.1 Escrito a pedido do presidente do Conseil des Universités do governo do Québec como um relato sobre o saber “nas sociedades mais desenvolvidas”, ou como uma sociologia do saber no capitalismo tardio, o tratado de Lyotard rapidamente se tornou o principal texto para as discussões filosóficas e literárias do pós-modernismo.2 Também para os debates feministas sobre o
1
Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, trad. de Ricardo Corrêa Barbosa, 15 ed., Rio de Janeiro, José Olympio, [1979] 2013. As referências de páginas entre parênteses neste capítulo são relativas a essa obra. Ver o prefácio de Frederic Jameson a The postmodern condition: a report on knowledge, trad. de Geoff Bennington e Brian Massumi, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984, p. vii-xxiv; Richard Rorty, “Habermas and Lyotard on postmodernity”, Praxis international, v. 4, n. 1, p. 32-44, 1984; Andreas Huyssen and Klaus Scherpe (ed.), Postmoderne: Zeichen eines kulturellen Wandels, Hamburg, Reinbeck, 1986; Albrecht Wellmer, Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne: Vernunftkritik Nach Adorno, Frankfurt, Suhrkamp, 1988.
2
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pós-modernismo, a apresentação e a conceitualização de Lyotard da “problemática pós-moderna” tem sido crucial.3 Este capítulo vai examinar a aliança contemporânea entre feminismo e pós-modernismo. Vistos do interior da cultura intelectual e acadêmica das democracias capitalistas ocidentais, feminismo e pós-modernismo emergiram como duas correntes proeminentes em nossa época e ambas são, cada uma a seu modo, profundamente críticas aos princípios e metanarrativas do Esclarecimento ocidental e da modernidade – embora não esteja de modo algum claro o que exatamente constitui esse Esclarecimento e essa modernidade e quais são os princípios e metanarrativas aos quais temos de dizer adeus. Feminismo e pós-modernismo são com frequência mencionados como se fossem aliados, porém algumas caracterizações do pós-modernismo deveriam antes nos fazer perguntar: “feminismo ou pós-modernismo?” Não estão em questão, por certo, apenas minúcias terminológicas. Feminismo e pós-modernismo não são categorias meramente descritivas: são termos constitutivos e valorativos que informam e ajudam a definir as próprias práticas que procuram descrever. Como categorias do presente, projetam modos de pensar sobre o futuro e de valorar o passado. Aqui, vou considerar a complexa relação entre feminismo e pós-modernismo tendo em vista uma questão em Ver a excelente introdução de Linda Nicholson em Feminism/postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 1-16.
3
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particular: são as premissas metafilosóficas das posições referidas como pós-modernismo compatíveis com o conteúdo normativo do feminismo, entendido não apenas como uma posição teórica, mas também como uma teoria da luta das mulheres por emancipação? A “condição pós-moderna” segundo Lyotard Para começar, retomemos as características centrais da definição da “condição pós-moderna” oferecida por Lyotard.4 “Vou usar o termo moderno para designar qualquer ciência que se legitime ao fazer referência a um metadiscurso que recorre explicitamente a alguma grande narrativa,” escreve Lyotard, “como a dialética do espírito, a hermenêutica do significado, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, ou a criação da riqueza” (p. xv. [trad. mod.]). No contexto atual, Lyotard enxerga a emergência de novas opções cognitivas e sociais que haviam sido ofuscadas pelos “imperativos modernos”. Ele define a nova opção cognitiva de maneiras diferentes, como “paralogia” (p. 111 et seq.), “agonística” (p. 29) e “reconhecimento da natureza heteromorfa dos jogos de linguagem” (p. 118 [trad. mod.]). A nova opção social é descrita como Parte dessa seção, “A ‘condição pós-moderna’ segundo Lyotard”, foi anteriormente publicada em meu ensaio “Epistemologies of postmodernism: a rejoinder to Jean-François Lyotard”, New German Critique, n. 22, p. 103-126, 1984; reimpresso em Linda Nicholson (ed.), Feminism and postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 107-133.
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um “contrato temporário” que suplanta instituições permanentes nos âmbitos profissional, emocional, sexual, cultural, familiar e internacional, assim como nos assuntos políticos (p. 119). Lyotard apresenta essas opções cognitivas e sociais como alternativas que são autênticas para a experiência das sociedades pós-industriais e para o papel do saber dentro dessas sociedades. A influência decisiva da episteme moderna sobre a consciência contemporânea, contudo, tende a canalizar nossa imaginação cognitiva e nossa imaginação prática em duas direções. Na primeira, a sociedade é concebida como um todo funcional (p. 20), e a “performatividade”* é considerada como a condição do saber que lhe é adequada. Performatividade é a visão segundo a qual saber é poder, de que a ciência moderna deve ser legitimada mediante o aumento que possibilita na capacidade tecnológica, na eficácia, no controle e nos outputs (p. 84). O ideal dos teóricos da performatividade, de Hobbes a Luhmann, é reduzir a fragilidade intrínseca à legitimação do poder ao minimizar o risco, a imprevisibilidade e a complexidade. Não apenas saber é poder, mas o poder gera acesso ao saber, preparando para si mesmo uma base de legitimidade que se perpetua sozinha.
*
[N.T.] A tradução brasileira verte performativité (em francês) para “desempenho”. [A.C.L.]
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O poder […] legitima a ciência e o direito pela sua eficácia, e legitima essa eficácia com base na ciência e no direito […]. Assim, o crescimento do poder e sua autolegitimação passam atualmente pelo armazenamento e acessibilidade de dados e pela operacionalidade das informações. (p. 84).
A segunda alternativa é considerar a sociedade dividida em duas, como uma totalidade cindida, alienada, que carece de reunificação. A visão epistêmica correspondente é “crítica”, por oposição ao saber “funcional”. O saber crítico está a serviço do sujeito; seu objetivo não é legitimar o poder, mas possibilitar o empoderamento (p. 22 et seq.). O saber crítico não procura aumentar a eficácia do aparato, mas promover a autoformação da humanidade; não procura reduzir a complexidade, mas criar um mundo no qual uma humanidade reconciliada se reconheça a si mesma. Para Lyotard, o representante contemporâneo deste ideal do século XIX, nascido da imaginação de um pensador alemão, Wilhelm von Humboldt, é Jürgen Habermas (p. 59). Onde era o ideal de Humboldt de que a filosofia restaurasse a unidade do aprendizado por meio do desenvolvimento de um jogo de linguagem que reunisse todas as ciências como momentos do vir-a-ser do espírito (p. 60), é o propósito de Habermas formular um metadiscurso [sobre regras e prescrições] que sejam “válidas universalmente para todos os jogos de linguagem” (p. 118). O objetivo desse discurso não é tanto a Bildung da nação alemã, como foi para 413
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Humboldt, mas a conquista de consenso, transparência e reconciliação. Lyotard comenta: A causa é boa, mas os argumentos não. O consenso tornou-se um valor obsoleto e suspeito […]. É preciso […] chegar a uma ideia e a uma prática de justiça que não estejam relacionadas à do consenso. (p. 118. [trad. mod.]).
Será que Lyotard convence? É viável seu projeto de formular os contornos de uma episteme pós-moderna que esteja além do dualismo dos saberes funcional e crítico, além da razão instrumental e da teoria crítica? Quais são as opções epistemológicas abertas pelo ocaso da episteme moderna da representação? Com vistas a assinalar o momento epistemológico que Lyotard caracteriza como “pós-moderno” e situar a teoria feminista no horizonte mais amplo de transformações que ocorreram no projeto da filosofia moderna, eu gostaria, primeiro, de examinar o “ocaso da episteme da representação”. Feminismo e pós-modernismo são movimentos teóricos que se desenvolveram a partir do ocaso dessa episteme moderna. A depender do modo como conceitualizamos os movimentos intelectuais e as correntes que levaram a essas transformações, diferentes opções epistêmicas e visões normativas tornam-se disponíveis para nós.
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O fim da episteme da representação A filosofia moderna teve início com a perda do mundo.5 A decisão do sujeito autônomo burguês de não assumir como verdadeira qualquer coisa ou autoridade cujo conteúdo e estruturas não tivessem sido submetidos a um exame rigoroso e que não tivesse passado pelo teste de “clareza e distinção” teve início com um afastamento do mundo. Para Descartes, no século XVII, ainda era possível descrever esse afastamento como um gesto ético e religioso, recorrendo à linguagem do estoicismo e da filosofia jesuíta espanhola, fosse como a “suspensão” do envolvimento do self com o mundo (estoicismo), fosse como o afastamento da alma para uma comunhão consigo mesma (ensinamento de meditação jesuíta). Esses eram estágios no caminho para um equilíbrio com o cosmos, necessários para a purgação da alma na preparação para a verdade de Deus. O desenvolvimento posterior da epistemologia moderna logrou reprimir Cf. a afirmação de Hannah Arendt: “A filosofia de Descartes é assombrada por dois pesadelos que, em certo sentido, vieram a ser os pesadelos de toda a era moderna. Não porque esta foi muito profundamente influenciada pela filosofia cartesiana, mas porque sua emergência foi quase inescapável depois que as verdadeiras implicações da visão de mundo moderna foram compreendidas. Esses pesadelos são muito simples e muito bem conhecidos. Em um deles, a realidade – tanto a realidade do mundo como a da vida humana – é colocada em dúvida […]. O outro diz respeito […] à impossibilidade de os homens confiarem em seus sentidos e em sua razão” (A condição humana, trad. de Roberto Raposo, rev. de Adriano Correia, 12 ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, VI:38, p. 343. [trad. mod.]).
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este momento ético e cultural até que emergissem as reduções típicas sobre as quais repousava a episteme clássica da representação. O self corpóreo e ético-moral foi reduzido a um puro sujeito do conhecimento, à consciência ou à mente. O objeto do conhecimento foi reduzido a “questões de fato” e “relações de ideias”, ou a “sensações” e “conceitos”. A questão da epistemologia clássica, de Descartes a Hume, de Locke a Kant, era como fazer com que a ordem de representações na consciência fosse congruente com a ordem de representações exteriores ao self. Preso no cárcere de sua própria consciência, o sujeito epistemológico moderno tentou recuperar o mundo já bem perdido.6 As opções não eram muitas: ou se reassegurava que o mundo seria acessado pela evidência direta e imediata dos sentidos (empirismo), ou se insistia que a racionalidade do criador ou a harmonia entre mente e natureza garantiriam a correspondência entre as duas ordens de representações (racionalismo). Empirista ou racionalista, as epistemologias modernas concordavam que a tarefa do conhecimento, qualquer que fosse a sua origem, era construir uma representação adequada das coisas. 6
Empresto essa expressão do conhecido artigo de Richard Rorty, “The world well lost”, que argumenta que a conclusão a ser extraída das disputas epistemológicas contemporâneas sobre quadros conceituais é que: “A noção de ‘mundo’ correlata à noção de ‘quadro de referências conceitual’ é tão somente a noção kantiana de uma coisa em si”. Artigo originalmente publicado em Journal of philosophy, v. 22; e reimpresso em Consequences of pragmatism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982, p. 16.
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Ao conhecer, a mente tinha de “espelhar” a natureza.7 Como Charles Taylor assinala: Quando afirmamos que ter X é ter uma representação (correta) de X, uma das coisas que estabelecemos é uma nítida separação entre, por um lado, ideias, pensamentos, descrições etc., e, por outro lado, aquilo de que tratam essas ideias etc.8
Com efeito, a epistemologia moderna opera com uma distinção tripla: a ordem de representações na nossa consciência (ideias e sensações); os signos por meio dos quais essas ordenações “privadas” eram feitas públicas, a saber, as palavras; e aquilo do que nossas representações eram representações e ao qual elas se referiam.9 Nessa tradição, definia-se significado como “designação”, o significado de uma palavra era o que ela designava, já a função Richard Rorty, Philosophy and the mirror of nature, Princeton: Princeton University Press, 1979, p. 131 et seq.
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Charles Taylor, “Theories of meaning”, Daves Hickes Lecture, Proceedings of the British Academy, Oxford, Oxford University Press, 1982, p. 284.
9
Thomas Hobbes, Leviatã, trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 3 ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 [1651], cap. 4. Cf. Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, 8. ed., trad. de Salma Tannus Muchail, São Paulo: Martins Fontes, 1999: “Em seu estado simples de ideia ou de imagem, ou de percepção associada com ou substituída por outra, o elemento significante não é um signo. Ele só se torna signo sob a condição de manifestar, além disso, a relação que o liga àquilo que significa. É preciso que ele represente, mas que essa representação, por sua vez, seja representada nele” (p. 87) [trad. mod. – A.C.L.].
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primária da linguagem era denotativa, isto é, de nos informar sobre estados de coisas objetivamente existentes. A episteme clássica da representação pressupunha uma concepção de espectador para o self cognoscente, uma teoria designativa do significado, e uma teoria denotativa da linguagem. Já no século XIX foram desenvolvidas três direções de crítica à epistemologia clássica, as quais acabaram por conduzir à sua recusa. De modo bastante resumido, a primeira pode ser descrita como a crítica ao sujeito epistêmico moderno, a segunda como a crítica ao objeto epistêmico moderno, e a terceira como a crítica ao conceito moderno de signo. A crítica à concepção cartesiana de sujeito como espectador tem início com o idealismo alemão e prossegue com Marx e Freud até Horkheimer, em 1937, e Habermas, em Conhecimento e interesse.10 Essa tradição substitui o modelo de 10
A transição da “consciência” para a “consciência-de-si”, da representação para o desejo, no capítulo 3 da Fenomenologia do espírito, de Hegel, também contém uma crítica à concepção do sujeito cognoscente como espectador. Hegel assinala que um ponto de vista epistemológico confinado à concepção de self como espectador não pode resolver as questões que coloca; de modo mais importante, não pode explicar a gênese e o vir-a-ser de um objeto do conhecimento. O mito do dado no conhecimento só pode ser destruído por um self cognoscente que é também um self atuante (Hegel, Fenomenologia do espírito, trad. de Paulo Meneses, 9. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, §166-177, p. 135-142). Cf. tb.: “Ele não vê como o mundo sensível que o cerca não é dado diretamente por toda a eternidade, sempre igual a si, mas é o produto da indústria e do estado da sociedade, e precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma sucessão de gerações”, em Karl Marx e Friedrich Engels, The German ideology, ed. e intr. de R. Pascal, Nova York,
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self como espectador por uma visão de uma humanidade ativa, que produz, que fabrica e que cria as condições de objetividade ao moldar a natureza por meio de sua própria atividade histórica. As tradições hegeliana e marxista também demonstram que o ego cartesiano não é uma entidade transparente a si e que o self epistêmico não pode conquistar autonomia plena enquanto a origem histórica e a constituição social das ideias “claras e distintas” que contempla permanecem um mistério. Nesse ponto, essa crítica dá as mãos para a crítica freudiana, que demonstra, da mesma maneira, que o self não é “transparente” a si, pois não é “senhor em sua própria casa” (Herr im eigenen Haus). O self é controlado por desejos, por necessidades e por forças cujos efeitos sobre si formam tanto os conteúdos de suas ideias claras e distintas como a sua capacidade de organizá-las. A crítica histórica e psicanalítica ao ego cartesiano não considera a tarefa reflexiva como o afastamento do mundo ou como um acesso a clareza e distinção, mas como o tornar-se consciente de todas as forças inconscientes da história e da sociedade que moldaram a psique humana. Embora International, 1969, p. 35. Max Horkheimer, “Traditional and critical theory”, In: Critical theory, trad. de M. J. O’Connell et al., Nova York, Herder and Herder, 1972, p. 188-244. Jürgen Habermas, Knowledge and human interest, trad. de J. Shapiro, Boston, Beacon, 1972, p. 1-65. Sigmund Freud, “A difficulty in the path of psychoanalysis”, Standard edition, Londres, Hogarth, 1953, v. 17, p. 137-144. Para essa leitura de Freud, sou tributária de Paul Ricoeur, Freud and philosophy: an essay on interpretation, trad. de Denis Savage, New Haven, Yale University Press, 1977, p. 419-459.
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sejam geradas pelo sujeito, essas forças necessariamente escapam a sua memória, seu controle e sua conduta. O objetivo da reflexão é a emancipação da escravidão autoimposta. A segunda linha de crítica pode ser mais diretamente associada aos nomes de Nietzsche, Heidegger, e de Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. A episteme moderna é entendida como uma episteme da dominação. Para Nietzsche, a ciência moderna universaliza a dúvida cartesiana. O conhecimento moderno divide o mundo em domínio da aparência, por um lado, e domínio da essência ou das coisas em si, por outro. Essa visão dualista é internalizada pelo sujeito do conhecimento que, por sua vez, é cindido entre corpo e mente, os sentidos e a faculdade conceitual.11 Nietzsche não tem dificuldade em mostrar que, nesse sentido, a ciência moderna significa o triunfo do platonismo. Heidegger recua o erro subjacente à episteme da representação moderna para muito antes de suas origens platônicas, para uma concepção de ser como presença, como o que está acessível e presente à consciência do sujeito.12 Essa concepção de ser como “presença-para” [presence-to] reduz o múltiplo [manyness] dos fenômenos [appearences] ao Friedrich Nietzsche, “The genealogy of morals”, In: The birth of tragedy and the genealogy of morals, trad. de F. Golffing, Nova York, Doubleday, 1958, p. 289 et seq.
11
12
Martin Heidegger, Being and time, trad. de John Macquarrie e Edward Robinson, Nova York, Harper and Row, 1962, p. 47 et seq. [Introdução, cap. 2, §6]; id., “Die Frage nach der Technik?”, Vorträge un Aufsätze, 4. ed. Stuttgart, Gunther Neske, 1974, p. 27 et seq.
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apresentá-los como “coisas” acessíveis e à disposição de uma consciência soberana. Ao reduzir os fenômenos ao que está presente para o self soberano, a consciência adquire a opção de controlá-las. Na Dialética do Esclarecimento, em um espírito bastante semelhante ao de Heidegger, Adorno e Horkheimer argumentam que o “conceito”, a própria unidade do pensamento na tradição ocidental, impõe homogeneidade e identidade à heterogeneidade do material. Essa pulsão para a identidade do pensamento conceitual culmina no triunfo da técnica da ratio ocidental, a qual só pode conhecer as coisas à medida que as domina. “O esclarecimento se comporta com as coisas como o ditador se comporta com os homens”.13 A terceira tradição de crítica foi inaugurada por Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce e ganhou contornos mais definidos no nosso século com Frege e Wittgenstein. Esses autores argumentam que é impossível compreender significado [meaning], referência e linguagem em geral quando prevalece a visão dos signos linguísticos como “marcas privadas”.14 Em vez disso, o ponto de partida é o caráter público e compartilhado da linguagem. Tanto Peirce como Saussure assinalam que não há qualquer relação
13
Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialética do Esclarecimento, trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar, 1985 [1947], p. 21.
Cf. a crítica de Wittgeinstein à teoria da “nomeação” do significado e da impossibilidade de considerar a linguagem como um jogo privado em Philosophical investigations, trad. de G. E. M. Anscombe, Nova York, MacMillan, 1965, p. 27-32, 38, 39, 180, 199 et seq.
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natural entre um som, a palavra que o representa em uma língua, e o conteúdo ao qual se refere. Para Peirce, a relação do signo, do qual as palavras não são senão espécies, com o significado [signified] é mediada pelo intérprete.15 Para Saussure, é no interior de um sistema de relações diferenciais que determinados sons são arbitrariamente congelados para representar palavras.16 A língua [language] é aquele conjunto sedimentado de relações que permanece de modo ideal por detrás de um conjunto de enunciações chamadas “parole” [fala]. Esse movimento na análise da linguagem do privado para o público, da consciência para o signo, da palavra individual para um sistema de relações entre signos linguísticos, é acompanhado por Frege e Wittgenstein na medida em que também argumentam que a unidade de referência não é a palavra, mas a sentença (Frege), e que o significado só pode ser entendido ao se analisar os múltiplos contextos de uso (Wittgenstein). O momento epistemológico no qual Lyotard opera é caracterizado pelo triunfo dessa terceira tradição. Seja na filosofia analítica, seja na hermenêutica contemporânea, seja no pós-estruturalismo francês, Charles Sanders Peirce, “Some consequences of four incapacities”, In: Selected writings, ed., intr. e notas de Philip Wiener, Nova York, Dover, 1966, p. 53-54; Karl-Otto Apel, “From Kant to Peirce: The semiotical transformation of transcendental logic”, In: Toward a transformation of philosophy, trad. de G. Adey e D. Frisby, Londres, Routledge, 1980, p. 77-93.
