139 65 2MB
portuguese Pages 291 [290] Year 2006
O Médico, Seu Paciente e a Doença © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
i
PSICOLOGIA, PSIQUIATRIA E PSICANÁLISE Alida – A Ressurreição do Self Alvares e Taub – Usando a Cabeça: Memória Andrade – Curso de Parapsicologia 2a ed. Andrade – Manual de Hipnose Médica e Odontológica – Texto Básico 5a ed. Assumpção – Tratado de Psiquiatria da Infância e da Adolescência Astrup – Psiquiatria Pavloviana – A Reflexologia na Prática Médica Balint – O Médico, seu Paciente e a Doença – A Afetividade como um Novo Ponto de Contato na Relação Médico-Paciente 2a ed. Bicalho Lana – O Livro de Estímulo à Amamentação – uma Visão Biológica, Fisiológica e Psicológico-Comportamental da Amamentação Bonaccorsi – Disfunção Sexual Masculina – Tudo o que Você Precisa Saber Bonomi – Pré-Natal Humanizado – Gerando Crianças Felizes Canela e Maldonado – Recursos de Relacionamento Caramelli – Manual de Neuropsiquiatria Geriátrica Carneiro – A Obesidade sob a Visão de um Psiquiatra Cerqueira Luiz – Psiquiatria Social – Problemas Brasileiros de Saúde Mental Coelho – Avaliação Neurológica Infantil nas Ações Primárias de Saúde (2 vols.) Collucci – Por que a Gravidez não Vem – Dúvidas Reais de Casais que Enfrentam o Drama da Infertilidade De Ávila – Socorro, Doutor! Atrás da Barriga Tem Gente Del Ciampo, Ricco e Nogueira – Aleitamento Materno – Passagens e Transferência Mãe-Filho Diament e Cypel – Neurologia Infantil 3a ed. Dorgival (Soc. Bras. Psiq. Clínica) – Esquizofrenia – Atualização em Diagnóstico e Tratamento Escolano – Diário de uma Gestante Ey – Manual de Psiquiatria 5a ed. Fenichel – Teoria Psicanalítica das Neuroses Figueiró e Bertuol – Depressão em Medicina Interna e em Outras Condições Médicas – Depressões Secundárias Flehmig – Texto e Atlas do Desenvolvimento Normal e seus Desvios no Lactente – Diagnóstico do Nascimento até o 18o Mês Fontana – Manual de Clínica em Psiquiatria Freud – Chaves/Resumo das Obras Completas (Organização Editorial: National Clearinghouse for Mental Health Information) Gauderer – Autismo 3a ed. Gesell e Amatruda – Psicologia do Desenvolvimento – Do Lactente e da Criança Pequena – Bases Neuropsicológicas e Comportamentais Graeff – Fundamentos de Psicofarmacologia Grof – Jogo Cósmico – Exploração das Fronteiras da Consciência Humana Grunspun – Crianças e Adolescentes com Transtornos Psicológicos e do Desenvolvimento Grunspun – Distúrbios Neuróticos da Criança 5a ed. Grunspun – Distúrbios Psicossomáticos da Criança 2a ed. Grunspun – Distúrbios Psiquiátricos da Criança 3a ed. Grunspun – Educar para o Futuro Hebb – Psicologia 3a ed. (2 vols.) Inaiá – Bases Psicoterápicas da Enfermagem
Outros livros de interesse Inaiá – Enfermagem Psiquiátrica e de Saúde Mental na Prática Ivan Lemos – Dor Crônica – Diagnóstico, Pesquisa e Tratamento Jaspers – Psicopatologia Geral 2a ed. ( 2 vols.) Jung – Chaves/Resumo das Obras Completas (Organização Editorial: National Clearinghouse for Mental Health Information) Leme Lopes – O Delírio – Perspectivas e Tratamento Lent – Cem Bilhões de Neurônios – Conceitos Fundamentais da Neurociência Levy – Semiologia Psiquiátrica Lief – Sexualidade Humana – 750 Perguntas Respondidas por 500 Especialistas Lira Brandão – Psicofisiologia – As Bases Fisiológicas do Comportamento 2ª ed. Luz – O Médico, Essa Droga Desconhecida Marinho – Como Amamentar o seu Bebê Marinho – Desvendando os Mistérios da Amamentação Marlus – Hipnose na Prática Clínica Mattos – Pediatria e Adolescência Sociais Matthes – Epilepsia 2a ed. Mello – Hipnose – Mecanismos Neuropsicofisiológicos e suas Manifestações Clínicas Moraes Passos – Hipnose – Aspectos Atuais Moura Ribeiro e Gonçalves – Neurologia no Desenvolvimento da Criança Munjack – Sexologia – Orientação Diagnóstica e Princípios Gerais de Tratamento Comportamental Nitrini – A Neurologia que Todo Médico Deve Saber 2a ed. Numberg – Princípios de Psicanálise – Suas Aplicações à Neurose (com Prefácio de Sigmund Freud) Portella Nunes – Psiquiatria e Saúde Mental – Conceitos Clínicos e Terapêuticos Fundamentais Perestrello – A Medicina da Pessoa 4a ed. Perestrello – Psicossomática, Psicologia Médica, Psicanálise Protásio da Luz – Nem só de Ciência se Faz a Cura Ratner Kirschbaum – História da Enfermagem Psiquiátrica Reimão – Sono – Um Estudo Abrangente 2a ed. Rodrigues – Estimulação da Criança Especial em Casa – Um Guia de Orientação para os Pais de como Estimular a Atividade Neurológica e Motora Sanvito e Manzillo – O Livro das Cefaléias Scalco – Terapêuticas para a Depressão na Terceira Idade Seibel – Dependência de Drogas Shader – Manual de Terapêutica Psiquiátrica 3a ed. Silva Barbosa – Cantando Bem, Falando Mal Spoerri – Introdução à Psiquiatria – Texto Especialmente Escrito para o Estudante das Ciências da Saúde Takatori – O Brincar no Cotidiano da Criança com Deficiência Física Taki Córdas – Saúde Mental da Mulher Tedesco e Zugaib – Obstetrícia Psicossomática Teixeira – Manual de Enfermagem Psiquiátrica Uchoa – Psicanálise – Teoria e Prática Vincent – Internet – Guia para Profissionais de Saúde
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
ii
O Médico, Seu Paciente e a Doença Michael Balint
Consultor em Neurologia e Tutor Clínico de Pós-graduação, Universidade de Birmingham
TRADUÇÃO
Roberto Musachio
PREFÁCIO
E. Portella Nunes
São Paulo • Rio de Janeiro • Ribeirão Preto • Belo Horizonte © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
iii
EDITORA ATHENEU
São Paulo —
Rua Jesuíno Pascoal, 30 Tels.: (11) 6858-8750 Fax: (11) 6858-8766 E-mail: [email protected]
Rio de Janeiro — Rua Bambina, 74 Tel.: (21) 3094-1295 Fax: (21) 3094-1284 E-mail: [email protected] Ribeirão Preto — Rua Barão do Amazonas, 1.435 Tel.: (16) 3323-5400 Fax: (16) 3323-5402 E-mail: [email protected] Belo Horizonte — Rua Domingos Vieira, 319 — Conj. 1.104
PLANEJAMENTO GRÁFICO/CAPA: Equipe Atheneu
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Balint, Michael O Médico, seu paciente e a doença; tradução de Roberto de Oliveira Musachio - 2ª ed.. — São Paulo: Editora Atheneu, 2006. Do original em inglês: The doctor, the patient and his illness. 1. Clínica médica - Casos estudados. 2. Médicos e doentes Aspectos psicológicos . I. Título
CDD- 616.09 610.696019 CDU - 614.253 150.616
75-0108
Índices para catálogo sistemático: 1. Clínica Médica 616.09
BALINT, M. O Médico, Seu Paciente e a Doença © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU São Paulo, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto, Belo Horizonte — 2006
iv
Para minha esposa e colegas © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
v
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
vi
Prefácio para a Edição Brasileira
Este livro é um clássico de Psicologia Médica. Examina com profundidade e, ao mesmo tempo, de modo claro o que se passa na relação médico-paciente. A medicina alcançou, no século XX um progresso notável. Apesar disso, inquéritos de opinião que têm sido feitos em várias partes do mundo revelam uma insatisfação crescente da população no que tange aos serviços que recebem dos médicos. Os motivos alegados não fazem alusão à insuficiência dos doutores. O público leigo não tem condições de julgar o conhecimento técnico dos médicos, a não ser, indiretamente, e de forma inadequada pelos resultados dos tratamentos. Desde o primeiro instante julgam, entretanto, a personalidade do médico. A doença constitui, para o homem, uma ameaça de dor, de invalidez e de morte. Desenvolve-se, por isso, um sentimento de insegurança e de necessidade de apoio que reedite a situação primitiva de relação da criança com a mãe. Todo paciente tem muito de criança medrosa que procura a mãe-médico em busca de apoio. Ortega y Gasset assinalou que os médicos têm uma gremial incapacidade para compreender os aspectos psicológicos do ser humano. Acostumados a ver, ouvir e palpar, não acreditam em nada que não possa ser tocado ou percebido pelos órgãos sensoriais. A ausência completa de temas de psicologia no currículo médico em numerosas escolas contribuía, em grande parte, para tornar verdadeira essa observação de Ortega. A insuficiência na formação psicológica dos médicos foi sempre sofrida pelos pacientes. Em verdade, os grandes médicos de todos os tempos foram observadores agudos das emoções humanas. O comum dos médicos, entretanto, precisa desenvolver esta capacidade. De outro modo, abre-se o campo para os charlatães que, sem conhecimentos científicos, levam, sobre os médicos, a vantagem da argúcia inata utilizada, quase sempre, no sentido de proveito próprio. O Médico, Seu Paciente e a Doença foi o resultado de um longo trabalho realizado por Balint supervisionando a atividade clínica de grupos de clínicos e cirurgiões. As experiências de todos eram discutidas, com ênfase na relação médico-paciente. Isso significa que os doutores também eram estimulados a examinar as próprias emoções e o sentido das reações e atitudes que se desenvolviam durante os processos dos diagnósticos e dos tratamentos. É surpreendente que nunca se tivesse tentado, de modo sistemático, estudar o papel desempenhado pelos sentimentos no processo terapêutico. Desde o diagnóstico até a terapêutica e o prognóstico, todos os momentos dos atos médicos estão impregnados de sentimentos que podem ser úteis ou prejudiciais ao doente. Como assinala o próprio Balint a personalidade do médico é a primeira “droga” que se administra aos pacientes. Há, portanto, necessidade de ampliar a “farmacologia” para uma “análise” dessa droga. Por outro lado o próprio médico vai se beneficiar de um conhecimento maior dos seus objetivos e dos próprios limites. Uma abertura mais ampla para o desconhecido, uma maior capacidade de assumir a “coragem da própria ignorância” vai poder aliviar muitas das tensões por vezes prejudiciais à relação com os doentes. O nível profundo atingido no trabalho de Balint, os conceitos fundamentais nele desenvolvidos fazem desse livro um marco em psicologia médica. Nenhum livro dessa © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
