Para o estudo comparativo de variedades do Português: Questões teórico-metodológicas e análises de dados 9783110670257, 9783110605129

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Portuguese Pages 309 [320] Year 2023

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Agradecimentos
Sumário
Apresentação
Seção 1 Dez anos do Projeto 21 – ALFAL
Capítulo 1 Projeto Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português: resultados e novas perspectivas
Seção 2 Variedades do Português: motivações sócio-históricas e linguísticas para a variação e a mudança
Capítulo 2 Diversidade dialetal em três comunidades lusófonas: questões linguísticas e sociais
Capítulo 3 Objetos diretos em variedades africanas do Português: um estudo de caso de microvariação
Capítulo 4 O infinitivo (não) flexionado em perífrases verbais do Português falado em Maputo: contributo do Corpus PMO
Capítulo 5 A variação no uso do artigo definido antes de possessivo em variedades africanas, brasileiras e europeias do Português contemporâneo: motivações internas e externas da gramaticalização
Seção 3 Para a análise de variedades linguísticas: aspectos metodológicos
Capítulo 6 Tradições discursivas e variação linguística: uma aproximação empírica aos fenômenos de inovação e conservação na língua
Capítulo 7 O estudo da fala de migrantes internos: desafios, procedimentos e resultados do Projeto Acomodação
Capítulo 8 A relevância da caracterização das comunidades lusófonas na investigação sociolinguística: foco em África
Capítulo 9 A regra de concordância verbal de terceira pessoa do plural no Português do Brasil e no Português Europeu: o papel da modalidade linguística
Capítulo 10 A constituição da Amostra Monguilhott para o estudo comparativo de variedades brasileiras e europeias do Português
Capítulo 11 O Projeto Concordância (ALFAL 21 / COMPARAPORT) e a investigação sobre o Português falado na Ilha da Madeira (2010–2021): uma abordagem sociolinguística
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Para o estudo comparativo de variedades do Português: Questões teórico-metodológicas e análises de dados
 9783110670257, 9783110605129

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Para o estudo comparativo de variedades do Português

Linguistica Latinoamericana

Editado por Dermeval da Hora, Carlos Garatea Grau, Uli Reich

Volumen / Volume 2

Para o estudo comparativo de variedades do Português

Questões teórico-metodológicas e análises de dados Editado por Silvia Figueiredo Brandão e Silvia Rodrigues Vieira

ISBN 978-3-11-060512-9 e-ISBN (PDF) 978-3-11-067025-7 e-ISBN (EPUB) 978-3-11-066789-9 ISSN 2628-3875 Library of Congress Control Number: 2023940020 Bibliographic information published by the Deutsche Nationalbibliothek The Deutsche Nationalbibliothek lists this publication in the Deutsche Nationalbibliografie; detailed bibliographic data are available on the internet at http://dnb.dnb.de. © 2023 Walter de Gruyter GmbH, Berlin/Boston Cover image: carmengabriela / iStock / Getty Images Plus Printing and binding: CPI books GmbH, Leck www.degruyter.com

Agradecimentos Uma obra da extensão e da profundidade na abordagem de temas diversos atinentes a variedades da Língua Portuguesa, como a que representa este volume, demanda não só competência acadêmica, mas sobretudo energia, foco e desejo de um conjunto de diversas pessoas, que, coletivamente, abraçaram a proposta e a ela se dedicaram com esmero. Não poderíamos deixar de expressar nossa sincera gratidão a todas elas. Agradecemos, então, aos que participaram da elaboração deste livro, que conta com a chancela da Editora De Gruyter. Em boa hora, a renomada editora acolheu a proposta – da parte de Dermeval da Hora Oliveira, Carlos Garatea Grau e Uli Reich – de organizar a Coleção Linguística Latinoamericana, que contempla projetos desenvolvidos no âmbito da Associação de Linguística e Filologia da América Latina/ALFAL, fundada em 1964. Primeiramente, destinamos nossa gratidão aos autores que, além de terem colaborado com atividades ao longo dos 10 anos de pesquisa do Projeto 21 – hoje intitulado Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português (COMPARAPORT) –, aceitaram, prontamente, não só contribuir, com sua expertise, para o debate de questões fundamentais ao estudo de variedades do Português, mas também atuar como avaliadores internos dos capítulos submetidos ao volume. Nossos agradecimentos estendem-se, do mesmo modo, aos pesquisadores externos à obra que emitiram pareceres, de modo a também avaliarem o mérito e a seleção dos textos apresentados nesta publicação: Albert Wall, Annette Endruschat, Benjamin Meisnitzer, Johannes Kabatek, Konstanze Jungbluth, Malte Rosemeyer, Martin Becker, Ronald Beline Mendes e Uli Reich. Reservamos um agradecimento muito especial ao Professor Uli Reich, um dos responsáveis pela edição da referida série, com quem nos reunimos remotamente em várias ocasiões e que muito contribuiu, juntamente com seu assistente estudantil, o mestrando Jan Potthoff, na solução de questões de natureza diversa que envolvem a organização de uma obra acadêmica. Enfim, fazemos votos de que a própria repercussão dos trabalhos no campo de difusão da ciência possa representar, por si mesma, a recompensa pelo empenho e pela dedicada participação de todos a quem ora agradecemos. As organizadoras

https://doi.org/10.1515/9783110670257-001

Sumário Silvia Figueiredo Brandão, Silvia Rodrigues Vieira Apresentação IX

Seção 1 Dez anos do Projeto 21 – ALFAL Silvia Rodrigues Vieira, Silvia Figueiredo Brandão Capítulo 1 Projeto Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias 3 do Português: resultados e novas perspectivas

Seção 2 Variedades do Português: motivações sócio-históricas e linguísticas para a variação e a mudança Gregory R. Guy Capítulo 2 Diversidade dialetal em três comunidades lusófonas: questões linguísticas e 31 sociais Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer Capítulo 3 Objetos diretos em variedades africanas do Português: um estudo de caso de microvariação 53 Maria Antónia Mota Capítulo 4 O infinitivo (não) flexionado em perífrases verbais do Português falado em Maputo: contributo do Corpus PMO 85 Laura Álvarez López, Matti Marttinen Larsson Capítulo 5 A variação no uso do artigo definido antes de possessivo em variedades africanas, brasileiras e europeias do Português contemporâneo: motivações internas e externas da gramaticalização 113

VIII

Sumário

Seção 3 Para a análise de variedades linguísticas: aspectos metodológicos Alfonso Gallegos Shibya Capítulo 6 Tradições discursivas e variação linguística: uma aproximação empírica aos 147 fenômenos de inovação e conservação na língua Livia Oushiro Capítulo 7 O estudo da fala de migrantes internos: desafios, procedimentos e resultados 171 do Projeto Acomodação Cássio Florêncio Rubio Capítulo 8 A relevância da caracterização das comunidades lusófonas na investigação sociolinguística: foco em África 197 Alexandre Monte Capítulo 9 A regra de concordância verbal de terceira pessoa do plural no Português do 225 Brasil e no Português Europeu: o papel da modalidade linguística Isabel Monguilhott, Izete Lehmkuhl Coelho Capítulo 10 A constituição da Amostra Monguilhott para o estudo comparativo de 247 variedades brasileiras e europeias do Português Aline Bazenga Capítulo 11 O Projeto Concordância (ALFAL 21 / COMPARAPORT) e a investigação sobre o Português falado na Ilha da Madeira (2010–2021): uma abordagem sociolinguística 275

Silvia Figueiredo Brandão, Silvia Rodrigues Vieira

Apresentação Integrando a importante Coleção Linguística Latinoamericana, este volume, que tem, entre seus objetivos, o propósito de registrar e celebrar a produtividade do Projeto 21 da Associação de Linguística e Filologia da América Latina/ALFAL – hoje intitulado Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português (COMPARAPORT) – em seus dez anos de contínua pesquisa, está organizado em três seções. A primeira, de natureza introdutória, oferece um panorama das investigações acerca de variedades do Português ao longo dos 10 anos do Projeto 21; a segunda reúne trabalhos que permitem refletir sobre as motivações sócio-históricas e linguísticas para as feições assumidas pelas referidas variedades, tomando por base um repertório de temas morfossintáticos; e, por fim, a terceira, em que se debatem relevantes questões de natureza metodológica relacionadas à representatividade da análise de dados sociolinguísticos, de modo a tornar possíveis a interpretação da formação histórica e/ou a compreensão dos padrões de variedades de uma língua. Na primeira seção, composta pelo capítulo Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português: resultados e novas perspectivas, Silvia Rodrigues Vieira e Silvia Figueiredo Brandão traçam a trajetória do Projeto 21 desde sua gênese, em 2008 – em projeto anterior, coordenado pelas referidas autoras e também pela Professora Maria Antonia Mota, da Universidade de Lisboa –, centrada em investigações acerca da concordância, tema que se manteve quando da sua incorporação, em 2011, aos grupos de pesquisa da ALFAL, até 2019, quando ampliou seu enfoque para outras variáveis morfossintáticas e fonéticofonológicas. O texto, inicialmente, além de apresentar o histórico do projeto, delineia seus objetivos, hipóteses, procedimentos metodológicos, bem como sintetiza as principais atividades desenvolvidas. Considerando os padrões investigados em variedades do Português, também oferece uma síntese de resultados de análises comparativas sobre concordância nominal e verbal empreendidas com o corpus compartilhado do projeto. O conjunto dos trabalhos mencionados permite demonstrar as contribuições em função não só do tratamento sociolinguístico do tema, mas sobretudo das reflexões dele advindas a respeito da formação de variedades linguísticas em sociedades colonizadas. Essas contribuições permitem propor a existência de dois padrões de concordância tanto nominal quanto verbal respaldados nas análises de amostras urbanas do Português Europeu, do Português do Brasil, do Português de São Tomé e do Português de Moçambique. Os resultados obtidos fazem constatar a necessidade de ampliar o escopo da investigação para outros fenômenos, de natureza morfossintática e fonético-fonológica, https://doi.org/10.1515/9783110670257-002

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Silvia Figueiredo Brandão, Silvia Rodrigues Vieira

que permitam avaliar, de forma sistêmica, o continuum de variedades do Português e constituir novas amostras de entrevistas sociolinguísticas com diferentes perfis de participantes. Segundo as autoras, só assim será possível aquilatar, com segurança, as motivações linguísticas e extralinguísticas que aproximam ou distanciam os espaços onde se fala uma língua pluricêntrica. Em última instância, os resultados trazidos pelo texto podem sustentar importantes processos de reconhecimento e estandardização adequados às feições de cada uma das variedades do Português, de modo a respeitar, a um só tempo, as línguas e os povos que as constituíram e constituem, em sua sócio-história local. A segunda seção¹ é constituída por quatro capítulos, que se concentram em motivações sócio-históricas e linguísticas que atuam para a variação e a mudança. No Capítulo 2 – Diversidade dialetal em três comunidades lusófonas: questões linguísticas e sociais –, Gregory Guy, da Universidade de Nova York, focaliza a realização do sujeito anafórico em análise comparativa de três variedades do Português: Lisboa (PE), São Paulo e Rio de Janeiro (PB). Examina o condicionamento da variação por fatores estruturais e sócio-históricos, e possíveis motivações para as condições observadas. Conforme o autor sistematiza na conclusão do texto, os resultados da pesquisa permitem apresentar os seguintes pontos centrais: (i) como os contextos linguísticos que condicionam a variação estão relacionados à estrutura gramatical de cada sistema, os efeitos de tais fatores não serão necessariamente comparáveis em dialetos/variedades ou línguas diferentes; (ii) como os fatores cognitivos que afetam a variação refletem características da mente humana, processos supostamente universais de produção e processamento da linguagem, eles não devem variar entre dialetos/variedades e línguas; (iii) tendo em vista que a distribuição social de uma variável é intimamente determinada pelas normas e práticas da comunidade, com expressões de identidade e a comunicação de significados sociais, não se deve esperar que sejam plenamente comparáveis em comunidades diferentes. Com base nessas considerações, o autor propõe que a diferença dialetal principal entre PB e PE – a redução maciça no Brasil no uso do sujeito nulo e o aumento correspondente do pronome pleno – não pode ser explicada por fatores relacionados nem especificamente ao sistema pronominal, nem aos contextos de uso, exigências comunicativas ou práticas sociais atuais. Desse modo, sugere que a origem da diferença residiria no passado, refletindo o chamado processo de transmissão irregular que predominou na formação da variedade brasileira do Português.

1 Cabe destacar, aqui, que as informações relativas a cada capítulo estão baseadas ora em sínteses apresentadas pelos próprios autores (como no caso dos capítulos 3, 4, 5, 6, 10 e 11), ora em fragmentos dos próprios textos (como no caso dos demais capítulos), com as devidas adaptações.

Apresentação

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No Capítulo 3 – Objetos diretos em variedades africanas do Português: um estudo de caso de microvariação –, Tjerk Hagemeijer, Rita Gonçalves e Inês Duarte, da Universidade de Lisboa, propõem-se descrever, quantificar e discutir a variação existente na expressão do objeto direto no português urbano falado em Moçambique (PM), Angola (PA) e São Tomé e Príncipe (PST). Os dados dos corpora orais analisados mostram que os verbos monotransitivos são predominantemente transitivos diretos, não se observando reestruturação das grelhas argumentais. Na pronominalização, especialmente de objetos de terceira pessoa, por outro lado, a variação e reestruturação são substanciais, destacando-se o traço [animacidade]. A fragilidade fonética do clítico acusativo o(s)/a(s) originou a retenção de formas mais robustas: o alomorfe -lo(s)/-la(s), o clítico lhe(s), de ocorrência generalizada no PA e no PM, e o pronome tónico ele(s)/ela(s), no PST e no PM, neste último introduzido por a. Os autores atribuem estas propriedades à convergência com o Português Europeu e com as diferentes línguas de contato. Eles propõem que: (i) o uso de lhe(s) no PA e no PM resulta da subespecificação do traço de caso, desencadeada simultaneamente pelo sincretismo acusativo/dativo no Português e pelo sincretismo observável na retoma anafórica do Bantu; (ii) que a proeminência do pronome tônico no PST se deve ao contato com o Forro; e (iii) que a reanálise do redobro do clítico do Português, induzida por propriedades sintático-semânticas do Changana, está na base dos pronomes oblíquos do PM. Os dados mostram, ainda, que a variação está correlacionada, em termos sociais, com o nível de escolarização. Em suma, trata-se de importante contribuição para a interpretação das feições de variedades do Português constituídas socio-historicamente em situação de contato interlinguístico. No Capítulo 4 – O infinitivo (não) flexionado em perífrases verbais do Português falado em Maputo: contributo do Corpus Moçambique-Port –, Maria Antónia Mota, da Universidade de Lisboa, ressalta que, no Português de Moçambique, ocorrem infinitivos flexionados em estruturas como eles conseguem/preferem/devem/podem telefonarem. Gonçalves (2013) considera que essas construções ilustram uma das particularidades morfossintáticas do PM, em termos de produtividade, comparativamente ao PE. Estas construções constituem um desafio no que tange a explicar a flexão do segundo verbo, quer se trate de completivas de infinitivo, quer de perífrases com semiauxiliares modais. Passados vinte anos sobre as recolhas e a divulgação dessas construções (Gonçalves 1997, por exemplo), interessa reavaliar o fenômeno, verificar se dados contemporâneos apresentam novas evidências contribuindo para a explicação da flexão e da reanálise das perífrases com semiauxiliares modais. O Corpus Moçambique-Port, recolhido por Silvia Rodrigues Vieira e Karen Pissurno, é a mais recente fonte de dados contemporâneos. Não tendo sido ainda explorado quanto ao tópico em causa, é com base nele que, numa primeira abordagem da questão, a autora avalia a produtividade do infinitivo

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Silvia Figueiredo Brandão, Silvia Rodrigues Vieira

flexionado e contrasta comportamentos morfossintáticos. Os resultados revelam que a flexão do infinitivo não se alargou a outros semiauxiliares modais (sendo poder o verbo que mais favorece a construção) e que a estrutura interna das perífrases não se alterou. Por outro lado, a pesquisa efetuada mostra que a flexão do infinitivo se enquadra numa dinâmica mais alargada, de reanálise das perífrases, em geral. Como se pode observar, a autora, além de sintetizar importantes hipóteses explicativas disponíveis sobre a flexão em causa, apresenta dados atualizados que representam relevantes contributos para a discussão. No Capítulo 5 – A variação no uso do artigo definido antes de possessivo em variedades africanas, brasileiras e europeias do Português contemporâneo: motivações internas e externas da gramaticalização –, Laura Álvarez López, da Universidade de Estocolmo, e Matti Marttinen Larsson, da Universidade de Estocolmo e da Universidade Humboldt de Berlim, estudam a realização variável do artigo definido diante de pronomes possessivos que precedem nomes, como em meu livro/o meu livro. Com base na análise quantitativa multivariada de cerca de 4000 dados sincrônicos do Corpus do Português: Web/Dialetos (Davies 2016, online) provenientes de Angola, Brasil, Moçambique e Portugal, descrevem os padrões da variação em cada país conforme uma série de variáveis linguísticas previsoras e comparam a extensão em que o emprego do artigo se generaliza em cada variedade dependendo do contexto linguístico. A partir dessa relevante abordagem comparativa de dados, foi possível propor o desenvolvimento diacrônico da variação. De modo geral, os resultados do estudo indicam que, nas estruturas analisadas, o artigo definido se comporta basicamente da mesma forma nas três variedades não-europeias. As autoras constatam que, nas duas variedades africanas, o processo de gramaticalização que levou ao uso quase categórico do artigo no Português Europeu, se mostra mais avançado do que no Brasil. Tendo verificado as divergências quanto ao grau de gramaticalização, os resultados ainda revelam que há convergência entre todas as variedades nacionais relativamente ao percurso da gramaticalização. A terceira seção reúne seis capítulos que debatem relevantes questões de natureza metodológica – relacionadas sobretudo a fatores e instrumentos para a observação de dados e para a composição de amostras bem constituídas – de modo a contribuir com a compreensão e análise de variedades linguísticas. No Capítulo 6 – Tradições discursivas e variação linguística: uma aproximação empírica aos fenômenos de inovação e conservação na língua –, Alfonso Gallegos Shybia, da Universidade de Guadalajara, demonstra que as chamadas tradições discursivas podem ser entendidas como modelos histórico-contingentes de elaboração e recepção de textos. Elas representam configurações discursivas que, embora ultrapassem os limites das línguas individuais, dentro delas selecionam – pelo menos parcialmente – variantes idiomáticas específicas. Nesse sentido, seu artigo

Apresentação

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trata da relação entre as tradições discursivas e o desenvolvimento diacrônico de variedades linguísticas, partindo da hipótese de que as tradições discursivas podem não só favorecer o surgimento de alguns elementos linguísticos no interior das formas de fala a que estão associados, mas também manter outros elementos que fora dessas variedades linguísticas podem não ser mais produtivos (ou não na mesma medida). Para exemplificar esses dois fenômenos, o autor analisa um corpus de textos técnicos e jurídicos provenientes de diferentes fases do espanhol – análise aplicável, por princípio, a qualquer língua considerada como objeto de estudo. Os resultados do trabalho permitem ressaltar a relevância que a interrelação entre as tradições discursivas e as variedades linguísticas têm para as pesquisas sobre linguística histórica e consequente compreensão dos processos de variação e mudança linguística. No Capítulo 7 – O estudo da fala de migrantes internos: desafios, procedimentos e resultados do Projeto Acomodação –, Livia Oushiro, da Universidade de Campinas, considerando a fala urbana da cidade de São Paulo, dispensa a necessária atenção ao tema do contato dialetal, tema que ainda carece de análises aprofundadas que possibilitem sistematizações e generalizações de ordem sociolinguística. Buscando contribuir com essa demanda, o capítulo tem por objetivo apresentar os desafios teórico-metodológicos que circundam o estudo da fala de migrantes, os procedimentos empregados no chamado Projeto Acomodação – desenvolvido pelo grupo de pesquisas VARIEM-UNICAMP (Laboratório Variação, Identidade, Estilo e Mudança) – com vistas a um tratamento adequado dessas questões, assim como alguns dos resultados de pesquisas realizadas com base nas amostras do referido projeto. De modo geral, o texto oferece orientação para decisões metodológicas alinhadas às questões de pesquisa, o que inclui o cuidado com a composição de amostras, a precaução com o que se pode interpretar dos dados de que se dispõe, assim como a busca e o desenvolvimento de novas ferramentas de análise. Por fim, a seção final do capítulo, com base no resumo dos procedimentos do Projeto Acomodação, destaca que o estudo comparativo de variedades do Português se beneficiará sobremaneira da expansão dos estudos sociolinguísticos com base em múltiplas amostras de fala, por meio de trabalhos coletivos, e que busquem se atualizar na utilização de novas ferramentas de tratamento de dados. No Capítulo 8 –– A relevância da caracterização das comunidades lusófonas na investigação sociolinguística –, Cássio Florêncio Rubio, da Universidade Federal de São Carlos, apresenta uma caracterização sociolinguística preliminar de uma amostra de falantes universitários dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - PALOP (Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde), com foco em alguns aspectos que envolvem o contato entre línguas, o emprego das diferentes línguas nos territórios, o perfil sociolinguístico e a confi-

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Silvia Figueiredo Brandão, Silvia Rodrigues Vieira

guração de fatores sociais tidos como não clássicos, como, por exemplo, etnia. O texto, fundamentado em estudos anteriores e na Sociolinguística Variacionista, apresenta, inicialmente, aspectos da realidade vivenciada nos PALOP, com foco nas situações relacionadas ao multilinguismo. Em seguida, com base em inquéritos submetidos a falantes universitários, apresenta uma caracterização sociolinguística de dados relacionados a fatores como etnia, primeira língua, língua dos pais, língua de emprego e línguas em contato, dentre outros fatores. De forma sucinta, o estudo observa que, não obstante o fato de as referidas nações serem excolônias portuguesas e possuírem o Português como língua oficial, realidades distintas e complexas nos territórios são instanciadas por motivações sócio-históricas particulares. O panorama sociolinguístico geral traçado a partir das respostas dos entrevistados também possibilitou a separação dos PALOP em grupos, segundo os contextos de aquisição da língua e a maior ou menor preservação étnica local, de modo a possibilitar atentar para realidades sociolinguísticas peculiares considerando a coocorrência do Português com diversas outras línguas. No Capítulo 9 – A regra de concordância verbal de terceira pessoa do plural no Português do Brasil e no Português Europeu: o papel da modalidade linguística –, Alexandre Monte, da Universidade do Estado de São Paulo/Araraquara, focaliza, com base na Sociolinguística Variacionista de inspiração laboviana, a concordância verbal de terceira pessoa de plural no Português Brasileiro e no Português Europeu, buscando verificar em que medida o estatuto variável da regra, tanto na modalidade falada quanto na modalidade escrita, poderia ser postulado para as duas variedades. Nesse sentido, destaca, como elemento essencial à sua análise, a proposta de Labov (2003), que sugere a existência de três tipos de regras linguísticas: as categóricas (que sempre se aplicam), as semicategóricas e as variáveis (as que implicam alternância de formas). O conjunto de resultados da investigação permite aferir, tomando em consideração metodologicamente o fator referente à modalidade discursiva, falada ou escrita, padrões de concordância verbal efetivamente distintos no PB e no PE. Não se trata, apenas, de tendências diferentes no plano quantitativo – segundo o qual se confirmou o comportamento da variedade europeia sempre semicategórico, e o brasileiro, variável, tendo apenas algumas manifestações semicategóricas em contextos escritos altamente monitorados –, mas sobretudo preferências distintas em termos qualitativos: enquanto o PE registra a não marcação de plural em contextos morfossintáticos bastante específicos, muitos deles relacionados, por hipótese, a motivações cognitivas, o PB apresenta variação de modo geral, em grande diversidade de estruturas e contextos. No Capítulo 10 – A constituição da Amostra Monguilhott para o estudo comparativo de variedades brasileiras e europeias do Português –, Isabel Monguilhott e Izete Lehmkuhl Coelho, da Universidade Federal de Santa Catarina, compartilham as experiências de constituição da Amostra Monguilhott para o estudo compara-

Apresentação

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tivo de variedades brasileiras e europeias do Português. Para tanto, discutem os axiomas metodológicos labovianos (Labov 2008 [1972]) levados em conta na constituição da referida amostra, que é formada por entrevistas sociolinguísticas com 16 informantes do Português Brasileiro (PB) de Florianópolis e 16 informantes do Português Europeu (PE) de Lisboa. Além disso, com base na caracterização das localidades investigadas, ressaltando seus distintos perfis geográfico, social e econômico, as autoras buscam refletir sobre as particularidades de cada região, sobre o impacto de fatores externos como idade e escolaridade, além de atentarem para as redes sociais dos informantes na análise comparativa do fenômeno linguístico da variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural (Monguilhott 2009). Esse conjunto de fatores, posto em debate, possibilita observar a complexidade que envolve a formação e as feições de variedades do Português, constituídas em condições socioculturais distintas, complexidade que precisa, em alguma medida, ser metodologicamente considerada nos trabalhos sociolinguísticos de natureza comparativa. No Capítulo 11 – O Projeto ALFAL 21/COMPARAPORT e a investigação sobre o Português falado na Ilha da Madeira (2010–2021): uma abordagem sociolinguística –, Aline Bazenga, da Universidade da Madeira, descreve a importância do Projeto Padrões de Concordância em variedades europeias, brasileiras e africanas do Português para o desenvolvimento da investigação sobre variedades madeirenses do Português Europeu, no âmbito da abordagem sociolinguística laboviana. A relevância gerada pelo referido projeto é apresentada sob duas perspectivas. Na primeira, abordam-se questões centradas na criação de um protocolo metodológico de referência seguido para a constituição de corpora de dados orais de variedades do Português. Esse protocolo permitiu o desenvolvimento de coleta de dados orais da variedade madeirense do PE e a sua disponibilização online, em formato open access. Na segunda parte, a autora apresenta a investigação realizada com base na fala madeirense, tendo por foco fenômenos morfossintáticos variáveis, numa perspectiva comparativa, e, ainda, apresenta trabalhos em que se analisam as percepções e avaliações produzidas por falantes madeirenses, a partir da participação em inquéritos e questionários. Os resultados das investigações evidenciam, em sua generalidade, a singularidade da morfossintaxe e da sintaxe das variedades madeirenses do PE, permitindo debater a fronteira entre variedades – europeias e extraeuropeias – do Português, o que contribui para atenuar a polaridade entre elas e traçar um continuum mais regular. Como se pode observar, a diversidade de temas e abordagens apresentadas na obra permite aquilatar a importante contribuição que os trabalhos desenvolvidos no âmbito do Projeto 21 da ALFAL ofereceram e continuarão a oferecer à comunidade científica, sobretudo no campo da análise contrastiva de variedades do Português, dentro da grande área dos estudos sociolinguísticos, considerando as

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Silvia Figueiredo Brandão, Silvia Rodrigues Vieira

similaridades e as dessemelhanças que configuram os diversos territórios onde se fala a língua portuguesa (e tantas outras línguas). Esperamos, assim, que a leitura deste volume colabore com aqueles que se ocupam não só de análises comparativas das referidas variedades, mas também de relevantes questões metodológicas que permitam interpretações seguras acerca das motivações linguísticas e extralinguísticas que condicionam os processos e os caminhos da variação e mudança sociolinguística.

Seção 1 Dez anos do Projeto 21 – ALFAL

Silvia Rodrigues Vieira, Silvia Figueiredo Brandão

Capítulo 1 Projeto Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português: resultados e novas perspectivas 1 Introdução O Projeto 21, hoje intitulado Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português – COMPARAPORT, constitui um desdobramento do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias do Português (doravante Projeto Concordância), desenvolvido, no período de 2011 a 2018, no âmbito da Associação Internacional de Linguística e Filologia da América Latina (ALFAL), sob a coordenação de Silvia Rodrigues Vieira e Silvia Figueiredo Brandão, ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como sugere o próprio título, o Projeto, com base principalmente no tratamento dos padrões de concordância nominal e verbal, desenvolveu, em duas fases complementares (de 2011 a 2014; de 2015 a 2018) e mediante diferentes enfoques teórico-metodológicos, análises de corpora de perfil sociolinguístico que permitiram comparar as referidas variedades do Português. O Projeto Concordância, por sua vez, deu continuidade à investigação desenvolvida no Programa de Cooperação Internacional Brasil-Portugal CAPES/FCT (2008–2011), coordenado por Maria Antónia Mota, da Universidade de Lisboa, e Silvia Rodrigues Vieira, da UFRJ. A equipe, de que faziam parte pesquisadores brasileiros e estrangeiros, foi responsável pelo início da constituição do chamado Corpus Concordância (coordenado por Silvia Vieira e Maria Antónia Mota) e desenvolveu amplo estudo do fenômeno, atentando para a determinação dos parâmetros que caracterizam e delimitam variedades do Português. Esta produtiva trajetória, que abarca dez anos de contínua pesquisa, ensejou não só a diversificação de abordagens teórico-descritivas, mas também a necessária abrangência de diferentes variedades do Português. Diversas produções bibliográficas demonstram que os resultados das investigações em suas diferentes fases têm contribuído substancialmente para aprofundar o conhecimento sobre as variedades africanas, brasileiras e europeias do Português, por meio de estudos, de Silvia Rodrigues Vieira – Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq/FAPERJ Silvia Figueiredo Brandão – Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq https://doi.org/10.1515/9783110670257-003

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Silvia Rodrigues Vieira, Silvia Figueiredo Brandão

natureza contrastiva, sobre a concordância em sua relação com os diversos temas e níveis gramaticais. Dada a vitalidade do grupo de trabalho, planejou-se a terceira fase das atividades (a partir de 2019), de modo que, ampliando seus objetivos, o Projeto 21 (COMPARAPORT) passasse a focalizar, ainda segundo diferentes perspectivas, diversas variáveis morfossintáticas (entre elas, a concordância) e fonético-fonológicas, sempre priorizando a determinação dos parâmetros/padrões que caracterizam e delimitam variedades do Português. Para dar conta da trajetória do Projeto 21 da ALFAL, em suas fases iniciais (2011–2014 e 2015–2018), apresentam-se os objetivos, hipóteses, procedimentos e atividades desenvolvidas (Seção 2), os principais resultados das pesquisas, que demonstram os avanços metodológicos e teórico-descritivos alcançados (Seção 3), e, nas considerações finais, as metas para o desenvolvimento do Projeto COMPARAPORT, iniciado em 2019.

2 Histórico do Projeto 21 da ALFAL Antes de se discutirem os resultados alcançados, apresenta-se um breve relato não só dos parâmetros que vêm fundamentando as análises, mas também das reuniões de trabalho que ensejaram a paulatina incorporação de novas perspectivas.

2.1 Objetivos, hipóteses, procedimentos metodológicos O Projeto Concordância, em suas duas primeiras fases, visou, fundamentalmente, a realizar análises referentes à variável morfossintática concordância, de modo a estabelecer padrões variáveis representativos de variedades do Português, procedimentos que poderiam concorrer para determinar a possível coexistência de diferentes perfis gramaticais nos países que o têm como língua oficial. Na variedade brasileira do Português (PB) – e possivelmente nas variedades africanas –, os diferentes padrões de concordância plena – como em (1) – e variável – como, entre outros, em (2) – são objeto de valoração social, tendo este último caráter estigmatizante. (1) Todos os meus amigos são simpáticos. (2) Meus filhoØ gostaØ daquelas duas novelaØ brasileiraØ. Nesse sentido, mostrou-se fundamental desenvolver estudos que, partindo das especificidades observadas nas variedades europeias, brasileiras e africanas, fornecessem indícios de maior proximidade entre as duas últimas em oposição às

Capítulo 1

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primeiras, hipótese que poderia concorrer, ainda, para os debates sobre as origens do PB, que se fundamentam em duas vertentes principais: a da deriva e a do contato multilinguístico. Assim, foram-se definindo os principais objetivos do projeto: (i) determinar o estatuto da regra – categórica, semicategórica, variável (Labov 2003) – nas diferentes variedades; (ii) avaliar as motivações das diferenças observadas, considerando condicionamentos linguísticos e sociais; (iii) buscar explicações para o conjunto dos fenômenos observados, à luz dos princípios subjacentes a diferentes variedades e dos comportamentos específicos de cada uma delas; (iv) determinar tendências de mudança linguística; e, com base no cumprimento dos objetivos anteriores, (v) traçar, do ponto de vista intercontinental, os padrões que caracterizam as variedades, observando a diferenciação e os continua intra e interlinguísticos. Esse conjunto de proposições norteia-se, fundamentalmente, pelos pressupostos da Teoria da Variação e Mudança (Weinreich, Labov e Herzog 1968; Labov 1972, 2003), complementados, quando necessário, por outras perspectivas, e leva em conta, ainda, o princípio do Uniformitarismo (Labov 1972). Segundo esse princípio, as forças que concorrem, no presente, para a variação e a mudança linguísticas são do mesmo tipo das que operaram no passado. Para a verificação dessa realidade em dados de variedades do Português, foi necessário organizar amostras que permitiram não só testar as diferentes hipóteses, controlando variáveis linguísticas e sociais, mas também dar conta, a um só tempo, da caracterização dos padrões em variação, das implicações sociais neles embutidas e de possíveis processos de mudança. Assim, a formação continuada de bancos de dados, de perfil sociolinguístico, iniciada já no período de 2008 a 2011, constituiu objetivo particular da equipe do projeto, uma vez que se prosseguiu na organização e no tratamento de corpora, na medida do possível, comparáveis, sem desconsiderar as diferentes realidades socioeconômicas e históricas das comunidades focalizadas. A coordenação do Projeto 21 já contava, em 2011, com amostras representativas das variedades urbanas de Lisboa, Cacém e Funchal, para o Português Europeu/PE, da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, para o Português do Brasil/PB (Vieira e Mota: Corpus Concordância). A amostra referente a São Tomé, pertencente ao Projeto Variedades do Português (VAPOR), do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, foi incorporada ao banco de dados analisado a partir de 2009, data de sua constituição; as demais foram organizadas entre 2008 e 2011. Dando continuidade à formação de corpora, em 2016, somou-se aos demais o

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Corpus Moçambique-PORT (organizado por Silvia Vieira e Karen Pissurno) recolhido em Maputo, e que já foi objeto de análises realizadas a partir de 2017.¹ Além dos bancos de dados mencionados, deve-se ressaltar que, nas análises realizadas de 2011 até 2018, pesquisadores diversos, que frequentaram parte dos encontros da equipe ou integraram o projeto em todas as fases, também levaram em conta outros corpora particulares, de caráter rural ou urbano, segundo critérios e objetivos específicos das pesquisas a que se filiam.² Os resultados obtidos nas já referidas duas etapas (2011 a 2014 e 2015–2018) de desenvolvimento do Projeto Concordância foram progressivamente expostos nas atividades desenvolvidas ao longo desses anos, que se relatam na subseção a seguir.

2.2 Atividades desenvolvidas O primeiro encontro da equipe do projeto deu-se em Alcalá de Henares, na Espanha, durante o XVI Congresso Internacional da ALFAL e contou com a apresentação de 16 comunicações produzidas por 20 pesquisadores de diferentes universidades que focalizaram o PB, o PE e o Português de São Tomé (PST) e se inseriram em quatro eixos temáticos: concordância verbal; concordância nominal interna ao SN e em estruturas predicativas; concordância e temas afins relacionados ao sujeito; e concordância em estruturas verbais específicas. Dos debates realizados, foram planejadas as seguintes ações para o primeiro triênio: a montagem de quatro equipes para o tratamento dos subtemas; estabelecimento de questões a serem respondidas pelas equipes; adoção de um corpus comum aos

1 Como parte de trabalhos desenvolvidos no Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, outras amostras vêm sendo constituídas, como, por exemplo: o Corpus Moçambique-online (Vieira, Pissurno e Costa – cf. Pissurno, 2022; Costa, 2022), Corpus RJ Rural-Urbano (Vieira, Corrêa e Souza – cf. Corrêa, 2019), dentre outros. 2 Entre tais corpora, que serviram de base para análises de variedades brasileiras africanas e/ou europeias do Português, podem-se citar as amostras constituídas por Isabel de Oliveira e Silva Monguilhot (fala de Florianópolis/Santa Catarina – Ribeirão da Ilha, Costa da Lagoa, Ingleses e Centro, Brasil, e Lisboa – Cascais, Sintra, Belém e Centro, Portugal), Cássio Florêncio Rubio (fala do Interior Paulista – Projeto Iboruna; fala portuguesa – Corpus de Referência do Português Contemporâneo), Alexandre Monte (fala de São Carlos, no Estado de São Paulo, e de Évora, Portugal), Aline Bazenga (Corpus Sociolinguístico de Funchal – CSF), Lívia Oushiro e Ronald Beline (fala paulistana – Projeto SP2010), Silvana Farias Araujo (fala de Feira de Santana, Bahia – Projeto A língua portuguesa do semiárido baiano – Fase 3; fala de Luanda, Angola – Projeto Em busca das raízes do Português Brasileiro, com corpus organizado entre 2008 e 2013).

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trabalhos a ser disponibilizado em site³ vinculado à UFRJ e organizado pela coordenação do projeto; e a realização de um ALFALito⁴ no Rio de Janeiro/Brasil. O mencionado ALFALito teve lugar durante o Congresso Internacional da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – CIFALE/2013 e contou com a apresentação de 12 trabalhos relativos aos subtemas definidos em Alcalá de Henares, que buscaram responder, basicamente, às seguintes questões: (i) que estruturas são efetivamente variáveis em cada variedade do Português?; (ii) no caso do tratamento da expressão morfofonológica da concordância verbal e nominal, quais são as realizações fonéticas das desinências em questão?; e (iii) qual é a efetiva relação entre a concordância e cada subtema ou recorte temático estudado em cada variedade do Português? O terceiro encontro ocorreu em 2014 por ocasião do XVII Congresso Internacional da ALFAL, em João Pessoa, e contou também com 12 trabalhos. Do evento participou, como convidada do projeto, a Profa. Dra. Perpétua Gonçalves, da Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, que, além de atuar como debatedora das pesquisas apresentadas, ministrou um curso sobre a variedade moçambicana do Português. Como nos eventos anteriores, a equipe se reuniu para definir os tópicos de futuras pesquisas e, dessa vez, também para avaliar as atividades realizadas no primeiro triênio. Dentre as principais decisões para o novo triênio, podem-se ressaltar as seguintes: a formação de quatro subequipes, de acordo com a estrutura a ser contemplada na investigação – concordância verbal de primeira e de terceira pessoas, concordância nominal, estruturas com os verbos ter e haver; a divulgação de contatos dos integrantes do grupo, para a construção de um fórum permanente de discussão e troca de materiais; e a organização de um número dos Cadernos da ALFAL, reunindo artigos baseados nas comunicações apresentadas no âmbito do projeto. A segunda etapa (2015–2018) inaugurou-se com o que acabou por constituir o primeiro número em Português dos Cadernos da ALFAL (Cf. Vieira e Brandão, 2015, https://www.mundoalfal.org/es/pt_Caderno7). Dele constam doze artigos com a participação de quatorze autores vinculados a nove universidades, sendo sete brasileiras, uma europeia e uma moçambicana. Nessa publicação, nove artigos focalizaram a concordância em diferentes variedades do Português, não só apre-

3 O site inicial, www.concordancia.letras.ufrj.br, foi desativado por motivos operacionais. Para acesso aos bancos de dados, pode-se consultar, hoje, o site www.corporaport.letras.ufrj.br, espaço relativo a projetos diversos das então coordenadoras do Projeto 21. 4 ALFALitos são reuniões regionais de sócios da ALFAL, que se desenvolvem durante o período intermediário entre congressos e que são convocadas com uma temática comum, com o objetivo de estimular e manter o vínculo entre a Associação e seus membros – assim como entre eles –, mediante um debate científico que mobilize os sócios de uma área geográfica.

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sentando resultados, por vezes de cunho comparativo, mas também discutindo questões de ordem metodológica: (i) concordância nominal no âmbito do SN, (1) no Português Moçambicano/PM (Perpétua Gonçalves); (2) no PB, no PE e no PST (Silvia Figueiredo Brandão), (3) na variedade brasileira da cidade de São Paulo (Lívia Oushiro); e no âmbito dos predicativos do sujeito e estruturas passivas, na variedade brasileira de Poções e Santo Antônio de Jesus, na Bahia (Vivian Antonino); (ii) concordância verbal (1) de terceira pessoa do plural, (a) no Português de Angola e no de Cabo Verde (Maria Antónia Mota); (b) em variedades do PB e do PE (Silvia Rodrigues Vieira); (c) na fala brasileira da cidade de São Carlos, no interior do Estado de São Paulo, e na variedade europeia de Évora, no Alentejo, sul de Portugal (Alexandre Monte); (2) de primeira pessoa do plural em variedades do PB e do PE, tratando da alternância pronominal entre nós e a gente e da concordância verbal relacionada a essas formas pronominais (Cássio Florêncio Rubio); (3) de primeira e, mais detalhadamente, de terceira pessoa do plural, na fala brasileira de Feira de Santana, na Bahia, e no PE rural (Silvana Silva de Farias Araujo). Três artigos trataram do fenômeno da concordância em construções morfossintáticas específicas: (i) construções existenciais com “ter” e “haver” e concordância verbal nas modalidades escrita e oral, no último caso com base em dados selecionados do Corpus NURC-RJ e do Corpus Concordância, considerando Portugal, Brasil e São Tomé (Dinah Callou, Priscila Batista e Érica Almeida); (ii) uso do elemento flexional de terceira pessoa do plural em construções com “se” no PE e no PST (Ângela Bravin dos Santos); e, ainda, (iii) um panorama da norma de flexão verbal de número em construções com se apassivador/indeterminador (Márcia dos Santos Machado Vieira). O quarto encontro da equipe aconteceu durante a realização, em 2017, do XVIII Congresso Internacional da ALFAL, em Bogotá, na Colômbia, e foi dedicado à discussão das pesquisas, tendo como foco dos debates dois subtemas. No âmbito do primeiro subtema – critérios para coleta de dados e definição de variáveis e seus fatores para o estudo da concordância nominal –, empreendeu-se produtiva discussão de natureza metodológica com base em cinco questões previamente estabelecidas: (i) que dados não coletar para fins de quantificação?; (ii) para proceder à análise contrastiva e à caracterização de variedades do Português, que estruturas permitem comparar os padrões de concordância em questão: todas ou apenas formas a partir do segundo constituinte do SN?; (iii) pode-se falar em dados de concordância tanto na análise atomística quanto na não atomística?; (iv) em que medida as realizações fonéticas das formas nominais afetam os resultados da concordância e como tratá-las na variável saliência fônica?; e (v) que aspectos podem ser adotados para inovar na abordagem do tema da concordância, e, assim, promover efetivos avanços?

Capítulo 1

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Quanto ao segundo subtema – critérios para o estudo de variedades africanas do Português como L1 e/ou L2 –, a discussão girou em torno de três questionamentos: (i) em que medida se pode utilizar a estratificação social clássica para estudos de variedades africanas do Português?; (ii) que variáveis sociais efetivamente interessam à investigação de variedades africanas?; e (iii) em que medida e segundo que pressupostos se aplicaria a hipótese de um continuum afrobrasileiro à constituição de variedades do Português? Além disso, definiram-se os temas que merecem investimento especial para que se avance no conhecimento dos padrões de concordância em variedades do Português, entre eles: (i) a definição dos padrões de concordância: abordagem contrastiva de resultados; (ii) a percepção dos padrões de concordância pelas diversas comunidades de fala: avaliação, crenças e atitudes; e (iii) a descrição dos padrões de concordância em situações de contato interlinguístico, sobretudo as referentes às variedades africanas do Português. Em termos práticos, decidiu-se integrar ao projeto, nas próximas reuniões, os pós-graduandos orientados pelos membros da equipe e mencionou-se, ainda, a intenção de agregar pesquisadores estrangeiros, de diversos perfis teórico-metodológicos, vinculados a instituições da América Latina, Europa e África. Tal objetivo, efetivamente, foi atingido no quinto encontro, por ocasião do ALFALito realizado em João Pessoa em outubro de 2018. Para esse evento, o projeto, além de contar com vários pós-graduandos, convidou o Prof. Dr. Alfonso Gallegos Shibya, da Universidade de Guadalajara, México, que se integrou à equipe. Durante a programação, o Projeto 21 (Concordância) e o Projeto 3 (História do Português Brasileiro: desde a Europa até a América) realizaram sessões conjuntas quando das conferências do referido professor, que tratou de Tradiciones discursivas y cambio linguístico: fenómenos de conservación e innovación en la lengua, e da Profa. Dra. Tânia Lobo, que discorreu sobre A Linguística históricodiacrônica no Brasil pós-80 e a questão do contato. No encerramento das atividades, definiu-se que o Projeto 21, a partir de 2019, sob a denominação de Estudo comparativo de variedades africanas, brasileiras e europeias do Português – COMPARAPORT, ampliaria seu escopo, no sentido de estudar, além da concordância, outros temas de natureza morfossintática e, ainda, fonético-fonológica.

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Silvia Rodrigues Vieira, Silvia Figueiredo Brandão

3 Padrões de concordância em variedades do Português: resultados e perspectivas Esta seção tem por objetivo sintetizar os resultados de algumas análises comparativas empreendidas com o corpus compartilhado no âmbito do Projeto 21 da ALFAL (Brandão 2011a, 2011b, 2013, 2014, 2015, 2018; Vieira 2011, 2014, 2015; Brandão e Vieira 2012a, 2012b, 2018; Vieira e Bazenga 2013, 2015; Vieira e Brandão 2014, 2015, 2017). O conjunto dos trabalhos mencionados permite demonstrar as contribuições em função não só do tratamento sociolinguístico do tema da concordância, mas sobretudo das reflexões dele advindas a respeito da formação de variedades linguísticas em sociedades colonizadas. Nesse sentido, espera-se que os resultados permitam observar avanços na abordagem variacionista do tema, em termos de adequação descritiva e explicativa.

3.1 Contextualização das pesquisas: objetivos, pressupostos e hipóteses Em termos descritivos, há que se ressaltar a relevância da própria constituição dos bancos de dados contemporâneos de variedades do Português, sobretudo os referentes às variedades europeias e africanas, pouco investigadas segundo critérios sociolinguisticamente controlados. O rigor metodológico da análise comparativa de ocorrências, no âmbito da concordância nominal e verbal, permitiu estabelecer: (i) critérios para a delimitação das estruturas variáveis a serem objeto de coleta de dados; e (ii) o conjunto de variáveis linguísticas e extralinguísticas comuns à observação de cada variedade. Com base nesses procedimentos, foi possível traçar o perfil de cada variedade quanto aos padrões de concordância, a partir dos índices quantitativos de marcação de pluralidade. A descrição de quatro variedades urbanas do Português – a brasileira (na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – Copacabana e adjacências, na cidade do Rio de Janeiro, e em Nova Iguaçu, cidade vizinha, da Baixada Fluminense), a europeia (na Região Metropolitana de Lisboa – em Oeiras/Lisboa e em Cacém), a são-tomense (na capital São Tomé) e a moçambicana (na capital Maputo) –, em termos quantitativos e qualitativos, permitiu aprofundar a reflexão acerca do estatuto da concordância de número em cada caso, buscando convergências e divergências. No que se refere ao uso da Língua Portuguesa nas realidades analisadas, é necessário, sem dúvida, diferenciar o perfil de cada variedade. Enquanto, no Brasil e em Portugal, a extensão do uso de Português como língua primeira é majoritá-

Capítulo 1

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rio⁵, em São Tomé e Príncipe e em Moçambique o uso do Português como língua segunda (L2) ou até estrangeira (LE)⁶ é uma realidade que se impõe, tendo em vista o intenso contato multilinguístico. Em São Tomé e Príncipe, coexistem, além de quatro crioulos de base portuguesa – o Forro (ou Santomé) e o Angolar, na Ilha de São Tomé; o Lung’ie (ou Principense) na Ilha do Príncipe e o Fa d’ambô (ou Anobonense), da Ilha de Ano Bom (província da Guiné Equatorial) –, o português dos Tongas, o Cabo-verdeano (crioulo de base portuguesa, nativo de Cabo Verde) e “resquícios de línguas do grupo Bantu” (Hagemeijer 2009: 1)⁷. Embora haja essa realidade, a amostra do Corpus VAPOR utilizada nos estudos conta com informantes que se declaram falantes de Português como L1. Em Moçambique, em que convivem mais de 20 línguas Banto (Gonçalves 2010; Chimbutane 2018; Caetano e Vieira 2021), a proporção de falantes de Português como L1 é bem menor, cerca de 10 % apenas, conforme já se relatou. Assim, foi inevitável contemplar, na organização do Corpus Moçambique-Port, falantes de Português tanto como L1 quanto como L2, de forma ainda não estratificada quanto a essa variável. No que se refere à diversidade de dados nas amostras urbanas compartilhadas, interessa destacar que a paulatina observação das variedades africanas ensejou o estabelecimento de novas hipóteses e a consequente definição de outras variáveis sociais, além das tradicionais faixa etária (18–35 anos, 36–55 anos, 56–75 anos), nível de escolaridade (fundamental, médio e superior) e sexo, que nortearam a seleção de todos os informantes. Diante do quadro multilinguístico observado em São Tomé, Brandão (2011) definiu, a partir das declarações dos próprios participantes, a variável Frequência de uso de um crioulo (zero/baixa, média, alta). Tendo em vista a realidade moçambicana, Pissurno (2017) propôs as variáveis Estatuto do Português (Língua 1 ou Língua 2) e Línguas dominadas pelo informante (só fala Português ou apenas compreende línguas locais; fala, fluentemente, Português e línguas locais em determinados contextos; fala mais línguas locais do que Português). Essas novas variáveis mostraram-se fundamentais não só para a depreensão dos fatores que regem os padrões no âmbito da concordância nominal e verbal nas 5 Embora o Português predomine largamente, há significativa diversidade linguística no Brasil. Além das línguas indígenas, há as chamadas línguas de herança, de imigração, em áreas em que o Português, por vezes, é língua minoritária. De acordo com o Censo de 2010 do IBGE, há 896,9 mil índios (o que corresponde a 0,46 % da população brasileira), distribuídos por 305 etnias e 274 idiomas (cf. https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm). Acesso em 27/10/2018. 6 Para maiores informações sobre a distinção entre LE e L2, consultar Krashen (1982); Stern (1983). 7 Em São Tomé, no entanto, o Português vem ganhando a cada dia mais espaço. Como observa Araújo (2020, p. 57), o país “que tem sido multilíngue desde sua formação no final do século XV caminha em direção ao monolinguismo, marginalizando as suas línguas nacionais e relegando-as à obsolescência”.

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Silvia Rodrigues Vieira, Silvia Figueiredo Brandão

respectivas comunidades, mas também para a compreensão dos efeitos da situação multilinguística que imperou igualmente em larga escala nos primeiros anos da colonização brasileira e que ainda caracteriza algumas regiões do país. No que se refere à expressão quantitativa de pluralidade para a delimitação dos parâmetros de concordância, foi fundamental a tipologia de regras linguísticas proposta por Labov (2003), a seguir sintetizada no Quadro 1⁸: Quadro 1: Tipos de regras linguísticas. Tipo de regra

Frequência com que opera

Violações

I – Categórica

100 %

Nenhuma, na fala natural

II – Semicategórica

95–99 %

Rara e relatável

III – Variável

5–95 %

Nenhuma por definição e não relatável

Fonte: Labov (2003: 243).

A frequência com que cada regra opera constitui, segundo o autor, critério relevante para a avaliação do estatuto de um fenômeno como efetivamente variável ou não. Considerando que o comportamento categórico pressupõe o uso de uma só forma, ganha fundamental relevância a diferença proposta entre as regras semicategórica (com 95 a 99 % de aplicação) e variável (de 5 a 95 % de aplicação). Esses índices quantitativos precisam ser associados, sem dúvida, à natureza dos dados, em termos qualitativos, exercício fortemente perseguido pela equipe do projeto. Conforme explicam Brandão e Vieira (2014: 86), a delimitação arbitrária de cinco pontos percentuais entre a regra semicategórica e a variável representaria dados que constituiriam resquícios ou anúncios de uma regra variável em um possível processo de mudança, respectivamente em seu fim ou seu início (cf. LABOV, 2003, p. 242), ou, ainda, se não se tratar de um caso de mudança, configurariam, na interpretação aqui adotada, um grupo de dados de natureza qualitativamente restrita, que não representariam uma regra aplicável a qualquer ocorrência concernente ao fenômeno. Assume-se, assim, que afirmar que uma língua/variedade admite, por opção gramatical, uma dada estrutura não implica necessariamente o registro categórico dessa estrutura, como se sabe, nem tampouco pressupõe um comportamento efetivamente variável. Há que se verificar quantitativa – um número restrito de dados – e qualitativamente – contextos específicos em termos estruturais – a especialização dos usos para se determinar o parâmetro gramatical de certa língua/variedade.

8 As traduções são de inteira responsabilidade das autoras deste artigo.

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A esse respeito, avalia-se que examinar a distribuição geral e particular (por variáveis sociais, quanto a escolaridade, idade e sexo, e linguísticas) dos dados de marcação de plural em cada variedade do Português, distinguindo o comportamento categórico e semicategórico do que é efetivamente variável, constituiu exercício fundamental para a determinação dos padrões de concordância. Assim, os resultados permitiram descrever o que se mostrou específico de cada variedade e o que se manifestou como tendência geral, sistemática, da Língua Portuguesa e, por vezes, até de qualquer língua. Subjazem à persecução desse objetivo geral, as hipóteses a seguir elencadas.

(i) Quanto à distribuição geral de dados Se, de fato, todas as variedades do Português constituem tão-somente a extensão das tendências recebidas de um padrão geral, supostamente representado pela língua do colonizador, as diferentes amostras devem refletir comportamentos semelhantes, no sentido de demonstrarem a variação da marcação de pluralidade em diversos tipos de estruturas, apresentando diferenças meramente quantitativas; em outras palavras, pode haver, em algumas amostras, maior alternância entre formas com ou sem marcas de plural, mas em todas se verificaria comportamento de regra variável. Se alguma variedade, entretanto, se apresentar como regra semicategórica ou categórica, há que se admitir outro padrão/parâmetro/tipo de concordância.

(ii) Quanto à natureza estrutural dos contextos variáveis Nas amostras em que se verifica a alternância entre marcação e não marcação de plural, o padrão variável de concordância deve ser registrado em certa diversidade de estruturas. Nesse sentido, se alguma variedade exibir ausência de marcação de plural apenas em determinadas construções (como, por exemplo, apenas quando o verbo estiver posposto ao sujeito e/ou dele distanciado) e não em geral, essa variedade deve se distinguir de outras que efetivamente sejam variáveis na totalidade de tipos estruturais.

(iii) Quanto aos condicionamentos sociais da variação Nas amostras em que se verifica efetivamente uma regra variável, supõe-se haver diferenças sociais no uso da (não‐)marcação de plural, sobretudo no que diz res-

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peito ao nível de escolaridade dos indivíduos. Isto porque regras variáveis – sobretudo as que se referem a traços estigmatizantes – costumam revelar graus de encaixamento não só no tecido linguístico, mas também na estrutura social. Em linhas gerais, essas hipóteses assumem o pressuposto de que, se as variedades em questão demonstrarem perfis quantitativa e qualitativamente diversos, será preciso admitir diferentes padrões (parâmetros/tipos) de expressão da concordância.

3.2 Resultados principais A Tabela 1 apresenta a distribuição geral dos dados de marcação de plural no âmbito interno ao SN⁹ e na forma verbal de 3ª pessoa. Tabela 1: Distribuição dos dados referentes à concordância interna ao SN nas variedades brasileira, são-tomense, moçambicana e europeia do Português. SNs – variedades urbanas do PE Amostra

Com marca(s) de número

Sem marca(s) de número

Nºde OCOs

%

Nº de OCOs

%

PE – Oeiras

2310/2312

99,9

02/2312

0,08

PE – Cacém

2448/2449

99,9

01/2449

0,04

PE – Funchal

2186/2191

99,7

05/2191

0,22

Constituintes flexionáveis do SN – variedades urbanas do PM, PST, PB PM – Maputo

4567/4707

97,0

140/4707

3,0

PST – São Tomé

2524/2612

93,4

173/2612

6,6

PB – Copacabana

3432/3716

92,4

284/3716

7,6

PB – Nova Iguaçu

3439/3777

91,1

338/3777

8,9

Fonte: Brandão (2013: 57, 60; 2018: 220).

9 Os índices referentes ao SN nas variedades brasileiras e africanas advêm de análises atomísticas dos dados (isto é computa-se cada constituinte flexionável), enquanto os do PE, pelo irrisório número de dados de não marcação, resultam de análises dos SNs como um todo.

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Capítulo 1

Tabela 2: Distribuição dos dados referentes à concordância verbal de 3ª pessoa nas variedades brasileira, são-tomense, moçambicana e europeia do Português. Verbos na 3ª p. plural – variedades urbanas do Português Amostra

Com marca(s) de número

Sem marca(s) de número

Nºde OCOs

%

Nº de OCOs

%

PE – Oeiras

1454/1467

99,1

13/1467

0,9

PE – Cacém

1176/1185

99,2

09/1185

0,8

PE – Funchal

866/914

94,7

48/914

5,3

PM – Maputo

2278/2353

96,8

75/2353

3,2

PST – São Tomé

679/737

92,1

58/737

7,9

PB – Copacabana

1229/1395

88,1

166/1395

11,9

PB – Nova Iguaçu

1067/1365

78,2

298/1365

21,8

Fonte: Vieira e Bazenga (2013: 12; 2015: 31); Pissurno (2017: 155); Brandão (2013: 57, 60; 2018: 222).

Levando em conta que se trata de dados produzidos por comunidades urbanas – em que a veiculação da norma de prestígio, com a realização obrigatória das marcas de plural, costuma ser a tendência –, não é surpreendente o registro de altos índices de marcação. Mesmo no PB, em que a diversidade de pesquisas sociolinguísticas já realizadas atesta grande variabilidade dos padrões de concordância no tecido social, sabe-se que, em se tratando de comunidades urbanas, a realização das marcas de plural é mais alta do que a verificada em comunidades mais isoladas e/ou rurais. É preciso, entretanto, atentar para a natureza estrutural dos dados em que não se verifica essa marcação. Considerando apenas o perfil quantitativo dos resultados com e sem marcação de pluralidade, no âmbito tanto do sintagma nominal quanto no do verbal, é possível observar amostras com uma expressão semicategórica de concordância padrão. Nesse sentido, consoante a primeira hipótese deste texto, particularizamse os resultados das variedades europeias, que, em sua maioria, registram índices superiores a 99 % de marcação de plural, tendo se diferenciado quanto a esse quesito apenas a amostra do Português Insular (Funchal) com 94,7 % de marcação de 3ª pessoa do plural, evidenciando comportamento no limite entre o semicategórico e o variável (Labov 2003). A respeito do comportamento específico da amostra madeirense, Bazenga (2015) desenvolve, posteriormente, detalhada análise qualitativa das ocorrências, considerando a interface entre aspectos fonéticos e morfossintáticos (além da

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Silvia Rodrigues Vieira, Silvia Figueiredo Brandão

proposta de Mota 2013, de “concordância implícita” – CI¹⁰). Em decorrência dessa análise, a autora justifica que – para além das especificidades do falar madeirense, que tem uma sócio-história particular e apresenta diferenças fonéticas e sintáticas em relação ao falar continental – os dados de não marcação de plural se referem a itens verbais e estruturas sintáticas e fonéticas particulares, como se sintetiza na seguinte declaração: A consideração do Modelo de CI (Mota, 2013), após a observação da interface fonética/sintaxe nos dados não-padrão do Funchal, permitiu uma reavaliação da aplicabilidade da regra de concordância de P6 referida em trabalhos anteriores (Bazenga, 2012; Vieira; Bazenga, 2013), com os índices de não concordância verbal de P6 a serem inferiores a 1 %, na sua forma extrema, quando combinados fatores fonéticos e fatores sintáticos/discursivos supostamente de tipo universal (posição e animacidade do sujeito, presença de material linguístico entre o sujeito e o verbo) (Bazenga 2015: 102).

Desse modo, e já pondo em debate a segunda hipótese do presente texto (relativa à natureza estrutural dos dados supostamente variáveis), os resultados permitem afirmar que as poucas ocorrências de não marcação de plural no PE se referem a contextos específicos em termos qualitativos não só na amostra de Funchal, mas também nas amostras continentais, de Lisboa/Cacém. No âmbito dos sintagmas nominais, Brandão (2013) postula que a regra de concordância no PE pode ser considerada categórica, visto que as únicas oito ocorrências de ausência de marca de plural constituíram falhas no desempenho linguístico, decorrentes de reformulação discursiva. No âmbito dos sintagmas verbais de 3ª pessoa do plural, Vieira e Bazenga (2013, 2015) demonstram que, em termos qualitativos, a não marcação de plural fica restrita a condições particulares, que podem ser consideradas restrições universais à marcação de pluralidade, quais sejam: influência de sândi externo; posposição do sujeito; presença do relativo “que”; e, ainda, de verbos do tipo intransitivo, inacusativo e copulativo. Os exemplos a seguir demonstram a particularidade dessas construções: existe os autocarros para os diversos sítios (PE – Cacém); os hábitos que não me agrada muito (PE – Oeiras/Lisboa); coisas que no meu tempo era muito diferente (PE – Oeiras/Lisboa). Assim, tomando a interpretação dos resultados feita pelas pesquisadoras, pode-se constatar que as variedades urbanas não europeias apresentam compor10 Trata-se de um modelo não canônico de concordância, caracterizado pela realização fonética variável de distintas formas fonológicas: o processo morfofonológico de 3ª pessoa do plural gera resultados com formas fonológicas canônicas diferenciadas de plural e singular; ou formas fonológicas sem a marca de nasalidade, o que gera o sincretismo entre P3-P6. Para maiores detalhes da proposta, consultar Bazenga (2015) e Mota (2013).

Capítulo 1

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tamento diferenciado em relação ao descrito para as europeias. Ainda que em proporções distintas, as variedades urbanas brasileiras e as africanas, em São Tomé (PST) e em Maputo (PM), apresentam uma regra com algum grau de variação na concordância nominal e verbal, sendo as brasileiras as que mais se afastam do pólo da marcação de plural, e as africanas as que ora ultrapassam 95 % de marcação – aproximando-as do comportamento do Português Europeu, supostamente sua norma de referência –, ora ficam um pouco abaixo desse índice, aproximandoas mais do comportamento comprovadamente variável do Português do Brasil. Nesse sentido, chama a atenção que as restrições linguísticas para a variação no PB, no PST e no PM sejam tão convergentes. Embora não seja possível detalhar, nos limites do presente texto, o comportamento das variáveis estatisticamente relevantes em cada estudo realizado pela equipe, é fundamental registrar que a ausência da marca de plural acontece segundo restrições muito semelhantes e em uma diversidade de contextos, tanto no sintagma nominal, quanto no sintagma verbal. Quanto à concordância nominal, as variáveis posição linear e relativa do constituinte no sintagma nominal, saliência fônica e animacidade do núcleo têm atuação inegavelmente relevante no condicionamento do fenômeno. Independentemente das tendências verificadas, cabe destacar que as amostras brasileiras e africanas registram a ausência de plural em itens em posições variadas do SN, com diversos graus de saliência fônica e com referentes animados e inanimados. Esse amplo espectro de variação pode ser observado em exemplos do tipo: as coisa; as minha netinha; os tempos livre; outros canal; três rapaz (Cf. Brandão 2018). No que se refere à concordância verbal de 3ª pessoa do plural, também é evidente a atuação de condicionamentos linguísticos semelhantes. Brandão e Vieira (2014: 94) assim resumiram os contextos favorecedores da ausência de marcação: “(i) a posposição do sujeito, (ii) o baixo grau de diferenciação fônica entre as formas singular e plural, (iii) a ausência de marcas de número no SN sujeito e (iv) o traço menos animado do referente sujeito”. Resguardadas as devidas proporções, o que importa destacar é que, independentemente da atuação dessas variáveis, a não concordância padrão pode ser encontrada em todas as amostras das variedades não-europeias do Português – no PB, no PST e no PM –, em uma diversidade de contextos, “incluindo-se estruturas não marcadas, como em frases com ordem direta, com sujeito anteposto ao verbo, com formas de alta saliência fônica e com traços animados” (Brandão e Vieira 2014: 95), como se pode observar nos exemplos a seguir: elas que vai fazer furo/ futuro melhore (PM); as pessoas mais velhas está bem (PST); quantas pessoas fez isso aqui (PB). Como se pode observar, tanto a distribuição geral dos dados quanto o perfil estrutural das ocorrências sem marcação de plural demonstram que o padrão de

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concordância das variedades urbanas não europeias do Português não se configura como do mesmo tipo do PE, em termos quantitativos nem qualitativos. Para tornar essa conclusão mais expressiva, cabe observar, em consonância com a terceira hipótese deste trabalho, se os índices de marcação de pluralidade se diferenciam a depender de motivações extralinguísticas, como, por exemplo, o grau de instrução do falante, variável relevante no condicionamento de fenômenos do tipo estereótipo linguístico. Nesse aspecto, os trabalhos confirmam a hipótese estabelecida: enquanto a concordância no PE é (semi)categórica e não se mostra sensível, portanto, à diferença de nível de instrução formal dos falantes da amostra, nas demais variedades a escolaridade é sistematicamente selecionada, em termos estatísticos, como significativa. A Figura 1 (concordância nominal) e a 2 (concordância verbal) permitem visualizar a referida influência nas amostras estudadas.

Figura 1: Atuação da variável nível de escolaridade para a presença da marca de número no SN nas variedades brasileira, são-tomense e moçambicana do Português.

As imagens das Figuras 1 e 2 permitem a generalização: quanto maior o nível de instrução, maior a marcação de pluralidade, em qualquer das amostras em questão. No caso das variedades africanas, em especial, é preciso sublinhar que o acesso a maior nível de instrução acaba por corresponder a maior uso da Língua Portuguesa, em relação às línguas locais – o Forro, no caso de São Tomé; e principalmente o Changana, no caso de Maputo. Por essa razão, foi investigada, com base na declaração dos próprios entrevistados, a correlação entre a frequência de

Capítulo 1

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Figura 2: Atuação da variável nível de escolaridade para a presença da marca de número no verbo de 3ª pessoa plural nas variedades brasileira, são-tomense, moçambicana do Português.

uso da língua primeira e/ou da Língua Portuguesa e os índices de marcação de pluralidade no SN e no SV. A título de exemplo, apresentam-se, na Tabela 3, os resultados referentes ao Português de São Tomé. Tabela 3: Atuação da variável frequência de uso do crioulo para a presença da marca de número no SN e no verbo de 3ª pessoa plural, no PST. Frequência de uso do crioulo

Marca de plural no SN

Marca de plural no SVP6

Oco

Perc.