15
Ferdinand de Saussure, Course in general linguistics, Bally e Sechehaye (ed.), trad. e intr. de Wade Baskin, Nova York, McGraw Hill, 1959, p. 67 et seq.
16
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o paradigma da linguagem substituiu o paradigma da consciência. Essa alteração significa que o foco não mais está sobre o sujeito epistêmico ou sobre os conteúdos privados de sua consciência, mas sobre as atividades públicas e de significação de um conjunto de sujeitos. Não houve apenas uma alteração no tamanho da unidade epistêmica interrogada – de ideia, sensação e conceito para o caráter tripartite de signo como significante, significado e intérprete (Peirce), ou para língua e parole (Sausurre), ou para jogos de linguagem como “formas de vida” (Wittgeinstein). A identidade do sujeito epistêmico também mudou: o portador do signo não pode ser um self isolado – não existe linguagem privada, como Wittgenstein observou –, o sujeito epistêmico ou é a comunidade de selves cuja identidade se estende até seu horizonte de interpretações (Gadamer) ou é uma comunidade social de usuários efetivos da linguagem (Wittgenstein). Esse alargamento do sujeito epistêmico relevante é uma opção. Uma segunda opção, seguida pelo estruturalismo e pelo pós-estruturalismo franceses, é negar que seja preciso recorrer a um sujeito epistêmico para que se compreenda o objeto epistêmico. O sujeito é substituído por um sistema de estruturas, oposições, e différances, que, para serem inteligíveis, não precisam de modo algum serem vistas como produtos de uma subjetividade viva.17 Ver Manfred Frank, Was ist Neostrukturalismus? Frankfurt, Suhrkamp, 1984, p. 71 et seq., 83 et seq., 259. Pierre Bourdieu e J. C. Passeron, “Sociology and philosophy in France since 1945: death and resurrection of a philosophy without the subject”, Social Research, v. 34, n. 1, p. 162-212, Spring 1983.
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Lyotard pretende nos convencer que a destruição da episteme da representação permite uma única opção, a saber, o reconhecimento da irreconciliabilidade e da incomensurabilidade dos jogos de linguagem e a aceitação de que só podem ser formulados critérios de validade locais e contextualmente específicos. Noutros termos, é preciso aceitar uma “agonística” da linguagem: “falar é lutar, no sentido de jogar, e atos de fala provém de uma agonística geral” (p. 10). Esta opção cognitiva produz um “politeísmo de valores” e uma política da justiça para além do consenso, e é caracterizada de modo impreciso por Lyotard como o “contrato temporal”. A alteração na filosofia contemporânea da consciência para a linguagem, da ordem de representações para os atos de fala, da denotação para a performance não precisa conduzir a um “politeísmo de valores” e a uma “agonística” da linguagem. Na introdução deste livro e ao longo dos capítulos anteriores, investiguei outras opções epistêmicas e normativas possibilitadas pelo ocaso da episteme da representação e pela transição de um conceito de racionalidade “substantivista” para um conceito de racionalidade “procedimental” e “interativo”. Enquanto o ocaso da episteme moderna sugere para Lyotard uma “agonística da linguagem” e um “politeísmo de valores”, eu venho argumentando em favor de uma concepção pragmática social de linguagem, entendida como uma forma
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de discurso em ação [speech in action] entre dois seres humanos;18 ao “politeísmo de valores”, eu contrapus não um “monoteísmo”, mas a possibilidade de uma conversação ética razoável e em aberto tanto sobre questões de justiça como sobre questões de boa vida. Para colocar essa complexa disputa epistemológica em uma formulação simples, pode-se dizer: como Dostoiévski e Nietzsche antes deles, os pós-modernos parecem dizer que “Deus está morto; tudo é permitido”. No caso deles, a frase seria: “As garantias transcendentais da verdade estão mortas; na luta agonística dos jogos de linguagem não há comensurabilidade; não há qualquer critério de verdade que 18
Na versão mais longa de meu artigo “Epistemologies of postmodernism”, procurei mostrar que uma das diferenças cruciais entre uma “agonística” e uma “pragmática social” da linguagem é a seguinte: a abordagem agonista trata todas as pretensões de validade como “efeitos de poder” – ou a capacidade do falante de conseguir com que o ouvinte faça algo a despeito da orientação do ouvinte em relação ao significado do que se pede que ela ou ele faça –, já para a pragmática social, a linguagem só pode funcionar para coordenar a ação de atores sociais porque esses atores também podem se orientar de modo significativo para as pretensões expressadas em atos de fala. A fusão feita por Lyotard na distinção entre os atos “ilocucionários” e “perlocucionários” da teoria de Austin é um indicativo desse problema. Ver Seyla Benhabib, “Epistemologies of postmodernism: a rejoinder to Jean-François Lyotard”, New German Critique, n. 22, p. 113-116 e nota 25. Ver também Karl-Otto Apel, “Sprechakttheorie und transzendentale Sprachpragmatik zur Frage ethischer Normen”, In: Karl-Otto Apel (ed.), Sprachpragmatik und Philosophie. Frankfurt: Suhrkamp, 1976, p. 10-81; Jürgen Habermas, “Was heißt Universalpragmatik?”, In: Karl-Otto Apel (ed.), Sprachpragmatik und Philosophie, op. cit., p. 184-273, traduzido por Thomas McCarthy como “What is universal pragmatics?”, In: Jürgen Habermas, Communication and the evolution of society, Boston, Beacon, 1979, p. 1-69.
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transcenda os discursos locais, há apenas a interminável luta de narrativas locais que rivalizam entre si em busca de legitimação”.19 A elaboração do saber narrativo feita por Lyotard cria mais dificuldades epistemológicas do que resolve. O saber narrativo, longe de ser uma alternativa ao saber científico moderno, é em geral descrito como se fosse um saber “pré-moderno”, um modo de pensamento perdido historicamente (p. 37). Ainda assim, o saber narrativo também é entendido como o “outro” do saber discursivo – não seu passado histórico, mas seu outro contemporâneo. O saber narrativo, para usar uma expressão de Ernst Bloch, é o “simultâneo não simultâneo” do saber discursivo. O cientista “os classifica [os enunciados narrativos] como pertencentes a diferentes mentalidades: selvagem, primitivo, subdesenvolvido, retrógrado, alienado, composto de opiniões, de costumes, de autoridade, de preconceito, de ignorância, ideologia. Narrativas são fábulas, mitos, lendas, adequadas apenas para mulheres e crianças” (p. 49). A epistemologia pós-moderna de Lyotard significa então um gesto de solidariedade com os oprimidos? Significa um gesto em direção ao reconhecimento da alteridade do outro? Pode parecer que sim, porém Lyotard elabora a epistemologia do saber narrativo de tal modo que a única atitude apropriada a ser adotada em relação a esse saber é o ponto de vista do curador de um museu etnológico do passado que fita “maravilhado a variedade de espécies discursivas” (p. 49 [trad. mod.]). O saber narrativo pertence ao museu etnológico do passado. “O saber narrativo,” escreve Lyotard, “não prioriza a questão de sua própria legitimação na medida em que se certifica na pragmática de sua própria transmissão, sem recurso a argumentação e prova” (p. 49). Essa caracterização geral do saber narrativo como pré-reflexivo, como um todo que se sustenta a si mesmo, nivela as contradições internas e tensões que influenciam tanto a narrativa como as práticas discursivas. Ver, por exemplo, as discussões sobre essa questão em Ernst Gellner, “Concepts and society”, In: Bryan R. Wilson (ed.). Rationality, Nova York, Harper and Row, 1970, p. 18-50; Pierre Bourdieu, Outline of a theory of practice, trad. de Richard Nice, Cambridge, Cambridge University Press, 1979, p. 22-30. Isso também implica que qualquer mudança nessa episteme tem de vir de fora, mediante violência. Uma tal episteme não tem um mecanismo para corrigir ou impelir a si mesma. Mas, a bem dizer, isso é o mesmo que condenar os sujeitos dessa episteme à a-historicidade, é negar que habitam o mesmo lugar que nós. Não interagimos com eles como iguais, habitamos um espaço em que os observamos como etnólogos e antropólogos, tratamo-los
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Mas, assim como a “morte de Deus” não destrói todas as bases da coexistência humana normativa – sociedades baseadas em tolerância e agnosticismo religioso não são menos estáveis, talvez, ao contrário, sejam até mesmo mais estáveis, que sociedades pré-modernas repletas de disputas interconfessionais e guerras teológicas –, o ocaso das filosofias racionalistas de Descartes a Kant e Husserl não significa o fim, mas significa ainda outra “transformação” do projeto filosófico.20 Um modo de entender essa transformação tem sido delineado neste livro: trata-se da emergência de um conceito falibilista e procedimental de racionalidade e das opções normativas possibilitadas por esse conceito na ética e na política.21 com distância e indiferença. E, se não é assim, se efetivamente o saber narrativo é o “outro” de nosso modo de saber, então Lyotard tem de admitir que os saberes narrativo e científico não são simplesmente incomensuráveis, mas que podem se chocar e de fato se chocam, e que, às vezes, o resultado é muito mais incerto. Admitir essa possibilidade significaria que as práticas “narrativas” e “discursivas” ocupam o mesmo espaço epistêmico, que ambas levantam pretensões de validade e que o intercâmbio argumentativo entre essas práticas não só é possível como desejável. Você não pode respeitar a “alteridade” do outro caso negue ao outro o direito de entrar em uma conversação com você, caso não descarte a indiferença objetiva de um etnólogo e interaja com o outro como um igual. Para um tratamento recente a respeito de questões difíceis sobre racionalidade epistêmica e relativismo, ver Steven Lukes e Martin Hollis (ed.), Rationality and relativism, Cambridge, MA, MIT Press, 1984. 20
Ver Kenneth Baynes, James Bohman e Thomas McCarthy (ed.), After philosophy: end or transformation, Cambridge, MA, MIT Press, 1987, p. 67-71. Em seu interessante estudo Unsere postmoderne Moderne (2. ed., Weinheim, Acta humaniora, 1988) Wolfgang Welsch me acusa de querer sustentar um “ponto de vista arquimediano de crítica” (ibid., p. 155) no debate com Lyotard.
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Diante desses debates sobre o “fim” ou a “transformação” da filosofia e da emergência de um agonística pós-moderna da Ele ainda argumenta que não sou capaz de identificar o critério da crítica na obra de Lyotard porque não considerei Le différend (publicado em francês em 1983). Refletindo seriamente sobre a crítica de Welsch, eu me familiarizei com o argumento de The differend: phrases in dispute (trad. de Georges van den Abbeele, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1988). Não obstante, ainda não consigo entender como esse texto resolveria a questão concernente aos critérios da crítica. A dificuldade é que Lyotard desenvolve a epistemologia apenas no modo “descritivo”, conservando o ponto de vista do observador que estabelece a presença do “différend”, e que distingue os gêneros “científico”, “narrativo”, “deliberativo” e “regimes de frases” (ibid., p. 13, 149 et seq.). O ponto de vista do participante, do agente social para quem a linguagem de modo algum é apenas um instrumento de comunicação, pois é também um modo de coordenar a ação social, não é levado em conta na análise de Lyotard. O conflito entre as abordagens “agonística” e “pragmática social” não só não está resolvido, como, a meu ver, nem mesmo os termos do debate estão colocados de modo claro. Isso fica evidente na discussão de Lyotard sobre Platão/Sócrates, um “partidário do diálogo”, em oposição a Trasímaco, um partidário da “agonística” (ibid., p. 26). Mas escolher a concepção platônica da linguagem como o exemplo ou paradigma do modelo “dialógico” já é trapacear: pois assim se pode mostrar que um modelo racionalista, orientado para o consenso e para a transparência, não pode ser verdadeiro; que a disputa entre agonística e diálogo não pode ser solucionada sem uma petição de princípio. Mas a concepção pragmático-social da linguagem, a qual concebe a linguagem como um meio pelo qual a ação social é coordenada, as identidades formadas e a cultura reproduzida, não se baseia em um racionalismo estreito. Também aqui Lyotard identifica “consenso” ou “acordo gerado por meio de razões” com o modelo racionalista, estreitamente definido, do encontro de mentes. A afirmação de Lyotard de que “Na política deliberativa das democracias modernas, o différend é exposto, ainda que a aparência transcendental de uma finalidade única que o conduziria a uma resolução persista em auxiliar a esquecer o differend, em fazê-lo suportável” (ibid. p. 147) é fascinante e autorizaria uma comparação cuidadosa com o modelo arendtiano de “mentalidade alargada” examinado anteriormente.
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linguagem, as feministas parecem ambivalentes:22 por um lado, querem extrair do debate pós-moderno apenas as conclusões intelectuais que vão nos ajudar na tarefa de pensar e repensar a tradição intelectual ocidental e de criar uma nova tradição, propriamente nossa, à luz da questão de gênero; por outro lado, ao se aliar com as posições pós-modernas, as feministas, querendo ou não, acabam se enleando nessa disputa e se enredam em uma série de pressupostos que estão bastante além de seu interesse de pesquisa, centrado no gênero como uma “categoria útil”,23 e chegam ao coração do pensamento contemporâneo. Muitas feministas compartilham um ímpeto para lidar com esse problema que é muito semelhante à veia “construtivista” dos últimos escritos de John Rawls sobre justiça em sociedades democráticas. Do mesmo modo que Rawls pretende articular princípios de justiça com base nas pressuposições “comuns à cultura democrática” das democracias capitalistas avançadas, evitando assim conceitos filosoficamente controversos de self e sociedade, muitas feministas contemporâneas pretendem adotar premissas pós-modernas sem se enlear na argumentação filosófica necessária para estabelecer a plausibilidade dessas premissas. Mas
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Sandra Harding oferece um exame esclarecedor dessa ambivalência em “Feminism, science and the anti-Enlightenment critiques”, In: Linda Nicholson (ed.), Feminism/postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 83-106. Joan Scott, “Gender: a useful category of historical analysis”, In: Gender and the politics of history, Nova York, Columbia University Press, 1988, p. 28-53.
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essa posição se sustenta? Feministas podem se tornar pós-modernas e, ao mesmo tempo, alegar desenvolver uma teoria no interesse da emancipação das mulheres? Vamos começar por considerar uma das mais completas caracterizações do “momento pós-moderno” fornecida por uma teórica feminista. Na discussão que segue, vou procurar mostrar que, assim como Lyotard está correto ao sublinhar o fim da episteme da representação e ao procurar por opções cognitivas e normativas alternativas a esse paradigma intelectual que já não convence mais, as feministas que se aliam ao pós-modernismo também estão corretas ao notar as profundas alianças entre a crítica pós-moderna do pensamento ocidental e suas próprias posições. Onde Lyotard e as feministas aliadas ao pós-modernismo se equivocam é em seu pressuposto de que o fim das metanarrativas, ou a morte do Homem, da História e da Metafísica (Jane Flax) permitem um único conjunto de opções conceituais e normativas. Ao separar as versões fortes e fracas dessas teses, vou argumentar que a posição pós-moderna é incompatível e, de fato, faz com que o feminismo seja incoerente enquanto articulação teórica de um movimento de luta social.
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A amizade do feminismo com o pós-modernismo Em seu livro recentemente publicado, Thinking fragments: Psychoanalysis, feminism, and postmodernism in the contemporary West [Pensando fragmentos: psicanálise, feminismo e pós-modernismo no Ocidente contemporâneo], Jane Flax caracteriza a posição pós-moderna como uma subscrição às teses da morte do Homem, da História e da Metafísica.24 A Morte do Homem. “Pós-modernos querem destruir,” ela escreve, todas as concepções essencialistas de ser humano ou de natureza humana […]. Com efeito, o Homem é um artefato social, histórico ou linguístico, não um Ser transcendental ou numênico […]. O Homem sempre estará preso à rede de significado fictício, em cadeias de significação, na qual o sujeito é meramente uma outra posição na linguagem.25
A Morte da História. A ideia de que a História existe para ele [o Homem] ou é seu Ser é mais do que uma outra condição prévia ou justificação da ficção do Homem. Essa ideia também sustenta e subjaz ao conceito de progresso, o qual é 24
Jane Flax, Psychoanalysis, feminism and postmodernism in the contemporary West, Berkeley, University of California Press, p. 32 et seq. Ibid.
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em si mesmo uma parte importante da história do Homem […]. Tal ideia de Homem e História privilegia e pressupõe o valor da unidade, da homogeneidade, da totalidade, do fechamento e da identidade.26
A Morte da Metafísica. De acordo com pós-modernos, A metafísica ocidental está sob o feitiço da “metafísica da presença” ao menos desde Platão […]. Para os pós-modernos, esta busca pelo Real esconde o desejo da maioria dos filósofos ocidentais de dominar o mundo de uma vez por todas ao encerrá-lo em um sistema ilusório, mas absoluto, que acreditam representar ou corresponder a um Ser unitário além da história, da particularidade e da mudança […]. Assim como o Real é o fundamento da Verdade, também a filosofia, como o representante privilegiado do Real e interrogador de pretensões de verdade, deve ter um papel “fundacional” em todo o “conhecimento positivo”.27
A caracterização clara e convincente do pós-modernismo feita por Flax nos permite enxergar por que feministas encontram nessa crítica aos ideais do racionalismo ocidental e ao Esclarecimento mais do que um aliado oportuno. Mas eu também gostaria de observar algumas discrepâncias entre minha formulação das 26
Jane Flax, Psychoanalysis, feminism and postmodernism in the contemporary West, Berkeley, University of California Press, p. 33 Ibid., p. 34
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opções conceituais possibilitadas pelo fim da episteme clássica da representação e a versão de Flax para o pós-modernismo. Primeiro, no curso da transição do “idealismo do século XIX para o contextualismo do século XX” (R. Rorty),28 enquanto eu vejo um movimento em direção à situacionalidade e à contextualização radicais do sujeito, Flax segue a tradição francesa ao assentar a “morte do sujeito”. Segundo, enquanto vejo uma transformação tanto no objeto como no medium da representação epistemológica, da consciência para a linguagem, de pretensões sobre verdade e realidade para uma investigação mais circunscrita sobre as condições sob as quais uma comunidade de investigadores pode fazer asserções garantidas sobre a verdade e o real, Flax sustenta que a “filosofia enquanto o representante privilegiado do Real” não foi transformada, mas definhou. Até aqui, não tratei da tese da Morte da História, mas, como devo argumentar adiante, de todas as reivindicações associadas a posições pós-modernas, esta é a menos problemática. Teóricos críticos, assim como pós-modernos, liberais e comunitaristas, concordariam sobre alguma versão da tese da “morte da história”, no sentido de uma progressão teleologicamente determinada das transformações históricas; mas as questões controversas dizem respeito à relação da narrativa histórica com os interesses de 28
Ver Richard Rorty “Nineteenth-century idealism and twentieth-century contextualism”, In: Consequences of pragmatism, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1982, p. 139-160.
