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Portuguese Pages [635] Year 2015
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
“NÃO TÁ SOPA”
Sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Reitor
JOSÉ TADEU JORGE
Coordenador Geral da Universidade
ALVARO PENTEADO CRÓSTA
Conselho Editorial
Presidente
EDUARDO GUIMARÃES
ELINTON ADAMI CHAIM – ESDRAS RODRIGUES SILVA
GUITA GRIN DEBERT – JULIO CESAR HADLER NETO
LUIZ FRANCISCO DIAS – MARCO AURÉLIO CREMASCO
RICARDO ANTUNES – SEDI HIRANO
Coleção Históri@ Illustrada
Comissão Editorial
SILVIA HUNOLD LARA (COORDENADORA)
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA – MARTHA CAMPOS ABREU
RICARDO ANTUNES – SIDNEY CHALHOUB
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Noel Rosa, Com que roupa?, 1930. Intérprete: Uliana Dias [2011]. [ clique aqui para ouvir ]
Sentados, da esquerda para a direita, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Bahiana, Ismael Silva e Alfredinho da Flauta, 1955.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I - UMA QUESTÃO DE BERÇO
Não é samba, é batucada
Em berço esplêndido: Batuques, harmônicas, realejos
Uma cidade musical
CAPÍTULO II - GENTE DA LIRA
Nem tão pequena, nem tanto África
Sambistas e trabalhadores na capital federal
Meganhas na canoa: Um inimigo comum
CAPÍTULO III - GENTE DE FORA
Por dentro das rodas
Baianos no Rio de Janeiro
“Aos costumes”: Delegacias e pretorias
CAPÍTULO IV - DA GEMA
As agruras do “seu” comissário
Entre os santos e as donas: O Estácio de Sá
Gente reiuna
ABREVIATURAS UTILIZADAS
NOTAS
CRÉDITOS DE IMAGENS, FONOGRAMAS E VÍDEO
FONTES E BIBLIOGRAFIA
SOBRE A AUTORA
INTRODUÇÃO
1. Noel Rosa, autocaricatura, c. 1925.
“[...]
Eu hoje estou pulando feito sapo
Pra ver se escapo
desta praga de urubu.
O meu terno já virou farrapo
Eu vou acabar ficando nu
Meu paletó virou estopa
e eu pergunto
com que roupa,
com que roupa eu vou? [...]”
1. Noel Rosa, Com que roupa?, 1930. Intérprete: Noel Rosa. [ clique aqui para ouvir ]
O TÍTULO deste livro, como a grande maioria já deve ter percebido, inspirou-se em um samba muito conhecido, gravado em 1930. Nele, Noel Rosa comenta o cotidiano de um malandro carioca, lamentando sua má sorte naqueles dias: o português que o financiava indiretamente através da mulher “que tanto amou outrora” – com certeza negra ou mulata, seguindo o estereótipo – havia se mandado para a terrinha a fim de se casar com uma “cachopa”, deixando o malandro sem sua principal fonte de renda. A vida não era fácil nem para o malandro, nem para a mulata, nem para o sambista – talvez nem mesmo para o português que lhe “levou o capital”. A dificuldade aparece na forma de roupa velha, paletó em farrapos – situação inaceitável entre esse grupo de homens para os quais o esmero no vestuário era condição básica de prestígio. Para os malandros do Estácio ou da Lapa, com quem Noel conviveu muito de perto nos botequins, nos círculos musicais e depois nas estações de rádio, a vida não estava (nem era) sopa. O mesmo pode ser dito sobre o dia a dia de sambistas um pouco mais velhos, ou menos transgressivos, de outros territórios cariocas; o comentário vale também para os seus vizinhos de bairro, companheiros de trabalho ou amigos de noitadas. Por isso os versos de Noel fornecem um gancho interessante para iniciar uma incursão a este universo, pela mão dos indivíduos que, de modos diferentes, participavam das muitas rodas que se espalhavam pela cidade.
Experimentando as mesmas dificuldades, esses indivíduos não reagiam da mesma forma – e suas opções estão impressas nas trajetórias pessoais, nos sambas que assinaram e nas atitudes assumidas nas situações de conflito em que foram dar com os costados na polícia. Seguindo seus passos, não pretendo discutir propriamente o gênero musical e suas modificações – embora passar por estas questões seja inevitável. O foco está centrado na vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas, suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos com que conviveram nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. O ponto de partida foi a constatação simples de que, no início do século XX, sambistas ainda tinham de dividir seu tempo entre a música e a viração e eram basicamente trabalhadores dotados de bom
ouvido musical, habilidade rítmica ou facilidade com as rimas. Por isso, acompanhá-los de perto, em seus espaços informais, possibilita uma aproximação mais direta também com a própria experiência dos trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro.
Por muito tempo olhamos com carinho e devoção para esses músicos que, mesmo longe da mídia, permanecem povoando nossa imaginação e nosso afeto. Sambistas da “velha guarda”, gente intitulada “de raiz”, vistos como fundadores de um gênero musical que se confunde com a própria alma carioca e brasileira, constituem, para muitos de nós (especialmente aqueles cujos cabelos brancos revelam o passar dos anos), uma espécie de unanimidade estética e emocional. Outros personagens simbólicos foram associados à imagem mítica desses pioneiros: tias baianas com seus tabuleiros, pais de santo famosos, simpáticos malandros de fábula, artistas do rádio, literatos sensíveis às manifestações da brasilidade, além de outras figuras quase estilizadas, conformam uma história canônica do samba na qual uma evolução linear dos acontecimentos faz desaparecer as contradições. Essa versão bem conhecida, que tem algumas variantes em uma bibliografia quase sempre redundante e pouco crítica, costuma fazer tabula rasa das diferenças entre aqueles indivíduos e geralmente passa ao largo do significado de suas pinimbas lendárias, frequentemente musicadas em polêmicas cujo sentido pode parecer hoje um tanto opaco. Como resultado dessa síntese redutora, o samba, afinal, evoca, para a maioria dos nossos contemporâneos, a ideia de “origem” ou, o que dá no mesmo, uma concepção finalista de resultado da formação brasileira da qual ele seria a melhor expressão. Ainda que hoje em dia tal ideia possa soar um tanto antiga nos corredores das universidades, ela ainda é encontrada quase intacta em debates na mídia, em políticas públicas na área da cultura e mesmo, é forçoso confessar, naturalizada em argumentos de intelectuais de inteligência aguda e renome acadêmico.
*
Parte dessa construção parece saltar diretamente da crônica ou da memória dos sambistas, como a própria divisão rígida em gerações distintas. O primeiro exemplo que me ocorre é uma compilação de sambas de Donga, Sinhô, Caninha, João da Bahiana e outros, na famosa coleção de história da música popular brasileira publicada pela Editora Abril do final dos anos 1960, coordenada por especialistas amplamente reconhecidos nessa área.¹ O título atribuído ao volume diz tudo: Donga e os primitivos.
2. Capa do LP, vol 48 da coleção História da Música Popular Brasileira, c. 1972
O compositor mencionado, cuja caricatura está em primeiro plano, é um dos autores do samba “Pelo telefone”, gravado em 1917, e de vários outros
sucessos ao longo das décadas de 1920 e 1930. Na capa, entretanto, as imagens de Debret ao fundo enfatizam a sugestão de uma distância temporal, remetendo esses compositores a antigas tradições escravas ou ao passado remoto do país. O pressuposto é que, apesar dessa longa história, o samba “de fato” se iniciou com a geração carioquíssima do Estácio e a Escola de Samba Deixa Falar, de 1928. Ignora-se aí que, nessa década, tais primitivos estavam vivos e em plena atividade, produzindo muito, trocando farpas musicais, gravando discos, frequentemente convivendo com os sambistas malandros do Estácio e disputando espaço com eles no crescente mercado musical.
Derivado dessa falsa temporalidade há ainda o reiterado zum-zum-zum em torno do lugar de nascimento do gênero, que já mobilizava seus aficionados e praticantes no início do século XX: ele seria do morro ou do asfalto? Carioca ou baiano? Da Cidade Nova ou do Estácio? A persistência de polarizações tão evidentemente absurdas, decorrentes da disputa coeva entre sambistas, revela com clareza a simbiose entre a memória dos agentes e a história do samba. As respostas encontradas por cada autor, ao longo do tempo, derivaram sempre de uma ótica subordinada a afinidades tão estéticas quanto políticas. São, na verdade, pontos de vista que se cristalizaram em uma bibliografia amparada no gosto pessoal e na ideologia. Por isso, podemos nos dispensar do exercício de discutir uma a uma obras que mal conseguem ultrapassar a crônica e o relato episódico, embora constituam muitas vezes úteis repositórios de informação.²
Há ainda outros (quase) consensos nessa bibliografia que, em grande parte, foram absorvidos, perenizados e adensados pelas análises acadêmicas. Eles costumam ter uma relação mais ampla com a maneira pela qual os autores entendem a história recente do Brasil; ao mesmo tempo, indicam que, de modo geral, não se costuma refletir sobre ela quando se trata de samba. Em primeiro lugar, destaca-se a surpresa que cerca a rápida passagem de uma etapa da mais absoluta repressão sobre o gênero musical e seus praticantes (ou os batuques que lhe dariam origem) para um novo tempo de valorização e reconhecimento desse produto da cultura urbana como um autêntico
símbolo de identidade coletiva. Como teria sido possível? Tomar o fenômeno como um sintoma autoevidente da chamada “ascensão das classes populares” no cenário nacional dos anos 1920-1930 tem sido o caminho mais comum. Esta leitura tende a ver manifestações culturais como algo diretamente derivado da origem de classe de seus autores e a discutir de que formas esse difícil trânsito poderia ter sido operado. A presença de intelectuais e artistas da elite com sensibilidade suficiente para atuar como mediadores culturais, reconhecendo e traduzindo as expressões populares legítimas entre as quais o “samba de raiz”, transformou-se em uma resposta segura para a velha pergunta e ganhou espaço entre as interpretações dessa história.³
Outro elemento recorrente na percepção da trajetória do samba e dos sambistas diz respeito às clivagens raciais.⁴ Postulado por vários autores como uma musicalidade essencialmente negra ou originariamente africana, o gênero é habitualmente remetido aos batuques e umbigadas dos séculos de escravidão e às formas tradicionais de culturas ancestrais das gerações de cativos. A identidade negra do samba foi estabelecida desde muito cedo em um viés complicado, que viu nele uma espécie de resultado do abrasileiramento dos ritmos africanos, obtido através dos processos de refinamento pela mestiçagem. Eis aí de volta a insistente leitura da identidade mulata da nação, hoje reconciliada com seu próprio passado nos carnavais multirraciais da televisão. Mas a associação visceral entre o samba e os descendentes de africanos foi defendida também, em um sentido oposto, por autores ligados aos movimentos de afirmação da raça negra, que reivindicaram o samba como seu patrimônio exclusivo, associado estreitamente às religiões afro e a práticas culturais correlatas. Essas e outras interpretações, entretanto, padecem de um vício quase universal nessa área: as evidências reduzem-se ao mesmo conjunto de depoimentos de alguns dos personagens principais, impressões ou memórias construídas a posteriori, episódios sempre repetidos pela crônica e a menção a letras de sambas conhecidos e por vezes interpretados com superficialidade. A prática da pesquisa paciente e detalhada, estimulada por novas perguntas e interessada em novos aspectos e fontes, tem sido uma postura rara entre os especialistas da área, mesmo os mais recentes.
Provavelmente por isso, poucos autores escaparam das polarizações simplistas nascidas da imagem do samba como o principal produto de uma cultura negra e, ao mesmo tempo, nacional-popular.⁵ Assim, essas concepções merecem ser revisitadas em busca de caminhos alternativos de interpretação desse fenômeno cultural duradouro e, sem dúvida, capaz de maravilhar os sentidos. Creio mesmo que paira sobre essas concepções, ajudando a cimentar o consenso, a força afetiva desses velhos sambistas e de tudo o que eles representaram para os brasileiros de ontem e de hoje. É como se a emoção que (ainda) despertam travasse a crítica e a curiosidade, cristalizando velhos enganos.
*
Quem sou eu para condenar? – como bem podia cantar um desses antigos bambas, em um refrão “de sua lavra”. Meu coração carioca bate mais forte em diferentes situações relacionadas ao samba, onde quer que o encontre (é bom avisar logo, antes que me acusem outra vez de ser doente-do-pé, se não ruim-da-cabeça). Apesar disso, o hábito profissional não permite meiotermo: admiradora e ouvinte sistemática do gênero, nunca pude deixar de me intrigar como historiadora com as gritantes diferenças de padrões, valores e pontos de vista que ele abriga. A imagem de uma musicalidade negropopular, que passa da condenação ao triunfo com o acesso das classes subalternas ao cenário político nos anos 1930, nunca me pareceu combinar bem com tantas dissonâncias entre seus protagonistas. Ela tampouco parece compatível com a ideia de uma manifestação característica e univocamente nacional, capaz de expressar aquilo que faz do país o que ele é – como se ele fosse ou pudesse ser uma coisa só. Ao contrário, justamente por ter se tornado uma forma de manifestação bastante generalizada – e constituir uma unanimidade de público e de crítica –, o samba pareceu um bom lugar para identificar diferenças: entre os trabalhadores pobres como entre os sambistas, entre concepções e visões de mundo presentes nesse universo heterogêneo, buscando a expressão dos diferentes modos de vida que os
sambas concretizavam e o carnaval reunia em torno de bandeiras ou estandartes que sempre variaram nas cores, nas formas, nos desenhos e nos significados.
Tais diferenças, como se sabe, vinham de longe e não foram suprimidas – embora se transformassem – pela longa experiência do cativeiro. Abolida formalmente a escravidão, o exercício da cidadania pelos pobres, e mais ainda pelos negros, permanecia tolhido pela ausência de canais políticos de inclusão e participação. Naquelas condições, como enunciaram há décadas os historiadores mais atentos, formas de aglutinação à margem do arcabouço institucional oficial assumiram uma importância especial nas cidades brasileiras do início da República. Elas deram corpo a diferentes repertórios e escolhas de grupos das camadas populares para fazer frente ao domínio senhorial e, depois, à exclusão republicana, possibilitando construir espaços próprios de afirmação. A historiografia sobre a escravidão urbana e o pósAbolição tem evidenciado largamente a importância das identidades derivadas de práticas culturais coletivas e das experiências associativas, formais ou informais, no exercício da autonomia para os escravos, exescravos e seus descendentes. Sintomas disso foram a constante recriação de tradições religiosas ancestrais e a busca dos seus vínculos com a África (ou do que ela podia significar, na reinvenção do continente de origem); a persistência de práticas como as rodas de jongo e as maltas de capoeiras, as irmandades católicas congregadas em torno de santos associados aos negros, bem como a afirmação dos elos familiares tradicionais (de sangue como de afinidade eletiva) ou a retomada de antigos laços étnicos. Do século XIX ao XX, essas e outras formas culturais constituíram parte indissociável da experiência dos trabalhadores negros no Rio de Janeiro e em muitas outras cidades brasileiras.⁶
Os exemplos poderiam multiplicar-se na identificação de traços de uma permanência de práticas coletivas, com ou sem tambores, herdadas do tempo do cativeiro. A regra, no entanto, não é universal: em muitos casos, a afirmação de autonomia veio assentada em gestos ou atitudes de viés individualista e transgressor, o que até ajuda a compreender algumas tensões
e rivalidades entre círculos de bambas da cidade, particularmente a “malandragem” retratada no samba de Noel. Mas, no século XX, ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizavam para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. Elas também se incluem entre as formas mais duradouras de associação autônoma dos trabalhadores pobres da cidade, abrindo, nos intervalos das duras jornadas de trabalho, lugar para modos de cantar, tocar e dançar herdados do passado, mas também para a invenção de novas formas e significados festivos e musicais.⁷
Cabe lembrar que, na virada do século XX, quando as sociedades carnavalescas e recreativas multiplicavam-se rapidamente pela cidade, a palavra “samba” tinha um significado diverso do atual. Em 1889, por exemplo, o erudito tenente-general Visconde de Beaurepaire-Rohan – que, apesar do nome, era mesmo natural de Niterói, integrando o último Conselho de Estado e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – incluiu em seu Diccionário, dedicado ao velho imperador no ocaso, um sintético verbete para o termo: tratava-se, para ele, apenas de “uma espécie de bailado popular”. E nada mais, deixando claro que a palavra corrente era mais associada a tais sociedades carnavalescas e dançantes, frequentadas por trabalhadores de várias procedências e cores, que propriamente a uma forma específica de musicalidade.⁸ Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos.
Nesse sentido, o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, tal multiplicidade. Entre outras coisas, quero sugerir, neste estudo sobre o ritmo e seus produtores, que a dimensão festiva e lúdica é capaz de nos ensinar muito sobre a história social e sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tamborins e outros instrumentos característicos, revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações. Possivelmente, também ajude a pensar sobre a maneira como tais formas de associação para a festa serviram a propósitos eleitorais e a projetos de poder no Rio de Janeiro das décadas seguintes, alimentando relações de dependência com governos locais e grupos da política institucional. Pode-se vislumbrar aí, talvez, uma explicação para sucessos e insucessos de propostas políticas dirigidas aos trabalhadores, que foram vistos – e frequentemente se viram – sobretudo como “gente da lira”.
Minha incursão prévia nestas questões como pesquisadora do carnaval carioca só fez crescer a inquietação. Conhecer as variadas formas de aglutinação festiva, com suas coreografias, seus ritmos, enredos e trilhas sonoras que disputavam a primazia todos os anos, deu-lhe mais consistência. As profundas diferenças entre os ranchos carnavalescos – com rivalidades à flor da pele, mas sempre de canto suave e base harmônica, liderados por sambistas ou gente do candomblé – ou os cordões e blocos – com o peso dos bumbos e tambores que ofuscavam os instrumentos de corda e sopro evocando antigos batuques do século XIX –, além de outras formas da folia, sempre em conflito umas com as outras nas ruas, não podem ser ignoradas quando se pensa em uma história do samba. Isso fez crescer a curiosidade sobre o que cantavam e tocavam aqueles grupos aos quais se atribui o papel único de precursores desse gênero musical. Logo me vi fuçando os arquivos em busca dos indivíduos que formavam tais conjuntos e suas formas de relação com outros grupos, bairros, vizinhanças etc. Interessava-me acima de tudo a experiência de seus protagonistas em um tempo anterior à consagração como ícones da música brasileira e da cultura popular – o que serviu de critério para a definição de um recorte temporal para a pesquisa: o
final do século XIX e o início do seguinte, até a virada da década de 19201930, quando se considera que Ismael Silva e seus companheiros teriam criado um novo paradigma do samba carioca, chamado por vezes de “samba moderno”, feito para ser gravado e dançado nas ruas durante os desfiles.
Naquele momento, eles eram simplesmente um grupo de indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribuiu. Os sons que produziam podiam variar muito nas práticas musicais como nos significados: eram pontos de terreiro aqui, marchas lentas e ritmadas para desfilar no carnaval ali, ou sambas de partido-alto e depois sambas “carnavalescos” que costumavam aparecer nas ruas nos dias da folia, ou então maxixes de salão, polcas-choro, modinhas em serenatas e saraus instrumentais. Um conjunto sonoro rico e variado que, ao final, acabou resultando nisso que se chama samba, seguidamente reinventado e depurado por esses músicos do ou no Rio de Janeiro ao longo daquelas décadas. No final dos anos 1920, a difusão de massas empurrou crescentemente essas velhas diferenças para a padronização. Ao mesmo tempo, deixou para trás a história da sua constituição, substituída por uma versão que separou as modalidades, aplainou o trajeto e consolidou o triunfo simbólico da musicalidade supostamente brasileira e popular.
Dito de outro modo, a história dos sambistas no Rio de Janeiro começa muito antes de o gênero musical existir. Por terem ajudado a construir uma forte e duradoura memória sobre si mesmos, por terem criado fama e estimulado biógrafos com os vários depoimentos e entrevistas que deixaram para a posteridade, esses indivíduos podem ser reconhecidos entre os milhares de nomes que aparecem em documentos dos arquivos. Destacados desse conjunto – mas fazendo parte indissociável dele –, os sambistas nos permitem flagrar com mais nitidez um cotidiano que, de fato, nunca foi sopa. Para além do legado que nos deixaram em forma de canções, depoimentos, biografias e testemunhos de terceiros, sua experiência ficou registrada em documentos que revelam ou detalham aspectos bem pouco conhecidos desses personagens. Os indivíduos que procurei durante os últimos dez anos em velhos papéis são parte de uma história longa e muitas vezes
despercebida. Quis, por isso, escutá-los menos com ouvidos de simpatizante que de alguém interessado nas suas circunstâncias e no sentido de suas ações. Pensei que o melhor lugar para encontrá-los, tendo em vista a reiterada afirmação sobre a perseguição policial aos frequentadores dessas rodas, reiteradamente confundidos com vadios, fosse justamente a documentação policial e os processos criminais, particularmente os relativos à zona portuária e às ladeiras da Saúde ou da Gamboa; da Cidade Nova edificada em torno da Praça Onze, lugar simbólico do carnaval e da malandragem; e, evidentemente, do Estácio, bairro carioca cantado em prosa, verso e historiografia.
Cabe aqui um breve comentário sobre a documentação e seus usos: esse tipo de processo, em geral de rito extremamente sumário (sobretudo nos casos de vadiagem), costuma ter pouca utilidade fora de uma abordagem serial. Entretanto, no caso dos sambistas, é possível lê-los de outro modo: os réus ou vítimas se tornaram pessoas bastante conhecidas e até cultuadas em certos meios. Sobre eles, ao contrário dos milhares de outros indivíduos classificados como vadios, vagabundos, malandros ou valentes, podemos encontrar biografias ou memórias individuais capazes de dar inteligibilidade a pequenos episódios e conferir um sentido bem maior às informações dos autos. Em todos os casos, o procedimento de confrontar o processo com os dados biográficos disponíveis foi o caminho adotado para descobrir o que se escondia sob o jargão policial e jurídico. Mas essas são fontes que devem ser complementadas com outras referências. Por isso, o leitor encontrará nestas páginas muita crônica e literatura, material jornalístico de época, depoimentos e entrevistas desses sujeitos e sobretudo referências musicais e imagens que, sem resistir ao clichê, muitas vezes dizem mais do que mil palavras.
A chance de participar de dois projetos coletivos de pesquisa, generosamente financiados pela Fapesp, dotou essa curiosidade de meios de investigação mais efetivos: um banco de dados extenso sobre os registros de ocorrências policiais naquelas regiões da cidade do Rio de Janeiro, alimentado pelo trabalho paciente de vários jovens pesquisadores ligados ao Centro de
Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) na Unicamp, foi instrumento fundamental.⁹ A busca de processos criminais no Arquivo Nacional, guiada por uma extensa lista nominal de sambistas mais e menos conhecidos da posteridade, a seriação de dados relativos à ação da polícia e a identificação das estratégias de sobrevivência de trabalhadores no Rio de Janeiro, que habitavam favelas e moradias coletivas, espremiam-se por aquelas ruas e compartilhavam suas experiências na cidade que crescia vertiginosamente, foram passos importantes na investigação. A isso veio somar-se a facilidade de acesso aos registros sonoros que o Instituto Moreira Salles e outras instituições disponibilizaram eletronicamente para ouvintes de todos os quadrantes e graus de curiosidade. Sem isso, a década de pesquisa investida neste livro seria pequena para tanta informação. Pacientemente, ao longo de anos de trabalho, montamos um mapa detalhado da região, publicado na internet desde 2007¹⁰ – com seus terreiros e casas de tias baianas, cortiços, fábricas, oficinas, botequins, associações profissionais e clubes dançantes ou carnavalescos –, que ajudou a visualizar e decifrar a dinâmica da vida cotidiana nessa região da cidade, onde se diz que o samba nasceu e ganhou corpo.
Esse percurso, obviamente, não poderia ter chegado a bom termo sem a contribuição de muitas pessoas queridas, que tiveram a paciência de ler, criticar e sugerir soluções às versões preliminares deste livro. Todos os meus companheiros do Cecult – Sidney Chalhoub, Robert Slenes, Claudio Batalha, Fernando Teixeira, Lucilene Reginaldo e, particularmente, Silvia Lara, a quem devo sempre muito mais do que é possível retribuir – estão presentes no resultado desta pesquisa e me ajudaram a evitar muitos equívocos. Historiadores de outras instituições, com o mesmo carinho e atenção, fizeram comentários sempre pertinentes na fase final do trabalho – Marcelo Balaban, Gabriela Sampaio, Wlamyra Albuquerque, João José Reis e Martha Abreu, em especial, foram meus leitores e amigos –, e essa dupla condição tornou sempre sua crítica mais rigorosa e bem-vinda. Muitas outras pessoas, evidentemente, estiveram presentes nesse percurso – inclusive alguns orientandos, cujos temas mantêm uma afinidade grande com meu campo de trabalho –, mas seria longo demais, pensando nos leitores, mencionar todos eles. Sei que cada um saberá reconhecer as próprias digitais e identificar sua contribuição nas páginas que se seguem, como sabem de
sua importância na minha trajetória nestes últimos dez anos. Minha mestra Dea Fenelon, entretanto, não pôde ver o livro pronto graças à minha própria lentidão em concluí-lo. A ela, pois, dedico este volume, em reconhecimento por tudo o que me ensinou ao longo de sua passagem neste mundo.
Com essas fontes, meios de acesso e apoios, era só colocar água no feijão e deixar o caldo engrossar, em fogo brando. O resultado deste trabalho, que espero não seja indigesto, permanece na intersecção de vários debates acadêmicos pesados, longos e enfadonhos. Apesar disso, tentei evitar ao máximo produzir um livro para especialistas, aprisionado pelos seus eternos embates. A mistura dos ingredientes teve como objetivo um texto que pudesse interessar a qualquer um, que fizesse sentido para os ouvintes do samba e para os dedicados a refletir sobre alguns dos mistérios deste país nada fácil de entender. As páginas que se seguem aspiram à simplicidade, com o mínimo de citações eruditas e discussão bibliográfica para iniciados. Gostaria que, livre das exigências formais dos textos para especialistas, elas fossem boas de ler nos momentos de ócio. Isso não significa, entretanto, abrir mão do rigor. As muitas notas destinam-se principalmente a identificar a origem das informações que utilizei e as ideias alheias das quais lancei mão – como manda a simples ética autoral ou a boa praxe acadêmica.
O primeiro capítulo dedica-se a questionar os pontos principais da versão dominante relacionada às “origens” do gênero musical: ele vai em busca das referências sonoras e culturais que a cidade do Rio de Janeiro colocava à disposição dos moradores da chamada “Pequena África”, incluindo velhos batuques, mas também as canções de imigrantes ou as polquinhas e cançonetas de cabaré interpretadas por astros negros e brancos da canção popular no início do século XX. Por essa via, o peso de uma herança univocamente africana pode ser reavaliado. Por outro lado, o capítulo discute também as cores do preconceito contra essas formas populares de musicalidade e a posterior construção do samba por músicos, artistas e escritores dos anos 1920 e 1930 que, apropriando-se daquelas formas em nome de uma expressão brasileira, ignoraram suas várias possibilidades e ajudaram a construir a univocidade.
O segundo capítulo, passeando pela região e vislumbrando a diversidade de seus moradores do ponto de vista racial e étnico, visita principalmente delegacias de polícia em busca das formas de ação dos agentes da lei na área central da cidade, avaliando suas implicações para a vida dos nossos personagens principais. Nos registros da polícia, sambistas e trabalhadores aparecem indiferenciados, e nem sempre se confirma a ideia da perseguição sistemática aos primeiros. Nos meios de sambistas, por outro lado, a presença de imigrantes e seus filhos é algo bastante visível e corriqueiro, problematizando os estereótipos que caracterizaram o samba como uma forma negra, baiana, carioca ou estritamente brasileira. Era diversificado o conjunto de trabalhadores que, nas rodas de samba ou nas agremiações carnavalescas, criavam formas duradouras de identidade pouco notadas pelos estudiosos: seus laços, ao que tudo indica, foram mais permanentes que aqueles produzidos nas greves e nos movimentos sociais, abrindo canais para a construção posterior de uma relação paternalista com as autoridades e os políticos que ainda precisa ser mais investigada.
Os capítulos finais se detêm sobre os grupos mais reconhecidos e associados à origem do samba na cidade, buscando desvendar um pouco de sua rica experiência. O mais antigo deles, vinculado aos terreiros de candomblé e composto por muitos migrantes baianos ou nortistas em geral (aqueles rotulados como “primitivos”), é objeto do terceiro capítulo. O quarto e último trata da geração do Estácio, introdutora da fórmula triunfante da escola de samba. Ela constitui uma espécie de apoteose da teleologia nacionalista, que a identificou como consagração do gênero, finalmente consolidado como um cartão de visitas da capital federal e uma legítima expressão nacional e popular. Tomando a contramão, os capítulos procuram conflitos e diferenças entre esses grupos e, finalmente, os mecanismos de sua reaproximação ao longo dos anos 1930 e 1940.
Que o leitor aproveite o passeio pela velha cidade, em companhia de seus boêmios e cantores. E (seria desejar demais?) que aproveite a ocasião para
aprender algo com eles.
Capítulo I
UMA QUESTÃO DE BERÇO
3. Sinhô, o rei do samba, 1927. K. Lixto (Calixto Cordeiro).
NO FINAL dos anos 1920, o mais notório compositor popular do Rio de Janeiro já ostentava, com legítimo orgulho, o título de “rei do samba”. Era o primeiro a ter um volumoso conjunto de canções registradas em casas gravadoras. Nascido da união entre um operário e uma lavadeira, escapara dos ofícios da construção civil, como o exercido por seu pai, por ter tido a sorte de aprender piano, habilidade que lhe garantia a sobrevivência tocando regularmente em clubes noturnos e bailes populares. Ainda assim, ganhava pouco. No auge da fama, morava em uma casa humilde na Ilha do Governador. Ainda meninos de colégio, Noel Rosa e seu irmão foram visitá-
lo para conhecer o autor daqueles sambas admiráveis e se surpreenderam ao encontrá-lo compondo em um piano mudo, feito de cartolina, com as teclas brancas e pretas desenhadas à mão, na falta de recursos para ter um instrumento verdadeiro.¹ Pobre, embora famoso, o sambista tomava diariamente a barca, para atravessar a baía de Guanabara em direção ao centro da cidade onde era rei. Esse foi, aliás, o último cenário de sua vida curta, ceifada pela tuberculose em uma manhã do inverno de 1930.²
Pouco antes desse desfecho, entretanto, assinado por J. B. da Silva como era seu costume, veio a público “A Favela vai abaixo”, um novo samba de Sinhô, como ele era mais conhecido. Dolente, cadenciado – menos “amaxixado”, por assim dizer, que a maioria de suas composições –, este acabou por se tornar um dos sucessos mais comentados de sua prolífica carreira:
2. Sinhô, A Favela vai abaixo, 1928. Intérprete: Mário Reis. [ clique aqui para ouvir ]
Minha cabocla, nossa Favela vai abaixo,
Quanta saudade tu terás deste torrão!
Da casinha pequenina de madeira
Que nos enche de carinho o coração.
[...] Vê agora a ingratidão da humanidade
E o poder da flor somítica, amarela,
Que sem brilho, vive pela cidade,
Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela.
[...] Minha cabocla, a Favela vai abaixo,
Ajunta os troço, vamo embora pra Bangu.
Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco,
Eu só te esqueço no buraco do Caju.
Isso deve ser despeito dessa gente
Porque o samba não se passa para ela,
Porque lá o luar é diferente,
Não é como o luar que se vê desta Favela.
No Estácio, Querosene ou no Salgueiro,
Meu mulato, não te espero na janela.
Vou morar na Cidade Nova
Pra voltar meu coração para o Morro da Favela.
Assumindo a causa dos moradores, que o procuraram em busca de ajuda quando o Plano Agache previu desocupação e derrubada do Morro, Sinhô registrou aí um ponto de vista pouco habitual em suas canções. Para quem conhece a crônica do período e a imagem que ela enuncia sobre o local, tido às vezes como lugar de origem do samba e como reduto da pior “canalha”, dos trabalhadores mais despossuídos e da malandragem mais perigosa que se escondia no “Buraco Quente”,³ parece estranha a adesão emotiva e incondicional do compositor: sua personalidade, afinal, foi desenhada por vários de seus contemporâneos como a de um sujeito arrivista e bajulador. Autor de homenagens musicais a autoridades políticas e a intelectuais do período, relativamente assíduo em rodas seletas e alguns salões de
frequência abastada que a fama lhe abria, Sinhô parecia ter se lembrado de suas origens ao lamentar o destino da Favela. Chegou mesmo a integrar o grupo que mediou, junto ao governo, a reivindicação dos moradores do local, conhecido também como Morro da Providência, na defesa das paisagens ou da imagem associada aos redutos tradicionais do samba carioca – o que é um indicador do seu reconhecimento público.
Se era real sua inclinação para cortejar os intelectuais e autoridades que lhe conferiam algum prestígio social, no episódio ela parecia superada pela solidariedade explícita com a gente cujo sentimento ele traduziu da melhor maneira que sabia, nos compassos sincopados do samba. A solidariedade não era gratuita, é claro, mas não se pode dizer que tivesse uma substância política bem definida. Carioca “da gema”, nascido no ano da Abolição, Sinhô havia crescido justamente nas ruas vizinhas ao morro. Mudou-se para lá antes da virada de 1900, quando tinha cerca de dez anos de idade. Literalmente, tornou-se homem olhando para a Favela a partir da Rua Senador Pompeu, esquina com a velha Rua de São Lourenço, onde morava com a mãe. Sinhô, ademais, não era o único sambista das vizinhanças: entre os meninos com quem conviveu, alguns, como Caninha, se tornariam figuras destacadas do grupo de músicos articulados pela vida nos arredores do porto, nos clubes dançantes, nos bares e cafés da região central que se tornaram pontos de reunião de compositores e dos conhecidos saraus em casas de tias baianas.⁴
4. Caninha, c. 1925.
Consagrada em seus versos, a associação do Morro da Favela com o samba (capaz de provocar a “inveja dessa gente”) implicava aceitar uma imagem já bastante difundida quando a década de 1920 se encerrava. Tal gênero musical, visto havia muito como um ritmo bárbaro, herança indesejável de velhos batuqueiros dos tempos do cativeiro, popularizava-se naquele momento através da difusão das casas gravadoras, do teatro de revistas e de todo o circuito de espetáculos que florescia rapidamente. Contava ainda com o apoio de intelectuais de prestígio debruçados sobre a temática do “popular” que, em busca da originalidade de uma “cultura brasileira”, tratavam de atribuir positividade a traços antes recusados. Mas afirmava-se, sobretudo, pela fama súbita e fulminante de novos compositores que tomavam de assalto os modernos canais de difusão: os “bambas” do bairro do Estácio de Sá e do Morro de São Carlos. Tal prestígio, àquelas alturas, já ameaçava o reinado de Sinhô e seus vizinhos da Cidade Nova nos primeiros anos do século, ajudando a construir uma identidade que teve nos marcos
geográficos do bairro de sua infância um referencial simbólico importante, apesar das eventuais desavenças internas ao grupo.
5. Morro da Favela, c. 1920. Augusto Malta.
Assim, quando Sinhô defendeu os moradores da Favela, recusando em seus versos a ideia de mudar-se para outro morro (não casualmente mencionando os rivais São Carlos, no Estácio, ou o também sambístico Salgueiro), pretendia mais que criticar o malogrado Plano Agache ou manter o coração
fincado nas paisagens da Cidade Nova. Além de solidarizar-se com eles, estava demarcando um lugar de origem para o samba, que era o seu próprio “pedaço” na cidade do Rio de Janeiro. Desenhava-se ali uma geografia cultural, cujas fronteiras tinham uma espécie de limite físico estabelecido. O berço do samba, para ele, era delimitado por linhas quase inequívocas: do porto até o Campo de Santana, subindo o Canal do Mangue, que dividia simbolicamente seu território. Do outro lado do Canal, nas ruelas e ladeiras, nos bares, cafés e dancings do Estácio, como depois nas ruas estreitas da Lapa, brotava a nova safra de compositores que disputavam a paternidade do samba. Inveja, ingratidão e o poder do dinheiro – a tal “flor somítica amarela” – podem servir para descrever a “humanidade”, como queria Sinhô. Mas faz sentido imaginar que ele se referisse, mais especificamente, a uma parcela determinada dos seus semelhantes para atingir com a crítica, junto dos que queriam a remoção da Favela, aqueles que faziam sombra ao prestígio dos sambistas da Cidade Nova junto às casas gravadoras e aos ouvidos do público.
Em qualquer hipótese, sua defesa da Favela e do samba, visto como propriedade daquela fatia da sua cidade natal, só faz sentido se for situada no interior de um debate bem mais amplo naquele final dos anos 1920. Seus interlocutores eram intelectuais, jornalistas, sambistas, músicos e musicólogos, literatos e pintores – além de políticos e autoridades. Para muitos deles, longe da preocupação com bairros e vizinhanças, o foco estava em temas candentes como a identidade nacional e a questão racial que a música popular condensava, projetando imagens do país que eram objeto de intensa disputa.
Não é samba, é batucada
A RELAÇÃO entre esses temas complexos da política e a aparente simplicidade do samba parecia muito evidente naquele momento. Já havia nos anos 1920 quem associasse o ritmo a uma característica exclusivamente
brasileira, relacionada à mestiçagem e seus resultados, em busca da originalidade que residiria em algum recanto das expressões culturais do “povo”. Por uma série de razões, o samba que se cantava na capital da República parecia a alguns a sua melhor expressão, mas não se tratava de um consenso. Um bom exemplo, por ser bem conhecido, pode ser visto no clima tenso que acompanhou a trajetória internacional do grupo Os Oito Batutas, vistos na imagem em 1923: desde essa primeira formação, quando se apresentavam no elegante Cine Palais atraindo gente branca e famosa para a plateia, o aspecto racial provocava desconforto em parte da elite e da intelectualidade.⁵
6. Os Oito Batutas, c. 1922.
A palavra “batuta” – à qual eles evidentemente atribuíam o significado de indivíduo destacado naquilo que fazia ou especificamente de músico notável, líder de seus pares instrumentistas (aliás, a palavra designa também o objeto com o qual os maestros comandam suas orquestras) – tinha um sentido muito diferente, por exemplo, na forma como a polícia traduzia a gíria dos marginais e gatunos da cidade: “Batuta – o que dirige um roubo; chefe de quadrilha de ladrões”, registra Elysio de Carvalho em sua compilação do vocabulário corrente nesse universo.⁶ Sem dúvida, tal duplicidade de sentidos sinalizava o preconceito que cercava a presença destacada desses músicos.
Longe da acepção criminal que misturava o vocabulário de diferentes circuitos, os Oito Batutas formavam um harmonioso conjunto composto por quatro negros (Pixinguinha e seu irmão China, Donga e Nelson Alves) e quatro brancos, dois dos quais descendentes de imigrantes – Jacob e Raul Palmieri, além de José Alves de Lima e Luiz Pinto da Silva. Foi com uma composição ligeiramente alterada, mas igualmente dividida ao meio em termos raciais, que eles foram a Paris, no início dos anos 1920, a convite do dançarino Duque. Isso não os poupou de sucessivos ataques abertamente racistas por parte de jornalistas e intelectuais que consideravam um absurdo que a música brasileira fosse representada na Meca da civilização por reles “negrinhos”. Ignorando a evidente qualidade musical do grupo e sua composição multirracial, muitos se preocuparam apenas em qualificá-los como “pardavascos” que tocam “instrumentos rudimentares”, “grupo de africanos” incapazes de representar a nação no exterior e outras diatribes desse tom, que acompanharam a sua trajetória por muitos anos.⁷
Na ordem do dia da política, o debate sobre raça e nação era então diretamente associado às diferentes modalidades musicais consideradas populares. Diferentemente do que ocorrera nos primeiros anos do século, entretanto, os Batutas tiveram defensores entre jornalistas e intelectuais – e admiradores entre as elites econômicas e políticas do país – que
argumentavam com a originalidade mestiça e uma identidade própria para o país que os músicos e sua obra podiam expressar: o escritor Coelho Neto, Arnaldo Guinle (que logo se tornaria uma espécie de mecenas do grupo) e Heitor Villa-Lobos são apenas alguns apoiadores dessa visão otimista e positiva da musicalidade “brasileira” dos Batutas, com os quais conviveram em saraus e botequins ou os quais aplaudiram nas plateias.
Na verdade, a dualidade de registros pertinentes aos significados dessa musicalidade “popular” ou “negra” era anterior à formação do grupo instrumental e ultrapassou seu tempo de existência. Duas ilustrações relativas a “tocadores de violão”, presentes no livro de memórias de Luiz Edmundo, deixam entrever essas diferenças: Raul Pederneiras, que iniciou sua carreira na década de 1890, associava o instrumento ao negro cachaceiro e muito pobre, com suas chinelas e aparência descuidada. Armando Pacheco – que nasceu em 1913, quando Raul já era um profissional reconhecido da ilustração e da caricatura – incorporava ao desenho as concepções de seu tempo que se empenhavam em positivar a ideia de uma cultura popular urbana: ele representa o violonista como um mulato bem-apessoado, certamente capaz de encarnar a ideia positiva de uma musicalidade original e mestiçamente brasileira.
7 e 8. O tocador de violão. Raul Pederneiras (esquerda). Armando Pacheco (direita).
No entanto, se a refinada música dos Batutas e algumas formas irreverentes de improvisar sambas em botecos e rodas frequentados por esses músicos (ao lado de intelectuais e artistas brancos) podiam despertar curiosidade e até mesmo uma declarada simpatia em certos círculos letrados, outras formas de expressão designadas como samba e mais abertamente associadas aos negros pobres das favelas lhes pareciam unanimemente horrorosas, como o som pesado dos tambores que animavam as sedes de cordões carnavalescos e orientavam o andamento de seus desfiles nas ruas. Nessas modalidades, que logo se confundirão com o chamado “samba de morro” com seu ritmo
marcado por instrumentos de percussão que engoliam os poucos instrumentos harmônicos, o gênero não merecia a simpatia de quase ninguém na imprensa, nos círculos intelectualizados ou nos postos de comando da cidade. Assim, a diferença entre samba e batuque que pressupunha uma radical oposição entre eles parece adquirir visibilidade a partir de uma leitura exterior às rodas de seus praticantes. Tal clivagem pode ter sido, em grande parte, responsável pela disputa que se estabeleceu entre os próprios sambistas pela legitimidade, pela tradição e pela origem do samba.
O sambista Amor, por exemplo, filho de um dos principais participantes das primeiras gerações de bambas das redondezas, declarou décadas mais tarde, em entrevista ao Correio da Manhã, que, ao contrário do que parecia consensual nos anos 1950, quando ele falava ao jornalista, o samba não havia nascido no morro.⁸ Diferente de Sinhô (para quem a oposição era postulada em termos de duas vizinhanças mais amplas), Amor afirmava que o samba havia nascido em um botequim chamado “Paraíso”, no qual o pai cantava no início do século com os amigos, quase vizinho ao Morro da Favela, mas claramente diferenciado dele nas suas lembranças. Nascido na Bahia em 1889, ele não vacilou ao associar a origem do samba exclusivamente a esse grupo que se reunia no botequim da Rua Floriano Peixoto e, dali, segundo ele, seguia para as ruas Senador Pompeu e Barão de São Felix integrando-se nos “sambas” de Amélia, Perciliana e outras “tias” que moravam nas imediações. Segundo ele, só bem mais tarde o samba teria penetrado no Morro da Favela, substituindo a batucada que dominava o ambiente no início do século. Note-se a diferença implícita na afirmação: samba e batucada surgem, no discurso do sambista, como formas claramente diversas, se não antagônicas, de expressão musical. Mas tal diferença, explicitada em termos tão claros, podia não ser evidente para seu pai ou para sambistas de outros grupos, chorões e “batuqueiros” do período que disputavam seu lugar ao sol.
Seja como for, no início dos anos 1930, quando a ideia de um samba “de morro” triunfava junto com as escolas de samba, Caninha insistia na
diferença entre as duas coisas. Opondo-se ao seu companheiro de infância, ele afirmava a superioridade do “asfalto”, como se diria um pouco mais tarde, em um sucesso que recorria aos tambores em sua caracterização da modalidade tida como mais “primitiva” que o samba:
Samba de morro não é samba, é batucada.
É batucada, é batucada.
Lá na cidade a história é diferente,
Só tira samba malandro que tem patente [...]
Nossas morenas vão pro samba bonitinhas,
Vão de sandália e saiote de preguinhas [...].
3. Caninha e Visconde de Bicohyba, É batucada, 1932-33. Intérprete: Murilo Caldas. [ clique aqui para ouvir ]
Morro ou cidade, cordões ou ranchos, porto ou zona norte, Estácio, Portela ou Mangueira, bailes maxixeiros ou rodas de partido-alto, baiano ou carioca, batuques ou saraus de bairro – o fato é que o samba já teve muitos berços e endereços. Se levada ao pé da letra, a discussão é evidentemente estéril. Parece mais interessante, em todo caso, tentar entender quando e como o debate teve seu desfecho e quais os significados que adquiriu para sujeitos que estavam longe de ter a estabilidade como parte da experiência coletiva. Na verdade, enquanto Sinhô protestava contra a intenção de pôr abaixo a Favela, muita gente que morara ou circulara regularmente por aquela região já tinha subido morros mais distantes, na zona norte da cidade, seguindo a linha férrea da Central do Brasil, cuja imponente Estação principal ficava em pleno Campo de Santana, levando com eles o samba – da favela ou do asfalto – com suas práticas festivas e de organização.
9. Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, c. 1889. Marc Ferrez.
Vários sambistas, em meio a levas de trabalhadores que viveram pela Cidade Nova e cercanias, haviam se deslocado para os subúrbios. As reformas urbanas, o preço dos aluguéis, a pressão da polícia e outras dificuldades empurravam-nos para longe do porto e das oficinas em que ganhavam o pão. Estácio, Salgueiro, Portela, Mangueira, Serrinha e outras davam os primeiros passos de sua evolução para se tornarem sedes de grupos tradicionais na cidade, que floresceriam na passagem dos anos 1920-1930. Particularmente o Morro de São Carlos, quando se inaugurava a era das grandes escolas, era guindado à condição de reduto de sambistas notáveis, com muitos sucessos registrados em disco e reconhecidos nos espaços da música popular da cidade, fazendo sombra à velha e familiar paisagem da Providência cantada por Sinhô.
10. Praça 11 de Junho, s.d. Augusto Malta.
Nos anos 1920, por outro lado, a velha e lendária Praça Onze, lugar de reunião de foliões de toda a cidade, estava definitivamente consagrada como espaço por excelência do carnaval popular. Os encontros anuais de ranchos e cordões que ali se realizavam ajudaram a fixar a fama de alguns personagens considerados patronos ou fundadores do samba carioca. Em uma manobra bem-sucedida, os poderes públicos haviam concentrado ali as competições
de grupos carnavalescos de origem proletária, promovidas pela prefeitura ou por órgãos da grande imprensa, visando afastá-las da parte mais nobre do centro da cidade – particularmente da elegante Avenida Central, por onde desfilavam os corsos e as agremiações dos mais abastados, ainda conhecidas como “Grandes Sociedades”. Com isso, o lugar alimentou uma imagem que vinculava definitivamente o bairro associado aos negros da cidade ao lugar privilegiado do samba, pontilhado por casas de tias baianas e cultos religiosos de matriz africana. A partir desses elementos, a noção de uma “cultura afro-brasileira” adquiria uma expressão aparentemente sólida e credibilidade no interior do debate nunca encerrado sobre a identidade nacional, que estava especialmente aceso no período.⁹ Disso decorre, em grande parte, a crença generalizada sobre a perseguição policial implacável e universal ao gênero e seus praticantes, desde o final do século XIX.
Com esses elementos, o cenário estava pronto para abrigar alguns desdobramentos da discussão em torno do berço do samba. Diferentes pontos de vista conservavam em comum a ideia de uma fronteira muito clara entre morro e cidade, entre raízes regionais e sonoridades propriamente cariocas ou entre formas de expressão “negras” e “brancas”. Tal polarização podia eventualmente ser útil à defesa de pontos de vista que buscavam enfrentar o racismo e o forte elitismo de grande parte da intelectualidade e das classes dirigentes em geral. Seja como for, o tema ocupava as atenções de letrados tanto quanto de sambistas, empenhados uns em encontrar finalmente a expressão musical da nacionalidade e outros em garantir os evidentes benefícios da paternidade. De parte a parte, a discussão fazia-se em um fluxo que acabava por envolver todo mundo. Ela não era privilégio de letrados, nem exclusividade dos próprios sambistas, que frequentemente conviviam em ambientes comuns. O flagrante da imagem, por exemplo, mostra um “assustado” (ou festa improvisada) que, em 1922, reuniu carnavalescamente músicos e intelectuais reconhecidos: atrás dos sambistas, podem-se ver, entre outros, Di Cavalcanti, Calixto Cordeiro, o autor teatral Marques Pinheiro, Luiz Peixoto, Raul Pederneiras – além de alguns jovens travestidos, cujos nomes escaparam ao registro.
11. Foto de um "assustado" (festa improvisada), carnaval de 1922.
Novos centros da vida noturna, a Lapa e a Zona do Mangue já atraíam noctívagos de todas as classes sociais, incluindo muitos intelectuais, poetas e pintores que confraternizavam pelas noitadas – entre si, mas também com compositores, músicos profissionais ou amadores e “malandros” afamados, propiciando cruzamentos interessantes e estimulando o eterno debate sobre a tal originalidade brasileira.¹⁰
Parecia, para muitos desses intelectuais embalados pelas rodas de samba, que a capital federal conservava ou produzia uma espécie de síntese do país, razão pela qual a música ali produzida expressava perfeitamente a nação e já
não parecia necessário buscá-la no ambiente rural. Como formulou o poeta Manuel Bandeira, discutindo a autoria de um samba atribuído a Sinhô, “quem fez estes choros tão gostosos não é A nem B, nem Sinhô nem Donga: é o carioca, isto é, um sujeito nascido no Espírito Santo ou em Belém do Pará”.¹¹
12. Turunas Pernambucanos, 1922.
É compreensível que, naquele ambiente, o samba, com sua intensa e inspirada produção, parecesse uma boa resposta, melhor até que as tentativas de identificar e promover sonoridades sertanejas que se multiplicaram na voga nacionalista do início do século, povoando a cena artística da cidade com conjuntos “típicos” que fizeram sucesso nos anos 1910 e 1920 cantando a vida rural sob o luar da cidade, como os Turunas Pernambucanos. Até mesmo jovens brancos de classe média como Noel Rosa, Almirante e Braguinha, ao iniciarem sua carreira de sambistas no início dos anos 1920, formaram um conjunto e adotaram nome adequado a essa voga. Antes dos sambas, seu repertório incluía cocos e emboladas, e o conjunto tornou-se conhecido pela evocação bucolicamente rural contida no seu título – o Bando de Tangarás –, mas a moda durou pouco.¹²
13. Bando de Tangarás, s.d.
Por isso, quando Sinhô (que também cometeu suas canções “regionais” e sertanejas embarcando na voga de Catulo) lamentava o triste destino da Favela de sua infância, já podia encontrar apoio erudito e eco na imprensa. Uma de suas maiores habilidades como compositor, afinal, foi sempre a de perceber a oportunidade e descobrir o mote adequado ao sucesso, afinando seu canto ao tom do momento. Assim, já no final da vida, ao expressar solidariedade aos moradores da Providência, ele buscava uma linguagem
musical mais moderna que se aproximava da sonoridade do samba do Estácio e dos morros da zona norte da cidade, onde a Favela original se multiplicava. Talvez por isso, parecia afastar-se, nesse caso, do padrão tradicionalmente amaxixado dos seus contemporâneos para adotar a novidade musical – e absorver pontos de vista difundidos sobre o morro que, na verdade, não frequentara muito na sua infância.
Apenas quatro anos antes, Oswald de Andrade incluíra em seu “Manifesto Pau-Brasil”, de 1924, a observação de que “a poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”. Em 1926, entre muitas formulações semelhantes e típicas do período, um articulista do Jornal do Brasil, antenado com a nova concepção, vislumbrava nos mesmos barracos nada menos que a “alma” carioca: “a Favela é o Rio, mas o Rio integral, sincero, o Rio como Deus o fez. E tanto mais pitoresco, para ser visto, quando é lá que vimos um pouco da alma turbulenta, desordeira e, à sua maneira, épica da cidade”.¹³ Os morros estavam definitivamente na ordem do dia para uma parcela da intelectualidade e um novo modo de olhar se estendia sobre eles. No início dos anos 1930, nadando nessa onda, o cronista carnavalesco Vagalume publicou uma série de “visitas-reportagens” aos “morros, onde nascem as chamadas academias de samba ou que constituem redutos de ‘bambas’”, para usar a definição do próprio autor que parecia pressupor, a despeito de sua intensa admiração por Sinhô e alguns de seus contemporâneos da Cidade Nova, a associação de origem entre o gênero musical e as favelas que se multiplicavam na capital federal.
14. Vagalume, 1938.
Certamente a adoção desse ponto de vista não era gratuita. Firmemente empenhado em definir quem era e quem não era “autêntico” no samba carioca, preocupado com o sucesso das gravações comerciais pelo potencial de desvirtuamento do que considerava a tradição legítima do partido-alto, Vagalume – ele mesmo um ativo militante negro por direitos civis – tratava de aderir à perspectiva que associava livremente os morros, a raça, o ritmo e
a nacionalidade. A perspectiva da luta contra o racismo e pela promoção social dos descendentes de escravos era um ponto de vista central para ele. Sua trajetória pessoal é bastante sugestiva nessa direção. Ele foi introduzido à profissão jornalística, ainda muito jovem, por ninguém menos que Luiz Gama, já nos últimos anos de vida. Enquanto o alufá Assumano Mina do Brasil esteve ativo na cidade, Vagalume foi um de seus devotos e dedicados defensores. Quando o ativista negro Robert Abbott visitou o Brasil em campanha contra o segregacionismo no seu país, em 1923, o cronista esteve entre os interlocutores do líder norte-americano. Era igualmente, faceta mais conhecida, um nacionalista ferrenho que odiava jazz-bands apesar da manifesta simpatia pela luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, além de abominar aquilo que chamava a “praga das eletrolas”,¹⁴ que, ao contrário do que ele acreditava, faziam também a alegria da turma do sereno...
Em busca do berço ou dos “redutos” do samba, o jornalista negro passou pelos morros do Querosene, do Estácio, do Salgueiro e da Mangueira, para encerrar o circuito justamente na velha Favela. Embora o tom pitoresco seja comum às diferentes descrições, as cores são bastante mais sombrias quando se trata da última, depositária de uma velha simbologia negativa na imprensa e no senso comum. “Reduto de valentes e cabras ‘escolados’ nas várias modalidades de malandragens, crimes e contravenções, seu nome jamais foi olvidado no cadastro sangrento do noticiário policial”, segundo ele. Entretanto, para o cronista apegado às tradições e à ideia de uma pureza original daquilo que ele considerava como o verdadeiro samba, o velho morro pioneiro parecia mudado. A “fera indomável”, que se impunha “pelo pavor, pelo terror que todos tinham”, parecia perder as garras. Segundo Vagalume, apenas o Buraco Quente, no alto do morro, podia ser considerado ainda um lugar ameaçador, mas a Favela era passível de regeneração, aproximando-a da imagem ingenuamente alegre e popular que ele construíra para os outros morros da cidade. Escrevendo no início dos anos 1930, Vagalume julgava mesmo que tal regeneração devia completar-se pela intervenção urbanística ou pela simples remoção dos habitantes – proposta que revoltara seu grande amigo Sinhô, poucos anos antes.¹⁵ De qualquer forma, restava para o cronista o reconhecimento, inequivocamente explicitado no texto, da Favela como o lugar de origem do samba. Para ele, no início dos anos 1930 já não cabia falar em crime naquela que era a “ex-
fortaleza dos bambas”, mas que fora literalmente “também o berço do samba [...]”.¹⁶
Àquela altura, a imagem parecia definida. O Morro da Favela, o primeiro a sofrer esse tipo de ocupação e a ser identificado como reduto de sambistas, tornar-se-ia daí em diante um espaço simbólico dessa apropriação, ainda que sua produção musical parecesse ao cronista um tanto decadente. Podemos vê-lo em duas versões. Fotografado por Augusto Malta para a prefeitura da cidade, o ambiente se parece mais com a descrição sombria de Vagalume, ainda marcada pela evocação da violência, pela pobreza e ignorância de seus moradores. Por outro lado, recriado pela pintura modernista de Tarsila do Amaral (a quem, por sinal, Sinhô dedicou um samba que a consagrava como “Nossa Senhora do Brasil”), ele adquire as cores e formas do debate sobre identidade nacional e cultura popular que empolgava intelectuais e artistas nos anos 1920.¹⁷
15 e 16. Visões do Morro da Favela. Augusto Malta, 1920 (foto) e Tarsila do Amaral, 1924 (óleo sobre tela).
É fácil perceber como a pintura modernista erige a favela, definitivamente, em “fato estético”. Ela seria tomada daí em diante como marca de identidade da própria capital federal e, por extensão, de todo o país. Seus habitantes, igualmente romantizados em construções literárias do período, foram no mesmo movimento estilizados enquanto “malandros” – personagens épicos que agregavam à coragem e à valentia uma capacidade única de preservar valores e tradições tão populares quanto brasileiras. Por isso, ao descrever emocionado o enterro de Sinhô em 1930, o poeta Manuel Bandeira observava que as canções do sambista – defensor da favela, mas nascido e residente no asfalto – “pareciam descer dos morros lendários da cidade [...] da fina flor da malandragem carioca, mais inteligente e mais heroica”.¹⁸ Tal idealização da pobreza em suas qualidades estilizadamente “malandras”, associada sem mediações à condição racial e projetada sobre uma visão bucolicamente elevada da cidade a partir dos morros cariocas, foi empreendida por intelectuais e artistas plásticos a partir da década de 1920 – especialmente, mas não de forma exclusiva, aqueles que se vincularam às perspectivas do Partido Comunista.¹⁹
Tal ideia, que teve uma tradução direta na linguagem musical, estava inscrita na produção de muitos intelectuais e artistas brancos do período. Muitos sambas, boa parte deles produzida por compositores profissionais, músicos estudados e boêmios de classe média, passavam a tratar “do morro” (assim, genérico) como lugar de expressão dessa cultura dos oprimidos, plena de possibilidades libertadoras e promessas para o futuro. Faziam dele, de certo modo, uma metáfora fácil para associar as noções de nacional e popular. Junto com essa imagem, entretanto, projetava-se a ideia de “democracia racial”, a valorização da miscigenação e outros elementos lentamente sedimentados ao longo dos anos 1920, presentes em textos acadêmicos, em poemas, em colunas de jornais e também em canções. O próprio samba torna-se aí um “fato estético” representado, junto com a favela, na pintura de modernistas como Di Cavalcanti, habitual frequentador da Zona do Mangue, no Estácio, bem como da Lapa e dos “assustados” boêmios. Os dois exemplos – que não são os únicos na obra do pintor – foram intitulados “samba” e materializam tal forma de pensar o país e a cultura.
17 e 18. Samba (óleo sobre tela), Emiliano Di Cavalcanti, 1925 e 1928, respectivamente.
Articulavam-se aí elementos valorizados pelo pensamento acadêmico e pela arte do período, como o vínculo entre miscigenação e brasilidade, a valorização de características longamente associadas à dimensão racial, como a sensualidade, uma espécie de ingenuidade primitiva e, finalmente, a crença em uma tradição brasileira “de raiz”, oculta nas rodas de bambas do alto dos morros – não mais exclusivamente na roça ou no “sertão”. Uma cultura popular urbana tornava-se, adornada com tais elementos, símbolo forte de identidade e afirmação nacionalista, superando de longe as modas de viola, emboladas e cateretês caipiras. Nos circuitos de uma indústria cultural que se afirmava, a retomada desses elementos se consolidou sob os auspícios
do regime varguista, que empreendeu sua ressignificação política. Atribuído aos negros dos morros cariocas – aqueles nascidos em Vitória ou em Belém do Pará, dando forma a tradições atribuídas aos espoliados da fortuna que expressariam, pela música e pela dança, seus elos com o passado do país –, o samba passava a ser visto como sua principal, por vezes única, forma de expressão. Em uma leitura mais crítica, o símbolo servia para afirmar a resistência popular; em um viés mais oficial, para celebrar a natureza festivamente pacífica e a doçura mestiça da índole nacional, gerando um consenso que dirigiu a maior parte das interpretações das práticas culturais dos pobres da cidade. As diversas modalidades da música popular urbana – lundus, maxixes, tanguinhos e assim por diante – passaram a ser inventariadas pelos especialistas como precursores do samba, em uma versão historiográfica persistente e triunfante, como convém às boas teleologias.
Visto do lado dos sambistas, o novo e promissor conjunto de oportunidades que tal valorização inaugurava – com o desenvolvimento da gravação elétrica, o surgimento do rádio e do cinema, a multiplicação do circuito de espetáculos e a vida noturna com um amplo mercado de trabalho para músicos e compositores – parecia uma tábua de salvação. Sem dúvida essas novas possibilidades levavam à padronização de critérios e formatos, ao despertar a concorrência entre diferentes círculos e grupos do agora prestigiado gênero musical, moldado pelas novas demandas do mercado. Guindados ao sucesso por intelectuais de prestígio – não exclusivamente os modernistas – ou sofisticados mecenas como Guinle, “sambistas” já constituíam, no início dos anos 1930, uma categoria social relevante.²⁰ Deixavam de ser apenas um alvo privilegiado da arbitrariedade policial e, ao mesmo tempo, o termo livrava-se da conotação desqualificante que adquiria nas delegacias para justificar a detenção de vadios “da lira” que empunhavam pandeiros ou violões. Por essa nova ótica, eles passavam a circular em alguns ambientes do high life carioca, eram convidados para salões ou teatros e transitavam com facilidade e desenvoltura entre um mundo e outro.
19. Arnaldo Guinle, s.d.
Na década de 1930, familiarizado com esses e outros ambientes depois de viajar por Europa e América Latina, o flautista Pixinguinha – que era o expoente dos Oito Batutas – chegou a retratar com muito humor, na dupla canção “Samba de preto” e sua gêmea “Festa de branco”, as impressões compartilhadas com seus pares sobre essa nova condição. Brincando através da reiteração da imagem corrente (e francamente racista) que permanecia oculta por trás da celebração da mestiçagem como marca nacional, ele encena desprezo pela primeira festa – que, sendo de preto, tinha de ser um samba. Neste caso,“não se pode frequentar”, segundo ele, pois “só tem cachaça pra gente se embriagar”. O samba menciona diretamente a longa suspeição de que eram objeto em seus lugares tradicionais de reunião: “eu fui num samba/ na casa de mãe Inês./No melhor da festa/ fomos todos pro xadrez”, dizem os versos sintomaticamente escritos na primeira pessoa,
singular e plural, remetendo à experiência pessoal e coletiva do músico festejado.
4. Pixinguinha, Samba de Nego, 1928. Intérprete: Francisco Alves. [ clique aqui para ouvir ]
5. Pixinguinha, Festa de Branco, 1928. Intérprete: Francisco Alves. [ clique aqui para ouvir ]
Quanto à segunda festa, não lhe parecia melhor, nem exatamente divertida. Dando o troco, ele observava que festa de branco “sempre acaba em arrelia”, pois as regras de etiqueta e a afetada sofisticação da elite produziam o que lhe parecia simplesmente um engodo: afinal, que graça pode haver em uma festa para a qual “se vai de barriga cheia”, mas se “sai com ela vazia”? Mais que isso, Pixinguinha reitera a tensa dimensão racial da questão ao explicitar o mal-estar que lhe evoca a presença permanente da polícia nas duas ocasiões. Se ela recolhia seus camaradas no samba das casas de tias negras, também vigiava seu comportamento no meio dos brancos: “eu não me passo/ pra essas festas de chiquê,/ por causa de uma branca/ já quiseram me prender”, observa o compositor cheio de ironia e talvez lembrando as velhas rimas improvisadas das rodas de partido-alto que frequentara na juventude. Premidos entre os dois mundos, de repente alguns desses músicos e compositores pareciam não saber bem qual era o seu lugar – mas, sem dúvida, mantendo prudentemente o pé atrás, se encantavam e até se divertiam com a oportunidade que lhes era oferecida.
Secundando a construção de intelectuais, maestros e poetas ligados ao circuito da cultura de massas, tratavam de produzir expressões de difusão e reafirmação dessa perspectiva, aproveitando a maré. Quando se iniciava a década de 1930 – no ano da morte de Sinhô e da chegada ao poder de Getúlio Vargas –, esse já era um movimento triunfante.
6. Augusto Vasseur, Luis Peixoto e Marques Porto, Preto e branco, 1930. Intérpretes: Carmen Miranda e Almirante [1939]. [ clique aqui para ouvir ]
Entre muitos exemplos bem conhecidos, vale lembrar uma canção já quase esquecida, intitulada “Preto e branco”, que retrata bem tal perspectiva abraçada por compositores de várias origens e experiências. Ela veio a público em 1930 pela voz buliçosa de Araci Cortes, depois de ter sido sucesso nos palcos revisteiros da Praça Tiradentes, e posteriormente foi regravada várias vezes em pleno Estado Novo, inclusive na versão consagrada de Carmen Miranda e Almirante. Elaborando a questão racial em termos que, daí em diante, tornaram-se habituais, a música e os versos assinados por Augusto Vasseur, Luiz Peixoto e Marques Porto (um maestro e dois literatos prestigiados nos meios artísticos oficiais e boêmios da cidade) transformam as diferenças raciais em uma piada sentimental que mal consegue disfarçar o preconceito.
20. Araci Cortes, 1924.
Voltando ao velho linguajar caipira para enfatizar a ignorância dos protagonistas, o tema da canção está focado nas relações tensas entre pretos e brancos. Não é fortuito que o gênero da composição tenha sido definido por seus autores como “batucada”, e não samba, evocando os antigos tambores de negros da Cidade Nova e as igualmente antigas preocupações das autoridades. Se a intenção era enfatizar a raça como marca diferencial da nação brasileira, supostamente caracterizada pela tolerância e pela mistura, a letra acaba por denunciar a sobrevivência e mesmo a centralidade do racismo no ameno país mestiço e tropical:
Diz que esses branco de agora
tem raiva dos preto inté
Pois ôio que é bom é preto,
preto é o diamante e o café
Preto é o oiá de Maria,
esposa de São José
Preto é a tinta que escreve
e dá valô ao papé [...]
Mas o consolo dos preto,
deixa falá quem quisé
é que Deus fez eles branco
Onde foi?... Mas foi na sola do pé!
Foi precisamente nessas circunstâncias, vale lembrar para encerrar o percurso, que surgiu e se firmou a imagem de uma “Pequena África” na capital federal, englobando o morro e o asfalto nos dois lados do Canal do Mangue, amplo berço do gênero para muitos personagens desse enredo. Com tal expressão, sambistas negros, como seu inventor, Heitor dos Prazeres, tratavam, de certa forma, de desenhar seu próprio lugar e importância nessa história, valorizando a presença daqueles que só eram brancos “na sola do pé”. Isso significou, em grande medida, apagar as diferenças entre eles (que Prazeres certamente conheceu muito bem) e recorrer à ideia pacificadora de uma ancestralidade africana capaz de lhes conferir uma identidade comum, deixando de lado as experiências ainda frescas do cativeiro e os dissensos inevitáveis do dia a dia.
Não se tratava, entretanto, apenas de criar um mito político confortável. Na verdade, Prazeres reivindicava, em nome de seus irmãos de cor, o espaço do “samba” – título desse e de vários outros quadros de sua autoria nas décadas posteriores, quando se tornou um pintor naif – positivado por esse processo de valorização, com todos os seus benefícios de ordem prática.²¹ Não é fortuito que, em suas telas que retrataram insistentemente esse ambiente musical, apenas negros e negras figurem entre os protagonistas, como ocorria nas obras de Di Cavalcanti e Tarsila, ainda que tal figuração claramente estilizada tivesse ali um significado diverso. Como muitos artistas de sua geração, ele apropriava-se do debate e agia no sentido de projetar características reconhecidas ou atribuídas por outros setores. Mas o fazia de seu próprio ponto de vista: tratava, como muitas vezes ele e seus
companheiros tiveram de fazer nas quebradas da Cidade Nova ou do Estácio, de agarrar a chance e fazer valer sua boa sorte.
21. Samba no quintal (óleo sobre tela), 1961. Heitor dos Prazeres.
Por isso e muito mais, a despeito de sua imagem “africana”, Heitor dos Prazeres poderia fazer coro à futura “Pequena Notável” para entoar sambas como aquele de um compositor eclético dos anos 1930, completamente rendido às exigências do mercado, chamado Randoval Montenegro. Ao lado de sucessos de tom nacionalista como “Para um samba de cadência”, que seguia a tendência mais forte na época, ele assinara também canções como “Muchachito de mi amor” ou um “foxtrot à brasileira” intitulado “De quem eu gosto”, além de vários cateretês e modas de viola, como era comum à época.
22. Carmen Miranda s.d.
No final de 1930, quando as agitações de outubro ainda nem haviam sossegado totalmente, veio a público pela voz de Carmen Miranda o maior sucesso de Randoval, o samba “Eu gosto da minha terra”. De certa maneira, ele inaugurava a voga dos sambas-exaltação, orquestrados, sofisticados e ufanistas, cujo sucesso marcou fundo a música popular brasileira a partir do Estado Novo. Para alegria de todos e felicidade geral da nação, revirando os olhinhos, Carmen (que, vale lembrar, apenas por implicância, era branquela e portuguesa de nascimento) caprichava no acento carioca, afinava o tom e se tornava porta-voz de um esforço centrado na intenção de ignorar o intenso fluxo transnacional que tomava conta da música popular mundo afora,²² em nome de uma postura política e estética rapidamente oficializada deste lado do Atlântico:
7. Randoval Montenegro, Eu gosto da minha terra, 1930. Intérprete: Carmen Miranda. [ clique aqui para ouvir ]
Deste Brasil tão formoso
Eu filha sou, vivo feliz
Tenho orgulho da raça
Da gente pura do meu país
[...]
Sou brasileira, tenho feitiço
Gosto do samba, nasci pra isso
O foxtrot não se compara
Ao nosso samba, que é coisa rara [...].
Em berço esplêndido: Batuques, harmônicas, realejos
ESSA HISTÓRIA, entretanto, é bem mais complexa do que pode sugerir a interminável discussão sobre berços e origens. As imagens que associaram o samba à favela, aos negros e assim por diante responderam a necessidades e ansiedades políticas, mas são de pouca utilidade para descrever a dinâmica de produção do gênero musical na cidade do Rio de Janeiro. Melhor será que nos aventuremos pelas velhas ruas da cidade em um tempo um pouco mais remoto para ouvir sua variada sonoridade, que atingia igualmente ouvidos negros e brancos, de imigrantes ou brasileiros em diferentes posições sociais. Talvez assim possamos testar a possibilidade de que ele não tenha exatamente um berço: parafraseando o belo samba da Mangueira, ele bem pode ser o resultado de muitas “sementes” que brotavam pela cidade. Se a metáfora botânica é adequada, vale lembrar que não se tratava de uma única planta, razão pela qual é importante atentar para as diferentes feições que ele
assumiu. No final do século XIX e nos primeiros anos do XX, a diversidade étnica, racial e nacional dos habitantes do Rio de Janeiro pode revelar uma complexidade musical que parece insuspeitada na ideia homogeneizadora de uma “Pequena África”, vizinhança extensa e agitada que podemos vislumbrar em foto panorâmica.
23. Panorâmica da "Pequena África", s. d. S. H. Holland.
Quando se cunhou e afirmou essa imagem, o critério não era mais geográfico, na delimitação do território, mas racial. Seu autor, o compositor e cavaquinista Heitor dos Prazeres, era dez anos mais jovem que Sinhô. Como ele, filho de operário: o pai era um marceneiro que tocava clarineta em bandas militares da cidade – padrão que se repete com muita frequência quando se observam as histórias pessoais de sambistas do período. Morava na Cidade Nova, no trecho mais afastado do Morro da Favela e próximo ao Canal do Mangue. Talvez não seja mera coincidência o fato de que tenha sido um dos primeiros desse grupo a aproximar-se, ainda nos anos 1920, dos compositores do bairro vizinho, o Estácio de Sá, e a aceitar os novos padrões musicais que propunham. Tampouco era exatamente um amigo de Sinhô. Ao contrário, costumava acusá-lo de ser “ladrão de sambas”, tema de desafios musicais antológicos entre os dois.²³ Seja como for, a expressão consagrada pelo uso sintetiza uma memória centrada na presença dominante dos negros e nos sons de seus tambores e atabaques em um passado relativamente próximo, o que evidentemente não está muito longe da verdade. Mas tampouco está exatamente perto – ou, em outras palavras, a imagem de um território remetido a uma África mítica, embora enfatize uma dimensão importante da vida dos trabalhadores da região, pode dar margem a simplificações perigosas e revelar-se incapaz de dar conta de uma realidade bem mais complexa.
Afinal, nada mais falso que pensar aquela parte da cidade como um território habitado exclusivamente, ou mesmo principalmente, por descendentes de africanos, ainda que sua presença cultural e seu significado político possam ter sido mais fortes que o fator demográfico. É amplamente conhecido, por exemplo, o fato de que a Cidade Nova, no início do século XX, abrigava a numerosa colônia judaica da cidade do Rio de Janeiro, estabelecida em torno da Praça Onze.²⁴ Desde o século XIX, o número de estrangeiros, judeus ou não, não cessava de crescer com os grandes contingentes de imigração europeia (particularmente portuguesa, espanhola e italiana) que aportavam na capital do país e ajudavam a povoar a Cidade Nova e adjacências. Em 1872, os trabalhadores imigrantes já equivaliam a mais da metade da população livre nativa.²⁵ Porcentagem semelhante (embora inflada no que diz respeito aos negros) pode ser encontrada nos números do ano de 1875 relativos ao ingresso de presos na Casa de Detenção.²⁶
24. O imigrante, s. d. Raul Pederneiras.
Na imprensa, ilustradores os caracterizavam como figuras grosseiras; para a polícia da Corte, os imigrantes pobres constituíam um problema grave de ordem pública, superado apenas pelo medo permanente do contingente de escravos que representava pouco mais que 16% da população no início da década de 1870 – e frequentemente a imagem transmitida por chargistas da grande imprensa dialogava com a inquietação das autoridades, reforçando o incômodo provocado por esses personagens.²⁷ Enquanto a escravidão desaparecia, os números da imigração não pararão de crescer nos anos
seguintes. Essa forte presença de estrangeiros pobres nas ruas, nos cortiços e nas favelas da região, mantida ou ampliada no início do século XX, tinha certamente uma expressão sonora bastante audível. Mas é provável que a mesma preocupação que levava, proporcionalmente, mais escravos e seus descendentes do que brancos às cadeias tenha feito o som dos tambores atingir mais fundo a sensibilidade (ainda) senhorial das autoridades públicas do período.
Entretanto, associar os sons produzidos pelos negros no Rio de Janeiro exclusivamente a batuques é empobrecer demais a riqueza musical daqueles anos. Mesmo quando a intenção tenha sido valorizar uma cultura dita afrocarioca, tal associação pode carregar uma leitura francamente racista, como a de atribuir-lhes indiretamente algum tipo de incapacidade de entender, assimilar e recriar as múltiplas linhas de influência musical com as quais conviviam, com suas variadas procedências e registros. Na verdade, pelo menos desde as décadas finais do oitocentos, músicos de cor como Joaquim Callado e outros ases da primeira geração do choro – Patápio Silva, Anacleto de Medeiros ou mesmo o mais recente Pixinguinha, para ficar nos nomes mais conhecidos²⁸ – faziam ouvir naquelas e em outras ruas do Rio de Janeiro a harmonia elaborada nascida de seus cavaquinhos, violões, flautas e oficleides, clarinetas e pianos, com suas polcas, valsas e tanguinhos brejeiros, em sonoridades que dividiam o espaço urbano com os batuques, mas que, ao contrário destes, ultrapassavam fronteiras sociais. Alguns dos mais conhecidos artistas do período, cujos repertórios mesclavam lundus e modinhas com canções e performances de cabaré, eram negros, como o então prestigiado Eduardo (Dudu) das Neves, padrão de elegância internacional em sua forma de apresentação nos circos e palcos cariocas.²⁹ Apesar disso, se percorrermos velhos papéis da municipalidade tentando ouvir ecos do século XIX, vamos encontrar muitas histórias e outros tantos conflitos envolvendo a existência insistente dos batuques na região, o que confirma que essa imagem “africana” tinha lá seu fundamento.
25. Dudu (Eduardo da Neves), c.1915.
Alguns anos antes do nascimento de Dudu (que, vindo ao mundo pouco depois da Lei de 1871, já não poderia ser escravo), um caso exemplar, entre outros capazes de ilustrar a relevância da questão, opôs, no final da década de 1860, duas autoridades públicas: o fiscal da Câmara Municipal encarregado da freguesia de Santana e o subdelegado de polícia da região. O atrito começou com um comunicado irritado do fiscal à Câmara que revelava, nas entrelinhas, o quanto os tambores faziam parte do cotidiano da vizinhança e como não era simples o propósito de calar seu chamado. Ele queixava-se longamente de que “os batuques e tocatas de pretos, proibidos
pelo Código Municipal de Posturas, têm continuado todos os domingos” na região. Em sua reclamação, o fiscal chegou a indicar alguns endereços para os tais batuques domingueiros, dois na Rua do Alcântara e mais um “na Rua de São Diogo, canto de Santa Rosa”.³⁰ E, ao que parece, não era só ali, pois o subdelegado da freguesia, ao contraditar os argumentos do fiscal, perguntou por que ele só denunciara batuques na área de sua delegacia, quando os havia também na “segunda” – buscando demonstrar que se tratava de uma questão meramente pessoal, já que os tambores soavam em outros trechos da cidade sem aparentemente causar tanta perturbação.
Fosse uma disputa de egos ou de autoridade, o zeloso funcionário esclarece em seu ofício que não os vinha multando, como deveria, uma vez que estava ainda pendente de decisão pela Câmara uma reclamação conjunta dos subdelegados de polícia da cidade – capitaneados justamente pelo titular de Santana – que chamavam a si a responsabilidade por esse tipo de controle. Não parece, pois, que se tratava apenas de uma questão pessoal. A pendência, segundo o fiscal, impedia o cumprimento do que julgava serem seus deveres funcionais, pelo qual ele parecia realmente ansioso. Tratava-se, ao que tudo indica, de um embate relativo a esferas de competência ou, em outros termos, de poder, entre diferentes instâncias do Estado. O fato de que se tenha recorrido justamente aos batuques para realçar a dificuldade no exercício das atribuições do agente da municipalidade, enfatizando a gravidade do problema e a urgência de uma solução, é indício do peso que a questão podia adquirir para os digníssimos membros do governo local. Melhor para nós, que, através da briga de fiscais e subdelegados, podemos ter acesso ao debate em torno da intensidade e do significado dessas ocasiões para os diversos sujeitos envolvidos. Voltemos, pois, aos nossos contendores e suas pendengas em torno dos batuques. O fiscal não poupa detalhes em sua diatribe contra o delegado:
Sem ter havido decisão a respeito [da representação dos delegados de polícia] acontece, que no domingo 29 do presente mês, dobraram tais batuques com muito incômodo para a vizinhança; havendo dois na rua do Alcântara com fundos para a rua de São Leopoldo, e um na rua de São
Diogo canto de Santa Rosa; e isto com tal escândalo que um na rua do Alcântara, estava com caixa de receber espórtulas na entrada, depositada em cima do passeio; e ainda mais escândalo a ponto de quando me aproximava rondando com os guardas, se me dar a apupadas, e lançando foguetes, procedimento, que por não ter solução ao meu referido ofício do que renovo o meu pedido acerca do que devo praticar em tal posição.
A Câmara, então, expediu ofício aos subdelegados da cidade pedindo-lhes uma ação mais efetiva, tendo em vista a denúncia do fiscal de que os tais “batuques e tocatas de pretos” andavam se beneficiando da ausência de controle por parte dos poderes públicos. Entretanto, tratava-se de uma denúncia específica contra o subdelegado de Santana, onde os batuques aconteceriam com uma intensidade maior – a crer na versão do fiscal. Ele queixava-se severamente de que o subdelegado não agira em sua defesa, permitindo os abusos dos promotores dessas toscas diversões que proliferavam na jurisdição. Por sua vez, indignado diante da acusação, o subdelegado deixa evidente a diferença de pontos de vista entre a autoridade municipal e a policial na forma de encarar e se relacionar com tais “divertimentos”, em uma longa exposição que vale a pena transcrever:
[...] Queixa-se o fiscal de, apesar de ainda não ter havido decisão da Câmara, continuarem os batuques, com muito incômodo da vizinhança; a Câmara compreende que não podiam eles cessar desde que eu, única autoridade local legítima, nenhuma dúvida encontrava na lei e nem tinha sido advertido e convencido pelos meios regulares por autoridade alguma que me fosse superior; e porque não passou o fiscal, durante a pendência desta questão, suas ativas e rigorosas investigações de um fato, aliás muito antigo, sempre tolerado por todos os chefes de polícia e subdelegados, nunca mesmo enxergado pelo atual fiscal, e só ultimamente por ele conhecido como perturbador do cômodo público?
Quais as provas dadas pelo fiscal a sua insistência de incômodo à vizinhança?
É sabido que eu mando policiar esses lugares por inspetores de quarteirão, pedestres e oficiais de justiça; eu mesmo apareço aí algumas vezes, e pelo contrário encontro pessoas da vizinhança, até famílias assistindo a esses divertimentos que, principiando de tarde, terminam sempre ao escurecer.
Já vê a Câmara que, se tal incômodo houvesse, os vizinhos queixar-se-iam, não sofreriam sem gemer e eu, único responsável pelo sossego público de meu distrito, não toleraria sua continuação.
Queixa-se o fiscal do escândalo da recepção de espórtulas de entrada; penso que a Câmara concordará que eu e o fiscal nada temos com isso; não vejo lei que o proíba; e, se os divertimentos com espórtula de entrada são um escândalo, os teatros e bailes públicos são escandalosos de longa data.
Para que porém a Câmara avalie o fim que se teve em vista com essa queixa, consinta que eu lhe explique o que é a tal espórtula que tanto incomoda o fiscal: cada preto que quer tomar parte no divertimento paga 80 reis de entrada; ora, reunindo-se sempre pouco mais ou menos, 50 pessoas, eleva-se a receita a 4$000: eis aqui a que fica reduzida a tal caixa de espórtulas. [...]
Queixa-se enfim o fiscal de apupadas que lhe foram dadas, atacando-se-lhe foguetes; já tive a honra de dizer à Câmara que esses divertimentos são policiados por agentes meus e todos me comunicaram, como é do seu dever, que nenhuma novidade tinha havido; e, se houve apupadas, por que não testemunhou o fiscal o fato, dando sua queixa, para ser punido seu autor? Se houve foguetes, por que não multou o infrator?
Posso garantir à Câmara sem receio de ser contestado, senão pelo fiscal, que apupadas e foguetes, se os houve, não partiram do lugar da reunião dos pobres pretos; não duvido, sem afirmar, que algum inimigo do fiscal, vendo sua teima impertinente, pretendesse desacatá-lo, mas em outro lugar em que não houvesse agente policial; que responsabilidade posso eu ter nisso?
Apontem-me o criminoso, eu o punirei. Confio em que a Câmara me fará a justiça de crer que eu, chefe de uma grande família e de um importante estabelecimento, não tolerarei que se pretenda quebrar uma só das molas da máquina governativa da sociedade em que vivo; [...] É tal a prevenção do fiscal que estranhou atacarem-se de foguetes no dia 29, dia de Sant’Ana, fato aliás muito comum nesses dias em toda a cidade, apesar de ser uma infração à lei. [...].
O documento ajuda a entender vários elementos do nosso problema. O mais importante neste momento, entretanto, é perceber que a identificação dessa vizinhança de forte concentração de negros pobres (mesmo antes da Abolição) como o “berço do samba”, embora não possa ser tomada ao pé da letra nem de modo exclusivo, remeteu a experiências ainda recentes na virada do século XX para associar o ritmo moderno aos velhos tambores do passado.³¹
26. Marimba (aquarela sobre papel), 1826. Jean-Baptiste Debret.
27. Fandango de negros no Campo de Santana, c. 1820-1824. Augustus Earle.
28. Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros, c. 1821-1825. Johann Moritz Rugendas.
29. Capa da partitura da obra "Samba", parte da Suite Brésilienne de Alexandre Levy, c. 1890.
A extensão do fenômeno pode ser avaliada por um simples critério físico: supondo que cada reunião congregasse cerca de 50 pessoas, como aponta o subdelegado, com vários tambores e instrumentos percussivos, não é difícil imaginar o volume sonoro que poderiam causar concentrados em ruas estreitas e tão próximas umas das outras. O mapa mostra esse pequeno trecho de Santana no período.³²
30. Plan of the City of Rio de Janeiro, 1866 (fragmento). Edward Gotto.
Podemos observar como entre a esquina da Rua de São Diogo com a de Santa Rosa e a Rua do Alcântara há uma curta distância – apenas dois quarteirões e a largura do canal. Por outro lado, a Rua do Alcântara é bastante curta. Para além do trecho que aparece na imagem, ela tem apenas mais duas ou três quadras com poucas construções naquele período. Assim, não mais que cinco ou seis quarteirões separavam os três batuques simultâneos denunciados pelo fiscal. Certamente o ruído provocado por tambores tão próximos devia ser considerável – e o fato de que não incomodassem a vizinhança deve ser devidamente registrado aqui como indício da condição social e dos hábitos dos moradores das proximidades.
Isso não parece impressionar o subdelegado, que reconhecia tranquilamente serem os batuques uma prática antiga, rotineira e sempre tolerada no período. Vigiados pelos agentes da lei, como inspetores de quarteirão e oficiais de justiça, os tambores que reuniam algumas dezenas de pessoas recebiam com frequência a visita da própria autoridade policial, que ofereceu seu testemunho pessoal sobre essas ocasiões promovidas pelos “pobres pretos”, cuja defesa não hesitava em assumir naqueles anos que antecederam à Abolição. Embora admitisse a existência de um controle próximo e constante sobre os batuques, o subdelegado qualifica-os como festas de família, ou familiares encontros de vizinhança que terminavam ao anoitecer, sem incomodar ninguém, nem provocar queixas à polícia. Seriam, para ele, parte de um costume que, como os foguetórios de Santana e outros dias festivos e santificados, integrava os usos correntes e não devia sofrer repressão, ainda que pudesse eventualmente contrariar posturas da Egrégia Câmara. Assim, não seria justo interferir mesmo na cobrança de ingressos ou espórtulas por parte dos promotores dos batuques (efetuando inclusive a comparação com festas para brancos, realizadas nos teatros e bailes públicos, invocadas no argumento para estabelecer o princípio da igualdade de direitos) e muito menos obstaculizar sua realização.
Aparentemente opostos, entretanto, o olhar piedoso do delegado e a observação temerosa do fiscal parecem convergir na miopia para perceber inevitáveis diferenças entre tais reuniões. No Rio de Janeiro do período,
toques de tambor podiam indicar sambas festivos, rituais religiosos, rodas de jongo ou congadas, ensaios carnavalescos de cordões ou de cucumbis, para mencionar algumas das possibilidades.
31. Cucumbi, c. 1875 (detalhe). Cristiano Junior.
A multiplicação de rodas em trecho urbano tão pequeno sugere, sem dúvida, a variedade dessas finalidades que podiam se estender da religião ao lazer; sugere ademais a presença de diferentes ritos ou etnias – dado importante em uma cidade que ainda abrigava muitos africanos e seus descendentes diretos. Apesar de pontos de vista nem sempre harmônicos, senhores e autoridades produziram a indiferenciação desses significados, seja para difundir o temor ou para cultivar a compaixão pelos “pobres pretos”.³³ Ao descrever os acontecimentos, entretanto, o uso dos termos “batuques e tocatas” indica que os ouvidos não podiam deixar de reconhecer algum ruído divergente entre sonoridades que animavam as rodas que podiam certamente envolver instrumentos harmônicos em suas “tocatas”, para além dos grandes e temíveis tambores dos “batuques”.