vii
especialidade, nos próximos anos, poderá deixar de ter o trabalho de Balint como referência. Estudantes e profissionais da área médica ampliarão consideravelmente o horizonte de atuação ao transformarem O Médico, Seu Paciente e a Doença em livro de cabeceira. E. Portella Nunes
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
viii
Prefácio para a Segunda Edição
A requisição feita para preparar uma edição revista, se bem que gratificante, provocou vários problemas para os quais não foi fácil encontrar respostas satisfatórias. A publicação deste livro, há oito anos, não coincidiu com uma suspensão na nossa pesquisa; muito pelo contrário, aconteceu durante um período de expansão. Esta expansão compeliu-nos a testar e retestar nossos resultados e levou a alguns desenvolvimentos consideráveis em nossas idéias a respeito da prática médica, da psicoterapia em geral e principalmente sobre psicoterapia pelo clínico geral. Parte dos resultados deste desenvolvimento já foi publicada em Mind and Medicine Monographs, principalmente em dois livros: Michael e Enid Balint: Psychotherapeutic Techniques in Medicine (1961) e David Malan: A Study of Brief Psychotherapy (1963); enquanto que outros resultados, sobre treinamento, serão brevemente publicados em livros, no momento, em preparação. O aspecto mais importante desse desenvolvimento, no que tange ao campo abrangido pelo presente livro, é uma apreciação algo mudada do papel do clínico geral durante o tratamento. Enquanto neste livro eu me atinha principalmente na demonstração da importância de “escutar”, como uma forma diferente da maneira tradicional de colheita da anamnese médica, a pesquisa recente, especialmente por minha mulher e por mim, nos levou a isolar e definir mais dois aspectos das tarefas dos psicoterapeutas, que são — claro — descobertas que não são novas. Estes são “compreender” e “O uso da compreensão de forma que ela tenha efeito terapêutico”. Estes três aspectos são fases subseqüentes do mesmo processo; “escutar” fornece o material que é então ordenado em “compreender”, e evidentemente a compreensão deve ser adquirida antes que possa ser usada. A frase: “o uso da compreensão de forma que ela tenha efeito terapêutico” é equivalente à exigência feita por uma forma mais precisa de diagnóstico; espera-se do terapeuta que prediga com grande precisão que tipo de efeito produzirá a intervenção que pretende fazer. Inserir essas idéias novas no texto significaria reescrever grande parte do livro. Isso teria destruído a simplicidade da apresentação; na verdade significaria escrever outro livro. Após alguma hesitação decidi contra este plano e restringi meu trabalho a uma revisão cuidadosa do texto, eliminando algumas ambigüidades e apontando aqui e ali a direção de nossas novas idéias. Uma parte do livro, entretanto, teve de ser completamente reescrita: o Apêndice 3, Relatórios de Evolução. Usei a oportunidade oferecida por uma edição revista para pedir a meus colegas que tomaram parte na pesquisa original para rever todos seus pacientes cujas histórias foram incluídas neste livro. Para que se conseguisse uma apresentação mais simples, todo o Apêndice 3 teve que ser reescrito. Em cada caso mostramos primeiro o resultado do primeiro período de evolução, tirado sem alterações da primeira edição, seguido imediatamente pelo resultado do segundo período de evolução. E finalmente, como tarefa extremamente agradável, desejo expressar minha imensa gratidão a meus © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
ix
14 colegas que, após tantos anos de separação, responderam sem falta a meu apelo. Lamento ter que restringir esta última frase — um deles abandonou sua clínica e deixou Londres; seu nome entretanto não deve ser mencionado, uma vez que isso poderia prejudicar não só seu anonimato, mas possivelmente também aquele de seus pacientes. A seguir desejo agradecer ao Dr. John D. Sutherland, Diretor Médico da Clínica Tavistock, pelo seu interesse contínuo na pesquisa e por ter revisto o Apêndice 14, com o qual ele gentilmente contribuiu para a primeira edição. O Dr. Philip Hopkins teve novamente a seu cargo a árdua tarefa da leitura das provas, pelo que recebe meus sinceros agradecimentos. E, por último mas de forma alguma a menos importante, meus agradecimentos à minha secretária, Srta. Joan Morris, pela sua ajuda incansável e conscienciosa durante a preparação da edição revista. Michael Balint
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
x
Prefácio
Este livro representa parte dos resultados de um projeto de pesquisa desenvolvido por um grupo de 14 clínicos gerais e um psiquiatra. Embora as conclusões teóricas sejam minhas e o livro tenha sido escrito por mim, o trabalho no qual se baseia foi feito inteiramente pelos meus 14 colegas: Drs. D. Arning, G. Barasi, N. Chisholm, M. B. Clyne, A. J. Hawes, B. Hermann, P. Hopkins, J. Horder, L. Hornung, A. Lask, P. R. Saville, G. Szabo, G. Tintner e A. L. Zweig. É com grande prazer que reconheço minha dívida de gratidão para com eles por sua cooperação generosa. A sua tarefa não foi de modo algum simples ou fácil. A natureza especial da investigação não só requeria que revelassem francamente muitos dos detalhes íntimos ou pessoais do seu trabalho cotidiano, detalhes que por consenso tácito e geral raras vezes são trazidos a público; também exigia que submetessem tais detalhes à crítica exaustiva e aguda. Todos os que lerem esse livro não poderão deixar de ficar impressionados pela quantidade de críticas extremamente severas que foram feitas e, ao mesmo tempo, aceitas com bom humor durante a pesquisa; toda irritação, amor próprio ferido e ofensas eram ignoradas ou toleradas para permitir o prosseguimento do trabalho. O esquema de treinamento no qual a pesquisa se baseou foi desenvolvido por Enid Balint e por mim. Além disso, ela supervisionou alguns dos casos tratados e teve um papel de considerável importância nas conferências sobre os casos clínicos; porém, talvez a sua contribuição mais importante tenha sido os comentários e as críticas benevolentes porém implacáveis, com os quais ela seguia o desenvolvimento da atmosfera nos grupos de discussão. Em mais de uma ocasião foi a sua avaliação correta e valiosa da dificuldade real que ajudou-me a superá-la. Em seguida, desejo expressar minha gratidão ao Dr. John D. Sutherland, Diretor Médico da Clínica Tavistock, o qual desde o início seguiu a nossa aventura com cálido interesse e colocou à nossa disposição todos os serviços da Clínica. Sem o seu apoio compreensivo nossa pesquisa jamais teria sido possível. Ele contribuiu com o Apêndice 4, no qual discute um papel adicional importante para a clínica psicológica. A mesma dívida temos para com os membros do corpo de especialistas do Departamento de Adultos da Clínica, pela supervisão prestada aos casos tratados pelos participantes. Era-nos permitido solicitar ajuda dos psicólogos do Departamento de Adultos sempre que era necessário fazer o diagnóstico do caso de um paciente. Nossa compreensão dos problemas dos pacientes foi muito aumentada pelos resultados dos testes de projeção usados. Desejo mencionar em particular o Sr. H. Phillipson e o Sr. John Boreham, que fizeram a maior parte deste trabalho para nós. O Dr. John Kelnar e o Dr. R. D. Markillie ministraram vários cursos teóricos para os diversos grupos de médicos, os quais foram muito apreciados e considerados extremamente úteis. Que a nossa pesquisa tenha podido prosseguir tão suavemente como o fez, foi principalmente devido à nossa secretária, a Srta. Doris Young. Ela zelou por tudo e por todos; todas as providências admi© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
xi
nistrativas desenvolveram-se sem uma falha; as pessoas certas, os papéis certos e as notas certas sobre os casos em apreço apareciam no momento exato como que por um passe de mágica. Foi ela que estenografou todo o desenrolar dos seminários sobre os casos clínicos, o que significa que uma grande parte desse livro foi literalmente escrita por ela. Sua maior contribuição, entretanto, foi seu talento para disfarçar a si mesma; embora estivesse fisicamente presente nos nossos seminários, podíamos discutir os mais íntimos e diferentes assuntos, sentindo-nos confiantes como se estivéssemos sozinhos. O Sr. Eric Mosbacher, que leu todo o manuscrito, provou ser um crítico simpático porém inexorável do meu inglês e ajudou consideravelmente em transformar esse livro em algo tão legível como ele é. Mas, como nem sempre aceitei as emendas por ele feitas, a responsabilidade final pelo texto é inteiramente minha. O Dr. R. H. Gosling teve sob sua responsabilidade a compilação do índice e quero expressar os meus sinceros agradecimentos pelo seu trabalho consciencioso. Sinto-me também em dívida com o Dr. Philip Hopkins, que não apenas leu as provas, mas também chamou minha atenção para algumas passagens não muito claras ou ambíguas do texto. E, finalmente, devo meus agradecimentos a minha paciente e sofredora secretária, a Sra. I. Lloyd Williams, que datilografou esse livro várias vezes e assinalou várias passagens muito mal construídas. Desejo agradecer a cortesia dos editores do British Medical Journal, The Lancet e The British Journal of Medical Psichology pela permissão dada para o uso de material previamente publicado. Michael Balint
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
xii
Sumário
Parte I: DIAGNÓSTICO 1.