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atores do presente em seu passado histórico. Essas discrepâncias entre as formulações de Flax e as minhas sobre como caracterizar as opções epistêmicas do presente terão um papel cada vez maior conforme o argumento avançar. Por ora, consideremos de que modo a teoria feminista, como o pós-modernismo, também criou suas próprias versões das três teses da morte do Homem, da História e da Metafísica. O contraponto feminista para o tema pós-moderno da Morte do Homem pode ser chamado de a “Desmistificação do Sujeito Masculino da Razão”. Enquanto pós-modernos substituem o Homem, ou o sujeito soberano da razão teórica e prática da tradição, pelo estudo das contingentes, historicamente mutáveis e culturalmente variáveis práticas discursivas, linguísticas e sociais, feministas reivindicam que “gênero” e as diversas práticas que contribuem para sua constituição são um dos contextos mais cruciais nos quais se deve situar o sujeito da razão pretensamente neutro e universal.29 A tradição filosófica ocidental articula as estruturas profundas das experiências e da consciência de um self que é por essa tradição reivindicado como representante de todos os homens enquanto tais. As categorias 29
Luce Irigaray, Speculum of the other woman, trad. de Gillian C. Gill, Ithaca, Cornell University Press, 1985, p. 133 et seq.; Genevieve Lloyd, The man of reason: male and female in western philosophy, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984; Sandra Harding e M. Hintikka (ed.), Discovering reality: feminist perspectives on epistemology, metaphysics, methodology and philosophy science, Dordrecht, Reidel, 1983.
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mais profundas da filosofia ocidental obliteram as diferenças de gênero na medida em que estas formam e estruturam a experiência e a subjetividade do self. A razão ocidental põe a si mesma como o discurso de um sujeito idêntico a si e, com isso, nos cega para e de fato deslegitima a presença da alteridade e da diferença que não se adequam a essas categorias. De Platão a Descartes, a Kant e Hegel, a filosofia ocidental tematiza a história do sujeito masculino da razão. O contraponto feminista para a Morte da História seria a “Generificação da Narrativa Histórica”. Se o sujeito da tradição intelectual ocidental tem sido, em geral, o homem branco, proprietário, cristão, chefe de família, então a História, tal como recordada e narrada até aqui, é a “história dele”. Além disso, as diferentes filosofias da história que predominaram desde o Esclarecimento forçaram a narrativa histórica à unidade, à homogeneidade e à linearidade, com a consequência de obliterar a fragmentação, a heterogeneidade e, sobretudo, os variados ritmos de diferentes temporalidades tal como experienciadas por grupos diferentes.30 Basta lembrar a crença de Hegel de que a África não tinha história.31 Até muito recentemente tampouco as mulheres tinham sua 30
Joan Kelly Gadol, “The social relations of the sexes: methodological implications of women’s history” e “Did women have a renaissance?” In: Women, history and theory, Chicago, University of Chicago Press, 1984, p. 1-19; 19-51.
“Neste ponto deixamos a África para não mencioná-la novamente. Não se trata, pois, de uma parte histórica do mundo: não tem movimento ou desenvolvimento para exibir. Seus movimentos históricos – isto é, na parte norte – pertencem ou ao mundo asiático ou ao mundo europeu […]. O que compreendemos propriamente
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própria história, sua própria narrativa com diferentes categorias de periodização e com diferentes regularidades estruturais. O contraponto feminista para a Morte da Metafísica seria o “Ceticismo Feminista com as Pretensões da Razão Transcendental”. Se o sujeito de razão não é um ser supra-histórico e transcendente ao contexto, mas se as criações teóricas e práticas assim como as atividades desse sujeito carregam em cada caso as marcas do contexto em que surgiram, então o sujeito da filosofia está inevitavelmente enleado nos conhecimentos que governam interesses e que marcam e dirigem suas atividades. Para a teoria feminista, o mais importante “conhecimento dirigido por interesses”, nos termos de Habermas, ou a mais importante matriz disciplinar de verdade e poder, nos termos de Foucault, são as relações de gênero e a constituição social, econômica, política e simbólica de diferenças de gênero entre seres humanos.32 A despeito dessa “afinidade eletiva” entre feminismo e pós-modernismo, cada uma das três teses enumeradas acima pode ser interpretada de modo a permitir estratégias teóricas, se não contraditórias, ao menos radicalmente divergentes. E qual conjunto de por África é o espírito a-histórico, não desenvolvido, ainda envolto nas condições de mera natureza” (G. W. F. Hegel, The Philosophy of history, trad. de J. Sibree, intr. de C. J. Friedrich, Nova York, Dover, 1956, p. 99). 32
Para uma mobilização instigante do quadro foucaultiano para análise de gênero, cf. Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990].
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afirmações teóricas adotar como suas próprias não pode ser uma questão desimportante para as feministas. Como Linda Alcoff recentemente observou, a teoria feminista sofre neste momento uma profunda crise de identidade.33 A(s) posição(ões) pós-moderna(s) pensada(s) até suas conclusões pode(m) não apenas eliminar a especificidade da teoria feminista, mas pode(m) também colocar em xeque os próprios ideais emancipatórios dos movimentos de mulheres como um todo. O ceticismo feminista com o pós-modernismo Na discussão que segue, formulo duas versões de cada uma das três teses enumeradas anteriormente com o objetivo de esclarecer uma vez mais as diferentes opções conceituais disponibilizadas pelo ocaso da episteme de representações. Em poucas palavras, meu argumento é que são possíveis versões fortes e fracas das teses da morte do Homem, da História e da Metafísica. Enquanto Linda Alcoff, “Postructuralism and cultural feminism”, Signs, v. 13, n. 3, p. 4-36, 1988. Ver também Christine di Stefano, “Dilemmas of difference: feminism, modernity, and postmodernism”, In: Linda Nicholson (ed.), Feminism/ postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 63-83; Susan Bordo, “Feminism, postmodernism, and gender skepticism”, In: Linda Nicholson (ed.), op. cit., p. 133-157; e mais recentemente, Nancy Hartsock, “Postmodernism and political change: issues for feminist theory”, Cultural critique, n. 14, p. 15-35, Winter 1989-1990, para reservas em relação às implicações políticas e teóricas do pós-modernismo para o feminismo.
33
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as versões fracas dessas teses acarretam premissas em torno das quais podem se unir teóricos críticos, assim como pós-modernos, e talvez até mesmo liberais e comunitaristas, as versões fortes corroem a possibilidade da crítica normativa em geral. A teoria feminista só pode se aliar a essa versão forte do pós-modernismo sob o risco de incoerência e autocontradição. a) Para uma compreensão mais precisa das opções conceituais permitidas pelo fim da episteme da representação, vamos considerar primeiro a tese sobre a Morte do Homem. A versão fraca dessa tese situaria o sujeito no contexto de diferentes práticas sociais, linguísticas e discursivas. Essa abordagem definitivamente não questiona a desejabilidade e a necessidade teórica de articular uma concepção de subjetividade mais adequada, menos ilusória, e menos mistificada, do que as fornecidas por conceitos como o cogito cartesiano, a “unidade transcendental de apercepção”, “Geist [espírito] e consciência” ou “das Man” (o impessoal). Os atributos tradicionais do sujeito filosófico do Ocidente, como autorreflexividade, capacidade de agir por princípios, responsabilização racional [rational accountability] pelas próprias ações e capacidade para projetar um plano de vida para o futuro, em resumo, alguma forma de autonomia ou racionalidade, poderiam ser então reformulados levando em consideração a situacionalidade radical do sujeito.
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A versão forte da tese sobre a Morte do Homem talvez seja mais bem capturada na afirmação de Flax: “O Homem sempre estará preso à rede de significado fictício, em cadeias de significação, na qual o sujeito é meramente uma outra posição na linguagem”. Com isso, o sujeito é dissolvido na cadeia de significações da qual deveria ser o iniciador. Em conjunto com essa dissolução do sujeito em apenas “uma outra posição na linguagem”, os conceitos de intencionalidade, responsabilização, reflexividade e autonomia por certo também desaparecem. O sujeito que não é senão uma outra posição na linguagem não pode mais controlar e criar a distância entre si e a cadeia de significações na qual está imerso, de modo que possa refletir sobre elas e modificá-las criativamente. A versão forte da tese sobre a Morte do Sujeito não é compatível com os objetivos do feminismo.34 Seguramente, uma subjetividade que não fosse estruturada pela linguagem, pela narrativa e pelos códigos simbólicos de narrativa disponíveis em uma cultura 34
Preocupações similares são levantadas por Daryl McGowan Tress em seu comentário ao artigo de autoria de Jane Flax “Postmodernism and gender relations in feminist theory”, Signs, v. 12, n. 4, p. 621-643, 1987 (este uma versão mais resumida dos argumentos posteriormente apresentados por Flax em seu livro); cf. o artigo de Tress e a resposta de Flax em Signs, v. 14, n. 1, p. 196-203, Autumn 1988. Ver também Rosi Braidotti, “Patterns on dissonance: women and/in philosophy”, In: Herta Nagl-Docekal (ed.), Feministsche Philosophie, Viena, Oldenbourg, 1990, p. 108-123; Herta Nagl-Docekal, “Antigones Trauer und der Tod des Subjekts”, conferência apresentada na Philosophinnen-Ringvorlesung no Intitute of Philosophy, Freie Universität Berlin, 25 maio 1990.
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seria impensável. Falamos de quem somos, do “eu” que somos, por meio de narrativas. “Eu nasci em tal lugar, em tal data, sou filha de tal e tal…” etc. Essas narrativas são profundamente coloridas e estruturadas pelos códigos de biografias e identidades esperadas e compreensíveis em nossas culturas.35 Podemos admitir tudo isso, mas, ainda assim, é preciso argumentar que não somos simplesmente extensões de nossas histórias, que em relação a nossas próprias histórias estamos a um só tempo na posição de autora e personagem. O sujeito situado e generificado é determinado heteronomamente, mas ainda persiste na busca por autonomia. Eu gostaria de perguntar de que modo o próprio projeto de emancipação feminina poderia efetivamente ser pensado sem um tal ideal regulador de aprimoramento da agência, da autonomia e da ipseidade das mulheres. As apropriações feministas de Nietzsche a respeito dessa questão só podem ser incoerentes. Em seu recente livro, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Judith Butler pretende expandir os limites da reflexividade no pensamento sobre o self para além da dicotomia “sexo” e “gênero”. Seus convincentes e originais argumentos para recusar esse raciocínio dicotômico com o qual a 35
O artigo de Patricia J. Williams “On being the object of property” (Signs, v. 14, n. 1, p. 5-25, Autumn 1988) é um exemplo fascinante de transgressões discursivas que nos forçam a repensar os diversos códigos de narrativa que santificam algumas formas de fala, autoridade e identidade em nossas culturas.
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teoria feminista operou até recentemente são, contudo, enublados pela alegação de que a rejeição dessa dicotomia significaria aderir à visão de que o “self generificado” não existe; tudo o que o self é resume-se a uma série de performances. “Gênero,” escreve Butler, não está para a cultura, como o sexo para a natureza; gênero é também o meio discursivo/cultural mediante o qual uma “natureza sexuada” ou um “sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age.36
Para Butler, o mito de um corpo já sexuado é o equivalente epistemológico ao mito do dado: assim como o dado só pode ser identificado dentro de um quadro discursivo, são os códigos culturalmente disponíveis de gênero que “sexualizam” um corpo e constroem a direcionalidade do desejo sexual daquele corpo.37 Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 25 [trad. mod.]. Ao mesmo tempo que saúdo a análise pungente de Butler sobre o raciocínio dicotômico que opera com uma simples contraposição entre sexo e gênero, meu desacordo com ela é se a direcionalidade do desejo do corpo é tal que seja meramente “construída” por meio da “ordem da heterossexualidade compulsória”. Boa parte da questão depende de como entendemos “construir” aqui. Ver a próxima nota para uma melhor elaboração.
36
Também gostaria de distinguir aqui entre, por um lado, a “construção social e cultural da sexualidade” e, por outro, a “formação [shaping] da direcionalidade do desejo do corpo”. Dada toda a informação que hoje temos sobre a enorme multiplicidade e variedade de rituais, jogos, fantasias, mitos e ideais sexuais e
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Butler, porém, também sustenta que, para que se pense além da univocidade e dos dualismos das categorias de gênero, temos de nos despedir do “agente por trás da ação”, do self como sujeito de uma narrativa de vida. Em uma aplicação que o próprio Nietzsche não teria previsto ou aprovado, afirmaríamos como corolário: não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é constituída performativamente pelas próprias “expressões” que são tomadas como seus resultados.38
Mas se essa concepção de self for adotada, há alguma possibilidade de transformar essas “expressões” que nos constituem? Se não eróticos humanos – do homoerotismo da cultura grega antiga ao quase sagrado e exuberante erotismo da antiga arte indiana do prazer sexual (kama sutra), dos elaborados rituais de sedução e cortejo das culturas islâmicas antigas à ostentação de uma sexualidade rasa e óbvia nas democracias de massa ocidentais como uma mercadoria a ser obtida como qualquer outra por um determinado preço –, dado tudo isso, seria tolice disputar a construção social e cultural da sexualidade. Ainda assim, a formação da direcionalidade do desejo do indivíduo humano é um processo extremamente complexo, no qual a “memória do corpo”, do “soma”, da “carne”, exercem um papel crucial. A cultura não “constrói” tudo – o corpo humano não é uma tabula rasa na qual tudo é inscrito pelos mecanismos de agência e socialização. O corpo é um meio ativo com suas próprias disposições e “hábitos”, que processa, canaliza e desvia influências que vêm do exterior de acordo com sua própria modalidade acumulada de ser em relação ao mundo. Também sobre essa questão, meu desacordo com Butler concerne ao papel da “agência”, da intencionalidade e, em última instância, às fontes de resistência humana individual à cultura e à sociedade. Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 48 [trad. mod.].
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somos mais do que a soma total de expressões generificadas que encenamos, há qualquer possibilidade de interromper momentaneamente a performance, de fechar as cortinas e só deixar que se abram se pudermos tomar parte na produção da própria peça? Não é exatamente disso que se trata a luta sobre o gênero? É claro que podemos criticar as “pressuposições metafísicas das políticas de identidade” e questionar a supremacia de posições heterossexistas no movimento de mulheres. Mas esse questionamento só pode ser concebido ao se converter em embuste quaisquer conceitos de ipseidade, de agência e de autonomia? O que se segue dessa posição nietzschiana é uma concepção de self como um performer mascarado, com a ressalva de que agora se pede que acreditemos que não há um self por detrás da máscara. Tendo em vista o quão frágil e tênue é, em muitos casos, o senso de ipseidade das mulheres, e o quão incerto o que advém de suas lutas por autonomia, essa redução da agência feminina a uma “ação sem agente” me parece, na melhor das hipóteses, fazer da necessidade virtude.39 Rosi Braidotti muito adequadamente assinala: “A meu ver, as discussões filosóficas contemporâneas sobre a morte do sujeito cognoscente, sobre dispersão, multiplicidade etc. etc., têm o efeito imediato de ocultar e debilitar as tentativas das mulheres de encontrar uma voz teórica própria. Rejeitar a noção de sujeito no mesmo momento histórico em que as mulheres estão começando a ter acesso a isso, enquanto se advoga o ‘devenir femme’ [como faz Guattari – S. B.] do próprio discurso filosófico, pode ser no mínimo descrito como um paradoxo […]. A verdade da questão é: não se pode de-sexualizar a sexualidade que nunca se teve; para desconstruir o sujeito, é preciso antes se ter ganhado o direito de falar
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A noção segundo a qual a identidade generificada é constituída por “ações sem agente”, ou por performances sem um sujeito, não corrói apenas a visão normativa da teoria e da política feministas. É também impossível dar um fim no sujeito e reivindicar ser um participante plenamente responsabilizável na comunidade de discurso e investigação: a tese forte da morte do sujeito corrói o discurso da própria teórica. Se o sujeito que produz o discurso não é senão um produto do discurso que o criou, ou, melhor ainda, se não é senão uma “outra posição na linguagem”, então a responsabilidade [responsibility] por esse discurso não pode ser atribuída à autora, mas deve ser atribuível a alguma “posição autoral” fictícia, constituída pela intersecção de “planos discursivos”. (Sou tentada a acrescentar que, em geometria, a intersecção de planos produz uma linha reta!) Butler entrevê essa possibilidade na introdução de sua obra: “A filosofia é o mecanismo disciplinar predominante a mobilizar presentemente esta autora-sujeito”.40 O “sujeito” aqui como um; antes que possam subverter os signos, as mulheres devem aprender a usá-los; para des-mistificar o metadiscurso é preciso antes ter acesso a um lugar de enunciação. ‘Il faut, au moins, un sujet’ [É necessário ao menos um sujeito].” (“Patterns of dissonance: women and/in philosophy”, In: Herta Nagl-Docekal (ed.), Feministische Philosophie, Oldenbourg, Vienna/Munich, 1990, p.119-120). Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 10. Note-se também a dificuldade de Butler com a categoria ‘eu’: “Eu argumentei (‘eu’ emprega a gramática que rege o estilo da conclusão filosófica, mas note-se que é a própria gramática que emprega e faculta este ‘eu’, mesmo quando o ‘eu’, que aqui insiste,
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também significa o “objeto do discurso”; não só aquele que utiliza o discurso, mas aquele que é utilizado pelo próprio discurso. É possível que essa seja a razão de Butler usar a linguagem de um “discurso a mobilizar uma autora/sujeito”. O centro de motilidade não é o self pensante, agente e sensível, mas “discursos”, “sistemas de significação”, “cadeias de signos” etc. Mas como então deveríamos ler Problemas de gênero? O tipo de leitura que proponho aqui pressupõe que há uma autora pensante que produziu esse texto, que essa autora tinha intenções, propósitos e objetivos ao se comunicar comigo, e que a tarefa da reflexão teórica começa com a tentativa de entender o que a autora pretendia dizer. Certamente, a linguagem sempre diz muito mais do que a autora pretendia; sempre haverá uma discrepância entre o que pretendemos dizer e o que dizemos; mas empreendemos comunicação, comunicação teórica não menos que cotidiana, para conquistar alguma base de raciocínio e entendimento mútuos. A noção de que o sujeito não é redutível a “uma outra posição na linguagem”, mas que, não importa como foi constituído pela linguagem, o sujeito preserva uma certa autonomia e habilidade para rearranjar as significações da linguagem, é um repete, reemprega e – como os críticos determinarão – contesta a gramática filosófica mediante a qual é facultado e restringido) que […]” (Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 210).
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princípio regulador de toda comunicação e ação social. Se o self que fala e pensa é substituído por “posições autorais”, e se o self se torna um ventríloquo de discursos que operam através dela ou a “mobilizam”, não só a política feminista mas também uma teorização coerente tornam-se impossíveis.41
A dificuldade nessa posição deriva das concepções de sujeito e subjetividade de Foucault, nas quais Butler se apoia. Embora Butler critique a própria compreensão de Foucault sobre a sexualidade e, particularmente, seu conceito de “prazer” (Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 142 et seq.), ela se apoia em seu quadro metodológico ao conceber o sujeito como um self constituído ou construído pelo impacto de diferentes regimes de “poder/saber”. O déficit científico-social da obra de Foucault – suas concepções inadequadas de ação social e de movimentos sociais, sua incapacidade em explicar a mudança social exceto como a substituição descontínua de um regime de “poder/saber” por outro – e seus magros conceitos de self e de formação da identidade estão, ao fim e ao cabo, relacionados. Esses problemas estão no centro da recepção crítica do trabalho de Foucault particularmente na Alemanha, ao passo que, nos Estados Unidos, Foucault tem sido recebido menos como um historiador social e cultural e mais como um filósofo e crítico literário. O resultado tem sido uma recepção acrítica do quadro de referência explicativo de Foucault. Em seu artigo “Foucault on modern power: empirical insights and normative confusions” (originalmente publicado em Praxis international, v. 1, n. 3, p. 272-87, out. 1981; e reproduzido em Unruly practices (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1989, p. 17-34), Nancy Fraser já muito cedo chamou atenção para essas dificuldades na obra de Foucault. Uma análise excelente dos pressupostos sociológicos de Foucault, e particularmente de sua teoria da modernidade, também pode ser encontrada em Axel Honneth, Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p. 169-225 (em inglês, The critique of power, trad. de Kenneth Baynes, Cambridge, MA, MIT Press, 1991).