Finalmente, aspecto que também nos interessa, o argumento do subdelegado revela um elemento crucial de diferenciação em relação à concepção da polícia republicana que se pretendia regida pelo princípio de impessoalidade. A seu ver, o que o qualificava perante a Câmara – e certamente perante seus concidadãos e subordinados – era a alegada condição de “chefe de uma grande família e de um importante estabelecimento”, uma vez que os cargos de direção da polícia da Corte eram exercidos por indivíduos de destaque social, honoráveis cidadãos aos quais se atribuía alguma liderança moral sobre a população. Não eram profissionais da carreira revestidos de autoridade por uma política centralizada de controle. O ponto de vista paternalista, como sabemos, não iria muito longe na lógica da organização policial e de outras formas de controle social.³⁴ A década de 1880, menos de 20 anos desde esse episódio, já encontrará a polícia modificada em sua ação e abrangência – quando as tensões em torno da Abolição alcançam o ponto mais agudo.³⁵ O afrouxamento dos laços de domínio senhorial, com manifestações crescentemente visíveis, parecia criar, por outro lado, um “senso da importância social” da polícia como instituição, ainda que ela não estivesse modernizada em sua estrutura ou aparelhada para cumprir papel de tal monta – como sugere uma historiadora, indicando uma tendência que se fazia sentir em todo o país no final do oitocentos.³⁶ Essa diferença tornará os conflitos de concepção e atitude entre diferentes agentes da lei cada vez mais agudos no final do século XIX, e seu desfecho assinala uma sensível mudança com o início da República. Eis um fator central para recuperar
significados importantes da história dos batuques, como dos sambas e sambistas da cidade, que tiveram de navegar nessas águas turvas em um período de tensão e renegociação das regras de convivência social entre o final do século XIX e o início do XX.
Não é fortuito que, justamente naquela década crispada pelas tensões políticas do final da escravidão, os batuques tenham extravasado os limites das casas de negros e dos bairros mais populares. Aproveitando ocasiões como os carnavais e outras festas públicas ou religiosas, ganharam as ruas centrais com sua música e suas vistosas fantasias de índios e de africanos que se misturavam a outras vestimentas tradicionais da folia carioca. Ganhavam visibilidade, organização e conquistavam o espaço das ruas, ombreando subversivamente com os grupos de maior “qualidade” social – as chamadas “Grandes Sociedades”, como o Club dos Democráticos, com suas diretorias constituídas, salões luxuosos e préstitos admirados. Ao mesmo tempo em que adotavam algo de seus padrões e formas de apresentação – privilegiando por vezes o uso de instrumentos melódicos –, esses grupos rompiam as regras hierárquicas e tratavam de ocupar o espaço público sem pedir licença a fiscais ou subdelegados.³⁷ Bordavam estandartes, organizavam “livros de ouro” entre comerciantes da vizinhança e já não viviam das pequenas espórtulas que tanto haviam assustado o fiscal de Santana. Adquiriam, por isso, outros significados que reforçavam a posição intolerante aqui representada pelo fiscal sisudo, mais que pela paternal autoridade policial, cujo prestígio, àquelas alturas, já tinha esmaecido. Não foi coincidência o fato de Santana concentrar, no final do século XIX, o maior número de agremiações carnavalescas de origem popular em toda a cidade. O som dos tambores, aparentemente, foi associado no senso comum expresso pela imprensa, pelos textos legais e pela ação cotidiana das autoridades, assim como pela tradição historiográfica posterior, à existência de uma musicalidade negra “de raiz”, unívoca, derivada dos velhos batuques.
32 e 33. Diretoria do Club dos Democráticos e baile na sede da agremiação, 1910-1911.
34. Desfile na Avenida Rio Branco, 1908. Augusto Malta.
Entretanto, embora os tambores pudessem produzir um volume sonoro capaz de abafar outras manifestações, não se pode dizer que as sonoridades africanas fossem exclusivas ou mesmo predominantes naquelas ruas estreitas e mal-afamadas. A imagem da “Pequena África” sem dúvida tende a empobrecer as referências disponíveis para seus moradores e frequentadores,
muitas das quais francamente europeias. Podemos, para retomar o fio da meada, lembrar do Campo de Santana, lugar tradicional de festas públicas e religiosas, com as múltiplas atrações que lá se estabeleciam por meses seguidos desde o oitocentos,³⁸ das lonas de circo e palcos onde se podiam ouvir, na virada do século, artistas negros que passavam bem longe de batuques e coisas semelhantes – como o já mencionado crioulo Dudu ou Benjamin de Oliveira, outro destaque entre os elegantes músicos que misturavam em seu repertório cançonetas de cabaré, modinhas e lundus, muitos dos quais previamente testados nos palcos circenses ou no teatro de revista.³⁹
35. Benjamin de Oliveira, 1909. A montagem fotográfica registra alguns dos tipos que celebrizaram o palhaço-cantor em sua época.
A evocação desse e de outros personagens traz de volta a existência de estabelecimentos fixos e duradouros na geografia noturna da cidade, que, ao lado dos circos e teatros, especialmente o Circo Spinelli de importância indiscutível no período, constituíam boa parte do mercado de trabalho aberto para esses artistas. Entre vários, havia, no Campo de Santana, um elegante café cantante que se chamava “Paraíso”, fundado no final da década de 1850, quando fiscais e delegados disputavam o controle sobre os batuques, onde se apresentava a Cia. de Artistas Líricos e Dramáticos em um “divertimento” intitulado “Folies Parisiennes”. Tratava-se, segundo explicavam seus proprietários, de espetáculo de natureza análoga “aos cafés cantantes de Paris” para deleite de homens brancos, de gosto supostamente refinado.⁴⁰ Sua orquestra, seus coristas e chanteurs, que certamente incluíam vários artistas da mesma origem que os mencionados, produziam música que extravasava para o leito movimentado da praça e atingia, democraticamente, todos os ouvidos.
Por outro lado, as implicações da forte heterogeneidade da população, particularmente a numerosa presença de europeus em busca de empregos ou oportunidades em sua nova morada, nunca foram suficientemente enfatizadas na história do samba. Os mesmos códices que trouxeram à luz a briga entre o fiscal e o subdelegado, ou a presença marcante e simultânea na região dos batuques e dos cabarés afrancesados, contêm um número surpreendente de pedidos de licença para músicos de rua, em sua absoluta maioria imigrantes residentes na Cidade Nova e na zona portuária, apresentados à Câmara Municipal nas últimas décadas do Império. Tais registros, ainda que sumários, fornecem uma boa ideia sobre a cacofonia musical, gêmea da variedade étnica e social, que se podia experimentar nas mesmas velhas ruas de Santana no período. Entre os registros das décadas de 1850 a 1880, enquanto os batuques preocupavam as autoridades e alimentavam suas disputas, é possível encontrar uma infinidade de pedidos de autorização para andar por aquelas ruas com realejos (a forma mais frequente, até por não exigir habilidades especiais), manejados sobretudo por imigrantes italianos que executavam incessantemente seu repertório roufenho de polcas e valsinhas, como sugere o traço de Raul Pederneiras. Havia ainda dezenas de requerimentos – concedidos com certa facilidade nos anos 1850 e 1860, e com mais hesitação nos 1870 e 1880 – para o uso de
instrumentos musicais de sopro e corda, individualmente ou em conjunto, assinados por moradores da área (muitos dos quais, ao fornecerem o mesmo endereço residencial, indicam ser habitantes dos cortiços e outras formas de moradia compartilhada que abundavam por toda a freguesia).
36. O homen do realejo e seu macaco, s.d. Raul Pederneiras.
Já que se trata das formas de coexistência entre grupos raciais, ou nações e etnias, cabe abrir um parêntese para essas habitações coletivas, onde o diálogo entre diferenças culturais era parte indissociável da rotina. O cortiço serviu como título e cenário de um dos mais conhecidos romances naturalistas sobre o Rio de Janeiro, publicado em 1890 por Aluísio
Azevedo.⁴¹ Pontuado por referências à variedade de línguas, costumes ou nacionalidades e à importância de saraus, pagodes e cantorias para esse conjunto de indivíduos desprovidos de alternativas de lazer, o romance utiliza justamente a musicalidade como metáfora para os resultados dessa convivência entre trabalhadores negros e imigrantes. Não se trata apenas de um recurso literário. Efetivamente, a música constituía uma das principais ocasiões de diversão para as classes populares que, assim como os setores mais abastados, usufruíam frequentemente de saraus domésticos ou brincadeiras amadoras que ocupavam boa parte das horas livres dos trabalhadores cariocas em residências familiares, cortiços ou quintais de subúrbio.
Ademais, como sugerem os numerosos pedidos de autorização à Câmara Municipal no século XIX, a habilidade musical servira como passaporte para fazer frente às dificuldades criadas pela escassez de empregos e às dificuldades da vida cotidiana, condições que se mantinham praticamente inalteradas no início do século XX. De qualquer forma, a intimidade com instrumentos musicais era, então, bem maior do que hoje, justamente pela necessidade de promover, através deles, as ocasiões de lazer e sociabilidade entre vizinhos e amigos, em saraus que, entrando pelo século XX, podiam eventualmente contar com a presença de profissionais como Sinhô, que aparece de pé, no centro da imagem, empunhando seu violão, em um encontro desse tipo realizado em uma vizinhança distante, mas digno de ser perenizado por Augusto Malta graças à presença do celebrado sambista entre os músicos de bairro.
37. Grupo de chorões em quintal, com Sinhô de pé ao centro, empunhando violão, 1916. Augisto Malta.
Um dos capítulos do romance de Aluísio Azevedo descreve um domingo comum na estalagem, pintado com as tintas (ainda carregadas pela ótica “naturalista” do autor) e os preconceitos da elite branca e intelectualizada do período.⁴² Na tarde preguiçosa, grosseiros portugueses, italianos e outros grupos de imigrantes, já empanturrados por almoços de diferentes cheiros e sabores, recorriam a suas harmônicas e guitarras melancólicas, além de outros instrumentos ou vozes em coro. No meio deles, dois brasileiros, Firmo e Porfiro, destacam-se na narrativa porque “faziam o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos negros cassanges”.⁴³ Os personagens eram, inequivocamente, trabalhadores braçais. Firmo, violonista e capoeira, era definido como um oficial de torneiro muito perito em seu
oficio, embora fosse descrito pelo autor como um mulato “vadio”. O negro Porfiro, seu amigo, era tipógrafo. Os portugueses, por sua vez, trabalhavam duro na pedreira; os italianos, seguindo o estereótipo, eram mascates. Vizinhos na habitação coletiva, apesar das fortes desavenças, todos se unem em certo ponto da trama para enfrentar ataque dos moradores de uma estalagem rival, evidenciando o quanto o autor enxergava identidade e solidariedade entre esses habitantes de cortiço tão diferentes na cor e nos costumes.
Nas horas de lazer, o gemido das guitarras portuguesas ou os coros harmoniosos em dialetos italianos se cruzam e disputam espaço. Cheio de sons europeus, o domingo se arrastava, descreve o autor. Tais sonoridades, entretanto, teriam sido literalmente anuladas por uma intensa (e perigosa) musicalidade, cuja presença dá o tom do romance. As canções do Velho Mundo foram não apenas contaminadas, mas derrotadas pelo som sincopado do violão e do cavaquinho, secundado pelas palmas cadenciadas dos companheiros e pela dança sensual da mulata Rita Baiana, em metáfora quase canônica sobre a degeneração racial e o calor dos trópicos.⁴⁴
[...] mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse. [...] E à vista da crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas de além-mar. [...]. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso.⁴⁵
Não se pode tomar literalmente tal versão, obviamente suspeita ao supor que indivíduos de origens e experiências tão diversas tenham suas diferenças anuladas por uma degradante mistura racial, mais até que pela pobreza. Mas ela serve para nos advertir, mais uma vez, de que é preciso refletir sobre os significados dessa convivência e levar em conta a forte presença cultural dos imigrantes, que chegavam ao porto do Rio de Janeiro para juntar-se aos
negros crioulos ou africanos nas ruas e nos cortiços de Santana, bem como em outras freguesias centrais da cidade. Sem dúvida, esses novos habitantes da cidade enfrentavam as mesmas duras condições de existência – salários muito baixos, jornadas de trabalho elevadas, desemprego, carestia e dificuldades no abastecimento. Usavam como podiam as habilidades que lhes permitissem saltar para fora das dificuldades. A música, amplamente praticada entre os trabalhadores negros ou brancos no Rio, como sugere o flagrante de imigrantes que habitavam o Morro da Favela nos anos 1920, certamente era uma das melhores alternativas disponíveis: guitarras, bandolins e as pequenas harmônicas, sempre presentes no cotidiano, forneciam o fundo musical da ocasião no “berço do samba”.
38. Moradores de cortiços se instalando no Morro da Favela, c. 1920. Augusto malta.
Se não soubessem tocar um instrumento, sempre havia os realejos, autorizados às dúzias para circular no centro e região adjacente. Se
dominassem as cordas, as teclas ou tivessem uma boa embocadura nos sopros, não hesitavam em tentar fazer disso um ganha-pão – e pode-se apostar que, assim como os cativos e libertos da Cidade Nova durante as décadas finais da escravidão, os trabalhadores recém-chegados preferiam “viver sobre si” a alugar-se para um patrão em troca de salários irrisórios e jornadas escorchantes. A troca de experiências, neste aspecto, feita nas fábricas ou nos corredores do cortiço, pode ter sido enriquecedora para ambas as partes – e resultado em um mútuo aprendizado musical.
Os requerimentos dirigidos ao governo local no final do século XIX indicavam claramente que tocar nas ruas, em troca de espórtulas, era uma modalidade de ocupação utilizada na imensa maioria dos casos por estrangeiros – ou, pelo menos, eram eles que pediam licença às autoridades para o exercício da atividade.⁴⁶ O volume de pedidos e concessões, juntamente com outras evidências disponíveis para o século XX, afasta definitivamente a ideia de exclusividade dos batuques na configuração de uma identidade musical ou cultural para Santana. Sem dúvida os sons que enchiam o ar na região que seria designada como “Pequena África” incluíam uma grande dose de fadinhos, canções folclóricas da terra distante, valsas e polcas executadas pelo som rouco dos muitos realejos, choros e tangos interpretados com maestria por músicos profissionais nas muitas casas de diversão do bairro; árias eruditas, acordes das bandas marciais que ecoavam em ocasiões solenes, nas ruas e nas festas públicas do Campo de Santana;⁴⁷ sucessos musicais de várias procedências divulgados pelo teatro de revistas e, mais tarde, gravados por grandes astros do disco negros ou mestiços no início do século, como Bahiano (Manoel Pedro dos Santos, 1887-1944), cantor da Casa Edison ao lado de Dudu e Benjamin. Enfim, um cardápio variado e colorido convivia tranquilamente com o volume e o poder dos tambores ao longo de todo o período. Parece óbvio o quanto isso implica em termos de troca de referências, gostos e linguagens. É preciso, assim, prestar mais atenção na variedade sonora das ruas de Santana desde o século XIX, para tomar as guitarras, as harmônicas, as castanholas e outras expressões dos trabalhadores brancos da região, particularmente dos imigrantes, como um elemento cultural relevante.
39. Bahiano (Manuel Pedro dos Santos, 1887-1944), c. 1910.
Não que fiscais e demais autoridades municipais da Corte gostassem muito mais dessa ocupação de estrangeiros que dos batuques, ainda que não tivessem base legal para proibi-la. Muitos casos podem reforçar essa convicção. Como tantos outros, por exemplo, o italiano Lucas Canciccione,
morador na Rua da Saúde no 221, freguesia de Santa Rita, pediu, em 1857, licença para “tocar realejo”, enchendo ruas e becos das imediações de Santana com o som de valsinhas ligeiras, polcas saltitantes ou enfezadas mazurcas.⁴⁸ O contador da Câmara, Inocêncio da Rocha Maciel, em seu parecer, parecia arrependido da facilidade com que havia dado tais autorizações em ocasiões anteriores, estipulando tão somente as respectivas taxas para o exercício da atividade sem estabelecer regras mais rígidas para seu controle. O argumento apresentado não deixa dúvida sobre o motivo do receio, agregando ainda um elemento curioso que reforça a ideia sobre o intenso diálogo musical entre os habitantes da cidade:
O ano passado fui de opinião que se concedesse licença para andarem tocando realejo, e pandeiro pelas ruas da cidade, facilitando assim um divertimento ao público; a experiência porém tem mostrado, que em lugar de se facilitar divertimento, se anima a vadiação dos tocadores de tais instrumentos, dos que param nas ruas para ouvir, desvia braços de trabalhos úteis e muitas vezes tem nascido rixas e mortes; entendo pois que a Ilma. Câmara fará um serviço à sociedade negando a licença que o suplicante pede, e ordenando aos fiscais que não consintam mais o andar tocadores de realejo, e pandeiro, pelas ruas, oficiando ao chefe de polícia para coadjuvar a mesma Ilma. Câmara neste propósito [...]. 10 de fevereiro de 1857. O contador (a) Inocêncio da Rocha Maciel.
O tom do contador mostra a suspeição sobre esses artistas de rua (se é que se podem incluir nessa categoria os viradores de manivela) e sobre as atividades musicais fora dos recintos fechados, independentemente da cor da pele ou da nacionalidade dos protagonistas. O medo da “vadiação”, tanto dos músicos como da heterogênea assistência, afinal, era algo semelhante ao medo do contágio nas epidemias que grassavam pela cidade. De alguma maneira, a perspectiva que orientaria a descrição de Aluísio Azevedo (sobre o potencial desmoralizante da convivência entre pobres europeus e negros) já parecia habitar os pesadelos dos agentes da municipalidade, décadas mais cedo. A natureza preguiçosa, o desregramento e outras características atribuídas aos últimos pareciam capazes de degenerar a índole supostamente
disciplinada de imigrantes que se acreditava predispostos às duras rotinas do trabalho regular. A suspeição se estende aos vizinhos de cortiço de um modo geral, embora os negros continuassem merecendo uma atenção especial das autoridades encarregadas do controle da população urbana, respondendo ao intenso processo de racialização das relações sociais no período próximo à Abolição.
Neste sentido é especialmente curiosa a citação do pandeiro no interior de um conjunto abundante de pedidos em análise, que, naquele caso, envolvia exclusivamente a autorização para realejos. O pedido específico que motivou o parecer não faz qualquer referência ao instrumento de percussão – como, de resto, nenhum outro. Assim, permanece o enigma: por que teria o zeloso funcionário municipal trazido à baila o inocente instrumento? Talvez pandeiristas, espontaneamente, aparecessem nas ruas, associando o ritmo de seu instrumento ao som de realejos para obter algum ganho em forma de espórtulas dos passantes. É possível que isso ocorresse de forma eventual, em uma sugestiva fusão sonora, mas aqui se trata de pura especulação, já que não dispomos de referências mais precisas a situações como essa. Talvez, por outro lado, a lembrança viesse da proximidade dos dias de entrudo, e a recomendação tivesse um alvo mais amplo. Pode ser, mas devese notar que, nos códices relativos à autorização para esse tipo de “diversão”, não encontrei um único requerimento de tocadores de pandeiro para exercer seu ofício pelas ruas da freguesia... A sua inclusão no parecer, por iniciativa do rigoroso contador, sugere que talvez instrumentos ligados a um costume musical mais próximo de negros e mulatos, como as rodas de samba raiado (ou baiano), nas quais o pandeiro era indispensável, pudessem também ser ouvidos nas ruas da região, ainda que esses músicos se dispensassem de pagar taxas à Câmara.
Seja como for, a tensão avança desde a década de 1860 e pelas seguintes, em sucessivos pedidos de músicos de rua. Um deles foi Fabio de Lucia, autodefinido como “musicante italiano” e morador na Rua Formosa no 991, em Santana, que, em 1861, pediu autorização à Câmara para tocar nas ruas quatro instrumentos (harpa, rabeca, pistom e uma harmônica), como forma
de ganhar a vida com sua profissão – que, a julgar pelas ilustrações de época como o “homem dos sete instrumentos”, não era tão rara quanto pode parecer.
40. O homem dos sete instrumentos, s. d. Raul Pederneiras.
O contador implicou novamente, apesar da admirável habilidade do proponente – como fará invariavelmente daí em diante, subindo o tom a cada ano. Para reforçar tal ponto de vista, enviou o requerimento para um procurador opinar, com o peso do saber jurídico – visto que sua opinião não era exatamente compatível com a dos legisladores. O procurador José Mariano da Silva, tolhido pelo limite da lei, acabou manifestando-se por conceder a autorização, mas não deixou de apoiar o contador Maciel no
mérito, observando que “a bem da moralidade pública, a Ilustríssima Câmara, tomando qualquer deliberação a respeito, faça cessar essa prática para o futuro”.⁴⁹ A tentativa de coibir a atividade, evidentemente numerosa e capaz de chamar a atenção de passantes, reunindo grupos anônimos ao seu redor, não parou de crescer, envolvendo imigrantes na aura de suspeição que, aos olhos da administração local, já cercava os velhos batuques.
A Câmara não parece ter seguido à risca a recomendação, pois os pedidos de novos candidatos ou renovações de antigas licenças se sucedem, anualmente, às dúzias. No entanto, os critérios de concessão vão se tornando perceptivelmente mais rígidos com o passar do tempo, ainda que a lei não tenha sido modificada. Como contrapartida, os requerimentos vão se tornar mais dramáticos a partir da década de 1870. Os solicitantes passam a agregar a seus argumentos uma suposta condição de invalidez e deficiências físicas ou idade avançada como forma de justificar o afastamento do trabalho regular. Dizem-se “aleijados”, “estropiados”, “anões”, “cegos”, “anciãos” – embora muitas vezes tais pedidos se refiram não a indivíduos, mas a grupos musicais inteiros. Eram pequenas formações de homens de diferentes nacionalidades, por vezes residentes no mesmo endereço, sugerindo vizinhos de cortiço em busca de ocupação alternativa ao duro trabalho das fábricas ou do porto. Isso indica que, em menos de 20 anos, o controle foi sensivelmente aumentado, forçando o apelo a razões humanitárias ou à simples caridade – quando antes bastava pagar as taxas sem necessidade de justificativas ou argumentos.
Por outro lado, o repertório desses músicos de rua parece ter se sofisticado ao longo do tempo. Para além dos realejos, pedem cada vez mais autorização para tocar rabecas, harmônicas, instrumentos de sopro, “organitos” e até mesmo nobres pianos – transportados em carrinhos de mão pelo calçamento irregular, atividade que exigia ao menos uma equipe de apoio para o artista principal. Eventualmente, bandas de música completas pleiteiam autorização para apresentarem-se no espaço público com a finalidade de simplesmente entreter os passantes e, embora estas sejam compostas principalmente de músicos brasileiros (provavelmente, muitos deles negros), o repertório de
polcas, valsas e outras variedades análogas estava longe de poder ser atribuído a matrizes africanas.⁵⁰ Na década de 1890, subitamente, os requerimentos escasseiam, quase que desaparecem da documentação do município, uma vez que, com a República, passara a caber exclusivamente à polícia a decisão sobre quais as atividades permitidas ou não, licitas ou ilícitas, nas ruas da cidade.
Uma cidade musical
NO INÍCIO do século XX, quando o samba já mostrava sua cara nos botequins, nos carnavais e nos morros, o embate entre delegados e fiscais era, definitivamente, coisa do passado. A mudança de atribuições, por esse motivo, pode até mesmo ter sido vista com alguma satisfação por artistas amadores que buscavam espaço nas ruas. Afinal, a presença da corporação policial no controle de festividades ou diversões públicas e particulares havia sido bem mais amena que a da Câmara, ao menos em um bom período do Império, quando o regime estava em seu ocaso. Mas, se foi assim, logo os numerosos músicos de rua devem ter percebido o engano. O registro de suas atividades nos papéis da municipalidade vai rareando e eles parecem ter sido empurrados definitivamente para a ilegalidade ou para as salas fechadas e as comemorações privadas ou públicas, como a Festa da Penha, que atraía anualmente sambistas e festeiros em geral, ou o carnaval, cujas agremiações proliferavam rapidamente com suas sedes e atividades legalizadas e devidamente autorizadas.
41. Pixinguinha, Caninha, João Pernambuco, Patrício Teixeira e outros na Festa da Penha, c.1912.
42. Grupo carnavalesco Horror à Tristeza na Festa da Penha, s.d.
É improvável que tais indivíduos tenham deixado de tocar nos cortiços aos domingos ou em outras ocasiões íntimas, como sugere o romance de Aluísio Azevedo, mas só podemos especular sobre seus destinos com base em pequenos indícios. Seja como for, escrevendo no início do século XX, João do Rio – que definiu o Rio de Janeiro como uma “cidade musical” – comemorava o que lhe parecia uma volta à cena dos músicos de rua:
Novamente à beira das calçadas a Valsa dos Sinos e O Guarani se desarticulam em velhos pianos; novamente sujeitos, que parecem cegos, rodam a manivela dos realejos estendendo a mão súplice [...] depois de alguns trechos da sonante Boêmia [...]. Essa cidade é essencialmente musical; era impossível passar sem os músicos ambulantes.⁵¹
A crônica prossegue apresentando alguns personagens desse ofício que, segundo o autor, seriam muito conhecidos na cidade – como um certo José, “italiano capenga, que chegou ao Rio em 1875” e alugou um piano de manivela para fugir ao trabalho regular, executando os acordes teatrais dos Sinos de Corneville, do Caballero de Gracia e do Bendengó; Vicente, segundo ele, era outro músico de rua italiano, bastante conhecido no início do século XX, particularmente nas ruas Formosa e do Areal; ou ainda o “Caruso das ruas de São Jorge e Conceição”, um ex-carpinteiro, cuja voz enchia os botequins baratos da região na execução de modinhas grafadas em pequenos folhetos que ele tratava de vender após as apresentações. A frequência com que “musicantes” de várias línguas e cores reivindicaram sua presença nas ruas de Santana na segunda metade do século XIX e os traços de sua permanência no cenário no início do século XX constituem bons indicadores do quanto as referências africanas são insuficientes para dar conta de contexto tão complexo. Certamente a Cidade Nova, parafraseando o cronista, foi sempre um espaço muito musical frequentado por numerosos indivíduos licenciados para exibir nas ruas seus talentos com instrumentos europeus, sinfônicos ou populares, e por tambores e outros instrumentos proscritos que invadiam os ouvidos sem permissão. Nem sempre os repertórios correspondiam simetricamente à cor da pele dos que os executavam pelas ruas daquele bairro, em que realejos e pandeiros podiam aparecer misturados nas esquinas ou nos receios de fiscais da Câmara Municipal, e sonoridades diferentes disputavam lugar e legitimidade, enquanto, sem dúvida, ouviam atentamente umas às outras.
43. João do Rio, s.d.
Não fosse o olhar observador de João do Rio e de outros raros cronistas, entretanto, dir-se-ia que valsinhas e cançonetas, harmônicas ou guitarras
haviam se ausentado como por encanto da cena carioca quando o século XX se iniciava. Um longo silêncio ocupara o lugar de seus acordes, e a ênfase assustada dos jornais e memorialistas recaiu, quase exclusivamente, em tambores, pandeiros, cavaquinhos e outros instrumentos associados a negros perigosamente avessos ao trabalho regular – mesmo quando tinham ofícios permanentes, como no caso dos personagens de Aluísio Azevedo. Talvez, forçando um pouco, uma analogia invertida possa caber entre essa forma de produção da memória e a tradição historiográfica que, sob o rótulo da “transição”, fez com que os antigos escravos praticamente desaparecessem como sujeitos historicamente relevantes, cedendo o lugar de protagonistas aos imigrantes assalariados.⁵² O outro lado dessa construção foi trazer de volta à cena os ex-escravos e seus descendentes – mas no fundo do palco, no papel de sambistas, vadios, transgressores, malandros, para ocupar as margens do mercado de trabalho e da sociedade.
Essa versão, entretanto, não foi exclusivamente uma obra dos historiadores e outros intelectuais da segunda metade do século XX, pois em certo grau constituía a percepção dos próprios sujeitos históricos que produziram tais registros. A racialização das relações sociais que acompanhou a ampliação dos espaços de liberdade dos escravos e seus descendentes foi o pano de fundo de uma sutil operação que, entre outras coisas, empenhava-se em fixar o perfil da região onde se concentravam os pobres da cidade como o lugar dos negros. Pobres, pretos, perigosos – associação que consolidava a imagem de um foco permanente de ameaça.⁵³ As fontes, de diversas procedências, são fartas quando se trata dessa identificação pouco sutil entre os lugares da pobreza, a presença dos negros e os focos da violência, mas também da desmoralização e da sujeira. De forma análoga, os cortiços e outras formas de habitação coletiva, sempre associados a essas visões fartamente veiculadas pela imprensa e pela literatura, ocupavam o primeiro lugar na relação construída entre falta de higiene e hábitos da vida cotidiana dos trabalhadores urbanos “enegrecidos” pela convivência com ex-escravos e seus descendentes.
44. Entrada de habitação coletiva, 1906. Augusto Malta.
45.Cortiço na Rua Frei Caneca, s.d. Augusto Malta.
Contrariando esse retrato negativo, no entanto, é relativamente comum encontrar na documentação oficial situações em que moradores de cortiços e
suas vizinhanças, incluindo gente de diferentes procedências e cores, se unem em busca de melhoria das condições sanitárias, enfrentando ora os senhorios, ora o poder público, em episódios nos quais aparecem mobilizados e organizados para reivindicar melhores condições de habitabilidade.⁵⁴
Um caso sugestivo dizia respeito à questão da limpeza das áreas comuns, pela qual eram legalmente responsáveis os proprietários do cortiço ou estalagem. Há muitos episódios envolvendo essas habitações coletivas, cujas imagens, captadas de seu interior, não deixam dúvida sobre a real precariedade das instalações oferecidas a preços elevados aos trabalhadores da região.⁵⁵ Neles se pode ter uma boa noção das condições difíceis de convivência a que estavam submetidos seus moradores. Proprietários de cortiços foram autuados por manter cozinhas coletivas improvisadas embaixo das escadas do imóvel, ou por instalar, nas cozinhas dos estabelecimentos, camas alugadas para moradores, entre outras infrações dessa natureza. A maior parte delas diz respeito ao lixo acumulado nas residências, pelo qual muitos proprietários foram multados ou advertidos pelos fiscais sanitários.⁵⁶
46. Interior de habitação coletiva, 1906. Augusto Malta.
47. Pátio de estalagem, s.d. Augusto Malta.
Moradores de uma dessas casas coletivas, conhecida pelo apelido jocosamente irônico de “Palacete”, uma das mais visitadas pela polícia no início do século XX, estavam em conflito aberto com senhorios descuidados que, ademais, cobravam aluguéis extorsivos. Em defesa de seus direitos, reuniram-se para pleitear diretamente ao paladino da higiene, o prefeito Pereira Passos, medidas contra aquilo que acontecia no local, denunciado
por eles como um verdadeiro foco de contaminação, em linguagem que parece diretamente aprendida com os agentes da medicina social:
Os abaixo assinados moradores a longos anos na estalagem denominada “Palacete”, à rua General Caldwell no 28, verdadeira arapuca que ameaça a cada momento desabar sobre os infelizes moradores e, além disso, em completa imundice pela falta de um empregado que trate da indispensável limpeza, e isso porque estando a estalagem em litígio não há quem dela tome conta, ultimamente vem-se os obrigados a absorver o péssimo fétido que exala das pudridões que ali existem devido ao despejo de lixo não só dos moradores como até de vizinhos que a altas horas da noite ali fazem despejo de toda sorte de detritos e que depois lançam fogo, para os pobres moradores se impestiarem com os miasmas.
Exmo. Sr. Dr. pelo amor de Deus e compaixão dos pobres queira dar uma providência, mandando que o respectivo Delegado de Higiene faça uma visita àquele foco de miasma ordenando as medidas higiênicas que ali não se observam, apesar de que há pessoa altamente colocada no lugar que diz que V. Exa. ali nada pode fazer, mas se V. Exa. pessoalmente fizer uma visita por certo ficará abismado e admirado de que em uma cidade como esta exista um foco daquela ordem.⁵⁷
Assinam pelos moradores indivíduos italianos e brasileiros (ou portugueses), como os nomes deixam perceber: Prospero Rizzo, Pasquale Potenza, Vitorino Almeida, Francisco Pedro, Domenico Retta, Joaquim Mendes Pinto. Apesar do esforço nada incomum desses trabalhadores para incorporar as normas e os confortos mínimos apregoados pelos agentes da higiene, recorrendo ao poder público em busca de providências e instigando pessoalmente o autoritário prefeito a agir, a adjetivação carregada utilizada pelos jornais e autoridades públicas para descrever seus lugares de habitação e convívio revela o temor desconfiado com que eram vistos. Além das habitações coletivas (onde eram obrigados a viver nas condições que os
proprietários lhes ofereciam), os botequins que frequentavam, os salões de dança em cuja decoração caprichavam e nos quais procuravam divertir-se quando sobrava um troco, todos os espaços coletivos dos trabalhadores, apesar do zelo e do capricho de seus usuários e diretores, mereciam descrições da imprensa e dos poderes públicos que enfatizavam cheiros corporais, imoralidade, podridão e imundice. Particularmente a descrição dos salões de dança e outros espaços fechados costumava destacar os odores do acúmulo de gente pobre e pouco higiênica: “a sala tresanda a bodum”, dizia Luiz Edmundo ao usar a mesma retórica para descrever a sede de uma sociedade carnavalesca da Cidade Nova, onde “um baile corria animado”.⁵⁸
48. Sociedade Dançante e Carnavalesca Ninho do Amor, no salão de sua sede, 1911.
Neste caso, como era comum principalmente quando se tratava dos espaços de lazer, o elemento racial é recorrentemente invocado e concorre para a escolha da adjetivação utilizada. Tratava-se ali de mais uma associação carnavalesca caracterizada como um cordão, frequentada principalmente por homens de cor, segundo pretendia o autor. A caracterização desses grupos como espaços “negros” era o padrão comum aos jornalistas do período. Posando em suas sedes para a imprensa – oportunidade sempre buscada na disputa de prestígio com as associações rivais –, eles não parecem tão assustadores e, quase sempre, exibem uma composição bem heterogênea do ponto de vista da cor dos integrantes, como se pode ver na imagem. Mas, aos olhos da maior parte dos contemporâneos brancos e letrados, esses grupos seriam fundamentalmente “africanos”. A trilha sonora dessa construção, claro, evocava os velhos batuques e os ainda mais velhos temores senhoriais – ainda que os tambores utilizados lembrem mais os velhos “Zé-pereiras” carnavalescos⁵⁹ –, a experiência de músicos negros em bandas militares e outros tipos mais europeus de experiência musical.
49. Sociedade Carnavalesca Banguizas em sua sede, com instrumentos usados nos desfiles, 1911.
Parte desse movimento era a homogeneização ou, em outras palavras, o apagamento das diferenças entre as várias modalidades e práticas musicais dos afrodescendentes cariocas, que, vale insistir, jamais se reduziram aos tambores que os cordões costumavam levar às ruas nos dias de Momo. No caso do cordão mencionado por Luiz Edmundo, um de seus integrantes, responsável por ensaiar a bateria de tambores, foi descrito como um verdadeiro “gorila”, certamente não apenas devido à sua estatura física.⁶⁰ É
sobre esses espaços do cotidiano – como habitações coletivas ou lugares dedicados ao lazer dos trabalhadores – que a confusão entre raça e classe vai estabelecer alvos mais precisos. A ideia de um bairro violento e antihigiênico é erigida justamente a partir da imagem de “gorilas”, casas imundas e diversões “primitivas”. Os cordões carnavalescos, com sua temática tradicional em torno do conflito entre índios e africanos e uma percussão pesada associada aos velhos batuques, vão se tornar a principal metáfora desse temor, por constituírem a forma mais visível, numerosa e barulhenta de presença pública dos trabalhadores desde o final do século XIX.
Eles eram conhecidos como “cordões de pancadaria”, duplo sentido que se referia tanto ao uso de grandes tambores quanto ao temor da sua suposta violência. Assim, a própria imagem desses agrupamentos festivos foi difundida pela crônica com o estereótipo racista: bandos compostos de negros barulhentos, agressivos e malcheirosos. Segundo o cronista Carioca, que assinava uma coluna carnavalesca na revista Fon-fon, eles transformavam a principal festa da cidade em uma “feição monótona de alegrias africanas”.⁶¹ Na expressão de Gonzaga Duque, eram “horríveis”, “fétidos”, “bárbaros”, com seus “berreiros de taba” e “uivos africanos em samba”.⁶² Tentando um “elogio ao cordão” voltado para os grupos do carnaval popular, aos quais creditava o mérito de manter a animação das ruas durante os carnavais, João do Rio engrossa a corrente ao qualificá-los de “assustadores” e definir seus integrantes como “negralhões” suados e “nauseabundos”.⁶³ Para a crônica, de modo generalizado, os “sambadores cordões carnavalescos” eram descritos como manifestações “boçais de africanismo”.⁶⁴ Tidos como lugares de nascimento do samba, tais grupos carnavalescos projetam uma imagem negativa e racializada de sua origem e procedência que se torna dominante no início do século XX.
Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente, eles sim monótonos na insistência quanto a esse desprezo assustado pelos cordões, a forma mais popular e difundida no carnaval carioca do período, e suas temidas “heranças africanas”. Tal presença preocupava sobretudo porque, após 1889, a
proliferação dessa forma de brincadeira era realmente impressionante.⁶⁵ Assim, a canção carnavalesca ocupa um papel central na polêmica – até porque, todos compunham para o carnaval. Se, do lado dos entusiastas da mestiçagem como o lugar da identidade brasileira, algumas modalidades de brincadeira e das sonoridades populares – como o “samba baiano”, o choro ou os ranchos – podiam parecer interessantes ou pitorescas, os batuques pesados continuavam desempenhando o papel do vilão. Em grande parte, é essa a razão pela qual os cordões do carnaval carioca vêm descritos nessa ótica fortemente racializada pela imprensa carnavalesca e pelos cronistas debruçados sobre o tema, que os associam diretamente a origens africanas como forma de desqualificação. A associação desses grupos com o samba que nascia nas ruas é quase evidente, considerando o volume da percussão que utilizavam e a composição social circunscrita aos setores mais pobres da população – coisa de negros, como supunham cronistas do período, oriundos das favelas ou dos cortiços da cidade.
Na prática, entretanto, eles estavam longe dessa descrição, mesmo em seus frequentes episódios de violência que ocupavam colunas inteiras dos principais jornais. Abrigavam, ao lado dos negros, imigrantes, brancos pobres em geral, vizinhos de cortiço ou de favela, músicos. Mesmo os poucos registros sonoros que sobraram desses temidos grupos de foliões contrariam em grande parte tal imagem. Puxando pela memória, em 1945, por exemplo, Almirante reviveu, na Rádio Nacional, o tema musical do famoso Filhos da Primavera, que ouvira no carnaval de 1910. Grupos como esse costumam ser também considerados como “berços do samba”, já que, para além das aparições carnavalescas, mantinham sedes e atividades dançantes e musicais ao longo de todo o ano. O cordão, diga-se a propósito, era um dos mais visados pelos agentes da lei e citados negativamente nas páginas policiais da imprensa carioca.⁶⁶ Mas – durma-se com um barulho destes – cordões, sambistas ou foliões podiam ser muitas coisas ao mesmo tempo. Por isso, a léguas de distância da africanidade atribuída aos seus temíveis tambores e longe da imagem que cerca a origem do samba, o Primavera cantava nas ruas um trecho da opereta “A viúva alegre”, sucesso de Franz Lehár em 1906, devidamente adaptado para o passeio da “pancadaria”:⁶⁷
8. Marcha do Cordão Primavera, s.d. Intérprete: Almirante [1946]. [ clique aqui para ouvir ]
Primavera quando sai a passeá
É um anúncio que sai no jorná
É um vaso cercado de flores,
Um cartão-postal de amores [...].
Capítulo II
GENTE DA LIRA
50. Benedito Lacerda, s.d.
MAIS UMA história banal das delegacias cariocas: no dia 3 de abril de 1923, às 8 da noite, dois presos foram conduzidos às dependências da 14a DP, encarregada das ocorrências de Santana. Um deles, natural do estado do Rio, branco, com 20 anos de idade, residia na Rua Estácio de Sá. Era músico da banda do 4o Batalhão da Polícia Militar, apresentando-se na ocasião com a farda da corporação. O outro, um pintor de paredes português de nome
Miguel, com 27 anos, residia no cortiço que ficava nos fundos do botequim situado na Rua Visconde de Itaúna no 347. Haviam se envolvido em uma luta corporal, apartada com dificuldade pelos vizinhos, motivo pelo qual foram levados para a delegacia para prestar os devidos esclarecimentos, dando origem a um inquérito por lesões corporais.¹ Cumpridas as formalidades de praxe, que incluíram exames de corpo de delito nos brigões, foram colhidos os depoimentos dos envolvidos e das testemunhas, o que permitiu estabelecer as circunstâncias do conflito.
O músico policial era ninguém menos que Benedito Lacerda, o aclamado flautista e compositor do Estácio, então no início de sua trajetória. Ele teria se deslocado naquele dia até a rua que beirava o Canal do Mangue para ensaiar com um colega de farda de nome Jonas, residente no cortiço cujo proprietário, o português Abel Fernandes, era dono de um botequim anexo, como era comum naquele trecho da cidade. Como Jonas estivesse ausente, Benedito esperara sua chegada bebendo em companhia de outro morador da habitação coletiva situada nos fundos do boteco. Com a chegada de Jonas, a despesa fora paga com uma nota “estalando de nova” – mas o português dera o troco em notas velhas e gastas. Esse fora o motivo para o bate-boca inicial, em que Benedito recusara-se a receber o dinheiro surrado e o português, irritado com suas exigências, não só se negara a trocar as notas como teria dito desaforos em voz alta.
Na delegacia, Benedito justificou sua atitude alegando que, uma vez que “achava-se fardado, não podia ser desmoralizado diante do público”, razão pela qual dera voz de prisão ao português, alertando em altos brados que cumpriria o anunciado após ensaiar no quarto do amigo. Provavelmente buscava, ao relatar ao delegado tal demonstração de orgulho corporativo, a solidariedade dos policiais de plantão (que provavelmente conseguiu, visto que o inquérito não chegou ao final).
O desenrolar dos acontecimentos, entretanto, tornou o incidente mais grave do que se anunciava – um simples bate-boca por causa de troco. Inconformado com a ameaça de Benedito, o dono do botequim não esperou seu retorno. Dirigiu-se ao quarto em que os músicos faziam soar a flauta e o clarinete para dizer (desafiadoramente, segundo a interpretação do depoente) que estava pronto, caso ele quisesse levá-lo à delegacia. Um novo desentendimento teve início, momento em que o ocupante do quarto contíguo – o acusado Miguel, que exercia a profissão de pintor de paredes – tomou a defesa de seu patrício e senhorio. Depois de acertar Benedito com uma cadeira, atracou-se com ele e, na briga, feriram-se mutuamente, até serem contidos, presos e conduzidos à delegacia.
Os depoimentos das testemunhas convergem nos detalhes do ocorrido e na explicação da atitude de Miguel. Segundo eles, este teria assumido a defesa de Abel sem ter conhecimento do ocorrido anteriormente, simplesmente por não concordar com a efetuação de qualquer prisão no interior da habitação coletiva, como ameaçava fazer Benedito Lacerda. Tal reação, diga-se de passagem, não parece ter causado estranheza às autoridades que conduziram o inquérito, indicando que era algo frequente nas circunstâncias.
51. Benedito Lacerda (com a flauta) e o grupo Voz do Morro, s.d
Benedito Lacerda iniciava sua carreira como artista reconhecido em todo o país com o Conjunto Voz do Morro justamente por essa época. Sendo morador do bairro do Estácio, era igualmente amigo próximo dos principais compositores e instrumentistas da região – como Ismael Silva, Baiaco, Bide, Brancura e outros –, consagrados pela bibliografia como representantes da gente “da lira” ou dos malandros, como se costumava caracterizar os
sambistas do período. Mas, ao contrário do estereótipo consagrado e que se ajustava ao figurino da maior parte dos seus amigos do Estácio, ele não usava chapéu de lado, não arrastava tamancos nem usava sapatos de duas cores e bico fino – nem há notícia de que escondesse navalha sob a farda. Esse pequeno episódio sugere, ao contrário, que as fronteiras entre sambistas, músicos, policiais e “malandros” não eram assim tão claras no dia a dia desses personagens “da lira”. A ideia de uma malandragem tão heroica quanto estilizada, associada a esses personagens do Morro de São Carlos, Estácio e Lapa nos anos 1920 e 1930, parece mesmo deslocada diante da figura de Benedito e seu proclamado orgulho de caserna diante do desaforo do português.
A expressão genérica “gente da lira” já era empregada antes desse período e fora registrada dez anos antes desse episódio por Elysio de Carvalho: “Pessoal da Lyra – Chamam-se os vadios e desordeiros”.² O termo certamente englobava sambistas de outros círculos e diferentes padrões de comportamento – tanto os baianos ligados aos terreiros de candomblé ou aos ranchos carnavalescos da Cidade Nova e do porto, como outros grupos existentes na cidade. A sutileza, afinal, não costuma frequentar a ótica inscrita na percepção policial das diferenças entre seus alvos habituais. Mas o episódio com Benedito Lacerda mostra que o termo podia englobar soldados e policiais – teoricamente encarregados de manter a ordem – ao lado da imensa legião de trabalhadores, com ou sem violão e pandeiro, relegados às margens do trabalho regular. Homens e mulheres que viviam da “viração” ou da contravenção ligada ao meretrício, ao jogo e a outras formas alternativas de sobrevivência, como a música – possibilidades à disposição dos trabalhadores, cujas escolhas estavam relacionadas exclusivamente à falta de oportunidades e, claro, aos valores e visões de mundo de cada grupo.
A existência de um “pessoal da lira” unívoco em seus significados e padrões é parte do mantra historiográfico sobre a perseguição sistemática, indiscriminada e persistente a esse gênero musical, como uma característica permanente na história de uma “cultura popular” carioca. Tal lembrança dos sambistas sobre sua vida diária não é de todo incorreta, claro, mas talvez
exagere na ênfase pessoal ou enxergue a questão por um prisma muito particular. Afinal, provavelmente não eram os sambistas especificamente, menos ainda exclusivamente, o objeto da ação da polícia e das autoridades, mas os pobres de um modo geral. Por isso, vale a pena voltar à história da região e seus moradores: ela talvez ajude a conhecer de perto o ambiente dos diferentes trabalhadores que a lira dos sambistas expressou, além de testar eventuais oposições ou fronteiras entre os dois grupos abrigados sob esses termos.
Nem tão pequena, nem tanto África
EM 1906, quando jornalistas ainda olhavam com mais desconfiança que curiosidade os sambas, as ruas e as pessoas do trecho urbano que seria apelidado de Pequena África, o Rio de Janeiro contava com 805.335 habitantes, distribuídos desigualmente por bairros centrais, subúrbios e freguesias rurais. A área em vermelho, designada como “Pequena África”, ocupava uma pequena parcela do território urbano. Aproximadamente 15% dessa população estava concentrada em Santana e Santa Rita, antigas freguesias de pequena extensão, mas densamente povoadas, que se estendiam do cais do porto até a parte leste e norte do Campo de Santana, subindo o Canal do Mangue na direção da Lapa ao Estácio, escalando as subidas íngremes dos morros do Pinto, da Favela e as ladeiras da Saúde. Outra freguesia central como São José, tomada aqui a título de comparação por ser uma das mais populosas da cidade, abrigava, no mesmo período, 5,6% da população.
52. Mapa das Freguesias do Rio de Janeiro em 1905, destacando a área conhecida como "Pequena África".
Não era apenas uma questão de densidade demográfica. As características dessa população pareciam agravar, aos olhos das autoridades, os perigos decorrentes da concentração. Em primeiro lugar, as taxas de nupcialidade eram especialmente baixas entre os moradores de Santana e adjacências, predominantemente adultos e do sexo masculino.³ Não há dados precisos sobre a cor da população carioca no novecentos, posto que a contagem por esse critério foi abolida após o final da escravidão e a Proclamação da República. Os dados disponíveis, entretanto, indicam que, em 1890, a
porcentagem já era de 62,7% de brancos contra 37,3% de não brancos (sendo 12,3% de negros e 25% de mestiços)⁴ – proporção que pode ser menor para a região de Santana, mas não a ponto de inverter essa sólida maioria. Assim, quando se iniciava o século XX, esse trecho da cidade abrigava um contingente humano numeroso e heterogêneo, intrinsecamente pobre, racialmente dividido, desacostumado a hábitos regulares ou à vida em família, que se espremia em cortiços e estalagens ou subia os morros da região em busca de moradia barata e próxima ao local de trabalho.⁵ Não era de estranhar, assim, que, em 1910, a maior parte dos intelectuais encantados com as graças de Paris e com a nova Avenida Central carioca, assim como a maioria dos seus leitores das áreas nobres da cidade, olhasse para essas ruas e becos com indisfarçável mal-estar.
53. Inauguração da Avenida Central, 1910. Marc Ferrez.
É claro que, vistas por outro ângulo, tais ruas eram perigosas também para a gente pobre que lá habitava ou circulava, sujeita cotidianamente à arbitrariedade dos agentes da lei. Pelo menos é o que sugerem os elevados índices de prisões ou detenções naquelas redondezas, consideravelmente maiores que a média. Apesar disso, essa não era a parte da cidade em que a polícia intervinha com mais frequência. Nos primeiros anos do século XX, o recorde de ocorrências pertencia à vizinha freguesia de Sacramento – sede
dos teatros e cafés, reduto da vida noturna e boêmia e, sobretudo, das casas de prostituição mais conhecidas da cidade no período, que atraíam um considerável público masculino de diferentes origens sociais para suas animadas noitadas, multiplicando conflitos e episódios criminais. Tomando os dados sobre o movimento das delegacias da área central para estabelecer o número médio de ocorrências registradas em diferentes regiões, entretanto, podemos concluir que justamente Santana e a área portuária foram palco da maior parte dos episódios que envolveram a intervenção “preventiva” da polícia. Durante o ano de 1905, tomado a título de amostragem, na circunscrição de Santana, a média foi de 72 ocorrências a cada mês, enquanto a área boêmia de Sacramento registrou uma média de 86. Entre estas últimas, entretanto, era avultada a proporção de acidentes de trânsito, suicídios e crimes contra a propriedade caracterizados por pequenos furtos em estabelecimentos comerciais ou nas carteiras dos frequentadores, contos do vigário e coisas desse tipo, bem menos comuns entre as ocorrências de Santana – embora as prisões de criminosos, mais que de contraventores, constituíssem motivo de orgulho policial, especialmente quando exibidas pela imprensa. Os dados indicam, portanto, perfis e objetivos diferenciados de atuação policial em cada distrito.⁶ Ademais, detalhe bastante expressivo, grande parte das ocorrências dessas áreas mais centrais, como Sacramento ou São José, resultava na prisão de homens e mulheres cujo endereço ficava, justamente, em Santana e imediações.
54. Indivíduos presos como ladrões pela polícia do 13º Distrito, 1910.
Assim, a alta frequência de ações de combate ao crime, no caso de Sacramento, revela a disposição de proteger os mais remediados contra a convivência com setores considerados perigosos para a ordem social, preservando as famílias contra a dissolução dos costumes e os cidadãos distintos, que por ali se aventuravam em busca de emoções noturnas, contra o óbvio potencial dessas regiões para atrair ladrões, jogadores, estelionatários e vigaristas de todo tipo. Por isso, eram majoritariamente atingidos pela ação repressiva na área dos teatros e da vida noturna indivíduos imputados como ladrões, punguistas, caftens e prostitutas. O conjunto das ocorrências de Santana, por sua vez, tem outras implicações importantes. A assistência a doentes, loucos e indivíduos falecidos por causas naturais no interior das habitações coletivas ocupa boa parte das atenções policiais. Além disso, ao contrário das prisões efetuadas na “zona boêmia”, a imensa maioria dos episódios se refere ao universo da
contravenção ou a delitos menos penalizados na lei, como as constantes suspeitas de “vadiagem”, rodas de jogo, bebedeiras, brigas de rua, defloramentos ou sedução para as quais a polícia se equipava no período, melhorando instalações e equipamentos.
55. Caixa de Socorros Policiais na Avenida Central, 1910.
56. Instalações e pessoal do 4º Posto de Socorros Policiais, 1910.
57. Sede Central da polícia carioca, 1911.
Várias dessas detenções, inclusive, resultaram de atividades estritamente musicais, como a que levou à prisão um guarda-noturno, um maquinista de trem e um sargento músico, como Benedito Lacerda:
À 1 hora da madrugada foram recolhidos ao xadrez Alfredo Ferreira Maguella de cor branca, filho legítimo de Francisco Ferreira Maguella e de Maria Ferreira Maguella, brasileiro desta capital com 28 anos, solteiro, guarda-noturno da 10a circunscrição, analfabeto, morador a rua João
Cardoso, 42. João Damasceno Charbel de cor branca, filho legítimo de Beltimo Floriano Charbel e de Amélia Augusta Charbel, brasileiro desta capital, com 28 anos, solteiro, sabendo ler e escrever, maquinista e morador a rua Capitão Lima, 21 e Carlos Dias Carneiro de cor parda, filho legítimo de Manuel Dias Carneiro e de Anniceta Dias Carneiro, brasileiro, desta Capital, com 32 anos, solteiro, sabendo ler e escrever, professor de música do 1o Batalhão de Infantaria e morador a rua digo praia Formosa, 1, presos pelo inspetor de ronda Sydronio e os praças 269 e 102 da 2a Companhia do 2o Batalhão da Brigada Policial por estarem em grupo com serenatas na rua Conselheiro João Cardoso em companhia do célebre “Raul”; que ao avistarem a polícia fugiram para os matos do morro do Pinto dizendo “foge que aí vem a canoa”, na ocasião prenderam os três já citados nesta parte, evadindo-se o grupo de mais três que fizeram fogo contra o inspetor e os praças afim de se por esse meio soltariam os que já se achavam presos. Foi apreendido um violão e uma cópia ao sargento Professor de Música.⁷
Episódios como esse são relativamente comuns e servem para evidenciar a suspeição que deflagrava a ação dos agentes da lei nessa área da cidade, dirigida de modo indiscriminado contra seus habitantes. O guarda-noturno da vizinha circunscrição de São Cristóvão, o maquinista de trem e o professor de música da banda militar (o único cuja cor – “parda” – foi anotada, deixando supor que os dois outros fossem brancos) não cometiam qualquer crime. Apenas andavam nas vizinhanças do Morro do Pinto em cantorias, presumivelmente, segundo o policial que os deteve, realizando “serenatas” e choros pelas ruas, como era comum entre instrumentistas amadores das classes populares. Os músicos amadores, a crer no relato do agente, ao fugirem da abordagem da polícia, advertiam os demais passantes: tratava-se de uma “canoa”, prática habitual da polícia na região de arrastar para o xadrez, sem motivo aparente, bandos de suspeitos para serem identificados na esperança de que um peixe graúdo caísse na rede.⁸ O que se segue, no relato do inspetor, pode ser mera ficção. Acompanhados de um “célebre Raul”, aparentemente um malandro conhecido ou meliante procurado, alguns integrantes do grupo teriam fugido e disparado armas de fogo contra os policiais. Como não houve processo, o relato se torna bastante duvidoso. Ademais, com os três presos, havia apenas um violão e a tal
“cópia” (palavra com a qual o escrivão provavelmente queria designar uma partitura ou cifra de violão).
58. Capa de O Malho, 1903. K Lixto (Calixto Corrdeiro).
O fato é que, naquele ano de 1905, apenas três ocorrências em Santana, contra dezessete em Sacramento, remetiam ao universo propriamente criminal em atos contra a propriedade ou a pessoa. As demais tinham um perfil semelhante ao desse episódio da serenata – que revela mais sobre o preconceito que cercava os “tipos de morro” que sobre a real periculosidade dos habitantes da região. Além disso, ao contrário do que acontecia em Sacramento ou São José, os detidos eram, na maior parte, moradores da própria região sob jurisdição da delegacia. Assim, não será equivocado tomar esse conjunto de episódios policiais de Santana – referentes principalmente a desavenças entre vizinhos, desordens de bêbados em botequins e quiosques, brigas de amor, farras entre homens e mulheres noite adentro, lutas de rua por diferentes motivos e, principalmente, à desconfiança contra trabalhadores pobres que se encontravam vagando pelas ruas sem ocupação ou em horas tardias – como uma boa amostragem, tanto para conhecer mais de perto os habitantes da região (incluindo aí os sambistas), quanto para entender seus costumes, valores e padrões de conduta.
59. Tipo de Morro, s.d. J. Carlos.
Note-se que tal forma de intervenção dos agentes da polícia, voltada menos para o crime que para o controle social, deve ser remetida ao contexto do período. Na verdade, “os dados dos censos de 1890 e de 1906 demonstram que houve um aumento substancial no número de indivíduos fora do mundo do trabalho visível, pessoas que lutavam pela vida arduamente, utilizando os mais variados expedientes para sobreviver, algumas vezes alternando situações de pobreza com situações de extrema miséria”.⁹ Por isso mesmo, os registros da polícia de Santana, com uma atuação principalmente preventiva, atenta à contravenção e direcionada ao controle de pequenos atos do cotidiano, muitos dos quais constituíam meios alternativos de
sobrevivência ao alcance desses trabalhadores ou formas acessíveis de lazer, podem servir como uma boa porta de entrada para vislumbrá-los em sua vida diária. Na medida em que se ocupam mais com episódios do dia a dia do que com a criminalidade propriamente dita, os registros da polícia constituem uma amostragem bastante razoável para pensar o universo heterogêneo dos habitantes da região, com hábitos musicais ou não, e suas formas de convivência.
Se nos mantivermos no ano de 1905, que vem nos servindo de exemplo até aqui, veremos que o percentual de brasileiros e imigrantes presos como infratores em Santana e zona portuária revela que os segundos estavam longe de ser vistos como um grupo pacífico e ordeiro. Embora representassem no período apenas pouco mais de 24% da população da cidade,¹⁰ eles somavam 41% do total dos indivíduos capturados pela polícia, contra 57% de nacionais, como mostra o gráfico a seguir produzido com base nas informações constantes dos Livros de Registro de Ocorrências das delegacias de polícia da região.¹¹
Gráfico 1 – Nacionalidade dos infratores – c. 1905
Fonte: Livros de Ocorrências das Delegacias de Santana, Santa Rita, Gamboa e Saúde. Cecult, Banco de Ocorrências Policiais.
Gráfico 2 – Infratores distribuídos por cor – c. 1905
Fonte: Livros de Ocorrências das Delegacias de Santana, Santa Rita, Gamboa e Saúde. Cecult, Banco de Ocorrências Policiais.
Ainda que dados mais precisos sobre a cor dos habitantes da região nesse período não estejam disponíveis, os números das delegacias permitem relativizar bastante a metáfora africana projetada sobre ela. Um segundo gráfico para o mesmo universo de presos, detidos principalmente por contravenções como vadiagem nas delegacias policiais da região, agrega novos elementos para a análise. Entre os presos de todas as nacionalidades, encontramos 33,3% de pretos e pardos contra 37% de brancos, excluindo a parcela cuja cor não foi registrada na ocorrência. Assim, em termos dos critérios raciais vigentes, havia uma pequena maioria de brancos nas celas das delegacias policiais do Rio de Janeiro, embora essa percentagem fosse menor do que indicam os dados gerais sobre cor para 1890. Temos assim bons elementos de convicção sobre a forte heterogeneidade racial da população de homens e mulheres pobres que habitavam, trabalhavam ou transitavam pelas ruas de Santana, sob os olhos vigilantes da polícia – mas também uma evidência sobre a racialização do “perigo”: ainda que os brancos constituíssem a maioria da população, o contingente de presos negros e pardos era proporcionalmente bem maior que sua presença demográfica.
Com diferentes cores e línguas ou sotaques, os brasileiros e estrangeiros que conviviam em celas, cortiços e favelas eram obrigados a engendrar formas de diálogo permanente, produzindo novas identidades, reafirmando laços antigos ou inventando tradições às quais se apegarem. A despeito do racismo que levava descendentes de escravos com mais facilidade que brancos às cadeias das delegacias ou à Casa de Detenção, o que as evidências policiais revelam é, antes de tudo, a intensa mistura e a convivência entre trabalhadores brancos e negros, de diferentes origens nacionais, no enfrentamento de dificuldades da vida diária. Uma das estalagens mais malafamadas da região, por exemplo, estava situada no número 9 da Rua Senador Eusébio.
60. Rua Senador Eusébio, s. d.
O local era conhecido como “Zunga” ou “Casa da Turca”, e era propriedade de uma certa Maria Scheid, presa várias vezes por prostituição e outros
delitos.¹² Assim, era previsível que a “canoa” da polícia navegasse com frequência naquelas águas, arrebatando dúzias de frequentadores e moradores a cada investida.
Uma dessas ocasiões, úteis para vislumbrar elementos do cotidiano e o perfil dos moradores e frequentadores da região, aconteceu no dia 16 de outubro de 1905, precisamente à meia-noite. Trinta pessoas foram recolhidas à delegacia apenas por estarem, àquela hora avançada, acordadas nas dependências da estalagem. Boa parte declarou que morava lá mesmo, mas não todo mundo – o que era normal, já que se tratava de um zungu que permitia a presença de hóspedes eventuais, por uma noite.¹³ Entre os presos havia seis mulheres, metade das quais não tinha qualquer ocupação a declarar. Quase todas eram do Rio de Janeiro ou de estados próximos, como São Paulo ou Minas Gerais. Quanto aos homens, em número de 24, o conjunto era bastante variado. Todos declararam uma profissão específica, a maior parte portuários e marítimos. Alguns afirmaram ter residência em subúrbios distantes (e era comum, nesses casos, que trabalhadores buscassem pouso temporário nas muitas zungas existentes na região, para descansar no intervalo das atividades diárias). Apenas seis deles haviam nascido no Rio de Janeiro. O grupo incluía uma forte maioria de recémchegados, característica importante da população daquela parte da cidade. Mineiros e paulistas, muitos “nortistas” – de Pernambuco, Bahia, Paraíba e Alagoas –, alguns vindos de municípios vizinhos no estado do Rio, assim como imigrantes portugueses e italianos de Nápoles, que passaram a noite juntos na cela do distrito amargando seu triste destino de desterrados naquela cidade que crescia vertiginosamente enquanto tentavam dar um rumo a suas vidas.¹⁴
Quanto aos cariocas “da gema”, que estavam por ali havia mais tempo, deviam sentir a velocidade das mudanças em sua cidade natal. As velhas ruas com nomes de santo, cada vez mais cheias, passavam por modificações de traçado, extensão e nomenclatura. Os santos foram substituídos por vultos do extinto Império brasileiro. A de São Diogo, por exemplo, onde estava um dos batuques outrora denunciados pelo fiscal da municipalidade, chamava-se
agora General Pedra; a de Santa Rosa se tornara do Marquês de Pombal. A Rua Senador Pompeu (antiga Rua da Princesa), onde morava Sinhô no início do século XX, seguia paralela à Rua Barão de São Felix (antes conhecida como “do Príncipe”), ambas aos pés do Morro do Livramento. Apesar da nomenclatura nobre, em um sentido quase literal, o coração de seus moradores (como queria Sinhô) estava mesmo voltado para a Favela. Um de seus temidos cortiços, situado ao pé do morro, abrigara até os primeiros anos da República o Príncipe Obá, figura conhecida por toda a cidade e que encarnava a forma peculiar de relação entre negros pobres e autoridades públicas no Segundo Reinado. Diz a crônica que ele era detentor do respeito da comunidade mina da cidade, que o reverenciava nas ruas e o aplaudia quando surgia, fardado como alferes da Guarda Nacional, ao lado do imperador, na sacada do Paço Imperial.¹⁵ Sua morte, logo após a Proclamação da República, pode ser tomada como um momento simbólico de ruptura entre tradições e formas de relacionamento entre os antigos habitantes da cidade e o poder público.
61.Príncipe Obá, 1878. A. Lopes Cardoso.
A área de Santana era, assim, repleta de significados e memórias ainda recentes para moradores que, de diferentes maneiras, se “viravam” para enfrentar as novas condições de convivência uns com os outros – e de todos com o regime republicano, personificado, na primeira instância, em agentes policiais e autoridades sanitárias. As mudanças vinham aceleradas e sua iminência causava rebuliço e ansiedade. A destruição militar do “Cabeça de Porco”, o maior e mais famoso cortiço da Rua Barão de São Felix, fora tão marcante que, anos depois, ainda inspirava polcas dos músicos locais quando as reformas urbanas de Pereira Passos se iniciavam. O porto logo seria refeito e o bota-abaixo iria abrir profundas cicatrizes naquela parte da cidade, forçando o início de um êxodo do centro em direção aos subúrbios.
A região carregava ainda a impressão recente da Revolta da Vacina, da qual tinha sido o núcleo central e que também inspirara alguns compositores. A relação do episódio com a mudança de critérios e procedimentos imposta pelo regime republicano é mais que evidente e sugestiva da tensão que atravessava a experiência cotidiana dos pobres do Rio de Janeiro evocada pela música de seus compositores e instrumentistas – mas ainda não sambistas.
9. Anacleto de Medeiros, Cabeça de Porco, c. 1904-1907. Intérprete: Banda do Corpo de Bombeiros. [ clique aqui para ouvir ]
10. A vacina obrigatória, c. 1904-1907. Intérprete: Mário Pinheiro. [ clique aqui para ouvir ]
Vale a pena dar uma olhada no mapa da área da cidade nesse período para entender algo de sua dinâmica. Duas ruas já mencionadas, a do Barão (de São Felix) e a do Senador (Pompeu), embora relativamente curtas, eram centrais para a circulação de moradores e frequentadores da região. Com apenas cinco quarteirões, a do Barão ligava a zona portuária à estação dos trens da Central do Brasil e à Cidade Nova, como se chamava o trecho logo acima do velho Campo de Santana. A estreita Rua Camerino fazia a ligação entre o porto e o centro, particularmente a região boêmia que concentrava teatros, casas noturnas, prostíbulos e botequins na freguesia de Sacramento. A Praça dos Estivadores, para onde confluíam todas essas ruas, abrigava o poderoso sindicato Resistência, que representava a mais combativa categoria
profissional da região, organizava suas demandas e ainda era proprietário de vários terrenos nas imediações.¹⁶ Lá, os trabalhadores do porto se reuniam diariamente para negociar a jornada do dia, formar as turmas e, na ausência de serviço ou no retorno dele, conversar, tomar um parati ou dar uma passada no sindicato. Em outra direção, a Rua do Barão, como a paralela Rua do Senador, era passagem obrigatória para os homens da estiva e demais trabalhadores do porto, além de outros numerosos contingentes humanos que moravam, trabalhavam ou circulavam pela Cidade Nova ou pelos subúrbios, com acesso pela Estrada de Ferro Central do Brasil, cuja estação principal estava situada na Praça da República (onde permanece).
A importância dessas artérias de passagem decorria de um acidente geográfico determinante para a movimentação daquele trecho urbano. A região como um todo era cortada por morros que separavam o mar da Cidade Nova, área de maior densidade populacional, onde moravam muitos trabalhadores portuários e marítimos. Sendo um reduto de bambas de toda espécie, vários de seus logradouros ou edificações foram objeto de canções compostas por membros dos círculos musicais da região. No Morro da Conceição, menor e de ocupação mais antiga, ficavam espaços tradicionais, como a Pedra do Sal e as casas dos migrantes baianos mais antigos¹⁷ – e lá foram se estabelecendo, mais tarde, muitos trabalhadores da estiva de origem portuguesa ou espanhola. O Morro da Providência, também conhecido como Morro da Favela, era já densamente povoado no início do século XX, tendo se originado, segundo os especialistas, no final do século XIX, com os retornados da Guerra do Paraguai, ocupação rapidamente adensada com a destruição do Cabeça de Porco.¹⁸ Finalmente, o Morro do Pinto, mais ao norte e de ocupação mais tardia: a rota do porto à Cidade Nova, nesse caso, era realizada por outro importante corredor de passagem da região, a Rua da América, palco de muitas histórias, onde estava uma das cancelas que davam acesso tanto ao Morro do Pinto quanto ao da Favela.¹⁹
11. Pixinguinha, Morro da Favela, c. 1915-1920. Intérprete: Grupo do Pixinguinha. [ clique aqui para ouvir ]
12. Pixinguinha, Morro do Pinto, c. 1915-1920. Intérprete: Grupo do Pixinguinha. [ clique aqui para ouvir ]
Um pequeno sobrevoo na região, tal como se apresentava no início do novecentos, revela uma alta concentração de habitações coletivas, botequins, associações carnavalescas ou de lazer; a forte presença dos sindicatos e sociedades de classe, os pontos de meretrizes, as oficinas e fábricas que cercavam as delegacias de polícia e pretorias de justiça – para além dos principais terreiros e outros lugares associados a cultos afro-brasileiros, sugerindo uma região marcada por rivalidades, conflitos e pequenos pontos de tensão. No caso dos cortiços e estalagens, cujo número chama imediatamente a atenção, sua presença era decorrência da escassez e do alto custo da moradia, enfatizando a densidade populacional e o modo de vida que conduziam a uma convivência estreita e certamente atritada entre tantos segmentos diferentes de trabalhadores. Impressiona igualmente, por outro lado, a quantidade de associações carnavalescas e recreativas (na maioria das vezes, as sociedades reúnem as duas facetas, funcionando durante todo o ano como lugares fixos de encontro e diversão), mais numerosas que as próprias sociedades de classe que congregavam trabalhadores por ofício, identidade política e outras variantes associativas.
O carnaval e os bailes oferecidos naquelas sociedades da folia durante todo o ano ocupavam um lugar central. João do Rio, ambíguo nas referências aos “negralhões suados” que frequentavam esses ambientes, é forçado a reconhecer em 1906 que “o carnaval teria desaparecido [...] se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de São Diogo, da Cidade Nova”.²⁰ Não era verdade, é claro, que tais grupos carnavalescos fossem exclusividade dessa região, como insinua a crônica, mas ali a concentração foi mesmo impressionante. Entre 1900 e 1910, por exemplo, pelo menos 109 grupos carnavalescos regulares existiram na região, segundo os dados disponíveis.²¹ A seu lado, os botequins, as vendas, os populares quiosques ou as casas de pasto proliferavam em busca da clientela majoritariamente solteira, de baixo poder aquisitivo, que perambulava pelas ruas para escapar do calor e da aridez da vida nos cortiços.
62.Quiosque na área central do Rio de Janeiro, s.d.
63. Quiosque na região portuária do Rio de Janeiro, s.d.
64. Quiosque, s.d.
As fontes revelam alguma tensão entre tais pontos de reunião e os interesses dos comerciantes estabelecidos nos principais logradouros da área que, com alguma frequência, solicitam à prefeitura o fechamento de quiosques ou a limitação dos horários de funcionamento de bares, mediante a alegação de reunirem desordeiros e mulheres de má conduta.²² Apesar disso, esses numerosos locais de sociabilidade popular, em uma cidade cujo espaço público era ocupado pelos trabalhadores na maior parte do seu tempo de descanso, certamente davam à região um aspecto festivo, tanto durante o dia como à noite, e contribuíam para construir amizades, pontes sociais e solidariedades que ajudavam a fazer, dos grupos carnavalescos e de outras sociedades dançantes e recreativas, lugares essenciais do cotidiano daqueles homens e mulheres.
65. Rua Jogo da Bola, que conserva muito de sua forma original.
A pequena Rua Jogo de Bola, que ainda hoje conserva muito de sua feição original no Morro da Conceição, por exemplo, abrigava três associações carnavalescas; a Ladeira do Barroso e a praça onde desaguava, aos pés do Morro do Livramento, forneciam endereço para dez cordões, inclusive dois que dividiam a mesma sede. Em meio à agitação local, o Senador Pompeu e o Barão de São Felix, junto com outros ilustres representantes da aristocracia local que batizaram as ruas da Cidade Nova e do porto, acolheram com
benevolência muitos endereços relacionados à história do samba. Em 1907, existiam simultaneamente nas ruas do Senador e do Barão oito agremiações dançantes e carnavalescas, das dezesseis registradas por ali em diferentes anos do início do século XX.²³ A presença de tantos grupos carnavalescos, com composições, propósitos e formatos diferenciados – às vezes até dividindo o mesmo endereço para efeito de registro na delegacia –, leva a pensar no quanto de negociação, cumplicidade ou disputa estava envolvido em cada situação dessas. Os grupos carnavalescos que se espalhavam indiferenciadamente pelas ruas, ladeiras e favelas levavam para as ruas diferentes modos de brincar e variadas formas de expressão sonora, que tiveram peso e significado na formação da música urbana carioca e buscavam afirmar-se diante das outras. Mas tinham em comum a pobreza, revelada nos inventários de bens penhorados em processos de despejo de suas sedes, inclusive algumas das “sociedades” aparentemente mais sólidas entre elas, como os Paladinos da Cidade Nova ou o Club Adamastor.²⁴
Além desses grupos foliões, diferentes modalidades de cultos afrobrasileiros, como as casas de alufás muçulmanos, cultos de orixás, voduns e inquices, se concentravam ali de modo incomum, aumentando as suspeitas que recaíam sobre aquela parte da cidade.²⁵ O forte comércio de ervas nas imediações do Campo de Santana, ainda no início do século XX, formal e informal através dos vendedores de rua, constitui indício seguro dessa presença religiosa – já que a atividade supria, entre outras coisas, necessidades de casas de santo, curandeiros em geral e outros lugares de culto da região e mesmo de outras partes da cidade. João do Rio acrescenta à variedade de matrizes religiosas uma observação sobre a extensão do fenômeno, sugerindo que ele ia muito além dos limites da “Pequena África”: “os feiticeiros formigam no Rio de Janeiro, espalhados por toda a cidade, do cais à estrada de Santa Cruz”.²⁶
66. Vendedora ambulante de ervas, s.d.
Assim, tal ramo de negócios parecia florescente no período, chegando a dar margem a uma permanente disputa entre comerciantes pelo seu controle. Em setembro de 1903, por exemplo, o proprietário de “A Flora Brasileira”, uma casa ervanária quase vizinha ao botequim “Paraíso” – onde se reuniam sambistas baianos e músicos cariocas –, apresentava queixa ao poder municipal contra alguns concorrentes. Seriam, de acordo com o signatário, portugueses que invadiam o ramo sem os conhecimentos necessários à atividade. Segundo ele, tratava-se de quitandeiros que não pagavam
impostos como ervanários e, além do mais, destituíam as ervas de seus poderes curativos ao misturá-las com galinhas vivas e outros alimentos, desvirtuando o próprio significado daquilo que evidentemente, no seu modo de entender, era mais que um simples negócio.²⁷ Segundo a crônica, no tempo das reformas urbanísticas de Pereira Passos, na primeira década do século XX, as quadras finais da Rua General Câmara, perto do Campo de Santana (além de quarteirões próximos à Praça pelo lado de Sacramento), ainda comportavam “várias casas de ervas medicinais dos pretos mina, muitos deles mandingueiros, e que tão numerosos haviam sido no Rio antigo”.²⁸
A coexistência dessas e de outras matrizes religiosas em um trecho tão curto do traçado urbano é, por si só, dado seguro para indicar a influência decisiva dos cultos afro-brasileiros, aos quais praticamente todos os sambistas das primeiras gerações estiveram ligados, em diferentes graus. Isso talvez ajude a entender a fixação da imagem de um território negro, ao mesmo tempo em que sugere uma acirrada disputa pela sua liderança. O próprio João do Rio não deixou de observar, a propósito dessas rivalidades, que “os pretos se odeiam intimamente, formam partidos de feiticeiros africanos contra feiticeiros brasileiros”...²⁹ Mas aqui, como sempre, a memória foi bastante seletiva: os registros policiais mostram vários episódios de curandeiros, espíritas, líderes de seitas ou esotéricos brancos, alguns deles imigrantes, atuando nas imediações do Campo de Santana e talvez ajudando a animar (ou desvirtuar, dependendo do ponto de vista) o tradicional e florescente ramo dos ervanários.³⁰
Os exemplos são variados, assim como a origem e a cor da pele dos acusados. Em março de 1905, para permanecer no mesmo ano, um rumoroso caso levou à prisão o russo Estanislau Covasque, acusado de envenenar um menino de nome Américo, misturando uma beberagem de ervas em sua comida. O curandeiro exercia suas funções justamente na Praça da República. Pilhado em meio a artefatos e rituais de cura milagrosa, o russo explicou aos agentes da lei que havia comprado as tais beberagens e ainda algumas “pílulas” de outro curandeiro da vizinhança, este brasileiríssimo, de
nome “João de Tal”. Dada a repercussão do caso, a polícia foi rápida em pôr as mãos em João Dias, acusado de fornecer as poções, levado preso em companhia da mãe, parteira experiente da região, e do filho que o ajudava em tal comércio.³¹
Na mesma época, entre os mais de 80 “templos do futuro” que alegava ter visitado na cidade, João do Rio identifica várias adivinhas e pitonisas em Sacramento (como Mme. Jorge, Liberata, Amélia Portuguesa, entre várias outras) e em Santana ou na região portuária. Luisa Barbada, na Rua Barão de São Felix; a Ximenes, na Rua da Prainha; a Castorina Pires, em São Diogo; a Alexandrina, na Rua da América; Mme. Hérminie, na Senador Pompeu, vizinha de Amélia do Aragão; Maria Baiana, na Rua do Costa; Genoveva, na Visconde de Itaúna; a Corcundinha, na Rua General Câmara... Entre os praticantes do que ele chama de “baixo espiritismo” que pretendiam curar males do corpo e da alma, a lista é tão ampla e diversificada quanto a anterior, incluindo nativas e imigrantes, negras e brancas, entre as praticantes das adivinhações.³² As referências de sambistas e estudiosos da chamada “cultura popular carioca” costumam se fixar na famosa e desaparecida Praça Onze de Junho, onde, entre outros endereços relacionados ao “feitiço” e ao samba, foi se instalar a famosa tia Ciata – destacada por João do Rio entre as feiticeiras da cidade – em algum momento da década de 1910. Transformada em espaço anualmente ocupado pelos cordões e ranchos para os quais a nova Avenida Central fora proibida, a Praça servia como referência obrigatória nos carnavais do período. A casa de Ciata, de dimensões acanhadas, estava situada no número 117 (o pequeno imóvel de duas portas indicado no meio da foto) e ficou registrada em imagem posterior de Augusto Malta, ocasião em que parecia estar sendo utilizada como um estabelecimento comercial. Na primeira década do século, entretanto, a Praça Onze ainda não era uma referência tão importante quanto outros pontos do mapa da região, que devem ser visitados nesse esforço de reconhecimento do território da “Pequena África”.
67. Foto tirada em 1941 da casa que foi de tia Ciata, na Praça 11 de Junho, n. 117. Augusto Malta.
No coração dessa agitada vizinhança, estava a Praça da República – com a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, o principal quartel da cidade e outros pontos de referência importantes –, que funcionava para a cidade como um divisor de águas entre o centro e os bairros dos pobres. Sua condição fronteiriça incentivava a mistura de grupos diferentes, em busca de seu ativo comércio no dia a dia, em ocasiões como o carnaval e outras festas generalizadas, ou em manifestações políticas (como a Revolta da Vacina no final de 1904 ou sucessivos comícios do movimento operário, habitualmente realizados ali). Por outro lado, era um palco importante da política oficial. A sede da Câmara Municipal, centro do poder local no Império, estava estabelecida no velho campo onde imperadores eram coroados – e onde morara Deodoro da Fonseca, o marechal que, afinal, protagonizou naquele mesmo palco a cena que marcou o fim da Monarquia.
68. A Proclamação da República no Campo da Aclamação no dia 15 de novembro de 1889.
Ele instituiu por lá a sede do novo regime, instalando, na rebatizada Praça da República, o Governo Provisório, que manteve no novo regime a tradição do local como um centro de poder. Ali, evidentemente, ficavam a Pretoria (Palácio da Justiça), que julgava os processos criminais, e a maior delegacia de polícia da região no início do século XX, além do quartel dos bombeiros, a Casa da Moeda e outros edifícios públicos importantes.
69. Comemorações do 15 de Novembro na Praça da República, 1894. Juan Gutierrez.
Lugar de confluência da vida urbana, a Praça da República era uma espécie de portal de acesso a vários mundos que se cruzavam naquele espaço múltiplo e tenso, repleto de quiosques e agitação. Também foi ali que, entre
muitos meninos com ou sem ouvido musical, o mulato José Luiz de Moraes cresceu vendendo roletes de cana para ajudar o magro orçamento familiar, atividade que lhe rendeu o apelido famoso de sambista: Caninha (18831961), parceiro e mais tarde rival de Sinhô nas rodas da Cidade Nova. Outros vendiam balas, engraxavam sapatos, prestavam pequenos serviços e aprendiam a “viração” e o perigoso esporte de fugir dos “meganhas” como um imperativo da vida dos pobres daquele trecho da cidade.
Sob a República ou a Monarquia, entretanto, a vizinhança situada ao sul da Praça era igualmente essencial para entender a dinâmica da região. Refirome aos pontos “boêmios” que estendiam para Santana as fronteiras da atividade das prostitutas “de janela” das casas de Sacramento. Elas se multiplicavam entre a região portuária e a do centro mais distinto, ou “batendo calçada” em ruas ao norte do Campo de Santana para terminar nos hotéis e hospedarias que estavam próximos a ele, no início das ruas General Pedra e Senador Eusébio. Ali perto, morou Ciata – na Rua da Alfândega –, antes de mudar-se, na segunda década do século, para a Praça Onze, pois nem só de prostituição se fazia a vida naquela região. As fronteiras nesse caso eram meramente administrativas: ocorrências policiais de Sacramento mostram claramente a frequência diária (talvez seja mais apropriado dizer noturna) de moradores de Santana, presos pelos mais diferentes motivos nas ruas da zona do meretrício enquanto buscavam companhia, procuravam algum janota para depenar no jogo ou simplesmente trabalhavam – e, particularmente para os músicos, aquele era um lugar privilegiado para arrumar ocupação.
70. Prostituta, s.d. Augusto Malta.
71. Prostitutas na janela, 1884. Angelo Agostini.
Muitas ocorrências policiais mostram a presença desses indivíduos nas delegacias. Os músicos são alvos especiais da atenção policial nas ocasiões festivas, mas não apenas nesses dias.³³ A maioria deles, trabalhadores comuns e anônimos, eram moradores de Santana e ganhavam a vida naquele bairro e em suas redondezas, trabalhando com música ou tocando por simples distração em suas horas de lazer. Nada a estranhar, por esse lado, na imagem de berço do samba que cerca a vizinhança. Entre o porto, a zona do meretrício e a Cidade Nova, no início do século XX, circulava o que havia de melhor nessa área. Exemplo notável foi Paulo Benjamin de Oliveira, cuja figura está sempre associada à região de Madureira, onde se consagrou fundando e dirigindo a escola de samba azul e branca. Mas, alguns anos antes disso, ele podia ser facilmente encontrado rondando por ali, entre a Praça e o porto no qual, como boa parte dos trabalhadores anônimos ou dos sambistas de seu tempo, envolvia-se vez por outra em confusão.
72. Paulo da Portela, s.d.
Paulo da Portela, como ficou conhecido, era ainda muito jovem quando se tornou réu no processo que a justiça moveu contra ele e um certo Manoel Batista de Almeida, que correu na 2a Pretoria Criminal.³⁴ Segundo seus biógrafos, ainda muito jovem já era conhecido pelo apuro no modo de vestirse, apesar dos poucos recursos – detalhe que o aproxima de vários outros bambas da região. A proverbial elegância que marcava a figura de muitos desses primeiros sambistas,³⁵ como João da Bahiana, Hilário Jovino e muitos outros, posteriormente imitada, em seu próprio estilo, por “malandros” notórios da boemia e do circuito musical da cidade, bem poderia derivar da convivência ou da admiração pelos primeiros artistas negros de renome, como Dudu das Neves e Benjamin de Oliveira. O sucesso desses primeiros artistas esteve sempre associado com os fraques, as cartolas e as bengalas com que figuravam nos picadeiros, em cenas dos vaudevilles e nas apresentações de cabaré. Talvez Paulo, como vários de seus contemporâneos, espelhasse a distinção dessas figuras na própria forma aprumada de aparecer. Destacavam-se desse modo da multidão indiferenciada de pobres que circulavam na cidade, sob a vigilância dos meganhas. Com o esmero de sua roupa caprichada, ele não andava apenas pelo porto, pois frequentava igualmente a roda de sambistas do Estácio – o que certamente, no período, não o recomendaria muito bem para a polícia. Seja como for, na ocasião, ele ainda não morava em Oswaldo Cruz – embora estivesse às vésperas da mudança e talvez o episódio tenha ajudado a apressá-la.
Por sugestiva coincidência, a briga na qual esteve envolvido ocorreu justamente no lugar sacralizado como um símbolo da presença baiana e das origens do samba carioca, em plena Pedra do Sal, na Saúde. O sambista – então conhecido, segundo os autos, como Moleque Paulo – tinha apenas 19 anos e, diante da polícia, se declarou trabalhador. O episódio é extremamente confuso nos registros da delegacia. No dia 15 de fevereiro de 1921, Paulo e outro homem de nome Manoel, também conhecido como Baiano, tiveram uma desavença quando jogavam baralho perto das docas. Ao que parece, Paulo rasgou o baralho, acusando Baiano de trapaça. Poucas horas depois, reencontraram-se na rua do bairro da Saúde, nas vizinhanças do porto. Segundo Paulo, Baiano o atraiu para lá, chamando-o para uma conversa, e atracou-se com ele assim que chegou, sacando um punhal. Ainda segundo
ele, Baiano estava acompanhado de outro homem que, enfiando a mão no bolso de seu paletó, tentou arrancar a arma que portava (um revólver, que adquire, nessa versão, um significado estritamente defensivo), disparando-a involuntariamente e atingindo tanto o próprio Paulo quanto Baiano, tendo fugido em seguida com a arma detonada.
Baiano, por sua vez – tratava-se de um carioca, apesar do apelido, a crer-se no registro do escrivão –, com 29 anos de idade, se declarando igualmente “trabalhador” de ramo não especificado, disse que estava parado na Pedra do Sal quando Paulo se aproximou provocando: “Então, você andou ontem com um polícia à minha procura a fim de tomarem-me minha garrucha?”, ao que Baiano teria respondido afirmativamente, adotando, no depoimento, a atitude de um bom cidadão que colabora com as forças da ordem. Diante disso, segundo sua versão, Paulo tentou sacar a arma e ele se atracou com o agressor; na luta, Paulo detonou o revólver ainda dentro do bolso, ferindo a ambos. Finalmente, a única testemunha do encontro – um empalhador de 17 anos – corroborou a versão do sambista, afirmando ter visto Paulo se aproximar de Baiano, que estava acompanhado por outro homem. Imediatamente, Baiano “se atracou” com Paulo, enquanto seu companheiro tentava tirar-lhe a arma do bolso, tendo ela disparado durante essa tentativa – e disse ainda que o companheiro de Baiano fugiu levando a pistola.
Policiais que ali passavam em patrulha haviam prendido os dois brigões em flagrante. Depois do exame de corpo de delito, o delegado se deu por satisfeito com a apuração dos fatos. Concluído, assim, o inquérito, seguiu o processo para a Pretoria. Expedidos os mandados de citação, o oficial de justiça certificou que nem Paulo nem Baiano residiam nos endereços que forneceram na delegacia, não sendo sequer conhecidos nas vizinhanças. Sabe-se que, ao menos no caso de Paulo, era agora na zona norte, mais precisamente na Portela, que ele passava a ter novos vizinhos... Citados por edital, naturalmente não compareceram diante do juiz e o processo foi encerrado. O conflito, como era frequente, fora resolvido entre os próprios contendores, que dispensaram a intervenção da lei, preferindo desaparecer das vistas das autoridades locais. Ambos deviam saber que eram devedores
diante da polícia. Porém, mais que isso, a atitude provavelmente indica tanto o medo de se verem envolvidos pela arbitrariedade dos procedimentos do inquérito quanto a desconfiança em relação aos membros da instituição, reafirmando que as soluções “internas” – mesmo que à custa de revólveres e punhais – seriam mais aceitáveis dentro de seus interesses e códigos de honra.