P. R.

Oco

Perc.

P. R.

Zero/baixa

964/1039

92,8

.59

465/503

92.4 %

.57

Média

977/1117

87,5

.48

572/634

90.2 %

.48

Alta

129/219

58,9

.25

71/89

79.8 %

.35

Fontes: Para o SN: Brandão (2013: 85). Para o verbo: Vieira e Bazenga (2013: 26).

Os índices referentes ao SN dizem respeito a uma análise realizada com 22 sãotomenses de níveis fundamental e médio de escolaridade; os referentes ao SV advêm de análise com indivíduos também de nível superior. Os resultados de-

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monstram não só uma inegável vinculação entre o uso das línguas locais e o maior índice de não marcação de plural, mas também, como já observaram Vieira e Bazenga (2013: 26–27), a correlação entre a variável e o nível de escolaridade do indivíduo, uma vez que nenhum dos informantes de nível superior e médio alegou usar o crioulo com alta frequência. A respeito de línguas locais, Brandão e Vieira (2018) destacam que, na formação das variedades africanas – e, por extensão, em função do já referido princípio do Uniformitarismo, também no caso do PB –, a situação do PM merece especial atenção, devido à recente determinação do Português como língua oficial, com a independência do país em 1975. Nesse sentido, as autoras – considerando a caracterização dos informantes moçambicanos entrevistados, de perfis muito variados no que se refere tanto ao uso da Língua Portuguesa (como L1 ou L2, para várias funções sociais ou para contextos muito específicos), quanto ao perfil sociocultural (o que se relaciona ao tipo de escola que frequentam ou frequentaram, oportunidade de viagens, dentre outros fatores) – propõem a seguinte caracterização: Na realidade, está-se diante de uma variedade que, tomada como língua oficial há apenas cerca de 40 anos, ainda não assumiu um parâmetro de marcação de plural com certa estabilidade. De um lado, indivíduos de alta e até de média escolaridade configuram-se como usuários de um Português cujo modelo é europeu, valendo-se de uma regra semicategórica ou até categórica em termos quantitativos, embora qualitativamente produzam ocorrências de não marcação de P6 em contextos estruturais diversificados. Muitos desses indivíduos nem sequer falam as línguas autóctones devido à imposição que sofreram em suas famílias ou escolas. De outro lado, moçambicanos de baixa escolaridade, que muitas vezes são falantes de Português como L2, assumem padrões de concordância absolutamente distintos. (…). Assim, na realidade, o PM assumiria, de partida, um perfil eminentemente plural como traço identitário. (Brandão e Vieira, 2018: 287 – tradução das autoras)

O comportamento das variedades são-tomense e moçambicana – que não constituem língua primeira para todos os indivíduos – em comparação ao das variedades brasileira e portuguesa foi sistematizado pelas referidas autoras, que propuseram a representação de um continuum dos padrões de concordância tomando por base não só o maior ou menor índice de marcas de plural, mas também os níveis de escolaridade dos entrevistados. A observação da Figura 3 permite opor o PE, com comportamento de marcação de plural (semi‐)categórico (Padrão I) independentemente do grau de instrução dos indivíduos, à quase totalidade das demais amostras. O comportamento das variedades não-europeias, mesmo as urbanas, só pode ser descrito considerando o maior ou menor nível de instrução escolar dos indivíduos (e, nas amostras africanas, também o maior ou menor contato com as línguas locais), consoante a seguinte tendência quanto à implementação da regra variável (Padrão II): en-

Capítulo 1

[+ MARCAS] S/M/F

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[- MARCAS] SUPERIOR

MÉDIO

FUNDAMENTAL

!---!!--------------------!!----------------!!-------------------!!---------!! PE (SN) (100%) PE-SVP6 (99%)

PB- SN (97-99%)

PB-SN (81-94%)

SV (90-98%)

SV (67-89%)

PST- SN (99%)

PST- SN (76%)

SV (93%)

SV (83%)

PM-SN (96,8%)

PM- NP (90,7%)

SV (98,1%)

SV (98,2%)

SV (94%)

PADRÃO I

SV (73%)

PST- SN (96%)

SV (98%) PM- SN (96,6%)

PB-SN (80-91%)

PADRÃO II

Legenda – Níveis de escolaridade: S = Superior/ M = Médio/ F = Fundamental. Variedades do Português: PE = Português Europeu/ PB = Português do Brasil/ PST = Português de São Tomé/ PM = Português de Moçambique. SN = Sintagma Nominal/ SVP6 ou SV = Sintagma verbal de 3ª pessoa do plural.

Figura 3: Continuum dos padrões de concordância nominal e verbal em quatro variedades urbanas do Português (adaptado de Brandão e Vieira 2018: 285; Pissurno 2018: 255; e Brandão 2018: 224).

quanto a alta escolaridade (ensino superior) aproxima todas as variedades do Português configurando um caso de regra semicategórica de concordância padrão, o menor índice de escolaridade associado a outros fatores sociais acarreta a diminuição dos índices de marcação de plural. Conforme proposta de Lucchesi, Baxter e Silva (2009: 348) para a descrição do PB, Vieira e Bazenga (2013: 34) consideram também os traços rural/urbano para o estabelecimento do continuum de variedades brasileiras, demonstrando que a concordância verbal de 3ª pessoa do plural, embora atinja 98 % na fala de indivíduos com curso superior, pode chegar a 48 % na fala de analfabetos urbanos e 38 % na fala de analfabetos mais rurais (ou até 16 % em comunidades quilombolas, como Helvécia, Bahia). Considerando as marcas de plural no SN e no SV em conjunto, fica evidente o quadro de variação nos padrões de concordância em todos os pontos do continuum brasileiro, ainda que reduzido na fala de indivíduos urbanos altamente escolarizados. As variedades africanas, resguardadas as particularidades de cada amostra, assemelham-se à brasileira, no sentido de assumir o perfil de uma regra variável. No PST, não obstante o fato de que as diferenças entre os níveis de escolaridade sejam menos evidentes, talvez em função de o Forro ser cada vez menos em-

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pregado pelos são-tomenses, os resultados permitem visualizar um quadro de regra variável, condicionado por fatores linguísticos de modo semelhante ao ocorrido no PB. Quanto à variedade moçambicana, como demonstram Brandão e Vieira (2018: 286): a diferença de comportamento dos informantes quanto ao nível de instrução correlaciona-se, de modo particular, à coexistência do emprego do Português com o de outras línguas locais. O comportamento sui generis da amostra moçambicana – em que se registram, por exemplo, índices de CN que vão de 9 % a 99 % – impõe que as expressões de concordância no PM se localizem em pontos diferentes do continuum, em relação ao PB e ao PST, a depender do informante e de seu perfil como usuário do Português L1 ou L2. É nesse aspecto que o estudo contrastivo da concordância nas variedades do Português possibilita refletir acerca de uma questão teórico-descritiva fundamental: qual a relação que se pode estabelecer entre a situação de contato linguístico e o estatuto dos padrões de concordância?

No momento atual das investigações, ainda é prematuro interpretar com segurança a natureza dessa correlação. A esse respeito, duas hipóteses podem ser levantadas: (i) a maior não marcação de plural por indivíduos que fazem amplo uso das línguas autóctones locais estaria diretamente relacionada às influências do substrato, referente ao Forro, em São Tomé, e ao Changana ou outra língua autóctone, em Maputo; e (ii) esse índice mais alto de não marcação estaria relacionado à complexa situação de uso/aquisição do Português como segunda língua ou língua estrangeira – situação favorecedora da simplificação morfológica (cf. Siegel 2004; Holm 1988). Certamente, a confirmação dessas hipóteses depende da continuação das pesquisas, de modo a tomar conhecimento das características das línguas locais e a compreender o tipo de participação de cada uma delas no processo de aquisição de L2. Face aos diversos e produtivos resultados aqui sistematizados, entende-se que é hora de aprofundar e ampliar a agenda das investigações e dos debates delas advindos, perseguindo as novas metas da equipe, a serem exibidas nas considerações finais.

4 Considerações finais No que se refere especificamente aos padrões de concordância nominal e verbal, foi possível, a partir dos resultados aqui destacados, propor dois padrões de concordância:

Capítulo 1

23

(i) a variedade europeia (e possivelmente os estratos altamente escolarizados das variedades não europeias) assumiria o Padrão I, aquele em que os contextos aparentemente variáveis seriam restritos em termos quantitativos, com a presença categórica ou semicategórica de marcas, e qualitativos, em estruturas específicas e insensíveis a efeitos extralinguísticos; e (ii) as variedades não europeias investigadas assumiriam, de modo geral, o Padrão II, com uma regra variável em construções diversas, cujas proporções seriam sensíveis a restrições sociais, dentre as quais se destaca a escolaridade. No caso das variedades africanas do Português em análise, a delimitação de um padrão global de marcação de pluralidade seria ainda mais arriscada: a depender não só da escolaridade do indivíduo, mas também do tipo de relação e/ ou identificação do falante com as línguas com que convive, o padrão de concordância é alterado (Brandão e Vieira, 2018: 284).

Os resultados relativos a esses padrões de concordância tornaram possível experimentar o estabelecimento de um continuum de variedades do Português – que certamente poderá dialogar com a proposta de Petter (2007) de um continuum afrobrasileiro. Compreende-se, entretanto, que esse continuum só poderá ser construído, de forma empiricamente fundamentada, a partir da descrição do comportamento de diversas regras variáveis. Assim sendo, face ao produtivo debate que os resultados da concordância e temas afins proporcionaram à equipe do Projeto 21 da ALFAL, no sentido de caracterizar os padrões tipológicos das variedades do Português, entende-se que é necessário continuar os trabalhos, perseguindo, a partir de agora, as seguintes metas: (1) no âmbito dos padrões de concordância, ampliar a descrição da concordância nominal em estruturas predicativas/passivas¹¹ e da concordância verbal de primeira pessoa do plural;¹²

11 A concordância em estruturas predicativas e passivas, no âmbito do PB, foi pioneiramente investigada por Scherre (1991). Com base nas 9 variáveis estruturais por ela controladas e em 4 variáveis sociais, Brandão e Soares (2022) e Soares (2022) constataram, respectivamente, que, no Português de São Tomé e no de Moçambique, em áreas urbanas, a regra de concordância é categórica entre os falantes de nível superior e variável entre os de níveis fundamental e médio. Cabe, ainda, verificar o que ocorre no PE, embora a hipótese seja a de que se trate de uma regra categórica que abranja, em áreas urbanas, falantes de todos os níveis de escolaridade. 12 Embora o presente texto não aborde a primeira pessoa do plural, Brandão e Vieira (2014) demonstram que o PE também se diferencia das demais variedades nessa construção, da seguinte forma: a tendência europeia é a de variar tomando por opção preferencial sempre a marcação de pluralidade, motivo pelo qual se registra a estrutura a gente mais verbo no plural (a gente cantamos), enquanto não se verifica qualquer ocorrência de nós mais verbo no singular (nós canta). As demais variedades do Português, sobretudo as rurais, menos escolarizadas e/ou com menor domínio de Português padrão, registram nós canta, além de a gente cantamos. Recentemente, Costa (2022) confirmou o comportamento variável da concordância de primeira pessoa do plural na variedade moçambicana do Português, tendo observado, na fala de alguns moçambi-

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(2) ampliar o escopo da investigação para outros fenômenos, de natureza morfossintática e fonético-fonológica, que permitam avaliar, de forma sistêmica, o continuum de variedades ora sugerido; (3) constituir novas amostras de entrevistas sociolinguísticas com diferentes perfis de participantes, urbanos e rurais, falantes de Português como língua primeira e segunda, de modo a perseguir o desafio de prover objetivas e amplas descrições de variedades do Português, destacando, nesse sentido, as variedades europeias insulares e as africanas, que ainda precisam ser mais exploradas pelos estudiosos sociolinguistas; e (4) com base no Princípio do Uniformitarismo, contribuir para o registro e a interpretação não só das variedades do Português ora em formação, mas também da sócio-história do Português do Brasil. Espera-se, assim, que o conjunto de investigações sociolinguísticas, como as desenvolvidas no âmbito do Projeto 21 da ALFAL, permita aquilatar, com segurança, as motivações linguísticas e extralinguísticas que aproximam ou distanciam os espaços onde se fala uma língua pluricêntrica (Clyne 1992; Muhr 2012) como o Português (Baxter 1992). Desse modo, em última instância, possam esses resultados sustentar processos de reconhecimento e estandardização adequados às feições de cada uma dessas variedades, de modo que respeitem, a um só tempo, as línguas e os povos que as constituíram e constituem em sua sócio-história local.

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Seção 2 Variedades do Português: motivações sócio-históricas e linguísticas para a variação e a mudança

Gregory R. Guy

Capítulo 2 Diversidade dialetal em três comunidades lusófonas: questões linguísticas e sociais 1 Introdução A língua portuguesa faz parte do pequeno grupo de línguas plurinacionais, grupo composto principalmente pelos falares que envolvem as potências imperialistas dos séculos XV a XX. O Português – juntamente com o Inglês, o Espanhol, e o Francês – implantado nos territórios das Américas, África, e Ásia que sofreram conquista e colonização pelos respetivos imperialismos europeus, configura-se como língua oficial em nove países espalhados pelo globo. As variedades do Português fora da Europa constituíram-se, assim, como espécies de ‘dialetos coloniais’ (Trudgill 2006), formados em comunidades inicialmente compostas por falantes de vários dialetos e línguas. Desse modo, essa consequente diversidade internacional providencia uma oportunidade única para investigar questões dialetológicas, linguísticas e sociolinguísticas, como, por exemplo, as que interessam ao presente trabalho: ‒ Quais são as diferenças linguísticas entre o Português Brasileiro (PB) e o Português Europeu (PE)? ‒ Tais diferenças refletem as diferentes histórias e características das sociedades brasileira e portuguesa? ‒ As restrições relativas a variáveis que diferenciam PB e PE são iguais ou específicas para cada variedade? A comparação das variedades do Português, que é o alvo do Projeto 21 da ALFAL, nos oferece evidências para iluminar tais questões. Neste capítulo, comparamos três comunidades lusófonas – São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa – no uso de uma variável sintática, a realização do sujeito anafórico. Examinamos o condicionamento desta variação por fatores estruturais e sociais, e possíveis motivações para as condições observadas.

Gregory R. Guy – University of New York https://doi.org/10.1515/9783110670257-004

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2 Sujeitos anafóricos: nulo ou pleno pronominal As variedades mundiais do Português são diferenciadas por múltiplas características linguísticas. Entre elas, é saliente a diferença dialetal entre Portugal e Brasil na realização do sujeito anafórico, como nulo ou pleno. Um aspecto notável, ou até surpreendente, do Português Brasileiro é a taxa bem baixa de uso do sujeito nulo, e, consequentemente, uma taxa de uso de sujeitos pronominais plenos (expressos) que pode ser considerada altíssima em comparação com outras línguas românicas como o Italiano e o Espanhol. A norma histórica das línguas românicas – desde o Latim – é de pouco uso de pronomes plenos na posição de sujeito, sendo os sujeitos anafóricos preferivelmente nulos. Por exemplo, pesquisa com dados do Espanhol indica uma taxa de sujeitos pronominais plenos por volta de 20–25 % das orações com sujeito anafórico (Enriquez 1984, Duarte e Soares da Silva a sair), e investigação com dados do Italiano registra sujeitos plenos em apenas 16 % das ocorrências (Marins 2009). Considerando essas taxas, observa-se que elas são típicas das chamadas línguas de sujeito nulo. Quanto ao Português Europeu (PE), o estudo de Duarte e Soares da Silva (a sair) registra taxas de sujeito pleno de 26 %. No mundo hispânico, o nível baixo de pronomes plenos se estende da Espanha para várias regiões das Américas, como se vê na Tabela 1: México, Argentina e Peru têm taxas bem baixas, mas, notavelmente, os países hispânicos do Caribe tendem a apresentar taxas mais altas, de 30 a 40 % (Porto Rico e República Dominicana). Tabela 1: Sujeitos pronominais plenos (vs. nulos) em variedades nacionais do espanhol. Santo Domingo (Alfaraz 2015)

42,3 %

San Juan, Puerto Rico (Cameron 1993)

41,1 %

Barranquilla, Colômbia (Orozco, 2015)

34,2 %

Rivera, Uruguay (Carvalho & Bessett 2015)

24,9 %

Xalapa, México (Orozco 2016)

24,9 %

Cidade de México (Lastra & Martin 2015)

21,8 %

Buenos Aires (Barrenechea & Alonso 1973)

21,0 %

Madrid, Espanha (Cameron 1993)

20,9 %

Madrid, Espanha (Enriquez 1984)

20,5 %

Yucatán, México (Michnowicz 2015)

19,7 %

Lima, Peru (Cerron Palomino 2014)

16,8 %

Capítulo 2

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O Português Brasileiro (PB), porém, se situa no polo oposto ao dessas outras línguas, com taxas de 65–80 % de sujeitos pronominais plenos, ou até mais, na fala de certos indivíduos estudada por Duarte (2003), quase o triplo da incidência de pronomes plenos nas variedades da Europa, tanto em Portugal, a fonte histórica do Português Brasileiro, quanto nas línguas-primas da Espanha e Itália. Quantitativamente, esses índices colocam o PB mais perto do Francês, no qual o sujeito pronominal pleno é obrigatório, indicando efetivamente uma taxa de 100 %. Tais fatos já atraíram bastante atenção na linguística do Português, levantando-se uma série de questões fundamentais, de várias perspectivas, como a seguir se expõe. (a) Do ponto de vista teórico, como representamos a diferença entre PB e PE? Na teoria paramétrica, existe uma categoria tipológica de ‘null subject languages’ – como o Italiano e o PE – e a categoria oposta, ‘non-null subject languages’ – como o francês e o inglês. Certos teóricos propõem uma terceira categoria entre esses polos, ‘semi-null subject languages (Huang 2000, Biberauer 2010). Como se situa o PB nessas categorias paramétricas? Vários artigos e livros tratam a questão, como, por exemplo, Barbosa, Duarte e Kato (2005). (b) Do ponto de vista da Sociolinguística Variacionista, como se comparam o PB e o PE no uso de sujeitos anafóricos na língua falada? Quem usa mais o pronome pleno ou o nulo? Existem diferenças sociais na preferência por uma ou outra alternativa? Quais os contextos linguísticos que favorecem uma ou outra realização do sujeito anafórico? (c) Há também a questão diacrônica. Como chegamos à situação atual – quais foram as mudanças linguísticas que resultaram na atual diferença entre PE e PB? É possível identificar causas, sociais ou linguísticas, que provocaram ou favoreceram essas mudanças? O estudo de Duarte (1993) traça a trajetória do uso do pronome expresso em peças de teatro, mostrando um aumento de 20 % de pronome pleno em 1845 até 74 % em 1992. Embora esses dados venham de representações literárias da língua e não da fala espontânea, levantam a possibilidade de atualmente a mudança ainda estar em andamento. Citamos essas questões para indicar a importância dessa diferença entre PE e PB, e não para sugerir que tentaremos oferecer respostas e soluções. Pesquisar a expressão do sujeito na Língua Portuguesa vai além da mera descrição dialetológica, visto que o tema alcança aspectos teóricos, sociais e históricos. O enfoque deste capítulo estará voltado, então, a questões sociolinguísticas e variacionistas, relacionadas com o tema deste volume, baseado em estudos comparativos de variedades de Português, considerando neste caso uma pesquisa comparativa da realização do sujeito pronominal nas três comunidades: Lisboa (PE), São Paulo e Rio de Janeiro (PB).

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3 Metodologia As amostras de fala nas quais o presente estudo se baseia provêm de entrevistas sociolinguísticas realizadas no âmbito de dois projetos de pesquisa. Os dados de Lisboa e do Rio de Janeiro foram extraídos do chamado Corpus Concordância, corpus organizado por Silvia Rodrigues Vieira (UFRJ) e Maria Antônia Mota (CLUL) em projeto de cooperação Brasil-Portugal que passou a integrar o Projeto 21 da ALFAL, congregando também linguistas brasileiros e portugueses. A distribuição social dos falantes nessa amostra segue os critérios do Corpus Concordância: três faixas etárias, três níveis de escolaridade (ensino fundamental, médio e ensino superior), e dois sexos, dando 18 subcategorias, em cada uma das quais temos dois falantes, combinando os dois bairros onde fizeram as entrevistas, dando um total de 36 falantes na amostra. A amostra de São Paulo foi obtida do Corpus SP2010, organizado por Ronald Mendes da USP. Escolhemos falantes desse corpus para obter uma distribuição balanceada em três faixas etárias, dois níveis de escolaridade (até médio, e superior), e dois sexos. Estes critérios nos deram 12 subgrupos, com 2–3 falantes em cada, para um total de 29 falantes.¹ Baseamos a codificação dos dados nas transcrições das entrevistas pelos respetivos grupos de pesquisa. Para cada falante, codificamos aproximadamente 300 orações com sujeito anafórico e verbo flexionado finito. Excluímos orações em que não se espera registrar sujeito referencial pleno, como construções existenciais (e. g., tem gente na rua), expletivas (e. g., está chovendo), imperativas (faça o trabalho!), além de orações relativas modificadoras de nome no sujeito (e. g. o cara que fala inglês – supondo que possa ser impossível a ocorrência o pronome pleno, por exemplo, em variedades europeias do Português: *o cara que ele fala inglês). Também excluímos estruturas com marcadores discursivos, como ‘entendeu?’. Inicialmente, investigamos itens com referentes inanimados (gosto do bairro, mas (ele) já mudou muito); entretanto, sendo o pronome pleno muito raro nesse contexto (especialmente em Portugal), nas análises apresentadas aqui foram excluídos os dados de sujeito com referência inanimada. No total, obtivemos mais de 9 mil orações com sujeitos pronominais em cada cidade. A diferença dramática entre PB e PE fica óbvia na Tabela 2: em São Paulo,

1 Agradecemos aos organizadores dos projetos SP2010 e Projeto 21, pela gentileza de nos dar acesso a esses materiais, e aos múltiplos colegas que consultamos neste trabalho. Agradecemos, também, o apoio financeiro para esta pesquisa da New York University – Abu Dhabi campus, e o trabalho dedicado dos estudantes que nos assistiram nesta pesquisa.

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Capítulo 2

67 % das orações ocorrem com pronome pleno, e no Rio 64,2 %, enquanto em Lisboa, 31,9 %, menos da metade da taxa registrada nas amostras brasileiras. Tabela 2: Uso de pronome pleno no Português Europeu e no Português Brasileiro. Cidade

Nº total de ocos (pleno e nulo)

% pronome pleno

Input geral

Lisboa

9746

31,9

.256

Rio de Janeiro

9776

64,2

.641

São Paulo

9460

67,0

.682

Os resultados apresentados aqui vêm de análises de regressão logística multivariada conduzidas com o programa Goldvarb, tendo sido realizada uma análise para cada cidade. Valores para falantes individuais exibidos na Seção 5.3.2 referemse a efeitos fixos de modelos que não usaram outros fatores sociais. Para facilitar a comparação entre PE e PB, expressamos os efeitos em termos de pesos relativos. Este método controla a diferença bruta entre PE e PB no uso de sujeitos plenos, que é capturado na probabilidade ‘input’. Os pesos indicam para cada fator na análise se, na presença daquele fator, a taxa de pronomes plenos é acima ou abaixo da taxa geral da comunidade analisada. O valor de .50 é neutro, indicando um efeito do fator equivalente à taxa bruta, o input. Valores acima de .50 são relativamente favoráveis ao pronome pleno, e os valores abaixo de .50 inibem o pronome pleno (e favorecem sujeitos nulos). Para cada cidade, todos os resultados apresentados vêm da mesma rodada; são apresentados em várias tabelas para clareza da exposição. Os efeitos citados são significativos, exceto quando observado no texto. Os grupos de fatores são ortogonais; não encontramos interação entre eles (exceto uma interação social tratada na Seção 5.3).

4 Análise e hipóteses Para investigar o condicionamento da expressão variável de sujeito em Português, e caracterizar as diferenças e semelhanças dialetais entre as três comunidades, examinamos o uso de sujeitos anafóricos em vários contextos internos e externos. Escolhemos os contextos segundo dois critérios: contextos relevantes às hipóteses que queríamos testar, e contextos que tinham efeito significativo em outras pesquisas sobre sujeito pronominal, especialmente nos estudos sobre o Espanhol. São

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de três tipos: contextos linguísticos, cognitivos e sociais. Nesta seção, apresentamos os contextos e as hipóteses a eles associadas.²

4.1 Contextos linguísticos Investigamos três fatores baseados na estrutura linguística. A expectativa é que os efeitos destes contextos possam variar de uma variedade para outra, dependendo das características dialetais quanto à estrutura gramatical em questão. (i) Pessoa/número do sujeito. Muitas pesquisas, e reivindicações teóricas, salientam a importância de pessoa/número na realização do sujeito pronominal (e. g., Hochberg 1986, Otheguy & Zentella 2012). As línguas românicas marcam o verbo com desinências, indicando a pessoa e o número do sujeito, e um sujeito pronominal é, em princípio, redundante em muitos casos. Uma hipótese óbvia sobre a expressão do pronome é funcionalista: o pronome pleno é usado para identificar o referente quando a flexão verbal é ambígua. Por exemplo, o pronome você refere-se à segunda pessoa, mas concorda com as desinências da terceira. Então ‘(você) fala, (ele) fala’ são superficialmente equivalentes ao sujeito nulo, mas um pronome pleno serve para desambiguar o referente. A redução no paradigma verbal no Brasil tem sido sugerida como o motivo para o aumento na taxa de sujeitos pronominais plenos (cf. Duarte 1995, Barbosa et al. 2006): o desuso de tu com as associadas formas verbais em grande parte do território do Brasil, o uso de você, a substituição de nós por a gente, e a realização variável de concordância na 1ª e 3ª pessoas do plural constituem fatores que geram, para alguns falantes e variedades, um paradigma reduzido como ‘eu falo, você, ele, a gente, vocês, eles fala’. (ii) Tempo/modo do verbo. O tempo/modo do verbo indica a referência do sujeito com vários graus de especificidade. As desinências são salientes e distintivas no tempo presente e pretérito, mas menos distintivas no imperfeito e subjuntivo. No imperfeito, a primeira e terceira pessoas do singular são idênticas: eu falava, ele falava. Neste caso, um sujeito pleno serviria para distingui-las. A hipótese funcional implica que esta diferença em ambiguidade deve afetar o uso do pronome pleno. (iii) Tipo de oração. Várias investigações do sujeito nulo em espanhol – como, por exemplo, Otheguy e Zentella (2012) e Orozco (2018) – encontram um efeito do tipo sintático da oração, geralmente indicando que a oração subordinada favorece

2 Não discutimos aqui estes outros fatores com menos efeito ou dados insuficientes: categoria semântica e reflexividade do verbo, e frequência lexical.

Capítulo 2

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o sujeito pleno. Distinguimos aqui orações principais e subordinadas. Não encontramos números suficientes de orações claramente coordenadas (ligadas com conjunções) para analisar. E distinguimos também respostas a questões polares. A prática discursiva típica em português para responder a tais questões é repetir o verbo, sem pronome pleno. Por exemplo: Você gosta? Gosto.

4.2 Contextos cognitivos Além dos fatores estruturais, investigamos dois de natureza cognitiva, ou seja, condições que refletem como a mente humana processa a informação. A expectativa nestes casos é que devem ser uniformes em qualquer dialeto e qualquer língua, uma vez que a linguagem é um elemento universal da cognição humana. Consideramos os seguintes: (iv) Persistência. Pesquisas em vários campos da Linguística e da Psicologia mostram uma tendência cognitiva de continuar a usar um elemento (ou estrutura) uma vez que ele seja ativado (Forster & Davis 1984, Bock 1986, Tamminga 2014). Scherre (2001) mostra tal efeito, que ela chama de ‘paralelismo formal’, na concordância nominal em Português. Em nosso caso, a hipótese indicaria que, uma vez que o falante use o pronome pleno, ele teria uma predisposição a usá-lo de novo em orações subsequentes, e no caso contrário, uma vez usado o sujeito nulo, continuaria com sujeitos nulos. (v) Continuidade de referência. Desde as primeiras pesquisas quantitativas (e. g., Bentivoglio 1980, Silva-Corvalán 1982), ficou claro que a sequência de referências no discurso afeta o uso do sujeito nulo ou pleno. Quando a referência do sujeito de uma oração é idêntica à referência do sujeito da oração prévia (veja exemplo 1), usa-se mais o pronome nulo, mas quando a referência na oração anterior é diferente (comumente chamado ‘switch reference’), é mais provável aparecer um pronome pleno (exemplo 2). 1. João chegou. Falou com a mãe. (mesma referência favorece nulo) 2. João chegou. Eu falei com ele. (referência diferente – “switch reference” – favorece pronome pleno) Esta preferência não está ligada à hipótese funcionalista. Um sujeito nulo na segunda oração do exemplo (2) não criaria nenhuma ambiguidade. A explicação provável dessa tendência é cognitiva, refletindo a organização e processamento de informação na mente. Sendo assim, a expectativa é que o efeito da referida variável também seria semelhante em todas as línguas.

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4.3 Contextos sociais É essencial investigar a distribuição social da variável para atender às questões dialetológicas e sócio-históricas. A falta de evidência de consciência da variável pode sugerir que não existiriam diferenças significativas no seu uso entre classes sociais, gêneros, faixas etárias, estilos etc. Mas é óbvio que, em algum momento histórico, aconteceu uma mudança substancial na expressão do sujeito de modo a criar a distinção atual entre PE e PB, e sabemos que nenhuma mudança linguística ocorre simultânea e igualmente em todas as camadas da população. Então, é uma questão aberta se o uso contemporâneo da variável exibe diferenciação social ou não. Fizemos as nossas análises sociais com base nas categorias descritas anteriormente, de sexo/gênero, idade e escolaridade.

5 Resultados 5.1 Contextos linguísticos 5.1.1 Pessoa e número A Tabela 3 mostra os resultados para pessoa e número gramatical do sujeito. Observamos vários pontos de interesse. Tabela 3: Efeito de pessoa/número do sujeito no uso de pronome pleno em pesos relativos. Pessoa/ Número

SP

RJ

LIS

1sg

0.499

0.523

0.544

2sg



–-

0.454

você

0.747

0.588

0.270

3sg

0.395

0.396

0.481

a gente

0.708

0.731

0.919

1pl

0.232

0.269

0.412

vocês



–-

0.759

3pl

0.345

0.323

0.354

Capítulo 2

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Em primeiro lugar, a hipótese funcionalista é confirmada com respeito às formas do plural, que, em todas as três cidades, aparecem com menos uso de pronome pleno do que no singular – isto é, se usa mais sujeito nulo justamente nos contextos em que as flexões verbais são mais distintivas e salientes. Observamos também outras tendências sistemáticas nas amostras das três variedades. Na primeira pessoa do singular, o pronome pleno ocorre a uma taxa média. Na terceira do singular, encontramos uma taxa relativamente baixa. Comparando as duas, a primeira do singular sempre mostra uma taxa mais elevada do que a da terceira. Não obstante essas consistências entre as amostras, há diferenças claras entre Brasil e Portugal no uso dos pronomes referentes à segunda pessoa. O pronome tu é quase inexistente na amostra referente a São Paulo (nenhum caso nos nossos dados), e bem raro na do Rio (sete casos, todos sem marcação explícita de concordância), mas em Portugal é a forma predominante para tratar a segunda pessoa. Ao mesmo tempo, no uso de você, observamos uma diferença dramática entre Lisboa e as cidades brasileiras: usa-se muito o pronome você pleno no Brasil, mas raramente em Lisboa. É provável que essa diferença tenha a ver com o sistema de pronomes da segunda pessoa nas duas variedades. Em SP e RJ, você é a forma não-marcada de tratamento, sem significado de formalidade ou distância social do ouvinte. Em Portugal, porém, tu e você coexistem, marcando diferenças na relação social entre falante e ouvinte.³ Mas parece que, atualmente, há uma preferência por evitar o uso de você. A intuição de uma consultora portuguesa desta pesquisa é que a norma social emergente é tratar todo mundo igual, com tu, e evitar você. O uso de sujeito nulo com o verbo na 3a do singular é uma maneira de fazer a distinção social apenas implicitamente. Finalmente, devemos salientar o caso do pronome novo a gente. Quando é usado para se referir à primeira pessoa do plural, o pronome pleno ocorre com taxa altíssima, tanto no Brasil quanto em Portugal (e. g., 88 % em SP e RJ 86 % em Lisboa.). Há, entretanto, uma diferença dramática entre essas variedades na escolha entre a gente e nós. De todos os casos de referência à primeira pessoa do plural, 90 % em Lisboa são feitos com o pronome histórico nós, enquanto, no Brasil, 75 % são feitos com o pronome novo, a gente. A evidência histórica indica que a gente surgiu no PB no século passado (Zilles 2005) e está avançando rapidamente No entanto, nossos dados indicam uma resistência a essa mudança em Portugal, 3 A terceira alternativa em português, o senhor/a senhora, não ocorreu nos nossos dados. Embora tu seja muito raro no uso considerando as entrevistas sociolinguísticas com os falantes cariocas que analisamos, notamos que Scherre et al. (2015) e outros autores descrevem a produtiva ocorrência de tu no Rio de Janeiro.

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onde parece haver até uma reação prescritiva contra o uso pronominal de a gente. Existe um ditado em Portugal: “‘a gente’ não é ‘nós’, agente é da polícia”. De todo modo, como vimos, mesmo evitando ou estigmatizando o uso de a gente pronominal, os lisboetas favorecem a forma explícita.

5.1.2 Tempo/modo do verbo Na Tabela 4, vemos os resultados para tempo/modo verbal. Segundo a hipótese funcionalista, o imperfeito seria associado a mais sujeito pleno, porque tem desinências menos distintivas. Em Lisboa e no Rio de Janeiro, este efeito é fracamente evidente, mas em São Paulo, não. A evidência é inconsistente com a hipótese funcionalista, mas consistente com a hipótese de que contextos linguísticos podem ter efeitos diferentes em dialetos diferentes. Tabela 4: Efeito de tempo/modo verbal no uso de pronome pleno. Tempo/modo verbal

SP

RJ

LIS

presente

.523

.510

.500

pretérito

.470

.455

.449

imperfeito

.474

.519

.549

5.1.3 Tipo de oração Pesquisas prévias sobre o Espanhol indicam que a oração subordinada é associada a uma taxa elevada de pronomes plenos, mas a evidência para este efeito não é consistente: Orozco (2018) cita sete estudos em que ele é significativo, e cinco em que não é. Nos nossos dados, um efeito bem claro aparece para o Português. Nas três cidades se usam mais pronomes plenos nas orações subordinadas. O efeito probabilístico é quase idêntico. Distinguimos também as respostas a questões polares, em função da prática discursiva em Português de responder repetindo ou negando o verbo da pergunta, em vez de dizer simplesmente ‘sim’ ou ‘não’. É claro que este contexto discursivo desfavorece fortemente o pronome pleno.

Capítulo 2

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Tabela 5: Efeito do tipo de oração no uso de pronome pleno. Oração

SP

RJ

LIS

Principal

.474

.456

.463

Subordinada

.632

.699

.636

Resposta a questão polar

.173

.168

.300

5.2 Contextos cognitivos 5.2.1 Continuidade de referência A expectativa é que contextos cognitivos devem ter efeitos mais ou menos equivalentes em todas as línguas e dialetos, uma vez que se supõe que derivam de características da faculdade linguística humana, dentre elas a continuidade de referência ou ‘switch reference’. Como notamos acima, é praticamente consensual que a referência a uma nova entidade no discurso tende a ser indicada com pronome pleno, e que o nulo é favorecido quando se mantém a referência. Como vemos na Tabela 6, tal tendência é evidente nas três variedades. O efeito parece mais forte em Lisboa. Sugerimos que isso reflita a grande diferença bruta entre Lisboa e SP/RJ no uso do pronome pleno. No Brasil, dois terços ou mais dos pronomes nominativos são plenos e, portanto, o uso da forma explícita não é tão saliente para marcar uma nova referência. Porém, em Portugal, uma forma explícita é notável, e mais efetiva para salientar uma nova referência. Tabela 6: Efeito da continuidade de referência no uso de pronome pleno. Referência

SP

RJ

LIS

Igual à oração prévia

.451

.409

.374

Diferente

.587

.633

.698

5.2.2 Persistência (paralelismo formal) Como notamos, o fenômeno de persistência (ou paralelismo formal) é evidentemente uma propriedade mental básica. A implicação aqui é que pronome pleno favoreça pronome pleno e o sujeito nulo favoreça sujeito nulo em orações sub-

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Gregory R. Guy

sequentes. Os resultados na Tabela 7 confirmam esta previsão, nos dados das três cidades, e sustentam a hipótese de que este efeito deva ser essencialmente igual em todo dialeto e língua. Notamos também que um sintagma nominal no sujeito prévio é ligeiramente favorável à ocorrência de pronome pleno, sugerindo a possibilidade de o preenchimento da posição de sujeito prévio em geral, e não somente na forma do pronome pleno, acionar essa tendência. Tabela 7: Efeito de persistência no uso de pronome pleno. Sujeito prévio

SP

RJ

LIS

nulo

.333

.336

.443

pronome

.571

.600

.617

sintagma nominal

.543

.505

.519

5.3 Contextos sociais A maioria das variáveis linguísticas investigadas na sociolinguística variacionista exibe distribuições sociais significativas, através de dimensões como idade, classe social e gênero. Tais distribuições implicam que as variáveis se associem com normas de uso ou valores indexicais na comunidade (Eckert 2008). As variantes estratificadas na comunidade, aquelas usadas mais por pessoas de status socioeconômico maior, costumam ser tipicamente padronizadas e vistas como ‘corretas’. Em casos de mudança, variantes usadas mais pelos falantes jovens correspondem às formas novas. Entretanto, no caso do sujeito anafórico, não temos evidência de que uma das alternativas, nulo ou pronominal pleno, seja valorizada ou indexadora (ou, obviamente, inovadora), nem que os falantes estejam cientes da variável em estudo. Sendo assim, a teoria sociolinguística não indica uma hipótese sobre a distribuição social da variável além da hipótese nula, de que não deveria haver nenhuma diferenciação no uso do pronome pleno por essas dimensões sociais. No entanto, nossos resultados mostram um retrato de maior complexidade.

5.3.1 Escolaridade e idade Os resultados para a escolaridade e idade dos falantes aparecem na Tabela 8: Nesta pesquisa, usamos escolaridade como a medida de classe social. Ausente uma

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Capítulo 2

avaliação padronizada do uso de pronome nulo ou pleno, não prevemos encontrar diferenciação no seu uso por escolaridade. E embora a diferença dramática entre Brasil e Portugal indique que, em algum período histórico, ocorreu uma mudança, não existe evidência de que tal mudança continue atualmente em andamento. Os resultados indicam que, nas três cidades, nem escolaridade nem idade têm efeito significativo sobre a expressão do pronome. Concluímos que a variável aqui em foco não está mudando e não tem indexicalidade de status social. Tabela 8: Dialeto, idade e escolaridade no uso de pronome pleno. SP Variedade

/ Dialeto

RJ

input

%

input

%

input

%

.682

67.0 %

.641

64.2 %

.256

31.9 %

peso

Idade

Escolaridade

LIS

peso

peso

velho

.493

70.6 %

.510

63.1 %

.496

31.7 %

meia idade

.508

63.8 %

.514

64.3 %

.521

34.4 %

jovem

.500

66.6 %

.476

63.7 %

.485

29.7 %

fundamental





.505

64.4 %

.501

32.4 %

médio

.496

64.4 %

.476

61.0 %

.511

32.4 %

superior

.505

69.8 %

.520

65.7 %

.488

30.9 %

5.3.2 Gênero Sem evidência qualquer de indexicalidade social, a expectativa foi que não haveria uma associação da expressão de sujeito com gênero.⁴ No entanto, os dados contrariam essa previsão, revelando um efeito significativo de gênero, como se vê na Tabela 9. Nas três cidades, as mulheres, em média, usam mais pronome pleno do que os homens, e a diferença medida por pesos relativos é quase igual. Esses resultados sugerem que a variável tenha uma indexicalidade social, mas qualquer 4 Os dados vêm de corpora que usam a classificação binária de sexo/gênero – masculino e feminino –, mas não temos expectativas de um efeito de gênero para pessoas não-binárias.

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relação indexical com gênero só deve ser assegurada se a diferença entre os fatores for inequívoca, de uma ordem alta, por assim dizer. Tabela 9: Uso de pronome pleno por gênero do falante. SP

RJ

LIS

Gênero

peso

%

peso

%

peso

%

feminino

.529

70.8 %

.522

65.2 %

.551

36.4 %

masculino

.460

61.5 %

.480

62.2 %

.442

26.7 %

Para aprofundar a análise, fizemos um cruzamento entre gênero e idade do falante com resultados contrastantes entre Brasil e Portugal.

Figura 1: Pronome pleno em Lisboa: Divergência nos falantes mais jovens.

Nas duas cidades brasileiras, não há interação: a diferença entre falantes masculinos e femininos é constante em todas as faixas etárias. Em Lisboa, entretanto, embora a idade do falante não mostre um efeito principal significativo, encontramos uma interação de idade com gênero. Na Figura 1, vemos que, nos dados de Lisboa, a diferença entre homens e mulheres é evidente entre os falantes mais jovens, enquanto falantes mais velhos não exibem uma diferença significativa

Capítulo 2

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Figura 2: Pronome pleno no Rio de Janeiro: Ausência de interação entre idade e gênero.

quanto ao gênero. (Os valores são taxas ponderadas⁵ de pronome pleno, controladas para os contextos de uso). Entre os falantes com 45 anos ou menos, apenas duas das doze mulheres mostram uma taxa abaixo de 26 % e apenas um dos nove homens está acima deste valor, uma distribuição claramente significativa (pLisbon

1 sg

66.3

34.4

31.9

1 pl

45.5

28.7

16.8

3 pl

49.5

22.8

26.7

50.4

30.2

20.2

desinência ambigua 3sg

Esta evidência indica que a motivação para o nível alto da expressão do sujeito pronominal no Brasil não reside na flexão verbal ou no sistema de pronomes. Mais provável é que essa motivação esteja relacionada à origem do PB como um “dialeto colonial”, formado numa época em que literalmente milhões de pessoas nãoeuropeias – africanas e indígenas – viviam sob o controle de uma elite lusófona. As línguas dessas populações e as condições sociais que experimentaram influenciaram o desenvolvimento do PB (Mattos e Silva 2004). A aquisição da língua portuguesa pelos povos africanos e indígenas ocorreu principalmente em condições de ‘transmissão irregular’ (Lucchesi 2003). Nessas condições de contato multilíngue, as formas plenas e explícitas logicamente seriam mais úteis, e mais

Capítulo 2

49

fáceis de aprender, do que formas nulas. Propomos, então, que o avanço impressionante no uso do pronome pleno em posição do sujeito é mais uma das características do PB que refletem essa história.

6 Considerações finais Para concluir, os resultados desta pesquisa indicam quatro pontos centrais. 1. Os contextos linguísticos que condicionam a variação derivam seus efeitos do posicionamento na estrutura gramatical da língua. Como esta estrutura é diferente em línguas diferentes, os efeitos de tais fatores não serão necessariamente comparáveis em dialetos/variedades ou línguas distintas. É isso que observamos no caso de você, que alterna com tu em Lisboa, mas não em São Paulo. 2. Os fatores cognitivos que afetam a variação refletem características da mente humana, processos talvez universais de produção e processamento da linguagem; não devem variar entre dialetos/variedades e línguas. Confirmamos esta hipótese com os resultados quantitativos paralelos para continuidade de referência e persistência. 3. A distribuição social de uma variável é intimamente determinada pelas normas e práticas da comunidade, com expressões de identidade e a comunicação de significados sociais. Portanto, não devemos esperar que sejam comparáveis em comunidades diferentes. A prática implícita na Sociolinguística é assumir que podemos fazer generalizações sobre o comportamento linguístico de várias camadas da sociedade, usando categorias como classe social e gênero. Mas precisamos reconhecer que essas generalizações são baseadas em investigações de uma gama muito estreita de sociedades e línguas, especialmente do inglês norte-americano. As características socioeconômicas e históricas de cada sociedade são distintas, com consequências linguísticas imprevisíveis. Os resultados aqui expostos mostram diferenças entre as três comunidades investigadas na realização do sujeito pronominal nas dimensões de gênero e idade dos falantes. 4. A diferença dialetal principal entre PB e PE – a redução maciça no Brasil no uso do sujeito nulo e o aumento correspondente do pronome pleno – não pode ser explicada pelos contextos de uso, sistema pronominal, ou exigências comunicativas, nem pelas práticas sociais atuais. A origem desta diferença fica no passado; sugerimos que reflita a transmissão irregular que predominou na formação da variedade brasileira do Português.

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Gregory R. Guy

Resumindo, vemos que as opções e variáveis linguísticas dependem dos elementos estruturais específicos de cada língua e dos fatos sociais e históricos de cada comunidade. Portanto, é somente com pesquisas comparativas, como as investigações apresentadas neste livro, que podemos chegar a um entendimento válido dos processos e caminhos da variação e mudança sociolinguística.

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Capítulo 2

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Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

Capítulo 3 Objetos diretos em variedades africanas do Português: um estudo de caso de microvariação 1 Introdução O interesse pelo estudo das propriedades das variedades africanas do Português (VAPs) tem crescido significativamente nas últimas décadas. Neste capítulo, pretendemos contribuir para a expansão do conhecimento sobre as VAPs, concentrando-nos na expressão do objeto direto (OD) em três VAPs que se encontram em diferentes fases de um processo de nativização, a saber o português urbano falado em Moçambique (PM), em Angola (PA) e em São Tomé e Príncipe (PST), adquiridas (historicamente) como L2 por falantes de línguas bantu e de um crioulo de base lexical portuguesa. Em particular, propomo-nos desenvolver um estudo de caso de microvariação sintática no domínio das estruturas com verbos transitivos diretos, baseado em dados de corpora urbanos contemporâneos, contribuindo, assim, para uma melhor compreensão dos fatores que desencadeiam as produções inovadoras, i. e., não conformes ao Português Europeu (PE), que caracterizam estas variedades. O nosso estudo de caso inscreve-se no quadro teórico do Programa Minimalista (Chomsky 1995) e discute dois dos fatores que, na proposta de Chomsky (2005), condicionam o desenvolvimento de uma língua no falante: a Gramática Universal, e a experiência ou input linguístico, na qual se incluem aspetos sociolinguísticos. Assim, assumiremos que as VAPs, como qualquer língua natural, são reguladas pela Gramática Universal e mostraremos que o contacto, embora tenha um papel relevante nestes contextos multilingues, não é nem exclusivo nem tão abrangente como tem sido proposto na literatura.

Nota: A investigação neste trabalho foi desenvolvida no âmbito do Projeto Posse e localização: microvariação em variedades africanas do Português (PALMA – PTDC/LLT-LIN/29552/2017), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT, Portugal). Agradecemos a Feliciano Chimbutane e a Afonso Miguel pela discussão dos dados do changana e do quimbundo e aos dois avaliadores anónimos pelos comentários à primeira versão do texto. Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / Centro de Linguística da Universidade de Lisboa https://doi.org/10.1515/9783110670257-005

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Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

O artigo está estruturado da seguinte forma. A Secção 2 revê, sumariamente, a literatura sobre ODs nas três VAPs em questão, referindo, em particular, as estruturas divergentes do Português Europeu (PE), a norma de referência para as VAPs, e a relação que apresentam com estruturas correspondentes nas principais línguas de contacto. Uma vez apresentados os corpora e a metodologia adotada neste trabalho na Secção 3, apresentaremos, na Secção 4, a variação que caracteriza a expressão do OD pleno e pronominal nestas VAPs, nomeadamente a possibilidade de os clíticos acusativos o(s)/a(s) se encontrarem em variação com outras formas, designadamente o clítico lhe(s) e a forma tónica ele(s)/elas(s), que, no PM, também pode ser preposicionada por a, à semelhança dos SNs plenos. Além disso, será, igualmente, discutido o grau de regularidade das estruturas nas produções dos falantes. Os dados serão ainda alvo de tratamento quantitativo, cruzando variáveis linguísticas e sociolinguísticas, nomeadamente o nível de escolarização dos informantes. Na Secção 5, discutiremos em que medida os dados analisados permitem infirmar hipóteses anteriormente apresentadas na literatura para o tratamento dos ODs nas VAPs e proporemos hipóteses alternativas que revisitam o papel do input, por parte do PE e das línguas de contacto, na variação observada.

2 Revisão da literatura As formas pronominais dos ODs nas três VAPs em questão têm sido descritas por diversos autores, cujos trabalhos se centram, de uma forma geral, na perda dos clíticos acusativos (o(s)/a(s) e respetivos alomorfes e na produção de formas alternativas, tipicamente o clítico lhe(s) ou um pronome tónico ele(s)/ela(s), que pode ser preposicionado por a no PM. Além disso, um amplo leque de trabalhos tem discutido a sintaxe dos clíticos, que, apesar de não constituir o tópico central deste trabalho, apresenta interações com os fenómenos analisados (cf. Secção 5). De uma maneira geral, os estudos desenvolvidos sobre as VAPs têm atribuído ao contacto de línguas as propriedades divergentes relativamente ao PE neste e noutros domínios, pelo que revisitaremos, brevemente, as hipóteses que têm sido apresentadas. Do ponto de vista da metodologia de recolha, descrição e análise de dados, os trabalhos de Gonçalves (1991, 2002, 2004, 2010) sobre o PM são pioneiros, inclusivamente na profundidade do estudo dos objetos direto e indireto (OI). A autora propõe que, nesta variedade, os ODs e os OIs com o traço [+HUM] são uniformemente interpretados como Beneficiários, podendo, assim, ser regidos pela preposição a, cuja contrapartida pronominal é a estrutura a ele/(s)/ela(s) ou o clítico lhe.

Capítulo 3

(1)

55

a. Eles elogiaram a uma pessoa. b. Eles elogiaram a ela. c. Eles elogiaram-lhe. (PM, Gonçalves 2010: 120)

A autora atribui esta uniformização simultaneamente a um input ambíguo do PE e à transposição de parâmetros de línguas bantu, L1s dos falantes, no processo de aquisição do português L2. Especificamente, de acordo com Gonçalves (1991 e sgs.), a possibilidade de o OI, que é tipicamente [+HUM], ser cliticizado por lhe(s) no PE sugere que o marcador de Caso dativo a (Duarte 1987) não é indispensável para a gramaticalidade das frases, o que constitui input ambíguo para a aquisição do português. Adotando a proposta de Baker (1988) para as línguas bantu, a autora assume ainda que a preposição funcional a pode ser incorporada na estrutura do verbo, legitimando construções de duplo objeto e a adjacência ao verbo do clítico lhe. Por outro lado, ainda de acordo com a autora, contribui para a reorganização das propriedades gramaticais dos objetos o facto de os nomes com o traço semântico [+HUM] nas línguas bantu poderem ocupar as posições sintáticas mais proeminentes, o que determina a possibilidade de o OD [+HUM] ser sintaticamente realizado como um OI; nesta perspetiva, a preposição a que introduz o OD é um marcador semântico de animacidade. Para Gonçalves (1991 e sgs.), estes dois aspetos permitem explicar a existência dos fenómenos contraditórios que afetam a expressão dos ODs e dos OIs, uniformemente tratados como Beneficiários na terminologia da autora, justificando a reestruturação das grelhas argumentais dos verbos monotransitivos (V SN > V a SN) (e dos verbos ditransitivos V SN1 a SN2 > V SN2 SN1). Contudo, como discutiremos na Secção 5, a definição demasiado ampla do papel de Beneficiário que adota e a hipótese de incorporação não visível da preposição a suscita dúvidas, para além de os nossos dados infirmarem algumas destas hipóteses. Embora esta seja a sua proposta central, Gonçalves (2010: 113–115) refere ainda a possibilidade de a reestruturação nesta área da gramática do PM estar associada à fraca saliência fonética dos clíticos acusativos e ao facto de os ODs [‐HUM] serem maioritariamente retomados por clíticos nulos, aspetos que, como mostraremos na Secção 4, têm, de facto, um papel relevante na variação observada no PM. No que se refere ao PA, diversos trabalhos sobre os ODs pronominais, tanto na variedade de Luanda como em outras (sub)variedades, referem igualmente uma tendência para a perda dos clíticos acusativos e para o emprego do clítico lhe(s) ou do alomorfe le(s) ¹ (e. g., Endruschat 1990: 126; Mingas 2000: 71–73; Miguel 2003;

1 O facto de este alomorfe poder ocorrer em próclise mostra que não se trata de uma forma reduzida do pronome ele.

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Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

Chavagne 2005: 227–228; Inverno 2011: 173–177; Adriano 2014: 403–407; Figueiredo, Jorge e Oliveira 2016). Adicionalmente, alguns autores também identificaram ocorrências dos pronomes tónicos ele(s)/ela(s) em posição de objeto (e. g., Marques 1985: 222–223; Inverno 2011: 173–177); contudo, de acordo com Chavagne (2005: 29), trata-se de um fenómeno residual no português oral de Luanda. A explicação para o uso generalizado de lhe(s) e a maior tendência para próclise nesta variedade é atribuída ao contacto com línguas bantu, em particular o quimbundo, considerando o contexto urbano de Luanda.² Por fim, Figueiredo, Jorge e Oliveira (2016: 257) mostram que, na subvariedade do Libolo (PA), o clítico lhe remete para objetos [±ANIM]. Uma vez que, nas línguas bantu, os nomes, independentemente da sua função sintática, se integram num sistema de classes nominais, que apresentam algumas tendências semânticas, como por exemplo a inclusão de seres humanos nas classes 1 e 2, para o singular e o plural, respetivamente (e. g., Katamba 2003; Van de Velde 2018). O SN objeto pronominalizado nestas línguas ocorre tipicamente sob a forma de prefixo ao radical do verbo, o que significa que um Objeto com o papel de Tema/ Paciente [+HUM] e um Objeto com o papel de Recipiente/Beneficiário [+HUM] apresentam o mesmo Marcador de Objeto (MO) na estrutura verbal, visto que partilham a mesma classe nominal. Nos exemplos (2–3) do changana, a principal língua de contacto do PM falado em Maputo, os objetos mujondzi ‘estudante’ e n’wana ‘criança’ integram ambos a classe nominal 1, sendo retomados anaforicamente através do prefixo pré-radical mu-, correspondente à classe 1. Esta mesma propriedade também caracteriza o quimbundo (e. g., Chatelain 1888–1889; Mingas 2000; Miguel 2003). (2)

a.

b.

Tino a-von-ile mu-jondzi. 1Tino MS1-ver-PST 1-estudante ‘Tino viu o/um estudante.’ (Changana, Gonçalves 2010: 108) Tino a-mu-von-ile. Tino MS1-MO1-ver-PST ‘Tino viu-o.’ (Changana, Gonçalves 2010: 108)

2 O facto de o uso de lhe em contexto de OD ser considerado uma das marcas mais salientes do PA explica, inclusive, a sua utilização recorrente em obras literárias de autores angolanos, especialmente em contextos de discurso direto de personagens. Obras mais antigas, como João Vêncio: os seus amores, da autoria de Luandino Vieira, escrita em 1968 e publicada em 1979, mostram que a utilização do clítico lhe em contexto acusativo já fazia parte da realidade linguística de Luanda há meio século.

Capítulo 3

(3)

a.

b.

57

Mamani a-nyik-ile n’w-ana pawa. 1.mãe MS1-dar-PST 1-criança 5.pão ‘A mãe deu (algum) pão à criança.’ (Changana, Chimbutane 2002: 108) Mamani a-mu-nyik-ile pawa. 1.mãe MS1-MO1-dar-PST 5.pão ‘A mãe deu-lhe (algum) pão.’ (Changana, Chimbutane 2002: 117)

Compreende-se, portanto, que tenha sido atribuída ao contacto de línguas a tendência que se observa no PA e no PM para alargar o clítico lhe(s) a contextos que no PE são acusativos. Contudo, como discutiremos na Secção 5, uma análise dos dados dos nossos corpora mostra que outros fatores estão em jogo. No PST, uma variedade que tem sido menos investigada em comparação com o PA e o PM, os trabalhos de Afonso (2008: 68; 88–89) e Lima Afonso (2009: 116–117), que se baseiam em produções escritas de alunos da 5.ª, 6.ª e 9.ª classes, fazem sobretudo referência ao uso de pronomes tónicos em vez de clíticos (acusativos e dativos), mas mencionam também o uso do clítico lhe(s) em vez do acusativo. Lima Afonso, em particular, refere que a indistinção entre formas de sujeito e de objeto no forro constitui uma das características que seriam transferidas para o PST. Gonçalves (2016), por sua vez, tendo por base uma parte do corpus do PST analisado neste trabalho, dá conta da variação existente nos ODs pronominais, considerando que se observa um maior número de ocorrências do clítico lhe e do pronome tónico do que do clítico acusativo, o que parece corroborar a tendência observada também no PM e no PA para a perda dos clíticos acusativos. Em suma, os diversos trabalhos sobre ODs nas três VAPs enfatizam o papel de contacto, invocando, de forma implícita ou explícita, traços sintático-semânticos ligados à gramática das línguas bantu, no caso do PM e do PA. Entre os aspetos que têm sido menos explorados ou desenvolvidos no domínio dos ODs estão, por exemplo, a descrição e análise da retoma de objetos com o traço semântico [‐ANIM] e a variação, com base em dados quantificados, que caracteriza as estruturas estudadas.

3 Metodologia Os dados utilizados neste estudo foram extraídos de corpora orais de variedades africanas do Português faladas em Maputo/Moçambique, Luanda/Angola e São Tomé/São Tomé e Príncipe, recolhidos entre 2008 e 2020, mediante entrevistas semi-estruturadas. Os corpora foram preparados no âmbito do Projeto Posse e localização: microvariação em variedades africanas do Português (PALMA). Para a grande maioria dos informantes cujas produções constituem estes corpora, o Português é a L1 ou a língua primária, especialmente no caso de Angola e de São

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Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

Tomé e Príncipe, onde há também um maior número de monolingues. No que se refere às principais variáveis sociolinguísticas, a saber ‘nível de escolaridade’, ‘idade’ e ‘sexo’, os corpora são relativamente equilibrados, tanto internamente como entre si (para detalhes, cf. Hagemeijer et al. 2022b). A Tabela 1 sintetiza a informação básica sobre os corpora. Tabela 1: Perfil dos corpora PALMA. Entrevistas

Horas

Tokens

Ano

Angola

58

34

393,745

2012,2013, 2019

Moçambique

70

42

380,958

2010, 2020

São Tomé e Príncipe

77

32

322,999

2008, 2011, 2012

Total

205

108

1,097,702

Para o estudo de caso sobre a expressão do OD nas VAPs, foram considerados 112 verbos, que, no PE, são transitivos diretos, tendo sido analisados todos os contextos de OD pronominal subcategorizados por eles. Para uma análise dos ODs plenos, foi considerado apenas um subconjunto de 17 verbos. A escolha dos verbos considerados neste trabalho teve como ponto de partida os 48 verbos identificados por Gonçalves (1991), que, no corpus então analisado, selecionam ou objetos preposicionados por a que são ODs no PE ou objetos cliticizados por lhe(s). Foram excluídos desta primeira fase de análise todos os contextos de ODs não realizados, entre os quais se encontram objetos nulos e retomas de diferentes tipos, bem como ODs realizados em estruturas infinitivas dependentes de verbos causativos, como mandar, deixar, ou percetivos, como ver, ouvir ou sentir. Na sua maioria, os casos de objetos não realizados envolvem ODs [‐ANIM], o que se reflete no baixo número de ODs pronominais de 3.ª pessoa [‐ ANIM] encontrados nos três corpora.

4 Estruturas monotransitivas nos corpora das VAPs 4.1 Português de Moçambique De acordo com Gonçalves (1991: 157), a partir da análise de produções orais e escritas recolhidas junto de 40 informantes em 1986/1987, a possibilidade de os ODs

Capítulo 3

59

serem sintaticamente realizados como OIs é um fenómeno essencialmente oral (86,5 % em produções orais vs. 13,5 % em produções escritas).³ No conjunto dos 40 informantes do seu corpus, 24 (60 %) produzem uma ou mais estruturas divergentes do PE na expressão do OD. Embora a autora não apresente os dados quantitativos referentes à produção do OD nem como um SN pleno não preposicionado nem como um clítico acusativo, o número total de ocorrências de a SN e de a PRON mostra que este não é um fenómeno de espectro alargado no referido corpus. De facto, registavam-se nele 19 ocorrências de ODs realizados como a SNs (Beneficiários, na proposta de Gonçalves (1991 e sgs.) e 12 ocorrências de ODs realizados como a PRON, num total de 89 contextos analisados (21,3 % e 13,5 %, respetivamente). Destacava-se, por outro lado, o uso do clítico lhe em 58 contextos (65,1 %). Vejamos, em seguida, a distribuição do OD com SNs plenos e pronominais do corpus do PM contemporâneo. Tabela 2: OD com SNs plenos no Corpus PALMA Moçambique. [+ANIM]

[‐ANIM]

TOTAL

SN

181 (35,5 %)

318 (62,4 %)

499 (97,8 %)

a SN

9 (1,8 %)

2 (0,4 %)

11 (2,2 %)

TOTAL

190 (37,3 %)

320 (62,7 %)

510 (100 %)

A Tabela 2 acima ilustra a distribuição dos SNs plenos com a função de OD (na perspetiva do PE) no corpus analisado. Como mostram os dados quantitativos, os ODs são maioritariamente produzidos como SNs não preposicionados (97,8 %), registando-se um maior número de ocorrências com SNs [‐ANIM] (62,4 %) (cf. (4)), o que é esperado, dadas as propriedades de seleção dos verbos transitivos, em que predominam argumentos [‐ANIM]. Esta mesma tendência também se observa no PA e no PST (cf. secções seguintes). 3 Os informantes que constituem o corpus de Gonçalves (1991) tinham completado 9 anos de escolaridade, frequentavam um curso de formação de professores na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo e eram predominantemente falantes L1 de línguas bantu, com mais relevância para o tsonga (40 % dos informantes), designação que inclui o ronga e o changana.

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(4)

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

a. eu ia ficar contente porque ia ajudar o meu marido b. nos bairros dificilmente encontra uma instituição

Os ODs introduzidos pela preposição a, apresentados em geral na literatura como uma propriedade do PM, ocorrem de forma muito limitada no corpus, totalizando apenas 2,2 % das ocorrências, as quais correspondem predominantemente a SNs [+ANIM].⁴ Numa perspetiva comparativa entre os dois corpora de fases temporais distintas, e tendo em conta o número de informantes de cada corpus, observa-se uma diminuição acentuada da produção desta estrutura, uma vez que apenas 9 dos 70 informantes do nosso corpus produzem a SN (contra 19 num total de 40 no corpus de Gonçalves 1991). (5)

a. eu educo aos meus filhos para fazer o que é (…) essencial da religião b. eu acho que agora estamos numa fase de adaptação / não é? um conhecer ao outro já numa maneira mais íntima

Apesar de os verbos educar e conhecer do PM poderem subcategorizar um SN introduzido por a, como ilustram os exemplos acima, o uso restrito destas formas, paralelamente à seleção frequente de um SN não preposicionado no corpus, inclusivamente pelos mesmos informantes, constitui evidência de que não estamos perante uma mudança na estrutura argumental dos verbos, mas somente perante um caso de variação inter e intrafalante. A título de exemplo, contrastem-se as produções abaixo e considere-se que, no conjunto das 6 ocorrências de OD pleno [+ANIM] subcategorizado pelo verbo ajudar produzidas pelo mesmo falante, apenas uma envolve a preposição a (veja-se também (9a) adiante, com o verbo abranger). (6)

a. para ele poder viver, ajudar a outras pessoas b. assim que eu ajudo meus pais

A tabela seguinte apresenta a distribuição dos ODs exclusivamente com SNs pronominais, designadamente os ODs de 1.ª e 2.ª pessoa, sendo a 3.ª pessoa tratada separadamente, mais abaixo.

4 Os dois exemplos de SNs [‐ANIM] identificados no corpus, ajudar à própria saúde e seguir a um caminho, suscitam dúvidas. O primeiro caso poderá não envolver crase mas antes a produção mais aberta do artigo; o segundo caso poderá envolver uma substituição da preposição (por > a).

Capítulo 3

61

Tabela 3: OD pronominal de 1.ª e 2.ª pessoa no Corpus PALMA Moçambique. Singular

Plural

TOTAL

me, nos

286 (71,5 %)

55 (13,8 %)

341 (85,3 %)

te, vos

35 (8,8 %)

6 (1,5 %)

41 (10,3 %)

a mim, a nós

14 (3,5 %)

4 (1,0 %)

18 (4,5 %)

TOTAL

335 (83,8 %)

65 (16,3 %)

400 (100 %)

Como mostram os dados, o uso do clítico de 1.ª e 2.ª pessoa predomina sobre a forma a PRON, totalizando 382 ocorrências, o que corresponde a 95,5 % dos dados pronominais. Os exemplos (7–8) ilustram o uso dos clíticos de 1.ª e 2.ª pessoa.⁵ (7)

a. meti-me nesse grupo b. sempre se esforçaram por nos educar c. a religião me ajuda

(8)

a. e assim ele está para te levar para lá b. há de haver massacre, vão-vos matar c. as coisas vão-te encontrar pelo caminho

A forma tónica do pronome introduzida pela preposição a também é atestada, ainda que exclusivamente com ODs pronominais de 1.ª pessoa e de forma bastante limitada: 18 ocorrências num total de 400 (4,5 %) (cf. (9)). (9)

a. acho que esse mal que abrange a mim / os meus filhos / não abrange o meu+ não atinge o meu marido b. vocês são doutore[s] ajuda a nós para Moçambique

A Tabela 4 abaixo apresenta a distribuição dos ODs pronominais de 3.ª pessoa, organizada por traço de animacidade.