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Talvez eu tenha exagerado contra Butler.42 Talvez Butler, assim como Flax, não queira prescindir do senso de ipseidade, agência e autonomia das mulheres. Nas reflexões conclusivas de Problemas de gênero, Butler retoma questões de agência, identidade e política. Ela escreve: A questão de localizar a “agência” é em geral associada à viabilidade do “sujeito”, entendendo-se que o “sujeito” tem uma existência estável anterior ao campo cultural que ele negociou. Ou, se o sujeito é culturalmente construído, mesmo assim ele é dotado de agência, em geral figurada como a capacidade para mediação reflexiva, a qual permaneceria intacta a despeito de sua inserção cultural. Nesse modelo, “cultura” e “discurso” soçobram o sujeito, mas não constituem aquele sujeito. Esse movimento de qualificar e soçobrar o sujeito preexistente parecia necessário para estabelecer um ponto de agência que não é completamente determinado por aquela cultura e discurso. E, no entanto, esse tipo de raciocínio presume falsamente que a) a agência só pode ser estabelecida por meio do recurso a um “eu” pré-discursivo, mesmo que este “eu” seja encontrado em meio a uma convergência discursiva; e b) que ser constituído pelo discurso é ser determinado pelo discurso, com a determinação impedindo a possibilidade de agência.43
Gostaria de agradecer a Nancy Fraser por me ajudar a enxergar este ponto.
42 43
Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 205-206 [trad. mod.].
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Butler não aceita que a identidade só possa ser estabelecida por meio do recurso a um “‘eu’ que preexista a significação”.44 Ela assinala que as condições que possibilitam a asserção do “eu” são fornecidas pela estrutura de significação, pelas regras que regulam a invocação legítima e ilegítima daquele pronome, pelas práticas que estabelecem os termos de inteligibilidade pelos quais aquele pronome pode circular.
Desse modo, os códigos narrativos de uma cultura definem o conteúdo com o qual esse pronome será empregado, as ocasiões apropriadas nas quais pode ser invocado, por quem e como. É possível, porém, concordar com tudo isso e ainda sustentar que nenhum indivíduo é meramente uma lousa em branco sobre a qual são inscritos os códigos de uma cultura, um tipo de tabula rasa lockeana nos trajes foucaultianos da última estação!45 O estudo histórico e cultural de códigos diversos de constituição da subjetividade, ou o estudo histórico da Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 205-206.
44
Alan Wolfe faz uma esclarecedora observação sobre as implicações, tanto para a teoria social como para o pensamento normativo, da negação dos conceitos de ipseidade como sendo essencialistas. No pós-modernismo, assim como na ciência social baseada na teoria dos sistemas, Wolfe enxerga uma “falta de reconhecimento da importância das capacidades que os seres humanos têm de fazer regras, aplicá-las e interpretá-las e, em lugar disso, uma ênfase no caráter de seguir regras. O preço que o pós-modernismo paga por esse flerte com concepções algorítmicas de justiça é muito alto: a negação da liberação, da brincadeira e da espontaneidade que inicialmente inspiraram as epistemologias radicais” (Alan Wolfe, “Algorithmic justice”, Benjamin Cardozo law review, edição especial Deconstruction and the possibility of justice, v. 11, n. 5/6, p. 1415, jul./ago 1990).
45
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formação do indivíduo, não responde à questão: quais mecanismos e dinâmicas estão envolvidos no processo de desenvolvimento por meio do qual o infante humano, um corpo dependente e vulnerável, torna-se um self distinto com a habilidade de falar sua língua e com a habilidade de participar nos processos sociais complexos que definem nosso mundo? Essas dinâmicas e esses mecanismos permitiram que as crianças do Egito Antigo se tornassem membros daquela comunidade cultural tanto quanto permitiram que as crianças hopis se tornassem indivíduos sociais. O estudo de códigos culturalmente diversos que definem a individualidade não é o mesmo que uma resposta à pergunta sobre como o infante humano se torna o self social, a despeito do conteúdo cultural e normativo que define sua ipseidade. No último caso, estamos estudando processos estruturais e dinâmicas de socialização e individuação; no primeiro, processos históricos de significação e constituição de significado. De fato, como Butler observa: “ser constituído pelo discurso não é ser determinado pelo discurso”. Temos de explicar de que modo um infante humano pode se tornar o falante de um número infinitamente significativo de sentenças em uma determinada linguagem natural, isto é, de que modo adquire a competência para se tornar um ser linguístico; além disso, temos de explicar como todo infante humano pode se tornar o iniciador de uma história de vida única, de um conto significativo – o qual certamente só é significativo se conhecemos os códigos culturais sob os quais é
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construído, mas que não seríamos capazes de predizer ainda que conhecêssemos esses códigos culturais. Butler escreve que a “‘agência’ deve então ser localizada na possibilidade de uma variação naquela repetição” (a repetição de performances de gênero).46 Mas de onde são derivados os recursos para essa variação? O que permite ao self “variar” os códigos de gênero? A resistir a discursos hegemônicos? Quais fontes psíquicas, intelectuais ou outras fontes de criatividade e resistência temos de atribuir a sujeitos para que essa variação seja possível? As respostas a essas questões, ainda que estivessem plenamente disponíveis para mim neste momento, o que não é o caso, estariam muito além dos limites deste ensaio. Porém chegamos a uma importante conclusão: as questões geradas pela interação complexa entre feminismo e pós-modernismo em torno dos conceitos de self e subjetividade não podem ser capturadas por proclamações bombásticas sobre a “Morte do Sujeito”. A questão central é como devemos entender a sentença: “O ‘eu’ embora constituído pelo discurso, não é determinado pelo discurso”. A tentativa de oferecer uma resposta relevante a essa interrogação no momento presente exige não apenas uma outra decodificação das metáforas e tropos sobre o self mas um sério intercâmbio entre a filosofia e as ciências sociais, como a sociolinguística, a psicologia interacionista, a teoria Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 [1990], p. 209 [trad. mod.].
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da socialização, a psicanálise, a história cultural, dentre outras. Dito de modo claro: a tese da Morte do Sujeito pressupõe uma versão notavelmente incipiente dos processos de individuação e socialização quando comparada às reflexões científico-sociais atualmente disponíveis sobre o assunto.47 Mas nem os modelos fundamentalistas de investigação da tradição, que privilegiam o Eu reflexivo que reflete sobre as condições de sua existência reflexiva ou não reflexiva, tampouco a decodificação pós-moderna do sujeito em superfícies corpóreas que “são encenadas [enacted] como o natural” em vista de que possam “tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada” (Butler), são suficientes para a tarefa de explicar como o indivíduo pode ser “constituído pelo discurso embora não seja determinado pelo discurso”. A análise de gênero mais uma vez força os limites dos discursos das disciplinas em direção a uma nova integração dos paradigmas teóricos. b) Considere-se agora a tese da Morte da História. De todas as posições comumente associadas ao pós-modernismo, essa tese
Ver T. C. Heller, M. Sosna e D. Wellbery (ed.), Reconstructing individualism: autonomy, individuality and the self in Western thought, Stanford, Stanford University Press, 1986. Thomas McCarthy oferece um tratamento bastante cuidadoso sobre o desenvolvimento e as transformações nas concepções foucaultianas de ipseidade e agência em “The critique of impure reason: Foucault and the Frankfurt School”, In: Ideals and illusions: on reconstruction and deconstruction in contemporary critical theory, Cambridge, MIT Press, 1991, p. 67 et seq.
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em particular me parece a menos problemática. A desilusão com os ideais de progresso, a consciência das atrocidades cometidas neste século em nome do progresso econômico e tecnológico, a falência política e moral das ciências naturais que se colocam a serviço das formas de destruição humana e planetária – são esses os sentimentos compartilhados em nosso século. Intelectuais e filósofos no século XX devem ser distinguidos uns dos outros menos como sendo aliados ou oponentes da crença no progresso e mais nos seguintes termos: se uma despedida das “metanarrativas” do Esclarecimento pode ser exercida nos termos de uma crença contínua no poder da reflexão racional ou se essa despedida não é senão um prelúdio a um abandono dessa reflexão. Interpretada como uma tese fraca, a Morte da História poderia significar duas coisas: teoricamente, poderia ser entendida como um chamado ao fim da prática das “grandes narrativas” que são essencialistas e monocausais. É inócuo, digamos, procurar por uma essência da “maternidade”, como se se tratasse de um universal que atravessa todas as culturas; e, do mesmo modo, é inócuo procurar produzir uma única grande teoria sobre a opressão feminina e a dominação masculina que atravessariam culturas e sociedades – quer se trate de uma teoria psicanalítica, antropológica ou biológica. Politicamente, o fim dessas grandes narrativas significaria a rejeição das alegações hegemônicas de qualquer grupo ou organização de “representar” as forças da história, de estar se movendo com essas 452
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forças, ou de atuar em seu nome. A crítica aos diferentes movimentos totalitários e totalizantes de nosso século, do nacional-socialismo e do fascismo ao stalinismo e outras formas de autoritarismo, é certamente uma das experiências políticas formadoras dos intelectuais pós-modernos como Lyotard, Foucault e Derrida.48 É isso também que torna a tese da Morte da História interpretada como o fim das “grandes narrativas” tão atrativa para teóricas feministas. Nancy Fraser e Linda Nicholson, por exemplo, escrevem: a prática da política feminista nos anos 1980 produziu um novo conjunto de pressões que operaram contra as metanarrativas. Nos últimos anos, mulheres pobres e das classes trabalhadoras, mulheres não brancas e lésbicas, finalmente conquistaram uma audiência mais ampla para suas objeções às teorias feministas que não conseguem elucidar suas vidas e abordar seus problemas. Elas expuseram as primeiras quase metanarrativas, com seus pressupostos sobre a dependência feminina universal e o confinamento à esfera doméstica, como falsas extrapolações das experiências das mulheres brancas, heterossexuais, de classe média, que dominaram o início da segunda onda […]. Com isso, conforme a consciência de classe, sexual, racial e étnica do movimento foi 48
Vincent Descombes, Modern French philosophy. Nova York, Cambridge University Press, 1980. Ver a excelente análise de Peter Dews, Logics of disintegration: post-Structuralist thought and the claims of critical theory (Nova York, New Left Books, 1987) sobre as experiências políticas da geração de 1968 na França e sobre como essas experiências formaram a filosofia francesa contemporânea.
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alterada, também foi alterada a concepção teórica preferida. Ficou claro que quase metanarrativas dificultam mais do que promovem sororidade, pois suprimem as diferenças entre mulheres e entre as formas de sexismo às quais diferentes mulheres são diferentemente sujeitadas.49
A versão forte da tese da Morte da História implicaria, todavia, uma rejeição prima facie de qualquer narrativa histórica que se ocupe da longa duração e que se concentre mais nas práticas macrossociais do que nas micro. Nicholson e Fraser também advertem contra essa tendência “nominalista” na obra de Lyotard.50 Eu concordo com elas que seria um erro interpretar a morte das “grandes narrativas” como se, de agora em diante, fossem autorizadas apenas histórias locais em oposição à história global. A decisão sobre quão local ou global precisa ser uma narrativa histórica ou uma pesquisa científico-social não pode ser determinada por argumentos epistemológicos que sejam alheios à tarefa à mão. É na pesquisa empírica que se responde a essa questão; não é da conta da filosofia legislar sobre o escopo de pesquisa da ciência empírica. Nancy Fraser e Linda J. Nicholson, “Social criticism without philosophy: an encounter between feminism and postmodernism”, In: Linda Nicholson (ed.), Feminism/postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 33. Iris Young defende o mesmo argumento em seu artigo “The ideal of community and the politics of difference”, no mesmo volume, p. 300-301.
49
Ibid., p. 34.
50
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Na medida em que sua versão do pós-modernismo parece santificar as “narrativas pequenas” ou “locais” em detrimento das grandes narrativas, Lyotard toma parte em um apriorismo desnecessário a respeito de questões em aberto da investigação científica. A questão mais difícil sugerida na tese forte da “morte da história” me parece ser outra: ainda que dispensemos as grandes narrativas, como vamos repensar a relação entre política, historiografia e memória histórica? É possível para grupos de luta não interpretar a história à luz de um imperativo político-moral, a saber, o imperativo do interesse futuro na emancipação? Pensemos por um momento não só na maneira pela qual historiadoras feministas das últimas duas décadas descobriram mulheres e suas vidas e obras até então invisíveis, mas na maneira pela qual elas também revalorizaram e nos ensinaram a ver com olhos diferentes aquelas atividades tradicionalmente femininas e anteriormente rebaixadas como fofoca, costura, e mesmo as formas de doenças tipicamente femininas, como enxaquecas, histeria e fadiga durante a menstruação.51 Nesse processo da “transvaloração feminista de valores”, nosso interesse presente nas estratégias de sobrevivência e de resistência histórica das mulheres nos levou a impregnar essas atividades passadas, outrora completamente desinteressantes do ponto de vista do historiador tradicional, com novo significado e importância. Ver a antologia pioneira de Renate Bridenthal, Claudia Koonz, e Susan Stuard (ed.), Becoming visible: women in European history, Boston, Houghton Mifflin, 1987.
51
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Embora não mais seja possível ou desejável produzir “grandes narrativas” da história, a tese da “morte da história” obstrui o interesse epistemológico na história e na narrativa histórica que acompanha as aspirações de todos os atores historicamente combativos. Uma vez perdido esse “interesse” em recuperar as vidas e lutas de todos aqueles “perdedores” e “vítimas” da história, seremos capazes de produzir teoria feminista engajada? Defensores da “historiografia pós-moderna” como Fraser e Nicholson, que convocam para uma “teoria feminista-pós-moderna”, passam ao largo dessas dificuldades em parte porque o que pretendem com esse tipo de teorização é menos “pós-moderno” e mais “neopragmático”. Por “teoria feminista pós-moderna” entendem uma teoria que seja pragmática e falibilista, que adaptaria seus métodos e categorias à tarefa específica à mão, utilizando categorias múltiplas quando apropriado e renunciando ao conforto metafísico de um único método feminista ou de uma única epistemologia feminista.52 Nancy Fraser e Linda Nicholson, “Social criticism without philosophy: an encounter between feminism and postmodernism”, In: Linda Nicholson (ed.), Feminism/postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 35. Em oposição a esse pluralismo pragmático de metodologias orientado por interesses de pesquisa, o que temos no caso da historiografia pós-moderna é uma proliferação “estética” de estilos que cada vez mais borra a distinção entre história e literatura, narrativa factual e criação imaginária. F. R. Ankersmit escreve: “ […] por causa da incomensurabilidade de concepções históricas – isto é, o fato de
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Essa abordagem equilibrada e sensata de adaptar a teoria às tarefas à mão, contudo, não é pós-moderna. Fraser e Nicholson só conseguem reconciliar seus compromissos políticos com suas simpatias teóricas pelo pós-modernismo porque, basicamente, substituíram as alegações “hiperteóricas” da historiografia pós-moderna pelo pragmatismo teórico. Vou ilustrar com um exemplo extraído de um debate feminista recente. O número do verão de 1990 do periódico Signs trouxe um debate entre Linda Gordon e Joan Scott na forma de resenhas de uma ao livro da outra e suas respectivas respostas.53 Esse debate guarda um testemunho bastante sucinto dos tipos de questões políticas e teóricas com as quais se confrontam hoje as teóricas feministas, que podem adotar ou não metodologias pós-modernas em seus próprios trabalhos. Uma questão central para a metodologia pós-moderna na historiografia, assim como na filosofia e na
que a natureza das diferenças de opinião históricas não pode ser satisfatoriamente definida no que diz respeito aos objetos de pesquisa –, para garantir o progresso relevante do debate histórico, não temos mais nada a fazer senão nos concentrarmos no estilo incorporado em cada concepção histórica ou modo de olhar o passado. Estilo, não conteúdo, é a questão nesses debates. O conteúdo é derivado do estilo” (F. R. Ankersmit, “Historigraphy and postmodernism”, History and theory, v. 28, n. 2, p. 137-53, 1989, p. 144). Ver a resenha de Joan W. Scott para Heroes of their own lives: the politics and history of family violence, de Linda Gordon, e a resenha de Linda Gordon para Gender and the politics of history, de Joan Scott, e suas respostas em Signs, v. 15, n. 4, p. 848-860, Summer 1990.
53
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análise cultural, é o status do sujeito e da subjetividade. Depois de resenhar a exposição de Linda Gordon sobre a história da violência familiar tal como foi tratada e definida por assistentes sociais em três agências de assistência à criança na Boston dos anos 1880 a 1960, Scott observa que o livro de Gordon tem como objetivo refutar teorias simplistas do controle social e recusar interpretações que ressaltam a natureza de cima para baixo das políticas de bem-estar e a passividade de seus beneficiários.54
Como alternativa, Gordon propõe um modelo interativo de relações, de acordo com o qual o poder é negociado entre os membros da família e entre as vítimas e as agências estatais. Joan Scott não vê indícios no livro de Gordon de que as mulheres sejam “agentes ativos”; sobre o título do livro – Heroes of their own lives: politics and history of family violence [Heróis de suas próprias vidas: política e história da violência familiar] –, ela observa que: “é muito mais um desejo do que uma realidade histórica, mais uma formulação politicamente correta do que algo que possa ser substanciado pelas fontes”.55 E a dificuldade metodológica é tratada de modo sucinto, em termos que imediatamente nos lembram as afirmações de Butler a respeito da “construção social e cultural da agência” examinadas na seção anterior. Scott escreve: Resenha de Joan W. Scott para Heroes of their own lives: the politics and history of family violence, de Linda Gordon, Signs, v. 15, n. 4, p. 849, Summer 1990.
54
Ibid., p. 850.
55
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Uma conceitualização diferente de agência poderia ter evitado as contradições em que Gordon incorre, além de articular melhor as relações complexas entre assistentes sociais e seus clientes que são evidentes no livro. Essa conceitualização enxergaria a agência não como um atributo ou traço inerente ao desejo de sujeitos individuais autônomos, mas como um efeito discursivo, nesse caso, o efeito das construções dos próprios assistentes sociais sobre família, gênero e violência familiar. A ideia de “construção” seria tomada seriamente, como algo que tem efeitos sociais positivos. (Pois, em geral, Gordon usa “construção” como se fosse sinônimo de “definição,” mas definição carece da materialidade que “construção” conota.) Afinal, foi a existência das sociedades de bem-estar que, mais do que tornar a violência familiar um problema a ser enfrentado, deu aos membros das famílias um lugar para recorrer, um sentido de responsabilidade, uma razão para agir e um modo de pensar sobre a resistência.56
O que se vê na crítica de Scott ao livro de Gordon é um confronto de paradigmas no interior da historiografia de mulheres – um confronto entre o paradigma da história social a partir de baixo mobilizado por Gordon, cuja tarefa é iluminar as lutas de gênero, classe e raça por meio das quais o poder é negociado, subvertido e também resistido pelas chamadas “vítimas” da história, e o paradigma da historiografia pós-moderna, influenciado pela obra de Resenha de Joan W. Scott para Heroes of their own lives: the politics and history of family violence, de Linda Gordon, Signs, v. 15, n. 4, Summer 1990, p. 851, grifo meu.