Lá, na Portela, anos depois desse episódio, Paulo ajudaria a consolidar uma nova imagem do samba, associada às “escolas” que se tornaram rapidamente uma tradição da cidade, para ser lembrado como uma figura lendária. Pouco depois, aproximou-se do Partido Comunista, fez sambas para o Cavaleiro da Esperança e representou, como ninguém, a concepção nacional-popular (e negra) nas projeções da esquerda do período.³⁶ Mas vale lembrar que a Portela, no início, era algo muito diferente do que se costuma imaginar. Nem ao menos tinha tambores; surdos, então, nem pensar. Sua base sonora era composta no início por trombone, flauta, clarineta, cavaquinho, pandeiro, à semelhança dos sambas dos baianos da velha Cidade Nova. Até um violino aparecia nos desfiles, segundo o depoimento de membros da “velha guarda” da Escola.³⁷ Nada a ver com batuques, embora a maioria da escola fosse composta de homens e mulheres negros. O som cadenciado das baterias, na verdade, só se generalizou na década de 1930, obedecendo à regulamentação do governo Vargas para os desfiles: nela, além da exigência de temas históricos e outros elementos de uma tradição inventada, o governo estabeleceu a proibição dos instrumentos de sopro. Somente aí, por iniciativa oficial, a associação explícita do samba com aquilo que se supunha serem suas matrizes africanas se tornou um consenso. Antes disso, como qualquer grupo humano, os trabalhadores cariocas lidaram com as diferenças e as exprimiram alegremente nas suas formas de sambar e fazer festa.
Sambistas e trabalhadores na capital federal
PEQUENOS EPISÓDIOS do dia a dia das delegacias, como os que envolveram Paulo da Portela e Benedito Lacerda, indicam que, do início do século aos anos 1920, a vida em Santana não mudara tanto assim. O bairro ainda era um espaço importante de circulação de trabalhadores e palco de seus conflitos de várias naturezas. É verdade, entretanto, que a cidade havia crescido e mudado de feição com as reformas urbanas; muitos dos moradores mais pobres da área central tinham se deslocado para os subúrbios, afastando-se do porto, e o movimento de transeuntes ou automóveis era bem mais acentuado – a julgar pela crescente quantidade de registros de acidentes de trânsito. A região portuária e a Cidade Nova eram ainda malvistas e severamente vigiadas. Mas, com o passar dos anos, a chamada “Pequena África” crescera para incorporar novas áreas da cidade. O distrito de Santana figurava entre os que haviam apresentado o maior índice de adensamento demográfico entre os anos 1872 e 1920, de acordo com os dados censitários.³⁸ Sua população saltara de 67 mil para 91 mil habitantes nesses 50 anos, embora o crescimento declinasse lentamente com os obstáculos impostos pelas reformas urbanas do início do século XX. Nas últimas décadas, no entanto, essas taxas haviam sido amplamente superadas pelos índices relativos à área do Espírito Santo, na fronteira com a zona norte da cidade, onde se concentravam os sambistas do Estácio de Sá e do Morro de São Carlos. Ali, o número de habitantes saltara rapidamente de 31 mil para 72 mil, entre 1906 e 1920. Essa explosão pode ser creditada, em grande medida, às obras e determinações urbanísticas que afastavam para mais longe os trabalhadores antes concentrados na vizinhança imediata do porto e outros lugares de trabalho da área central.
Os dados parecem suficientes para justificar a atenção especial dos agentes da ordem. Ademais, como vimos, nessa região que crescia em direção à zona norte concentravam-se justamente os maiores contingentes de trabalhadores braçais – muitos dos quais sem emprego regular. Entre eles, os sambistas frequentavam suas ruas, botecos e estalagens em estreita convivência com toda a variedade de imigrantes que habitava a região, além dos brasileiros de várias cores, procedentes de todos os quadrantes do país. Ainda que fossem majoritariamente negros e mulatos, havia igualmente a presença marcante, mas pouco lembrada, de imigrantes e seus descendentes entre os músicos e compositores influentes no tempo da geração do Estácio: era o caso do
italiano José (ou Giuseppe) Gelsomino (1908-1961), conhecido como Kid Pepe depois de uma temporada como boxeador nos ringues cariocas,³⁹ ou os irmãos Palmieri, integrantes dos Oito Batutas em sua primeira formação.
73. Kid Pepe, s.d.
Francisco Alves, cantor responsável pela difusão do samba e pela projeção dos sambistas, de Sinhô a Ismael Silva, era filho de um lusitano proprietário de botequim na região portuária. A rigor, abundavam portugueses ou filhos de imigrantes em seu meio. Entre outros, vale a pena mencionar João da Silva Morgado – conhecido como João da Gente, sambista reconhecido no início do século XX;⁴⁰ Alfredo Português, cujo nome verdadeiro era Alfredo Lourenço, trabalhava na Marinha Mercante e fora um hábil fadista em sua terra natal, antes de imigrar e estabelecer-se no Morro da Mangueira, onde ajudou a fundar sua gloriosa escola de samba;⁴¹ João Pernambuco, um dos instrumentistas mais habilidosos do período e que viajou com os Oito
Batutas na primeira excursão do grupo, era igualmente filho de portugueses. Canhoto, Copinha, Alberto Marino estão entre os descendentes de italianos que fizeram fama e carreira no período. A lista não é exaustiva, mas parece suficiente para ilustrar esse aspecto e evidenciar seu peso.
74. Alfredo Português (Alfredo Lourenço), s.d.
Evidentemente, a própria ideia de que o círculo de sambistas tidos como autênticos pudesse manter-se puro em suas tradições africanas soa totalmente estranha às possibilidades desse mundo em que se disputava ferozmente o escasso mercado de trabalho e se compartilhavam os insalubres lugares de moradia; em que se lutava diariamente pela sobrevivência construindo solidariedades e exercitando permanentemente a violência no enfrentamento da polícia e dos rivais na pobreza em torno de critérios práticos e variados que iam muito além da cor da pele; e, sobretudo, em que os ouvidos captavam sons e ritmos das mais variadas tonalidades e procedências, crescentemente amplificados pelos circuitos da cultura de massas. A “Pequena África” era, afinal, nada mais que uma vizinhança densamente habitada por trabalhadores de múltiplas origens e sotaques. Lá transcorria a vida cotidiana que envolvia o samba e tudo o que é associado a ele, mas também o trabalho duro e mal remunerado na luta pela sobrevivência. Segundo Heitor dos Prazeres, era em suas ruas que os jovens aprendiam tanto a compor e improvisar versos quanto a exercer diferentes ofícios e profissões, em uma forma de aprendizado boca a boca que atravessava diferentes rodas e grupos. Na expressão de Prazeres, “quem sabia mais ensinava”, formando e qualificando aprendizes por escolha e afinidade – razão pela qual tantos sambistas herdaram a profissão dos pais, que exerceram paralelamente à atividade musical.⁴²
75. Heitor dos Prazeres, s.d.
Ao menos entre eles, a preferência era pelo trabalho autônomo, que pudesse ser exercido no tempo e na intensidade de cada um. De alguma forma o samba era mesmo “um privilégio”, como diria Noel Rosa poucos anos mais tarde, já que se tratava de uma atividade quase lúdica até os anos 1930, capaz de aliviar alguns poucos da dureza da condição social, associando prazer e algum ganho extra. Mas raramente os dispensou de pegar no batente.
Ofícios como os de marceneiro, empalhador, pintor de paredes – e a rotina dura da estiva – funcionaram como um suporte essencial para a maior parte desses homens que provavelmente buscavam, nas profissões autônomas, a possibilidade de controlar o próprio horário de trabalho e exercer a atividade musical no tempo livre. Alguns deles, como a grande maioria dos seus vizinhos e companheiros, entretanto, estavam destinados a aceitar empregos nas condições que pudessem encontrar em fábricas, oficinas, construções, estabelecimentos comerciais ou outras formas de serviço fixo – ou enfrentavam igualmente a “viração” sem rotina, sazonalmente comum na vida desses trabalhadores. Segundo estimativas, em 1906, mais de 30% da mão de obra ativa no Rio de Janeiro estava fora do mercado regular, vivendo de ocupações temporárias e expedientes variados, contingente maior que aqueles empregados nas atividades industriais, que estavam em torno de 20%.⁴³ Na década de 1920, a situação não havia se alterado substancialmente, ainda que não tenhamos números precisos.
Um dado como esse tem óbvias implicações do ponto de vista da dinâmica de uma região da cidade que concentrava a parcela mais despossuída da força de trabalho. Se agregarmos aos que não tinham profissão a declarar, ou um emprego estável, aqueles que viviam de bicos ou mantinham vínculos esporádicos, essa cifra pode atingir quase a metade da população, segundo alguns autores.⁴⁴ Ela mostra o quanto a vida cotidiana dos trabalhadores do Rio de Janeiro, e em especial daqueles da região, era marcada pela incerteza ou pela transitoriedade. As formas de associação entre esses indivíduos habituados à instabilidade e ao risco não podiam senão despertar temor nas classes dirigentes, em uma suspeição que envolvia toda e qualquer forma de atividade organizada. No início do século XX, sindicatos e sociedades de classe mereciam grande atenção das autoridades, mas os pequenos grupos voltados para o lazer e a festa, que se multiplicaram rapidamente após o advento da República, pareciam preocupá-las mais rotineiramente. Entre outras coisas, ainda que não se envolvessem diretamente em greves ou manifestações políticas, pareciam perigosos por promover a visibilidade, a autoestima e a iniciativa autônoma desses setores protegidos por estandartes
bordados e pela imagem brincalhona, cujos propósitos não poderiam ser abolidos pela simples vontade de legisladores.
Trinta ou quarenta anos depois da briga do subdelegado com o fiscal da Câmara por causa dos batuques de Santana, ao longo dos anos 1890 e da primeira década do século passado, a polícia se parecia muito pouco com o retrato benevolente oferecido pelo velho defensor dos batuqueiros no Império. Ademais, seu poder de fogo era muito maior e tendia a crescer e sofisticar-se à medida que nos aproximamos dos anos 1920. Em todo o período, os agentes da lei perseguiram sem trégua “vadios”, crianças soltas pelas ruas, prostitutas, pandeiristas e trabalhadores, para além dos índios enfeitados ou outros símbolos dos cordões do carnaval carioca. Passando por um rápido processo de profissionalização após o novo regime, adequando-se para cumprir as novas regras e prescrições políticas da elite republicana, a polícia já não usava o costume, o hábito ou a familiaridade como argumento de legitimação. Por outro lado, as novas regras estavam bem pouco estabelecidas na lei, deixando um espaço ainda maior para a arbitrariedade, o uso discricionário da autoridade e a emergência dos temores e preconceitos herdados dos velhos tempos. Os delegados já não eram mais os “homens bons”, dedicados, por algumas horas de seu dia, a garantir a ordem, o bemestar e a segurança pública, mas bacharéis profissionalizados, com anel no dedo e uma carreira a zelar, cuja ascensão dependia do rigor com que cumprissem estritamente as orientações do chefe de polícia da ocasião. Na verdade, os primeiros anos do novo regime mostraram que os antigos temores de fiscais e contadores da Câmara Municipal, empenhados em evitar, no final do século XIX, o “desvio de braços úteis”, conter “batuques e tocatas”, controlar a “vadiação” de gente que parava para ouvir realejos ou repiques de pandeiro e tambores pelas ruas,⁴⁵ ganharam foros de política oficial. Contavam agora com o suporte decidido da polícia da capital federal – que décadas antes podia parecer condescendente com os costumes dos “pobres pretos” ou de imigrantes igualmente pobres.
Sem dúvida a relação da polícia com os cordões é um bom exemplo disso. Em primeiro lugar, a despeito da imagem reiterada na crônica, há na
documentação muitos indícios de que os grupos desse tipo – sempre lidos como redutos do samba autêntico ou seus ascendentes diretos – não correspondem exatamente, como vimos, à imagem clássica dos seus integrantes como negros arruaceiros, malandros ou vadios que se escondiam nos vãos de uma cidade conflagrada a cada fevereiro. À semelhança dos frequentadores de serenatas ou dos partideiros de cafés próximos ao porto, esses trabalhadores congregados em sociedades dançantes e folionas, nem sempre parecidas umas com as outras, eram então chamados genericamente de “gente da lira”, como vimos – e a expressão costumava aparecer em colunas de jornais, registros de delegacias e títulos de agremiações carnavalescas de todas as regiões da cidade.
Polissêmica em seus múltiplos usos, a palavra “lira” evoca imediatamente a conotação musical, tanto na referência ao instrumento da Antiguidade como na acepção de banda instrumental regida por maestro, como as que se apresentam nos coretos das praças públicas; podia ainda ser usada como sinônimo de violão, para os praticantes do instrumento, ou como metáfora para referir-se a uma obra poética. Nesse último sentido, podia designar igualmente os repertórios de música popular (como as “liras de trovador” editadas em forma de livretos baratos vendidos nas ruas). Mas costumava ser também, no Rio de Janeiro do século XIX, como vimos, uma expressão usada para identificar integrantes das maltas de capoeiras ou, num sentido mais amplo, farristas e arruaceiros em geral. Antigos chefes de maltas do século XIX autointitulavam-se “pessoal da lira”,⁴⁶ e o termo mantinha essa conotação ao menos até a segunda década do século XX, quando era ainda de uso corrente.
76. Chiquinha Gonzaga, s.d.
13. Chiquinha Gonzaga, Ó abre-alas, s.d. Intérpretes: Carmélia Alves e Ellen de Lima [2014]. [ clique aqui para ouvir ]
Por isso, na famosa marcha “Ó, Abre alas”, criada em 1899 por Chiquinha Gonzaga durante ensaio do grupo carnavalesco Rosa de Ouro, do bairro do Andaraí – um singelo cordão de operários têxteis que a procuraram em busca de uma melodia para seu desfile –, a maestrina tratou de atribuir-lhes essa múltipla condição no conhecido verso “eu sou da lira, não posso negar”. O fato é que muitos cordões do século XX adotaram a palavra em seus títulos, qualquer que fosse a intenção: Choro da Lira, Flor da Lira, Prazer da Lira, Rainha da Lira, Lira Brasileira, Lira da República, Lira de Ouro, Lira de Prata, Lira do Brasil, Lira do Castelo, Lira do Mar, Lira do Méier, Lira dos Operários são alguns exemplos do período. A polícia e a imprensa, por sua vez, quando utilizavam a expressão, buscavam equiparar todos os grupos e reduzir seus significados às possibilidades relativas ao registro criminal que englobava capoeiras, farristas, vagabundos e desclassificados – gente perigosa, em todo caso, pouco afeita às disciplinas do trabalho ou inadaptada à ordem social. Com isso, apagava-se a diferença entre as incontáveis turmas da lira e produzia-se uma homogeneidade pouco ancorada na experiência desses grupos. Compostos na maioria de operários e trabalhadores, regulares ou não, com habitual presença de negros e brancos, nacionais ou imigrantes, quase nada nesses conjuntos de trabalhadores evoca os mitológicos malandros que viviam do jogo e da exploração de mulheres na zona do meretrício, embora eles evidentemente pudessem estar presentes ali, com maior ou menor frequência.
Por outro lado, essa multiplicidade de significados da “lira” pode ser funcional para descrever as próprias associações carnavalescas, variadas tanto nos modos como se apresentavam quanto na forma como eram vistas pelos observadores de seu tempo. Já que o duplo sentido principal do termo diz respeito à música, cabe lembrar que parte dos conflitos entre tais agremiações assumia abertamente a forma de uma disputa sobre qual a melhor linguagem musical: marchas lentas ou batuques? A pancada de bumbos e outros tambores ou a suavidade harmônica do trio violão, flauta e pandeiro? Sambas de partido-alto ou valsas de opereta? Esse era justamente um dos elementos da competição em torno da maneira de apresentar-se nas ruas travada entre diferentes agremiações do carnaval carioca que, nos anos 1920, ia sendo amplamente dominado pelos “ranchos”.
77. Rancho carnavalesco evoluindo, s.d.
78. Integrantes do rancho Recreio da Flores, formado por trabalhadores do porto, 1917.
A música, nesse sentido, expressava e produzia conteúdos simbólicos que não devem ser negligenciados: escolhas sonoras podiam figurar, entre outras coisas, diferentes formas de conceber o papel a ser desempenhado por aqueles trabalhadores ou a identidade que se pretendia afirmar nessas aparições públicas. Reivindicar origens africanas era uma delas, mas não a única ou a principal. Também era comum o propósito de, ao contrário, mostrar-se capaz de europeização e civilidade, equiparando-se aos brancos (ou aos ricos) em seus gostos e padrões; ou adotar, para citar outra possibilidade, o artifício de recorrer a traços de uma tradição rural e pacificadoramente familiar, exibindo-se à moda “folclórica”. Esses foram padrões, entre outros, estabelecidos na rica vitrine cultural da festa carnavalesca.
Sem minimizar a importância das organizações classistas no período, as sociedades voltadas para o lazer e a festa parecem ter mantido um significado essencial para a construção e a expressão das solidariedades e dos dissensos entre os trabalhadores no Rio de Janeiro. Além de existirem em número infinitamente superior ao dos sindicatos e outras formas de associação profissional (e, como estes, mudavam bastante de endereço, em vista das inevitáveis dificuldades financeiras), esses grupos festivos tiveram uma permanência igualmente impressionante nessas vizinhanças onde a vida de homens e mulheres era marcada pela transitoriedade e pelo sentimento do provisório. Suas reuniões dançantes, cujas caricaturas divertiam os mais bem-nascidos, provocavam uma desconfiança e um cuidado permanentes das autoridades, evidenciados a cada ano em que eram forçados a renovar suas licenças de funcionamento.
79. O baile pobre, c. 1905. Calixto Cordeiro.
Embora não se propusessem a questionar o Estado ou os patrões, nem assumissem, na maior parte das vezes, bandeiras políticas, o simples fato de existirem parecia perigoso, até pela capacidade de atrair não apenas os próprios associados, mas um público amplo, indiferenciado e, por isso mesmo, difícil de controlar.
Os adufes, o bom-bom, os pandeiros, os chocalhos trabalham todas as noites numa zabumlança apurada e frenética que vai até onze horas, muitas vezes até a madrugada, sem canseiras e sem esmorecimentos. [...] uma atração
irresistível que chama e reúne multidões. É soar o primeiro batuque e logo de toda a vizinhança surgem ouvidos ansiosos a saborear essa música ruidosa e inflamada [...]. E chova ou faça luar, a multidão não arreda da calçada [...].⁴⁷
Modos informais de associação como esses costumam ser quase impermeáveis à análise. Entretanto, ao impor sua formalização no afã de controlá-los, o regime republicano produziu muitos registros que facilitam o acesso a tais grupos ligados às origens do samba carioca. Para preencherem os requisitos e exigências legais, as associações precisavam registrar estatutos, manter sedes, eleger diretores, estabelecer horários e atividades regulares – submetendo tudo isso anualmente à apreciação da delegacia de cada bairro. Assim, o carnaval permite acessar amostras de fôlego sobre esses agrupamentos de trabalhadores. No ano de 1907, por exemplo, mais de 300 deles foram registrados oficialmente pela polícia em toda a cidade, obtendo autorização para funcionar ao longo do ano após investigação de sua composição, de suas lideranças, de sua localização, do nível econômico de seus associados e outros elementos importantes. Essas extensas listas podem certamente nos ensinar alguma coisa sobre os critérios e procedimentos de aglutinação desses indivíduos, permitindo explorar seus significados na experiência dos trabalhadores da cidade. Tais critérios são, evidentemente, múltiplos e variados: por local de moradia, por identidade étnica ou racial, por tipos de performance e padrões sonoros, por identidade de categoria profissional ou até vínculos mais fluidos. Cordões de vizinhança, como os Destemidos da Favela, o Triunfo ou os Filhos da Providência (os três no Morro) ou o Flor de São Lourenço (na rua do mesmo nome), são apenas alguns exemplos para ilustrar esse padrão. Atribuições étnicas ou raciais aparecem ainda, embora mais raramente, como signos de identidade. No caso de Santana, havia um Liga Africana, um Mina de Ouro, um Nação Angola e alguns outros capazes de encantar os adeptos da metáfora de Heitor dos Prazeres.
Ademais, o peso crescente da festa no cotidiano da cidade e na simbologia política nacionalista deu margem a um vasto registro na imprensa que
mantinha colunas especializadas e um amplo noticiário sobre as atividades desses clubes populares. Mesmo a imprensa operária nos legou registros que revelam as tensões envolvidas nas festas e celebrações desses grupos. A Voz do Trabalhador, por exemplo, cuja sede era ali perto do Campo de Santana, na Rua do Hospício, encetou uma verdadeira campanha em 1915, quando uma das mais tradicionais agremiações do carnaval carioca – o Club dos Fenianos (que, àquela altura, já tinha perdido os ares aristocráticos das origens, sendo frequentado por caixeiros e outras categorias assalariadas) – decidiu participar das manifestações de 1o de Maio. Em sucessivas matérias, o jornal menciona a hostilidade dos “meios operários”, as várias reuniões intersindicais para tratar do caso. Finalmente, sem outros argumentos, a indignação resultou em um inusitado pedido dos anarquistas ao prefeito, visando à proibição da manifestação carnavalesca “por julgarmos essa festança afrontosa aos brios da classe trabalhadora”.⁴⁸
80. Club do Fenianos, comissão de frente, 1909.
Apesar da flagrante implicância dos militantes – e talvez isso ajude até a entendê-la –, havia um número considerável de cordões de origem fabril ou assumida identidade operária e profissional: assim como o Flor da Aliança e o Flor da União (de operários das fábricas de tecidos de outras regiões da cidade, cujo nome bordavam cuidadosamente em seus estandartes), em Santana e na região portuária como um todo abundavam os cordões “profissionais”. Clubes como Flor da Marítima, Estrela dos Navegantes, Facho da Liberdade, Luz do Povo, Triunfo das Ondas do Mar eram agremiações carnavalescas cujos títulos já indicam a composição e a origem de grupos formados por marinheiros, trabalhadores da iluminação pública, da Companhia do Gaz, ferroviários da Central e outras categorias análogas que se faziam representar através de diferentes sociedades. Havia ainda na região pelo menos três associações carnavalescas de estivadores e portuários: Recreio das Flores (cujas relações com o sindicato Resistência são apontadas na crônica), Gualemadas e Heróis dos Navegantes. No restante da cidade não era diferente, e, para além dos cordões de fábricas ou categorias, havia ainda aqueles de feição mais geral, como Flor dos Operários, Lira Operária, União Operária, cujos títulos parecem confundir-se com os de organizações sindicais. Outros não traziam isso no título, mas na lira, cantando nas ruas as principais palavras de ordem do movimento operário, mobilizado no período em torno da bandeira da delimitação da jornada de trabalho:
Avante, brasileiros,
o que diz ser operário,
reclamar dos nossos mestres
oito horas de trabalho.⁴⁹
Esses nexos podem ser percebidos mesmo em agremiações mais afastadas do centro, em termos geográficos, mas próximas por várias razões do mundo de Santana e do porto. Era o caso, por exemplo, do Clube dos Mangueiras, cuja sede ficava em um botequim da Vila Marechal Hermes, na zona norte da cidade. Composta majoritariamente de portuários afastados da zona central pelas reformas de Pereira Passos, a associação teve sua permissão de funcionamento negada pela polícia em 1915.⁵⁰ O motivo alegado foi a presença de militantes do sindicato Resistência, fichados como grevistas, alguns com participação ativa no movimento de 1904 – inclusive um certo Caralampio Trilles, “agitador revolucionário perigoso” na avaliação dos agentes policiais.
81. Praça da República durante a Revolta da Vacina, 14 de novembro de 1904.
Descontados os adjetivos, os policiais não deixavam de ter razão. Afinal, o espanhol tinha um extenso currículo como militante, desde o final do século XIX. Afirmava ter participado da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) com Bakhunin, Lafargue e Anselmo Lourenço. No Brasil, ajudou a fundar diversos jornais revolucionários, foi delegado da
Federação Operária de São Paulo no 1o Congresso Operário em 1906, e sua atuação, no Rio de Janeiro, se estendeu por toda a primeira década do século XX.⁵¹
Não sabemos explicar como um militante desse calibre vinculou-se ao modesto “cordão sambador” dos estivadores no subúrbio carioca, mas o simples registro faz pensar sobre as muitas possibilidades envolvidas nessa convivência. Com certeza não se tratava de um caso de contaminação de sua têmpera revolucionária pela cadência sincopada dos negros, como poderiam sugerir as leituras racializadas vigentes entre intelectuais do período. Ademais, convém reter que esse não foi um caso isolado. Uma animada gafieira da região, por exemplo, ostentava o título de Clube Recreativo dos Operários e aparentemente cumpria outras funções além dos bailes periódicos, razão pela qual andou enfrentando problemas com as autoridades; um clube dançante da vizinha São Cristóvão foi fechado no final da década de 1910, depois de ser investigado a pretexto de uma briga entre um estivador e um chofer, por abrigar em sua sede reuniões de grevistas. Desnecessário insistir no potencial desses clubes como forma de acesso tanto à história do samba carioca quanto à experiência dos trabalhadores, suas formas de sociabilidade e produção de identidades – coisa que bem pode ajudar a explicar aspectos do próprio movimento operário.⁵²
Na ótica das autoridades, tais grupos eram ameaçadores também por outras razões, inversamente proporcionais aos motivos de seu sucesso entre os trabalhadores pobres. Eles ofereciam, para aqueles homens e mulheres, o sentimento de pertencer a um conjunto no qual se podiam encontrar amparo e solidariedade, fenômeno que não se restringia aos ranchos, blocos e cordões daquela região específica da cidade.
82. Cordão preparando-se para sair, 1907.
Massivamente, demonstraram o seu potencial para reunir, carnaval após carnaval, foliões de todos os bairros populares do Rio de Janeiro que se deslocavam para suas ruas e praças – mais uma razão a reforçar a sua imagem como nascedouro do samba de rua que se pretende genuinamente carioca. Na defesa de seus estandartes, tais cordões – aparentemente pacíficos no início de seus desfiles, como no flagrante da foto – não vacilavam em lutar nas ruas com as armas de que pudessem dispor: navalhas, facas, revólveres, pernas e braços em troca do sentido coletivo que imprimiam ao cotidiano marcado pela volatilidade dos vínculos e relações.
Podemos, para exemplificar, flagrá-los em uma cena que, de tão comum no início do século XX, podia mesmo parecer corriqueira a julgar pelo tom e pelos comentários da imprensa ao relatar dezenas de episódios semelhantes que se sucediam ano após ano. Durante o carnaval de 1910, na noite de 7 de fevereiro – justamente a segunda-feira, quando os cordões costumavam ir às ruas –, por volta das 23 horas, duas agremiações carnavalescas rivais se encontraram no Campo de Santana, quase em frente à Estação Central do Brasil. Uma estava estacionada, festejando sua exibição e descansando depois de um longo percurso, o “pano” encostado no muro, os integrantes espalhados pela calçada ou, segundo declararam alguns, tomando “café” (melhor apostar em parati, em todo caso) em um quiosque no canto da Praça da República com a Rua Senador Eusébio. A outra desceu a Visconde de Itaúna em direção à Praça da República, dando de cara com a rival, que logo se emplumou, levantou o estandarte e fez frente à recém-chegada, como era a regra entre os cordões. Vinham ambas da Praça Onze, onde haviam disputado a primazia no samba, não sabemos com vantagem para quem. Mas é certo que da ocasião resultou um conflito no qual, para além dos desaforos, vivas e “morras”, pernadas e rabos de arraia habituais, foram utilizados revólveres. O resultado foi um cadáver no chão e um ferido a tiros no hospital, dando origem a um inquérito policial extenso no qual muitos depoimentos foram colhidos na tentativa de identificar os culpados pelo conflito.⁵³
Sintomaticamente, o processo nunca chegou ao fim, embora tenha dado muito trabalho aos policiais responsáveis pela ordem da Praça e da República. Quando os autos foram enviados conclusos para o juiz, só restava ao meritíssimo devolvê-los à delegacia do 14o Distrito Policial para continuar as investigações. Os resultados não permitiam qualquer conclusão, com depoimentos que, de parte a parte, apontavam no campo oposto os culpados e as vítimas da ocorrência. Os autos, entretanto, são valiosos para quem esteja curioso para aproximar-se dos elementos que cercam essas e outras ocasiões vitais para a construção da memória da festa, do samba ou da “Pequena África”: eles flagram as sociedades carnavalescas em plena afirmação de seus signos, condutas e códigos de honra. Surpreende-as ainda em ação, em um local que era, do seu ponto de vista, uma espécie de território sagrado para foliões cariocas.
Assim, os dois cordões rivais que se defrontaram à bala em Santana tinham feito, horas antes, uma longa viagem de bonde desde seu bairro de origem, a Vila Isabel, no mesmo ano em que veio ao mundo Noel Rosa. O Estrela de Ouro e o Cravinhos de Ouro haviam saído das respectivas sedes naquele início de tarde em direção à Praça Onze, para desfilar bem longe de casa, ao lado de grupos que vinham de todas as partes da capital federal. Eles se encontraram no antigo Campo de Santana e, entre uma praça e outra, muito da história do carnaval e do samba havia se desenrolado. Não convém deixar de lado o caráter decisivo de referência, para agremiações e indivíduos ligados à música ou à festa, que aquele trecho urbano adquiriu desde muito cedo. Vários fatores explicam o peso simbólico adquirido pelo local decorrente de sua escolha como ponto de reunião: a proximidade com a Estação da Central, que ligava os subúrbios ao centro da cidade; a quantidade e a qualidade dos grupos musicais, dançantes ou carnavalescos que se concentravam na região; a antiga Festa do Divino Espírito Santo, que contribuiu para a fixação do uso festivo do espaço;⁵⁴ a força simbólica da presença de baianas e filhas de santo festeiras como Ciata, cuja casa era local de passagem obrigatória para os estandartes desses grupos; a maior liberalidade da polícia, empenhada em resguardar a área nobre da presença de indesejáveis, incentivando nesses bairros os desfiles de trabalhadores. Leve-se em conta ainda a presença de serviços urbanos fartos e baratos – cafés, botequins, quiosques – e de um comércio habitualmente disposto a apoiar a concentração de cordões e ranchos que atraíam um grande público às ruas da região, fornecendo guirlandas de flores e outros mimos com os quais os grupos carnavalescos podiam ostentar seu próprio prestígio diante dos demais: um dos cordões envolvidos no conflito tinha acabado, aliás, de receber de uma casa comercial das imediações uma “coroa” de flores, que exibia com orgulho em seu trajeto de volta.
Sem dúvida aqueles dois cordões saíram de Vila Isabel, para cumprir seu ritual, sabedores do risco que corriam. Segundo o depoimento de Miguel Augusto da Silva, presidente do Cravinhos de Ouro, antes do carnaval ele chegara a comparecer ao 16o DP, na sua própria vizinhança, para solicitar providências – já que desconfiava das “intenções” da agremiação rival –,
mas as medidas esperadas acabaram não acontecendo por, insinua ele, pura desídia do delegado. Vários depoimentos relatam um encontro anterior, na tarde do mesmo dia, ainda nas ruas da Vila Isabel. Lá, o conflito foi evitado pela presença do comissário Ferreira, do 16o DP, e pela providencial atitude de um certo doutor Oliveira Menezes, residente no Boulevard 28 de Setembro, no coração da Vila, justamente no intervalo de rua que separava os dois cordões. Ao convidar os integrantes do Estrela de Ouro a entrar em sua residência e oferecer-lhes cerveja, o cidadão evitara o embate, enquanto o policial desviava o Cravinhos por outro caminho, no intuito de impedir que se cruzassem no leito da rua, situação na qual em nenhuma hipótese um cordão poderia conceder passagem ao rival em seu próprio território.⁵⁵ Coisas de barbarismo africano, sobrevivências tribais, diriam convictos os cronistas daquele período, sempre desatentos para detalhes.
83. Boulevard 28 de Setembro, s.d.
O processo nos fornece um conjunto de elementos relevantes para entender a dinâmica dessas pequenas sociedades de trabalhadores pobres. Note-se, por exemplo, a completa ausência de mulheres nos dois grupos. Apenas um dos depoentes, que não participara do combate, justifica que havia se retirado porque estava em companhia de “duas meninas” a quem precisava proteger,
adotando de outro modo os ritos de masculinidade valorizados em sociedades desse tipo, cujos membros se dirigiam à festa portando navalhas e armas de fogo. Notável é a ausência no inquérito de testemunhos externos aos dois grupos em conflito. A exceção foi um servente de pedreiro italiano, de 18 anos, residente na Rua Senador Eusébio, em Santana, que tomava café no quiosque quando tudo começou (preso por engano com os integrantes dos cordões, segundo ele, que nada declarou sobre o ocorrido). Depuseram ainda como testemunhas os guardas civis que efetuaram a prisão de Gastão Ribeiro, mestre-geral da Estrela de Ouro, pego de arma na mão quando era derrubado pelo português Miguel Antônio da Silva, presidente do Cravinhos – que, aliás, sendo empregado das obras do porto, tinha total intimidade com a região do conflito, onde precisava circular diariamente em direção ao trabalho. A presença desse e de vários outros portugueses é bem significativa e, aliás, nada incomum nesses grupos, comprometendo a simplificadora associação entre cordões e “negralhões suados”. Mais que a presença de imigrantes, entretanto, outro elemento do processo chama a atenção: entre os numerosos participantes do conflito, em ambos os cordões, apenas um foi qualificado como “pardo”. Todos os outros aparecem como trabalhadores brancos, mostrando como o enegrecimento obedecia a uma lógica duplamente discriminatória.
Podemos seguir tentando conhecer os dois conjuntos de homens fantasiados e armados que se defrontavam na praça, semelhantes a dezenas de outros que cruzavam nas ruas de Santana. Grupos como esses costumavam contar com cerca de 50 a 100 integrantes, incluindo os músicos, com funções definidas tanto no grupo quanto no desfile. Poucas diferenças podem ser percebidas entre os dois. Em ambos havia uma predominância quase absoluta de trabalhadores regulares que incluía, a julgar pela amostragem das testemunhas, elementos do sexo masculino, com idades que variavam de 12 a 35 anos (idade de Ernesto Reis Lima, empregado da prefeitura do distrito federal e presidente do grupo Estrela de Ouro). Os dois cordões incluíam igualmente trabalhadores de construção civil (o mestre-geral do Estrela, Gastão Ribeiro, cuja arma foi apreendida, era pedreiro) e indivíduos qualificados como “operários”, sem especificar a fábrica ou o setor produtivo, bem como um tecelão da fábrica Confiança, que era o portaestandarte do grupo. Do lado do Cravinhos de Ouro, pelo menos dois outros
tecelões da mesma fábrica prestaram depoimento e apenas dois de seus integrantes não declararam qualquer profissão. Nesse caso, ao contrário do Estrela, que tinha o presidente e pelo menos mais um dos oito depoentes do seu grupo com nacionalidade portuguesa, todos eram brasileiros.
É difícil, apenas com esses dados, adivinhar as razões do conflito, embora vários dos envolvidos tenham explicado que, para além de rivalidades antigas dos dois grupos de trabalhadores que disputavam a primazia no bairro, Gastão Ribeiro (mestre-geral do Estrela) e Miguel Antonio da Silva (presidente do Cravinhos) tinham uma antiga rixa por “questões de mulheres”, argumento com o qual pareciam desejar encerrar rapidamente o assunto.
Meganhas na canoa: Um inimigo comum
A PRESENÇA de tantas agremiações que, além de atraírem gente de toda a cidade, aglutinavam os próprios moradores da região para o carnaval, o baile semanal e até, eventualmente, a greve ou o protesto, quando era o caso, pode ter pesado significativamente na definição da intensidade com que o aparelho policial se dedicou a controlá-las, interferindo de modo frequentemente abusivo. A prática ordinária das “canoas” e a vigilância cotidiana das ruas e dos espaços de lazer, em busca de indivíduos que carregassem sinais de suspeição, tornaram-se, assim, elemento crucial na experiência cotidiana dos trabalhadores cariocas dessa área da cidade, fossem eles do samba ou não.⁵⁶
Um rápido olhar sobre as rotinas policiais do período, com sua teia de pequenos acontecimentos, pode nos dar uma ideia do que significava morar na Cidade Nova, andar distraidamente pelas ruas da Saúde ou frequentar os botequins do Estácio naqueles anos. Casos de caixeiros presos enquanto
circulavam na rua a mando dos patrões, motivando protestos indignados que, em alguns casos, chegaram até os jornais, ajudam a ilustrar esse risco.⁵⁷ Os registros da polícia no período estão repletos de casos semelhantes, resultantes da ação baseada em um critério que Sidney Chalhoub, referindose ao final do século XIX, designou com a feliz expressão de “suspeição generalizada”.⁵⁸ Os episódios mostram que qualquer um estava sujeito a ser apanhado por um comissário desconfiado. A mão da lei se dirigia a todo suspeito de vadiagem, jogo, capoeira – identificados a partir de signos que não variavam muito no tempo, como cor, atitudes e formas de se vestir. Entre eles, os pandeiros, que assustavam o velho contador do Império, continuavam a despertar alerta nas autoridades. Vários sambistas relataram em seus depoimentos “para a posteridade”⁵⁹ terem sido detidos simplesmente por carregar consigo um desses instrumentos.
Algumas áreas da cidade, como o cais do porto, pareciam atrair maiores cuidados da força policial no início do século XX. Os trabalhadores daquele pedaço da cidade, até por falta de uma definição legal precisa para aquilo de que eram acusados e da própria rotina de trabalho no porto, estavam sempre sujeitos aos humores de delegados, agentes, “meganhas” de todos os escalões e calibres. Em setembro de 1909, para fornecer um exemplo, a Delegacia do 2o Distrito Policial encaminhava ao chefe de polícia, pelo Ofício no 558, um conjunto de suspeitos amealhados em uma única investida no cais do porto para serem internados “em estabelecimentos de correção e assistência”. Os presos, esclareceu o delegado, haviam sido
[...] encontrados em estado de grande miséria numa indigência e vagabundagem mórbida no Cais dos Mineiros, onde estão habituados a permanecer com grande escândalo e ofensas ao decoro público. Não dispondo esta delegacia de espaço para conter esses maltrapilhos, fétidos e imundos, em número de nove [...] roga que o chefe de polícia lhes dê conveniente destino.⁶⁰
Datado de 4 de setembro, o ofício vinha acompanhado de uma relação dos indivíduos e das situações em que haviam sido “flagrados” pela autoridade. Prudenciano Pimenta, morador na distante freguesia de Santa Cruz, com 50 anos de idade, estava deitado em um bote, tendo vindo do trabalho – e por vezes, segundo ele, preferia descansar por ali a fazer a longa viagem para casa; Manoel Eugênio Rodrigues Batista, com 26 anos, trabalhador da Cia. Messageries Maritimes, foi preso ao sair do trabalho por estar “perambulando” nas imediações – coisa que o preso alega ser um comportamento rotineiro; Manoel Costa Paulo, de 53 anos, por ser velho demais para o serviço pesado da estiva, costumava trabalhar em tarefas eventuais nas embarcações do Cais dos Mineiros, embora descansasse, dormindo em uma catraia, na ocasião em que foi preso; José Engenheiro, 55 anos (com idade igualmente avançada para as pesadas tarefas dos portuários), fazia “bicos” nas diversas embarcações que costumavam estacionar naquele cais e dormia em um bote na ocasião, conforme explicou à autoridade, por falta de dinheiro para pagar uma vaga em hospedaria – como a zunga da Turca, nossa conhecida, onde afinal correria o mesmo risco de ser preso a qualquer momento; Mariano Bochik era um trabalhador regular da estiva, como João Cesário da Silva, o último preso da lista, estando ambos no momento fora de seus turnos e perambulando pelas imediações do porto enquanto aguardavam novas oportunidades.
Devem-se ressaltar, entretanto, outros elementos importantes dessa forma de atuação preventiva, destinada a cortar o mal pela raiz, que seguramente teve peso decisivo nas histórias pessoais dos sambistas, aspecto que seus biógrafos costumam negligenciar. Ela podia incidir de maneira diferenciada para homens e mulheres, negros e brancos, gerando desdobramentos que interferiam em diferentes aspectos da vida cotidiana.⁶¹ Assim, para além dos trabalhadores adultos, as crianças foram objeto de uma ação permanente e organizada dos agentes policiais ao longo do período.⁶² Era, sem dúvida, perigoso, para os pequenos moradores da região, andar livremente pelas ruas. Para nos mantermos no ano de 1909, a documentação de polícia está repleta de casos. Um menino vendedor de bilhetes de loteria, que morava na Cidade Nova, foi preso por andar desacompanhado. Fornecidos à polícia o endereço de sua residência, na Rua da América, e o nome dos pais, com quem morava, ainda assim sua prisão foi mantida, apesar dos apelos dos
responsáveis pela criança, que perderam o dia de trabalho nas antessalas da delegacia. Andar desacompanhado, exercendo pequenos serviços pelas ruas, não era entendido como sinal de pobreza ou necessidade, mas como desvio de conduta e periculosidade latente dos quais a criança devia ser “salva” pela autoridade, através das casas de assistência, dos lugares de trabalhos forçados ou escolas de aprendizes.⁶³ A República havia, desde muito cedo, multiplicado os lugares de “reeducação” pelo trabalho para menores desviantes: a Escola de Aprendizes da Armada, o Asilo de Menores Abandonados, a Escola Correcional XV de Novembro eram destinos comuns para eles.
84. Menores capturados pela polícia chegando à Escola Correcional para serem matriculados, 1913.
85. Alfredo Pinto, s.d.
Em 15 de maio de 1909, o chefe de polícia – o temível Alfredo Pinto – recebia um ofício do delegado da 1a DP, responsável pela região mais nobre
da área central:
Para os devidos fins faço apresentar a V. Exa., o menor de 13 anos Manoel Gonçalves, residente no Morro da Conceição, o qual foi encontrado na Avenida Central e se acha moralmente abandonado; com o aludido menor foi arrecadada uma caixinha com quinze cartuchos de amendoim que oferecia à venda sem a respectiva licença.⁶⁴
Como no caso anterior, o menino declarou o nome, o endereço e a profissão do pai, um carpinteiro viúvo, com quem residia. Dias depois, informado de que o filho achava-se preso, o próprio pai esforça-se para retirá-lo da prisão, sem sucesso. No caso desse garoto – que, aos 13 anos, já poderia desfilar como “caboclo”, ou porta-machado, ao lado de um dos estandartes carnavalescos do Morro da Conceição, como fizeram alguns sambistas na infância –, o gesto infrator parecia ainda pior aos olhos da autoridade: fora capturado justamente na recém-inaugurada Avenida Central, cartão-postal da cidade moderna e regenerada que ele contaminava com sua presença e seus amendoins. Assim, mesmo atividades cotidianas destinadas a complementar a renda da família podiam resultar em prisão, “reeducação” ou afastamento dos pais, gerando consequências que certamente alimentavam o temor experimentado diuturnamente pelos trabalhadores pobres que insistiam em permanecer na região central.
Não resta dúvida que essa forma de ação da polícia carioca marcou de modo decisivo a vida e as rotinas dos moradores e frequentadores de Santana, da Cidade Nova, do cais do porto e da Saúde, da Gamboa, do Estácio e de outras regiões fronteiriças à Praça da República – como Sacramento, a região dos teatros e casas de prostituição. Seus habitantes e frequentadores foram alvos preferenciais da ação policial, viveram sob constante suspeita e ameaça e, certamente, desenvolveram habilidades especiais para burlar essas formas de controle. Tais procedimentos preventivos foram mantidos ao longo de todo o período que abrange as décadas finais do século XIX e as
primeiras do XX, nas quais continuam presentes com a mesma intensidade. As situações se sucedem nos registros policiais. Em 1914, o delegado do 5o Distrito, por exemplo, encaminhou ao chefe de polícia mais uma das relações de menores “encontrados diariamente vagando pelas ruas desse distrito, sem destino”. Tratava-se de outra “canoa”, dessa vez dirigida especialmente aos meninos encontrados na rua. Na Folha de Informações anexa ao ofício, podemos saber um pouco mais sobre eles, inclusive o comportamento dos pais e parentes, alguns dos quais compareceram à delegacia na vã tentativa (apenas dois conseguem fazê-lo) de liberar as crianças:
O Delegado do 5o Distrito Policial faz apresentar os seguintes menores, que diariamente são encontrados vagando pelas ruas daquele distrito:
1 – Waldemar da Silva, 10 anos, cor parda, natural do Estado do Rio, filho de Álvaro de Castro Rosa, falecido, e de Batistina Luisa da Silva, residente à travessa Dias Pereira no 8, Piedade, em companhia da qual mora; [obs. em vermelho: solto]
2 – Arthur Moreira, 13 anos, cor branca, natural de Portugal, filho de José Moreira, residente à rua Senador Eusébio, Ponte dos Marinheiros; está desempregado; [solto]
3 – João Sebastião da Costa, 15 anos, cor branca, natural do Estado de S. Paulo, filho de Polycarpo da Costa, residente em Volta Redonda, linha do centro, S. Paulo. Reside com seu primo à rua São José no 38. É empregado da Fábrica de Doces à rua D. Manoel no 132; [reverte ao 5o Distrito]
4 – César da Silva, 12 anos, cor preta, natural do Estado do Rio, filho de Manoel Portella, falecido, e Maria Henriqueta, com quem vive em Cascadura, ignora o nome da rua e número mas saberá indicá-los. Empregado na tinturaria à rua Senador Pompeu s/n; [20o Distrito]
5 – Accácio Trilho, 10 anos, cor branca, natural desta capital, filho de Amália Garrido com quem vive à rua Alahyde no 23, Dona Clara. Vende amendoim para sustento de sua mãe; [23o Distrito]
6 – Antônio de Oliveira, 14 anos, cor parda, natural desta capital, filho de Lisardo Bogea com quem vive à rua Nery Pinheiro no 89. É copeiro da casa no 887 da rua Nossa Senhora de Copacabana; [9o Distrito]
7 – José Gaspar, 13 anos, cor preta, natural do Estado do Rio, filho de Gaspar de Tal, residente em Vassouras, à rua das Flores. Reside com seu primo à rua São Cristóvão, esquina da rua Barro Vermelho; [10o Distrito]
8 – Manoel Gomes, 11 anos, cor branca, natural de Portugal, filho de João Gomes e Lídia Gomes com quem reside à rua Morro do Castelo no 211. É vendedor do jornal A Noite; [reverte ao 5o Distrito]
9 – Raphael Martins Paulo, 17 anos, branco, natural desta capital, de pais falecidos. Reside com tia-avó, Maria Souto Lara, à rua Francisco Eugênio no 147. [10o Distrito]⁶⁵
Eram nove crianças e adolescentes negros e brancos, como eram nove os marítimos e estivadores recolhidos no Cais dos Mineiros, encarcerados de
uma penada, sem que comportamentos delinquentes pudessem ser apontados pela autoridade. Considerando que o acontecimento está longe de ser excepcional, correspondendo antes às ações de rotina que nem saíam nos jornais (mas estão registradas na documentação interna das delegacias e nos ofícios das repartições), pode-se avaliar o peso da presença policial. Assim, além de estarem sujeitos a ser pessoalmente vitimados pela desconfiança das autoridades, os trabalhadores de Santana tinham a mesma ameaça pairando sobre seus filhos – uma vez que os “menores” foram rapidamente transformados, ao lado dos vadios, em alvos importantes da ação profilática da polícia republicana.
Entre essas crianças e adolescentes que perambulavam pelas ruas da região, e que cresceram habituados a tomar cuidado com a polícia nas primeiras décadas republicanas, estavam os futuros sambistas de sucesso, nascidos em meio àquela “gente da lira”, assíduos em seus cordões desde a infância e que seriam imortalizados nos anos 1930 e 1940 – quando a indústria fonográfica e, mais tarde, o rádio lhes deram essa chance única de saltar para fora de seu duro cotidiano. Em sua infância, sambistas como Cartola, nascido em 1908, do mesmo modo que qualquer criança das classes subalternas, estavam sujeitos a cair nas garras da ação profilática dos agentes da lei.
86. Cartola aos 11 anos de idade.
Essa marca aparece com força nas entrelinhas da biografia de Ismael Silva e de outros sambistas que viveram sua infância circulando pelas ruas da região nos anos 1910 e 1920. A diferença de idade entre as gerações de compositores, as condições particulares em que viveram sua infância e cresceram naquele ambiente constituem, assim, fatores igualmente decisivos para entender a história do samba no Rio de Janeiro. As formas de inserção na cidade, as teias de apoio e solidariedade a que estiveram vinculados, o tipo de suporte familiar ou as condições enfrentadas na sobrevivência, os graus de dificuldade econômica, entre outros fatores dessa ordem, serão fundamentais para configurar o perfil de grupos diferenciados de sambistas, padrões de comportamento e valores entre os vários círculos de “gente da lira” da cidade, como veremos.
Em suma, dentro desse intenso esforço de controle policial que marcou as primeiras décadas do regime republicano, é preciso notar a ênfase impressionante na região que se estende do porto ao Estácio. Pode-se verificar tal afirmação usando números relativos à atuação das delegacias. Uma de suas rotinas era informar mensalmente ao chefe de polícia o movimento de cada distrito (prisões efetuadas e outras ocorrências). Tomando o movimento de todas as unidades do Rio de Janeiro (incluindo apenas as detenções que tiveram esse caráter rotineiro e preventivo na busca por vadios, marginais “conhecidos” a serem retirados de circulação, menores e “vagabundas” – ou seja, prisões não motivadas pela prática imediata de atos ilegais) no mês de janeiro de 1914, para usar um exemplo colhido aleatoriamente, pode-se chegar a um resultado sugestivo.⁶⁶ Os números são mais do que eloquentes para sustentar o argumento de que a suspeição recai com mais intensidade sobre os trabalhadores da região. Em toda a cidade, naquele mês, foram efetuadas 104 prisões, sendo 41 menores, 55 vadios ou vagabundos(as), 6 mendigos e 2 suspeitos de serem ladrões.
Considerando o total por delegacia, no entanto, verificamos que, das 28 delegacias urbanas e suburbanas do Rio de Janeiro, 5 não fizeram qualquer prisão; 20 delegacias tiveram um movimento irrisório, prendendo entre uma e três pessoas no mês inteiro – notadamente menores, exceto uma “vagabunda” no Méier e dois “vadios” na Piedade. Apenas três delegacias parecem ter trabalhado bastante naquele mês: a 4a, da Praça Tiradentes (o coração de Sacramento), com 5 mulheres “da vida”, 2 supostos ladrões e 17 vagabundos – total de 24 prisões; 25 prisões foram efetuadas pela 5a DP, da freguesia de São José, a mais abastada das três – e, nesse caso, os alvos foram 16 menores e 6 mendigos que abordavam os passantes e sujavam as ruas. A cadeia mais cheia durante aquele e todos os meses foi mesmo a da 14a DP, em Santana: 30 presos, todos eles, sem exceção, por vadiagem.
Não é fortuito, portanto, que a polícia constituísse uma preocupação central dos trabalhadores, de todas as idades e cores, dessa populosa e agitada área
da capital federal. Trabalho irregular, dificuldade de obter empregos e moradia, necessidade de recorrer aos bicos ou expedientes como botar os filhos para vender amendoim nas ruas elegantes do centro e aprender a correr da canoa e da implicância de agentes da lei mais empenhados em coibir práticas perigosas, como tocar pandeiro ou violão, eram parte do dia a dia. Mais que as dificuldades decorrentes da pobreza, para além dos antigos atropelos da vida nos cortiços e estalagens ou nas condições precárias dos morros, da dificuldade de arrumar trabalho e garantir a sobrevivência e todo um conjunto de obstáculos a serem enfrentados, eles tinham de estar prontos para conviver com a ação dos meganhas, as manhas de inspetores e delegados, as regras dos inquéritos e diligências, dominando, na medida do possível, seus procedimentos.
Evidentemente, não havia uma forma única de enfrentar essa tensão. Os trabalhadores do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX podiam ser “da lira” em diferentes sentidos: mostrar valentia, exibir autonomia e orgulho por diferentes identidades construídas nesse embate cotidiano (mesmo que fossem as carnavalescas), buscar estratégias coletivas de sobrevivência ou meios individuais de ascensão social, aderindo a padrões estabelecidos, fazendo alianças ou aproveitando as oportunidades que se ofereciam. Diferentes atitudes, valores e comportamentos frequentes entre os sambistas podem adquirir aí outro sentido – como o esforço para vestir-se com uma elegância que supunham ser marca de distinção e hierarquia social, o hábito de tirar proveito de talentos musicais alheios ou conquistá-los pela convivência com os círculos certos, ou mesmo o costume de portar navalhas, facas ou revólveres por diferentes motivos ou circunstâncias.
87. Mano Elói (Elói Antero Dias), s.d.
Figura emblemática para exemplificá-lo foi um compositor que, depois de mudar-se para a zona norte com muitos de seus companheiros de trabalho, fundou uma agremiação tradicional do Rio de Janeiro. Era estivador, militante sindical, com a “cabeça feita” nos rituais do omolokô, cuja principal roça no período estava estabelecida justamente no Morro de São Carlos, no Estácio. Nem baiano (apesar de “macumbeiro”), nem malandro (apesar de sambista e morador de morro), Elói Antero Dias, mais conhecido como Mano Elói, pode sintetizar em suas várias facetas a rica relação entre a experiência dos trabalhadores e o mundo do samba. Na verdade, apesar de tudo, ele parece ter escapado quase ileso da sanha policial. Vamos encontrálo uma única vez envolvido com a lei, em um incidente provocado quase involuntariamente que pode, entretanto, ajudar a recompor fragmentos da vida desses personagens e a entendê-los sem recorrer aos estereótipos
habituais. Estivador desde a juventude, ele chegou ao Rio de Janeiro em 1903, quase menino, e tornou-se vendedor de balas em pleno Campo de Santana, enfrentando o risco das “canoas” e da presença intimidante da polícia. Morou e circulou nos morros da Favela e de Santo Antônio, antes de ser empurrado pelas reformas urbanas na direção das estações suburbanas da Central do Brasil. Envolveu-se diretamente – padrão pouco observado para os sambistas contemporâneos – no movimento sindical, como sócio militante do sindicato Resistência desde a fundação.⁶⁷ Seu principal legado às gerações futuras, entretanto, estava em outro lugar: mais que pela atuação sindical, é relembrado porque, além de outras agremiações, ajudou a fundar a Portela e a Prazer da Serrinha – hoje, Império Serrano – no início da década de 1930, quando se tornou mais conhecido como compositor. Assim, constitui figura importante tanto para a primeira fase da história do samba quanto para a formação de algumas das escolas mais importantes do Rio de Janeiro nas décadas de 1920 e seguintes.
Elói foi ogã nos rituais da umbanda e jongueiro respeitado na Serrinha, conhecido reduto dessa prática na cidade. Chegou a assumir a autoria de pontos de santo e cantos de terreiro, cujo registro foi efetuado com sua assinatura e sua voz, pela primeira vez em estúdios de gravação (pontos de Iansã e Ogum e cantos de terreiro de Exu e Xangô em discos da gravadora Odeon) – assim como deixou algumas raras gravações de jongos. Era também um músico versátil, íntimo do cavaquinho, hábil com o pandeiro e o tamborim. Sua origem no interior do estado do Rio de Janeiro, de onde trouxe a matriz religiosa “benguela” e a habilidade de improvisação nos versos, estimula a curiosidade sobre o significado e o peso das relações do samba carioca com as rodas de jongo e calango das regiões interioranas mais próximas – aspecto raramente percebido pela bibliografia especializada –, assim como o peso de outras vertentes dos cultos afro-brasileiros, independentes do candomblé, na consolidação dessa cultura urbana.⁶⁸
14. Ponto de Ogum (domínio público). Intérpretes: Elói Antero Dias e Getúlio Marinho [1927-1930].
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Em junho de 1908, Mano Elói tinha apenas 20 anos e já trabalhava no porto. Havia chegado cinco anos antes de sua cidade natal – Resende, no estado do Rio (a julgar pela qualificação constante nos autos do processo). Naquela tarde do inverno carioca, o jovem estivador tomou o trem em direção ao bairro de Inhaúma. Ao contrário dos foliões da Vila Isabel, que saíram de seus redutos para envolver-se em confusão mais perto do mar, no Campo de Santana, ele saiu do porto e dirigiu-se aos subúrbios em busca de outro tipo de diversão. Era dia de São João, e o sambista ia animado, sem qualquer disposição belicosa, para as festividades tradicionais às quais estava certamente acostumado em sua cidade do interior do estado. Levava consigo, entretanto, um velho revólver já meio estragado, com a mola do disparador em más condições, pronto a provocar acidentes – segundo análise do perito convocado pelo juiz.
O adjunto de promotor público em exercício nesta Pretoria, vem dar denúncia contra Elói Dias, brasileiro, de 20 anos de idade, estivador, sabendo ler e escrever, o qual no dia 23 do mês findo, cerca de 7 ½ horas da noite, foi preso em flagrante na rua dona Maria, esquina da rua Teresa Cavalcante, por ter imprudentemente, com um tiro de revólver com o qual se divertia, atirado para o ar, ferindo a Sergio dos Santos Nogueira, que se achava no interior de uma venda ali existente.⁶⁹
Não há nos autos nenhuma controvérsia quanto ao acontecido, apesar da notável pontaria do réu que, segundo a promotoria, atirou para o ar e feriu alguém no chão. Todas as testemunhas ouvidas confirmam que o caixeiro da venda, a quem Elói não conhecia, fora atingido por um tiro no braço vindo de fora do estabelecimento. Quando o dono da venda – cunhado do ferido – chegou à porta, encontrou Elói ainda com a arma na mão. Ele mesmo declarou ao vendeiro e às demais testemunhas, e mais tarde à polícia, que, ao
tirar a arma do bolso para “dar umas ‘salvas’ por ser dia de S. João”, ela disparou involuntariamente (portanto, ele não chegou a “atirar para o ar”, como anota o escrivão, embora tivesse essa intenção). Dois guardas que ali estavam casualmente “a passeio” – provavelmente iam em busca da festa, como o preso – prenderam Elói em flagrante, e o delegado da 20a DP instaurou o inquérito. O jovem estivador não tinha, àquela altura, antecedentes criminais e não fez qualquer esforço para defender-se da acusação, reconhecendo todas as imputações da promotoria. Ao final, foi condenado em grau mínimo (15 dias de prisão) pelo artigo 306 do Código Penal (lesões corporais).
Qual o interesse que um processo como esse pode ter para iluminar partes da experiência desses indivíduos? Para entendê-lo é necessário colocar o episódio em uma rede de outros inquéritos e processos pertinentes a comportamentos de trabalhadores em circunstâncias semelhantes. Só o que diferencia o processo de Mano Elói de muitos outros guardados nos arquivos é o fato de que ele se refira a uma personalidade do samba carioca – fato, aliás, evidentemente não mencionado nesse nem nos demais processos localizados referentes a outros sambistas celebrizados a partir de uma memória exterior à sua própria vivência, mesmo quando pegos já mais velhos e com uma carreira delineada. Visto a partir desse conjunto, o pequeno episódio protagonizado por Mano Elói pode revelar dimensões interessantes. Em primeiro lugar, o local da ocorrência. Justamente as vendas, os botequins e outros lugares de reunião dessa natureza são cenários extremamente frequentes de episódios de valentia, de brigas e troca de desaforos – e também, por certo, da presença de policiais “a passeio”, por serem os principais, se não únicos, espaços de lazer e sociabilidade compartilhados por todos nos bairros populares, seja no cais do porto ou nos arrabaldes. Não por acaso, o estivador em busca das festas juninas de subúrbio parou justamente em frente à venda para exibir seu revólver e “dar umas salvas”. O revólver, personagem de muitas outras histórias que envolveram sambistas, constituía o modo pelo qual ele afirmava valentia, característica que bambas de várias gerações compartilharam com seus companheiros de trabalho. Com ele, Elói executava um ritual de masculinidade relativamente comum, a julgar pela atitude branda de policiais e juízes.
O fato é que nem o delegado, nem o promotor, nem as testemunhas demonstram estranhamento pelo gesto de sacar a arma, mas apenas pelo resultado desastrado. Isso indica ser habitual o fato de jovens trabalhadores dirigirem-se para festas de rua com revólveres carregados e exibirem-nos com naturalidade – ainda que não pudessem ser imediatamente identificados como marginais ou criminosos. Os episódios com arma de fogo são muito comuns nos registros da polícia, mostrando que seu uso era bastante disseminado já no início do século XX. Naquele momento, a arma que costumava aparecer em brigas de cordão com um significado fortemente negativo chegava a parecer corriqueira. Ademais, o fato de Elói portar um revólver velho e meio estragado, que nem sabia manusear adequadamente, parece revelar, ao contrário do que sugere uma primeira visão, sua pouca familiaridade com armas de fogo, funcionando nos autos para policiais e juízes como uma evidência de que ele era um “bom rapaz”, merecedor de reprimenda por sua imprudência, mas não de uma punição mais severa. A posse do artefato foi assim qualificada como um comportamento fortuito, e o tiro acidental acabou não tendo maiores consequências, exceto talvez a de reforçar a fama de valente de Elói entre seus jovens companheiros, o que bem pode ter contribuído para aumentar seu prestígio no porto e no samba.
A imagem dos sambistas como malandros valentes, bons nas pernas e no uso das navalhas (como muitos deles, Elói é também apontado pela habilidade na capoeira)⁷⁰ sempre evitou associá-los ao porte de armas de fogo. Ao contrário, já na década de 1930, Noel Rosa até lamentava em um samba memorável a entrada em cena do artefato, visto como algo que descaracterizava a verdadeira tradição desses grupos: “no século do progresso / o revólver fez ingresso/ para acabar com a valentia”.⁷¹ Mas Mano Elói, Paulo da Portela e tantos outros que ainda iremos encontrar nestas páginas podem indicar um padrão diferente – menos heroico, menos romântico, mais próximo dos significados históricos e da experiência desses sujeitos que, como trabalhadores, buscavam seu espaço em uma cidade competitiva e (já) violenta. Em outras palavras, diante da repressão constante e indiscriminada, diferentes grupos de sambistas, como de trabalhadores menos afeitos às práticas musicais, reagiram de forma distinta e construíram
formas diferentes de expressão e enfrentamento, nas quais – ainda que apareça com frequência – nem sempre o revólver foi a arma principal.
Capítulo III
GENTE DE FORA ¹
88. Donga, s.d.
NO FINAL DOS anos 1920 – mais precisamente entre 1926 e 1928 –, outro velho conhecido de Sinhô alcançava mais uma vez o sucesso com um samba intitulado “Nosso ranchinho”. Mesmo não sendo “rei” de coisa alguma, o
nome desse compositor ficou definitivamente marcado na música popular brasileira. Tratava-se de Ernesto dos Santos, mais conhecido como Donga, que registrara dez anos antes o partido-alto “Pelo telefone”, inscrito na memória musical do país como o primeiro samba gravado e tido como um divisor de águas na história do gênero.² Nascido no Rio de Janeiro em 1889, o ano da República, o sambista era filho de Amélia do Aragão, uma das mais famosas baianas da região. Seu pai era pedreiro e tocador de bombardino; cresceu íntimo dos círculos do candomblé, das festas e dos tabuleiros das “tias”, dos circuitos musicais da Cidade Nova. Àquelas alturas, ele era um personagem razoavelmente conhecido do público como integrante do conjunto Os Oito Batutas. Com o amigo Pixinguinha e seus outros companheiros, viajara por todo o Brasil e até pela América do Sul e Europa; tinha vários sucessos gravados e circulava entre rodas de intelectuais do período, que o apontavam como uma espécie de ícone do “popular” e do “nacional”.³
“Nosso ranchinho” apareceu no mercado fonográfico na voz de um cantor hoje esquecido.⁴ Tratava-se, como era comum nos sambas assinados por Donga e seus contemporâneos, de uma composição coletiva, fruto das rodas onde versos improvisados eram desenvolvidos a partir de um refrão compartilhado pelos participantes. Não foi outra a polêmica que cercou o registro privado de “Pelo telefone”, aliás. Uma década depois, o refrão de “Nosso ranchinho”, entoado em coro, ainda que assumisse um tom marcadamente rural (como era comum naqueles anos), parecia reivindicar uma identidade para o grupo que participava de sua elaboração, no centro do Rio de Janeiro:
15. Donga, Nosso ranchinho, c. 1921-1926. Intérprete: Fernando. [ clique aqui para ouvir ]
Nosso ranchinho assim
Tava bão,
Gente de fora intrô,
Trapaiô.⁵
Não é possível saber se tal intenção estava presente para seu(s) autor(es), nas rodas de samba da Cidade Nova e região portuária. Mas, poucos anos depois, referindo-se a esse samba registrado por Donga, o cronista Vagalume, íntimo de vários integrantes do grupo, transcreveu o refrão de outro modo: “nosso sambinha assim tava bom” – confusão que, mesmo involuntariamente, autoriza essa interpretação dos versos e sugere a possibilidade de que ele fosse cantado também dessa forma.⁶ Uma coincidência vem reforçar a hipótese: quase ao mesmo tempo em que o “ranchinho” de Donga veio a público, um certo Ismael Silva, negro franzino residente nas imediações do Morro de São Carlos e ainda desconhecido no círculo dos compositores da Cidade Nova, aparecia pela primeira vez como autor de um samba gravado pelo prestigiado cantor Francisco Alves, despontando como estrela ascendente entre os bambas do Estácio.⁷
Comparar rapidamente a trajetória desses dois ases da música popular carioca pode ajudar a entender o que se passava no período. Companheiro de Sinhô e outros integrantes da “guarda velha” nas rodas de samba da região, Donga conseguiu fazer chegar às gravadoras, no ano de “Nosso ranchinho”, um total de dez composições de sua autoria. Ismael mal iniciava a carreira, tendo registrados em disco apenas dois sambas naquele ano de estreia. A supremacia de Donga foi inquestionável até o final da década: ele teve
gravadas 19 músicas entre 1915 e 1930 (volume só superado pela extensa obra de Sinhô),⁸ enquanto Ismael, que emergiu no final dos anos 1920, emplacou oito sucessos apenas nos últimos três anos, já indicando sua rápida ascensão. Se olharmos os cinco anos seguintes, entre 1931 e 1935, veremos que a situação já era totalmente inversa: 31 sambas de Ismael apareceram em gravações, ao passo que Donga teve algo em torno de 12 composições registradas pelas casas gravadoras. Enquanto Ismael se tornava uma figura popular e seus sambas eram disputados por cantores famosos, como Chico Viola e Mário Reis, a imagem de Donga ia esmaecendo diante do público – juntamente com o interesse das gravadoras.
89. Francisco Alves e Mário Reis, s.d.
As canções de Donga, boa parte apenas instrumental, foram gravadas majoritariamente por cantores de uma linhagem mais associada ao teatro
ligeiro, como Bahiano, ou por grupos de “choro”, como os Oito Batutas, do qual ele fazia parte. Choros, alguns temas carnavalescos, serestas, emboladas, cançonetas de palco, valsas – além de um “jongo” e uma “batucada”, gêneros alheios à tradição desse grupo – figuram ao lado dos sambas na lista de gravações desse autor.⁹ No que diz respeito a Ismael, poucas marchinhas carnavalescas (quase obrigatórias para compositores populares nas primeiras décadas do século) se incluem em um repertório formado exclusivamente por sambas.¹⁰ Mais que isso, eram sambas autorais, que modificavam o padrão habitual das rodas de partido-alto, adotando uma letra fixa e uma melodia dividida em duas partes distintas.¹¹
Seu sucesso amplo e imediato certamente incomodou bambambãs de fama já consolidada, como Donga e Sinhô. Os sintomas desse mal-estar ainda aparecem décadas depois, nos anos 1960, em um célebre diálogo entre Ismael e Donga testemunhado por Sérgio Cabral: instigados por ele a responder qual seria o “verdadeiro samba”, os dois compositores continuavam discordando. Para Donga, “Pelo telefone”, de 1917, era o padrão, fato contestado por Ismael, que alegava que aquilo seria um “maxixe”. Ismael, por sua vez, apresentava “Se você jurar” (1930) como o paradigma do gênero, diante do que Donga – talvez um pouco irritado – argumentava que aquilo era apenas uma “marcha”.¹²
16. Donga e Mauro de Almeida, Pelo Telefone, 1916. Intérprete: Bahiano. [ clique aqui para ouvir ]
17. Ismael Silva e Nilton Bastos, Se você jurar, 1930. Intérprete: Mário Reis. [ clique aqui para ouvir ]
Não parece, por isso, despropositado relacionar os versos de “Nosso ranchinho” aos acontecimentos musicais daquele momento. No final dos anos 1920, quando o samba veio à luz, todos os sinais no horizonte já mostravam a Donga e seus companheiros que uma nova fornada de sambistas se aproximava rapidamente, ocupando o espaço ainda exíguo que eles haviam conquistado na nascente indústria cultural. Eram, por assim dizer, “gente de fora” daquelas rodas estabelecidas, que vinha “atrapalhar” sua harmonia interna, seus padrões estéticos e formas de criação.
Mas não deixa de ser curioso assinalar que, em sentido inverso, o rótulo “de fora” podia caber para o próprio Donga e seus companheiros: integrando um grupo formado principalmente por migrantes baianos e seus descendentes diretos, esses sambistas foram personagens de uma história de adaptação e conflito na capital federal que merece ser revisitada, em busca do fio da meada que nos permita entender melhor a história do gênero musical e da cidade onde ele nasceu – bem como das tensões, que o “sambinha” (ou seria maxixe?) de Donga insinua, entre diferentes formas de tocar, cantar e dançar adotadas por grupos ou rodas de sambistas na cidade do Rio de Janeiro do início do século XX.
Por dentro das rodas
UMA DESSAS formas, que destaco por sua importância na história do samba, era um jeito de cantar, presente no carnaval ou fora dele, seguido de palmas ritmadas, nos botecos e terreiros da Cidade Nova, improvisando versos, a partir de um refrão acompanhado por violão, cavaquinho e outros instrumentos. A percussão era feita basicamente pelos pandeiros, além do bater das mãos. A modalidade era conhecida como “partido-alto” ou “samba baiano” e dividia frequentemente os mesmos espaços com outras formas
musicais: versões instrumentais de marchas, valsas, maxixes, polcas, “tanguinhos” executados pelos que tinham maior intimidade com instrumentos e suas técnicas – posteriormente qualificados como “chorões”, nascidos em várias partes do país, aliás.¹³ Por vezes, alguns temas musicais dessa atividade coletiva de criação aparecem em versões gravadas pelos músicos mais habilidosos. Nesses casos, a escolha do repertório buscava favorecer a demonstração dos virtuoses dos sopros ou das cordas que compartilhavam esse ambiente musical, frequentado também por cariocas como Pixinguinha e seus irmãos, assíduos nas rodas da Cidade Nova no início do século XX. Tais sambas podiam conviver com os batuques “duros”, principalmente nos carnavais congestionados por cordões rivais em busca de afirmação e visibilidade, do mesmo modo que os tambores podiam dedicar-se a marcar o ritmo de marchas suaves e cadenciadas para o passeio das agremiações pelas ruas. Nenhuma dessas modalidades praticadas pelos trabalhadores do/no Rio de Janeiro, note-se, excluía as demais.¹⁴
Dito de outro modo, a forma e o repertório dependiam da ocasião, da habilidade de quem executava ou da modalidade de diversão que se buscava: um desfile carnavalesco, um salão dançante, uma brincadeira de botequim exigiam volumes sonoros e performances musicais diversas, como é evidente. Tais variantes podiam aparecer misturadas mesmo nos espaços profissionais que se abriam, como sugere a foto do jovem Pixinguinha com o violonista Tute. Instrumentista branco, Tute (Artur de Souza Nascimento, 1886-1957), inventor do violão de sete cordas, tocou bumbo na famosa banda do Corpo de Bombeiros dirigida por Anacleto de Medeiros. Por volta de 1912, época da foto, ele havia indicado Pixinguinha, que tinha apenas 15 anos, para substituir um flautista na orquestra do Teatro Rio Branco onde, além do violão e da flauta, o bumbo – principal elemento rítmico dos cordões, mas igualmente presente em orquestras sinfônicas e bandas militares – ainda tinha espaço.¹⁵
90. Tute e Pixinguinha, s.d.
O trânsito entre os praticantes das várias modalidades era aparentemente a regra, de uma forma muito menos segmentada do que sugere a metáfora
sempre reiterada sobre os espaços domésticos da casa de Ciata: a ideia de que se ouviam choro na sala, partido-alto na cozinha e batucada no quintal, executados concomitantemente por indivíduos diferentes nesses lugares quase hierarquicamente separados das festas da tia baiana, constitui uma óbvia fantasia que sequer leva em conta as possibilidades físicas dos acanhados imóveis que abrigavam tais ocasiões.¹⁶
91. Planta da casa de Tia Ciata, elaborada por Roberto Moura a partir de depoimentos dos parentes que lá conviveram.
No início do século passado, essas formas musicais podiam conviver tranquilamente, do ponto de vista de seus protagonistas e ouvintes habituais, exceto em ocasiões que envolviam competição direta (como as gravações comerciais, que rendiam dinheiro e prestígio, ou os carnavais, nos quais a forma musical adotada podia expressar diferenças mais profundas, e a defesa de estandartes rivais era o elemento principal de conflito). É nesse contexto que a discussão de Ismael e Donga faz sentido. Ao qualificar de maxixe o partido-alto de Donga, Ismael o reduz a música para dançar nos salões; ao reduzir a “marcha” o samba de Ismael, Donga enfatiza suas propriedades de desfile carnavalesco – ambos usando meias verdades para desqualificar o opositor.
Já presente no início do século XX, essa noção de produtos musicais diferenciados aos quais corresponderiam espaços próprios resultava, pelo contrário, de uma perspectiva externa aos próprios praticantes do gênero que opunha popular e erudito, negros e brancos, ricos e pobres, decente e duvidoso. Causou escândalo na época, para lembrar exemplo bem conhecido, a ousada iniciativa da então primeira-dama da República – Nair de Teffé –, segunda esposa de Hermes da Fonseca, o marechal guindado pelo voto à Presidência da República em 1910. Em uma recepção no Palácio do Catete, já no final do mandato do marido, Nair (cuja figura catita era considerada suspeitíssima pela comentada trajetória de vida e pelas ligações com a boemia carioca) havia executado pessoalmente ao violão o tango “Gaúcho”, tema musical mais conhecido como “Corta-Jaca”, da mestiça e igualmente malfalada Chiquinha Gonzaga. Criado para o teatro de revistas, o tango era parte da peça Zizinha Maxixe, encenada em 1895, com música da maestrina e letra – adequadamente maliciosa como pedia o espetáculo – de José Machado Pinheiro e Costa.¹⁷
92. Nair de Teffé, s.d.
18. Chiquinha Gonzaga, Gaúcho [Corta Jaca], c. 1904-1907. Intérprete: Os Geraldos. [ clique aqui para ouvir ]
A visão de uma primeira-dama abraçada ao pinho vulgar, em pleno palácio do governo, executando aquela música buliçosa própria de ambientes bem menos formais, pareceu a muitos uma grave inversão de valores. Ruy Barbosa, por exemplo, que fora o principal adversário de Hermes da Fonseca na sucessão presidencial de 1910 encabeçando a chamada “Campanha
Civilista”, não perdeu o mote e apontou, com sua habitual eloquência, no Senado, o gesto prosaico como uma grave desmoralização das instituições nacionais, ao trazer para o espaço sério do poder “a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”.¹⁸ Note-se que, na referência do erudito senador, o batuque das senzalas ou dos bairros pobres das cidades era mencionado como “irmão gêmeo” do samba e da dança rural do cateretê, deixando emergir a marca de classe que confundia no mesmo rótulo as várias modalidades de música e dança das classes subalternas. Por outro lado, não deixa de ser significativa a aparente confusão de equiparar ao “samba” um “tango brasileiro” – segundo pretendia a própria autora do “Corta-Jaca” –, que era, na verdade, base musical para encenar a dança do maxixe, um tanto escandalosa para saraus de família. O senador baiano, habituado com as sonoridades e os ritmos de sua terra, devia saber bem as diferenças, mas estava, afinal, de acordo com sua ótica de classe ao não separar claramente uma coisa da outra.
Tal confusão reitera que a primeira década do século XX era um momento em que o samba sequer existia no sentido em que o pensamos hoje, isto é, como um gênero musical com características bem definidas. Embora poucos anos mais tarde seus praticantes já adotassem alegremente o rótulo de “sambistas”, eles identificavam na época suas composições como polcas, maxixes, lundus e só muito eventualmente como sambas carnavalescos ou sambas de partido-alto (quando envolviam improvisos sobre versos tradicionais). Neste último caso, os músicos costumavam reunir-se em espaços de lazer, como bares, vendas ou botequins, por vezes em terreiros e quintais festivos ou casas de amigos, atraindo indivíduos com habilidade suficiente para participar dos improvisos, além de uma animada assistência que se divertia com suas rimas e provocações. Era o caso do grupo mais conhecido entre esses primeiros sambistas, que costumava frequentar um café cujo nome era também – aposto que não por mera coincidência – “Paraíso”. Impossível deixar de evocar o cabaré afrancesado do velho Campo de Santana, muito próximo do botequim que lhe herdou o nome anos depois, ainda que a clientela fosse outra e a parati substituísse o champanhe nas noitadas musicais. Como no caso do antigo cabaré, os sons do botequim podiam ser ouvidos da rua e chamavam a atenção dos passantes para as
rodas de instrumentistas e autores de versos, seus improvisos e criações sincopados e marcados pelo humor.
Segundo as referências dos contemporâneos, o botequim Paraíso, situado nas proximidades do Campo de Santana e quase em frente à delegacia de polícia da região, foi o principal reduto de muitos sambistas desse grupo conhecido como baiano. Era ponto de encontro também de artistas já famosos em 1905, como Eduardo das Neves, Bahiano e muitos outros que iam sendo consagrados pelas chapas sonoras da Casa Edison e pelo circuito do teatro ligeiro e dos circos. Entretanto, nem só de negros pouco escolarizados do morro ou da cidade se compunha a frequência do Paraíso. Eram assíduos músicos como Ernesto Nazareth, Sátiro Bilhar, Catulo da Paixão Cearense ou Heitor Villa-Lobos, cuja curiosidade em torno dos ritmos e harmonias dos pobres vinha de longe.
93. Ernesto Nazareth, s.d.
94. Heitor Villa Lobos, s.d.
Como seus pares, o maestro era sensível à sedução dessas canções sincopadas, que atraíam a atenção de parcelas da elite letrada, ainda que essa
não fosse a intenção primária daquelas rodas que se reuniam em busca de diversão. Como assinala o cronista Jota Efegê falando sobre o botequim Paraíso e seus frequentadores, “ali [eles] relembravam conhecidas chulas, improvisavam refrãos de sambas que davam ritmo para um deles ‘tirar’ ou improvisar quadrinhas”. O exemplo que ele menciona é de um refrão bastante popular no período, que exprime, com o habitual humor, um dos principais elementos da autoimagem desses bambas, fortemente apegados a signos de masculinidade como a valentia. Por isso cantavam, para desafiar e provocar o improviso dos participantes:
Não tenho medo de homem,
nem do ronco que ele tem.
O besouro também ronca,
vai-se ver, não é ninguém.¹⁹
Os versos, que respondiam ao refrão, mantinham uma lógica semelhante à dos desafios de viola, como no caso de “Nosso ranchinho”. Cada sambista desenvolvia o tema proposto, esmerando-se para suplantar os demais nas rimas. Esse era o modo de compor praticado nessas rodas: uma autoria compartilhada, que certamente tendia a fixar na memória dos participantes os versos mais bem-sucedidos (que devem ter permanecido, por exemplo, quando alguns deles trataram de registrar em disco produtos dessas ocasiões como o conhecido “Pelo telefone”, tão caro à memória de Donga). Essa era, para outros participantes, a oportunidade de exibir habilidade com os instrumentos de corda e sopro, sobretudo a flauta, incorporando à roda instrumentistas que faziam os contrapontos e o acompanhamento dos
improvisos dos partideiros, quando a ocasião era propícia a reuni-los. Muitos músicos afamados das rodas de choro registraram versões instrumentais inesquecíveis de alguns desses sambas. É o caso do famoso “Urubu malandro”, imortalizado nas versões instrumentais de Pixinguinha, Benedito Lacerda e outras posteriores. Nascido como um típico partido-alto, acabou sobrevivendo até nossos dias como um clássico do choro, cuja letra ficou perdida no tempo. A história dessa canção pode ajudar a entender os nexos entre as diversas formas musicais que desaguaram no samba e outras modalidades que perduram em nossos dias.
19. Pixinguinha, Urubu, 1923. Intérprete: Os Oito Batutas. [ clique aqui para ouvir ]
O primeiro registro, provavelmente de 1913 ou 1914 (anterior, portanto, ao “Pelo telefone”, de 1917, sempre apontado como o primeiro do gênero), foi de Louro, um músico bastante conhecido no período, que hoje certamente seria classificado como “chorão”, dada a sua ênfase na música instrumental. O nome do músico, que estava à frente do “Grupo do Louro” composto de clarineta, cavaquinho e violão, era Lourival Inácio de Carvalho (1894-1956) – prenome que explica em parte o apelido. Mas o apelido também derivava de que, longe do estereótipo que atribuía aos negros a exclusividade nesses gêneros, o músico tinha os cabelos e a pele bem claros. Como boa parte dos seus contemporâneos, Louro aprendeu clarineta na banda da fábrica têxtil em que trabalhava como operário – a Cia. Manufatora Fluminense, em Niterói. Não se sabe onde ele ouviu pela primeira vez o tema, que intitulou “Samba do urubu”,²⁰ recolhido de outras rodas ou da tradição anônima do norte fluminense, segundo versões divergentes, e executado com um andamento menos acelerado que o registrado por Pixinguinha e outros ases do choro.²¹
Em vista do sucesso, o samba foi posteriormente registrado por outro ás das gravadoras no início do século, o popularíssimo Bahiano, com o título “Dança do urubu”. Ouvir esses primeiros registros, especialmente a versão cantada, ajuda a entender muita coisa.
20. Dança do Urubu (domínio público). Intérprete: Bahiano [1915-1921]. [ clique aqui para ouvir ]
Com um andamento lento, ao compasso das palmas e do pandeiro, ou com uma rítmica leve (como outros sambas dessa primeira safra), ele soa totalmente diferente da versão saltitante e acelerada do “Urubu malandro” de Pixinguinha, Lacerda e outros chorões que o adotaram como um standard do gênero. Na primeira versão instrumental, ele ainda mantinha esse andamento, mas já revelava o potencial que esses músicos acabariam por desenvolver nos anos seguintes, quando o tema foi adaptado para favorecer o desempenho dos sopros. O “Urubu”, evidentemente, foi adotado pelos músicos em detrimento de outros sambas baianos do período porque favorecia os efeitos de virtuosismo, o contraponto, a variação, a improvisação e o diálogo entre os instrumentos, tanto nos saraus como nas exibições de palco.²² Por essa via, o urubu foi transformado em choro, quando a separação dos gêneros se consolidou entre seus praticantes – mas o bicho era inegavelmente o mesmo.
95. Almirante (Henrique Foréis), c. 1935.
Outro raro exemplo da música produzida nesses espaços, o partido-alto, praticado ainda hoje em rodas e terreiros da cidade, nos chegou pelo registro tardio de Almirante, com a participação de compositores da chamada “velha guarda”. Trata-se de “Patrão, prenda seu gado”, de autoria assumida posteriormente por Pixinguinha, Donga e João da Bahiana.²³ Tratava-se, na verdade, de parte do repertório habitual de ambientes como o botequim Paraíso. Estruturado sobre versos que parecem remontar ao final do século XIX, o samba iniciava pela referência a um episódio marcante na Bahia pósAbolição, relacionado à tensão entre proprietários de terra do Recôncavo e a insistência dos libertos em capturar cabeças de gado para comer, dando origem a conflitos por vezes sangrentos em que os últimos podiam ser “jurados” de morte por seus ex-senhores.²⁴
21. Donga, João da Bahiana e Pixinguinha, Patrão, Prenda seu Gado, s.d. Intérpretes: Almirante e Guarda Velha. [ clique aqui para ouvir ]
Ô patrão, ô patrão
Ô patrão, prenda o seu gado
Na lavra tem um ditado
Quem mata gado é jurado.
Evidentemente, tendo em vista o desenvolvimento dos versos, a referência ao “gado preso” podia ser lida, em outro registro, como uma alusão à necessidade de os pais de donzelas tratarem de preservá-las das investidas masculinas, criando um imediato efeito de humor. Seja como for, a canção prossegue evidenciando o deslocamento do autor dos versos em relação ao lugar social que lhe estava destinado. Cada coisa deve estar em seu lugar ou manter as aparências, mas o pobre do poeta havia se desviado da norma: fora preso na sua terra natal por ter namorado alguém que não devia. A referência final a “Ioiô e Iaiá”, em uma nova quadrinha que se torna o refrão a partir do qual o samba tem continuidade, não deixa dúvida de que se trata de
referência a um amor inter-racial e interclassista do liberto que se apoderava do gado do ex-senhor e também cobiçava o amor de sua filha.
Missa de padre é latim
Rapaz solteiro é letrado,
Eu vim preso da Bahia
Porque era namorado
Madama diê, lalá
Samba Ioiô, samba Iaiá
Que o dia evém, dona
Essa interpretação é confirmada nos versos seguintes, nos quais o cantor admite a “culpa” e dá um desfecho à história de amor que remete a tempos ainda mais antigos. Afinal, fugir para Lisboa num vapor não parece ser uma solução própria do período em que Almirante gravou a canção, já entrando nos anos 1940:
Eu bem sei, eu bem sei
Eu bem sei que fui culpado
De vir preso da Bahia
Só porque fui namorado
Vou tirar meu passaporte
Meu camarote de proa
Eu aqui não vou ficar
Vou-me embora pra Lisboa
Sinhazinha vai ver, dona
Samba Ioiô, samba Iaiá
Que o dia evém, dona
O final da versão difundida por Almirante, com quadrinhas aprendidas nessas rodas, provavelmente relembra um desses casos de improviso bemsucedido que permaneceram na memória dos seus participantes, passando às gerações seguintes. A lógica dos versos relembra a dos jongos, com significado de difícil elucidação ou diretamente acessível apenas aos participantes. O autor saúda seus ouvintes com a palavra “saruê” (que, na literatura de cordel, aparece com o sentido de terra mítica, paraíso, interpretação possível também aqui, embora essa não seja a única possibilidade),²⁵ dirigida àqueles que trabalham. Entretanto, a localização da atividade no (inexistente) “pescoço da cotia” ou no “pavilhão do atalaia” (expressão que se refere às guaritas dos sentinelas militares, cuja tarefa é caracterizada pela imobilidade) inverte totalmente o sentido da saudação, para torná-la uma glorificação da liberdade, da não submissão a relações regulares de trabalho e dependência – ou à vadiagem, como traduziria facilmente uma autoridade do período.
Ô Joana, ô Maria
Saruê pra quem trabalha
No pescoço da cotia
No pavilhão do atalaia
Finalmente, o samba se encerra com uma referência ao tempo, em tópica comum na poesia popular nordestina (“hoje, onte, antonte”): para além da musicalidade e da rítmica próprias da expressão, ela parece significar que não houve grandes mudanças na condição do autor dos versos. Hoje, como ontem ou anteontem, ele atenderia ao chamado da Sinhazinha, a cujo serviço colocaria o seu “balão” – que vem a ser um dos mais conhecidos golpes da capoeira, espécie de salto que o jogador executa girando as pernas no ar para atingir o adversário. Esse significado é ainda enfatizado pela música, pois o samba termina com a sonoridade própria das rodas de capoeira no trecho referente ao balão – “balão ê, balão á” –, que se repete entre palmas ritmadas, antes que os instrumentos interfiram para reiniciar a canção.