5 O uso do hífen nos contextos de ênclise deve-se ao facto de os dados do corpus terem sido transcritos ortograficamente em PE, o que não invalida a hipótese de se tratar de instâncias de próclise ao verbo não finito. Veja-se a Secção 5.

62

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

Tabela 4: OD pronominal de 3.ª pessoa no Corpus PALMA Moçambique. [+ANIM]

[‐ANIM]

TOTAL

o(s), a(s) (+alomorfe lo(s), la(s))

28 (19,6 %)

2 (1,4 %)

30 (21,0 %)

lhe(s)

62 (43,4 %)

0

62 (43,4 %)

ele(s), ela(s)

15 (10,5 %)

0

15 (10,5 %)

a ele(s), ela(s)

36 (25,2 %)

0

36 (25,2 %)

TOTAL

141 (98,6 %)

2 (1,4 %)

143 (100 %)

Como mostram os dados, a variação entre um clítico e outra forma pronominal ocorre exclusivamente com ODs com o traço [+ANIM], sendo que os falantes usam o clítico dativo lhe(s) em 62 dos contextos analisados (43,4 %), num total de 143 ocorrências de ODs pronominais de 3.ª pessoa. É de salientar que o clítico lhe ocorre tipicamente em posição de próclise, mesmo em contextos nos quais se usaria a ênclise no PE (cf. (10)) (cf. discussão na Secção 5). (10)

a. você não há de lhe ver mais na vida b. e isso lhes ajudou muito

No conjunto dos clíticos acusativos (30 ocorrências), regista-se o uso do clítico o(s)/ a(s) (14 ocorrências), bem como do seu alomorfe lo(s)/la(s) (15 ocorrências); o alomorfe no(s)/na(s) ocorre apenas uma vez nos dados analisados. (11)

a. encontrei-a lá a mexer nas minhas coisas b. o meu maior desejo era conhecê-lo c. quando ocorre um acidente, levam-nas para o Hospital Central de Maputo

Por sua vez, a forma tónica ele(s)/ela(s), precedida ou não da preposição a, ocorre tendencialmente em contextos nos quais o PE usaria o clítico acusativo na sua forma básica – o(s)/a(s), respetivamente 63,8 % (23, num total de 36 ocorrências de a PRON) e 53,3 % (8, num tal de 15 ocorrências de PRON).

(12)

a. Eu gosto muito dela, eu prezo muito a ela

Capítulo 3

63

b. b. até formei quatro pessoas lá; eu, para formar a elas, eu tinha que usar + falar mesmo em português (13)

a. eu também fui, acompanhava eles b. vai sapatilhas de marca, então os professores dela, quando vê ela, pensam de que ela já tem muito dinheiro

No que diz respeito às formas tónicas, uma análise da distribuição de a ele(s)/ela(s) mostra que esta forma ocorre em 86,1 % dos contextos em que o PE usaria o clítico acusativo em ênclise, i. e. 31, num total de 36 ocorrências (cf. (12a)). Da mesma forma, as formas tónicas ele(s)/ela(s) ocorrem em 73,3 % dos contextos, que, em PE, envolveriam ênclise, i. e. 11, num total de 15 ocorrências (cf. (13a)). Tabela 5: OD pleno e pronominal por nível de escolarização no Corpus PALMA Moçambique.

SN PLENO

SN PRONOMINAL

TOTAL

1.º – 9.º ano Ensino Básico

Ensino Secundário – Ensino superior

SN

212 (45,6 %)

287 (48,7 %)

a SN

5 (1,1 %)

6 (1,0 %)

me, nos, te, vos

169 (36,3 %)

215 (36,5)

o(s), a(s) (e alomorfes)

3 (0,6 %)

27 (4,6 %)

lhe

32 (6,9 %)

29 (4,9 %)

ele(s), ela(s)

11 (2,4 %)

4 (0,7 %)

a ele(s), ela(s)

33 (7,1 %)

21 (3,6 %)

465 (100 %)

589 (100 %)

Em suma, o PM exibe variação na expressão do OD, sobretudo a nível dos objetos pronominais de 3.ª pessoa. Destaca-se o uso mais regular do clítico lhe, em variação com o clítico acusativo e com a forma tónica introduzida pela preposição a. Relativamente aos SNs plenos, e embora os estudos desenvolvidos sobre o PM

64

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

(Gonçalves 1991 e sgs.) discutam a mudança gramatical que determina o uso de ODs introduzidos pela preposição a e o assumam como uma propriedade característica desta variedade, sobretudo em estádios finais de aquisição, a sua ocorrência é escassa no corpus de PM urbano aqui analisado. A Tabela 5 apresenta a distribuição de ODs realizados por informantes com nível de escolarização mais baixo (do 1.º ano ao 9.º ano do Ensino Básico) e por informantes com nível de escolarização mais alto (do 1.º ano do Ensino Secundário, 10.º ano, até ao Ensino Superior, em frequência ou concluído). Centrando-nos nas estruturas monotransitivas, verifica-se uma elevada convergência com o PE nos contextos de SN pleno, tanto nos informantes mais escolarizados como nos menos escolarizados. Quanto aos ODs pronominais, observase um efeito mais nítido da escolarização na diminuição das produções inovadoras PRON e a PRON e no aumento do clítico acusativo. Já a forma lhe surge mais consolidada nos dois grupos.

4.2 Português de Angola A Tabela 6 apresenta a distribuição do OD com SNs plenos no corpus do PA. Tabela 6: OD com SNs plenos no Corpus PALMA Angola.

SN

[+ANIM]

[‐ANIM]

TOTAL

115 (14,3 %)

689 (85,7 %)

804 (100 %)

Nesta variedade, os ODs plenos são exclusivamente produzidos como SNs não preposicionados, não se registando, portanto, casos de ODs introduzidos pela preposição a. (14)

a. conseguia dar conta quem é o elemento que está a afetar essa família b. temos que abraçar a nossa cultura

A tabela seguinte ilustra a distribuição dos ODs pronominais de 1.ª e 2.ª pessoa no PA.

Capítulo 3

65

Tabela 7: OD pronominal de 1.ª e 2.ª pessoa no Corpus PALMA Angola. Singular

Plural

TOTAL

1.ª pessoa (me, nos)

75 (57,7 %)

20 (15,4 %)

95 (73,1 %)

2.ª pessoa (te, vos)

34 (26,2 %)

1 (0,8 %)

35 (26,9 %)

TOTAL

109 (83,8 %)

21 (16,2 %)

130 (100 %)

Os dados apresentados na tabela mostram que, no PA, os ODs pronominais de 1.ª e 2.ª pessoa assumem exclusivamente a forma de clíticos, não se registando, portanto, contrariamente ao PM, pronomes fortes, precedidos ou não de a. (15)

a. a minha mãe me tirou de lá muito cedo b. o padrasto que ficou com a nossa mãe é que nos levou lá

(16)

a. quando não te conhecem, então você suspeita b. estou já vos avisar, meus rapazes

Os ODs de 3.ª pessoa são apresentados na tabela seguinte, organizados por traço de animacidade. Tabela 8: OD pronominal de 3.ª pessoa no Corpus PALMA Angola. [+ANIM]

[‐ANIM]

TOTAL

o(s), a(s) (+alomorfe lo(s), la(s))

18 (29,0 %)

11 (17,7 %)

29 (46,8 %)

lhe(s)

24 (38,7 %)

0

24 (38,7 %)

ele(s), ela(s)

9 (14,5 %)

0

9 (14,5 %)

TOTAL

51 (82,3 %)

11 (17,7 %)

62 (100 %)

À semelhança do verificado para o PM, os dados do PA mostram que o traço de animacidade é determinante, já que a variação se observa exclusivamente nos ODs

66

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

[+ANIM]. Contrariamente ao observado no PM, no PA o uso do clítico acusativo sobrepõe-se ao uso de outras formas, totalizando 29 ocorrências, num total de 62 contextos analisados (46,8 %). Contudo, note-se o uso maioritário do alomorfe lo(s)/ la(s), em 23 dos 29 contextos de ocorrência de clítico acusativo com ODs [±ANIM] (37,1 %), sendo que a forma o(s)/a(s) é observada em apenas 6 ocorrências (9,7 %) (cf. (17)), o que corrobora a tendência para a perda da forma básica do clítico acusativo. (17)

a. preparação essa que nós possamos adquiri-la (…) nas universidades b. porque eu não tenho intimidades com aquela pessoa e tenho que agarrá-lo c. vão passar o tempo lá na escola porque tem alguém que os obriga

O alomorfe lo(s)/la(s) encontra-se, portanto, em variação com o clítico lhe(s), registado em 24 dos contextos analisados, num total de 62 (38,7 %) (cf. (18)), o qual, à semelhança da tendência observada no PM, ocorre aqui exclusivamente em próclise, mesmo em contextos nos quais no PE haveria ênclise (cf. (18b)).⁶ (18)

a. pode ser que não vão ter ninguém que lhes ajuda b. vou para a lavra com a mãe, lhe ajudo um pouco

Por sua vez, a forma tónica do pronome ocorre unicamente em 9 das 62 ocorrências, o que equivale a 14,5 %, tipicamente em contextos nos quais o PE usaria o clítico acusativo o(s)/a(s) em próclise (cf. (19)), corroborando a afirmação de Chavagne (2005) de que a forma tónica do pronome não é frequente no PA. (19)

a. só conheci ele depois da morte b. quem está errado ele procura forma de aconselhar ele

Em suma, no conjunto dos dados do PA analisados, destaca-se (i) a perda do clítico acusativo na sua forma básica, o(s)/a(s); (ii) a variação entre o alomorfe lo(s)/la(s) e o clítico lhe na expressão de ODs de 3.ª pessoa [+HUM]; e (iii) o uso do lhe exclusivamente em próclise. A Tabela 9 apresenta a distribuição do OD por grupos de informantes, tendo em conta o nível de escolarização.

6 Veja-se inclusivamente a coocorrência do alomorfe -lo e do clítico lhe num dos contextos analisados: (i) ela só se eu pegar zungueira na rua / lhe pôr … conseguir-lhe ajudá-lo.

Capítulo 3

67

Tabela 9: OD pleno e pronominal por nível de escolarização no Corpus PALMA Angola.

SN PLENO

SN PRONOMINAL

1.º – 9.º ano Ensino Básico

Ensino Secundário – Ensino superior

SN

277 (79,1 %)

527 (81,6 %)

me, nos, te, vos

50 (14,3 %)

80 (12,4)

o(s), a(s) (e alomorfes)

3 (0,9 %)

26 (4,0 %)

lhe(s)

13 (3,7 %)

11 (1,7 %)

ele(s), ela(s)

7 (2,0 %)

2 (0,3 %)

350 (100 %)

646 (100 %)

TOTAL

Relativamente à distribuição do OD, também no PA se verifica o uso maioritário de formas convergentes com o PE (SN pleno, CL 1.ª/2.ª/3.ª pessoas), tanto no grupo de informantes mais escolarizados, como no grupo de informantes menos escolarizados. Além disso, e considerando exclusivamente a expressão do OD pronominal de 3.ª pessoa, observa-se que o uso do clítico lhe, tipicamente referido na literatura como uma propriedade do PA, ocorre maioritariamente nas produções dos informantes menos escolarizados (13, num total de 24 contextos), enquanto o clítico acusativo ocorre maioritariamente nas produções dos informantes mais escolarizados (26, num total de 29 contextos). Note-se, aliás, que as 6 ocorrências do clítico na sua forma básica ocorrem em produções de informantes que concluíram ou estão a frequentar o ensino superior, pondo em evidência, uma vez mais, o peso da variável escolarização nas VAPs.

4.3 Português de São Tomé A Tabela 10 mostra a distribuição do OD com SNs plenos no corpus do PST.

68

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

Tabela 10: OD com SNs plenos no Corpus PALMA São Tomé e Príncipe.

SN

[+ANIM]

[‐ANIM]

TOTAL

108 (36,6 %)

187 (63,4 %)

295 (100 %)

Distintamente do PM e à semelhança do PA, no PST, os ODs plenos são exclusivamente produzidos como SNs não preposicionados. (20)

a. acompanho o cliente, tipo dum guia b. ah não sei se gente encontra essa madeira

Na tabela seguinte, apresenta-se a distribuição dos ODs pronominais de 1.ª e 2.ª pessoa no PST. Tabela 11: OD pronominal de 1.ª e 2.ª pessoa no Corpus PALMA São Tomé e Príncipe. Singular

Plural

TOTAL

1.ª pessoa (me, nos)

34 (61,8 %)

16 (29,1 %)

50 (90,9 %)

2.ª pessoa (te, vos)

5 (9,1 %)

0 (0,0 %)

5 (9,1 %)

TOTAL

39 (70,9 %)

16 (29,1 %)

55 (100 %)

Como se pode observar, os clíticos de 1.ª pessoa do singular e do plural totalizam o maior número de ocorrências, 50, num total de 55 (90,9 %), enquanto o clítico de 2.ª pessoa do singular é registado apenas 5 vezes (9,1 %). Não se regista nenhuma ocorrência do clítico de 2.ª pessoa do plural vos. (21)

a. tiraram-me de cadeia e meteram-me no avião b. tínhamos um polícia militar que nos acompanhava c. eu vou estudar contigo que é para poder te ajudar

Por sua vez, os ODs de 3.ª pessoa são apresentados na Tabela 12, organizados por traço de animacidade.

Capítulo 3

69

Tabela 12: OD pronominal de 3.ª pessoa no Corpus PALMA São Tomé e Príncipe. [+ANIM]

[‐ANIM]

TOTAL

o(s), a(s) (+alomorfe lo(s), la(s))

9 (25,0 %)

2 (5,6 %)

11 (30,6 %)

lhe(s)

5 (13,9 %)

0

5 (13,9 %)

ele(s), ela(s)

20 (55,6 %)

0

20 (55,6 %)

TOTAL

34 (94,4 %)

2 (5,6 %)

36 (100 %)

O PST distingue-se do PM e do PA, ao preferir a forma tónica do pronome ele(s)/ ela(s) na expressão do OD pronominal de 3.ª pessoa [+ANIM]; note-se que esta forma totaliza 55,6 % das ocorrências (20, num total de 36) (cf. 22)). (22)

a. algumas vezes vou lá acompanhar ele b. não tem ninguém para ajudar ele

Além disso, distingue-se igualmente das restantes variedades em análise, ao apresentar um maior número de clíticos acusativos de 3.ª pessoa [+ANIM] do que do clítico lhe, o qual, como vimos, é dominante no PM e no PA, em igual contexto. Não obstante, o uso do clítico acusativo é limitado no corpus, totalizando apenas 11 ocorrências, 9 com ODs [+ANIM] e 2 com ODs [‐ANIM] (30,6 %), sendo que em 8 ocorre o alomorfe lo(s)/la(s) e não a forma básica do clítico. (23)

a. disse para dar-lhe um frete, levou-os para uma zona… b. disse ao compadre se o compadre poderia levá-lo para (…) a festa c. então houve necessidade de pô-lo em funcionamento

O clítico lhe(s), por sua vez, é registado apenas 5 vezes no corpus (13,9 %). (24)

Miguel Trovoada é que lhe ajudou e apoiou-lhe

Finalmente, é de referir que a forma tónica ele(s)/ela(s) e o clítico lhe(s) ocorrem tipicamente em contextos nos quais o PE usaria a forma básica do clítico acusativo, o(s)/a(s); em números absolutos, a forma ele(s)/ela(s) ocorre em 18, num total de 20 contextos, e o clítico lhe(s) ocorre em 4, num total de 5 contextos, o que, juntamente

70

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

com o maior número de alomorfes lo(s)/la(s) acima referido, sugere a preferência por uma forma pronominal mais saliente para a expressão do OD. A tabela seguinte apresenta a distribuição dos ODs (plenos e pronominais) por níveis de escolarização. Tabela 13: OD pleno e pronominal por nível de escolarização no Corpus PALMA São Tomé e Príncipe.

SN PLENO

SN PRONOMINAL

TOTAL

1.º – 9.º ano Ensino Básico

Ensino Secundário – Ensino superior

SN

129 (73,3 %)

167 (79,1 %)

me, nos, te, vos

31 (17,6 %)

24 (11,4 %)

o(s), a(s) (e alomorfes)

3 (1,7 %)

8 (3,8 %)

lhe

1 (0,6 %)

4 (1,9 %)

ele(s), ela(s)

12 (6,8 %)

8 (3,8 %)

176 (100 %)

211 (100 %)

Relativamente à distribuição do OD, os dados mostram que, à semelhança do verificado para o PM e o PA, o PST apresenta claramente um maior número de ocorrências convergentes com o PE quando envolvido um OD pleno ou um OD pronominal de 1.ª e 2.ª pessoa, o que corresponde a 91 % dos contextos analisados em cada um dos dois grupos. A variação é observada na expressão do OD pronominal de 3.ª pessoa. Não obstante o baixo número de ocorrências, os dados acima apresentados sugerem que as formas pronominais clíticas – o(s)/a(s) e lhe(s)) – são maioritariamente produzidas pelos informantes com nível de escolarização mais elevado (5,7 %), ao passo que o pronome ele(s)/ela(s) parece estar associado às produções de informantes com nível de escolarização mais baixo (6,8 %).

Capítulo 3

71

5 Discussão dos resultados Nesta secção, propomo-nos avaliar os dados dos nossos corpora à luz de hipóteses anteriormente apresentadas na literatura para dar conta das produções inovadoras de ODs nas VAPs. Nos casos em que tais dados não corroboram análises anteriores, sugerimos hipóteses alternativas que reavaliam o papel do input e da variável escolarização na estabilização ou no progressivo desaparecimento de tais produções. Consideremos em primeiro lugar os dados relativos aos SNs plenos. Existe convergência com o PE na expressão do OD nos corpora analisados; esta convergência é total no caso do PA e do PST e esmagadora no caso do PM: 499 ocorrências convergentes vs. 11 não convergentes, da forma a SN. Face aos dados do corpus de Gonçalves (1991), estes resultados apontam para o (progressivo) desaparecimento das produções a SN no PM urbano. Como é sabido, Gonçalves (1991 e sgs.) adota para o PM a análise das construções de duplo objeto proposta por Baker (1988) para as línguas bantu e para o inglês, propondo a incorporação no verbo de uma preposição nula. Para a autora, a mudança gramatical subjacente à ocorrência de ODs plenos preposicionados decorreria da possibilidade de o argumento introduzido por a ser interpretado como Beneficiário, independentemente da função sintática desempenhada em PE, o que conduziria à alteração da grelha argumental dos verbos, não se registando ocorrências de SNs preposicionados que não pudessem ser interpretadas dessa forma (Gonçalves 2010: 122). Para acomodar esta análise aos dados do seu corpus, Gonçalves (1991 e sgs.) assume uma definição do papel de Beneficiário questionável, que subsume os papéis de Tema/Paciente e Alvo/Recipiente.⁷ Contudo, no Corpus PALMA Moçambique, a forma a SN e a sua contrapartida pronominal a PRON ocorrem não só com verbos como ajudar, educar e servir, a cujo argumento interno se poderia atribuir o papel de Beneficiário, mas também com verbos como amar, apanhar, conhecer, matar, procurar e ver, cujo argumento interno dificilmente poderá receber um papel temático distinto do de Tema. Adicionalmente, a validade desta hipótese depende da existência de uma correlação entre a produção de a SN e de lhe(s) nas produções de um mesmo falante; por outras palavras, só assim seria sustentável estarmos na presença de uma reestruturação da grelha argumental dos verbos que o falante tivesse reinterpretado como s-selecionando um argumento Beneficiário. Ora nem os dados do

7 O papel de Beneficiário designa “a entidade [+ANIM], não controladora, da qual ou para a qual algo é transferido em sentido literal ou alargado” (Gonçalves 1991: 99).

72

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

corpus da autora mostram que tal correlação exista⁸, nem as tarefas de juízos de aceitabilidade por ela elicitados revelam regularidade na relação entre a SN e lhe(s) (Gonçalves 1991: 162–165). De resto, no nosso corpus esta regularidade entre a SN e a PRON também não se verifica, como mostram os seguintes exemplos de dois falantes distintos, que recorrem, no mesmo contexto e com o mesmo verbo, às estruturas a PRON e SN não precedido de a. (25) (26)

acho que esse mal que abrange a mim / os meus filhos / não abrange Ø o meu + não atinge o meu marido porque quando tiveram a mim / &ah depois duns dois / dois anos / tiveram Ø um+ um irmão+ meu irmão /

A falta de evidência empírica em prol da reestruturação das grelhas argumentais é também reforçada pelo facto de os verbos em questão, quer no português quer no changana, serem tipicamente transitivos diretos. Tendo em conta esta congruência estrutural, esperar-se-ia a manutenção deste traço no processo de emergência da nova variedade e não uma reanálise envolvendo o aparecimento da preposição funcional a. Assim, a ocorrência de ODs introduzidos por a requer a avaliação de outros fatores responsáveis pelas produções inovadoras que permitam explicar simultaneamente a produção de ODs plenos e pronominais preposicionados, a inexistência de correlação entre a SN e lhe (ou a PRON) e, ainda, a ausência das formas preposicionadas no PA, variedade igualmente em contacto com línguas bantu. Como a descrição apresentada na Secção 4.1 mostra, a ocorrência da forma a antepondo o argumento interno direto dos verbos transitivos só é expressiva quando tal argumento é pronominal: encontramos apenas 2,2 % de a SN pleno contra 25,2 % de a PRON de 3.ª pessoa e 4,5 % de a PRON de 1.ª e 2.ª pessoas. Esta disparidade quantitativa sugere que são propriedades específicas dos pronomes que constituem fatores favoráveis à reanálise. Duas propriedades características das categorias pronominais surgem imediatamente como candidatas: a animacidade e a definitude.

8 A título de exemplo, numa das entrevistas de Gonçalves (1991) o informante GAB-17 utiliza a estrutura V SN e lhe V, com o verbo amar: “uma menina ama um rapaz não por um desejo mas posso dizer por uma necessidade” e “porque na verdade uma moça ou um rapaz quando declara a uma moça que lhe ama não porque realmente deseja lhe ter de corpo e alma mas alguma coisa lhe atraiu!”. O informante IDA-19, por outro lado, utiliza V a SN e a contrapartida pronominal com clítico (em vez de a PRON): “a natureza não pode dominar ao homem” e “então eles dominavamnos!”.

Capítulo 3

73

Como é sabido, o valor positivo para o traço [HUM] constitui uma característica intrínseca dos pronomes com o valor positivo para o traço de pessoa (i. e., dos pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas), e é dominante nas formas sem esse traço, ou seja, nas formas de 3.ª pessoa. Ora nas escalas de animacidade que têm sido propostas, o traço [+HUM] ocupa a posição mais elevada, seguindo-se-lhe o traço [+ANIM], e ficando o traço [‐ANIM] na posição inferior. Quanto à definitude, os pronomes ocupam a posição mais alta nas escalas deste traço semântico, como, por exemplo, na de Comrie (1989): (27)

Hierarquia de definitude Pronome pessoal > Nome próprio > SN definido > SN indefinido > SN não específico

Estas propriedades dos pronomes tornam-nos elementos vocacionados para funções na estrutura informacional dos enunciados, especificamente funções de tópico, tipicamente desempenhadas por constituintes com o estatuto de dado (= given), i. e., previamente mencionados no discurso ou inferíveis a partir do discurso ou da situação, e, portanto, tipicamente definidos. Assim, retomando a ideia de uma reanálise dos dados do PE à luz das propriedades da L1, consideremos propriedades da gramática do changana, que é a L1 ou uma das L1s da maioria dos falantes do nosso corpus, que possam ter favorecido a ocorrência de ODs preposicionados. Estudos sobre a gramática do changana mostraram que esta língua tem tempos verbais que assinalam a topicalidade do argumento interno direto e que usa o processo de concordância de objeto para assinalar efeitos relativos à estrutura informacional (e. g., Chimbutane 2002; Zerbian 2007). Com efeito, nesta língua, a posição imediatamente à direita do verbo está reservada para constituintes com a função de foco informacional, i. e., de constituinte com o estatuto de novo (= new), sendo sobre ele que recai o acento principal da frase (Chimbutane 2002). Para assinalar que o argumento interno direto aparentemente nessa posição tem o estatuto de tópico, portanto, de definido, usam-se tempos verbais pressuposicionais que permitem ou obrigam, consoante os verbos, a que tenha lugar o processo de concordância de objeto. O exemplo abaixo, adaptado de Chimbutane (2002: 88), ilustra este processo, mostrando a tradução para português o efeito da concordância de objeto na interpretação do argumento Tema como um tópico deslocado à direita. (28)

Ndz-à-yí-dl-á nyámà. 1SG.SM-PRE-9OM-comer-FV 9carne ‘Estou a comê-la, esta carne.’ (trad. original: I am eating it, meat’)

74

Rita Gonçalves, Inês Duarte, Tjerk Hagemeijer

No processo de aquisição de L2 que caracterizou os estádios iniciais de formação do PM, a propriedade de reservar a posição adjacente à direita ao verbo para o foco informacional pode ter sido transferida. Na ausência de um processo de concordância de objeto na língua-alvo para marcar a topicalidade do argumento à direita do verbo, os falantes podem ter reanalisado uma estrutura disponível na língua-alvo como um processo com os mesmos efeitos, a saber o redobro do clítico. (29)

a. O João viu-me a mim ontem. (PE) b. A Maria conheceu-o a ele na passagem de ano. (PE)

O PE só admite o redobro de clíticos com pronomes ou quantificadores simples, o que explicaria o elevado número de formas a PRON e a escassez de ocorrências de a SN no nosso corpus. Ora, o redobro do clítico no PE exprime valores próximos de foco contrastivo, enquanto a concordância de objeto em changana assinala a topicalidade do objeto. Contudo, esta aparente contradição pode ter sido sobrelevada pelo facto de ambos os processos gramaticais assinalarem propriedades relevantes da estrutura informacional. Propomos, assim, que, no PM, a construção de redobro do clítico pode ter sido reanalisada como uma instância de concordância de objeto, com um morfema de concordância sem realização lexical incorporado no verbo, permanecendo soletrada apenas a forma forte preposicionada. Note-se que Ngunga et al. (2016) defendem uma hipótese sobre o papel da concordância de objeto em changana e ronga em que a definitude e a especificidade têm também um papel central. Assim, consideram que a concordância de objeto é usada opcionalmente para indicar que o SN objeto é definido e/ou específico, assumindo, portanto, nestes casos, a função de “Differential Object Marker” (DOM). Exemplificando, em (30), o morfema de concordância de objeto ma-, incorporado no verbo, permite/reforça a interpretação do objeto como uma entidade já referida no discurso anterior ou no contexto, ou seja, a frase pode ser parafraseada por “A criança gosta deste tipo de doces/destes doces”. (30)

xin’wanani xa-ma-rhandz-a madonsi. 7.criança 7.sm-6.om-gostar-fv 6.doce ‘A criança gosta destes doces.’ (Changana, Ngunga et al. 2016: 343)

Já em (31), sem morfema de concordância de objeto, o objeto é interpretado preferencialmente como não específico, i. e., a criança gosta de doces em geral. (31)

xin’wanani xi-rhandz-a madonsi. 7.criança 7.sm-gostar-fv 6.candy ‘A criança gosta de doces.’ (Changana, Ngunga et al. 2016: 344)

Capítulo 3

75

Como os dois exemplos acima mostram, este DOM pode ser usado com objetos [‐HUM]. Contudo, como os autores referem, há dialetos do Changana em que a concordância de objeto com DPs [+HUM] pode envolver, para além do morfema incorporado no verbo, uma partícula a a anteceder o objeto, como se pode observar em (32).⁹ (32)

na-mu-tiv-a a mufana. 1 g.sm-1.om-conhecer-fv part 1.rapaz ‘Conheço o rapaz.’ (um rapaz definido e específico) (Changana, Ngunga et al. 2016: 343)

Em síntese, as produções inovadoras a PRON poderiam resultar da reanálise de estruturas de redobro do PE para exprimirem propriedades transferidas das L1s, envolvendo traços de animacidade, definitude/especificidade e topicalidade, por hipótese estendendo-se também, embora em muito menor grau, a estruturas a SN. Complementarmente à hipótese de as estruturas a SN/PRON serem induzidas por contacto, propomos que a saliência fonética e o estatuto lexical dos pronomes oblíquos favoreceram a sua retenção e gramaticalização com novas funções no processo de aquisição L2, em detrimento dos clíticos acusativos. O facto de a PRON ocorrer com maior incidência em informantes mais velhos e menos escolarizados no nosso corpus parece indiciar que se trata de uma propriedade que teve origem em variedades mais reestruturadas ou pidginizadas que teriam caracterizado o PM num estádio mais inicial, quando o acesso ao português e à escola era mais limitado (e. g. Gonçalves 2004, 2010). De facto, formas derivadas de pronomes fortes, lexicais, incluindo o paradigma dos oblíquos preposicionados por a, ocorrem num vasto leque de variedades reestruturadas do português, como por exemplo a “língua de preto” (Kihm e Rougé 2013), o português dos tongas (Baxter 2019), os crioulos da Alta Guiné e do Golfo da Guiné (e. g., Pratas 2002; Hagemeijer 2007) e o crioulo de Diu (Cardoso 2009).¹⁰ (33)

ja a mi forro / deita a mi fero na pé ‘já sou um escravo livre / tira-me o ferro do pé’ (interpretação nossa) (“língua de preto”, retirado de Gil Vicente, Clérigo da Beira, apud Lipski 1994)

9 Duarte (2011) atribui a esta partícula, que antecede igualmente objetos antepostos, a categoria D(eterminante) e considera que ela ocorre também com objetos [‐ANIM]. 10 O facto de se tratar, na maioria dos casos, de variedades que se formaram em contacto com línguas genética e tipologicamente distintas mostra que a retenção de formas derivadas dos pronomes oblíquos é um fenómeno transversal em situações de contacto.

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(34) (35) (36)

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Er pǝ kume a el. (crioulo de Diu, retirado de Cardoso 2009: 106) ‘Era para comê-lo.’ quando chegô aqui ele pariu ami (português dos tongas, retirado de Baxter 2019: 312) eu matou com faquinha para êle não matar a mim (português de Angola, retirado de Lipski 1995)

Considerando as propostas em matéria de hierarquia de animacidade e de pessoa (e. g., Dixon 1979; Croft 1990), onde a 1.ª tem precedência sobre a 2.ª e a 3.ª, não é surpreendente que uma forma derivada de a mim seja particularmente fácil de encontrar em contextos de reestruturação. Tal como nas variedades exemplificadas, propomos que no caso do PM o input linguístico do português favoreceu a retenção de formas oblíquas preposicionadas por falantes L1 do changana em função de traços sintático-semânticos da sua língua materna. Esta hipótese é empiricamente mais adequada do que a proposta pioneira de Gonçalves (1991 e sgs.), prevendo, em particular, que as formas a PRON ocorram na variedade urbana do PM aqui analisada.¹¹ Além disso, dá conta do facto de estas formas ocorrerem com verbos que não selecionam argumentos internos reanalisáveis como Beneficiários e capta igualmente o facto de a esmagadora maioria dos dados do nosso corpus envolver objetos [+HUM] definidos, favorecendo claramente os pronomes. Com o aumento do número de falantes do português (L1 e L2) e os efeitos da escolarização, espera-se também que o impacto da língua de contacto seja cada vez mais reduzido na aquisição e transmissão linguísticas, resultando no gradual desaparecimento da propriedade em questão, conforme sugerido pelo confronto entre os dados de Gonçalves (1991) e os nossos. Finalmente, a hipótese acima referida tem ainda a vantagem de prever a dissociação da ocorrência de a SN/a PRON, exclusiva do corpus do PM, e da forma clítica lhe(s), que ocorre igualmente no corpus do PA e, embora com pouca expressão, no do PST.¹²

11 Uma validação adicional da nossa hipótese seria a verificação de que estas formas a PRON/SN não ocorrem em dados orais de falantes moçambicanos de regiões cujas línguas de contacto do grupo bantu possuem propriedades distintas. 12 No caso da variedade urbana do PA, apesar de estar historicamente em contacto com uma língua bantu, a ausência de evidência de estruturas a PRON/SN pode dever-se, por um lado, ao facto de esta variedade estar numa fase muito mais avançada do processo de nativização e de o quimbundo ter propriedades estruturais distintas do changana. Estas são questões para investigação futura.

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Consideremos agora a forma clítica lhe nos três subcorpora. Nos nossos dados do PM, este clítico é a forma dominante, encontrando-se em distribuição complementar com uma forma enclítica acusativa e com uma forma tónica do pronome precedida de a. No PA, por sua vez, lhe(s), proclítico, ocorre em distribuição complementar com a forma acusativa, maioritária, que surge tanto em próclise como em ênclise, e com a forma tónica ele(s)/ela(s) à direita do verbo. É de salientar que a maioria das formas acusativas assume a forma do alomorfe enclítico lo(s)/la(s)) e não da forma básica o(s)/a(s). Ora, como referido na Secção 4, o uso de lhe(s) restringe-se a contextos de próclise tanto no PM como no PA, o que pode refletir uma reinterpretação das complexas regras de colocação dos clíticos no PE, a par de um efeito do contacto com as línguas bantu. De facto, lhe(s) apresenta evidência semântica (animacidade) e sintática (a possibilidade de ocorrência em próclise, à semelhança dos marcadores de objeto que ocorrem como prefixos ao radical verbal) compatível com a tipologia das línguas bantu. Contudo, como vimos, ainda que, de forma minoritária, lhe(s) também ocorre no corpus do PST na expressão dos ODs. A sua ocorrência não pode, portanto, ser atribuída exclusivamente ao contacto com línguas bantu. Como interpretar então os dados das três VAPs? A nossa hipótese é a de que nos encontramos perante um caso de microvariação que fatores fonéticos e morfológicos do PE conspiram para explicar. O gatilho da mudança é, neste caso, o sincretismo do paradigma dos pronomes pessoais e a fragilidade fonética da forma acusativa de 3.ª pessoa na língua-alvo. A mudança consiste em substituir o valor do traço de caso do clítico de 3.ª pessoa lhe(s). Assim, enquanto no PE, na 3.ª pessoa, os clíticos entram na numeração com um valor do traço de caso especificado (acusativo, nas formas o(s)/a(s); dativo nas formas lhe(s)), nas VAPs, em particular, no PM e no PA, a forma lhe(s) passa a ter um valor não especificado para o traço de caso, tal como acontece com as formas de 1.ª e 2.ª pessoa em PE: lhe(s) [Caso:?]. De acordo com esta análise, espera-se que no mesmo falante possam coexistir produções com a forma inovadora lhe(s) e com as formas acusativas básicas e respetivos alomorfes, já que estas mantêm o valor acusativo para o traço de caso. Esta predição é confirmada pelos dados do corpus analisado. Considerando o traço [+ANIM] que caracteriza o clítico lhe, o sincretismo do paradigma dos pronomes pessoais do PE é reforçado pelo sincretismo que caracteriza as contrapartidas anafóricas das línguas bantu, em contacto com o PA e o PM, nomeadamente para o traço semântico [+HUM], não se observando uma diferença morfológica entre acusativo e dativo. Apesar de este sincretismo também caracterizar o forro, o PST distingue-se destas variedades pelo facto de recorrer, tendencialmente, a pronomes distintos para ODs e OIs (cf. discussão abaixo). Em resumo, se a uniformização de lhe(s) e a sua posição em próclise podem dever-se parcialmente ao contacto com as línguas bantu, já a prevalência desta

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forma e a ocorrência dos clíticos acusativos em ênclise decorrem da reinterpretação de propriedades do PE. De uma forma interessante, os nossos dados apontam para a preservação dos clíticos acusativos obrigatoriamente enclíticos, contrariamente ao que tem sido afirmado na literatura, que prevê o desaparecimento da totalidade das formas acusativas. Finalmente, no que respeita aos ODs clíticos do PA e do PM, deve ainda mencionar-se que as sequências lineares verbo finito-clítico-verbo não finito foram analisadas como casos de próclise ao verbo encaixado. Esta opção foi motivada, em primeiro lugar, por estarem atestados nestas VAPs exemplos de produções em que um constituinte intervém entre o verbo finito e o clítico ― vejam-se a título de exemplo os seguintes dados de produção escrita do PM, em Mapasse (2005: 67). (37)

a. Este desemprego começou a se fazer sentir. b. … tenho também me dedicado a leitura

(*PE) (*PE)

Em segundo lugar, encontram-se exemplos nos nossos corpora que apontam para a mesma análise, como se pode observar em (29). (38)

a. … porque estão a te ajudar b. … não posso lá me meter

(PA; *PE) (PM; *PE)

Embora estas produções inovadoras co-ocorram, sobretudo no corpus do PA, com casos de próclise ao verbo finito, evidenciando que se encontra disponível o processo de subida do clítico, elas podem sugerir uma mudança na gramática de falantes destas VAPs, tal como já foi defendido para o Português Brasileiro (e. g. Galves, Torres Morais e Ribeiro 2005). Por fim, atentemos na expressão dos ODs pronominais de 3.ª pessoa no PST. Como evidenciado na Secção 4.3, esta variedade contrasta fortemente com o PA e o PM, já que as formas que predominam no nosso corpus são as formas tónicas ele(s)/elas(s), seguidas de lo(s)/la(s). Nesta variedade, o clítico lhe tem pouca expressão enquanto OD, mas constitui o padrão dominante para os OIs (Gonçalves, Duarte e Hagemeijer 2022: 18), não se observando o sincretismo que caracteriza as outras duas variedades. No forro, a principal língua de contacto (histórico) com o PST, os pronomes de objeto são tratados como enclíticos fonológicos, não havendo, tal como nas línguas bantu, distinção entre clíticos de OD e de OI (cf. 30–31), a não ser que coocorram em construções de duplo objeto (Hagemeijer 2007: 38–40). A forma básica do pronome de 3.ª pessoa singular é ê, que também é a forma básica de 3.ª pessoa do singular em posição de sujeito (Hagemeijer 2007: 15), sendo ambos derivados

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historicamente do português ele. ¹³ Este clítico de objeto pode referir-se a objetos [±ANIM] (cf. 39b). (39)

(40)

a. Bô ka ba mat’e. 2SG FUT ir matar.3SG ‘Vais matá-lo.’ b. Non na ka blug’e 1PL NEG HAB descascar.3SG ‘Não a descascamos.’ (a banana-prata)

San xka d’e 3SG.FRM PROG dar.3SG ‘Ela está a dar-lhe banho.’

fô. NEG.PRT

banhu. banho

Sabe-se que a perda de clíticos acusativos no PST se coaduna com uma tendência de perda de material funcional em outros domínios da gramática (e. g. Gonçalves, R. 2010, 2016; Hagemeijer et al. 2022a). Assim, o facto de esta VAP ter estado em contacto com um crioulo de base lexical portuguesa cujas formas pronominais são maioritariamente derivadas do português, com formas de SUJ e de OD semelhantes, poderá ter originado uma reanálise dos pronomes pessoais de 3.ª pessoa, o que motivará a maior preferência pelas formas dos pronomes tónicos do PE. Além disso, os clíticos do forro ocorrem sempre em ênclise, o que, na perspetiva do contacto, é uma posição que, na ausência de alternativa clítica, facilita a congruência com formas pronominais tónicas. Além disso, a ocorrência sistemática destes pronomes imediatamente à direita do verbo pode ser um indício de que estas formas estão a ser reanalisadas como pronomes fracos, aproximando-os, por um lado, das propriedades da gramática do forro e indiciando, por outro lado, um possível processo de gramaticalização interna ao PST.

6 Considerações finais Este estudo de caso sobre a (micro)variação dos ODs plenos e pronominais nas VAPs permite-nos cinco conclusões gerais. 13 O principal alomorfe de ê [e] é a forma e [ɛ], que ocorre obrigatoriamente quando o clítico contrai com verbos terminados em -a, o tipo mais comum no forro, e com verbos terminados nas vogais baixas [ɛ] ou [ɔ], com harmonização da 3SG (cf. Hagemeijer 2007: 40). A forma plural de ê é inen (3PL), que, enquanto clítico de objeto, só se refere a OBJs [+ANIM].

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Em primeiro lugar, os dados do Corpus PALMA – Moçambique mostram que a ocorrência de ODs introduzidos pela preposição a, uma propriedade do PM fortemente difundida na literatura, não é frequente no corpus. Os ODs plenos são esmagadoramente SNs não preposicionados e os ODs pronominais são tipicamente cliticizados por lhe em posição de próclise, sendo o clítico acusativo na sua forma básica preterido pela forma tónica do pronome (a) ele/ela(s) ou preservado quando é um alomorfe lo/la(s). Em alternativa à hipótese pioneira de Gonçalves (1991 e sgs.), de acordo com a qual os ODs são sintaticamente realizados como OIs e interpretados como Beneficiários, uma hipótese fortemente infirmada pelos nossos dados, propusemos que a presença de a no PM urbano, ainda que pouco expressiva, resulta de uma inovação no processo de aquisição L2 do português por falantes L1 do changana que reanalisaram, em particular, os pronomes oblíquos precedidos de a de acordo com propriedades sintático-semânticos dessa língua. Neste sentido, contrariamente ao proposto por Gonçalves (1991 e sgs.), os dados não refletem uma reestruturação das grelhas argumentais dos verbos monotransitivos. Em segundo lugar, os dados do Corpus PALMA – Angola corroboram a tendência para a generalização do uso do clítico lhe na expressão de ODs [+ANIM], que ocorre tipicamente na posição de próclise, à semelhança do observado no PM. Ademais, regista-se a perda generalizada do clítico acusativo na sua forma básica, ocorrendo este quase exclusivamente como alomorfe lo(s)/la(s). Assim, propusemos que o uso generalizado de lhe no PM e no PA constitui um caso de microvariação, simultaneamente desencadeado pelo sincretismo do paradigma dos pronomes pessoais e pela fragilidade fonética da forma acusativa de 3.ª pessoa. Especificamente, propusemos que, nas VAPs (considerando igualmente a ocorrência limitada deste clítico no PST), o clítico lhe(s) tem um valor não especificado para o traço de caso, como as formas me, te, nos, vos, enquanto o clítico o(s)/a(s) e os seus alomorfes lo(s)/la(s) mantêm o valor acusativo para o traço de caso. Em terceiro lugar, os dados do Corpus PALMA – São Tomé e Príncipe reforçam a preferência pelo alomorfe lo(s)/la(s) nas VAPs, em detrimento do clítico acusativo na sua forma básica, que ocorre apenas residualmente. Além disso, regista-se, nesta variedade, distintamente do PM e do PA, o uso maioritário da forma tónica do pronome ele/ela(s), que, pela sua natureza, ocupa sempre a posição à direita do verbo. Considerámos o comportamento diferente do PST em comparação com o PA e o PM um reflexo das propriedades distintas do forro face à tipologia do bantu. A proeminência do pronome tónico em detrimento das formas clíticas parece ser duplamente motivada pela língua de contacto, uma vez que esta apresenta um pronome derivado da forma tónica do português e em ênclise, colocando-se a hipótese de o pronome tónico no PST ser, na realidade, um pronome fraco.

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Ademais, os dados das três VAPs em análise mostram o peso da variável escolarização na variação observada. Embora os falantes apresentem maioritariamente estruturas convergentes com o PE¹⁴, o maior número de produções inovadoras é observado em informantes com nível de escolarização mais baixo, a saber 1.º – 9.º ano daquele que se designa por Ensino Básico em Portugal. Inversamente, o maior número de clíticos acusativos, na sua forma básica ou alomórfica, é observado em informantes com nível de escolarização mais elevado (correspondente ao Ensino Secundário e Ensino Superior em Portugal). Finalmente, não se pode ignorar que o português é atualmente cada vez mais transmitido como língua materna nos contextos urbanos em apreço, e que o fator escolarização desempenha um papel cada vez mais relevante, com um número crescente de pessoas escolarizadas e níveis de escolarização cada vez mais elevados, o que, à partida, se traduz em mais exposição à norma e, consequentemente, mais consciência metalinguística da norma. Esta conjugação de fatores tende a enfraquecer e a condicionar a hipótese do contacto na sua versão mais substratista e a promover a convergência com a gramática do padrão, aspeto visível nos dados apresentados e discutidos, nomeadamente no que diz respeito às diferenças entre pessoas mais e menos escolarizadas.

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14 Estudos realizados anteriormente com base no mesmo corpus, nomeadamente na expressão do argumento dativo com verbos ditransitivos (Gonçalves, Duarte e Hagemeijer 2022) e de Alvos de verbos de movimento (Hagemeijer et al. 2022a), também mostraram o elevado grau de convergência das VAPs com o PE.

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Maria Antónia Mota

Capítulo 4 O infinitivo (não) flexionado em perífrases verbais do Português falado em Maputo: contributo do Corpus PMO os que estão entre os vinte e oito e quarenta anos de idade… (…) esta geração é a que vai / é a que vai marcar as variantes/a variante do português de Moçambique… (POM, C-3-M-comp)

1 Introdução Em diferentes publicações sobre o português falado em Moçambique (PM), e em particular em Gonçalves, P. (1997, 2001, 2010), Stroud (1997) e Firmino (2021), é referida a complexidade linguística do país, o não generalizado acesso ao português e ao seu uso (como L1 ou L2), com impacto na variabilidade do grau de proficiência do português falado, mesmo nas grandes cidades e por falantes instruídos. Gonçalves (2010) refere que, no processo de aquisição, os falantes do PM nem sempre têm acesso a dados robustos de input do Português Europeu (PE), o que origina ambiguidade dos dados disponíveis e favorece o surgimento de “novas propriedades do português”, de novas gramáticas (Lightfoot 1999, 2006; Kroch 1989).¹ Por outro lado, o facto de grande parte dos falantes de português terem uma língua banta como L1, ou serem plurilingues/terem contacto intenso com línguas bantas, remete para uma situação de transmissão linguística irregular (Lucchesi, Baxter & Ribeiro 2009) e para fenómenos decorrentes de contacto linguístico (cf. Thomason 2001). Visando sobretudo analisar as questões selecionadas internamente ao PM, estabelecer comparações internas ao PM considerando a(s) gramática(s) aí ativa(s),

Nota: Agradeço muito aos revisores anónimos da primeira versão do texto, pela leitura atenta e pelos contributos que enviaram. Agradeço aos colegas do CLUL com quem conversei sobre questões aqui tratadas. 1 Ainda em Gonçalves, P. (2010: 28), é referido que o português como L1 corresponde a c. 10 % da população e, como L2, a c. 43 %. Maria Antónia Mota – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / Centro de Linguística da Universidade de Lisboa https://doi.org/10.1515/9783110670257-006

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Maria Antónia Mota

é contudo útil a comparação com o Português Europeu (PE) e, quando possível, com o português falado noutros contextos com línguas bantas (LB) em contacto com o português, como em Luanda. Assim, recorro, embora subsidiariamente, ao Corpus PLu, apesar de estarem implicadas diferentes LB nos dois países. ² Sendo útil, a comparação tem os seus limites. Como refere Thomason (2001: 91–95), em situações de contacto, não é fácil determinar com suficiente rigor científico a origem de traços diferenciadores. Parte da sua reflexão pode ser adaptada à situação do português em África, em geral. As construções objeto deste estudo ilustram um dos casos em que uma comparação mais alargada com o PE se justifica. Como evidenciam os corpora que vêm sendo recolhidos junto de falantes das variedades do português e os estudos sobre as mesmas, é possível, em termos gerais e sem prejuízo da existência de variação interna, isolarem-se traços/propriedades que, num extremo, são transversais a todas as variedades – e, por tal, digamos, ‘neutros’ –, e outros que, no extremo oposto, tipificam apenas dada variedade particular³. Num ponto intermédio, no qual situo as perífrases objeto deste estudo, podem identificar-se diferenças que, sendo eventualmente subtis ou pouco representadas, indiciam “novas propriedades”/novas gramáticas.⁴ Em situações implicando um processo de nativização, mais ou menos avançado, importa ter presente que diferentes gramáticas (no sentido de Lightfoot 1999) se encontram disponíveis na comunidade; para o defender, é indispensável comprovar que as mesmas apresentam um grau suficientemente robusto de sistematicidade.

2 O PE é a variedade com maior relevância, enquanto variedade exportada para as ex-colónias, inicialmente como língua exógena e depois tornando-se progressivamente nativizada (mas veja-se informação sobre Moçambique adiante, mesta Introdução). Acresce que é considerada, em ambos os países focados, como a variedade de referência, nomeadamente no ensino público. O Corpus PLu foi recolhido por Afonso Miguel, nos anos 2012–2013, junto de 36 informantes residentes em Luanda, com distribuição equilibrada em termos de faixa etária, nível de instrução e sexo. 3 É o caso do gerúndio com flexão licenciando concordância com o sujeito, em variedades dialetais do PE. Por exemplo, Estandem juntos os dois, lá pensaram eles a fazer o seguinte (CORDIAL-SIN, Alto Alentejo, apud Lobo 2016: 488.) – ‘quando estiveram juntos os dois’. Lobo (2008: 28–29) assinala que o paradigma de gerúndio não está atestado em textos antigos, é um fenómeno inovador. Como se sabe, só em galego (para além do napolitano antigo) existe também gerúndio flexionado, embora só na P1 e na P4. Ver ainda Lobo (2006, 2013), Pereira (2014), Carrilho e Pereira (2011). 4 Retenha-se, a propósito e desde já, o destaque que Lightfoot (2006: 43) dá aos seguintes dois aspetos, no quadro da formação de novas gramáticas: a existência de “gramáticas em coexistência e diglossia interna, através das quais a aparente opcionalidade pode ser considerada como o efeito de o falante usar mais do que uma gramática (Kroch 1989)”; o facto de que “os dados de aquisição primários (PLD) consistem em estruturas e não em conjuntos de enunciados” (Lightfoot 1999) (t. n.).

Capítulo 4

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Nesta mesma linha de enquadramento geral da pesquisa, interessa evocar alguns aspetos sociológicos, relativamente a Moçambique, com impacto na aquisição do português nesse país. A efetiva e mais numerosa presença de portugueses só se concretizou na passagem do séc. XIX para o séc. XX, e sobretudo durante o Estado Novo, com concentração mais forte em centros urbanos de maior interesse estratégico. Segundo Rocha (2012: 123–124), nos anos 1930, Portugal enviou grande quantidade de mão-de-obra para zonas rurais de Moçambique, tendo parte dela acabado por emigrar para zonas urbanas, nas quais a maioria dos portugueses eram funcionários subalternos e pequenos proprietários de também pequenos negócios. Mas só a partir de 1940 se instalou um “colonialismo efetivo de caráter político-administrativo de ocupação”, implicando funcionários portugueses mais qualificados do que os anteriores. De acordo com Castelo (2004: 4–6), baseada nos registos disponíveis, no período de 1943–1974, as entradas e regressos de portugueses para/de Moçambique saldam-se em 83.023 indivíduos, sendo o seu pico atingido em 1960–1961 (que coincide com o começo da guerra contra os movimentos pró-independência da colónia). O saldo enfraquece muito a partir de 1964 (7.588 indivíduos), já era negativo em 1973 e, ainda mais, em 1974 (declaração do fim da guerra colonial). A origem geográfica dos imigrados era sobretudo Lisboa, seguida do Porto e, com alguma distância, Viseu. Por seu lado, a escolarização em português, através do chamado ‘ensino indígena’, só foi oferecida a partir de 1930, mas, como assinala Gonçalves, P. (2001: 977), ainda havia “fraca difusão do Português na altura da independência”. Em tempos recentes (e contemporâneos da recolha do Corpus PMO), a situação é, em termos gerais, a seguinte: quanto à presença de portugueses no território, nos censos de 1997 e de 2017 estes rondavam apenas os 4 %; quanto à alfabetização, no censo mais recente, de 2017, constata-se que, a nível do país, 38,6 % das crianças entre os 6 e os 17 anos não frequentam o sistema escolar e que 39 % dos moçambicanos são analfabetos – desses, 50,7 % vivem em zonas rurais; quanto à zona de residência: as zonas rurais concentram 66,6 % da população. Dada a situação geral, o estudo do PM é mais produtivo com base em dados obtidos nas grandes cidades, onde a escolarização é progressivamente maior e o uso do português é mais efetivo (a não ser que o objetivo seja, por exemplo, analisar o processo de aquisição em diferentes contextos, com maior ou menor exposição ao português). Neste contexto, Gonçalves, P. (2001: 985, 2013: 175) aponta como um dos aspetos morfossintáticos caracterizadores do PM a ocorrência de infinitivo flexionado em frases completivas infinitivas ou coocorrendo com verbos auxiliares (texto de 2001) / em perífrases verbais regidas por verbos auxiliares ou semiauxiliares (texto de 2013). Fornece alguns exemplos das duas construções, como os seguintes, respetivamente: os professores não conseguem darem as aulas e os chefes deviam criarem condições, contrastando-os com o que ocorreria em PE.

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Estas construções desafiam explicar a flexão do segundo verbo, quer se trate de completivas de infinitivo quer de perífrases com semiauxiliares modais. De acordo com a informação disponível, a hipótese de partida é que o infinitivo pode flexionar, em PM, apenas quando existe proximidade entre construções com verbos semiauxiliares e com verbos cujo complemento é uma oração infinitiva. Publicações como Gonçalves, A. (1996, 2001) e Duarte et al. (2012), ocupando-se de verbos/construções de reestruturação, fornecem informação muito relevante sobre os verbos que aqui se tratam na perspetiva de verbos semiauxiliares. Com efeito, Gonçalves, A. (2001: 46) admite que alguns verbos de reestruturação partilham propriedades com os auxiliares; Raposo (2013: 1255) e Barbosa e Raposo (2013: 1902, 1905, p. e.) referem a mesma possibilidade. Em Duarte et al. (2012), sobre verbos de controlo, em PE, é também analisado o caso do infinitivo flexionado em PM (retomando os exemplos de Gonçalves, P. 2001: 984, as pessoas preferem ganharem naquela hora mesmo, os professores não querem darem aulas). A disponibilização do Corpus Moçambique-Port (PMO), recolhido por Silvia Rodrigues Vieira e Karen Pissurno, em Maputo, em 2016, permite observar, numa sincronia muito recente, uma quantidade notável de dados contextualizados relativos a construções bioracionais com o verbo da subordinada completiva no infinitivo e a construções mono-oracionais, perífrases verbais com o verbo pleno no infinitivo. No presente texto, e quanto ao procedimento adotado, centro-me no segundo tipo de construções, tendo presente a afirmação de Gonçalves (1997: 63) sobre “a tendência (quase 80 % das ocorrências) para o emprego da forma flexionada”, apesar de essa percentagem se aplicar ao conjunto das orações completivas e das perífrases verbais, assim como ao PM em geral, não restrito ao falado na capital. A fim de testar a produtividade do infinitivo não flexionado vs. flexionado nas perífrases, em geral, considero um conjunto de verbos com tipologia de auxiliaridade diversa, para além dos semiauxiliares modais nos quais me centro em particular. Assim, outros (semi)auxiliares são igualmente considerados, de forma subsidiária, no decurso da descrição e, sobretudo, na Secção 3. Dadas as limitações de espaço deste texto, reduzi o âmbito da pesquisa ao seguinte: ‒ contextos em que o V1 ocorre no presente e no imperfeito do indicativo (com valor temporal e modal); pontualmente, serão considerados contextos com formas verbais de outros paradigmas, se úteis para a discussão;

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formas verbais marcadas no V1 para P4 e P6 (a P2 não tem suficiente representatividade no PMO e as formas de realização de P1 e P3 nada revelam, pela ausência de marca morfológica explícita de flexão). ⁵

Este trabalho constitui, assim, um contributo para o ponto da situação em Maputo, que decerto será diversa da de outras zonas do país, sendo necessário recolher novos corpora que, atualizando a informação, permitam uma avaliação mais rigorosa do panorama geral moçambicano urbano. Nas secções seguintes, introduzo com mais pormenor a questão-objeto do estudo e apresento os critérios que utilizo para a definição de verbo (semi)auxiliar/ de perífrase, fundamentalmente a partir de Gonçalves (1996) e de Raposo (2013) (Secção 1). Apresento os dados do PMO relativos ao infinitivo (não) flexionado no V2 de perífrases com os auxiliares modais, discutindo diferentes aspetos que considero relevantes para a sua análise (Secção 2). Na Secção 3, considero brevemente outras perífrases, a fim de mostrar que são visíveis, no PMO, indícios de diferenciação desta variedade. Sintetizo as principais conclusões e aponto alguns aspetos a desenvolver. Antes, porém, retenha-se que os dados identificados como “PMO”, no presente texto, têm origem no seguinte recorte do corpus total, de Vieira e Pissurno (2016):⁶ Tabela 1: Recorte do Corpus PMO (Moçambique-Port) usado no presente texto. Faixa A

Faixa B

Faixa C

Nível de escolarização 1

2

3

1

2

3

1

2

M(asc.)

2

1

2

3

1

3

1

1

2

F(em.)

2

3

2

1

2

1

1

1

1

Tot. 30

Subtot. 12

Subtot. 11

3

Subtot. 7

Legenda: Faixa A=18–35 anos, B=36–55 anos, C=57–75 anos; Nível de escolarização 1=6º-9º anos, 2=10º12º anos, 3=ensino superior. Por exemplo, a sequência A-2-F-a lê-se: Faixa A-Nível 2-Feminino, sendo a letra “a” (ou “b, c”) usada para distinguir informantes com as restantes variáveis em comum.

5 A P2 atesta-se em dois falantes jovens, com tu genérico (PMO, A-3-F-b concentra 10 das 11 atestações totais e PMO, A‐3‐M‐b usa a forma 1 vez), e nalguns outros casos, poucos, restritos a discurso direto reportado. 6 Os ligeiros desequilíbrios numéricos devem-se à própria constituição do corpus total. Como é sabido, nem sempre é possível obter informantes em número idêntico para cada célula. O corpus está disponível em https://corporaport.letras.ufrj.br/corpora/.

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2 Introduzindo gramáticas variavelmente mobilizadas: o infinitivo flexionado em perífrases do PM Gonçalves (1997: 63–64) afirma ser a redução da morfologia flexional uma tendência geral do PM.⁷ A esse respeito, Pissurno (2020) mostra que, embora as taxas de concordância padrão sejam altas (entre o perfil de uma regra variável e de uma regra semicategórica, em termos labovianos) mesmo quando se trata de falantes de Português como L2, a referida tendência é também verificável no Corpus PMO, sobretudo associada a falantes menos instruídos e que empregam frequentemente as línguas bantas.⁸ O infinitivo flexionado ′legítimo’ pode contabilizar-se nesse quadro de concordância explícita, mesmo em construções em que o infinitivo não flexionado seria admitido, como mostra assaltar, em (1c).⁹ Os seguintes exemplos (com infinitivo selecionado por predicadores nominais e por preposições) foram propositadamente selecionados de informantes com níveis mais baixos de escolaridade: (1)

a. vão encontrar crianças pequenas a falarem a língua de cá (PMO, A-2-F-c); b. tinha lá dois… a cobrarem dinheiro para fecharem a boca para não denunciarem… sim (PMO, A-2-F-a) c. arrombaram essa porta… essa porta mesmo… para entrarem… assaltar… (PMO, B-1-F-a) d. é muito normal aqui as pessoas passarem essas coisas (PMO, A‐2‐M‐a)

Ainda em Gonçalves (1997), a autora refere “a tendência (quase 80 % das ocorrências) para o emprego da forma flexionada” (p. 63), no conjunto das orações completivas e das perífrases verbais; mas faz a ressalva de que os resultados

7 O corpus que Gonçalves (1997) e Stroud (1997) usam foi recolhido para o Projeto Panorama do Português Oral de Maputo, iniciado em 1993, sendo a sigla PPMO aqui atribuída a esse corpus. 8 O trabalho incide na concordância de P6 em falantes de PM como L2. Nas pp. 27–28, é referido que o cancelamento da concordância atinge 10,1 % nos informantes com ensino primário, descendo para 2,4 %, nos informantes com ensino médio. Por outro lado, de entre os falantes bi/plurilingues, os que falam mais frequentemente línguas bantas são os que mais cancelam a concordância de P6 (27 % vs. 3,8 %). Estes dados remetem, respetivamente, para a relevância da escolarização, como acesso a uma gramática mais standardizada (mais próxima da do PE, considerada padrão) e para a influência do substrato banto. Ambas as questões são tratadas em muitos trabalhos sobre situações de contacto, que não cabe aqui enumerar nem comentar. 9 Ver Barbosa e Raposo (2013), para a questão da flexão do infinitivo nestes casos, em PE.

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apresentados na obra têm um suporte empírico “de dimensões reduzidas, parece[ndo] mais prudente, de momento, não considerar que a descrição revela todas as propriedades representativas do Português da população auscultada” (p. 65). O seguinte conjunto de exemplos retirados de publicações da autora ilustra casos de diferentes construções com infinitivo flexionado:¹⁰ (2)

a. Deviam as moças fazerem o planeamento (PPOM, MF/13/SUR, apud Gonçalves 1997: 64) b. … têm um horário para poderem se separarem da cidade (PPOM, PC/1/ URA, apud Gonçalves 1997: 64) c. fizeram isso para as duas pessoas poderem conhecerem-se (PPOM, apud Gonçalves 2013: 175) d. Os professores não conseguem darem as aulas. (PPOM, AM/11/LUR, apud Gonçalves 1997: 63, Gonçalves 2013: 175) e. Querem ganharem naquela hora. (PPOM, MF/18/AME, apud Gonçalves 1997: 63)

O PMO, recolhido mais de 20 anos depois do Corpus PPOM, revela uma pequena taxa de competição entre infinitivo não flexionado e flexionado em estruturas com semiauxiliares modais e em orações completivas de infinitivo. Apesar de estas últimas não constituírem objeto do presente texto, para fazer o ponto da situação realizei um levantamento da ocorrência de querer e conseguir, em cujo complemento só é admitido um infinitivo não flexionado, em PE padrão. No PMO, a não flexão atinge os valores mais altos:¹¹

10 Mantenho, sempre que possível, os critérios de transcrição usados pelos seus autores, nos exemplos retirados da bibliografia citada e dos diretamente recolhidos em corpora, assim como os códigos de origem, quando existentes. Quando necessário (sem que tal pressuponha desrespeito pelas opções dos transcritores), normalizo, com a autorização dos responsáveis, a transcrição de formas cuja grafia, no original, visa aproximação à fala, por considerar que tal pode facilitar a compreensão de leitores não familiarizados com o português oral (por exemplo, tô, no original, passa a ser transcrito como estou). Por outro lado, não contabilizo ocorrências que retomam a fala do entrevistador, por precaução relativamente ao efeito de acomodação linguística; p.e., no diálogo “D: = deve ser L: deve ser deve fazer sim” (PMO, C-2-F-a), a ocorrência sublinhada não é contabilizada: embora seja uma estrutura disponível para o mesmo, não corresponde a produção totalmente espontânea. Por fim, excluo ocorrências inseridas em contextos dificilmente interpretáveis (por interrupções ou outros fenómenos próprios da oralidade). 11 Sobre as construções de reestruturação (controlo e elevação), ver, em particular, Gonçalves, A. (1996, 2001), Duarte et al. (2012), Barbosa e Raposo (2013), sobre o PE. Gonçalves, A. (2001: 50–51)

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Tabela 2: Flexão do infinitivo com os verbos querer e conseguir, no PMO. Inf-flex

Inf+flex

Total oc.

Pres/Imp

oc.

%

oc.

%

querer

39

100 %





39

conseguir

28

90,3 %

3

9,7 %

31

Os contextos que apresentam as três formas de infinitivo flexionado são os seguintes: (3)

a. os meus filhos todos já são crescidos (…) já conseguiram terem de… fazerem… a vida deles (PMO, B-1-M-comp) b. … conseguirem mata-bichar almoçar e até irem à escola… ir à escola (PMO, B‐1‐M‐a)

Esta constatação parece contrariar o afirmado em Gonçalves (1997: 63): a flexão do infinitivo ocorria, no final dos anos 1990, em 80 % dos casos, com a ressalva de esse percentual ter sido obtido num pequeno corpus. No seu texto de 2013, a investigadora reafirma a relevância dessa propriedade, no PM. Assim, a pequena percentagem verificada no PMO deve-se decerto a fatores aleatórios, próprios das recolhas de terreno, o que não infirma nem nenhum dos referidos corpora nem a consideração dos dados disponíveis para o estudo da questão. Os exemplos em (1), independentemente do tipo de construção implicado, sugerem que, como verifiquei no recorte que usei do corpus, e como comprovei em Pissurno (2020), a flexão do infinitivo no segundo verbo constitui um elemento adicional para caracterizar a variedade moçambicana como tendencialmente sensível à morfologia de marcação em pessoa-número. Contudo, no caso dos exemplos em (3), essa marcação não corresponde à flexão de concordância típica do infinitivo pessoal, como será comentado na Secção 2. Visando o presente texto tratar apenas perífrases, interessa esclarecer as propriedades das mesmas e, quando necessário, contrastá-las com as construções de complemento infinitivo (construções de reestruturação).

refere que alguns verbos de elevação podem ser considerados semiauxiliares, pela similitude de comportamento; é o caso de poder e dever.