Introdução, 3
2.
O Problema Geral, 9
3.
As Ofertas dos Pacientes e as Respostas dos Médicos, 17
4.
Eliminação pelos Exames Físicos Apropriados, 29
5.
Incidência e Avaliação dos Sintomas Neuróticos, 35
6.
Nível de Diagnóstico, 43
7.
O Conluio no Anonimato, 53
8.
O Clínico Geral e os Especialistas Consultados, 63
9.
A Perpetuação da Relação Professor-Aluno, 71
Parte II: PSICOTERAPIA 10.
Conselho e Conforto, 83
11.
“Como Começar”, 91
12.
“Quando Parar”, 103
13.
A Atmosfera Psicológica Especial da Clínica Geral, 119
14.
O Clínico Geral como Psicoterapeuta, 129
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
xiii
A) Dois casos Ilustrativos, 129
15.
O Clínico Geral como Psicoterapeuta, 143 B) Um Caso Difícil, 143
Parte III: CONCLUSÕES GERAIS 16.
A Função Apostólica — 1, 161
17.
A Função Apostólica — 2, 173
18.
O Médico e Seu Paciente, 181
19.
O Paciente e Sua Doença, 191
20.
Psicoterapia pelo Clínico Geral, 201
21.
Sumário e Perspectivas Futuras, 211
Apêndice 1 — Treinamento, 219 Apêndice 2 — Seleção — Clínicos Gerais, 231 Apêndice 3 — Relatórios de Acompanhamento, 237 Apêndice 4 — Função Adicional da Clínica Psicológica, 281 Índice Remissivo, 285
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
xiv
Capítulo
1
Introdução
Durante vários anos organizou-se na Clínica Tavistock seminários de pesquisa destinados a estudar as implicações psicológicas da clínica médica geral. Aconteceu que o primeiro tópico escolhido como tema de discussão em um desses seminários foi o de substâncias que habitualmente são prescritas pelos clínicos gerais. A discussão revelou rapidamente — com certeza não é a primeira vez que isso ocorre na história da medicina — que a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico, isto é, que não apenas importavam o frasco de remédio ou a caixa de pílulas, mas o modo como o médico os oferecia ao paciente — em suma toda a atmosfera na qual a substância era administrada e recebida. No momento, esse fato nos pareceu uma descoberta muito importante e todos nos sentimos orgulhosos e valorosos frente à idéia. Entretanto, o seminário percebeu desde logo que ainda não existe nenhum tipo de farmacologia a respeito de tão importante substância. Para descrever esta segunda descoberta em termos familiares aos médicos, em nenhum tipo de manual se encontrarão referências quanto a em que dosagem o médico deve prescrever a si mesmo, em que apresentação e posologia, qual suas doses de cura e manutenção etc. Ainda mais inquietante é a falta de literatura sobre os possíveis riscos deste tipo de medicação, sobre as diversas condições alérgicas observadas em pacientes diferentes, as quais devem ser cuidadosamente observadas, ou sobre os efeitos secundários indesejáveis da substância. Na realidade, a escassez de informação sobre esta substância, a de emprego mais freqüente, é desconcertante e inquietante, sobretudo quando se considera a riqueza de informação disponível em torno de outros medicamentos, mesmo aqueles que acabam de ser incorporados à prática clínica. Responde-se geralmente que a experiência e o senso comum ajudarão ao médico a adquirir a habilidade necessária para receitar-se a si mesmo. A insuficiência deste reconfortante autoconselho resulta evidente quando se o compara com as detalhadas instruções baseadas em experiências cuidadosamente controladas que acompanham a introdução de cada nova droga na prática clínica. Quando o seminário percebeu tão inquietante estado de coisas, nossa atitude mudou e decidimos imediatamente que um dos objetivos — talvez o principal — de nossa investigação seria começar a elaboração desta nova farmacologia. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
3
A importância de um estudo desta natureza é talvez muito maior hoje que em qualquer período anterior; porém a razão de que assim seja apenas em parte se relaciona com a medicina. Sobretudo como resultado da formação das megalópolis, grande número de pessoas perdeu suas raízes e conexões, as famílias numerosas com suas complicações e íntimas inter-relações tendem a desaparecer, e o indivíduo se separa cada vez mais e se isola. Quando se encontra em dificuldade, praticamente não tem a quem recorrer em busca de conselho, de consolo, ou talvez simplesmente de oportunidade para desabafar. Cada vez mais acentuadamente se vê reduzido a seus próprios recursos. Sabemos que em várias pessoas, talvez em todos nós, toda tensão ou esforço excessivo, de caráter mental ou emocional, acompanha-se de diversas sensações físicas, ou se reflete nelas. Em tais estados de perturbação, especialmente se a tensão aumenta, uma possível e muito freqüentemente usada válvula de escape consiste em consultar seu médico e queixar. Deliberadamente deixei o verbo sem objeto, porque nessa etapa inicial não sabemos o que é mais importante, se o ato de queixar-se ou o conteúdo da queixa. Precisamente aqui, nesta fase inicial ainda “não organizada” de uma doença, é decisiva a capacidade do médico para prescrever sua própria pessoa. Discutiremos em seguida as possíveis conseqüências inesperadas da reação do médico frente às queixas do seu paciente. Porém antes disso proponho-me a formular algumas observações sobre os nossos métodos e sobre a organização geral da nossa investigação. Nosso trabalho adotou exclusivamente a forma de grupos de discussão, integrados por oito a dez médicos clínicos e um ou dois psiquiatras. Os grupos reuniram-se uma vez por semana durante dois ou três anos, se bem que alguns tenham se prolongado ainda mais. As reuniões se realizavam na primeira hora da tarde do meio dia livre que habitualmente os médicos clínicos têm. Este sistema lhes permitia participar sem que produzisse interferências sérias com a atividade de cada profissional; na realidade, esta organização deu resultados tão bons que mesmo durante os meses mais ativos para a clínica geral, de dezembro a março, o comparecimento foi muito bom — uma média, para o ano completo, de 90% a 95% do total possível. Nossa tarefa foi uma mistura de pesquisa e treinamento. Partimos de minha idéia de que, do ponto de vista psicológico, na clínica geral acontecem mais coisas entre o paciente e o médico do que se lê nos tradicionais livros-texto. Se meus conceitos eram corretos, os fatos que eu desejava submeter a exame apenas podiam ser observados pelo próprio médico; a presença de uma terceira pessoa, por muito tato e objetividade que demonstrasse, inevitavelmente destruiria a atmosfera de espontaneidade e intimidade. Tal terceira pessoa apenas veria uma imitação, talvez uma imitação muito boa, porém nunca os fatos reais. Logo, a pesquisa apenas poderia ser realizada pelo médico clínico durante seu trabalho cotidiano, sereno e sem perturbações, amo e senhor de seu próprio consultório. Entretanto, os clínicos gerais não possuem treinamento para esse tipo de tarefa; problema que iremos rever em várias ocasiões nas páginas seguintes. Além disso, quando começamos, não existia, que eu o saiba, nenhum método estabelecido para treinar os médicos clínicos no psicodiagnóstico e na psicoterapia. De modo que tivemos que encarar três tarefas diferentes, se bem que inter-relacionadas. A primeira consistia em estudar as implicações psicológicas na clínica geral; a segunda, em treinar para este trabalho os clínicos gerais; e a terceira, em conceber um método apropriado para efetuar tal treinamento. Este livro destaca particularmente o aspecto investigativo de nossa tarefa. O sistema de treinamento é descrito brevemente nos Apêndices 1 e 2. Algumas das discussões que se seguiram aos relatos dos médicos sobre seus respectivos pacientes permitem formar certa idéia do modo de funcionamento de nosso sistema de “pesquisa e treinamento” (ver especialmente os Casos 10, 15, 17, 19, 21, 23 e 24). © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
4
Nossa terminologia reflete a incerteza suscitada pela complexa estrutura da tarefa abordada. O objetivo principal de nosso trabalho de pesquisa e treinamento receberá no curso deste livro diversas denominações: discussão em grupo, conferência sobre casos clínicos, seminário de pesquisa, seminário de discussão, grupo de discussão etc., expressões todas que se referem ao mesmo, porém que o descrevem de ângulos diferentes. Segundo se verá, os clínicos fizeram todo o possível para atrair os psiquiatras a uma relação do tipo professor-aluno, porém por várias razões considerou-se prudente evitar tal tipo de relação. Propusemo-nos a criar uma atmosfera livre, de dar e receber, na qual cada um pudesse apresentar seus problemas, com a esperança de iluminá-los graças à experiência dos demais. O material de nossas discussões provinha quase que invariavelmente de experiências recentes com pacientes, relatadas pelo médico responsável. A continuidade do curso permitiu-nos seguir o desenvolvimento dos problemas dos pacientes durante dois ou três anos — às vezes durante períodos mais prolongados — e portanto comprovar até que ponto nossas idéias, diagnósticos, prognósticos, ensaios terapêuticos etc. eram ou não corretos e úteis (Apêndice 3). Nosso objetivo principal era o de realizar um exame razoavelmente completo da sempre mutável relação médico-paciente, isto é, o estudo da farmacologia da substância “médico”. No propósito de obter dados fidedignos para esse trabalho procuramos limitar ao mínimo o uso de material escrito nos nossos grupos de discussão. Não havia leitura de relatórios preparados ou manuscritos; solicitava-se aos médicos que informassem livremente sobre suas experiências com seus pacientes. Permitia-se o uso de nossas clínicas, porém apenas como um aide-mémoire e não como um précis. Desde o princípio foi nossa intenção que o relatório do médico incluísse uma descrição a mais completa possível de suas reações emocionais frente a seu paciente, ou mesmo de seu envolvimento emocional com os problemas deste. Só é possível obter uma informação sincera sobre o aspecto emocional da relação médico-paciente se a atmosfera