Era hoje, era onte, era antonte
Era antonte, era onte, era hoje
Sinhazinha mandou me chamar
Corri quatro cantos
Balão de Iaiá
Balão ê, balão á, balão ê, balão á
Debruçados longamente sobre o tema da identidade nacional e suas manifestações, os intelectuais do período iriam fatalmente voltar os olhos (e ouvidos) para essa musicalidade nem rural nem urbana, tão viva e rica na variedade de suas manifestações, que se podia ouvir no coração da capital federal. Até porque, ela invadia seus próprios espaços de convivência masculina, apresentando-se em teatros revisteiros, em salas de cinema, cafés, casas noturnas e salões de dança, principalmente através dos conjuntos instrumentais de que faziam parte a flauta de Pixinguinha, o violão de Donga, o pandeiro de João, o piano de Sinhô e outras figuras desse meio que lograram transpor os limites físicos e sociais da Cidade Nova. No final da década de 1910, os principais valores individuais já começavam a aparecer no circuito da massificação que se consolidava após o aparecimento das primeiras casas gravadoras. Com elas, um promissor mercado de trabalho se abria e inaugurava simultaneamente a disputa por espaço e legitimidade, mesmo antes de os gêneros dessa música popular estarem claramente definidos ou separados. Ruy Barbosa reclamara de sua presença indevida no palácio presidencial, mas esteve várias vezes na plateia do Cine Palais para aplaudir os Batutas, e seguramente circulou em outros espaços da cidade animados por seus compassos. Políticos como ele, Villa-Lobos e outros maestros, além de muitos jornalistas, poetas e escritores, frequentavam regularmente esses ambientes, locais de encontro obrigatório com sambistas, chorões, seresteiros e outros músicos das rodas de bamba da cidade, que se concentravam na área de Santana e adjacências (embora não fossem exclusividade dela).
96. Ruy Barbosa, s.d.
Vários elementos uniam os músicos dessa roda: além dos códigos e do jeito de cantar e tocar, a familiaridade de uma vizinhança compartilhada desde a
infância era um dado essencial para entender a sua dinâmica. João da Bahiana, um dos mais expressivos sambistas da região, tratando de construir, na velhice, o perfil de sua geração, e diante da insistência dos intelectuais em louvar e romantizar o chamado “samba de morro”, defendia a tese de que o samba teria origem na cidade – precisamente na Rua Senador Pompeu, onde ele mesmo havia nascido e crescido.²⁶
97. Rua Senador Pompeu, olhando em direção à Catedral, s.d.
Com isso, o velho sambista insistia em afirmar a diferença, se não a superioridade, de músicos como ele que mantinham, nas ruas que marginavam a favela, um modo de vida articulado em torno dos terreiros e das casas de suas filhas de santo mais conhecidas. De certo modo, à semelhança das estratégias adotadas pelas sociedades carnavalescas criadas pelos migrantes baianos naquela parte da cidade,²⁷ eles relutavam em confundir-se com os mais pobres e desprotegidos e evitavam identificar-se com a música que chamavam de samba “duro” ou de batuque, originário da favela ou de bairros mais afastados. De fato, as ruas paralelas próximas ao antigo Campo de Santana concentravam muitos sambistas daquela geração. Na primeira década do século XX, a poucas quadras do endereço da lavadeira que era a mãe de João Batista, futuro Sinhô, estava a casa onde João Guedes (futuro “da Bahiana”) nasceu e onde se fixou sua mãe Perciliana. Do mesmo modo era a rua do menino Donga, nascido de outra filha de santo conhecida na região, como as muitas tias baianas que habitavam as imediações e trabalhavam nas calçadas e praças com os tabuleiros de quitutes.
Isso não significa, evidentemente, que esse grupo mais antigo, formado por sambistas que conviveram desde a infância nas ruas da Cidade Nova, desconhecesse tensões e diferenças internas. Os cariocas Sinhô e Caninha, por exemplo, rivais entre si na busca por popularidade, apesar da grande amizade que os unira na meninice, nunca esconderam certo desagrado compartilhado em relação aos baianos que se tornaram majoritários naquele ambiente, expressando tais diferenças na forma de um mal-estar “regionalista”. Ficaram célebres os sambas produzidos por Sinhô nesse contexto, como “Quem são eles?” ou “Papagaio louro”, e as muitas respostas musicais dos participantes das rodas de samba da região, como “Já te digo”, de autoria de Pixinguinha e seu irmão China, ambos cariocas, mas frequentadores assíduos dessas rodas.
22. Sinhô, Quem são eles?, c. 1918-1921. Interprete: Bahiano.
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Além disso, as gravações originais de Sinhô pela famosa gravadora de Fred Figner – apresentadas na abertura sempre pela famosa locução: “disco da Casa Edison, Rio de Janeiro!” – passaram a conter a expressão “samba carioca”, introduzida nas chapas para diferenciar seus sambas daqueles associados à Bahia ou aos baianos de quem se tornara desafeto.²⁸
23. Sinhô, Deixa deste costume, 1919. Intérprete: Eduardo das Neves (fragmento). [ clique aqui para ouvir ]
A oposição era explícita já na década de 1910, quando Sinhô mal aparecia como o “Rei do Samba”, com suas próprias composições ou se apropriando de temas populares ou sambas dos terreiros – coisa que, de resto, logo Donga aprendeu a fazer, como evidencia o sucesso de “Pelo telefone”. A produção de Sinhô está fortemente assentada na oposição, real ou exagerada para estimular a venda dos discos, aos baianos e à Bahia enquanto local da tradição e símbolo de nacionalidade. A polêmica extrapolava as rodas para atingir, por vezes, as páginas dos jornais, como no caso da discussão em versos entre Sinhô e Bahiano (nesse caso, não era o cantor, mas seu conterrâneo de nome Cícero, parceiro de Pixinguinha), transcrita com destaque no Correio da Manhã.²⁹ A uma provocação inicial do carioca, Bahiano responde com rimas grafadas de acordo com a pronúncia do norte do país e com uma clara ameaça ao contendor:
[...]
Sinhô não se meta não
Cuidado que eles ti dão
Seu Zé Barbosa
Que andava desprezado
Pur sê antipatizado
Cum os cantidô do lugá:
Veio meter-se
Cum os mestres de canturia
Cum o fio da Bahia
Qui sabe pra lh’insiná
Tome juízo, tome gosto,
Tome jeito
Se quisé metê os peito
Tenha cuidado Sinhô
[...]
Entretanto, ao mesmo tempo em que Sinhô alcançava a notoriedade e esforçava-se para afirmar uma identidade carioca para o samba, algumas figuras de baianos tornaram-se quase reverenciais na cidade quando se aproximava a década de 1920. Hilário Jovino, por exemplo, frequentava as páginas dos jornais sempre que o assunto era samba ou carnaval, em longas entrevistas que são como um tributo ao inventor dos ranchos, carnaval aceitável para os intelectuais e jornalistas com suas “harmoniosas” tradições do folclore baiano.³⁰ Com alguma frequência, por outro lado, baianos em posição de liderança em sua comunidade deram mostras de desagrado diante de outras formas de brincar, tocar e cantar presentes na capital federal, mostrando que construíam uma identidade assentada na ideia da origem regional – baiana ou “nortista”, como se dizia no período. O próprio Hilário Jovino desdenhava dos grandes ranchos do carnaval carioca, como os famosos Ameno Resedá e Flor do Abacate, de notável esmero musical e cenográfico, aos quais sambistas como Sinhô e Caninha estiveram ligados –
e que, já na década de 1910, ofuscavam as agremiações mais antigas fundadas por baianos; ele equiparava os conjuntos cariocas aos “ternos de fábrica” de sua terra natal, e não se eximia de qualificá-los como grupos sem graça e controlados pelo patronato, inferiorizando sua performance diante do que considerava serem os “autênticos” ranchos.³¹
98. Sócios e orquestra (à esquerda), pastoras e diretoria (à direita) do grupo carnavalesco Ameno Resedá, 1911.
99. Sócios, músicos e coro do grupo carnavalesco Flor do Abacate, 1911
Na verdade, em uma entrevista ao Diário Carioca em 1931,³² pouco antes de morrer, Hilário menciona que, quando fundou o famoso rancho Rei de Ouro – marco inaugural de sua participação no carnaval carioca com uma fórmula dita baiana de desfilar –, instalou-o justamente na casa ao lado, “parede com parede”, como ele diz, de outro rancho já existente na cidade. Tratava-se do Dois de Ouro, fundado pelo carioca Leôncio Barros Lins, operário do Arsenal de Marinha, que funcionava no Beco João Inácio no 15, bairro da Saúde. Segundo ele, tratava-se de “um arremedo [de rancho], pois saíam na burrinha ele e as filhas Amancia, Aniceta, Gabriela e outras pessoas da família, mais o Manduca das Mercês”. Essa tardia comparação de Hilário constitui mais um indício da rivalidade entre grupos – os baianos contra os locais, já que a forma tradicional dos ranchos de Reis praticada por Leôncio era comum na cidade –, além de indicar o desejo explícito de marcar, com o Rei de Ouro carnavalesco, uma diferença clara de intenção e forma.
Aliás, seu amigo Vagalume, que assinou essa entrevista, encarregou-se de registrar outra manifestação dessa quizília regional, descrevendo o desfile de um grupo carnavalesco de baianos que assumiu a forma de um afoxé
paródico. Ele percorreu, no carnaval de 1906, a região do centro da cidade onde se concentravam os antigos cucumbis do carnaval carioca,³³ encenando um desfile africano em suas portas, sob o comando de um dos principais pais de santo da região. A despeito das risadas que provocou na assistência e nos integrantes do grupo, o desfile despertou a ira das lideranças muçulmanas da Rua do Hospício e adjacências, trazendo à tona que a tensão que cercava as ocasiões carnavalescas podia envolver, entre outras coisas, diferenças religiosas e regionalismos entre grupos subalternos participantes da folia.
Já nas duas primeiras décadas do século XX o tema das rivalidades entre baianos e cariocas estava presente nas canções daquela cidade que absorvia, desde as últimas décadas do século XIX, gente de muitos lugares do país e do mundo.³⁴ O debate, evidentemente, não se restringia às rodas de samba. Não necessariamente, aliás, tais canções eram produzidas por músicos pessoalmente identificados pelos rótulos regionais: em boa parte, eram escritas por maestros e outros profissionais para as peças do teatro de revista que replicavam uma visão corrente nas ruas e, ao mesmo tempo, tratavam de apimentar a construção simbólica da nacionalidade com o humor e a carnavalização do cotidiano.³⁵ Na verdade, esse repertório pode dizer mais sobre o gosto (e os preconceitos) de seus autores e consumidores que sobre a música produzida diretamente nos ambientes ou pelos sujeitos sobre os quais falavam. Mas deve-se lembrar que sua escolha para fins comerciais, como o teatro e as gravações em estúdio, é um claro indício do sucesso que essa temática produzia tanto nos palcos como nas ruas.
Para além desses sambas ou cançonetas, apareciam mais frequentemente lundus de duplo sentido, com títulos remetidos à Bahia e a seus símbolos – como “O vatapá” e “A mulata da Bahia”, que cantavam as mulheres mestiças e as iguarias culinárias com a mesma malícia sexual.
24. O Vatapá, c. 1908-1912. Intérpretes: Mário Pinheiro e Pepa Delgado.
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Alguns chegam a ser fortemente racistas ou dotados de uma ambiguidade incômoda em relação ao tema,³⁶ mas as imagens associadas à Bahia e aos baianos são as que mais aparecem nos ritmos brejeiros desses lundus e maxixes teatrais. Tome-se como exemplo a cançoneta “A baiana dos pastéis”, composta por Chiquinha Gonzaga para ser levada à cena nos palcos revisteiros da área da Praça Tiradentes. Poucos sambas (ou ao menos canções assim classificadas pelos autores ou gravadoras)³⁷ aparecem nessa fase, e apenas um – o “Samba na Penha”, composto especificamente para o desempenho da famosa atriz Pepa Delgado, que também se vestiu muitas vezes de baiana nos palcos – refere-se a uma festa caracteristicamente carioca. Além dele, localizei apenas o “Morena dengosa”, registrado por Bahiano para a Casa Edison (cujo refrão não deixa de assinalar que a tal “morena” de quem se fala é “da terra do vatapá”).
100. Pepa Delgado, s.d.
Muitas canções, evidentemente, falam do Rio de Janeiro e sua vida diária no período, mas nenhuma reivindica o samba como gênero ou vem associada a
uma ideia de “tradição” carioca. São marchas, polcas, dobrados, alguns maxixes e choros que expressam uma temática urbana nos primeiros anos do século: estão nesses casos, entre um grande número de canções análogas registradas no período, composições publicadas entre 1904 e 1910 como a seresta “Morena do Rio”, a marcha “Vacina obrigatória” ou ainda as polcas “Febre amarela” e “Avenida Passos”, que tematizam as reformas urbanas. São referências a episódios ou detalhes da vida da cidade, mas não ainda uma afirmação da identidade carioca: o Rio não aparece associado a qualquer ideia de tradição ou raiz, como é o caso da identidade baiana construída para o carnaval ou a música popular. O primeiro indício de mudança são os “sambas cariocas” de Sinhô, quando a primeira década do século XX chegava a seu final.
Nos anos 1920, a situação parecia bem diferente. O cronista Vagalume menciona, por exemplo, uma quadra de partido-alto que teria criado tradição nas rodas da Cidade Nova (e que, segundo ele, seria ainda executada no momento em que ele escrevia, no início dos anos 1930): “Ai baiana,/ o samba do Rio é bão./ Tem flauta, tem cavaquinho,/ tem pandeiro e violão”.³⁸ No Morro de São Carlos, no mesmo período, o cronista menciona ter ouvido outros versos que tratavam de estabelecer as fronteiras através de uma tipologia musical, enquanto brincavam uns com os outros improvisando versos para marcar, utilizando o modo responsivo do partido-alto baiano, a diferença entre as “tribos” de sambistas do período: “samba corrido é baiano,/ mas o chulado é carioca”. No carnaval, é claro, não era diferente.
De várias maneiras, e por diferentes caminhos, a presença simbólica da Bahia dava sinais evidentes de força, ainda que o samba à moda do Estácio começasse a aparecer como uma alternativa à sua hegemonia musical. Nas primeiras décadas do século XX, blocos masculinos de “baianas”, formados por gente de todas as partes do país, enchiam as ruas do Rio de Janeiro nos carnavais – e não apenas na Cidade Nova ou no Cais do Porto. Existiam, por exemplo, blocos de “bahianinhas” na Piedade e no Sampaio, dois pacatos subúrbios cariocas, assim como entre os estivadores da Saúde que desciam alegremente travestidos as ladeiras do bairro. Vagalume refere-se a diversos
outros blocos semelhantes, como o Baianinhas Caprichosas, o Baianinhas Faceiras sem Paixão ou o União das Baianinhas.³⁹
101. Bahianinhas do Sampaio, s.d.
102. Baianinhas da Saúde, s.d.
De resto, a baiana parece ter se tornado uma das fantasias prediletas de muitos intelectuais e jornalistas naqueles anos, compradas nas casas de legítimas filhas do Senhor do Bonfim, que as costuravam para atender a esse mercado sazonal da folia; Luiz Edmundo cita o episódio da visita de um trio de baianas devidamente paramentadas que tentava entrar em uma sociedade dançante-carnavalesca da Cidade Nova nos primeiros anos do século XX.
Tendo o acesso ao salão impedido, tiveram de finalmente se identificar como homens de imprensa: eram os jovens Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro e Luís Peixoto, carnavalescamente enfeitados com suas baianas provavelmente adquiridas nas casas das próprias – pois é sabido que uma de suas fontes de renda, inclusive de Ciata, era a fabricação dessa indumentária para suprir à demanda pelas fantasias de baiana, muito utilizadas nos palcos dos teatros de revista e no carnaval.⁴⁰
103. Raul Pederneiras, Luis Peixoto e Calixto Cordeiro posam para fotografia, s.d.
Mas as roupas de baiana podiam ser exibidas com graça e malemolência por músicos e sambistas valentes, fortemente empenhados na vida cultural da região no período – embora não fossem de fato baianos(as), como o mineiro Heitor dos Prazeres ou o carioca Pixinguinha, que aparece também paramentado em um bloco de rua no período. No berço da Portela, o próprio Paulo Benjamin de Oliveira fundou um bloco de homens travestidos – o Baianinhas de Oswaldo Cruz – para desfilar no carnaval da Praça Onze.⁴¹
104. Heitor dos Prazeres, s.d.
105. Pixinguinha entre "baianas", s.d.
Sambistas e foliões de diversas procedências e preferências ajudaram, assim, a inventar e consolidar uma tradição baiana para a festa e seus ritmos. A força e a eficácia dessa referência simbólica não podem ser atribuídas apenas ao desejo das elites ou das caricaturas do palco reproduzidas em discos de cera. Ao contrário, não se deve negar que ela foi longamente sedimentada por um grupo de baianos migrados para o Rio de Janeiro, vinculados às principais casas de santo, festeiros, carnavalescos e dados a rodas de improviso que, sem dúvida, tiveram importância cultural e exerceram uma função aglutinadora naquele pedaço da cidade, ainda que essa não tenha sido a única influência nem provavelmente o traço dominante da vida cultural da
região. Alguns dos artistas de palco mais conhecidos nos anos 1920 eram de fato baianos, como Duque e De Chocolat,⁴² mas suas performances pouco tinham a ver com tradições regionais; a propósito, convém lembrar que a mais famosa porta-estandarte do carnaval, naquele início de século dominado pelos ranchos, Maria Adamastor, era carioca “da gema”, embora fosse conhecido pela alcunha significativa de “A Baiana”, encarnando a simbologia afirmada ainda hoje em desfiles carnavalescos. Assim, não necessariamente artistas baianos foram responsáveis exclusivos pela ideia de uma tradição regional capaz de depurar as práticas festivas da capital federal. Mas vários deles empenharam-se vivamente em fixar tal imagem.
106. De Chocolat (João Candido Ferreira), s.d.
107. Rancho Reinado de Siva, com a porta-estandarte Maria Adamastor ao centro (indicada com seta), s.d.
Alguns, mais aquinhoados pela sorte, ficaram famosos no Rio de Janeiro pela forma curiosa pela qual mantinham acesa a lembrança de sua terra natal. Como exemplo, podemos lembrar o estranho comportamento do carnavalesco Lelé – na verdade, o tipógrafo da Imprensa Nacional Camilo Lellis de Aragão Conceição, homem de cor e frequentador do famoso botequim Paraíso, ponto de reunião de seus conterrâneos do samba. Lelé integrou o Rei de Ouro e participou de vários outros ranchos do carnaval
carioca no início do século XX, inclusive de um que se chamava justamente “Baiano burro nasce morto”. Na terça-feira do carnaval de 1899, ele levou seu entusiasmo regional a ponto de carregar uma grande panela de vatapá fumegante pelo centro da cidade até a redação de O Paiz, na elegante Rua do Ouvidor; lá, a iguaria foi servida aos jornalistas por uma baiana devidamente paramentada, garantindo ao mesmo tempo a cobertura da folha para seu grupo e a simpatia dos leitores pela sua terra natal.⁴³
Aparentemente, essas estratégias funcionaram, deflagrando uma reação nos nativos. No final dos anos 1910 e ao longo de toda a década de 1920, o mundo do samba já se dividia em partidos pró e contra essa associação da Bahia com o samba. Cariocas produziam críticas sonoras aos baianos, que respondiam a elas no mesmo diapasão. Disputavam-se ali, ao mesmo tempo, o espaço no mercado fonográfico ou na profissionalização musical e a legitimidade dos símbolos populares. Não deve ser fortuito, portanto, que esse movimento tenha sido simultâneo com a construção das baianas (como a dos sambistas malandros, dos “portugas” ignorantes ou gananciosos, das mulatas sensuais e assim por diante) enquanto figuras simbólicas de uma “cultura popular” no teatro de revistas e mais tarde através de outros veículos da massificação da cultura.⁴⁴ E, se estamos no terreno das suposições (em todo caso, fundamentadas), talvez não seja muito arriscado sugerir que o agravamento de uma tensão entre cariocas e baianos tenha alguma relação com a política: afinal, Ruy Barbosa se tornou, desde 1910 e nos anos seguintes, uma espécie de símbolo do fracasso baiano⁴⁵ para Sinhô, em sua contínua provocação aos sambistas que elegeu como rivais, cujo ponto alto foi o já mencionado “Papagaio Louro”:
25. Sinhô, Fala, meu Louro, 1920. Intérprete: Francisco Alves. [ clique aqui para ouvir ]
[...] A Bahia não dá mais coco
pra botar na tapioca,
pra fazer o bom mingau,
pra embrulhar o carioca...
O fato é que, por obra dos próprios sambistas e de alguns intelectuais do início do século XX, produziu-se nesse período a imagem desses “baianos” como núcleo originário de uma “cultura popular carioca”. Cabe lembrar que muitos estudiosos posteriores fizeram coro a essa imagem, consolidando uma versão heroica das origens do samba na resistência popular alicerçada em tradições e laços de identidade que uniam velhos baianos em torno dos terreiros de santo e das casas das tias festeiras.⁴⁶ Essa visão, por muito tempo entronizada, vem sendo objeto de questionamento em trabalhos recentes⁴⁷ que sugerem que a construção dessa ancestralidade seria, na verdade, tributária dos esforços paralelos da intelectualidade (do período e de gerações mais recentes), devotados à produção de símbolos da identidade nacional, e também da cultura de massas que popularizou e difundiu seus ícones e imagens, finalmente oficializados durante os anos Vargas. Dessa forma, para enfrentar a discussão, pode ser útil buscar esses e outros baianos em sua vida diária na cidade, tentando identificar em seus comportamentos e modos de vida algum indício que sustente essa diferenciação marcada em relação aos demais trabalhadores de várias procedências, com quem dividiam as ruas, os botequins, os cortiços e, eventualmente, as cadeias.
Baianos no Rio de Janeiro
SE O TOM mítico atribuído pela historiografia a esse grupo pode ter alguma relevância explicativa (e tem, já que persiste nos depoimentos dos descendentes e na versão consagrada nesse meio), é necessário ainda afinar os instrumentos para reproduzir seus significados sem atravessar na avenida. Assim, parece útil deslocar a discussão para o tempo vivido por esses indivíduos, focando as lentes no momento em que se costuma dizer que o samba estava nascendo como um gênero musical dos filhos da boa terra sediados na “Pequena África”, com seus trabalhadores migrantes, imigrantes ou nativos, que compartilhavam as dificuldades do dia a dia no Rio de Janeiro da virada do século XX. Assim, por cautela metodológica, pretendo enxergar baianos no samba, mas também fora dele, onde as fontes nos permitirem localizar conterrâneos anônimos – por exemplo, nos registros da polícia e da justiça, onde, sambistas ou não, aparecem involuntariamente flagrados em sua vida cotidiana.
Para isso será necessário enfrentar preliminarmente algumas convenções historiográficas que ganharam fôlego nas últimas décadas – particularmente a ideia de uma “diáspora” que teria ocorrido no final do século XIX. Essa imagem foi consolidada após a publicação do livro de Roberto Moura, que, apesar de suas qualidades, tratou de forma um tanto hiperbólica a presença dos baianos na capital da República.⁴⁸ A expressão, usada em geral para designar o pesado tráfico de escravos entre a África e o Ocidente, carrega nas tintas para caracterizar uma migração originária daquele estado em direção ao Rio de Janeiro. Esses migrantes teriam se concentrado nas regiões próximas ao porto, consolidando ali um território praticamente definido pela sua presença. Um artigo recente, entretanto, tratou de colocar as coisas em seus devidos lugares, recorrendo a dados relativos às migrações interprovinciais nas últimas décadas do século XIX e início do XX, bem como ao tráfico interno de escravos entre a província da Bahia e a capital, ambos insuficientes para caracterizar um deslocamento populacional volumoso.⁴⁹
Os registros da polícia de Santana, com sua atuação principalmente preventiva, atenta à “contravenção” e direcionada ao controle de pequenos atos do cotidiano, muitos dos quais constituíam formas alternativas de sobrevivência desses trabalhadores, confirmam a tendência demográfica. Ademais, podem servir como uma boa porta de entrada para vislumbrá-los em sua vida diária e, ao fazê-lo, encontrar baianos anônimos em suas redes de convivência com vizinhos e companheiros para testar a ideia, subjacente ao argumento da “origem baiana” do samba, de que estes mantivessem na capital da República alguma forma de experiência comunitária isolada e definida pela identidade regional.
Gráfico 3 – Naturalidade dos brasileiros registrados nas delegacias – 1905
Fonte: Livros de ocorrências das delegacias de Santana, Santa Rita, Gamboa e Saúde. Cecult, Banco de Ocorrências Policiais.
A primeira observação a ser destacada é que não é muito fácil cruzar com eles nas estatísticas policiais, o que constitui, por si só, um dado significativo. Em 1890, a população da cidade era constituída de 54% de cariocas natos, 24% de imigrantes e 22% de migrantes de outros estados brasileiros.⁵⁰ Essa proporção pode ter se alterado em alguma medida para a primeira década do século XX, mas o percentual de cariocas corresponde com pouca variação aos números encontrados entre os detidos na delegacia de Santana: entre os que caíram nas garras da lei no ano de 1905, por exemplo, 56,1% eram naturais da capital federal. O número de migrantes de outras partes do país era proporcionalmente bem maior que sua presença na população: 33,6% dos detidos haviam nascido em outros estados do Brasil e, entre eles, 15,4% vinham dos estados do Norte. Mas apenas 4,6% desse conjunto era constituído de baianos que buscavam refazer sua vida no Rio de Janeiro, enfrentando as agruras da falta de trabalho, da habitação cara e precária e da severa ação dos meganhas, que os mantinham sob um olhar vigilante nas ruas que cercavam o porto e se estendiam pela Cidade Nova.
Embora raros, vale a pena garimpar os baianos nas delegacias de Santana para pensar suas formas de inserção na nova cidade. Afinal, baianos sem fama, embora circulassem nos mesmos espaços, não deixaram para a posteridade outras marcas senão as de seus tropeços com a lei e a ordem. Percorrida uma amostragem significativa,⁵¹ os baianos aparecem em apenas 81 das mais de três mil ocorrências referenciadas. Do total, 73 são qualificados como infratores ou suspeitos de crime ou contravenção, sendo os demais vítimas ou, principalmente, “assistidos” no caso de doenças ou acidentes. Com uma única exceção, todos são negros e pardos e a maioria (cerca de 70%) é constituída de solteiros do sexo masculino. Apenas 28 deles sabiam ler, sendo os demais registrados como analfabetos. Mais da metade (exatamente 42) residia na região de Santana ou área portuária, sendo 30 no coração da Cidade Nova: concentravam-se principalmente no Morro da Favela e nas ruas General Caldwell, Senador Eusébio, Rua da
América, Rua de Santana, Barão de São Felix, Senador Pompeu e General Pedra. Muitos habitavam em cortiços famosos, como o “Palacete”, ou eram vizinhos de terreiros e tias festeiras do “pedaço”. Apenas cerca de 20% moravam em outras regiões da cidade.
Seus nomes podiam ser significativos: alguns, como Manoel Francisco Baiano ou Saturnino Santiago Roza Bahia, incluíam-se entre aqueles que carregavam a terra natal no próprio nome;⁵² outros, como Antonio Pierre Cavalheiro da Chave ou Ulysses Watson, o primeiro estivador e o segundo ajudante de motorista, ambos negros, eram cheios de afetação nos nomes que os destacavam dos demais.⁵³ Se é fácil achar, nos registros policiais, baianos com nomes complicados, a dificuldade está em identificar algum que, diante das autoridades, não tenha declarado uma profissão. Ao contrário do que ocorria habitualmente nas delegacias, muito raros eram os casos assinalados como “sem ocupação”: no mínimo a ocorrência assinala a condição de “trabalhador” na qualificação do preso, e quase sempre há uma profissão definida – indicando que João da Bahiana estava certo quando se referia às dificuldades da polícia para enquadrá-los por vadiagem, afirmando que era difícil processar os sambistas de seu grupo como vadios, “porque todos nós trabalhávamos”.⁵⁴
As categorias profissionais mais comuns andavam em torno do porto e dos trabalhos do mar, ocupações igualmente frequentes nas biografias de sambistas. Eram estivadores, praças da Marinha e vários ofícios marítimos, foguistas, pescadores e vendedores de peixe, catraieiros, remadores – além dos muitos “trabalhadores”, significando em geral os braçais que “puxavam carga” no porto. Essas são profissões comuns não apenas entre baianos, mas entre nortistas em geral. Mas havia também, em menor escala, pedreiros, barbeiros, carroceiros, vários praças de polícia, cocheiros, padeiros. Entre as mulheres, ao contrário, o rol não varia muito: são cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras, domésticas e algumas meretrizes (declaração aparentemente pouco comum entre as mulheres de Santana).
Comparando os episódios de Santana e região portuária com os de áreas vizinhas como São José e Sacramento, o quadro se torna ainda mais claro: há uma diminuição imensa de ocorrências envolvendo baianos para São José, onde aparece apenas um deles preso por “desordem” e bebedeira num conjunto de mais de cem ocorrências; para Sacramento, região boêmia dos teatros, cafés e da prostituição, em um conjunto de mais de 300 ocorrências aparecem apenas dez baianos, dos quais quatro moravam do outro lado da Praça da República, em Santana: três prostitutas, um policial, um barbeiro (que aparece como vítima de estelionato), um peixeiro bêbado da Cidade Nova, um foguista (trabalhador do porto) e seu vizinho de bairro de nome Ludgero, outro morador da Cidade Nova que se declara “trabalhador” e finalmente o único baiano branco de todas as ocorrências, envolvido em uma briga “por causa de mulher”. Nada diferencia essas ocorrências do padrão: como seus vizinhos, eles caíam nas malhas da polícia por comportamentos corriqueiros e habituais entre os de sua condição social. A notar, entretanto, o fato de que dificilmente aparecem nos registros das delegacias da região baianos capturados por atos propriamente criminais.
Em Santana, por outro lado, muitos dos episódios policiais em que se envolveram apontam para uma intensa convivência de amigos ou companheiros de diferentes origens – ao contrário do que ocorria com estrangeiros, mais fechados entre si. Entre estes últimos, era comum encontrar italianos, espanhóis e mesmo portugueses unidos em luta contra indivíduos “de fora” ou uns contra os outros, em conflitos internos ao grupo. No caso dos baianos, não foi possível identificar, na amostragem disponível, uma única ocorrência desse tipo. Se entre mulheres, sobretudo as de “vida airada”, a convivência entre gente de vários países e lugares era frequente, ocasionando prisões de grupos compostos por mineiras, baianas, gaúchas, portuguesas e muitas cariocas, em grupos ruidosos pelas ruas,⁵⁵ entre homens os episódios coletivos são mais raros – exceto quando participavam de “farras” noturnas em companhia dessa variada composição feminina, como foi o caso de quatro amigos de bebedeira, um baiano,⁵⁶ um português, um mineiro e “uma mulher de Minas Gerais”, aparentemente prostituta, apanhados enquanto se divertiam juntos pelas ruas.
As duplas masculinas são mais comuns, em todo caso: o soldado José Pereira da Silva, por exemplo, foi preso junto com seu amigo baiano, de nome Juvêncio Coelho da Silva, quando caíram ambos de bêbados na calçada da movimentada Rua da América.⁵⁷ Na mesma rua, no no 77, havia uma estalagem na qual a baiana Aguida do Espírito Santo envolveu-se em luta corporal com o italiano José Cesare – e parece que, com o apoio de seus vizinhos, o italiano acabou apanhando...⁵⁸ Casos opostos são igualmente fáceis de encontrar – como o namoro de uma lavadeira nascida em Salvador com um cigarreiro português, animado a ponto de irem os dois parar na delegacia por atentado ao pudor.⁵⁹ Na Rua Senador Eusébio no 9, bem perto dali, muitos amigos se divertiam em casa (um cortiço), bebendo e fazendo algazarra que, ao que tudo indica, incomodou o gerente ou outros moradores do estabelecimento. Foram todos parar na delegacia por desordem e bebedeira.⁶⁰ Um baiano aparece entre eles, em companhia de três pernambucanos, um português, catorze cariocas ou nascidos no estado do Rio, cinco mineiros, dois italianos, dois paulistas, um alagoano e um paraibano que passaram a noite irmanados no xadrez – provavelmente ajudando a curar a carraspana uns dos outros e maldizendo os vizinhos abstêmios.⁶¹ Da mesma forma, dois baianos, um paraibano e um mineiro foram presos quando, juntos, tratavam de fazer uma “fezinha” para ver se a vida melhorava.⁶² Dois bêbados foram surpreendidos dormindo no corredor de um cortiço da Rua General Caldwell no 57 – do qual não eram moradores: eram um baiano e um fluminense, que, como bons companheiros, se infiltraram por ali, na saída do botequim, possivelmente com as pernas trôpegas, para não dormir ao relento.⁶³ Enfim, os exemplos são muitos e variados – e todos sugerem que, nos cortiços, botequins e em outros lugares de moradia, encontro e sociabilidade, assim como pelas ruas da cidade, os migrantes da Bahia não constituíam um grupo à parte ou uma “cultura” enquistada no Rio de Janeiro.
Ao contrário, as fontes sugerem que eles – como era mais comum em uma cidade em que levas de migrantes e imigrantes chegavam todos os dias – viviam perfeitamente integrados na capital federal, compartilhando os espaços de trabalho, moradia e lazer. Eram presos pelos mesmos motivos que levavam cariocas, mineiros, paulistas, italianos e portugueses ao xadrez:
excesso de bebida, brigas de rua e de vizinhança, luta entre rivais no amor de uma mulher que podia tanto ser conterrânea como carioca, turca ou lusitana. Seu comportamento não parece diferenciado nessas ocasiões, nem seus padrões culturais parecem afastá-los dos seus vizinhos e companheiros de trabalho. Se há algo de peculiar a ser notado, é que eles efetivamente parecem se concentrar na região do porto e na Cidade Nova, costumavam evitar a caracterização de vadios ou vagabundos declarando (e exercendo) uma profissão regular e, aparentemente, preferiam trabalhar perto do mar. Mas não há nada aí que seja capaz de sustentar a ideia de uma comunidade baiana destacada dos demais habitantes daquela parte da cidade. Talvez seja o caso, então, de examinar justamente a sua baixa frequência nos conflitos que conduziam levas de homens e mulheres às delegacias da região.
Se as estatísticas populacionais (e policiais) sugerem pouco peso absoluto dos baianos na cidade ou na região, como nas cadeias, é prematuro encerrar aí a análise: outras evidências indicam um peso cultural maior que essa expressão quantitativa – e permitem problematizar os termos em que a questão foi tradicionalmente colocada. Ainda que os baianos tenham sido uma pequena minoria entre os indivíduos presos ou de alguma forma envolvidos em ocorrências policiais, entre os apelidos que pudemos encontrar no instrumento de pesquisa relativo aos processos da 8a Pretoria (Santana), na sala de pesquisa do Arquivo Nacional, os mais numerosos incluem referências a lugares da cidade (como “Bexiga do Estácio”, alcunha de um preso de nome Silvio de Castro, e “Gamboa”, batizado pelos pais como Benedito Luís) ou a supostas origens regionais. Entre estes, os mais comuns eram precisamente “Baiano” e “Baianinho”, evidenciando que muitos deles transitavam pelas ruas e frequentavam as delegacias, ainda que vários pudessem ter nascido em outros locais ou ser descendentes dos filhos da “Boa Terra”.⁶⁴ Frequentavam também as páginas policiais dos jornais diários: “Há dias andava a polícia à procura do desordeiro Francisco da Rocha, vulgo Chic da Bahiana. Ontem às oito horas da noite, alguns o encontraram fantasiado de Rei no Largo do Rocio, e o prenderam, conduzindo-o para a Central de Polícia”.⁶⁵
Transitavam, além disso, em circuitos mais valorizados, como o das gravadoras, que ganhavam crescente influência desde que Fred Figner abrira a Casa Edison em 1902, na qual expoentes das rodas de samba puderam experimentar uma rápida (ainda que discreta) ascensão financeira e algum reconhecimento social: “Baiano” era, como vimos, a alcunha de dois artistas que aparecem em gravações no mesmo período.⁶⁶ Vários outros levavam apelidos indicadores de origem que nem sempre correspondiam a essa primeira impressão: entre outros, Neca da Bahiana foi um sambista conhecido no período, cujo nome era Manuel Laurindo da Conceição – nascido em Valença, estado do Rio de Janeiro, por volta de 1899. Outro a ser mencionado é Chico da Bahiana, cujo nome era Francisco A. da Rocha (provavelmente o mesmo, grafado na notícia como “Chic”, que a polícia procurava ansiosamente em 1902 e que acabou preso, fantasiado de Rei, no Largo do Rocio). Tratava-se de um exímio tocador de cavaquinho, integrante do trio que gravou com Casimiro Rocha, pistonista da célebre Banda do Corpo de Bombeiros (fundada por Anacleto de Medeiros com os melhores músicos da cidade), na versão instrumental de “Rato, rato”, choro de grande sucesso na primeira década do século XX – o que confirma que as fronteiras entre sambistas ou músicos e “desordeiros” eram pouco nítidas no período. Como vários expoentes musicais de sua geração, Chico era filho de uma das famosas “tias” da região, de nome Veridiana,⁶⁷ e sua identificação com a “baiana” servia para diferenciá-lo de tantos outros Chico (ou João, ou Neca) das redondezas.
108. Anacleto de Medeiros, s.d.
Assim, se a presença numérica dos baianos na capital do país não justifica a ideia de uma “diáspora” capaz de explicar a força da imagem africana colada a Cidade Nova e adjacências, é preciso não relegar a segundo plano sua importância simbólica. Práticas culturais determinadas a partir desse núcleo e a presença constante da Bahia, associada muito cedo às chamadas tradições nacionais, foram mais importantes, sem dúvida, que a dimensão demográfica da questão. Seja como for, baianos que se tornaram influentes, mencionados de modo quase reverente tanto pela historiografia como pelos memorialistas do período, vieram quase juntos para o Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o XX, e circulavam nas ruas e hospedarias daquela parte da cidade: Hilário Jovino, Ciata, mãe Aninha de Xangô, Felisberto Sowzer – o Benzinho –, João Alabá, Perciliana, Amélia, Mestre Germano, Marinho-queToca e muitos outros personagens que desembarcaram no cais da Saúde estabeleceram-se nas ruas e nos morros das proximidades e se tornaram
amigos na nova cidade, quando não o eram antes mesmo de chegar. Na capital do país, encontraram conterrâneos e estabeleceram laços com novos conhecidos e vizinhos sobre os quais exerceram uma influência nitidamente agregadora.⁶⁸ É necessário, então, entender como e por que sua presença foi tão marcante naquele pedaço da capital federal.
Certamente não é mera coincidência o fato de que todos esses personagens fossem fortemente ligados às casas de candomblé que, oriundas de terreiros da Bahia, se concentravam na região do porto e Cidade Nova. Alguns foram pais e mães de santo, outros ocuparam cargos altos na hierarquia dos terreiros onde uma clara filiação religiosa os unia. Suas trajetórias pessoais evidenciam um movimento de expansão das lideranças do “povo de santo” de Salvador em direção à capital do país e outros estados, sobretudo Pernambuco, entre as décadas de 1880 e 1890 (que incluía uma circulação constante entre esses estados e Lagos, na Nigéria, ou Benin),⁶⁹ capaz de gerar uma forte influência religiosa na região da cidade habitada no início do século XX pelos trabalhadores mais pobres. Não que os babalorixás baianos reinassem absolutos no Rio de Janeiro – ou mesmo na Cidade Nova e no porto. As referências a candomblés na cidade são variadas, incluindo para o início do século XX nomes menos glorificados pela crônica e pela historiografia, como o de tio Sanin, no Morro do Pinto, Domotinha de Oiá e Natalina de Oxum, no bairro da Saúde, ou a casa de Guaiaku Rosena, africana de Allada que aportou diretamente no Rio, muito influente, segundo todas as referências disponíveis.⁷⁰ Sobre esta última, vale mencionar depoimento de sua neta de santo e sucessora, afirmando que esse importante terreiro não mantinha qualquer relação com as casas de candomblé da Bahia, sendo “Jeje do Rio de Janeiro mesmo”.⁷¹ Cronistas de época mencionam outros exemplos – como o pai de santo conhecido como João Gamba, que mantinha seu terreiro no Morro do Castelo, antes da demolição. Para Luiz Edmundo, tratava-se de uma
[...] casa de pretos [...] onde se pratica a liturgia gege-nagô, culto fetichista, cerimônia cheia de complicações e de mistérios [...] templozinho que se
resume a dois aposentos dando para uma área suja onde, em balaios de vime, arrulam pombos, cacarejam galinhas, cruzam jabotis e um truculento bode.⁷²
A cidade, como vimos, estava coalhada de espaços religiosos de “feiticeiros” negros, que se espalhavam entre o centro e os subúrbios, alguns bastante antigos. Grupos de presença marcante nas redondezas estavam estabelecidos na área central mais empobrecida havia algum tempo. Indivíduos de fama reconhecida, como Juca Rosa, por exemplo, marcaram, no século XIX, presença naquelas ruas nas quais homens e mulheres ainda se referiam respeitosamente aos poderosos alufás da religião muçulmana.⁷³ João do Rio menciona diferentes lideranças muçulmanas ativas na cidade no período.⁷⁴ Particularmente influente entre elas parece ter sido Assumano Mina do Brasil, estabelecido na Praça Onze – o coração do carnaval carioca no início do século XX –, a quem Sinhô visitava em busca de proteção cada vez que ia lançar um novo samba. Referindo-se a ele, Carmen do Xibuca – uma das mais longevas tias baianas da região, que tinha como particularidade o fato de ter migrado do culto muçulmano para o dos orixás, tornando-se filha de santo no principal terreiro da região (além de constituir, anos depois, personagem central de Irmandade Católica na Igreja de Santana) – estabelece a existência de diferenças entre os próprios alufás:⁷⁵ “Ele era um homem de bem. Não bebia, e nunca soube que usasse um culto para trabalhos maléficos. Mas existiam outros capazes disso. Havia o Abu, do Santo Cristo, que, dizia-se, tratava desta parte”.⁷⁶
109. Tia Carmem do Xibuca, s.d.
Há na crônica e na própria bibliografia, por força de um olhar predominantemente branco e intelectualizado, uma flagrante confusão entre as diferentes vertentes do candomblé, do omolokô ou umbanda, e entre as religiões de orixás e os muçulmanos. Isso dificulta a compreensão dos mecanismos de construção de identidades e de alguns dos traços que diferenciavam e uniam os trabalhadores – particularmente, mas não exclusivamente, os negros – e, em grande medida, presidiam a dinâmica de seus grupos: era também em torno de filiações religiosas que algumas oposições primárias (as quais podiam se exprimir também no carnaval ou nos sindicatos, nos salões de dança ou nas disputas esportivas) se estabeleciam entre eles. Tais diferenças, entretanto, nem sempre foram
insuperáveis e estavam mescladas, na vida cotidiana, por outros fatores. Para confirmá-lo, podemos citar outro exemplo de convivência surpreendentemente harmoniosa: além da trajetória de tia Carmem – entre muçulmana, filha de santo e católica –, pode-se mencionar o caso do próprio Assumano Mina do Brasil, o mais importante alufá da região. Ele era casado com a baiana tia Gracinda, famosa por sua beleza. Além de manter um bar denominado Gruta Baiana na Praça da República, onde vendia os pratos condimentados da sua terra para um público variado, Gracinda era filha de santo em um dos terreiros do candomblé ketu das redondezas.⁷⁷ A despeito da aparente fluidez dessas fronteiras, a influência dos candomblés baianos na cidade (e particularmente na região portuária e central) é solidamente estabelecida pelas fontes. Vale a pena, assim, percorrer rapidamente as principais casas de santo daquela região comandadas por baianos no início do século XX e examinar suas práticas e formas de enraizamento na cidade, ainda que as referências sejam raras, algumas vezes de confirmação impossível, eventualmente incongruentes entre si e quase sempre remetidas a uma tradição oral restrita aos praticantes, para não mencionar o registro preconceituoso e parcial dos cronistas.
Nas imediações da Pedra do Sal – não sabemos a localização exata –, podiase encontrar um dos mais antigos terreiros do Rio de Janeiro, fundado no apagar das luzes do século XIX. Mãe Aninha, filha de Xangô, cujo nome completo era Maria Eugênia Ana dos Santos, iniciada por Bamboxê Obitikô em Salvador, chegou à cidade vinda da Bahia provavelmente no início dos anos 1890. Ela permaneceu no Rio de Janeiro comandando sua casa até o final da primeira década do século XX, quando retornou a Salvador e comprou a “roça” onde viria a instalar, por volta de 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá. Com sua volta, Aninha de Xangô tornou-se uma das ialorixás mais influentes da Bahia. Nessa condição, retornou ao Rio de Janeiro em meados dos anos 1920. Nessa ocasião, o terreiro que ela fundara ainda funcionava, no bairro vizinho de Santo Cristo, sob o comando de uma de suas filhas de santo a quem encarregou de sucedê-la.⁷⁸
110. Mãe Aninha de Xangô, s.d.
Aninha deu origem a uma das linhagens decisivas da história do candomblé no Rio de Janeiro, pois coube a ela iniciar o pai de santo mais influente da região nas primeiras três décadas do século XX: João Alabá, além de figuras centrais na hierarquia dos terreiros da região, como a própria Ciata e outras “tias” conhecidas nas redondezas.
Bamboxê, sempre mencionado pela crônica, comandava outro terreiro importante das imediações. Sobre ele, pairou por muito tempo alguma confusão recentemente desfeita por uma cuidadosa pesquisa de Lisa Castillo, que ajudou a deslindar o novelo da crônica carioca (a qual oscila entre confundir diferentes “bamboxês”, afirmar que ele fez uma breve passagem pela cidade no século XIX e voltou para a África, ou que manteve um importante terreiro na Saúde).⁷⁹ Nesse caso, o foco da investigação ateve-se à Bahia, contrapondo de modo instigante a documentação dos arquivos com a memória interna do candomblé para estabelecer linhagens e relações entre grupos, personagens e eventos. Suas descobertas em muitos pontos se contrapõem, mas em outros injetam historicidade à tradição religiosa.
Por outro lado, o depoimento de Lili Jumbeba, a neta mais velha de Ciata, resume a versão tradicional do candomblé carioca em torno desse e de outros personagens.⁸⁰ Segundo ela, Quimbamboxê ou Bamboxê Obitikô, responsável pela iniciação de sua avó ainda na Bahia, foi um africano que chegou a Salvador em meados do século XIX em um navio negreiro, juntamente com a avó da famosa babalorixá Senhora. Lá, depois de alforriado por sua irmã de nação – a yalorixá Marcelina –, se tornou ele mesmo um influente babalaô, cujo nome católico – Rodolfo – teria sido adquirido após a manumissão. O nome africano, Bamboxê, seria a transcrição brasileira do nome próprio ioruba “Bangbose”, que significa aquele que carrega o machado duplo de Xangô. Lili Jumbeba ainda menciona que, naquele estado, teria havido mais de um “tio” com esse nome africano. Na perspectiva dos historiadores, Lisa Castillo confirma o relato em suas linhas gerais a partir de documentação de arquivo, adicionando dados que ajudam a estabelecer uma versão consistente. O primeiro Bamboxê, africano escravizado, foi um dos fundadores do terreiro da Casa Branca. Seu senhor, um português de nome Manoel Martins de Andrade, rebatizou-o como Rodolfo Manoel Martins de Andrade (o escravo tomando o nome do senhor, como habitual). Em 1872, pediu, pela primeira vez, passaporte para viajar a Pernambuco, estado para onde se deslocou seguidamente, assim como para o Rio de Janeiro e Lagos, na África. Tais deslocamentos objetivavam a formação de comunidades religiosas – o que
ela chamou com muita propriedade “rede sociorreligiosa” – entre Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro.⁸¹
111. Bamboxê Obitikô, s.d.
Assim, Rodolfo provavelmente esteve no Rio com mãe Aninha na formação do primeiro terreiro com vínculos com a Bahia, ainda no século XIX, como afirma a tradição religiosa. Quinze anos depois, entretanto, João do Rio refere-se diretamente a um descendente de “Bamboxê” – a quem trata familiarmente como “Benzinho” –, descrito como um pai de santo atuante na
Cidade Nova no momento em que ele escrevia, entre 1904 e 1905. Segundo os registros documentais obtidos por Lisa Castillo nos arquivos da Bahia, tratava-se de um filho de Rodolfo: Felisberto Sowzer, que deixou muitos descendentes, alguns ainda ativos nos círculos de candomblé local. Não se sabe muito sobre esse personagem, mas o hábito de deslocar-se constantemente parece familiar: sua filha Irene relata que seus pais e seu avô “atravessaram o mar muitas vezes”. Felisberto deslocava-se também para o Rio. Na final da primeira década do século XX, ele estava radicado em Salvador, onde sua filha mais velha (Tertuliana) nasceu, em 1909. Isso, entretanto, não impede que sua importância na capital federal seja mencionada pelos memorialistas do candomblé no Rio de Janeiro. Sabe-se apenas que, em 1904, seu terreiro funcionava na Rua Visconde de Sapucaí, a crer no registro de João do Rio, a apenas meia dúzia de quarteirões de distância, contornando a estrada de ferro, de outro terreiro fundamental à dinâmica da região, o de João Alabá. Morto em 1930, Benzinho não teria deixado sucessores e o terreiro parece ter desaparecido, ao menos com aquele endereço.⁸²
112. Felisberto Sowzer, o Benzinho, s.d.
O registro de João do Rio – menos fantasioso, assim, do que se costuma supor – aponta uma linhagem religiosa que remontaria à ascendência africana do personagem. Enfatiza ainda, o que é mais importante para nossos propósitos, uma vinculação ativa – comum aos líderes do candomblé na capital federal – com os festejos carnavalescos: sabemos que vários deles, como Alabá, Hilário, Ciata, integravam – quando não lideravam – blocos, ranchos e afoxés que congregavam afiliados de seus terreiros, além de amigos e vizinhos: era o caso do Rei de Ouro, do Rosa de Ouro, do Macaco é Outro, do Afoxé que zombava dos muçulmanos e dos velhos cucumbis da cidade, mencionado por Vagalume. Talvez, a julgar pelas datas, seja o mesmo grupo que entusiasmava Benzinho. Com a palavra, João do Rio:
Eu conheço um feiticeiro chamado Benzinho. É um feiticeiro terrível. Seu avô, o ilustre Bamboxê, já era celebrado entre os africanos como o prodígio dos idamis. Filho dessa dinastia tão bem relacionada com as potências ocultas, Benzinho embaça a humanidade com admirável descaro. É, entretanto, um ser original [...]. Domingo último, o carnaval barulhava na rua, estridulamente alegre, quando o preto me apareceu suado e nervoso:
– Venho ver se V. Sa. arranja uma licença.
– Para quê, homem de Xangô?
– Para o Afoché [...]. Afoché é o carnaval africano, é a crítica de todos os santos e de todos os pais de santo [...] Afoché é o dia em que se debocha da religião. [...]. Quando sai um afoché rufando os tambores sagrados, a gente pode nas cantigas debochar a outros feiticeiros, o feitiço e os santos. Não acontece nada. V. Sa. pode ter a certeza [...].⁸³
No relato do cronista, a data é precisa e podemos tomá-la como referência para estabelecer quais terreiros dessa linhagem funcionavam simultaneamente para avaliar sua influência naquela região da cidade. Nesse mesmo ano de 1905, além do terreiro de Benzinho e do de mãe Aninha, outro não menos importante era comandado pelo igualmente poderoso pai de santo Cipriano Abedé. Funcionava na Rua do Propósito, bem perto do mar – a duas quadras do Saco da Gamboa, no coração da zona portuária. Provavelmente devido às obras de reforma do porto, iniciadas em 1904, transferiu-se na segunda metade da década para a casa no 69 da Rua João Caetano, na Cidade Nova, já nas proximidades do Morro do Pinto, onde permaneceu até 1933 – ano em que o pai de santo faleceu, com cerca de cem anos de idade. Sua casa destacava-se, segundo os cronistas, pela frequência numerosa e constante de homens e mulheres brancos e abonados, inclusive
personalidades das elites sociais e políticas, em busca de proteção e solução para seus problemas – cujo pagamento pelos serviços prestados certamente ajudou a viabilizar os planos de melhorar instalações e multiplicar sua influência.⁸⁴
Para escapar do estigma e da vigilância policial, Abedé provavelmente se valeu de boas relações com a política local para obter registro de seu terreiro como sociedade civil, tendo os estatutos aprovados pela polícia, com funcionamento garantido pela lei, utilizando o mecanismo amplamente adotado por sociedades carnavalescas proscritas em décadas de maior severidade policial.⁸⁵ Seu prestígio entre os devotos da religião, entretanto, decorria de uma dupla e rara condição de babalorixá e conhecedor de Ossain – na concepção religiosa, aquele que domina as propriedades e os usos das folhas e ervas, qualidade pouco comum entre os iniciados e praticantes.⁸⁶ Esse domínio amplo (e provavelmente a proteção obtida pelos registros e autorizações oficiais) trouxe a esse pai de santo, segundo o depoimento de contemporâneos, uma grande respeitabilidade entre diferentes segmentos sociais, fazendo com que sua influência alcançasse bairros mais distantes a ponto de propiciar a formação de novas casas de santo nos subúrbios da cidade.
Finalmente havia o poderoso João Alabá, filho de Omulu, comandando o terreiro que, além de ser o mais importante da região no início do século XX, figurava entre os mais antigos da capital federal. Segundo alguns relatos, a casa de Alabá daria continuidade à linhagem inaugurada por Bamboxê na Bahia e ele costumaria visitar regularmente o Ilê Opo Afonjá em Salvador. Todos os relatos indicam a centralidade desse pai de santo na região, nas primeiras décadas do século XX. Esse parece ter sido o terreiro mais procurado, ao menos nas lembranças de Carmen do Xibuca: “lembro que vovó sempre contava que a casa de João Alabá, seu pai de santo, era forte e vivia cheia de gente [...]; como ela dizia, ‘a baianada toda se acoitava lá’”⁸⁷.
Alabá estabeleceu seu terreiro e permaneceu até o final da década de 1920 na Rua Barão de São Felix, quase esquina com a General Caldwell – ponto estratégico, vale lembrar, por ser o caminho obrigatório de ligação entre o porto e a estação da Central do Brasil ou a Cidade Nova, onde se concentravam os cortiços e outras formas de habitação popular ocupadas pelos trabalhadores das redondezas. Através dele, trabalhadores e crentes de outras matrizes sociais buscavam cura para as doenças, em uma circunstância em que a medicina era, além de inacessível, pouco confiável: Omulu dotava-o de poderes extraordinários nesse campo, e sua fama de curandeiro parecia sólida na região a ponto de atrair a curiosidade da imprensa. Mas nem sempre parece ter contado com o beneplácito das autoridades: procurado em sua casa por repórter do jornal A Noite que, atraído por sua popularidade, buscava uma entrevista ou uma demonstração de cura, ele assume uma postura claramente defensiva, segundo o relato do jornal.
[...] É um africano retinto, colossal e obeso. [...] Ele nos olhava de alto a baixo com uma expressão de desconfiança.
– O senhô que qué? disse no seu sotaque africano. [...] Eu não cura ninguém, eu não é feiticeiro, quem disse que eu curava?
– Uma pessoa...
– Pois é mentira. Eu é vendedô de herva da África. Essa gente diz que eu é curadô pr’eu sê preso. O senhor é da polícia?⁸⁸
Alabá permaneceu à frente de sua casa até 1926, quando faleceu sem deixar sucessores, e, apesar de sua indiscutível importância para a vida da região, as
instalações da casa de santo (vide a fachada tipo porta e janela) parecem humildes e acanhadas.⁸⁹
113. Casa de João Alabá, 1914.
A crônica carioca em geral adota um tom entre desdenhoso e horrorizado nas descrições dessas casas, enfatizando os espaços exíguos e sujos, nos quais meia dúzia de pessoas coabitavam com o pai de santo em comunidade; menciona por vezes o quintal com muitos animais destinados ao sacrifício ou ao comércio puro e simples como forma de renda. Todos os espaços
seriam de uso religioso, desde a sala – com rótulas para garantir a privacidade –, até a camarinha onde trabalhavam os pais de santo. Ainda assim, a fama de “curadô” desse filho de Omulu é atestada por muitos cronistas, que destacam os elos do líder religioso com o mundo do samba no Rio de Janeiro, além da variedade da frequência à sua casa e da verdadeira animação que cercava os rituais ali desenvolvidos. Um bom exemplo pode ser encontrado em Jota Efegê, em uma reconstrução literomemorialística da vida noturna carioca, cujo personagem central é nomeado como “Cabrocha” – descrição devidamente avalizada por Vagalume, autor do Prefácio e frequentador da casa de santo:
[...] Ele costumava ir á casa do João Alabá!...
E era verdade, eu fôra algumas vezes assistir as funções do “candomblé” de João Alabá, na rua Barão de São Felix. Vi também na casa do popular “pae de santo” o “Vagalume”, o Oscar, e uma bahiana conhecida por D. Rosa, que se dizia prima do grande mestre.
Gostava muito daquelles ritos que alli tinham uma apresentação cuidada e faustosa, e creio mesmo que nenhum outro “candomblé” o iguale. A sua assistência era numerosa e por vezes selecta. Muitos automóveis de placa dourada estacionavam nas proximidades aguardando os seus proprietários, que participavam dos trabalhos.
Vi muitas melindrosas dos nossos trottoirs alli entrarem, metamorphoseando-se em trajes de bahiana, ao som cadenciado dos tabaques, entoarem, sambando, os diversos “pontos” dos “santos” que baixavam [...] Quem as visse entoando com tanta unidade aquelles cânticos da religião africana não seria capaz de acreditar que ellas mesmas
estivessem, no dia seguinte no Guanabara ou no Orfeão, sendo disputadas para um tango [...].⁹⁰
Com ou sem a presença das prostitutas, cuja frequência bem pode ter sido exagerada pelo cronista, foi nessa pequena casa da Rua Barão de São Felix que Alabá iniciou várias filhas de santo de grande prestígio na vizinhança, como Deolinda (que era a mãe-pequena do terreiro), Carmen do Xibuca, Amélia do Aragão (mãe de Donga), Bebiana, Perciliana (mãe de João da Bahiana), Tereza, Calu Boneca, Mônica e tantas outras baianas que jornalistas e memorialistas mencionam quando descrevem as ruas do Rio de Janeiro. Lideranças masculinas dessa espécie de comunidade baiana existente na região, que mantinham fortes vínculos com o carnaval e as rodas de samba, tinham uma ligação estreita com o pai de santo: Hilário Jovino, por exemplo, era ogã nesse terreiro, assim como Mestre Germano, Marinho-que-Toca e vários outros frequentadores do Café Paraíso. Como os demais terreiros da região, esse também era um espaço que, além de congregar toda a gente de santo, seguramente mobilizava a vizinhança com sua animação nas ocasiões festivas sempre mencionadas pela crônica.
Os sambas de João Alabá também tiveram fama e deixaram nome na História.
Em geral a eles compareciam seus “filhos de santo”, os habitués do seu “terreiro”.
Às vezes enfiava a semana inteira; era, para bem dizer, o oitavário de um grande “candomblé” de iniciação de um “filho”, de uma obrigação de alguém que tinha que dar comida à cabeça ou oferecer um amalá a seu santo ou mesmo o pagamento de uma multa. Vinha gente de longe, dos subúrbios, dos arrabaldes [...].⁹¹
Sendo de Omulu, o orixá que rege as doenças e especialmente a varíola, João Alabá estava à frente do terreiro em 1904, quando a tensão entre os trabalhadores da região e a polícia andava à flor da pele, sendo na ocasião talvez a maior liderança religiosa entre os negros do Rio de Janeiro. Certamente isso constitui mais que uma coincidência, tendo em vista a importância da dimensão religiosa para explicar a forte reação da população – especialmente a desse trecho da cidade – à imposição profilática do governo federal contra as sucessivas epidemias que assolavam a capital federal.⁹² João do Rio, em sua descrição colorida desses espaços religiosos dos migrantes baianos no Rio de Janeiro logo após os acontecimentos que ficaram conhecidos como Revolta da Vacina, menciona – não sem uma nota de ironia inerente aos preconceitos letrados que atribuíam à simples ignorância popular o poder desses “feiticeiros” – o que considerava a principal fonte da influência de Alabá para a população local.
Fico sabendo, sem pasmo, sentado numa cadeira, que giba de camelo com corpo de macaco e um cabrito preto em ervas matam a gente e que essa descoberta é do celebrado João Alabá, negro rico e sabichão da rua Barão de S. Felix, 76.
Para matar, ainda há outros processos. [...] João Alabá conseguirá matar a cidade com um porco, um carneiro, um bode, um galo preto, um jaboti e a roupa das criaturas, auxiliado apenas por dois negros nus com o tessubá, rosário, na mão, à hora da meia-noite; pipocas, braço de menino, pimentamalagueta e pé-de-anjo arrancados ao cemitério matam em três dias; [...]⁹³
Nas reminiscências dos frequentadores da casa, entretanto, o tom é evidentemente outro, com notas altamente respeitosas e eivadas de afetividade nas quais o poder do curandeiro é reiterado sem qualquer possibilidade de dúvida. Tia Carmen do Xibuca, por exemplo, lembrava-se
perfeitamente das visitas que fizera a Alabá ainda na infância, em busca de alívio:
João Alabá morava na rua Barão de São Felix. Em sua casa havia uma cadeira de espaldar. Certa vez sobre ela sentei levada por meu pai, Aniceto de Menezes e Silva. Estava com uma dor de cabeça renitente e João Alabá escreveu uns rabiscos na minha testa sete vezes, da direita para a esquerda, e após a última vez acabara a dor de cabeça.⁹⁴
Deve-se observar, por outro lado, que a força de Alabá e dos demais babalorixás concentrados na Cidade Nova não vinha apenas das esperanças e dos medos de seus devotos em relação à saúde ou outras necessidades dessa ordem. Como é possível notar pela simplicidade do imóvel que abrigava esse poderoso terreiro, as casas de candomblé no Rio de Janeiro, do final do século XIX e início do XX, foram inicialmente implantadas em imóveis pequenos e inadequados às suas novas funções, quase sempre alugados de proprietários brancos que controlavam a área central da cidade. Tal característica era compartilhada com situações análogas em outras cidades: segundo Nicolau Parés, quase metade dos candomblés de Salvador, no período 1863-1871, estava situada no centro da cidade, constituindo congregações de caráter doméstico que funcionavam em torno de indivíduos, instaladas em casas ou lojas, sem espaço de mato – razão pela qual, nas “roças”, os candomblés baianos adquiriram mais complexidade organizacional.⁹⁵ A nomenclatura “casa”, “terreiro” e “roça” para referir-se a espaços de culto indica essas diferenças de estrutura física dos candomblés, sugerindo usos diferentes dos lugares disponíveis – mas com sentidos análogos.⁹⁶ Em outras palavras, a dimensão simbólica desses espaços permitia aos praticantes uma constante reelaboração de elementos da tradição religiosa, adaptando-se às possibilidades, às circunstâncias e aos limites físicos: “o terreiro definia-se assim não por sua territorialidade física, mas enquanto centro de atividades litúrgicas e polo irradiador de força”.⁹⁷ Isso não significa que, instalados em imóveis apertados, os candomblés não almejassem um espaço adequado ao desenvolvimento pleno de rituais e de reafirmação de tradições.
Assim, a tendência posterior foi sua paulatina transferência para os subúrbios ou municípios vizinhos, nos quais era viável, a preços módicos, instalar as roças com os assentamentos de santo devidamente separados – além das demais acomodações, como pediam os preceitos e os rituais da tradição ketu ou jeje-nagô dos candomblés. A instalação de “roças” seguiu, ademais, o fluxo de deslocamento forçado dos pobres do centro em direção aos subúrbios.⁹⁸ Isso significou, durante algum tempo, que os homens e mulheres afiliados aos terreiros, que já enfrentavam dificuldades para manter as próprias famílias, precisaram sustentar essas primeiras casas de santo na área central com seu trabalho, fazendo frente às imensas dificuldades da vida na cidade – e posteriormente financiar sua mudança com a aquisição de terrenos, construção de instalações etc. É razoável sugerir que tal imperativo, enfrentado conjuntamente, tenha servido para estreitar os laços de solidariedade e hierarquia entre o “povo de santo”, criando elos comunitários importantes para organizar a vida desses migrantes e de seus agregados na nova cidade.
Em outras palavras, cumprir as obrigações com os orixás e manter as respectivas casas exigiu um esforço adicional dos seus membros durante anos a fio – e tudo indica que a empreitada foi levada a cabo com sucesso. Mas tal missão exigiu, além de organização, somas relativamente volumosas em dinheiro, difíceis de acumular em comunidades de trabalhadores pobres em uma circunstância em que os empregos formais eram escassos. E certamente o objetivo não foi alcançado apenas pelo esforço dos baianos “desterrados” no Rio de Janeiro, senão com o concurso de todos os adeptos e simpatizantes que foram capazes de granjear em sua convivência diária na nova cidade, inclusive fora dos limites de sua classe social ou sua identidade racial ou étnica.⁹⁹ Para as casas de santo que se expandem para fora da zona central, terrenos foram aos poucos comprados à prestação e os assentamentos foram construídos devagar, com recursos obtidos pelos serviços prestados a sujeitos externos ao próprio grupo, listas de contribuição e doações de pessoas atendidas em suas demandas aos orixás.¹⁰⁰ Durante muitos anos, o processo de acumulação de recursos foi efetuado sob o comando dos principais babalorixás baianos, espremidos na
região portuária em imóveis acanhados e adaptados precariamente às exigências dos rituais pela criatividade de seus líderes e pela própria maleabilidade do culto.¹⁰¹
Tudo isso nos leva à importância central da parcela feminina desses migrantes, essencial para entender a história do samba (e certamente do candomblé) no Rio. É reiterada na memória dos terreiros cariocas e na própria bibliografia a informação de que muitas dessas iniciativas foram, na prática, viabilizadas pelas baianas que fabricavam e, em trajes rituais, vendiam comida, doces e quitandas em seus tabuleiros espalhados pelo centro da cidade.
114. Doceira baiana (óleo sobre tela), c. 1925. Lucílio de Albuquerque.
115. Baianas com seus tabuleiros, c. 1870.
As chamadas tias baianas tiveram, assim, um papel decisivo no processo de consolidação dos terreiros no Rio de Janeiro, não apenas fazendo circular listas e recolhendo contribuições por toda a cidade, mas também com o ganho obtido diretamente em sua atividade comercial, talvez a mais lucrativa em toda a comunidade religiosa, que incluía uma considerável rede de empregos, pois cada uma delas controlava um número não determinado, mas relativamente grande, de tabuleiros pela cidade.¹⁰² Ademais, as mulheres aparecem na nova cidade exercendo um papel central na estruturação das famílias e na sobrevivência do grupo, em trabalhos domésticos e outras ocupações prioritariamente femininas.
Não era fácil não, eles não gostavam de dar emprego pro pessoal assim que era preto, da África, que pertencia à Bahia, eles tinham aquele preconceito. Mas a mulher baiana arranjava trabalho [...] elas têm assim aquelas quedas, chegavam assim, iaiá, que há? e sempre se empregavam nas casas de família [...] tinha fábrica [...] mas eram os brancos que trabalhavam, muitas mulheres trabalhavam em casa lavando pra fora, criando as crianças delas e dos outros, mais dos outros que delas...¹⁰³
Sambistas como João da Bahiana expressaram tal situação em versos bemhumorados que retratavam a especificidade dos papéis de gênero nesse ambiente. Em “Quando a polícia chegar”, por exemplo, o sambista assume a voz feminina. A canção, frequentemente confundida com uma apologia da malandragem e da exploração da mulher, retrata antes uma situação em que elas podiam assumir a responsabilidade de prover sem maiores problemas – exceto o estranhamento permanente da polícia:
26. João da Bahiana, Quando a polícia chegar, s.d. Intérprete: Cristina Buarque [1981]. [ clique aqui para ouvir ]
Quando a polícia vier e souber
Quem paga casa pra homem é mulher
Quando eu tava mal de vida
Ele foi meu camarada
Hoje dou casa e comida,
Dinheiro e roupa lavada¹⁰⁴
É provável que a experiência escrava em algumas áreas do país tenha favorecido a criação de modelos familiares adaptados à existência de relações pouco estáveis e atribuições mais flexíveis, nos quais a responsabilidade da mulher como provedora tendeu a constituir um elemento comum da vida cotidiana. Pelo menos no Rio de Janeiro, as mulheres negras conseguiam obter mais oportunidades de renda – seja no trabalho doméstico, nos biscates, no comércio de rua ou em outras atividades paralelas –, com as quais conseguiam garantir o sustento de suas famílias de uma forma mais regular que a parcela masculina. As mulheres baianas migradas para a capital do país, ademais, traziam com elas o hábito de se apoiarem mutuamente em torno de atividades como a fabricação de doces e quitutes ou a sua venda nos tabuleiros, em uma corrente de solidariedade habitualmente presidida por laços étnicos e religiosos. Sua própria atividade econômica fazia delas verdadeiras pontes entre o mundo interno dos terreiros e as ruas da cidade, conferindo-lhes uma importância estratégica para o grupo.
Além disso, em uma cidade marcada pela presença de tantos recémchegados que se aglomeravam em cortiços e outras formas de habitação coletiva, as tias certamente adquiriram um significado profundo enquanto referências afetivas: elas pareciam capazes de ampliar as noções de
parentesco, ou de pertencimento, para incluir, sob sua hospitalidade protetora, uma parcela da comunidade bem maior que aquela representada estritamente pelos conterrâneos – capacidade que tia Carmem resumiu ao referir-se à responsabilidade que assumiam de criar as “crianças delas e dos outros”. Não se trata de uma simples referência a atividades como amas e criadas domésticas. Digamos que elas resgataram, nas comunidades de trabalhadores pobres da Cidade Nova, alguma forma de familiaridade em suas casas sempre abertas e festivas, para indivíduos desterrados ou privados de laços afetivos mais permanentes, o que incluía evidentemente as crianças.
Nesse contexto, essas mulheres acabam por assumir o papel de verdadeiras matriarcas em torno das quais a vida social e afetiva de muita gente parecia se organizar. Descendentes e contemporâneos, além de algumas delas mesmas, deixaram depoimentos que enfatizam essa centralidade das casas das tias baianas para a vida social dessa área da cidade. Referindo-se ao Rio de Janeiro por volta de 1910, um desses depoentes relembra:
Naquele tempo não havia lugar para se divertir. Não havia cinema.
Havia só festa familiar. Nós os da raça já sabíamos de cor onde se reunir. Havia sempre festa, com baile e até com assunto religioso, em numerosas famílias. Lá os crioulos se reuniam, comiam, sambavam, se divertiam, namoravam e casavam ou então se amigavam! Mas de qualquer jeito arranjavam companheira. Havia muitas casas (centros) onde os negros se reuniam. As principais, que eu me lembro eram de Perciliana, mãe do João da Bahiana, da Amélia do Aragão, mãe do Donga e da tia Ciata...¹⁰⁵
Donga corrobora o depoimento ao lembrar-se de sua meninice na Rua Senador Pompeu. A animação que cercava as ocasiões festivas, entendidas
como momentos de verdadeiro congraçamento, era um dos elementos mais fortes dessas lembranças:
Naquela época não havia boates, por isso nessas casas que festejavam encontrávamos o choro, samba, etc. [...] Na minha casa houve festa de 8 dias ininterruptos. Era um prazer. O sujeito vinha e descia. Depois ia trabalhar e voltava para o samba [...] Chamava-se “abarracar”.¹⁰⁶
Ocasiões assim, naquela vizinhança pobre e densamente povoada, comprimida em terrenos pequenos e residências acanhadas, não podiam deixar de contaminar todo o ambiente e assumir uma grande importância. As festas de baiana tornaram-se, assim, quase lendárias na história da cidade e foram celebradas em gravações que despontam nos primórdios da indústria fonográfica – como o “Samba em casa de uma baiana”, que busca reproduzir a sonoridade daquelas rodas festivas em que o samba era um convidado permanente.
27. Samba em casa de baiana, c. 1910-1913. Intérprete: Conjunto da Casa Faulharber. [ clique aqui para ouvir ]
Mas sua importância parece ter ido ainda mais longe. As baianas foram, ademais, uma espécie de “telégrafo” do candomblé, mantendo abertos os canais de comunicação nos tabuleiros espalhados nos principais pontos de circulação da cidade, divulgando sua agenda, ocorrências e necessidades dos terreiros: os frequentadores ou simpatizantes costumavam procurar nos tabuleiros das tias informação e orientação que circulavam através dessa
rede informal, segundo Vagalume, ele próprio assíduo na casa do pai de santo João Alabá e em outros círculos desse meio.¹⁰⁷ Assim, a teia dos tabuleiros da cidade era um fator de integração de suas próprias comunidades e permitia angariar simpatias para além das fronteiras de religião ou de classe. O caso da velha Sabina das Laranjas, que levantou uma onda de mobilização e simpatia dos estudantes de direito no final do Império, indica que isso vinha de mais longe.¹⁰⁸
Mas, no século XX, muitas pontes de comunicação entre baianas de tabuleiro e jovens acadêmicos, jornalistas, intelectuais ou mesmo autoridades públicas ficaram registradas nas entrelinhas da crônica. Tia Ciata, por exemplo, através da mediação de um conterrâneo que exercia função de porteiro no Palácio do Catete, cuidou de uma “ferida ruim” do próprio presidente da República Wenceslau Brás, garantindo com isso não apenas proteção para sua comunidade e sua casa como um emprego para o marido na Chefatura de Polícia.¹⁰⁹ Luiz Edmundo, como vimos, mencionou a frequência de jornalistas animados, às vésperas do carnaval, nas casas das tias, aonde iam em busca de meigas fantasias de baiana – mas naturalmente aproveitavam para ver o samba, satisfazendo a mistura de esnobismo e curiosidade que afinal resultava em formas enviesadas de proteção e compadrio. Da mesma forma, a proteção de políticos influentes como Irineu Machado ou Nicanor Nascimento garantiu a paz do terreiro de Abedé por muitas décadas e os “automóveis de placa dourada” estacionados nas proximidades de Alabá são mencionados em várias fontes.
116. Igreja do Rosário, Rio de Janeiro, s.d.
Vagalume também retrata ocasiões que podem exemplificar o significado da rede de relações que se tecia cotidianamente a partir dos modestos pontos de
venda das baianas que se espalhavam pela cidade. Tia Teresa, por exemplo, além de promover em sua casa festas famosas pela animação e pela culinária, mantinha um tabuleiro de angu em frente à Igreja do Rosário, que costumava funcionar pela madrugada adentro. Era, na opinião do cronista, um “verdadeiro restaurante”. Segundo relato de Vagalume, ela chegou a servir toda a redação do Jornal do Brasil – no qual ele trabalhava – ao final de uma festa de aniversário do diário. O rega-bofe, realizado de surpresa por iniciativa de Vagalume – que, às 3 da madrugada, não conseguiu lembrar-se de outro lugar aberto –, incluiu seus diretores, proprietários e cronistas mais afamados. Nessa ocasião, tia Teresa andava sendo importunada pelo chefe de polícia, que queria forçar sua retirada do local ou restringir-lhe o horário de funcionamento – intento malogrado graças ao decidido apoio dos jornalistas à baiana do angu que socorria, pelas noites cariocas, além de seus irmãos de crença, sambistas, artistas e vizinhos, muitos jornalistas, intelectuais notívagos e boêmios famintos, capazes de lhe garantir suporte nas horas de dificuldade.¹¹⁰
Não se tratava, entretanto, apenas de buscar proteção entre brancos abonados ou cheios de prestígio para garantir apoio em situações difíceis: a proteção aos iguais era uma marca central da presença dessas mulheres nas ruas da cidade. Ao mencionar Tereza, uma das baianas pelas quais demonstra mais respeito e afeição, o cronista Vagalume não deixa de mencionar nas entrelinhas outro fator importante para multiplicar o prestígio e a estima universal que cercavam essas mulheres. Defendendo-a das investidas da polícia, ele relata ter conseguido, com a mediação dos colegas do Jornal do Brasil,
[...] que o Coronel Lima, então delegado do 1o Distrito, permitisse que a pobre velha em cuja casa abrigava órfãos para educar, viúvas sem lar, crianças abandonadas e servia também de depositária de menores sem que a polícia lhe indenizasse as despesas de estadia de dias, semanas e às vezes meses, colocasse o seu tabuleiro na rua do Rosário, esquina de Gonçalves Dias [...].
Ao trazer de volta o tema das crianças, o cronista revela outra dimensão importante da presença dessas mulheres para os contemporâneos, exercendo uma forma espontânea de assistência social que priorizava o atendimento de menores, contornando para eles os habituais problemas com a polícia. Não era um comportamento exclusivo de tia Teresa: a assistência às crianças pode ser encontrada da mesma forma em outras casas de baianas, indicando um padrão de comportamento que não podia deixar de render reciprocidade e gratidão entre os beneficiados, direta ou indiretamente, por essa forma de ação comunitária. Tal dimensão pode ser flagrada também em outras fontes. Na edição do dia 1o de agosto de 1911, por exemplo, o jornal A Noite noticiava um crime ocorrido na Rua Senador Pompeu, nas vizinhanças da casa de tia Perciliana. As constantes desavenças entre marido e mulher, que acabou assassinada pelo cônjuge inconformado, haviam provocado a separação do casal. Naquelas condições que multiplicavam o quadro de instabilidade vivenciado diariamente pelos trabalhadores da região, o destino das quatro crianças geradas durante o casamento constituía um grave problema. O jornal resume a situação e revela, ao final, a presença agregadora das tias baianas nessas situações de conflito:
[...] Joaquim começou a dar-se ao vício da embriaguez e já não tratava do estar da família.
Maria esforçava-se por ganhar honestamente a vida, enquanto seu marido gastava todo seu dinheiro nas tabernas. Durante muito tempo a vida da infeliz Maria foi um constante tormento, até que ela se viu na contingência de deixar o marido.
[...] resolve mudar-se da rua Senador Pompeu, isto é, do lar do marido, indo para a rua dos Arcos no 29.
As crianças foram depositadas em casa de uma tia chamada Gracinda residente à rua Acre e Maria, livre do mau marido, ganhava placidamente a vida, no labor diário de uma oficina.¹¹¹
Reencontramos, nessa pequena nota, tia Gracinda, a formosa filha de santo do terreiro de João Alabá, casada com o alufá Assumano Mina do Brasil. Como Tereza e outras, sua casa podia servir de ponto de referência e abrigo para as crianças das redondezas, propiciando um elo extremamente importante para a história do samba no Rio de Janeiro. Elas parecem ter funcionado como pontes de continuidade entre gerações de sambistas através dessa forma de presença tão importante quanto silenciosa: como centros de “família”, elas tinham uma ação toda especial na proteção e no abrigo das crianças – aspecto fundamental na experiência da “gente da lira” do Rio de Janeiro desde a virada do século. Meninos como Caninha – o pequeno vendedor de roletes – ou Mano Elói – quando era apenas um baleiro mirim –, ambos no Campo de Santana, certamente se sentiram mais seguros pela proximidade das tias e seus tabuleiros. Crianças (e, como vimos, não apenas as próprias) parecem ter sido sempre objeto de atenção especial nesse grupo de mulheres. Elas estão presentes tanto no cotidiano dessas casas como nas festas, nos ranchos e blocos, como o famoso O Macaco é Outro, liderado por tia Ciata, que, a julgar pela foto e pelas referências de testemunhas, carregava sempre muitas crianças em suas atividades.
117. Integrantes de O Macaco é Outro, c. 1920.
Tal proteção, que beneficiou vários dos sambistas que já conhecemos e outros que ainda vão aparecer nestas páginas, se estendia para fora da comunidade estrita dos baianos ou das rodas de samba, para atingir o bairro como um todo e suas imediações. Tia Carmen do Xibuca, por exemplo, teve, ao longo de sua vida, uma presença destacada nessa área, cujo ponto alto era a festa anual de Cosme e Damião, na qual ela exercia sua dupla militância religiosa nos terreiros e na Irmandade Católica da Igreja de Santana. Suas próprias crianças, de resto, estavam submetidas ao risco de transitar por uma cidade em que a polícia tinha pouca tolerância com os adultos e com os pequenos: Heitor dos Prazeres foi preso por vadiagem na infância,
permanecendo internado por dois meses na Colônia Correcional da Ilha Grande;¹¹² João da Bahiana foi internado na escola de aprendizes da Marinha; tal experiência era decididamente comum na biografia de muitos sambistas ou tocadores de realejo, baianos, portugueses e cariocas, malandros ou trabalhadores, moradores do morro ou da cidade, igualmente submetidos ao controle feroz da polícia republicana.
Por tudo isso, ao lado dos babalorixás, as tias lideraram o processo de enraizamento na nova cidade, buscando compromisso e proteção, criando redes de autodefesa para seu grupo e agregados, adotando padrões de respeitabilidade e honorabilidade ou, não menos importante, produzindo renda, cujos benefícios atingiam toda a comunidade. Por sua vez, o lado masculino do grupo não fugiu ao padrão, buscando estabelecer relações cordiais com a polícia e as autoridades. Os jornalistas foram sempre cortejados por eles – como no caso já mencionado de Lelé e sua panela fumegante de vatapá. O pai (e o avô) de João da Bahiana e de Donga, o próprio Hilário Jovino, Vagalume e vários outros se filiaram à maçonaria ou à Guarda Nacional – cujas patentes, a seus olhos, garantiam proteção contra as frequentes arbitrariedades dos agentes da lei no início do século XX.
Mesmo protegidos por seus laços comunitários, membros dessa primeira geração dos baianos não deixaram de reclamar, em seus depoimentos à posteridade, da repressão sistemática da polícia carioca ao samba e às suas rodas, apresentando-se muitas vezes como vítimas diretas de perseguição policial. João da Bahiana chegou a posar para uma foto de revista atrás das grades de uma delegacia, tendo nas mãos o seu famoso pandeiro. Na imagem, João já não é um jovem ritmista ou um “capadócio”, mas um nome consagrado da música popular que ainda exibia, sempre que uma ocasião se apresentava, seu instrumento assinado pelo poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado, o principal sustentáculo do governo Hermes da Fonseca e peça-chave na política republicana até sua morte nos anos 1910. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, ele aponta a foto como registro de uma situação verdadeira – mas isso é muito improvável, tendo em vista a idade que ele demonstra na ocasião.¹¹³
118. João da Bahiana, presumivelmente nos anos 1940-1950.
Ademais, a história do pandeiro é bem conhecida, por meio de vários depoimentos do próprio João: Pinheiro teria lhe dado pessoalmente o instrumento em 1908, em troca de outro que fora destruído pelos agentes da lei. O sambista guardou o instrumento como uma relíquia pela vida afora, pois ele trazia o couro assinado pelo próprio senador, visando funcionar, para o jovem sambista, como uma espécie de salvo-conduto – já que (mais um indício das formas de aliança buscadas pelos sambistas baianos) Pinheiro Machado o conhecia como instrumentista de suas festas particulares, na mansão que habitava no Morro da Graça, onde costumava levar músicos para se apresentarem aos convidados. Mas o gaúcho morreu em 1915, quando João tinha apenas 18 anos – o que afasta definitivamente a hipótese de que a foto retrate a situação vivida.
119. Pinheiro Machado, s.d.
De fato, como vimos, não era muito comum encontrar os sambistas desse grupo nas delegacias policiais ou nas pretorias da cidade, especialmente se
os buscarmos no rol dos suspeitos ou dos culpados. Uma sugestiva interpretação é que os terreiros, a convivência próxima e familiar com as baianas e todo um modo de vida construído por esses homens e mulheres desterritorializados, em busca de legitimidade e inserção na nova cidade, tenham conferido uma dimensão própria a esse grupo. Examinar os episódios policiais em que estiveram envolvidos e as formas de comportamento que demonstraram nessas situações de conflito pode ajudar a entender melhor seus padrões e pontos de vista.
“Aos costumes”: Delegacias e pretorias
NA MANHÃ do dia 15 de setembro de 1902, representando o proprietário de uma “casa de cômodos” situada no coração da Cidade Nova, na Rua Barão de São Felix no 157, o procurador Francisco Limeira de Albuquerque foi cobrar aluguéis atrasados de alguns dos moradores. Ainda não eram 11 horas quando o mesmo indivíduo surgiu esbaforido no distrito policial para denunciar que o filho de uma moradora inadimplente o havia ameaçado com um revólver, quando exercia sua obrigação de manter em dia os pagamentos. O acusado era ninguém menos que Hilário Jovino Ferreira, indiciado em um inquérito policial como incurso no artigo 184 do Código Penal.¹¹⁴ Na foto de estúdio, em que aparece elegantemente trajado, o acusado exibe uma imagem de distinção em companhia de familiares mais jovens. Àquelas alturas ele já era figura relativamente conhecida nas imediações, pois havia fixado residência ali cerca de uma década antes. Também era conhecido como “Lalu de Ouro”, e apontado como o responsável por uma verdadeira revolução no carnaval carioca com a introdução dos ranchos carnavalescos, na década de 1890.
120. Hilário Jovino com familiares, s.d.
A julgar pelos dados fornecidos pelo próprio acusado em sua qualificação diante da autoridade, ele tinha, em 1902, 29 anos de idade. Teria nascido em 1873, no estado de Pernambuco – apesar de ser considerado uma das maiores lideranças dos sambistas e carnavalescos baianos da região.¹¹⁵ Na ocasião, Hilário morava na Saúde, especificamente na Travessa das Partilhas, que cortava a Rua Senador Pompeu, onde residiram, no período, sambistas como João da Bahiana, Sinhô e Donga. Eram notórias suas ligações com os principais espaços de religiosidade popular do lugar: era ogã no terreiro de João Alabá e íntimo (embora nem sempre amigo) de Ciata e outras baianas da região. Não há uma biografia mais densa de Hilário; podemos contar apenas com informações esparsas e desencontradas de sua própria memória, em entrevistas à imprensa carioca, além de traços muito vagos de lembranças de família.¹¹⁶
O que sabemos com alguma segurança é que Hilário, nascido em Pernambuco antes da Lei do Ventre Livre, era filho de um casal de exescravos. A família mudou-se para Salvador, na Bahia, onde viveu um tempo indeterminado. Hilário foi criado segundo os preceitos do candomblé ketu. No Rio de Janeiro, foi morador em vários endereços da região, como Beco João Inácio, Pedra do Sal, Morro da Conceição e outros desconhecidos (entre os quais, sabemos agora, estava o cortiço da Travessa das Partilhas no 16, na mesma área da cidade, onde afirmou nos autos residir desde 1900). Sabemos ainda que, recorrendo a um expediente comum entre migrantes nortistas no período, Hilário filiou-se à Guarda Nacional em busca de proteção e de vínculos na nova cidade. Gostava de ostentar sua condição de alferes – da qual talvez tenha lançado mão naquele dia diante dos agentes da polícia, embora isso não seja mencionado nos autos. Ele projetou-se decididamente entre seus contemporâneos como uma liderança respeitada, valente reconhecido que fundou vários ranchos do carnaval carioca, entre os quais o Rei de Ouro e o Jardineira, respectivamente de 1893 e 1899, e esteve à frente de muitas agremiações no início do século XX.
Voltemos, com esses dados, ao processo. As testemunhas levadas à presença do delegado pelo queixoso – dois moradores de outro cortiço existente na
Rua Senador Pompeu no 298, onde residia o próprio procurador – assumem a defesa do vizinho-denunciante, embora não tivessem assistido diretamente ao episódio. O praça da polícia que efetuou a prisão, por sua vez, relata que recebeu ordens do delegado para acompanhar o queixoso e, quando se aproximava da tal “casa de cômodos”, lhe apontaram em plena rua o acusado que, segundo o praça, “estava com um embrulho na mão”. Ainda segundo o depoimento, quando intimado a ir à delegacia, Hilário escusou-se e tentou fugir, recebendo voz de prisão. Rápido, escondeu-se em uma casa próxima em busca de abrigo e, nessa ocasião, atirou fora o tal embrulho, posteriormente recolhido na via pública: tratava-se de um revólver Smith & Wesson carregado, mas sem cápsulas deflagradas. Além do queixoso e de suas testemunhas, o praça encarregado da prisão, juntamente com os reforços pedidos à delegacia em vista da reação do acusado, esperou na rua até que Hilário retornasse de dentro do imóvel onde estava refugiado. Ainda segundo o policial, ao tentar cumprir pela segunda vez a ordem de prisão, o acusado “ofereceu tenaz resistência”, tendo sido necessário o concurso de três homens para arrastá-lo até a delegacia – detalhe que reforça outro elemento integrante do mito de “Lalu de Ouro”, conhecido como um habilidoso capoeirista, cabra sestroso¹¹⁷ assim como outros sambistas de seu círculo.