Capítulo 4

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2.1 Critérios adotados para a definição de verbo auxiliar/perífrase verbal Os critérios a seguir apresentados, relativos ao PE, têm como fontes principais Gonçalves (1996, 2001) e Raposo (2013), considerando, igualmente contributos de Barbosa e Raposo (2013) e de Gonçalves et al. (2016), trabalhos para os quais remeto para maior detalhe.¹² Consideram-se como definidoras das perífrases típicas do PE propriedades gerais como as seguintes: uma sequência de verbo V1 finito + V2 infinitivo (eles podem sair, p.e.) constitui uma unidade com coesão sintático-semântica interna. Os verbos funcionam em conjunto como predicado formalmente complexo de uma construção mono-oracional; a morfologia, a sintaxe e a semântica do conjunto são asseguradas pela articulação entre ambos os verbos (distribuição de propriedades e funções). Do ponto de vista de dessemantização, os V1 apresentam graus diferentes, como se sabe. De forma mais pormenorizada: (i) o sujeito único não tem retoma anafórica associada ao infinitivo (*elesi devem elesi sair esta noite); (ii) o sujeito da perífrase é selecionado pelo verbo pleno; (iii) a informação temporal do infinitivo é dependente da do primeiro verbo: este assume/especifica a informação de Tempo-Modalidade-Aspeto (TMA) do conjunto, determina a localização da situação descrita e o ponto de perspetiva temporal (eles puderam fazer uma caminhada ontem/no dia seguinte vs. *eles podem fazer uma caminhada no dia seguinte);¹³ (iv) as categorias morfossintáticas pessoa e número, estreitamente associadas entre si (PN), são asseguradas apenas pelo primeiro verbo e ‘neutras’ no infinitivo (eles [tiveramP6 de sairØ]P6 vs. *eles tiveramP6 de saíremP6); (v) os complementos clíticos do V2 associam-se ao V1 ou ao V2 (eles têm-no explicado vs. *eles têm explicado-o; eles podem(‐lhe) explicar(‐lhe) isso), dependendo a subida do clítico do tipo de auxiliar e das propriedades da forma morfológica do V2 – ver Gonçalves (2001: 53) e também Martins (2021); (vi) o clítico demonstrativo neutro não pode substituir o V2 e seus eventuais complementos (ele deve apresentar desculpas, *ele deve-o); (vii) a negação frásica abrange toda a perífrase (eles não têm saído vs. *eles têm não saído);

12 Em Gonçalves (1996), a autora sintetiza a sua Dissertação de Mestrado, de 1992, Para uma sintaxe dos verbos auxiliares em português europeu, apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa (ms.). 13 Exemplo sem leitura de Futuro. Ver Oliveira (2013).

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(viii) a construção passiva é admitida, inclusive a passiva pronominal (a estante há de ser substituída, há de substituir-se a estante). Algumas destas propriedades podem não abranger todos os auxiliares, lato sensu. Raposo (2013: 1253ss) faz uma distinção mais fina entre auxiliares e semiauxiliares, a fim de dar conta de que os modais têm um comportamento próximo do de verbos plenos (de reestruturação); por outro lado, e na mesma perspetiva, propõe a classe dos “quase auxiliares”.¹⁴ Considera semiauxiliares os verbos dever, haver de, poder e ter de/que, os quais não apresentam restrições quanto à negação frásica (cf. (vii), acima), como em eles podem não sair, aproximando-se, assim, de verbos identificados na literatura como verbos de reestruturação; a negação incidindo apenas sobre o verbo infinitivo é típica dos semiauxiliares poder e dever, na perspetiva de Raposo. Relativamente a estes verbos, cuja caracterização como semiauxiliares é adotada no presente texto, o autor afirma que os verbos modais de elevação, no seu uso deôntico, são os que “se encontram ‘mais baixo’ na escala da auxiliaridade” (idem: 1255). Gonçalves, A. (2001: 55–56) faz igualmente notar que “os verbos auxiliares e os verbos de Reestruturação partilham um conjunto de propriedades”; refere, ainda, que poder pode ter comportamento diverso quanto a algumas propriedades específicas, consoante seja deôntico ou epistémico (Gonçalves 1996: 12).¹⁵

3 Os dados do PMO: infinitivo (não) flexionado em perífrases modais Como referido na Introdução e na Secção 2, este não é um estudo exaustivo das perífrases constantes do PMO. Abaixo, sintetizo a informação sobre os semi-

14 Na classe dos “quase auxiliares” cabe querer, por exemplo (Raposo, 2013: 1255ss). Ver Duarte et al. (2012), Barbosa e Raposo (2013), para além de Gonçalves, A. (2001), para comparação entre construções. Sobre leituras assumidas pelos verbos modais, em PE, ver Oliveira e Mendes (2013). 15 Na p.47, escreve o seguinte: “Verificámos, ainda, que algumas das propriedades dos verdadeiros auxiliares eram partilhadas, nalgumas condições, por verbos (…) como alguns aspectuais, os modais e os temporais. (…) propusemos, no seguimento de outros autores, que o facto de, nalgumas construções, estes verbos partilharem características dos auxiliares se deve à existência de um processo de Reestruturação, em estrutura-S, que permite que o verbo encaixado e o superior formem um predicado verbal complexo. A construção deste complexo verbal permite que, em FL, a estrutura bioracional seja interpretada como mono-oracional”. Remete-se para esta e outras publicações aqui referidas, para comparação mais aprofundada de perspetivas e de questões teóricas envolvidas.

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auxiliares tratados em 3.1 (e ainda haver de, evocado na Seção 4). De notar que o semiauxiliar modal ter de/que apresenta 33 ocorrências no PMO, com 100 % de infinitivo não flexionado. Tabela 3: Semiauxiliares em perífrases com infinitivo (não) flexionado: total de ocorrências de presente e imperfeito. Inf dever

Inf

-flex

+flex

Aux

P4

P6

P4

P6

Pres

5

17





Imperf

4

15



– Tot. parcial: 41

poder

Pres Imperf

24

41

3

2

4

4



– Tot. parcial: 78

haver de

Pres

2

2





Imperf



1



– Tot. parcial: 5 Total: 124

Comparando um total de 119 ocorrências com infinitivo não flexionado e os casos em que a flexão ocorre, é clara a baixa produtividade desta última.¹⁶ De facto, os únicos contextos atestados foram os seguintes, e com apenas 5 ocorrências de flexão com semiauxiliares modais, em (4a-c), i. e., em 4 % dos casos: (4)

a. podemos fazer um convívio entre nós amigos sentarmos na casa de uma amiga… conversa:rmos ou/x então come:rmos… essas coisas (PMO, A-1-M-a) b. estas pessoas podem abrir uma coisinha… (…) para para poderem serem corretos (PMO, B-1-M-b)

16 Contudo, a terceira perífrase revela outros aspetos muito interessantes, nomeadamente quando comparada com as perífrases de ir e estar a, como brevemente se comenta na Secção 4. Outras 6 ocorrências de infinitivo não flexionado foram atestadas, 5 das quais com poder, noutros tempos verbais.

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c. devem falar sempre o português para poderem formar as fra:ses para poderem lerem bem um te:xto tem que se … (PMO, A-2-F-a) d. não preciso ter muito… mas pelo menos meus filhos conseguirem matabichar almoçar e até irem a escola… ir à escola… (PMO-B-1-M-a) e. porque se decidem por exemplo virem à minha casa vão violar a mim a minha filha (PMO, B-2-F-b)

3.1 Perífrases com dever e poder e hipóteses explicativas para V2+flex Um fator testado, e que não revelou ter impacto na forma infinitiva produzida, consiste na existência de material linguístico entre o semiauxiliar e o infinitivo, como em eles podiam geralmente até dar acesso àquelas pessoas … (PMO, A-2-M-a) ou isso pode em algum momento interferir negativamente (PMO, A-3-F-a). A distância entre auxiliar e infinitivo pode decorrer da existência de coordenação de orações, com o auxiliar omisso na coordenada – como em (3b), aqui repetido, conseguirem mata-bichar almoçar e até irem à escola… ir à escola ou em devem sentar e conversarem (PMO, A-3-F-b). Os casos que encontrei não confirmam a relevância do fator em causa, sendo maioritários os exemplos como nós já podíamos acordar e fazer o resto das coisas – PMO, B‐2‐F‐b).¹⁷ Alguns dos exemplos acima remetem para a questão da posição dos pronomes clíticos (cf. propriedade (v), em 2.1). Verifica-se que a sua posição é, à primeira vista, compatível ora com a do PE ora com a do PB, existindo ainda casos não totalmente validáveis como próclise ou ênclise, os quais exigem futuras análises acústicas, como referido em Caetano e Vieira (2021). Este estudo, igualmente baseado no Corpus Moçambique-Port (aqui referido como PMO), sugere-me uma futura pesquisa comparativa com a variação da colocação dos clíticos em PE, a fim de se tentar avaliar se as próclises do PM compatíveis com o PB decorrem da crescente presença desta variedade, através da TV, ou se (talvez para além disso) encontram equivalência em PE. Uma terceira via, de um sistema propriamente moçambicano, é igualmente de considerar. Martins (2021) é um trabalho de referência quanto à “microvariação” na posição dos clíticos em PE insular e à existência de “casos atípicos” que, correspondendo a ocorrências quantitativamente

17 Said Ali (1957: 67) afirma o seguinte: “o infinitivo flexionado tolera-se todavia, se, pela interposição de dizeres mais ou menos extensos, ficar o verbo principal um tanto longe do seu auxiliar. Escasseiam os exemplos (…) (não os encontrei nos Lusíadas)”, mas encontrou vários em Zurara (séc. XV) e, apenas esporadicamente, em autores do séc. XIX.

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pouco relevantes, trazem, contudo, contributos para o conhecimento e discussão das questões envolvidas.¹⁸ Vejam-se dois dos seus exemplos (p. 96): “Não posso então lhe explicar. PIC09” (Ilha do Pico, Açores) e “Bota-se a carne ali, naquela água, a ela não ficar muito encostada – não sabe? –, a ficar a se poder mexer bem. FLF64” (Ilha das Flores, Açores). Quanto ao escopo da negação (cf. critério (vii), em 2.1), o comportamento típico das perífrases não se aplica nem ao verbo poder nem aos restantes modais, que admitem negação interna. De acordo com o que afirma Raposo (2013: 1252–1253 e seus exemplos 53a-c, com ter de, haver de, poder e dever), tal é possível com verbos modais usados com valor epistémico.¹⁹ Vejam-se alguns exemplos do PMO, em (5ae) vs. (5 f ): (5)

a. porque pode não falar em casa… fora… vai falar português (PMO, C-2-F-a) b. se eu sair agora posso não encontrar a bateria do meu carro (PMO-A-3-F-a) c. antes podia não ter muita facilidade com o que minha mãe desse (PMO-A3-M-b) d. com a vigilância isso podia não acontecer (PMO, B-3-F-b) e. a pessoa até pode não casar assim eh no civil (PMO-A-2-M-a) f. a pessoa não pode falar porque no dia seguinte vai ser morta (PMO-A-2-Ma)

Os critérios (v) e (vii) aqui focados permitem testar a proximidade entre semiauxiliares e verbos de reestruturação. O facto de não se referirem os demais critérios de auxiliaridade, também testados no PMO, significa que não apresentam exceções particulares, relativamente ao PE. A perífrase com haver de modal comporta-se como os restantes modais, quanto às propriedades (v) e (vii) de auxiliaridade. Mas não foi possível testar se pode igualmente apresentar infinitivo flexionado (cf. Quadro 3). A seguir, considera-se a propriedade (iv) da auxiliaridade, em articulação com outras das propriedades em 2.1.

3.1.1 Infinitivo flexionado: discussão e hipóteses explicativas Como se verá, é previsivelmente a conjunção de diferentes fatores que permite capturar melhor o comportamento do infinitivo em V2. Para facilidade de leitura,

18 Ver Bazenga (2019), sobre a Madeira. 19 Ver, também, Oliveira e Mendes (2013) e Marques (2013).

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utilizo alíneas para identificar as diferentes hipóteses. A primeira corresponde àquela que eu imaginara poder confirmar, na expetativa de existirem evidências, numa recolha mais recente, como é o Corpus PMO, de presença de elementos numa posição de sujeito associada a V2. (i) O facto de se atestar, numa das gramáticas em concorrência, no PMO, a marcação morfológica de pessoa-número, no infinitivo, sugere como hipótese que os falantes interpretam a construção como bioracional, com sujeitos correferentes, e a marcam através de flexão de concordância. No entanto, não se verifica a violação de três das propriedades associadas a perífrases com modais. Concretamente, não se verifica (a) a presença de um qualquer tipo de sujeito explícito associado ao infinitivo, mesmo pronominal de retoma anafórica; excluise, assim, a hipótese de o infinitivo flexionado ser predicado de uma oração infinitiva complemento do V1. Isto é, não ocorre nunca, nos verbos em análise (nem noutros, comparáveis), um caso hipotético como as mãesi podem/devem (elasi) acompanharem (elasi) os filhos – cf. critério (i). Elas pós-V2 seria possível, em PE, com verbos do tipo querer, mas não com poder; se pós-V1, apenas com um efeito de contraste. Por outro lado, não se verifica (b) a presença de V2 com informação de Tempo independente (como seria, p.e., *eles podem ficam em casa, com V2 morfologicamente marcado para T(MA) e apresentando concordância com o sujeito associado a V1) – cf. propriedade (iii), em 2.1. Assim, e apesar de ser selecionado um infinitivo (adequadamente defetivo para Tempo), a presença de marcas de pessoa-número não são compatíveis com a função morfossintática do paradigma morfológico, em português, de flexão por concordância. Não havendo evidências empíricas da presença de um sujeito (seja de que tipo for), como se afirmou acima, a flexão em causa não é requerida, diferentemente do que ocorre nos contextos em (1), Secção 2.²⁰ No entanto, deixa-se em aberto a possibilidade de, em novas recolhas, se poder vir a verificar a existência de casos com sujeito associado ao V2, pelo menos anafórico. Tal permitiria analisar estas construções como bioracionais e comparáveis com a que um verbo de controlo como querer admite: os meninosi querem oferecer elesi os alimentos aos sem-abrigo (in Gonçalves 2001: 50), o cozinheiroi quer ser elei a decorar a travessa (in Barbosa e Raposo 2013: 1934), esclarecendo-se a questão por reanálise de construções. Em função dos dados disponíveis, estruturas como eles podem saírem comprometem a sua identificação com perífrases típicas, no PE padrão e no PM que

20 Sobre as orações de infinitivo flexionado com sujeitos nominativos, em PE, ver Barbosa e Raposo (2013).

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com ele se alinha. Duarte et al. (2012) consideram que construções como as constantes de (2) apresentam um infinitivo flexionado “não verdadeiro” (p. 231) ou “aparente” (p. 218), o que aqui se subscreve (cf. exemplos em (3) e (4)), se se tiver em conta que a função morfossintática típica do infinitivo flexionado é a de efetiva concordância, nos contextos adequados, tal como brevemente ilustrado em (1).²¹ (ii) O facto de se ter observado, no PMO, uma grande percentagem de infinitivos flexionados “verdadeiros” constitui, do meu ponto de vista, um argumento para se defender a hipótese de reanálise por sobregeneralização das potencialidades morfológicas de um dos infinitivos disponíveis (cf. exemplos em (1) e comentários associados).²² Nessa presunção, e conjugando-a com a hipótese precedente, no ‘falso’ infinitivo flexionado a informação pessoal pode ser interpretada como dissociada da sua função de concordância morfossintática, como uma espécie de ‘cópia morfológica’ dos traços no V1, de ‘congruência/concordância morfológica’ interna. Em suma, a informação em (i) e (ii) parece tornar evidente que, relativamente às categorias funcionais presentes no PE, nas construções com os verbos em causa, os falantes do PM que possuem a ‘gramática 2’ as alteram parcialmente e as reanalisam. De novo, são necessários mais dados e novas recolhas, dentro de 5 a 10 anos, e preferencialmente com maior duração por informante, até para minorar um eventual autocontrole em situação de entrevista, para comprovar até onde pode chegar essa reanálise. É interessante trazer à discussão as reflexões em Xove (Ferreiro) (2005), abaixo, embora o infinitivo flexionado em galego apresente propriedades diversas das do PE (Carrilho e Sousa 2010, e Fiéis e Madeira 2014: 257, entre outros). As partes que sublinhei, na citação, remetem para uma vertente completar à hipótese da sobregeneralização baseada numa interpretação ‘particular’ do sistema e/ou para a afirmação do ‘moçambicanismo’ do português, como do “enxebrismo”, no caso do galego. O autor, que afirma não ter encontrado infinitivos flexionados em textos escritos da primeira metade do séc. XIX, dá exemplos de escritos contemporâneos como “…porque tamén podían seren certos” ou “Os seus días, a pesares

21 As autoras baseiam-se no facto de que a flexão do infinitivo só poderá ser legitimada por um sujeito na oração infinitiva, correferente do sujeito na oração matriz. Remete-se o leitor interessado na análise dos verbos de controlo para a referida publicação, para as publicações de A. Gonçalves, também já referidas, quanto aos verbos de controlo e elevação, assim como para Gonçalves; Carrilho; Pereira (2016: 543–545). 22 Stroud (1997: 18) refere a tendência para a sobregeneralização de propriedades e para a importância do contacto linguístico, em termos de perceção de propriedades das línguas envolvidas.

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delo, non deberon estaren ceibes de acoros … “ e comenta a presença de infinitivos flexionados: Nos nosos exemplos non se trata propiamente –ou non se trata só– de “excesiva frecuencia” do que é diferente [relativamente ao castelhano], senón de “excesiva ampliación” das regras de uso. (…). Nin sequera teñen por que ser usos interferidos, debidos á vontade de afastarse do castelán: poden ser autoxerados, debidos á procura dun maior “enxebrismo”, pero abusando dunha característica do galego. No noso modo de ver, a procura da “autenticidade” pode levar a escollas “diferentes” das que coincidirían co castelán, pero esas escollas (…) non están movidas forzosamente polo desexo de ‘diferenciarse’ do castelán” (idem: 325–326).²³

(iii) A hipótese da implementação de uma propriedade linguística existente em PE – que não deixa de estar relacionada com a sobregeneralização – está pressuposta em Gonçalves (2013) e é assumida em Fiéis e Madeira (2014). Especificamente, os verbos semiauxiliares aqui tratados resistiriam ao processo de mudança do PE (no sentido da restrição dos usos do infinitivo flexionado e de alterações sofridas na estrutura funcional das frases). Em português antigo, o infinitivo flexionado era admitido em contextos mais alargados, como demonstra Martins (2004) e Fiéis e Madeira (2014) retomam. Considerando esta hipótese, os moçambicanos implementariam uma propriedade que, à época da real presença significativa de portugueses (cf. Introdução), já não integrava a gramática do PE padrão há séculos, havendo vestígios da mesma apenas em algumas variedades conservadoras. De acordo com Martins (2004: 212ss), no português antigo (no qual a autora inclui o português quinhentista), é muito produtiva a ocorrência do infinitivo flexionado em frases mono-oracionais (para além de o ser em “orações matriz associadas a subordinadas condicionais”). Denomina “infinitivo flexionado independente” o que ocorre no contexto que aqui retenho (frases mono-oracionais), o qual apresentava sobretudo um valor imperativo, mas podendo também assumir o valor optativo. No caso aqui em discussão, associo a primeira leitura ao semiauxiliar dever e as duas leituras possíveis a poder (este admite leitura deôntica ou epistémica). Afirma, contudo, que, apesar de “ainda produtivo no século XVI, quando se dá a extensão do infinitivo flexionado a complementos oracionais (…) desaparecerá pouco depois” (idem: 213). Esta informação é muito relevante para o pre-

23 Comparando o português com o galego, Rivas e Brown (2021: 19–22) afirmam que as orações adverbiais são responsáveis por 76 % das ocorrências de infinitivo flexionado, no Corpus Oral Informatizado da Lingua Galega – CORILGA. Mas a forma flexionada apenas atinge 15 %, no total das ocorrências possíveis, mesmo nas orações adverbiais (que, em geral, não apresentam sujeito expresso), o que afasta as duas línguas. Ver publicações de C. Vanderschueren, disponíveis em https://research.ugent.be/web/person/clara-vanderschueren-0/publications/en, sobre a comparação entre português e galego ou espanhol.

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sente estudo e para o peso a dar à hipótese da implementação de uma propriedade do PE. Relativamente à questão que levanta, do não alargamento do infinitivo flexionado a verbos como aqueles que aqui considero, Martins (idem: 219) afirma que, relativamente “a verbos de elevação e controle”, “o tipo de configuração ambígua” na base de outras mudanças (que aqui não especifico) “parece atestar-se também com esses outros verbos”. Apresenta como suporte o seguinte exemplo, de 1417, num documento notarial: “outorgarõ que o dito martjm ãnes e sua molher e pesoa os posam auer pera sj E os demãdar E se lograrem delles em suas vidas”; e ainda “(…) uos deuedes filhar o dito logo cõ sa bẽfeitoria e pagarẽ uossos ereos a rrda (…)”, igualmente num documento notarial, de 1326 (idem: 213). Visto que essa ambiguidade deixou de existir em fases posteriores do Português Europeu, que o infinitivo flexionado independente deixou de ser uma possibilidade, nas construções com os semiauxiliares que aqui interessam impõe-se ter em conta a sua previsível insignificância, em termos de input disponível para a sociedade moçambicana falante de LB autóctone, considerado o panorama da imigração para esse país, referido na Introdução.²⁴ Por outro lado, e dado que ainda há indícios de flexão em PE, essa propriedade poderia, não obstante a sua obsolescência, ser ainda percetível em dados de input de falantes do PE dialetal presentes em Moçambique? Podendo atestar-se vestígios (ou relativa aceitabilidade) da mesma, em PE não padrão e, sobretudo, em ocorrências de variedades dialetais, poderá defender-se a hipótese da sua implementação no PM? Veja-se em (iiia), abaixo, uma avaliação que realizei sobre um corpus dialetal do PE. Na minha opinião, seria preciso considerar dados concretos sobre a percentagem de falantes de variedades mais conservadoras do PE imigrados para Moçambique, da sua presença nas grandes cidades, das suas profissões e previsíveis redes sociais a elas associadas. Admitindo que uma pesquisa mais aprofundada da historiografia disponível poderá trazer dados novos, apenas concluo que, para já, esta não é uma hipótese facilmente verificável. (iiia) Assim como, em PE, houve períodos de ambiguidade quanto a propriedades funcionais associadas ao “infinitivo flexionado independente” (cf. Martins 2004, acima), implicando verbos de reestruturação como dever e poder, no PM pode igualmente existir ambiguidade entre construções, embora implicando outras categorias.

24 Essa possibilidade com o infinitivo flexionado independente também já não se atesta “nos documentos galegos a partir do século XV” (Martins 2004: 220).

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Esta é uma hipótese forte, na minha opinião: os falantes podem percecionar ambiguidade entre construções e entre contextos adequados à seleção do infinitivo flexionado (cf. exemplos em (1) e comentários associados), originando a ‘gramática 2’ do PM, em coexistência com a ‘gramática 1’, em que a ambiguidade não existe. Vejam-se, ainda, outros contributos relacionados com esta linha de reflexão. Duarte et al. (2012: 230), sobre construções de controlo, apresentam um exemplo do corpus do Jornal Público (CETEM-Público, de PE escrito contemporâneo) com o verbo querer, que admite um pronome anafórico associado ao infinitivo, em PE (mas não infinitivo flexionado).²⁵ Do mesmo corpus, Fiéis e Madeira (2014: 261) apresentam cinco exemplos, dos quais dois com os verbos semiauxiliares poder (1x) e dever (1x) em orações infinitivas complemento de nomes.²⁶ Nesta mesma publicação, são dados dois exemplos do Corpus CORDIAL-SIN (Então podem levar um panito caseiro do forno, e levarem coentros; (…) depois vão lá acima, começam a baterem para baixo, p. 261), com semiauxiliares que interessam ao presente estudo. Mas não é apresentada informação quantitativa da presença de infinitivo flexionado nos corpora utilizados como fonte, sabendo-se que o CETEM-Público é um vastíssimo corpus, de c. 180 milhões de palavras. Motivada pelos exemplos na referida publicação, na pesquisa que realizei no CORDIAL-SIN (com registos de 42 localidades de Portugal e cujos informantes são tipicamente de zonas rurais linguisticamente conservadoras) concluí, o seguinte. Para as formas podem (88 oc.), podemos (16 oc.) e devem (17 oc.), não encontrei infinitivos flexionados, exceto no primeiro exemplo de Fiéis e Madeira, acima; com as formas começam (51 oc.) e começamos (3 oc.), apenas a referida na mesma publicação ilustra um caso de flexão.²⁷ O valor de 1,14 % destas ocorrências (2/175) é quantitativamente muito pouco relevante; considero tratar-se de casos “atípicos”, apropriando-me da designação de Martins (2021), a propósito da microvariação dos clíticos. Considero, assim, que, em construções claramente identificáveis com perífrases com semiauxiliares, ocorre categoricamente, em termos labovianos, o infinitivo não flexionado. Ou seja, sendo obviamente importante considerar a “microvariação”, reveladora de gramáticas em concorrência, como assumo neste

25 Disponível em https://www.linguateca.pt/CETEMPublico/. 26 Como cuidado metodológico para a consideração de dados jornalísticos: é sabido ter deixado de haver revisores nos jornais; assim, os casos atestados no CETEM-Público e noutras fontes jornalísticas atuais podem revelar não o PE padrão, mas a variedade do jornalista, não revista. Por outro lado, é importante distinguir a produção do jornalista e as citações que faz, da fala de terceiros. 27 O corpus está disponível em https://www.clul.ulisboa.pt/recurso/cordial-sin-syntax-oriented-cor pus-portuguese-dialects. A forma devemos não apresentou resultados. Retirei, dos totais que aparecem no topo da pesquisa, os contextos correspondentes às falas do entrevistador.

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texto, a percentagem de infinitivo flexionado, no CORDIAL-SIN, não valida, a meu ver, a hipótese da implementação de traços do PE tão pouco robustos. (iiib) Outra vertente da implementação de propriedades é a da implementação interna ao PM: as novas gerações têm evidências de infinitivos flexionados, no processo de aquisição do português e podem desenvolver o seu uso, em termos quantitativos. Apesar de os materiais escolares moçambicanos (pelo menos, até tempos recentes) se proporem seguir o PE padrão, é presumível e natural que os professores moçambicanos, eles próprios, forneçam modelos de input diferenciados do mesmo, como se comprova no Corpus PMO e outros linguistas comprovaram no PPOM. Em fase de escolarização em português, as crianças têm, assim, nos professores como na sociedade em geral, dois tipos de input, um com flexão e outro sem flexão do infinitivo, podendo um deles ser implementado. (iv) Na perspetiva do contato, também pressuposta em (iii), põe-se a hipótese da influência das línguas de substrato. Não tendo suficiente conhecimento das línguas bantas para arriscar qualquer tipo de explicação associada à sua influência no PM, não deixo de remeter para Anderson (2011: 23) – a citação, apesar de longa, parece-me abrir uma linha de investigação previsivelmente muito frutuosa: Uma maneira saliente em que várias línguas da África se destacam em comparação com as línguas eurasianas mais conhecidas é o padrão flexional duplicado nas construções de auxiliar-verbo [‘auxiliary verb constructions -AVCs’, no original]. Assim, muitas vezes, há marcação dupla do sujeito, menos comummente dupla marcação de outras categorias funcionais (por exemplo, categorias TMA), juntamente com, ou em vez de, marcação dupla de sujeito. O padrão flexional duplicado é aqui analisado como uma estrutura predicativa complexa com um elemento funcional (= verbo auxiliar) e um elemento de conteúdo (= verbo lexical), em que o verbo lexical e o verbo auxiliar compartilham o estatuto de núcleo flexional. Ou seja, são cocabeças flexionais, o que necessita de uma codificação múltipla, pleonástica ou redundante, de todos os recursos funcionais semânticos/flexionais relevantes, que, portanto, devem estar presentes (…) no verbo auxiliar e no verbo lexical. Note-se que esse padrão flexional duplicado nada diz sobre o estatuto sintático de núcleo do verbo auxiliar ou do verbo lexical, em tais formações. Como é típico com as AVC, o núcleo sintático da construção tende a ser o verbo auxiliar e o núcleo semântico, o verbo lexical. (t. n., destaque n.)

Um contributo do Corpus PLu pode ser útil, para comparação. De um total de 124 atestações com os mesmos verbos que se apresentaram no exemplo (2), acima, de reestruturação e com semiauxiliares (poder, 65 oc.; dever, 16 oc.; conseguir, 8 oc.; querer, 35 oc.), não foi identificado nenhum caso de infinitivo flexionado; apenas

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com ter que se registam 2 casos, que correspondem a 0,13 % das perífrases com este semiauxiliar modal:²⁸ (6)

a. tinham que levantarem a alma da minha avó – mãe da minha mãe – que já tinha morrido há vinte e seis anos (PLu, E35:C-3-F) b. então para não terem que zangarem-se (…) (PLu, E23: A-3-M)

Concordante com Anderson (2011), veja-se a informação obtida junto de um linguista conhecedor das línguas bantas e falante nativo de kimbundo.²⁹ Em (7), dãose duas frases do tipo das presentes no PMO e as correspondentes em kimbundo, seguidas da sua análise: (7)

a.

b.

c.

Os meus filhos podem fazerem a vida deles. (PE podem fazer) Anami atena kubanga mawenji wa. A-ana-a-ami a-Ø-tena ku-banga PN2(PL)-filho-PC2(PL)-POSS IS2(SU)-PRES-poder PV15-fazer ma-u-enji u-a PN6(PL)-PN14(SG)-negócio PC14(SG)-deles os meus filhos querem estudarem (PE querem estudar) Anami andala kudilonga A-ana-a-ami a-Ø-ndala ku-dilonga PN2(PL)-filho-PC2(PL)-POSS IS2(SU)-PRES-querer PV15-estudar Os meus filhos conseguem irem à escola. (PE conseguem ir) Anami atena kuya ku xikola. A-ana-a-ami a-Ø-tena ku xikola PN2(PL)-filho-PC2(PL)-POSS IS2(SU)-PRES-conseguir PLoc(16)-escola

Legenda: PN2(PL) – prefixo nominal da classe 2 (plural); PC2(PL) – prefixo concordante (classe 2, em concordância com o prefixo nominal que encabeça o nome com a função de sujeito, a‐); POSS – possessivo (meu); IS2(SU) – índice de sujeito (um dos prefixos concordantes, marcador da concordância entre o sujeito e o verbo; também designado concordante de sujeito); PRES – marcador de tempo verbal (presente); PV15 – prefixo verbal (classe 15, marcador do verbo no infinitivo); PN6(PL) – prefixo nominal da classe 6 (marcador de plural dos nomes da

28 Considero ter de e ter que como variantes, na perífrase; ter de só ocorre duas vezes no corpus de Luanda. 29 Agradeço a Afonso Miguel, da Universidade de Luanda, pelo seu contributo precioso.

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classe 14 e outras); PN14(SG) – prefixo nominal da classe 14 (singular); PLoc – prefixo locativo indicando especificamente direção (a/para). O linguista em causa fez notar que o verbo kutena, no exemplo b., se usa com valor de ‘poder’ e ‘conseguir’, como sinónimos. Retomo, aqui, a sua comunicação pessoal, explicando as estruturas acima: Nestas estruturas, o primeiro verbo (poder, conseguir, como querer) está flexionado: PV (marcador da concordância com o sujeito e também de pessoa gramatical), marcador de tempo (em kimbundu, o presente é Ø) e ausência do PV ku- (marcador de infinitivo). O segundo verbo encontra-se na forma de infinitivo. Portanto, estamos perante uma perífrase verbal (V. auxiliar + V. pleno/principal) em que não existe nenhuma marca de flexão e/ou de concordância com o sujeito do primeiro verbo, no segundo verbo; este veicula simplesmente o valor semântico principal. Estruturalmente, não é possível atestar-se uma expressão explícita correferente do sujeito do 1.º verbo junto do 2.º, a sua relação é sempre semanticamente implícita. Se, em português, em determinadas condições, é possível “os meus filhos podem [eles] fazerem a vida deles”, em kimbundu não é possível uma estrutura desta natureza: *Anami atena [ene] kubanga mawenji wa. Por outro lado, em relação à flexão, em estruturas verbais simples (sem caso de extensão verbal, para indicar alguma modalidade específica: aplicativo, causativo, estativo, reversivo, que possuem morfemas típicos), sobretudo no presente, o verbo conserva a vogal final, sem nenhum morfema flexional, marcador deste tipo de variação (e. g., KUBANGA < KU]PV-BANG]RAD VERB-A]VF, aplicável também ao primeiro verbo).

Será importante ter acesso a trabalhos de bantuístas sobre as LB de Moçambique. Apesar de ter consultado várias obras disponíveis online sobre essas línguas, em nenhuma encontrei informação sobre as línguas de Moçambique relevante para o caso, decerto pelas limitações da pesquisa. (v) A hipótese da hipercorreção não releva propriamente da competência gramatical, mas mais da forma como os moçambicanos mais informados ou atentos à língua perspetivam a sua competência, face ao PE. Ora, um dos domínios associados à insegurança que dizem ter é, precisamente, a morfologia flexional e a concordância. No PMO, são múltiplas as referências a esse tipo de questões, algumas delas úteis para a compreensão do uso das perífrases em geral (cf. Secção 4). Por exemplo, nós/ é muito difícil “eu peço” nós usamos muito “estou a pedir” não é ahn usamos… talvez… “estou a pedir” tem uma/não é bem o português (PMO, B‐3‐M‐comp‐c). Pode, assim, prever-se que, estando disponível morfologia de flexão (infinitivo paradigmático), há uma ‘instrução’ no sentido de o selecionar. Esta generalização apresenta contraevidências nos restantes tipos de perífrase, com infinitivo não flexionado, pelo que só pode ser eventualmente validada em coarticulação com a especificidade dos semiauxiliares.

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Resumindo, diferentes contributos podem ser considerados para a explicação do infinitivo flexionado em V2, deixando-se para aprofundamento futuro, com mais e novos dados, uma reavaliação dos mesmos. Certo é que, de acordo com as evidências do Corpus PMO, se confirma que o infinitivo flexionado só ocorre em perífrases que sejam modais e apenas naquelas que apresentam particularidades relativamente aos critérios de auxiliaridade que correspondem à sua semelhança com verbos de elevação. São, de facto, os semiauxiliares mais baixos na escala de auxiliaridade que mais favorecem a flexão de V2. Admite-se a hipótese de que estas perífrases são interpretadas como tendo um estatuto ambíguo, com alguma independência do domínio infinitivo, o que é veiculado pela flexão, aproximando-as, num processo de reanálise, com orações independentes. Mas não tendo sido encontrados casos de presença de um elemento numa posição associável a um sujeito de V2, essa hipótese não é confirmável (para já?). Como se lê em Barbosa e Raposo (2013: 1941), sobre o PE, nas construções de elevação, com poder, por exemplo, “o sujeito foneticamente não realizado da oração infinitiva não é um argumento distinto daquele que funciona como sujeito da oração subordinante (…), mas sim, de certa forma, o mesmo argumento”. É, assim, igualmente certo que não está em causa um infinitivo flexionado de concordância, com um sujeito próprio. Numa escala de +perífrase > +oração principal-oração completiva de infinitivo, esta configuração do PM afasta-se de ambos os limites. Retomando o focado na Introdução, estas estruturas, não sendo totalmente estranhas ao PE, são inovadoras, pelas propriedades que apresentam.

4 Considerações finais Firmino (2021) refere a emergência, em PM, de “uma variedade heterogénea com traços endógenos” (p. 166), mas também com “incorporação de novos traços linguísticos, que a vão peculiarizando” (p. 176), visto que apresentam sistematicidade e reconhecimento social. Gonçalves, P. (1997, 2001, 2010, 2013), por seu lado, regista, entre outros casos, a seleção de infinitivo flexionado em orações infinitivas complemento e em perífrases verbais como uma propriedade assinalável do PM. Este estudo visou dar um contributo para a aferição do comportamento do infinitivo em perífrases modais numa fase do PM mais recente, relativamente ao Corpus PPMO utilizado por Gonçalves e por alguns investigadores portugueses. De 1993 para 2016, não só surgiu uma nova geração de falantes como os falantes mais velhos tiveram tempo para implementar dadas propriedades da sua gramática.

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Face a ocorrências como …para poderem se separarem ou querem ganharem… (Gonçalves 1997: 63–64), pus, como hipótese inicial, que poderiam surgir novos dados no Corpus PMO (i) que permitissem reavaliar a produtividade dessas construções e, sobretudo, (ii) que apresentassem um elemento realizado na posição de sujeito, mesmo com valor anafórico, associado a V2 infinitivo.³⁰ Nessa eventualidade, seria possível comparar o comportamento de poder (verbo de elevação) com o de querer (verbo de controlo), o qual admite um pronome anafórico: cf. PE os meninos querem entregar eles…, em Gonçalves, A. (2001), e o cozinheiro quer ser ele…, em Raposo (2013). A verificar-se a presença desse pronome anafórico, tal permitira considerar haver uma reinterpretação ou reanálise de construções com semiauxiliares modais/verbos de elevação, como poder, aparentadas com construções de controlo, com querer ou conseguir. Poderia, consequentemente, verificar-se a mudança da propriedade ‘‐legitimidade de preenchimento da posição de sujeito’ para ‘+legitimidade de preenchimento com sujeito pós-verbal com valor anafórico’. Alternativamente, poderia verificar-se a reanálise do valor contrastivo do pronome anafórico do PE (cf. os rapazesi podem – elesi – fazer o jantar, com prosódia adequada, aqui representada por traços), atribuindo-lhe um valor neutro, generalizando-o (os rapazesi podem elesi fazer o jantar) e reforçando, assim, a reanálise das construções. Não se tendo verificado essas hipóteses, confirma-se, na linha do já defendido em Duarte et al. (2012), que o infinitivo flexionado continua a não ser (ou continuava, em 2016) um infinitivo de concordância. Buscaram-se argumentos noutras evidências e noutros tipos de perífrases para tentar explicar a flexão do infinitivo. Por um lado, atestou-se que, quando um infinitivo flexionado pode ocorrer em alternância com um não flexionado, é o primeiro que prevalece (cf. exemplo (4)), sugerindo uma generalização do tipo: estando disponível morfologia de flexão, flexione-se. Esta generalização encontra apoio na elevada taxa de concordância verbal (cf. Pissurno 2020). Contudo, é óbvia a restrição a essa generalização quando se observam outras perífrases (com o semiauxiliar modal ter de, com o aspetual estar a e o temporal ir, ambos com alta frequência no PMO): nestas, não ocorre infinitivo flexionado – ver adiante. Os verbos dever e poder desafiam, no PMO, a sua inclusão quer no grupo dos semiauxiliares típicos quer no dos verbos de elevação típicos, ao admitirem flexão no V2. Uma via ainda a aprofundar, na busca de explicações para o infinitivo flexionado em construções com semiauxiliares modais, é a da posição dos clíticos, no

30 Relembre-se que em PE, num processo de reestruturação, as construções bioracionais são interpretadas como mono-oracionais (Gonçalves, 2001), “obliteram” a sua estrutura complexa bioracional (Raposo, 2013).

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PMO: a variedade moçambicana pode encontrar-se num estádio próprio de fixação da posição dos clíticos, relacionado com a análise que faz das propriedades das perífrases. Não tendo sido possível aprofundar este aspeto, por razões de espaço (a questão é vasta), remeto para Caetano e Vieira (2021), para acesso a dados do PM e sua análise, assim como para a sua ressalva quanto à necessidade de serem feitas análises acústicas.³¹ Para comparação com o PE dialetal, que apresenta, em certos casos, variação aproximável da que se verifica no PMO, remeto para Martins (2021). Também a negação frásica, que, nas perífrases mais tipicamente gramaticalizadas, incide apenas sobre o conjunto verbal, mas que é admitida em algumas outras perífrases (p.e., eles hão de não ter mais dinheiro para finalmente aprenderem a poupar; voltaram a/passaram a não responder às mensagens), constitui um domínio a aprofundar, quando se dispuser de outros corpora, mais vastos. Considerada, para explicar a flexão do infinitivo, a eventual relevância de inputs de PE dialetal, em que podem ser atestados casos de infinitivo flexionado (cf. Fiéis e Madeira 2014, p.e.), concluo que um corpus vasto como o CORDIAL-SIN não apresenta suficientes evidências para comprovar essa hipótese. Assim, a presença portuguesa em Moçambique (só expressiva a partir do séc. XX), mesmo que incluísse um número importante de colonos falantes de variedades dialetais, dificilmente apresentaria inputs suficientemente salientes para justificar a flexão do infinitivo em PM. Considerada, ainda, a possível influência das línguas bantas, apesar da inclusão de uma referência a Anderson (2011), e de um contributo de uma língua banta (de Angola), não tenho informação suficiente para retirar conclusões. Considerei, ainda, como hipóteses explicativas, a hipercorreção, em coarticulação com a sobregeneralização e a atitude de diferenciação do PM face ao PE, remetendo para um caso assim considerado em galego contemporâneo. Por limitações de espaço, impôs-se fazer escolhas quanto às perífrases focadas neste texto. Contudo, a consideração de haver de para testar o comportamento do infinitivo, acabou por revelar dados muito relevantes para compreender que as perífrases, no PMO, constituem um domínio ‘em ebulição’.³² As ocorrências da perífrase com haver de indiciam a sua maior produtividade, relativamente ao PE padrão, segundo a minha intuição de falante nativa desta variedade, claramente reforçada por uma pesquisa que realizei no CORDIAL-SIN. Em ambas as pesquisas, tive atenção à frequência relativa da sua ocorrência, 31 Ver ainda Vieira e Vieira (2018) e Vieira (2002) além da análise do tema no Capítulo 5, neste volume. 32 O desenvolvimento de outros tipos de perífrases do PB tem sido objeto de várias publicações, mostrando como as perífrases são um domínio dinâmico.

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sendo esta maior no PMO. Por outro lado, a perífrase é atestada em contextos temporais em que esperaria ir+Inf ou um presente do indicativo, em PE (também comprovado pela pesquisa no CORDIAL-SIN). Vejam-se alguns exemplos: (8)

a. muita gente agora (…) faz muitas coisas… muitas coisas que você há de ficar assustada (PMO, A-1-F-a) b. para os filhos tem que comprar porque toda criança há de ver aquela outra criança ali boni:ta (idem) c. as mulheres estão mais independentes… saem para trabalhar… que marido há de bater numa mulher independente? (PMO, A-2-F-a) d. porque se ela for a trabalhar… então aqueles pequenos já não hão de ir à escola não hão de ir à escola… (PMO, B-1-M-a) e. o curandeiro sempre quando vamos falar SEMPRE há de ter o que dizer sem:pre terá o que dizer (…) sempre vai ter o que dizer (PMO-A-2-F-a).

Por seu lado, ir+Inf tem uma forte vitalidade e, juntamente com estar a+Inf e ir +Ger, revela diferenças relativamente ao PE (nos seus valores temporais e/ou modais e até pragmáticos): (9)

a. nunca ninguém nos deu/nos deu… aulas de como é que nós vamos agir em relação… a esses aspetos (PMO, C-3-F-a) b. matam… ah: além de matar pessoas também queimam carros (…) e o partido de/do/o governo vai responder só co/ violência com violência … (PMO, A-3-M-a) c. tem muitas cerimonia por exemplo uma mãe que está a dar de mamar ao bebé:… quando vai parar também fazem a cerimônia do aleitamento (PMO, C-1-F-a) d. ah: quando paramos de amamentar… estamos a ficar grávidas… não é? (PMO, C‐3‐F‐a) e. acredito que os pais não vão deixando as crianças falar changana porque vão vendo aquilo como uma… um atraso pra/ pra criança… (PMO, A-3-M-a).

Reforça-se a convicção de que o domínio das perífrases, no PMO, revela um processo dinâmico de reanálise, no qual se incluem as perífrases com semiauxiliar modal. Novos corpora, que, espero, venham a ser recolhidos, dentro de alguns anos, trarão decerto novas e mais robustas evidências para a discussão (e, decerto, novas questões teóricas e novas hipóteses).

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Capítulo 5 A variação no uso do artigo definido antes de possessivo em variedades africanas, brasileiras e europeias do Português contemporâneo: motivações internas e externas da gramaticalização 1 Introdução

O presente capítulo busca analisar os padrões de uso variável do artigo definido diante de pronomes possessivos que precedem nomes [Ø / ARTIGO DEFINIDO + PRONOME POSSESSIVO + NOME], como em meu livro / o meu livro. ¹ Para esse fim, foram extraídos 4000 dados do Corpus do Português: Web / Dialetos (Davies 2016, online) – que inclui textos escritos publicados na internet em quatro países de língua oficial portuguesa, a saber, Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Acreditamos que uma análise variacionista e comparativa desses dados sincrônicos permite observar mudanças diacrônicas nas variedades regionais ou nacionais (Poplack e Tagliamonte 2001; Tagliamonte 2002, 2013). Assim, o desenvolvimento diacrônico da variação na realização do artigo poderá ser inferido comparando a extensão em que o emprego do artigo se generaliza ou não em diversos contextos linguísticos nas quatro variedades contemporâneas do português (cf. Sankoff 1988: 147). De uma perspectiva histórica, o artigo definido do português deriva de um processo de gramaticalização de um demonstrativo em latim, ille (Teyssier 1980). Pesquisas anteriores assumem que, por essa razão, os artigos definidos mantiveram uma função demonstrativa (Costa 2016: 25). Em consequência, o artigo definido seria usado, preferentemente, junto com nomes já mencionados ou familiares. Vários estudos realizados com base em corpora diacrônicos propõem que, na

1 Agradecemos a disponibilidade do nosso colega Juanito Ornelas de Avelar para discutir tanto a elaboração do presente estudo durante a etapa inicial como os critérios para a codificação dos dados. Laura Álvarez López – Universidade de Estocolmo Matti Marttinen Larsson – Universidade de Estocolmo / Universidade Humboldt de Berlim https://doi.org/10.1515/9783110670257-007

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evolução da língua portuguesa, o artigo definido do PE (Português Europeu) passou por um processo de gramaticalização, chegando a se tornar um marcador nominal que irá ocorrer normalmente como artigo diante de possessivos, como no exemplo (1).² Assim, o uso do artigo teria se difundido, paulatinamente, a outros contextos linguísticos específicos como o dos nomes próprios, onde o artigo até então tinha sido considerado desnecessário, como no exemplo (2) (Rinke 2010; Callou e Silva 1997: 12): (1) O meu livro. (2) A Ana está aqui. No que diz respeito às diferenças largamente observadas entre a realização quase categórica do artigo definido diante de possessivos pré-nominais no PE e a variação no PB (Português Brasileiro), Araújo (2014) sugere que se explicam justamente pelo avançado estágio de gramaticalização do artigo definido em Portugal. Tal processo teria resultado em uma mudança linguística, levando ao uso categórico do artigo com possessivo no PE com algumas exceções, enquanto o PB se comportaria como o PE dos séculos XVI e XVII – quer dizer, da época da colonização do Brasil – fato que, conforme Callou e Silva (1997: 5) e Martins (2016: 22), poderia ser índice do conservadorismo do PB. Cabe ainda destacar que Oyama (2018), que estuda o uso do artigo nos sintagmas determinantes no português paulista nos séculos XX e XXI, não consegue determinar se é um caso de variação estável ou de uma mudança em progresso. Alguns autores têm avançado explicações de caráter tipológico para as divergências entre o PE e o PB, afirmando que os condicionantes lexicais e semânticos (internos à língua) governam o emprego do artigo definido antes de possessivos.³ Nessa linha de pensamento, Brito (2017: 178-179) interpreta os possessivos pré-nominais do PE como adjetivos e os do PB como determinantes. Devido a essa diferença, a combinação de artigo e possessivo representaria, no PB, uma dupla determinação desnecessária do nome. Não obstante, essa interpretação pode ser questionada, pelo menos se entendermos o determinante do PB como capaz de veicular definitude (refere-se a algo presente no universo discursivo) ou especificidade (indica algo/alguém conhecido pelo falante). Nesse sentido, Câmara Júnior

2 Castro (2016: sem página) afirma que “o que distingue as duas variedades é a realização do artigo definido expletivo que ocorre neste contexto; este é obrigatoriamente foneticamente realizado em PE e pode ser foneticamente nulo em PB”. Contudo, Kupisch e Rinke (2011: 106) afirmam que o artigo não é puramente expletivo, porque pode aparecer em contextos predicativos com função desambiguadora como em: “ela é minha professora” (alguém não mencionado antes) e “ela é a minha professora” (de quem a primeira pessoa do discurso já falou ao interlocutor). 3 Cf. o panorama oferecido por Guedes (2019: 1406).

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(1978) afirma, com relação ao PB, que “o possessivo não tem necessariamente função de partícula definida e, especialmente em função predicativa, precisa de artigo para isso”. Da mesma forma, Floripi (2016: 871) ressalta que, nas línguas que aceitam o uso do artigo definido junto ao possessivo, “os possessivos não são equivalentes a determinantes definidos mesmo quando eles parecem ocupar a posição de um determinante”. Finalmente, Castro (2006)⁴ rejeita a referida divisão tipológica baseada no sistema possessivo, alegando que as diferenças observadas entre o PE e o PB estariam antes no paradigma do determinante, que seria foneticamente nulo no PB e realizado no PE. Cabe notar que, independente da presença dos possessivos, os substantivos que aparecem sem artigo em contextos claros de determinação constituem uma particularidade do PB em contraste com o PE (Floripi 2016: 870). Nesse sentido, Kabatek (2007: 41) procura explicar a omissão do artigo em casos onde sua realização é esperada, sugerindo que a gramaticalização do artigo talvez não seja unidirecional, o que distinguiria o PB de outras línguas românicas. Outra proposta que aponta na mesma direção é apresentada por Araújo (2014), que afirma que, no Brasil, o artigo não se gramaticalizou a ponto de tornar-se obrigatório em construções possessivas como no PE. Assim, as questões que norteiam o presente estudo são: que fatores teriam inibido a gramaticalização do artigo definido no Brasil? É possível observar padrões de uso análogos em Angola e Moçambique? A análise aqui proposta, fundamenta-se em pesquisas prévias e busca, em primeiro lugar, verificar quantitativamente quais os contextos linguísticos favorecedores e desfavorecedores do uso de artigo definido diante de possessivos prénominais. Como já foi dito, algumas propostas apontam para razões tipológicas e internas à língua. Por outro lado, há pesquisas que sugerem que as causas do estágio menos avançado da gramaticalização do artigo definido diante de possessivo pré-nominal no Brasil poderiam ser explicadas pelo contato com falantes de outras línguas (Araújo 2014: 11; Floripi 2016: 879). No caso do contato, a questão é se os resultados da análise quantitativa apontam para uma inibição paralela da gramaticalização nos dados brasileiros e nos de variedades africanas do português em comparação com dados do PE. Nesse sentido, o corpus escolhido oferece uma possibilidade única de quantificar e estudar um fenômeno de gramaticalização com base em corpora comparáveis de variedades do português escrito que vêm evoluindo tanto na Europa como em regiões onde os falantes de português estiveram ou estão em contato direto com línguas tipologicamente diferentes do português.

4 Cf. Guedes (2019).

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O capítulo é dividido da seguinte forma: na Secção 2 apresentamos as investigações anteriores que serviram de base para elaborar nosso estudo; na Secção 3 descrevemos a metodologia da análise quantitativa, detalhando os dados coletados e a escolha das variáveis previsoras codificadas para a análise; finalmente, na Secção 4, relatamos e discutimos os resultados e, na Secção 5, encerramos o capítulo com as nossas considerações finais.

2 Estudos anteriores Como já foi mencionado, existe um conjunto de estudos sobre o tema que nos ocupa. Com frequência, tais trabalhos têm se centrado nas diferenças entre variedades do PE e do PB, apontando uma série de fatores que condicionam os padrões de uso e avançando possíveis explicações para o emprego variável do artigo. Esses precedentes servirão de base para a nossa análise e a interpretação dos resultados. Destacamos nesta secção as pesquisas que discutem propriedades semânticas (a influência do tipo de posse ou possuído) e sintáticas (a presença e ausência de preposição antes do possessivo e a função sintática do SN), assim como a morfologia do possessivo (relacionada com o referente ou possuidor e com o nome ou possuído). Essa escolha se deve às limitações do corpus que, por um lado, permite acesso a uma quantidade de dados que viabiliza resultados robustos, mas, por outro lado, não permite explorar fatores sociais ou de caráter estritamente pragmático. Acrescentamos, porém, algumas reflexões sobre a variável extralinguística escolaridade, dado que analisamos um corpus de língua escrita. Por fim, consideramos os resultados de análises de dados em contextos onde há ou houve contato entre falantes de português e línguas africanas.

2.1 Propriedades semânticas Os resultados de investigações prévias sobre o PB revelam que o tipo de possuído (representado pelo substantivo ou nome) e o grau de familiaridade com o possuído são fatores que podem ser relacionados com a variação no emprego do artigo antes de possessivos (Callou e Silva 1997). Quanto às línguas românicas, Bouzouita e Marttinen Larsson (2020:12)⁵ apresentam exemplos de variedades de italiano, catalão, aragonês, asturiano e galego nas quais o possessivo pode ser antecedido por um artigo, da mesma forma que ocorre no português. Com base nos resultados de

5 Cf. Inverno e Swolkien (2003).

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pesquisas anteriores, os mesmos autores constatam que, embora um sistema possessivo inclua o artigo definido em configurações pré-nominais, as construções nas quais o possuído está representado por termos de parentesco tendem a omitir o artigo como no exemplo (3).⁶ (3) Minha mãe mora perto Em (3), as características do possuído seriam, de acordo com Callou e Silva (1997: 19), “o único fator mencionado pelas gramáticas, principalmente as de Portugal, para explicar a ausência de artigo diante de nomes de parentesco”. A ideia é que quando o possuído é específico e conhecido, como no caso de um parente, o artigo se torna desnecessário ou redundante. Entretanto, estudos sobre o PB revelam que qualquer relação humana (não só as de parentesco, nem todas as de parentesco) desfavorecem a realização do artigo antes de possessivo, “provavelmente por não se tratar propriamente de posse mas de relações humanas” (Callou e Silva 1997: 19). Ao analisar os resultados, as autoras constatam que atua a “inerência de posse” (Callou e Silva 1997: 20). Por outro lado, conforme Brito (2017), a ausência do possessivo com nomes de parentesco em português é um reminiscente da gramática do PE, antes da gramaticalização observada por Rinke (2010). Com base em Lyons (1985), Rinke parte de que quando uma língua possui a categoria de definitude, a estrutura utilizada para a possessão inalienável é interpretada como uma estrutura definida. Assim como os pronomes possessivos, os nomes próprios e os nomes inalienáveis (outros contextos nos quais se observa uma tendência de uso mais produtivo do artigo como resultado do processo de gramaticalização do PE) são considerados capazes de veicular definitude e unicidade (refere-se a algo único), fato que tornaria o emprego do artigo definido redundante nesses contextos (Costa 2016). Nesse sentido, seria possível explicar o maior uso do artigo antes de possessivo na evolução do português clássico ao português europeu moderno, pelo fato de o traço semântico de definitude, associado ao traço de possessivo, ter passado a ser morfologicamente realizado por meio de um artigo (Floripi 2008). Contudo, no estudo de Campos Júnior (2011) sobre o PB, o traço especificidade do possuído não foi selecionado como fator significativo. Além disso, segundo Bouzouita e Marttinen Larsson (2020), um exemplo do tipo ilustrado em (3) representa um padrão maior que diferencia a posse inalienável da posse alienável. Quanto às construções de posse inalienável e alienável, Haspelmath (2008) afirma que suas características

6 As gramáticas tradicionais também têm apontado a ausência categórica de artigo antes de possessivo em construções cristalizadas como fórmulas de tratamento e vocativos (Callou e Silva 1997: 12; Inverno e Swolkien 2003: 182).

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podem ser explicadas pela frequência com que os nomes inalienáveis aparecem como possuídos.⁷ Tendo em conta os resultados das investigações referenciadas, a questão que surge é se é possível verificar diferenças significativas na realização do artigo dependendo do tipo de posse (e das frequências observadas no emprego do artigo dependendo do tipo de posse). Uma alta frequência de nomes inalienáveis no núcleo do SN e um efeito desfavorecedor relativamente ao uso do artigo nesses contextos seria de esperar também na nossa análise.

2.2 Propriedades morfossintáticas 2.2.1 Preposição precedente Uma série de pesquisas prévias mostram que, no PB, a presença de preposições favorece o emprego do artigo antes de possessivo (Callou e Silva 1997)⁸. Além disso, Callou e Silva (1997: 17)⁹ confirmam que as preposições que se contraem com o artigo (de, em, a, para), com exceção de por, chegam a “duplicar seu peso relativo” em comparação com as que não contraem (com, sobre). A questão é, logo, se as variedades de PA (Português Angolano) e PM (Português Moçambicano) mostram as mesmas tendências observadas no que respeita ao PB – e se é possível propor uma explicação com base na prosódia.¹⁰ Cabe aqui notar que Floripi (2008) destaca, com relação às preposições, que os SNs com função sintática de adjuntos e objetos indiretos apresentam o mesmo comportamento para o emprego do artigo, indicando que o que fundamenta a mudança é realmente a presença ou ausência da preposição e não a função sintática (Floripi 2008)¹¹. Da mesma forma, Sedrins et al. (2017: 31) constatam que “as funções sintáticas que mais favoreceram o uso do artigo […] foram as encabeçadas por preposição, adjunto adnominal e objeto in-

7 “Many cross-linguistically recurring properties of inalienable and alienable adnominal possessive constructions can be explained by the fact that inalienable nouns occur more frequently as possessed nouns” https://www.eva.mpg.de/lingua/conference/08_springschool/pdf/course_materials/ Haspelmath_Possessives.pdf 8 Cf. Campos Júnior (2011), Floripi (2008), Guedes (2019), Siqueira (2020). 9 Cf. Pereira et al. (2019: 1285). 10 Conforme Callou e Silva (1997), as diferenças regionais observadas dentro do Brasil estariam relacionadas com aspectos prosódicos – o que poderia explicar o comportamento específico de preposições que contraem, já que favorecem mais o uso do artigo do que as que não contraem com ele. Isso também significa que os fatores analisados no presente estudo não explicariam esse tipo de diferenças. 11 Cf. Guedes (2019).

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direto. Um cruzamento das variáveis mais significativas permitiu observarmos que de fato é o contexto de preposição aglutinante que mais favorece a ocorrência do artigo nessas comunidades”. Dado o caráter das observações no que diz respeito ao PB, acreditamos que seja interessante verificar quantitativamente a realização do artigo em SNs regidos por preposições na totalidade do corpus.

2.2.2 Função sintática do SN Vários estudos destacam que, no PB, o SN com função sintática de sujeito favorece a realização do artigo (Callou e Silva 1997; Guedes 2019: 1417; Oliveira 2011: 98). Pereira et al. (2019: 1286-1287) coincidem com Callou e Silva (1997) ao identificarem tanto a função de sujeito como as de objeto como favorecedoras do uso do artigo, mas, conforme Oliveira (2011: 98), a função de objeto direto inibe a sua utilização. Segundo Pereira et al. (2019: 1287), os SNs em posição pré-verbal geralmente codificam um dado conhecido e, portanto, o emprego do artigo no contexto sintático do sujeito estaria motivado pelo fato de estar cumprindo “uma função de marcador de informação conhecida”. No caso do objeto, a presença do artigo garantiria, conforme os mesmos autores, “a visibilidade do SN como argumento naquela posição” (Pereira et al. 2019: 1290). Considerando esses resultados, que não são sempre uniformes, buscamos identificar os padrões de realização do artigo de acordo com a função sintática do SN nas quatro variedades nacionais estudadas. A ideia é explorar e procurar explicar a ocorrência ou não do artigo conforme as seguintes funções sintáticas: adjunto adverbial, objeto direto, objeto indireto, sujeito e termo adnominal. À luz dos referidos estudos, seria de esperar que tanto a presença de preposições como as funções sintáticas de sujeito e objeto favorecessem o uso do artigo.

2.2.3 Morfologia do possessivo Schei (2009) corrobora os resultados de pesquisas prévias sobre o PB, mostrando que os artigos são mais comuns no singular e com pronomes de primeira pessoa. Magalhães (2013: 131), que estuda o mesmo fenômeno no PE de uma perspectiva diacrônica, explica que “a inclusão desse fator se baseou no fato de que se a hipótese do uso do artigo para maior ou menor especificidade estivesse correta, o plural deveria ter menos necessidade de artigo que o singular, já que quase sempre o plural é intrinsicamente definido”. Assim, seria de esperar que o artigo se tornasse redundante no plural. Contudo, no estudo de Guedes (2019) sobre o PB falado, a variável previsora número gramatical do pronome possessivo se mostrou

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insignificante e, ao mesmo tempo, Oliveira (2011: 99-100) mostra que o plural favorece a realização do artigo porque, na variedade afro-brasileira por ela estudada, cumpre a função de marca de plural. Quanto à pessoa gramatical do pronome, se houver diferenças no emprego do artigo dependendo da pessoa (possuidor), estas poderiam ser motivadas pela hierarquia participativa do discurso (discourse participation hierarchy, 1ª pessoa > 2ª pessoa > 3ª pessoa/Speech Act Participants (1ª e 2ª) > 3ª pessoa; Silverstein 1976, Givón 1994, Manning 2003, entre outros). O fator gênero gramatical foi selecionado no estudo de Guedes (2019), que constatou uma “preferência no uso do artigo em sintagmas femininos”. Teremos aqui a possibilidade de verificar a significância desse condicionante em um corpus mais amplo. Acreditamos, contudo, que pode ser difícil achar uma explicação lógica para sua possível influência.

2.3 Fatores extralinguísticos 2.3.1 Escolaridade A escolaridade é um fator extralinguístico que se mostrou significativo em vários estudos variacionistas, e não apenas no Brasil.¹² O tipo de corpus aqui utilizado não permite explorar essa variável, mas ao tratar-se de dados da escrita, partimos do pressuposto de que foram produzidos por falantes escolarizados, ou seja, pessoas que têm tido algum tipo de contato com algum tipo de norma padrão. Nesse sentido, a norma padrão brasileira se distingue da norma padrão europeia, que também se aplica nos países de língua oficial portuguesa na África. Por essa razão é possível que o uso de artigo em nossos dados se revele maior do que nos estudos anteriores que analisam o PB falado. Cabe aqui destacar, que a influência da escolaridade não quer dizer necessariamente que os professores ensinem os alunos a usarem o artigo definido com os pronomes possessivos em todos os países de língua oficial portuguesa. É igualmente possível que parte desses alunos adquiram tal regra pelas leituras realizadas no âmbito escolar. Apesar de o emprego do artigo antes de possessivo ser associado à norma padrão escrita, no Brasil a variação não parece ser valorizada socialmente de forma negativa (Callou e Silva 1997: 12).

12 Cf. Bazenga (2019), Brito et al. (2018), Gomes e Cordeiro (2021).

Capítulo 5

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2.3.2 Contato Linguístico Com base nos estudos de Baxter e Lopes (2004, 2009) e Mattos e Silva (2004), Araújo (2014) afirma que o português, difundido pelo Brasil por falantes de línguas africanas que tinham adquirido essa língua de forma espontânea, “tinha um artigo pouco gramaticalizado e, apenas em circunstâncias especiais, realizava esse determinante diante do possessivo”. A autora também reconhece a presença histórica de imigrantes portugueses no Brasil e a pressão da norma padrão tradicionalmente ensinada nas escolas. Nesse sentido, o contato com o PE dos imigrantes e com a gramática prescritiva poderia ter incentivado o uso do artigo. Também Castro (2016) menciona a influência da norma padrão europeia no Brasil do século XIX. Finalmente, Inverno e Swolkien (2003: 191) asseveram que não é possível excluir a possibilidade de as construções possessivas das línguas do tronco tupi terem influenciado o PB, mas não fica claro que tipo de mecanismo teria levado à variação observada no PB, já que nessas línguas, conforme as mesmas autoras, os possessivos são pronomes pessoais de relação pospostos ao possuidor. Na mesma linha de pensamento, mas analisando dados de variedades do português faladas e escritas em Moçambique, Atanásio (2002: 131-132) explica a ausência do artigo nas estruturas que nos ocupam por meio do contato com as línguas Bantu: “os falantes talvez estejam a empregar quantificadores, possessivos e outros especificadores nominais, no reconhecimento de que estes elementos especificam com precisão o núcleo nominal que acompanham, fazendo por isso supressão de segmentos formalmente menos relevantes, como é o caso dos artigos definidos, que não existem na sua língua materna”. Da mesma forma, Mapasse (2015: 94, 135) aponta paralelismos entre o PM e o PB no que concerne à realização do artigo antes de possessivo. Adriano (2014: 435-436), por seu lado, afirma que existe variação no emprego do artigo com pronomes possessivos no Português Angolano. Por fim, Gomes e Cordeiro (2021) analisam aproximadamente 500 dados do Português falado em São Tomé e concluem que as variáveis que favorecem o uso do artigo são: escolaridade, presença de preposição e as funções de sujeito, objeto direto/indireto e adjunto adnominal. Porém o contato do falante com as línguas crioulas não se mostrou relevante (mas talvez sim, como no Brasil, o contato com a norma padrão do PE). Embora os estudos acima referidos, sobre variedades da língua portuguesa, adotem uma perspectiva de mudança linguística induzida por contato¹³, algumas pesquisas sociolinguísticas, enfocadas sobretudo em processos de gramaticalização de estruturas diversas em variedades de espanhol, vêm destacando casos em que o

13 Cf., por exemplo, o panorama oferecido por Grant (2019).

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contato linguístico tem atuado como fator inibidor de processos de gramaticalização (Blas Arroyo 2015; Enrique-Arias 2010; Garancha, 2018). Esperamos poder comentar possíveis efeitos do contato linguístico nos nossos resultados com base nesses achados prévios.

3 Metodologia 3.1 Pressupostos teórico-metodológicos Com a finalidade de analisar a utilização do artigo definido diante de possessivos no nosso corpus, realizamos uma análise variacionista (Labov 1972, entre outros). Esse tipo de análise se centra em uma variável linguística cujas variantes expressam um mesmo significado. Seguindo o método variacionista, codificamos os fatores que hipoteticamente poderiam condicionar a variação e aplicamos uma técnica de modelagem de regressão a fim de identificar as regras abstratas que restringem a variação entre as duas variantes estudadas (presença ou ausência do artigo). Além disso, um aspecto central no presente estudo é a análise das restrições ou condicionamentos de uma série de variáveis em variedades de uma língua, visando determinar em que medida os mesmos fatores condicionam a variação em geografias diversas. Por essa razão, utilizamos métodos variacionistas comparativos.¹⁴ Como já foi dito, a comparação dos padrões, observados em variedades geográficas da mesma língua na sincronia, permite inferir mudanças históricas.¹⁵ Isso significa que a frequência de uso de uma estrutura inovadora pode ser uma indicação da progressão da mudança em diferentes comunidades (Tagliamonte 2013: 186). Nesse sentido, propomos aqui que a variação sincrônica é a manifestação da mudança diacrônica, algo amplamente aceito como válido (Lehmann 2004: 153). Em concreto, destacamos aqui um processo de gramaticalização que leva a uma tendência de uso mais produtivo do artigo diante de possessivo. Como mostram estudos anteriores, a estrutura [ARTIGO DEFINIDO + PRONOME POSSESSIVO + NOME] se encontra generalizada no PE onde é interpretada como quase obrigatória. Em contraste, no PB, a realização do artigo apresenta variação assim como nas variedades de PA (Português Angolano) e PM (Português Moçambicano), em-

14 Cf. Poplack e Tagliamonte (2001), Tagliamonte (2002, 2013). 15 Ver por exemplo, o estudo sobre o espanhol de Schwenter e Torres Cacoullos (2008).