da discussão é livre o bastante para permitir ao médico que fale espontaneamente. Toda informação baseada em material escrito e previamente preparado necessariamente envolve uma grande proporção de elaboração secundária deste material espontâneo, precisamente o que desejávamos evitar. Os capítulos que se seguem testemunham até que ponto fomos capazes de alcançar nosso objetivo. Que me seja permitido confessar de início que nossa contribuição à solução dos numerosos problemas implícitos no estudo detido da relação médico-paciente é bastante escassa, se bem que, de acordo com nossa opinião, ficará bastante nítida a direção geral em que deve desenvolver-se a medicina. Porém, mesmo se for impossível indicar uma terapia racional para uma determinada doença, ter-se-á avançado um passo se tiver sido criada a possibilidade de descrever os processos patológicos correspondentes e de oferecer um diagnóstico fidedigno. Este é, pois, o objetivo principal desta obra: descrever certos processos da relação médico-paciente (os efeitos secundários indesejáveis e involuntários da substância chamada “médico”) que provocam sofrimento desnecessário, irritação e esforços infrutíferos tanto do paciente quanto do seu médico. Até agora, certamente estes processos não haviam sido cabalmente observados ou, se o foram, sua importância não foi corretamente avaliada. Portanto, procuraremos descrever os sinais diagnósticos que permitirão ao médico que reconheça a tempo os processos patológicos. Só em terceira instância — e em proporções muito modestas — poderemos indicar o tipo de terapia aplicável a esse campo extremamente complicado. Minha primeira tarefa, portanto, consiste em colocar o problema que nos propomos investigar. Em resumo trata-se do seguinte: por que é tão freqüente que, apesar dos honestos esforços de ambas as partes, a relação entre médico e paciente resulta insatisfatória, e mesmo infeliz? Ou, em outras palavras, por que acontece que a droga “médico”, não obstante o aparente cuidado com que é receitada, não produz os efeitos desejados? Quais são as causas deste desenvolvimento involuntário, e como evitá-lo? © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
5
Fundamentarei todas as minhas deduções em observações clínicas concretas de pacientes individuais. Nenhum dos casos, entretanto, foi observado por mim. Como foi mencionado aqui, organizaram-se na Clínica Tavistock cursos nos quais grupos de médicos clínicos discutiram as implicações psicológicas de suas experiências cotidianas. Todos os casos citados neste livro provêm dessa fonte, e em sua maioria são relatados com as mesmas palavras do informante. Os resumos que fiz em certos casos, em benefício da concisão, foram submetidos à aprovação dos médicos a quem diziam respeito, antes de serem incluídos nesta obra. O esboço do livro foi distribuído a todos os médicos que tomaram parte na pesquisa, e dedicamos algumas reuniões à discussão do mesmo. Foram examinadas todas as objeções e se um número considerável de participantes se identificava com alguma das passagens, alterava-se ou omitia-se aquela em questão. Assim, a versão final é resultado de um autêntico trabalho de equipe. Porém, embora todos tenham participado na confecção deste livro, a responsabilidade do texto impresso me pertence integralmente. Para preservar o anonimato dos profissionais, ao longo de todo o livro usa-se apenas o pronome masculino, exceto em dois casos clínicos, os de número 22 e 24, nos quais o sexo do médico era importante no desenvolvimento da relação médico-paciente. Entretanto, cada profissional foi identificado mediante uma letra, para que o leitor possa estudar as diferentes atmosferas individuais criadas por eles. Um dos resultados inesperados da nossa investigação consistiu em que compreendemos quanto podem diferir estas atmosferas. O que parece absolutamente impossível em um consultório, é coisa corriqueira em outro (ver Capítulos 13 e 17). É evidente que a substância “médico” encontra-se muito longe de uma padronização. E, o que é ainda mais interessante, os pacientes podem beneficiar-se de todas estas variedades da substância. O que não significa, entretanto, que todas as variedades sejam igualmente benéficas. Pelo contrário, cada uma possui seus próprios efeitos colaterais, e a identificação de nossos médicos anônimos mediante uma letra do alfabeto ajudará ao leitor a perceber tanto os efeitos principais desejáveis como os efeitos colaterais indesejáveis de cada variedade. Preservar o anonimato do paciente demonstrou ser tarefa muito mais difícil. Fizemos tudo aquilo que estava ao nosso alcance para tornar irreconhecíveis os pacientes citados nesse livro. Os nomes não são mencionados, e sempre que é possível modificam-se as circunstâncias exteriores. Infelizmente, estas tentativas de disfarce têm um limite. Caso se avance em demasia nessa direção, a história clínica difere tanto do original que termina por constituir uma falsificação. Para evitar esse obstáculo, todos os aspectos essenciais, particularmente os de caráter psicológico do paciente, foram mantidos inalterados. Porém, isso significa que um paciente pode identificar-se na descrição de seu caso. Essa eventualidade, bastante indesejável, é infelizmente inevitável e, pelo que sei, nada se pode fazer para evitá-la com segurança absoluta. Para diminuir ao mínimo esse risco confinamos nossa seleção às histórias clínicas daqueles pacientes por quem julgávamos ser muito improvável a leitura deste livro. Porém, apesar de todas nossas preocupações, sei que, por azar, esta publicação pode provocar inconvenientes, certo desagrado e mesmo dor a este ou àquele paciente. Se isto ocorrer, não me resta senão expressar meu profundo e sincero pesar e oferecer a segurança de que é bastante improvável que a pessoa em questão possa ser identificada por outra que não ela mesma. As histórias clínicas têm um estilo bastante novelístico, e algumas delas são inclusive prolixas. Não teria sido difícil expurgá-las e imprimir apenas aquilo que fosse considerado essencial e relevante. Depois de certa reflexão resolvi não seguir esta linha de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
6
ação e sim imprimir os relatórios de acordo com a forma em que eram apresentados, sem preparação, em nossos seminários de discussão*. Um relatório cuidadosamente expurgado representa aquilo que nós psicanalistas consideramos os resultados de uma elaboração secundária, isto é, a retirada da maioria dos resíduos dos processos emocionais na mente do relator, ou de seus críticos, dando assim uma ênfase desproporcional aos processos intelectuais. Tendo mantido a forma original dos relatórios, espero que o leitor possa captar boa parte tanto do envolvimento intelectual quanto do emocional do relator e de sua audiência. Os casos descritos neste livro são principalmente do tipo simples e cotidiano, que comparece no consultório de qualquer médico, de um extremo a outro do país. Acalento a viva esperança de que, lendo-os, os médicos reconhecerão um ou outro de seus próprios e tão familiares pacientes. Esse foi exatamente nosso propósito: colocar os médicos em condições de observar com renovado interesse sua própria experiência cotidiana, para comprovar que há problemas que, por terem sido ignorados pela medicina, suscitam boa quantidade de trabalho desnecessário, e aos pacientes, muitos sofrimentos e inúteis irritações. Como já disse, posso oferecer solução apenas a uma parte dos problemas suscitados por esta obra. O restante deverá aguardar novas investigações. Entretanto, espero que nostas observações facilitem aos médicos a percepção dos problemas em desenvolvimento, antes que estes ponham a perder a relação que mantêm com certos pacientes, e que um conhecimento mais cabal e uma percepção mais aguda lhes permitam impedir certos desenvolvimentos indesejáveis. O livro foi dividido em três partes. A primeira, que inclui os Capítulos 2 a 9 sobre o diagnóstico, é de caráter principalmente crítico, às vezes uma crítica muito severa. Abrigamos a esperança de que se compreenda claramente que nossa crítica não implica a idéia de que a medicina como um todo necessita urgentemente de reforma. Pelo contrário, nos propomos a demonstrar quais são os aspectos do pensamento médico e da prática profissional que exigem revisão. Em nossa opinião, esses aspectos poderiam resumir-se na seguinte expressão: a patologia da pessoa total. A segunda parte da obra — Capítulos 10 a 15 — ocupa-se da Psicoterapia feita pelo Clínico Geral. Foram incluídos apenas os casos tratados por clínicos gerais. Esta sessão é, inevitavelmente, um tanto heterogênea. A principal razão disto reside na parcimônia de nosso conhecimento, que não nos permite tratar sistematicamente o tema. A terceira parte — Conclusões Gerais — está formada por seis capítulos um tanto desconectados. Neles, procurei resumir os resultados positivos de nossa investigação. Como mencionado, na maioria dos casos, em lugar de soluções apenas achamos problemas, porém também possibilidades de investigação futura. No Apêndice 1 descreve-se o estado atual de nosso sistema de treinamento, seguido por um apêndice sobre o problema da seleção; um terceiro apêndice abrange o desenvolvimento de todos os casos relatados, pelo menos até 31 de dezembro de 1955; finalmente, no quarto apêndice, John D. Sutherland descreve uma importante função complementar da clínica psicológica. Desde logo, devo advertir ao leitor que não achará neste livro nenhuma referência à literatura sobre o assunto. A principal razão é de caráter pessoal. Sou um leitor desordenado e não sistemático. Embora saiba que certos autores podem ter escrito sobre este ou aquele aspecto de nosso campo de investigação, meu conhecimento da literatura especializada não é de confiança. Para sanar esta deficiência, deveria dedicar-me a compor uma bibliografia espúria, ou consagrar-me a vários meses de duro trabalho de biblioteca. Teria detestado ambos.