Face a face com o delegado, a tensão inicial parece se esvair e os personagens da trama desfilam diferentes versões do acontecido: o autor da denúncia, Francisco Limeira de Albuquerque, brasileiro, com 27 anos, viúvo, procurador comercial que sabia ler e escrever, afirma que, quando foi cobrar os aluguéis devidos pelo réu, este, “após muito insultar ao depoente, armou-se de um revólver e disse que só pagaria com tiros”, o que só não teria posto em execução devido à intervenção pacificadora de outros moradores da casa. Entretanto, os moradores da Barão de São Felix, chamados a depor como testemunhas oculares dos acontecimentos, parecem apoiar a atitude do acusado (do mesmo modo que os vizinhos do procurador prestam solidariedade ao queixoso). Ouvido o próprio Hilário, podemos acrescentar outros elementos a esse apoio, para além da natural antipatia dos inquilinos por quem costumava cobrar aluguéis atrasados.
Depois de devidamente qualificado, ocasião em que se declarou filho de Jovino Ferreira e Joana Ferreira, natural de Pernambuco, com 29 anos, analfabeto, solteiro e carpinteiro naval,¹¹⁸ Hilário finalmente explicou à sua moda ao delegado a razão que motivara o conflito: para ele, o procurador se dirigiu à sua mãe, a ocupante do cômodo pelo qual se responsabilizava, “com insolência e exigência” – atitude aparentemente inaceitável para a honra de um valente diante de toda a vizinhança. A partir daí, estabeleceu-se o bate-boca, tendo Hilário se recusado terminantemente a pagar o aluguel naquela ocasião, em vista do tom adotado pelo queixoso: “isso o faria quando quisesse” e não mediante ameaças. Declarou finalmente que o procurador “ameaçando fazer e acontecer à sua mãe, o respondente disse-lhe que preferia dar um tiro em si próprio a assistir a uma insolência com sua mãe [...]”.
É notável a esperteza do sambista na construção do argumento: a arma não seria uma ameaça para intimidar o contendor desaforado, mas algo a ser voltado contra si mesmo em caso de desonra, se aceitasse a “insolência” perpetrada. Evidentemente, mentir para policiais quando acusado de um crime ou contravenção era (é) expediente comum, assim como mobilizar princípios adequados às expectativas dos inquisidores. Mas, no caso, parece haver a expressão de valores amplamente compartilhados entre o réu, seus vizinhos de cortiço e os policiais que o interrogavam. Um amigo não identificado de Hilário compareceu rapidamente para lhe pagar a fiança, arbitrada em 300 mil-réis, e, finalmente, poucos dias depois, o próprio juiz parece ter achado razoável a sua atitude, tendo em vista que ele foi absolvido, em outubro de 1902, das acusações de infringir o artigo 184 do Código Penal.
121. Localização dos pontos mencionados no incidente com Hilário Jovino.
Localizar tais acontecimentos no espaço físico da cidade pode dar uma ideia mais clara de como as redes de relações podiam funcionar nesse meio. As circunstâncias da prisão de Hilário, por exemplo, sugerem com pouca margem de dúvida para onde ele se dirigiu quando tentou escapar dos policiais: quase em frente à casa de cômodos onde o incidente se desenrolou, estava o terreiro de João Alabá – alojado no no 174 da mesma via. Era apenas atravessar a rua em diagonal para vencer a curta distância entre os
dois imóveis – o que explica, inclusive, o fato de a força policial ter esperado do lado de fora, por medo ou respeito, sem forçar a entrada no local onde o suspeito se refugiara. Quando foi surpreendido pelos agentes da lei, Hilário poderia estar na calçada, conversando com os vizinhos da mãe, ou dirigindose para sua própria residência a menos de três quadras dali. Finalmente, podemos verificar que a delegacia para onde foi levado ficava quase em frente ao Café Paraíso, onde ele e seus companheiros de roda costumavam se reunir para tocar e cantar.
Não seria estranho imaginar que policiais aparecessem por ali para tomar um café, ouvir uns improvisos e, nessa rotina, estabelecer relações amistosas com os sambistas do grupo – o que sugere uma explicação razoável para a boa vontade com que Hilário, o mais conhecido deles, foi tratado pelas autoridades. Naquele contexto, um incidente dessa natureza poderia facilmente se encerrar com uma rodada de parati e um partido-alto, no café frequentado por todos os envolvidos, e tanto os procuradores quanto o preço dos aluguéis podiam bem servir de mote para a diversão. A proximidade física dos locais mencionados na ocorrência sugere claramente essa interpretação dos fatos – evidentemente não registrada pelo escrivão nos autos do processo.
*
Poucos anos depois do episódio que envolveu Hilário Jovino e o indigitado procurador, outro sambista baiano, 12 anos mais velho que ele, viu-se envolvido em um incidente que foi desaguar nas dependências da Delegacia da 9a Circunscrição Urbana, encarregada das ocorrências de Cidade Nova e adjacências.¹¹⁹ Não sabemos muito sobre a história pessoal de Antônio Marinho, sambista conhecido por sua destreza com os instrumentos musicais que lhe valeu a alcunha de Marinho-que-Toca, sempre mencionado como um membro importante da roda de músicos do Café Paraíso e integrante dos primeiros ranchos carnavalescos fundados por baianos no Rio de Janeiro.
Entretanto, ele era o pai de outro sambista prestigiado nesse meio, Getúlio Marinho – mais conhecido pelo apelido familiar de Amor –, sobre o qual mais dados estão disponíveis, ajudando a estabelecer alguns parâmetros biográficos para o pai.
122. Getúlio Marinho (Amor), s.d.
Filho de Marinho-que-Toca e de Paulina Teresa de Jesus, Amor foi celebrizado também por sua habilidade como mestre-sala, razão pela qual, aparentemente, posou para a foto em atitude de contemplação à musa clássica da dança e da música. Ele nasceu na Bahia no dia da Proclamação da República. Com seis anos de idade – por volta de 1895 ou 1896 – mudouse, juntamente com a família, para o Rio de Janeiro, o que permite deduzir a data de chegada de seu pai Antônio Marinho à cidade, com cerca de 30 anos de idade. Marinho-que-Toca nasceu, portanto, na década de 1860 e é provável que tenha experimentado uma relação mais direta com a escravidão em sua trajetória de vida. No Rio de Janeiro, a história do futuro sambista Amor serve para traçar o perfil do pai: assim que chegou ao Rio, o menino passou a integrar o rancho Dois de Ouro, seguidor da tradição baiana no carnaval carioca, criado e liderado por Hilário Jovino. O filho era portamachado, iniciando-se nos rituais carnavalescos e nas artes da capoeira. Frequentou com o pai, desde cedo, as rodas do Café Paraíso, desfrutando da intimidade dos músicos, assim como conheceu as “tias” e os pais de santo da região, particularmente o terreiro de João Alabá, no qual Marinho era ogã, situado bem perto da residência da família, em uma estalagem da Cidade Nova, onde os acontecimentos narrados no inquérito policial se desenrolaram. Outro sinal de intimidade entre Marinho, o pai, e Hilário Jovino é que foi este último que ensinou pessoalmente a seu filho, desde menino, os segredos de um mestre-sala dos ranchos – que se tornavam cada dia mais populares –, função que Amor exerceu com maestria durante muito tempo.¹²⁰
123. Rancho Caprichosos da Estopa, formado por operários têxteis, s.d.
Os acontecimentos referidos no processo se deram em 1904 e foram registrados com data de 10 de abril. Naquela noite, Antônio Marinho da Silva compareceu à delegacia para queixar-se do cabo Jacinto Gomes Bastos, comandante do Regimento de Cavalaria que patrulhava as imediações de sua residência, a estalagem situada na “Rua de São Diogo, hoje General Pedra”, como registra o escrivão mais familiarizado com a nomenclatura tradicional daquelas ruas que mudavam de nome após a República. Diante da autoridade policial, Marinho declarou-se um chefe de família com 39 anos de idade, empregado em um escritório de advogado (detalhe duvidoso, em todo caso, mas significativo da intenção de aparentar proteção e respeitabilidade diante das autoridades), residente no quarto no 3 da estalagem da Rua General Pedra no 35, que habitava com sua família. Seu depoimento está interrompido nos autos do inquérito que correu na 8a
Pretoria, mas podemos acompanhá-lo até o ponto em que relata ter saído da estalagem em companhia de parentes e amigos, aos quais pretendia acompanhar ao embarque em um bonde, quando o cabo agressor se dirigiu a ele.
Sua história é complementada pelo exame de corpo de delito que confirma a existência de um ferimento na região occipital direita entrando pelo couro cabeludo. O perito ainda acrescenta que Marinho era um “negro robusto” e tinha nascido na Bahia, além de registrar sua profissão como “calafate”, ignorando a declaração inicial quanto às suas relações com o meio jurídico – vale indicar, um trabalho autônomo como aqueles habitualmente buscados por músicos das classes subalternas, pois permitiam estabelecer os próprios horários e exercer paralelamente as duas atividades.
Os depoimentos do acusado e das testemunhas trazem elementos capazes de complementar o relato do próprio queixoso. Segundo o cabo Jacinto, apontado como autor da agressão, enquanto rondava as imediações, sua atenção fora atraída por um grupo que fazia “algazarra” na estalagem onde morava Marinho-que-Toca, razão pela qual, sendo policial zeloso e cumpridor de seus deveres, teria se dirigido rapidamente àquele endereço. Lá chegando, admoestara o grupo e ordenara que se dispersassem, ordem que teria sido contestada por Marinho motivando a ordem de prisão. Em seguida, segundo ele, o baiano teria fugido para o interior da estalagem. Mais tarde ele teria voltado à rua dizendo-se ferido – o cabo insinua claramente que a lesão teria sido provocada por ele mesmo ou seus companheiros. Após essa segunda aparição, o sambista teria tratado de refugiar-se novamente no interior da estalagem, razão pela qual o cabo não o teria conduzido preso à delegacia – explicando, assim, o fato de Marinho ter ali comparecido por sua própria iniciativa. O praça Heitor Fernandes da Costa, que acompanhava o cabo na patrulha, limitou-se a confirmar as declarações do chefe, acrescentando apenas que, quando se dirigiam à “algazarra” (o registro da ocorrência usa a mesma palavra), na porta da habitação coletiva, haviam sido contestados pelos membros do grupo, tendo se estabelecido um bateboca no qual aqueles “indivíduos” (no plural, sugerindo uma altercação
generalizada) tinham alegado que os cavalarianos não eram “donos da estalagem”, razão pela qual não lhes cabia interferir. Segundo ele, fora em decorrência dessa discussão que Marinho havia recebido voz de prisão, o que nos leva a crer ter sido ele a confrontar inicialmente a autoridade do policial.
Um terceiro depoimento prestado, como os demais, três dias depois do ocorrido, foi de uma testemunha ocular dos fatos: o marceneiro Athanasio Calixto Ferreira, de 60 anos, morador das imediações, que estava justamente na Rua General Pedra no momento do conflito. O depoimento de Athanasio é o mais esclarecedor: relata que Marinho e seu grupo, fossem familiares ou não, encontravam-se pacificamente na rua, ainda que pudessem estar fazendo alguma algaravia, por volta das 9 horas da noite. O depoente não menciona as palavras trocadas entre Marinho e o cabo, mas afirma ter visto o segundo admoestando o sambista e depois ter presenciado o momento em que o policial sacou do chicote – utilizado para comandar o cavalo que montava – para agredir Marinho na cabeça. “Vibrar-lhe uma chicotada”, registra o escrivão, ato que, segundo o depoente, acendeu uma pequena revolta entre os participantes do incidente, inclusive – nas palavras do marceneiro – do próprio praça Heitor, que acompanhava o cabo. O depoente acrescentou que o cabo estava visivelmente embriagado durante a ronda e sua fúria foi contida pelo seu companheiro e pelos populares que presenciaram a agressão, o que explica que a patrulha tenha se retirado sem cumprir o desejo do comandante.
Apenas 16 anos separavam esse pequeno episódio do 13 de Maio de 1888, e as práticas de castigo e humilhação física certamente estavam ainda em carne viva para homens como Marinho – o que pode explicar tanto a revolta dos presentes quanto a atitude do sambista, muito rara nos registros policiais, de denunciar um agente da lei por um ato de abuso.¹²¹ A noite já ia alta quando Marinho saiu de sua residência e dirigiu-se à delegacia para prestar queixa contra o agressor, mesmo sabendo – como certamente sabiam todos os seus vizinhos – que tal iniciativa tinha poucas chances de dar certo. Ouvidos os depoimentos, o delegado não se deu por satisfeito e mandou um
agente à estalagem para procurar novas testemunhas. Um mês depois do ocorrido, o agente certifica que esteve no local, mas ninguém por ali se lembrava mais do caso – razão pela qual o juiz considerou mais apropriado arquivar o inquérito por falta de provas. Como em muitos processos desse tipo, a alegada falta de memória das testemunhas contribui para encerrar os casos aos olhos da lei, deixando o acontecimento relegado à pilha de papéis a serem sepultados para sempre nos arquivos (não fosse a curiosidade dos historiadores, claro).
*
Coisa análoga ocorreu com um processo no qual esteve envolvido, como vítima, João Machado Guedes. Celebrizado pelo apelido João da Bahiana, o sambista nasceu na Rua Senador Pompeu no 288 – quase ao lado do cortiço onde viveria, poucos anos depois, o procurador que cobrava aluguéis de Hilário Jovino. Ao contrário da maioria de seus vizinhos e amigos, João não nasceu em um cortiço, mas na casa de uma numerosa família de 12 irmãos, dos quais ele, o caçula, era o único carioca. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, já idoso, ele relembrava, entre risos, que na infância gostava de implicar com as irmãs diferenciando-se delas justamente por “ser carioca”, embora a origem baiana tenha marcado fortemente sua identidade pública. Era neto de escravos alforriados e filho de uma filha de santo do terreiro de Alabá conhecida como tia Perciliana de Santo Amaro, tão famosa quanto Ciata em sua época. Seu pai era conhecido como Felix Baiano. Seu avô havia se filiado à maçonaria, sinal da busca de respeitabilidade e prestígio naquele ambiente social de intensas mudanças no pós-Abolição.
124. João da Bahiana, s.d.
Apenas cinco anos depois dos episódios envolvendo a briga no cortiço da Rua Barão de São Felix (e três da agressão sofrida por Marinho-que-Toca), vamos encontrá-lo metido em confusão em outro processo da 8a Pretoria. A região, em todo esse período, era das mais movimentadas de Santana. Para marcar o significado dessa afirmação, basta dizer que entre duas ruas – a Senador Pompeu, onde nasceu João da Bahiana, e a Barão de São Felix, onde morava, quase na mesma época, a mãe de Hilário – existiam simultaneamente 16 agremiações dançantes e carnavalescas no início do século XX.¹²² O processo se refere a um tiro que acertou o glúteo do sambista justamente quando ele se divertia no salão de um clube carnavalesco, em uma festa realizada em pleno mês de agosto – pois essas sociedades funcionavam como lugares de dança e música durante todo o ano. A Rua General Caldwell, em cujo no 47 ficava a União das Flores, local
do episódio policial, abrigava ainda pelo menos duas outras sociedades festivas (Teimosos das Chamas e Amadores da Estrela).
Como muitos outros frequentadores das rodas de samba da região, João da Bahiana trabalhou desde muito cedo na zona portuária. Primeiro, aos 15 anos, foi auxiliar de carpinteiro naval, a mesma profissão declarada por Hilário Jovino, que ele certamente conhecia porque era, aos 10 anos (em 1897), porta-machado do rancho Dois de Ouro – atividade que deve ter desenvolvido juntamente com Amor, com a supervisão de Hilário. Na casa dos 20 anos, o sambista trocou a carpintaria naval pelo trabalho de estivador – carreira na qual parece ter progredido bastante: chegou a ser fiscal da estiva, emprego que o levou a recusar fazer parte dos Oito Batutas em sua viagem à Europa no início da década de 1920. Temia, como relembra mais tarde, perder o emprego – atitude prudente de quem sabia que o samba ainda não dava “camisa” a ninguém.¹²³ Antes disso, desde que deixou a Escola de Aprendizes da Marinha (vale lembrar, um dos destinos comuns aos meninos recolhidos “perambulando” nas ruas pela polícia republicana), havia sido ajudante de cocheiro, prestando serviços inclusive ao futuro presidente da República, Hermes da Fonseca, o mesmo cuja primeira-dama andou tocando maxixes escandalosos no Palácio Presidencial.
Aparentemente o sambista manteve elos com esse mundo, pois vamos encontrá-lo, durante o auge do poder de Hermes, empunhando o pandeiro em reuniões sociais no Morro da Graça, onde residia seu protetor – o poderoso senador Pinheiro Machado, ao qual serviu como um misto de “segurança”, cabo eleitoral e curiosidade musical exibida em seus salões como pandeirista do Grupo do Malaquias.¹²⁴ No final de sua vida, João reclamava da ação discricionária da polícia de seu tempo, como vimos – e nessas circunstâncias o senador era um aliado estratégico. Em entrevista ao Diário Carioca, mostrando intimidade com o tema, o sambista chega a mencionar particularmente dois delegados mais empenhados na repressão aos sambistas (um dos quais seria um mulato hábil ao violão, condição que teria usado para infiltrar-se nas rodas e reprimir os sambistas) – embora não
haja registro de outras passagens dele pelas delegacias da cidade na condição de infrator.¹²⁵
Foi antes de tudo isso, contudo, no ano de 1907, que o episódio do tiro na sede da União das Flores nos trouxe o único registro oficial de João diante da polícia.¹²⁶ Tinha ali uma posição confortável: era a vítima, não o agressor. Diante do delegado do 14o DP, ele se apresenta como empregado da Cia. Telefônica, com 21 anos, solteiro e morador do Boulevard São Cristóvão – devidamente descrito no auto de exame de corpo de delito como “pardo”. Segundo ele, por volta das duas da madrugada, “deu-se ali uma questão por causa de damas” sendo desferido um tiro de revólver por alguém que a vítima dizia não saber quem era, não tendo sequer visto quem disparou: “o tiro foi dado a esmo e não era para o declarante, que não teve questão com pessoa alguma durante o tempo que ali esteve em companhia de seu compadre Ignácio de Almeida”. Ouvido logo depois, o compadre Ignácio é um pouco mais detalhista em suas explicações: tendo a mesma idade da vítima e trabalhando, como ela, na Cia. Telefônica, morador da Rua dos Andradas (fora da Cidade Nova, portanto), diz que passeava com João da Bahiana pela Rua General Caldwell quando viram, por acaso, “um divertimento” na casa de no 47
[...] por ser ali o Club União das Flores; que sendo chamado por conhecidos ali entrou e esteve até as duas horas da madrugada; que a essa hora mais ou menos deu-se um barulho por causa de damas, resultando ter alguém dado um tiro de revólver, cuja bala feriu o seu dito compadre João Machado Guedes quando esse corria para a escada; que não viu a pessoa que desfechou o tiro, tendo porém pouco antes visto um indivíduo de cor preta que conhece como empregado da Casa da Moeda, com um revólver na mão.
Compadre Ignácio estabelece aí uma interessante operação de ocultamento. De início, ele se faz de desavisado em relação ao próprio ambiente no qual se deu o episódio – confirmando a aura de suspeição que, para a polícia,
cercava ambientes frequentados por negros ou pardos e gente do porto – no qual João, ex-operário naval e futuro estivador, teria chegado por mera coincidência. Mas o ocultamento parece ir mais adiante: no episódio, um único tiro foi disparado, segundo todos os depoimentos ouvidos, em meio a uma discussão na qual o sambista não estaria envolvido. Por que então estaria ele correndo em direção à escada quando foi atingido – se “não teve questão alguma na dita sociedade”, conforme afirma o próprio João? A situação descrita sugere, antes, que ele estava metido mesmo no tal “barulho por causa de damas” – assunto sobre o qual prefere não falar ao delegado. Talvez porque, como explicitou mais tarde em um samba antológico intitulado “Batuque na cozinha”, se um “malandro” – que no caso bem poderia ser ele – está “com o olho” na mulher de outro, seria totalmente legítimo “apelar para a desarmonia”.¹²⁷ Além disso, nada mais indigno que declinar para a polícia o nome de um rival que apenas havia cumprido os códigos de honra do “pedaço”. Assim, a indicação do compadre Ignácio sobre “um preto” empregado da Casa da Moeda cai totalmente no vazio no correr do inquérito: ninguém sabe, ninguém viu (e, afinal, muitos “pretos” trabalhavam por lá...).
Finalmente, dias depois, outro frequentador, membro da diretoria do União das Flores, comparece espontaneamente para depor: tratava-se do mineiro Paulo Barbosa, de 24 anos, que não declarou profissão. Sua versão, que ele diz saber “por ouvir dizer”, é que, durante a diversão, um indivíduo desconhecido que passava na rua desfechou um tiro para a escada do sobrado onde funcionava o clube, indo ferir “um moço que ali se achava”. Diz ainda que, embora não soubesse quem era o autor dos disparos, “atribui” que esse tivesse sido mandado pelo dono de uma venda na Rua da Providência, um português que levaria o nome redundante de Manoel Portugal, o qual teria sido fornecedor do botequim da sociedade, perdendo depois o posto para um outro comerciante. Diz que Manoel Portugal ficara muito aborrecido ao ser substituído e queria “fazer mal” ou “acabar com a sociedade”. O delegado, rapidamente, mandou intimar Manoel Portugal – mas nem ele nem seu botequim foram encontrados no endereço indicado, razão pela qual o inquérito morreu nesse ponto, sem acarretar qualquer consequência. O conflito acabou se resolvendo no âmbito interno do grupo, que tratou de inviabilizar a investigação e a ação policial.
*
Episódio menos recheado de emoções envolveu, mais de uma década depois, outro integrante dos “baianos” do Café Paraíso, também ogã de João Alabá e assíduo nas rodas de tia Ciata. O conflito ocorreu no mesmo ano em que o samba “Nosso ranchinho” assinalava, a uma só vez, o auge do sucesso do grupo e o início de sua rápida decadência. O conflito envolveu como agressor o sambista e mestre-sala Germano Lopes da Silva, então à beira de completar meio século de idade, e como queixoso um inquilino a quem Mestre Germano alugara cômodos na sua residência.¹²⁸ A queixa foi apresentada no dia 9 de agosto de 1928 por Henrique Sampaio Silva, de 47 anos, casado e funcionário público do Tesouro Federal, que habitava na casa de Germano. Diante do delegado,
[...] disse que alugou parte da casa em que vive com sua família a Germano de tal, porteiro da Escola Politécnica; que não lhe convindo continuar a residir na dita casa, resolveu mudar-se, o que não foi possível ainda fazê-lo; que por esse motivo deixou de pagar a casa adiantadamente, o que contrariou a Germano; que ontem às vinte horas estando o depoente no interior do botequim de Antonio de Tal à rua Baltazar da Silveira quarenta e quatro, ali entrou o acusado Germano que interpelou o depoente sobre o aluguel da casa e como soubesse que o depoente não lhe quisesse pagar o aluguel adiantadamente, deu-lhe na face esquerda uma bofetada, ficando o depoente com grande dor e o sinal da mão. [...] que depois desse fato o depoente recolheu-se à sua residência e se achava em sua sala quando ali entrou o inteado de Germano, Luis, que agrediu o depoente a socos e pontapés; que esse fato último só foi visto pela esposa e filha do depoente.¹²⁹
Convocado a dar explicações, Germano – negro, baiano, filho de Estevam Lopes da Silva e Maria Eulália da Conceição, com 49 anos, funcionário
público (era porteiro do Instituto Politécnico) –, sob risco de ser enquadrado no artigo 303 do Código Penal como agressor, apresentou sua versão dos fatos; mas o conteúdo de seu depoimento pessoal está ausente do processo, no qual falta justamente essa página. Entretanto, o laudo do exame de corpo de delito a que se submeteu o queixoso traz novos elementos para a história. Por ele ficamos sabendo que a agressão perpetrada pelo enteado de Germano, às vistas da mulher e da filha do ofendido, configurava na verdade uma briga de família. O perito registra um duplo vínculo de parentesco: o enteado do acusado era sobrinho da vítima. O queixoso morava com Germano, nos cômodos alugados, havia seis anos. O perito conclui que, de qualquer modo, não havia marcas da ofensa física e, por isso, o juiz recorreu às testemunhas na tentativa de elucidar melhor os acontecimentos.
Henrique indicou quatro testemunhas oculares da briga no botequim, segundo ele, mas seus depoimentos não chegaram a ser ouvidos na justiça, pois os apontados não compareceram. Germano, por sua vez, era aparentemente um homem benquisto nas vizinhanças: seis testemunhas se apresentaram para depor sobre o ocorrido. O dono da barbearia próxima e o caixeiro do botequim onde Henrique e Germano altercaram afirmaram não ter visto o que se passara – um “não prestou atenção” e outro havia ido aos fundos do bar para servir um café para Germano justamente no momento da discussão. Mas compareceu espontaneamente um militar baiano de 41 anos, João Gualberto de Magalhães, que morava distante, na Rua Santo Cristo. Ele afirmou que passava por ali ao acaso quando vira o queixoso proferindo “desaforos e injúrias à família de um senhor Germano, residente na mesma rua e número” e ameaçando-o de agressão. Disse que vira Henrique avançar para Germano para agredi-lo com um soco, do qual Germano esquivara-se, empurrando o agressor e retirando-se do botequim. “Que tendo terminado essa cena, Henrique Sampaio ainda permaneceu no botequim proferindo injúrias e obscenidades.”¹³⁰
Agobar da Silva, outra testemunha, era funcionário do Tribunal do Júri, de cor e naturalidade não registradas pelo escrivão – seria também baiano? Alfabetizado, com 55 anos de idade, residia ainda mais longe, no subúrbio
da Piedade. Coincidentemente, ele afirmou que “passava” pela rua quando ouvira a discussão no botequim entre o seu conhecido Germano e um desconhecido que falava muito alto. Ele afirmou ter visto quando Germano o empurrara, repelindo a agressão perpetrada pelo queixoso – mas passara o bonde e ele não pudera ver o final da história. Acrescentou ainda, sem que isso lhe tivesse sido perguntado, “que o declarante sabe que seu amigo Germano está em tratamento para moléstia de que foi acometido”.
Um operário carioca de 30 anos, Adalberto Machado Mendes, alegou do mesmo modo que passava casualmente na rua e presenciara a discussão. Seu depoimento introduziu a dimensão da cor no relato do incidente, descrevendo-o como uma contenda entre dois indivíduos, “um de cor branca e um de cor preta, estando aquele muito exaltado”, contrastando com a tranquilidade do negro diante da agressão. Para ele, o branco “fez menção de se agarrar com o contendor, que o afastou agarrando-o pela gola do casaco”, sem, entretanto, reagir com violência. Mas o depoimento mais importante ainda estaria por vir, e seu autor, segundo suas próprias palavras, também “passava” casualmente no local – note-se a incrível coincidência que teria colocado naquela esquina suburbana, ao mesmo tempo, ao menos três amigos do acusado que moravam bem longe dali.
125. Hilário Jovino, c. 1930.
Seu nome já deve ser bem familiar ao leitor: tratava-se de ninguém menos do que Hilário Jovino, personagem então já bem conhecido em toda a cidade, com retratos estampados nos jornais para ilustrar seguidas entrevistas a cada mês de fevereiro. A foto, publicada no livro do amigo Vagalume, vinha com a legenda que resumia sua imagem no período: “autor de vários sambas e defensor extremado da escola do partido-alto”.¹³¹ Reverenciado como um mito do carnaval e guardião das tradições do samba, Hilário estava no auge de seu prestígio e poucos anos ainda se passariam até sua morte, no início dos anos 1930.
Tal celebridade do mundo do samba e da folia, mesmo levando em conta a desimportância do episódio, saiu de seus cuidados e dirigiu-se espontaneamente à delegacia para socorrer o amigo e conterrâneo. Vale a pena acompanhar seu testemunho nos autos:
Aos quinze de agosto de 1928, nesta capital federal e na delegacia do 16o distrito policial onde se achava o respectivo delegado [...], aí presente Hilário Jovino Ferreira, filho de Jovino Ferreira e de Rosa Ferreira, natural de Pernambuco, cinquenta e cinco anos de idade, solteiro, sabendo ler e escrever, residente à Rua da América trinta e oito, trabalhando à Avenida Salvador de Sá 189 (garagem), inquirido sob compromisso legal disse que no dia oito do corrente mês de agosto, cerca das oito horas da noite, passando pela Rua Pereira Nunes, notou que no interior de um botequim sito à esquina da mesma rua com uma outra, que soube depois chamar-se Balthazar Lisboa, dois homens discutiam asperamente; que um, de cor branca, que parecia alcoolizado pelas palavras indecorosas que proferia, provocava a um outro de cor preta que se achava no interior do botequim; que o depoente viu o indivíduo de cor branca avançar contra o de cor preta, para agredi-lo com um soco; que viu este último se livrar e com ambas as mãos afastar seu contendor e afastar-se do local; que não viu nenhum dos contendores apresentar ferimentos; que o depoente não conhece nenhum dos dois contendores, sabendo nesta delegacia chamarem-se Germano Lopes da Silva, que é o de cor preta, e Henrique Sampaio Silva o de cor branca.
Vários elementos são interessantes no depoimento de Hilário, no sentido de reiterar padrões de comportamento e valores do grupo. Podemos verificar inicialmente que ele ainda morava na mesma região em que se estabelecera desde sua chegada à cidade. No entanto, aos 55 anos, já não trabalhava na zona portuária e sim, por uma curiosa coincidência, justamente no bairro do Estácio de Sá, onde desabrochavam naquele momento os grandes ases do samba carioca que viriam a ocupar o espaço duramente conquistado pelos “baianos” nas preferências populares e no interesse das casas gravadoras. Seja como for, suas rotinas e seus circuitos habituais aconteciam bem longe da Rua Pereira Nunes (esquina com Baltazar da Silveira – e não Lisboa,
como registrou o escrivão), onde estava o botequim no qual se deu o conflito: longe do porto, ela nascia no Boulevard 28 de Setembro e desaguava na Avenida Maracanã, em plena Vila Isabel – o famoso bairro que Noel Rosa imortalizou.
À semelhança do operário Adalberto, que descrevera o conflito como a luta entre um branco violento e um negro pacífico, Hilário racializou fortemente sua descrição no intuito de defender o amigo. Tratava-se, para ele, da agressão de um branco alcoolizado, que atingia com palavras e atos um pai de família negro. Quanto a este, apenas se defendera com altivez e dignidade. Finalmente, encerrando seu depoimento, ele mentiu deslavadamente ao declarar que não conhecia Germano e tomara conhecimento de seu nome apenas na delegacia, recurso usado para conferir maior credibilidade às suas palavras. Com certeza, as noitadas do Café Paraíso, os sambas na casa das tias da Cidade Nova, os candomblés de João Alabá e os ensaios dos ranchos eram ainda referências fortes na vida de ambos... Assim, a despeito do caráter corriqueiro dos acontecimentos, o processo não deixa de revelar algo sobre esse grupo, evidenciando o quanto as identidades de origem e religião, a solidariedade e o apoio mútuo ainda pesavam para os sambistas desse núcleo, quando os anos 1920 chegavam ao seu final.
*
Pequenas histórias como essas deixam entrever um conjunto de valores compartilhados entre o grupo de sambistas e seus amigos ou vizinhos nas primeiras décadas do século XX – não necessariamente baianos, mas trabalhadores radicados na Cidade Nova que conviveram de perto com esse forte núcleo de migrantes. Seus protagonistas evidenciam, em situações de tensão, uma espécie de repertório moral que repousava na coragem e na valentia, na valorização ou no orgulho profissional, na solidariedade entre grupos ou círculos de convivência e na busca incessante de respeito e
promoção social. Sambistas de primeira linha, Hilário, Marinho, Germano e João da Bahiana, quando postos em situações que exigiam a intervenção policial, procuraram aparecer como indivíduos associados ao trabalho qualificado, à família e ao cumprimento dos diferentes papéis sociais consolidados nos preceitos legais. Os poucos processos localizados envolvendo integrantes desse grupo o sugerem – e note-se que, nestes, João e Marinho aparecem como vítimas, enquanto Hilário e Germano, apontados como autores de agressões, revertem a acusação através da imagem de cidadãos respeitáveis e honrados, com o apoio decisivo de seus amigos ou vizinhos. Tal comportamento pode ser relacionado ao conjunto de valores e práticas do candomblé, entendido por alguns autores, entre outras coisas, como meio extremamente eficaz de estabelecer vínculos externos à comunidade negra ou ao grupo restrito dos iniciados.¹³²
As biografias dos sambistas desse grupo, assim como os episódios policiais em que se envolveram, sugerem que eles realizaram um esforço persistente para manter uma aparência bem-comportada e orgulhosa de si ao mesmo tempo em que se empenhavam para garantir bom trânsito com os “de cima”, precavendo-se ao seu modo contra os conhecidos riscos de ser pobre na capital da República. “Nós dávamos um samba e de repente éramos intimados para ir à delegacia”, relata Donga. Reconhecendo as dificuldades enfrentadas por seus iguais diante da desconfiança das autoridades, ele explicita em depoimento a liderança dos “antigos”, como Jovino, e a direção que eles imprimiram à sua presença na capital federal: “o Hilário era um sujeito muito sensato e dizia que nós tínhamos que mostrar àquela gente que o samba não era aquilo que eles pensavam”.¹³³
Diante da violência e da arbitrariedade policiais, prestar serviços religiosos, animar as “festas de branco”, dar apoio político, buscar empregos públicos foram algumas das formas encontradas para construir uma relação com as autoridades e o mundo letrado que alternava repressão e tolerância.¹³⁴ Instituições como a Guarda Nacional ou a maçonaria, na qual vários membros desse grupo ou seus familiares se engajaram, funcionaram aí como excelente modo de criar novos vínculos e viabilizar redes de autoproteção.¹³⁵
126. Membros da Guarda Nacional durante a Revolta da Armada, 18931894.
Compartilharam uma identidade regional, situada na mítica Bahia de sua infância (ou de seus pais), e uma forma coletiva de fazer samba, fincada no que consideravam ser a tradição de sua terra natal (ou eleita), enquanto cultivavam relações em seu novo ambiente produzindo uma imagem
relacionada à tradição. Talvez por isso, não eram apenas eles que projetavam essa forma de referência, polvilhando suas composições com as menções insistentes à Bahia e a seus costumes. O próprio Vagalume formula esse sentimento de uma maneira curiosa: “Eu, se não fosse brasileiro, quisera ser japonês, e se não fosse carioca, quisera ser baiano. Em todo caso sou da Bahia... de Guanabara”.¹³⁶ A ideia da “tradição”, capaz de encantar grupos de letrados e de apaziguar o olhar das elites, ajudou a construir sua legitimidade diante dos seus “outros”, em uma circunstância em que a pobreza urbana parecia agressiva e desgovernada, despertando uma suspeita generalizada contra os pobres e restringindo seus direitos básicos de cidadania.
Para esses primeiros círculos de sambistas, agregados em torno dos terreiros, das rodas de samba, e com a proteção de suas tias, a imagem dos baianos foi útil na produção de laços de identidade capazes de garantir formas de enraizamento na capital federal e criar espaços de visibilidade e ascensão social; eles compartilhavam, por tudo isso, uma espécie de oposição a outra figura que se cristalizava em personagens das ruas, rodas de samba ou, caricaturada, palcos do teatro de revista, nos quais foi associada ao samba de modo geral e, em particular, aos cariocas: o malandro – que era seguramente mais que uma figura emblemática. Ele está presente em muitas referências dos próprios sambistas, ainda antes que a polêmica em torno desses significados estivesse nas ruas.
Embora fosse uma imagem antiga, a malandragem ganhava naquela década uma nova conotação. A desconfiança dos baianos com relação a esses personagens – reais ou imaginários – que invadiam as rodas de samba, formando a partir do Estácio a nova fornada de sambistas que modificava, formal e ritmicamente, o gênero e ocupava um espaço crescente nas casas gravadoras e nas preferências carnavalescas, é uma constante em compositores de sua geração. Não foi por mera coincidência que, praticamente ao mesmo tempo em que lançava “Nosso ranchinho”, Donga compunha e gravava “Foram-se os malandros”,¹³⁷ uma verdadeira diatribe contra tais personagens – identificados aos habitantes dos morros – que, sob
o aplauso do sambista, eram expulsos para os subúrbios por obra e graça da ação decisiva da polícia carioca e das reformas urbanas contra as quais Sinhô se insurgira:
28. Donga, Foram-se os malandros, 1928. Intérpretes: Francisco Alves e Gastão Fromenti. [ clique aqui para ouvir ]
[...] Os malandros da Favela
Não têm mais onde morar,
Foram uns pra Cascadura
Outros para a Circular
[...] Os malandros da Mangueira,
Que vivem da jogatina,
São metidos a valentões
Mas vão ter a mesma sina
[...] Mas eu hei de me rir muito
Quando a Justiça for lá,
Hei de ver muitos malandros
A escorrer, a se mudar.
Capítulo IV
DA GEMA ¹
127. João da Bahiana, s.d.
Não moro em casa de cômodo,
Não é por ter medo não.
Na cozinha muita gente
Sempre dá em alteração.
29. João da Bahiana, Batuque na cozinha, s.d. Intérprete: João da Bahiana [1968]. [ clique aqui para ouvir ]
COM ESSES versos o estivador João Machado Guedes – que, por ser filho de uma famosa “tia” da Cidade Nova era conhecido como João da Bahiana – introduziu um samba antológico e bastante conhecido ainda hoje como “Batuque na cozinha”. Para além de suas qualidades intrínsecas, o velho partido-alto pode nos dar acesso a debates que se arrastaram por muito tempo em torno da música brasileira e seus protagonistas. Por isso, vale a pena prestar atenção nos versos e na sonoridade. Eles revelam alguns elementos de um mal-estar entre sambistas das primeiras décadas do século XX que, embora quase sempre ignorado, perdurou por um tempo relativamente longo da história do gênero.
Anunciado o tema na introdução (a casa de cômodos e a convivência entre seus habitantes), ouve-se um refrão tradicional de samba de roda que remete ao século XIX, relacionado à experiência de escravos domésticos que enfrentavam a proibição da “sinhá” sobre distrair-se nas horas do serviço: “Batuque na cozinha a Sinhá não qué,/ por causa do batuque eu queimei meu pé”.² A esse refrão seguem-se passagens típicas de partido-alto, em que uma estrofe sobre o ciúme de homens brancos e mulatos em relação a suas mulheres é sucedida pela fórmula tradicional da provocação-resposta: a cebola aí rima com a crioula de quem o branco sente ciúme, assim como a batata com a mulata e a farinha com a branquinha – também objetos de cobiça ciumenta por parte do branco.
Então não bula na cumbuca,
Não me espante o rato.
Se o branco tem ciúme
O que dirá o mulato.
Eu fui na cozinha pra ver uma cebola,
E o branco com ciúme de uma tal crioula.
Deixei a cebola peguei na batata,
E o branco com ciúme de uma tal mulata.
Peguei no balaio pra medir a farinha
E o branco com ciúme de uma tal branquinha.
Volta, em seguida, o refrão sobre o batuque na cozinha (lugar, afinal, de mulheres, cebolas, batatas e farinhas) e a canção parece tomar outros rumos – impressão reforçada, no arranjo gravado pelo próprio autor, pela transição instrumental relativamente longa que introduz sua nova fase. Depois dos volteios de flauta e clarinete que demarcam essa espécie de intervalo, somos apresentados a um samba diferente da tradição estrita do partido-alto que o caracterizava até esse ponto. Ele adota, daí por diante, uma nova fórmula: mantém como refrão o batuque na cozinha, mas esclarece seus novos significados nas estrofes que retomam, finalmente, o tema da casa de cômodos, operando à moda de sambistas mais novos que, em seus sucessos comerciais, haviam introduzido na estrutura dos sambas uma segunda parte cujos versos desdobram ou desvendam o significado do estribilho. O autor volta agora à cozinha (não mais à da Sinhá, mas à do cortiço) e se defronta com a atitude inconveniente de outro homem, a quem qualifica como “malandro”.
Voltei na cozinha pra tomar um café,
Malandro tá de olho na minha mulher.
Mas comigo eu apelei pra desarmonia
E fomos direto pra delegacia.
Seu comissário foi dizendo com altivez:
É da casa de cômodo da tal Inês,
Revista os dois, bota no xadrez,
Malandro comigo não tem vez.
O episódio descrito na canção evolui para o conflito, resultando na chegada da polícia e na detenção dos dois envolvidos. Na delegacia, o sambista se explica diante do comissário, caracterizado como um indivíduo cheio de “altivez” que iguala os dois contendores na condição de habitantes da casa de cômodos, sem atentar para suas diferenças. Primeiro, o autor se coloca em um patamar social mais elevado que o dos moradores do local: não seria um desclassificado como eles, mas alguém capaz de pagar a fiança, além de um autêntico sambista, como indica o detalhe do tal violão empenhado. Dessa forma, procura se contrapor ao malandro e estabelecer o contraste entre as duas figuras. Ademais, mostra-se ele mesmo altivo o suficiente ao afirmar que paga a fiança “com satisfação” e, mantendo a rima, exigir não ser posto no xadrez com o rival “malandrão”, desprovido de respeito à honra e aos princípios do “cidadão”. Este último, no verso que fecha o samba, é definido por sua procedência geográfica: um nortista, qualificativo mobilizado como elemento de diferenciação.
Mas seu comissário, eu estou com a razão,
eu não moro na casa de habitação.
Eu fui apanhar meu violão
que estava empenhado com o Salomão.
Eu pago a fiança com satisfação
mas não me bota no xadrez com esse malandrão
Que faltou com respeito a um cidadão
que é paraíba do norte, maranhão.
Uma primeira observação, indispensável aqui, é que datar “Batuque na cozinha” não é tarefa muito simples. Algumas pistas, entretanto, reforçam a convicção de que ele foi composto no final dos anos 1920 ou início dos 1930. Em primeiro lugar, esse é o momento em que outros sambas de João da Bahiana, como “Ai Zezé”, “Cabide de Molambo” ou “Malandro pasteleiro”, aparecem com uma temática comum, comentando a vida
cotidiana dos trabalhadores cariocas.³ Na ausência de uma gravação da época, pode-se recorrer a um registro efetuado pelo próprio João na década de 1960, em um álbum compartilhado com vários nomes da “velha guarda” cujo propósito era justamente recriar a atmosfera original dessas composições.⁴ Vários outros elementos – inclusive o uso da temática da malandragem, pouco comum nos sambas mais antigos desse grupo de compositores de origens baianas – reforçam a hipótese. Além disso, o uso misto das linguagens do partido-alto e dos versos fixos na segunda parte, forma difundida a partir dos anos 1920 por sambistas mais jovens, é outro indício relevante. Acresce que estes últimos, particularmente os do Estácio de Sá, eram frequentemente caracterizados como malandros na imprensa, em espetáculos de teatro e outras formas populares de entretenimento, e assumiram alegremente o tipo, olhado com simpatia por muitos no período (e ainda hoje).
Diante do sucesso comercial desses novatos, compositores um pouco mais velhos e apegados à tradição dos terreiros, como João, disputavam a paternidade do gênero musical que alcançava finalmente certa notoriedade: valorizada no disco e no rádio como uma espécie de marca brasileira, essa forma musical abria oportunidades até então inéditas para compositores populares no país. Não é outra a tensão que o samba exprime a pretexto de retratar uma cena cotidiana, como uma briga de cortiço. É mais que provável, dada a forma coletiva de compor daquela geração, que partes dele (como o refrão e os versos certamente mais antigos sobre brancos e mulatos) fossem aproveitadas de velhas rodas de improviso, ao passo que os demais versos, alusivos às rivalidades com malandros e às condições da vida em habitações coletivas, tenham sido acrescentados quando o tema se tornou relevante para o sambista – o que nos joga, novamente, para a virada dos anos 1920-1930.
Seja como for, “Batuque na cozinha”, assinado pelo altivo caçula da tia festeira e quituteira Preciliana Maria Constança, nos conduz a algumas das polêmicas que cercam a história da música popular brasileira. Um hábito pouco questionado entre os especialistas no tema tem sido supor uma
espécie de identidade unívoca de sambistas associados indiferenciadamente a elementos simbólicos – como a mística da malandragem, do candomblé ou da Bahia, entre outros elementos cuidadosamente selecionados para configurar uma determinada imagem da chamada cultura popular. Às vezes tais elementos são mobilizados para construir a ideia de oposição à ordem estabelecida, atribuída a uma resistência inata às classes subalternas. Há aí a presunção de que o gênero, antes de ser ungido pelo regime do Estado Novo (e pela indústria fonográfica), foi perseguido justamente por causa desses elementos simbólicos compartilhados por todos os seus múltiplos criadores. A partir dessa operação, costumam-se analisar os sambas como expressão unívoca de um ponto de vista comum a todos os “populares” dotados de talento musical no Rio de Janeiro.⁵
João da Bahiana, entretanto, antes que tais ideias tivessem tomado corpo e olhando para dentro de sua própria experiência, falava de conflito: aquele que opunha, para ele, sambistas autênticos de um lado e malandros de outro (embora o comissário de polícia, como ele mesmo aponta, tenha sido incapaz de perceber a diferença). Essa era, de resto, apenas uma das questões que dividiam grupos de compositores, sempre colocados em lados opostos quando se tratava de definir o que era (ou não) samba em contraposição ao maxixe ou ao batuque; se sua origem estava “no morro ou na cidade”; se o ritmo era afinal carioca ou baiano, negro ou brasileiro; se era coisa de vadios ou de trabalhadores aferrados a alguma forma de matriz tradicional ou definida por suas origens regionais ou religiosas. Não deixa de parecer curioso que sejam também essas as dualidades em torno das quais boa parte dos historiadores discute ainda hoje, visando estabelecer coisas como a matriz do samba, seu berço ou raízes autênticas.
Sem dúvida, perceber oposições entre grupos de sambistas não constitui novidade na literatura relativa ao tema. Particularmente a oposição entre os ditos baianos e os sambistas do Estácio ou do Morro de São Carlos, em sua maioria cariocas “da gema”, associados à figura do malandro, tem sido enfatizada nos melhores estudos do tema, e cabe levar adiante essa indicação como um caminho interessante para investigar significados escondidos por
trás do balanço e dos versos frequentemente reveladores dos velhos sambas cariocas.⁶ Mas os poucos estudiosos que se debruçaram sobre aquilo que separava esses círculos de sambistas têm enfatizado principalmente o padrão musical – ou especificamente rítmico. Em outras palavras, discutido o que distingue um samba “rural” ou o “samba-maxixe” de João, por exemplo, de outro mais moderno, adaptado à cidade e a seus ritos festivos, o ritmo dos compositores do Estácio, como Ismael Silva e seus contemporâneos.
É certo que, mesmo nesses termos restritos, a possibilidade de uma polarização entre dois ou mais grupos deve ser vista com cuidado. As rivalidades, mais fortes em alguns períodos que em outros e tematizadas de diferentes maneiras, não constituem uma marca definitiva ou imutável da própria produção musical desses autores. Os dois grupos se aproximaram ou se reconciliaram ainda nos anos 1930, para se encontrarem nos espaços da cultura de massas que os associou em gravações e programas radiofônicos, impondo um padrão de mercado à sua produção musical. Ainda assim, se não explorarmos o campo das diferenças e capturarmos seu movimento, teremos dificuldade em compreender o próprio processo de construção do gênero musical, seus significados e mesmo sua eleição simbólica como a música brasileira por excelência.
Resta, assim, seguir buscando os personagens e mapeando os territórios do samba em busca dos “malandrões” contra os quais João e seus companheiros da Cidade Nova se insurgiam nos anos 1920. Com tal expressão, ele se referia a personagens bem conhecidos da polícia carioca, alguns dos quais abrigados entre os compositores do bairro do Estácio de Sá, cujo sucesso se tornava crescentemente incômodo para os bambas da tradição mais antiga e regional. Assim, talvez a experiência de um e outro grupo de sambistas diante dos agentes da polícia – no fundo, incapazes de distingui-los – seja um bom caminho para explorar tais diferenças.
As agruras do “seu” comissário
MAIS QUE seus vizinhos da Cidade Nova, os bambas do Estácio enfrentavam sérias dificuldades com os homens da lei, mas também sabiam como tornar a vida deles complicada. Tinham apoio nas ruas, entre os conhecidos dos botequins ou das casas da zona de prostituição que frequentavam diuturnamente e de onde tiravam parte de seus ganhos; pareciam conhecer a lei e os ritos processuais e eram escolados nas artes de se livrar das iniciativas dos meganhas. Tais habilidades e a própria intensidade com que foram alvos da polícia – além do perfil diretamente associado a práticas criminalizadas nas ocorrências em que alguns deles estiveram envolvidos – evidenciam uma sensível diferença de padrões em relação a homens como Hilário, João, Marinho-que-Toca e outros frequentadores das casas das tias festeiras e dos terreiros de candomblé da Cidade Nova, para recorrer aos exemplos examinados no capítulo anterior. Em sua grande maioria, os episódios em que os sambistas do Estácio estiveram envolvidos diziam respeito a jogos proibidos, particularmente o conhecido jogo da “chapinha”,⁷ brigas de rua com uso de arma (particularmente a navalha), casos ligados ao lenocínio ou à violência contra prostitutas, além da clássica acusação de vadiagem nas ruas da zona do meretrício.
Entre os integrantes desse grupo, o mais frequente nas delegacias e cadeias da cidade foi Baiaco, ladeado na foto (do seu período de maior prestígio artístico) pelo caricaturista Nássara e pelo compositor e jornalista Orestes Barbosa. Dono do registro de um samba clássico em parceria com mano Aurélio – segundo Ismael Silva, seu único e verdadeiro autor⁸ –, lançado no carnaval de 1933 com o título “Arrasta a sandália”, Baiaco, na verdade, nunca foi um grande compositor, embora tivesse acumulado fama como ritmista.
128. Baiaco com Nássara e Orestes Barbosa, 1933 (detalhe).
30. Baiaco e Aurélio Gomes, Arrasta a sandália, 1932. Intérpretes: Moreira da Silva e Gente do Morro. [ clique aqui para ouvir ]
Outro de seus companheiros, o sambista Alcebíades Barcelos (Bide), revela, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que, na verdade, o samba não era de um nem de outro, mas de uma dupla de “nortistas” que circulava pelo Estácio e teria sido esbulhada pelo malandro.⁹ Seja como for, dos poucos sambas que levaram sua assinatura, apenas esse é lembrado pela posteridade. A produção musical atribuída a ele, ao menos aquela registrada, reduz-se ao período de 1932 a 1934, que corresponde, aliás, à fase final de sua vida curta e agitada.¹⁰ Não se sabe muito sobre a biografia de Baiaco, batizado como Osvaldo Caetano Vasques: mesmo sua data de nascimento é registrada pelos especialistas de modo impreciso – para alguns, 1903; para outros, 1913 –, e a data de falecimento permanece em aberto.¹¹ Entretanto, as constantes visitas forçadas que empreendeu às delegacias e pretorias da região do Estácio (e a outras do centro da cidade) permitem estabelecer alguns desses elementos com segurança. Embora fosse um indivíduo escorregadio ao extremo em suas declarações diante da lei, a data e o local de nascimento, bem como o nome dos pais, aparecem sempre mencionadas por Baiaco da mesma forma: carioca “da gema”, nascido em 1900, era filho de Bartholomeu Vasques e Georgina Emília Vasques. Das composições que assinou, a última de que se tem notícia saiu em disco no ano de 1934. Os constantes processos e detenções a que foi submetido desaparecem após 1930, data do último registro, quando ele tinha 30 anos de idade e sua saúde dava sinais de rápida deterioração. Assim, seu falecimento provavelmente ocorreu na primeira metade dos anos 1930.
129. Folha de Antecedentes de Baiaco, 1930.
Entre 1926 e 1930, existem ao menos 18 processos nos quais ele figura, duas vezes como vítima e 16 como autor de delito, fora as prisões que não resultaram em inquérito.¹² Sua “Folha de Antecedentes” ¹³ era, assim, recheada de anotações. Esses diferentes autos, que correram principalmente pela 5a Pretoria e por algumas varas criminais, permitem traçar um perfil do personagem e confrontá-lo com a simpática imagem do malandro, sedimentada lentamente ao longo dos anos. Baiaco já estava morto havia tempos quando Moreira da Silva, intérprete do seu maior sucesso (cuja letra, construída à moda do partido-alto, incita uma “morena” a estragar sua sandália no samba, para ser recompensada com outra “bonita, de veludo, enfeitada de fita”, se o dono do dinheiro, que a desafiava, ficasse satisfeito com seus volteios no terreiro), deixou um registro, sempre citado, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Sendo o cantor que melhor encenou em suas performances musicais o arquétipo da
malandragem, responsável pela gravação de alguns dos sambas de Baiaco, ele incluiu uma referência carinhosa e positiva ao compositor do Estácio de Sá que conheceu no início de sua carreira: “Baiaco era um compositor de mão-cheia. Bom de música e bom de papo, dava uma sorte danada com o mulheril, que sempre entregava o dinheiro para ele”.
130. Moreira da Silva, s.d.
Nesse e em outros registros, Osvaldo Caetano Vasques aparece como a personificação do malandro clássico: livre do trabalho regular e suas rotinas, ladino diante das investidas da polícia, valente, sedutor, capaz de viver melhor que seus vizinhos daquilo que as mulheres rendiam na zona ou do que podia extrair dos “otários” no jogo. Às vezes vendendo, e eventualmente
roubando, sambas e sempre metido em confusão. Parte da simpatia que desfrutava entre seus contemporâneos e amigos do Estácio, permanentemente temerosos da ação dos meganhas, podia resultar da habilidade para escapar seguidamente das tentativas de enquadramento, sempre realizadas com truculência e arbitrariedade por policiais cujos procedimentos e critérios eram, no mínimo, discutíveis. Os processos em que Baiaco esteve envolvido revelam alguns mecanismos eficazes na hora de infernizar a vida do “seu” comissário e outros agentes da lei, como fornecer nomes falsos ou diferentes combinações do verdadeiro na hora da qualificação diante do delegado, confundir informações e forjar evidências.
Ele foi condenado pela primeira vez, aos 17 anos, com o nome de Bartholomeu Vasques – misturando o seu próprio nome e o do pai, como se pode ver na “Folha de Antecedentes”. Outro expediente usado constantemente era declarar-se analfabeto, ou simplesmente se calar e deixar que a rotina burocrática do escrivão policial assumisse a fórmula dos processos por vadiagem – sem endereço conhecido, sem emprego fixo, analfabeto – para, na justiça, desqualificar o inquérito, assinando, com letra caprichada, o auto de interrogatório do juiz. Baiaco, como os bons malandros de seu meio, tinha muitas vezes um advogado a representá-lo ou um protetor capaz de atestar que o sambista trabalhava, tinha endereço fixo e bem sabia ler e escrever.
São ainda comuns, tanto nos processos de Baiaco como nos de muitos dos detidos por vadiagem e outras contravenções, declarações falsas de endereço ou de ocupação frequentemente desmentidas em diligências ordenadas pelo juiz. No ano de 1927, por exemplo, em três dos quatro processos a que respondeu, forneceu como endereço a Rua Barão de Iguatemi no 131, nas imediações da Praça da Bandeira.¹⁴ Em maio daquele ano, o juiz enviou o oficial de justiça ao local para checar a veracidade da informação. Em certidão, o oficial de justiça atesta o resultado da diligência: ele nunca residira ali, embora o dono da casa (uma habitação coletiva) ressalvasse que havia aparecido algumas vezes para visitar uma irmã que morara naquele endereço. Rapidamente outra moradia apareceu nos autos – Rua Senhor de
Matozinhos no 141 (no Estácio) –, dessa vez sem desmentidos. Entre 1926 e 1930, os processos de Baiaco registram 13 endereços diferentes, alguns na Cidade Nova, alguns em bairros mais distantes como Bonsucesso ou a vizinhança da Mangueira, no Maracanã, ruas do centro ou da zona sul – mas a maioria no próprio Estácio de Sá. Embora a mudança de local de residência fosse comum entre os pobres do Rio de Janeiro, sobretudo entre os habitantes dos cortiços e os solteiros, como era o caso de Baiaco, o expediente fica muito claro em diferentes processos – especialmente naqueles que se iniciaram na Delegacia Auxiliar de Repressão à Contravenção, nas ocasiões em que Baiaco foi flagrado no centro da cidade.
A área de ação de Baiaco, assim, não se limitava ao bairro do Estácio ou à Zona do Mangue: como bom malandro, ele sabia diversificar e, quando a vigilância apertava no seu “pedaço”, buscar lugares onde fosse menos visado pelos agentes da lei. Nesse caso, podem surgir até três mudanças de endereço em um mesmo processo, substituindo as informações que diligências ordenadas pelo juiz iam desmentindo. Por vezes, há o recurso de alegar que morava em lugares distantes, para dificultar a confirmação do oficial de justiça: em uma ocasião, pego em uma esquina da Rua da Quitanda com a Conselheiro Saraiva, na área central, Baiaco declarou que morava em Niterói – informação que o juiz nem chegou a conferir.¹⁵ Tratava-se, é claro, de um juiz de outra Pretoria, pois os da 5a, dada a assiduidade que ele mantinha nas salas de audiência onde costumava responder aos processos, já deviam conhecer o personagem e suas manhas.
O trabalho regular, que ele precisava comprovar a cada detenção por vadiagem, era outra fonte de complicações nos inquéritos policiais. De modo geral, sobretudo nas prisões pelo artigo 399, os policiais registravam rotineiramente no auto de prisão que o preso em flagrante não tinha profissão ou emprego. Na justiça, Baiaco evidentemente desmentia o “seu” comissário, adotando profissões avulsas, cujo exercício era de difícil comprovação, como ajudante de cocheiro,¹⁶ ou atividades que podiam ser atestadas por seus amigos do bairro: em diferentes ocasiões, declarou como profissões, por exemplo, cozinheiro, cafeteiro ou ajudante de cafeteiro em
diferentes botequins da Zona do Mangue. Ele tentou também adotar indicações mais respeitáveis, como auxiliar de ourives em uma “oficina de joias” no centro da cidade (ocupação desmentida pelo proprietário do estabelecimento, que alegou nem conhecer o sambista) e, finalmente – dessa feita com grande sucesso –, servente na Terceira Pretoria Cível e na residência do responsável por aquele cartório: tratava-se do intendente municipal Ataliba Correa Dutra. O figurão assinou pessoalmente declarações confirmando o vínculo de trabalho para livrar Baiaco de prisões por vadiagem e jogo de chapinha.¹⁷
O doutor Ataliba foi além, em pelo menos uma ocasião: preso na Rua de São Cristóvão em uma madrugada de 1928, Baiaco portava consigo uma navalha enferrujada e cheia de “dentes” e, por isso, foi processado com base no artigo 377 do Código Penal. No curso do inquérito, ele alegou, ainda na delegacia, que estava com a arma para defender-se das ameaças que sofria; em seguida, já na Pretoria, quando entrou em cena um advogado para defendê-lo, Baiaco passou a afirmar que fora preso quando descia de um automóvel para entrar, desarmado, em um baile – e a navalha havia sido “plantada” pelo comissário que o prendera, em mais um ato de perseguição. Apesar disso, foi condenado a 60 dias de cadeia, tendo em vista seus antecedentes. O advogado recorreu e conseguiu rapidamente anular a sentença do juiz da 5a Pretoria, devolvendo Baiaco às ruas do Estácio, ao apresentar como prova uma carta redigida de próprio punho pelo influente Dr. Ataliba. Ele não apenas declarava que o sambista trabalhava no cartório e em sua residência, como também que ele mesmo era o proprietário da navalha e pedira ao seu empregado que a levasse para o conserto, razão pela qual ela estava em seu poder naquela noite.¹⁸ Do mesmo modo, Ataliba emitira antes certidões de trabalho para livrar Baiaco da cadeia.
131. Declaração do Dr. Ataliba Correa Dutra, 1928.
132. Certidão emitida pelo Dr. Ataliba Correa Dutra, 1928.
A proteção não deixa de ser estranha e difícil de explicar sem mais dados sobre ambos que permitam deduzir a natureza de sua relação – para além da suposição mais imediata sobre uma possível convivência boêmia favorecida pelo ambiente do Mangue. Ataliba, que foi membro do Conselho Municipal entre 1928 e 1930 (ano em que o órgão foi extinto pelo governo revolucionário), era uma figura conhecida do jet-set carioca do período havia muito tempo. Podemos encontrar seu nome desde o início do século XX em pequenas notas de jornal: acompanhado de sua mãe, a “viúva Correia Dutra”, ele esteve entre as personalidades notadas pelo jornal O Paiz quando foram visitar o Palácio do Catete, em novembro de 1912, para informar-se sobre o estado de saúde de d. Orsina da Fonseca, esposa do Marechal Hermes, às vésperas do seu falecimento.¹⁹
133. Coelho Neto, s.d.
Mas, ao que tudo indica, tornou-se mais conhecido em toda a cidade como torcedor fanático do Fluminense Futebol Clube: em companhia do escritor Coelho Neto, Ataliba chegou a invadir o campo para impedir o que ambos consideraram uma atitude parcial do juiz da partida – comandando uma das primeiras, se não a primeira, invasões de campo de que se tem notícia.²⁰ O curioso é que, em 1916, quando cometeu esse desatino de torcedor, ele era delegado de polícia, categoria pela qual Baiaco nunca parece ter tido simpatias. Em 1928 e 1929, período em que por várias vezes ofereceu retaguarda ao sambista preso pela polícia carioca por vadiagem, jogo e outras infrações, Ataliba Correia Dutra tinha uma carreira política, sendo membro eleito da Intendência Municipal, além de ser o tabelião do cartório da 3a Pretoria Cível onde Baiaco afirmava (e ele corroborava) trabalhar como servente. Nesse biênio, entretanto, o sambista respondeu a oito processos, permanecendo preso por muitos meses, o que torna difícil acreditar que, justamente nesses anos, ele pudesse ter se transformado em um disciplinado e pacífico cartorário.
Em seu último ano de aparições nas delegacias e pretorias, sensivelmente alquebrado pela doença que o mataria, Baiaco já não parecia contar com padrinhos desse quilate e recorria a ocupações mais invisíveis e eventuais em suas alegações de inocência: afirmava ser vendedor ambulante de loterias e, em outra ocasião, carregador de sacos para vendas de bairro. Evidentemente, alguns desses empregos podem ter sido reais: o samba, o dinheiro dos “otários” extorquidos no jogo de chapinha, os rendimentos obtidos com as mulheres da zona podem não ter sido sempre suficientes para manter os hábitos caros de malandro – cujo estereótipo inclui a manutenção da aparência física em um padrão acima daquele exibido por humildes trabalhadores braçais –, obrigando-o, eventualmente, a aceitar alguma “viração” para garantir o sustento. Mesmo assim, a maior parte das informações de Baiaco sobre seus vínculos de trabalho era evidentemente falsa: confrontados com a justiça, donos de botequim e casas comerciais recuam, afirmando que ele trabalhou em seus estabelecimentos em algum momento do passado, mas não na ocasião da prisão; ou afirmam que não era realmente empregado, prestando apenas pequenos serviços eventuais, ou
simplesmente rejeitam com veemência qualquer conhecimento com o réu.²¹ Mas nem sempre os amigos negam fogo, permitindo que a rede de contatos do personagem apareça nesses autos pelo lado mais sólido: um botequim da Rua Júlio do Carmo no 182, na zona do meretrício, é um dos que oferecem garantias para as alegações de Baiaco, assim como o poderoso intendente que o livrou de quatro ou cinco temporadas na detenção.²²
De todos esses processos, três referem-se a delitos cometidos fora da sua vizinhança imediata ou, mais precisamente, na área central da cidade, por jogo de chapinha, quando nosso malandro tentava “fazer um ganho” enganando incautos. As demais prisões, sempre em flagrante, foram efetuadas nas ruas do meretrício e suas imediações, onde o sambista gozava de grande prestígio na segunda metade dos anos 1920. Talvez pela influência na Zona do Mangue, apontada por muitos contemporâneos, onde manteria várias mulheres a seu serviço e uma extensa rede de amizades, os policiais chegavam a reclamar expressamente, em seus testemunhos, a respeito do preso e suas artimanhas de sujeito escorregadio. Segundo eles, “o acusado presente sempre evita a prisão em flagrante [...] por ter como vigias diversas pessoas” que o avisariam da aproximação dos agentes,²³ entre as quais certamente estavam as próprias meretrizes, juntamente com os donos ou caixeiros dos botequins e outros frequentadores habituais do local. Um dos seus primeiros sucessos, aliás, o samba “Tenho uma nega”,²⁴ pode ser entendido nesse contexto, com um refrão que ficaria bem na voz de malandros dados à caftinagem e à exploração das mulheres do Mangue, sempre insatisfeitos com o valor obtido através de suas protegidas:
Tenho uma nega
que é muito inteligente,
pra comer tá com saúde
pra trabalhar tá doente.
Entretanto, se o “seu comissário” reclamava do comportamento do sambista, Baiaco também tinha do que reclamar e, nos processos a que respondeu, não deixava de denunciar aquilo que qualificava como perseguição por parte da polícia. Esse era, sem dúvida, um argumento capaz de sensibilizar juízes abarrotados de trabalho e cientes da arbitrariedade com que os agentes da lei tratavam os pobres da cidade. Preso por vadiagem em 1927, Baiaco acusa de viva voz diante do juiz a atitude policial, declarando “que ele, acusado, já respondeu há muito tempo a um processo por contravenção de vadiagem, tendo sido condenado; que a polícia, por isso, o persegue; que está regenerado, trabalhando no local já referido”.²⁵ Reforçando suas alegações, o sambista recorreu a um aliado externo, cuja qualificação é desconhecida, para que produzisse uma peça de defesa apelando por sua absolvição.²⁶ A peça é um primor que vale transcrever para resgatar o clima que cerca esses documentos. Sem qualquer preâmbulo, sem dirigir-se a alguma autoridade em particular e sem as praxes jurídicas habituais ou o necessário apreço à ortografia ou à gramática, o procurador de Baiaco vai direto ao ponto:
A polícia quando não tem revoluções nem escândalos sociais para esplorar em detrimento da honra e da liberdade alheia vem para a via pública em busca de pobres infelizes e quando não os encarceram por suposta contravenção de jogo o faz vil e miseravelmente com fundamento na vadiagem que só existe no cérebro doentio de autoridades policiais sem compostura.
É o caso dos presentes autos, deixando de serem salientadas as nulidades que se encontram no processo porque o honrado julgador assuprirá com os
suplimentos de seu notável saber e critério jurídico.
Justiça.
[manuscrito] Rio de Janeiro 21 maio 1927.
Paixão de Souza Brandão, A Rogo por não poder esquerever.
Dessa vez o honrado julgador não “assuprirou” coisa nenhuma, condenando o réu novamente por vadiagem. Mas a arbitrariedade policial era o principal argumento de defesa diante dos juízes, evidentemente porque, mais que factível, era bastante comum nos procedimentos e rotinas das delegacias. Ao menos no caso de Baiaco, a alegação chegou a surtir efeito algumas vezes. Na maior parte dos processos, ela esteve presente, ao lado dos subterfúgios destinados a gerar confusão nos inquéritos visando à sua anulação nas pretorias. Em boa parte dessas ocasiões, o intento foi alcançado e o sambista saiu livre, de volta ao Estácio e à Zona do Mangue, reforçando sua aura de sujeito safo e escolado, capaz de gerar empatia e admiração em seu ambiente.
Para outros de seus contemporâneos, entretanto, a imagem nem sempre pareceu tão positiva: um dos processos em que esteve envolvido, em 1926, teve origem em um conflito de rua com um trabalhador do porto, função análoga à que João da Bahiana exercia no período.²⁷ Segundo o estivador, a rixa vinha da véspera e Baiaco o agredira novamente a bofetadas quando se cruzaram na esquina das ruas Pinto de Azevedo com Júlio do Carmo, em plena zona do meretrício. Segundo Sideney (esse era o nome do estivador), essa fora a razão pela qual sacara a navalha, ferindo o sambista por três vezes. Em desvantagem, e vendo a aproximação de um membro da força
policial, Baiaco teria recorrido à intervenção do meganha e chamado sua atenção aos gritos: “esse homem me cortou, tome a navalha dele!”, segundo relato do próprio praça que conduzira Sideney à delegacia. No processo, para defender-se, o estivador – analfabeto – convoca um amigo e lhe dita sua defesa, redigida toscamente:
Sideney Ferreira das Neves vem urmidemente appresentar suas razões em sua defesa que abaixo escreve. [...] fui detido e fui conduzido para o distrito e lá chegano me acuzaram de que eu tinha ferido o endevido de nome Osvaldo Bartolomeu conhecido pelo vulgo de Baiaco na zona de baixo meletrís [...].
A argumentação, a partir daí, centra fogo na ficha criminal do desafeto, mencionando suas passagens pelas cadeias e o fato de ser velho conhecido dos policiais da região – ao contrário do réu – para, finalmente, desaguar em uma justificativa para a agressão, que admitira na delegacia e pela qual fora preso em flagrante, assentada na lógica boêmia dos frequentadores da Zona do Mangue: “se dei depuimento com forme está junto o prosseso é por que no dia a cima mecionado estava fora de meu sentido pois não me achava com meu juízo perfeito pois tinha bebido com alguns camaradas e nada mais tenho a expor [...]”.²⁸
Em março de 1929, em uma esquina da Rua do Estácio, Baiaco foi novamente vítima de uma agressão, dessa vez com arma de fogo. O episódio todo é uma grande confusão, na qual o motorista carioca Otávio Reis, de 30 anos, negro, acabou por sacar um revólver Smith & Wesson, calibre 38, e atirar duas vezes contra o sambista, que ficou seriamente ferido no joelho esquerdo.²⁹ As testemunhas da rua se dividem: amigos da vítima tentam mesmo impedir a todo custo que a polícia o leve, apesar de ferido à bala; vizinhos e vizinhas, por outro lado, afirmam que o réu tentou evitar a briga (no que foi ajudado pelos próprios amigos de Baiaco, empenhados em acalmar os ânimos), até porque sua mãe havia morrido naquele dia –
afirmação que, reiterada por todos, visava amenizar o gesto do agressor. A atitude de Baiaco, entretanto, partindo para o desforço físico, teria deflagrado a reação de Otávio ao sacar a arma e disparar. Ouvido no hospital, Baiaco revela a razão do incidente: fora interpelado por Otávio porque estaria “andando” com uma prostituta de quem o motorista era amante. A atitude de Otávio reforça a convicção de que o malandro sambista exercia a “profissão” de explorador do lenocínio: afinal, a relação eventual com uma prostituta não haveria de irritar a esse ponto seu amante fixo – coisa que se inverteria totalmente se o assédio de Baiaco visasse incorporar a jovem ao seu elenco da Zona do Mangue.
Por outro lado, a forma rude e abusiva de relacionamento com as mulheres da zona é uma constante nos episódios em que Baiaco se viu envolvido. Estamos aí a grande distância do silêncio cortês de João da Bahiana, por exemplo – que também andou levando tiros por causa de mulheres – a respeito das circunstâncias em que foi baleado (já que, naquele episódio, aparentemente era ele quem estava “de olho” na mulher alheia, como o “malandrão” do samba que abriu este capítulo). Tal comportamento contrasta fortemente com vários episódios em que Baiaco esteve envolvido por atos de violência contra mulheres. Maria José da Silva, por exemplo – aparentemente uma prostituta, embora não o declare nos autos –, foi agredida por ele a socos e pontapés, em plena rua, às dez horas da noite. Além da agressão, na qual teve ajuda do seu amigo Newton de tal, Baiaco ainda lhe tomou os 600 mil-réis que tinha na bolsa.³⁰
O boteco ficava na esquina da Rua do Estácio com a Pereira Franco, em plena zona do meretrício – e, a julgar pelos endereços mencionados por memorialistas, bem poderia tratar-se do Café do Compadre ou do Apolo, conhecidos pontos de encontro dos bambas do grupo; Newton de tal, cuja identidade não chegou a ser estabelecida, pois se evadiu da cena, bem poderia ser Nilton Bastos, sambista desse mesmo grupo, amigo do acusado e frequentador habitual dos cafés. Levado à presença do delegado, Baiaco explicou à autoridade que havia sido amante de Maria José e que ela, depois de abandonada, passara a ofendê-lo onde quer que o encontrasse. Como tal
fato tivesse acontecido naquela noite, ele finalmente perdera a paciência e reagira à altura, coisa que, a julgar pelo tom do depoimento registrado, lhe parecia muito natural. Quanto à acusação de roubo, é atribuída simplesmente à vingança de “mulher desprezada” – outro comportamento naturalizado, enunciado como algo próprio da natureza feminina, apesar de haver testemunhas do fato. O processo foi arquivado, indicando que o delegado achou, dessa vez, que o sambista estava coberto de razão.
Episódios em que Baiaco e seus amigos (assim como os agentes da lei) revelam suas concepções e atitudes em relação às mulheres com quem conviviam são bastante comuns nos registros da polícia. Mais grave, por exemplo, foi o caso em que, outra vez, o encontramos às voltas com meretrizes, em um enredo bastante intrincado que sublinha seu perfil criminal associado à exploração do lenocínio.³¹ Francisca Moura Bacellar, de 22 anos, estava no Rio de Janeiro havia apenas 16 dias. Novata na cidade e na prostituição, fora levada por uma companheira de profissão a um baile na Cidade Nova, na Rua Senador Pompeu. Como o baile seria “mal frequentado”, sua companheira, de nome Maria, avisara que elas deviam voltar juntas para casa, evitando caminhar sozinhas por aquelas ruas. Maria, entretanto, tivera um imprevisto (que Francisca atribui a uma dor de ouvido), deixando-a em companhia de outra colega de nome Rosinha. Segundo Francisca, as duas haviam saído do baile acompanhadas de um “marinheiro naval” e de um estivador conhecido como Cravo Vermelho. Quando iam tomar um carro de praça, Baiaco aparecera, em companhia de outros amigos (dos quais ela nomeia apenas um certo China), e teria botado seus acompanhantes “para correr”. Em seguida, sempre sob o comando de Baiaco, China e Francisca teriam embarcado em outro automóvel de aluguel, que circulara longamente pela cidade (a moça parecia incapaz de descrever o trajeto), estacionando no alto da Gávea, um trecho ermo e escuro. Teriam, então, esperado algum tempo até que Baiaco chegara, com dois ou três companheiros, em outro táxi (alguns, segundo ela, com as cabeças cobertas e portando revólveres e navalhas). No próprio automóvel, eles a teriam forçado à prática de “atos libidinosos contra a sua vontade”, usando violência e intimidação. Finalmente, Baiaco e seus amigos haviam se retirado, no carro em que haviam chegado ao local, deixando China encarregado de levar Francisca de volta à sua residência – cuidado em todo
caso curioso, a sugerir que, ao menos aos olhos de Baiaco, a relação não se encerrava aí: ao abuso humilhante se seguia a atitude protetora que convinha a um cafetão do Mangue. Durante o trajeto, ainda na estrada da Gávea, vendo uma casa acesa e um caminhão de verduras parado, ela se atirara do carro em movimento, sendo socorrida por um casal de portugueses madrugadores que a haviam encaminhado à delegacia, onde prestara queixa.
Convocado, Baiaco alegou que realmente havia afastado os dois acompanhantes da prostituta e dispensado sua colega Rosinha porque Maria, a tal amiga com dor de ouvido, lhe havia pedido que “tomasse conta” dela. Sabemos, por outras referências, como Baiaco costumava tomar conta de moças da noite, o que nos autoriza a supor que o sentido implícito na agressão à jovem prostituta e na humilhação que lhe impôs estivesse relacionado à intenção de afirmar o domínio sobre ela, a novata no métier, de modo a aumentar seus ganhos e seu poder na zona de prostituição. Quanto ao resto da história, Baiaco negou ter conhecimento do acontecido, embora o motorista de praça tenha confirmado a versão de Francisca, apenas ressalvando que, por ter sido afastado, não vira se ele e China “se serviram da moça” à força ou de forma consentida. O legista tampouco parecia disposto a ajudar a causa de Francisca: em tom que beirava o deboche, o médico da polícia registrou não ter encontrado sinais de violência sexual, levando evidentemente em conta a profissão da vítima. Encontrara apenas, disse ele, marcas de uma “unha encravada” – e ainda ressalvou que se tratava de “coisa antiga”, pela qual Baiaco não podia ser culpabilizado... O processo está incompleto, não sendo possível estabelecer o desfecho do episódio, mas suponho que o réu tenha sido absolvido, já que nenhuma condenação por estupro aparece em sua ficha criminal nos anos seguintes.³²
Apenas dois anos depois desse episódio, entretanto, o final do malandro já se anunciava. Preso mais uma vez por jogo de chapinha nas ruas do Estácio em 1929, Baiaco foi submetido a um exame médico, cujo objetivo era atestar sua validez para o trabalho.³³ O resultado, que acabou contribuindo para sua absolvição, constatou que ele sofria de uma doença – muito provavelmente, a julgar pelos sintomas descritos, a sífilis em estado avançado – que,
segundo o médico, já o impedia de trabalhar. Dirigindo-se ao médico perito, o acusado
[...] alega, quanto à saúde, que está cheio de feridas pelo corpo e em uso de umas injeções pretas, que lhe são ministradas em uma farmácia. O exame direto confirma as alegações do paciente quanto a tais feridas que alude, verificando a presença, em várias partes do corpo, principalmente nos braços, baixo ventre, órgãos genitais externos e coxas, de numerosas marcas e de feridas cutâneas salientes, arredondadas, de aspecto papuloso, na maior parte cobertas de escaras secas.
Apenas oito meses antes disso, Baiaco levara o tiro no joelho que, em junho de 1930, preocupou novamente um perito médico indicado pelo juiz para atestar sua capacidade de trabalho. O malandro mancava e tinha uma ferida supurada no joelho – coisa feia, que levou o médico a considerá-lo mais uma vez inapto para o trabalho e a recomendar tratamento urgente em hospital. A partir daí, Baiaco desapareceu das delegacias – e, minado pela doença e pelo ferimento, apagou o seu brilho de malandro e sambista.
*
Outro importante bamba do Estácio, grande amigo de Baiaco, morreu em data muito próxima, igualmente atacado pela sífilis que, na fase final, chegou a comprometer suas faculdades mentais. Brancura, como era conhecido, desapareceu como ele dos registros policiais em 1930 e apenas raras reminiscências na memória de contemporâneos são capazes de nos dar algum indício sobre seu fim, aos 33 anos de idade. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, por exemplo, o sambista Bide menciona um encontro casual com o famoso malandro, em seus últimos anos de vida, apanhando ratos mortos nas ruas do Estácio. “Eu até
chorei, sabe? Ele me reconheceu”, confessa Bide, comovido com o triste destino do antigo companheiro.³⁴
134. Brancura na Casa de Detenção (Presídio Frei Caneca), década de 1920.
Brancura era o apelido (e nome artístico) de Sylvio Fernandes, que aparece à esquerda na imagem, tocando violão com um companheiro, em uma de suas várias estadas no Presídio Frei Caneca.³⁵ Seu ano de nascimento, dado em geral pelos especialistas como 1908, é, na verdade, 1902, na cidade do Rio de Janeiro. Era filho de Arthur Fernandes e de uma mulher que, em suas diferentes visitas à polícia, nomeava alternadamente como Leonidia ou Christina Fernandes. Declarava-se sempre casado, ao contrário de Baiaco, e os endereços que fornecia ao escrivão da polícia nunca foram desmentidos em juízo: em 1927, afirmava residir em uma travessa da Avenida Salvador de Sá, no Estácio, havia 15 anos; em 1929 e 1930, o endereço fornecido, no qual dizia habitar com sua família, era sempre a Rua dos Coqueiros, Catumbi – bairro fronteiriço com o Estácio, do outro lado do Morro de São Carlos. Os empregos que declarou em quatro processos diferentes variaram, mas quase sempre ele foi capaz de apresentar atestados assinados por proprietários de casas comerciais.
135. Petição apresentada pelo réu Sylvio Fernandes (Brancura), 1927.
De uma feita, a indicação fornecida ao “comissário” foi uma torrefação de café situada na Rua Laura de Araújo – cujo proprietário, entretanto, desmentiu a afirmação do preso. Poucos dias depois, através de uma petição assinada – em que surpreendem a letra firme e a grafia impecável –, Brancura pede a juntada de um documento aos autos que, segundo suas próprias palavras, “representa a mais eloquente defesa que o abaixo assinado poderia oferecer a um Juiz íntegro como V. Excia.”: tratava-se de uma declaração formal do proprietário de outra torrefação, a Café Polar, situada na mesma vizinhança, na Rua Frei Caneca, de que Brancura, não sendo empregado regular do estabelecimento, vendia seu produto nas feiras livres. Em dois outros processos, ele conseguiu safar-se mediante declaração do Sr.
Manoel Joaquim Correa, um português proprietário do Café Nova Estrella, situado na zona do meretrício, na Rua Júlio do Carmo no 182, que, em uma ocasião, chegou a exibir na delegacia o livro de registro de empregados do estabelecimento. Note-se que o mesmo botequim serviu como álibi diversas vezes para Baiaco, em sua carreira pelas delegacias e pretorias da região.³⁶
Brancura e Baiaco eram muito parecidos, ao menos nas lembranças de seus amigos e companheiros de boemia. Pouco se conhece sobre a biografia do primeiro, como no caso do amigo, mas a imagem que prevaleceu é a de um malandro valentão e, segundo alguns, bastante violento. A memória de alguns de seus contemporâneos registra que ele seria sustentado por “dezenas de prostitutas” e que exerceria eventualmente a função de leão de chácara em cabarés e bordéis. Um dos depoimentos afirma que ele, em sinal de prosperidade, chegara a ostentar “dentes de prata, platina e ouro”.³⁷ Como Baiaco, ele exibia grande habilidade em escapar das garras da polícia e da justiça. Além de demonstrar, nos autos em que esteve envolvido, boa intimidade com os ritos e praxes processuais, Brancura evidencia uma notável capacidade de se defender sozinho. Em uma de suas prisões, em 1929, por exemplo, ele recorreu a dois expedientes: o primeiro foi indicar como local de trabalho o endereço do seu próprio advogado – versão desmentida posteriormente pelas diligências do oficial de justiça, e logo substituída pela prova oferecida pelo português amigo, dono do botequim da zona do meretrício; o segundo expediente utilizado foi ter argumentado pessoalmente, diante do juiz, que havia sido enganado pelo comissário no ato de prisão: levado à delegacia a pretexto de “prestar declarações em um inquérito administrativo instalado contra o comissário de polícia de nome Brandão”, seus direitos teriam sido ignorados e sua liberdade suprimida arbitrariamente, em um processo forjado por seus inimigos na força policial.³⁸
Os inquéritos policiais e processos criminais em que foi réu – dos quais só foi possível localizar cinco – dizem respeito a detenções por vadiagem, agressão, porte de arma (a navalha era sua companheira de todas as horas), além do jogo de chapinha. Como Baiaco, ele se envolveu em uma briga de
rua com um estivador de nome Alberto Queriquim, em 1928.³⁹ Sua ficha criminal, à semelhança daquela do amigo, inclui crimes sexuais – no caso de Brancura, por infringir os artigos 266, 268 e 272 do Código Penal vigente (estupro, atentado violento ao pudor e prática de relações carnais com menores). Nos processos localizados, a folha de antecedentes criminais registra outras condenações e entradas na Casa de Detenção, por motivos bastante semelhantes aos que levaram Baiaco às cadeias, ainda que os respectivos autos não tenham sido encontrados.
O processo mais interessante, entre os localizados relativos a Brancura e suas peripécias, é aquele em que ele e Baiaco responderam conjuntamente por jogo e roubo envolvendo um “otário” de nacionalidade francesa cujo nome era Pierre Georges Nicolas Lagrange, seduzido em plena via pública pelo jogo das chapinhas.⁴⁰ O episódio é bastante intrincado, mas pode ser resumido em suas linhas gerais a partir do depoimento dos envolvidos e testemunhas: na tarde do dia 15 de março de 1929, como relata o escrivão, os dois malandros teriam combinado dar uma “punga”. Brancura ficou esperando na esquina com um carro de praça, enquanto Baiaco atraía vítimas na calçada com suas tampinhas de cerveja e bolinha de massa sobre um jornal dobrado. Entre outros jogadores, aproximou-se um cidadão francês, um tanto desavisado, que apostou 5 mil-réis na primeira rodada e, claro, perdeu. Para pagar a aposta, retirou do bolso um maço de cédulas que continha, segundo ele, 120 mil-réis. Baiaco teria rapidamente arrebatado as notas e disparado em direção ao carro de praça no 1.013, onde era esperado por Brancura.
O francês, enfurecido, foi prestar queixa na delegacia e, ao mencionar o nome Baiaco, ouvido na roda de jogo, deixou os policiais animados. Juntamente com a vítima, eles foram para as ruas de automóvel, correr a região frequentada pelos seus velhos conhecidos: percorreram a zona do meretrício, o Estácio e parte da Cidade Nova, até que avistaram a dupla ou souberam de seu paradeiro. Ao perceberem a aproximação da polícia, Baiaco e Brancura iniciaram uma estranha manobra: correram pela Rua Presidente Barroso e entraram em uma tinturaria. Depois de muitas peripécias,
acabaram sendo reconhecidos e presos – ou melhor, Brancura conseguiu fugir correndo e Baiaco foi preso no interior do estabelecimento comercial. Ficamos sabendo, ao longo dos depoimentos, o que eles haviam tentado fazer na tinturaria.
Na ocasião do jogo de chapinhas, Baiaco vestia-se elegantemente, como convinha a um verdadeiro rei da malandragem: envergava um terno de “casimira furta-cor”, o que facilitava sua identificação a distância. Então, em plena fuga, os dois procuraram a tinturaria onde, dias antes, Brancura deixara um terno mais discreto, de sua propriedade, para lavar. No interior da loja, e sob as vistas de um dos sócios da tinturaria, do qual era freguês e conhecido, Baiaco tentou se livrar do apuro. Tirou o terno furta-cor, que mandou lavar, e vestia o de Brancura justamente quando a polícia chegou. Brancura, estando vestido, fugiu correndo pelas ruas – que conhecia como a palma da mão –, mas não ficou livre por muito tempo; Baiaco foi apanhado na hora e reconhecido pelo francês e pelo chofer de praça. Ambos foram, dessa vez, colegas de cela, enquanto aguardavam julgamento. É bem verdade que acabaram absolvidos, depois de serem assistidos pelo mesmo advogado e ainda tentarem envolver um terceiro personagem na história: o Ministério Público considerou a prova testemunhal fraca, sobretudo porque Lagrange, quando o processo corria em juízo, não mais apareceu para depor.
O último processo localizado correu na 3a Pretoria Criminal contra cinco réus, um dos quais era Brancura.⁴¹ O inquérito se originou em uma típica briga de carnaval, nas imediações da Praça Onze, entre dois blocos carnavalescos. A julgar pelos dados fornecidos nos autos, um era composto de gente do Estácio e outro da Cidade Nova. A uma e meia da madrugada, mais ou menos, o grupo do Estácio descia pela Rua Senador Eusébio em direção à Praça quando se deparou com o grupo rival em frente à sede do Kananga do Japão. A imprensa o descreve como “um verdadeiro bloco de malandros”, que descia a rua gritando a fazendo arruaça.⁴² No final, restaram um indivíduo seriamente ferido à navalha e um barbeiro de nome italianado agredido com um pé de cadeira pela negra Josepha de Oliveira, moradora valente do Morro de São Carlos. Como bom malandro não dá bobeira,
Brancura, juntamente com dois indivíduos conhecidos apenas pelos apelidos de Dentinho e Fumaça, desapareceu antes da intervenção da polícia. Sendo, entretanto, bem conhecido dos comissários, inspetores e delegados, ao ter seu nome mencionado pelas testemunhas, Brancura foi prontamente localizado e trazido para ser indiciado; mas jurou que só soube do ocorrido pelos jornais e sumiu de vez, não aparecendo para as audiências. Fez bem: acabou absolvido, mais uma vez, por falta de “elementos de convicção” para o juiz.