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bora não existam, do nosso conhecimento, estudos quantitativos sobre este fenômeno para as duas últimas. Na análise aqui apresentada, o condicionamento variável do uso do artigo é utilizado para diagnosticar a gramaticalização. Entende-se geralmente que, durante os processos de gramaticalização, mais restrições se aplicam no estágio incipiente e, ao longo do percurso da gramaticalização, essas restrições perdem força à medida que a estrutura gramaticalizante se espalha cada vez mais em novos contextos linguísticos. Em consonância com esse entendimento da gramaticalização, a comparação entre variedades de uma mesma língua permite inferir diferentes estágios de mudança linguística (Poplack 2011: 212). Isso ocorre porque os estágios sincrônicos da variação em diferentes variedades refletem diferentes estágios de mudança diacrônica em um continuum de gramaticalização no qual algumas variedades parecem estar mais avançadas do que outras (Tagliamonte 2002: 752)¹⁶. Seguindo as abordagens variacionistas da teoria da gramaticalização, operacionalizamos a “gramaticalização” como a expansão gradual através dos contextos linguísticos e o enfraquecimento dos condicionantes ao longo do tempo (Hopper e Traugott 2003 [1993]: 48). De uma perspectiva sincrônica, percebemos que a falta de condicionamentos linguísticos estatisticamente significativos é sintoma de um estágio mais avançado da gramaticalização; inversamente, um grau significativamente maior de restrições que regulam a variação é um sinal revelador de um menor grau de gramaticalização. A nossa análise visa a determinar em que medida as variedades estudadas parecem convergir ou divergir em seu condicionamento linguístico. De acordo com a proposta de Heller et al. (2017), isso é feito por meio do cálculo de um termo de interação entre os respectivos fatores e a diatopia. Dessa forma, pretendemos identificar, por um lado, a maneira como as restrições da variação avançam em diferentes geografias e, por outro lado, se existem diferenças estatisticamente significativas.

3.2 Dados e método Os nossos dados provêm do Corpus do Português: Web / Dialetos (Davies 2016, online) e foram coletados em dezembro de 2021. Uma amostra aleatória de 1000 ocorrências por país (Portugal, Brasil, Angola e Moçambique) foi extraída através de uma busca realizada para recuperar estruturas do tipo [PRONOME POSSESSIVO

16 Cf. Schwenter e Torres Cacoullos (2008: 3), Tagliamonte et al. (2014: 80), Silva-Corvalán e Enrique-Arias (2017: 24).

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+ NOME] precedidas ou não por artigos definidos.¹⁷ Todas as ocorrências foram inspecionadas manualmente para excluir expressões fixas (como a sua Majestade), ocorrências de dados erradamente classificados (por exemplo, de sites em galego), ocorrências duplas e assim por diante. Os dados foram codificados de acordo com as variáveis que descrevemos adiante. Antes de prosseguir na descrição das variáveis, cabe acrescentar um breve comentário sobre a (falta de) representatividade dos textos contidos nos corpora consultados. Estudos de corpus em larga escala costumam não representar satisfatoriamente uma grande variedade de diferentes tradições discursivas, grupos sociais e assim por diante. Nesse sentido, os dados analisados carecem da dinâmica sociocultural e discursiva que muitas vezes responde por grande parte da variação e mudança linguística. Caso grandes corpora orais e estratificados, ou corpora escritos discursivamente ricos, venham a ser disponibilizados para essas variedades de português, encorajamos estudos futuros. Contudo, da perspectiva aqui adotada, a análise de um grande número de dados aumenta a possiblidade de chegar a resultados mais significativos sobre as variáveis linguísticas. Artigo definido: Codifica ausência de artigo ou presença de artigo antes de SN [Ø/ARTIGO DEFINIDO + PRONOME POSSESSIVO + NOME]. Este é fenômeno estudado, ou seja, a variável dependente. As variáveis previsoras ou independentes são apresentadas na Tabela 1. Tabela 1: Variáveis previsoras. Variáveis linguísticas Variáveis

Níveis

Preposição precedendo SN

‒ Ausência de preposição (Caso você ou a sua empresa possuam direitos…) ‒ Presença e tipo de preposição (Em seu empenho para reduzir a tentação) ¹⁸ o a o antes o após o até o com

17 A busca automática realizada foi a seguinte: meu|meus|minha|minhas|teu|teus|tua|tuas| seu|seus|sua|suas|nosso|nossos|nossa|nossas|vosso|vossos|vossa|vossas NOUN. 18 Devido ao baixo número de ocorrências e/ou uso categórico com uma das variantes, as seguintes preposições foram excluídas da análise: a, antes, após, até, contra, dentre, desde, durante, entre, sem, sob e sobre.

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Tabela 1: Variáveis previsoras. (Continuação) Variáveis linguísticas Variáveis

Níveis o o o o o o o o o o o o

contra de dentre desde durante em entre para por sem sob sobre

Pessoa gramatical do SN

‒ 1a: meu(s), minha(s), nosso(a), nossos(as) ‒ 2a: teu(s), tua(s), seu(s), sua(s) ‒ 3a: seu(s), sua(s)

Número gramatical do SN

‒ Singular (minha casa) ‒ Plural (seus alunos)

Gênero gramatical SN

‒ Feminino (minha casa) ‒ Masculino (seu sangue)

Tipo de posse (natureza semântica do núcleo do SN)

‒ Alienável (substantivos concretos/identificáveis e objetos físicos como meu blog, minha casa, meu país) ‒ Inalienável (nomes de parentes; minha mãe, minha família; partes do corpo seu sangue, minhas asas; relações humanas duradouras meus amigos, seus alunos). ‒ Valor nulo (n/a, sua produtividade)

Função sintática do SN

‒ ‒ ‒ ‒ ‒ ‒ ‒

Item lexical (núcleo do SN)

‒ Item lexical (sangue, asas)

Adjunto adverbial (vive modestamente no seu céu pessoal) Objeto direto (…podem executar as suas pesquisas) Objeto indireto (eu jurei para teus pais…) Outro (…estou com a minha máquina fotográfica) Sujeito (Os seus programas esquemáticos eram…) Termo adnominal (a resistência aos seus avanços) Valor nulo (n/a, direito à vida, ao conhecimento, à sua identidade e ao seu direito a participar ativamente na vida)

Variáveis extralinguísticas País

‒ Angola ‒ Brasil

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Tabela 1: Variáveis previsoras. (Continuação) Variáveis extralinguísticas – Moçambique – Portugal Fonte

– Site da internet de onde provém o dado do corpus (literatas.blogs.sapo.mz)

4 Análise 4.1 Análise descritiva Tabela 2: Realização do artigo definido por país. Artigo definido:

Ausência

Presença

Total

Portugal

11.8% (118/1000)

88.2% (882/1000)

1000

Angola

23.2% (223/961)

76.8% (738/961)

961

Brasil

62.7% (626/999)

37.3% (373/999)

999

Moçambique

25.5% (252/987)

74.5% (735/987)

987

Total

30.9% (1219/3947)

69.1% (2728/3947)

3947

A Tabela 2 mostra a distribuição das duas variantes por país ou subcorpus. Constatamos que existe uma associação estatisticamente significativa entre a escolha da variante (com ou sem artigo definido) e as diferentes variedades regionais do português (X2 (3, N = 3947) = 68.58, p = < .00001). O efeito dessa associação é moderado (Cramèr’s V = 0.42). Na Secção 4.2 apresentamos a análise multivariada realizada por meio da modelagem de regressão.

4.2 Análise multivariada 4.2.1 Processo de seleção e avaliação do modelo O conjunto de dados analisados nesta etapa consiste em 3653 observações. O modelo de regressão de efeitos mistos foi desenvolvido na plataforma R (R Core Team

Capítulo 5

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2021), fazendo uso do pacote lme4 (Bates et al. 2014)¹⁹. Seguimos um procedimento de seleção de modelo passo a passo, começando com um modelo máximo que inlcui todas as variáveis previsoras. Eliminam-se, em seguida, as variáveis estatisticamente insignificantes para obter um modelo o mais simples possível. Assim, a variável pessoa gramatical, é eliminada por não apresentar resultados estatisticamente significativos, nem como efeito principal nem como efeito de interação com país. Apenas os efeitos significativos (como efeitos principais ou termos de interação) são mantidos no modelo. A única exceção é o modelo de tipo de posse, que contém apenas essa variável previsora – e cujos resultados são estatisticamente insignificantes (cf. Tabela 5, ver Apêndice). Além disso, as variáveis função sintática e tipo de posse são analisadas por separado em seus respectivos modelos. No caso de posse, codificou-se apenas parte das ocorrências conforme aclarado na Secção 3. Em total, codificamos 1407 observações como valores nulos (n/a). Tais ocorrências contêm substantivos abstratos ou casos ambíguos que não foi possível categorizar distintamente como posse alienável ou inalienável. Devido às limitações técnicas do corpus, codificamos como valores nulos (n/a) 282 observações sem contexto suficiente para determinar a função sintática. Isso significa que a categoria “outra (função sintática)” abrange 675 casos de frases com função de predicativo ou de agente assim como orações ambíguas e de difícil interpretação (cf. Secção 3).

4.2.2 Análise de regressão A seguir, são apresentados os resultados obtidos com base na análise quantitativa. A fim de facilitar a interpretação dos resultados e obter uma melhor compreensão da dinâmica subjacente à variação sincrônica, usamos o pacote SjPlot (Lüdecke 2021). Dessa forma, ilustramos as interações entre as diferentes variedades e identificamos a probabilidade de que ocorra a estrutura [Ø / ARTIGO DEFINIDO + PRONOME POSSESSIVO + NOME] dependendo das variáveis previsoras analisadas nos modelos de regressão. Os resultados completos dos modelos de regressão são apresentados no Apêndice (Tabelas 3-5). Visto que operacionalizamos a “gramaticalização” como o enfraquecimento dos condicionamentos linguísticos, a generalização de uma estrutura em diversos contextos linguísticos é usada como um diagnóstico do grau de gramaticalização por ela alcançado em uma determinada variedade. Da mesma forma, ao mapear as probabilidades de realização do artigo conforme os contextos linguísticos, pode-

19 Ver Baayen (2008, capítulo 7) para mais detalhes sobre modelos mistos e lme4.

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mos determinar o percurso da sua gramaticalização. Em outras palavras, identificamos os contextos pelos quais uma estrutura se difunde nas diferentes variedades. Esses resultados permitirão, por sua vez, discernir em que medida as quatro variedades estudadas convergem ou divergem quanto ao processo de gramaticalização da estrutura que nos ocupa. Seguidamente, apresentamos os resultados da referida análise, começando pelas variáveis previsoras morfossintáticas dado que representam a parte mais frutífera da nossa análise. Em seguida, relatamos os resultados da variável relacionada com o tipo de posse, ligada à natureza semântica do possuído (núcleo do SN). Variáveis morfossintáticas Voltando aos resultados das análises de regressão, a Figura 1 ilustra a interação entre as diferentes variedades do português e o número gramatical do SN. A análise de regressão (Tabela 3, ver Apêndice) indica que há uma diferença estatisticamente significativa entre o singular e o plural no PB. Os SNs no plural desfavorecem de forma significativa a realização do artigo em comparação com os SNs no singular (p = < 0,05). Nas demais variedades, esse efeito não é significativo. Como mostra claramente a Figura 1, o efeito do número gramatical no PE é neutro, porque tanto o singular como o plural favorecem igualmente a realização do artigo. Esse resultado condiz com o presumível avanço da gramaticalização do artigo antes de possessivo no PE. Não obstante, no tocante às outras variedades, observamos diferenças um pouco maiores entre os SNs singulares e plurais. Notamos ainda um comportamento comum ao PA, PB e PM que consiste em os SNs singulares desses três subcorpora favorecerem mais o emprego do artigo que os SNs plurais. Talvez seja uma característica mais acentuada nas variedades escritas do que na fala, já que o mesmo é observado para as obras literárias brasileiras do século XIX (Schei 2009), enquanto estudos mais recentes sobre PB falado (Guedes 2019; Oliveira 2011) revelam, respectivamente, que o plural ora condiciona, ora favorece seu uso. Relativamente à influência do género gramatical do SN, a Figura 2 ilustra a interação entre este efeito e as diferentes variedades do português. Tal como se observa na Figura 2, em Portugal, Angola e no Brasil, existem diferenças palpáveis em termos de probabilidades gerais de realização do artigo; ainda assim, uma observação comum a essas três variedades é que o gênero masculino favorece mais a realização do artigo, enquanto o emprego do mesmo antes de um possessivo feminino parece estar menos gramaticalizado. Note-se que a exceção significativa aqui é Moçambique (p = . Gallegos Shibya, Alfonso. 2003. Morfología y registro. Algunas relaciones entre morfopragmática, tradiciones discursivas y desarrollo de la lengua en español. Freiburg: Tese de doutorado da Faculdade de Filologia da Universidade de Freiburg (Alemanha). Disponível em: < https://frei dok.uni-freiburg.de/data/2622 >. Gallegos Shibya, Alfonso. 2009. Un acercamiento a la morfología derivativa del español desde el texto y la variación lingüística. Logos 19. 64–81. Gallegos Shibya, Alfonso. 2010. Un acercamiento operacional a la historia de la lengua. Lexis 34(2). 307–350. Gallegos Shibya, Alfonso. 2013. El desarrollo del lenguaje técnico especializado en español durante el siglo xviii. In Carsten Sinner (ed.), Comunicación y transmisión de saber entre culturas, 155– 168. München: Peniope. Gallegos Shibya, Alfonso. 2018. La relación entre tradiciones discursivas y la dinámica de variedades de lengua. LaborHistórico 4(1), jan./jun. 13–30. Gallegos Shibya, Alfonso. 2020. La compleja relación entre tradiciones discursivas y estilo. Revista da Abralin 19(3). 568–581. Gomes, Valéria Severina & Célia Regina dos Santos Lopes. 2016. Formas tratamentais em cartas escritas em Pernambuco (1869–1969): tradição discursiva e sociopragmática. Revista de Estudos da Linguagem, 24(1). 137–165. Iturrioz, José Luis. 1985. Abstracción sustantiva: reificación de contenidos proposicionales. In José Luis Melena (ed.), Symbolae Ludovico Mitxelena Septuagenario Oblatae, vol. I., 395–414. Vitoria: Universidad del País Vasco. Iturrioz, José Luis. 1986. Teoría y método de UNITYP. In Fernando Leal & José Luis Iturrioz, Algunas consecuencias filosóficas de UNITYP. Memorias del XI Congreso Interamericano de Filosofía, 2–78. Guadalajara: Universidad de Guadalajara. Iturrioz, José Luis & Fernando Leal. 1986. Algunas consecuencias filosóficas de UNITYP. Memorias del XI Congreso Interamericano de Filosofía. Guadalajara: Universidad de Guadalajara. Jacob, Daniel & Johannes Kabatek (eds.). 2001. Lengua medieval y tradiciones discursivas en la Península Ibérica. Descripción gramatical – pragmática histórica – metodología. Frankfurt am Main e Madrid: Vervuert/Iberoamericana.

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Alfonso Gallegos Shibya

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Livia Oushiro

Capítulo 7 O estudo da fala de migrantes internos: desafios, procedimentos e resultados do Projeto Acomodação 1 Introdução A estabilidade do sistema linguístico na fala adulta é uma questão relativamente preterida em pesquisas linguísticas, quando não tomada como um fato indisputado. Dentro do arcabouço da Teoria da Variação e da Mudança (Weinreich et al. 2006 [1968]), um dos construtos centrais é o de mudança em tempo aparente (Labov 2001a), que se baseia na hipótese de Lenneberg (1967) sobre o período crítico de aquisição da linguagem, a partir da qual se supõe que os padrões de fala de um indivíduo se estabilizam por volta dos primeiros anos da puberdade (e que, portanto, a fala de um adulto reflete um sistema linguístico de um tempo passado). Nesse sentido, o estudo da fala de migrantes internos é, em geral, ignorado em favor da análise da fala de membros mais “prototípicos” de suas respectivas comunidades – os nativos, preferencialmente filhos ou netos de membros da mesma comunidade, certo resquício dos NORMs¹ da tradição dialetológica (Chambers 1992) –, uma vez que se pressupõe tacitamente que o migrante adulto mantém os padrões sociolinguísticos adquiridos em sua região de origem. No entanto, a possibilidade de mudança na fala adulta individual é uma questão empírica que passou a ser colocada à prova apenas mais recentemente, principalmente em estudos sobre mudança linguística em tempo real e sobre a fala de um mesmo indivíduo ao longo da vida (ver, p. ex., Paiva e Duarte 2003; Harrington 2006; Sankoff e Blondeau 2007; Anthonissen 2021, inter alia). Ao mesmo tempo, a mobilidade geográfica e o contato fazem parte do cotidiano dos moradores das grandes cidades, de modo que a descrição e a análise da fala de migrantes parecem fundamentais para a composição de um quadro mais completo da Teoria da Variação e da Mudança. Dentre as situações de contato, pode-se afirmar que o estudo sobre o contato entre línguas tem recebido mais 1 Do inglês, “non-mobile old rural males”, ou seja, homens mais velhos, da zona rural e que nunca se mudaram. Livia Oushiro–Universidade Estadual de Campinas https://doi.org/10.1515/9783110670257-009

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atenção do que o contato entre dialetos mutuamente inteligíveis (Trudgill 1986, Dodsworth 2017). Na cidade de São Paulo, em gravações coletadas pelo Grupo de Estudos em Sociolinguística da USP (GESOL-USP) na execução do Projeto SP2010 (Mendes e Oushiro 2012), a cidade é frequentemente caracterizada como um local de “mistura” e “diversidade”, em que “se encontra de tudo”, em respostas a perguntas sobre o que caracteriza a cidade, seus habitantes e seu falar:² (1)

D1: e o que você acha que caracteriza (aqui)? S1: olha… as pessoas dizem que que é/ aqui é o centro financeiro né… mas eu acho que a principal característica de São Paulo é o povo de São Paulo… […] é é essa mistura de povos que tem em São Paulo… né nordestino sulista… japonês francês italiano espanhol… essa mistura de raças… né… faz com que a cidade ela ela… ela não tem uma/ uma única característica… né você pode encontrar o que você quiser aqui em São Paulo… […] o grande lance de São Paulo… é essa mistura de de culturas… não é?… essa diversificação… torna a cidade única… (William A., M2SP)

(2)

D1: você acha que tem um jeito de falar paulistano assim? S1: paulistano?… sabia que eu não sei te dizer por quê?… porque aqui em São Paulo tem tem tem de tudo/ todo mundo… tantos tantos… […] tem os sotaques que aqui em São Paulo você… deu uma volta na esquina você já escutou uns dois três sotaques diferente… como é que a gente vai diferenciar o so/ o paulistano?… aí é que está… acho que o paulistano é a mistura de todos esses sotaques assim… (Pedro S., M2SP)

A presença de migrantes internos e imigrantes é frequentemente citada pelos próprios paulistanos como característica definidora da comunidade. Com efeito, de acordo com um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2011, apud Oushiro 2015), 46 % da população adulta economicamente ativa (entre 30 e 60 anos) residente na região metropolitana não nasceu no estado de São Paulo; dentre os migrantes interestaduais, mais de 65 % são provenientes de estados da região Norte ou Nordeste. Visto que o levantamento se baseou na origem 2 Os exemplos são extraídos de Oushiro (2015: 8, 10). Nas citações do corpus do Projeto SP2010, o informante é identificado por seu pseudônimo e perfil social: sexo (F: feminino; M: masculino); faixa etária (1: 20 a 34 anos; 2: 35 a 59 anos; 3: 60 anos ou mais); nível de escolaridade (M: até Ensino Médio; S: Ensino Superior); e região de residência (C: bairro mais central; P: bairro mais periférico).

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por estados, pode-se supor que a índice de habitantes não nativos seja ainda maior, uma vez que os 54 % de paulistas incluem tanto aqueles nascidos na capital quanto no interior do estado. Os últimos anos têm ainda testemunhado uma polarização dos fluxos migratórios no Brasil (Oliveira 2011), observando-se movimentos também em direção ao interior (Baeninger 2005): entre 1995 e 2000, a Região Metropolitana de Campinas (RMC) foi a maior receptora de emigrantes da Região Metropolitana de São Paulo. Segundo Baeninger (2005: 94), o crescimento no afluxo de nordestinos às cidades do interior paulista “pode representar maior possibilidade de retenção desses migrantes em relação à metrópole”, devido a características da rotatividade migratória. Nos estudos sociolinguísticos, o contato dialetal apenas recentemente vem recebendo atenção e ainda carece de análises mais aprofundadas que permitam sistematizações e generalizações.³ Com essas questões em mente, o Projeto “Processos de Acomodação Dialetal na Fala de Nordestinos Residentes em São Paulo” (FAPESP 2016/04960–7) (doravante “Projeto Acomodação”), desenvolvido pelo grupo de pesquisas VARIEM-UNICAMP (Laboratório Variação, Identidade, Estilo e Mudança), se propôs a analisar os mecanismos que presidem processos de acomodação dialetal na fala de migrantes nordestinos residentes nas cidades de São Paulo e de Campinas, por meio da análise de seis variáveis sociolinguísticas: (i-ii) a realização das vogais médias pretônicas /e/ e /o/, como em relógio e romã; (iii) a pronúncia de /-r/ em coda silábica, como em porta e mulher; (iv) a palatalização de /t, d/ antes de [i], como em tia e dia; (v) a concordância nominal, como em os meninos vs. os menino; e (vi) a negação sentencial, como em não vi vs. não vi não/vi não. Trata-se de variáveis fonéticas e morfossintáticas que diferenciam dialetos do Nordeste e do Sudeste, e de áreas rurais e urbanas brasileiras. Este capítulo tem por objetivo apresentar os desafios teórico-metodológicos que circundam o estudo da fala de migrantes (Seção 2), os procedimentos empregados no Projeto Acomodação com vistas a um tratamento adequado dessas questões (Seção 3), assim como alguns dos resultados de pesquisas realizadas com base nas amostras do projeto (Seção 4). Fundamentalmente, procura-se exemplificar, neste texto, a orientação para decisões metodológicas alinhadas às questões de pesquisa, o que inclui o cuidado com a composição de amostras, a precaução com o que se pode interpretar dos dados de que se dispõe, assim como a busca e o desenvolvimento de novas ferramentas de análise. A última seção resume os procedimentos do Projeto Acomodação e aponta para seus próximos

3 Para uma revisão abrangente de pesquisas sobre contato e acomodação dialetal, ver Oushiro (no prelo).

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passos, enfatizando-se que o estudo comparativo de variedades do português se beneficiará sobremaneira da expansão dos estudos sociolinguísticos de múltiplas amostras de fala, por meio de trabalhos coletivos e em equipe, e que busquem se atualizar na utilização de novas ferramentas de tratamento de dados.

2 Desafios no estudo da fala de migrantes Seguindo preceitos da Sociolinguística Variacionista, os estudos sobre a fala de migrantes têm feito a descrição sobre os padrões de variação de múltiplas variáveis independentes (sexo/gênero, estilo, classe social, tempo de residência na nova comunidade etc.), em relação a diferentes fenômenos em variação no português (vogais médias pretônicas /e/ e /o/, realização de /s/ e de /r/ em coda silábica, morfologia variável da expressão do imperativo etc.). Esta seção revisa alguns desses estudos e deles depreende desafios para a análise do contato e da acomodação dialetal.

2.1 Múltiplas variáveis previsoras/independentes Um dos estudos pioneiros sobre o comportamento linguístico de migrantes é a pesquisa de Alves (1979) sobre as atitudes de 116 nordestinos (pernambucanos e baianos) residentes na cidade de São Paulo, com relação às variedades nativas e paulistas. A partir de uma amostra estratificada em nível social (alto ou baixo), procedência (PE ou BA), proveniência (capital ou interior) e tempo de estada em São Paulo (recém-chegados ou residentes há mais de dois anos), a autora analisou qualitativa e quantitativamente as respostas dos indivíduos a um questionário previamente elaborado, por meio do qual constatou que os falantes de nível socioeconômico baixo têm atitudes positivas quanto às variedades paulistas, ao passo que os falantes de nível alto tendem a atitudes mais favoráveis quanto às variedades nativas. Alves (1979) aventou a hipótese de que os falantes de nível baixo assumiriam traços linguísticos de São Paulo como forma de “camuflar-se linguisticamente”, enquanto os falantes de nível alto tenderiam a manter os traços linguísticos nativos; tal questão, contudo, ficou reservada para estudos futuros. Desde então, alguns estudos passaram a analisar não só as atitudes, mas também a produção linguística de migrantes. A questão da valorização do dialeto de origem ou da nova localidade é indiretamente abordada por Chacon (2012) e Hora e Wetzels (2010, 2011) através da variável estilo (no sentido laboviano de “grau de atenção à fala”; ver Labov 2001b). Em sua análise sobre a palatalização de /s/ em coda medial na fala de 10 paulistas residentes em João Pessoa, Chacon (2012)

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verificou que o estilo de leitura favorece o emprego da realização alveolar típica do estado de São Paulo, fato que a autora atribui ao maior prestígio do dialeto nativo dos falantes em relação à variedade pessoense. De modo semelhante, em uma análise qualitativa da realização de /r/ em coda na fala de 4 paraibanos residentes em São Paulo, Hora e Wetzels (2010, 2011) previram a preferência pelo tepe em estilo de leitura, como modo de se aproximar da variante de prestígio local; no entanto, constataram que tal estilo parece favorecer a manutenção da forma vernacular fricativa, de modo que os autores concluem que a hipótese de monitoração não se confirma. Contudo, diferentemente da interpretação de Chacon (2012) e Hora e Wetzels (2010, 2011), é possível que o estilo de leitura provoque a tendência de recorrer não à forma que os falantes consideram “de prestígio”, mas sim à forma de seu dialeto de origem. Bortoni-Ricardo (1985), por sua vez, analisou a fala de 33 mineiros estabelecidos em Brasília, com ênfase no papel das redes sociais para explicar o desfavorecimento de traços linguísticos tipicamente “rurais” ou “caipiras” (a vocalização da lateral palatal /ʎ/, monotongação de ditongos e a marca zero de concordância verbal): aqueles com maior índice de “integração” e “urbanização” apresentaram maior tendência a empregar formas consideradas padrão. Rodrigues (1987), que analisou a concordância verbal entre moradores de uma favela em São Paulo, considerou a fala de migrantes juntamente à de nativos da cidade. Os provenientes do interior de São Paulo, do Paraná e do Nordeste favoreceram a marca zero de concordância em primeira pessoa do plural, e aqueles do norte de Minas Gerais e sul da Bahia favoreceram-na em terceira pessoa do plural; em ambos os casos, os paulistanos foram os que menos tenderam a empregar a forma não padrão. Tanto Bortoni-Ricardo (1985) quanto Rodrigues (1987) verificaram, quanto ao sexo/gênero, o favorecimento das formas padrão da concordância verbal pelos falantes de sexo masculino, algo que as autoras atribuem a pressões do mercado de trabalho e à consequente rede social dos migrantes nas grandes cidades: enquanto os homens geralmente exercem atividades profissionais fora do bairro em que residem e têm maior oportunidade de conviver com os moradores nativos, as mulheres costumam exercer atividades domésticas (como donas de casa ou faxineiras) e manter maior contato com parentes e vizinhos. Todavia, a manutenção das formas vernaculares pelas mulheres não é uma constante. Cardoso (2009), em estudo sobre a alternância entre a forma imperativa associada ao indicativo (leva, traz, vem) ou ao subjuntivo (leve, traga, venha) em uma amostra de 11 cearenses (e seus descendentes) que vivem em Brasília, constatou o desfavorecimento da forma associada ao subjuntivo, predominante nas localidades nordestinas, por seus informantes do sexo feminino.

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Alguns trabalhos assinalam o papel da idade à época da migração para a assimilação de novos traços linguísticos (p.ex., Bortoni-Ricardo 1985): quanto mais jovem, maior é a tendência de emprego de formas da nova localidade. Entretanto, a variável mais analisada em estudos sobre a acomodação dialetal é o tempo de permanência; constataram correlações significativas as pesquisas de Marques (2006) (sobre a realização de vogais médias pretônicas na fala de 21 paraibanos no Rio de Janeiro), Martins (2008) (sobre a realização alveolar ou palatalizada de /ti/ e /di/ por 7 paraibanos no Rio de Janeiro), Lima e Lucena (2013) (sobre a pronúncia alveolar ou palatalizada de /s/ em coda na fala de 7 paraibanos em Recife), o estudo de Chacon (2012) mencionado anteriormente, entre outras. Por outro lado, Cardoso (2009) afirma não verificar correlação evidente entre o tempo de residência em Brasília e os percentuais de emprego da forma imperativa associada ao indicativo; enquanto dois falantes (Viv e Neu) que ali vivem há 15 e 13 anos respectivamente apresentam forte tendência ao emprego dessa forma verbal, outro falante que vive na cidade há 24 anos (Jes) a desfavorece fortemente. Em vez disso, a autora considera que o grau de identificação com a capital federal é preponderante para a preferência pela forma imperativa associada ao indicativo. De fato, questões de identidade são frequentemente invocadas para explicar o comportamento linguístico dos migrantes. Entretanto, tais considerações não raro são traçadas a partir de análises qualitativas de trechos de entrevistas, como uma explicação ad hoc para a manutenção de traços vernaculares por parte de falantes que se deslocaram há muitos anos. Juntamente às variáveis sociais mencionadas, deve-se ressaltar o amplo espectro de variação individual que normalmente se verifica na fala de migrantes. Mendes (2011), por exemplo, em análise univariada sobre a pronúncia de /-r/ na fala de paraibanos em São Paulo, reporta que as taxas de manutenção da variante aspirada – em média, 75 % – variam individualmente de 56 % (peso relativo .47) a 95 % (P.R. .91). No estudo de Martins (2008), a média de 64 % de palatalização de /ti/ e /di/ na fala de seus 7 informantes paraibanos no Rio de Janeiro inclui taxas que vão de 33 % (P.R. .10) à acomodação quase categórica (98 %, P.R. .95). A ausência de consenso sobre o papel das variáveis classe social, estilo, sexo/ gênero, idade de migração, tempo de permanência, identificação, indivíduo sinaliza a importância de estudos que se dediquem a testar tais questões sistematicamente. Os diferentes resultados certamente decorrem da longa lista de variáveis que podem atuar no processo de acomodação dialetal; no entanto, o controle de todas elas através dos métodos tradicionais de estratificação de amostras em estudos sociolinguísticos torna-se problemático. Tome-se como exemplo um estudo que se baseie em uma amostra estratificada em sexo/gênero, três faixas etárias e dois níveis de escolaridade, o que resulta em 12 perfis sociolinguísticos. As boas práticas da análise variacionista recomendariam a obtenção de amostras com pelo menos 3

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a 5 falantes por perfil social, a fim de garantir a ortogonalidade entre essas variáveis,⁴ sua representatividade da comunidade sob estudo e a validade dos resultados de análises estatísticas. Tal estudo, portanto, requereria uma amostra com no mínimo 36 informantes (3 falantes x 12 perfis). Controlar rigidamente um número maior de variáveis (tempo de permanência, identificação com local de origem, classe social, proveniência rural ou urbana etc.) através desse método aumentaria o número mínimo de informantes geometricamente o que, em certa medida, acabaria inviabilizando a análise de seus efeitos simultâneos dentro de uma mesma pesquisa, devido a restrições usuais de prazo e orçamento. Desse modo, a consideração de múltiplas variáveis sociais, por um lado, é algo que parece imprescindível no estudo da fala de migrantes, pois seus padrões podem não coincidir com aqueles da comunidade de origem ou anfitriã. No entanto, isso traz consigo a dificuldade em determinar se os padrões de variação observados se devem de fato às variáveis incluídas na análise estatística ou se podem ser mais propriamente atribuídos à contribuição de falantes específicos ou mesmo à atuação de outras variáveis não controladas. Desse modo, o controle das fontes de variação é também fundamental.

2.2 Múltiplas variáveis resposta/dependentes A maioria dos estudos sobre acomodação dialetal, como se viu na subseção anterior, dedica-se a uma única variável sociolinguística. No entanto, o fato de que um indivíduo tenha se acomodado a um traço característico da comunidade anfitriã não necessariamente implica que tenha ocorrido um processo global de acomodação. Um exemplo desse cenário é dado pelo estudo de Nycz (2011), que analisou a fala de 17 canadenses que residem na região da cidade de Nova Iorque. Esse estudo se debruça sobre duas variáveis cujas variantes distinguem os dialetos: a realização de palavras como cot ‘berço’ e caught (forma pretérita do verbo catch ‘pegar, prender’), homófonas na variedade canadense mas distintas no inglês de Nova Iorque ([ɑ] vs. [ɔ], respectivamente); e o chamado “alçamento canadense” do ditongo /aw/, em palavras como house ‘casa’, tipicamente realizado de modo centralizado no Canadá [əw]. Nycz (2011) constatou que a maioria dos falantes ad4 Duas variáveis são ortogonais quando suas variantes coocorrem livremente, ou seja, quando cada fator não representa uma subcategoria de outro fator em outra variável. Por exemplo, uma amostra hipotética em que todos os homens tivessem menos de 25 anos e todas as mulheres mais de 30 anos não permitiria verificar adequadamente o papel das variáveis Sexo/Gênero e Faixa Etária. Ver Guy e Zilles (2007: 52–57).

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quiriu a distinção entre cot/caught e uma pronúncia mais abaixada do núcleo de /aw/; no entanto, quanto à última variável, itens lexicais específicos como out e about – estereotípicos para fazer referência à pronúncia canadense – revelam maior resistência à acomodação. Ademais, verificou que os falantes que apresentaram maior grau de acomodação quanto à distinção cot/caught são também aqueles que menos se acomodaram ao abaixamento de /aw/. A autora interpreta que os falantes podem “manipular” (conscientemente ou não) certas variáveis linguísticas para sinalizar uma identidade distinta, sobretudo através de certos itens lexicais, ao mesmo tempo que se acomodam a outros tantos traços linguísticos da nova comunidade. Deve-se questionar, portanto, se diferentes variáveis passam por um mesmo processo de acomodação, ou se há traços mais propensos à assimilação dialetal em relação a outros. Se este for o caso, cabe examinar se há uma tipologia de variáveis – que podem se diferenciar quanto ao grau de consciência dos falantes, quanto à direção da regra variável etc. – que propiciam ou inibem a mudança na fala individual, bem como se diferentes falantes tendem a exibir os mesmos processos de acomodação com relação a múltiplas variáveis resposta/dependentes. Desse modo, o Projeto Acomodação partiu das observações de que há: (i) amplo número de variáveis previsoras; (ii) ampla variação entre a fala de diferentes indivíduos migrantes; e (iii) a possibilidade de que a acomodação a determinado traço linguístico da comunidade anfitriã, por parte de um indivíduo, não necessariamente acarreta a acomodação a outros traços. A próxima seção descreve os procedimentos metodológicos adotados no projeto para o tratamento dessas questões.

3 Procedimentos metodológicos do Projeto Acomodação Como visto, a literatura sobre a fala de migrantes indica a necessidade de considerar uma série de características sociais desses falantes, além daquelas tradicionalmente analisadas em estudos sociolinguísticos (sexo/gênero, faixa etária, escolaridade), a fim de depreender quais fatores mais favorecem a acomodação dialetal. O Projeto Acomodação partiu de dois conjuntos de gravações previamente coletados na cidade de São Paulo com migrantes alagoanos (advindas de amostra coletada para a dissertação de mestrado de Gomes da Silva 2014) e migrantes paraibanos (advindas do Projeto Casadinho; Hora e Negrão 2011), cada qual estratificado quanto ao sexo/gênero, a faixa etária e o nível de escolaridade dos falantes. A análise desse conjunto de gravações, denominado Amostra 1, teve o

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objetivo exploratório de observar os padrões de correlação quanto a diferentes variáveis previsoras sociais, com vistas a levantar hipóteses a ser testadas mais sistematicamente numa segunda amostra a ser coletada (Amostra 2). As 32 gravações da Amostra 1 (composta das subamostras ALSP e PBSP, de alagoanos e paraibanos respectivamente) foram inicialmente transcritas no programa ELAN (Hellwig e Geerts 2017) e, sobre esse material, a partir de discussões entre os membros do grupo de pesquisa VARIEM,⁵ realizou-se um levantamento sistemático de dados que pudessem contribuir para a elucidação do papel de diferentes variáveis de natureza social e que nem sempre constavam da ficha social do participante (uma vez que a amostras haviam sido coletadas para outros projetos, com objetivos diferentes): local de nascimento, lugares em que já residiu, com quantos anos migrou, motivo da migração, há quanto tempo reside em São Paulo, tipo de escola em que estudou (pública ou privada), ocupação, informações sobre rede social (com quem mais convive, presença de conterrâneos em São Paulo, atividades de lazer), atitudes em relação às variedades paulista, paraibana, alagoana e nordestina. Os dados foram sistematizados em novas fichas dos participantes e informações que não constavam na gravação ou na ficha original foram anotadas como “NC” (“não consta”). Desse levantamento, percebeu-se que seria possível incluir nas análises quantitativas, além das variáveis estratificadoras das amostras, a idade de migração, o tempo de residência em São Paulo, a proporção da vida em São Paulo (derivada das variáveis idade e tempo), a origem (rural ou urbana) e o motivo de migração (para trabalhar; para estudar; por causa da família; pela “qualidade de vida”), para as quais se têm dados para a maior parte dos informantes. Para a viabilização da análise das demais variáveis – rede social, classe social, atitudes, graus de identificação com estado de origem, com o Nordeste e com São Paulo –, fez-se nota para que a coleta da Amostra 2 levasse essas informações em conta, de modo que seus efeitos também pudessem ser testados em novos estudos. Cabe notar, entretanto, que pelo fato de que muitas das características sociais dos falantes não haviam sido levadas em conta na composição da Amostra 1, a falta de ortogonalidade entre elas ocorre inevitavelmente. Como exemplos: todas as participantes que afirmaram ter migrado por causa da “família” são mulheres, cujos maridos haviam migrado previamente e, após ter encontrado emprego e se estabelecido na cidade, “mandaram trazer” esposa e filhos; não há nenhum falante 5 O Projeto Acomodação contou com a atuação e três bolsistas FAPESP de Iniciação Científica (Fernanda de Oliveira Guirelli, Andreza Ribino Parra e Marina de Castro Russo) e com discussões entre todos os membros do grupo de pesquisa VARIEM. Agradeço às bolsistas FAPESP e aos orientandos Emerson Souza, Joana Figuereido, Flavia Sousa, Gabriela Antunes, Julia Adams e Gabriel Catani pelas várias contribuições ao projeto.

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da 3a faixa etária (com mais de 60 anos) que tenha migrado para São Paulo para estudar; e todos aqueles que vieram a São Paulo para estudar têm nível superior de escolaridade. A falta de ortogonalidade entre variáveis independentes impede que se chegue a conclusões satisfatórias, uma vez que variáveis cujos níveis se sobrepõem passam a ter efeito confundidor (Gries 2013) na interpretação dos resultados. Por exemplo, uma vez que todos aqueles que vieram a São Paulo para estudar têm nível superior de escolaridade, não é possível separar totalmente os efeitos de nível de escolaridade e motivo de migração. A falta de ortogonalidade entre variáveis sociais implica que: (i) nem todas as variáveis puderam ser incluídas nas mesmas rodadas de análise estatística (em cada análise, foram incluídas apenas aquelas verdadeiramente ortogonais entre si); e (ii) a sobreposição de certos fatores deve ser considerada na interpretação de resultados. Também se previu que o processo de acomodação dialetal se dá gradualmente, e que a operacionalização de variáveis de modo contínuo, quando possível – como é o caso da realização das vogais médias pretônicas /e/ e /o/, cuja altura se refere a diferentes medidas do primeiro formante (F1) em Hertz, e à idade de migração dos falantes –, é preferível a uma categorização discreta (vogais [i, e, ɛ] e [u, o, ɔ]). As variáveis sociolinguísticas do Projeto Acomodação foram analisadas na plataforma R (R Core Team 2015–2021) em modelos de regressão linear – no caso da altura das vogais médias pretônicas, medida em F1 –, e em modelos de regressão logística – que se aplicam a variáveis resposta binomiais (/r/ em coda, /t, d/ antes de [i], concordância nominal e negação sentencial). Todos os modelos estatísticos incluíram Falante como um efeito aleatório, e variáveis sociais e linguísticas como efeitos fixos. Estes últimos se referem a variáveis cujos exemplares da amostra são representativos da população amostrada (sexo/gênero, faixa etária, classe morfológica do item lexical etc.) e que podem ser replicados em outros estudos. Os efeitos aleatórios, por sua vez, permitem verificar se as correlações observadas se devem de fato aos efeitos fixos ou se possivelmente se devem à contribuição casual de certos indivíduos que eventualmente se comportam de modo distinto da população em geral. Tabela 1: Síntese dos resultados de correlação entre as variáveis sociolinguísticas e variáveis sociais da Amostra 1. (Fonte: Oushiro 2020b: 148.) Fonéticas

Morfossintáticas

Variáveis sociais

(e)

(o)

(‐r)

(td)

(NEG)

(CN)

Sexo/Gênero













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Tabela 1: Síntese dos resultados de correlação entre as variáveis sociolinguísticas e variáveis sociais da Amostra 1. (Fonte: Oushiro 2020b: 148.) (Continuação) Fonéticas

Morfossintáticas

Variáveis sociais

(e)

(o)

(‐r)

(td)

(NEG)

(CN)

Faixa Etária













Escolaridade













Motivo de Migração













Idade de Migração













Tempo em SP













Proporção da vida em SP











A Tabela 1 resume os resultados das análises desenvolvidas sobre a Amostra 1 pela indicação de se ter observado correlação (✓) ou não (–) entre as variáveis.⁶ A variável Sexo/Gênero não se correlacionou com nenhuma das variáveis sociolinguísticas sob análise, diferentemente do observado nos estudos de BortoniRicardo (1985) e Rodrigues (1987), na década de 1980, sobre as concordâncias verbais de 1PP e de 3PP. Tal diferença pode ter sido provocada pelas características sociodemográficas dos falantes (já que a Amostra 1 também inclui falantes mais escolarizados e de classe média); por mudanças estruturais na organização familiar da década de 1980 até a primeira década de 2000; ou pelos modelos estatísticos empregados naqueles estudos (regressão logística em modelos de efeitos fixos, por meio do Varbrul), que não levaram em conta o papel do indivíduo na variação linguística. A Faixa Etária se mostrou correlacionada com as variáveis /t, d/, negação sentencial e concordância nominal, com desfavorecimento das formas consideradas “paulistas”/“urbanas” por parte dos falantes mais velhos. A Escolaridade indicou correlação com as duas variáveis morfossintáticas (com favorecimento da forma padrão por parte dos mais escolarizados), ao passo que a pronúncia do /r/ revelou correlação na direção inversa: favorecimento das formas padrão na comunidade (tepe e retroflexo) por parte de falantes menos escolarizados. A variável Motivo de Migração se correlacionou apenas com negação sentencial e concordância nominal, com favorecimento das formas não padrão por parte de falantes

6 Para uma descrição mais detalhada dos resultados das análises sobre a Amostra 1, ver Oushiro (2020b).

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que migraram para acompanhar os maridos ou para trabalhar, o que indicia a atuação da variável classe social para esses indivíduos. Desses resultados, vale notar que os padrões de correlação dentro de cada nível de análise (as duas variáveis morfossintáticas, por um lado, e as quatro variáveis fonéticas, por outro) parecem ser mais semelhantes do que na comparação entre os níveis. Dentre todas as variáveis sociais, a idade de migração pareceu ser a mais importante para a acomodação dialetal, pelo menos quanto a variáveis fonéticas: quanto mais jovem migrou o indivíduo, maior sua tendência a adquirir as variantes paulistas. Para de fato chegar a essa conclusão, contudo, seria necessário desembaraçar o papel dessa variável daquele de tempo de residência e proporção da vida em São Paulo, uma vez que ortogonalidade entre essas variáveis não havia sido controlada na Amostra 1: muitos dos falantes que migraram mais cedo também eram aqueles que residiam na comunidade há mais tempo ou que aí haviam proporcionalmente vivido mais. Desse modo, para a composição da Amostra 2,⁷ cuja coleta de dados foi realizada na Região Metropolitana de Campinas, decidiu-se controlar as variáveis Idade de Migração e Tempo de Residência, para que seus respectivos efeitos pudessem de fato ser testados. Além disso, a fim de evitar o efeito confundidor de classe social e de proveniência, a Amostra 2 se concentrou na coleta da fala de migrantes menos escolarizados, de classes mais baixas e advindos de zonas rurais, para que se pudesse, inclusive, fazer uma comparação mais direta com os resultados de Bortoni-Ricardo (1985) e Rodrigues (1987) sobre o papel da variável Sexo. A variável Faixa Etária também foi padronizada: estipulou-se que todos os falantes deveriam ser adultos em idade de inserção no mercado de trabalho, ainda que pudessem estar desempregados, a fim de se evitar o possível efeito de diferentes fases da vida. Em outras palavras, buscou-se obter uma amostra que permitisse a testagem sistemática do efeito de três variáveis sociais – Gênero, Idade de Migração e Tempo de Residência – e que, para evitar o efeito de variáveis confundidoras, padronizasse o perfil dos falantes tanto quanto possível sobre outros aspectos sociodemográficos. O cruzamento entre as variáveis (i) Gênero (feminino/F e masculino/M); (ii) Idade de Migração (até 19 anos/A e 20 ou mais anos/B); e (iii) Tempo de Residência na RMC (até 9 anos/- e 10 ou mais anos/+) gera 8 perfis sociais (p.ex., FA+: mulher, que chegou antes dos 19 anos e que está na RMC há mais 10 ou mais anos, MB-: homem, que chegou depois dos 20 anos e que está na RMC há menos 9 ou menos

7 O projeto de coleta da Amostra 2 foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp sob o parecer CAAE 72362317.4.0000.5404 (5 set. 2017).

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anos etc.), para cada um dos quais se buscou gravar 5 participantes, de modo a obter uma amostra com 40 falantes. A Figura 1, na qual os falantes são identificados com a inicial de seu pseudônimo, mostra a distribuição dos falantes de acordo com sua Idade de Migração e Tempo de Residência na RMC. Embora a amostra final não seja totalmente equilibrada quanto aos oito perfis – há, por exemplo, mais falantes dos perfis FA+ e MA + e menos dos perfis FA- e MA- –, os falantes se distribuem de modo razoavelmente equilibrado entre os contínuos de idade de migração (entre 9 e 45 anos) e tempo de residência (entre 0 e 46 anos). Ambas as variáveis foram analisadas como contínuas, de modo que o leve desequilíbrio entre o número de falantes por categoria não interfere nos resultados das análises – pelo contrário, o tratamento dessas variáveis como contínuas fornece um quadro mais detalhado do processo de acomodação ao longo do tempo. A amostra conta com 23 alagoanos (subamostra ALCP) e 17 paraibanos (subamostra PBCP), metade dos quais residentes em Campinas (19) e a outra metade em cidades próximas da região: Engenheiro Coelho, Holambra, Indaiatuba, Paulínia, Sumaré e Vinhedo.

Figura 1: Distribuição dos participantes da Amostra 2 por Gênero (F: feminino; M: masculino), Idade de Migração (A: 19- anos; B: 20+ anos) e Tempo de Residência na Região Metropolitana de Campinas (‐: 9- anos; +: 10+ anos). Fonte: elaboração própria.

Para além de decisões sobre o perfil dos falantes, outros cuidados foram tomados na elaboração do roteiro de entrevista e na validação das entrevistas gravadas,

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com vistas a garantir sua qualidade quanto à aplicação do roteiro e suas características acústicas.⁸ Todas as gravações passaram por validação feita por outro membro do grupo de pesquisa (pós-graduandos), a partir de planilha que contempla aspectos técnicos (como nível de ruído de fundo, inteligibilidade da fala do documentador e do participante, adequação do falante ao perfil) e qualitativos (como a aplicação das questões de diferentes partes do roteiro e naturalidade da interação). Tal planilha gera uma pontuação entre 20 e 100 pontos; o conjunto de gravações da Amostra 2 obteve média de 91,4 pontos, com concentração de notas acima de 90 pontos. Após a validação, as gravações aprovadas foram transcritas por dois bolsistas SAE (Serviço de Apoio ao Estudante/UNICAMP) e bolsistas do Projeto FAPESP, e revisadas preferencialmente pela própria documentadora. A transcrição, assim como para a Amostra 1, foi realizada de modo alinhado à mídia no programa ELAN. O roteiro das gravações da Amostra 2 foi objeto de reflexões do grupo de pesquisa, antes e durante o período de trabalho de campo, a fim de que pudessem ser levantadas diversas informações que haviam sido coletadas assistematicamente nas gravações da Amostra 1: quem são as pessoas com quem o indivíduo migrante mais convive e interage diariamente; suas avaliações sobre as variedades do próprio estado, do Nordeste e de São Paulo; quais variáveis sociolinguísticas lhes são mais salientes e quais estão abaixo do nível de consciência; histórico de migração e permanência em diferentes localidades etc. A versão final do roteiro, desse modo, abarca questões sobre o bairro de residência, a infância, a família, o trabalho/ocupação – tópicos que propiciam o envolvimento do falante e fornecem informações sobre sua rede social e mobilidade –, assim como a relação dos participantes com a RMC, suas avaliações sobre diferentes “sotaques” e a leitura de uma lista de palavras (quando cabível, uma vez que parte considerável dos participantes é analfabeta ou não domina a modalidade escrita da língua). Ao final da entrevista, aplicava-se um Questionário de Rede Social, Hábitos e Identidade, baseado no trabalho de Hoffman e Walker (2010), com questões de resposta fechada (de múltipla escolha, p.ex., “A maioria dos seus amigos hoje também é de (estado PB ou AL)? – nenhum amigo é; – poucos são; – metade é; – a maioria é”; ou escalares, p.ex., “Numa escala de zero a dez, o quanto você se considerada (alagoano/paraibano) hoje?”), a fim de que as respostas pudessem ser quantificadas. Também se apresentava aos participantes um questionário socio8 Tais procedimentos seguiram protocolos semelhantes àqueles empregados na execução do Projeto SP2010 (Mendes e Oushiro 2012). A documentação do Projeto Acomodação (roteiro de gravação, ficha do participante, questionários, ficha de validação) está disponível em 10.5281/ zenodo.6513070. Último acesso em 2 mai. 2022.

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econômico, de preenchimento opcional, a fim de avaliar possíveis diferenças quanto à sua mobilidade social. Do Questionário de Rede Social, Hábitos e Identidade, vale ressaltar a distribuição das notas atribuídas pelos próprios participantes quanto a seu grau de “estadualidade” (quão alagoanos ou paraibanos se consideram) e “paulistidade” (Figura 2). Nota-se aí que os participantes, de modo geral, tendem a se atribuir as notas mais altas da escala de identificação a seu estado de origem, uma vez que as respostas se concentram entre 7 e 10. Isso mostra que não se pode facilmente atribuir determinados comportamentos linguísticos a uma suposta “identificação” com o local de origem, como se vê em alguns dos estudos prévios sobre a fala de migrantes; sabe-se que “negar as raízes” é uma atitude socialmente malvista, de modo que o discurso dos falantes tende a valorizar sua herança cultural. Com essa constatação, chama-se atenção à necessidade de que a variável “identidade” seja mais bem operacionalizada em estudos futuros, com critérios para além do discurso do participante. Por outro lado, é curioso que as notas autoatribuídas pelos participantes a seu grau de “paulistidade” se distribuem por toda a escala, de 0 a 10, de modo que tal atitude é possivelmente uma melhor previsora dos graus de acomodação dialetal por parte desses falantes. Além dos dados das Amostras 1 e 2, o Projeto Acomodação também vem analisando os dados de três amostras-controle, compostas por falantes não migrantes das comunidades de origem e anfitriã, de perfil sociodemográfico semelhante ao dos falantes da Amostra 2 (adultos não aposentados e menos escolarizados), de modo a inferir o grau de mudança na fala dos migrantes: (i) 48 gravações do Projeto PORTAL (Oliveira 2017); (ii) 24 gravações do Projeto VALPB (Hora 1993);⁹ e 7 gravações do Projeto SP2010 (Mendes e Oushiro 2012). Tais dados vêm sendo analisados sobretudo para variáveis cuja distribuição de variantes não é categórica em Alagoas, Paraíba e São Paulo: vogais médias pretônicas, /t, d/ antes de [i], concordância nominal, negação sentencial. Também se utilizam dados reportados em pesquisas prévias sobre a pronúncia de /r/ em coda, a negação sentencial e a concordância nominal em São Paulo (Rocha 2013, Oushiro 2015), para depreensão de padrões de variação na comunidade-anfitriã. A Tabela 2 apresenta o número de ocorrências codificadas no âmbito do Projeto Acomodação por variável sociolinguística e por amostra.

9 Agradeço aos professores Alan Jardel de Oliveira e Dermeval da Hora por terem autorizado o uso de gravações dos projetos PORTAL e VALPB no desenvolvimento do Projeto Acomodação. Esses dados foram organizados e analisados com auxílio de dois bolsistas PAPI/UNICAMP, Francisco Forero Pataquiva e Gabriel Catani.

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Figura 2: Graus de “estadualidade” (acima) e de “paulistidade” (abaixo) autoatribuídos pelos participantes. Tabela 2: Número de ocorrências analisadas no Projeto Acomodação por variável sociolinguística e por amostra. Amostra 1

Amostra 2

PORTAL

VALPB

SP2010

/e/

1.916



1.200

1.200

346

/o/

1.645



1.200

1.200

346

/r/

15.130

3.228





9.226 (Oushiro 2015)

/t, d/

22.158

7.811

6.809

5.934



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Tabela 2: Número de ocorrências analisadas no Projeto Acomodação por variável sociolinguística e por amostra. (Continuação) Amostra 1

Amostra 2

PORTAL

VALPB

SP2010

NEG

3.575

3.488

5.602

4.303

5.603 (Rocha 2013)

CN

5.171

4.052

1.572

1.334

17.866 (Oushiro 2015)

A análise de mais de 100.000 dados foi possível pela atuação conjunta de uma equipe de pesquisadores do VARIEM, principalmente alunos de Iniciação Científica, aliada ao desenvolvimento e à aplicação de procedimentos sistemáticos de tratamento de dados. Todas as gravações que compõem as amostras do Projeto Acomodação (Amostra 1, Amostra 2, PORTAL, VALPB e SP2010) estão transcritas de modo alinhado no ELAN, programa que permite buscas por meio de expressões regulares em múltiplos arquivos simultaneamente, a visualização de cada trecho transcrito junto à onda sonora e a anotação de dados em múltiplas trilhas (Oushiro 2014). Tais funcionalidades possibilitaram a codificação de variáveis resposta em tempo reduzido em relação ao que normalmente se vivencia com o uso de outras ferramentas. As Figuras 3 e 4 exemplificam esse procedimento.

Figura 3: Janela de busca estruturada no ELAN. Fonte: elaboração própria.

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Figura 4: Tela do ELAN e codificação de dados de /r/ em coda. Fonte: elaboração própria.

A Figura 3 mostra a janela de busca estruturada no ELAN em que se realizou a busca por palavras com /r/ em coda em posição medial por meio da expressão regular “r[bcçdfgjklmnpqstvxz]”, na qual os colchetes criam uma classe de caracteres que define os grafemas que podem ocorrer depois de “r”.¹⁰ Tal busca foi realizada simultaneamente em 21 arquivos da amostra ALSP (Domain: 21 eaf files) e somente na trilha dos participantes, identificados como S1 em todas as transcrições (Tier Name: S1). O resultado da busca indica que houve 4.777 ocorrências de /r/ medial nesses arquivos. Ao clicar sobre um dos resultados de busca na lista de ocorrências, o programa abre o respectivo arquivo de transcrição no ponto exato da ocorrência. Para codificação dos dados de /r/ em coda, a trilha “S1” foi duplicada em uma nova trilha denominada “R”, que recebeu a codificação de cada ocorrência de /r/ em coda convencionalmente após o item lexical em questão, seguido de um espaço e dentro dos símbolos < >. Na Figura 4, a ocorrência do item “ser” foi de um /r/ apagado, que recebeu então o código . A Figura 4 também mostra que as entrevistas foram anotadas quanto às partes do roteiro de gravação (Bairro, Infância, Lazer, Leitura da lista de palavras etc.), e quanto a estilos de fala de acordo com os critérios da árvore de decisões de Labov (2001b): Resposta, Narrativa,

10 A busca por dados de /r/ em coda em posição final, por sua vez, é feita por meio da expressão regular “r\b”, em que “\b” representa fronteira de palavra.

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Palanque, Tangente etc. Como as transcrições em ELAN contêm informações sobre o tempo de ocorrência de cada anotação, é possível extrair e codificar automaticamente certas informações por meio de scripts (p.ex., escritos na plataforma R), como o fato de que esta ocorrência da palavra “ser” ocorreu dentro do estilo de “Resposta” e durante a parte da entrevista que tratava da “Infância” do participante. Todas as ocorrências de variáveis nominais (/r/ em coda, /t, d/ antes de [i], negação sentencial e concordância nominal) foram codificadas quanto à variável resposta dentro do ELAN e extraídas para uma planilha de análise por meio de scripts na plataforma R. Para as variáveis fonéticas, certas variáveis previsoras, como posição da ocorrência na palavra (medial ou final), contexto fônico precedente, contexto fônico seguinte e tonicidade da sílaba, foram codificadas também automaticamente por meio de scripts adicionais. Desse modo, as 15.130 ocorrências de /r/ em coda da Amostra 1, por exemplo, foram codificadas quanto a essas variáveis linguísticas em segundos. Quanto às variáveis contínuas (vogais médias pretônicas /e/ e /o/), as ocorrências foram segmentadas no programa Praat (Boersma e Weenink 2019) por meio do plugin EasyAlign (Goldman 2011), e as medidas de F1 e de F2 de cada vogal foram extraídas pelo script Vowel Analyzer (Riebold 2013).¹¹ Todas as variáveis foram analisadas quantitativamente na plataforma R. Os resultados são descritos na próxima seção.

4 Publicações resultantes do Projeto Acomodação Esta breve seção dá notícias das pesquisas e publicações realizadas com base no corpus do Projeto Acomodação. ‒ Guirelli (2018): análise do uso variável de artigo definido antes de possessivos (a minha mãe vs. minha mãe) na amostra PBCP, em contraste com os dados de 12 paraibanos do VALPB e 12 paulistanos do SP2010. Os resultados mostram que os migrantes não se acomodaram ao padrão campineiro de maior uso do artigo definido diante de possessivos e que as variáveis sociais Gênero, Idade de Migração e Tempo de Residência não se correlacionam com o uso variável do artigo.

11 Os procedimentos metodológicos para a análise das vogais médias pretônicas são descritos mais detalhadamente em Oushiro (2019a).

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‒ ‒

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Guedes (2019): nesta pesquisa realizada em concomitância à de Guirelli, Guedes analisou igualmente o uso variável de artigo definido antes de possessivos, mas na amostra PBSP, em contraste com 12 paraibanos do VALPB e 12 paulistanos do SP2010. Diferentemente de Guirelli (2018), os paraibanos em São Paulo aproximam-se do padrão paulistano não só na taxa de uso do artigo definido, mas também de aplicação da regra nos mesmos contextos que os paulistanos e diferentemente de paraibanos não migrantes, o que mostra que os migrantes podem não só aumentar as taxas de emprego das variantes da comunidade anfitriã, mas também adquirir regras gramaticais mais abstratas. Oushiro (2019a): descrição dos procedimentos metodológicos e dos resultados da análise da altura das vogais médias pretônicas /e/ e /o/ na Amostra 1, tratadas como variáveis contínuas. Os resultados indicam correlação significativa entre a altura das vogais e a idade de migração (quanto mais cedo chegou, mais próximo do padrão paulista), para ambas as vogais, e que não há correlação com as variáveis Gênero, Faixa Etária, Escolaridade, Tempo de Residência em São Paulo e Motivo da Migração. Oushiro (2019b): análise da altura das vogais médias pretônicas /e/ e /o/ na Amostra 1, a partir da hipótese de que os falantes que se aproximam do padrão paulista o fazem para ambas as vogais. Os resultados mostram que embora haja uma correlação significativa entre a altura das vogais médias, a uniformidade linguística se dá para apenas metade dos falantes da amostra. Oushiro (2020a): análise dos padrões de correlação com a variável Gênero em comparações sistemáticas de modelos de efeitos fixos e efeitos mistos aplicados às seis variáveis do Projeto Acomodação (vogais médias pretônicas /e/ e /o/, /r/ em coda, /t, d/ antes de [i], negação sentencial e concordância nominal), na Amostra 1. Os resultados indicam correlação significativa com Gênero para a vogal média /o/, negação sentencial e concordância nominal em modelos de efeitos fixos, mas nenhuma correlação em modelos de efeitos mistos, o que sinaliza que o efeito de correlação sem a variável aleatória Falante é apenas aparente. Por outro lado, há correlações significativas em modelos de efeitos mistos com a interação entre Gênero e Escolaridade para as variáveis /t, d/ e concordância nominal, duas variáveis que indiciam ruralidade (e não “Nordeste” vs. “Sudeste”), o que chama a atenção para a necessidade de se examinar os significados sociais das variáveis para bem interpretar os padrões observados. Oushiro (2020b): análise das seis variáveis sociolinguísticas do Projeto Acomodação na Amostra 1 (resultados resumidos na Seção 3). Oushiro (2020c): análise das variáveis /r/ em coda, /t, d/ antes de [i], negação sentencial e concordância nominal nas Amostras 2, PORTAL, VALPB e SP2010, com vistas a testar o efeito das variáveis Idade de Migração e Tempo de

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Residência em amostra especialmente construída para tal. Os resultados confirmaram os padrões observados na Amostra 1 (Oushiro 2020b): efeito da variável Idade de Migração para as variáveis fonéticas (quanto mais cedo migrou, maior proximidade do padrão paulista), mas não para as variáveis morfossintáticas; correlação com Tempo de Residência somente para a pronúncia de /r/, o que pode ser interpretado a partir da observação de Trudgill (1986) sobre o papel da saliência de uma variável para a acomodação dialetal. Oushiro (2021): análise do efeito da variável Estilo, codificada de acordo com os critérios da “árvore de decisões” de Labov (2001b), sobre a realização de /r/ e /s/ em coda na Amostra 2. Tendo em vista que as variantes paulistas dessas variáveis diferem quanto ao grau de prestígio (/r/ retroflexo com prestígio apenas localmente, e /s/ alveolar com prestígio nacionalmente), a análise buscou verificar se os migrantes tendem a convergir a normas locais ou nacionais. Os resultados mostram que os migrantes preferem suas variantes nativas (/r/ aspirado e /s/ palatalizado antes de /t, d/) nos contextos de resposta e em trechos sobre língua, ambos considerados “cuidadosos” na classificação laboviana; por outro lado, a variante local /r/ retroflexo é favorecida no estilo palanque (“soapbox”), quando os falantes tratam de assuntos como segurança e transporte público, o que sinaliza o alinhamento com a norma local ao comentar problemas que afligem a população. Oushiro (no prelo): revisão abrangente de trabalhos sobre contato e acomodação dialetal em comunidades lusófonas, com objetivo de depreender generalizações sobre os efeitos de variáveis previsoras sociais. Guy, G. R.; Oushiro, L.; Mendes, R. B. (2022): análise de covariação entre variáveis resposta na fala de paulistanos e de migrantes em São Paulo (Amostra 1), a partir da hipótese de que variáveis que indiciam significados semelhantes tendem a ser empregadas conjuntamente pelos falantes. Os resultados para a Amostra 1 indicam que as variáveis associadas a estigma/prestígio (apagamento de /r/, oclusão de /t, d/ antes de [i], concordância nominal) covariam significativamente, mas não aquelas que indiciam “nordestinidade” (vogais médias pretônicas, /r/ como tepe/retroflexo vs. aspirada, negação sentencial). Barbosa (2022): análise da realização variável de /s/ em coda (pasta e desde) como palatal ou alveolar nos dados da Amostra 2. Os resultados para Idade de Migração e Tempo de Residência corroboram o padrão observado em Oushiro (2020c): correlação significativa com Idade de Migração e falta de correlação com Tempo de Residência. Silveira (2022a, 2022b): análise de 17 variáveis prosódicas na amostra ALCP, em contraste com 9 gravações de campineiros não migrantes, a fim de verificar se a generalização proposta para a correlação sistemática entre Idade de Migração e variáveis fonéticas (Oushiro 2020c) também se sustenta para o nível

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prosódico, frequentemente mencionado pelos falantes como aspecto diferenciador de dialetos. Dos 17 parâmetros analisados, duas variáveis rítmicas (VarcoV e VarcoC) e seis variáveis entoacionais (desvio padrão de f0 e de picos de f0, média e desvio padrão das taxas de mudança positivas e negativas de f0) se mostraram diferenciadoras da fala de alagoanos migrantes e campineiros; Idade de Migração se correlaciona com os seis parâmetros entoacionais, mas apenas na fala dos homens, e Tempo de Residência não se correlaciona com nenhuma das 17 variáveis. Desses vários estudos, fica claro que diferentes variáveis sociolinguísticas apresentam diferentes encaixamentos sociais, uma vez que as correlações com variáveis previsoras não se reproduzem em todas as análises; e que a variação individual na fala de migrantes é maior do que na fala de membros “prototípicos” de uma comunidade (o que reforça a importância de que se realizem modelos de efeitos mistos). Por outro lado, certos padrões têm se reproduzido de modo consistente, como a correlação entre variáveis fonéticas e a Idade de Migração dos falantes (quanto mais cedo migrou, maior proximidade dos padrões paulistas) e, diferentemente do que se poderia prever, falta de correlação com o Tempo de Residência – exceto para /r/ em coda. Os resultados também apontam para a necessidade de se analisar múltiplas variáveis sociolinguísticas para que se possa chegar a tipologia da fala migrante, e a importância do controle de variáveis confundidoras, que frequentemente obscurecem o efeito de cada variável.