*Como regra geral, uma estenógrafa experiente, a Srta. Doris Young, achava-se presente e anotava tudo o que era dito, praticamente de maneira textual. As informações aqui reproduzidas estão baseadas em suas anotações.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
7
Em conseqüência, devo aceitar as incertezas e limitações provocadas por minha ignorância. É perfeitamente possível que várias de nossas observações tenham sido antecipadas por outros, os quais talvez inclusive tenham efetuado descrições mais precisas ou mais claras. Se assim for, peço desculpas e renuncio a qualquer prioridade. Ainda tenho outra desculpa para falta de referências. Deliberadamente mantivemos a autonomia e auto-suficiência de nossa investigação. Desejávamos comprovar até onde nós — uma equipe de clínicos gerais e de psiquiatras — poderíamos chegar apoiados exclusivamente em nossos próprios recursos, situação que os médicos conhecem demasiado bem. Portanto, esse livro baseia-se naquilo que costumávamos chamar “a coragem da nossa própria estupidez” (ver Apêndice 1); logo, referências a outros autores estariam bastante deslocadas.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
8
Capítulo
2
O Problema Geral
Como assinalei na introdução, não é raro que a relação entre o paciente e seu médico seja tensa, incômoda e mesmo desagradável. É nesses casos que a substância “médico” não produz os efeitos esperados. Estas situações são muito freqüentemente trágicas; o paciente tem verdadeira necessidade de ajuda, o médico tenta honestamente tudo que pode — e, entretanto, apesar dos esforços de ambas as partes, as coisas tendem obstinadamente a andar mal. Nossos primeiros quatro casos ilustrarão esse tipo de situação.
CASO 1* (RELATADO PELO DR. M.) Sra. C., 32 anos; casada, sem filhos. A paciente está na clínica do meu colega desde princípios de 1946. Queixava-se então de dores torácicas e epigástricas. Meu colega enviou-a a um eminente especialista em abril de 1946, que informou: “Alegra-me informar-lhe que a radiografia de tórax desta paciente é absolutamente normal. Parece muito alegre com isso e acho que a maioria de seus sintomas é funcional; espero que o apoio que dei a ela tenha sido de algum valor.” Pouco depois a paciente voltou a se queixar de dores no peito e foi enviada a uma clínica especializada para que fizesse uma radiografia. O médico da clínica informou em maio de 1946: “Apraz-me comunicar-lhe que não há indícios de tuberculose pulmonar ou pleural. Creio que a dor epigástrica origina-se na parede abdominal, isto é, de origem provavelmente muscular ou fibrosa. Sugiro a aplicação de massagens.” Tentou-se massagem, porém com pouco êxito. Era uma cliente assídua do consultório e a atendi pela primeira vez em outubro de 1946. Pensei então que seus sintomas poderiam ser conseqüência de uma “apendicite crônica”. Primeiro, enviei-a a um ginecologista, e esse me escreveu em 1947: “Esta senhora é desconcertante. Foi vista pelo Dr. L., que realizou um exame completo sem nada encontrar, e devo admitir que não posso descobrir nada
*Este caso clínico foi publicado no British Medical Journal (1954), vol. I, p. 115.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
9
de anormal, não tendo encontrado o menor indício do ponto de vista ginecológico. É difícil dizer se, dado às dores constantes no lado direito e à constipação crônica, existe a possibilidade de apendicite, porém, se desejar, falarei com um dos nossos cirurgiões ...” Solicitou-se o parecer de um cirurgião e este declarou em outubro de 1947: “... aconselhei-a a internar-se no hospital a fim de que se procedesse à extirpação do apêndice.” Em dezembro de 1947 efetuou-se a apendicectomia. Desde então veio ver-me quase todas as semanas; queixava-se de uma variedade de dores, às vezes na fossa ilíaca direita, às vezes nas costas e me irritava com sua conversa aparentemente irrelevante e sua resistência a se retirar quando eu estava assoberbado de trabalho. Enviei-a a um cirurgião ortopédico famoso, devido a sua persistente lombalgia. Este me comunicou em janeiro de 1948: “O dorso é flexível, se bem que existe certa flacidez na musculatura lombar. Estou providenciando tratamento no departamento de fisioterapia.” A Sra. C. compareceu regularmente todas as semanas a meu consultório, queixou-se dos mesmos sintomas anteriores e começou, para surpresa minha, a flertar agressivamente comigo. Certo dia lhe comuniquei, de maneira bastante abrupta, que era muito pouco o que eu podia fazer por ela e que era melhor que regressasse a seu trabalho de vendedora, e não voltasse a ver-me durante algum tempo. Não voltou até 1950. Insistiu novamente em suas antigas dores e queixas, e em atitude de criança submissa (“Sentiu saudades de mim?” e “Espero que não volte a aborrecer-se comigo”). Continuou a comparecer semanalmente, tornou a mostrar-se sedutora e tentou colocar seu pé sobre o meu e um dia sua mão sobre a minha. Rechacei-a e ela chorou; retirou-se, porém para retornar na semana seguinte e durante as semanas posteriores. Em cada ocasião recebeu de cinco a dez minutos de conversação e um vidro de remédios. Desde então, devido a ter compreendido melhor a existência das alterações de personalidades, concedi a ela uma entrevista de uma hora, durante a qual, inter alia, falou de sua infância, do pai que estava na Marinha, quase sempre fora de casa, de um irmão mais jovem muito querido, cujo falecimento coincidiu com o início dos sintomas, de sua dispareunia desde o princípio de seu matrimônio e de sua total incapacidade em manter relações sexuais desde a morte do irmão. Maiores investigações estão sendo feitas. Desde essa entrevista sua atitude em relação a mim mudou muito, não há mais tentativas de sedução e seus sintomas melhoraram. Porém foram necessários quatro anos e uma apendicectomia para chegar a essa conclusão. Mea culpa! CASO 2 (RELATADO PELO DR. E.) Sra. A. e seu filho recém-nascido (em julho de 1948). Desde que nasceu, a criança tem estado freqüentemente doente e com má saúde; tosse, resfriado, amigdalite, anorexia, crises de choro, prolapso retal etc. Investigações hospitalares todas negativas. A mãe sempre muito preocupada com a criança, e descontente frente a sua falta de progresso. Más condições domésticas. A família vivia no andar superior de uma velha casa tipo sobrado, sem nenhuma comodidade, e a água, o carvão, o lixo e os detritos tinham que ser carregados pelas escadas. Apartamento térreo ocupado por um homem de 84 anos, com esposa de 44. Até a idade de 80 anos, muito viril. Aproximadamente nessa idade tornou-se adoentado, reclamando muito pela perda de sua virilidade. Mais ou menos na época em que nasceu a criança da Sra. A., a saúde do ancião havia começado a decair, iniciando-se a enfermidade final, que durou cerca de nove meses. Era um inválido pouco agradável, e constituiu uma sobrecarga para sua esposa, para o médico e para todos os vizinhos. A esposa tornou-se angustiada e emocionalmente abalada, o que se refletiu sobre a família do andar superior. (A família do primeiro andar olhava com respeito aquela que ocupava o andar inferior e se esforçava para submeter-se às suas normas.) As queixas provocadas pelo choro da criança etc. acarretaram muitos conflitos, os quais se refletiam na ansiedade da © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
10