56
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Foucault, no qual a ênfase está na “construção” da agência das vítimas por meio de mecanismos de controle social e discursivo. Assim como para Michel Foucault não há história das vítimas, mas somente uma história da construção da vitimização, uma história das agências de controle da vítima, também para Scott o que é central metodologicamente é a “construção social da violência familiar”, mais do que as vidas reais das vítimas de violência familiar. Assim como para Foucault todo ato de resistência não é senão outra manifestação de um complexo de poder-discurso onipresente, também para Scott as mulheres que negociam e resistem ao poder não existem; as únicas lutas na história são entre paradigmas de discurso que competem entre si, entre complexos de saber-poder. Vou proceder com cautela: por não ser uma historiadora profissional, está além da minha competência arbitrar a disputa entre Joan Scott e Linda Gordon. O que estou destacando são algumas das questões conceituais envolvidas cujas fontes estão em uma das versões da tese sobre “a morte do sujeito” tratada anteriormente. Vemos na crítica de Scott a Gordon de que modo as premissas foucaultianas sobre a “construção (social) da agência” se contrapõem à abordagem histórica a partir de baixo adotada por Gordon. Se estamos de acordo com Joan Scott, temos uma abordagem de historiografia feminista; se estamos com Gordon, temos outra abordagem. É claro que também poderia ser o caso de que não há um ou/ou aqui, que cada método e abordagem deveria aprender 460
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e se beneficiar com o outro. Mas antes de fazermos um convite Poliana para todas as partes do debate,57 deveríamos deixar claro quais são os entraves conceituais da historiografia pós-moderna para as feministas. Penso que Linda Gordon coloca o que está em jogo de modo bastante sucinto: A bem dizer, as divergências entre mim e Scott atingem o coração das controvérsias contemporâneas sobre os significados de gênero. A perspectiva determinista de Scott salienta gênero como “diferença”, marcado pela alteridade e pelo silenciamento absoluto das mulheres. Eu uso gênero para descrever um sistema de poder no qual as mulheres são subordinadas por meio de relações que são contraditórias, ambíguas e conflituosas – uma subordinação que encontra resistência, uma subordinação na qual as mulheres nem sempre se definiram como outro, na qual as mulheres enfrentam escolhas e tomam atitudes apesar de todas as constrições. Essas são apenas duas das muitas versões de gênero, e ambas,
Essa seria a minha principal crítica à judiciosa resposta de Fraser ao desacordo entre mim e Butler. É possível que, como Fraser argumenta, a antítese entre “Teoria Crítica e pós-estruturalismo” seja árida e enfadonha e que devamos superá-la, embora também seja preciso notar que uma discussão séria mal começou nos Estados Unidos, e que dificilmente essa antítese é “falsa”. Não consigo enxergar uma terceira posição “neopragmática”, que, de um modo verdadeiramente hegeliano, faça uma Aufhebung em nossas verdades parciais e, ao mesmo tempo, evite nossos equívocos. Ver Nancy Fraser, “False anthitheses: a response to Seyla Benhabib and Judith Butler”, Praxis international, v. 11, n. 2, jul. 1991.
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que de modo algum são opostas, podem elucidar as questões relevantes aqui.58
Vemos mais uma vez que a tese da “morte da história” também permite alternativas conceituais: o acordo sobre o fim das metanarrativas, seja do tipo marxiano, que se centra em torno da luta de classes, seja do tipo liberal, que se centra em torno de uma noção de progresso, não é suficiente. Para além desse acordo, começam questões difíceis sobre a relação entre historiografia, política e memória. Deveríamos nos aproximar da história para recuperar a memória das vítimas, as lutas perdidas e as resistências sem sucesso,59 ou deveríamos nos aproximar da história para recuperar a sucessão monótona dos complexos infinitos de “saber/poder” que materialmente constituem selves? Como Gordon assinala, essas abordagens metodológicas têm implicações sobre como devemos pensar “gênero”. Desse modo, também a historiografia pós-moderna coloca alternativas difíceis para feministas que questionam qualquer aliança precipitada ou entusiasmada com essas posições.
Linda Gordon, “Response to Scott”, Signs, v. 15, n. 4, Summer 1990, p. 852.
58 59
No próximo capítulo, “Sobre Hegel, mulheres e ironia”, procuro exemplificar as consequências da aplicação dessa abordagem de Walter Benjamin para a história da filosofia. Ver Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, In: Illuminations: essays and reflections, ed. e intr. de Hannah Arendt. Nova York, Schocken, 1969.
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c) Por fim, gostaria de articular as versões forte e fraca da tese sobre a “morte da metafísica”. Ao considerar esse ponto, seria importante notar já de saída que muito da própria crítica pós-moderna à metafísica ocidental avança sob o feitiço de uma metanarrativa. Trata-se da narrativa primeiro articulada por Heidegger e depois desenvolvida por Derrida de que “a metafísica ocidental está sob o feitiço da ‘metafísica da presença’ ao menos desde Platão”. Essa caracterização da tradição filosófica garante aos pós-modernos a vantagem retórica de apresentar as versões menos defensáveis daquilo contra o que estão argumentando. Vejamos novamente as palavras de Flax: “Para os pós-modernos, esta busca pelo Real esconde o desejo dos filósofos ocidentais de dominar o mundo”; ou: “Assim como o Real é o fundamento da Verdade, também a filosofia é o representante privilegiado do Real” etc. Mas é a tradição filosófica tão monolítica e tão essencialista como os pós-modernos gostariam de defender? Acaso Thomas Hobbes não estremeceria diante da sugestão de que o “Real é o fundamento da Verdade”? O que diria Kant diante da afirmação de que a “filosofia é o representante privilegiado do Real”? Hegel não consideraria a visão de que conceitos e linguagem são uma esfera e o real outra como mais uma versão da ingênua teoria correspondencialista da verdade, a qual o capítulo “Certeza sensível” na Fenomenologia do espírito tão eloquentemente abandona? Em sua versão forte, a tese da “morte da metafísica” não apenas subscreve a uma grandiosa 463
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metanarrativa, mas, de modo mais significativo, essa grandiosa metanarrativa nivela a história da filosofia e seus esquemas conceituais concorrentes a ponto de torná-los irreconhecíveis. Uma vez que essa história se torna irreconhecível, podem ser negligenciados os problemas conceituais e filosóficos relativos a essa proclamação bravata da “morte da metafísica”. A versão fraca da tese da “morte da metafísica”, que é mais influente hoje do que a tese forte Heidegger-Derrida sobre a “metafísica da presença”, é a abordagem de Richard Rorty. Em A Filosofia e o espelho da natureza, Rorty mostrou de uma maneira refinada e convincente que os projetos empiristas e racionalistas do período moderno pressupunham que, em comparação com as ciências naturais em desenvolvimento no período, a filosofia poderia articular a base de validade do conhecimento certo e da ação correta. Rorty nomeia esse projeto “epistemologia”;60 trata-se da visão de que a filosofia é um metadiscurso de legitimação que articula determinados critérios de validade pressupostos por todos os outros discursos. Uma vez que deixa de ser um discurso de justificação, a filosofia perde sua raison d’être. Esse é, de fato, o x da questão. Uma vez que o sujeito do conhecimento, o contexto de investigação, e mesmo os métodos de justificação são destranscendentalizados, contextualizados, historicizados e generificados, o que resta da Richard Rorty, Philosophy and the mirror of nature, Princeton, Princeton University Press, 1979, p. 131 et seq.
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filosofia?61 A filosofia não se torna uma forma de crítica genealógica dos regimes de discurso e poder tal como estes se sucedem uns aos outros em sua infindável monotonia histórica? Ou será que a filosofia se torna uma forma de narração cultural densa do tipo que, até agora, apenas os poetas nos forneceram? Ou será que tudo o que resta da filosofia é uma forma de sociologia do conhecimento que, em lugar de investigar as condições de validade do conhecimento e da ação, investiga as condições empíricas sob as quais comunidades de intepretação geram essas pretensões de validade? Por que essa questão sobre a identidade, o futuro e talvez a possibilidade da filosofia interessa às feministas? A teoria feminista não pode florescer sem se enlear nos debates arcanos sobre o fim ou a transformação da filosofia? Atualmente, a maioria das teóricas feministas tende a argumentar que podemos contornar essa questão; ainda que não seja nossa pretensão ignorá-la, não devemos nos comprometer a respondê-la. Fraser e Nicholson perguntam:
61
Para uma rigorosa consideração dos diferentes problemas e questões envolvidas nessa “sublação” e “transformação” da filosofia, ver Kenneth Baynes, James Bohman e Thomas McCarthy (ed.), After philosophy: end or transformation, Cambridge, MA, MIT Press, 1987.
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Como podemos conceber uma versão da crítica sem filosofia que seja robusta o suficiente para lidar com o árduo trabalho de analisar o sexismo em toda a sua infindável variedade e monótona similaridade?62
A minha resposta é que não podemos, e é isso que me faz duvidar que, enquanto feministas, possamos adotar o pós-modernismo como um aliado teórico. A crítica social sem alguma forma de filosofia não é possível; e, sem a crítica social, o projeto de uma teoria feminista, que está comprometida a um só tempo com o conhecimento e com os interesses emancipatórios das mulheres, é inconcebível. Sabina Lovibond articulou muito bem o dilema do pós-modernismo: Penso que temos razão em desconfiarmos tanto da inadequada visão nietzschiana de um fim da legitimação como da sugestão de que seria de algum modo “melhor” se os exercícios de legitimação fossem conduzidos em um espírito paroquial consciente de si. Pois se o feminismo aspira ser algo mais do que um movimento reformista, então está fadado, mais cedo ou mais tarde, a colocar em questão os limites da paróquia. [...] Assim, o pós-modernismo parece enfrentar um dilema: ou admite a necessidade, nos termos dos Nancy Fraser e Linda Nicholson, “Social criticism without philosophy: an encounter between feminism and postmodernism”, In: Linda Nicholson (ed.), Feminism/postmodernism, Nova York, Routledge, 1990, p. 34.
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objetivos do feminismo, de “virar o mundo de ponta cabeça”, tal como acabo de delinear [...] – e, com isso, abre mais uma vez a porta para a ideia do Esclarecimento de uma reconstrução total da sociedade em termos racionais; ou reafirma de modo dogmático os argumentos já dirigidos contra aquela ideia – e, com isso, autoriza o pensamento cínico de que aqui, como em qualquer lugar, “no novo pluralismo, quem fará o que a quem é deprimentemente previsível”.63
Diante dessas objeções, a resposta dos pós-modernos comprometidos com o projeto de crítica social e com a tese da morte da filosofia enquanto uma metanarrativa de legitimação será que as “narrativas locais”, les petits récits que constituem nossas práticas sociais cotidianas ou nossos jogos de linguagem, são reflexivas e autocríticas o suficiente para julgarem-se a si mesmas. A ficção do Esclarecimento da reflexão filosófica, da episteme contraposta à prática não crítica da doxa cotidiana, é precisamente isso: uma ficção de legitimação que ignora que essas práticas cotidianas e tradições também têm seus próprios critérios de legitimação e crítica. A questão então seria se, dentre os critérios disponibilizados por meio de diferentes práticas, jogos de linguagem, e tradições culturais, não poderíamos encontrar algum que pudesse servir às feministas
Sabina Lovibond, “Feminism and postmodernism”, New Left Review, n. 178, p. 5-28, nov./dez, 1989, esp. p. 22.
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em sua tarefa de crítica social e de transformação política radical.64 Acompanhando Michael Walzer, esses pós-modernos talvez queiram defender que a visão da crítica social nunca é “a visão de lugar algum”, mas é sempre a visão de alguém situado em algum lugar, em alguma cultura, sociedade e tradição.65 Feminismo como crítica situada A primeira resposta para qualquer defensor da “crítica situada” é que culturas, sociedades e tradições não são campos de significado monolíticos, unívocos e homogêneos. Não importa como se pretenda caracterizar o contexto relevante ao qual se recorre – por exemplo, “a tradição de pensamento liberal anglo-americana”, “a tradição da jurisprudência progressista e intervencionista”, “a tradição judaico-cristã”, “a cultura do Ocidente”, “o legado das sufragistas”, “a Ver o comentário de Lyotard: “narrativas […] definem o que se tem o direito de dizer e fazer na cultura em questão, e, como também são parte daquela cultura, são legitimadas pelo simples fato de que fazem o que fazem” (A condição pós-moderna, trad. de Ricardo Corrêa Barbosa, 15. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 2013, p. 42.). Em sua intervenção nesse debate, Rorty se aliou a Lyotard e, contra Habermas, argumentou que Habermas “coça onde não há sarna”. Cf. Richard Rorty, “Habermas and Lyotard on postmodernity”, Praxis international, v. 4, n. 1, p. 34, 1984. Analisei as dificuldades dessa virada para a crítica social imanente em Seyla Benhabib, “Epistemologies of postmodernism: a rejoinder to François Lyotard”, In: Linda Nicholson (ed.), Feminism/postmodernism, p. 107-130.
64
Ver Michael Walzer, Interpretation and social criticism. Cambridge: Harvard University Press, 1987, esp. p. 8-18.
65
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tradição do amor cortês”, “as concepções de justiça do Velho Testamento”, “a cultura política dos Estados de bem-estar democráticos” etc. –, todas essas caracterizações são “tipos ideais”, em um sentido weberiano. Essas caracterizações foram construídas a partir das tramas de significado e interpretação que constituem o horizonte de nosso mundo da vida social. A teórica crítica social não encontra critérios de legitimação e autocrítica como dados na cultura do mesmo modo que poderíamos encontrar, digamos, maçãs em uma árvore e peixinhos dourados em um aquário; ela, tanto quanto os atores sociais, está na posição de constantemente interpretar, de se apropriar, de reconstruir e de constituir as normas, os princípios e os valores que são um aspecto do mundo da vida. Não existe um conjunto único de critérios constitutivos ao qual possamos recorrer na caracterização de práticas sociais complexas. Práticas sociais complexas, assim como tradições constitucionais, visões éticas e políticas, crenças religiosas, e instituições científicas, não são como jogos de xadrez. A teórica crítica social não pode presumir que, ao se voltar para uma caracterização e análise imanentes dessas práticas, encontra um único conjunto de critérios sobre os quais há um consenso universal, de modo que seja possível pressupor que basta contrapor esses critérios ao funcionamento efetivo da prática para que a tarefa da crítica social imanente esteja concluída. Assim, o primeiro defeito da crítica situada é um tipo de “monismo hermenêutico de significado”, o pressuposto de que as narrativas de nossa cultura 469
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são tão unívocas e incontroversas a ponto de que, ao se recorrer a elas, seria possível eximir-se da tarefa da reconstrução típico-ideal e valorativa.66 A crítica social carece da filosofia precisamente porque as narrativas de nossas culturas são tão conflituosas e irreconciliáveis que, mesmo quando se recorre a elas, são inevitáveis um ordenamento das prioridades normativas, um estabelecimento dos pressupostos metodológicos que orientam a escolha de narrativas e um esclarecimento daqueles princípios em nome dos quais se fala. O segundo defeito da “crítica situada” é presumir que as normas constitutivas de uma determinada cultura, sociedade, e tradição, serão suficientes para possibilitar o exercício da crítica em nome de um futuro que se deseja. Certamente haverá momentos em que uma determinada cultura, sociedade ou tradição, estão tão reificadas, dominadas por forças tão brutais, em que o debate e a conversação estão tão ressequidos ou simplesmente impossibilitados, que a crítica social se torna exílio social. Esse gesto não foi exemplificado apenas pelos críticos sociais na modernidade, de Thoreau à Escola 66
Ver a discussão de Georgia Warnke sobre a posição de Michael Walzer para um tratamento mais simpático à possibilidade da crítica social imanente do que o meu em “Social Interpretation and political theory: Walzer and his critics”, Philosophical forum, v. 21, n. 1/2, p. 204 et seq., Fall/Winter 1989-1990. Um exemplo interessante desse “monismo hermenêutico do significado” é a afirmação de M. Foucault: “Cada sociedade tem seu regime de verdade”. Por que não muitos regimes de verdade que competem entre si e se contradizem? Ver: Michel Foucault, “Truth and power”, In: Truth and power, Nova York, [s.n.], 1980, p. 109-33, aqui, p. 131.
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de Frankfurt, de Albert Camus aos dissidentes da Europa Oriental. Tanto na Antiguidade como na Idade Média temos filósofos no exílio, seitas milenaristas, fraternidades e irmandades místicas, e profetas que abandonaram suas cidades. Sem dúvida, a crítica social não precisa ser exílio social; todavia, uma vez que a crítica pressupõe um distanciamento necessário das certezas cotidianas, para talvez, em algum momento, retomá-las e reafirmá-las em um nível mais elevado de análise e justificação, a vocação do crítico social se assemelha mais à vocação do exílio social e do expatriado do que à daquele que nunca saiu de casa, que nunca teve que desafiar as certezas de seu próprio modo de vida. E sair de casa não é chegar a lugar algum; é ocupar um espaço fora dos muros da cidade, em um país anfitrião, em uma realidade social distinta. Não é esse, com efeito, o traço mais característico da condição pós-moderna no século XX? Talvez a nostalgia da “crítica situada” seja uma nostalgia por um lar, pelas certezas de uma cultura e uma sociedade próprias em um mundo no qual nenhuma tradição, nenhuma cultura e nenhuma sociedade podem mais existir sem interação e colaboração, sem confronto e intercâmbio. Quando culturas e sociedades entram em conflito, qual a nossa posição enquanto feministas, enquanto críticas sociais e ativistas políticas? Por fim, gostaria de comentar a respeito de uma ambiguidade que pode circundar o próprio termo “crítica situada”. Com muita frequência nas discussões recentes, esse conceito passou a significar a 471
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prática de “narrativas locais” ou les pétis récits por oposição a grandes teorias ou narrativas de legitimação. Teóricos tão divergentes como Michael Walzer, Jean-François Lyotard e Richard Rorty, certamente têm esse emprego em mente. Há também uma segunda tradição de “crítica situada” que se origina do trabalho do jovem Marx (a prática da crítica imanente ao capitalismo), e que, neste século, foi transformada em uma ferramenta extremamente poderosa de reflexão social e cultural por Theodor Adorno mediante seu método do exercício de “negação determinada”. Eu já abordei as forças e as dificuldades dessa tradição em outro lugar.67 No presente contexto, não me ocupo da segunda tradição, mas da primeira. Minhas objeções à prática de “crítica situada”, tal como entendida por esse grupo de autores contemporâneos (Walzer, Lyotard, Rorty), não pressupõe, todavia, que possa haver uma “crítica transcendente” ou “um ponto de vista arquimediano”.68 O ponto de vista do “universalismo interativo” Ver meu Critique, norm, and utopia, Nova York, Columbia University Press, 1986.