O malandro desfrutava ademais de uma fama que ia além das habilidades no jogo, exibidas nas ruas contra “otários” desavisados, ou da valentia: o comentário difundido sobre seu gosto de cortar com navalha o rosto de mulheres com quem saía (ou convivia na Zona do Mangue) provavelmente está relacionado ao fato de que ele também teria uma de suas fontes de renda na caftinagem. Um desses episódios, segundo os registros da bibliografia, ocorreu em um quarto de cortiço na Rua Moncorvo Filho, emprestado por outro amigo de malandragem, o famoso Zé Pretinho, homônimo do caboclo da umbanda cultuado em terreiros e imagens, para o encontro entre Brancura e uma mulher.⁴³
136. Zé Pretinho, Orixá da falange dos malandros da umbanda carioca.
Esse tipo de relacionamento com as mulheres do Mangue aparece, indiretamente, em alguns dos sambas que Brancura – aparentemente muito mais talentoso que Baiaco em assuntos musicais – deixou registrados, especialmente em um de seus maiores êxitos musicais que parece constituir resposta a um sucesso de Sinhô intitulado “De que vale a nota sem o carinho da mulher” – cujos versos desdenhavam do amor remunerado, comparado às possibilidades do envolvimento amoroso genuíno de um casal.⁴⁴ Irônico, o malandro Brancura retruca, deixando bem claras as diferenças de ponto de vista:
31. Brancura, Carinho eu tenho, 1931. Intérprete: Ismael Silva. [ clique aqui para ouvir ]
Carinho eu tenho até demais
E a nota é, como eu lhe digo
O meu desejo é uma ordem, meu bem,
Quando Deus quer não há castigo.
Carinho sem a nota
Não adianta morder
Isso de amor é lorota
É bom para quem quiser [...].
137. Madame Satã, s.d.
Entretanto, a imagem viril do malandro bom de briga e rei da zona podia ser mais complexa do que sugerem as aparências: murmurava-se que Brancura teria tido um longo affaire com ninguém menos que o temido Madame Satã, famoso por suas peripécias de valente e suas performances afeminadas na Lapa e adjacências, substituído depois de algum tempo por uma morena nas preferências do sambista. Temeroso de uma reação violenta do amante abandonado, ele teria inclusive desaparecido por alguns meses da cidade ou dos lugares que costumava frequentar.⁴⁵ Recentemente, as questões relativas à sexualidade de alguns desses personagens da chamada malandragem carioca, particularmente no que diz respeito à sua parcela mais famosa – sambistas como Brancura ou Ismael Silva, frequentadores habituais das delegacias de polícia –, têm ganhado espaço na história do samba carioca. Obras de memória ou de ficção sustentada por essas referências têm insistido
nesse ponto, amplificando uma suspeita sobre a qual se murmurava na época e que englobava nesse rol alguns nomes consagrados do período, como o próprio Francisco Alves.⁴⁶
138. Assis Valente, s.d.
Não creio que haja interesse em discutir as inclinações sexuais de indivíduos dotados de notoriedade apenas como forma de alimentar a curiosidade, ou apimentar a narrativa, mas a percepção de que relações homoafetivas
podiam circular com certa naturalidade nesse ambiente ajuda a delinear o potencial transgressivo do grupo de sambistas boêmios em relação aos padrões de seu tempo. A presença de homossexuais era não só reconhecida como relativamente tolerada – e muitos deles, como Jota Piedade, Assis Valente ou o próprio Satã, foram amigos próximos de artistas famosos, como Noel Rosa, nos botequins e cafés do Estácio ou da Lapa.⁴⁷ Essa aparente naturalidade, de alguma forma, pode ser atestada por um samba do próprio compositor da Vila Isabel que descreve um malandro avesso a “mulher bonita”. Datado de 1932, o samba é sempre mencionado quando se trata desse tópico como uma espécie de demonstração da tolerância no convívio com as diferenças e possibilidades eróticas da vida boêmia:
32. Noel Rosa, Mulato bamba, 1932. Intérprete: Mário Reis. [ clique aqui para ouvir ]
Este mulato forte é do Salgueiro
Passear no tintureiro
É o seu esporte
Já nasceu com sorte
E desde pirralho
Vive às custas do baralho
E nunca viu trabalho
E quando tira samba é novidade
Quer no morro ou na cidade
Ele sempre foi um bamba
As morenas do lugar
Vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher
O mulato... é de fato
Ele sabe fazer frente
a qualquer valente
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita [...].
Para desvendar totalmente seus significados, entretanto, esse samba deve ser remetido ao contexto de sua produção e às redes de interlocução em que estava mergulhado, para além da simples indagação curiosa sobre qual personagem dessas rodas teria “inspirado” Noel.⁴⁸ Pode-se inclusive suspeitar legitimamente de que o objetivo principal dos versos não seja exatamente descrever as inclinações sexuais do tal “mulato”, mas manifestar através dele um incômodo crescente com a apologia da malandragem, tema de vários sambas de Ismael Silva, Brancura, Bide e outros compositores do Estácio na década de 1920 e início dos anos 1930.
139. Wilson Batista, s.d.
Cabe lembrar que, poucos meses depois de lançar “Mulato bamba”, Noel Rosa envolveu-se em uma famosa polêmica com Wilson Batista, autor de versos de sucesso em que anunciava pelas eletrolas seu “orgulho de ser tão vadio”, debate que esteve na origem de sambas antológicos (e outros nem tanto) produzidos pela dupla entre 1933 e 1935.⁴⁹ Ao samba do novato Wilson Batista, ainda um rapazote que despontava nas rodas do Estácio e da Lapa, gravado por Silvio Caldas, Noel contra-ataca com seu irritado “Rapaz folgado” – ao qual se seguem as conhecidas réplicas e tréplicas entre os dois sambistas:
33. Wilson Batista, Lenço no pescoço, 1933. Intérprete: Silvio Caldas. [ clique aqui para ouvir ]
34. Noel Rosa, Rapaz folgado, 1933. Intérprete: Araci de Almeida. [ clique aqui para ouvir ]
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata [...]
Joga fora esta navalha
que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção,
já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro,
e sim de rapaz folgado.
140. Noel Rosa, s.d.
Assim, boa parte da produção de Noel, imediatamente posterior ao “Mulato bamba”, trata de polemizar com a identificação do samba à malandragem – embora a “orgia”, coisa diferente, continue a ser louvada durante toda a vida do compositor. Mas a vadiagem, a violência expressa na navalha, a falta de “papel e lápis” ou de “civilização” eram claramente indesejáveis, em seu modo de ver, como bem notou Carlos Sandroni.⁵⁰ O melhor dos sambas que o compositor produziu ao tempo dessa polêmica, louvando a Vila Isabel –
seu bairro de origem – e o samba que era capaz de produzir, explicitou novamente o desejo de libertar o gênero dos malandros e seus comportamentos que o poeta desaprovava, transformando-o em um “feitiço decente”.⁵¹ Como uma boa parte dos sambistas brancos que frequentavam aqueles círculos, Noel era um jovem “estudado”, heterossexual, de classe média e família católica. É ingênuo imaginar que, a despeito da convivência pessoal tolerante do meio artístico ou da boemia, o autor de “Mulato bamba” estivesse totalmente livre dos preconceitos e não houvesse qualquer ironia nos versos que descrevem um malandro valentão com tais inclinações.
Descrito no início do samba com todas as qualidades viris inerentes ao personagem, o mulato revela-se ao final incapaz de responder às demandas eróticas que sua própria figura provocava entre as “morenas do lugar”. A ironia, aliás, é um elemento poético inerente ao trabalho de Noel, uma espécie de marca registrada em sua obra, o que nos autoriza a imaginar ao menos uma nota de sarcasmo na construção da figura do valente admirado por sua comunidade, mas desprovido de uma forma de desejo condizente com as expectativas socialmente valorizadas. Visto por um lado, o samba atesta que habilidades “malandras” características do papel masculino, como a força e a valentia, o uso da navalha, a capacidade de passar por cima da polícia fazendo dos passeios de “tintureiro” um verdadeiro “esporte”, eram vistas positivamente pelas comunidades de trabalhadores pobres do Rio de Janeiro.
141. Veículo de transporte policial, s.d.
Mas, ao mesmo tempo, Noel chama a atenção para o fato de que tal figura atiçava as morenas de quem o malandro fugia. A estas, o pobre do mulato vadio não podia atender – mas ele sim, o compositor feio, branco, tísico. O futuro do samba estava com ele, que, malandramente, ria meio de lado do mulato bamba e o mandava tomar jeito. A impressão final é que, no início dos anos 1930, Noel parecia estar algo cansado de tipos como Brancura.
*
142. Ismael Silva, s.d.
Se cabem para Brancura (ou para qualquer outro “malandro” sexualmente ambíguo dessa roda), os versos de Noel cairiam como uma luva para o principal sambista desse círculo. Refiro-me a Ismael Silva, que foi, talvez, um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos – e, por isso mesmo, é o único membro do grupo a ter sido biografado com mais cuidado e atenção. Sua homossexualidade foi comentada por vários autores,⁵² mas sua trajetória pessoal foi sem dúvida menos agitada que a de seus companheiros do Estácio. Pelo menos os episódios em que Ismael esteve envolvido com a polícia ou a justiça são menos rocambolescos que aqueles protagonizados por Brancura e Baiaco, exceção feita a um processo criminal por tentativa de homicídio, no qual foi condenado pelo Tribunal do Júri a longos anos de cadeia, quando era já um compositor famoso e reconhecido.⁵³ Nesse episódio que encerrou seu período áureo como artista, segundo os relatos disponíveis, Ismael teria esperado na rua pelo seu desafeto, um certo Edu Motorneiro. A versão oficial é que ele pretendia “tirar satisfações” a propósito de uma abordagem inconveniente, por parte da vítima, a uma irmã do sambista – mulher de mais de 30 anos que, provavelmente, não necessitaria de tanto denodo na proteção da honra aviltada por gracejos de mau gosto. Ismael saiu de casa armado e, ao que parece, nem discutiu: já foi desferindo disparos contra Edu, que, em fuga, acabou atingido nos glúteos. O processo criminal – no qual foi condenado a quatro anos de prisão – não foi localizado na pesquisa para que essa versão corrente pudesse ser confrontada com os testemunhos e outras evidências existentes nos autos.⁵⁴ Mas o crime gerou o boato persistente de que, na verdade, de arma em punho, ele buscava acertar contas com um amante, por razões desconhecidas.
A possibilidade – embora não confirmada – deve ser levada em conta. Na biografia de Ismael – que, pelo que se sabe, nunca viveu da renda de “protegidas” na zona do meretrício –, são bastante raras as referências a seu envolvimento com mulheres.⁵⁵ Natural de Niterói, onde nasceu em 1905, filho de um operário e uma lavadeira, ele mudou-se com a mãe em 1908 para o outro lado da Baía de Guanabara, após a morte do pai, quando tinha três anos de idade. Aportaram no Estácio de Sá, onde Ismael morou por muito tempo, embora tenha residido também nos bairros vizinhos do Catumbi e Rio Comprido. Sua infância certamente não diferiu muito da de
Baiaco e Brancura, vivida nas ruas praticamente por sua própria conta e caracterizada pela carência econômica e pela fragilidade dos laços de proteção familiar ou social, mas também pelo aprendizado da “viração” em um ambiente francamente hostil a meninos negros da sua condição social. Provavelmente por essa razão, as memórias pessoais do sambista traduzem uma grande vaidade pelas suas conquistas e o esforço de valorizar o perfil de “vencedor”, que se manifesta no modo de reconstruir o passado.⁵⁶
Por exemplo, a forma como rememora seu ingresso na escola pública, contra a vontade da mãe, que o queria desde cedo no batente: teria se apresentado por iniciativa própria na escola e, mesmo sem vaga, logo teria conquistado as professoras com sua excepcional vivacidade e inteligência, garantindo o acesso ao estudo. Um detalhe no relato parece especialmente sugestivo: a dificuldade, que ele enfatiza, de achar quem o acompanhasse até a escola todos os dias, já que, segundo ele próprio, era perigoso para crianças andar sozinhas pelas ruas da cidade, o que poderia ter inviabilizado seu desejo de estudar. Levando em conta a intensidade da ação dita preventiva da polícia no período, não é difícil saber do que ele tinha medo: os números confirmam que a maior ameaça vinha mesmo dos agentes da lei, que, ao longo das primeiras décadas do século XX, desenvolveram uma ação que incidia crescentemente sobre os desocupados, com ênfase nos menores que circulavam nas ruas centrais da cidade aprendendo, desde cedo, a driblar as forças da ordem e as dificuldades da vida cotidiana.⁵⁷
De qualquer modo, sua vida no colégio não deve ter sido fácil: apesar da escolaridade rara entre sambistas de seu meio – razão justa de orgulho para ele –, Ismael só conseguiu concluir o ginásio aos 18 anos, quando já era conhecido como tocador de tamborim e começava a compor, transitando facilmente no meio dos bambas do Estácio. Não era, como ressalta de sua biografia, um simples malandro nem um desocupado permanente: embora considerasse, no fim da vida, o samba como seu único trabalho, chegou a ter ao menos um emprego regular como chefe de turma de segurança na Central do Brasil, durante um período de sua vida, e, a se acreditar nas alegações contidas nos processos de vadiagem, também como auxiliar em um
escritório de advocacia. Pois foi justamente nessa fase de sua vida que Ismael – cujo nome completo era Milton de Oliveira Ismael Silva (o que devia facilitar bastante a “manha” de esconder a identidade diante dos escrivães das delegacias, ao permitir diversas combinações) – foi mais uma vez dar com os costados no xadrez.
Ele foi preso por vadiagem em 20 de junho de 1927 por um investigador da 9a DP, de nome Ângelo Damigo, que residia na Rua Itapiru no 24, fundos, nas imediações do Morro de São Carlos.⁵⁸ Alegando familiaridade com a região e seus personagens, o investigador declarou – como era praxe nessas ocasiões – conhecer Ismael como um contumaz vadio que fazia ponto justamente na região onde residia, indivíduo sem profissão nem domicílio, analfabeto e reincidente na entrada dos xadrezes da polícia. Alegou ainda, seguindo a rotina das delegacias, “que o mesmo não tem arte, ofício ou ocupação legal de que se mantenha, pois vive do jogo nas vias públicas e é sempre encontrado nas ruas do meretrício jogando cartas, digo o jogo denominado ‘chapinha’”. O Auto de Declarações de Ismael, por sua vez, é registrado seguindo o procedimento habitual da polícia: como quase todos os detidos por essa razão, apresentou sua qualificação – nome, idade, filiação, estado civil, naturalidade e nacionalidade, grau de instrução, profissão e residência. Há pelo menos dois erros flagrantes no caso: o primeiro é apontálo como “natural desta capital” e o segundo, mais significativo, registrá-lo como analfabeto, o que dificilmente seria compatível com o orgulho manifesto por sua própria instrução escolar. Igualmente inverossímil que ele próprio tenha declarado não ter residência fixa nem ocupação, coisa que nenhum malandro experiente faria quando preso em flagrante, mas constitui o cotidiano burocrático das delegacias: vimos, com Baiaco e Brancura, como era fácil questionar os procedimentos processuais com base nessas inconsistências produzidas pelas praxes adotadas pelos “comissários”, obtendo testemunhos e declarações divergentes. Vimos, ademais, que ocupações eventuais podiam fazer parte da experiência desses sambistasmalandros – ao menos em épocas em que escasseassem otários para jogar chapinha pelas ruas ou cantores de fama para lhes comprar os sambas.
Seguindo a rotina, o investigador que conduziu Ismael à delegacia trouxe duas testemunhas que reiteraram integralmente a acusação, mantendo a fórmula: “sabe que o mesmo já foi condenado por vadio, que sabe que o acusado não tem ofício ou ocupação legal com que se mantenha, pois o vê perambulando sem destino certo pela cidade”. O Gabinete de Identificação diz que a ficha de Ismael assinala duas entradas anteriores por vadiagem – absolvido em um processo, tendo o outro sido considerado nulo. É bem verdade que, se as prisões por vadiagem ainda constituíam o maior movimento das cadeias no período, o número de condenações não acompanhava essa proporção – até porque, como já pudemos perceber, essa é uma contravenção bastante difícil de caracterizar. Interrogado na justiça, Ismael forneceu endereço, onde dizia residir havia quatro meses, e assinou o auto às folhas 69 e 69 v. Na Pretoria, um advogado apareceu para fazer sua defesa – talvez o mesmo para quem parece que andou trabalhando:
Para bem avaliar como foi feito o presente processo, basta citar o que diz a pretensa primeira testemunha, Rosalvo Brasil, empregado nos Correios, servente de 1a classe que, como é sabido, não pode pela sua função estar acompanhando os passos de um desocupado na rua! “Que sabe já foi o acusado condenado por vadio” (fls. 3. 28a linha). A ficha de fls. 10 demonstra a mentira, pois na perseguição que lhe move o investigador Ângelo Damigo, o mesmo acusado, por duas vezes processado, obteve por sentença deste juízo a sua liberdade! O processo é falso, o suposto contraventor sabe ler e escrever bem, foi dado como analfabeto para que o feito pudesse correr, como correu, à sua revelia! É uma crueldade sem nome o presente processo contra um rapaz fraquíssimo, quase tuberculoso, e atacado de um mal que o obrigou a procurar a Santa Casa de Misericórdia para onde se dirigia quando foi preso! [...].
A bem da verdade, Ismael estava mesmo doente. O “mal que o obrigou a procurar a Santa Casa”, como nos casos de Brancura e Baiaco, era a sífilis, provavelmente contraída nas noitadas do Estácio. Acabou internado por muitos meses na Santa Casa – e o advogado não deixou de acrescentar à defesa um atestado de oficiais médicos do Corpo de Bombeiros que
recomendava sua internação para tratar de tal “afecção”. O processo, naturalmente, acabou em absolvição e Ismael voltou às ruas, ou melhor, ao hospital aonde foi dar combate à sífilis. Lá, enfrentando dores físicas e dificuldades, recebeu um recado de Francisco Alves – o mais importante cantor do período, grande sucesso do disco e, logo, das transmissões radiofônicas: queria gravar um samba de Ismael chamado “Me faz carinhos” – mas, para isso, exigia assinar a composição (que, no fundo, era tão amaxixada quanto qualquer outra no período), cuja letra dizia assim:
35. Ismael Silva e Francisco Alves, Me faz carinho, c. 1927-1928. Intérprete: Francisco Alves. [ clique aqui para ouvir ]
Se eu fosse um homem branco
Ou por outra, um mulatinho,
Talvez eu tivesse sorte
De gozar os teus carinhos.
Topou na hora, feliz pela chance de faturar uns trocados e pelo prestígio que representava ser gravado pelo branco Francisco Alves, o famoso Chico Viola. Nessa época, Chico já andava em um reluzente automóvel,
frequentava as altas rodas e ostentava todos os sinais do homem bemsucedido. Na verdade, ele conhecia bem as rodas de samba. Nascera em 1898 e crescera perto do Cais do Porto, na Rua da Prainha, filho de um português dono de botequim – que talvez tenha se disposto, algumas vezes, a dar atestados de ocupação a um ou outro malandro mais chegado. É possível que, na Saúde, convivendo com os baianos da roda de Hilário e João, ou com Sinhô (cujos sucessos também gravou), tenha aprendido desde pequeno que samba é de todos, ou de ninguém, produção coletiva e sempre aberta à invenção nas rodas de bamba.⁵⁹ De qualquer modo, soube tirar proveito disso quando ele se transformou em uma mercadoria valorizada pela indústria fonográfica e por todo o circuito de comunicação de massas. Com seu talento, Ismael subiu nessa onda, tornando-se rapidamente um dos mais conhecidos compositores da cidade.
Em pleno sucesso, compositor já relativamente prestigiado pelos cantores e intelectuais com os quais conviveu na boemia, Ismael caiu novamente nas garras da polícia em 1929, em meio à feroz gestão do chefe Alfredo Pinto, cuja jurisdição havia sido ampliada para todo o Distrito Federal, tornando-o uma espécie de xerife frequentemente arbitrário no combate à contravenção. Dessa feita, não se tratava de uma façanha do comissário Damigo ou da familiar 9a DP do seu bairro, mas da 4a Delegacia Auxiliar. Ismael recorreu a vários expedientes para enfrentar o apuro: declarou trabalhar para uma casa comercial que, diante da negativa do proprietário, foi substituída pelo escritório de um advogado; declarou que tinha residência fixa havia quatro anos em uma Praça “Diamantina”, na Estação Sapé (atual Rocha Miranda, subúrbio da zona norte) – na verdade, endereço inexistente que ele corrigiu diante do juiz para “Praça Esmeralda”, mas a veracidade da informação não chegou a ser verificada.
Mas nem tudo nesse caso é idêntico ao padrão habitual dos processos de vadiagem – motivo de todas as seis detenções de Ismael entre 1927 e 1929. No auto de prisão em flagrante, quando foi dada a palavra ao acusado para contraditar ou reinquirir o policial que o havia prendido, Ismael afirmou, como era padrão nesses processos, não ser vadio, mas trabalhador. A
novidade é que ele declarou em alto e bom tom que, além de empregado no comércio, era também “compositor musical”. “Se você jurar”, seu maior sucesso, estava na praça desde o ano anterior pela voz famosa de Francisco Alves. A declaração mostra que gradativamente o samba começava a ser visto com maior respeito ou tolerância. Como de praxe, o juiz – em geral, desconfiado das espertezas dos presos tanto quanto das arbitrariedades dos agentes da lei – enviou o oficial de justiça para conferir a alegação de Ismael sobre o emprego, recentemente revelado nos autos, no tal escritório de advocacia. Cumprindo a diligência, o oficial de justiça se apressou em esclarecer que:
Em cumprimento ao respeitável despacho exarado por V. Excia. nos autos em que é acusado Ismael da Silva, incurso no artigo 399 do Código Penal, cabe-me informar que me dirigi à rua do Carmo número 49, escritório de advocacia do Dr. Alarico dos Reis, sendo aí informado pelo referido advogado que teve como empregado o acusado acima mencionado e que o mesmo saiu do seu escritório afim de trabalhar em uma fábrica e que sempre o acusado teve bom comportamento, chegando mesmo ao seu conhecimento que o referido acusado é compositor de música, conforme livretos que me foram entregues.⁶⁰
Àquelas alturas, a condição de compositor de sucessos podia ser lida como um argumento de defesa – de modo que o advogado tratou de fornecer as “provas” ao oficial de justiça, em forma de partituras dos sucessos gravados por Chico Viola e outros –, sem deixar de, por cautela, informar “malandramente” que ele teria deixado o emprego no escritório para se tornar operário, preenchendo assim expectativas padronizadas das autoridades que julgavam ser esse o destino “certo” para indivíduos como Ismael. Ademais, o médico-legista que assinou o exame de validez física atestou que a sífilis estava longe de ter sido curada, enfraquecendo o compositor (embora frisasse que isso não o impedia de trabalhar) e exigindo constantes cuidados médicos. Segundo ele, Ismael apresentava “uretrite aguda, cancros venéreos e adenite inguinal bilateral” – evidências seguras de que a sua “afecção” de 1927 ainda dava sinais de vida. O juiz absolveu o
sambista ainda dessa vez, considerando os dois argumentos: seu estado físico e a atividade, aceita como profissional e vista com clara simpatia, de autor de sambas populares. A partir daí, Ismael não voltou a figurar em processos por contravenção e sua carreira entrava em franca ascensão.⁶¹
Em 1935, no auge da fama e pouco antes do episódio que o levou ao presídio e ao ostracismo, foi chamado ao palco por Francisco Alves, após apresentação de um samba da “parceria” que incluía, por exigência de Ismael, o nome de Nilton Bastos, coautor real de grande parte de suas composições. Nesse dia, conta sua biógrafa, Chico referiu-se a ele, diante da plateia, como “um negro de alma branca” – e Ismael não gostou nada da expressão. Parece que o encanto acabou aí, coroando um mal-estar que já vinha crescendo entre os dois.⁶² Embora, como ele mesmo diz, tenha chegado, nesse tempo cheio de prestígio, até a “usar guarda-chuva com cabo de ouro” e a frequentar os saraus intelectualizados do gaúcho Aníbal Machado – onde conviveu com Mário de Andrade (um amigo especial, destacado nas suas memórias), Prudente de Moraes Neto (que foi seu defensor no Tribunal do Júri em 1936), Portinari, Carlos Drummond de Andrade e muitos outros intelectuais importantes, todos entusiastas de uma noção de “popular” corporificada no seu tipo malandro e na sua música sincopada –, Ismael não parecia feliz.
143. Aníbal Machado, s.d.
144. Mário de Andrade, s.d.
Acabou por afastar-se do Estácio três ou quatro anos depois da fundação da sua famosa escola de samba, a “Deixa Falar” – quando esta abandonou os novos padrões de desfile para voltar à antiga fórmula do rancho carnavalesco. Mas, mesmo sendo autor de êxitos comerciais – “Se você jurar”, “Para me livrar do mal” e tantos outros gravados por grandes nomes da música popular –, ele continuava apegado aos velhos hábitos. Chegou a ser preso do outro lado da Baía de Guanabara, em sua fase de maior sucesso como compositor, por estar praticando nas ruas o velho jogo de chapinha. O compositor branco Roberto Martins, que era também agente da polícia e conhecido do comissário Policarpo da delegacia de Niterói, recebeu um
telefonema dizendo que haviam prendido um “crioulo magrinho” que afirmava ser seu amigo. Dizia chamar-se Ismael Silva. O compositor apressou-se a apresentá-lo ao comissário, cantando ao telefone alguns sucessos. “Mas tudo isso é dele?”, espantou-se o agente da lei. Impressionado, pediu a presença do colega do Rio, misto de sambista e policial, que foi tirar Ismael da cadeia, encontrando-o encabulado por ter sido pego “dando uma bolinha” nas ruas de sua cidade natal.⁶³ A vergonha, aparentemente, era mais por ter se deixado pegar que pelo jogo em si, uma vez que o sambista confessou candidamente ao amigo ter sentido saudades da vida das ruas...
145. Roberto Martins, s.d.
Entre os sucessos apresentados ao comissário Policarpo, que facilitaram a vida de Ismael livrando-o, pelo reconhecimento, de novas encrencas com a polícia, estava um samba intitulado “O que será de mim?”, de 1931, no qual a identidade malandra – com a qual havia se consagrado em “Se você jurar” – voltava como um tema canônico dos sambistas do seu meio. Não se falava, nesse caso, em regeneração:
36. Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, O que será de mim?, 1931. Intérprete: Francisco Alves e Mário Reis. [ clique aqui para ouvir ]
Se eu precisar algum dia
De ir pro batente, não sei o que será
Pois vivo na malandragem
E vida melhor não há
Pois não há vida melhor, e vida melhor não há
Deixa falar quem quiser, deixa quem quiser falar
O trabalho não é bom, ninguém pode duvidar
Trabalhar só obrigado, por gosto ninguém vai lá.
Não deixa de ser melancólico o final do período de ouro de sambista que, no auge de sua fama, por causa de um Edu qualquer, retornou ao Estácio para amargar uma longa temporada no Presídio Frei Caneca, após sua condenação em agosto de 1936.⁶⁴ Lá, a saúde se fragilizou ainda mais e seu nome desapareceu rapidamente do cartaz. Abandonado pelos amigos, pobre e esquecido, Ismael enfrentou um período de difícil readaptação na década seguinte. É suposição generalizada que isso tenha inspirado um samba inesquecível, que veio à luz em 1950, quando ele enfrentava sérias dificuldades financeiras:⁶⁵
37. Ismael Silva, Antonico, 1950. Intérprete: Alcides Geraldi. [ clique aqui para ouvir ]
Ô Antonico, vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessária uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade.
Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim.
O velho malandro parecia agora totalmente desfigurado, atrás de alguma “viração” para enfrentar os novos tempos. Na experiência real, tivera vida gloriosa, mas curta – ainda que tenha sido capaz de dar as cartas para virar um símbolo de larga duração, ao contrário de Baiaco e Brancura. Seja como for, é fácil constatar à primeira vista as diferenças de estilo e comportamento entre os sambistas da velha geração da Cidade Nova e os “malandrões” do Estácio que dominaram o samba nos anos 1920. Menos óbvias talvez sejam suas razões. Podemos procurar por elas aventurando-nos pelas ruas e ambientes frequentados por estes últimos em seu bairro de origem, em busca de indícios que possam ajudar a entender as peculiaridades que os afastam dos padrões encontrados na região vizinha que visitamos em companhia dos baianos do samba e do povo de santo.
Entre os santos e as donas: O Estácio de Sá
CONHECIDO PELA vida boêmia, corporificada na fama dos lendários sambistas malandros e das noites fervilhantes dos bordéis, o bairro do Estácio, incluída a Zona do Mangue, foi cantado em prosa e verso nos anos 1920 e 1930. “Mais Veneza americana que o Recife”, como descrevia Manuel Bandeira, o bairro fora bem “simplesinho” em décadas anteriores. Segundo o poeta, no início daquele século, “o Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam com rancor” através das palmeiras enfileiradas às margens do canal que o separava da Cidade Nova. Vinte anos depois, entretanto, a imagem do local era outra. A síntese do poeta pernambucano cujos textos demonstravam, aqui e ali, encanto permanente com a malandragem e a boemia buscava enfatizar seus principais elementos: “com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco és mulher, és mulher e nada mais”.⁶⁶
Registros da mesma época produzidos por artistas como Di Cavalcanti e Lasar Segall, a despeito das diferenças entre os tons vibrantes e os sombrios, reforçam essa concepção que articula o samba e a prostituição, enxergando a região exclusivamente através da “zona” e seus frequentadores noturnos, entre os quais, é claro, tais artistas se incluíam ao lado dos sambistas da região.⁶⁷ Vistos de perto, entretanto, a zona do meretrício à beira do Canal do Mangue e o Estácio de Sá, bairro misturado a ela para os lados do Morro de São Carlos, eram certamente bem menos glamorosos do que sugerem esses textos e retratos, como pudemos vislumbrar nos processos que examinamos até aqui.
146. Mangue (grafite e aquarela sobre papel), 1929. Emiliano Di Cavalcanti.
147. Mangue, c. 1925. Lasar Segall.
O bairro foi destacado ainda, na história do samba carioca, principalmente por ter sido o berço daquela que é tida como a primeira escola de samba da
cidade – fundada em 1928 no Largo do Estácio, fronteira entre a zona e a favela. Tratava-se da famosa “Deixa Falar”, introdutora dos surdos para marcação do andamento do samba nos desfiles anuais, da qual faziam parte sambistas como Ismael Silva e seus companheiros Bide, Marçal, Brancura, Baiaco, Mano Edgar, Mano Aurélio, Nilton Bastos e vários outros personagens cultuados na história do gênero. De certo modo, os velhos batuques que ecoavam naquelas ruas em volta do Canal do Mangue no século XIX pareciam estar de volta, em desfiles definidos tanto pelo ritmo quanto pela melodia – e essa era a grande novidade que Ismael e seus companheiros traziam ao carnaval carioca, onde o samba se tornará, a partir de então, uma indiscutível preferência em animados carnavais. De posse dessas impressões e lembranças, podemos agora circular um pouco pelas redondezas em que fizeram fama esses sambistas, cariocas da gema, em busca de elementos que os diferenciem, ou não, dos baianos da Cidade Nova.
Nos anos 1920, aquela era uma vizinhança superpovoada de trabalhadores amontoados nas íngremes ladeiras do morro de São Carlos ou nos muitos cortiços da região, disputando espaço com as atividades do meretrício que avançavam das ruas que margeavam o canal em direção ao morro. Cabe relembrar que, desde a primeira década do século, as reformas urbanas vinham modificando, com uma rapidez notável, a distribuição populacional do Rio de Janeiro, levando um grande contingente dos segmentos mais pobres a deslocar-se da região central para a zona norte, seguindo a linha da estrada de ferro. A fúria modernizadora empurrava essa parcela da população para áreas relativamente vazias da cidade, cada vez mais longe do trabalho e dos pontos de circulação dos mais ricos, assim como das vitrines urbanas erguidas no centro da capital federal.
148. Morro de São Carlos, 1933. Augusto Malta.
Um dos primeiros espaços ocupados massivamente por essa população expulsa da área portuária e central, na qual se misturavam brasileiros e um grande contingente de imigrantes pobres, foi o antigo Morro de Santos Rodrigues ou Barro Vermelho, depois rebatizado, em uma de suas encostas, como Morro de São Carlos. O morro todo e as ruas que o circundavam
formavam, na verdade, dois bairros vizinhos: ao norte, o Estácio e, na outra face, o Catumbi, que, com ele, compunha a antiga freguesia do Espírito Santo. Em 1912, quando o processo de adensamento ainda não se completara, essa já era a região da cidade com a segunda taxa de densidade demográfica (atrás apenas de Santana) e com o índice de crescimento populacional mais acelerado da cidade.⁶⁸
Não há, por isso, nenhuma razão para supor uma composição demográfica muito diferente entre as regiões contíguas do Espírito Santo e de Santana quando se abrem os anos 1920. Se não dispomos dos dados censitários específicos para esse trecho urbano, algumas informações extraídas do movimento da delegacia – amostragem pequena demais para ser considerada estatisticamente confiável, razão pela qual deve ser tomada com cautela – sugerem, comparativamente, percentagens muito próximas às encontradas para Santana nas proporções raciais, de nacionalidade e mesmo de naturalidade.⁶⁹ Também a presença de migrantes de outros estados do país fica bem flagrante nesses dados, sugerindo uma significativa proporção de “nortistas” (que surgem nessas ocorrências com uma frequência maior que migrantes de outras regiões do país), ainda que não se mencione nessas redondezas a existência de alguma comunidade assentada em raízes regionais. Além disso, à semelhança de Santana, o volume de indivíduos nascidos no Rio de Janeiro superava de longe esses contingentes.
Os estrangeiros, por sua vez, mantinham uma forte presença – algo em torno de 30% dos indivíduos que compareceram às dependências policiais da região, de modo semelhante aos dados de Santana para o início do século. Predominavam entre eles os portugueses, em boa parte ligados às atividades do porto. Mas, é claro, havia outras nacionalidades e, em se tratando da delegacia responsável pela ordem da Zona do Mangue, muitas “polacas”, talvez menos distintas que essas fotografadas por Augusto Malta, que dividiam as casas com as prostitutas locais, nem sempre de forma pacífica: entre elas, para citar um exemplo, a cafetina inglesa de nome Carmen Zanith, proprietária do bordel da Rua Pereira Franco no 61, detida em
flagrante de luta corporal com uma de “suas meninas”, prostituta negra pouco submissa às suas condições.⁷⁰
149. Polacas, c. 1920. Augusto Malta.
No início do século XX, entretanto, o bairro “simplesinho” ainda mantinha uma densidade populacional relativamente baixa.⁷¹ Lugar sossegado, não era, entretanto, um espaço vazio ou abandonado e funcionava como ponto de convergência do transporte urbano entre o centro e a zona norte. Ali, no Largo do Estácio, ficava a Capela do Divino Espírito Santo – demolida após a República para dar lugar a uma igreja –, dedicada à mesma devoção católica. Logo adiante, ficava a Escola Normal , por onde circulavam moças de família em busca de instrução ou qualificação profissional. Havia muitos
casarões, remanescentes do tempo em que o lugar era conhecido como MataPorcos – caminho obrigatório para a residência imperial em São Cristovão –, transformados em cortiços para moradores pobres ou em dependências administrativas nas primeiras décadas republicanas, como o palacete do Barão da Bela Vista e outros da velha aristocracia que mantinha chácaras no local.⁷²
150. Igreja do Espírito Santo no bairro do Estácio de Sá, c. 1950.
151. Escola Normal do Distrito Federal, no Estácio, c. 1914-1930. Augusto Malta.
O marco mais importante da arquitetura local, entretanto, era a Casa de Correção (mais tarde rebatizada como Presídio Frei Caneca – recentemente demolido), que começou a ser erguida aos pés do Morro de São Carlos na segunda metade do século XIX, na fronteira entre o Estácio e o Catumbi. Ela não cessou de crescer nas décadas seguintes, dominando a paisagem com sua
imponência (e provavelmente ocupando a imaginação temerosa dos habitantes do local).
152. Presídio Frei Caneca (Casa de Correção), no início do século XX.
Vizinho da Cidade Nova e do centro, o bairro constituía a melhor opção para quem, forçado a mudar-se para a zona norte, queria se manter perto do trabalho, do comércio e das demais facilidades da cidade moderna que se
desenvolvia rapidamente na outra margem do canal. Por outro lado, o mesmo impulso que fazia crescer o presídio e empurrava os trabalhadores pobres para fora da área central impôs seguidas investidas policiais que forçaram as prostitutas, concentradas no início do século XX na antiga freguesia central de Sacramento e na Lapa, a se deslocarem para “zonas” mais distantes, ainda que não chegasse a haver uma política oficial de confinamento na cidade. A visita do rei Alberto, da Bélgica, ao Brasil, em 1920, tornou-se um marco de consolidação nesse esforço da polícia carioca.⁷³
153. Marinheiros no Mangue, s.d. Augusto Malta.
A região do Mangue aglutinou a parcela mais pobre (e barata) do meretrício em velhas casas de rótula frequentadas por homens de todas as classes sociais, que apinhavam as vielas nascidas na Rua Visconde de Itaúna, às margens do canal. Podia haver alguma consideração de ordem prática na intenção de deixá-las bem perto da Casa de Correção, embora esse propósito
não tenha sido explicitado pelas autoridades. Talvez a proximidade não passe de sugestiva coincidência, mas, seja como for, a maioria das ruas que cortam o Estácio em direção à Rua Frei Caneca partindo do Canal do Mangue, onde as prostitutas foram se concentrando, surgiu após a construção da Casa de Correção para facilitar a circulação de presos e agentes da lei.⁷⁴
Essas vias de circulação foram quase todas abertas ainda no século XIX em terras pertencentes ao Conde de Pirassununga, razão pela qual os nomes de senhoras de ilibada reputação, pertencentes àquela ilustre família – como Dona Feliciana, Dona Julia, Laura de Araújo ou a própria Viscondessa de Pirassununga –, batizaram os logradouros que, nos anos 1920, abrigariam as mais populares concentrações do meretrício na cidade em casas frequentadas por artistas, sambistas, homens pobres, marinheiros, soldados e quem mais se dispusesse a enfrentar suas noites agitadas.⁷⁵
154. Ruas do bairro Estácio de Sá, destacando em vermelho a modificação do traçado da Avenida Salvador de Sá, 1903.
Antes disso, ao menos desde 1903, quando Pereira Passos planejava a reforma da área mais próxima do porto, o bairro já tinha seu traçado praticamente estabelecido, à exceção da Avenida Salvador de Sá, assinalada em vermelho no mapa das reformas, projetada para unir a Rua do Estácio ao final da Rua Frei Caneca – que, em curva, volteando o morro, passava no portal imponente do presídio.⁷⁶ Muito menos afetada pelo “bota-abaixo” que a Cidade Nova, aquela vizinhança ainda não constituía motivo de preocupação especial para as autoridades. Havia ainda poucas ruas em volta do morro, na continuação das vias paralelas de São Carlos e Laurindo Rabelo. Em 1913, Hermes da Fonseca mandou construir na nova avenida conjuntos de “casas econômicas” para os operários da cidade em condições diferentes dos cortiços habituais, proposta que jamais chegou a se generalizar como alternativa de habitação popular.
A iniciativa, no entanto, deixava implícita a percepção daquela vizinhança como um espaço essencialmente proletário, antes que passasse a ser visto como um bairro boêmio e perigoso.⁷⁷ Ao contrário da Favela e demais morros próximos, o Morro de São Carlos, já bem povoado nos anos 1920, tinha relativamente poucos moradores no início do século, e suas imediações, simbolicamente bem guardadas pelo presídio, eram pontilhadas por muitos estabelecimentos fabris, quartéis e pela primeira grande usina de Força e Luz, da Light, que começou a funcionar ali em 1907.⁷⁸
155. Morro de São Carlos. c. 1920. Augusto Malta.
No início da década de 1930, o cronista Vagalume publicou suas impressões de uma visita ao local, ciceroneado por um sambista de nome Otaviano, nascido e criado lá, como registra o autor. Seu relato esboça uma atmosfera quase idílica para uma comunidade “regenerada” e pacífica, habitada por “operários de diferentes misteres”, entre os quais destacava os trabalhadores das “diversas especialidades da estiva”. O cronista fez ainda questão de afirmar que brasileiros e portugueses viviam ali em “perfeita comunhão” e
ordem. Havia mesmo no morro um trecho de maior concentração desses imigrantes conhecido como “Portugal Pequeno”, antes que ocorresse a Heitor dos Prazeres nomear como “Pequena África” o grande recorte urbano que se estende do porto ao Estácio.⁷⁹ Artistas de gerações mais antigas são também mencionados nessas descrições, embora com menor frequência que para a área de Santana: Otaviano chegou a mencionar ao repórter um botequim na Rua Frei Caneca onde teria convivido com gente famosa, como Eduardo das Neves, antes que o Estácio se tornasse um ponto de atração boêmia.⁸⁰
Os índices de crescimento demográfico experimentados pela região no período republicano são bastante eloquentes: enquanto a extensa freguesia de Santana ampliou seu contingente populacional em cerca de 30% entre 1890 e 1920, a área do Espírito Santo mais que dobrou sua população nesse mesmo intervalo.⁸¹ Pouco mais de duas décadas depois das reformas de Pereira Passos, uma segunda planta da cidade,⁸² que inclui a divisão em lotes e as edificações existentes, mostra o quanto se havia intensificado a ocupação do bairro coroado pela favela no início dos anos 1930 – quando foi visitado por Vagalume.
156. Planta da região do Estácio, incluindo o morro de São Carlos e zona da Mangue, 1935.
Comparada com o mapa das reformas de Pereira Passos para a região, a imagem revela que a malha urbana praticamente não se alterou na faixa do canal até o Morro de São Carlos, embora tenha se adensado muito nas encostas do morro e nas pequenas ruas, muitas delas novas, que o circundam, as quais aparecem aqui apenas parcialmente. A ocupação do solo era já bastante concentrada, principalmente em torno do Morro de São Carlos – cujos barracos, por falta de registro nos órgãos públicos, não aparecem no mapeamento. Ruas como Maia de Lacerda, Aristides Lobo, Ambirre Cavalcanti, da Estrela ou Itapiru – esta última dando a volta no morro e unindo os bairros do Estácio e do Catumbi – viram multiplicarem-se rapidamente os lotes apertados e apinhados de pequenas casas individuais e cortiços.
Nos anos 1920, após a reforma da polícia do Distrito Federal, o Estácio continuava incluído na mesma jurisdição que o vizinho Catumbi, situado do outro lado do morro, mas sua delegacia – que passou a ser a 9a Circunscrição Urbana – havia mudado de endereço: estava situada mais estrategicamente na Rua Júlio do Carmo, ao lado de uma sinagoga que ocupava o imóvel de no 13, e bem próxima das ruas que compunham a Zona do Mangue.⁸³ Ia longe o tempo em que seus agentes tinham pouco o que fazer naquelas ruas. Dez anos antes, no mês de janeiro de 1914, por exemplo, a então 11a DP, responsável pela jurisdição do Espírito Santo, efetuara apenas uma prisão: tratava-se de um menor que vagava pelas suas ruas. Por sua vez, a delegacia de Santana capturara, no mesmo mês, dezenas de “vadios”, indicando características e dinâmicas diferenciadas dos dois bairros separados pelo Canal do Mangue na década anterior.⁸⁴ Se tomarmos o ano de 1925, ainda que apenas uma amostra parcial das ocorrências registradas na delegacia tenha sido localizada nesta pesquisa, é fácil constatar que os agentes da lei já tinham muito trabalho por ali – e certamente o corre-corre da delegacia da região do Espírito Santo superava o da vizinha 14a (Santana), que tinha jurisdição sobre a outra margem do canal.⁸⁵
Naquele ano, o delegado, os comissários e os inspetores de Santana – a cujo encargo estava um contingente de mais de 91 mil moradores – registraram em livro um total de 1.838 ocorrências. Quanto aos da 9a, onde habitavam pouco mais de 79 mil almas, não ficaram atrás. Não temos o número final para o ano todo, mas os livros relativos a janeiro e parte de fevereiro permitem projetar o movimento anual para algo em torno de 1.900 ocorrências. Se reduzirmos a comparação para o mês de janeiro nas duas delegacias, de modo a contar com dados mais delimitados, os números se tornam mais eloquentes: 214 ocorrências foram registradas ali, contra apenas 141 em Santana, cuja população era consideravelmente maior que a do Espírito Santo.⁸⁶ Mas talvez a comparação qualitativa possa ser ainda mais esclarecedora.
Os episódios que envolveram violência nas duas delegacias (homicídios ou tentativas frustradas, agressão, uso de armas de fogo ou brancas, desordens com violência) correspondem a 40% dos registros no Espírito Santo, mas a apenas 10% na vizinha delegacia de Santana. Por outro lado, os policiais de Santana dedicaram a maior parte de seu esforço nos anos 1920 a veículos abalroados, atropelamentos, motoristas imprudentes e outras ocorrências de trânsito, que correspondem a 46% dos episódios atendidos por eles, contra apenas 18% no Espírito Santo: a introdução dos automóveis parece ter criado um verdadeiro caos nas áreas mais centrais, repletas de motoristas despreparados, pedestres distraídos, ruas estreitas, bondes, carroças e poucas regras estabelecidas para o fluxo que crescia – coisa que não acontecia com a mesma intensidade do lado mais proletário do canal. Por outro lado, destaca-se um contraste importante com os primeiros anos do século: as prisões por vadiagem decaíram radicalmente no período. Apenas três casos foram registrados no Espírito Santo em janeiro de 1925 (dois menores que vagavam pela zona e uma mulher presa como suspeita de fazer o proibido trottoir na mesma região – que, afinal, acabou se revelando uma costureira a serviço das moradoras dos prostíbulos, que por ali circulava para entregar e receber encomendas, como reconhece o próprio boletim da ocorrência).⁸⁷ Em Santana, velha recordista no assunto, houve apenas dois registros de prisão por vadiagem no mesmo mês. Assim, apesar das várias prisões de Baiaco, Brancura e Ismael, os critérios da polícia parecem mais seletivos no que diz respeito ao artigo 399 do Código Penal.
Em seu lugar, o jogo aparece como foco de preocupação, mais em Santana (onde foi o terceiro motivo mais frequente de prisões, todas relacionadas ao jogo do bicho) que no Espírito Santo, onde apenas um episódio foi registrado, relativo ao jogo de “chapinha”, prática de alguns indivíduos visados pelos homens da lei. O alvo parece ser especificamente “malandros” bem conhecidos, enquadrados simultaneamente por jogo e vadiagem, e em número bem menor do que se viu no período anterior, caracterizado pela preocupação generalizada com a vadiagem. Os furtos tinham um lugar de destaque – mais em Santana que no Espírito Santo, e com uma diferença a ser notada: na primeira região, eram muito mais frequentes os furtos a casas de comércio ou a ação de punguistas nas ruas, ao passo que, na região do Estácio, a grande maioria dos casos se refere a furtos de roupas em varal, objetos domésticos e até de um cabrito, furiosamente reclamado por seu proprietário – animal que talvez tenha terminado seus dias em uma bemsucedida cabritada no alto do morro, ao som do samba inspirado de alguns de seus moradores.⁸⁸ Uma dessas queixas, no mês de janeiro, aliás, é digna de registro pelo detalhe inusitado: o queixoso acusava um vizinho pelo furto de vários de seus pertences domésticos e também de sua mulher, que havia desaparecido com o larápio.⁸⁹ Abundavam ainda na delegacia do Espírito Santo os casos de suicídio – foram sete durante todo o ano na delegacia de Santana, contra nove apenas em janeiro na área do Espírito Santo –, cometidos, em praticamente todos os casos, pelas mulheres do Mangue.⁹⁰
Parte da explicação pela maior violência dos episódios e pelo conjunto desses elementos pode ser creditada à pobreza dos moradores da região, mais concentrada ou segregada ali que em Santana, bem como à convivência muito próxima entre os trabalhadores pobres e as meretrizes que atraíam para a região um público masculino variado e numeroso: de certa forma, pode-se dizer que a Zona do Mangue, ao abrir muitas possibilidades de ganhar a vida fora do trabalho regular, alimentava a chamada malandragem, particularmente aquela mais próxima, oriunda do Estácio e de bairros vizinhos. Na verdade, se localizamos no mapa os endereços registrados nas diferentes ocorrências e os usos anotados pelo escrivão, podemos ter uma ideia aproximada das funções diferenciadas em cada setor daquele trecho
urbano. O que primeiro chama a atenção na distribuição desses endereços é que a maior parte das residências individuais e dos cortiços mencionados se espalhava na área do morro e nas ruas adjacentes, enquanto prostíbulos e botequins se localizavam preferencialmente nas ruas abaixo da Avenida Salvador de Sá, construída por Pereira Passos, com frequência evidentemente mais intensa perto do Canal do Mangue.
157. Canal do Mangue, s.d.
Chama a atenção ainda o fato de que, em pleno território dos malandros mais famosos do período (porque assumiam simultaneamente a já popular feição
de sambistas), a vadiagem e o jogo figurem muito pouco entre as detenções e os registros de ocorrências, contrariando um estereótipo estabelecido.⁹¹ Apesar disso, entre os presos do início do ano, por mais que a amostragem seja pequena, já é possível encontrar velhos conhecidos do mundo do samba. Consta, por exemplo, uma das muitas prisões de Ismael Silva – denunciado dessa vez por um “otário” depenado no jogo de chapinhas nas ruas do meretrício.⁹²
158. Alcebíades Barcelos, o Bide, 1939.
É possível encontrar também, nesse breve período, nomes como o de Alcebíades Barcelos – mais conhecido como Bide, caso se trate efetivamente da mesma pessoa: seu nome aparece como testemunha em um confuso episódio no qual três praças identificados apenas pelos sugestivos apelidos de “Dentinho”, “Bexiga” e “Todo Grosso”, alegadamente por ordem do delegado, trataram de dispersar com pancadas um grupo de músicos e ritmistas que se divertia na entrada do Morro de São Carlos.⁹³
159. Entrada do Morro de São Carlos, c. 1928. Augusto Malta.
O sambista mulato não era ainda àquelas alturas uma figura conhecida no meio musical. Era um simples operário na fábrica de calçados Bordallo, no
centro da cidade, mas seu aparecimento no mundo das gravações e dos espetáculos estava prestes a acontecer. Em 1928, o ano da primeira apresentação da “Deixa Falar” nas ruas da cidade, um samba de sua autoria intitulado justamente “A malandragem” chegou aos ouvidos treinados do astro do disco Francisco Alves. O sambista foi procurado pelo cantor em uma gafieira no Rio Comprido, chamada Estrela D’Alva, com uma proposta de “parceria” para gravar aquele que seria o seu primeiro sucesso.⁹⁴
38. Bide, A malandragem, 1928. Intérprete: Francisco Alves. [ clique aqui para ouvir ]
As referências da bibliografia a indivíduos como Ismael e Bide costumam associá-los a dois botequins famosos da região – o Bar do Apolo e o Café do Compadre –, cujas mesas teriam presenciado a inspiração desse grupo de compositores em seu dia a dia pelo bairro do Estácio, e não a gafieiras de subúrbio. Frequentados por jogadores de chapinhas, operários, prostitutas, estivadores e outros personagens do local, esses espaços de convivência seriam palco da intensa produção musical que definiria o Estácio nos anos seguintes. A fama dos dois botequins (secundada pela de outro, denominado Café Nacional, igualmente frequentado por sambistas, embora menos citado) é tão grande, na bibliografia especializada, quanto a incerteza sobre sua localização. Há quem os situe (ambos) na esquina da Rua Pereira Franco com a Avenida Salvador de Sá e quem os aponte na subida do Morro de São Carlos, esquina com a Rua Maia Lacerda, um, e na esquina da Rua do Estácio com a Pereira Franco, outro.⁹⁵ Com esse grau de imprecisão, todas as referências os colocam na fronteira entre o bairro e a Zona do Mangue, onde a maior parte dos botequins estava localizada, a julgar pelas ocorrências registradas na delegacia.
160. Bucy Moreira, s.d.
O local em que vários sambistas desse grupo foram presos, em diferentes ocasiões documentadas nos processos, revela onde eles circulavam diuturnamente por ali: Bucy Moreira – neto da tia Ciata, mas frequentador assíduo da Zona do Mangue – foi apanhado pela polícia na esquina das ruas Visconde de Itaúna e Laura de Araújo, por “estar perambulando sem destino” e ser vadio contumaz;⁹⁶ Ismael Silva foi capturado duas vezes em esquinas das ruas Carmo Neto e Júlio do Carmo – bem perto da delegacia, aliás; Baiaco foi preso quatro vezes na Rua Júlio do Carmo, além de duas vezes na esquina dessa rua com a Carmo Neto, outras na Nery Pinheiro, Benedito Hipólito, na Rua do Estácio e na Rua Pinto de Azevedo – para mencionar apenas algumas das ocasiões. Brancura foi capturado duas vezes na Rua Júlio do Carmo e também na Conselheiro Pereira Franco e Benedito Hipólito, entre algumas poucas estripulias cometidas por ele e seus companheiros fora dos limites da região, indicando que a zona era mesmo o polo de atração, atividade e reunião do grupo.
Entretanto, a malandragem boêmia não era a única marca do bairro, especialmente no que diz respeito ao Morro de São Carlos. Na reportagem incluída em seu famoso livro sobre o samba, Vagalume atribui um peso muito grande à religiosidade dos moradores, em parte responsável por aquilo que ele chama a “regeneração”, que diferenciava, a seus olhos, o São Carlos dos morros mais “perigosos” do Querosene, Salgueiro ou Mangueira. Para ele, a maioria católica, simbolizada pela presença da Igreja de Santo Antônio no alto do morro, era secundada por devotos do espiritismo e da “religião africana”, em uma proporção que o cronista estimou em mais de um terço dos moradores. Seu próprio cicerone, o velho sambista local, era parte desse grupo africano e defendeu sua crença com o argumento de que ela seria igual à católica, cultuando os mesmos santos com nomes e rituais diferentes: “nós acreditamos em Deus, adoramos Jesus Cristo, Nossa Senhora da Conceição, São Jorge, São Sebastião e os senhores também. Portanto, não há diferença” – teria afirmado Otaviano quando questionado pelo repórter, enumerando as habituais correspondências entre São Jorge e Ogum, Santa Bárbara e Iansã e assim por diante, que o cronista reproduziu para enfatizar o sincretismo sempre apontado como uma característica central de algumas vertentes da religiosidade afro-brasileira.⁹⁷
A julgar por tais indicações, embora Vagalume não o diga explicitamente, Otaviano refere-se aos cultos do omolokô, ou da umbanda, que pareciam predominar naquela área da cidade, diferentemente da Cidade Nova, onde os terreiros de candomblé eram nitidamente hegemônicos. Em 1920, por exemplo, o jornal A Noite publicou uma reclamação atribuída a moradores do local contra uma “macumba” existente em um cortiço da Rua Itapiru no 152, casinha 2, onde ocorriam “reuniões diárias, especialmente aos sábados”, frequentadas por indivíduos “desocupados, que passavam a noite fazendo uma algazarra infernal [...]”, para a qual a polícia se fazia de surda.⁹⁸ Embora não houvesse, a dar crédito à notícia, uma atitude sempre respeitosa ao culto “africano” entre os moradores do bairro, a influência do omolokô na região pode ser facilmente deduzida das fontes. À semelhança das lideranças do candomblé na Cidade Nova, no Estácio parece haver uma relação relativamente próxima entre esses terreiros e o ambiente do samba, ainda que de natureza e intensidade diferentes.
161. Tata Tancredo, s.d.
Um dos líderes religiosos da região era conhecido como Tata Tancredo. Tancredo da Silva Pinto era seu nome civil; nascera no interior do estado do Rio, na cidade de Cantagalo, em 1904 ou 1905, e viera para o Rio adolescente para estabelecer-se com sua família no Morro de São Carlos. Seus pais eram religiosos e envolvidos com o samba e o carnaval em sua cidade de origem. Tancredo foi uma figura importante para articular a vida dos habitantes do morro, em grande parte por sua atuação como líder religioso, que não era pequena: sendo semianalfabeto e exercendo a profissão de estafeta dos correios, publicou vários livros sobre o omolokô e manteve por mais de 20 anos uma coluna regular sobre o tema no jornal O Dia.⁹⁹
Mas o pai de santo trazia também em seu currículo uma atividade que era definitivamente importante em todo o bairro do Estácio: tinha a anotação “compositor” assinalada como profissão em sua carteira de trabalho e foi coautor de pelo menos um samba célebre, “General da banda”, gravado por Blecaute, sucesso de todos os carnavais desde então.
162. Blecaute, s.d.
39. Tancredo Silva, Sátiro de Melo e José Alcides, General da Banda, 1949. Intérprete: Blecaute. [ clique aqui para ouvir ]
Seu eventual elo com os compositores do bairro, cujos sambas não costumavam conter referências religiosas, ao contrário daqueles dos baianos, estava mais relacionado às rodas de samba e à convivência nas mesas dos cafés famosos que aos lugares de devoção e culto religioso. Relação da mesma natureza foi mantida com o grupo pelo pai de santo Zé Espinguela, que, embora não morasse no Estácio nem mantivesse ali seu espaço religioso, frequentava regularmente suas rodas. Como os principais sambistas do local, Tata Tancredo esteve, em 1928, entre os fundadores da escola de samba “Deixa Falar”, que marcou a história do carnaval carioca e a vida do Estácio.
Tancredo parece ter sido mais próximo da umbanda que do omolokô – duas modalidades cujas fronteiras nem sempre parecem nítidas aos olhos dos leigos, pois ambas se caracterizam por cultuar entidades como caboclos e pretos velhos que não figuram no panteão do candomblé (entre os quais, “malandros” como zé pretinho e zé pelintra, que incorporam seus cavalos em rituais de terreiro); suas práticas rituais são muito aproximadas, inclusive no culto dos inkices, indicando uma tradição religiosa diferente daquela dos terreiros do candomblé jeje-nagô da Cidade Nova aos quais estiveram ligados Hilário, Donga, João da Bahiana e seus companheiros. Não há muita informação sobre a implantação do terreiro de Tata Tancredo no Morro de São Carlos, mas o omolokô tinha uma história mais longa na localidade, através da roça de uma mãe de santo reverenciada pelos praticantes desses rituais. Segundo a memória interna do grupo, o culto foi instituído no Brasil, em uma de suas linhagens, por uma escrava africana de nome Maria Batayo, que teria vindo já “feita” para o Brasil, aos 20 anos. Sua origem étnica é imprecisa nesses registros, mas os relatos dizem que ela trabalhava em uma fazenda de café no estado do Rio, como escrava doméstica. Batayo teria sido
alforriada já idosa pela filha do seu senhor, de quem cuidara desde a infância. Esta teria ainda lhe dado um terreno no Morro de São Carlos, na capital, para que ela um dia pudesse morar como liberta. Após a morte de sua senhora, por volta de 1876, Batayo, com aproximadamente 70 anos, mudou-se para lá, onde assentou sua roça, liderando o terreiro até o ano de 1929. Teria falecido com mais de 100 anos, sendo sucedida por sua filha Roxinha.
Entre a descendência de santo de Batayo não consta o nome de Tata Tancredo, de modo que não é possível precisar a origem de sua casa. Sabese, entretanto, que o omolokô organizou-se principalmente em algumas regiões do sudeste do país que forneceram grandes contingentes de migrantes para a capital, o que explica a influência das religiões de origem centro-africana, bem como dos jongos, dos calangos e de outras modalidades musicais na formação do samba carioca, cuja importância ainda está por ser devidamente estudada.¹⁰⁰ O omolokô era forte na zona da mata mineira, em todo o estado do Rio, no nordeste paulista e em parte do Espírito Santo – sobretudo nas áreas rurais. As correntes migratórias internas teriam trazido (ou reforçado) essa modalidade de religião afro-brasileira para o Rio de Janeiro – e elas existiam também em outras partes da cidade: Luiz Edmundo, por exemplo, relata a existência, no início do século XX, de um terreiro na antiga Travessa do Castelo, comandado por um certo João Gamba, natural de Luanda, cujos rituais apresentavam formas muito semelhantes de incorporação e ressignificação de diferentes matrizes religiosas, a crer em sua descrição.¹⁰¹
163. Morro do Castelo, s.d. Augusto Malta.
Sem dúvida, essas vertentes constituíram a referência mais direta sobre os sambistas da região do Estácio em sua convivência do dia a dia, assim como o candomblé foi central para o grupo de Hilário Jovino, Donga e João da Bahiana, mas a influência religiosa não parece ter aqui a mesma força agregadora. Na descendência de santo de Batayo, ou nos registros da memória dos indivíduos ligados a essa casa, podemos encontrar Mano Elói – que frequentava sua roça e, certamente, os mesmos botequins do Estácio onde os bambas do local se reuniam. Mas, no espaço estrito da religião, não consta nenhum outro nome de sambista, ao menos entre aqueles mais ativos nas rodas do Estácio de Sá, o que sugere que as relações entre uma coisa e outra não eram nesse caso tão orgânicas como na Cidade Nova.
Aparentemente, havia no Morro de São Carlos, competindo com os templos católicos, mais de uma roça das “religiões africanas”, como dizia Vagalume, da mesma forma que se multiplicavam os terreiros da área da Cidade Nova. Entretanto, a julgar pelas breves referências disponíveis, nenhuma delas parece ter a feição dos candomblés frequentados por Hilário, Donga, João e outros baianos, nem sua forma estruturada de organização e solidariedade internas, ou as redes complexas de relação que construíram com a vizinhança e a cidade como um todo. Não se percebem aí as formas de sociabilidade imbricadas com a religião, como a centralidade generalizada das festas de terreiros ou em casas de filhas de santo, as práticas assistencialistas ou as formas de aliança e proteção buscadas pelos chefes de terreiros ou babalorixás baianos no contexto carioca. Em vez de convergirem para os terreiros e aceitarem sua liderança, os sambistas do Estácio parecem ter mantido uma relação de relativa exterioridade diante dos seus preceitos, princípios e hierarquias, embora provavelmente tivessem uma afinidade maior com as vertentes mais enraizadas em seu “pedaço” da cidade.
Os sambistas mais velhos da Cidade Nova, pelo contrário, faziam da religião uma porta de entrada para sua relação com a “comunidade”, com as autoridades e o mundo dos brancos, buscando uma forma de reconhecimento e legitimidade assentada tanto na liderança dos pais de santo como na rede dos tabuleiros espalhados pela cidade. Buscavam, ainda, como vimos, reproduzir essa dignificação de sua imagem quando confrontados com a lei – e creio que se pode legitimamente imaginar que esse elemento teve um peso considerável no número quase inexistente de episódios policiais em que figuraram como réus. Os sambistas do Estácio que frequentavam assiduamente a delegacia buscavam também alianças, mas as que aparecem em suas histórias estão mais voltadas para as vizinhanças da Zona do Mangue, os comerciantes conhecidos do bairro, protetores políticos, advogados ou rábulas que os defendessem da polícia, mais que os líderes religiosos com quem parecem ter mantido uma convivência cordial, mas distante. Ao contrário do que ocorria entre os baianos da Cidade Nova, as referências religiosas estão praticamente ausentes em suas canções.
Pode-se ainda levar em conta a possibilidade de que parte da rivalidade dos dois grupos de sambistas, bastante acirrada nos anos 1920, esteja relacionada justamente a diferenças pertinentes ao campo das crenças e dos ritos. O “sincretismo”, descrito com esquematismo na fala atribuída por Vagalume ao seu informante, era um ponto particularmente sensível de atrito entre vertentes religiosas de matriz afro-brasileira e pode ter ajudado a acirrar a competição entre sambistas, ecoando uma antiga tensão vigente no Rio de Janeiro desde o início do século entre os frequentadores e devotos desses diferentes terreiros. João do Rio, em suas reportagens sobre as religiões, já assinalava a força dessa rivalidade na fala atribuída ao seu informante, o pai de santo baiano Bamboxê/Benzinho (Felisberto Sowzer), liderança do candomblé, referindo-se aos cultos de matriz centro-africana:
[...] essa gente é ordinária, copia os processos dos outros e está de tal forma ignorante que até as cantigas de suas festas têm pedaços em português. [...] Para os cambindas serve para santo qualquer pedra, os paralelepípedos, as lascas das pedreiras e esses pretos sem-vergonha adoram a flor do girassol que simboliza a lua. [...] Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco. Cambinda é burro e sem-vergonha!¹⁰²
Formulado de modo tão contundente no início do século, o mal-estar não devia ser pequeno. Seus ecos podem ter persistido nas décadas seguintes, mas é pouco provável que tivessem ainda um peso decisivo. Afinal, os sambistas, do omolokô ou do candomblé, malandros ou não, viveram a década de 1920 igualmente imersos no mundo dos trabalhadores cariocas, experimentando as mesmas formas de trabalho e moradia, compartilhando dificuldades cotidianas e dividindo o medo da polícia e da pobreza, o que, de certa forma, explica a confusão do comissário cheio de “altivez”, citado por João da Bahiana. Apesar das tensões entre eles, baianos da Cidade Nova e da Saúde ou cariocas do Estácio mantinham pontos em comum, inclusive o fato de estarem todos sob suspeita. Mas suas diferenças não podem ser negligenciadas. Eram, sem dúvida, os mesmos trabalhadores, mas submetidos no Estácio a uma concentração maior da pobreza e das dificuldades que ela acarretava na experiência da vida diária, do acirramento
da repressão e do controle policial – o que faz diferença, certamente, para dois grupos de sambistas separados por mais de dez anos em seus registros de nascimento. Havia ainda a convivência obrigatória e nem sempre tranquila com as agitadas (e atraentes) noites do Mangue e suas conhecidas mazelas – entre as quais, a de acirrar ainda mais a ação policial naquelas redondezas. Os sambistas do Estácio, que revolucionaram o samba trazendo de volta às ruas os velhos tambores, tinham objetivamente menos onde se amparar: nem terreiros, nem a fraternidade das tias, nem outros espaços identitários que não fossem os do carnaval e do samba. Era neles, acima de tudo, que precisavam se agarrar – e sobressair, marcando uma identidade com seus surdos e suas sonoridades.
Gente reiuna
NA DÉCADA de 1910, quando tia Ciata se estabeleceu na lendária Praça Onze de Junho, esta já se tinha transformado no endereço mais importante do carnaval para boa parte dos cariocas. As “grandes sociedades”, que outrora brilhavam na estreita Rua do Ouvidor, ainda dividiam o espaço nobre da Avenida Central com os ranchos principais, como o Ameno Resedá – cuja popularidade duraria mais algum tempo. Seus desfiles, entretanto, iam perdendo o brilho e o interesse do público, voltado crescentemente para a disputa dos grupos, como cordões ou blocos, que vinham de bairros distantes e dos morros para buscar o reconhecimento nos certames carnavalescos da Praça Onze.¹⁰³ Ao contrário do que se costuma imaginar, a competição entre esses grupos não foi uma imposição dos poderes públicos ou do regime varguista. Pelo contrário, tais certames foram inicialmente realizados pelos próprios dirigentes dos grupos carnavalescos – haja vista a iniciativa do pai de santo mangueirense Zé Espinguela¹⁰⁴ que, em 1929, usando de sua autoridade entre os companheiros, promoveu um concurso entre as principais agremiações do samba carioca – Estácio, Salgueiro, Mangueira e Portela –, vencido por esta última: na ocasião, a “escola” do Estácio foi desclassificada porque seus integrantes se apresentaram de terno e trouxeram instrumentos harmônicos e de sopro para abrilhantar a apresentação, contrariando as regras estabelecidas pelo organizador.¹⁰⁵ Antes disso, e
também depois, órgãos de imprensa promoviam concursos entre cordões e ranchos, seguidos, nos anos 1930, pelas competições oficiais organizadas pelos poderes públicos, que desaguaram nos eventos anuais definitivamente incorporados ao calendário festivo e turístico da cidade.
164. Foto da carteira de identidade de Zé Espinguela, s.d.
Antes que fossem definitivamente trazidas de volta às principais avenidas do centro pelas mãos do regime varguista, essas agremiações carnavalescas, criadas e dirigidas pelos trabalhadores pobres, se concentravam anualmente na Praça Onze para disputar a primazia e o reconhecimento do público e dos comerciantes locais, bem como da imprensa que noticiava e incentivava suas apresentações, mais caprichadas a cada ano na busca de um diferencial que destacasse cada agremiação das demais. A intenção das autoridades ao afastar os grupos do chamado “carnaval popular” para longe das elegâncias da nova avenida foi rapidamente bem-sucedida, por um lado, mas, por outro, levou a um crescente processo de inanição as formas supostamente refinadas da folia. Em contrapartida, alimentou a competição espontânea entre os grupos segregados e abriu espaço para sua criatividade, a despeito dos regulamentos e imposições que tais certames sempre acarretaram, em maior ou menor grau.
A rivalidade, visível nos sucessivos episódios de conflito armado nas ruas em torno da Praça Onze, foi sempre um elemento central na existência das diferentes formas que o carnaval carioca abrigou. Sob todas elas, as agremiações carnavalescas constituíram desde muito cedo pontos centrais de expressão coletiva ou de identidades entre os trabalhadores cariocas, na Cidade Nova, no Estácio, nos subúrbios ou mesmo em bairros centrais e da zona sul. O fortalecimento desses grupos diante dos demais passou, entre outras coisas, por vários processos de filiação ou fusão entre agremiações que disputavam a primazia em determinadas áreas da cidade. Muitas escolas de samba surgiram através de mecanismos desse tipo: a designação “Unidos”, presente no título de várias delas hoje em dia, indica esse processo de união de grupos em busca de fortalecimento nas competições carnavalescas.
165. Largo do Estácio, c.1920.
Quando os bambas do local reivindicaram a glória de ter criado, em 1928, a primeira “escola de samba” no Largo do Estácio, com o som pesado dos tambores executados com originalidade pelos ritmistas e compositores da “Deixa Falar”, não pretendiam revolucionar a música popular do país, ou não sabiam que iriam fazê-lo. Exprimiam antes o desejo de afirmação identitária do grupo ou do bairro, seus moradores e suas características, como era próprio das agremiações do carnaval. Mas essa não foi exatamente a primeira agremiação a buscar status “acadêmico”: antes dela, o Recreio das Flores, da região portuária, se autointitulava “rancho-escola”, em uma operação análoga presente na disputa entre os ranchos carnavalescos, a forma mais popular do carnaval até os anos 1920.¹⁰⁶ Na verdade, o próprio pioneirismo da escola do Estácio, raramente contestado, não deixa de soar um pouco forçado, embora as demais agremiações existentes no período reconheçam hoje a sua influência na formação das demais escolas de samba.¹⁰⁷
166. Bloco dos Arengueiros, c. 1920-1925.
De fato, as grandes escolas do Rio surgiram quase simultaneamente: junto com a “Deixa Falar” (de 1928), o Bloco dos Arengueiros juntou-se a outros grupos do morro da Mangueira para se tornar “escola” no mesmo ano; a Prazer da Serrinha, de Mano Elói e Silas de Oliveira, em Madureira, data dos anos 1920 como as anteriores; as três pequenas agremiações que deram origem ao Unidos do Salgueiro, no morro do bairro da Tijuca, existiam desde o mesmo período, embora a escola atual tenha se formado mais tarde; antes de todas elas, aliás, surgiu a Portela – oficializada em 1926, em Oswaldo Cruz, sob a liderança de Paulo Benjamin de Oliveira, do bicheiro Natal e de outros. Seja como for, as atuais escolas de samba, caminhando para o mesmo modelo da “Deixa Falar” e no mesmo período, iam florescendo na zona norte, dando origem a outros espaços decisivos para a
história do gênero na cidade.¹⁰⁸ Mas muitos dos seus integrantes, como Elói, Paulo, Cartola ou Zé Espinguela, frequentavam o Estácio nos anos 1920 e compartilharam as mudanças de padrão musical criadas por seus compositores.
Pioneira ou não, a escola do Estácio durou pouco. A última vez em que o “Bloco Carnavalesco e Familiar Deixa Falar” – como noticia a imprensa – saiu às ruas com todos os seus integrantes originais foi no carnaval de 1931. Ela parecia funcionar a todo vapor, com seus ases do samba que já criavam fama para além das fronteiras do bairro:
Encontram-se à frente deste bloco, cuja sede está instalada à rua Estácio de Sá n. 29, o incansável folião Oswaldo dos Santos Lisboa, como presidente, e os estimados carnavalescos Júlio dos Santos e Octacílio de Azevedo como auxiliares, os quais facilitarão às sociedades congêneres das pugnas carnavalescas não só a visita à sua sede onde poderão assistir aos ensaios, como tudo o que esteja ao seu alcance por ser do programa do bloco a cordialidade no meio recreativista.
O presidente da junta tem a mais absoluta confiança no êxito pleno que alcançarão nos três dias consagrados a Momo, o rei da folia, para o que conta com o concurso dos apreciados e denodados carnavalescos: Newton Bastos, diretor de canto; Júlio dos Santos, diretor de harmonia; Aurélio Gomes, diretor de sambas; Ismael da Silva e Alcebides Barcelos, mestressalas; Juvenal Lopes e Onofre da Silva, mestres de evoluções; e das graciosas e gentilíssimas senhoritas Cecy e Nair, porta-estandartes que maravilham pelo desembaraço e donaire. [...].¹⁰⁹
Mas a alegria não durou muito. Já em 1932, como decorrência de desavenças internas e desacordos que incluíam a própria aceitação das invenções
carnavalescas de Ismael e outros grandes sambistas do bairro, a “Deixa Falar” foi transformada em rancho pelos integrantes que permaneceram ligados à antiga escola de samba. Ela abandonou desde então as inovações rítmicas e o modo do desfile inaugurado em 1928, enquanto as demais agremiações da zona norte – Mangueira, Portela, Serrinha, Salgueiro – seguiam adiante para consolidar a nova forma de carnaval na cidade e uma forma própria de aglutinação e organização das diferentes comunidades que representavam. Ademais, os sambistas daquela que é considerada a primeira “escola de samba”, a quem se atribui o início de uma verdadeira tradição carioca, nem parecem ter sido hegemônicos no próprio cenário carnavalesco do bairro: na época de sua fundação em 1928, a agremiação do Largo do Estácio tinha forte rivalidade com outro grupo do Morro de São Carlos – com o qual acabou se fundindo, bem mais tarde, para dar origem ao atual G.R.E.S. Estácio de Sá. Uma antiga sambista do bairro diferencia claramente os espaços dos dois grupos rivais: “era o São Carlos para o larguinho da Balança, na praça em frente ao presídio, e Deixa Falar no Largo do Estácio. Os grupos não se misturavam”, relata em depoimento.¹¹⁰
167. Deixa Falar, 1928.
Esses dois tampouco eram os únicos grupos carnavalescos do bairro: outros blocos e conjuntos mais estruturados, embora menores, existiam pelas imediações, congregando seus moradores segundo critérios diferentes daqueles que juntaram, no Apolo ou no Compadre, sambistas e boêmios, ou obedecendo às múltiplas e variáveis identidades que produziam e alimentavam as formações carnavalescas por toda a cidade.¹¹¹ Desde 1926 já havia no bairro o bloco “Vê se pode”, e logo na Rua Maia Lacerda formouse o “Cada ano sai melhor”. Segundo Bide, os blocos reuniam “gente da pesada” e as famílias do local, sem que houvesse conflito entre as partes integrantes. Mas o “Deixa Falar” pretendia mais, introduzindo a marcação dos surdos nos desfiles para conduzir a rica melodia dos seus compositores
como forma de ajudar o grupo a manter a harmonia, envolvendo a assistência com seu potencial dançante e organizando suas apresentações de modo diferenciado.¹¹² Não se sabe bem por que o modelo foi abandonado. Definitivamente magoado com o grupo, do qual se afastara em razão dessas desavenças internas, Ismael jurava décadas mais tarde que usara a expressão “escola de samba” não com o intuito de sobrepor o valor da “Deixa Falar” ao das demais agremiações: teria simplesmente sido inspirado pela casual vizinhança da Escola Normal, estabelecida no Largo do Estácio.¹¹³ Mas é difícil acreditar nisso conhecendo a dinâmica e a lógica do carnaval.
Se a escola foi efêmera, o padrão permaneceu e o samba reinventado ali tomou completamente o espaço do gênero nos anos 1930. Convém lembrar que, ao longo da década de 1920, o desenvolvimento do mercado musical, com a ampliação do público consumidor para as gravações e a popularização dos gramofones, consolidou uma brecha importante para músicos e sambistas amadores que se reuniam em rodas de botequim, quintais e rodas de morro por pura diversão, mas também tendo em mira preparar seus respectivos grupos para aparecer bem no próximo carnaval. Vimos que inicialmente o interesse das casas gravadoras se voltou, entre outros focos, para o registro de sambas tradicionais e partidos-altos das rodas baianas, abrindo as primeiras polêmicas sobre autoria ou sobre a legitimidade do registro individual das composições improvisadas coletivamente pelos sambistas da cidade – que, aliás, não se resumiam aos grupos de “baianos” da Cidade Nova.¹¹⁴
168. Roda de botequim, c. 1930-1935. Seth (Álvaro Martins).
Com isso, a partir da segunda metade da década de 1910, o samba já podia significar mais do que diversão: ia se tornando uma oportunidade real, o meio mais fácil para um indivíduo dotado de talento e senso de oportunidade saltar para fora do círculo vicioso da pobreza ou do trabalho duro e mal remunerado. O gênero musical, assim, ultrapassou as fronteiras do carnaval. Para o grupo do Estácio, tratava-se mesmo da única oportunidade – e talvez por isso as rodas de samba de lá, vizinhas da boemia e da malandragem, mas não necessariamente iguais a elas, tenham atraído, nos anos 1920 e 1930, indivíduos mais dedicados a atividades limítrofes ao universo criminal, como jogadores de chapinha ou cafetões do mangue, e o samba tenha se tornado crescentemente objeto de compra e venda, mercadoria cada vez mais valorizada que circulava naquele ambiente de transgressão.
Quando se abria a década de 1920, a competição já era acirrada entre novos sambistas do Estácio ou da zona norte, de um lado, e o grupo mais antigo, preso a uma concepção tradicional do gênero, de outro. Uma leitura atenta dos jornais diários da cidade revela o esforço pessoal de sambistas consagrados na divulgação dos seus novos produtos, em uma intricada ação cujo significado era, ao mesmo tempo, cortejar a imprensa e afirmar-se como representantes legítimos do samba (e também, é claro, vender discos e partituras).
169. Sinhô, 1928.
Sinhô, por exemplo, foi contumaz visitador de redações nesse período: podemos encontrá-lo em diversas ocasiões visitando jornais, prometendo músicas para homenagear os diários e, às vezes, comentando com algum azedume a produção dos demais sambistas de seu tempo.¹¹⁵ No mesmo ano, para concentrar o exemplo, Donga e os Oito Batutas faziam o mesmo, apresentando ao jornal A Noite uma nova composição em sua honra, para adoçar os redatores e garantir espaço nas páginas do matutino.¹¹⁶ Poucos meses depois, o conjunto integrado por Donga, Pixinguinha e outros velhos frequentadores da casa da tia Ciata e dos candomblés da Cidade Nova se apresentou no Teatro Trianon, ocasião noticiada com destaque pelos jornais. Deixando evidente a identidade assumida pelo grupo, em seu repertório, publicado pelas folhas, aparecia a expressão “samba baiano” para enfatizar a diferença em relação a outras formas de samba que despontavam no mercado.¹¹⁷
170. Os Oito Batutas, c. 1920.
Em meados dos anos 1920, entretanto, a expressão “samba carioca” se tornara quase uma redundância e o ambiente musical já se encontrava
altamente profissionalizado. A busca incessante por novos talentos era algo que se dava de maneira sistemática, alimentando uma indústria de diversão que não cessava de crescer, buscando antecipar-se ao gosto e às preferências de um amplo público urbano ávido pelas novidades do disco, do cinema, do teatro ligeiro e dos espetáculos ao vivo, além de, naturalmente, sempre curioso pelos sucessos do próximo carnaval. Pode-se dizer que o samba – na forma como o conhecemos hoje – nasceu da conjunção destes dois fatores: a rivalidade entre grupos carnavalescos, que estimulou a busca de inovação, e a adequação das performances nos certames de rua, criando um padrão rítmico mais dançante tanto para os desfiles como para os salões, por um lado; e o desenvolvimento do mercado fonográfico, com suas regras e mecanismos, por outro. Juntos, os dois fatores foram capazes de estimular a invenção musical, libertando o samba do folclore e superando o modo tradicional de lidar com o gênero que prevalecia até então. Mas isso evidentemente não se deu sem problemas e contradições.
Ao adotar esse novo padrão, temperado pela inspiração excepcional de alguns de seus músicos locais, o grupo de compositores do Estácio pôde se destacar dos demais – até porque, na convivência propiciada pela boemia na zona de prostituição, eles se tornaram mais fáceis de identificar por agentes em busca de material para gravações do que aqueles compositores sitiados nos morros e subúrbios. Sem dúvida, a predominância do Estácio ou a divulgação de sua nova sonoridade deve muito à zona do meretrício e ao público masculino diversificado que a frequentava. Ademais, o samba que ali se produzia acabou por revelar-se mais adequado aos recursos ainda incipientes dos estúdios de gravação – razão pela qual interessou, mais que outros tipos presentes na cidade, ao circuito da cultura de massas.¹¹⁸ Assim, esses novos compositores não precisaram tanto “suar a camisa” comparecendo pessoalmente aos órgãos de imprensa em busca de divulgação: as casas gravadoras e os astros do disco, que registraram as composições, se encarregaram de popularizar seus nomes. O bairro do Estácio de Sá – com a proximidade da Cidade Nova e uma rica experiência musical, com a Zona do Mangue funcionando como um intenso polo de atração e animação boêmia para sambistas de toda a cidade ou músicos profissionais, e, particularmente, com o grupo extremamente talentoso que o acaso conseguiu reunir naquele pequeno bairro na fronteira do centro com a
zona norte – forneceu a mistura ideal para o desenvolvimento de uma produção musical marcante, cuja importância foi imediatamente reconhecida pelos ouvidos treinados de cantores experientes como Francisco Alves ou Mário Reis, e pelas casas gravadoras em busca de novidades.
171. O sambista e feirante Juvenal Lopes, s.d.
Afinal, ali cresceram e moravam no final dos anos 1920 músicos fantásticos, como Ismael Silva, Benedito Lacerda, Bide, Marçal e Brancura, entre outros.¹¹⁹ Mas, no mesmo período, o bairro era intensamente frequentado por sambistas de outras partes da cidade, em busca da convivência boêmia da zona e das rodas dos botequins que a cercavam: mano Elói, morador de
Madureira (um dos fundadores da Prazer da Serrinha, nos anos 1920), andava muito por ali; o feirante Juvenal Lopes (que figura entre os pioneiros da Mangueira, fundada em 1928) integrava o conjunto “Turma do Morro”, de Benedito Lacerda, e foi bem mais que um frequentador eventual das rodas do Estácio: seu nome é até mencionado entre os integrantes fixos da “Deixa Falar” em 1931, como vimos; Mano Edgar, outra figura central no bairro e na “escola”, não era propriamente “do Estácio”, pois morava e trabalhava na Tijuca; Bucy Moreira, que, no final da década de 1920, segundo consta do processo mencionado, habitava um cortiço no bairro do Catete, era figura assídua naquelas noitadas tão diferentes das festas de sua avó; como ele, Heitor dos Prazeres, que vinha da Cidade Nova, mas se tornou conhecido como Lino do Estácio, podia ser encontrado facilmente nas mesas daqueles botequins musicais. Havia ainda os músicos brancos e letrados, como Noel Rosa e Orestes Barbosa, entre outros, que desenvolveram laços de amizade com os sambistas locais e contribuíram largamente para a difusão de seus trabalhos. Entre eles, não se podem esquecer os poetas, cronistas e pintores – como Manuel Bandeira ou Di Cavalcanti – que frequentaram e imortalizaram a zona e o bairro em suas obras.
De certa forma, a fama do Estácio podia, sem injustiça, ser compartilhada por sambistas de toda a cidade. Em 1927, para recordar um exemplo já mencionado, Ismael Silva, ainda um desconhecido sambista da região, estava hospitalizado com sífilis, bastante debilitado e sem meios de ganho, quando foi procurado por seu amigo Bide, operário de uma fábrica de calçados. Ele trazia um recado salvador: o superastro do disco Chico Viola andava atrás de Ismael, pois, tendo ouvido o samba “Me faz carinhos”, mostrava-se interessado em comprar a canção para gravá-la, registrada em seu próprio nome.¹²⁰ O primeiro sucesso de Ismael Silva, assim, veio à luz um ano antes da fundação da “Deixa Falar” – mas assinado apenas pelo cantor. Em 1928, justamente rendido ao talento daquele negro franzino e doente, Chico Viola gravou “Se você jurar”, com o devido crédito a Ismael e, por exigência deste, a seu verdadeiro parceiro, Nilton Bastos.
172. Nilton Bastos, s.d.
Pode-se marcar aí, na presença atenta de Chico Viola, Mário Reis e outros artistas famosos do período em busca de sucessos, o início da ascensão meteórica do sambista e dos seus companheiros do Café do Compadre ou do Bar Apolo, nos meios profissionalizados da indústria cultural do período. Note-se, entretanto, que o sucesso tinha um preço: amarrado por contrato ao grande cantor, a quem cedeu parceria permanente em seus trabalhos, Ismael cresceu como um satélite de Francisco Alves, que o tirou do hospital e da pobreza para a fama quase instantânea. E não foi apenas Ismael a subir: o primeiro sucesso do operário Bide foi “A malandragem”, também de 1928, e no mesmo ano estreou o valentão Brancura, que parecia incapaz de pedir desculpas, com o samba intitulado “Sinto muito”. Todos eles foram “pescados” e levados aos estúdios por Francisco Alves, iniciando uma nova fase em suas vidas.
Por outro lado, o súbito reconhecimento determinou, em um curto espaço de tempo, o afastamento desse núcleo de talentos do circuito restrito das rodas e noitadas malandras na Zona do Mangue ou das imediações do Morro de São Carlos. Três anos após a sua fundação, a “Deixa Falar” não era mais a mesma, o que parece ter determinado o afastamento de vários deles. Bide atravessou o canal para produzir marchas para outros ranchos da Cidade Nova, afastando-se da “escola” do Estácio e tornando-se um músico profissional. Seu principal parceiro, Marçal, saltou igualmente para fora do circuito: integrou-se ao Recreio de Ramos, onde seu talento de compositor e percussionista floresceu em outras companhias. Juvenal fixou-se na Mangueira e ajudou a levantar a “Estação Primeira” lá para os lados do Maracanã. Ismael, o mais conhecido dos sambistas do grupo, afastou-se desgostoso do bairro e tornou-se um sujeito elegante que frequentava círculos mais sofisticados e brilhava entre a boemia refinada.
173. Ismael Silva, 1929.
No final dos anos 1920, a Lapa ia retomando o posto de principal reduto de prostituição e vida noturna. O novo ponto de encontro passava a ser o famoso Café Nice, estabelecido no no 174 da Avenida Rio Branco, inaugurado em 1928, quando se iniciava a carreira de Ismael; havia ainda os cafés da Galeria Cruzeiro, um dos “meios mais intelectualizados” que Ismael passou a frequentar, segundo seu próprio depoimento, nos quais o sambista destaca a presença de Mário de Andrade, amigo especial entre outros poetas modernistas, escritores, intelectuais e artistas do período.¹²¹ Nas mesas do Café Nice e nos cabarés da Lapa, nos chopes da Galeria Cruzeiro e nesse circuito distinto frequentado por artistas do disco e do teatro, finalmente os sambistas do Estácio se reencontrariam com os remanescentes da geração mais antiga da Cidade Nova. Embora disputassem a paternidade do gênero, trocassem alfinetadas pela imprensa e ostentassem uma espécie de mau humor recíproco, foram reunidos pelo zelo modernista em relação às “coisas nossas” – quando alguns dos nomes mais importantes para aquela primeira geração, como Sinhô e Hilário Jovino, João Alabá e Ciata, entre outros, já haviam falecido.¹²² A partir daí, Heitor dos Prazeres (ou Lino do Estácio), certamente inspirado nos portugueses do Morro de São Carlos, estava à vontade para louvar sua metafórica “Pequena África”, que, unindo os dois lados do Canal do Mangue, recobriu diferenças e velhos desentendimentos com o manto da raça ou da origem comum. Em grande parte, os artistas e intelectuais que se misturaram na Lapa a sambistas, malandros, prostitutas e boêmios construíram, juntos, a imagem unívoca do samba ao longo dos anos 1930.