mãe e nas doenças da criança. Desde a morte do ancião, a viúva voltou a trabalhar; sua saúde mental melhorou, bem como as relações com a família do apartamento de cima. Como conseqüência disso, melhorou a saúde da Sra. A. e também a de sua criança. Agora a criança comparece raramente ao consultório — até o ponto em que chama a atenção quando o faz — embora ainda apresente prolapsos ocasionais. Em janeiro de 1949 a Sra. A mudou de médico e não tornamos a vê-la até fevereiro de 1950, quando voltou a procurar-nos. O caso no 3 foi relatado pelo Dr. P em uma das reuniões nas quais discutíamos pacientes que aparentemente não podiam ser ajudados. CASO 3 Sexo feminino, 60 anos de idade, não muito inteligente. Procurou vários hospitais para consultar vários especialistas. Durante diversos anos sofreu de bronquiectasia. Agora apresenta regularmente três queixas: dores de cabeça, mal-estar gástrico e tonteiras. Quando receito medicação para as dores de cabeça, na consulta seguinte se queixa do seu estômago, e quando trato do estômago, na próxima vez queixa-se das tonteiras. Tentei falar com ela, porém não deu resultado, pôs-se a chorar quando lhe expliquei que todos esses remédios eram ineficazes. Sugeri que trocasse de médico porém recusou-se a fazê-lo. Comprovei que a única maneira de tratá-la consiste em continuar fornecendo as medicações que solicita, e agora se sente feliz. Está em vias de mudar-se do apartamento que ocupa e durante os seis últimos meses tem-me dito: “O Sr. deve ficar feliz por saber que vou-me embora.” Digo-lhe que não é assim, e que realmente desejava ajudá-la, e acrescentei que estaria a sua disposição sempre que necessitasse de mim. CASO 4 (RELATADO PELO DR. R.) Paciente do sexo feminino, solteira, 47 anos. Procurou o médico pela primeira vez em maio de 1953, queixando-se de lacrimejamento no olho direito, que se seguira a um resfriado. Fora isso, declarou que sua saúde geral era boa. O único resultado do exame físico foi a descoberta de uma discreta conjuntivite angular. Muito excitável, falou bastante. O médico sugeriu que algo poderia não andar bem, porém ela negou. Receitou-se um colírio e foi-lhe dito que voltasse uma semana depois caso não melhorasse. Não regressou até setembro, quando seu médico estava de férias — foi atendida pelo substituto. Declarou que tinha uma “queixa desagradável”, que se descobriu tratar-se de uma hemorragia provocada por uma pequena hemorróida. Foi difícil examiná-la, pois queixava-se continuamente deste “problema terrivelmente desagradável”. Receitou-se supositórios, com a recomendação de que retornasse duas semanas depois caso não melhorasse. Voltou um mês depois e se queixou de que não podia dormir durante a noite e que sentia a garganta “muito apertada, como se alguém me estivesse estrangulando”, e pareceu muito preocupada. O médico lhe assegurou que não havia sinais de enfermidade física, porém a paciente insistiu em que devia tratar-se de anemia pois sempre havia sido anêmica. Foi enviada ao hospital para que se efetuassem análises de sangue. O patologista informou que a taxa de hemoglobina era de 110% e quando a paciente soube que seu estado era normal comentou: “Oh, que desagradável... não, não me entenda mal... quero lhe dizer que seria uma explicação tão simples para minha insônia.” O médico replicou que aparentemente ela realmente desejava ter anemia e sua resposta foi: “Não, eu não quero estar doente, porém qual pode ser a causa de meus sintomas?” Quando sua própria pergunta lhe foi dirigida, comentou: “Bem, suponho que se trata de algo mental.” Ao que agregou que, em tal caso, não necessitava de ajuda médica, pois seu “senso comum lhe permiti© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
11
ria superar o problema”. O médico convidou-a a regressar caso se sentisse disposta a conversar sobre seus problemas ou dificuldades emocionais, uma vez que naquele momento não desejava fazê-lo. A paciente regressou apenas seis meses depois. Afirmou que tinha sofrido dores de garganta durante todo o mês anterior. Tinha trocado de emprego, e agora ocupava o cargo de enfermeira em uma fábrica, porém não se achava satisfeita. Havia uma faringite aguda bem definida, associada a hipertermia (39,9ºC). Depois de um tratamento médico simples com pastilhas e gargarejos, sua condição tinha melhorado quando vista novamente, quatro dias depois. Espontaneamente informou que tinha estado muito preocupada, e que achava que isto “devia ser a causa da dor de garganta”. Três semanas depois, compareceu novamente ao consultório, desta vez devido à repetição da perda sangüínea e da dor durante a defecação. O exame revelou a presença de uma pequena fissura anal. Prescreveu-se um tratamento local simples. Durante o exame mostrou-se muito menos rebelde que em ocasiões anteriores. A paciente observou que seus males deviam-se seguramente “à tensão psicológica no trabalho”. Solicitou-se que voltasse ao cabo de uma semana, caso não se sentisse melhor, porém quando este relatório foi escrito (dois meses depois, em julho de 1954) ainda não havia regressado. Mais adiante, no Capítulo 5, teremos que discutir algumas das implicações gerais das observações clínicas deste tipo para a prática médica cotidiana. Aqui, desejo acrescentar que, na discussão que se seguiu a este último informe, assinalou-se novamente que a história clínica era típica. A paciente parecia sugerir várias “doenças” a seu médico, às quais o médico respondia com os exames físicos apropriados, seguidos de uma terapia racional, com a qual anulava cada sugestão, demonstrando que era injustificada ou infundada. O médico concordou plenamente e apresentou o prontuário da paciente, o qual confirmou amplamente o observado. Dado que a ficha dessa paciente relata uma história típica, é aqui reproduzida como representativa de inúmeros casos do mesmo tipo, encontrados na casuística de todos os médicos. Notas do médico anterior*. 1948 — Dezembro. Procurou um hospital-escola com dor no baixo-ventre, diarréia. raiosX de tórax n.d.n. História familiar negativa sem problemas torácicos. 1949 — 26 de fev. Hemorragia subconjuntival. Escotomas. 4 de mar. Melhorada, Pluravit. 16 de mar. Unhas quebradiças. Receitado tônico. 8 de abr. Melhorada? Carúncula. 8 de set. Debilitada. Insônia. Funcionamento intestinal regular. Bom apetite. Prescrito: ferro e brometo de potássio. 23 de set. Caiu sobre a mão esquerda ontem à tarde. Escoriações em torno da articulação metacarpo-falangiana, do polegar esquerdo. 10 de out. Melhorada. Flexão ligeiramente restringida. Articulação metacarpo-falangiana do polegar esquerdo. 19 de nov. Ligeiro aum. no tamanho do polegar esquerdo. Imobilização. 6 de dez. Nervosismo fácil. Sono apenas suficiente. Sedativo. 1950. 20 de fev. Queimadura na membrana mucosa do palato. Prescrita tintura e tônico. 30 de mar. Patologia abdominal? Nada ao exame. Retirados pão e batatas. 17 de maio. Benadryl N. B. G. Hy. (Anotação ilegível porém aparentemente medicações para resfriado.) 15 de jul. Ungüento para a pele. 15 de set. Parafina líquida para fazer o intestino funcionar. 21 de dez. Inflamação no olho direito. Colírio. 1951 — 13 de out. Resfriado uma semana. Tosse; fraqueza; sem febre. Pulso regular. Escarro com traços sangüíneos. Constipação. Toma Eno. Metatona. Xarope para a tosse. 25 de out. Refere temperatura de 39,8 à tarde (18 horas) sem tosse, úlcera do freio da língua. Cauterizada. 26 de out. Gânglios submentonianos aumentados. Temp. normal. 29 de out. Informa 39,9 ontem à tarde. Fácies n.d.n. T. 38,9. Pastilhas esta noite. Úlcera do freio da língua. Escara. 29 de out. T. 38.9. 2 de nov. T. 38.8. Urina n.d.n. Neurofosfatos. 5 de nov. Iniciou-se Per. — 3 semanas de intervalo. T. 38,8. 12 de nov.