67
Cf. a afirmação de Fraser: “Permaneço convencida, portanto, de que a crítica social sem filosofia é possível se entendemos por ‘filosofia’ o que Linda Nicholson e eu entendemos, a saber, um discurso a-histórico, transcendental que pretende articular o critério de validade para todos os outros discursos” (Nancy Fraser, “False anthitheses: a response to Seyla Benhabib and Judith Butler”, Praxis international, v. 11, n. 2, jul. 1991, p. 170). Mas por que deveríamos entender a filosofia desse modo se boa parte da filosofia moderna, desde o século XIX e desde Hegel, critica a-historicidade e o transcendentalismo, e, além disso, também afirmou que a filosofia é um discurso de legitimação empenhado na autorreflexão crítica que em geral falta em outros discursos? É simplesmente implausível, além de ser história intelectual pobre, reduzir o termo filosofia e
68
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defendido neste livro é ele próprio bastante situado dentro do horizonte hermenêutico da modernidade. Au fond, toda crítica é situada, mas as diferenças surgem com respeito à construção do contexto no qual a pensadora considera que está situado seu próprio pensamento. Em oposição ao recuo para as pequenas narrativas e para o saber local, considero que mesmo esse momento pós-moderno está situado dentro dos processos mais amplos de modernização e racionalização que avançam em escala mundial desde o século XVII, os quais verdadeiramente se tornaram realidades globais em nosso século.69 Nesse sentido, o universalismo interativo é a prática de sua história a uma caricatura e então refutá-la. Hegel não é Husserl, Martin Heidegger não era a-histórico – se sua filosofia deve ou não ser entendida como uma versão de um pensamento transcendental ainda é uma questão em aberto; seria até possível sugerir que o Wittgenstein tardio, a despeito de todos os movimentos historicistas na análise dos jogos de linguagem como formas de vida, reavivou uma forma de investigação transcendental sobre as condições de possibilidade das comunidades sociais e linguísticas. Contrariamente ao que Fraser alega, nem toda filosofia que seja criteriológica ou normativamente orientada, ou orientada para questões de validade, precisa ser transcendental ou a-histórica. A única resposta filosófica para o pós-modernismo não é uma forma de fundacionalismo, mas um discurso que aceita a legitimidade de questões de validade, e que, ao mesmo tempo, procura responder a essas questões no contexto dos insights das ciências humanas empíricas e sociais. A teoria crítica social da Escola de Frankfurt sempre esteve situada entre “filosofia e ciência social”. Fraser pretende se atrelar a essa tradição só que dispensando um dos termos, a saber, a filosofia. 69
Um dos aspectos mais infelizes do debate do pós-modernismo tem sido a ausência de uma reflexão sintética sobre, por um lado, a realidade social referida como “pós-industrialismo”, “pós-fordismo”, “pós-keynesianismo”, e, por outro, o
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crítica situada para uma comunidade global que não se furta a derrubar os “muros da paróquia”. Estamos perto de resolver a questão colocada no final da seção anterior sobre a possibilidade da crítica social feminista sem filosofia? Quando abordei a tese pós-moderna da “morte da metafísica”, fenômeno cultural e intelectual referido como “pós-modernismo”. Embora eu me afaste da lógica marxiana de Jameson, que afirma que o pós-modernismo “corresponde a” ou “reflete” um determinado estágio no desenvolvimento do capitalismo internacional, suas contribuições para esse debate são revigorantes e esclarecedoras, particularmente em sua tentativa de abordar a questão de modo mais amplo e tratar o pós-modernismo como uma reflexão e uma indicação de algum tipo de realidade social global em cuja rede todos estamos presos. Essa linha de reflexão também precisa ser buscada por feministas. Porém, ironicamente, o tipo de teoria social que nos permitiria entender a “verdade” do pós-modernismo como uma realidade social vivida acaba sendo impossibilitado pelas pressuposições teóricas do pós-modernismo que negam qualquer distinção entre cultura e sociedade, significação e estrutura, significado social e ação social. Mas, certamente, a teoria social contemporânea pode ultrapassar as falsas antíteses “Althusser versus Derrida” em vista de uma integração mais frutífera de estrutura e significação, ação e significado, sociedade e cultura. Ver Frederic Jameson, Postmodernism, or, the cultural logic of capitalism, Durham, Duke University Press, 1991. Para uma análise esclarecedora da emergência de realidades sociais “globais” e de uma história global, ver Wolf Schäffer, “Global History”, artigo apresentado no encontro da Global History Association, Lugano, Itália, jul. 1992. O pós-modernismo acabou nos forçando a focar no local em lugar do internacional, obscurecendo assim o alcance em que hoje o próprio local não é senão uma extensão do internacional. Minha impressão é que, conforme a realidade social que enfrentamos fica cada vez mais global, complicada e intricada, nossas unidades de análise ficam cada vez menores, fragmentadas e marginais.
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O feminismo e a questão do pós-modernismo
sugeri que a versão fraca dessa tese identificaria o fim da metafísica com o fim da filosofia enquanto metadiscurso de legitimação que transcende narrativas locais, ao passo que a versão forte dessa tese eliminaria, argumentei, não só as metanarrativas de legitimação mas também a prática de legitimação transcendente ao contexto e a crítica como um todo. Pós-modernos poderiam então responder que esse não precisa ser o caso, pois haveria critérios internos de legitimação e crítica em nossa cultura para os quais a teórica crítica social poderia se voltar, de modo que a crítica social sem filosofia seria possível. Meu argumento agora é que a prática da crítica social situada tem dois defeitos: primeiro, a virada para critérios internos de legitimação parece nos eximir da tarefa de justificação filosófica somente porque os pós-modernos assumem, inter alia, que há um conjunto óbvio desses critérios aos quais podemos recorrer. Mas, se culturas e tradições são mais como conjuntos de narrativas que competem entre si e de tramas incoerentes de significado, então a teórica crítica tem de construir, a partir dessas considerações conflituosas e incoerentes, o conjunto de critérios em nome dos quais fala. O “monismo hermenêutico do significado” não nos exime da responsabilidade de justificação normativa. Em segundo lugar, argumentei que a vocação da crítica social pode exigir exílio social, pois pode haver momentos em que as normas e os valores imanentes de uma cultura estão tão reificados, mortos ou petrificados que não se pode mais falar em seu nome. 475
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A teórica crítica social que está em exílio não adota “a visão de lugar algum”, mas adota “a visão do lado de fora dos muros da cidade”, onde quer que estejam esses muros e limites. Não deve ser coincidência que, de Hipátia a Diotima, a Olympe de Gouges e Rosa Luxemburgo, a vocação da crítica e pensadora feminista tenha feito com que ela abandonasse o lar e os muros da cidade. O feminismo e o recuo pós-moderno da utopia Nas seções anteriores deste capítulo, discordei da visão de algumas teóricas feministas de que feminismo e pós-modernismo são aliados políticos e conceituais. Uma determinada versão do pós-modernismo não só é incompatível com o feminismo, como pode corroer a própria possibilidade do feminismo enquanto articulação teórica das aspirações emancipatórias das mulheres. Essa corrosão acontece porque, em sua versão forte, o pós-modernismo está comprometido com três teses: a morte do homem, entendida como a morte do sujeito autônomo e autorreflexivo, capaz de agir por princípios; a morte da história, entendida como o rompimento do interesse epistêmico na história de grupos combativos ao construir suas narrativas passadas; a morte da metafísica, entendida como a impossibilidade de criticar ou legitimar instituições, práticas e tradições que não por meio do apelo imanente à autolegitimação das “pequenas narrativas”. Assim interpretado, o 476
O feminismo e a questão do pós-modernismo
pós-modernismo corrói o compromisso feminista com a agência e o senso de ipseidade das mulheres, com a reapropriação da história própria das mulheres em nome de um futuro emancipado e com o exercício de uma crítica social radical que descortine o gênero “em toda a sua infindável variedade e monótona similaridade”. Ouso sugerir nestas considerações finais que o pós-modernismo produziu um “recuo da utopia” dentro do feminismo. Por “utopia” não me refiro à visão moderna de uma reestruturação indiscriminada de nosso universo social e político de acordo com algum plano racionalmente elaborado. Essas utopias do Esclarecimento não só deixaram de convencer, mas, como as “utopias socialistas” anteriormente existentes saíram, por iniciativa própria, de seu estado de graça, uma das maiores utopias racionalistas da humanidade, aquela de uma economia racionalmente planificada que conduziria à emancipação humana, também chegou ao fim. O fim dessas visões racionalistas de engenharia social não pode esgotar as fontes de utopia na humanidade. Tal como o anseio pelo “inteiramente outro” (das ganz Andere), para aquilo que ainda não é, este pensamento utópico é um imperativo prático-moral. Sem um tal princípio de esperança regulador, são impensáveis tanto a moralidade como a transformação radical. O que atemoriza os oponentes da utopia, como Lyotard, é que, em nome de tal utopia futura, o presente, em sua múltipla ambiguidade, diversidade, pluralidade e contradição, será reduzido a uma grande e nivelada narrativa. Eu compartilho 477
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de algumas das preocupações de Lyotard, seja na medida em que o pensamento utópico se converte em uma desculpa para o mais crasso instrumentalismo no presente – os fins justificam os meios –, seja na medida em que uma utopia vindoura exima de crítica práticas autoritárias e não democráticas do presente. Ainda assim, não podemos lidar com essas preocupações políticas ao recusar o impulso ético da utopia, mas apenas ao articular os princípios normativos de ação e organização democráticas no presente. Os pós-modernos vão se juntar a nós nessa tarefa ou vão se contentar com entoar o canto dos cisnes do pensamento normativo em geral? O recuo da utopia dentro da teoria feminista na última década passou a converter em embuste “essencialista” qualquer tentativa de formular uma ética feminista, uma política feminista, um conceito feminista de autonomia e até mesmo uma estética feminista. Pode ser verdade o fato de que as posições de Gilligan, Chodorow ou Sarah Ruddick (e, também nesse sentido, de Julia Kristeva) articulem somente as sensibilidades de mulheres brancas, de classe média, abastadas, do primeiro mundo e heterossexuais (embora eu chegue a ter dúvidas empíricas sobre isso). Mas o que temos a oferecer em seu lugar? No que diz respeito ao projeto de uma ética que deveria nos orientar no futuro, somos capazes de oferecer uma visão melhor do que a síntese entre o pensamento da justiça autônoma e o cuidado empático? No que diz respeito à visão da personalidade autônoma almejada para o futuro, somos capazes de articular um sentido de self 478
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melhor do que o modelo da individualidade autônoma com limites egoicos fluidos e não ameaçada pela alteridade?70 No que diz respeito à visão de política feminista, somos capazes de articular um modelo melhor para o futuro do que um regime político radicalmente democrático que também promova valores da ecologia, do não militarismo e da solidariedade entre os povos? O pós-modernismo pode nos ensinar os engodos teóricos e políticos de por que utopias e pensamento fundacionalista podem dar errado, mas isso não deveria conduzir a um recuo completo da utopia. Pois nós, enquanto mulheres, temos muito a perder ao desistir da esperança utópica no inteiramente outro.71 Este artigo foi originalmente apresentado em outubro de 1991 no Greater Philadelphia Philosophy Consortium. Uma versão reduzida foi publicada em Praxis international, v. 11, n. 3, jul. 1991, junto com contribuições de Judith Butler e Nancy Fraser. Gostaria de agradecer a Wolf Schäfer, Lorenzo Simpson e, em particular, Nancy Fraser por suas críticas a uma versão anterior. Para um tratamento vigoroso sobre esses temas, já contidos na filosofia de Adorno, ver a magistral reflexão de Jessica Benjamin sobre psicanálise, feminismo e dominação. Jessica Benjamin: The bonds of love: psychoanalysis, feminism and the problem of domination, Nova York, Pantheon, 1988.
70
Para uma posição feminista que procura preservar esse elemento utópico, ainda que ratifique a filosofia pós-moderna, ver Drucilla Cornell, “Postructuralism, the ethical relation and the law”, Cardoso law review, v. 9, n. 6, p. 1587-628, e id., “From the lighthouse: The promise of redemption and the possibility of legal interpretation”, Cardoso law review, v. 11, n. 5/6, p. 1687-1714, jul./ago. 1990.
71
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Sobre Hegel, mulheres e ironia Das Bekannte überhaupt ist darum, weil es bekannt ist, nicht erkannt. [O que é bem conhecido é desconhecido, precisamente porque é bem conhecido.] (G. W. F. Hegel, Phaenomenologie des Geistes)
Algumas perplexidades metodológicas de uma abordagem feminista A década de 1980 foi chamada de “a década das humanidades” nos Estados Unidos. Em várias instituições de ensino superior, ainda ocorre um debate sobre o que constitui a “tradição” ou o “cânone” em obras literárias, artísticas e filosóficas que valem a pena ser transmitidas às futuras gerações do último quarto do século XX. No centro desse debate está a questão: se o que havia sido considerado, até então, as maiores obras da tradição ocidental é, quase que uniformemente, o produto de um grupo específico de indivíduos, a saber, homens europeus e norte-americanos, brancos e proprietários, então o quão universal e representativa é a sua mensagem, o quão inclusivo é seu âmbito e o quão imparcial é a sua visão?
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A teoria feminista esteve na vanguarda desse questionamento, e, sob o impacto dos estudos feministas, a superfície do cânone das “grandes obras” ocidentais foi fraturada para sempre, sua unidade dispersada e sua legitimidade desafiada. Depois que a questão da mulher é levantada, depois que nos perguntamos como um pensador conceitua a distinção entre homens e mulheres, nós experimentamos uma mudança de Gestalt [figura]: nós começamos a ver os grandes pensadores do passado sob um novo olhar, e nas palavras de Joan Kelly Gadol, “cada olho vê uma imagem diferente”.1 A visão da teoria feminista é “duplicada”, um olho vê o que a tradição o treinou a ver, o outro busca por aquilo que a tradição lhe disse que nem valia a pena procurar. Como é possível, de fato, uma “leitura feminista” da tradição? No momento, vejo duas abordagens dominantes, cada uma com certas deficiências. Eu descrevo a primeira abordagem como “o ensinamento do bom pai”. A teoria feminista liberal dominante trata as concepções da tradição em relação às mulheres como uma série de equívocos infelizes, algumas vezes constrangedores, mas essencialmente corrigíveis. Inspirando-se a partir do exemplo de um pensador progressista como John Stuart Mill, essas teóricas buscam, nos textos clássicos, aqueles momentos de insight sobre a igualdade e a dignidade das 1
Joan Kelly Gadol, “Some methodological implications of the relations between the sexes”, In: Women: history and theory, University of Chicago Press, Chicago, 1984, p. 1 et seq.
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
mulheres. Eles se desapontam quando seu filósofo favorito profere bobagens sobre o assunto, mas essencialmente sustentam que não há incompatibilidade entre os ideais do Esclarecimento de liberdade, igualdade e autorrealização e as aspirações das mulheres. A segunda perspectiva, eu caracterizaria como “o grito da filha rebelde”. Concordando com Lacan que a linguagem é o universo simbólico que representa a “lei do pai”, e aceitando que toda linguagem foi uma codificação de poder do pai, essas filhas rebeldes procuram pelo discurso feminino às margens da tradição logocêntrica ocidental. Se é impossível pensar na tradição logocêntrica ocidental sem oposições binárias, então a tarefa da leitura feminista se torna a articulação não de um novo conjunto de categorias, mas da transcendência do discurso categorial como um todo. Busca-se não por uma nova linguagem, mas por um discurso às margens da linguagem. Contraposta a essas abordagens, neste ensaio, gostaria de delinear um “discurso feminista de empoderamento”. Juntamente com a segunda perspectiva, eu concordo que o desafio feminista à tradição não pode deixar suas categorias fundamentais inalteradas. Revelar o subtexto de gênero que os ideais da razão e do Esclarecimento possuem expõe a universalidade pressuposta desses ideais. Ainda assim, eles não devem ser postos completamente de lado. Em vez disso, podemos perguntar o que essas categorias significaram para as vidas reais das mulheres em certos períodos históricos e como, se as mulheres devem ser pensadas como sujeitos e não 483
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como cumpridoras de certas funções, o horizonte semântico dessas categorias é transformado. Depois de abordarmos a tradição visando recuperar dela a subjetividade das mulheres e suas vidas e atividades, nós ouvimos vozes contraditórias e reivindicações concorrentes, e vemos que os chamados discursos “descritivos” sobre os sexos são apenas “legitimações” do poder masculino. A visão tradicional da diferença de gênero é o discurso daqueles que venceram e que codificaram a história como a conhecemos. Mas como a história das ideias pareceria do ponto de vista das vítimas? Que ideais, aspirações e utopias do passado foram destruídos? Podemos retomar sua memória a partir do campo de batalha da história? Este ensaio tenta aplicar esse “discurso de empoderamento” à visão de G. W. F. Hegel em relação às mulheres. O tratamento que Hegel confere às mulheres tem recebido cada vez mais atenção nos últimos anos sob o impacto do questionamento feminista da tradição.2 Esse desafio feminista nos levou a perguntar: o tratamento que Hegel confere às mulheres é meramente uma consequência de suas predileções conservadoras? Foi Hegel incapaz de ver que ele fez a “dialética” excluir as mulheres e as condenou a um modo a-histórico de existência, 2
Cf. Genevieve Lloyd, The man of reason: “male” and “female” in western philosophy, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1984; Patricia J. Mills, Woman, nature and psyche, Yale University Press, New Haven, 1987; Benjamin Barber, “Spirit’s Phoenix and History’s Owl”, Political Theory, 16.1, 1988, p. 5-29.
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
fora dos domínios de luta, trabalho e cisão [diremption] que, em sua perspectiva, são característicos da consciência humana como tal? 3 A “questão da mulher”, no pensamento de Hegel, é mais um exemplo do endosso acrítico de Hegel às instituições do seu tempo ou essa questão é indicação de uma falha na estrutura mesma da própria dialética? Benjamin Barber, por exemplo, concordando com a segunda opção, escreveu recentemente: O que esse paradoxo revela é que a posição de Hegel sobre as mulheres não é nem o produto da contingência nem um efeito de um preconceito ad hoc. Em vez disso, ela é a consequência necessária de sua crença de que os “Preconceitos” de sua era são, de fato, a realidade produzida pela história na época da emancipação. Hegel não precisa racionalizá-los: porque eles são, eles já são racionais. Eles precisam apenas ser incluídos e explicados pela filosofia. O Espírito pode guiar e direcionar a história, mas, em última instância, apenas a história pode nos dizer onde o Espírito pretende que ela vá.4
Entretanto, julgar onde a história pretende que o Espírito vá porque “apenas a história pode ordenar [...] o Espírito” requer uma explicação mais complicada e contraditória da posição da família e Cf. Heidi Ravven, “Has Hegel anything to say to feminists?”, In: The owl of Minerva, 19.2, 1988, p. 149-168.
3
4
Barber, “Spirit’s phoenix and History’s owl”, Political Theory, 16.1, 1988, p. 20, grifos do original.
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das mulheres ao fim do século XVIII e início do século XIX, nos estados alemães, do que tanto Barber quanto outros comentadores que analisaram essa questão nos proporcionaram até agora. Eu sugiro que, para julgar se a dialética hegeliana excluiu as mulheres ou não, devemos primeiramente tentar definir o “horizonte discursivo” das visões e reivindicações concorrentes dentro do qual Hegel articulou sua posição. Para avaliar as opções históricas a respeito das relações de gênero no tempo de Hegel, nós temos de ir além da metodologia tradicional de análise de texto para a “visão duplicada” da teoria feminista. Ao praticar essa visão em dobro, nós não ficamos satisfeitos com a análise dos discursos textuais sobre mulheres, mas questionamos onde as próprias mulheres estavam em um dado período em que um pensador viveu. Com um olho, vemos o que aparece no texto, e com o outro, o que o texto esconde nas notas de rodapé e nas margens. O que surge então é um “espaço discursivo” de pretensões de poder concorrentes. O horizonte discursivo da visão de Hegel sobre as mulheres e a família é definido, por um lado, pela rejeição do patriarcado político (que mistura o doméstico com o político, o privado com o público), e, por outro lado, pela censura e pelo antagonismo em relação aos esforços da primeira emancipação feminina. Este ensaio é dividido em duas partes: ao usar o método tradicional de análise de texto, na primeira parte, eu exploro a lógica de oposições, de acordo com a qual Hegel desenvolve sua perspectiva sobre as relações de gênero e a subordinação feminina. Em particular, eu me 486
Sobre Hegel, mulheres e ironia
foco na complexa relação entre razão, natureza, gênero e história. Em segundo lugar, tendo delineado a perspectiva de Hegel sobre as mulheres em sua filosofia política, eu situo seu discurso dentro do contexto das perspectivas históricas sobre as mulheres e a família na virada do século XVIII. Eu leio Hegel na contramão; começando por certas notas de rodapé e marginalia nos textos, vou na direção de recuperar a história daquelas que a dialética deixa para trás. As mulheres no pensamento político de G. W. F. Hegel (1770-1831) Em muitos aspectos, a filosofia política de Hegel anuncia o fim da doutrina tradicional da política e sinaliza sua transformação em ciência social. Geist [Espírito], que emerge da natureza, transforma a natureza em um segundo mundo; essa “segunda natureza” abrange o mundo humano e histórico da tradição, das instituições, leis e práticas (objektiver Geist [Espírito objetivo]), como também a autorreflexão dos sujeitos que conhecem e agem sobre o Espírito objetivo que é incorporado em obras de arte, religião e filosofia (absoluter Geist [Espírito absoluto]). Geist é um princípio transindividual que se desdobra na história e cujo objetivo é fazer da externalização sua “obra”. Geist externaliza-se na história ao se apropriar, alterar e moldar o que é dado de tal forma a fazê-lo corresponder a si mesmo e a fazê-lo incorporar sua própria 487
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subjetividade, quer dizer, razão e liberdade. A transformação da substância em sujeito é atingida quando liberdade e racionalidade são incorporadas no mundo de tal maneira que “o domínio da liberdade” é atualizado e “o mundo da mente [é] gerado a partir de si mesmo como uma segunda natureza”. O mundo social é Substância, quer dizer, ele tem uma existência objetiva para que todos a vejam e a compreendam;5 ele também é sujeito, porque o que o mundo social e ético é pode ser conhecido apenas pela compreensão da subjetividade dos indivíduos que o compõem.6 Com o conceito de Hegel de Espírito objetivo, o campo de investigação da moderna ciência social, quer dizer, individualidade e sociedade, aparece. Esse conceito de Geist permite a Hegel transcender a base “naturalística” das concepções de gênero no período moderno e colocar a relação entre os sexos no mundo social, simbólico, histórico e cultural? Hegel, por um lado, vê o desenvolvimento da subjetividade e da individualidade dentro do contexto da comunidade humana; por outro lado, ao fixar homens e mulheres a seus papéis sexuais tradicionais, Hegel codifica diferenças específicas de gênero como aspectos de uma ontologia racional que refletiria a estrutura profunda de Geist. As mulheres são vistas como representando os princípios da particularidade (Besonderheit), imediação 5
Hegel, Hegel’s philosophy of right, trad. e ed. T. M. Knox, Oxford University Press, Oxford, 1973, parágrafo 144, p. 105. Ibid., parágrafo 146, p. 105-106.