174. Café Nice, na Lapa, s.d.
Certamente o estereótipo dos malandros inspirados e, em certa medida, pitorescos de seu ponto de vista agradava à imaginação de intelectuais, ainda que pudesse incomodar um pouco aqueles mais ajustados aos ditames do regime que se inaugurara em 1930. Ele não era novo: fizera sucesso nos palcos e nas primeiras gravações da Casa Edison na voz de cantores que não podem propriamente ser considerados sambistas. Eduardo das Neves, por exemplo, fazia do malandro uma espécie de alter ego. Um de seus livros de modinhas, de grande sucesso na época, levava o título de Trovador da malandragem.¹²³ Em seu repertório destacam-se velhos lundus sobre o tema, entre os quais “Malandro da Saúde” (onde malandragem rima com capoeiragem, há chapéu de lado e lenço no pescoço, valentia e navalha – além de serenata); ou “O malandro”, que narra um episódio no qual um desses personagens estava em um botequim com uma mulata quando apareceu um “major da ronda” decidido a prendê-lo, mas o crioulo esperto negocia e o major se propõe a perdoá-lo se ele cantar um “quebra-calçada”,
lundu que congregou a todos – malandro, mulata, policiais e demais presentes – na mesma festa. A imagem do simpático malandro, assim, vinha sendo construída desde muito tempo no Rio de Janeiro como uma espécie de marca da cidade, diretamente associada à serenata, ao violão e ao sucesso com as mulatas ou morenas. Os compositores do Estácio tinham, assim, uma antiga tópica onde se apoiar para compor seus versos que louvavam a malandragem ou a vadiagem, usadas, às vezes, como sinônimos, e debater – ao contrário das canções do velho Dudu – o tema da “regeneração”, que, aliás, estava na ordem do dia da política.
175. Capa de O trovador da malandragem, de Eduardo das Neves, 1926.
40. Eduardo das Neves, O malandro, c. 1907-1912. Intérprete: Mário Pinheiro. [ clique aqui para ouvir ]
Mas não necessariamente a imagem estereotipada do “malandro carioca” corresponde à experiência prática e cotidiana de todos esses compositores do Estácio. Bide, como vimos, era operário em fábrica de calçados, antes que os ganhos com música lhe propiciassem a profissionalização.¹²⁴ Seu maior parceiro, o ritmista Marçal, era (e foi até sua morte, em 1947) lustrador de móveis, com emprego fixo em alguns dos grandes hotéis da cidade.
176. Marçal, s.d.
Ele era um homem negro de dois metros de altura e grande força física, carioca, nascido no bairro vizinho do Catumbi em 1902. Sua família era muito pobre e o músico nem chegou a completar o curso primário. O depoimento de seu filho, Mestre Marçal – grande percussionista como ele –, revela um comportamento de pai atento à educação e à manutenção de sua prole.¹²⁵ Na verdade, seu primeiro sucesso, o samba “Agora é cinza”, resultado de uma frutífera parceria com Bide, data de 1933, quando já era presidente da Recreio de Ramos e se encontrava distanciado do Estácio havia cerca de cinco anos.¹²⁶ Nilton Bastos, o parceiro predileto de Ismael Silva, era também carioca “da gema” nascido em 1899 em outro bairro vizinho ao Estácio – São Cristóvão. Era filho de uma costureira e de um comerciante português e, embora não fosse tão pobre quanto Marçal, deixou inconcluso o curso primário. Durante sua curta existência adulta, Nilton foi torneiro mecânico no Arsenal de Guerra, além de pianista sem formação musical, pois tocava de ouvido. Morreu em 1931, de tuberculose.
Morrer cedo, aliás, parece uma constante nesse grupo. Mano Edgar – como era conhecido Edgar Marcelino dos Santos, “mano” como todos os integrantes mais próximos da fraternidade do Estácio – era um carioca que morava na Tijuca, onde trabalhava regularmente como ajudante de caminhão da Companhia Souza Cruz.¹²⁷ Nascido no Rio em 1900, Mano Edgar desapareceu muito cedo e em circunstâncias violentas: no Natal de 1931, foi assassinado nas ruas do bairro, devido a uma briga de jogo.¹²⁸ Dois anos depois desse episódio, foi a vez de Baiaco e Brancura, cariocas de nascimento e amigos inseparáveis de autêntica malandragem, que morreram com poucos meses de diferença, vitimados, como vimos, por doenças adquiridas em seus anos de boemia nas ruas do Estácio, como a sífilis e as sequelas de um tiro de revólver mal curado.
177. Mano Edgar, s.d.
Àquelas alturas, é claro, o samba não era o mesmo. O andamento e a estrutura rítmica foram modificados; as letras estruturadas em versos fixos e
curtos para facilitar a memorização definiram elementos fundamentais nessa mudança. Mas o principal era a forma de produzir e se apropriar dos resultados: o gênero estava então definitivamente integrado no circuito das mercadorias culturais. As velhas rodas já pareciam coisa do passado, ou meras ocasiões de diversão descomprometida quando sobrava tempo e aparecia oportunidade. O carnaval tornava-se, sobretudo, a hora de “lançar” sucessos a um público ávido por aprender o que se ia cantar e dançar nas ruas na próxima festa. Noel dizia que o samba não se aprende no colégio, mas as oportunidades – e a linguagem do samba – não estavam disponíveis apenas para os sambistas negros ou pobres, e se tornavam crescentemente atrativas para profissionais de origens bem diversas.
Em 1929, por exemplo, Almirante e o Bando de Tangarás trouxeram a público um samba calcado nos temas que as agremiações carnavalescas de bairro levavam às ruas – e foi um verdadeiro sucesso no carnaval de 1930. “Na Pavuna” foi o primeiro samba gravado em estúdio com a percussão utilizada nos desfiles e serviu para afastar o velho conceito de que os tambores “sujavam” o som das gravações, abrindo caminho para os novos sambistas e seus arranjadores, presos às orquestrações nem sempre adequadas ao andamento do samba.
41. Homero Dornellas (Candoca da Anunciação), Na Pavuna, 1929. Intérpretes: Almirante e Bando de Tangarás. [ clique aqui para ouvir ]
O parceiro de Almirante na empreitada – na verdade, o autor do tema original, aperfeiçoado pelo cantor – chamava-se Homero Dornellas, um carioca branco nascido em 1901. Tratava-se de um pianista e violoncelista com estudo formal no Instituto Nacional de Música, de cuja orquestra fazia
parte. Como vida de músico era (é) difícil, ele tocava na noite – em cinemas, teatro de revistas, salões de baile –, tendo então se aproximado da música popular, de seus ritmos e gêneros, e passado a compor, com o pseudônimo de “Candoca da Anunciação”, para esse gênero musical. Tinha um terceiro emprego, em uma editora musical, no qual transcrevia para o pentagrama músicas de compositores populares que não dominavam a notação musical (coisa que, inclusive, fazia gratuitamente para amigos como Noel Rosa – e dizem que este lhe devia melhoras no fraseado de “Com que roupa”).
178. Homero Dornellas, s.d.
Assim, é mais que provável que Dornellas tenha se inspirado em sambistas anônimos de grupos carnavalescos da cidade, que conhecia
profissionalmente, para propor seu batuque de estúdio. O sucesso da gravação evidencia o interesse que o gênero já despertava fora do circuito restrito dos sambistas e carnavalescos – e é conveniente registrar que o próprio Bide, bambambã do Estácio, participou da gravação. Trazendo ao estúdio percursionistas das ruas, o compositor branco e erudito falava em “escola”, incorporava estereótipos como o malandro e a relação com macumbas e candomblés e remetia o samba de estúdio para bairros bem distantes e pobres da zona norte, fora do circuito do Estácio ou da Cidade Nova – além de recusar, no seu final, qualquer tipo de ambiguidade sexual no ambiente.
Na Pavuna,
Na Pavuna,
Tem um samba
Que só dá gente reiuna
O malandro que só canta com harmonia,
Quando está metido em samba de arrelia,
Faz batuque assim
No seu tamborim
Com o seu time, enfezando o batedor.
E grita a negrada: vem pra batucada
Que de samba, na Pavuna, tem doutor.
Na Pavuna...
Na Pavuna, tem escola para o samba
Quem não passa pela escola não é bamba.
Na Pavuna tem canjerê também
Tem macumba, tem mandinga e candomblé
Gente da Pavuna
Só nasce turuna
É por isso que lá não nasce “mulhé”.
Segundo as regras do novo circuito profissional, o registro autoral tornou-se questão decisiva entre os sambistas. A venda de sambas inteiros ou de parcerias passou a ser uma constante: a julgar pelas assinaturas oficiais, Francisco Alves e outros cantores de prestígio parecem os mais prolíficos compositores do gênero, ainda que reconhecidamente não fossem capazes de tal proeza. Entre os próprios sambistas locais, nem sempre o bom comportamento prevaleceu, sendo frequentes casos de apropriação malandra de sambas alheios entre os frequentadores do local. Kid Pepe, outro habitué das rodas do Estácio, costumava usar suas velhas habilidades de boxeador para usurpar compositores mais humildes e franzinos. Baiaco manteve com Benedito Lacerda, como vimos, uma verdadeira dupla nessa prática, ainda que não fizessem uso de violência direta. Mas havia igualmente parcerias verdadeiramente musicais com compositores externos ao Estácio, como Noel Rosa, que frequentou o bairro e conviveu de perto com seus sambistas, fertilizando com seu talento a produção do grupo e, por vezes, confrontando algumas de suas tópicas prediletas – como o próprio tema da malandragem.
Essas composições, em sua grande maioria, obedeciam rigidamente à lógica do mercado. Além das melodias ritmadas, das letras curtas com refrões de boa memorização, os sambas passaram a insistir em temas “vendáveis”, que pudessem integrar um repertório capaz de agradar indiferenciadamente ao público consumidor. Amor, mulheres, orgia, uma versão idílica tanto da vida nos morros como da malandragem tornam-se aí os temas recorrentes dessa produção musical. Incomodados, os compositores mais antigos reagem contra a nova onda – e mesmo críticos como Vagalume manifestam seu inconformismo pelo abandono da “tradição”.¹²⁹ Sinhô, em entrevista,
desdenha dos novos compositores que transitavam repetitivamente em torno dos temas canônicos do samba do período: “lá vem sempre a mesma coisa: ‘mulher, mulher, vou deixar a malandragem’, ‘a malandragem eu deixei’...”.¹³⁰ Seguindo seus contemporâneos das rodas de partido-alto – e cioso de seu prestígio e sua liderança entre a geração mais antiga de sambistas –, o artista consagrado incluiu desde cedo referências negativas ao padrão malandro em composições que registrou e gravou, como “Ave de rapina” de 1924, em que vaticinava:
42. Sinhô, Ave de Rapina, 1924. Intérprete: Francisco Alves [1930]. [ clique aqui para ouvir ]
[...] tenho certeza que o mundo vai te ensinar,
a malandragem não tarda muito a acabar.
Se queria referir-se aí aos novos rivais no samba, Sinhô estava enganado. Definitivamente, a malandragem não acabou, embora tenha desaparecido como tema central durante o Estado Novo. Em 1930, poucos meses antes de morrer, o próprio Sinhô foi parceiro de Bide, rendido às novas circunstâncias do mercado e provavelmente à qualidade desses compositores. Entre essas novas circunstâncias, uma parece ter sido decisiva para determinar os rumos da história daí por diante: com a competição entre elas crescentemente formalizada e determinada por critérios definidos de cima, a teia de relações que envolvia as “escolas” e seus bambas passava a envolver também patrocinadores que se dividiam entre governos ou políticos, de quem dependiam as verbas públicas ou o financiamento direto de lideranças locais,
e os principais bicheiros da cidade, sempre empenhados em destacar sua área nos desfiles anuais. No segundo caso, o exemplo mais conhecido é o de Natal, na Portela – cuja importância é mais que reconhecida por todos os historiadores e aficionados. Do outro lado, a relação com políticos e órgãos governamentais vai se tornando decisiva e, ao que tudo indica, adquirindo uma estrutura mais definida.
179. Natal da Portela em desfile, s.d.
Uma nova palavra – “recreativismo” – ia se incorporando ao vocabulário político e às práticas eleitorais. Vimos o termo no aviso da “Deixa Falar” sobre seus ensaios em 1930. Antes disso, ele já figurava no título de um dos grupos mais tradicionais da cidade, registrado como “Associação Recreativista Escola de Samba Vizinha Faladeira” – composta, lá pelos lados de Santo Cristo, por sambistas, estivadores, prostitutas, malandros e “vereadores”, segundo a versão disseminada pelo próprio grupo
carnavalesco, ainda existente na cidade, e vista na imagem homenageando a Mangueira.¹³¹
180. Integrantes da Vizinha Faladeira em visita à Mangueira, s.d.
Encontramos também a expressão intitulando uma associação fundada na cidade em 1929, com sede no Largo do Machado, em apoio à eleição de Washington Luís e certamente com outras finalidades menos eventuais.
Integravam-na um “grupo de eleitores de nomes bem conhecidos e prestigiados nas sociedades recreativistas e carnavalescas desta cidade”. Entre eles, ao lado de vários políticos locais e outros de renome nacional – como o senador Antônio Azeredo, Gabriel Monteiro de Barros, Paulo de Frontin, Machado Coelho, Henrique Dodsworth e outros –, figurava o doutor Ataliba, intendente municipal e protetor de Baiaco ao qual nos referimos páginas atrás.¹³² A iniciativa certamente não morreu aí. Em uma sociedade sem instituições e canais de representação, participação ou expressão política, as escolas de samba e outras agremiações carnavalescas, solidamente assentadas em seus bairros ou “comunidades”, acabaram por assumir um papel que extrapolou os limites do lazer ou da arte.
Muitos políticos importantes do Rio, aliás, encontraram mais cedo campo fértil nos espaços da sociabilidade dos trabalhadores, antes mesmo que as escolas de samba se apresentassem no cenário. Nicanor Nascimento, Irineu Machado e vários outros fizeram uso dessas teias para crescer e aparecer, segundo depoimentos de sambistas contemporâneos.¹³³ Assim, nos anos 1930, a adesão entusiástica do Estado Novo e dos agentes de sua política cultural ao novo modelo do carnaval ancorava-se, ao que parece, em mais do que o simples fervor “nacional-popular” apregoado pelos seus ideólogos para fazer aparecer uma nova configuração no carnaval carioca.
Desapareciam, isso sim, os lendários malandros do Estácio, tragados pela sífilis e pelas cadeias, pelas armas de fogo ou pela tuberculose (que afastara do circuito inclusive o amigo Noel Rosa). O próprio Ismael viraria uma sombra do passado, após a condenação por tentativa de homicídio em 1936. Entretanto, o novo padrão musical, assim como as práticas de mercado de artistas e compositores, era irreversível. O sucesso musical do “samba moderno” que eles inauguraram permaneceu com uma contínua e avassaladora produção nas décadas seguintes, incorporando sambas de compositores brancos e externos aos circuitos dos bambas. Logo os sambas orquestrados, alguns triunfalistas e comprometidos com o regime político, encherão as casas e ruas da cidade, entronizando o gênero como um
verdadeiro símbolo nacional no qual uns e outros se confundiam sob o rótulo comum.
Sem dúvida, depois de atravessarem tempos difíceis e se afastarem desgostosos do Estácio no início dos anos 1930, a vida até melhorou para os sambistas sobreviventes. O novo regime olhava com simpatia as manifestações da chamada “cultura popular”, organizada em desfiles regrados, devidamente controlados e capitalizados politicamente pelo governo. Ouvia-se com bons ouvidos o samba que tocava nas eletrolas e, logo, nas rádios, associado à própria ideia de nacionalidade, e frequentemente “civilizado” por arranjos orquestrais e pelas vozes poderosas dos tenores e das divas da música popular. Os sambistas malandros ou boêmios remanescentes, do Estácio ou da Cidade Nova, pareciam igualados na condição de depositários dessa forma de expressão genuinamente brasileira – à qual, evidentemente, o novo regime político tratou de dar polimento, proibindo as apologias da vadiagem ou a transgressão mais “pesada”.
Os que sobreviveram à sífilis e à tuberculose, à prisão ou aos episódios de violência vestiram alegremente a roupa que lhes era oferecida. Andavam pelas ruas, ombro a ombro com os compositores e cantores brancos, sem medo da polícia e cheios de orgulho, como faziam Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Bide e Marçal, caminhando ao lado do então famoso Gilberto Alves, ex-trabalhador braçal branco que também se projetara para fora da pobreza através das ondas do rádio. Deixaram, todos eles, de viver do minguado salário de seus antigos empregos para tornarem-se profissionais do samba e símbolos da cidade.
Ao menos por algum tempo, já não podiam se queixar de que o samba não dava camisa a ninguém.
181. Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Marçal, s.d.
ABREVIATURAS UTILIZADAS
AEL – Arquivo Edgard Leuenroth – Unicamp, Campinas (SP)
AGCRJ – Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
AN – Arquivo Nacional
BN – Biblioteca Nacional
IMS – Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro
MIS-RJ – Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro
NOTAS
Introdução
1 História da música popular brasileira. São Paulo, Abril, 1970, vol. 48 (LP e encarte). O volume inclui, além dos sambistas mencionados, composições de músicos falecidos no século XIX como Xisto Bahia e Joaquim Callado. Entre os responsáveis pela curadoria da coleção figuram nomes importantes como Sérgio Cabral, José Ramos Tinhorão, Tárik de Souza, Lúcio Rangel, Jota Efegê, entre outros intelectuais, músicos e críticos musicais.
2 Para um balanço dessa produção pioneira na área, ver José Geraldo Vinci de Moraes. “História e historiadores da música popular no Brasil”. Latin American Music Review, 28, (2), 2007, pp. 271-299.
3 O livro de Hermano Vianna O mistério do samba (Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995) é o melhor exemplo dessa forma de interpretação – até porque empreende uma leitura bastante inteligente e sensível da questão, embora limitada pela ausência de pesquisa a partir de fontes originais e por suas escolhas teóricas. Recentemente, outras temáticas vêm surgindo no interior dessa bibliografia. Por exemplo, o livro de José Adriano Fenerick Nem do morro nem da cidade. As transformações do samba e a indústria cultural, 1920-1945 (São Paulo, Annablume, 2005) toma essa velha polarização mencionada no título para discutir o que ele chama a “modernização” do samba ao se transformar em produto de mercado. A análise, centrada na “indústria cultural”, vem fundada na ideia sempre um tanto vaga de “modernidade”, que assume aí forte peso explicativo. Para isso, entretanto, o foco se desloca para os anos 1940, com a consolidação do rádio, sob a direção política do regime de Vargas.
4 O autor mais importante a desenvolver argumentos nessa direção foi Roberto Moura, em seu livro Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro (2a ed. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995). Outros autores, como Nei Lopes, por exemplo, em diversos livros e artigos, desenvolvem de forma engajada essa perspectiva de análise.
5 Entre eles, destacam-se Carlos Sandroni, com o excelente Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) (Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 2001); ver ainda o artigo inspirador de Tiago de Melo Gomes “Para além da casa de tia Ciata: Outras experiências no universo cultural carioca, 1830-1930”. Afro-Ásia, 29-30, 2003, pp. 175198.
6 Desde a década de 1980, José Murilo de Carvalho (Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987) sugeriu a importância dessas formas associativas e outros modos espontâneos de aglutinação para articular e exprimir demandas e concepções populares na cidade do Rio de Janeiro, em uma circunstância histórica – o início da República – na qual o exercício direto da cidadania e dos direitos era tolhido pela ausência de mecanismos institucionais.
7 Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001; sobre salões de dança, ver Leonardo Affonso de Miranda Pereira, “O Prazer das Morenas: Bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República”. In: Andrea Marzano & Victor Andrade de Melo (orgs.). Vida divertida: Histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro, Apicuri, 2010, pp. 275-299. Ver, ainda, Wlamyra Albuquerque. O jogo da dissimulação. Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, especialmente o capítulo 4.
8 Cf. Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan (Visconde de Beaurepaire-Rohan). Diccionário de vocábulos Brazileiros. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, p. 127.
9 Refiro-me especificamente aos projetos temáticos “Santana e Bexiga: Cotidiano e cultura de trabalhadores no Rio de Janeiro e São Paulo entre 1850 e 1930”, que se estendeu de 2002 a 2006, e “Trabalhadores no Brasil: Identidades, direitos e política (séculos XVII a XX)”, desenvolvido entre 2007 e 2012. Para maiores detalhes sobre os projetos, ver o site do Cecult: .
10 Ver o mapa Lazer, cultura, sociabilidade: Cotidiano de trabalhadores em Santana. R. J. – 1905. Disponível em . Uma visita prévia a essa área da cidade no início do século XX será certamente proveitosa para o leitor das páginas que se seguem.
Capítulo I
1 Cf. Depoimento de Hélio Rosa (irmão de Noel Rosa), in: Jacy Pacheco. Noel Rosa e sua época. Rio de Janeiro, G. A. Penna, 1955, pp. 36-37, apud João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Ed. UnB/Linha Gráfica, 1990, p. 118.
2 Para uma análise mais extensa sobre Sinhô e sua obra, ver Maria Clementina Pereira Cunha, “De sambas e passarinhos. As claves do tempo
nas canções de Sinhô”. In: Sidney Chalhoub; Margarida de Souza Neves & Leonardo Pereira (orgs.). História em cousas miúdas. Crônicas e cronistas no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 2005, pp. 547-587. Quando não houver indicação em contrário, todas as referências a Sinhô no capítulo devem ser remetidas a esse texto.
3 Tal ponto de vista era generalizado no período: ele pode ser encontrado até mesmo em aficionados do samba, como o cronista Vagalume em sua série de reportagens sobre os morros cariocas, publicada em livro. Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933.
4 Sinhô era, segundo seus biógrafos, muito ligado ao alufá Assumano Mina do Brasil e não frequentava os candomblés. Cf. Edigar de Alencar. Nosso Sinhô do samba. Rio de Janeiro, MEC/Funarte, 1981. Mas ele certamente compartilhou com Donga e João da Bahiana, entre outros, brincadeiras infantis e acontecimentos memoráveis de seu tempo e lugar. Dificilmente não se conheceram na meninice e, na juventude, continuaram frequentando os mesmos espaços, como mostra a polêmica em torno da autoria de “Pelo telefone”, composta coletivamente na casa da baiana Ciata e posteriormente registrada por Donga como de sua autoria.
5 Os Oito Batutas, por exemplo, apresentavam-se como atração na sala de espera do cinema mais elegante da cidade nessa ocasião. Cf., entre outras referências, Sérgio Cabral. Pixinguinha, vida e obra. Rio de Janeiro, Lumiar, 1997, pp. 45-47.
6 Cf. Elysio de Carvalho. Gíria dos gatunos cariocas. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1912, p. 9.
7 Para mais detalhes, cf. Marília T. Barboza da Silva & Arthur L. de Oliveira Filho. Pixinguinha, filho de Ogum bexiguento. Rio de Janeiro, Gryphus, 1998, pp. 59 e ss.; e Luiza Mara B. Martins. Os Oito Batutas. Uma orquestra melhor que a encomenda. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, UFF, 2009, especialmente capítulo 3, partes 1 e 2. O próprio Pixinguinha, aliás, parece nunca ter assumido o perfil de sambista: em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, por exemplo, ele declara explicitamente não ser “do samba”, característica que atribui a seus companheiros Donga e João da Bahiana. Ver Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu. Rio de Janeiro, MIS, 1970.
8 Correio da Manhã, 13 de fevereiro de 1958.
9 Tal perspectiva, convém lembrar, vai muito além das fronteiras nacionais. Processos análogos ocorreram em relação ao jazz nos Estados Unidos, ao tango na Argentina, ao fado em Portugal e assim por diante.
10 Hermano Viana, em O mistério do samba (Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995), toma como ponto de partida justamente esses encontros. Entretanto, suas conclusões apontam em sentido diverso – para enxergar neles ocasiões de “miscigenação” cultural e apagamento de conflitos, em uma perspectiva influenciada pela visão freyriana.
11 Manuel Bandeira. “Sambistas”. Poesia completa e prosa. 5a ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2009, p. 509.
12 A voga sertaneja era predominante nos anos 1920, fazendo com que muitos grupos – como o Grupo do Caxangá, que surgiu no carnaval de 1914 (formado por Jacob Palmieri, China, João Pernambuco, Caninha, Pixinguinha e outros), ou, na década de 1920, os Turunas Pernambucanos (Ratinho, Cobrinha, Preá e Jandaia) e os Turunas da Mauriceia (Augusto Calheiros, João Miranda e outros), e vários outros grupos de músicos e sambistas – assumissem denominações rurais ou caipiras. Naquele momento, Catulo da Paixão Cearense, autor de sucessos como “Cabocla de Caxangá” e “Luar do sertão”, era ainda a principal referência em termos de música urbana. Ver a respeito José Miguel Wisnik. “Getúlio da Paixão Cearense”. O nacional e o popular na cultura brasileira – Música. São Paulo, Brasiliense, 1983, e Machado Maxixe: O caso Pestana. São Paulo, Publifolha, 2008. Para mais informações, que estão disseminadas pela bibliografia, ver especialmente, pelo seu valor testemunhal, o livro de Almirante (Henrique Foréis Domingues) intitulado No tempo de Noel Rosa. 2a ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977, especialmente os capítulos iniciais. Não é outra, aliás, a razão pela qual conjuntos de formação instrumental como os grupos de choro ainda hoje conservam a denominação de “regionais”.
13 Jornal do Brasil, 19 de maio de 1926, apud Rômulo Costa Mattos. “Aldeias do Mal”. Revista Brasileira de História da Biblioteca Nacional, 25, outubro de 2007.
14 Em crônica intitulada “Capitão Vagalume: Um soldado do samba e do carnaval”, o cronista e musicólogo Jota Efegê fornece esses dados sobre a vida do jornalista, cuja biografia é ainda pouco conhecida. Nem mesmo sobre a década de nascimento do jornalista há consenso entre diferentes autores, que a situam em torno dos anos 1870. Cf. João Ferreira Gomes (Jota Efegê). Figuras e coisas da música popular brasileira, vol. 1. Rio de Janeiro, Funarte, 1979, pp. 128-130.
15 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba..., pp. 247-273. Note-se que Vagalume não atribui a origem do samba exclusivamente à favela, como se pode deduzir de suas memórias a respeito das rodas de samba dos baianos da Cidade Nova aos quais reverencia como sambistas “autênticos”.
16 Idem, p. 268.
17 Sobre as relações entre modernismo e samba, ou música popular, ver Santuza Cambraia Naves. O violão azul. Modernismo e música popular. Rio de Janeiro, FGV Ed., 1998; e Elizabeth Travassos. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
18 Manuel Bandeira, “O enterro de Sinhô”. Poesia completa e prosa..., p. 483.
19 Essas ligações entre o PCB e o mundo do samba, explicitadas abertamente no período de legalidade (1945-1947) – no qual o jornal do partido Tribuna Popular chegou a manter uma coluna fixa intitulada “O samba na cidade” –, podem ser buscadas em textos e atitudes de seus intelectuais nos anos 1920 e 1930. Os anos de legalidade revelaram a relação intensa com as prestigiadas escolas de samba, que se expressou em novembro de 1946 em uma homenagem prestada por elas ao “Cavaleiro da Esperança” no campo do Vasco da Gama.
20 O escritor Coelho Neto, por exemplo, foi um grande entusiasta da música popular, como do carnaval das ruas. Teria sido dele, inclusive, a ideia que levou o milionário Arnaldo Guinle a patrocinar a excursão dos
Batutas ao interior do Brasil em busca de uma música ao mesmo tempo popular e nacional.
21 O processo de racialização das relações e dos conflitos sociais, em curso desde o século XIX, não foi simplesmente um esforço de atribuição unilateral e desqualificante de antigos senhores voltados para seus exescravos e descendentes, mas uma elaboração contínua das duas partes envolvendo uma intensa disputa por significados. Ver sobre isso Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. O jogo da dissimulação. Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
22 Para uma análise inspiradora da questão no período, pela ótica transnacional, ver Micol Seigel. Uneven Encounters. Making race and nation in Brazil and The United States. Durham/Londres, Duke University Press, 2009, especialmente os capítulos 2, 3 e 4.
23 A polêmica com Heitor dos Prazeres inclui alguns momentos musicais antológicos, como “O rei dos meus sambas”. Na canção, Heitor alude ao título de “rei do samba” pelo qual Sinhô era conhecido para acusá-lo de plágio: “Olha ele, cuidado/Ele com aquela conversa é danado./[...] Chora mais do que eu/ É o rei dos meus sambas/ Eu lhe direi com franqueza/ tu demonstras fraqueza/ tenho razão em viver descontente./ És conhecido por bamba/ sendo o rei dos meus sambas,/ que malandro inteligente!”.
24 Cf. Samuel Malamud. Recordando a Praça Onze. Rio de Janeiro, Livraria Kosmos, 1988.
25 Cf. Thomas H. Holloway. Polícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FGV Ed., 1997, p. 232.
26 Existiam na Casa de Detenção, em 1875, 708 brasileiros livres (o que inclui, naturalmente, indivíduos negros e brancos) e 744 imigrantes. A maioria dos presos, entretanto, era constituída de escravos, cujo contingente superava amplamente a soma dos anteriores. Esse padrão é mantido nos dados relativos à cadeia central da polícia. Na população da cidade, note-se para comparação, as proporções são bem diferentes: em 1872, segundo os dados censitários, os estrangeiros avultavam a 30,4%, os brasileiros livres correspondiam a 53,2% e os escravos, no período, eram apenas 16,4% do total. Cf. idem, pp. 233-234.
27 Refiro-me a ilustradores como os irmãos Pederneiras e outros que frequentaram as páginas dos principais veículos da imprensa carioca do período. Muitas dessas imagens foram incorporadas às memórias do jornalista Luiz Edmundo (publicadas originalmente no final da década de 1930), em que relata sua juventude como jornalista na cidade, retratando seus costumes no início do século XX. Ver Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo 1938. Rio de Janeiro, Xenon, 1987.
28 Joaquim Calado (1848-1880), Anacleto de Medeiros (1866-1907), Patápio Silva (1881-1907), Pixinguinha (1897-1973), ao lado de mestiços como Chiquinha Gonzaga (1874-1935) ou o maestro negro Henrique Mesquita (professor de Calado e outros músicos de sua geração), são considerados iniciadores do gênero rotulado como “choro”, que exige conhecimentos mais aprofundados de música e virtuosismo com os instrumentos de sopro e corda. Quase todos eles (inclusive Ernesto Nazareth) nasceram ou cresceram na Cidade Nova e frequentaram suas rodas de música na virada do século XX.
29 Sobre o artista, também conhecido como Diamante Negro ou Crioulo Dudu, ver Martha Abreu. “Eduardo das Neves (1874-1919): Histórias de um crioulo malandro”. In: Denise Pini da Fonseca (org.). Resistência e inclusão. História, cultura, educação e cidadania afrodescendente, vol. 1. Rio de Janeiro, PUC/Consulado Geral dos Estados Unidos, 2003, pp. 73-87.
30 Diversões particulares (1838-1908). AGCRJ, Códice 42-3-14. Esse documento foi analisado anteriormente por Martha Abreu em seu livro O Império do Divino (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), recorrendo aos mesmos códices que utilizei nesta análise. No período republicano, a Rua de São Diogo passou a chamar-se Rua General Pedra; a Rua de Santa Rosa tornou-se a Marquês de Pombal; e a antiga Rua do Alcântara foi rebatizada como Rua Benedito Hipólito.
31 Cf. Sidney Chalhoub. Visões da liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 212 e ss., que cunhou a noção de “cidade esconderijo” referindo-se basicamente a essa região da Corte imperial.
32 Edward Gotto. Plan of the city of Rio de Janeiro 1866. Londres, Robert J. Cook, 1871. O mapa original, pertencente à Biblioteca Nacional, pode ser visto digitalizado em: .
33 Luiz Nicolau Parés, em A formação do candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia (Campinas, Editora da Unicamp, 2006, p. 130 e passim), discute a existência de políticas divergentes das classes senhoriais em relação aos cultos “africanos” na Bahia, marca que as autoridades cariocas confirmam em suas atitudes diante dos batuques na Corte e, depois, na capital federal. Sobre batuques e os matizes na compreensão dos brancos a respeito de seus significados, mesmo antes do período aqui
abordado, ver João José Reis. “Tambores e temores: A festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX”. In: Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras frestas. Ensaios de história social da cultura. Campinas, Editora da Unicamp, 2002, pp. 101-155. Ver também Martha Abreu. O Império do Divino..., p. 289.
34 Thomas Holloway, em Polícia no Rio de Janeiro... (pp. 227 e ss.), mostra como e por que delegados perdem prestígio desde a reforma judiciária de 1871, iniciando um ciclo de mudanças na polícia que serão aprofundadas no regime republicano.
35 Sobre as mudanças da polícia na República, ver Marcos Bretas. A guerra nas ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, e Ordem na cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro – 1907-1930. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.
36 Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da Abolição. São Paulo, Edusp, 1994, p. 70.
37 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. As referências seguintes sobre o carnaval carioca, salvo quando indicado em nota específica, estarão doravante remetidas a esse livro.
38 Cf. Martha Abreu. O Império do Divino..., que explora os significados da festa e suas relações com a história do Campo de Santana.
39 Cf. Ermínia Silva. Circo-teatro. Benjamin de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo, Altana, 2007.
40 Diversões Públicas (1832-1869). AGCRJ, Códice 42-3-13. No códice é possível acompanhar a trajetória do estabelecimento no período e atestar sua permanente animação. Em 1846, pertencia a um certo Francisco York, desenvolvendo jogos e diversões que incluíam um Tivoly e o “Pavilhão chinês”, onde eram realizados bailes regulares; seu proprietário solicitava autorização para funcionar até a meia-noite (p. 73). Em 1855, o mesmo estabelecimento (situado no no 9 do Campo de Santana) chamava-se “Paraíso” e pertencia ao comerciante Antônio José Godinho Jr., que requereu em julho licença para realizar 22 bailes de máscara na casa até o final daquele ano (autorização negada pela Câmara, que considerou abusivo o patrocínio de mascaradas fora do período carnavalesco). Em 1858, o estabelecimento aparece ainda com o mesmo nome no requerimento apresentado por Auguste Charpentier, sócio-gerente da Cia. de Artistas Líricos e Dramáticos, para lá apresentar as “Folies Parisiennes”, “nos moldes dos cafés cantantes franceses”. Nesse mesmo ano, outro requerimento assinado por José Guillimet, “empresário de divertimento noturno” e proprietário do “Café Cantante” (o título “Paraíso” já não aparece), situado no mesmo endereço, requer às autoridades uma ampliação do seu horário de funcionamento, para bem atender à sua numerosa (e ao que parece, animada) clientela. Este último requerimento está em Diversões Públicas (1858). AGCRJ, Códice 42-3-17.
41 Aluísio Azevedo. O cortiço 1890. 20a ed. São Paulo, Ática, 1989.
42 Idem, capítulo VI, que descreve o dia em que a personagem Rita Baiana retorna ao cortiço.
43 Idem, p. 51.
44 “De muitas outras [casinhas] saíam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone” (Idem, p. 44).
45 Idem, pp. 55-56.
46 Há também nos códices raros casos de brasileiros que querem licenciar ternos de barbeiros ou bandas de música, ou tocar em bares e botequins, pedidos em geral indeferidos ou que enfrentam dificuldades interpostas por fiscais e outros funcionários da Câmara. Cf., a título de exemplo, Diversões Públicas (1832-1869), AGCRJ, Códice 42-3-13, p. 11.
47 Para a variedade musical no período, ver: Diversões públicas (18321868). AGCRJ, Códice 42-3-13.
48 Diversões públicas (1832-1868). AGCRJ, Códice 42-3-13, p. 151. Ver também, entre outros, p. 152 – pedido de Alexandre Curetti, italiano, mesmo endereço; p. 153 – Rebolli Lazzere, italiano, mesmo endereço; p. 154 – Joaquim Alves, português, residente à Rua da Vala, 59.
49 Diversões públicas (1832-1868). AGCRJ, Códice 42-3-13, pp. 194-195.
50 Diversões particulares (1870-1899). AGCRJ, Códice 42-3-19.
51 Cf. Paulo Barreto (João do Rio). A alma encantadora das ruas 1908. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1987 (2a tiragem, 1991), pp. 65-69.
52 Para uma síntese dos debates relativos à questão, ver Silvia Hunold Lara, “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto História, 16, fevereiro de 1998, pp. 25-38; e, mais recentemente, Sidney Chalhoub & Fernando Teixeira da Silva, “Sujeitos no imaginário acadêmico: Escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos AEL, 14(26), 2009 (“Trabalhadores, leis e direitos”, org. Chalhoub & Teixeira da Silva), pp. 11-50.
53 O mesmo João do Rio, que registrou a presença dos músicos de rua brancos no século XX, superdimensionou a presença negra em várias descrições da região e referiu-se àquele trecho urbano, carregando nas tintas, como “o bairro onde o assassinato é natural”. Em outra ocasião, tentando captar a “alma” da Rua de Santana, onde fica a igreja que deu nome à freguesia, chegou a descrevê-la hiperbolicamente como “a Lady MacBeth da topografia”, que assumiria desde as 10 horas da noite “um estado sonambúlico e é só gritos, clamores: sangue! Sangue!”. Cf. Paulo Barreto (João do Rio). Cinematógrapho. Porto, Livraria Chadron, 1909, p. 34; e também A alma encantadora das ruas 1908. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1991 p. 11.
54 Em 1893, por exemplo, os moradores da Rua da Imperatriz – muitos dos quais habitavam cortiços, como se vê pelos endereços fornecidos –
assinaram em conjunto uma petição contra a sujeira produzida por uma fábrica das imediações, que invadia suas residências, prejudicando a higiene pública e a saúde individual. Queixas e reclamações (1890-1899). AGCRJ, Códice 49-1-43, p. 58 (1893). Foram signatários os moradores das casas de número 43 e 43 A, 45, 47, 49, 53 (3), 58 (2), 60, 64 (fundos, A e sobrado), 67, 68 (3), 70, 72, 75, 77, 78, 80 e 92. Há nessa documentação vários outros exemplos, como o dos moradores de cortiços da Rua Senador Eusébio que acionaram os poderes públicos visando defender-se da negra fumaça exalada por uma trituração de milho situada na vizinhança, que usava como combustível das caldeiras, piche e lama extraída do Canal do Mangue, sujando as roupas nos varais, empesteando o ar, trazendo doenças. Os moradores receberam o apoio decidido do comissário de Higiene da Intendência, Dr. Eduardo Jorge, inclusive em sua tentativa de mobilização contra os efeitos ainda maiores criados pelas poderosas chaminés da Companhia do Gaz, situada também nas redondezas. Queixas e reclamações (1890-1899). AGCRJ, Códice 49-1-43, p. 46 (1892).
55 Ver, entre outros, o fundo AN 6Z, Pretoria Criminal do Rio de Janeiro – 3o Juízo dos Feitos da Saúde Pública, formado por 271 processos entre 1906 e 1920.
56 Ver, a título de exemplo: Processo no 72, Réu: César Augusto de Souza, 1912. AN, Juízo da 3a Pretoria Criminal, n. 6Z 21992; Processo no 1.003. Apelação à Justiça Sanitária, Apelante: Manuel José de Souza (Moraes), 1912. AN, Juízo de Direito dos Feitos da Saúde Pública, n. 6Z 21951.
57 Registro das Estalagens (1901-1903 e 1904-1907). AGCRJ, Códices 431-35 e 43-1-38, p. 57 (6/11/1903).
58 Cf. Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo..., pp. 311-318. Para outro exemplo da década de 1920, ver a crônica “Como eles se divertem”, em O Malho no 1.332, de 24 de março de 1928, sobre sessão de cinema na Cidade Nova: “Não há nada que se compare a uma sessão de cinema da rua Marechal Floriano Peixoto (500 réis a entrada), sentado lá no fundo, tendo ao lado um estivador suarento e à frente a nuca raspada de uma cozinheira de pensão barata. O pianista assassina valsas no piano, enquanto Tom Mix esmurra vaqueiros e galga serras abruptas em carreira desabalada. Sua o estivador: sua mais que uma esponja. Fede o cangote da preta. E a certa altura não se sabe se o que fede é o suor do estivador ou o cangote da preta. Começa-se a sentir uma ebriez invencível”. Para descrições análogas de situações que envolvem a diversão das camadas populares, ver Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco. Campinas, Editora da Unicamp, 2004.
59 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha, “Vários Zés, um sobrenome: As muitas faces do senhor Pereira no carnaval carioca da virada do século”. In: Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras frestas..., pp. 371-418.
60 A ofensa racista que equipara negros a macacos era recorrente naquele contexto. Psiquiatras do período estabeleciam abertamente tal paralelo em sua prática profissional. Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. O espelho do mundo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, pp. 122-125. Lima Barreto o denunciou em diversas crônicas, como, por exemplo, “A vingança (história de carnaval)”. BN, Seção de Manuscritos I-6-34, maço 869. A propósito, ver Raphael Frederico A. Moreira da Silva, “Os macaquitos na Bruzundanga”. In: S. Chalhoub; Margarida S. Neves & L. Pereira (orgs.). História em cousas miúdas..., pp. 159-197. Ver também, para a tradução futebolística do fenômeno, Leonardo A. M. Pereira. Footballmania. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, capítulo 2. Vale lembrar ainda o bloco de sujos de Ciata, que adotou o título “O Macaco é Outro”, refrão que seus integrantes costumavam gritar pelas ruas da cidade a cada carnaval, em evidente reação a essa expressão fortemente depreciativa.
61 Carioca. “O meu domingo”. Fon-fon 48, 7 de março de 1908.
62 Américo Fluminense (Gonzaga Duque). “O carnaval do Rio”. Kosmos, fevereiro de 1907.
63 Paulo Barreto (João do Rio). “Elogio ao cordão”. Kosmos, fevereiro de 1906.
64 Dominó Azul. Fon-fon, 18 de fevereiro de 1909.
65 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia..., pp. 163-167, para ter uma dimensão quantificada do fenômeno.
66 Em 1906, como decorrência de uma briga de rua com seus rivais do cordão Chuveiro de Ouro, todos os integrantes do Primavera foram presos nas vésperas do carnaval, suscitando a solidariedade de outros grupos que cantavam pelas ruas, segundo noticiava a imprensa, os seguintes versos: “Seu dotô chefe, tenha compaixão/ o Primavera está na detenção”. Cf. Eneida de Moraes. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 144.
67 Gravada no rádio por Almirante em 1946, a partir de suas recordações pessoais, a marcha foi localizada no site
Capítulo II
1 Processo no 254. Réus: Miguel da Fonseca Pinto e Benedito Lacerda, 1923. AN, 3a Pretoria Criminal 6Z-7601.
2 Elysio de Carvalho. Gíria dos gatunos cariocas. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1912, p. 36. O autor, com uma curiosa trajetória que vai de um intelectual simpático ao anarquismo até o posto de diretor do Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia da capital federal, registra em 46 páginas o jargão das ruas, atribuído aos ladrões, compartilhado, em grande parte, por um amplo espectro de moradores pobres da cidade.
3 Sobre a distribuição da população pelos diferentes distritos, ver Sylvia F. Damázio. Retrato social do Rio de Janeiro na virada do século. Rio de Janeiro, Eduerj, 1996, p. 27. Sobre taxas de nupcialidade, ver p. 167, que traz a percentagem obtida a partir dos dados do Censo de 1906, de 67% de solteiros. Note-se que os números são muito próximos dos índices encontrados no universo de detidos na delegacia de Santana.
4 Idem, p. 34.
5 É conhecida a grande concentração de habitações coletivas nessa parte da cidade, o que ajuda a entender sua alta densidade demográfica. Segundo Sylvia F. Damázio (Retrato social do Rio de Janeiro..., p. 173), apoiada na consulta aos códices do Arquivo Geral da Cidade relativos ao tema, em 1888 eram 395 habitações coletivas em Santa Rita e Santana, número que
tendeu a se ampliar seguidamente com o passar dos anos, ao menos até a Reforma Pereira Passos.
6 Em Santana: 1 acidente de trânsito, 13 episódios de assistência, 3 crimes contra a propriedade, 10 casos de sedução, defloramento ou atos imorais e 77 detenções por vadiagem, embriaguez ou brigas de rua (além de 23 episódios avulsos). Em Sacramento, para comparação: 12 acidentes de trânsito, 16 episódios de assistência (sendo que 8 relativos ao recolhimento de cadáveres de suicidas – número que deve ser tomado com cautela, pois, segundo Sylvia F. Damázio (idem, p. 88), o total de suicídios na cidade em 1906 foi de 80, 87 casos de vadiagem, embriaguez (predominante) e brigas de rua, 17 casos de crime contra a propriedade, apenas 2 casos de sedução, defloramento ou atentado ao pudor e 50 episódios avulsos e variados. Esses dados foram compilados em um Banco de Ocorrências Policiais, construído a partir dos Livros de Ocorrências das Delegacias da região pela equipe do Cecult-Unicamp. Os dados incluídos nesse conjunto foram extraídos dos Livros de Ocorrências das delegacias de Santana, Sacramento, Saúde, Santa Rita, Gamboa e Espírito Santo (1905, 1925), cujas cópias microfilmadas estão depositadas no AEL.
7 Ocorrência no 6.031. AEL, Livro de Ocorrências Policiais, 14o DP – Santana, 1907, p. 615.
8 A expressão “canoa” – sinônimo de “canastra” – está registrada à página 13 do livro de Elysio de Carvalho intitulado Gíria dos gatunos cariocas, como “diligência organizada pela polícia para colher gatunos, desordeiros e vagabundos”.
9 Sylvia F. Damázio. Retrato social do Rio de Janeiro..., pp. 39-40. Essa parcela dos habitantes da região constituía, segundo ela, cerca de 50% da
população economicamente ativa em 1906.
10 Cf. IBGE. Situação Demográfica – Estado da População. Tabela II – População do Distrito Federal discriminada pelos principais característicos, segundo os recenseamentos gerais de 1872, 1890 e 1920, e o municipal de 1906. Disponível em: (que discrimina os dados por sexo, estado civil, nacionalidade e faixa etária).
11 Cecult-Unicamp. Banco de Ocorrências Policiais, já mencionado.
12 Cristiana Schettini Pereira. Que tenhas teu corpo. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2008. O livro analisa diferentes episódios que envolvem mulheres como Maria Scheid e suas teias de relações no universo da prostituição na cidade.
13 Sobre zungus, ver Carlos Eugenio L. Soares. Zungu, rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado, 1998. A expressão consta do livro de Elysio de Carvalho. Gíria dos gatunos cariocas..., p. 46, definida como: “hospedaria de ínfima classe onde dormem gatunos”.
14 Ocorrência no 8.591. AEL, Livro de Ocorrências Policiais, 9a DP – Santana, 1905, p. 394.
15 Sobre Obá, ver Eduardo Silva. D. Obá II d’África, o príncipe do povo. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
16 Sobre o Sindicato Resistência, ver Maria Cecília Velasco e Cruz. Virando o jogo. Estivadores e carregadores no Rio de Janeiro da Primeira República. Tese de doutorado. São Paulo, USP, 1998, e “Cor, etnicidade e formação de classe no porto do Rio de Janeiro: A Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café e o conflito de 1908”. Revista USP, 68, 2005, pp. 188-209.
17 Cf. Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2a ed. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995, p. 69.
18 Sobre a ocupação do Morro da Favela, ver Sonia Zylberberg. Morro da Providência: Memórias da Favella. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, e Licia Valladares. “A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15 (44), outubro de 2000, pp. 5-34.
19 Para uma descrição curiosa dessa ligação entre os dois morros, ver Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933, p. 253.
20 Cf. João do Rio. “Elogio ao cordão”. Kosmos, fevereiro de 1906.
21 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, especialmente as tabelas das pp. 163 e 166. Em toda a cidade, o volume de agremiações carnavalescas desse tipo certamente ultrapassava a casa dos 300 grupos.
22 Para casos exemplares, ver, entre outros: Licença cassada ao Quiosque situado em frente ao no 141 da Praça da República – Ofício no 182 do Diretor-Geral Interino da Diretoria de Interior e Estatística em 13 de dezembro de 1901; e Ofício do delegado da 3a Circunscrição urbana ao Delegado Auxiliar, em 10 de fevereiro de 1901, que resultou no fechamento de um botequim da Rua Visconde do Rio Branco no 13. AN, GIFI 6C 69 (1901) no 6.
23 Na Rua Senador Eusébio: Apaixonados, Caju de Ouro, Clowns Invencíveis, Diabinhos de Ouro, Club dos Chineses, Estrela da Aurora, Luz do Povo, Rainha de Ouro, Triunfo da Camélia; na Barão de São Felix, Caprichosos dos Cajueiros, Chora na Macumba, Triunfo Flor da China, Filhos dos Clowns, Liga Africana, Rompe e Rasga, Teimosos Carnavalescos. Dados mais completos podem ser encontrados em Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia..., capítulo 3.
24 Processo no 1.163. Autor: David Moreira Rege – proprietário do imóvel, 1907. AN, 8a Pretoria – 1394, galeria A. A sociedade foi processada pela dívida de 630 mil-réis, correspondente a sete meses de aluguel da sede situada na Rua do Areal. Na ocasião, foram penhorados todos os bens da sociedade: um banco de madeira, uma cama pequena de madeira, um guarda-louça com portas de vidro (um deles quebrado), uma mesa pequena com duas gavetas, um lavatório com a pedra quebrada, um espelho, um colchão, um espelho grande com moldura dourada, um pequeno lote de louças, uma mesa escrivaninha, cinco estandartes, um relógio de parede, um lote de diversos quadros com fotografias e retratos, cinco escudos de
papelão, trinta e seis cadeiras austríacas com assento de palhinha, dois cabides de madeira, quatro pares de cortinas estragadas de renda e mais uma, uma moringa de barro, duas bandejas, uma cafeteira, um ornato de papel de cores para teto de sala, um mastro grande, duas bandeiras velhas. Ver também Processo no 8.526. Autor: Lopes, Alves & Irmãos Ltda., 1908. AN, 8a Pretoria – 1356, galeria A, referente a despejo dos Paladinos da Cidade Nova, a maior agremiação das imediações situada na Praça Onze, também por falta de pagamento de aluguéis.
25 Sobre a presença dos muçulmanos no Rio, ver Alberto da Costa e Silva. Um Rio chamado Atlântico. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/Ed. UFRJ, 2003; e Juliana Barreto Farias; Carlos Eugenio L. Soares & Flavio Gomes. No labirinto das nações. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005.
26 Paulo Barreto (João do Rio). As religiões no Rio. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1951, p. 35.
27 O comerciante chamava-se Evaristo do Nascimento Barros Sayão, estabelecido com casa de ervas medicinais na Rua Mal. Floriano Peixoto no 175. Queixas e reclamações (1900-1913), AGCRJ, Códice 49-1-62, p. 91. A data da queixa é 30 de setembro de 1903.
28 Cf. Brasil Gerson. História das ruas do Rio. 5a ed. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 2000, p. 60.
29 Cf. Paulo Barreto (João do Rio). As religiões no Rio..., p. 38. Ver também observação do mesmo autor na p. 18: “Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auaudô-chum; a gente de santo despreza os
bichos que não comem carne de porco, tratando-os de malês”. Cabe observar que os comentários de João do Rio a propósito dos ritos afrobrasileiros da cidade devem ser sempre tomados com algum cuidado, pela imprecisão de alguns relatos ou pelo olhar viciado de um letrado sobre um universo que ele não chegava a compreender inteiramente. Apesar disso, a confiabilidade de seus relatos é bastante apreciável, se olhada através dos filtros corretos. Ver sobre isso Reginaldo Prandi. “Modernidade com feitiçaria: Candomblé e umbanda no Brasil do século XX”. Tempo Social, 2 (1), 1990, p. 50; Marcelo Alves, “As aventuras do ‘homus cinematográphicus’ (estrelando: João do Rio)”. In: Chirley Domingues & Marcelo Alves (orgs.). A cidade escrita. Literatura, jornalismo e modernidade em João do Rio. Itajaí, Ed. Univali, 2005, p. 96; Luís Rodolfo Vilhena, “A Babel da crença: O campo religioso carioca em João do Rio”. In: L. R. Vilhena. Ensaios de antropologia. Rio de Janeiro, Eduerj, 1997, p. 115.
30 O artigo 157 do Código Penal de 1890 criminalizava “o espiritismo, a magia e seus sortilégios”, dando margem a uma perseguição policial mais ou menos regular contra tais personagens. Cf. Yvonne Maggie. Medo do feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992, pp. 276-277, que publica uma “Relação dos processos e sentenças por atos de feitiçaria e prática ilegal de medicina” na cidade em 1904 – em que são mencionados dois portugueses e três portuguesas, um italiano, uma marroquina e um cabo-verdiano como curandeiros ou feiticeiros enquadrados no referido artigo. Exemplos de ação policial contra lideranças religiosas negras podem ser encontrados em Muniz Sodré. O terreiro e a cidade. A forma social negro-brasileira. Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo/ Imago, 2002, que menciona casos de violência contra religiosos negros em 1916. Ver também Juliana Barreto Farias; Carlos Eugenio L. Soares & Flávio Gomes, “Assumano Mina do Brasil: Personagens e Áfricas ocultas”. No Labirinto das Nações, pp. 265-297, que discute o processo movido contra Assumano Mina do Brasil em 1927, evidenciando que esses personagens ainda eram vistos com desconfiança pelas autoridades décadas depois da implantação da República.
31 Cf. Ocorrência no 8.589. AEL, Livro de Ocorrências da 9a DP, Santana, 1905, pp. 1.952 e 1.954.
32 Cf. Paulo Barreto (João do Rio) As religiões no Rio..., seção “Os exploradores” (pp. 199-206) e passim. O cronista relaciona vários nomes e lugares na região: na Praia Formosa haveria um endereço frequentado pelo próprio delegado de polícia da circunscrição em busca de cura para a sífilis, e o Morro do Pinto, segundo ele, abrigava inúmeros outros dessa natureza; relembra ainda uma certa Galdina na Rua da Alfândega, a Rosalina (especificada como “negra”) na Rua da América, uma Aquilina na Rua do Cunha, outra de nome Augusta na Rua Presidente Barroso, um segundo negro de nome Samuel – este um “espírita ambulante” residente na Rua Senador Pompeu, um de nome Claudino na Rua de Santana, ao lado dos portugueses Carneiro e Simões, respectivamente da Praia Formosa e da Rua Visconde de Itaúna. É evidente que ele faz alguma confusão entre as vertentes, ao incluir a mãe de Donga, Amélia do Aragão, entre as médiuns charlatãs da cidade, na p. 201. Há outra referência na p. 165 em que ela aparece mencionada entre os cinco ou seis “templos do futuro” e vários espíritas e adivinhos avulsos.
33 Ocorrências desse tipo são bastante comuns no período em casos como o de Joaquim Firmino, carvoeiro que, em suas horas de lazer, dominava o pinho e também a navalha, preso juntamente com o estivador e corneteiro Manoel Pereira, ambos residentes no Morro da Favela e acusados de promover desordens na Festa da Penha de 1907. Acabaram no xadrez, presos quando circulavam pelas ruas do bairro. Para localizar esse e outros exemplos mencionados, ver os Livros de Ocorrências Policiais (1907) 4a DP, livro 9.372, p. 1097; (1904) 9a Circ. Santana, livro 8.601, p. 1.593; (1905), 14a DP S. Cristóvão, livro 12.583, p. 1.166; (1907), 8a DP Gamboa, livro 6.031, p. 192.
34 Processo no 254. Réu: Paulo Benjamin de Oliveira, 1921. AN, 2a Pretoria Criminal, Caixa 289, Galeria B.
35 A busca de apuro no modo de vestir era, aliás, um padrão característico dos operários em suas ocasiões de celebração ou manifestação. Sobre isso, ver Claudio Henrique M. Batalha. “A geografia associativa. Associações operárias, protesto e espaço urbano no Rio de Janeiro da Primeira República”. In: E. Azevedo; J. Cano; M. C. Pereira Cunha & S. Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade. Campinas, Editora da Unicamp, 2009, pp. 251-269.
36 Sobre os vínculos de Paulo da Portela com o PCB, ver, entre outras referências, a própria home page da Portela (http://www.portelaweb.com/vnoticias.php?noCodigo=203), onde a letra do samba de 1946 está transcrita: “[...] És o cavaleiro que sonhamos/ de ti tudo esperamos/com todo amor febril/ para amenizar nossas dores/ e levar bem alto as cores/ da bandeira do Brasil”. Ver também o artigo de Valéria Guimarães intitulado “Bambas comunistas: O velho PCB em outros carnavais” – uma versão “partidária” da relação entre sambistas e comunistas naqueles anos. Disponível em: . Ambos acessados em 23/2/2012.
37 Cf. depoimento do sambista Casquinha, da Velha Guarda da Portela, no filme O mistério do samba. Brasil (2008), dir. Carolina Jabor e Lula Buarque de Holanda, 90 min.
38 Cf. Theresa A. Meade. Civilizing Rio. Reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press, 1997, p. 48. Santana cresce de 38.446 em 1872 para
91.333 habitantes em 1920; Espírito Santo, de 13.793 para 79.297 no mesmo período. Santa Rita, ao contrário, apresenta um decréscimo populacional após as reformas urbanas de Pereira Passos, com o deslocamento de população para os subúrbios; Sacramento, por sua vez, mantém uma população estabilizada no período. Das demais freguesias centrais, apenas Santo Antônio apresenta algum crescimento, mas não nas proporções das demais.
39 Kid Pepe, conhecido pelo modo truculento como tratava seus desafetos, tinha fama de obter parcerias através da intimidação física. Seja como for, foi parceiro de vários compositores de qualidade, inclusive de Noel Rosa em seu sucesso “O orvalho vem caindo”.
40 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933, pp. 116-117.
41 Alfredo Português (1885-1957) foi o pai adotivo de Nelson Sargento, ainda vivo e um dos sambistas mais antigos da Mangueira. Ver João Ferreira Gomes (Jota Efegê). Figuras e coisas da música popular brasileira. Rio de Janeiro, Funarte, 1979, vol. 1, pp. 80-81, e vol. 2, pp. 59-60.
42 Cf. Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., p. 43 (depoimento de Carmen T. da Conceição, também conhecida como Carmen do Xibuca).
43 Cf. Sylvia F. Damázio. Retrato social do Rio de Janeiro..., p. 36. No caso das mulheres, o percentual é ainda maior: quase 50% delas estão nesse caso (p. 38).
44 Idem, p. 145.
45 Esse tom temeroso de alguns zelosos funcionários aparece não só para atividades musicais, atingindo um grande conjunto de “divertimentos” de rua na segunda metade do século XIX, mesmo antes de 1871. Um exemplo, ainda protagonizado pelo contador Maciel, diz respeito à negativa de licença para “cavalinhos de pau”: o contador lamenta que a Câmara costume conceder essas licenças e enfatiza seu prejuízo se esse divertimento for realizado nas ruas de Santana, onde ademais havia já outro instalado, mandando consultar o fiscal da região. Este argumenta que a Câmara não conceda licença, “pois semelhante divertimento só serve para desmoralização de crianças e mesmo para tomar tempo aos escravos, que deixam a casa de seus senhores, aí passam horas em prejuízo dos mesmos [...]”. Diversões públicas (1832-1869). AGCRJ, Códice 42-3-13.
46 Cf. Elysio de Carvalho. Gíria dos gatunos cariocas..., p. 36; e Carlos Eugenio L. Soares. A negregada instituição. Os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1994, pp. 67, 72-73 e passim. Segundo ele, ocasiões de lazer, como dias de festas carnavalescas ou procissões, bem como os períodos noturnos, domingos e dias santos, eram as preferidas para resolver contendas entre grupos de capoeiras – não apenas pela dispensa do trabalho, mas também porque eram ocasiões de sociabilidade entre cativos e libertos fora dos olhares de senhores e policiais. Tais ocasiões de lazer coletivo constituíam, na expressão de um cronista, verdadeiras “festas de capadócios” que, naturalmente, envolviam música e dança e levavam a confundir todos os seus integrantes como um suspeitíssimo “povo da lira”, no qual cabiam capoeiras, sambistas, carnavalescos, boêmios etc. Analisando os registros da Casa de Detenção no início da República, o historiador conclui que “zungus, batuques, feitiçarias, que continuam entre as preocupações das autoridades ‘moralizadoras’ do novo regime, se confundem com a capoeira nos corredores e celas da Detenção” (p. 131).
47 “A arte nos cordões”. Gazeta de Notícias, 13 de fevereiro de 1906.
48 A Voz do Trabalhador, 1o maio 1915 (no 70). Há outras referências na mesma direção na imprensa militante.
49 Tratava-se do cordão Flor do Castelo, em 1907. Cf. Gazeta de Notícias, 7 de janeiro de 1907.
50 Polícia (1915). AN, IJ6, maço 563.
51 Cf. Claudio H. M. Batalha. Dicionário do Movimento Operário Brasileiro. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2009, pp. 164-165.
52 Sobre o tema, ver Leonardo A. M. Pereira. “E o Rio dançou”. In: Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras frestas. Ensaios de história social da cultura. Campinas, Editora da Unicamp, 2002, pp. 419444.
53 Processo criminal, 8a Pretoria (1910). AN, OR 8650.
54 Cf. Martha Abreu. O Império do Divino. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
55 Ver AN, GIFI 6C 89 (1901 e 1909) – Carnaval de 1901. Esse maço, composto de vários ofícios, mostra em detalhes a forma como a polícia se estruturava para o controle do carnaval na cidade: para cada rua, era nomeado um agente policial responsável pela ordem e definida uma hierarquia por região.
56 Em O cortiço (1890. 20a ed. São Paulo, Ática, 1989), Aluísio Azevedo sugere claramente que a oposição à polícia e às suas formas de intervenção era capaz de unir os habitantes do lugar, pairando acima de suas diferenças. Ele descreve a reação solidária, por exemplo, de moradores de um cortiço rival em apoio aos vizinhos que sofrem a invasão da polícia: ali, para ele, os inimigos se unem para derrotar as forças da ordem.
57 No final de 1909, para tomar um episódio significativo, o delegado da circunscrição teve de explicar-se ao chefe de polícia por causa da prisão – entre as muitas efetuadas naquele mês – de um cidadão. Os patrões do preso moveram céus e terras para libertar seu empregado, chegando a dirigir uma carta ao chefe de polícia, enviada para publicação na imprensa diária. Ver também, para um caso análogo, o episódio envolvendo o caixeiro Antônio de Castro, preso em 8 de novembro de 1909 “com nota de gatuno conhecido”. Vinte dias depois, seu advogado, pago pelo patrão, requer alvará de soltura munido de prova de que ele “nunca foi preso por gatunagem”. Provavelmente se tratasse de um caso de homônimo, mas interessa lembrar que Antônio fora pego por mais uma “canoa” em Santa Rita. Cf. AN, GIFI 6C 89 (1901 e 1909).
58 Sidney Chalhoub. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, especialmente o capítulo 1; ver também, do mesmo autor, Visões da liberdade. Uma história das últimas
décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, especialmente o último capítulo.
59 Esses depoimentos foram publicados em Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu. Rio de Janeiro, Museu da Imagem e do Som, 1970.
60 Ofício no 558. Delegacia do 2o Distrito Policial. Rio de Janeiro, 4/9/1909. AN, GIFI C6 315 (1909).
61 Para uma análise refinada da forma como a atuação policial incidia sobre seus alvos no início da República, no caso específico sobre as prostitutas, ver Cristiana Schettini Pereira. Que tenhas teu corpo. Ver também, para uma análise centrada na região de Santana, Lerice Garzoni. “Raparigas e meganhas em Santana (Rio de Janeiro, 1905)”. In: E. Azevedo; J. Cano; M. C. P. Cunha & S. Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade. Campinas, Editora da Unicamp, 2009, pp. 157-187.
62 Sobre o tema, ver Adriana B. de Resende. O mal que se adivinha: Polícia e menoridade no Rio de Janeiro – 1900-1920. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1999, e, para situação análoga em muitos aspectos, Walter Fraga Jr. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. Salvador/São Paulo, Edufba/Hucitec, 1996.
63 AN, GIFI 6C 315 (1909).
64 Ofício no 474, 1a DP em 15/5/1909. AN, GIFI 6C 315 (1909).
65 Ofício no 150, Delegacia do 5o Distrito Policial, de 5/2/1914. AN, GIFI 6C 499 (1914).
66 AN, GIFI 6C 499 (1914). Os dados foram retirados dos ofícios das respectivas delegacias, reunidos nessa caixa do GIFI, informando o movimento ao chefe de polícia do distrito federal.
67 Cf. Erika Bastos Arantes. “Negros do Porto: Trabalho, cultura e repressão policial no Rio de Janeiro, 1900-1910”. In: Elciene Azevedo; Jefferson Cano; Maria Clementina P. Cunha & Sidney Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade..., cap. 5. Existem discrepâncias nos registros biográficos de Mano Elói: no site da escola de samba Império Serrano, por exemplo, seu ano de nascimento seria 1899 – data incompatível com os dados constantes do processo que indica 1888 ou 1889 como data provável de nascimento, já que o sambista declara ter 20 anos em 1909.
68 Sobre o Jongo, ver Silvia Hunold Lara e Gustavo Pacheco (orgs.). Memória do Jongo. As gravações históricas de Stanley Stein. Rio de Janeiro/Campinas, Folha Seca/Cecult-Unicamp, 2007 – especialmente os capítulos assinados por Hebe Mattos & Martha Abreu, “Jongos, registro de uma história”, e Robert W. Slenes, “Eu venho de muito longe, eu venho cavando: Jongueiros cumba na senzala centro-africana”.
69 Processo no 114, A Justiça contra Elói Antero Dias (menor), 1908. AN, 13a Pretoria, MW 2044.
70 Cf., por exemplo, a biografia do sambista em .
71 Noel Rosa. “Século do progresso”. Victor, no 34.296, 78 rpm, lado B, 1937, com Araci de Almeida.
Capítulo III
1 Uma versão preliminar e reduzida deste capítulo foi publicada com o título “Acontece que eu sou baiano. Identidades em Santana, Rio de Janeiro, no início do século XX”. In: E. Azevedo; J. Cano; M. C. P. Cunha & S. Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade. Campinas, Editora da Unicamp, 2009, pp. 313-355.
2 O parceiro de Donga no registro oficial era o conhecido jornalista Mauro de Almeida, alcunhado “Peru dos Pés Frios”. A carreira bem-sucedida desse partido-alto nascido nas rodas da Cidade Nova provocou uma grande polêmica entre seus frequentadores, que acusavam o sambista e o jornalista carnavalesco, mulato e frequentador das rodas da região, de se apropriarem de algo que não lhes pertencia ao registrar e gravar a composição coletiva.
3 Uma evidência do prestígio de Donga entre os intelectuais e de seus contatos com o mundo da música erudita foi o convite dos maestros Augusto Vasseur e Villa-Lobos para que ele, juntamente com outros músicos selecionados, se apresentasse ao maestro Leopold Stokowski. Este último veio ao Rio de Janeiro, em busca de sua música “autêntica”, em
1940. A presença de Donga é registrada ainda em outros encontros desse tipo, em tempos mais antigos – e referida em obras de escritores importantes como Mário de Andrade ou Manuel Bandeira. Ver Hermano Vianna. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995.
4 Não tenho mais dados sobre o intérprete dessa versão original do samba assinado por Donga e De Chocolat, registrado em disco Odeon na década de 1920. Sei apenas que seu nome era Fernando. A gravação pode ser acessada no site do Instituto Moreira Salles (IMS).
5 O samba apareceu novamente na década de 1950, no famoso álbum da Velha Guarda. Mas, ao contrário de outras composições desse tipo assinadas por Donga, como “Pelo telefone”, esse samba permaneceu esquecido. Os versos gravados, intercalados ao refrão, eram os seguintes: “Estava esperando um bonde/ contente pra ir te vê,/fui falar com sua mãe/ foi um dismancha-prazê”. Outro: “Bem faz o gato sabido/ que vive pelos telhado,/ faz os rancho nas altura/ pra num ser atrapaiado”. Ainda: “Se Deus me desse um podê/ o mundo eu modificava:/ no meio de dois unido/ um terceiro num entrava”. Finalmente, retomando o tema da sogra: “Nóis vivia lá no rancho/ com um amô que Deus louvô,/ quando chegou minha sogra/ a vida atrapaiô”.
6 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933, p. 150.
7 O primeiro sucesso de Ismael foi “Me faz carinhos” (1928), gravado por Francisco Alves. Sobre o convite do cantor ao sambista iniciante, ver Maria Theresa Mello Soares. São Ismael do Estácio. Rio de Janeiro, Minc/Funarte, 1985, pp. 48-50. O convite, por si só, indica que os sambas
de Ismael já corriam os circuitos do gênero na cidade e que seu nome se tornava conhecido.
8 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. “De sambas e passarinhos. As claves do tempo nas canções de Sinhô”. In: Sidney Chalhoub; Margarida S. Neves & Leonardo A. M. Pereira (orgs.). História em cousas miúdas. Campinas, Editora da Unicamp, 2005, pp. 547-587. Exceto indicação em contrário, as referências a Sinhô aludem a esse texto.
9 Contagem efetuada a partir dos registros de títulos incluídos nas coleções existentes do Instituto Moreira Salles (particularmente as de Humberto Francheschi e José Ramos Tinhorão), instituição que reúne seguramente o maior acervo musical do país para esse período e onde a maior parte das canções mencionadas aqui pode ser ouvida on-line. Disponível em .
10 As marchinhas de Ismael Silva identificadas no acervo IMS são as seguintes: “Você gosta de mim” (1931), “Gosto mas não é muito” (1931), “Assim sim” (1932) e “Cara feia é fome” (1934), quase todas com parceria de Francisco Alves, que gravou as canções.
11 Cf. Carlos Sandroni. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 2001.
12 Cf. Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar, 1986, p. 37. O diálogo, ocorrido nos anos 1960 em uma das salas da Sbat, foi presenciado pelo autor do volume.
13 O termo “choro” designava no período os bailes populares animados pela performance instrumental desses grupos. Ver Elysio de Carvalho. Gíria dos gatunos cariocas. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1912, p. 15.
14 Para uma excelente análise da história musical do período, ver Carlos Sandroni. Feitiço decente... Uma bibliografia mais recente tem trazido também informação e perspectivas interessantes para a análise do tema. Ver Roberto Moura. No princípio era a roda. Um estudo sobre samba, partidoalto e outros pagodes. Rio de Janeiro, Rocco, 2004; Fabiana Lopes da Cunha. Da marginalidade ao estrelato. O samba na construção da nacionalidade (1917-1945). São Paulo, Annablume, 2004; José Adriano Fenerick. Nem do morro, nem da cidade. As transformações do samba e a indústria cultural, 1920-1945. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2005.
15 Cf. “Tute e o violão de 7 cordas”. Disponível em .
16 Cf. Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2a ed. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995, pp. 102-103.
17 A letra maliciosa do “Corta-Jaca”, como ficou conhecido o tango “Gaúcho”, de Chiquinha Gonzaga, é típica dos versos compostos no período para o teatro de revistas: “Neste mundo de misérias/ Quem impera é quem é mais folgazão/ É quem sabe cortar a jaca/ Nos requebros de suprema perfeição [...]// Ai, ai, como é bom dançar, ai!/ Corta-jaca assim, assim, assim/ Mexe com o pé!/ Ai, ai, tem feitiço, tem, ai!/ Corta, meu benzinho, assim, assim!// Esta dança é buliçosa, tão dengosa/ Que todos querem dançar/ Não há ricas baronesas e nem marquesas/ Que não saibam
requebrar// Este passo tem feitiço, tal ouriço/ Faz qualquer homem coió/ Não há velho carrancudo, nem sisudo/ Que não caia em trololó, trololó [...]”.
18 O discurso de Ruy Barbosa está reproduzido no Diário do Congresso Nacional do dia 8 de novembro de 1914, p. 2.789. Sobre Nair de Teffé e o episódio mencionado, ver João Carlos Rodrigues. João do Rio. Uma biografia. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, pp. 171-172. Ver também Edinha Diniz. Chiquinha Gonzaga, uma história de vida. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1984, pp. 232-239.
19 Cf. João Ferreira Gomes (Jota Efegê). Figuras e coisas da música popular brasileira, vol. II. Rio de Janeiro, Funarte, 1979, p. 249.
20 Não disponho do fonograma, mas a gravação pode ser ouvida diretamente no site do Instituto Moreira Salles – –, por meio de busca no acervo musical. “Samba do urubu”, compositor Louro, intérprete Grupo do Louro, disco de 76 rpm, Phoenix, 1913-1918, álbum 70589, classificado como “dança característica”.
21 Essa e as demais informações sobre o músico tiveram origem no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, elaborado pela equipe do Instituto Cultural Cravo Albin. Disponível em .
22 A letra original registrada para o “Samba do urubu” era a seguinte: “Urubu veio de riba/ com fama de dançadô/ Urubu veio pro Rio/ urubu nunca dançou/ Dança, dança urubu/ Eu não sinhô.// Urubu não vai pro céu/
nem que seja rezadô/ urubu catinga muito/ persegue Nosso Senhor [...]”. Os versos seguintes mencionam contingências da política nacional no período e outras referências de época. Anos depois, em versão de Braguinha de 1943, o urubu adquire outra feição: “Urubu veio de cima/ com fama de dançador/ urubu chegou na sala/ tirou dama e não dançou/ Ora dança, urubu/ Eu não senhor/ Tira a dama, urubu/ Eu sou doutor [...]”. Os versos prosseguem brincando com as desventuras do urubu no salão e sua relutância em “cair na batucada”. Há inúmeras gravações desde o início do século para o “Urubu malandro”: a do Louro, em 1914, instrumental e intercalada com comentários dos músicos que a identificam com o samba baiano: “isso é que é um samba feito na hora, Malaquias...”; com Bahiano, em 1915, apenas cantada com os versos mencionados acima; em 1923, com os Oito Batutas, já próxima do formato hoje conhecido, em versão instrumental acelerada e rica em improvisos; finalmente, a versão de Braguinha, dos anos 1930, com a flauta de Benedito Lacerda e a voz de Ademilde Fonseca em dueto. Há ainda um plágio claríssimo da década de 1920, intitulado “Urubu no jazz band”, gravado pelo Grupo do Pimentel (que registrou a composição em seu nome, classificando-a como um “choro-batuque”), e um “desafio carnavalesco”, gravado entre 1915 e 1920 por Bahiano e Vicente Celestino, que apelam ao urubu como um meio de requentar o sucesso. Todos os fonogramas podem ser acessados no site do Instituto Moreira Salles. João Ferreira Gomes (Jota Efegê), em Figuras e coisas da música popular brasileira... (pp. 272-274), sugere outra origem para o tema, que teria nascido nos salões do Clube dos Fenianos, ainda no século XIX, como homenagem a um grupo de seus carnavalescos que adotara como apelido justamente “Urubus malandros”.
23 Ver, a propósito, o interessante filme, recentemente resgatado por seu autor, Thomas Farkas, da apresentação de Almirante, Donga, João da Bahiana e outros durante as comemorações do IV Centenário de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, onde “Patrão, prenda seu gado” foi executado: essa gravação foi aproveitada para o filme – produzido originalmente sem áudio. O filme está disponível em . Agradeço a Cristiana Schettini pela indicação.
24 Cf. o excelente livro de Walter Fraga Filho intitulado Encruzilhadas da liberdade (Campinas, Editora da Unicamp, 2006, capítulo 5, especialmente p. 191 e ss.).
25 O significado da palavra “saruê” aqui é difícil de explicar. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 2a ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 1.555), ela pode ter três sentidos diversos: uma espécie de gambá, espiga de milho de baixa qualidade com poucos grãos ou uma espécie de dança sertaneja. Duas acepções podem fazer sentido neste contexto: o pior milho para quem não trabalha ou, no inverso, a festa – já que saruê seria uma espécie de dança coletiva na qual se utilizam comandos através de palavras “francesas” (como nas quadrilhas juninas, por exemplo, em que se usam ainda hoje expressões como changê de dame) misturadas ao vocabulário caipira: o próprio nome da dança seria uma corruptela de soirée. Por outro lado, nesses versos, seu significado parece aproximar-se mais daquele encontrado na literatura de cordel nordestina, como no famoso “Viagem a São Saruê”, de Manoel Camilo dos Santos, publicado pela primeira vez na Paraíba na década de 1940, embora não haja evidências registradas de seu uso em períodos anteriores. Nele, o autor descreve uma utopia que se aproxima do mito medieval da Cocanha, no qual os homens não precisam trabalhar para viver com fartura e felicidade: o dinheiro nasce em árvores, há lagoas de mel e rios de leite... A palavra aparece ainda em outros contextos. Milton Nascimento, por exemplo, gravou, em seu álbum Missa dos Quilombos (1982), uma antiga canção do folclore afro-brasileiro intitulada “Ony Saruê”, cuja origem desconheço. Essas são, entretanto, apenas pistas inconclusivas sobre o significado da palavra na canção mencionada.
26 Donga repete a mesma construção de memória em depoimento oral. Ver Antonio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu. Rio de Janeiro, Museu da Imagem e do Som, 1970.
27 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
28 O fonograma utilizado aqui a título de exemplo é do samba de Sinhô “Deixa este costume”, gravado por Eduardo das Neves em 1919. O samba é imediatamente posterior ao lançamento de “Quem são eles” e da animada polêmica que Sinhô manteve com seus contemporâneos baianos.
29 Correio da Manhã, 26 de dezembro de 1926. A provocação inicial, de Sinhô, está no mesmo jornal, edição de 19 de dezembro de 1926 (as duas são edições domingueiras). Agradeço a Paula Arantes B. Habib pela indicação dessa fonte.
30 Mário de Andrade chegou a mencionar a casa de Ciata no Macunaíma, como um dos espaços alegóricos da nacionalidade, e ela é citada em poemas ou crônicas do período com sentido análogo. Os trechos específicos de Mário de Andrade e Manuel Bandeira estão transcritos no livro de Roberto Moura intitulado Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., pp. 161-163. Em ambos os casos, pode-se perceber a intenção de construir uma associação entre a “mãe de santo” e os espaços da cultura popular e nacional, embora Mário de Andrade revele algum preconceito de classe, ao denominar como “zungu” a casa da filha de santo onde se “rezava a macumba”. No caso de Bandeira, que localiza Ciata “talvez em dona Clara, meu Branco, ensaiando cheganças para o Natal”, a ênfase é dada à miscigenação como marca da “cultura brasileira”.
31 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia..., p. 301. Note-se, entretanto, que a presença de ranchos compostos por baianas devidamente paramentadas foi notada em festas públicas e religiosas do Império. Ver, por exemplo, a descrição de Joaquim Manuel de Macedo em Memórias de um sargento de milícias (1852-1853): referindo-se a uma procissão na Cidade Nova, o autor menciona a presença de um rancho especial: “[...] era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo Gratias uma dança lá a seu capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria mais desculpável”.
32 Ver entrevista ao Diário Carioca (fevereiro de 1931), mencionada por Sérgio Cabral em As escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 23.
33 Francisco Guimarães (Vagalume). “História dos ranchos”. Jornal do Brasil (1921), apud João Ferreira Gomes (Jota Efegê). Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio de Janeiro, Funarte, 1982, pp. 68-69. Outra manifestação é comentada também por João do Rio na crônica “O Afoché”. Gazeta de Notícias, 2 de março de 1905.
34 Cf. Sylvia F. Damázio. Retrato social do Rio de Janeiro na virada do século. Rio de Janeiro, Eduerj, 1996, p. 27, e Teresa A. Meade. Civilizing Rio. Reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press, 1997, p. 48. Segundo ela, a taxa de crescimento geral entre 1890 e 1906 foi de 56,3% (em todo caso, menos que a verificada entre 1872 e 1890: 95,8%). Ainda segundo Damázio (p. 33), em 1890, apenas 54% da população era formada de cariocas natos, 24% eram imigrantes estrangeiros e 22% eram migrantes de outros estados brasileiros.
35 Cf. Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco. Campinas, Editora da Unicamp, 2004; sobre o teatro de revistas para um período anterior (o final do século XIX), ver, ainda, Fernando Mencarelli. Cena aberta: A absolvição de um Bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campinas, Editora da Unicamp, 1999.
36 É o caso, por exemplo, de “O Caruru”, gravado por Eduardo das Neves, cujo registro cômico por vezes o aproxima das cantigas de “Pai João” estudadas por Martha Abreu: “Outras histórias de Pai João: Conflitos raciais, protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular, 18801950”. Afro-Asia, 31, 2004, pp. 235-276.
37 A definição de “gêneros musicais” no período era, como sabido, totalmente arbitrária, dependendo de uma escolha do autor ou do artista que empreende a gravação. É difícil, na prática, diferenciar lundus, maxixes, tangos, sambas, polcas e outros “ritmos” que aparecem nos selos dos primeiros discos.
38 Ver Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933, p. 90. Os versos, segundo ele, foram produzidos em roda de partido-alto com a participação de Hilário Jovino e outros bambas desse círculo e a presença de tia Teresa e de Gracinda, mulher de Assumano Mina.
39 Cf. Mônica Pimenta Velloso. “As tias baianas tomam conta do pedaço. Espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro”. Estudos Históricos, 3 (6), 1990, p. 223.
40 Cf. Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo 1938. Rio de Janeiro, Xenon, 1987, p. 314.
41 Cf. .
42 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba..., p. 128.
43 O Jornal, 21 de janeiro de 1968. “Em plena folia do carnaval, Lelé invadiu a redação com um fumegante vatapá”. AN, Fundo Jota Efegê, 4.1.342 , 3o caderno, p. 4.
44 Para uma análise da construção de tipos alegóricos no teatro de revistas, ver Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco...
45 Na verdade, entretanto, a relação dos sambistas “baianos”, como Donga e João, e outros meninos das redondezas, com o principal opositor político de Ruy vinha de longe e pode ter sido mais forte que sua identidade regional com Ruy Barbosa. Ainda garotos, eles costumavam prestar serviços eventuais ao próprio Hermes da Fonseca, ajudando nos estábulos militares dos quais ele era encarregado na virada do século. Além disso, deve-se lembrar a conhecida ligação entre João, já adulto, e o poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado, principal sustentáculo político do governo do marechal, a quem o sambista considerava uma espécie de protetor. Cf. depoimento de João da Bahiana em Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu..., pp. 57-58. Sobre relações com Pinheiro Machado e outras figuras da política e da sociedade carioca, João menciona: “Ele se dava com os meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, Marechal Hermes, Coronel
Costa, todos viviam nas casas das baianas. [...] O Senado era na rua do Areal, ali na esquina, perto da Casa da Moeda, na Praça da República” . O relato envolve ainda personagens como Santos Dumont e Eduardo das Neves: “Ele [S. D.] tinha uma oficina de fronte à loja ‘Indígena’, na rua Camerino, onde estava montando o ‘balão no 1’. Em 1902, ele ainda estava neste local. Nessa época nós acompanhávamos o Eduardo das Neves no circo Spinelli. Eduardo era o palhaço e eu era o chefe dos garotos que respondiam ao ‘Hoje tem marmelada?’ com o ‘Tem sim senhor’. Um dia nós vínhamos subindo a rua da Prainha e em sentido contrário caminhava Santos Dumont com um chapéu panamá todo desabado e um embrulhozinho na mão. Ele, muito baixo e magrinho, com o colete fechado até em cima, a luva da mão esquerda na cava do colete e a direita vestida. Eu disse para os outros que poderíamos arranjar uns níqueis com ele. Estava na moda. Eduardo tinha feito aquela música ‘Parabéns, parabéns’... então eu vinha assoviando essa música, pois não sabia a letra [...]. Quando chegamos perto falamos ‘apareceu Santos Dumont’”. O relato de João da Bahiana segue com um breve diálogo – o menino João se oferecendo para carregar o embrulho de Santos Dumont, que se dirigia ao bairro de São Cristóvão. Os meninos teriam dito ao inventor que iam também a São Cristóvão e podiam acompanhá-lo; instados a dizer o que iam fazer lá, explicaram que iam ao 2o Regimento de Artilharia onde o tenente Hermes (futuro marechalpresidente) os esperava para que levassem cavalos velhos: como não havia veterinário, o Exército entregava os cavalos já cansados de puxar carreta para serem sacrificados – mas os meninos os tratavam, lavavam e vendiam aos cocheiros de praça. “Aqueles animais ainda duravam 10 a 20 anos na base de purgantes e remédios”, segundo João. A história prossegue com os meninos indo encontrar com Dudu das Neves na Rua do Sabão e seguindo juntos para o circo na Praça da República.
46 Cf. Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro...; Mônica Pimenta Velloso. As tradições populares na belle époque carioca (Rio de Janeiro, Funarte, 1988) e, mais recentemente, “As tias baianas tomam conta do pedaço...”; a ideia pode ser encontrada ainda em obras não diretamente voltadas para a questão, como, por exemplo, Eduardo Silva. Dom Oba II d’África, o príncipe do povo. São Paulo, Companhia das
Letras, 1997; José Murilo de Carvalho. Os Bestializados. São Paulo, Companhia das Letras, 1987; Rachel Soihet. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro, FGV Ed., 1998, entre outras.
47 Cf. Tiago de Melo Gomes. “Para além da casa de tia Ciata. Outras experiências no universo cultural carioca. 1830-1930”. Afro-Asia, 29-30, 2003, pp. 175-198. Tratei indiretamente do tema no capítulo III do meu livro Ecos da folia... A perspectiva ali explorada, mesmo iniciando a crítica a esse ponto de vista, é ainda tímida e requer um olhar mais detido sobre o tema – que tento empreender agora.
48 Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., p. 102.
49 Cf. Tiago de Melo Gomes (“Para além da casa de tia Ciata...”, pp. 175198), que recorre a pesquisas de Douglas Graham, Sérgio Buarque de Hollanda e Robert Slenes (pp. 179-180, notas 13-14). Segundo ele, na década de 1870, quando teria havido um maior fluxo migratório, apenas 7 mil baianos saíram de seu estado natal, número que se eleva na década de 1890 para 40 mil. O movimento cresce nos anos 1900-1920, atingindo 116 mil pessoas – número aparentemente elevado, mas inferior, por exemplo, ao contingente de Minas Gerais, que foi de cerca de 220 mil pessoas entre 1870 e 1920. Entretanto, o Rio de Janeiro recebeu apenas 55 mil baianos ao longo desses 60 anos. Ademais, apenas na década de 1870 ocorreu um aumento no volume do tráfico interprovincial de escravos, já que nas décadas anteriores e posterior o deslocamento se fazia em direção ao interior da própria província. No caso baiano, na última década da escravidão, 11 mil cativos foram vendidos para fora da Bahia, mas dificilmente foram para a cidade do Rio de Janeiro – ela mesma, no período, fornecedora de escravos para as zonas cafeeiras em expansão.
50 Cf. Sylvia F. Damázio, Retrato social do Rio de Janeiro..., p. 33.
51 A amostragem aqui considerou os Livros da 4a DP (Sacramento), da 5a DP (São José), da 2a DP (Santa Rita), da 8a DP (Gamboa) e da 9a DP (Santana).
52 Cf. AEL, Livro de Ocorrências Policiais da 8a Delegacia Urbana no 58901, p. 82.
53 Respectivamente, 9a Delegacia, Livro no 55500, p. 46, e Livro no 37500, p. 184.
54 Entrevista de João da Bahiana. A Noite, 1o de agosto de 1950.
55 Ver, por exemplo, a parda baiana Alcides Maria da Conceição, com 20 anos, presa em companhia da mineira Octávia, dita doméstica, e da maranhense Florisa, dita engomadeira, quando faziam desordem, depois de muito beber, na Rua General Pedra. Cf. AEL, Livro de Ocorrências da 9a Delegacia Urbana no 8591, p. 326.
56 Cf. AEL, Livro de Ocorrências da 9a Delegacia Urbana no 08591, p. 481.
57 Idem, no 08590, p. 228.
58 Idem, no 08591, p. 38.
59 Idem, no 08590, p. 40.
60 Idem, no 08591, p. 394.
61 Idem, ibidem.
62 Idem, no 09555, p. 165.
63 Idem, no 08591, p. 410.
64 Cf., a título de exemplo, os seguintes autos de inquérito e processo criminal indicados aqui sumariamente apenas pela data e pela notação no Arquivo Nacional, na série de Pretorias Criminais: 1927, 6Z.10493; 1933, 6Z.17184; 1928, 6Z.11608; 1927, 6Z-10400; 1927, 6Z.10632; 1921, 6Z.6473; 1917, 6Z.3537; 1916, 6Z.2866; 1917, 6Z.3314; 1915, 6Z.2183; 1919, 6Z.4787; 1917, 6Z.3084, entre outros.