5 Considerações finais Este capítulo descreve os desafios dos estudos sobre a fala de migrantes – a necessidade de controle mais rigoroso e de um maior número de variáveis do que para a fala de indivíduos não migrantes; a grande variabilidade entre o comportamento dos falantes individuais; o fato de que diferentes variáveis sociolinguísticas passam por diferentes processos de acomodação; como medir graus de acomodação – e os procedimentos adotados no Projeto Acomodação para lidar com tais desafios – a análise de uma amostra exploratória a fim de levantar hipóteses (Amostra 1); a coleta de uma nova amostra com controle sistemático de variáveis (Amostra 2); a análise de amostras-controle (PORTAL, VALPB, SP2010) para se aferir o grau de diferenciação e acomodação dialetal; o emprego de modelos de efeitos mistos com inclusão de Falante como variável aleatória; a análise de múltiplas variáveis sociolinguísticas nos níveis fonético, prosódico, morfológico e morfossintático. O desenvolvimento dessas tarefas é acompanhado da preocupação em harmonizar questões teóricas e metodológicas. Para esse empreendimento, a busca

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e o desenvolvimento de novas ferramentas de análise, assim como o trabalho coletivo, são essenciais. Os estudos sociolinguísticos têm permitido uma ampla descrição de diferentes variedades do português, mas avanços futuros no campo dependem do estudo comparativo entre variedades, na busca de semelhanças, diferenças e o que tais padrões revelam sobre variação e mudança linguística. Nesse sentido, o estudo da fala de migrantes, que representam grande parte das populações urbanas, faz-se não apenas necessário para um quadro mais completo da Teoria da Variação e da Mudança, mas também contribui para as análises comparativas, uma vez que a interpretação desses dados necessariamente deve levar em conta amostras de diferentes comunidades de fala. Os resultados do Projeto Acomodação já permitem certas generalizações quanto aos padrões de encaixamento social de diferentes variáveis sociolinguísticas, mas ainda há muitas questões em aberto. Estudos futuros nesse tópico podem se voltar à análise do papel de outras tantas variáveis sociais (como classe social, identidades, interlocutor etc.) sobre o contato e acomodação dialetal; de avaliações, percepções e significados sociais das variantes, da perspectiva da comunidade anfitriã e dos migrantes, em comunidades de fala e em comunidade de práticas; do papel dos filhos dos migrantes na disseminação de novos padrões na comunidade de fala; em trajetos migratórios rural-urbano e entre diferentes regiões nacionais e transnacionais.

Referências Alves, Maria Isolete Pacheco Menezes. 1979. Atitudes linguísticas de nordestinos em São Paulo: abordagem prévia. Campinas: Dissertação de Mestrado da Universidade Estadual de Campinas. Anthonissen, Lynn. 2021. Individuality in language change. Berlin/Boston: Walter de Gruyter. Baeninger, Rosana. 2005. São Paulo e suas migrações no final do século XX. São Paulo em Perspectiva, 19(3). 84–96. Barbosa, Sarah Poli. 2022. Análise de /s/ em coda na fala de migrantes alagoanos e paraibanos em Campinas. Relatório final de bolsa CNPq/PIBIC. Ms. Boersma, Paul & David Weenink 2019. Praat: doing phonetics by computer. Disponível em http://www. fon.hum.uva.nl/praat/. Bortoni-Ricardo, Stella Maris. 1985. The urbanization of rural dialect speakers. Cambridge: Cambridge University Press. Cardoso, Daisy Barbara Borges. 2009. Variação e mudança do imperativo no português brasileiro: gênero e identidade. Brasília: Tese de Doutorado da Universidade de Brasília. Chacon, Karoline de Albuquerque. 2012. Contato dialetal: análise do falar paulista em João Pessoa. João Pessoa: Dissertação de Mestrado da Universidade Federal da Paraíba. Chambers, Jack K. 1992. Dialect acquisition. Language 68(4). 673–705. Dodsworth, Robin. 2017. Migration and dialect contact. Annual Review of Linguistics 3. 331–46.

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Capítulo 8 A relevância da caracterização das comunidades lusófonas na investigação sociolinguística: foco em África Cada vez mais confirmaremos que, para entender o Brasil, é preciso conhecer e compreender a África. E, ao aceitarmos esse desafio, fatalmente teremos que nos posicionar diante das condições reais vividas hoje por vários países africanos, fruto de um processo truculento de colonização e exploração. Em tempos de globalização, em que denúncias sobre a globalização da miséria têm sido feitas incessantemente, não há como continuarmos considerando a África como matriz estética de vários movimentos da arte e da cultura contemporâneos e, ao mesmo tempo, ignorarmos o drama de exclusão e miséria imposto ao povo africano. Nilma Lino Gomes, Cultura Negra e Educação¹

1 Introdução Os estudos linguísticos e, em especial, os sociolinguísticos, permitiram a revelação da heterogeneidade e da complexidade linguística existente no Brasil, com a presença de inúmeras variedades do português brasileiro e de centenas de outras línguas (como as indígenas, de imigrantes e de sinais), e as complexas redes de relações entre povos e culturas em território nacional. Trabalhos investigativos já demonstraram haver regiões e comunidades que experienciam situações de contato entre línguas ou cenários nos quais o português não é adquirido como primeira língua. Esses contextos ímpares, contudo, estão mais restritos às regiões fronteiriças com outros países e às comunidades de línguas minoritárias (como as de imigrantes, de surdos e de indígenas, por exemplo), cabendo à grande maioria da população brasileira o monolinguismo e a aquisição e o convívio apenas com a língua portuguesa, que, além de oficial em todo o território, também se configura como língua nacional. Esse predomínio da língua portuguesa no Brasil, como língua majoritária, reflete a efetividade e eficácia de políticas linguísticas de séculos anteriores, com o colonizador imprimindo fortemente seu domínio sobre os povos locais e buscando 1 Gomes, Nilma Lino. Cultura e Educação. Revista Brasileira de Educação. N. 23. Mai/jun/jul/ago 2003: 75–85. Cássio Florêncio Rubio–Universidade Federal de São Carlos https://doi.org/10.1515/9783110670257-010

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eliminar cultura e língua locais. Contudo não é essa a realidade experimentada por todas as ex-colônias portuguesas, que, por uma diversidade de fatores relacionados aos territórios e aos interesses portugueses, os quais não serão discutidos neste texto, evidenciam contextualizações sociolinguísticas bastante diferentes da observada no Brasil, com uma realidade de bilinguismo ou multilinguismo social. As interações linguísticas e sociais de um número expressivo de falantes brasileiros, que têm o português como língua única de interação, seja em sua variedade culta ou popular, levam a uma falsa concepção de que a realidade dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) também é de monolinguismo e, ainda, aponta uma tendência à crença de que todas as ex-colônias de Portugal possuem a mesma configuração linguística. Os estudos científicos centrados em comunidades monolíngues e nas características das variedades empregadas por essas comunidades também apontam para essa visão, mesmo dentre parte dos linguistas. São ainda escassos os trabalhos que se dedicam a identificar e caracterizar a realidade bilíngue ou multilíngue de países lusófonos. Em território brasileiro, a criação de bancos de dados de fala, estratificados socialmente mediante os critérios da Sociolinguística, a partir da década de 1970, tem permitido a caracterização sociolinguística das comunidades e a apresentação de estudos comparativos entre as diferentes variedades. Essa proposta de trabalho se revelou bastante satisfatória para seu fim, descrevendo inúmeras variedades do português brasileiro e apresentando detalhes sobre processos de variação e mudança linguísticas. O sucesso na investigação sociolinguística brasileira indica um percurso natural aos sociolinguistas que se dedicam ao estudo do Português, com a aplicação do mesmo “modelo” de investigação a outras realidades em que a língua está presente, como, por exemplo, as comunidades linguísticas dos PALOP. Assim, o pesquisador experienciado na realidade brasileira é levado naturalmente a elaborar a criação de corpora de português falado em África, com a proposição de uma estratificação social já reconhecidamente relevante no Brasil (considerando, dentre outras variáveis, escolaridade, faixa etária, sexo/gênero, por exemplo). Embora essas variáveis clássicas possam ser relevantes para o estudo das comunidades africanas, como ocorre no Brasil, há ponderações importantes que devem ser feitas, com base no fato, por exemplo, de o português, por vezes, estar inserido em contextos bilíngues e multilíngues, com línguas exercendo diferentes funções. Além disso, há contextos nos quais o português não se constitui em primeira língua, cabendo a outras línguas da comunidade esse papel. Um estudo sociolinguístico “clássico”, com estratificação social e seleção de informantes, considerando-se, por exemplo, os que possuem o português como primeira língua, com

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aquisição dessa língua até os 5 anos, poderia não lograr êxito em alguns dos PALOP. O contato com comunidades bilíngues e multilíngues revela uma realidade diferente da realidade de falantes monolíngues brasileiros e suscita outros debates, que ultrapassam a caracterização da língua portuguesa falada nesses contextos. Merece investigação, além (e talvez antes) da variação no português dos PALOP, a configuração linguística daqueles países, com a revelação das características do contexto de contato e convívio entre línguas, permitindo, por exemplo, que se compreenda que, apesar de oficial, o português pode não ser a língua de maior emprego e a língua nacional em determinada comunidade.² (Rubio 2021: 37)

As configurações ímpares, principalmente em África, nos PALOP, denotam diferentes formas de convívio entre línguas e distintas funções das variedades de língua portuguesa em cada um dos países, as quais se revelam entremeadas por diferentes culturas e redes de relações sócio-históricas, com contextos de contato linguístico ativos em grande parte do ou em todo o território. Uma realidade, em alguns casos, bastante divergente da brasileira, que pode suscitar a necessidade também de uma abordagem diferente para estudo de fenômenos e características do português e de outras línguas desses países. Com base nesses apontamentos iniciais, busca-se, neste debate, apresentar uma caracterização sociolinguística preliminar de uma amostra de falantes universitários dos cinco PALOP (Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde), com foco em alguns aspectos que envolvem o contato entre línguas, o papel das diferentes línguas nos territórios, o perfil sociolinguístico e a configuração de fatores sociais tidos como não clássicos, como, por exemplo, etnia.³ Essas revelações proporcionam, de forma modesta, a considerar as limitações do corpus, mais subsídios para a descrição das variedades de português africano e a possibilidade de estudos comparativos entre os PALOP e, por sua vez, desses com estudos de variedades brasileiras, europeias e asiáticas. Complementarmente,

2 Em hipótese alguma deslegitimam-se os estudos já realizados e em realização sobre variedades do português em África. Distante disso, reconhece-se a relevância de agendas de pesquisa concomitantes e complementares, que se dediquem à descrição do contexto sociolinguístico das comunidades, à caracterização das variedades africanas de língua portuguesa e à catalogação e descrição das línguas locais (étnicas e “crioulos”). 3 Considerando a etnia como o termo empregado para apontar características culturais as quais relacionam um grupo de pessoas, ou uma categoria social que se baseia em percepções da experiência social compartilhada ou das experiências de ancestrais (Anselle 2014).

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abre-se caminho para maior reconhecimento e preservação do rico “mosaico linguístico” africano, que, para muito além das línguas europeias transplantadas para lá (como o português), abriga suas centenas de línguas étnicas e as línguas originadas em situações de contato entre colonizadores e colonizados (ainda denominadas genericamente de “crioulas”). ⁴,⁵ Essa realidade suscita um estudo que investigue, antes das características das variedades de língua portuguesa empregadas pelas comunidades: i) a frequência de falantes bilíngues ou multilíngues; ii) a diferença entre língua oficial e língua nacional; iii) a língua de emprego mais frequente; iv) a primeira língua adquirida pelos falantes; v) a idade e contexto de aquisição do português; vi) a língua empregada no seio familiar; vii) a influência de diferentes variáveis sociais, como, por exemplo, a etnia etc. Inicialmente, estabelece-se discussão com base em estudos anteriores e no aparato teórico da sociolinguística, sobre alguns aspectos da realidade complexa vivenciada nos PALOP, com foco nas situações de contato linguístico e de multilinguismo, com línguas exercendo diferentes funções. Com base em inquéritos submetidos a falantes universitários dos PALOP, posteriormente, apresenta-se uma caracterização sociolinguística preliminar, com dados relacionados à etnia, primeira língua, língua dos pais, língua de emprego e línguas em contato, dentre outras características. Os resultados permitem um comparativo entre os perfis da amostra de falantes desses países, o que proporciona mais subsídios para auxílio na elaboração de corpora de amostras de fala e para estudos sociolinguísticos das variedades africanas de língua portuguesa.

4 Ainda que não se constitua foco central deste trabalho, cabe destacar, em consonância com o que defendem DeGraff (2001), Dewulf (2014) e Mufwene (2001), que a denominação “crioulas”, empregada para línguas originadas em situação de contato nas ex-colônias europeias, principalmente em África, foi cunhada com base em critérios não linguísticos, a considerar, em primeiro lugar, que todas as línguas naturais foram e são originadas em situação de contato linguístico e, em segundo lugar, que todas as línguas denominadas de “crioulas”, sob o ponto de vista sociolinguístico, são plenas, completas, complexas e funcionais. Em outras palavras, nada diferem de outras línguas não classificadas como crioulas. 5 Nas menções às línguas “crioulas” originadas pelo contato entre portugueses e africanos em Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, ex-colônias portuguesas, optar-se-á pelas seguintes denominações, respectivamente: “Guineense”, “Caboverdiano” e “Santomense”.

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2 As comunidades linguísticas sob a luz da Sociolinguística A descrição e análise do contato entre diferentes línguas e da heterogeneidade linguística sempre foram objetos de pesquisa da Sociolinguística, que, já em sua gênese, concebe a língua em constante relação com a sociedade, sendo ambas mutuamente influenciadas (Labov 1966; 2008). O olhar investigativo dos estudos sociolinguísticos se volta sempre para a coletividade e a diversidade de situações em que as línguas são empregadas e para a observação das relações e valores sociais estabelecidos nas interações verbais. Para a Sociolinguística, interessam os padrões coletivos de comportamento linguístico observados em seu ambiente de natural, as comunidades linguísticas. Não há um limite bem definido entre uma comunidade e outra, pois não é o emprego de elementos linguísticos semelhantes que as definem, mas o compartilhamento de um conjunto de usos comuns, evidenciados também pelos comportamentos avaliativos (Labov 2008: 150). As comunidades não apresentam somente comportamentos heterogêneos de usos de uma mesma língua, mas também no emprego de línguas diferentes, principalmente em contextos de línguas em contato. Essa é uma realidade comum em territórios de forte diversidade étnica ou de grande fluxo migratório, como a de algumas regiões do continente africano. O contato linguístico é prática recorrente na história das línguas humanas e resulta do estabelecimento das relações de diferentes naturezas entre os povos que possuem línguas diferentes (Lucchesi 2008). Segundo Petter (2015), em território africano, as línguas em contato assumiram diferentes papéis em período pós-colonial, graças às políticas linguísticas dos governos, as quais tiveram consequência direta na seleção e hierarquização dos usos linguísticos, com línguas tidas como majoritárias sendo mais valorizadas, e com línguas minoritárias apresentando emprego mais restrito ao ambiente familiar, sendo desprestigiadas e até desaparecendo. A autora destaca que a seleção das línguas das antigas colônias como oficiais foi justificada pela ausência de relação com determinado povo ou etnia e permitiu a instauração da unidade nacional, além de proporcionar meio de comunicação entre diferentes comunidades no país. As línguas locais se vinculavam a uma determinada região, a determinado grupo étnico ali predominante e, além disso, não dispunham de um sistema de escrita que poderia ser usado na administração e no ensino. Nessa configuração pós-colonial, surge a língua dominante, com “superioridade demográfica e socioeconômica” e, embora não seja primeira língua dos falantes, constitui-se em língua franca, de emprego como segunda língua de grande

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percentual da população (Petter 2015: 200). Consequentemente, há um bilinguismo ou multilinguismo, com emprego concomitante de línguas étnicas, locais, e da língua franca. A configuração desses “caldeirões linguísticos” irá depender diretamente do número de línguas étnicas, da presença ou ausência dos chamados “crioulos”, da maior ou menor implementação da língua dos ex-colonizadores e da língua dominante na comunidade.

3 O contato linguístico Mackey (1972 apud Krug, 2004: 20) reitera que o bilinguismo e o multilinguismo não devem ser considerados conceitos absolutos e sim relativos e não se pode apontar que um indivíduo é bilíngue ou multilíngue, outrossim em que medida ele é bilíngue ou multilíngue. Dessa forma, deve-se analisar: Quantas línguas estão presentes na comunidade? Qual língua é empregada em determinadas situações? Se há influências de uma língua sobre a(s) outra(s)? Se há flutuações no emprego das línguas pelos indivíduos? Qual a ordem de aquisição das línguas? Que funções sociais assumem as línguas? É essencial, na análise do contato entre línguas, considerar as variações dentro da comunidade, a depender de fatores como grau, função, alternância e interferência. Para Krug (2004), importa, nas situações de contato, a observação das capacidades de escrita e fala e a proficiência das línguas em contato. É importante analisar as funções externas das línguas, observando-se as zonas de contato, e as funções internas, em usos relacionados ao falante, em situações de interação. Na análise da alternância, observar o quanto as línguas são empregadas em diferentes funções de interação. Por último, é essencial a consideração de elementos de uma língua que estão, de alguma forma, presentes na outra. Em uma situação de bilinguismo ou multilinguismo, não são apenas as línguas que estão em contato, mas também culturas, que ocupam um só espaço (Aguilera e Busse 2008). Há modos diferentes de “pensar e organizar a realidade”, que irão se apresentar nos processos de interação reais. O falante bilíngue emprega as línguas que domina de acordo com diferentes situações comunicativas e interlocutores, de forma seletiva, coletiva ou simultânea, a depender de seus objetivos (Rubio 2021). O contexto de convívio do português com línguas minoritárias e de minorias étnicas assume configuração dinâmica a depender das situações de interação social. Esse dinamismo ocasiona o biculturalismo ou multiculturalismo, já que o indivíduo se relaciona e se identifica com os diferentes grupos linguísticos em contato, havendo a possibilidade de que esse indivíduo construa identidade com traços de várias culturas (Aguilera e Busse 2008).

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Labov (2008: 57) acrescenta que “grupos diferentes têm de responder a desafios diferentes a seu status”, ou seja, os usuários de línguas minoritárias, por exemplo, enfrentarão adversidades no emprego de sua língua que os usuários das línguas majoritárias não enfrentam. De acordo com Wardhaugh (1992 apud Aragão, 2010: 36–37), “os dialetos sociais, originados entre os grupos sociais, dependem de uma série de fatores, sendo os principais deles aparentemente pertencentes à classe social, à religião e à etnicidade”. Assim, a complexa rede de relações pelas quais passam os indivíduos em diferentes contextos sociais, culturais e históricos irá influenciar diretamente a evolução das línguas, principalmente por permitir o contato e convívio entre elas. Há sempre uma avaliação social por parte dos usuários das línguas, em especial quando uma língua é oficial, padronizada ou majoritária e quando há outras línguas não oficiais, ágrafas e minoritárias. Não se pode estabelecer, do ponto de vista linguístico, contudo, nenhuma distinção entre línguas, ou mesmo entre uma língua e o que se denomina de “dialeto”, e que, normalmente, trata-se de uma variedade regional menos prestigiada socialmente (Petter 2015). As línguas sempre se constituem em meios de relações sociais entre os indivíduos de uma comunidade, como forma de interação que possibilita o estabelecimento de vínculos só experimentados pelos humanos. Elas são sempre frutos da “criação coletiva dos povos” que as empregam, sendo impossível a um indivíduo criar uma língua natural (Lucchesi 2015: 48). Há uma atitude subjetiva e consciente do falante em relação às formas linguísticas, que se manifesta, como apontam Coelho et al. (2015), em dois níveis, o linguístico e o social. Em uma comunidade linguística, não somente variedades linguísticas de uma mesma língua assumem valores diferentes, com mais ou menos prestígio, mas também, em contextos bilíngues ou multilíngues, as línguas gozam de maior ou menor prestígio. Petter (2015), em análise linguística centrada no continente africano, afirma que uma língua é considerada dominante em razão do prestígio assegurado pela superioridade demográfica e socioeconômica de seus falantes. Essa dominância, que, por vezes ocorre em todo o país, causa consequências nas línguas minoritárias, normalmente empregadas por poucas pessoas e com papel público pouco marcante. A autora aponta que há sempre uma competição entre as línguas em contato e um emaranhado de funções que obriga o indivíduo a fazer escolhas a cada ato comunicativo. Para Silva (2010: 240), a língua é marca identitária de um indivíduo e, quando se menciona o termo “identidade étnica”, necessariamente se está englobando a língua desse indivíduo. A perda ou a mudança linguística seria, dessa forma, um marco também da perda ou da mudança de identidade, como se observa a seguir:

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Por meio da língua, as sociedades humanas elaboram grande parte do conhecimento que detêm acerca do mundo. Por esta razão, quando se fala em perda linguística, inevitavelmente, fala-se também em perda de uma parte substancial da identidade étnica, uma vez que a língua é o principal instrumento por meio do qual se veiculam pensamentos, crenças, visão de mundo, conhecimentos tradicionais de um povo, dentre outros aspectos (Silva 2010: 241).

Os usuários das línguas nas comunidades é que atribuirão sempre o valor às formas linguísticas, pois essas formas não carregam em si valores negativos ou positivos. Lucchesi (2015: 19–20) demonstra que a divisão socioeconômica do país tem seus reflexos nos planos das relações sociais, das representações simbólicas e na língua. A análise de situações de bilinguismo não deve se pautar apenas em questões puramente estruturais, pois extrapolam a abstração comumente feita pelos linguistas. Weinreich (1953 apud Weinreich, Labov e Herzog, 2006: 96) defende que, ainda que a esfera de atuação de um linguista deva ser puramente linguística, questões de natureza psicológica e sociológica podem ser essenciais na observação da “extensão, direção e natureza da interferência de uma língua sobre outra” e o comportamento de fala de indivíduos bilíngues, por sua vez, é condicionado por relações sociais na comunidade em que vive. A avaliação que um falante bilíngue faz das línguas que possui é bastante complexa, podendo apresentar caráter dinâmico e variável, a depender de questões relacionadas ao contexto situacional e, ainda, às diferentes fases pelas quais o falante passa. Krug (2004) afirma que um falante bilíngue pode se identificar mais com uma língua ou com a outra, a depender do contexto em que se encontra, revelando, um biculturalismo e uma bicompetência nas línguas.

4 Estudos sobre o contexto linguístico dos PALOP: brevíssimo panorama Os PALOP possuem em comum um histórico de opressão linguística, com a língua portuguesa funcionando, na maioria das vezes, como elemento de segregação social, com circulação majoritária em ambientes de instituições oficiais e escolares, sendo ainda predominante nas zonas urbanas, relacionada, sobretudo, à possibilidade de ascensão social e econômica (Tosatti 2020). Contudo, os cinco países, nos quais “oficialmente” se fala português, apresentam realidades bastante peculiares, as quais, ainda, não foram totalmente desveladas. As muitas línguas africanas não se encontram catalogadas ou descritas e as políticas linguísticas governamentais de grande parcela dessas nações ainda prima pelo ensino monolíngue, em língua portuguesa.

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Na sequência, evidenciam-se, de forma sucinta, traços da realidade sociolinguística dos PALOP, com base em estudos anteriores que se debruçaram sobre a temática. Em sua maioria, não se trata de pesquisas sociolinguísticas; dessa forma, não consideram amostras específicas das comunidades e não apresentam resultados estatísticos. Isso, contudo, de nenhuma forma, invalida a importância dessas fontes que, de forma observacional, permitem fazer conhecer um pouco da complexa configuração de contato linguístico desses países.

4.1 Angola Em Angola, o contato linguístico entre o português e as línguas banto (bantu) não originou, como em outros PALOP, as chamadas línguas “crioulas”, mas sim uma variedade particular de língua portuguesa, que, segundo Sassuco (2021), apresenta características próprias, principalmente no plano fonético, lexical, sintático e, em alguns fenômenos como a hibridação, integração lexical e monotongação.⁶ Ainda segundo o autor, a distinção entre as variedades se instancia por fatores sociais, como região sociocultural do falante, e presença maior ou menor de línguas locais, que determina também acentuação dos traços típicos do chamado português angolano. Para Santana e Timbane (2021), a divisão da África não levou em consideração aspectos relacionados à diversidade linguística e ocasionou a separação física de famílias e de grupos étnicos, entretanto o grande número de línguas já empregadas no território angolano fez com que a variedade de língua portuguesa do país apresentasse atualmente traços originados do contato linguístico de séculos com diversas línguas africanas, principalmente do grupo banto. Dessa forma, há, em Angola, segundo os autores, uma variedade única de língua portuguesa, inclusive com expressiva produção literária, falada pela maioria da população do país. Além do já mencionado, Inverno (2008) destaca características linguísticas específicas da língua portuguesa falada no país, como variação na concordância de número e gênero em componentes do sintagma nominal sujeito, na relação entre o sujeito e o verbo e, ainda, entre o sujeito e o predicativo. Some-se a isso, o emprego do possessivo posposto ao nome, o emprego do pronome reto em lugar do oblíquo e o apagamento do “se” reflexivo.

6 A integração lexical refere-se ao modo como palavras de origem banta se ajustam para o português falado em Angola. A hibridização refere-se à formação de palavras com componentes de línguas bantas e do português.

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Embora o português, em Angola, esteja ainda em contato com diferentes línguas locais, há um grande crescimento de angolanos que o possuem como primeira língua, o que pode ser justificado por ser a língua oficial, empregada em todos os atos administrativos do Estado, por ser língua de ensino e de unidade nacional (Gueleka 2021). Silva e Araújo (2021) ressaltam que Angola ainda é um país multilíngue, com línguas étnicas sendo empregadas em determinadas regiões, contudo as diversas guerras civis ocorridas no território levaram a deslocamentos populacionais e, consequentemente, redução no emprego de meios de comunicação locais. Os conflitos fizeram com que os habitantes de zonas rurais, ainda falantes de línguas étnicas, migrassem para regiões urbanas, nas capitais das províncias, onde o português era e é predominante. Dessa forma, a situação atual do país é de predomínio da variedade de português angolano e de acantonamento das línguas étnicas, quase sem usuários que as possuam como primeiras línguas (Zua 2021).

4.2 Cabo Verde Em Cabo Verde, diferentemente da configuração linguística angolana de predomínio do português, há, conforme aponta Vilela (2017), a presença de uma língua originada na situação de contato entre colonizadores e colonizados, denominada caboverdiano (kaboverdianu), com inúmeras variedades, empregadas em todo o país. Há diferentes configurações de usuários, alguns bilíngues, com emprego do português e do caboverdiano, outros que, apesar de compreenderem o português, empregam de forma mais efetiva o caboverdiano, e os que são monolíngues e empregam apenas o caboverdiano. Dessa forma, a primeira língua da maior parte da população, preferida na comunicação diária informal, sobretudo oral, é o caboverdiano (Freitas 2017). Tosatti (2020) ressalta que há uma série de políticas linguísticas em implementação em Cabo Verde, buscando a introdução da língua nacional no processo de escolarização, no qual ainda predomina a língua portuguesa. Há, no país, segundo Torquato (2011 apud Tosatti, 2020), um conflito entre a manutenção da cultura e tradição, proporcionado pela preservação do caboverdiano, e a necessidade de internacionalização e globalização, atrelada à expansão do português. Outra questão de debate no país é a determinação de quais variedades devem figurar no ensino regular, junto da língua portuguesa, já que cada ilha possui uma variedade de caboverdiano. Há diferentes propostas, as quais apontam para caminhos diversos, com a determinação de uma variedade como padrão (a de San-

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tiago, por exemplo, empregada por mais da metade da população) ou com a proposta de ensino de uma variedade interilhas.

4.3 Guiné-Bissau A realidade de Guiné-Bissau é do convívio de 20 a 30 línguas, dentre as quais as línguas étnicas, presentes nas interações familiares e intraétnicas, o guineense, originado do contato entre portugueses e habitantes locais, e o português, oficial em todo o território.⁷ Existem, no país, atualmente, entre 30 e 35 grupos étnicos, e as etnias com maior expressão na Guiné-Bissau são: a Fula (28,5 %), do leste do país, em Gabu e Bafatá, a Balanta (22,5 % da população), das regiões sul (Catió) e norte (Oio); a Mandinga, com 14,7 %, do norte do país; a Papel, com 9,1 %, e a Manjaca com 8,3 %. Com expressão mais reduzida, encontramos ainda as etnias Beafada (3,5 %), Mancanha (3,1 %), Bijagó (do Arquipélago dos Bijagós e representa 2,15 % da população total), Felupe, com 1,7 %, Mansoanca (1,4 %) e Balanta Mane com 1 %. As etnias Nalu, Saracole e Sosso representam menos de 1 % da população guineense, e 2,2 % assumem não pertencer a qualquer etnia (Couto e Embaló 2010). Cá e Rubio (2019), em estudo sobre a caracterização linguística de falantes de Guiné-Bissau, revelam, nesta configuração multilíngue e multiétnica, que as línguas presentes no país exercem diferentes papéis nas interações sociais. Apesar de o português se constituir em língua oficial, normalmente, não é primeira língua da comunidade, sendo adquirida apenas em idade escolar. Além disso, verifica-se que o guineense, língua de unidade nacional, ou as diferentes línguas étnicas presentes no território, constituem-se primeiras línguas dos falantes. Nas situações de interação oral, em todo o país, há o predomínio do guineense, que é tido, inclusive, como língua franca entre as diferentes etnias. A língua também é a segunda adquirida pelos falantes que aprendem as línguas étnicas em primeiro lugar (Rubio 2021). A língua guineense goza de prestígio local, instanciada pelo seu predomínio em todo o país, ou seja, por sua superioridade demográfica em relação às outras línguas, e o português, prestígio no plano internacional, vinculado à importância de seus falantes do ponto de vista econômico e social (Rubio e Cá 2019).

7 A estimativa esparsa (entre 20 e 30 línguas) se deve ao fato de não haver total consenso entre pesquisadores, na catalogação de línguas e de variedades da mesma língua. Associa-se a isso o fato de haver poucos estudos sobre línguas étnicas em Guiné-Bissau. O número estimado de etnias existente no país, entretanto, aponta que esse quantitativo tende a ser mais elevado.

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4.4 Moçambique Como ocorre em Guiné-Bissau, a única língua oficial de Moçambique é o português, embora o território apresente populações do grupo banto, com mais de 20 diferentes línguas em contato (Timbane e Vicente 2017).⁸ O país multilíngue e multicultural possui, segundo Ngunga e Bavo (2011), outras línguas de emprego frequente nas interações e de percentual expressivo de pessoas que as possuem como primeira língua, como a makhuwa (26 % da população), a changana (10 % da população) e a (chi)sena (8 % da população). Além dessas línguas, muitas outras se distribuem pelas províncias do país, como lomwe, nyanja, a chuwabu, ndau, tswa, nyumgwe, yaawo, copi, makonde, tewe, rhonga, tonga, manyika, cibalke, mwani, koti, shona, swahili e línguas de sinais. As línguas de Moçambique estão distribuídas entre as províncias, de modo heterogêneo, sendo predominantes em alguns locais e praticamente ausentes em outros. A makhuwa, por exemplo, está presente em Cabo Delgado, Nampula, Niassa, Sofala e Zambézia; a changana é empregada em Gaza, Maputo, Manica, Inhambane e Niassa (Ngunga e Bavo 2011). Timbane e Vicente (2017: 96) ressaltam que “os limites políticos são diferentes dos limites linguísticos”, ou seja, as línguas ultrapassam as demarcações territoriais dentro do país e até mesmo entre países, principalmente porque os territórios foram divididos sem a consideração de culturas e línguas já presentes no continente africano, apenas com base nos interesses econômicos dos colonizadores europeus. Pissurno (2018) aponta que, nas zonas rurais de Moçambique, ainda se adquirem as línguas autóctones como primeiras línguas e a língua portuguesa é adquirida somente em contexto escolar. o idioma tido como oficial apresenta um status de língua estrangeira (LE) para esses indivíduos, ou seja, uma língua utilizada em situações bastante artificiais, especialmente instrucionais, já que a língua alvo só é aprendida em contextos de educação formal, enquanto em casa os indivíduos utilizam suas línguas maternas para comunicação diária (Pissurno 2018: 77).

Nas zonas urbanas, o contato com o português é mais frequente e a língua é empregada também em situações do dia a dia. Sendo assim, ainda que haja a

8 Esse quantitativo pode variar, a considerar divergências entre pesquisadores na consideração de algumas formas de comunicação no país como línguas diferentes ou como variedades da mesma língua.

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presença de línguas locais no ambiente familiar, há, nas zonas urbanas, o contato com a língua oficial oral antes da idade escolar.

4.5 São Tomé e Príncipe São Tomé e Príncipe, atualmente, em termos de frequência, é a ex-colônia portuguesa com maior número de falantes nativos do português, o que pode ser explicado pela total ausência de políticas linguísticas para preservação das línguas locais, além da estigmatização do santomense (também chamado de “crioulo santomense” ou “forro”) (Gonçalves e Hagemeijer 2015; Nascimento 2018b). A escolarização no país, segundo Tosatti (2020), ocorre em língua portuguesa, sem qualquer espaço ou menção às possíveis outras línguas ainda presentes no território. O processo de colonização no país ocorreu em dois momentos distintos, historicamente constituídos, destacando-se: i) a primeira colonização, com o ciclo do açúcar, que promoveu a formação dos crioulos, com a migração de pessoas de outras colônias; ii) a segunda colonização, com os ciclos do café e cacau, que proporcionou a maior disseminação do português (Nascimento 2018a). Há evidências históricas de que as línguas locais eram mais empregadas do que o português em São Tomé e Príncipe até o início do século XX. Nascimento (2018b) aponta que o aumento gradativo do emprego da língua dos colonizadores se dá a partir dos séculos XVIII e XIX, quando passa a ser referência no contato entre trabalhadores contratados e fazendeiros. Após a independência, ocorrida em 1975, efetiva-se o português como língua oficial santomense, com ampliação do acesso ao ensino, exclusivamente oferecido nesta língua. Passados mais de 40 anos da independência, considerando-se uma população total atual superior a 175 mil habitantes, quase 99 % se declaram proficientes em português, apesar de parcela expressiva ainda dominar outra língua, como o forro (santomense) (36 % da população), o caboverdiano (8 % da população), o angolar (6 % da população) e o lung’iê (1 % da população) (Nascimento 2018b).

5 Características do corpus de investigação Os estudos mencionados previamente dão conta de realidades e contextos sociolinguísticos heterogêneos entre os PALOP. Da mesma forma, esses contextos muito diferem dos contextos linguísticos em território brasileiro. Com base nessa configuração, busca-se, neste debate, longe de revelar toda a diversidade linguística dos PALOP, demonstrar o quanto uma amostra de falantes pode evidenciar sobre o

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perfil das comunidades e, além disso, proporcionar reflexão sobre a importância desse conhecimento prévio para estudos linguísticos em geral e, em especial, variacionistas. A amostra da pesquisa foi composta com 50 informantes, sendo 10 de cada PALOP (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe). Os participantes eram todos universitários, homens e mulheres (50 % de cada sexo/ gênero), com idades entre 18 e 35 anos, graduandos da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).⁹,¹⁰,¹¹ O inquérito submetido aos participantes conta com um total de 35 questões, estruturadas e semiestruturadas, relacionadas ao perfil sociolinguístico dos estudantes e à avaliação e às crenças em torno das línguas que empregam. Para este trabalho, recorre-se apenas a um recorte desse corpus, considerando apenas questões relacionadas ao perfil sociolinguístico, dentre as quais: primeira língua adquirida, língua de maior emprego, segunda língua adquirida, quantidade de línguas empregada, relação do português com outras línguas e língua dos pais. Esses resultados quantitativos, embora advindos de uma amostra com perfil social limitado (universitários e universitárias, jovens), permitem, em primeiro lugar, confrontar (e confirmar) o contexto sociolinguístico descrito por outros pesquisadores, de forma pontual, em cada um dos PALOP e, em segundo lugar, subsidiar reflexão sobre a validade da presença de variedades naturais particulares de língua portuguesa em todos os países.

9 A Unilab é uma universidade federal de caráter internacional, com campi no interior do Ceará e da Bahia, que tem como propósito principal promover a integração entre países lusófonos, com a oferta de cursos de graduação a brasileiros e a estudantes internacionais falantes de português, em especial do continente africano. 10 Os resultados foram extraídos de material de pesquisa em desenvolvimento em parceria com o Prof. Dr. Fábio Fernandes Torres, do Instituto de Linguagens e Literaturas da Unilab, com apoio de estudantes do Curso de Letras advindos dos PALOP, os quais contribuíram na elaboração do questionário, seleção de informantes e entrevistas. 11 A ausência de estratificação social para as variáveis escolaridade e faixa etária, justificada pelo fato de os participantes serem estudantes universitários, não diminui a importância dos resultados, que conjugam amostras de 5 diferentes países, com perfis semelhantes, proporcionando possibilidade de comparativo.

Capítulo 8

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6 Um recorte da realidade sociolinguística dos PALOP Considerando as questões apresentadas e os desafios enfrentados em pesquisas com comunidades bilíngues e multilíngues, propõe-se, a seguir, a apresentação de informações relacionadas ao perfil sociolinguístico de falantes universitários representantes dos PALOP.¹² Seguem os resultados, elencados pelos tópicos abordados em cada questão.

6.1 Português como primeira língua Os informantes foram inquiridos sobre qual seria a primeira língua (L1) que haviam adquirido em seus países. O objetivo dessa questão era revelar se o português era a primeira língua nas comunidades ou se haviam adquirido a língua posteriormente, como segunda língua. Os resultados revelam que todos os angolanos e santomenses entrevistados e 80 % dos moçambicanos têm o português como primeira língua. Em realidade bastante diferente, entretanto, caboverdianos e guineenses responderam possuir outra língua como primeira (L1), tendo adquirido a língua portuguesa posteriormente, como se pode verificar na Figura 1. Esse primeiro resultado anuncia que a realidade sociolinguística dos participantes da pesquisa advindos dos PALOP, como revelado também por outros estudos, apresenta-se multifacetada, com o português possuindo diferentes inserções nas comunidades afrolusófonas e com a presença mais marcante de outras línguas em determinadas comunidades. O grupo de moçambicanos entrevistado, que apontou não ser o português a sua primeira língua (20 % dos entrevistados), revelou ter adquirido a changana como L1, uma denominação comum a variedades de língua faladas, principalmente, em três províncias moçambicanas do Sul (Ngunga e Simbine 2012).¹³ Dentre o grupo de informantes de Guiné-Bissau, 60 % apontaram possuir como L1 o gui-

12 Os resultados apresentados não refletem, necessariamente, a realidade de todos os falantes dos países investigados, mas sim da amostra considerada, que, como mencionado, é de jovens entre 20 e 30 anos, estudantes universitários. Não é demais ressaltar também que se trata de uma amostra preliminar, com quantitativo de 10 informantes por país, bastante aquém de amostragem representativa das populações dos países. 13 Os participantes da pesquisa de origem moçambicana advêm, em sua maioria, da província de Maputo, na qual há, segundo mencionaram Ngunda e Bavo (2011), o predomínio da língua changana.

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Figura 1: Português como primeira língua. Fonte: elaborado pelo autor.

neense e o restante (40 %), línguas étnicas, como o beafada, o felupe (ou felupe baiote) e o wolof. Todos os entrevistados de Cabo Verde informaram ser o caboverdiano (kaboverdianu) a sua primeira língua. Esses resultados podem anunciar que as línguas étnicas ocupam, nos PALOP, diferentes espaços, estando mais ou menos presentes em determinados territórios. Em Guiné-Bissau e Moçambique, um percentual expressivo de inquiridos teve como língua materna uma língua étnica, o que apontaria a presença dessas línguas no ambiente familiar. Entre os caboverdianos, embora não haja o predomínio do português, não há a presença de línguas étnicas, mas sim do caboverdiano, língua local, originada em consequência do contato entre colonizadores e colonizados. Os resultados de Angola e São Tomé e Príncipe apontam uma realidade diferente, na qual o português ocupa o espaço familiar dos inquiridos, tendo sido adquirido como primeira língua por todos os entrevistados. Complementarmente, foram solicitadas informações aos participantes sobre a língua dos pais ou responsáveis, para melhor compreensão do contexto linguístico familiar. Na sequência, os resultados. Tabela 1: Primeira língua dos pais ou responsáveis. País

Línguas dos pais (nº absoluto, sendo 10 participantes por país)

Angola

português (9), kikongo/português (1)

Capítulo 8

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Tabela 1: Primeira língua dos pais ou responsáveis. (Continuação) País

Línguas dos pais (nº absoluto, sendo 10 participantes por país)

Cabo Verde

caboverdiano (10)

Guiné-Bissau

guineense (9), guineense/wolof (1)

Moçambique

português (6), changana/português (2), changana/tswana (1), changana (1)

São Tomé e Príncipe

português (10)

Fonte: elaborado pelo autor.

Os dados relacionados às primeiras línguas dos pais confirmam realidades distintas entre os entrevistados dos PALOP, com grande presença da língua portuguesa no ambiente familiar dos informantes de São Tomé e Príncipe, de Angola e de Moçambique (o contexto familiar do grupo do último país revela, ainda, a presença de línguas étnicas junto do português). Os entrevistados de Guiné-Bissau e de Cabo Verde, entretanto, viveram em contexto familiar diferente, com convívio junto das línguas originadas em situação de contato, como o caboverdiano e o guineense. Essa diversidade se confirma também com base em outras questões propostas aos informantes.

6.2 Local de aquisição/aprendizagem do português Considerando as diferentes configurações linguísticas dos informantes, com a língua portuguesa figurando como L1 em alguns países e como L2 (segunda língua) em outros, apresentam-se, na sequência, informações sobre o local de aquisição/ aprendizagem do português. A totalidade de informantes de Cabo Verde e de Guiné-Bissau adquiriu o português em ambiente escolar. Em realidade oposta, 100 % dos angolanos e santomenses e 90 % dos moçambicanos informaram ter adquirido a língua portuguesa em casa. Esses resultados, para além de evidenciarem contextos sociolinguísticos diferentes entre entrevistados dos diferentes países, provocam questionamentos principalmente sobre as variedades de língua portuguesa adquiridas no ambiente escolar, em situações de interação não naturais, por meio da figura de um detentor da língua alvo de aquisição, o professor. Nesses contextos, quais seriam as características da variedade linguística adquirida? Estaria ela sujeita à variação e mudança linguística nos mesmos moldes das variedades brasileiras de português? Se sim, quais seriam os fatores que instanciariam esses processos?

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Figura 2: Local de aquisição do português. Fonte: elaborado pelo autor.

Com o intuito de dar sequência à discussão, apresenta-se a Figura 2, que considera a idade de aquisição do português pelos informantes.

6.3 Idade de aquisição do português O objetivo da questão, que buscava a verificação da idade de aquisição da língua portuguesa pelos entrevistados, era o de revelar se teria havido uma aquisição mais tardia dessa língua ou se a aquisição teria ocorrido nos primeiros anos de vida. Trata-se de uma questão complementar às questões anteriores, mas relevante, a considerar que uma língua pode ser adquirida nos primeiros anos de vida, ainda que como segunda língua. Os resultados vão ao encontro do que havia sido verificado quanto à primeira língua adquirida e confirmam a heterogênea configuração sociolinguística de nossa amostra dos PALOP, pois angolanos e santomenses apontaram idade média de aquisição de 1,5 anos de idade, e, em oposição, participantes guineenses e caboverdianos revelaram ter adquirido a língua portuguesa somente após os 7 anos de idade (2 caboverdianos e 3 guineenses informaram ter adquirido a língua portuguesa após os 10 anos de idade). Em posição intermediária, os moçambicanos entrevistados, com média de 2,6 anos de idade na aquisição do português, fato justificado devido a alguns o terem adquirido como L1 e outros como L2.

Capítulo 8

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Figura 3: Idade de aquisição da língua portuguesa. Fonte: elaborado pelo autor.

6.4 Língua de maior emprego Os informantes foram perguntados quanto à língua de maior emprego nas situações de interação linguística do dia a dia. Essa questão tinha como objetivo obter mais informações sobre a função das línguas para o usuário e apontar se a língua portuguesa predominava nos contextos de interação. Na Figura 4, expõem-se, os resultados. Na amostra de Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique, há o predomínio da língua portuguesa nas interações linguísticas (100 %, 100 % e 80 %, respectivamente). Por outro lado, entre os entrevistados de Cabo Verde e Guiné-Bissau, as línguas locais (guineense e caboverdiano) são apontadas como mais empregadas. Os 20 % restantes de moçambicanos revelam a presença mais marcante de línguas étnicas em sua comunicação do dia a dia. Na sequência, apresentam-se resultados relacionados ao convívio entre essas e outras línguas no contexto de interação dos participantes da pesquisa.

6.5 Línguas de domínio/emprego As pesquisas apresentadas anteriormente dão conta de que os PALOP são multilíngues, com a presença de línguas locais, além da língua portuguesa e de outras

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Figura 4: Língua de maior emprego. Fonte: elaborado pelo autor.

línguas de colonizadores europeus (principalmente em regiões de fronteira com outros países não lusófonos). Ressalta-se, no entanto, que a realidade de contato linguístico é heterogênea, a depender de acontecimentos históricos, os quais barravam ou permitiram a sobrevivência de línguas autóctones nos territórios. Considerando-se esses apontamentos, apresentam-se, a seguir, os resultados sobre o quantitativo de línguas empregadas e/ou de domínio dos entrevistados em cada país. Confirma-se o emprego de duas ou mais línguas por todos os participantes, entretanto, em alguns países, há maior média de línguas do que em outros. A amostra de Moçambique e Guiné-Bissau, por exemplo, destaca-se por apresentar média superior a 3,4 línguas de domínio e emprego. Os contextos desses países, entretanto, são bastante diferentes, pois, no caso de Guiné-Bissau, há línguas com funções diferentes, como as étnicas, empregadas na comunicação familiar e intraétnica; o guineense, de comunicação do dia a dia e interétnica, em todo o território, e o português, adquirido no ambiente escolar e de emprego nas situações formais (cf. Rubio e Cá, 2019). Em Moçambique, diferentemente, o português é empregado na comunicação interétnica e, com certa frequência, no dia a dia, e o mosaico linguístico se expande, com a presença de línguas étnicas e de outras línguas europeias, principalmente, em Maputo, capital do país e região de grande proximidade da África do Sul (3 dos entrevistados do país, inclusive, revelaram domínio de mais de cinco línguas (dentre elas, o inglês)).

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Figura 5: Línguas de emprego do participante. Fonte: elaborado pelo autor.

6.6 Etnia dos participantes Retomando-se o debate anterior, a etnia, nos PALOP, pode ser variável relevante, haja vista estar correlacionada diretamente às línguas autóctones, ou seja, a preservação da etnia de uma comunidade pressupõe também a preservação da língua a ela ligada. As respostas recebidas dos participantes variaram bastante e revelaram comunidades mais ou menos preservadas sobre o ponto de vista étnico, como vemos a seguir. Tabela 2: Etnia dos participantes. País

Etnias

Angola

Bakongo (4), Kimbundo (4), Ovibundo (1), sem resposta (1)

Cabo Verde

Sem resposta (10)

Guiné-Bissau

Mancanha (3), Beafada (2), Balanta (2), Felupe (1), Manjaca (1), Mandinga (1)

Moçambique

Changana (4), (Xi)Chisena (2), Macua (1), Cango (1), sem resposta (2)

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Tabela 2: Etnia dos participantes. (Continuação) País

Etnias

São Tomé e Príncipe

Forro (1), Angolar (1), sem resposta (8)

Fonte: elaborado pelo autor.

Os resultados apresentam um panorama heteróclito entre participantes dos PALOP, já que alguns deles, como os de Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, independentemente da configuração linguística, revelam que a identidade étnica ainda é fator de reconhecimento. Por outro lado, as respostas de caboverdianos e da maioria dos santomenses indicam menor presença de identidade étnica (ao menos entre os estudantes participantes). A total falta de resposta dos inquiridos de Cabo Verde é o que mais merece atenção, pois sugere, sob o ponto de vista da origem étnica, total apagamento dos resquícios de identidade daquele povo. A configuração heterogênea das comunidades influencia diretamente nas características da língua portuguesa presente nos PALOP, principalmente em países nos quais as línguas étnicas são adquiridas como primeiras línguas e o português será adquirido posteriormente, por vezes, tardiamente, em ambiente escolar.

7 Considerações finais Um dos objetivos desse debate era proporcionar (re)conhecimento de uma pequena parcela da realidade sociolinguística heterogênea dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), estabelecendo, ainda que preliminarmente, comparativo entre suas configurações e angariando mais subsídios junto de outros estudos já empreendidos. Essas revelações, além de fazerem conhecer minimamente contextos linguísticos ainda pouco explorados e, em alguns casos, bastante diversos do brasileiro, proporcionam o apontamento da necessidade de pesquisas futuras, com a consideração de fatores ligados ao contato linguístico entre línguas e à história de gênese de novas línguas pela qual passou o continente africano, em virtude do processo de colonização e domínio europeu. De forma sucinta, e com base em amostra limitada (50 informantes, 10 por país), observou-se que, apesar de haver uma união simbólica entre os PALOP, instanciada pelo fato de essas nações serem ex-colônias portuguesas e possuírem o português como língua oficial, há realidades bastante complexas nos territórios, instanciadas, principalmente, por motivações históricas e sociais particulares.

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Capítulo 8

Do mesmo modo, embora todos os PALOP apresentem em comum um contexto multilíngue, há entrelaçamentos peculiares, com diferentes línguas em contato exercendo múltiplas funções e papéis nas comunidades. Os resultados confirmam, dentre os entrevistados, que o português é a primeira língua (ou língua materna) de angolanos, santomenses e moçambicanos, mas não dos caboverdianos e guineenses, corroborando as afirmações de Zua (2021), Tosatti (2020), Cá e Rubio (2019), Pissurno (2018) e Nascimento (2018b), dentre outros. Em Cabo Verde e Guiné-Bissau, a aquisição da língua portuguesa se dá somente no ambiente escolar, predominantemente após os sete anos de idade, diferentemente do que ocorre nos demais países, nos quais se adquire a língua antes dos 3 anos. A realidade sobre a aquisição do português já se anunciara em estudos como os de Inverno (2008), Vilela (2017), Rubio e Cá (2019), Cá e Rubio (2019), Timbane e Vicente (2017) e Nascimento (2018b), sendo confirmada nesta pesquisa, de modo quantitativo. Embora o português, segundo os entrevistados, tenha sido a língua de maior emprego nas interações em Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique, não ocupa o mesmo espaço linguístico em Cabo Verde e Guiné-Bissau, onde predominam as interações em línguas locais de unidade nacional, o caboverdiano e o guineense, respectivamente. Resultados complementares comprovam, ainda, que os participantes da pesquisa de Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique possuem, em sua maioria, pais falantes de português. Em Guiné-Bissau e Cabo Verde, a realidade dos informantes é completamente diferente, pois nenhum dos entrevistados possui pais cuja primeira língua é o português. A síntese de resultados, que se apresenta, proporciona uma visão geral do panorama sociolinguístico dos entrevistados e possibilita a separação dos PALOP em três grupos principais, considerando a multiplicidade de papéis exercidos pelas línguas. Tabela 3: Síntese de resultados – Perfil sociolinguístico nos PALOP. País

Idade de aquisição do português (média em anos)

Local de aquisição do português (%)

Primeira língua adquirida (%)

Língua dos Língua emNº de pais ou resp. pregada com línguas (%) maior frede domíquência (%) nio (média)

Angola

1,5

Ambiente familiar (100 %)

Português (100 %)

Português (90 %)

Português (100 %)

2

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Tabela 3: Síntese de resultados – Perfil sociolinguístico nos PALOP. (Continuação) País

Idade de aquisição do português (média em anos)

Local de aquisição do português (%)

Primeira língua adquirida (%)

Língua dos Língua emNº de pais ou resp. pregada com línguas (%) maior frede domíquência (%) nio (média) Kikongo/Português (10 %)

São Tomé e Príncipe

1,5

Ambiente familiar (100 %)

Português (100 %)

Português (100 %)

Português (100 %)

2,5

Moçambique 2,6

Ambiente familiar (90 %) Escola (10 %)

Português (80 %) Changana (20 %)

Português (60 %) Changana/ Português (20 %) Changana/ Tswana (10 %) Changana (10 %)

Português (80 %) Changana/ Português (10 %) Changana (10 %)

3,6

Cabo Verde

7,1

Escola (100 %)

Caboverdiano (100 %

Caboverdiano (100 %)

Caboverdiano (100 %)

2,9

Guiné-Bissau 8,1

Escola (100 %)

Guineense (60 %) Beafada (10 %) felupe (baiote) (10 %) wolof (10 %) mandinga (10 %

Guineense (90 %) Guineense/ Wolof (10 %)

Guineense (100 %)

3,4

Fonte: elaborado pelo autor.

Esse resumo de resultados sugere, de um lado, países, como Angola e São Tomé e Príncipe, nos quais a língua portuguesa é adquirida como primeira língua, ocupa o ambiente familiar e é empregada nos diversos contextos sociais de interação, e, de outro lado, países como Cabo Verde e Guiné-Bissau, nos quais o português é adquirido apenas na escola, como segunda língua, e não é empregado em contextos interacionais do dia a dia. Em posição intermediária à dos quatro países supracitados está Moçambique, que apresentaria um contexto no qual a língua

Capítulo 8

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portuguesa convive junto de outras línguas no ambiente familiar e nas interações sociais, ocupando, contudo, posição de destaque na situação de contato linguístico. Com relação à etnia, foi possível verificar, com base nas respostas (ou na ausência de respostas), grande diversidade de contextos entre os países, com realidades de maior preservação étnica, como a que se verificaria em Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, e com contextos nos quais parece haver possível sobreposição cultural, linguística e étnica das comunidades, como se verificaria em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. As evidências apresentadas, ainda que frutos de recorte de amostra de informantes, possibilitam, modestamente, jogar luz sobre realidades sociolinguísticas peculiares, em contexto no qual o português coocorre e concorre com inúmeras outras línguas, influenciando-as e por elas sendo influenciado. Some-se a isso o fato de as configurações dos PALOP terem sido historicamente construídas de maneira diferente, com a permanência das línguas africanas ou a origem de novas línguas, provenientes do contato entre povos dominantes e dominados. Neste mosaico linguístico, composto de maneira única em cada um dos PALOP, fatores de diferentes naturezas, ligados à realidade cultural e histórica das comunidades, exercem diferentes forças, as quais, necessariamente, devem ser consideradas em estudos que se propõem “sociolinguísticos”. Muito aquém de encerrar o debate sobre como devem se realizar estudos sobre as línguas em África, ou mesmo sobre como as variedades de língua portuguesa devem ser investigadas, propõem-se aqui algumas indagações, que podem fomentar debates futuros: Como investigar uma variedade de língua portuguesa adquirida como segunda língua, formalmente, em ambiente escolar? Que variáveis considerar, na composição de um corpus de fala, em contextos multilíngues, como os dos PALOP? Qual o papel das línguas em contato com o português nos diferentes países? Distante de propor resposta convincente para essas e outras questões, reiterase apenas a importância, nos estudos sociolinguísticos, principalmente os que se debruçam sobre contextos de línguas em contato, da consideração de aspectos relacionados às diferentes línguas e suas funções nas comunidades, às configurações sócio-histórico-culturais dos territórios e ao perfil sociolinguístico dos falantes.

Referências Aguilera, Vanderci de Andrade & Saminar Busse. 2018. Contato linguístico e bilinguismo: algumas reflexões para o estudo do fenômeno da variação linguística. Línguas & Letras. 9(16), 11–25.

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Cássio Florêncio Rubio

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Capítulo 8

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Alexandre Monte

Capítulo 9 A regra de concordância verbal de terceira pessoa do plural no Português do Brasil e no Português Europeu: o papel da modalidade linguística 1 Introdução Neste capítulo, dando continuidade aos estudos sobre variação na concordância verbal de terceira pessoa do plural no Português Brasileiro (PB) e no Português Europeu (PE), discutimos o estatuto dessa variação, priorizando um importante fator teórico-metodológico para a abordagem e a interpretação sociolinguística de variedades: a distinção entre as modalidades falada e escrita. Para tanto, tomamos por base os pressupostos da Teoria da Variação e Mudança Linguística (Weinreich, Labov e Herzog 1968; Labov 1972, Labov 1994, Labov 2001 e Labov 2003), de modo a fundamentar a análise comparativa do PB e do PE, na fala e na escrita. Para a modalidade falada, consideramos amostras constituídas no âmbito de nossa pesquisa anterior (Monte 2012), constituídas com falantes da cidade de Évora, situada no Alentejo, sul de Portugal, e da cidade de São Carlos, localizada no interior do estado de São Paulo/Brasil. Quanto aos resultados referentes à modalidade escrita representativa de Portugal, trata-se de dados inéditos que advêm de produções textuais de estudantes portugueses de uma escola pública de Évora. A discussão de dados proposta neste trabalho foi guiada, então, pela seguinte questão central: Em que medida o estatuto variável da concordância verbal de terceira pessoa do plural, tanto na modalidade falada quanto na modalidade escrita, pode ser postulado para o PB e para o PE? De modo a responder a esta questão, sintetizamos os fundamentos teóricos elementares de que partimos (Seção 2), detalhamos os procedimentos metodológicos que julgamos necessários para dar conta da análise do fenômeno da concordância verbal de terceira pessoa do plural (Seção 3) e apresentamos, antes das considerações finais, resultados referentes ao estatuto variável da regra de concordância em atenção à modalidade escrita (Seção 4) e a falada (Seção 5). Alexandre Monte–Universidade Estadual Paulista/Araraquara https://doi.org/10.1515/9783110670257-011

226

Alexandre Monte

2 Fundamentos teóricos Labov (1972, 1994, 2001, 2003), incorporando a variação à descrição e à teoria linguísticas segundo o chamado princípio da heterogeneidade ordenada, introduz alguns pressupostos de extrema importância para a análise aqui proposta. Segundo o autor, todo sistema linguístico, além de ser dotado de um conjunto de regras que não podem ser violadas, a que se costuma dar o nome de regras categóricas (i. e. regras linguísticas que sempre se aplicam), disponibiliza outras que acomodam alternância de formas, regras que podem ser subcategorizadas como semicategóricas ou variáveis. No texto Some sociolinguistic principles, Labov (2003: 241–243) caracteriza os três tipos de regras linguísticas e a frequência com que cada uma delas opera. Quadro 1: Tipologia de regras apresentada por Labov (2003: 241–243).¹ Tipo de regra

Frequência com que opera

Violações

I – Categórica

100 %

Nenhuma na fala natural

II – Semicategórica

95–99 %

Rara e relatável

III – Variável

5–95 %

Nenhuma por definição e não relatável

O autor propõe três tipos de regras: i) categóricas – regras que não são violadas na fala natural e apresentam 100 % de ocorrência de determinada estrutura; ii) semicategóricas – regras que raramente são violadas e que apresentam concretizações do fenômeno em 95 a 99 % das ocorrências; e (iii) regras variáveis – aquelas que, por princípio, não se submetem a violação e abrangem fenômenos cuja concretização varia na esfera de 5 a 95 % dos casos. (Vieira 2015: 21)

A Sociolinguística Variacionista laboviana não aceita, portanto, a variabilidade como um fato aleatório e insiste na necessidade de um controle sistemático e empírico dos fatores estruturais (internos) e sociais que motivam o uso de uma ou outra variante. A partir do postulado da heterogeneidade ordenada, os estudos sociolinguísticos têm mostrado que a variação não é, de maneira alguma, aleatória e caótica. Ao contrário, é altamente estruturada. A abordagem quantitativa que esse postulado suscitou realizar revolucionou o estudo da língua, demonstrando que o comportamento linguístico é ainda mais fortemente estruturado do que se havia suspeitado anteriormente. De acordo com Trask (2006): 1 Tradução de Silvia Figueiredo Brandão e Silvia Rodrigues Vieira (2012: 1038).

Capítulo 9

227

É claro que os primeiros linguistas perceberam essa variação, mas eles se inclinaram a desqualificá-la, por entender que se tratava de um fato marginal e sem consequências, ou mesmo como um estorvo atravessado no caminho das boas descrições. Hoje, ao contrário, reconhecemos que a variação é uma parte integrante e essencial da língua, e que a ausência de variação é quase patológica. (Trask 2006: 278)

3 Procedimentos metodológicos 3.1 Os corpora da modalidade falada Conforme já se observou, a pesquisa foi realizada com amostras da fala da cidade de São Carlos, localizada no interior do Estado de São Paulo, região Sudeste do Brasil, e da falada da cidade de Évora, situada no Alentejo, sul de Portugal. Cada corpus é composto de dados selecionados de 18 entrevistas entre informante e documentador, tendo cada uma aproximadamente uma hora de duração. Trabalhamos com seis células, sendo cada célula formada por três informantes, estratificados em função do gênero e da escolaridade. São três homens e três mulheres não alfabetizados, três homens e três mulheres que estavam terminando o ensino fundamental/básico na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e três homens e três mulheres que estavam terminando o ensino médio/secundário regular. Vale informar que o ensino básico em Portugal corresponde ao ensino fundamental no Brasil. Já o ensino secundário corresponde ao ensino médio. Abaixo, temos a distribuição dos informantes segundo escolaridade e gênero nas duas comunidades. Quadro 2: Distribuição dos informantes segundo escolaridade e gênero em São Carlos. São Carlos ( BRASIL) Homens

Mulheres

Total

Não alfabetizados

3

3

6

Ensino Fundamental – EJA

3

3

6

Ensino Médio

3

3

6

Total

9

9

18

228

Alexandre Monte

Quadro 3: Distribuição dos informantes segundo escolaridade e gênero em Évora. Évora ( PORTUGAL) Homens

Mulheres

Total

Não alfabetizados

3

3

6

Ensino Básico – EJA

3

3

6

Ensino Secundário

3

3

6

Total

9

9

18

Feitas todas as transcrições das entrevistas, os dados foram levantados e, após a codificação conforme as variáveis linguísticas e sociais estabelecidas, submetidos ao programa estatístico Goldvarb-X. Conforme será detalhado adiante, analisamos 1.440 ocorrências na amostra do PE e 1.422 ocorrências na amostra do PB.

3.2 O corpus da modalidade escrita As produções escritas dos estudantes portugueses foram obtidas na escola pública André de Gouveia da cidade de Évora. No final do Ensino Básico e do Ensino Secundário, os estudantes portugueses são submetidos aos exames nacionais. Essas avaliações externas enquadram-se num processo que contribui para a certificação das aprendizagens e competências adquiridas pelos estudantes. Com a autorização do Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação de Portugal (GAVE), tivemos acesso aos dados das produções escritas de estudantes do Ensino Básico e Secundário de 2008, 2009 e 2010. Neste trabalho, analisamos os textos escritos de 2008. Encontra-se no quadro abaixo a distribuição das produções de acordo com o gênero, a escolaridade e o ano da avaliação: Quadro 4: Distribuição das produções escritas de 2008 de acordo com gênero e escolaridade em Évora. Número de produções escritas obtidas em Évora Ensino Básico Ano 2008

Ensino Secundário

Homens

Mulheres

Homens

Mulheres

19

31

21

30

Capítulo 9

229

Transcrevemos a seguir as propostas de produção de texto de 2008 do Ensino Básico e do Ensino Secundário: Exame Nacional do Ensino Básico – 2008 O texto B apresenta uma reflexão sobre o valor do sorriso. Um sorriso pode ser muito especial. Redige um texto narrativo em que recordes ou imagines uma situação na qual um sorriso tenha tido um papel fundamental. Constrói a narrativa, desenvolvendo a acção num espaço e num tempo determinados e descrevendo a personagem ou as personagens interveniente(s). Escreve um mínimo de 180 e um máximo de 240 palavras. Toma atenção às instruções que se seguem. – Organiza as ideias de forma coerente. – Revê o texto com cuidado e, se necessário, corrige-o. – Se fizeres rascunho, copia o texto para a folha de respostas, pois só será classificado o que estiver escrito nessa folha.

Exame Nacional do Ensino Secundário – 2008 A propósito do Pe. António Vieira, de cujo nascimento (1608) se comemoram os quatrocentos anos, escreveu Guilherme d’Oliveira Martins no Jornal de Letras, Artes e Ideias (13–26/Fevereiro/2008): “Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade humana, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita”. Num texto bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas palavras, apresente uma reflexão sobre a temática da dignidade humana e do respeito pelos direitos humanos no nosso tempo. Para fundamentar o seu ponto de vista, recorra, no mínimo, a dois argumentos, ilustrando cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo.

Após a leitura de todas as produções textuais, os dados foram levantados (593 ocorrências) e submetidos ao programa estatístico Goldvarb-X.