*Como se trata de uma cópia exata, todas as abreviaturas aparecem na forma utilizada pelo médico.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
12
Melhorada. 1952 — 5 de jan. Melhorada. 31 de mar. Resfriado. Gânglios cervicais E. Urticária tipo rubéola sobre o rosto e o peito. Sarampo? 11 de jul. Prescrito ungüento. 11 de Nov. Catarro nasal e dor frontal. 1953 — 24 de jan. Resfriado catarral. Extração dentária há dois dias. Fatigada. Neurofosfatos. 5 de fev. Medicação 3 dias. Notas do médico atual. 1953 — 12 de maio. (Secretária em uma companhia) c/o lacrimejamento no olho D — há um mês “resfriado” e “garganta”. Bom estado geral. Engordou um pouco. Dorme bem. História clínica: Rubéola 1952. Varicela. Cirurgia da glândula parótida D. (cálculo?). Catamênios: Regulares. 3/25. Sem dor. Exame oftalmológico. Discreta conjuntivite angular (D). (Ansiedade em discutir?) 22 de set. Teve esta “queixa desagradável”. Foi atendida pelo substituto. Ele receitou-lhe supositórios. Hammam. e/Ox. Zinc. Funcionamento intestinal normal. Exame oftalmológico. Discussão geral. 26 de out. Acorda durante a noite — uma única vez. Sente que “minha garganta está muito estreita e provocando tosse”. Muito volúvel. Exame oftalmológico. Histérica. Encaminhada ao hospital para Hb. e R. B. C. 28 de out. Informe do lab.: 110% de Hb. Sem anemia. Quando soube que não era anêmica disse “que aborrecimento... não, não me entenda mal. Quero dizer que seria uma explicação tão simples para a minha insônia. Bom, suponho que se trate de algo mental. Meu senso comum me permitirá superar o problema”. Declinou oferecimento para discutir problemas. 1954. 30 de abr. Com dores recorrentes de garganta — um mês. Mudança de emprego — enfermeira industrial — não gosta dele. Temp. 39,9oC. Faringite. Trat.: cloreto de potássio 0,3h. Gargarejo com timol glicer. 3 de maio. Com dor ao defecar, acompanhada de perda sangüínea. Freqüência intestinal normal, evacuações normais, porém tensão ocasional. Comenta espontaneamente sua crença de que isso se deva a “problemas psicológicos no trabalho”. Exame oftalmológico. Pequena fissura anal. (Desta vez não ofereceu dificuldade durante o exame.) Tr. Ung. Nupercainal. Emul. Liq. Parafin. o.n. Antes de seguir adiante desejo chamar a atenção para a notável diferença entre as notas dos dois médicos. Ambas são corretas e completas — porém até certo limite. A primeira é uma versão taquigráfica das doenças, dos achados físicos e da terapia racional prescrita — tudo isso redigido de acordo com o modelo habitual dos prontuários de um atarefado ambulatório hospitalar, omitindo tudo o que não é absolutamente necessário. O segundo médico age de uma forma um pouco mais completa. Além dos dados concretos, ele registra alguns detalhes das expressões e comportamento emocional característicos do paciente — mas nada acerca de si mesmo, como se suas próprias contribuições fossem tão sem interesse ou tão estereotipadas que qualquer médico treinado fosse capaz de adotar a mesma conduta. Apenas no seu relatório para o seminário é que notamos alguns lampejos no desenvolvimento do relacionamento entre paciente e médico e, conseqüentemente, podemos formar uma idéia do que realmente acontece. Nós denominamos estas diferenças importantes “diferenças em profundidade ou nível”, e falamos então em profundidade ou nível da observação, do relatório, profundidade ou nível do diagnóstico, da terapia etc. Em vários dos capítulos que se seguem, voltaremos a abordar este tópico. Estas quatro histórias clínicas ilustram convincentemente a nossa primeira tese a qual, temo, soará bastante surpreendente a alguns dos meus colegas. Mas podemos citar inumeráveis casos clínicos que a suportem. Os quatro aqui selecionados constituem apenas uma pequena amostra. Pensamos que algumas das pessoas que, por uma razão ou por outra, acham difícil lidar com os problemas de suas vidas, apelam para o recurso de adoecer. Se o médico tem oportunidade de vê-los nas primeiras fases de seu tornar-se doente, isto é, antes que se acomodem numa doença definitivamente “organizada”, ele pode observar que esses pacientes, por assim dizer, oferecem ou propõem várias doenças, e que eles precisam continuar oferecendo novas doenças até que entre o médico e o paciente possa ser alcançado um acordo, que resulte na aceitação por ambos de uma das doenças como bem fundamentada. Em algumas pessoas este estado “não organizado” é © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
13
de curta duração e elas rapidamente se acomodam, “organizando” suas doenças; outras parecem perseverar nele e, embora tenham organizado parcialmente suas doenças, continuam oferecendo outras novas para seu médico. A variedade de doenças disponíveis para qualquer pessoa e limitada pela sua constituição, educação, posição social, seus medos conscientes ou inconscientes e fantasias acerca das doenças etc. Mesmo assim, como nestes quatro casos, a despeito dessas limitações, há sempre várias ofertas e proposições. Um dos mais importantes efeitos colaterais — senão o principal efeito — da substância “médico” é sua resposta às ofertas do paciente. Neste livro tentarei acompanhar os caminhos sinuosos ao longo dos quais um compromisso estabelecido entre o médico e o paciente é alcançado, os diversos estágios desta rota, as principais proposições, contraproposições, ofertas, aceitações e rejeições que têm lugar. Dedicarei especial atenção às contribuições por parte do médico no sentido de acomodar um paciente, que não pode ser completamente curado, em uma doença aceitável e, finalmente, mas não menos importante, ao preço que tem que ser pago tanto pelo médico quanto pelo paciente por este compromisso. Finalmente discutirei algumas das alternativas disponíveis para o médico no sentido de ajudar seu paciente a conscientizar seus problemas e encontrar uma solução menos custosa do que se acomodar a uma doença aceitável e de longa duração. Agora, considerando os quatro casos relatados aqui, a contribuição de cada um dos quatro médicos foi diferente, embora cada um deles tenha atuado e se comportado tão objetivamente quanto possível e certamente de acordo com as regras da ciência e da clínica médica. No Caso 1 o clínico, por assim dizer, aceitou todas as várias doenças que lhe foram oferecidas pelo paciente e o encaminhou a eminentes especialistas, correspondentes a cada uma das “doenças” propostas. Os especialistas, por sua vez, fizeram seu trabalho como devia ser feito; relataram corretamente que nada pôde ser encontrado, ou propuseram uma terapia racional quando havia alguma justificação para ela. Mesmo assim, todo este procedimento foi ineficaz, uma vez que o paciente precisava de alguma coisa completamente diferente, e apenas quando o médico conscientizou-se do que lhe era solicitado, e permitiu e ajudou o paciente a conscientizar e expressar seus problemas reais, foi que toda a situação — tanto os insucessos passados, quanto os sofrimentos presentes — se tornou inteligível*. Como voltaremos ao Caso 2 no Capítulo 4, desejo apenas ressaltar que durante todo o período de observação este clínico aceitou todas as doenças oferecidas pelo paciente como bem fundamentadas, prescreveu uma terapia correta a curto prazo para cada uma delas, obtendo como resultado sucesso a curto prazo, mas não pôde contribuir em nada para a cura real. A cura final deveu-se a eventualidades externas. O Caso 3 ilustra uma desagradável situação bastante conhecida entre um médico bem intencionado, tolerante e compreensivo, e seu paciente cooperador mas aparentemente incurável. Embora ambos tenham tentado com afinco, um a ajudar e o outro a ser ajudado, não se pôde obter nenhuma melhora real. Uma das razões foi a de que o paciente havia-se acomodado a sua doença organizada e outra foi que, nesta fase, o médico achou impossível alcançar o cerne do problema. O Caso 4 ilustra, numa pureza quase clássica — especialmente se levarmos em conta a história prévia —, o esforço entre o médico e o paciente na busca de um possível compromisso. Neste caso a reação do médico foi algo diferente daquela dos três antecedentes. Ele não só aceitou cada uma das menores doenças que lhe foram oferecidas, bem como prescreveu o tratamento apropriado para elas ou anulou-as pelo exame físico apropriado, mas também tentou mostrar a seu paciente que forçosamente deveria haver uma causa
*Ver, entretanto, o relatório de evolução no Apêndice 3.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
14
comum a todos esses pequenos desconfortos. À medida que as ofertas eram anuladas, o paciente ia sendo pouco a pouco encurralado, e teve que perguntar, de maneira muito relutante, se esta causa comum não poderia talvez ser “mental”. Se bem que isso tivesse constituído uma atitude terapêutica de muita importância caso tivesse ocorrido antes, nesta fase tardia, quando o relacionamento entre o médico e o paciente já se havia tornado algo tenso e desconfortável, a paciente teve que rejeitar a ajuda oferecida, dizendo que “meu senso comum me permitirá superar o problema”. Quando o esboço desse capítulo foi discutido pelo nosso seminário, sofreu críticas muito agudas. Os médicos concordaram com a minha descrição e discussão dos processos dinâmicos, mas mantiveram a opinião de que o problema básico não havia sido clarificado suficientemente. Finalmente, um deles me desafiou, dizendo que se pedíssemos a cada um dos participantes que externassem sua opinião a respeito daquilo que consideravam consistir o problema real, não se obteriam duas respostas iguais. Eu aceitei e o resultado aparentemente consagrou o desafio. De acordo com um médico, o problema era: “O que o paciente necessita do seu médico e o que ele na verdade consegue?” Outro perguntou: “O que é que o paciente não pode conseguir de seu médico e o que faz com que ele continue voltando numa tentativa de consegui-lo?” Um terceiro: “O que é que o médico dá ao paciente que o paciente não quer ou não precisa?” Eu penso que todas essas formulações podem ser consideradas como variações do mesmo tema; a minha formulação não sendo nem a mais verdadeira nem a mais importante do que qualquer uma das outras. Como deve o médico “responder” às “ofertas” do paciente de maneira a evitar um desfecho indesejável como os descritos nos quatro casos clínicos precedentes? Esta questão implica que as respostas do médico podem e freqüentemente contribuem consideravelmente para a última e definitiva forma da doença à qual o paciente se acomodará. Antes de seguir adiante, eu proponho ilustrar a utilidade dessa idéia com mais alguns casos clínicos.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