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
(Unmittelbarkeit), naturalidade (Natürlichkeit) e substancialidade (Substanzialität), enquanto os homens representam universalidade (Allgemeinheit), mediação (Vermittlung), liberdade (Freiheit) e subjetividade (Subjektivität). Hegel desenvolve sua ontologia racional do gênero dentro de uma lógica de oposições. A tese da “desigualdade natural” entre os sexos Com base nas observações de Hegel sobre a família, as mulheres e a criação dos filhos espalhadas ao longo da Lectures on the philosophy of History [Lições de filosofia da História], concluo que ele estava bastante ciente que as diferenças entre os sexos eram constituídas cultural, simbólica e socialmente. Por exemplo, na seção sobre o Egito, Hegel se refere às observações de Heródoto de que as mulheres urinavam em pé, enquanto os homens se sentavam, que os homens usavam uma vestimenta, e as mulheres duas; que as mulheres se envolviam em ocupações ao ar livre, enquanto os homens permaneciam em casa para tecer. Em uma parte do Egito, a poligamia prevalecia; em outra, a monogamia. Seu julgamento geral sobre o assunto era que os egípcios fazem exatamente o oposto dos outros povos.7 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, em Hegels Sämtliche Werke, G. Lasson (ed.), v. 8, Leipzig, 1923, p. 471. Traduzido por J. Sibree como The philosophy of History, New York, Dover, 1956, p. 205. Como a tradução de Sibree diverge do original neste caso, eu usei minha tradução nessa passagem.
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Situando o self
As próprias reflexões de Hegel sobre a importância da família entre os chineses, o grande respeito que é mostrado às mulheres nessa cultura e o seu comentário sobre a prática chinesa de concubinato novamente indicam uma forte consciência de que o papel das mulheres não é definido naturalmente, e sim cultural e socialmente.8 Essas passagens mostram uma clara consciência das variações culturais, históricas e sociais na família e nas relações sexuais. Ainda assim, embora Hegel rejeite que diferenças entre “homens” e “mulheres” sejam definidas naturalmente, e, em vez disso, as veja como parte do Espírito de um povo (Volksgeist), ele não deixa dúvidas de que considera apenas um tipo de relações familiares e apenas uma divisão particular de trabalho ente os sexos como racional e normativamente justa, que é a prática sexual monogâmica da família nuclear europeia, em que a mulher é confinada à esfera privada e o homem à pública. Para justificar esse arranjo, Hegel explicitamente invoca a superioridade do homem sobre a mulher enquanto reconhece sua complementaridade funcional no Estado moderno. A “superioridade” do homem As passagens mais reveladoras a esse respeito são os parágrafos 165 e 166 de Filosofia do Direito e nos adendos a eles. Na edição The Philosophy of History, trad. de Sibree, p. 121-122.
8
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
de Lasson de Rechtsphilosophie [Filosofia do Direito], Hegel escreve: “A determinação natural de ambos os sexos adquire, por meio da razoabilidade, significação tanto intelectual quanto ética”.9 A essa referência explícita às “determinações naturais dos sexos” é dada uma significação ontológica no próximo parágrafo: Um sexo é por isso o espiritual, como o que se cinde na autonomia pessoal que é para si e se cinde no saber e querer da universalidade livre, na autoconsciência do pensamento que concebe e no querer do fim último objetivo – o outro sexo é o espiritual conservando-se na unidade como saber e querer do substancial na forma da singularidade concreta e do sentimento; – aquele na relação com o exterior, o potente e o ativo, este, o passivo e subjetivo. O homem tem por isso sua vida substancial efetiva no Estado, na ciência e em coisas semelhantes, e de hábito na luta e no trabalho com o mundo exterior e consigo mesmo, de modo que é somente para além da sua cisão que ele conquista a unidade autônoma consigo, cuja intuição calma e a eticidade subjetiva que sente ele tem na família, na qual a mulher tem sua determinação substancial e nessa piedade tem sua disposição de espírito.10
Eu revisei a tradução de Knox nessa passagem, em Hegel’s Philosophy of Right, parágrafo 165, p. 114, de acordo com Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Lasson (ed.), parágrafo 165, p. 144, grifos do original.
9
Hegel’s philosophy of Right, Knox (ed.), parágrafo 166, p. 114.
10
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Situando o self
Para Hegel, as vidas dos homens estão relacionadas com o Estado, a ciência e o trabalho no mundo exterior. Dividindo a si mesmo (sich entzweiend) da unidade da família, o homem objetifica o mundo externo e o conquista por meio da atividade e da liberdade. A “determinação substancial” da mulher, ao contrário, está na família, na unidade e na devoção (Pietät) características da esfera privada. Hegel sugere que mulheres não são indivíduos; pelo menos, não na mesma medida e da mesma forma que os homens o são. Elas são incapazes de luta espiritual e cisão (Entzweiung) que caracterizam as vidas dos homens. Em uma passagem da Phänomenologie [Fenomenologia] referente à tragédia de Antígona, ele indica que, para as mulheres, “não é esse homem, nem essa criança, mas um homem e crianças em geral” o que é significativo.11 O homem, ao contrário, individua seus desejos e “porque ele possui, como um cidadão, o poder autoconsciente da universalidade, ele adquire, desse modo, o direito do desejo e, ao mesmo tempo, preserva sua liberdade em relação a ele”.12 O mais significativo é o fato de que aqueles aspectos nos quais Hegel considera os homens e mulheres espiritualmente diferentes são precisamente aqueles aspectos que definem as mulheres como
11
G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, J. Hoffmeister (ed.), Philosophische Bibliothek, v. 114, Hamburg, 1952, p. 326. Traduzido por A. V. Miller como Hegel’s phenomenology of Spirit, New York, Oxford University Press, 1977, p. 274, grifos do original. Ibid.
12
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
“menos” que seres humanos. Como Platão e Aristóteles, Hegel não apenas atribui particularidade, intuição e passividade às mulheres e universalidade, pensamento conceitual e “o poderoso e o ativo” aos homens, mas vê nos homens as características que definem a espécie como humana. Lembremos que Geist constitui a segunda natureza ao emergir de sua unidade substancial em uma cisão (Entzweiung) em que ele se coloca acima e contra o mundo. O processo pelo qual a natureza é humanizada e a história é constituída é essa atividade de Entzweiung, seguida pela externalização (Entäusserung), a saber, a objetivação (Vergegenständlichung) dos propósitos e instituições humanos em um mundo tal que esse mundo se torna um lar para a autoexpressão humana. As mulheres, porque não podem superar a unidade e emergir da vida na família para o mundo da universalidade, estão excluídas da atividade que constitui a história. Suas atividades no domínio privado, a saber, reprodução, criação dos filhos e a satisfação nas necessidades emocionais e sexuais dos homens, colocam-nas fora do mundo do trabalho. Isso significa que as mulheres não possuem história e que são condenadas a repetir os ciclos da vida. A vida política e a família Ao incluir a família como o primeiro estágio da vida ética (Sittlichkeit) junto com a “sociedade civil” e “o Estado”, Hegel revela o quanto essa instituição é crucial para a constituição do Estado 493
Situando o self
moderno em sua perspectiva. A família é significativa na arquitetônica política de Hegel porque ela é a esfera em que o direito do indivíduo moderno à particularidade (Besonderheit) e à subjetividade (Subjektivität) é realizado.13 Como Hegel frequentemente observa, o reconhecimento do “momento subjetivo” do indivíduo livre é a principal força do Estado moderno quando comparado com a polis antiga. Na família, o direito à particularidade é exercido no amor e na escolha do cônjuge, enquanto o direito à subjetividade é exercido na preocupação com a proteção e o bem-estar moral dos outros membros da família. Os vários Adendos à seção sobre a família, particularmente na edição de Griesheim de Filosofia do Direito,14 revelam que Hegel está preocupado com essa instituição não da mesma forma que Aristóteles – que quer disciplinar as mulheres –, nem da mesma forma que Rousseau – que deseja preparar os verdadeiros cidadãos do futuro – mas principalmente do ponto de vista da liberdade do súdito masculino no Estado moderno. Já em Filosofia da História, Hegel observou que a confusão entre autoridade política e autoridade familiar resultou no patriarcalismo, e que tanto na China quanto na Índia isso teve como consequência a supressão da Hegel’s philosophy of Right, Knox (ed.), parágrafos 152, 154, p. 109.
13
Cf. a excelente edição, por K. H. Ilting, preparada seguindo as anotações de aula de K. G. v. Griesheim (1824-1825), de Philosophie des Rechts, Klet-Cotta, Stuttgart, 1974, v. 6.
14
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
liberdade da vontade por meio da regulação legal da vida familiar e das relações dentro dela. O declínio do patriarcado político também significa uma estrita separação entre o privado e o público, entre as esferas moral e íntima, e o domínio do direito público. O sistema jurídico situa-se no começo e no fim da família, ele a circunscreve, mas não controla seu funcionamento interno ou suas relações. Ele reconhece e administra, junto com a igreja, o contrato de casamento e também os direitos e garantias legais de herança, quando a unidade familiar é dissolvida. Nesse contexto, Hegel concede às mulheres certos direitos legais significativos. Ele critica radicalmente Kant por incluir mulheres, crianças e empregados domésticos sob a categoria de jura realiter personalia ou Personen-Sachen-Recht [direitos das pessoas-das coisas].15 Mulheres são pessoas, quer dizer, sujeitos legais e de direitos, junto aos homens. Elas são livres para escolher seus cônjuges;16 elas podem possuir propriedade, embora, quando casadas, seja o homem que represente a família “como a personalidade jurídica diante dos outros”.17 Ainda assim, as mulheres têm direito a herdar propriedade em caso de morte e mesmo em caso de divórcio.18 Hegel é contra 15
Hegel’s philosophy of Right, Knox (ed.), Nota para o parágrafo 40, p. 39; cf. também a edição Griesheim, parágrafo. 40 Z, p. 180-181. Ibid., parágrafo 168, p. 115.
16
Ibid., parágrafo 171, p. 116.
17
Ibid., parágrafo 172, p. 117.
18
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Situando o self
todos os elementos romanos e feudais da lei que reverteriam toda propriedade da família ao clã familiar (die Sippe) ou que colocariam restrições à plena herança e alienabilidade dessa propriedade.19 Além dos direitos de propriedade, a questão jurídica que mais preocupa Hegel é a do divórcio. O divórcio representa um problema particular porque, como um fenômeno, pertence a duas categorias ao mesmo tempo. Por um lado, é um assunto jurídico tanto quanto o contrato de casamento; por outro, é uma questão que pertence à esfera “ética” e, mais especificamente, à subjetividade dos indivíduos envolvidos. Hegel admite que, como é a atração corpóreo-sensual e também a atração espiritual e o amor entre dois indivíduos particulares o que forma a base do contrato de casamento, uma alienação entre eles pode acontecer, o que justifica o divórcio; mas isso só deve ser determinado por uma autoridade não relacionada e impessoal, por exemplo, a corte.20 Finalmente, Hegel justifica a monogamia A única exceção a essa regra é o direito do primogênito, quer dizer, que o filho mais velho, dentre a nobreza fundiária, receba a propriedade da família. Já se observou há bastante tempo que, aqui, Hegel, de fato, apoia os interesses históricos da aristocracia fundiária prussiana contra a ampla ideologia burguesa a favor das transações de bens e da propriedade livres e desembaraçadas, as quais defendeu no restante do seu sistema. Entretanto, também nessa questão, Hegel é um modernista, na medida em que sua defesa da primogenitura entre os membros dos estamentos fundiários não é justificada em referência a algum direito de família, mas em referência a garantir uma renda independente para o filho mais velho da família, que deve funcionar como um representante político de sua classe. Cf. Hegel’s philosophy of Right, Knox (ed.), parágrafo 306 e nota, p. 293.
19
Ibid., parágrafo 176, p. 118.
20
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
como a única forma de casamento que é verdadeiramente compatível com a individualidade da personalidade e a subjetividade do sentimento. Em uma nota a esse parágrafo, nas lições de Griesheim, ele observa que a monogamia é a única forma de casamento compatível com a igualdade entre homens e mulheres.21 Longe de ontologizar ou repetir mecanicamente os preconceitos do seu tempo, como Benjamin Barber sugere, Hegel é um pensador do Esclarecimento no que diz respeito ao direito de livre escolha do cônjuge, da propriedade das mulheres e dos direitos de divórcio, defendendo as transformações no mundo moderno iniciadas pela Revolução Francesa e pela disseminação do Código Civil revolucionário. De acordo com Das Allgemeine Landrecht [A lei geral da terra] da Prússia de 1794, o direito de livre escolha do cônjuge e, em particular, o casamento entre membros de vários Stände – os estratos feudais da sociedade medieval – eram estritamente proibidos. Era estipulado legalmente “que homens da nobreza [...] não podiam contrair casamento [...] com mulheres de origem camponesa ou da baixa burguesia (geringerem Bürgerstand)”.22 Se tais casamentos ocorressem mesmo assim, eles eram declarados “nulos” e os juízes “não possuíam o poder de aceitar sua continuação”.23 Philosophie des Rechts, edição Griesheim, parágrafo 167Z, p. 446.
21
Hans Ulrich Wehler, Deutsche Gesellschajtsgeschichte, Darmstadt, c. H. Verlag, 1987, v. 1, p. 147.
22
Ibid.
23
497
Situando o self
Para evitar dilemas sociais, os legisladores então distinguiram entre a “baixa” e a “alta burguesia”. A posição de Hegel sobre essa questão, em contraste, segue as proclamações revolucionárias da Assembleia Francesa que, codificadas como o “Código Civil” em 1804, também eram adotadas naquelas partes da Alemanha conquistadas por Napoleão.24 Diferenças de estrato social são irrelevantes para a escolha do cônjuge e não devem ser legalmente reguladas: a livre escolha e o consentimento de dois adultos (como também o dos seus pais), desde que eles tenham legalmente o direito de se casar (quer dizer, não tenham se casado antes ou, de qualquer outra forma, não tenham falsificado seus estados civis), é o único ponto de vista relevante. Ainda assim, Hegel insere um detalhe interessante ao considerar essa questão, totalmente característico de sua atitude geral em relação à modernidade. Distinguindo entre os extremos de casamentos arranjados e a completa livre escolha do cônjuge, ele argumenta que: Aquele extremo [o arranjo dos pais como começo, seguido de inclinação, em oposição à inclinação do casal como primeiro fator] ou, de modo geral, a via em que a decisão pelo matrimônio constitui o começo e tem a inclinação por consequência, de sorte que no casamento efetivo as duas coisas estão agora unificadas, pode ser visto até mesmo como a via mais ética.25 Emil Friedberg, Das Recht der Eheschliessung, Bernhard Tauchnitz, Leipzig, 1865, p. 593 et seq.
24
Hegel’s philosophy of Right, Knox (ed.), parágrafo 162, p. 111.
25
498
Sobre Hegel, mulheres e ironia
Presumivelmente, essa decisão pode também envolver aquelas considerações “éticas” relevantes, como o contexto social e a conveniência dos cônjuges envolvidos. Considerações quanto à origem social e à riqueza deixam de ser assuntos legais a serem regulados, como eram na sociedade feudal, e se tornam um critério pessoal e ético que os indivíduos modernos devem ter em mente, conscientes da importância de “minha posição e meus deveres”, como disse o hegeliano britânico Bradley. Mesmo que, certamente, Hegel estivesse à frente das práticas legais prussianas do seu tempo e endossasse as transformações gerais provocadas pelo Código Civil Revolucionário Francês, ele estava, como sempre, relutante em seguir a modernidade até suas últimas conclusões e ver a escolha do cônjuge como uma questão completamente individual de amor e inclinação entre dois adultos. As perspectivas de Hegel sobre amor e sexualidade, quando colocadas em um contexto mais amplo de mudança que acontece nesse ponto da história, de fato revela-o como um pensador contrário ao Esclarecimento. Hegel clandestinamente critica e deprecia as primeiras tentativas de emancipação das mulheres e busca aprisioná-las mais uma vez dentro dos limites da família nuclear e monogâmica da qual elas ameaçavam sair.
499
Situando o self
A questão do amor livre e da sexualidade: a pedra no sapato de Hegel O “Fragmento sobre o amor”, de 1797-1798, de Hegel, reflete uma concepção mais romântica de amor e sexualidade que a visão domada e domesticada do casamento em Rechtsphilosophie. Aqui, é dado ao amor a estrutura dialética do Espírito; é unidade em unidade e separação; é identidade em identidade e diferença. No amor, os amantes são um todo “vivente”, em oposição a um todo “morto”; o único aspecto da matéria morta que rompe a unidade do amor é a propriedade. A propriedade separa os amantes ao torná-los conscientes de sua individualidade como também ao destruir sua reciprocidade. União verdadeira ou amor em si existe apenas entre seres vivos que são semelhantes em poder e, portanto, aos olhos uns dos outros, são seres vivos de qualquer ponto de vista... Esse amor genuíno exclui todas as oposições.26
Ainda assim, a discussão sobre a família na Filosofia do Direito é em geral mais conservadora, e critica a ênfase no amor livre como conducente à libertinagem e à promiscuidade. Um dos objetos da maior ira de Hegel é Lucinde, de Friedrich von Schlegel, que Hegel nomeia “Die romantische Abwertung der Ehe” [“a depreciação romântica do G. W. F. Hegel, “Love,” em seus Early theological writings, trad. ed. T. M. Knox, University of Pennsylvania Press, Philadelphia, 1971, p. 304.
26
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
amor”].27 Exigir sexualidade livre como prova de liberdade e “interioridade” é, aos olhos de Hegel, sofisma, servindo à exploração das mulheres. Hegel, à presunçosa moda burguesa, observa: Que a cerimônia de conclusão do matrimônio seja supérflua e uma formalidade que poderia ser deixada de lado, visto que o amor é o substancial e até mesmo perde em valor por causa dessa solenidade, é algo que foi apresentado por Friedrich v. Schlegel em Lucinde e por um seguidor dele nas cartas de um desconhecido. A entrega [devoção] sensual é representada ali como necessária para a prova da liberdade e da intimidade do amor, uma argumentação que não é estranha aos sedutores.