65 Correio da Manhã, 2 de março de 1905.
66 A saber, Cícero de Almeida (parceiro de Pixinguinha em “Gavião Calçudo”) e o famoso cantor Manuel Pedro dos Santos (1885-1944), nascido em Santo Amaro da Purificação, que foi um dos principais membros do primeiro cast da Casa Edison.
67 Cf. Manuel Bandeira. “O enterro de Sinhô”. Poesia completa e prosa. 5a ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2009, pp. 482-484.
68 Cf. Roberto Moura (Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro... p. 106), que formulou pela primeira vez essa perspectiva que pode ser tomada como um dos eixos centrais do seu livro. Se a ideia da “diáspora” é difícil de sustentar, a da liderança desse grupo parece encontrar muitas evidências a seu favor.
69 Bamboxê (Rodolfo Manoel Martins de Andrade) e um outro pai de santo nomeado como Obá Saniya – sobre este há poucos registros – teriam chegado ao Rio de Janeiro em 1886, implantando seus respectivos axés da Saúde. Seria a segunda viagem de Bamboxê à Corte – a primeira fora em 1879. Mãe Aninha teria vindo na década seguinte, após o retorno desses primeiros pais de santo à Bahia, passando a comandar o terreiro inaugurado por Bamboxê – seu nome não aparece nos pedidos de passaportes para viagens interprovinciais nos anos 1880, segundo Lisa Earl Castillo (“Vida e viagens de Bamboxê Obitikô”. In: Air José Souza de Jesus & Vilson Caetano de Sousa Jr. (orgs.). Minha vida é orixá. São Paulo, Ifá, 2001, pp. 55-86). Ela teria permanecido na cidade cerca de dez anos, retornando a Salvador por volta de 1910, onde liderou o Ilê Axé Opô Afonjá até sua morte, em 1938. As informações constam também, com algumas modificações, dos relatos oriundos do candomblé, cuja tradição pode ser encontrada em sites de terreiros contemporâneos ou em memorialistas iniciados, como Agenor Miranda Rocha. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro. A nação Ketu: Origens, ritos e crenças. Rio de Janeiro, Topbooks, 1994 (o próprio autor foi iniciado por mãe Aninha).
70 Cf. Agenor Miranda. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro..., pp. 3033; ver ainda entrevista com o mesmo autor na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 25, 1970, pp. 211-215; José Flávio Pessoa de Barros (O Banquete do Rei... Olubajé. Uma introdução à música afrobrasileira. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 2000, p. 31) identifica tia Rozena, Domotinha e Natalina como lideranças de casas importantes do culto jeje na cidade, situadas na área central.
71 Cf. Márcia Ferreira Neto. Mapeamento dos terreiros de candomblé do estado do Rio de Janeiro. Iphan, 2010 (CD-ROM), apud Roberto Conduru, “Das casas às roças: Comunidades de candomblé no Rio de Janeiro desde o fim do século XIX”. Topoi, 11 (21), jul.-dez. de 2010, pp. 178-203.
72 Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo..., p. 72.
73 Cf. Gabriela Sampaio. Juca Rosa, um pai de santo na Corte Imperial. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2009.
74 Sobre Assumano Mina do Brasil, ver Juliana Barreto Farias; Carlos Eugênio L. Soares & Flávio dos Santos Gomes. “Assumano Mina do Brasil: Personagens e Áfricas ocultas”. No labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005, pp. 265-297; sobre muçulmanos no Rio, ver Alberto Costa e Silva. Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/Ed. UFRJ, 2003; para a experiência desses religiosos em sua trajetória de vida, ver Marcus J. M. de Carvalho; Flávio dos Santos Gomes & João José Reis. O alufá Rufino. Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo, Companhia das
Letras, 2010. Para as referências de Paulo Barreto (João do Rio), ver: As religiões no Rio. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1951, pp. 17-18.
75 Segundo Alberto da Costa e Silva (Um rio chamado Atlântico...), tia Carmem era muçulmana quando chegou ao Rio em 1893 e manteve-se nessa prática por algum tempo. Já adulta, tornou-se católica – mas também cultuava os orixás e era filha de Ogum, segundo sua neta Yara da Silva. Tia Carmem. Negra tradição da Praça Onze. Rio de Janeiro, Garamond, 2009, p. 37
76 Idem, p. 48.
77 Cf. Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., pp. 95-96. Segundo ele, tia Gracinda havia sido casada com um membro das rodas baianas conhecido como Didi (por vezes mencionado como Didi da Gracinda). Era do candomblé, mas manteve uma longa relação com o alufá Assumano Mina do Brasil. Seguindo os preceitos malês, eles não podiam coabitar, pois só era permitido ao alufá ter relações sexuais três vezes por mês. Gracinda, sempre mencionada por sua beleza física, morou na Rua Júlio do Carmo, em um sobrado que dava para a Praça Onze, bem próxima de Assumano. Mantinha ainda o bar Gruta Baiana, na Rio Branco.
78 Sobre mãe Aninha e a trajetória de seu terreiro pela cidade – da implantação inicial na zona portuária até seu deslocamento posterior para o subúrbio de Coelho da Rocha –, ver Roberto Conduru (“Das casas às roças...”, pp. 182-183), que organiza as referências existentes em seu esforço de contrapor as visões “de dentro” e “de fora” do candomblé, por meio dos registros de Agenor Miranda e João do Rio. Ver também Luís Nicolau Parés. A formação do candomblé. História e ritual da nação Jeje na Bahia. Campinas, Editora da Unicamp, 2006, pp. 160-161.
79 Cf. Lisa Earl Castillo. “Vida e viagens de Bamboxê Obitikô...”, pp. 5586. Da mesma autora, ver, também, “Between memory, myth and history: Transatlantic voyagers of the Casa Branca temple”. In: Ana Lúcia Araújo (org.). Paths of the Atlantic Slave trade: Interactions, identities and images. Amherst/Nova York, Cambria Press, 2011, pp. 203-238. Em pesquisas mais recentes, ainda não concluídas, a autora encontrou novas evidências da presença de Bamboxê Obitikô no Rio de Janeiro na década de 1890: segundo notícia publicada no Jornal do Brasil, em 30 de maio de 1893, Bamboxê foi preso por manter uma “casa de dar fortuna” na Rua General Câmara no 305, o que comprova uma permanência maior no Rio de Janeiro do que aquela que a tradição oral tem afirmado – e também, por certo, que essas lideranças religiosas do candomblé não tiveram exatamente uma vida fácil na cidade: há notícias de prisão anterior de Bamboxê (1886) por razão semelhante. Agradeço a Lisa por compartilhar comigo essas informações.
80 Depoimento de Lili Jumbeba para documentário produzido pela Corisco Filmes, apud Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., p. 98. Poucos pesquisadores tiveram acesso direto a esse depoimento, que cito aqui de forma indireta.
81 Lisa Earl Castillo. “Vida e viagens de Bamboxê Obitikô...”.
82 Roberto Conduru. “Das casas às roças...”, p. 183, menciona que Regina Bamboxê, descendente de Benzinho, não deu continuidade à comunidade que ele criou na Cidade Nova, constituindo outro terreiro para si na Baixada Fluminense. Assim, essa mãe de santo acompanha o movimento de migração dos terreiros mais antigos, como o de Guaiaku Rosena e mãe Aninha em direção aos subúrbios ou arrabaldes (no caso destes últimos, estabeleceram-se ambos no bairro de Coelho da Rocha).
83 Paulo Barreto (João do Rio). “O Afoché”. Gazeta de Notícias, 2 de março de 1905, pp. 1-2.
84 Segundo Francisco Guimarães (Vagalume) (Na roda de samba..., p. 98), um exemplo da heterogeneidade dos frequentadores do terreiro de Alabá era a presença constante do influente político carioca Irineu Machado, deputado federal pela primeira vez em 1896 e senador pelo Distrito Federal em duas legislaturas (1917-1924 e 1927-1930). Ele mantinha vínculos com o Correio da Manhã e sua atuação política chega a ser classificada como “radical” por alguns autores. Ver Américo Freire. “Fazendo a República: A agenda radical de Irineu Machado”. Tempo, 13 (26), janeiro de 2009, pp. 118-132.
85 Nicanor do Nascimento, deputado entre 1911-1921 (e depois entre 192427), foi, segundo depoimento do sambista Juvenal Lopes, um personagem público que tinha elos com as casas de santo: “na época o deputado Nicanor que arranjava licenças para as casas de macumba”. Juvenal, o depoente, foi mestre-sala da primeira escola de samba, a “Deixa Falar”, e também presidente da Mangueira. O depoimento foi gravado por seu filho Pedro Paulo. Cf. Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 29.
86 Sobre Ossain e suas propriedades, ver Agenor Miranda Rocha. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro..., pp. 76-78. Sobre os “sambas” de Abedé, ver Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda 210-de samba..., pp. 98-99.
87 Cf. Yara da Silva. Tia Carmem, pp. 43-44.
88 Cf. A Noite, no 812, 18 de fevereiro de 1914.
89 Idem, edição em que a matéria sobre o “feiticeiro” foi publicada.
90 Cf. João Ferreira Gomes (Jota Efegê). O Cabrocha. Rio de Janeiro, Casa Leuzinger, 1931, pp. 19-20. O prefácio foi feito por Vagalume, que, em aval à descrição literária do jornalista e memorialista, compara seu texto com o famoso livro de João do Rio sobre as religiões populares. Ele não deixa de enfatizar que, se João do Rio “disse pouco, inventou muito, fugiu sempre à verdade e ridicularizou bastante”, Jota Efegê “diz as coisas com muita precisão e singeleza”.
91 Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba..., p. 98.
92 Para uma análise com tal perspectiva, ver Sidney Chalhoub. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, especialmente o capítulo 3.
93 Paulo Barreto (João do Rio). As religiões no Rio..., p. 58.
94 Ver Yara da Silva. Tia Carmem..., p. 43.
95 Cf. Nicolau Parés. A formação do candomblé..., pp. 138-140.
96 Cf. Roberto Conduru. “Das casas às roças...”, pp. 190-192.
97 Muniz Sodré. O terreiro e a cidade. A forma social negro-brasileira. Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo/Imago, 2002, pp. 104-105.
98 Cf. Roberto Conduru. “Das casas às roças...”, pp. 189-190.
99 A prestação de serviços em domicílio e o atendimento a demandas de homens e mulheres de posses foram alguns dos mecanismos utilizados. Paulo Barreto (João do Rio) (As religiões no Rio..., p. 16) menciona que havia homens importantes que deviam quantias avultadas a babalaôs que, por sua vez, eram “grau 32 na maçonaria”. Há no livro outras referências a relações desse tipo nas pp. 36-37 e 41. Neste último caso, a observação do cronista é sobre a relação com as autoridades: “a polícia visita essas casas como consultante. Soube nesses antros que um delegado estava amarrado a uma paixão graças aos prodígios de um galo preto”.
100 Idem, p. 41 e passim, menciona a prática comum de prestar assistência em domicílio por diferentes pais de santo (ou “feiticeiros”) da cidade.
101 Texto esclarecedor sobre esse e outros aspectos da questão é o artigo de Roberto Conduru “Das casas às roças...”, que contrapõe visões “de dentro” e “de fora” dos iniciados, por meio dos registros de Agenor Miranda e João do Rio.
102 João da Bahiana, em Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu (Rio de Janeiro, MIS, 1970, p. 61): “Minha família não era rica, mas tinha uns recursozinhos porque meus avós possuíam alguma coisa. Além disso, minha mãe fazia doces da Bahia e tinha empregados vendendo esses doces na rua. Eram 4 ou 5 tabuleiros. Portanto, a nossa condição econômica não era ruim”.
103 Apud Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., p. 159 (depoimento de Carmen do Xibuca).
104 A data desse samba tampouco pode ser estabelecida com precisão. Em entrevista de 1966, a João Batista Borges Pereira, publicada com o título “Pixinguinha” na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 42 (1997, pp. 77-87), o próprio João da Bahiana, em conjunto com Pixinguinha, tratava de recordar-se de uma versão mais antiga do samba (pp. 85-86), mais longa que a parte gravada por Clementina de Jesus e assinada por João da Bahiana. Essa versão data provavelmente da década de 1910, mas não há registros gravados dela. Clementina de Jesus apresentou o tema em 1968, na Bienal do Samba, da TV Record. Para o festival televisivo, o velho partido-alto foi reduzido e, de certa forma, modernizado por João da Bahiana.
105 Idem, p. 7 – citando João Batista Borges. Comunicação e cultura popular. São Paulo, ECA-USP, 1971.
106 Cf. depoimento de Donga, em Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu..., p. 84.
107 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba..., p. 96 e passim. Sobre a centralidade das baianas no cotidiano do candomblé na cidade, ver Agenor Miranda Rocha. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro..., p. 37.
108 Cf. Tiago Melo Gomes & Micol Siegel. “Sabina das Laranjas. Gênero, raça e nação na trajetória de um símbolo popular”. Revista Brasileira de História, 22 (43), 2002, pp. 171-193.
109 Ver depoimento de Bucy Moreira, neto de Ciata, sobre os serviços prestados “em domicílio” ao presidente da República Wenceslau Brás, no próprio Palácio do Catete – façanha em parte responsável por seu prestígio. O depoimento foi transcrito por Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro..., p. 97.
110 Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba..., pp. 91-96. O autor faz também referência às festas e aos sambas promovidos por tia Teresa. Ver ainda, sobre figuras de baianas da cidade, João Ferreira Gomes (Jota Efegê). Figuras e coisas do carnaval carioca..., pp. 174-176; e Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 24.
111 Cf. “Fim sangrento de um adultério”. A Noite, 1o de agosto de 1911. Agradeço a Clariana Lucas, aluna da graduação da Unicamp, pela indicação da fonte.
112 Cf. Marcos Marcondes & Zuza Homem de Mello (eds.). Enciclopédia da música brasileira. Samba e choro. São Paulo, ArtEditora/Publifolha, 2000 , p. 199.
113 Cf. Marc A. Hertzman. Making Samba. A New History of Race and Music in Brazil. Durham/Londres, Duke University Press, 2013. Hertzman questiona de modo muito convincente e fundamentado o que chama punishment paradigm, que tem orientado a maior parte das interpretações sobre o tema a partir da ideia de que os sambistas foram vítimas de uma perseguição constante ao longo da história e suas obras expressam uma forma de resistência contra a opressão das elites brancas. Sobre o assunto, ver depoimento de João da Bahiana em Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu..., p. 57, sobre relações com Pinheiro Machado: “Ele se dava com os meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, Marechal Hermes, Coronel Costa, todos viviam nas casas das baianas. [...] O Senado era na rua do Areal, ali na esquina, perto da Casa da Moeda, na Praça da República”. Ver ainda novas referências nas páginas 58 e 61.
114 8a Pretoria (1902). Réu: Hilário Jovino Ferreira. AN, OR 2264 (SDJ).
115 A confusão sobre a idade de Hilário Jovino é constante na bibliografia e, em parte, causada por ele mesmo. Em entrevista concedida a Vagalume em janeiro de 1913 e publicada no Jornal do Brasil, ele afirmou que teria desembarcado no Rio vindo da Bahia em 1873, em evidente confusão da sua memória ou da do jornalista. Em fevereiro de 1931, já próximo da morte, o mesmo Vagalume transcreve a história de outro jeito: Hilário agora afirmava ter fundado o Rei de Ouro em 6/1/1893, o que é mais coerente com o conjunto das informações. Cf. Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 23. Em pelo menos uma ocasião, o sambista afirma ter chegado ao Rio de Janeiro na década de 1870 e encontrado já funcionando o primeiro rancho – o Dois de Ouro –, informação fartamente repetida pela bibliografia especializada. Logo em seguida, teria fundado outro grupo, o Rei de Ouro, primeiro rancho a sair no carnaval carioca, o que sugere que ele chegara ao Rio já adulto. Sua memória, entretanto, é por vezes contraditada por pesquisadores que afirmam não ter encontrado referências
a esse rancho antes da década de 1890 (eu mesma, em minha pesquisa sobre o carnaval carioca, nunca encontrei) – o que, em todo caso, seria mais coerente com todo o conjunto de informações disponíveis sobre a vida de Hilário Jovino, embora pudesse também indicar apenas o desinteresse da imprensa por essa forma de brincadeira naquele período. Cf. Maria Clementina P. Cunha, Ecos da folia..., capítulo 3.
116 Hilário era tio de Aniceto do Império, sambista conhecido no meio das escolas de samba cariocas, nascido em 1912 no bairro do Estácio, também estivador de profissão e líder do sindicato dos arrumadores, falecido em 1993.
117 Este era um termo usado para definir capoeiras no início do século XX. Cf. Elysio de Carvalho. Gíria dos gatunos cariocas..., p. 41.
118 As referências esparsas ao sambista Lalu de Ouro mencionam que também ele, como uma boa parte dos sambistas de seu tempo, exerceu trabalhos na região do porto.
119 Inquérito Policial de Ofensas Físicas em Antônio Marinho da Silva (1904), 9a Circunscrição Urbana. AN, 8a Pretoria, OR 3051.
120 Cf. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em . Amor foi também um dos protagonistas na formação do samba do Estácio, nos anos 1920, ao lado de Bucy Moreira (neto de Ciata) e Heitor dos Prazeres, além dos sambistas locais, mostrando que as gerações seguintes dos “baianos” se adaptavam facilmente aos novos tempos. Cf. Humberto M. Franceschi. Samba de
sambar do Estácio. Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles, 2010,pp. 178183.
121 Sobre o forte significado que os castigos físicos ainda mantinham, particularmente entre trabalhadores negros ligados às atividades marítimas e portuárias, como era o caso de Marinho, ver Álvaro Pereira do Nascimento. “Entre o justo e o injusto. O castigo corporal na Marinha de Guerra”. In: Silvia H. Lara & Joseli Maria N. de Mendonça (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 2006, pp. 267-302.
122 Na Rua Senador Eusébio estavam as sedes dos Apaixonados, Caju de Ouro, Clowns Invencíveis, Diabinhos de Ouro, Club dos Chineses, Estrela da Aurora, Luz do Povo, Rainha de Ouro, Triunfo da Camélia; na Barão de São Felix, os Caprichosos dos Cajueiros, Chora na Macumba, Triunfo Flor da China, Filhos dos Clowns, Liga Africana, Rompe e Rasga, Teimosos Carnavalescos.
123 Cf. depoimento transcrito em Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu..., p. 62.
124 Idem, ibidem.
125 Entrevista de João da Bahiana ao Diário Carioca em janeiro de 1936, apud Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 28.
126 Vítima João Machado Guedes (João da Bahiana), 1907. AN, OR. 5053.
127 “Eu fui na cozinha pegar um café/ malandro tá de olho na minha mulhé/ mas comigo, eu apelei para a desarmonia/ e fomos direto pra delegacia [...]” (“Batuque na cozinha”).
128 Trata-se do famoso mestre-sala e sambista Mestre Germano, contemporâneo de Hilário na fundação dos ranchos carnavalescos e integrante ativo da roda do Café Paraíso – e um dos autores do samba “Pelo telefone”, registrado por Donga e Mauro de Almeida, falecido em 1933 (Francisco Guimarães [Vagalume]. Na roda de samba..., p. 101). Ele fez parte ainda do Macaco é Outro e, como Hilário, era ogã no terreiro de Alabá, tendo sido descrito por João do Rio como um “falso” ogã, “cabra pernóstico”. Ver Paulo Barreto (João do Rio). As religiões no Rio..., p. 30.
129 5a Pretoria (1928). Réu: Germano Lopes da Silva. AN, 70.7934. O Inquérito correu pela 16a DP.
130 Os depoimentos estão nas páginas 13 a 16 dos autos do inquérito.
131 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba..., p. 87.
132 Ver, por exemplo, Nicolau Parés. A formação do candomblé..., pp. 126128 e passim. Para esse autor, a disposição em estabelecer elos prestando “serviços” religiosos a clientes pertencentes a um “amplo espectro social” indica que o candomblé, “desde seu início e de forma crescente, baseou suas atividades em uma estratégia de inclusão social”. Tal “capacidade de estabelecer vínculos externos à comunidade negra contribuiu também para a
consolidação e a expansão do candomblé” (p. 128). Para mais informações sobre a heterogeneidade étnico-racial dos terreiros baianos, ver pp. 132138.
133 Cf. depoimento de Donga. Antônio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu..., p. 80.
134 Para referência a essa dialética entre repressão e tolerância aos candomblés baianos, ver Nicolau Parés. A formação do candomblé..., pp. 137-138.
135 Carlos Eugênio Soares (A negregada instituição. Os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1994, p. 77) menciona um ofício localizado na documentação policial do Império, no Arquivo Nacional, relativo à preocupação das autoridades com tal expediente utilizado por capoeiras como forma de escapar aos controles policiais: “quase todos eles Guardas Nacionais e, como tais, isentos de praça em qualquer das armas. Eles o sabem perfeitamente e por isso se julgam imunes”. IJ6 212 de 15/11/1849 – Oficio (Documentação policial).
136 Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda de samba..., p. 144.
137 “Foram-se os malandros”, gravação de Francisco Alves e Gastão Formenti, 1928. A letra completa inicia com referência à demolição dos barracos (“minha casa foi abaixo, meu cachorro se perdeu, a mulher que eu mais amava de desgosto já morreu”), que constitui o refrão do samba, entremeado com os versos mencionados no texto. O diálogo estabelecido
com o sucesso de Sinhô, do mesmo período, intitulado “A favela vai abaixo”, analisado no capítulo I deste volume, é evidente.
Capítulo IV
1 Uma versão preliminar e reduzida deste capítulo foi publicada com o título “‘Não me ponha no xadrez com este malandrão’. Conflitos e identidades entre sambistas no Rio de Janeiro do início do século”. AfroAsia, 38, setembro de 2009, pp. 179-210.
2 Existem gravações anteriores de sambas intitulados “Batuque na cozinha” que repetem o estribilho e alguns desses versos. Em 1911-1913, um lundu na voz do cantor Zeca, pela Favorite Records, 78 rpm, da coleção Humberto Franceschi; em 1937, com autoria assinada por Nássara e R. Soares, a dupla Gaúcho e Joel gravou um “Batuque na cozinha”, classificado no gênero “batuque”, publicado pela Odeon em 78 rpm, pertencente à coleção J. Ramos Tinhorão – ambas as gravações incorporadas ao acervo sonoro do Instituto Moreira Salles (IMS) e acessíveis para audição em seu site.
3 As gravações de João da Bahiana distribuem-se em três momentos: a virada dos anos 1920 e a década de 1930, meados dos anos 1950 (com uma forte concentração em temas relacionados aos terreiros de candomblé) e, finalmente, uma breve reaparição nos anos 1960-1970, em pleno movimento de recuperação dos “valores autênticos” da “cultura popular” que o trouxe de volta à cena, juntamente com Donga, Prazeres, Ismael Silva e outros, como exemplos de um samba dito “de raiz”, reverenciado pela esquerda naquele momento político. Os sambistas tornam-se, então, independentemente de sua própria vontade, ícones da resistência ao regime militar. Os sambas mencionados tratam de temas cotidianos, como a pobreza expressa no vestuário, o comportamento feminino no carnaval, a
mulher que sustenta o companheiro desempregado apesar do estranhamento da polícia, o conflito entre o freguês que “pendura” a conta no botequim e o comerciante lesado.
4 Gente da antiga. LP 33 rpm, Odeon, 1968.
5 Deve-se lembrar que há sambistas de diferentes origens sociais, principalmente no período em que o rádio e a gravação mecânica projetam e dão status aos músicos brasileiros. Uma parte da bibliografia, entretanto, assumiu frontalmente a perspectiva unívoca da “malandragem”. O melhor exemplo talvez seja o livro, já antigo, de Cláudia N. de Matos, intitulado Acertei no milhar. Samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. Ver também, entre outros textos, Ruben George Oliven. “A malandragem na música popular brasileira”. Violência e cultura no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1989. Há, por outro lado, na bibliografia mais recente, uma perspectiva que quase chega a negar a existência efetiva dos malandros, vendo-os como criação dos meios de comunicação de massa. Ver, por exemplo, Tiago de Melo Gomes. Lenço no pescoço. O malandro no teatro de revista e na música popular. Dissertação de mestrado. Campinas, Unicamp, 1998, e “Formas e sentidos da identidade nacional: O malandro na cultura de massas (1884-1929)”. Revista de História USP, 141, 1999, pp. 59-73.
6 Carlos Sandroni. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 2001.
7 Esse jogo consistia em utilizar uma bolinha de massa e três tampas metálicas de cerveja, para que o “otário” apostasse, após a manipulação do jogador, sob qual das tampinhas estava escondida a bola.
8 Cf. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em .
9 Depoimento de Alcebíades Barcelos (Bide) ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 21 de março de 1968. Segundo ele, Baiaco teria cometido a “molecagem” de fazer os tais nortistas repetir a melodia várias vezes, enquanto Benedito Lacerda a escrevia, escondido. Cf. Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, 1928 a 1931. Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles, 2010, p. 69. Essa história, fartamente repetida pela bibliografia, consolidou a fama de Baiaco como “ladrão de sambas”. A versão é, aliás, consistente com o formato do samba: trata-se de um “partido-alto”, gênero pouco frequente na produção desse grupo do Estácio.
10 “Tenho numa nega” e “Vejo lágrimas” (1932); “Arrasta a sandália”, “Se passar da hora” e “Rindo e chorando” (1933); “Quem mandou Iaiá” e “Conversa puxa conversa” (1934).
11 Os dados biográficos do Instituto Moreira Salles registram os anos de nascimento e morte como 1903-1958; o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, por sua vez, registra os anos de 1913 e 1935. O correto, como vimos, é 1901-c.1935.
12 Ver os seguintes processos no AN: 5a Pretoria 70.6261 (1926); 70.7170 e 70.6862 (1927); 70.8227, 70.8556 e 70.8533 (1928); 70.10319, 70.10403 e 70.10324 (1929); 70.11584 (1930). Há também processos nas Varas Criminais, entre os quais: 69.1926, Caixa 235 Galeria B; 183 Maço 2551 (1927) – do qual restaram apenas 25 das 186 páginas – e CU 0998 (1928).
13 O documento está nos autos de um dos últimos processos criminais em que Baiaco figura como réu: 5a Pretoria (1930). Réu: Oswaldo Caetano Vasques. AN, 70.11584.
14 Ver processos nos 70.6862 (1917); 70.7170 (1927); e 183 Maço 2551(1927). AN, 5a Vara Criminal.
15 Cf. Processo no 69 (1927). Réu: Oswaldo Caetano Vasques. AN, Caixa 235 Galeria B.
16 Essa categoria de trabalhadores, malvista desde o século XIX pelas elites e autoridades, tinha uma excepcional mobilidade e liberdade de circulação nas ruas da cidade. Eram ademais trabalhadores informais (ou avulsos, mesmo quando regulares) em uma atividade difícil de regular e comprovar, ainda que se tornasse obsoleta na capital federal já cheia de automóveis e bondes elétricos. Mas seu perfil atendia bem aos propósitos de indivíduos como Baiaco. Sobre os cocheiros e os significados de sua presença nas cidades brasileiras do século XIX, ver Elciene Azevedo. “A metrópole às avessas. Cocheiros e carroceiros no processo de invenção da raça paulista”. In: E. Azevedo; J. Cano; M. C. P. Cunha & S. Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade. Campinas, Editora da Unicamp, 2009, pp. 63-105.
17 Para conferir a interferência de Ataliba Correia Neto nos processos de Baiaco, ver: AN 70.8533 (1928); 70.10319 (1929); 70.10403 (1929); 70.10974 (1929), entre outros nos quais o sambista (Oswaldo Caetano Vasques) figura como réu.
18 5a Pretoria (1928). Réu: Oswaldo Caetano Vasques. AN 70.8227.
19 Cf. O Paiz, 27 de novembro de 1912, p. 1. Outras notas, no mesmo jornal, ajudam a estabelecer sua condição social: em 23 de novembro de 1920, p. 5, a coluna “Vida Social” noticia seu aniversário, como fará todos os anos seguintes. Em 7 de agosto de 1923, ele aparece entre os presentes a uma reunião do gabinete do ministro da Justiça; em 29 de abril de 1926, o jornal noticia sua aceitação como sócio do Automóvel Clube, presidido por Carlos Guinle; em 28 de junho de 1927, ele figura entre as personalidades que aderiram ao almoço em homenagem ao deputado Machado Coelho na Confeitaria Colombo; finalmente, em 3 de outubro de 1929, p. 13, seu nome figura entre os “Presidentes Honorários” do Centro Político do Recreativismo do Distrito Federal: “Por um grupo de eleitores de nomes bem conhecidos e prestigiados nas sociedades recreativistas e carnavalescas dessa cidade, acaba de ser fundado à rua Marquesa de Santos 38 (Largo do Machado) o Centro Político de Recreativistas do Distrito Federal, que tem por fim alistar eleitores e intensificar a propaganda das candidaturas Júlio Prestes-Vital Soares para presidente e vice-presidente da República”. Da diretoria figuravam senadores, deputados e Dr. Gabriel Monteiro de Barros.
20 Sobre Coelho Neto e seu entusiasmo pelo clube, ver Leonardo Pereira, Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 19021928. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 207 (nota 15). O episódio é narrado por um dos filhos do literato – que, por sinal, jogavam todos no Fluminense, sendo um deles, “Mano”, titular do time. É curioso notar, ao mesmo tempo, o esforço dos clubes para aumentar o policiamento dos campos de jogo (idem, p. 134), visando evitar conflitos como esse protagonizado por um delegado.
21 Ver, entre outros processos da 5a Pretoria em que Baiaco figura como parte, os autos de notação AN 70.7170 (1927); 70.10324 (1929); 70.11584 (1930).
22 5a Pretoria (1929). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN 70.10324.
23 Cf. 5a Pretoria (1930). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN 70.11584.
24 O samba “Tenho uma nega” data de 1932 e foi gravado por Patrício Teixeira para o carnaval de 1933. Note-se que os dotes de Baiaco como compositor foram questionados várias vezes, especialmente em suas parcerias com Lacerda. Cf. João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia. Brasília. Ed. UnB/Linha Gráfica, 1990, pp. 290-291. Os autores mencionam ainda episódios de crueldade do malandro contra animais e o gosto por atacar mendigos indefesos, queimados com jornal e álcool, entre as “proezas” do ritmista do Estácio.
25 5a Pretoria (1927). AN, 70. 6862. A referência aqui é ao processo que sofreu em 1917, autuado no 9o Distrito Policial, quando teve a sua primeira condenação por vadiagem e cumpriu pena na Colônia Dois Rios. O processo consta da “Folha de Antecedentes”, mas não foi localizado nesta pesquisa.
26 Provavelmente o defensor de Baiaco, nesse caso, era um rábula de porta de cadeia, bastante comum no período. O fato é que, nos processos seguintes, o sambista passou a recorrer a advogados formados e estabelecidos.
27 5a Pretoria (1926). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN 70.6261.
28 5a Pretoria (1926). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN 70.6261.
29 5a Pretoria (1930). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN 70.10974.
30 7a Vara Criminal (1928). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN CU 0998.
31 5a Vara Criminal (1927). Réu: Osvaldo Caetano Vasques e outros. AN, Processo no 183, maço 2551.
32 Nos autos AN 70.10319 (5a Pretoria), o juiz chega a referir-se ao processo por estupro, mas não o menciona entre as condenações sofridas por Baiaco.
33 5a Pretoria (1929). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN 70.10324.
34 Cf. Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., p. 60. O autor menciona ainda o depoimento de Sinhá, antiga participante da “Deixa Falar”, que teria hospedado Brancura em seu quarto nesse período: ele estaria “louco varrido”, ainda morando com a mulher em quem batia com frequência. Relembrando os programas que produziu sobre a história do samba para a televisão estatal de São Paulo, Fernando Faro menciona lembranças de outros sambistas sobre o final da vida do malandro lendário: “Teve um sobre o Estácio de Sá. Tinha Ismael Silva, Bicho Novo [...]. Lembro das figuras que fizeram a escola, do Brancura. Dele, tenho histórias
incríveis. Era bandido. Tinha sempre um 45 e uma navalha por baixo do terno branco linho 120, porque navalha não cortava, derrapava. Monarco me contou que, uma vez, o Brancura chegou no samba e uma mulher falou: ‘Estão fazendo um trabalho contra você’. ‘Contra mim? Sou Brancura, nada me atinge’. Um mês depois, estava preso na Ilha Grande. Passaram uns anos e o Brancura voltou. Apareceu na Mangueira, quando a escola estava na quadra. Ele, que era uma elegância, chegou com short rasgado, camisa regata suja, um rato morto na mão. Fizeram até um samba: ‘O Brancura Enlouqueceu’”. Cf. Fernando Faro. “A conversa de Sayad na TV Cultura”. Disponível em .
35 Brancura é lembrado hoje mais por sua valentia e pela destreza no uso da navalha nas imediações do Estácio. Também integrava o círculo dos sambistas do Apolo e ajudou a fundar a “Deixa Falar” em 1928. Entre os sambas que assinou, há vários gravados por Francisco Alves, Mário Reis, Patrício Teixeira e pelo próprio Ismael Silva (“Carinho eu tenho”, por exemplo, um dos melhores de sua autoria).
36 Processos 5a Pretoria (1927) AN 70.6844; 5a Pretoria (1928) AN 70.8054; 5a Pretoria (1929) AN 70.10446 e 3a Pretoria Criminal (1930) AN 6Z.15125.
37 Cf. Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., pp. 59-60. A informação sobre a dentadura do malandro foi dada por Sinhá a Francisco Duarte, repórter do Jornal do Comércio, em agosto de 1979.
38 5a Pretoria (1929). Réu: Sylvio Fernandes. AN 70.10446.
39 5a Pretoria (1928). Réu: Sylvio Fernandes. AN 70.8054.
40 5a Pretoria (1929). Réus: Oswaldo Caetano Vasques e Sylvio Fernandes. AN 70.9950.
41 3a Pretoria Criminal (1930). Réus: Sylvio Fernandes e outros. AN 6Z 15125.
42 Cf., por exemplo, “Batalha de confetti e pancadaria”. A Noite, 24 de fevereiro de 1930, p. 3.
43 Cf. João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., p. 290: “Brancura era mau, doido, sempre sentindo prazer em fazer sangrar as mulheres”.
44 “Carinho eu tenho” (1931), com Mário Reis. Ver também “Você chorou” (1935), “Coração volúvel” (1929), “Deixe essa mulher chorar” (1931), entre outros. O samba de Sinhô a que ele se refere é de 1928-1929 e sua letra afirma: “Amor, não é para quem quer/ De que vale a nota, meu bem/ sem o puro carinho da mulher/ (quando ela quer)./ Por isso mesmo/ que às vezes numa orgia/ um terno riso eu peço emprestado/ e faço o palhaço na vida/meu bem, com meu coração magoado [...]”.
45 Cf. João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., p. 290. Ver ainda Rogério Durst. Madame Satã. São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 29-30. Segundo ele, Satã e Brancura teriam mantido uma relação amorosa,
por cerca de dois anos, até Brancura “enrabichar-se” por uma mulher com quem teria fugido para longe do Rio de Janeiro, só voltando à cidade tempos depois, por medo da reação de Satã.
46 Paulo Lins (Desde que o samba é samba. Rio de Janeiro, Planeta, 2011) empreende uma reconstrução semificcional do ambiente do Estácio e incorpora essa dimensão associada ao personagem do compositor. Ver ainda Rogério Durst. Madame Satã..., pp. 29-30, no que diz respeito a Brancura. João Máximo & Carlos Didier (Noel Rosa, uma biografia..., p. 190) mencionam os comentários da época sobre o gosto de Francisco Alves por “menininhos” e, na p. 220, qualificam Ismael como homossexual “velado”. Ver ainda Rodrigo Faour. História sexual da MPB. A evolução do amor e do sexo na canção brasileira. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2011, pp. 365366, que faz um inventário superficial, mas divertido.
47 Cf. João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., p. 220.
48 João Máximo & Carlos Didier (idem, pp. 219-220), por exemplo, sugerem que o samba é referência ao famoso malandro Madame Satã, que, reconhecidamente homossexual, nunca foi sambista.
49 A propósito, ver João Máximo & Carlos Didier (idem, pp. 291-295). A polêmica entre o consagrado Noel (1910-1937) e o jovem Batista (19131968), que era “rapaz” novo no pedaço e, portanto, mais vulnerável ao ataque, podia perfeitamente expressar um incômodo crescente com a apologia do malandro. Tal incômodo era compartilhado inclusive com outros nomes importantes do período, como o próprio Orestes Barbosa. Seja como for, a polêmica gerou alguns sambas memoráveis: “Lenço no pescoço”, de Wilson Batista (1933), “Rapaz folgado”, de Noel (1933), “Mocinho da Vila”, de Wilson Batista (1934), “Feitiço da Vila”, de Noel
(1934), “Conversa fiada”, de Wilson Batista (1935), “Palpite infeliz”, de Noel Rosa (1935), “Frankenstein da Vila” e “Terra de cego”, de Wilson Batista (1936), e “Deixe de ser convencida”, de Noel (1936).
50 Cf. Carlos Sandroni. Feitiço decente..., especialmente pp. 169-185.
51 A expressão é alusiva à letra de “Feitiço da Vila”, obra-prima de Noel Rosa, relacionada à polêmica com Wilson Batista. Noel, entretanto, não estava sozinho em seu propósito de livrar o samba do parentesco simbólico com a malandragem. Orestes Barbosa, por exemplo, publicou na seção “Rádio” do jornal A Hora, edição de 15 de agosto de 1933, uma crítica ao novo sucesso do cantor Silvio Caldas (sem sequer mencionar o autor dos versos, ainda um jovem desconhecido): “Causou má impressão o novo samba de Silvio Caldas: ‘lenço no pescoço – navalha no bolso’ [...] no momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Silvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão”. Apud Carlos Didier. Orestes Barbosa. Repórter. Cronista e poeta. Rio de Janeiro, Agir, 2005, p. 381.
52 Esse aspecto da vida de Ismael, no entanto, parece ter incomodado muitos críticos contemporâneos e mesmo admiradores de gerações mais jovens. Ver, por exemplo, Maria Theresa Mello Soares. São Ismael do Estácio. O sambista que foi rei. Rio de Janeiro, Minc/Funarte, 1985 – a biografia mais extensa do compositor, que, curiosamente, não faz qualquer referência à comentada sexualidade do sambista.
53 Não pude localizar esse processo, certamente mais denso e rico em informações que os da série relativa às contravenções pelas quais ele foi, antes disso, preso e processado diversas vezes. A folha de antecedentes anexada a um processo de 1929 registra cinco passagens pela Casa de
Detenção, sempre autuado com base no artigo 399 do Código Penal (vadiagem). Cf. Processos 5a Pretoria (1927), AN 70 7094, e 3a Pretoria (1929), AN 6Z 13226, nos quais Ismael Silva figura como réu.
54 O episódio é quase ignorado na bibliografia especializada, inclusive pela principal biógrafa de Ismael. Cf. Maria Theresa Mello Soares. São Ismael do Estácio..., p. 22. João Máximo & Carlos Didier (Noel Rosa, uma biografia...) descrevem o episódio nas pp. 368-369, embora não esclareçam as dúvidas sobre a origem do conflito.
55 Cf. João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., pp. 386389. Ismael teria tido um curto envolvimento com uma passista do Estácio, de nome Diva, em 1935 – ano em que cometeu o crime contra Edu Motorneiro – e dele teria resultado uma filha que o sambista teria se recusado a registrar. Após sua morte, a suposta filha se apresentou. Parece ser o único caso em que o envolvimento de Ismael com uma mulher é mencionado, sugerindo um gosto menos eclético que o de Brancura, que, a crer nas referências, se relacionaria com ambos os sexos.
56 Maria Theresa Melo Soares. São Ismael do Estácio..., p. 9. Segundo Humberto Franceschi (Samba de sambar do Estácio..., p. 65), Bucy Moreira e Athanasia da Silva referem-se explicitamente a Ismael como uma pessoa “esquiva” e “raivosa”. O mesmo autor, nas pp. 60-61, comenta a vaidade e a gabolice como características da personalidade do sambista.
57 Vejam-se as estatísticas, já mencionadas no texto, de prisões efetuadas pelas delegacias de polícia da capital federal quando Ismael tinha nove anos de idade e andava a frequentar a escola: todas as DPs da cidade, em conjunto, efetuaram 104 prisões naquele mês, das quais 41 referem-se a
menores que andavam desacompanhados nas ruas. Ver AN, GIFI 6C 499 (1914).
58 5a Pretoria Criminal (1927). Réu: Ismael Silva. AN 70 7094.
59 Desenvolvi esse aspecto em “De sambas e passarinhos: As claves do tempo nas canções de Sinhô”. In: S. Chalhoub; Margarida S. Neves & Leonardo A. M. Pereira (orgs.). História em cousas miúdas. Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 2005, pp. 547-587.
60 Claramente empenhada em defender o sambista, a testemunha negou que Ismael fosse seu empregado no momento da prisão, embora admitisse que isso acontecera no passado. Mas tratou de entregar ao oficial de justiça diversos “libretos” com seus sambas, vendidos nas ruas e lojas de música, para provar que ele tinha, sim, uma ocupação. Cf. 3a Pretoria (1929). Réu: Ismael Silva. AN 6Z 13226. A certidão do oficial de justiça está datada de 8 de maio de 1929.
61 “Se você jurar”, seu principal sucesso, foi lançado no carnaval de 1931 na voz de Francisco Alves.
62 Alguns autores realçam a influência de Noel Rosa no processo de afastamento entre Ismael e Francisco Alves, em 1934, por ser um crítico constante das cláusulas que os prendiam por contrato desde os anos 1920. Cf. João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., p. 334.
63 Idem, p. 368.
64 A condenação de Ismael está registrada na imprensa. Ver A Noite, 6 de janeiro de 1937 (balanço do Tribunal do Júri no ano anterior).
65 Gravado por Alcides Gerardi em 1950, o samba assinala a volta de Ismael ao meio musical, embora em situação muito diferente daquela dos anos de sucesso. Ver sobre isso João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., pp. 368-369.
66 Manuel Bandeira. “Mangue”. Poesia completa e prosa. 5a ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2009, p. 105.
67 Emiliano Di Cavalcanti. Mangue. Óleo sobre tela, 1929. Lasar Segall. Mangue. Gravura em ponta seca (do álbum Mangue, publicado em 1944).
68 Cf. Annuário Estatístico do Brazil 1908-1912. Rio de Janeiro, Directoria Geral de Estatística, 1916-1927, vols. 1-3. Os números precisos são: densidade (isto é, população/área) no Espírito Santo de 13315,450 e em Santana de 33300,679; crescimento no Espírito Santo de 0,0305 e em Santana de 0,0255.
69 Apenas 508 moradores do bairro foram identificados nos registros das ocorrências da delegacia do Espírito Santo em 1925, incluindo acusados, vítimas e testemunhas, para um universo de cerca de 79 mil habitantes. Apesar da amostragem pequena, parecia haver entre eles, à semelhança de
Santana, uma proporção quase simétrica entre negros (incluindo aqui os identificados como pardos) e os classificados como brancos.
70 AEL, Livro de Ocorrências da 9a Delegacia Urbana no 0588, p. 1817 (registros de 9 de janeiro de 1925).
71 O crescimento populacional no distrito do Espírito Santo entre 1890 e 1920 foi proporcionalmente bem maior que o da área de Santana, onde havia 67 mil em 1890, 79 mil em 1906 e 91 mil em 1920. Para Espírito Santo, os números crescem em maior proporção: 31 mil em 1890, 59 mil em 1906 e 79 mil em 1920. Cf. Teresa A. Meade. Civilizing Rio. Reform and Resistance in a Brazilian City 1889-1930. Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press, 1997, p. 48.
72 Cf. Brasil Gerson. História das ruas do Rio. 5a ed. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 2000, pp. 334-335.
73 No Rio de Janeiro não houve propriamente uma política de confinamento da prostituição. Entretanto, a ação da polícia “empurrou” as meretrizes para áreas cada vez mais distantes da parte mais nobre da região central, ação que teve seu auge por ocasião da visita do Rei Alberto em 1920. Data desse período a formação da Zona do Mangue. Para uma análise detalhada, ver o excelente livro de Cristiana Schettini Pereira. Que tenhas teu corpo. Uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2006. Cf. também Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., pp. 4446.
74 Brasil Gerson. História das ruas do Rio..., p. 336.
75 Idem, p. 175.
76 Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da cidade projetados pelo Prefeito do Distrito Federal, Dr. Francisco Pereira Passos. Rio de Janeiro, Typographia da Gazeta de Notícias, 1903 (AGCRJ).
77 Não disponho de dados mais completos para o bairro, uma vez que a documentação policial disponível está incompleta. Apenas a título de sugestão, cabe referir que a contagem das habitações coletivas da área que são mencionadas nas ocorrências policiais de janeiro de 1925, para ter uma ideia, revelou 18 endereços na área, número que certamente constitui apenas uma pequena parte do total. Ainda assim, o número parece sugestivo, tendo em vista a área muito menor desse bairro em relação à Cidade Nova e à região portuária de que nos ocupamos no capítulo anterior, bem como o tamanho bem menor da amostragem.
78 Brasil Gerson. História das ruas do Rio..., p. 335.
79 Cf. Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933, pp. 206 e 222.
80 Idem, p. 211.
81 Cf. Teresa A. Meade. Civilizing Rio..., p. 48.
82 Planta da cidade do Rio de Janeiro. Secretaria de Viação, Trabalho e Obras Públicas – 5a Subdiretoria de Engenharia; Laboratório Fotocartográfico. Rio de Janeiro, 1935. (Acervo do Instituto Pereira Passos). Apud Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., 2010 (CD encartado).
83 Segundo levantamento realizado por Fania Friedman. Paisagem estrangeira. Memórias de um bairro judeu no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2007, pp. 126 e 128. Humberto Franceschi (Samba de sambar do Estácio..., p. 48) insinua que a referida sinagoga seria mantida pelos judeus vinculados à organização criminosa Zwi Migdal, responsável por uma intensa corrente de tráfico de mulheres que alimentaria a Zona do Mangue.
84 Ofícios dos Delegados das Circunscrições ao Chefe de Polícia (1914). AN, GIFI 6C 499.
85 O microfilme relativo ao Livro de Ocorrências 0588 da 9a DP (Espírito Santo) contempla os registros de 1/1 a 11/2/1925. Assim, a pequena extensão da amostra requer alguma cautela na avaliação dos números obtidos, que devem ser tomados apenas como indicadores de tendência.
86 Cf. AEL, Livro de Ocorrências no 0588, da 9a DP (Espírito Santo).
87 Idem, p. 1.813 – ocorrência na Rua Dona Laura de Araújo.
88 A prática pode ser análoga à descrita no bem-humorado samba de Geraldo Pereira “Cabritada malsucedida”, gravado em 1953, cuja letra anuncia: “Bento fez anos e para almoçar me convidou/ me disse que ia matar um cabrito/ onde tem cabrito eu tô./ E quando o comes e bebes começou/ na melhor da cabritada/ a polícia e o dono do bicho chegou” [...].
89 AEL, Livro de Ocorrências da 9a DP (Espírito Santo) no 0588, p. 1876 (1/2/1925).
90 Para comparação, o distrito de Sacramento (Tiradentes), onde se localizavam as casas de prostituição no início do século XX, apresentava também índices bastante elevados de suicídios. Ver capítulo 2.
91 Em parte, essa redução deve ser creditada à ação das delegacias especializadas, criadas na reforma da polícia, que tinham atuação por toda a cidade.
92 AEL, Livro de Ocorrências no 0588 – 9a DP (Espírito Santo), p. 1794. Note-se que apenas três anos depois desse episódio, Francisco Alves lançaria “Se você jurar”, sucesso que faria de Ismael um nome reconhecido no cenário musical.
93 Idem, p. 1.844. A qualificação da testemunha Alcebíades Barcelos, entretanto, é incompleta, não permitindo estabelecer com segurança tratar-
se da mesma pessoa.
94 Cf. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Outros sucessos de Bide: “Fui um louco” (1934), “Agora é cinza” (1935), com Noel Rosa, e outros. Ver também Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., pp. 121-122.
95 É difícil estabelecer os endereços dos dois cafés lendários. Para Humberto Franceschi, por exemplo, o Café do Compadre ficava na esquina da Rua Pereira Franco, sem especificar em qual delas (idem, p. 16); Didier afirma que ele estava localizado na Rua Santos Rodrigues no 26, sendo propriedade do português José Domingues (Orestes Barbosa..., p. 119). Autores como Ney Lopes e outros tampouco se entendem sobre isso e, segundo alguns registros em sites especializados, eles estariam localizados respectivamente “perto” do Largo do Estácio (Apolo) e na Rua Santos Rodrigues (Compadre) – ou ainda ambos na Rua Machado Coelho. Um dos processos acima mencionados – em que Baiaco e Newton de Tal (Nilton Bastos, possivelmente) se envolvem na agressão a uma prostituta – pode constituir uma boa pista. Os dois sambistas estavam no café situado na esquina da Rua do Estácio com a Rua Pereira Franco por ocasião do conflito, havendo boa chance de se tratar do Apolo ou do Compadre, pontos dos sambistas locais. Ver 7a Vara Criminal (1928). Réu: Osvaldo Caetano Vasques. AN CU 0998.
96 5a Pretoria (1930). Réu: Bucy Esperança Moreira. AN 70.11713. Na qualificação inicial da delegacia, ele aparece com 21 anos, carioca, solteiro, operário e residente na Rua Luiz Augusto Pinto no 19, casa 11 (uma estalagem, a julgar pelo formato do endereço). Há um registro de entrada anterior na Detenção em 19 de maio de 1929. O motivo da prisão, alegado pelos agentes, é que ele estava “perambulando” e tratava-se de “conhecido vadio e ladrão”. No processo, Bucy alega ter apenas 19 anos e trabalhar em uma indústria de capachos para automóveis na Rua dos Inválidos –
fornecendo o endereço e o nome do patrão; diz ainda ter sido preso em plena zona, na Rua Pereira Franco, e ainda que estaria, naqueles dias, impossibilitado de trabalhar por “fraqueza” – estado confirmado pelo laudo dos peritos. Ademais, contesta o endereço apresentado, afirmando morar em outro cortiço, na Rua do Catete no 132, quarto 7, há nove meses. Com isso, o juiz manda arquivar o caso e expedir o alvará de soltura.
97 Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba..., pp. 207-208 e 218.
98 A Noite, 16 de março de 1920, p. 6.
99 Seu livro principal, que não pude localizar, intitula-se Culto omolokô. Os filhos do terreiro. Na verdade, as informações sobre essa modalidade religiosa são ainda difíceis de encontrar, além de pouco sistematizadas e analisadas em uma perspectiva acadêmica. As referências utilizadas aqui decorrem em sua maioria de informações recolhidas em sites produzidos por religiosos, constituindo uma espécie de memória oficial dos terreiros e entidades civis ligados ao omolokô e à umbanda. Entre os sites consultados, ver , que trata especificamente do omolokô e suas origens no Rio de Janeiro, e . Tancredo seria ainda o responsável pela organização da primeira Confederação Espírita Umbandista do Brasil, na década de 1950, como forma de defesa dos devotos e dos respectivos terreiros.
100 A importância dessa conexão tem sido enfatizada por historiadores como Hebe Mattos & Martha Abreu, “Jongo, registros de uma história”. In: Silvia Hunold Lara e Gustavo Pacheco (orgs.). Memória do Jongo. Rio de Janeiro/Campinas, Folha Seca/Cecult-Unicamp, 2007, pp. 69-106; ver ainda
o excelente balanço empreendido por Martha Abreu, “Histórias musicais da Primeira República”. ArtCultura, 13 (22), janeiro-junho de 2011, pp. 71-83.
101 Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo 1938. Rio de Janeiro, Xenon, 1987, pp. 72-73.
102 Paulo Barreto (João do Rio). As religiões no Rio 1904. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1951, pp. 26-27.
103 Desenvolvi esse aspecto em Maria Clementina Pereira Cunha. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, especialmente no capítulo 3.
104 O nome verdadeiro era José Gomes da Costa, carioca nascido na última década do século XIX e falecido em 1945. Dizia-se descendente de italianos, da família calabresa Espinelli, o que explicaria o estranho apelido. Era jongueiro, além de pai de santo no Engenho de Dentro, onde seria casado, mas mantinha uma amante fixa no Morro da Mangueira. Foi um dos fundadores do Bloco dos Arengueiros (com Cartola, Carlos Cachaça, Maçu e outros). Cf. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.
105 Idem.
106 Ver A Noite, 26 de janeiro de 1921, p. 6.
107 Cf. João Maximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia..., p. 123.
108 Sobre a história das escolas de samba do Rio de Janeiro, ver Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Luminar, 1996; e Nelson da Nóbrega Fernandes. Escolas de samba, sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
109 “Está chegando a hora!”. A Noite, 10 de fevereiro de 1931.
110 Depoimento de Sinhá, apud Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., p. 136.
111 Cf. informações sobre história do carnaval no bairro no site do G.R.E.S. Estácio de Sá em .
112 Cf. Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., pp. 73-75. Ver ainda pp. 132-134, sobre o modo de organização dos desfiles da “Deixa Falar”.
113 A afirmação está em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som em 1966 e em várias outras entrevistas que concedeu a órgãos da imprensa.
114 Para as diversas vertentes do samba no Rio, ver Roberto M. Moura. No princípio, era a roda. Um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes.
Rio de Janeiro, Rocco, 2004.
115 Ver, entre outros exemplos, A Noite, 16 de fevereiro de 1920, p. 3, e 18 de fevereiro de 1920, com a publicação da foto da visita e novos comentários sobre seu “sucesso” para o carnaval que se avizinhava.
116 Idem, 29 e 30 de maio de 1920.
117 Idem, 16 de agosto de 1920, p. 5.
118 Humberto Franceschi (Samba de sambar do Estácio..., p. 51) observa que a maior parte dos sambistas do Estácio não dominava qualquer instrumento musical, sendo o grupo formado principalmente por percussionistas, o que pode ter influenciado no padrão rítmico adotado a partir dos desfiles da “Deixa Falar”.
119 Outros membros do grupo são sempre citados, mas sobre eles não disponho de mais informações: Aurélio Gomes, o Mano Aurélio, parceiro de Baiaco em “Arrasta a sandália” (segundo Ismael, seria mesmo seu único autor); Rubem Barcelos, o Mano Rubem, irmão de Bide que morreu tuberculoso antes da fase de maior sucesso do grupo. Para mais detalhes, ver Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.
120 O episódio é narrado praticamente por toda a bibliografia sobre o tema. Ver, entre outros, Maria Theresa Mello Soares. São Ismael do Estácio..., pp. 48-49.
121 Depoimento de Ismael Silva (29/9/1966). Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Entre os intelectuais com quem conviveu nesse período, destacam-se Aníbal Machado, Prudente de Moraes Neto (que seria depois seu advogado), Lucio Rangel, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e outros. Hermano Viana (O mistério do samba. Rio de Janeiro, Zahar/Ed. UFRJ, 1995) já indica a importância desses “encontros” entre círculos letrados e sambistas – pista importante para sedimentar trabalhos de pesquisa sobre o tema.
122 Sinhô faleceu em 1930 e Hilário Jovino pouco tempo depois – seguramente antes de 1933, quando foi publicado o livro de Francisco Guimarães (Vagalume) Na roda de samba. Note-se que os dois eram os que mais reclamavam da nova geração de sambistas, ainda que mantivessem alguma tensão entre si em torno da identidade “regional” do samba, como vimos.
123 Cf. Eduardo das Neves. Trovador da malandragem 1902. Rio de Janeiro, Livraria Quaresma, 1926.
124 Seu irmão Mano Aurélio, como vimos, fez parte do grupo, mas morreu cedo e não deixou registros. Nada sugere, nas referências disponíveis, uma fama de malandro, tratando-se provavelmente de um trabalhador como o irmão.
125 Ver: programa “Ensaio”, TV Cultura-SP, com Mestre Marçal, disponível em . Note-se que profissões como lustrador, empalhador e outras atividades autônomas constituíam uma velha
preferência de sambistas, pela flexibilidade que permitiam nos horários de trabalho.
126 Cf. e principalmente o verbete de Armando Marçal no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.
127 Cf. . Ver ainda Enciclopédia da Música Brasileira. 2a ed. São Paulo, ArtEditora/Publifolha, 1998. Sobre a morte de Nilton e Edgar, ver Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio..., pp. 185-186.
128 Idem, pp. 186-187.
129 Francisco Guimarães (Vagalume) (Na roda do samba...), o maior defensor no período de uma “tradição” do samba a ser preservada contra a mercantilização empreendida pelas gravadoras e cantores de sucesso.
130 Citado por Sérgio Cabral. Escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 35. Sinhô, entretanto, também recorreu ao tema de modo padronizado em “Ora vejam só”, o mesmo samba reivindicado por Heitor dos Prazeres que, na época, residia no Estácio e era conhecido pela alcunha Lino do Estácio: “Ora vejam só/ a mulher que eu arranjei// Ela me faz carinhos até demais/ Chorando/ ela me pede:/meu benzinho,/ deixa a malandragem se és capaz. [...]” (1927). O samba de malandragem se tornava então um grande êxito na cidade, sobretudo por meio dos sambistas do Estácio, o que explica a súbita adesão de Sinhô a essa temática.
131 Cf. . Acesso em 27/3/2013.
132 O Paiz, 27 de novembro de 1912, p. 7.
133 O senador Irineu Machado, cabe lembrar, frequentava as casas de tias baianas e os terreiros de Alabá e Abedé – conforme depoimento de João da Bahiana em Antonio Barroso Fernandes (org.). As vozes desassombradas do Museu. Rio de Janeiro, Museu da Imagem e do Som, 1970; segundo Sérgio Cabral (As escolas de samba do Rio de Janeiro..., p. 29), citando o testemunho de Juvenal Lopes – sambista do Estácio e da Mangueira –, esse era também o caso do deputado Nicanor Nascimento.
CRÉDITOS DE IMAGENS, FONOGRAMAS E VÍDEO
A despeito dos esforços no sentido de identificar a origem de fonogramas, imagens e vídeo utilizados nesta obra, muitas vezes não foi possível fazê-lo com todos os detalhes necessários. Com satisfação creditaremos autores, fotógrafos, acervos e colecionadores não referidos aqui, caso essas informações nos cheguem de fontes fidedignas.
Imagens
Frontispício – Acervo fotográfico do jornal Última Hora, Rio de Janeiro. Reproduzida de: Ricardo Cravo Albin; João Máximo; Tárik de Souza & Luiz Paulo Horta. Brasil, rito e ritmo. Rio de Janeiro, Aprazível Edições, 2003/2004, p. 80.
1 – Noel Rosa, autocaricatura, c. 1925. Arquivo Manchete. Reproduzida de João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Ed. UnB/Linha Gráfica, 1990, p. 409.
2 – Capa do LP, vol. 48 da coleção História da Música Popular Brasileira. São Paulo, Abril, c. 1972.
3 – K. Lixto (Calixto Cordeiro), Sinhô – capa da partitura de “Cassinomaxixe”, 1927. Rio de Janeiro, MIS. Coleção Almirante. Com legenda:
“Sinhô, o popularíssimo rei do samba”. Reproduzida de Edigar de Alencar. Nosso Sinhô do samba. Rio de Janeiro, MEC/Funarte, 1981, p. 28.
4 – Caninha, c. 1925. Reproduzida de Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba. Rio de Janeiro, Typ. São Benedito, 1933, p. 35.
5 – Augusto Malta. Morro da Favela, c. 1920. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
6 – Os Oito Batutas, c. 1922. Coleção Lygia Santos. Reproduzida de Marília Barbosa da Silva & Arthur L. de Oliveira Filho. Pixinguinha, filho de Ogum bexiguento. Rio de Janeiro, Gryphus, 1998, p. 109.
7 – Raul Pederneiras. O tocador de violão. Reproduzida de Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo [1938]. Rio de Janeiro, Xenon, 1987, p. 80.
8 – O tocador de violão. Armando Pacheco. Reproduzida de Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo, p. 94.
9 – Marc Ferrez. Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, c. 1889. Reproduzida de Pedro & Bia Corrêa do Lago. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro, Capivara, 2008, p. 216.
10 – Augusto Malta. Praça 11 de Junho. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
11 – Foto de um “assustado” (festa improvisada), carnaval de 1922. Disponível em . Acesso em 9/2/2010.
12 – Turunas Pernambucanos, 1922. Reproduzida de Henrique Foréis Domingues (Almirante). No tempo de Noel Rosa. 2a ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977, pp. 27-28.
13 – Bando de Tangarás, s.d. Disponível em . Acesso em 25/4/2013.
14 – Vagalume, 1938. Reproduzida de Francisco Guimarães (Vagalume). Na roda do samba, p. 8.
15 – Augusto Malta. Morro da Favela, 1920. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
16 – Tarsila do Amaral. Morro da Favela (óleo sobre tela), 1924. Coleção particular.
17 – Emiliano Di Cavalcanti. Samba (óleo sobre tela), 1925. Coleção particular.
18 – Emiliano Di Cavalcanti. Samba (óleo sobre tela), 1928. Coleção particular.
19 – Arnaldo Guinle, s.d. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
20 – Araci Cortes, 1924. Reproduzida de Leonel Kaz; Ricardo C. Albin; João Máximo; Tárik de Souza & Luiz Paulo Horta. Brasil, rito e ritmo. Rio de Janeiro, Aprazível, 2003-2004, p. 67.
21 – Heitor dos Prazeres. Samba no quintal (óleo sobre tela), 1961. Coleção particular.
22 – Carmen Miranda, s.d. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
23 – S. H. Holland, s.d. Panorâmica da “Pequena África”. BN. Reproduzida de H. Franceschi. Samba de sambar do Estácio. Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles, 2010, CD anexo ao volume.
24 – Raul Pederneiras. O imigrante, s.d. Reproduzida de Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo, p. 29.
25 – Dudu (Eduardo das Neves), c. 1915. Reproduzida de Ricardo Cravo Albin. MPB, a história de um século. Rio de Janeiro/São Paulo, Funarte/Atração Produções Ilimitadas, 1997, p. 176 (Série História Visual).
26 – Jean-Baptiste Debret. Marimba (aquarela sobre papel), 1826. Museus Castro Maya. Rio de Janeiro, Iphan/Minc.
27 – Augustus Earle. Fandango de negros no Campo de Santana, c. 18201824. Biblioteca Nacional da Austrália. Disponível em . Acesso em 29/1/2015.
28 – Johann Moritz Rugendas. Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros, c. 1821-1825. Reproduzida de Visões do Rio na Coleção Geyer. Petrópolis/Rio de Janeiro, Museu Imperial/CCBB, 2000, p. 172 (Catálogo da exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, curadoria de Maria de Lourdes Parreiras Horta).
29 – Capa da partitura da obra “Samba”, parte da Suite Brésilienne de Alexandre Levy. Rio de Janeiro, c. 1890.
30 – Edward Gotto, Plan of the City of Rio de Janeiro [1866], fragmento. BN. Disponível em . Versão digitalizada disponível também em .
31 – Cristiano Junior, Cucumbi, c. 1875 (detalhe). Reproduzida de Maurício Lissovsky & C. Azevedo (orgs.). Escravos brasileiros no século XIX. A fotografia de Christiano Junior. São Paulo, Ex-libris, 1988.
32 – Diretoria do Club dos Democráticos. Revista da Semana, 4 de março de 1911.
33 – Baile no salão do Club dos Democráticos. Sans Dessous, ano 1, no 16, 1910.
34 – Augusto Malta. Desfile na Avenida Rio Branco, 1908. Rio de Janeiro, MIS.
35 – Benjamin de Oliveira, 1909. Disponível em . Acesso em 25/4/2013.
36 – Raul Pederneiras. O homem do realejo e seu macaco, s.d. Reproduzida de Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo, p. 135.
37 – Augusto Malta. Grupo de chorões em quintal, com Sinhô de pé ao centro, empunhando violão, 1916. Reproduzida de Leonel Kaz e outros.
Brasil, rito e ritmo, p. 43, imagem no 19. O original pertence ao AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
38 – Augusto Malta. Moradores de cortiços se instalando no Morro da Favela, c. 1920. Reproduzida de Humberto M. Franceschi. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro, Sarapuí, 2002, p. 128.
39 – Bahiano (Manuel Pedro dos Santos, 1887-1944), c. 1910. Disponível em . Acesso em 28/1/2015
40 – Raul Pederneiras. O homem dos sete instrumentos, s.d. Reproduzida de Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo, p. 56.
41 – Pixinguinha, Caninha, João Pernambuco, Patrício Teixeira e outros na Festa da Penha, c. 1912. Disponível em . Acesso em 27/11/2014.
42 – Grupo carnavalesco Horror à Tristeza na Festa da Penha. O Malho, 1911. Disponível em . Acesso em 27/11/2014.
43 – João do Rio, s.d. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
44 – Augusto Malta. Entrada de habitação coletiva, 1906. ACGRJ. Coleção Augusto Malta.
45 – Augusto Malta. Cortiço na Rua Frei Caneca, s.d. ACGRJ. Coleção Augusto Malta.
46 – Augusto Malta. Interior de habitação coletiva, 1906. ACGRJ. Coleção Augusto Malta.
47 – Augusto Malta. Pátio de estalagem, s.d. ACGRJ. Coleção Augusto Malta.
48 – Sociedade Dançante e Carnavalesca Ninho do Amor, no salão de sua sede. Revista da Semana, 25 de fevereiro de 1911.
49 – Sociedade Carnavalesca Banguizas. O Malho, 4 de março de 1911.
50 – Benedito Lacerda, s.d. Disponível em . Acesso em 28/4/2013.
51 – Benedito Lacerda e o grupo Voz do Morro, s.d. Disponível em . Acesso em 27/1/2015.
52 – Maria Clementina Pereira Cunha. Mapa das Freguesias do Rio de Janeiro em 1905, destacando a área conhecida como “Pequena África”.
53 – Marc Ferrez. Inauguração da Avenida Central, 1910. Reproduzida de José de Oliveira Reis. O Rio de Janeiro e seus prefeitos: Projetos de alinhamento. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1977.
54 – Grupo de indivíduos presos como ladrões pela polícia do 13o Distrito. Revista da Semana, 27 de março de 1910.
55 – Caixa de Socorros Policiais na Avenida Central. Revista da Semana, 23 de janeiro de 1910.
56 – 4o Posto de Socorros Policiais, 1910. Revista da Semana, 23 de janeiro de 1910.
57 – Sede central da polícia carioca (1911). Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
58 – K. Lixto (Calixto Cordeiro). O Malho no 47, 8 de agosto de 1903 (capa).
59 – J. Carlos. Tipo de Morro, s.d. Reproduzida de Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo, p. 85.
60 – Rua Senador Eusébio, s.d. AGCRJ. Disponível em . Acesso em 8/2/2015.
61 – A. Lopes Cardoso. Príncipe Obá, 1878. Reproduzida de Pedro & Bia Corrêa do Lago. Coleção Princesa Isabel, p. 158.
62 – Quiosque na área central do Rio de Janeiro, s.d. AGCRJ.
63 – Quiosque na Rua da Saúde. Rio de Janeiro, s.d. AGCRJ.
64 – Quiosque. Rio de Janeiro, s.d. AGCRJ.
65 – Rua Jogo da Bola, s.d. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
66 – Vendedora ambulante de ervas, s.d. AGCRJ.
67 – Augusto Malta. Praça 11 de Junho, no 117, 1941. AGCRJ.
68 – A Proclamação da República no Campo da Aclamação no dia 15 de novembro de 1889, BN.
69 – Juan Gutierrez [1894]. Comemorações do 15 de Novembro de 1889 na Praça da República. AN. Disponível em . Acesso em 10/2/1015.
70 – Augusto Malta, s.d. Prostituta. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
71 – Angelo Agostini. Revista Illustrada, 9 (369), 1884, pp. 4-5 (detalhe).
72 – Paulo da Portela (Acervo de José Ramos Tinhorão). Disponível em . Acesso em 15/2/2015.
73 – Kid Pepe, s.d. Publicada em João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia, p. 290 (original da revista Syntonia).
74 – Alfredo Português (Alfredo Lourenço), s.d. Reproduzida de Sérgio Cabral. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar, 1986, p. 160.
75 – Heitor dos Prazeres, s.d. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
76 – Chiquinha Gonzaga, s.d. Disponível em . Acesso em 25/1/2015.
77 – Rancho carnavalesco, s.d. Disponível em . Acesso em 25/1/2015.
78 – Integrantes do rancho Recreio das Flores, 1917. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
79 – Calixto Cordeiro. O baile pobre, c. 1905. Reproduzida de Pedro Correa do Lago. Caricaturistas brasileiros. Rio de Janeiro, Sextante Artes, 1999, p. 67.
80 – Club dos Fenianos, comissão de frente. Careta, 27 de fevereiro de 1909.
81 – Praça da República durante a Revolta da Vacina (14 de novembro de 1904). Disponível em . Acesso em 24/1/2015.
82 – Cordão preparando-se para sair. O Malho, no 232, 23 de março de 1907.
83 – Boulevard 28 de Setembro, s.d. Disponível em . Acesso em 15/1/2015.
84 – Menores capturados pela polícia chegando à Escola Correcional para serem matriculados, 1913. Reproduzida de Irma Rizzini & José Gonçalves Gondra. “Higiene, tipologia da infância e institucionalização da criança pobre no Brasil (1875-1899)”. Revista Brasileira de Educação, 19 (58), julho-setembro de 2014. Disponível em . Acesso em 11/2/2015.
85 – Alfredo Pinto, s.d. Disponível em . Acesso em 13/1/2015.
86 – Cartola aos 11 anos de idade. Disponível em . Acesso em 28/4/2013; ver também . Acessado na mesma data.
87 – Mano Elói (Eloi Antero Dias), s.d. Disponível em . Acesso em 14/4/2010.
88 – Donga, s.d. Disponível em . Acesso em 28/4/2013.
89 – Francisco Alves e Mário Reis, s.d. Arquivo Luís Antonio Giron. Disponível em . Acesso em 13/1/2015.
90 – Tute e Pixinguinha, s.d. Disponível em . Acesso em 29/4/2013.
91 – Planta da casa de tia Ciata (presumida). Reproduzida de Roberto Moura. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2a ed. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, p. 102.
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112 – Felisberto Sowzer, o Benzinho, s.d. Reproduzido de Air José de Souza de Jesus & Vilson Caetano de Souza Junior (orgs.). Minha vida é orixá, p. 92.
113 – Casa de João Alabá. A Noite, 18 de fevereiro de 1914.
114 – Lucílio de Albuquerque. Doceira baiana (óleo sobre tela), c. 1925. Disponível em . Acesso em 23/2/2015.
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118 – João da Bahiana, s.d. MIS – XV – Pasta de João da Bahiana (sem indicação da fonte original da imagem e sua data, presumivelmente anos 1940-1950). Reproduzida de Marc Hertzman. Making Samba. A new History of Race and Music in Brazil. Durham/Londres, Duke University Press, 2013, p. 33.
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120 – Hilário Jovino com familiares. Reproduzida de Ricardo Cravo Albin. MPB. A história de um século. Rio de Janeiro, Funarte, 1997, p. 173.
121 – Localização dos pontos mencionados no incidente com Hilário Jovino. Reproduzido de “Mapas da coleção Gotto. Rio de Janeiro, 1866”. Disponível em (detalhe).
122 – Getúlio Marinho (Amor), s.d. (Acervo de José Ramos Tinhorão). Reproduzida de Humberto Moraes Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
123 – Rancho Caprichosos da Estopa, s.d. Disponível em . Acesso em 2/12/14.
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126 – Membros da Guarda Nacional durante a Revolta da Armada. Disponível em . Acesso em 4/3/2014.
127 – João da Bahiana, s.d. Disponível em . Acesso em 29/4/2013.
128 – Baiaco com Nássara e Orestes Barbosa, 1933 (detalhe). Reproduzida de João Máximo & Carlos Didier. Noel Rosa, uma biografia, p. 208.
129 – Folha de Antecedentes de Baiaco. Reproduzida do processo criminal/5a Pretoria (1930). AN, 70.11584.
130 – Moreira da Silva, s.d. Disponível em . Acesso em 2/2/2015.
131 – Declaração do Dr. Ataliba Correa Dutra. Reproduzida do processo Corte de Apelação/5a Pretoria (1928). AN 70.8227.
132 – Certidão emitida pelo Dr. Ataliba Correa Dutra. Reproduzida do processo/5a Pretoria (1928). AN 70.8533.
133 – Coelho Neto, s.d. Disponível em . Acesso em 15/2/2015.
134 – Brancura na Casa de Detenção, década de 1920. Correio da Manhã. Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
135 – Petição apresentada pelo réu Sylvio Fernandes (Brancura). Reproduzida do processo/5a Pretoria (1927). AN 70.6844.
136 – Zé Pretinho, Orixá da falange dos malandros da umbanda carioca. Disponível em . Acesso em 10/2/2015.
137 – Madame Satã, s.d. Disponível em . Acesso em 3/2/2015.
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141 – Veículo de transporte policial. Disponível em .
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146 – Emiliano Di Cavalcanti. Mangue (grafite e aquarela sobre papel), 1929. Coleção particular.
147 – Lasar Segall. Mangue, c. 1925. Prancha do álbum Mangue, com 46 lâminas (desenhos), publicado pela Philo Biblion Livros de Arte (com textos de Mário de Andrade, Jorge de Lima e Manuel Bandeira). Rio de Janeiro, 1977.
148 – Augusto Malta. Morro de São Carlos, 1933. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
149 – Augusto Malta. Polacas, c. 1920. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
150 – Igreja do Espírito Santo no bairro do Estácio de Sá, c. 1950. Disponível em . Acesso em 10/2/2015.
151 – Augusto Malta. Escola Normal do Distrito Federal, no Estácio, c. 1914-1930. Acervo AGCRJ.
152 – Presídio Frei Caneca (Casa de Correção), no início do século XX. Disponível em . Acesso em 29/4/2013.
153 – Augusto Malta. Marinheiros no Mangue, MIS. Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
154 – Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da cidade projetados pelo prefeito do Distrito Federal, Dr. Francisco Pereira Passos. Rio de Janeiro, Typographia da Gazeta de Notícias, 1903. Acervo AGCRJ (detalhe).
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157 – Canal do Mangue. Publicada por Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
158 – Alcebíades Barcelos, o Bide, 1939. Publicada por Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
159 – Augusto Malta. Entrada do Morro de São Carlos, c. 1928. AGCRJ. Coleção Augusto Malta.
160 – Bucy Moreira, s.d. (Acervo de Walter Firmo). Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
161 – Tata Tancredo, s.d. Disponível em . Acesso em 29/4/2013.
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163 – Augusto Malta. Morro do Castelo, s.d. Disponível em . Acesso em 20/11/2014.
164 – Zé Espinguela, s.d. Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
165 – Largo do Estácio, c. 1920. Disponível em . Acesso em 29/4/2013.
166 – Bloco dos Arengueiros, c. 1920-1925. Disponível em . Acesso em 12/1/2015.
167 – Deixa Falar, 1928. Disponível em . Acesso em 29/4/2013 e em 12/1/2015.
168 – Seth (Álvaro Marins). Roda de botequim, c. 1930-1935. Disponível em . Acesso em 11/2/2015.
169 – Sinhô, 1928. Disponível em . Acesso em 28/1/2015.
170 – Os Oito Batutas, c. 1920. Disponível em . Acesso em 29/12/2014.
171 – Juvenal Lopes, s.d. (Acervo da Mangueira). Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
172 – Nilton Bastos, s.d. (Acervo de Juarez Barroso). Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
173 – Ismael Silva, 1929 (Acervo de Miguel Angelo de Azevedo). Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
174 – Café Nice, na Lapa. Disponível em . Acesso em 2/12/2014.
175 – Eduardo das Neves. O trovador da malandragem. Rio de Janeiro, Livraria Quaresma, 1926, capa.
176 – Marçal, s.d. Reproduzida de Ricardo Cravo Albin. MPB. A história de um século, p. 199.
177 – Mano Edgar (Acervo de Juarez Barroso). Publicada por Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
178 – Homero Dornellas, s.d. Disponível em . Acesso em 2/12/2014.
179 – Natal da Portela. Disponível em . Acesso em 2/12/14.
180 – Integrantes da Vizinha Faladeira. Disponível em . Acesso em 2/12/2014.
181 – Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Marçal, s.d. (Acervo de Heitor dos Prazeres Filho). Reproduzida de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio, CD anexo ao volume.
Fonogramas
Frontispício – Com que roupa? (Noel Rosa), 1930. Intérprete: Uliana Dias. Álbum: Pra querer ser feliz. Brasília, 2011, faixa 4.
1 – Com que roupa? (Noel Rosa), 1930. Intérprete: Noel Rosa. História da Odeon, 1902-1952, disco 2, faixa 8.
2 – A Favela vai abaixo (Sinhô), 1928. Gravação de Mário Reis. “Sinhô”, vol. 2, selo Revivendo, faixa 15.
3 – É batucada (Caninha e Visconde de Bicohyba), 1932-1933. Intérprete: Murilo Caldas. Selo Columbia.
4 – Samba de nego (Pixinguinha), 1928. Intérprete: Francisco Alves. Odeon.
5 – Festa de branco (Pixinguinha), 1928. Intérprete: Francisco Alves. Odeon.
6 – Preto e branco. (Augusto Vasseur, Luis Peixoto e Marques Porto). Intérpretes: Carmen Miranda e Almirante. Odeon, 1939 (em é possível ouvir a primeira gravação de 1930, com Araci Cortes, Odeon).
7 – Eu gosto da minha terra (Randoval Montenegro). Intérprete: Carmen Miranda. RCA, 1930 (incluído na coleção “Carmen Miranda”, RCA, 3 vols., CD 1, faixa 15).
8 – Marcha do Cordão Primavera, s.a. e s.d. Intérprete: Almirante, 1946. Disponível em .
9 – Cabeça de Porco (Anacleto de Medeiros). Intérprete: Banda do Corpo de Bombeiros. Odeon, 1904-1907.
10 – A vacina obrigatória, s.a. Intérprete: Mário Pinheiro. Odeon, 19041907.
11 – Morro da Favela (Pixinguinha). Intérprete: Grupo do Pixinguinha. Odeon, 1915-1921.
12 – Morro do Pinto (Pixinguinha). Intérprete: Grupo do Pixinguinha. Odeon, 1915-1921.
13 – Ó abre-alas. Chiquinha Gonzaga, s.d. Intérpretes: Carmélia Alves e Ellen de Lima. Instituto Cultural Itaú, 2014.
14 – Ponto de Ogum (domínio público). Intérpretes: Elói Antero Dias e Getúlio Marinho. Odeon, 1927-1930.
15 – Nosso ranchinho (Donga). Intérprete: Fernando. Odeon, 1921-1926.
16 – Pelo telefone (Donga, Mauro de Almeida). Intérprete: Bahiano. Odeon, 1915-1920.
17 – Se você jurar (Ismael Silva e Nilton Bastos). Intérprete: Mário Reis. Odeon, 1930.
18 – Gaúcho [Corta Jaca] (Chiquinha Gonzaga). Intérprete: Os Geraldos. Odeon, 1904-1907. Incluída no álbum 100 anos de música no Brasil – História da Odeon – 1902-1952, 3 vols., CD 1, faixa 4.
19 – Urubu (Pixinguinha). Intérprete: Os Oito Batutas. Victor, 1923.
20 – Dança do Urubu (domínio público). Intérprete: Bahiano. Odeon, 19151921.
21 – Patrão, prenda seu gado (Donga, João da Bahiana e Pixinguinha). Intérpretes: Almirante e Guarda Velha. Sinter, s.d.
22 – Quem são eles? Sinhô (J. B. da Silva). Intérprete: Bahiano, Odeon, 1918-1921.
23 – Deixa deste costume (Sinhô). Intérprete: Eduardo das Neves (fragmento). Odeon, 1919.
24 – O Vatapá (s.a.). Intérpretes: Mário Pinheiro e Pepa Delgado. Columbia, 1908-1912.
25 – Fala, meu louro (Sinhô). Intérprete: Francisco Alves, 1920. Incluído no álbum Sinhô, selo Revivendo, vol. 3, faixa 1.
26 – Quando a polícia chegar (João da Bahiana), s.d. Intérprete: Cristina Buarque. Disponível em .
27 – Samba em casa de baiana (s.a). Intérprete: Conjunto da Casa Faulharber. Favorite Record, 1910-1913.
28 – Foram-se os malandros (Donga). Intérpretes: Francisco Alves e Gastão Fromenti, 1928. Disponível em .
29 – Batuque na cozinha (João da Bahiana), s.d. Intérprete: João da Bahiana. Álbum Gente da antiga. Odeon, 1968, faixa 9. Disponível em .
30 – Arrasta a sandália (Baiaco e Aurélio Gomes). Intérprete: Moreira da Silva e Gente do Morro. Columbia, 1932. Incluído em Humberto Franceschi, A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro, Sarapuí, 2002, CD 4, faixa 13 – Ilustrações Musicais.
31 – Carinho eu tenho (Brancura). Intérprete: Ismael Silva. Odeon, 1931.
32 – Mulato bamba (Noel Rosa). Intérprete: Mário Reis. Odeon, 1932. Incluída também no álbum Noel pela primeira vez. Minc/Funarte, 2000, CD 4, faixa 14.
33 – Lenço no pescoço (Wilson Batista). Intérprete: Silvio Caldas. Victor, 1933.
34 – Rapaz folgado (Noel Rosa). Intérprete: Araci de Almeida. Victor, 1933. Incluído no álbum Noel pela primeira vez. Minc/Funarte, 2000, CD 11, faixa 5.
35 – Me faz carinho (Ismael Silva e Francisco Alves). Intérprete: Francisco Alves. Odeon, 1927-1928.
36 – O que será de mim? (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves). Intérpretes: Francisco Alves e Mário Reis. Odeon, 1931. Incluído em Humberto Franceschi, A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro, Sarapuí, 2002, CD 4, faixa 22 – Ilustrações Musicais.
37 – Antonico (Ismael Silva). Intérprete: Alcides Geraldi. Odeon, 1950. Incluído no álbum 100 anos de música no Brasil – História da Odeon – 1902-1952, 3 vols., CD 3, faixa 16.
38 – A malandragem (Bide). Intérprete: Francisco Alves. Odeon, 1928.
39 – General da banda (Tancredo Silva, Sátiro de Melo e José Alcides). Intérprete: Blecaute. Continental, 1949.
40 – O malandro (Eduardo das Neves). Intérprete: Mário Pinheiro. Odeon, 1907-1912.
41 – Na Pavuna (Homero Dornellas/Candoca da Anunciação). Intérprete: Almirante e Bando de Tangarás. Odeon, 1929. Incluído no álbum 100 anos de música no Brasil – História da Odeon – 1902-1952, 3 vols. CD 2, faixa 5.
42 – Ave de Rapina (Sinhô). Intérprete: Francisco Alves. Composto para o carnaval de 1924, gravado em 1930. Incluído no álbum Sinhô. Revivendo, vol. 1, faixa 8.
Estácio, CD anexo ao volume.
Vídeo
Frontispício – Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba. Trechos do documentário de Thomaz Farkas e Ricardo Dias. São Paulo, Superfilmes Thomaz J. Farkas, 2006. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=fhqAVEEezAw. Acessado em: 4/2/2015.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
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Diversões Públicas (1832-1869) – Códice 42-3-13
Diversões Públicas (1858) – Códice 42-3-17
Diversões Particulares (1870-1899) – Códice 42-3-19
Queixas e Reclamações (1890-1899) – Códice 49-1-43
Queixas e Reclamações (1900-1913) – Códice 49-1-62
Arquivo Edgard Leuenroth (AEL)
Livros de Ocorrências Policiais – Delegacias Urbanas do Rio de Janeiro (microfilmes)
9a DP – Santana (1904-1906)
14a DP – Santana (1925)
8a DP – Gamboa (1907-1925)
9a DP – Espírito Santo (1910-1925)
3a DP – Sacramento (1925)
4a DP – Tiradentes (1907-1910)
2a DP – Santa Rita (1907-1925)
11a DP – Saúde (1925)
Arquivo Nacional (AN)
Documentação de polícia
IJ6 – maços diversos (1915)
Grupo de Identificação de Fundos Internos (GIFI)
Secretaria da Polícia do Distrito Federal: Caixas 6C 69 (1901); 6C 89 (1901 e 1909); 6C 315 (1909); Caixa 6C 499 (1914).
Processos judiciais
1a, 2a, 3a, 5a, 8a e 13a Pretorias Criminais do Rio de Janeiro, 1902-1930.
5a, 7a e 10a Varas Criminais do Rio de Janeiro, 1927-1930.
Pretoria Criminal do Rio de Janeiro – 3o Juízo dos Feitos da Saúde Pública, 1906-1920 (6Z).
Fundo Jota Efegê
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A Noite (1911-1937)
A Voz do Trabalhador (1915)
Correio da Manhã (1905-1960)
Diário Carioca (1931-1936)
Fon-fon (1908-1910)
Gazeta de Notícias (1905-1907)
Jornal do Brasil (1913-1926)
Kosmos (1905-1907)
O Malho (1904)
O Paiz (1905-1912)
Revista da Semana (1900-1930)
Sans Dessous (1910)
2) Literatura e memória
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço [1890]. 20a ed. São Paulo, Ática, 1989.
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. 5a ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2009.
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SOBRE A AUTORA
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA é professora aposentada do Departamento de História e pesquisadora do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura (Cecult), ambos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp). É autora de O espelho do mundo – Juquery, a história de um asilo (Paz e Terra, 1986) e Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920 (Companhia das Letras, 2001), entre outros livros e artigos. Pela Editora da Unicamp, publicou, em 2002, a coletânea Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de história social da cultura.
A coleção Históri@Illustrada publica livros digitais com resultados de pesquisas situadas nas áreas da História Social e da Cultura que utilizam documentos textuais, iconográficos e sonoros. Ao unir texto, imagem e som na análise historiográfica, ela permite aos leitores um acesso direto, livre de mediações ou interferências, a fontes não textuais (como as músicas, as artes plásticas, a fotografia etc.), que constituem elementos essenciais para esta área de estudos – tarefa difícil de realizar em livros impressos. Além disso, enriquece a leitura com ilustrações capazes de dialogar com a narrativa, aumentando o envolvimento do leitor e tornando-a mais acessível para o público não especializado. A coleção ainda abre espaço para a difusão de recursos paradidáticos, ao oferecer, a cada volume, um pequeno audiovisual gratuito que condensa aspecto importante do tema abordado.
“NÃO TÁ SOPA”
SAMBAS E SAMBISTAS NO RIO DE JANEIRO, DE 1890 A 1930
Maria Clementina Pereira Cunha
ESTILO MODERNO
HUMOR, LITERATURA E PUBLICIDADE EM BASTOS TIGRE
Marcelo Balaban
DA SENZALA AO PALCO
CANÇÕES ESCRAVAS E RACISMO NAS AMÉRICAS, 1870-1930
Martha Abreu
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – CRB-8a / 5283
C914n
Cunha, Maria Clementina Pereira, 1949
“Não tá sopa” [recurso eletrônico]: Sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 / Maria Clementina Pereira Cunha – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2015.
Publicado em versão digital.
1. Samba – Rio de Janeiro (RJ). 2. Sambistas. 3. Escolas de samba – Rio de Janeiro (RJ). 4. Polícia – Rio de Janeiro (RJ). I. Título.
CDD -394.25098153
E-ISBN 978-85-268-1369-4
-780.4
-352.2098153
Índices para catálogo sistemático:
1. Samba – Rio de Janeiro (RJ) 394.25098153 2. Sambistas 780.4 3. Escolas de samba – Rio de Janeiro (RJ) 394.25098153 4. Polícia – Rio de Janeiro (RJ) 352.2098153
Copyright © by Maria Clementina Pereira Cunha Copyright © 2015 by Editora da Unicamp
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.
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Título
“Não tá sopa” Sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930
Autora
Maria Clementina Pereira Cunha
Assistente técnico de direção
José Emílio Maiorino
Coordenador editorial
Ricardo Lima
Secretário gráfico
Ednilson Tristão
Preparação dos originais e revisão
Lúcia Helena Lahoz Morelli
Projeto gráfico e design de capa
Ana Basaglia
Editoração eletrônica
Silvia Helena P. C. Gonçalves
Produção de eBook
Booknando Livros