3.3 A seleção dos dados A presente investigação contempla o estudo com sujeitos/SNs de estrutura simples e complexa de 3ª pessoa do plural² representados por:

2 É importante evidenciar, sem deixar dúvidas, os critérios de seleção e de exclusão dos dados para que os resultados com outras pesquisas de mesma natureza possam ser comparados com

230

Alexandre Monte

a) Nome substantivo no singular com um ou mais determinantes no plural. (1) (2) (3) (4)

os professor tá falando comigo eu tô viajando (M2PB)³ os dois menino dela são esquizofrênico (F1PB) os agricultor já não davam trabalho a ninguém… (M0PE) e os lavrador morava lá e o meu pai era lá empregado (F0PE)

b) Nome substantivo no plural. (5) (6) (7) (8)

as palestras assim são perfeitas… (F2PB) as novelas não deviam de ser assim… (M1PE) as pessoas não tão conversando bem comigo (M1PB) mas já há aí economistas que dizem… é melhor sairmos do euro… (F2PE)

c) Pronomes pessoais ‘eles / elas’ com referência determinada. (9) (10) (11) (12)

telefonei pra lá… pa os meus amigos e eles contactaram com a empresa (M1PE) olha os meus netos… começaram eles com doze anos (F0PE) meus irmão trabalhô lá… não sei que setor que eles trabalhava (M1PB) mai a minhas prima tamém mora aí/ aí… acho que doi quarterão daqui… pra cima da escolinha ali… elas também aprenderu (F0PB)

d) Pronome pessoal ‘eles’ com referência indeterminada. (13) (14) (15) (16)

apesar de ser inglês de décimo segundo aquilo que eles pedem… (F2PE) desta assembleia que eles andam a arranjar (M0PE) a água era poço que eles fazia… fazia na rua poço (M1PB) agora que eles fizeram uma pista de skate ali… (F2PB)

e) Pronome ‘vocês’. Ainda que ‘vocês’ se refira do ponto de vista semântico e discursivo à 2ª pessoa do plural, sob uma perspectiva gramatical tal pronome exige

segurança. Silvia Rodrigues Vieira e Aline Maria Bazenga trabalham essa questão no texto A concordância de terceira pessoa do plural: padrões em variedades do português (Vieira e Bazenga 2015). 3 A codificação que segue os exemplos indica as seguintes informações sobre o/a informante: a primeira letra refere-se ao sexo (F – feminino ou M – masculino); o número, à escolaridade (0 – não alfabetizado/a, 1 – formação supletiva (EJA) ou 2 – ensino médio/secundário); e as duas últimas siglas, à variedade do Português (PB – Português Brasileiro ou PE – Português Europeu).

Capítulo 9

231

verbos com marca formal de 3ª pessoa do plural, o que justifica a sua inclusão no estudo da concordância de 3ª pessoa. (17) (18) (19) (20)

cêis não vão consegui (um) bom emprego (F2PB) vocês não prestam pra nada (M0PE) nem com um animal cêis não pode fazê isso (M1PB) porque vocês tratam muito (por) você… (M1PE)

f ) Outros pronomes. (21) (22) (23) (24) (25) (26)

muitos morre po/com o calor agora nesse tempo… (M0PE) então dá pa contá os que tá lá faz tempo (F1PB) otas faziam malha… (F1PE) porque acho que as otra já (ti::)… sei lá se recebeu ou se não recebeu… (M0PB) acho que só alguns é que conseguem mesmo… (M2PE) depois da consulta que todos foram embora eu fiquei pro final (F2PB)

g) Numeral no plural. (27) (28) (29) (30)

duas ou três vão fazer faculdade (M2PB) seis milhões são benfiquistas… (M2PE) quatro não… morreu cinco… (M0PB) dez fumam… é a maioria… (F1PE)

h) Dois ou mais núcleos (sujeito composto). (31) (32) (33) (34)

comunidade e escola vai sê se Deus quisé um dia uma coisa só né? (F1PB) porque o nome em si e a escritura… eram deles não é? (M1PE) o meu sogro e minha sogra tamém veio/ veio da Itália… (F0PB) o meu pai os meus tios e o meu avô vieram um ano… duma fera (F1PE)

Além dos casos enumerados acima (sujeitos/SNs explícitos), foram incluídos os casos de sujeito nulo com referente no trecho do discurso. i) Sujeito nulo. (35) (36)

(há) aí aquelas pessoas que vivem… … ø vive à manera deles… (M1PE) passou uns cara de moto e ø atirô nele… (F2PB)

232

(37)

(38)

Alexandre Monte

eu tenho algumas amigas minhas que estão nesse curso… que é um curso ahn:: direcionado… pronto… pra/ pra desporto pra atividade física… ahn elas saem de lá e já ø podem/ já podem ir trabalhar como técnicas mesmo em ginásios… (F2PE) eles batem mesmo… ø já::: tentaru me matá… né?… foi por Deus que eu não morri… ø levaru eu… num determinado lugar… no/ no/ num rio… ø bateru a noite intera… e::: ø me afogaru… ø deru choque tudo… aí ø dexaru eu… desmaiado lá… (M1PB)

Vale dizer que também incluímos o verbo ‘ser’ em estruturas clivadas, pseudoclivadas, em orações com valor existencial e nas designações de tempo, distância, quantidade, valor. j) Verbo ‘ser’ em estruturas clivadas e pseudoclivadas. (39) (40) (41) (42) (43) (44)

são pessoas que gosta(m) da comunidade… (F1PB) é que normalmente era as pessoas que tinham lá famílias a trabalhá já… (M0PE) foi muitas coisas que me/ que/ que feiz eu desanimá… (F1PB) quem compra estes porcos pretos cá em Portugale… são os espanhóis… (M1PE) quem trabaiava nessa parte era só os home… (M0PB) agora quem tá no nosso governo são os socialistas… (F2PE)

k) Verbo ‘ser’ em orações com valor existencial. (45) (46) (47) (48)

era assim… era sempre muitas pessoas… (M1PE) era aquelas injeção (F0PB) é as tendinites… (M1PE) éh::: MMORPG… seriam jogos de RPG on line… (M2PB)

l) Orações com o verbo ‘ser’ nas designações de tempo, distância, quantidade, valor – casos em que as gramáticas prescrevem a concordância com o predicativo no plural. (49) (50) (51) (52)

era quatro hora… quatro e meia… treis e meia (F0PB) parece que era quatro marcos… era quatro marcos a hora… (M0PE) são cinco aulas… (F2PB) são dez milhões… (M1PE)

Capítulo 9

233

3.4 Critérios de exclusão O presente estudo não contempla todos os dados. Os critérios de exclusão aqui adotados são os seguintes: a) Formas verbais que no singular e no plural não se distinguem na pronúncia por serem homófonas: tem/têm, vem/vêm. O mesmo critério foi utilizado nos dados do PE. (53) (54)

famílias pobres… têm/tem todas as condições (M1PE) os moço vêm/vem conversá co Cido (F0PB)

b) Respostas em que se repete a forma verbal da pergunta feita pelo documentador nas entrevistas sociolinguísticas. (55) (56)

Doc.: jogam bem? Inf.: jogam… dos grandes clubes jogam bem (F1PE) Doc.: eles permitem a entrada? Inf.: algumas vez(es) permitem… permitem… (M2PB)

c) Verbo no plural com casa vazia do sujeito indeterminado (sem referente ‘eles’ no trecho do discurso) – contexto em que a marca de plural do verbo seria condicionada não pelo critério sintático (concordância com o sujeito/SN), mas pelo critério semântico (noção de indeterminação do sujeito). (57) (58)

meu vô que fazia… fez todo meu enxoval… calça blusinha robaru tudo… entraru dentro de casa robaru tudo… (F2PB) cá também jogam muito com isso… (M1PE)

d) Orações com verbo ‘ter’ com valor existencial. Segundo as lições da gramática tradicional, o verbo ‘ter’ não deve ser usado no sentido de ‘haver’ (existencial). Entretanto, a construção é muito usual no PB. (59) (60)

vixi… tinha vários doce lá… (M0PB) teve doze pessoas só da minha sala… (F2PB)

e) Sujeito representado pelo pronome indefinido ‘tudo’ remetendo a um SN de 3ª pessoa do plural. (61)

e os filhos e o marido é tudo Benfica… (F1PE)

234

Alexandre Monte

(62)

são tudo casado (M1PB)

f ) Sujeito representado por substantivo coletivo no singular que pode desencadear a chamada concordância semântica. (63) (64)

o time deles são muito entrosado (M2PB) e o povo pobre vivia nos campos… (M1PE)

g) Sujeito constituído por expressão partitiva. Segundo a tradição gramatical, quando o sujeito é constituído por expressão partitiva e um substantivo ou pronome plural, o verbo pode ir para o singular ou para o plural. A cada uma destas possibilidades corresponde um novo matiz da expressão. Deixamos o verbo no singular quando queremos destacar o conjunto como uma unidade. Levamos o verbo ao plural para evidenciarmos os vários elementos que compõem o todo (Cunha e Cintra 2001: 499). (65) (66)

a maioria dos meus amigos assim vão pa barzinho (F2PB) a maior parte deles são de aldeias (F1PE)

h) Verbos no infinitivo pessoal. De acordo com Brandão e Vieira (2012: 1058), “a forma infinitiva constitui por si só um contexto absolutamente particular, motivo pelo qual muitos estudos variacionistas nem sequer a consideram na contagem dos dados”. (67) (68)

porque não havia pessoas para trabalhare (M0PE) colocaram esses/ essas duas entidades pra me atormentá… (F2PB)

i) Sujeito composto quando está posposto ao verbo e com o núcleo mais próximo no singular. De acordo com as gramáticas normativas (Rocha Lima 1998; Cunha e Cintra 2001), se o verbo vier antes do sujeito composto, ele pode ir para o plural ou concordar com o núcleo que estiver mais próximo. (69) (70)

morreu a senhora e o patrão… (F0PE) tava o::: marido e a mulher… (M1PB)

j) Pronomes interrogativos. A princípio, estávamos considerando os casos com pronome interrogativo, mas na amostra de língua falada do PE apareceram 7 ocorrências, e, na amostra de língua falada do PB, apenas uma. Não sendo um número significativo quantitativamente, achamos melhor excluir esses dados.

Capítulo 9

(71) (72)

235

quais é que são as vossas expectativas que tem pa o futuro… (F1PE) as oitavas eu não sei quantas são… (F2PB)

4 A regra de concordância verbal de terceira pessoa do plural na escrita de estudantes brasileiros e portugueses: algumas considerações No período em que realizamos as entrevistas sociolinguísticas na cidade de São Carlos/SP para o trabalho de Mestrado (Monte 2007), os informantes concluintes do ensino fundamental na Educação de Jovens e Adultos⁴ – EJA – (5 mulheres e 5 homens) também produziram vários textos dissertativos. Na ocasião, não foi possível analisar a produção escrita desses participantes. O trabalho foi concluído posteriormente (Monte 2011) e pudemos analisar e comparar a variação da concordância verbal de 3ª pessoa do plural na fala e na escrita das mesmas pessoas. Do total de 489 ocorrências estudadas na amostra de língua falada, 336 (68,7 %) não trouxeram a marca formal de plural nos verbos, tendo apenas 153 (31,3 %) apresentado essa marca. Na amostra de língua escrita, encontramos a concordância verbal predominando. Do total de 218 ocorrências, 59 (27,1 %) não apresentaram a concordância verbal padrão e 159 (72,9 %) apresentaram a marca de plural nos verbos. A fim de melhor caracterizar essa situação, apresentamos, a seguir, a tabela com a frequência e o peso relativo de concordância verbal padrão nas duas modalidades. Tabela 1: Frequência e peso relativo de concordância verbal em função da modalidade falada e da modalidade escrita no trabalho de Monte (2011). Fatores

Frequência

PR

– Língua Falada

153/489 = 31,3 %

0,269

– Língua Escrita

159/218 = 72,9 %

0,904

4 Por Educação de Jovens e Adultos, entende-se a modalidade integrante da educação básica destinada ao atendimento de estudantes que não tiveram, na idade própria, acesso ou continuidade de estudo no ensino fundamental e médio. A denominação “Educação de Jovens e Adultos” substitui o termo ensino supletivo.

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Alexandre Monte

Tabela 1: Frequência e peso relativo de concordância verbal em função da modalidade falada e da modalidade escrita no trabalho de Monte (2011). (Continuação) Fatores

Frequência

Total

312/707 = 44,1 %

PR

Encontramos, na modalidade tanto falada quanto escrita, uma regra variável de concordância verbal de terceira pessoa do plural nas amostras do PB analisadas (Monte 2011). No presente estudo com a língua escrita de estudantes portugueses, encontramos, de acordo com Labov (2003: 241–243), uma regra semicategórica. O estudo, composto de 590 dados, apresentou apenas 10 ocorrências sem a marca de plural no verbo. Isso significa 1,7 % de ausência de concordância, contra 98,3 % de presença (580/590).

Figura 1: Distribuição geral dos dados de escrita do PE.

Abaixo, seguem as 10 ocorrências com o cancelamento da marca de plural no verbo nas produções escritas de estudantes portugueses: (73)

(74)

(75)

Se desde que aprendemos a falar, a andar, a brincar e todos aqueles aspectos que evoluem connosco ao longo da vida, também deveriamos aprender a respeitar todos aqueles que nos rodeiam, independentemente da cor ou raça que apresenta. (FSPE) Mas em sociedades menos desenvolvidas, os direitos humanos e o respeito pela dignidade humana ainda não se faz sentir, havendo por isso muita discriminação, exclusão social, levando muitas vezes a confrontos. (MSPE) Tal como está aferido na opinião de Guilherme d’Oliveira Martins no jornal de Letras, Artes e Ideias, o Padre António Vieira foi um pregador, humanista

Capítulo 9

(76)

(77)

(78) (79)

(80)

(81)

237

e lutador pelo respeito da dignidade humana como muito poucos. Lutou com todas as suas forças para que a dignidade de cada um e o respeito pelos direitos humanos se fizesse sentir e passasse em vão, muito menos despercebidos. (FSPE) No nosso tempo, a dignidade humana e o respeito pelos direitos humanos não existe completamente porque existem diferenças muito grandes de poder entre as pessoas e países, e todos deveriam ter dignidade humana e isso é algo que também não acontece em todo o mundo. (MSPE) Sentámo-nos na areia, sem olhar uma para a outra e sem falar. Parecia que nem o sol radiante e a água convidativa iria quebrar o gelo que havia entre nós. (FBPE) São coisas que ocorrem, que destroem as populações e acaba com a integridade e muitas vezes vida de milhares e milhares de pessoas. (FSPE) Exemplos disso são a China e o Vietname em que as pessoas trabalham muito mais que as 8 horas por dia e recebem salários míseros que mal chega para sobreviverem. E ainda há, nestes paises, crianças a trabalhar como adultos, ou seja, exploração infantil. (MSPE) Ela era uma rapariga muito calada, timida lá ia sorrindo de vez enquando mas não era aquelas gragalhadas mas houve um dia, nessa tarde ela percebeu que sorrir é a melhor coisa que fazemos, até nos dá um ar diferente mais feliz. (FBPE) Nos dias que correm a dignidade e o respeito pelos direitos humanos é alvo de debate nos vários cantos do mundo, pois como todos nós sabemos na sociedade dos dias que correm é fundamental estabelecer respeito, pois, sem ele, seria uma perfeita anarquia […] (MSPE)

Como podemos observar, das 10 ocorrências sem marca explícita de plural no verbo, em 9 ocorrências (74–81) o traço semântico do sujeito/SN é [– humano / – animado]. A variável traço semântico do sujeito/SN já demonstrou ser atuante em algumas pesquisas sobre a pouca variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural no PE (Naro e Scherre 2007; Monguilhott 2009; Bazenga 2011; Rubio 2012; Monte 2012). Nas ocorrências (73–80), a diferença entre a forma verbal do singular e do plural não é tão marcada, tão saliente (apresenta/apresentam; faz/fazem; fizesse/ fizessem; passasse/passassem; existe/existem; iria/iriam; acaba/acabam; chega/ chegam; era/eram). A oposição gráfica nesses casos não é tão saliente como ocorre na única ocorrência (81) em que a oposição gráfica é mais saliente (é/são). De acordo com Almeida (2010), a saliência gráfico-fônica representa uma adaptação do princípio da saliência fônica, introduzido na teoria linguística por Naro e Lemle (1977) nos primeiros estudos sociolinguísticos sobre o tema no Brasil.

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Alexandre Monte

A expectativa do efeito da saliência fônica (saliência gráfico-fônica) é: quanto maior for a diferença entre as formas verbais do singular e do plural, maior será a probabilidade de realização formal da concordância e, por outro lado, quanto menor essa diferença, menor a chance de realização da concordância. No Brasil, a variável saliência fônica nos estudos da concordância verbal é muito atuante. Já com dados do PE, não são todos os estudos que revelam significância estatística para o comportamento desse grupo de fatores. Para Vieira e Bazenga (2015: 72), “é preciso reconfigurar os níveis de diferenciação fônica entre as formas singular e plural em consideração aos traços fonético-fonológicos presentes nas variedades europeias”. Em duas ocorrências (80–81) sem a marca de plural no verbo, encontramos o verbo ‘ser’. Em alguns trabalhos com dados do PE (Mota e Vieira 2008; Gandra 2009; Vieira 2012; Brandão e Vieira 2012; Monte 2012), as construções com o verbo ‘ser’ são apontadas como desfavorecedoras da concordância verbal. Na ocorrência (80), temos um SN (aquelas gragalhadas) posposto ao verbo ‘ser’ (era). O ‘ser’ é um verbo complexo que normalmente ocorre em várias construções da língua portuguesa. Encontramos o verbo ‘ser’ em sentenças atributivas, equitativas e apresentacionais. É sabido que muitos casos de SN posposto ao verbo ocorrem com verbos apresentacionais. Para Castilho (2010) e Bagno (2011), o SN que é introduzido por um verbo apresentacional não tem propriedades sintáticas de sujeito nem de objeto. Como se pode observar, além de as ocorrências sem a marca formal de terceira pessoa do plural nos verbos serem em número muito reduzido, elas não representam, em termos qualitativos, uma tendência generalizada de não concordância variável no PE. Antes, estão reduzidas a construções particulares: construções com sujeitos/SNs distantes do verbo, sujeitos/SNs coordenados, sujeitos/SNs representados por pronome relativo, construções com o verbo ‘ser’. A seguir, retomamos os resultados gerais das amostras de língua falada do PB e do PE da nossa pesquisa finalizada em 2012 (Monte 2012) e apresentamos os resultados obtidos com a variável tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos). Assim como relata Varejão (2006), em várias etapas do nosso trabalho – durante as entrevistas, na fase de transcrição e levantamento dos dados – parecia-nos que o verbo ‘ser’ apresentava comportamento diferente dos demais verbos, principalmente no PE. Por esse motivo, resolvemos controlar o verbo ‘ser’ separadamente nas duas amostras.

Capítulo 9

239

5 Resultados gerais das amostras de língua falada do PE e do PB Em Évora (PE), encontramos um índice muito alto de frequência de concordância verbal de terceira pessoa do plural na fala informal das pessoas. Do total de 1.440 ocorrências, apenas 100 (6,9 %) trazem a variante zero de plural nos verbos, sendo que 1.340 (93,1 %) apresentam a marca explícita de plural, ou seja, realizam a concordância verbal considerada padrão.

Figura 2: Distribuição geral dos dados de língua falada do PE.

A rodada multivariada em relação à aplicação da presença formal da concordância verbal apresentou input 0,964 e a significância 0,015. Os grupos de fatores selecionados pelo programa Goldvarb-X na amostra do PE, na ordem de relevância, foram: posição do sujeito/SN em relação ao verbo, traço semântico do sujeito/SN, tipo estrutural do sujeito/SN, tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos), saliência fônica e gênero⁵. A amostra de São Carlos (PB) é composta de 1.422 ocorrências de terceira pessoa do plural, com 686 ocorrências (48,2 %) apresentando a marca formal de plural nos verbos e 736 (51,8 %) ocorrências sem a marca formal de plural nos verbos. No caso da rodada multivariada em relação à aplicação da presença formal da concordância verbal com dados brasileiros, foram registrados input 0,466 e significância 0,042. O programa Goldvarb-X selecionou, na ordem de relevância, os seguintes grupos de fatores na amostra do PB: escolaridade, saliência fônica, tipo 5 Os resultados e a descrição detalhada desses grupos de fatores (ou variáveis) podem ser vistos em Monte (2012).

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Figura 3: Distribuição geral dos dados de língua falada do PB.

estrutural do sujeito/SN, paralelismo formal no nível oracional, gênero, posição do sujeito/SN em relação ao verbo, traço semântico do sujeito/SN, tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos) e distância entre o sujeito/SN e o verbo em número de sílabas⁶.

5.1 Tipo de verbo: verbo ‘ser’ versus outros verbos O grupo de fatores tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos) foi selecionado nas duas amostras de língua falada, mas com comportamento diferente. No PB, ficou em oitavo lugar com o menor range (157) e, no PE, foi selecionado em quarto lugar com o quarto maior range (339). Tabela 2: Frequência e peso relativo de concordância verbal segundo o tipo de verbo (verbo ‘ser’ e outros verbos), na amostra de língua falada do PB e do PE. Frequência de concordância verbal São Carlos (PB)

Évora (PE)

Fatores

Frequência

PR

Frequência

PR

– verbo ‘ser’

118/218 = 54,1 %

0,632

291/342 = 85,1 %

0,247

– outros verbos

568/1.204 = 47,2 %

0,475

1.049/1.098 = 95,5 %

0,586

Total

686/1.422 = 48,2 %

Range 157

1.340/1.440 = 93,1 %

Range 339

6 Os resultados e a descrição detalhada desses grupos de fatores (ou variáveis) podem ser vistos em Monte (2012).

Capítulo 9

241

Nossas expectativas se confirmaram apenas para a amostra do PE, com o verbo ‘ser’ desfavorecendo a concordância verbal (0,247 de peso relativo). A diferença entre as duas categorias é de 10,4 pontos percentuais em termos de frequência e 339 em termos de peso relativo. Já na nossa amostra do PB, sentenças com o verbo ‘ser’ favorecem a aplicação da regra de concordância (0,632 de peso relativo). A diferença entre as duas categorias é de 6,9 pontos percentuais em termos de frequência e 157 em termos de peso relativo. Nas gramáticas normativas, há sempre uma seção na parte de concordância verbal destinada ao verbo ‘ser’. Rocha Lima (1998: 404), por exemplo, intitula a seção de “concordância especial do verbo ‘ser’”. Como já mencionamos, ‘ser’ é um verbo que aparece nas mais diversas construções da língua portuguesa: em sentenças apresentacionais, atributivas e equitativas. Segundo Castilho (2010: 398– 399), é um verbo que desfruta de grande frequência de uso, seja como verbo funcional, seja como verbo auxiliar. Ele diz, ainda, que o uso apresentativo de ‘ser’ representa uma sobrevivência de seu uso como verbo pleno. De fato, trata-se de um verbo especial e tem de ser controlado separadamente. Em relação à concordância verbal de 3ª pessoa do plural com o verbo ‘ser’, os resultados evidenciam um comportamento diferente entre o PB e o PE, que necessita de um estudo quantitativo e qualitativo mais detalhado. Com o objetivo de compreender melhor o comportamento do verbo ‘ser’ na amostra da modalidade falada do PE, realizamos o cruzamento do tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos) com o traço semântico do sujeito/SN, lembrando que o traço semântico do sujeito/SN nos chamou a atenção nas poucas ocorrências sem a marca de plural no verbo na amostra da modalidade escrita do PE. A tabela e a figura a seguir permitem observar o comportamento dessas variáveis na amostra de língua falada do PE: Tabela 3: Frequência de concordância verbal segundo o tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos) e o traço semântico do sujeito/SN na amostra de língua falada do PE. Fatores

Frequência de concordância – outros verbos

– verbo ‘ser’

– SN [+ humano / + animado]

914/944 = 97 %

168/186 = 90 %

– SN [– humano / + animado]

19/20 = 95 %

9/11 = 82 %

– SN [– humano / – animado]

116/134 = 87 %

114/145 = 79 %

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Alexandre Monte

Figura 4: Frequência de concordância verbal segundo o tipo de verbo (verbo ‘ser’ versus outros verbos) e o traço semântico do sujeito/SN na amostra de língua falada do PE.

Conforme os resultados acima, verificamos o favorecimento ao emprego da marca de plural com sujeito/SN [+ humano]. O índice de frequência de concordância diminui um pouco com sujeito/SN [– humano / + animado], e cai um pouco mais quando temos o sujeito/SN inanimado. O que chama a atenção é que essa tendência é menor nas três categorias da variável semântica quando o verbo ‘ser’ é empregado.

5.2 Resultados gerais do PE e do PB sem as ocorrências com o verbo ‘ser’ Realizamos outra rodada com o Programa Goldvarb-X sem as ocorrências com o verbo ‘ser’ com os dados de língua falada do PE. A rodada, composta de 1.098 dados, apresentou apenas 49 ocorrências sem a marca de plural no verbo. Isso significa 4,5 % de ausência de concordância, contra 95,5 % de presença (1.049/1.098). De acordo com Labov (2003: 241–243), estamos diante de uma regra semicategórica. Assim como fizemos com os dados do PE, realizamos também uma rodada com os dados de língua falada do PB sem as ocorrências com o verbo ‘ser’. Obtivemos um total de 1.204 dados, com 568 dados (47,2 %) apresentando a marca explícita de plural nos verbos e 636 dados (52,8 %) com a marca zero de plural nos verbos. De acordo com Labov (2003: 243), estamos diante de uma regra variável.

Capítulo 9

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Figura 5: Distribuição geral dos dados de língua falada do PE sem as ocorrências com o verbo ‘ser’.

Figura 6: Distribuição geral dos dados de língua falada do PB sem as ocorrências com o verbo ‘ser’.

6 Considerações finais Por meio de um estudo empírico e sincrônico, nos moldes da Sociolinguística Variacionista laboviana, analisamos a variação na concordância verbal de terceira pessoa do plural na fala de 18 pessoas residentes na cidade de São Carlos, localizada no interior do Estado de São Paulo/Brasil, e na fala de 18 pessoas residentes na cidade de Évora, situada no Alentejo, sul de Portugal. Também analisamos os poucos dados sem a expressão formal de concordância verbal de terceira pessoa do plural numa amostra da modalidade escrita de estudantes portugueses, obtida na escola pública André de Gouveia, da cidade de Évora. Os resultados com dados de fala do PE revelam uma significativa diferença quantitativa em relação aos resultados com dados de fala do PB. Na amostra de

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Alexandre Monte

língua falada do PB, encontramos 48,2 % (686/1.422) de presença de concordância verbal. Já na do PE, 93,1 % (1.340/1.440) dos dados trazem a marca explícita de plural nos verbos. De acordo com a tipologia de regras apresentada por Labov (2003: 241– 243), podemos afirmar que no Português falado do Brasil a regra é efetivamente variável; no Português falado de Portugal, a regra tem status semicategórico. Sem as ocorrências com o verbo ‘ser’, o status semicategórico da regra na amostra do PE fica ainda mais evidente. De um total de 1.098 dados, 1.049 (95,5 %) apresentaram a concordância verbal explícita e 49 (4,5 %) não apresentaram a marca formal de concordância. Na amostra do PB, sem as ocorrências com o verbo ‘ser’, a regra continua efetivamente variável. Foram depreendidas 1.204 ocorrências e a regra de concordância foi aplicada em 568, correspondendo a 47,2 % do total. Em relação aos dados da amostra de língua escrita do PE, como era esperado, também encontramos uma regra semicategórica, com apenas 10 ocorrências sem a marca explícita de plural no verbo. Isso significa 1,7 % de ausência de concordância, contra 98,3 % de presença (580/590). Já na escrita de estudantes brasileiros, a depender da amostra, da modalidade de ensino e da escolaridade, podemos encontrar uma regra semicategórica ou variável. No estudo de Almeida (2010), por exemplo, encontramos uma regra semicategórica. Contudo, em nosso trabalho (Monte 2011), no de Gameiro (2009) e de Zandomênico (2018), a regra da concordância verbal de terceira pessoa do plural é variável. O conjunto de resultados ora sintetizado permite aferir, tomando em consideração metodologicamente o fator referente à modalidade discursiva, falada ou escrita, padrões de concordância verbal distintos no PB e no PE. Não se trata, apenas, de tendências diferentes no plano quantitativo – segundo o qual se confirmou o comportamento da variedade europeia sempre semicategórico, e o brasileiro, variável, tendo apenas algumas manifestações semicategóricas em contextos escritos altamente monitorados –, mas sobretudo de preferências distintas em termos qualitativos – somente algumas construções registram não expressão formal de concordância, contextos que podem ser justificados, por hipótese, em termos sobretudo de processamento cognitivo. Nesse sentido, o estudo confirma o que Vieira e Brandão (2014: 108) propuseram: (…) os perfis quantitativo e qualitativo dos padrões de concordância verificados e discutidos neste artigo permitem afirmar que PB e PE configuram tipos linguísticos distintos ou assumem parâmetros gramaticais diferentes da marcação de número plural.

E ainda:

Capítulo 9

245

Há que se verificar quantitativa – número restrito de dados – e qualitativamente – contextos específicos em termos estruturais – a especialização dos usos para que seja possível determinar o parâmetro gramatical de certa língua/variedade.

Por fim, espera-se que este estudo, que teve como objetivo discutir o estatuto da variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural atentando também para o fator modalidade, ao considerar amostras de fala e escrita do PE e do PB, possa trazer contribuições de caráter teórico-metodológico às pesquisas que focalizem a formação e a caracterização sociolinguística de variedades do Português.

7 Referências Almeida, Evanilda Marins. 2010. Uso e norma: variação da concordância verbal em redações escolares. Rio de Janeiro: Tese de doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bagno, Marcos. 2011. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial. Bazenga, Aline Maria. 2011. Concordância verbal e variantes de 3a pessoa do plural em PE: resultados preliminares de um estudo sociolinguístico com base numa amostra de português falado no Funchal. In A. S. Silva, A. Torres & M. Gonçalves (orgs.), Línguas pluricêntricas: variação linguística e dimensões sociocognitivas, 302–318. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa. Brandão, Silvia Figueiredo & Silvia Rodrigues Vieira. 2012. Concordância nominal e verbal: contribuições para o debate sobre o estatuto da variação em três variedades urbanas do português. Alfa: Revista de Linguística 56 (3). 1035–1064. Castilho, Ataliba Teixeira de. 2010. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto. Cunha, Celso Ferreira da & Luís Filipe Lindley Cintra. 2001. Nova gramática do português contemporâneo, 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Gameiro, Maria Beatriz. 2009. A variação da concordância verbal na terceira pessoa do plural em redações escolares do ensino fundamental e médio: uma avaliação de fatores linguísticos e sociais. Araraquara: Tese de doutorado da Universidade Estadual Paulista. Gandra, Ana Sartori. 2009. A concordância verbal no português europeu rural. In K. Oliveira, H. F. Cunha e Souza & L. Gomes (eds.), Novos tons de Rosa… para Rosa Virgínia Mattos e Silva, 142– 161. Salvador: EDUFBA. Labov, William. 1972. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Labov, William. 1994. Principles of linguistic change. v. 1: Internal factors. Malden: Blackwell Publishers. Labov, William. 2001. Principles of linguistic change. v. 2: Social factors. Malden: Blackwell Publishers. Labov, William. 2003. Some sociolinguistic principles. In Christina Bratt Paulston & G. Richard Tucker (eds.), Sociolinguistics: the essential readings, 234–250. Malden: Blackwell Publishing. Monguilhott, Isabel de Oliveira & Silva. 2009. Estudo sincrônico e diacrônico da concordância verbal de terceira pessoa do plural no PB e no PE. Florianópolis: Tese de doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina. Monte, Alexandre. 2007. Concordância verbal e variação: uma fotografia sociolinguística da cidade de São Carlos. Araraquara: Dissertação de mestrado da Universidade Estadual Paulista.

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Alexandre Monte

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Isabel Monguilhott, Izete Lehmkuhl Coelho

Capítulo 10 A constituição da Amostra Monguilhott para o estudo comparativo de variedades brasileiras e europeias do Português 1 Introdução Considerando o aparato teórico-metodológico da Teoria da Variação e Mudança Linguística (cf. Weinreich et al. 2006 [1968], Labov 2008 [1972]), que subsidia os estudos, em sua maioria, no âmbito do Projeto 21 da ALFAL, além da importância da constituição de amostras de fala, pretendemos, neste capítulo, compartilhar as experiências de constituição da Amostra Monguilhott para o estudo de variedades brasileiras e europeias do Português. A Amostra Monguilhott é composta por 32 entrevistas orais realizadas, nos moldes da sociolinguística variacionista (cf. Labov 2008 [1972]), entre 2006 e 2007, durante o período do doutoramento de Monguilhott, sob orientação de Coelho. Primeiramente, foram coletadas 16 entrevistas em Florianópolis, cidade em que o doutorado foi realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, e, posteriormente, 16 entrevistas em Lisboa, cidade em que foi realizado estágio de doutorado no exterior, na Universidade de Lisboa.¹ Os informantes dessa Amostra foram estratificados de modo similar aos informantes de bancos de dados já existentes no Brasil, a exemplo do Banco de dados Variação Linguística da Região Sul do Brasil (VARSUL). Investigamos em cada cidade quatro localidades e o fator idade/escolaridade dos informantes. O critério de seleção das localidades levou em conta aspectos relacionados à diatopia, à diazonalidade e às redes sociais. Buscamos considerar quatro localidades em cada variedade para o controle da variável diatopia e duas localidades que apresentassem um perfil menos urbano e duas um perfil mais urbano para o

1 O estágio de doutorado no exterior ocorreu no período de agosto de 2007 a janeiro de 2008, na Universidade de Lisboa, sob a orientação da Professora Doutora Ernestina Carrilho. O estágio foi realizado com bolsa Capes, processo 0773/07–7, por meio do Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior – PDEE. Isabel Monguilhott, Izete Lehmkuhl Coelho–Universidade Federal de Santa Catarina https://doi.org/10.1515/9783110670257-012

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Isabel Monguilhott, Izete Lehmkuhl Coelho

controle da variável diazonalidade. Para as redes sociais dos informantes foram considerados subfatores como densidade e plexidade, localismo e mobilidade. Buscamos ainda evidenciar os reflexos das particularidades de cada região que foram levadas em conta para a composição da Amostra na análise comparativa do fenômeno linguístico da variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural (Monguilhott 2009), cujos resultados são também objeto de discussão neste capítulo. O capítulo está assim organizado. Na próxima Seção 2, apontamos alguns axiomas metodológicos, de acordo com Labov (2008 [1972]), considerados na constituição de amostras de fala. Em seguida, na Seção 3, caracterizamos a Amostra Monguilhott em função das particularidades das cidades onde se fala o português (Florianópolis, PB; Lisboa, PE). Na Seção 4 evidenciamos o perfil sóciohistórico dessas cidades, seguido pelo perfil das localidades (Seção 5) e pelo perfil dos informantes (Seção 6). A seguir, na Seção 7, apresentamos reflexos dessa Amostra na análise comparativa de resultados sobre a variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural. Tecemos algumas considerações finais, na Seção 8, e apontamos as referências indicadas ao longo do capítulo em 9.

2 Alguns axiomas metodológicos com base em Labov (2008 [1972]) Para a constituição da Amostra Monguilhott, embasamos nossa coleta nos principais axiomas metodológicos da sociolinguística variacionista (Labov 2008 [1972]). O primeiro deles é a alternância estilística. Para Labov, não existe falante de estilo único; há alternância de estilo, seja em função do tema, seja em função do contexto social. Nas entrevistas realizadas houve variação no estilo de fala do entrevistado a depender do tema, considerando que há uma série de assuntos selecionados pertencentes a diversos eixos temáticos. Em relação ao contexto social, não há como variar, pois não há alternância de contexto, já que a entrevista é realizada em um mesmo contexto. A atenção é outro axioma apontado por Labov. O autor defende que o controle de atenção do falante varia de acordo com seu envolvimento emocional no discurso, quanto mais envolvido emocionalmente no assunto, menos atenção é dispensada à fala, quanto menos envolvimento maior o controle de atenção. No caso das nossas entrevistas, quando colocávamos em pauta assuntos em que o informante se envolvia emocionalmente, como em situações de risco ou de grande interesse pessoal, percebíamos menor monitoramento de sua fala.

Capítulo 10

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O vernáculo é mais um axioma trazido por Labov. Definido como o estilo em que a mínima atenção ao controle do discurso é dada, sua observação, de acordo com o autor, nos oferece os dados mais propícios para a análise da estrutura linguística. Quando realizamos as entrevistas, buscamos chegar ao vernáculo dos informantes; para tanto, elaboramos um questionário prévio com possíveis perguntas que poderiam ser inseridas durante a conversa com o informante para suscitar o maior envolvimento possível com os assuntos que surgiam, justamente para que o vernáculo viesse à tona. Um outro axioma apontado por Labov é a formalidade. Segundo ele, toda observação sistemática de um falante define um contexto formal em que há algum grau de atenção. Assim sendo, por mais que buscássemos o vernáculo dos falantes, no caso das entrevistas, temos consciência de que, em função de os informantes estarem sendo sistematicamente observados, havia algum grau de monitoramento à sua fala. Por fim, Labov apresenta o axioma a respeito da qualidade dos dados. De acordo com o autor, a melhor forma de coleta de dados é a gravação de entrevistas individuais, principalmente, a partir de narrativas de experiências pessoais. Privilegiamos, em nossas entrevistas, o incentivo às narrativas de experiência pessoal. Embora tenhamos atentado aos axiomas levantados por Labov, sabemos que a fala coletada em entrevistas, nestes moldes, é uma recriação da fala espontânea. Entretanto, para verificar como as pessoas falam quando não estão sendo sistematicamente observadas é necessário realizar entrevistas de forma sistemática, o que, de certo modo, é paradoxal. Labov sugere que para superar esse paradoxo é preciso buscar mecanismos que desviem a atenção da fala para que o vernáculo possa emergir, envolvendo o falante em tópicos que recriem emoções fortes vividas no passado, por exemplo, o que buscamos fazer ao longo da coleta.

3 Caracterização das localidades Para a constituição da Amostra Monguilhott foram selecionadas as cidades de Florianópolis (PB) e Lisboa (PE). Em cada uma dessas cidades foram controladas diferentes localidades para a análise das variáveis diatopia e diazonalidade. Em Florianópolis, com traços menos urbanos, foram selecionadas Ribeirão da Ilha e Costa da Lagoa e com traços mais urbanos, Ingleses e Centro. Em Lisboa,² a

2 Agradecemos à Professora Ernestina Carrilho, orientadora do estágio de doutorado no exterior, da Universidade de Lisboa, que auxiliou na seleção das localidades com as quais a pesquisadora não possuía familiaridade.

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seleção das localidades deu-se de modo a constituir um acervo o mais comparável possível àquele do PB que já havia sido coletado anteriormente. Com traços menos urbanos e comparáveis à Ribeirão da Ilha e Costa da Lagoa, foram selecionadas as localidades de Cascais e Sintra. A primeira por ser zona pesqueira e a segunda por ser mais isolada e pacata. Com traços mais urbanos e comparáveis a Ingleses e Centro de Florianópolis, foram selecionadas, Belém e Centro de Lisboa. A primeira, assim como Ingleses, por ter traços urbanos, mas ficar afastada da zona central de Lisboa e a segunda por ser caracterizada como o centro da cidade. Um dos maiores desafios na constituição da Amostra Monguilhott em espaços tão distintos e distantes, tanto geograficamente, quanto em termos de características históricas, sociais e econômicas, foi selecionar localidades que pudessem de algum modo constituir uma amostra comparável. Lisboa é a capital de um país europeu, continente em que se situam países com os melhores índices mundiais de desenvolvimento econômico e social, enquanto Florianópolis é a capital de um estado no continente sul americano, onde se situam países com características sociais e econômicas emergentes. Todas as entrevistas foram realizadas por Monguilhott e houve o cuidado de abordar em todas elas, seja no PB, seja no PE, os mesmos assuntos, como família, trabalho, lazer, estudo, redes sociais e situações de risco, sempre buscando o maior envolvimento dos entrevistados para que o menor grau de atenção fosse destinado à sua fala. Além das variáveis diatopia e diazonalidade, controlamos também idade/escolaridade e redes sociais combinadas, por conta do número possível de entrevistas que conseguiríamos realizar. Estabelecemos quatro informantes em cada localidade, perfazendo um total de 16 informantes de Florianópolis e 16 de Lisboa. A distribuição dos informantes está ilustrada no Quadro 1. Quadro 1: Estratificação dos informantes da Amostra Monguilhott. Zona nãourbana / urbana

Ponto Informante 1 (localidade)

Informante 2

Informante 3

Informante 4

Zona não urbana PB

Ribeirão da Ilha

15 a 36 anos – ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

Zona não urbana PB

Costa da Lagoa

15 a 36 anos – ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

Capítulo 10

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Quadro 1: Estratificação dos informantes da Amostra Monguilhott. (Continuação) Zona nãourbana / urbana

Ponto Informante 1 (localidade)

Zona urbana Ingleses PB

Informante 2

Informante 3

Informante 4

15 a 36 anos – ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

Zona urbana Centro de 15 a 36 anos – PB Florianópolis ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

Zona não urbana PE

Cascais

15 a 36 anos – 22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino fundamental ensino superior ensino ensino superior fundamental

Zona não urbana PE

Sintra

15 a 36 anos – ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

Zona urbana Belém PE

15 a 36 anos – ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

Zona urbana Centro de PE Lisboa

15 a 36 anos – ensino fundamental

22 a 33 anos – 48 a 74 anos – 45 a 76 anos – ensino superior ensino ensino superior fundamental

(Fonte: Monguilhott 2009: 67.)

4 Caracterização histórica, social e econômica de Florianópolis e de Lisboa Como sabemos, as cidades de Florianópolis e de Lisboa apresentam perfis sociais, históricos e econômicos bastante distintos. Evidenciamos a seguir algumas das particularidades regionais que se refletem na Amostra Monguilhott.

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4.1 Florianópolis Florianópolis,³ antiga Nossa Senhora do Desterro, situa-se na ilha de Santa Catarina (SC) que apresenta uma superfície de 431 km2, medindo 54 km de comprimento, 18 km de largura e uma orla de 172 km. Conforme pesquisas arqueológicas realizadas na Ilha de SC, o povoamento da região parece ter se iniciado em 3000 a.C. “por grupos humanos que eram ou se tornaram pescadores e coletores de moluscos, além de, secundariamente, praticarem a caça” (Fundação Franklin Cascaes 1995: 11). Por volta de 1400, a ilha passa a ser ocupada por indígenas da nação Carijó, migrantes do Chaco paraguaio, da nação Tupi-Guarani, que, provavelmente, passaram por algum tempo convivendo com as populações que viviam no lugar anteriormente. No início do século XVI, espanhóis e portugueses chegam à ilha, habitada pelos Carijó desde o século XV, resistindo até o século XVII. Com a vinda dos europeus, os Carijó passaram a ser caçados, escravizados e exterminados pouco a pouco, como relata a história das nações indígenas por todo o país. O povoamento português efetivou-se no século XVII com Francisco Dias Velho, nobre de São Vicente,⁴ que por volta de 1675 funda Nossa Senhora do Desterro e “requer do governo da capitania paulista duas léguas em quadra na Ilha, justificando ter instalado uma igreja em devoção a Nossa Senhora do Desterro, benfeitorias e culturas na referida área” (Fundação Franklin Cascaes 1995: 18). Dias Velho, em 1687, aprisiona um navio corsário e envia os piratas para São Vicente com sua carga. A Fazenda Real se apodera da carga e liberta os prisioneiros que dois anos depois, voltam à ilha para se vingarem. Dias Velho é morto, sua família retorna a São Paulo, com exceção de um dos filhos que se instala em Laguna,⁵ cidade do litoral sul de SC. Ficam, no vilarejo, pouquíssimos moradores, após a tragédia. Em 23/3/1726, o povoado do Desterro é elevado à categoria de Vila, desmembrando-se de Laguna. A partir desta data, a povoação passa a se desenvolver, impulsionada por projetos militares, pela colonização açoriana e pela pesca à baleia. A colonização açoriana inicia-se em 06/01/1748, quando desembarcaram 461 pessoas, num total de 88 casais vindos do Arquipélago dos Açores e da Madeira. De

3 O município de Florianópolis constitui-se ainda de uma parte continental. No entanto, para a seleção da Amostra Monguilhott consideramos apenas a parte insular. 4 A Vila de São Vicente foi o primeiro núcleo de povoação portuguesa estabelecido na costa brasileira, fundado no litoral de São Paulo em 1532 por Martim Afonso de Souza. 5 De acordo com Farias (2000), Santo Antônio dos Anjos da Laguna, Nossa Senhora do Desterro e Nossa Senhora da Graça do Rio São Francisco foram as primeiras povoações do litoral catarinense fundadas por vicentistas e portugueses.

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acordo com Furlan (1989: 17), no período de 1748 a 1756, vieram para o litoral de SC 6071⁶ açorianos que se somaram aos 4197 catarinenses, resultando um aumento demográfico de 144,6 %. As condições encontradas pelos açorianos tornaram sua adaptação lenta e difícil. O cultivo de trigo, cultura tradicional dos açorianos, não se adaptou ao clima da região. As vacas e éguas que haviam sido prometidas foram entregues a poucos. Os rapazes mais fortes eram chamados ao treinamento militar, embora o edital de inscrição para a imigração determinasse que seriam dispensados de tal tarefa. Desta forma, as terras foram sendo abandonadas e o trabalho agrícola substituído por ofícios urbanos diversos e pela pesca. Aqueles que ficavam na terra cultivavam mandioca, herança Carijó, desconhecida nos Açores, e o preparo da farinha passou a ser a principal fonte de renda. Contribuindo decisivamente na formação da população da Ilha, os açorianos influenciaram a cultura local com a olaria cerâmica utilitária e decorativa, a produção artesanal (renda-de-bilro, crivo), os jogos e brinquedos (peão, cinco marias), as danças (ratoeira, pau-de-fita), os folguedos (boi-de-mamão, terno de reis), a literatura (pão-por-Deus, pasquim), a religiosidade expressa nos nomes das localidades (Santo Antônio, Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão), as festividades religiosas (Festa do Divino Espírito Santo), além das técnicas de produção (engenho de farinha, baleeira), da gastronomia (peixe, pirão, farofa), da mitologia (lobisomens, bruxas), da medicina popular (benzeduras e orações), da arquitetura (casas geminadas), “havendo que se destacar ainda o linguajar local, caracterizado pelo ‘som cantado’ e pela alta velocidade de flexão vocal” (Fundação Franklin Cascaes 1995: 29). Como Farias (2000) evidencia, a Ilha de SC foi formada pelos valores trazidos pelos imigrantes açorianos somados aos valores vicentistas, que já haviam se fixado no litoral catarinense entre os séculos XVII e XVIII, bem como das culturas indígena, negra e de outras minorias. Em meados de 1894, Nossa Senhora do Desterro passa a se chamar Florianópolis em homenagem a Floriano Peixoto. Até hoje muitas pessoas que conhecem a história da cidade questionam tal homenagem feita pela Assembleia Legislativa no ano em que o coronel Antônio Moreira César, governador de SC, nomeado por Floriano, fuzila, sem qualquer julgamento, na Fortaleza da Ilha de Anhatomirim, 185 homens, alegando fazerem parte da Revolução Federalista.

6 Segundo Furlan (1989: 177), os açorianos estabeleceram-se no litoral central de Santa Catarina (de Laguna ao Rio Camboriú), procedendo das ilhas de São Miguel (328), Terceira (912), Graciosa (772), São Jorge (2822), Pico (1776), Faial (1207) e da Madeira (579).

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Chegando ao século XX, notam-se mudanças no panorama de Florianópolis: a iluminação a querosene ou a gás é substituída pela elétrica, os bondes puxados a burro começam a transitar pelas ruas, até serem substituídos por veículos motorizados, além das redes de esgoto e dos novos veículos de comunicação. Há, como em todo o país, um processo de urbanização e a ampliação da expectativa de vida da população com a melhoria nas condições de higiene e saúde. Em 1926, inaugura-se a ponte Hercílio Luz que liga a ilha ao continente, fazendo desaparecer o tráfego de lanchas e balsas pelo canal. A cidade assume condição de polo regional e reforça significativamente seu contato com o interior do estado. No fim da década de 1950, início da de 1960, há a implantação da UFSC, que passa a atrair grande número de professores e estudantes do interior e de outros estados. Há um grande deslocamento populacional facilitado pela abertura da BR101.⁷ No início dos anos 1970, instala-se a indústria turística, delineando novos ramos para a economia local e atraindo novos contingentes populacionais. A paisagem modifica-se com a destruição dos antigos casarios, a criação de modernos edifícios, a construção de duas novas pontes (Colombo Salles e Pedro Ivo Campos) e com o aterro da Baía Sul, que afasta a cidade do mar. No que se refere à colonização açoriana, o que se observa hoje é a preocupação em recuperar os valores da cultura trazida dos Açores, que, em função de alguns preconceitos, foi sendo esquecida. De acordo com Farias (2000), o contato dos descendentes ítalo-germânicos com a cultura açoriana gerou certos preconceitos, ainda hoje existentes na comunidade catarinense. Viam o homem do litoral como malandro e preguiçoso, pois os ítalo-germânicos costumavam trabalhar durante todo o período diurno, já que vinham de centros urbanos acostumados aos horários comerciais-industriais, o que não era o caso dos luso-açorianos “que estavam na venda por volta de 4 e 5 horas da tarde tomando uns tragos e contando casos” (p. 105). No entanto, esses pescadores possuíam um ritmo de trabalho diferente, pois às 4 horas da manhã já estavam colocando o barco no mar e voltavam para casa por volta das 3 horas da tarde. Os horários em que eram vistos era no seu período de folga. De fato, os ítalo-germânicos vieram para SC em meados do século XIX,⁸ período da Revolução Industrial, o que deve ter influenciado a sua mentalidade capitalista, e também por terem sido trazidos pelas companhias de colonização que cobravam pelas terras e transportes. Já os luso-açorianos não tinham essa 7 Vale ressaltar que a população brasileira de modo geral sofre intenso êxodo rural ao longo do século XX, de 70 % de população rural em 1940, passa a 44 % em 1970, chegando a 20 % em 1996. 8 De acordo com Margotti (2004), os alemães chegaram em SC a partir de 1829 e os italianos por volta de 1875.

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mentalidade capitalista, pelo contrário, sua economia era de subsistência, trabalhavam o necessário para sobreviverem, sem ambicionar acumular riquezas. Para reverter essa sensação de desprestígio cultural que os descendentes dos luso-açorianos passaram a ter, procurando se desfazer de todos os traços caracterizadores dessa cultura, inclusive os linguísticos, alguns movimentos importantes começaram a surgir. Em 1992, criou-se o Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC, objetivando “devolver ao povo litorâneo o conhecimento de suas raízes históricas e culturais, despertando seu orgulho pelos valores culturais que praticava” (Farias 2000: 108). Esse núcleo passou a oferecer cursos de cultura açoriana, além de divulgar atividades culturais regionais de origem açoriana na mídia. Construiu-se o monumento em homenagem à colonização açoriana em SC, criou-se também o troféu Açorianidade, a Semana da Cultura Açoriana, o Encontro sul-brasileiro de comunidades luso-açorianas. A parceria com o Governo Regional dos Açores também contribuiu com a revitalização da cultura açoriana, viabilizando a ida de pessoas engajadas no projeto para os Açores a fim de realizarem cursos. Também não poderíamos deixar de lembrar que a mídia passou a destacar Florianópolis como uma das capitais com melhor qualidade de vida, assim como a ascensão do tenista Gustavo Kuerten, que sempre fez questão de enfatizar sua naturalidade e, juntamente com a criação do troféu “Manezinho da Ilha”, fez com que o ilhéu se sentisse de alguma forma prestigiado com o status de manezinho.

4.2 Lisboa Lisboa, capital de Portugal a partir do século XIII, fica na margem norte do estuário do Tejo a 17 km do oceano Atlântico. Possui uma população de 550 mil pessoas, mas a Grande Lisboa, que engloba cidades vizinhas como Cascais e Sintra, possui quase 2 milhões de habitantes. De acordo com Matos (1994), há indícios de ocupações humanas no território de Lisboa em diferentes períodos: na época fenícia, na púnica e na romana republicana. É provável que no período da conquista romana, no século II, a população em Lisboa se restringisse ao povoado indígena do alto da colina e à zona ribeirinha onde havia uma população miscigenada de indígenas e de elementos mediterrânicos de várias origens. Marques (1994) aponta que, no decorrer dos séculos XIV e XV, a população da cidade aumentou, passando de vinte mil nos finais do século duzentos, e mais do dobro no limiar do século quinhentos. O autor ressalta ainda que Lisboa também era caracterizada pelo aspecto defensivo das cidades medievais. A cidade não se impunha pela monumentalidade das construções; na boa tradição portuguesa;

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segundo o autor, “os edifícios podiam ser ricos e decorados interiormente mas ostentavam pouca aparência no exterior” (Marques 1994: 93). É no século XVI, como aponta Moita, que Lisboa descobre o caminho marítimo para a Índia, sendo colocada nas rotas do comércio mundial, tendo como consequência a transformação da cidade em diversos aspectos, embora já tivesse importância, em função de ser capital do país desde o século XIII. Lisboa recupera a corte em 1640, momento em que, segundo Gaspar (1994), são construídos muitos palácios e conventos, perdidos, posteriormente, durante a Guerra dos 30 anos com a Espanha. No período entre 1706 e 1750, no reinado de D. João V, de acordo com Gaspar, Lisboa enriquece com o ouro do Brasil, passa por uma fase de monumentalidade e ostentação da nobreza e da igreja; no entanto, não se atualiza em termos de ciência, técnica e arte. No século XVIII, com a perda da corte passada ao Brasil, Lisboa entra numa fase de morosidade nos negócios. Conforme França (1994), todas as obras ficam paradas, já que o dinheiro era pouco para pagar despesas da guerra e da ocupação. Em 1851, com o fim da guerra civil de 30 anos, o país, de acordo com Silva (1994), passa por uma fase de desenvolvimento e civilização. Fernandes (1994) evidencia que, no início da década de 1930, há um arranque na expansão da cidade, relacionado com a instauração do governo autoritário nacional em 1926, em que se assiste à construção de obras públicas. Em termos de população, Fernandes aponta que, em 1930, se contavam 600.000 habitantes e, em 1940, 700.000. Um aumento considerável, já que em menos de um século, em 1864, se contavam 197 mil pessoas na cidade. Já em 1950 a população se aproxima de um milhão de habitantes. Depois da segunda guerra, Lisboa para de crescer, conforme aponta Gaspar; há evidente declínio demográfico a partir dos anos 1960 com visível expansão nos subúrbios. É nesta época também que, segundo Custódio (1994), a sociedade se esmera em resolver o problema da energia através das vantagens da eletricidade e, ao mesmo tempo, descobre o petróleo. Surgem novas condições sociais que promovem cada vez mais o bem-estar da população e o consumo, tanto de bens alimentares, como de equipamentos domésticos e do automóvel. Gaspar salienta que, nos finais do século XX, se observa a beleza, grandiosidade e excelência funcional de Lisboa, embora ainda se perceba, em relação ao processo de urbanização, muita carência e erros cometidos. Para Fernandes, há, na atualidade, um tempo de recuperação da capitalidade perdida e uma tentativa de reorganização funcional, espacial e urbanístico-arquitetônica da cidade. Por fim, observamos na longa trajetória da história de Lisboa, por um lado, períodos áureos de muita riqueza e poder, períodos de crescimento econômico e social, e, por outro, períodos de estagnação e recuperação tanto do poder, quanto do crescimento.

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Hoje em dia, o que se observa é que, em termos europeus, embora Portugal esteja inserido na comunidade econômica europeia, não faz parte do bloco dos países mais ricos, nem mais poderosos, mas, de maneira geral, há, na cidade de Lisboa, especificamente, boa qualidade de vida, já que a população conta com boa infraestrutura e acesso a bens e serviços que também são encontrados no restante da Europa.

5 Perfil das localidades Como mencionado anteriormente, para caracterizar a Amostra Monguilhott estabelecemos em cada uma das cidades de Florianópolis e de Lisboa quatro localidades com perfis sociais bastante distintos. Em Florianópolis, as localidades escolhidas foram Costa da Lagoa,⁹ Ribeirão da Ilha, Ingleses e Região Central. Em Lisboa, as localidades foram Cascais, Cintra, Belém e Região Central. A seguir, indicamos alguns aspectos caracterizadores de cada uma dessas localidades, com foco na dimensão diatópica e na dimensão diazonal.

5.1 Dimensão diatópica Em Florianópolis, a localidade da Costa da Lagoa é uma região considerada de perfil menos urbano caracterizada por apresentar uma população extremamente integrada entre si. Ao longo de toda a extensão do bairro, todos se conhecem e sabem a casa em que os vizinhos moram e quais as atividades que realizam. Os moradores participam das atividades do bairro, como discussões realizadas no conselho comunitário e festas promovidas na localidade. O bairro possui apenas uma pré-escola municipal. A maioria dos moradores frequenta escolas de ensino fundamental na Lagoa da Conceição, que fica a meia hora de barco e, quando vão para o ensino médio, muitos optam por escolas no centro da cidade. Alguns moradores ainda vivem da produção agrícola e pesqueira. Muitos têm barco e vivem da atividade de transportar passageiros, já que as pessoas que visitam a localidade, assim como os moradores, precisam do transporte lacustre, a não ser aqueles que se arriscam a chegar à localidade através de trilhas de cerca de 6 km de extensão. 9 Algumas das informações foram retiradas do site http://floripa.geoguia.com.br, consultado em 23/ 11/2006. Outras informações foram retiradas do site http://pt.wikipedia.org, consultado em 03/11/ 2008 e outras ainda das entrevistas realizadas com os informantes para a coleta dos dados da pesquisa, bem como das impressões da pesquisadora ao longo de sua vivência nas localidades durante o trabalho de campo.

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Alguns moradores são donos de restaurantes ou trabalham como empregados nesses restaurantes. Na localidade o comércio é bastante restrito (sorveteria, mini mercado, loja de roupas), não há hotéis, nem pousadas. Os moradores valorizam muito a tranquilidade que possuem sem qualquer indício de violência no lugar e parecem todos muito satisfeitos com a vida extremamente pacata que levam. Ribeirão da Ilha é uma outra localidade de Florianópolis considerada menos urbana. Desenvolve-se na localidade cultivo de ostras e mexilhões, tendo inclusive uma cooperativa – cooperilha. A produção é vendida para os restaurantes da localidade e para fora do estado também. Há muitos pescadores no local, assim como pessoas que vivem da lida com o gado. O cultivo dos moluscos trouxe visibilidade recente à localidade, que se destaca pelos vários restaurantes frequentados durante todo o ano por turistas e moradores da cidade. A localidade é uma praia; no entanto, por se situar dentro da baía, não apresenta apelo turístico, já que não possui nenhuma extensão de areia e o mar não parece muito convidativo para o banho. O bairro possui uma associação de moradores bastante atuante, que promove atividades e festas para os moradores, além de reivindicar melhorias para o bairro. O carnaval é uma festa marcante na localidade, assim como a festa do Divino Espírito Santo. A localidade possui uma escola de ensino fundamental e médio. A vida na localidade ainda é pacata, sem muita violência, com pouco comércio e, por isso, também com poucas possibilidades de emprego e renda para os moradores, que, na sua maioria, se deslocam para outras localidades para trabalhar. Ingleses é uma localidade mais urbana. Já foi centro de pesca, mas hoje vive principalmente do comércio e do turismo. O bairro apresenta crescente desenvolvimento demográfico em função, principalmente, do turismo, que inicialmente era feito de forma “amadora” com aluguel de casas dos próprios moradores para veranistas na temporada de dezembro a março. No entanto, a localidade virou ponto de referência na década de 1980 para argentinos e gaúchos que passaram a vir todos os anos para aproveitar os meses de verão. Hoje em dia, muitos moradores se mantêm do turismo com comércio de todo tipo, trabalhando em hotéis, lojas, bares, restaurantes e supermercados. Existem escolas públicas municipais e estaduais, assim como privadas, no bairro. Em função da alta densidade demográfica e da alta arrecadação que há na localidade com a atividade comercial, há, inclusive, um movimento de emancipação do bairro. Uma outra localidade urbana escolhida foi a Região Central de Florianópolis definida, neste estudo, como as proximidades da UFSC. A atividade comercial na região é bastante intensa com shoppings, restaurantes e comércio de modo geral. Há muitas escolas públicas e particulares, além de duas universidades públicas: a federal (referida anteriormente) e a estadual. Muitos moradores do bairro não precisam se deslocar para trabalhar.

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Em Lisboa, Cascais é uma localidade pesqueira, podendo ser considerada menos urbana. É caracterizada por ser um balneário de verão há mais de um século. Existem, ao longo de toda a orla, condomínios fechados, que servem de casas de veraneio dos ricos lisboetas, desde o século XIX. Para os nativos e moradores da região, a pesca ainda se constitui como atividade importante. Embora o município acredite que tenha incentivado a atividade na região com a criação de um novo cais e com a Doca Pesca, os pescadores têm reclamado muito, pois só podem vender o pescado para a prefeitura, ao preço estipulado, não tendo mais liberdade para o comércio. Aqueles que não vivem da pesca vivem das atividades ligadas ao turismo, como restaurantes, hotéis e comércio de modo geral. Há muitas pessoas que moram em Cascais, mas que trabalham em Lisboa e outras que fazem o caminho inverso, moram em Lisboa e trabalham em Cascais. Há escolas na região e serviços de modo geral, o que faz a comunidade ser bastante independente de Lisboa. Sintra é uma outra localidade de perfil menos urbano. Considerada refúgio para os moradores da região central de Lisboa, principalmente, no verão, já que possui bosques, fontes de água fresca, bem como um microclima que faz com que não haja calor intenso no lugar. Recebe turistas durante todo o ano por ser um lugar muito agradável e apresentar construções famosas no país, como o Palácio Nacional de Sintra, o Palácio da Pena, a Quinta da Regaleira. Ainda há quem viva da lida com o gado e com a agricultura nas regiões mais rurais da localidade, mas a maioria das pessoas vive do comércio da região, como lojas de produtos de artesanato, restaurantes, lanchonetes, hotéis e atendendo nos museus e palácios. Há escolas e médicos na localidade, mas a população reivindica um hospital, além de outros serviços básicos que são oferecidos na casa do cidadão, que não existem na região para que não necessite se deslocar para Lisboa. Belém foi escolhida como uma localidade mais urbana por sua história e sua localização. Situa-se próxima à foz do Tejo, que era de onde partiam as caravelas para as viagens dos descobrimentos. Com Dom Manoel I no poder em 1495, Belém ganha monumentos que são símbolos da localidade: o Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém. A localidade passou por um período de industrialização (entre 1819 e 1821) com unidades fabris movidas a vapor; no entanto, com o passar do tempo, as fábricas, como as de curtumes, de cordoaria, de garrafas de vidro preto, de conservas e a Gás Belém, foram fechando e Belém passou de densamente industrializado a zona de lazer e cultura. O bairro tem sido cada vez mais valorizado e, por isso, as casas têm ficado cada vez mais caras, o que tem obrigado muitas pessoas nativas da localidade a irem procurar casas em locais mais afastados. Outra localidade urbana escolhida foi a região Central de Lisboa, delimitada para este estudo a zona comercial da cidade entre a praça Marquês de Pombal, a

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praça Saldanha e a Universidade de Lisboa. Há muitos centros comerciais na região, bancos, escolas, hotéis, restaurantes e serviços de modo geral. É comum o uso de metrô e ônibus por boa parte da população, já que esses meios de transporte possuem boa estrutura.

5.2 Dimensão diazonal Para caracterizar urbano/não urbano utilizamos o contínuo de urbanização traçado por Bortoni-Ricardo (2004). Segundo a autora, “em um dos pólos do contínuo, estão as variedades rurais usadas pelas comunidades geograficamente mais isoladas. No pólo oposto, estão as variedades urbanas que receberam a maior influência dos processos de padronização da língua […]” (p. 52). Como na Amostra Monguilhott não temos comunidades totalmente isoladas, preferimos denominar, ao invés de comunidades rurais, comunidades não urbanas, as quais acreditamos estarem, no contínuo sugerido pela autora, em contraste com as comunidades rurais, mais próximas das comunidades urbanas. Estudos como os de Bortoni-Ricardo (2004) apontam que as localidades consideradas mais urbanas apresentam alta mobilidade da população, enquanto as localidades não urbanas apresentam menor mobilidade, vivendo a população mais isolada e menos sujeita à influência externa e, por isso, consideradas mais conservadoras. Como os padrões dos indivíduos das zonas urbanas apresentam mais prestígio social, por serem considerados mais avançados, modernos e desenvolvidos, esperamos que os informantes das localidades classificadas como urbanas apresentem maior probabilidade de uso de variantes mais prestigiadas, enquanto os informantes das localidades classificadas como não urbanas, apresentem menor probabilidade de uso de marcas de prestígio.

6 Perfil dos informantes A Amostra Monguilhott foi organizada de modo a captar também o perfil dos informantes de cada uma das localidades controladas. Esse perfil leva em conta variáveis por sua natureza complexas como idade/escolaridade e redes sociais.

6.1 Idade/escolaridade Conforme Quadro 1, estabelecemos as seguintes faixas etárias e níveis de escolaridade:

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‒ ‒ ‒ ‒

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04 falantes com idade entre 15 e 36 anos com ensino fundamental (da 4ª. série completa a 9ª. série completa) – jovem/ensino fundamental; 04 falantes com idade entre 22 e 33 anos com ensino superior concluído¹⁰ – jovem/ensino superior; 04 falantes com idade entre 48 e 74 anos com ensino fundamental (de 1ª. a 4ª. série incompleta a 7ª. série completa) – velho/ensino fundamental; 04 falantes com idade entre 45 e 76 anos com ensino superior concluído¹¹ – velho/ensino superior.

Esperamos que a variável idade/escolaridade permita investigar a probabilidade de os falantes mais jovens e mais velhos utilizarem variantes mais conversadoras e prestigiosas. No caso da variável anos de escolarização, acreditamos que existe uma correlação entre formas linguísticas consideradas padrão (ensinadas na escola e reforçadas em outros ambientes – como TV, jornais) e maior escolaridade. Quando combinamos idade e escolaridade estamos permitindo verificar a força desses fatores com respeito às formas de prestígio no indivíduo e na comunidade. O controle desses fatores também pode ser correlacionado com a variável diazonalidade. Segundo Lucchesi (2006), em relação à zona não urbana, as marcas de prestígio aumentam conforme a idade do falante diminui. Já em relação à zona urbana estudos, mostram a queda de marcas de prestígio na fala dos mais jovens. Essa correlação, portanto, a depender do fenômeno investigado é muito importante.

6.2 Redes sociais A variável redes sociais¹² foi estabelecida com o intuito de reconhecer as características mais específicas dos indivíduos e da comunidade, através de questões etnográficas e de práticas sócio-econômico-culturais.