E ele continua: Sobre a relação de homem e mulher, deve-se notar que a moça abandona sua honra na entrega sensual, o que, quanto ao homem, que tem ainda um outro campo de sua atividade ética além da família, não é então o caso. A determinação da moça consiste essencialmente apenas na relação do matrimônio; a exigência é, portanto, que o amor receba a forma do matrimônio e que os diversos momentos que são no amor obtenham sua relação racional verdadeira entre si.28
27
Hegel’s philosophy of Right, Knox (ed.), parágrafo 164, adendo p. 263; cf. edição Griesheim, p. 436. Ibid., parágrafo 164, p. 263.
28
501
Situando o self
Tendo como chave essa nota de rodapé do texto, gostaria de perguntar o que esse aparte revela, e ao mesmo tempo oculta, das verdadeiras atitudes de Hegel em relação à emancipação das mulheres nesse período. Essa referência aparentemente insignificante a Lucinde, de Friedrich Schlegel, é extremamente significativa no contexto das lutas pela primeira emancipação das mulheres, naquele momento. Comentando as transformações trazidas pelo Esclarecimento e pela Revolução Francesa, Mary Hargrave escreveu: O final do século XVIII e o começo do século XIX marcam um período de Revolução para os homens e de Evolução para as mulheres. As ideias da Revolução Francesa, esse momento de levante, de revalorização dos valores, da afirmação imperiosa dos direitos do indivíduo, varreram a Europa como uma ventania, e em todo lugar falava-se de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, realizados (e talvez apenas realizáveis) nessa mesma ordem de precedência [...]. As mentes das intelectuais foram agitadas, elas se tornaram mais conscientes de si mesmas, mais filosóficas, mais independentes [...]. A França produziu uma escritora do calibre de Madame de Stäel, a Inglaterra uma Mary Somerville, uma Jane Austen; e a Alemanha, embora a fortaleza do ideal doméstico, também teve suas intelectuais brilhantes que, fora de seu próprio país, talvez não tenham se tornado tão amplamente conhecidas como deveriam.29 Mary Hargrave, Some German women and their salons, New York, Brentano, [1912?], p. viii.
29
502
Sobre Hegel, mulheres e ironia
Nessa obra, dedicada a Some German women and their salons [Algumas alemãs e seus salões], Mary Hargrave discute mulheres tanto judias quanto gentias, tais como Henriette Herz (1765-1847), Rahel Varnhagen (1771-1833), Bettina von Arnim (1785-1859) e Caroline Schlegel (1763-1809). De particular importância nesse contexto é também Karoline von Günderode (1780-1806), a poeta alemã mais significativa da Era Romântica, apaixonada pelo amigo de escola de Hegel, Hölderlin. Essas mulheres, por meio de suas vidas e suas amizades, salões e contatos, e em alguns casos por meio de suas cartas, publicações e traduções, eram não apenas as precursoras da primeira emancipação das mulheres, mas também representam um modelo de relações de gênero que aspiram a igualdade, amor livre e reciprocidade. Definitivo para o próprio contato de Hegel com essas mulheres e seus ideais era o assim chamado Jenaer Kreis, o círculo de Jena, dos românticos alemães, Friedrich e August Wilhelm Schlegel, Novalis, Schleiermacher e Schelling. O jornal Athänaeum (1798-1800) era o canal literário desse círculo, frequentado por Goethe como também por Hegel, após sua chegada a Jena em 1801. O “círculo de Jena” se desenvolveu a partir da amizade e da cooperação literária entre homens, mas contou com Caroline Schlegel entre seus membros mais influentes. Ela teve um impacto extraordinário nos irmãos Schlegel e foi a inspiração para muitas personagens literárias de Friedrich Schlegel, como também para opiniões dele sobre as 503
Situando o self
mulheres, casamento e amor livre.30 Acredita-se amplamente que Caroline Schlegel foi o modelo para a heroína no romance Lucinde. Caroline Schlegel era Caroline Albertina Michaelis, em Göttingen, filha de um professor do Velho Testamento, e foi criada em uma casa intelectual.31 Seguindo padrões tradicionais, em 1784, ela se casou com um jovem médico do interior Georg Böhmer e se mudou de Göttingen para Clausthal, um vilarejo de mineração nas montanhas Hartz. Embora ela sofresse com a estreiteza de seu novo ambiente e com a falta de estímulo intelectual, permaneceu ali até seu marido morrer subitamente, em 1788. Caroline, que era então mãe de três filhos, perdeu dois deles após a morte do seu marido. Com sua filha, Auguste Böhmer, ela retornou à sua cidade natal. Em Göttingen, ela conheceu August Wilhelm Schlegel, seis anos mais novo, que se apaixonou por ela. Em 1792, ela deixou Göttingen por Mainz, residência de uma de suas amigas de infância, Teresa Forster, cujo nome de solteira era Teresa Heym. Em dezembro de 1792, a cidade caiu nas mãos dos franceses, sob o comando do general Custine; os aristocratas fugiram e a república foi proclamada. O marido de Teresa, Forster, que era um republicano fervoroso, tornou-se presidente do Clube Jacobino. Sua esposa, que deixou de simpatizar com suas 30
Cf. Mary Hargrave, Some German women and their salons, New York, Brentano, [1912?], p. 259 et seq.; Kurt Lüthi, Feminismus und Romantik, Harmann Böhlaus Nachf., Vienna, 1985, p. 56 et seq. Cf. Mary Hargrave, op. cit., p. 251 et seq.
31
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
opiniões, o deixou, mas Caroline permaneceu e trabalhou em círculos revolucionários. Na primavera do ano seguinte, 1793, um exército alemão, reunido nos principados Rheinisch, retomou Mainz. Caroline foi presa e, com sua filha Auguste, foi aprisionada em uma fortaleza. Após alguns meses, seu irmão peticionou por sua soltura oferecendo em troca seus serviços como cirurgião do exército, e August Wilhelm Schlegel exerceu toda a influência possível para obter sua liberdade. Caroline foi libertada, mas foi banida da província de Rheinisch; mesmo Göttingen, sua cidade natal, fechou as portas para ela. Ela estava, naquele momento, grávida, esperando o filho de um soldado francês, e August Wilhelm arranjou para que ela fosse colocada sob a proteção de seu irmão Friedrich, então um jovem estudante em Leipzig. Um alojamento fora da cidade teve de ser encontrado para ela, onde uma criança nasceu, mas não sobreviveu. Em 1796, instigada pela sua família e percebendo a necessidade de ter alguém que a protegesse, Caroline concordou em se tornar esposa de August Schlegel e estabelecer-se com ele em Jena. Ela nunca amou Schlegel de verdade e, com o surgimento do jovem Schelling em cena, em 1798, um novo amor iniciou-se em sua vida. A filha de Caroline, Auguste, morreu em julho de 1800. Os Schlegel estabeleceram-se em Berlim, em 1802, e o crescente distanciamento entre eles resolveu-se com um divórcio em 1803. Alguns meses depois, ela e Schelling casaram-se, tendo como pastor o pai dele, e viveram em Jena até a morte dela, em 1809.
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Situando o self
Hegel morou na mesma casa com Caroline e Schelling de 1801 a 1803, e certamente a presença dessa mulher extraordinária, uma companheira intelectual, uma revolucionária, uma mãe e uma amante, forneceu a Hegel um exemplo em carne e osso do que a modernidade, o Esclarecimento e a Revolução Francesa poderiam significar para as mulheres. E Hegel não gostou do que viu. Sobre a morte dela, ele escreve para Frau Niethammer: Eu beijo mil vezes as belas mãos da melhor mulher. Deus pode e deve preservá-la, como condiz seu mérito, dez vezes mais que a mulher de cuja morte recentemente tivemos notícia aqui [Caroline Schelling], e sobre a qual algumas pessoas aqui exprimiram a hipótese de que o Diabo tenha vindo buscá-la.32
Uma observação extremamente condenatória e rude! Se Hegel deveria gostar ou aprovar Caroline, que certamente exerceu um poder de julgamento cáustico e afiado sobre as pessoas, criando e recriando algumas reputações em seu círculo de amigos – tal como a de Schiller –, não vem ao caso. O ponto é que a vida e a pessoa de Caroline forneceram um exemplo, e um exemplo muito próximo, dos tipos de mudanças que estavam acontecendo nas vidas das mulheres no seu tempo e das possibilidades que se abriam diante delas, além da transformação das relações de 32
G. W. F. Hegel, The letters, trad. de Clark Butler e Christiane Seiler, Bloomington, Indiana University Press, 1984, p. 205.
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
gênero. Ao defender firmemente que o lugar das mulheres é na família, ao argumentar contra a educação das mulheres – exceto como meio de aprender as habilidades necessárias para administrar a casa – Hegel não foi simplesmente uma “vítima vulnerável dos preconceitos de seu tempo”. “Seu tempo” foi revolucionário, e nos círculos mais próximos a Hegel, o dos seus amigos românticos, ele encontrou mulheres brilhantes, talentosas e rebeldes que certamente sugeriram para ele o que a verdadeira igualdade de gênero poderia significar no futuro. Hegel viu o futuro e não gostou dele. Sua crítica final às concepções românticas de amor livre também é uma crítica às primeiras aspirações românticas de igualdade de gênero ou talvez a alguma forma de androginia. O romance Lucinde, de Schlegel, foi escrito como um tributo ao amor como um tipo de união que deve ser apreciada tanto espiritual quanto fisicamente. Sem nenhuma necessidade de sanção religiosa – Lucinde é judia –, nem cerimônia formal, esse amor verdadeiro era recíproco e completo.33 No Fragmento 34 publicado na revista de Athäneum, Schlegel definiu os casamentos convencionais como “concubinatos” aos quais um “casamento à quatre” seria preferível.34
Friedrich Schlegel, Friedrich Schlegel‘s Lucinde and the Fragments, trad. e intr. de Peter Frichow, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1971; cf. Sara Friedrichsmeyer, The Androgyne in early German romanticism, Stanford German Studies, v. 18, New York, Peter Lang, 1983, p. 151 et seq.
33
Friedrich Schlegel, op. cit., p. 165.
34
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Situando o self
Lucinde é um texto crítico, que contrapõe à subordinação das mulheres e à conduta sexual ambígua do seu tempo um ideal utópico do amor verdadeiro como a complementação entre dois seres independentes. A maioria dos comentadores concorda, entretanto, que Lucinde, não obstante todas as suas nobres intenções, não é um texto sobre emancipação feminina: as ocupações artísticas de Lucinde cessam de ser relevantes depois de demonstrarem a igualdade entre os amantes. As cartas documentam o desenvolvimento de Julius como um homem, seus Lehrjahre [anos de aprendizado], seu movimento desde o desejo sexual dissociado do respeito e igualdade até a conquista do companheirismo definitivo em uma relação espiritual e eroticamente gratificante. As mulheres são idealizadas como companheiras de viagem, acompanhando os homens nessa estrada espiritual. Vistas, por um lado, como opostos complementares dos homens, incorporando as qualidades que suas contrapartes não possuem, elas são, por outro lado, seres completos idealizados à perfeição.35
Embora em uma seção do romance – chamada “Uma fantasia ditirâmbica da situação mais bela do mundo”36 – haja um momento breve Sara Friedrichsmeyer, The Androgyne in early German romanticism, Stanford German Studies, v. 18, New York, Peter Lang, 1983, p. 160; cf. também, Lüthi, Feminismus und Romantik, p. 95 et seq.
35
Friedrich Schlegel, Friedrich Schlegel‘s Lucinde and the Fragments, trad. e intr. de Peter Frichow, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1971, p. 46 et seq.
36
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
de inversão de papéis na atividade sexual, que Julius vê como “uma maravilhosa [...] alegoria do desenvolvimento do homem e da mulher até a humanidade plena e completa”,37 em geral, em Lucinde, as características espirituais dos dois gêneros estão claramente distinguidas. Em alguns de seus primeiros ensaios, como “Über die weiblichen Charaktere in den griechischen Dichtern” e “Über die Diotima”, de 1793-1794, escritos após conhecer Caroline Schlegel Schelling, e ser imensamente influenciado por sua pessoa, Friedrich Schlegel desenvolveu a tese – que seria ecoada mais tarde por Marx, nos Manuscritos de 1844 – de que a civilização grega decaiu ou prosperou em proporção ao grau de igualdade que concedia às mulheres. Em particular, Schlegel enfatizou que a desigualdade entre homens e mulheres e a subordinação das mulheres levou a uma cisão na personalidade humana, em que os homens carecem de “inocência, graça e amor” e as mulheres de “independência”. Em oposição à rudeza das relações homem-mulher na obra de Homero, aos olhos de Schlegel, Sófocles é o poeta que concebeu seus personagens masculinos e femininos de acordo com o mesmo desígnio e o mesmo ideal. É Antígona que combina as personalidades masculina e feminina em um ideal andrógino: ela “deseja apenas o Bem verdadeiro e o realiza sem esforço”, em contraste com
Friedrich Schlegel, Friedrich Schlegel‘s Lucinde and the Fragments, trad. e intr. de Peter Frichow, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1971, p. 49.
37
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Situando o self
sua irmã, Ismênia, a mulher mais tradicional, que “sofre em silêncio”.38 Antígona transcende aqueles estereótipos e representa uma mistura de características masculinas e femininas; ela “é o Divino”. Lida contra o pano de fundo das opiniões de Schlegel, a largamente celebrada discussão de Antígona feita por Hegel em Fenomenologia do Espírito revela uma mensagem diferente. Na versão de Hegel de Antígona, ela e Creonte representam, respectivamente, virtudes “femininas” e “masculinas” e as formas da realidade ética. Antígona representa o “lar”, os deuses da família, do parentesco e do “mundo inferior”.39 Creonte representa a lei, a cidade, a lei humana e os ditados da política que são “deste mundo”. Seu embate é um embate entre poderes iguais. Embora, ao reconhecer sua culpa, Antígona apresente aquele momento na dialética da ação e do destino que Hegel considera necessário, no fim é por meio do declínio da família e do “mundo inferior” que o Espírito irá avançar para o domínio romano da lei e, em sequência, para a luz pública do Esclarecimento. Espiritualmente, Antígona é uma figura superior a Creonte, embora mesmo os comentadores mais simpáticos tenham de admitir que o que Hegel realizou aqui foi “uma apologia a Creonte”.40 Citado em Sara Friedrichsmeyer, The Androgyne in early German romanticism, Stanford German Studies, v. 18, New York, Peter Lang, 1983, p. 120.
38
39
Hegel’s phenomenology of Spirit, trad. de A. V. Miller, New York, Oxford University Press, 1977, p. 276. George Steiner, Antigones, New York, Oxford University Press, 1984, p. 41.
40
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Sobre Hegel, mulheres e ironia
Ironicamente, a discussão de Hegel sobre Antígona é mais acurada historicamente que a de Schlegel, em termos da condição das mulheres gregas, seu confinamento ao lar e o enorme conflito entre a recente ordem emergente da polis e as leis de parentesco das quais a sociedade grega dependia, até os séculos VI e VII.41 Mas em sua versão de Antígona, Hegel não estava simplesmente sendo historicamente mais preciso que Schlegel; ele estava roubando os seus amigos românticos de um ideal e de uma visão utópica. Se a grandeza de Antígona provém precisamente do fato de que ela representa os laços do “lar e do sangue”, em contraposição à polis e, não obstante sua grandiosidade, a dialética varrerá Antígona em sua progressiva marcha histórica, precisamente porque a lei da cidade é pública e não privada, racional e não corporal, promulgada e não intuída, humana em oposição à divina. A narrativa de Hegel não antevê nenhuma síntese futura entre esses pares de opostos, como A leitura de Antígona, por Hegel, é mais inspirada em Ésquilo, que expôs o choque entre as ordens antiga e nova, em A Oresteia, como um choque entre o poder feminino do sangue e o poder masculino da espada e da lei. A decisão de falar de Orestes livre da culpa de matricídio é assinalada pela afirmação espantosamente poderosa do choque entre o poder maternal do nascimento e do poder paternal da lei. Atena fala em nome de Orestes: “É minha tarefa dar o último julgamento: / Esse voto que eu possuo / Darei aos favoráveis a Orestes / Pois nenhuma mãe teve uma parte em meu nascimento/ Sou inteiramente homem, com todo o meu coração / exceto no casamento; sou inteiramente de meu pai. / Nunca darei precedência em honra / Para a mulher que matou seu marido, o guardião de sua casa. / Então, se os votos são somente iguais, Orestes vence.” Aeschylus, The Oresteia, trad. de David Grene e Wendy O’Flaherty, University of Chicago Press, Chicago, 1989, p. 161-162.
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Situando o self
Schlegel considerava; seja em uma escala histórico-mundial, seja em uma escala individual, o princípio feminino deve, um dia, ser expulso da vida pública, porque “o sexo feminino – a ironia perpétua [na vida] da comunidade – transforma, pela intriga, o fim universal do governo em um fim privado.”42 O Espírito pode cair em ironia por um breve momento histórico, mas eventualmente a séria transparência da razão disciplinará as mulheres e eliminará a ironia da vida pública. Já na discussão de Hegel sobre Antígona, esse esforço de pensamento restaurador que celebra a revolução enquanto condena os revolucionários por suas ações está presente. A Antígona de Hegel não tem futuro; sua tragédia é também o túmulo do pensamento utópico e revolucionário sobre as relações de gênero. O caso é que Hegel é o coveiro das mulheres, confinando-as a uma grandiosa, mas, em última análise, condenada fase da dialética, que “recai sobre a mente em sua infância”. E quanto à dialética, essa locomotiva da história correndo em sua marcha progressiva? Não há como separar a marcha da dialética, no sistema de Hegel, dos corpos das vítimas em que ela pisa. A necessidade histórica requer suas vítimas, e as mulheres sempre estiveram entre as numerosas vítimas da história. O que sobra da dialética precisamente é aquilo que Hegel pensou que poderia dispensar: ironia, tragédia e contingência. Ele foi um dos primeiros a observar a dialética irônica da modernidade: liberdade que poderia se tornar legalismo abstrato ou a Hegel, Phenomenology of Spirit, p. 288.
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busca egoísta da satisfação econômica; riqueza que poderia se tornar o seu oposto e criar extremos de pobreza; escolha moral que terminaria em um projeto trivial de autoengrandecimento; e uma subjetividade emancipada que não poderia encontrar satisfação em seu “outro”. Repetidamente, o sistema hegeliano apaga a ironia da dialética: o sujeito põe seu oposto e perde a si mesmo no seu outro, mas é sempre restaurado ao selfhood via o argumento de que o “outro” não é senão uma extensão ou uma exteriorização de si mesmo. O Espírito é infinitamente generoso, da mesma forma que uma mulher; ele dá de si mesmo; mas diferentemente das mulheres, ele tem o direito de chamar aquilo com o que contribuiu de “meu” e tomá-lo de volta para si. A visão da reconciliação hegeliana há muito tempo deixou de ser convincente: a alteridade [otherness] do outro é aquele momento de ironia, a reversão e a inversão com a qual devemos viver. O que as mulheres podem fazer hoje é devolver a ironia à dialética, esvaziando a pomposa marcha da necessidade histórica – a locomotiva descarrilada, como Walter Benjamin observou –, e devolver a alteridade às vítimas da dialética, como Caroline Schlegel Schelling, e isso significa, na verdadeira forma dialética, seu selfhood. Parte do material deste ensaio apareceu anteriormente em “Politische Philosophie und die Frauenfrage,”, de Seyla Benhabib e Linda Nichoson, publicado em Pipers Handbuch der politischen Ideen, v. 5, Piper Verlag, Munique e Zurique, 1987, p. 513-562, editado por Iring Fetscher e Herfried Münkler. Gostaria de agradecer a
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Linda Nicholson por concordar em me deixar usar parte desse material aqui. Este capítulo foi previamente publicado em Feminist interpretations and political theory, Mary Lyndon Shanley e Carole Pateman (ed.), Polity, Cambridge, 1991.
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Este livro foi composto em Chaparral e impresso no sistema offset, sobre papel polén soft 80g/m², com capa em papel-cartão supremo 250 g/m².