10 Apenas uma informante do PE não havia concluído o curso superior, faltava um ano para a conclusão. 11 Os informantes do PB de 45 a 76 anos apresentam ensino superior concluído, no entanto, dos quatro informantes do PE apenas um apresenta o ensino superior concluído, os demais têm até o 12º ano. Como tivemos dificuldade em encontrar pessoas desta faixa etária com ensino superior concluído, resolvemos considerar o ensino médio destes informantes, já que contrastam com os informantes com ensino fundamental, o que era nosso objetivo. 12 A variável redes sociais não foi considerada na estratificação da amostra, pois capta as relações entre os informantes que a compõe.

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As redes sociais são definidas por Milroy (2003) como os relacionamentos criados pelas pessoas para suprir as dificuldades da vida cotidiana. Tais redes podem variar de um indivíduo para outro e serem constituídas por ligações de diferentes tipos e intensidades. Chambers (1995) indica que os elementos que enriquecem as redes são basicamente os mesmos em todo o lugar, sejam eles, o grau de parentesco, a ocupação (ambiente de trabalho) e a amizade. Milroy (2003) distingue, ainda, redes de primeira e de segunda ordem. Constituem as redes de primeira ordem a família e os amigos; e as de segunda são compostas por pessoas com as quais o indivíduo passa boa parte do tempo, no entanto, não confia a elas segredos ou conselhos. Ainda de acordo com Milroy (2003), estudos feitos por Labov (1963) e Cheshire (1982) mostraram que quanto mais integrado o sujeito está a uma rede, mais frequentemente tende a usar variantes locais/regionais. Para analisar as redes em termos da densidade e da plexidade das relações entre os informantes e em termos do localismo e da mobilidade desses informantes, foram coletadas informações através das fichas sociais dos informantes e de questões específicas abordadas ao longo das entrevistas, relacionadas ao sentimento de pertencimento dos informantes em relação à localidade. Em relação à densidade e à plexidade, temos como hipótese de que os informantes da zona não urbana fazem parte de redes sociais mais densas e multiplexas, o que possibilita o uso de padrões valorizados localmente, menos formais, diferentemente dos informantes que fazem parte da zona urbana que tendem a apresentar redes menos densas e uniplexas, por isso, tendem ao uso de padrões mais valorizados socialmente. No que se refere ao localismo e à mobilidade, acreditamos que os indivíduos que se identifiquem com a sua localidade apresentem tendência à valorização da cultura local, bem como dos usos linguísticos locais, diferentemente dos indivíduos que não se identifiquem com a localidade da qual fazem parte, que tendem a adotar padrões linguísticos externos. Quanto à mobilidade, esperamos que os indivíduos que apresentem alta mobilidade adotem padrões linguísticos mais valorizados socialmente para que possam ser aceitos nas diversas instâncias que percorrem, diferentemente daqueles indivíduos que apresentem pouca mobilidade, que devem tender ao uso dos padrões valorizados localmente. As características ligadas aos subfatores das redes sociais como densidade plexidade, localismo e mobilidade estão em grande medida ligadas à diazonalidade, podendo ser correlacionadas.

Capítulo 10

263

7 Análise comparativa da variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural entre PB e PE na Amostra Monguilhott Como observamos no detalhamento da caracterização das regiões em que foi constituída a Amostra Monguilhott, há um distanciamento bastante evidente entre as localidades investigadas em termos históricos, sociais, econômicos, o que se reflete na língua em uso pelos falantes. Nesta seção, veremos alguns importantes resultados estatísticos de Monguilhott (2009) sobre os condicionadores externos¹³ da marcação da concordância verbal de terceira pessoa do plural nas duas variedades do português. Os resultados refletidos na análise estatística¹⁴ e comparativa para as duas variedades do português apontam o PE como mais conservador na marcação da concordância verbal, apresentando frequências maiores de marcas explícitas de plural nos verbos (92 %), em relação às marcas encontradas no PB (81 %).¹⁵ Acreditamos que, em linhas gerais, por ser a comunidade investigada no PE menos heterogênea em sua constituição histórica e também mais igualitária em termos sociais e econômicos, encontramos menos usos variáveis no que se refere ao fenômeno em análise, diferentemente da comunidade investigada no PB que teve muito mais influências de diferentes povos na sua constituição, além de apresentar características sociais e econômicas muito distintas entre a população, o que se reflete em uma maior variação nas escolhas linguísticas. Após categorizados os dados, o programa estatístico indicou como variáveis externas relevantes para a marcação da concordância verbal de terceira pessoa do plural a variável complexa idade/escolaridade, escolhida para as rodadas das duas variedades do português (PB e PE), e a variável diatopia, escolhida apenas para a rodada do PB. Os resultados a seguir sinalizam essa seleção. As outras variáveis externas controladas por Monguilhott (2009), como diazonalidade e redes sociais,

13 No trabalho de Monguilhott (2009) foram controladas também variáveis internas. Essas variáveis não foram retomadas, pois não fazem parte da proposta metodológica para o estudo comparativo de variedades brasileiras e europeias do português. Fica a cargo do pesquisador estabelecer variáveis internas relacionadas com o seu objeto de estudo. 14 Foi usado por Monguilhott (2009) o pacote estatístico Goldvarb 2001 para a análise dos dados. 15 Nossos resultados se aproximam daqueles encontrados em Vieira e Brandão (2014). Embora a diferença entre 92 % e 81 % seja de apenas 11 %, o primeiro percentual se situa no que Labov (2003) denomina de regra semicategórica, enquanto o segundo se situa no que o autor define como regra variável, tornando, portanto, essa diferença significativa.

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não foram selecionadas, mas serão também discutidas nesta seção com base em percentuais. As tabelas 1 e 2 apresentam os resultados do condicionamento da variável complexa idade/escolaridade na marcação da concordância verbal, comparativamente. Tabela 1: Frequência e probabilidade de CV no PB, segundo a variável idade/escolaridade. Idade/escolaridade

Apl/Total

%

PR

Jovem/ensino superior

225/252

89 %

.74

Velho/ensino superior

172/195

88 %

.52

Jovem/ensino fundamental

115/158

72 %

.32

Velho/ensino fundamental

128/189

67 %

.28

Total

640/794

80 %

Fonte: Monguilhott (2009: 132).

Tabela 2: Frequência e probabilidade de CV no PE, segundo a variável idade/escolaridade. Idade/escolaridade

Apl/Total

%

P.R.

Jovem/ensino superior

204/216

94 %

.61

Velho/ensino superior

158/170

92 %

.59

Jovem/ensino fundamental

171/191

89 %

.30

Velho/ensino fundamental

209/230

90 %

.49

Total

742/807

91 %

Fonte: Monguilhott (2009: 156).

Quando analisamos os fatores da variável combinada isoladamente, os resultados das duas variedades apontam que os informantes mais escolarizados, independentemente da idade, preservam as marcas de concordância verbal, correspondendo, desta forma, aos resultados de outros estudos que controlaram a escolaridade em amostras do PB (Scherre e Naro 1997, Monguilhott 2001).

Capítulo 10

265

Quando esses resultados são combinados com a variável diazonalidade, verificamos que os informantes mais jovens das zonas não urbanas tenderam a menor uso da marcação da concordância em comparação com os informantes da zona urbana. Já os informantes com nível superior da zona não urbana, tanto os mais jovens quanto os mais velhos, tendem a menor uso de marcação em comparação com os informantes da zona urbana nas duas variedades. Os gráficos 1 e 2, a seguir, ilustram muito bem essa combinação de fatores.

Gráfico 1: Frequência de CV no PB, segundo o cruzamento entre as variáveis idade/escolaridade e diazonalidade.

Gráfico 2: Frequência de CV no PE, segundo o cruzamento entre as variáveis idade/escolaridade e diazonalidade.

Fonte: Monguilhott (2009: 133–156).

A variável diatopia foi selecionada pelo programa estatístico apenas na variedade brasileira. O que podemos observar nos resultados da Tabela 3 é que a Região Central de Florianópolis foi a que mais preservou as marcas de concordância, seguida de Ribeirão da Ilha, Ingleses e Costa da Lagoa. Tabela 3: Frequência e probabilidade de CV no PB, segundo a variável diatopia. Diatopia

Apl/Total

%

PR

Ribeirão da Ilha Costa da Lagoa Ingleses Região Central

155/188 179/243 134/172 172/191

82 % 73 % 77 % 90 %

.48 .32 .33 .83

Total

640/794

80 %

Fonte: Monguilhott (2009: 142).

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Tabela 4: Frequência de CV no PE, segundo a variável diatopia. Diatopia

Apl/Total

%

Sintra Cascais Belém Região Central

164/180 205/228 174/189 199/210

91 % 89 % 92 % 94 %

Total

742/807

91 %

Fonte: Monguilhott (2009: 165).

O que esperávamos para este grupo de fatores era que as localidades que fazem parte da zona urbana, Região Central e Ingleses, preservassem mais a marcação da concordância, por conta da pressão social que os falantes sofrem em comunidades mais urbanizadas. No caso da Região Central foi o que aconteceu, mas não nos Ingleses. O que parece explicar os resultados é que, embora o bairro dos Ingleses tenha se urbanizado nos últimos tempos com o crescente comércio em função do turismo, os nativos continuam convivendo muito mais entre eles, preservando, desta forma, as marcas menos urbanas. Em relação ao Ribeirão da Ilha e à Costa da Lagoa, nossas expectativas se confirmaram, já que os bairros considerados não urbanos, e que, portanto, sofrem menos pressão social, preservaram menos as marcas de concordância do que a Região Central. Considerando os dois bairros, os resultados confirmam o que de fato também era esperado. Embora sempre que vá se falar de interior da Ilha de Santa Catarina, em bairro típico da cidade, em “falar manezinho”, se faça referência primeiramente ao Ribeirão da Ilha, a Costa da Lagoa é caracterizadamente menos urbana do que o Ribeirão, em função principalmente do seu isolamento, só se chega lá de barco, as pessoas todas se conhecem, o que já não ocorre no Ribeirão que tem estradas e muitas pessoas de fora o ano inteiro circulando, em função principalmente da maricultura. Embora na variedade portuguesa a diatopia não tenha sido selecionada como estatisticamente relevante, vale destacar que os informantes das localidades mais urbanas, Região Central e Belém, foram os que mais preservaram as marcas de concordância. Embora essas duas localidades apresentem características um pouco distintas, Belém é um dos centros turísticos mais importantes de Lisboa, o que faz com que tenha grande circulação de turistas. Em função da valorização do local, a população teve que ir morar em bairros vizinhos, pois as casas ficaram muito caras e o comércio do bairro teve que ir se adaptando aos novos tempos; o comércio em geral, com lojas de móveis, roupas, sapataria etc, deu lugar a lojinhas de artesanato e souvenirs, restaurantes e bancos para servir ao turista.

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Em relação aos pontos não urbanos, Sintra e Cascais, os resultados também parecem evidenciar as peculiaridades de cada localidade. Sintra, embora seja uma vila rural, pacata, que vive basicamente do turismo, mas que ainda apresenta atividade agrícola, distingue-se de Cascais, que é uma vila basicamente pesqueira. Com relação à variável complexa redes sociais, analisamos inicialmente os dados em termos da densidade e da plexidade. Nestes termos, não há como quantificálas; por isso, apresentamos os resultados em termos qualitativos. Em seguida, apresentamos os resultados referentes ao localismo e à mobilidade. Para a análise da densidade e da plexidade, levamos em conta as relações entre os informantes caracterizadas como de primeiro, segundo e terceiro graus, baseadas no quadro a seguir, retirado de Batistti et al. (2007: 19): Quadro 2: Critérios para estabelecer os graus de relação em rede. 1. 1A 1B 1C 2. 2A 2B 2C 2D 3. 3A 3B 3C 3D

Primeiro Grau ___________ Marido/mulher Pais/filhos Colegas de trabalho com interação Segundo Grau——–-—––Tios/sobrinhos/primos/cunhados Amigos íntimos Vizinho íntimo Colega de associação com interação Terceiro Grau ……………………. Amigo não-íntimo Vizinho não íntimo Colega de trabalho sem interação¹⁶ Colega de associação sem interação

Podemos observar, através das figuras a seguir, que as redes que conseguimos captar nas relações entre os informantes entrevistados das localidades do Ribeirão da Ilha e da Costa da Lagoa, consideradas no nosso trabalho como não urbanas, são mais densas (duas ligações de primeiro grau, seis ligações de segundo grau e cinco de terceiro grau), sendo três delas multiplexas. Nas localidades consideradas urbanas, Ingleses e Região Central, as redes captadas nas relações entre os informantes são pouco densas e todas uniplexas (uma ligação de primeiro grau e três de terceiro).

16 Aqui inserimos outras duas categorias que apareceram nas relações entre os informantes da nossa Amostra: professor/aluno na mesma escola, funcionário/aluno na mesma escola.

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Figura 1–4: 1. Redes sociais no Ribeirão da Ilha; 2. Redes sociais na Costa da Lagoa; 3. Redes sociais na Região Central; 4. Redes sociais nos Ingleses. Fonte: Monguilhott (2009: 136).

Confirmamos nossas expectativas, já que os informantes da zona menos urbana fazem parte de redes mais densas e multiplexas; por isso, tendem ao uso de variantes locais, no caso do nosso estudo, a não marcação da concordância. Já os informantes da zona urbana tendem a apresentar redes menos densas e uniplexas e, por isso, não exercem interinfluências entre si, mas usam padrões mais valorizados socialmente, no caso, a marcação da concordância, em função de pertencerem à zona urbana. Quando analisamos essas redes na variedade portuguesa observamos que as localidades de Sintra e Cascais, menos urbanas, apresentam, em comparação com Belém e Região Central, as redes mais densas (uma ligação de segundo grau, três ligações de terceiro grau). Já nas localidades consideradas urbanas, temos relações menos densas entre os informantes, em Belém temos três ligações de terceiro grau e na Região Central não há relação nenhuma entre os informantes. Vale ressaltar que todas as relações existentes entre os informantes da Amostra são uniplexas.

Capítulo 10

269

Figura 5–8: 5. Redes sociais em Sintra; 6. Redes sociais em Cascais; 7. Redes sociais na região Central; 8. Redes sociais em Belém. Fonte: Monguilhott (2009: 158).

A partir desta análise, observamos que, de maneira geral, há poucas relações entre os informantes da variedade portuguesa, mas, ainda assim, os informantes das localidades menos urbanas constituem redes mais densas comparando-se aos informantes das localidades urbanas, o que confirma nossas expectativas. De um lado, temos os informantes de localidades menos urbanas fazendo parte de redes mais densas e assim tendendo ao uso de variantes locais, no caso, a não marcação da concordância; e, de outro lado, os informantes da zona urbana tendendo a apresentar redes menos densas favorecendo o uso de padrões mais valorizados socialmente, no caso, a marcação da concordância, em função de pertencerem à zona urbana. Com respeito aos subfatores localismo e mobilidade, para que pudéssemos categorizar os dados e submetê-los às rodadas estatísticas, tomamos as seguintes critérios. Em relação ao localismo, qualificamos se os indivíduos que fazem parte da Amostra eram bem integrados ao bairro em que moravam (se participavam das atividades do bairro, se gostavam de morar no bairro), mais ou menos integrados (se participavam das atividades do bairro, mas gostariam de residir em outro bairro, ou se gostavam de residir no bairro, mas não participavam das atividades que o bairro oferecia), e se pouco integrados (não gostavam de morar no bairro, nem participavam de atividades no bairro). No que se refere à mobilidade, controlamos também três fatores, se o indivíduo tinha pouca mobilidade (se trabalhava ou estudava no bairro, se fazia compras no bairro), se tinha média mobilidade (se trabalhava ou estudava no bairro, mas fazia compras fora do bairro) ou se tinha muita mobilidade (trabalhava ou estudava fora do bairro).

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Primeiramente, observamos nas tabelas 5 e 6 os resultados a respeito do localismo nas duas variedades. Esperávamos que os informantes categorizados como bem integrados à sua localidade apresentassem tendência à valorização da cultura local, bem como dos usos linguísticos locais, diferentemente dos indivíduos categorizados como pouco integrados que, não se identificando com a localidade da qual fazem parte, tenderiam a adotar padrões linguísticos externos. Tabela 5: Frequência de CV no PB, segundo a variável redes sociais (localismo). Redes sociais (localismo)

Apl/Total

%

Mais ou menos integrado

230/269

85 %

Bem integrado

410/525

78 %

Total

640/794

80 %

Fonte: Monguilhott (2009: 139).

Tabela 6: Frequência de CV no PE, segundo a variável redes sociais (localismo). Redes sociais (localismo)

Apl/Total

%

Bem integrado

263/285

92 %

Mais ou menos integrado

456/496

91 %

Pouco integrado

23/26

88 %

Total

742/807

91 %

Fonte: Monguilhott (2009: 159).

Os resultados da Tabela 5 indicam que informantes da variedade brasileira que se mostram bem integrados ao bairro em que residem são aqueles que marcam menos a concordância, já os informantes que se mostram mais ou menos integrados ao bairro em que residem marcam um pouco mais a concordância. Não houve nesses dados informante que tenha sido definido como pouco integrado ao bairro em que reside. Quando observamos os resultados da Tabela 6 sobre a variedade portuguesa, notamos que os informantes que se mostraram mais bem integrados ao bairro em que residem são aqueles que marcam mais concordância, já os informantes que se mostraram mais ou menos integrados ao bairro em que residem marcam um

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pouco menos a concordância, e aqueles que se mostraram pouco integrados são os que menos fazem marcação da concordância. Ao analisar o subfator mobilidade, nas duas variedades, percebemos uma diferença mais acentuada entre os índices da variedade brasileira, conforme mostra a Tabela 7. Os informantes que apresentaram média mobilidade foram os que mostraram o maior percentual de marcação da concordância; em seguida os informantes que apresentaram pouca mobilidade; e, por último, os que apresentaram muita mobilidade. Tabela 7: Frequência de CV no PB, segundo a variável redes sociais (mobilidade). Redes sociais (mobilidade)

Apl/Total

%

Pouca mobilidade

444/555

80 %

Média mobilidade

127/141

90 %

Muita mobilidade

69/98

70 %

Total

640/794

80 %

Fonte: Monguilhott (2009: 141).

Tabela 8: Frequência de CV no PE, segundo a variável redes sociais (mobilidade). Redes sociais (mobilidade)

Apl/Total

%

Pouca mobilidade

301/334

90 %

Média mobilidade

290/314

92 %

Muita mobilidade

151/159

94 %

Total

742/807

91 %

Fonte: Monguilhott (2009: 159).

No caso da variedade portuguesa, os resultados percentuais ficaram mais próximos, com uma diferença apenas de 4 % entre os três fatores. Os informantes que apresentaram muita mobilidade foram os que mostraram o maior percentual de marcação da concordância, em relação aos informantes com média mobilidade e pouca mobilidade. Esperávamos que os indivíduos que apresentassem pouca mobilidade tendessem ao uso dos padrões valorizados localmente, diferentemente dos indivíduos que apresentassem alta mobilidade, que tenderiam a adotar padrões linguísticos

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de grupos externos de referência. Essa hipótese com base nos resultados das tabelas 7 e 8 foi parcialmente atestada.

8 Considerações finais Como podemos observar neste capítulo, a proposta metodológica para a constituição da Amostra Monguilhott foi construída visando à comparabilidade das variedades brasileiras e europeias do Português. Todos os procedimentos de coleta foram seguidos criteriosamente nas duas cidades, Florianópolis e Lisboa. O critério de seleção das localidades levou em conta aspectos relacionados à diatopia e à diazonalidade e o critério de seleção dos informantes priorizou variáveis complexas como idade/escolaridade e redes sociais. Mesmo com uma amostra reduzida de trinta e dois informantes, o reflexo das particularidades dessas duas regiões onde se fala Português se evidencia nos resultados a respeito da análise do fenômeno da variação da concordância verbal de terceira pessoa do plural. Verificamos que as características sociais e geográficas que favorecem a marcação da concordância verbal de terceira pessoa, na variedade brasileira, são: jovens com ensino superior, pertencentes a redes sociais mais ou menos integradas e com média mobilidade, moradores/nativos da Região Central, pertencentes à zona urbana. Na variedade europeia, mostraram maior favorecimento da marcação da concordância verbal de terceira pessoa do plural: jovens com ensino superior, pertencentes a redes sociais bem integradas e com muita mobilidade, moradores/nativos da Região Central, pertencentes à zona urbana. Nota-se, portanto, que há mais similaridades do que diferenças entre as caraterísticas dos indivíduos que usaram mais marcação de concordância no PB e no PE. O compartilhamento de nossas experiências com a constituição da Amostra Monguilhott visa colaborar para a aprimoramento da pesquisa sociolinguística e para facilitar a realização de outros estudos contrastivos entre as variedades brasileiras e europeias do Português.

9 Referências Battisti, Elisa, Adalberto Ayara Dornelles Filho, João Ignácio Pires Lucas & Nínive Magdiel Peter Bovo. 2007. Palatalização das oclusivas alveolares e a rede social dos informantes. Revista Virtual de Estudos da Linguagem 5. 1–29. Bortoni-Ricardo, Stella Maris. 2004. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial.

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273

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Aline Bazenga

Capítulo 11 O Projeto Concordância (ALFAL 21 / COMPARAPORT) e a investigação sobre o Português falado na Ilha da Madeira (2010– 2021): uma abordagem sociolinguística 1 Introdução Este capítulo tem por objetivo mostrar a importância do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias (doravante, Projeto Concordância) para o aprofundamento do conhecimento sociolinguístico da componente morfossintática do PE nas suas variedades faladas no arquipélago da Madeira, em correlação com outras variedades geográficas e sociais do português, tais como as do PB. A colaboração com este projeto, a partir de 2010, conduziu à coleta de dados de fala no Funchal, da minha responsabilidade, o que se revestiu de grande importância, propiciando vários estudos. Até então, o arquipélago da Madeira era uma área linguística pouco estudada, como sublinhado por Nunes (1965: 2), sendo esta lacuna mais acentuada na área da sintaxe, como observado, cerca de cinquenta anos depois, por Bazenga (2014c: 382); para colmatar essa falha, a análise de fenómenos de natureza sintática é a vertente que mais recentemente tem vindo a ser desenvolvida, como em Bazenga e Andrade (2017). O interesse pelo estudo das variedades madeirenses¹ do PE acentua-se no final do século XX, a partir dos anos 90. Deve-se, em grande medida, à criação da Universidade da Madeira e aos seus docentes da área de Letras, cujos projetos e trabalhos de investigação vão incidir inicialmente e maioritariamente sobre questões lexicais e fonéticas no âmbito da geografia linguística. Para mostrar a relevância significativa deste projeto, descreve-se um percurso de investigação que, desde 2010, tem contado com a participação dos estudantes de

1 A designação no plural dá conta da grande diversidade linguística interna, como observado por Lindley Cintra (1990) na sua apresentação dos dialetos madeirenses a partir dos trabalhos realizados pelos seus estudantes; esta característica é também constatada num trabalho mais recente (Brisos, Gillier e Saramago 2016) a partir da análise dialetométrica de dados lexicais. Aline Bazenga–CLUL–Universidade da Madeira https://doi.org/10.1515/9783110670257-013

276

Aline Bazenga

vários cursos da área de Letras da Universidade da Madeira. A apresentação de mais de uma década de colaboração e de investigação (2010–2021) está estruturada em duas partes. Na primeira parte, serão abordadas questões relacionadas com a construção de uma coleção de dados de fala do PE insular, primeiro, através da amostra Funchal, integrada no Corpus Concordância, atualmente disponível na plataforma CORPORAPORT, e, posteriormente, através do Corpus Madeira, com sede na Universidade da Madeira, a partir do qual foi constituído o Corpus Sociolinguístico do Funchal (CSF). Uma amostra deste corpus foi publicada na plataforma criada para o efeito, no âmbito do Projeto do Arquivo do Português Falado na Madeira (ARPOFAMA), do CIERL-UMa (Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais da Universidade da Madeira). Os materiais sociolinguísticos de falantes madeirenses distribuídos por estas duas plataformas obedecem, apesar desta dispersão, ao mesmo protocolo metodológico, desenvolvido para o Projeto Concordância. A segunda parte apresenta uma síntese da produção científica realizada a partir destas coleções de dados orais madeirenses, geralmente em correlação com amostras de outras variedades do português existentes no atual CORPORAPORT. Para esta síntese, foram selecionados trabalhos de investigação no domínio da variação morfossintática, todos de natureza sociolinguística quantitativa. De forma complementar, será também referida a produção científica que tem por objeto a análise de perceções e avaliações sociolinguísticas de falantes madeirenses, cuja metodologia privilegia a recolha de dados através da aplicação de questionários. Por fim, uma atenção especial será dada a um outro aspeto, de natureza metodológica, o da perspetiva comparativa de grande parte dos trabalhos, presente desde o início do Projeto Concordância, em 2008, e que se tem mantido desde então, com o evoluir para outros projetos deles decorrentes, como os já mencionados no título deste trabalho.

2 As coleções de dados de falantes madeirenses dos Projetos Concordância (ALFAL 21 / COMPARAPORT) e ARPOFAMA em corpora do PE A singularidade do Projeto Concordância reside, em primeiro lugar, no modo como contribui para os corpora do português falado na área geográfica do PE. Até então, estes corpora eram maioritariamente de natureza dialetal, provenientes de pontos de inquérito não-urbanos e com recurso a informantes selecionados pelo seu carácter autêntico, representativos do lugar, geralmente idosos e analfabetos, e, portanto, com poucos ou nenhuns contactos com a norma padrão veiculada pela escola. Os critérios metodológicos aplicados à recolha e condução de entrevistas,

Capítulo 11

277

em conformidade com os princípios gerais da Sociolinguística Variacionista (Labov 1972; Tagliamonte 2006), têm como principal característica o facto de incidirem sobre informantes oriundos de comunidades urbanas, que apresentam uma maior diversidade social que as rurais. A Tabela 1 dá conta de diversos corpora constituídos entre os anos 70 do século XX e a segunda década do século XXI. Esta tabela faz menção apenas dos projetos cujos materiais sonoros incluem dados provenientes de falantes madeirenses. Ela não representa, por isso, a totalidade de corpora (oral e escrito) do português, dispersos por várias plataformas, incluindo a do CLUL. A componente dialetológica dos corpora (Tabela 1) contempla dados orais provenientes de pontos de inquérito localizados nas ilhas da Madeira e do Porto Santo, cuja recolha se iniciou na década de 70, no âmbito de vários projetos de geografia linguística, nomeadamente o ALEPGC (Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza), sob a supervisão de Lindley Cintra, e o Atlas Linguístico do Litoral Português (ALLP) da responsabilidade de Gabriela Vitorino do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL). Em 1999, sob a coordenação de Ana Maria Martins, do CLUL, é criado o Projeto Corpus Dialetal para o Estudo da Sintaxe (CORDIAL-SIN), ainda a decorrer. Relativamente aos anteriores, disponíveis também no CLUL, apresenta-se como um corpus anotado² (Carrilho e Magro, 2010). Este projeto tem impulsionado a pesquisa em sintaxe dialetal comparada, numa perspetiva de Princípios e Parâmetros, preconizada pela abordagem da variação no âmbito da Gramática Generativa. O material deste corpus é constituído por transcrições de excertos de fala espontânea e semi-dirigida resultantes de inquéritos dialetais realizados em 42 localidades de Portugal continental e dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Rentabilizando os recursos existentes no CLUL, o CORDIAL-SIN reúne uma seleção de amostras de outros projetos de geografia linguística do CLUL, nomeadamente do ALEPGC e do ALLP acima mencionados, mas também do Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores (ALEAç) e do corpus da Fronteira Dialectal do Barlavento Algarvio (BA), criado por Luísa Segura da Cruz (1987). Dado o tipo de fontes a que recorre, os dados são provenientes de informante cujo perfil corresponde a um idoso, pouco escolarizado ou analfabeto, natural da localidade e nela residente. No seu estado atual, o corpus abrange 600.000 palavras, 70 horas de gravações. O CORDIAL-SIN apresenta-se ao utilizador em quatro formatos: transcrição conservadora; transcrição ortográfica normalizada; texto com anotação morfossintática (anotação por 2 O sistema de anotação sintática do CORDIAL-SIN segue as orientações definidas pelo PennHelsinki Parsed Corpus of Middle English. A anotação sintática define configurações que podem ser pesquisadas sistemática e exaustivamente, compatíveis com o programa CorpusSearch2, da autoria de Beth Randall (open source software, Sourceforge) (cf. Carrilho e Magro 2010).

2012presente

Projeto ARPOFAMA (CIERL-UMa)

27 entrevistas selecionadas do Funchal, num total de 117 (2012–2017)

90 entrevistas (60 horas de gravações) das quais 29 entrevistas de 10 concelhos do arquipélago da Madeira: Porto Santo (1), Machico (4), Santa Cruz (6), Santana (3), Câmara de Lobos (2), Ribeira Brava (4), Ponta do Sol (2), Calheta (3), Porto Moniz (1), São Vicente (3).

29 informantes (Funchal)

Corpus Concordância/ CLUL-UL UFRJ

2010–2011

Corpus Madeira CSF

4 pontos de inquérito (Câmara de Lobos, Caniçal) e Porto Santo (Camacha, Tanque)

5 pontos de inquérito (anos 80)

ALLP/CLUL-UL

CORDIAL-SIN/CLUL-UL

7 pontos de inquérito (1973–2004)

Informantes madeirenses

ALEPG/CLUL-UL

Projetos/Centros de investigação

1990 – presente

1970–2004

Periodização

Tabela 1: Corpora do PE falado, com dados de falantes da Madeira.a)













prévio ✔✔







Não

Acesso online

DialetoSocioSim logia linguística

Perfil do informante

278 Aline Bazenga

CPRM (Corpus do Português Rural da Madeira)

Projetos/Centros de investigação

27 (entrevistas) e 15 conversas livres

Informantes madeirenses





Não

Acesso online

DialetoSocioSim logia linguística

Perfil do informante

Fontes: Bazenga (2014: 396); Henriques (2019: 8–13); site ARPOFAMA (CIERL-UMa). a) Esta tabela tampouco contempla os corpora de dados de fala concebidos para estudos em outras áreas da linguística, como os que se situam, por exemplo, no âmbito da Fonética, e que obedecem a requisitos distintos, como o corpus coletado por Rebelo (2008) para a sua dissertação de doutoramento, o de Rodrigues (2015) para a tese de mestrado, ou ainda o conjunto de dados do Arquivo Dialetal do Centro de Linguística da Universidade do Porto, sob a a orientação de João Veloso, iniciado em 1994 (cf. CLUP).

2019

Periodização

Tabela 1: Corpora do PE falado, com dados de falantes da Madeira.a) (Continuação)

Capítulo 11

279

280

Aline Bazenga

palavra); texto com anotação sintática (anotação por frase). A transcrição conservadora contém informação sobre aspetos da produção (captados pela fonte sonora) tais como pausas, sobreposições de produção, hesitações, abandono de fragmentos frásicos, reformulações, repetições, formas truncadas, etc. A versão normalizada da transcrição obtém-se através da extração automática dos códigos que identificam marcas de oralidade e constitui o suporte da anotação. Esta versão inclui apenas transcrição ortográfica, após a eliminação das marcas de pausa (silenciosa ou preenchida), bem como das sequências de transcrição fonética identificadoras de variantes fonéticas. Enquadra-se também na área da Dialetologia, o projeto mais recente, o do Corpus do Português Rural da Madeira (CPRM), compilado em julho de 2019 por Yoselin Henriques, da universidade de Zurique, para a sua dissertação de mestrado. O CPRM engloba, para além de entrevistas realizadas em localidades rurais da Ilha da Madeira, gravações de conversas espontâneas em família. O protocolo adotado é semelhante ao que foi utilizado no Corpus Oral y Sonoro del Español Rural (COSER) – um projeto a decorrer desde 1999 sob a coordenação de Inés Fernández-Ordoñez, da Universidad Autónoma de Madrid, Espanha. Contrariamente aos recursos partilhados pelo CLUL, através da sua plataforma, o CPRM não se encontra disponível para acesso online. O Corpus Concordância, elaborado no quadro do Projeto Concordância, e o CSF, que lhe deu continuidade, partilham, como anteriormente referido, os pressupostos metodológicos preconizados pela sociolinguística variacionista no que se refere à seleção de informantes e procedimentos e técnicas para a gravação de entrevistas sociolinguísticas. Distinguem-se, por estes aspetos, das coleções de dados dialetológicos. Estas duas coleções de dados – Corpus Concordância e CSF – têm constituído um recurso inestimável para o desenvolvimento de análises comparativas em variedades do português de fenómenos sintáticos variáveis, analisados de acordo com a abordagem sociolinguística quantitativa da variação linguística, distinta do quadro teórico definido para o tratamento de dados do CORDIAL-SIN. A sua significância resulta, por isso, para além da forma como foram elaborados, no modo como têm contribuído para análises comparativas de variação sintática em variedades do português, que incorporam variáveis sociais. Cabe assinalar ainda uma outra particularidade: contrariamente aos conjuntos de dados dialetais, sumariamente apresentados, todos tendo por foco a diversidade dialetal geográfica do PE, os dados compilados no âmbito do Projeto Concordância – ALFAL 21 / COMPARAPORT contemplam amostras de variedades do português, para além das do PE (de Lisboa e do Funchal) – as do Rio de Janeiro (PB) e a de São Tomé e Príncipe (STP) – a que se juntou, posteriormente, a amostra de Maputo, do português de Moçambique (PM) – o que evidencia a vertente comparatista subjacente ao projeto, constante, nas suas diversas fases.

Capítulo 11

281

Na Secção 1.1, a seguir, será elaborada uma descrição mais pormenorizada dos dois conjuntos de amostras de dados orais de falantes madeirenses, integradas no Corpus Concordância e no CSF, acessíveis através das plataformas CORPORAPORT e ARPOFAMA, respetivamente.

1.1 Do Corpus Concordância ao CSF e ao Projeto ARPOFAMA O Corpus Concordância, como anteriormente referido, foi criado no âmbito do Projeto Concordância, iniciado em 2008, da responsabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Brasil, e do CLUL, em Portugal, com coordenação respetiva de Silvia Rodrigues Vieira e Maria Antónia Mota, investigadoras destas duas instituições e financiado pelo CAPES/GRICES. A partir de 2011, o projeto passa a configurar-se como ALFAL 21 e, a partir de 2019, é identificado como COMPARAPORT. Segundo as coordenadoras dos mesmos, Silvia Brandão e Silvia Vieira, o projeto, dedicado inicialmente à descrição dos padrões morfossintáticos de concordância em variedades do português, passa a focalizar, ainda segundo diferentes perspectivas teóricas, diversas variáveis morfossintáticas (entre elas, a concordância) ou fonético-fonológicas, sempre priorizando a determinação dos parâmetros/padrões que caracterizam e delimitam as variedades do Português em questão. Ao desenvolver a análise contrastiva de dados, o Projeto torna possível (i) traçar, do ponto de vista intercontinental, padrões que caracterizem as variedades, observando a diferenciação e os continua linguísticos; (…) (Vieira e Brandão, sem data³)

Associado a este projeto, é também criado o CORPORAPORT, que integra outras amostras de variedades do português, nomeadamente da variedade do PM, através das entrevistas sociolinguísticas realizadas em Maputo, em 2016, por Silvia Rodrigues Vieira e Karen Pissurno. Na sua fase inicial, o Projeto Concordância pretendia contribuir para a descrição de diferentes normas/gramáticas em coexistência e em concorrência em cada espaço geográfico onde se fala português. Em Portugal continental, foram recolhidas 25 gravações em Lisboa/Oeiras, 27 gravações em Lisboa/Cacém, cidadedormitório vizinha de Lisboa, além de 29 gravações no Funchal, capital da ilha da Madeira. Para além das amostras do PE e do PB, o projeto inclui também uma amostra de uma variedade africana, a de STP. Esta amostra, cedida por Tjerk Hagemeijer, do CLUL, contém 27 entrevistas coletadas em 2009 por este investigador.

3 https://www.mundoalfal.org/sites/default/files/proyectos/EstudoSS.htm

282

Aline Bazenga

Figura 1: Distribuição geográfica das coleções de dados sociolinguísticos criados pelo Projeto Concordância (ALFAL 21/COMPARAPORT) – Amostras do PE, do PB, de STP e de PM (Maputo). Fonte: https://www.joaoleitao.com/viagens/mapa-mundi/

A Figura 1 dá conta das diferentes amostras de dados orais de português e da sua distribuição geográfica, cujas cores correspondem a pequenas diferenças temporais na recolha de dados, a azul para as amostras do PE e do PB, que antecedem a do PM, a verde. A laranja, está representada a amostra do PST, cedida ao projeto. A constituição da amostra Funchal para oCorpus Concordância decorreu em 2010, tendo sido também incluídas algumas entrevistas realizadas em 2011. A partir de então, foi possível realizar as primeiras análises sociolinguísticas variacionistas dos dados e a publicação dos primeiros trabalhos sobre usos sintáticos de falantes madeirenses do Funchal – urbanos e socialmente diversificados – e passíveis de ser comparados, localmente, com madeirenses de variedades rurais e, externamente, com falantes de outras variedades geográficas do português, europeias e não europeias. Concluída a amostra do Funchal, deu-se, a partir de 2011, continuidade à realização das entrevistas sociolinguísticas, não apenas circunscritas ao Funchal, mas alargadas também a falantes residentes e naturais de outras localidades da ilha da Madeira (Calheta/Paul do Mar, Porto Moniz, Funchal, Santa Cruz, Boaventura, Ribeira Brava, Caniçal, Santana e Câmara de Lobos), com vista à constituição de um Corpus Madeira, o que vem a acontecer em 2014. O Corpus Madeira, conforme divulgado por Bazenga (2014b), passa a incluir dois subconjuntos de dados, o CSF, que contém nessa altura um conjunto de 60 entrevistas de falantes do Funchal, num total de 34 horas e 45 minutos de gravações, e um conjunto menor de

Capítulo 11

283

entrevistas provenientes de falantes madeirenses naturais e residentes de outras localidades das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, o CSF conta com 88 entrevistas e cerca de 60 horas de gravações. A Tabela 2 dá conta do estado atual da compilação de dados orais do Funchal, num total de 117 arquivos áudio e as respetivas transcrições, ou seja 29 no Corpus Concordância e 88 no CSF. Apesar da prioridade da recolha de dados orais ter incidido sobre a comunidade urbana do Funchal, capital da ilha da Madeira e onde residem cerca de 42 % da população total da Madeira (ou seja, 105795 /250769 habitantes, de acordo com os resultados preliminares do Censos de 2021⁴), foram sendo compiladas, paralelamente, como já referido, entrevistas sociolinguísticas realizadas em pontos de inquérito dispersos pelos 11 concelhos do arquipélago da Madeira. A Tabela 3 dá conta deste conjunto, distribuído pelas localidades e anos de recolha, à exclusão do Funchal. Tabela 3: Entrevistas sociolinguísticas realizadas no arquipélago da Madeira entre 2012 e 2021, à exclusão do Funchal. Localidades / Concelhos

2012–2013

Santa Cruz

2016–2017 2018–2019

2020–2021

Total

STC12_HC2

STC18_HA3 STC18_HB2 STC18_HC2

STC21_HA1 STC21_HA3

6

Machico

MCH13_MC1

MCH19_MB2 MCH21_MA2 4 MCH21_MA3

Santana

STN13_MA2

S. Vicente

SVC12_MA2

Porto Moniz

PMN12_HA2

Calheta

CLH12_HA2

Ponta do Sol Ribeira Brava

RIB12_MC1

2014–2015

STN17_MB1 STN17_MC1

3

SVC14_MC1

SVC21_HA3

3 1

CLH14_MA2

CLH21_HC2

3

PSL14_MB1

PSL18_MB1

2

RIB15_HA3

RIB19_HC1 RIB19_MA2

4

4 Resultados Provisórios do Censos 2021, publicados pela Direção Regional de Estatística da Madeira (DREM): https://estatistica.madeira.gov.pt/download-now/social/popcondsoc-pt/popcondsoccensos-pt/popcondsoc-censos-emfoco-pt/send/47-censos-emfoco/14253-em-foco-censos-2021-resulta dos-provisorios.html.

Faixa C (37)

Faixa B (44)

Faixa A (36)

Escolaridade / Idade / Sexo

FNC10_HB2 FNC11_HB2 FNC13_HB2 FNC13_HB2.1 FNC13_HB2.2 FNC17_HB2.1 FNC17_HB2.2 FNC18_HB2 FNC21_HB2

FNC10_MB1 FNC12_MB1 FNC13_MB1.1 FNC13_MB1 FNC15_MB1 FNC18_MB1 FNC18_MB1.1

FNC10_MC1.1 FNC10_MC1.2 FNC11_MC1.1 FNC11_MC1.2 FNC12_MC1

FNC10_HB1 FNC13_HB1 FNC13_HB1.1 FNC13_HB1.3

FNC10_HC1 FNC11_HC1 FNC15_HC1.3 FNC15_HC1.2 FNC15_HC1

FNC10_MB2 FNC11_MB2 FNC13_MB2 FNC14_MB2 FNC15_MB2 FNC15_MB2.2 FNC15_MB2.1 FNC17_MB2 FNC17_MB2.1 FNC17_MB2.2

FNC10_MA2.1 FNC11_MA2.2 FNC11_MA2.1 FNC12_MA2 FNC15_MA2 FNC18_MA2 FNC19_MA2 FNC21_MA2 FNC21_MA2.1

Mulher

FNC10_HC2.1 FNC10_MC2 FNC10_HC2.2 FNC11_MC2 FNC13_HC2 FNC15_MC2

FNC10_HA2 FNC11_HA2 FNC14_HA2 FNC19_HA2 FNC21_HA2 FNC21_HA2.1

FNC10_HA1 FNC10_MA1 FNC11_HA1 FNC11_MA1 FNC12_HA1 FNC19_MA1 FNC12_HA1.1 FNC13_HA1 FNC14_HA1

Homem

Homem

Mulher

Nível 2

Nível 1

Tabela 2: Coleção de entrevistas sociolinguísticas realizadas no Funchal, entre 2010 e 2021.

FNC10_HC3.1 FNC10_HC3.2 FNC10-CH3.1 FNC15_HC3 FNC19_HC3

FNC10_HB3 FNC10_BH3.3 FNC10_BH3.2 FNC11_HB3 FNC13_HB3 FNC17_HB3

FNC10_HA3 FNC10_AH3.1 FNC10_AH3.2 FNC12_HA3 FNC21_HA3

Homem

Nível 3

FNC10_MC3 FNC10_CM3 FNC11_MC3 FNC13_MC3 FNC14_MC3

FNC10_MB3 FNC10_BM3.1 FNC11_MB3 FNC15_MB3 FNC19_MB3 FNC19_MB3.1 FNC19_MB3.2 FNC21_MB3

FNC10_MA3 FNC10_MA3.1 FNC11_MA3.1 FNC11_MA3 FNC17_MA3 FNC18_MA3 FNC21_MA3

Mulher

284 Aline Bazenga

TOTAL 117

Escolaridade / Idade / Sexo

18

21

FNC15_HC1.4 FNC15_MC1 FNC17_HC1 FNC17_MC1 FNC18_HC1 FNC17_MC1.2 FNC18_MC1 FNC18_MC1 FNC21_MC1 19

Homem

Homem

Mulher

Nível 2

Nível 1

21

Mulher

Tabela 2: Coleção de entrevistas sociolinguísticas realizadas no Funchal, entre 2010 e 2021. (Continuação)

17

FNC21_HC3

Homem

Nível 3

21

FNC15-MC3

Mulher

Capítulo 11

285

286

Aline Bazenga

Tabela 3: Entrevistas sociolinguísticas realizadas no arquipélago da Madeira entre 2012 e 2021, à exclusão do Funchal. (Continuação) Localidades / Concelhos

2012–2013

Câmara de Lobos Porto Santo

PST12_HA3

TOTAL

8

2014–2015

2016–2017 2018–2019

CLB14_MB1

CLB19_MB2

2020–2021

Total 2 1

5

2

8

6

29

Assim, entre 2010 e 2021, foi possível reunir um total de 146 entrevistas (cf. Tabelas 2 e 3). Esta recolha é realizada, desde o seu início e anualmente, por uma equipa de estudantes do 2º ano da Licenciatura de Estudos de Cultura, enquanto trabalho prático da disciplina Linguística Portuguesa. Em 2015, com a minha integração como investigadora colaboradora no CIERLUma, dá-se início ao Projeto ARPOFAMA, dedicado ao repositório e partilha digital de coleções de dados produzidos por falantes madeirenses. Este projeto tem por principais objetivos não só preservar o património oral das variedades madeirenses do PE, sob forma de entrevistas sociolinguísticas semi-dirigidas, que vão sendo coletadas, como, também e sobretudo, promover e disponibilizá-lo para um público amplo, no qual se inclui o académico e os investigadores, possibilitando o acesso a diferentes amostras representativas da diversidade social dos falantes madeirenses e o estudo das suas características. Este projeto digital contribui também, deste modo, para a promoção de redes de colaboração com outras instituições locais, nacionais e internacionais. A constituição de um repositório desta natureza tem o potencial de servir de referência ao património linguístico insular, tanto dentro como fora de Portugal e ajudar a difundir e a popularizar a variedade madeirense do PE. O projeto conta com muito poucos recursos humanos e os processos nele envolvidos até à sua forma final e pública são, por isso, morosos. Para além dos estudantes do 2º ano, envolvidos na realização de entrevistas, todos os anos são criadas pequenas equipas com estudantes estagiários, finalistas da Licenciatura em Estudos de Cultura. Selecionados no âmbito de uma das atividades promovidas pela disciplina Práticas em Estudos de Cultura deste curso, os estudantes realizam um estágio disciplinar de 40 horas no Projeto ARPOFAMA (CIERL-UMa). Têm por tarefa rever e editar as transcrições das entrevistas selecionadas e colocá-las na plataforma criada para o projeto, com o apoio de um responsável institucional, da área das tecnologias digitais. As primeiras amostras do CSF foram colocadas online

Capítulo 11

287

em 2019⁵, a que se seguiu um segundo conjunto disponibilizado em 2021. Neste último ano, foi possível também publicar 4 entrevistas de falantes luso-venezuelanos, no espaço dedicado à diáspora madeirense. A Figura 2, a seguir, apresenta uma síntese do percurso de construção do património e arquivo linguístico da Madeira, desde 2010, com as primeiras coletas de dados realizadas para o Projeto Concordância, agora integrado no Projeto ALFAL 21 / COMPARAPORT, a sua continuidade, organização e difusão através do Projeto ARPOFAMA, criado em 2015.

Figura 2: Cronologia da construção dos bancos de dados orais do PE na Universidade da Madeira. Fonte: elaboração própria.

Nesta representação, procura-se salientar a ideia de percurso, ao longo de mais de uma década (2010–2021), mas também a interligação dos vários projetos e o papel fundamental do Projeto Concordância no desencadear de uma nova dinâmica na investigação sobre o português falado na Madeira e no moldar aquela que viria a ser a futura investigação em sociolinguística variacionista das variedades madeirenses do PE. O protocolo para a realização e transcrição das entrevistas sociolinguísticas segue o que foi estipulado para a organização do Corpus Concordância (Bazenga 2014b). Em termos gerais, a entrevista deve ter uma duração de 30 a 45 minutos, podendo o inquiridor seguir ou não um guião preestabelecido. A transcrição é ortográfica, de acordo com a norma ortográfica em vigor, embora sem pontuação nem maiúsculas, contemplando distintas representações para pausas, repetições, hesitações, de que é exemplo o excerto abaixo disponibilizado (Figura 3). Em algumas situações, procura-se dar forma ortográfica a particularidades lexicais e fonéticas produzidas pelos inquiridos. Estas formas encontram-se real-

5 O CSF está alojado no site do Projeto ARPOFAMA (CIERL-UMa). https://cierl.uma.pt/?page_id=367.

288

Aline Bazenga

Figura 3: Transcrição de uma entrevista sociolinguística – amostra do CSF (excerto).

çadas no texto a negrito, sendo sempre seguidas da forma ortográfica padrão entre parênteses retos, como no caso de “posse [posso]”, retirado do excerto (Figura 3). Procurou-se, desde a conclusão da amostra Funchal, em 2010, fazer prevalecer uma continuidade metodológica com as entrevistas que viriam a fazer parte do Corpus Madeira e do CSF. Para além do método utilizado para a condução das entrevistas e das suas transcrições, a seleção dos participantes obedece igualmente aos mesmos critérios sociais, sendo estratificados em idade (três faixas etárias: A (18–35 anos), B (36–55 anos) e C (56–75 anos), género, localidade e nível de escolaridade (três níveis: 1 (Básico), 2 (Secundário) e 3 (Superior/Universitário). Estas caraterísticas sociais genéricas dos informantes surgem no modo como as suas entrevistas estão codificadas. A Figura 4 constitui um exemplo da codificação seguida. Nos exemplos dados na Figura 4, as letras maiúsculas iniciais FNC representam a localidade, no caso, Funchal, e o número 13 ao ano de realização (2013). A seguir, e linearmente, as maiúsculas H ou M correspondem às iniciais de “homem” e de “mulher”, respetivamente, e dizem respeito ao género de cada inquirido; as letras A e B (mas também C) representam a faixa etária em que se encontra o participante; por fim, o último algarismo diz respeito ao nível de escolaridade, que varia entre 1 e 3. Este critério comum na codificação da entrevista/informante, permite variar apenas as três letras iniciais, representando a localidade, como pode ser observado nas etiquetas dos catálogos de entrevistas das Tabelas 2 e 3. Os processos de recolha de dados, a sua revisão, edição e difusão fazem parte do plano de investigação instaurado, a partir de 2017, que inclui também a testagem de hipóteses a partir de amostras de fala reduzidas, a cargo de estudantes da

Capítulo 11

289

Figura 4: Codificação das entrevistas. Fonte: ARPOFAMA (CIERL-UMa).

disciplina Sociolinguística, do mestrado de Linguística: Sociedades e Culturas, criado em 2017/18 (Figura 5).

Figura 5: Metodologia de investigação em sociolinguística implementada na Universidade da Madeira. Fonte: elaboração própria.

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Aline Bazenga

Esta análise preliminar de amostras de fala (cf. B, na Figura 5), desempenha um papel de relevo, ao permitir o desenvolvimento posterior de trabalhos de investigação de maior envergadura e profundidade, tendo por base amostras mais avolumadas de dados e análises quantitativas mais fiáveis, no quadro de projetos de teses de mestrado e/ou de dissertações de doutoramento (cf. D, na Figura 5).

3 Contributo das coleções de dados sociolinguísticos do PE falado no Funchal para os estudos comparados sobre a variação sintática em variedades do Português Os primeiros estudos variacionistas sobre a sintaxe do português insular, a partir de dados da variedade falada no Funchal, capital do arquipélago da Madeira, começaram a ser publicados a partir de 2010, como é possível observar na Tabela 4. Esta tabela dá conta dos trabalhos realizados a partir de dados sociolinguísticos de falantes madeirenses, em diversas instâncias e modalidades: comunicações e participações em congressos, publicações de artigos e capítulos de livros, trabalhos produzidos no âmbito de seminários de mestrados, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutoramento. Embora não constitua uma lista exaustiva de todos os materiais de investigação com as características acima apontadas, ela permite observar a atenção que tem vindo a ser dada à variedade madeirense do PE, que passou a estar incluída em análises comparativas com outras variedades do português. Nela é possível observar também os fenómenos sintáticos que têm retido a atenção dos investigadores, tais como a concordância verbal e nominal, a realização variável das funções OD, OI e do sujeito, os usos variáveis de lhe, a variação entre ter e haver, enquanto verbos existenciais, a realização variável do artigo definido diante de possessivo pré-nominal, e a variação a gente/nós. Apresenta-se, a seguir, alguns exemplos ((1)-(5)) retirados de corpora do português falado no Funchal, e que ilustram as singularidades acima referidas: (1)

Concordância verbal de 3ª pessoa do plural a. os cá de fora que se lixe [lixem] (FNC-C2M) b. mas os dias foi [foram] passando (FNC-A1M) c. pessoas a trabalhar comigo que tinhem [tinham] vergonha (FNC-C2M) d. eles vinho [vinham] brincar (FNC-B1M Vieira e Bazenga (2013: 18)

Bazenga e Rodrigues 2016; 2018; Bazenga e Andrade 2016; Rodrigues e Bazenga 2019; Bazenga Andrade e Rodrigues 2016; 2019.. Bazenga 2019. Bazenga 2012a; 2017; 2019a.

Realização variável de OD

Realização variável de OI

Variação ter / haver existencial

Realização variável do Sujeito

Realização variável do artigo definido diante Bazenga 2019b. de possessivo pré-nominal

Brandão 2013; 2015; 2016. Brandão e Vieira 2017; Brandão e Vieira 2018.

Bazenga 2011; Bazenga 2012; Vieira e Bazenga 2013; Vieira e Bazenga 2015; Bazenga 2015; Brandão e Vieira 2017; Brandão e Vieira, 2018. Vianna e Lopes 2012.

Comunicações, Artigos, Capítulos de livros

Concordância Nominal

1PP e o pronome a gente

Concordância Verbal: 3PP

Fenómenos variáveis

Nunes et al. 2019

Sousa 2015; Nunes 2019

Aveiro e Sousa 2014 Caires e Luís 2014 Nóbrega e Coelho 2014

Trabalhos em Seminários de Mestrado

Reis 2020

Andrade 2014

Beserra 2020, a decorrer

Rodrigues 2018

Vianna 2011

Monografias (LiDissertação cenciatura), (Doutoramento) Teses (Mestrado)

Tabela 4: Estudos variacionistas com base em corpora de dados de usos em variedades do português (Corpus Concordância e CSF).

Capítulo 11

291

Comunicações, Artigos, Capítulos de livros Bazenga 2018; 2019c; Bazenga e Rodrigues 2020; Rodrigues, Bazenga e Soares 2021; 2022.

Fenómenos variáveis

Usos variáveis do clítico lhe

Trabalhos em Seminários de Mestrado

Monografias (LiDissertação cenciatura), (Doutoramento) Teses (Mestrado)

Tabela 4: Estudos variacionistas com base em corpora de dados de usos em variedades do português (Corpus Concordância e CSF). (Continuação)

292 Aline Bazenga

Capítulo 11

293

(2)

Realização variável de OD a. depois o marido deixou ela [deixou-a] e ficou na quinta. (FNC11_MC1.1 453) Bazenga, Andrade e Rodrigues (2019: 25) b. tento-lhe explicar e lhe informar [informá-lo] sobre as coisas (FNC11_HA1426) Rodrigues, Bazenga e Soares (2022: 65)

(3)

Realização variável de OI – variante com SP a. os pais tamém se falam duas três quatro vezes cinco vezes e mais por aí e […] não [lhes] dá intimidade a eles (FNC15_MB2) Bazenga (2019a: 16) b. e o Estado fornece [‐lhes] proteção a eles (FNC15-HC1) b. vão investir esse dinheiro noutro país vão dar [‐lhes] o comer a eles (FNC15_MC2) (ARPOFAMA/CSF)

(4)

Variação entre ter e haver em construções existenciais a. Porque no Continente tem [há] as discotecas onde vai toda a gente (FNC11_HA2) b. tem [há] bastantes colégios aqui na Madeira” (FNC11_MA3 111–2) c. na rua dos ilhéus onde tem [há] dez_vinte prédios de apartamentos” (FNC_CH 3.1 102) Bazenga (2022: 185)

(5)

Usos variáveis do artigo definido com possessivos pré-nominais só que [a] _minha prima foi pó meio da fazenda (FNC13_HB1.2 122) Bazenga (2019b)

(6)

variação a gente/nós depois de eu ter casado – que a gente [(nós)] começamos a trabalhar juntos – so´ com o nosso NE…” (Amostra Funchal: dado 29, F1C) Vianna (2011: 99)

O primeiro destes fenómenos, vinculado ao Projeto Concordância, mereceu maior atenção nos anos iniciais (entre 2010–2015) a que a Tabela 4 faz referência. Seguiram-se as outras análises, sob o impulso do trabalho realizado por Carrilho e

294

Aline Bazenga

Pereira (2011), o primeiro a chamar a atenção para a distribuição geográfica de variantes sintáticas não-padrão em dados de fala dialetais oriundos do CORDIALSIN. Neste artigo, as autoras mostram a existência de algumas construções sintáticas não padrão mais confinadas à Madeira e aos Açores, tais como os usos de ter existencial, (Carrilho e Pereira 2011: 129), as construções com possessivo pré-nominal sem artigo (Carrilho e Pereira 2011: 132), ou ainda o uso do gerúndio, precedido de verbos aspetuais como estar, ficar, andar (Carrilho e Pereira 2011: 130– 132). Os trabalhos realizados depois de 2015 (Tabela 4) procuram investigar, em grande parte, se estes usos não-padrão ocorrem também em comunidades urbanas da ilha da Madeira, sendo por isso analisados na amostra Funchal do Projeto CONCORDÂNCIA e/ou no CSF. Neste conjunto de dados, as publicações de comunicações, artigos e capítulos de livros assim como os três projetos de doutoramento (Vianna 2011; Rodrigues 2018; Beserra, 2023) desenvolvem análises comparativas da variedade madeirense do PE com outras variedades do português, predominantemente do PB; já os trabalhos realizados em seminários, no âmbito dos mestrados em Estudos Linguísticos e Culturais (até 2017) e Linguística: Sociedades e Culturas (desde 2018), incidem apenas sobre a variedade madeirense, uma vez que correspondem a um processo de natureza mais experimental, de verificação de hipóteses em amostras de fala madeirenses reduzidas. Observa-se, de um modo general, uma tendência expressiva para uma abordagem comparativa na análise de fenómenos variáveis em variedades do português. Estas análises passam a incluir amostras dados produzidos por falantes madeirenses, o que constitui um aspeto inovador. A síntese apresentada na Tabela 4 não inclui uma outra vertente de investigação, direcionada para o estudo de crenças e avaliações sociolinguísticas, iniciada em 2014, para a qual se recorre preferencialmente a questionários, e cujas respostas não constituem dados de produção, mas sim da perceção. A Tabela 5, a seguir, fornece informação atualizada sobre as publicações que se situam nesta área de estudos, complementar aos estudos de produção (Weinreich, Labov e Herzog 1968). Tabela 5: Estudos variacionistas com base em questionários de perceção e de avaliação de fenómenos variáveis em variedades do português. Comunicações, Artigos, Capítulos de livros

Trabalhos em Seminários (Mestrado)

Monografias (Licenciatura) Teses (Mestrado)

Dissertações (Doutoramento)

Bazenga 2021; 2022, submetido. Rodrigues e Bazenga 2017.

Nunes 2019. Afonso e Margalho 2021.

Andrade 2014.

Vianna 2011. Rodrigues 2018. Beserra 2023.

Capítulo 11

295

Tabela 5: Estudos variacionistas com base em questionários de perceção e de avaliação de fenómenos variáveis em variedades do português. (Continuação) Comunicações, Artigos, Capítulos de livros

Trabalhos em Seminários (Mestrado)

Monografias (Licenciatura) Teses (Mestrado)

Dissertações (Doutoramento)

Rodrigues, Bazenga e Soares 2021; 2022, aceite.

A análise dos materiais provenientes de questionários obedece também ao princípio de estratificação social. Nos trabalhos que constam na Tabela 5, na sua maioria muito recentes e realizados depois de 2017, as avaliações e crenças dos falantes madeirenses são analisadas sob o prisma das correlações sociais. Por fim, apresenta-se, na Tabela 6, uma síntese da vertente comparatista, pondo em evidência a produção científica realizada entre 2010 e 2022. A comparação de variáveis e de variantes em uso em variedades do português tem sido uma constante. Tal se deve em grande parte à compatibilidade de amostras empíricas até agora constituídas, graças a aplicação de um mesmo formato metodológico. Esta disponibilidade de recursos torna possível a análise de fenómenos sintáticos e a comparação de resultados. A comparação de variedades, em foco no Projeto Concordância, em 2008/2011, continuou a ser praticada nos projetos de investigação subsequentes, dando origem a uma visão mais abrangente das propriedades sociolinguísticas das diferentes variedades do português. A inclusão de amostras de fala madeirenses do PE neste processo comparativo veio modificar a visão marcada pela polaridade entre variedades (PE e PB, nomeadamente), atenuando os contrastes e tornando possível o estabelecimento de um continuum mais regular. Com efeito, na maioria dos contextos estruturais, os resultados obtidos a partir de amostras da Madeira colocam a variedade madeirense numa posição de fronteira, mais distante dos resultados provenientes das amostras continentais do PE, da zona de Lisboa, e mais próxima de variedades não europeias, tanto do PB como africanas. Esta posição de fronteira também se revê no tipo de regra que surge como sendo mais ativo nas variantes em uso madeirenses; na maioria dos casos, as regras de usos da concordância verbal de 3PP, do ter existencial e do pronome ele na função OD são de tipo semicategórico; já nas variedades de Lisboa (PE) os mesmos fenómenos são objeto de regras de tipo categórico e nas variedades africanas e do PB (Rio de Janeiro), de tipo regra variável. Este quadro, sumariamente delineado, favorece a hipótese de diferentes processos históricos de formação das variedades do português (cf. para análises sobre padrões de usos e a sua ordenação sob forma de um

12/56 (21,4 %) 990/1650 61 %

Expressão variável do sujeito / variante sujeito nulo Fonte: Reis 2020

15/81 18,5 %

Realização variável de OD / Variante ele Fontes: Rodrigues 2018; Rodrigues e Bazenga 2019

Realização variável de OD / Variante lhe Fonte: Rodrigues, Bazenga e Soares 2022, aceite.

126/405 31 %

Variável ter existencial Fonte: Bazenga 2019 1/81 1,3 %

2448/ 2449 99,96 %

2310/ 2312 99,92 %

Concordância Nominal / variante com marca Fontes: Brandão 2013; 2015; 2016

1229/1395 88,1 %

65/81 80,2 %

2186/2191 3432/3716 99,78 % 92,4 %

152/691 140/541 21 % 25 %

68/787 8%

866/914 94,7 %

Funchal

Usos da Variável a gente Fonte: Vianna e Lopes 2012

1176/ 1185 99,2 %

Cacém

1454/ 1467 99,1 %

Oeiras

Copacabana

PST

2524/ 3439/3777 2612 91, 1 % 93,4 %

953/ 1067/1365 1053 78,2 % 90, 5 %

Nova Iguaçu

PE insular PB (Rio de Janeiro)

Concordância verbal (CV) de 3PP / variável com marca Fontes: Vieira e Bazenga 2013; 2015; Vieira e Silva 2017; Pissurno 2018; Pissurno e Vieira 2019

Fenómenos variáveis / variantes

PE Continental (Lisboa)

19/49 (28,8 %)

2278/2353 96,8 %

Maputo

PM

Tabela 6: Comparação de variantes de fenómenos variáveis em variedades do português, a partir de amostras dos projetos CONCORDANCIA – ALFAL 21/ COMPARAPORT e do CSF no ARPOFAMA (CIERL-UMa).

296 Aline Bazenga

Capítulo 11

297

continuum de variedades do português, os trabalhos de Brandão e Vieira 2017 e 2018).

4 Considerações finais Do exposto, é inevitável concluir a importância do Projeto Concordância e da integração de uma amostra madeirense do PE no conjunto de amostras do seu corpus. Podem-se postular evidências quantitativas e qualitativas suficientes, através dos trabalhos publicados com recurso às amostras disponibilizadas pela plataforma CORPORAPORT, para fundamentar a proposta de que existe na língua portuguesa uma tendência a diferentes padrões para cada fenómeno gramatical variável, com uma distribuição geográfica na qual a variedade histórica (PE), representada pelas amostras de Lisboa, mais resistentes à variação observada em amostras das variedades do Rio de Janeiro (PB) e africanas (STP e PM), cujas gramáticas são marcadamente organizadas em torno de regras variáveis. Entre estes dois tipos, a amostra do Funchal (PE, insular) surge com padrões de variação menos acentuados, predominantemente sujeitos a regras semicategóricas. Assim, vale a pena insistir que, tal como em outras variedades geográficas do PE, a variação sintática presente nas variedades faladas do português na Madeira contribui para a caracterização sociolinguística e cultural da comunidade insular no seu todo. O aprofundamento deste contributo só foi possível graças à investigação realizada sob o impulso do Projeto Concordância. Em linha com Tagliamonte (2004) sobre a vertente comparatista da sociolinguística e com Chambers (2004: 128), que observa que “as sociolinguistics becomes less restricted to local events, it becomes comparative, and, as the comparative aspect gains weight, cross-linguistic generalizations not only become possible but inevitable”, foi possível estabelecer algumas comparações a partir dos resultados de trabalhos publicados, com base em materiais disponibilizados pelos diferentes projetos estabelecidos entre 2010 e 2019. Estes resultados permitem contribuir para uma reflexão sobre a relação entre as variedades europeias, brasileiras e africanas do português, trazendo mais esclarecimentos sobre os fatores linguísticos e socio-históricos que têm contribuído para a sua diferenciação. A convergência metodológica observada, tanto no plano do Projeto Concordância /ALFAL 21 / COMPARAPORT, como a nível mais local, através da construção progressiva do Corpus Madeira e do CSF no âmbito do ARPOFAMA (CIERL-UMa), conduz a um maior conhecimento sobre os contextos estruturais e configurações socio-históricas das diversas gramáticas do português e das suas correlações sociolinguísticas. Do exercício de comparação emerge a singularidade da variedade

298

Aline Bazenga

madeirense do PE e do seu papel relacional, que a posição de fronteira lhe atribui (Paasi et al. 2022). Como observam estes autores, “borders may be porous” (Paasi et al 2022: 1), e nesse sentido, a sua gramática surge como sendo mais permeável. Como apontado anteriormente, as regras semicategóricas que condicionam os fenómenos morfossintáticos variáveis nas variedades madeirenses do PE podem constituir indicadores dessa permeabilidade, conferindo ao território insular um espaço sociolinguístico de fronteira, situado entre territórios histórica e socialmente distintos. Este vetor identitário confere à variedade do PE do Funchal e ao território insular a configuração de um espaço confinado, o que aumenta a sua complexidade. Se, por um lado, emerge o significado social e linguístico identitário do tipo “somos diferentes de”, ao mesmo tempo, o seu posicionamento à margem, permite significar “o que somos é também um pouco de ti e de ti”, e estabelecer relações de maior proximidade com ambos os lados, tanto da esfera do PE, como dos espaços socio-históricos e linguísticos para além do PE, no qual se incluem os do PB e os das variedades africanas do português.

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