15
Capítulo
3
As Ofertas dos Pacientes e as Respostas do Médico
Permitam-nos usar um caso bastante simples, bem conhecido de todo clínico. O Dr. E, responsável pelo Caso 5, relatou em junho de 1954: CASO 5 Sr. U, 36 anos de idade. Um operário altamente especializado, ganhando cerca de 15 libras semanais, casado, dois filhos. Muito feliz, exceto pelo fato de que seu filho mais jovem tinha há quatro anos sofrido nefrite aguda e desde então tem estado muito doente. O Sr. U teve poliomielite quando criança e sua perna esquerda é cerca de 4 polegadas mais curta, sendo necessário que use uma bota. Entretanto, lida com a sua enfermidade bastante bem. A doença do garoto é bastante trágica mas ele se comporta bem, embora a doença abale muito sua mulher. Ele dirige carro, e leva sua família para passar fora fins de semana. Em fevereiro, enquanto trabalhava, alguém manipulou uma conexão elétrica e ele recebeu um choque muito grave. Saiu ileso, mas perdeu a consciência por cerca de 15 minutos. Voltou a si e se recuperou completamente. Eu penso que ele então procurou o médico de seu serviço ou talvez o tenham enviado para o departamento de emergências do hospital local. Duas ou três semanas depois ele me procurou, queixando-se de dores em toda a região anterior de seu peito, na região lombar, na perna direita e na mão direita, dizendo que as dores pioravam cada vez mais. Examinei-o cuidadosamente e cheguei à conclusão que não tinha havido nenhuma lesão orgânica, embora ele pensasse que algo havia acontecido consigo durante o choque elétrico. Como parecia muito preocupado a esse respeito, sugeri que solicitasse a opinião de um especialista, o que ele aceitou. Voltou a ver-me a noite passada. Tinha feito todos os exames. A carta que me foi enviada pelo hospital dizia que não tinham podido encontrar nada e que “gostaríamos que o paciente fosse visto pelo nosso psiquiatra”. Eu disse a ele que nada de errado tinha sido encontrado, e ele disse que isso era estranho porque suas dores estavam muito piores. Ele disse: “Eles parecem pensar que eu estou imaginando coisas — eu sei o que eu tenho.” Depois de conversar de uma maneira muito agradável durante alguns minutos, © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
17
ele declarou pensar que o hospital talvez pudesse ter cometido algum engano. Ele está sem dúvida alguma doente, e gostaria de saber o que poderia provocar todas estas dores. “O que dizem os livros a respeito?” Eu não respondi, exceto para dizer que não se tratava de procurar nos livros, que, por exemplo, se ele tivesse uma perna quebrada, ele não me pediria para indicar a causa, e sim para melhorá-la. Finalmente eu disse que como ele não podia aceitar a opinião do hospital, talvez ele gostasse de se dirigir a um hospital completamente diferente para ser novamente examinado. Não se mostrou entusiasmado, dizendo que fariam a mesma coisa e não encontrariam nada de errado. Eu não estava certo de como continuar, de qual o próximo passo a tomar, de maneira que sugeri que ele voltasse novamente para maiores discussões dentro de uma semana. Naturalmente, este é um caso trivial, do tipo que ocorre freqüentemente em quase todos os consultórios. Simples como parece ao primeiro contato, suscita um grande número de problemas difíceis, tanto teóricos quanto práticos, que precisam ser discutidos em detalhes. Comecemos com o problema já mencionado: o paciente “propondo uma doença” ao médico — um primeiro passo muito importante na história de qualquer paciente. Neste caso, em períodos diferentes, podemos estudar um compromisso aceito, uma oferta feita pelo paciente, em seguida uma feita pelo médico, e a rejeição de ambas por cada qual em sua vez, e finalmente algumas das conseqüências que se seguiram. Primeiro, o compromisso aceito. Um homem gravemente incapacitado consegue, com ajuda de seu compreensivo médico, um equilíbrio mental e físico altamente satisfatório — muito provavelmente algo que o impulsionasse e fizesse compensar suas insuficiências físicas por uma grande eficiência. Logo, repentinamente, é submetido a um grave choque elétrico, que provoca inconsciência e possivelmente — no aspecto psicológico — mais do que isso. Sua reação constituiu um desenvolvimento gradual de dores em toda a região frontal do corpo — a parte que estava voltada na direção de onde proveio o choque — com a surpreendente exceção da perna defeituosa. O quadro completo, isto é, a doença “proposta”, sugere fortemente uma reação psicológica — uma estranha mistura de medo, submissão e negação — tal como se ele estivesse dizendo: “Alguma coisa terrível aconteceu — eu tenho medo de ter sofrido graves danos em toda minha frente, possivelmente também na minha perna já defeituosa, mas não, isto não pode ser; eu tenho dores praticamente em todos os lugares, exceto na minha perna esquerda.” É neste ponto que o médico começa a trabalhar. Fiel ao seu treinamento, seus primeiros passos consistem em excluir todas as complicações físicas possíveis, embora não haja nenhuma evidência que as sugiram. Além do mais, o acidente aconteceu em fevereiro e o paciente não compareceu até o final de maio. Mesmo assim, o primeiro movimento foi o de perguntar pela opinião de um especialista. Como esperado, este foi negativo, e a consciência do médico quanto à sua responsabilidade pôde ficar em paz. Ele agora tenta induzir o paciente a uma segunda série de exames, desta vez por um psiquiatra. Mas o que aconteceu ao paciente — e, ainda mais importante, no paciente — neste meio tempo? Ele volta a seu velho amigo em quem pode confiar, o médico de família, assolado por dores, ansiedades, medos, numa expectativa confiante e amistosa, esperançosa de ajuda, compreensão e simpatia. É verdade que ele recebeu uma boa quantidade de tudo isso, mas foi então colocado nas engrenagens da rotina de um exame hospitalar, quase certamente com um grande número de pessoas estranhas vestidas de branco disparando perguntas sobre ele. Talvez tenha, talvez não, conscientizado que todos estavam dirigindo suas opiniões mais e mais no sentido de qualificar suas queixas como um desejo de compensação, ou para usar um termo mais na moda, uma possível neurose de compensação, e tentaram o melhor que puderam preveni-lo contra ela. O que ele realmente percebeu, entretanto, foi que todos os médicos esforçavam-se em convencê-lo de que não havia nada de errado com ele, isto é, estavam rejeitando sua proposta. Quando © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
18
voltou a seu médico com o relatório do hospital, a atitude anterior, amistosa e de confiança, tinha sido bruscamente alterada, o paciente modelo tinha se transformado em um homem desapontado, desconfiado. Poder-se-ia ter feito algo no sentido de evitar esta reviravolta indesejável? Na discussão que se seguiu a esse relatório foi sugerido que talvez a ordem dos exames devesse ter sido invertida. Apesar de tudo, se um paciente aparece com sintomas fortemente sugestivos de um problema renal, não se começará por mandá-lo fazer um raio X de tórax ou um trânsito intestinal. Talvez da mesma forma, pacientes provavelmente sofrendo de problemas psicológicos, devam ser examinados em primeira instância por um psiquiatra e só se o exame mostrar ser necessário, examinado então por um cirurgião ou por outros especialistas. A melhor resposta a essa sugestão foi dada por um dos médicos, que assinalou que se um clínico geral enviasse tal paciente a um psiquiatra em primeira instância, ele certamente receberia uma carta indignada acusando-o de negligência por não haver procedido antes ao exame clínico do paciente. Voltaremos ao problema aqui levantado, a ordem própria de exames especializados. O pensamento médico é hoje em dia crucialmente influenciado pelo medo de não se identificar algum problema físico enquanto se concentra a atenção em possíveis causas psicológicas. Há várias razões para esse medo e no próximo capítulo elas serão discutidas, bem como seus efeitos no desenvolvimento das atitudes do paciente e do médico em relação à doença. Neste momento, quero assinalar que negligenciar uma possível doença psicológica apenas para que se fique seguro de que não foi diagnosticado nenhum processo físico, pode ser tão deletério para o futuro do paciente quanto a citação geralmente oposta, quer dizer, concentrando indevidamente atenção nas implicações psicológicas e conseqüentemente negligenciando possíveis causas físicas. Talvez uma maneira de evitar a mudança indesejável que ocorreu na relação entre o médico e seu paciente possa ser aquela de o médico ter dito ao paciente: “Eu penso que suas queixas são devidas a algum efeito psicológico tardio do choque que você sofreu, e portanto o nosso interesse deve ser inicialmente dirigido para um exame psicológico realizado de maneira apropriada; por outro lado, para estarmos seguros e apenas por desencargo de consciência, pediremos também a um especialista que examine seu corpo.” O exame psicológico — da mesma forma que o exame físico — poderia então ser realizado pelo próprio médico ou se ele não se acha suficientemente competente, por um especialista. No caso do Sr. U, tudo correu de maneira satisfatória até que ele foi enviado para um exame hospitalar. Anteriormente, o relacionamento entre o paciente e o médico, na verdade entre o médico e toda a família, tinha sido excelente, se bem que bastante tensão tenha ocorrido em ambos os lados devido à grave doença do filho mais jovem. Nem mesmo a “doença” provocada pelo acidente pôde alterar o espírito de cooperação amistosa. Apenas quando o paciente suspeitou que os médicos iriam de alguma forma rejeitar suas “proposições”, isto é, não iriam compreender sua doença ou, ainda pior, não se interessariam em compreender, foi que a relação começou a sofrer. O paciente começou a sentir — insidiosamente no início — que talvez os médicos não mais estivessem de seu lado, que possivelmente, na verdade, estivessem contra ele. E, por conseguinte, o até então paciente modelo foi assim forçado primeiro a uma discussão com seu médico, uma discussão que poderia mais tarde desenvolver-se em uma batalha de magnitude. No entanto, não podemos esquecer que a despeito da tensão e da suspeita, o paciente ainda está assustado e perdido, necessitando desesperadamente de ajuda. Seu problema principal, que não pode resolver sem ajuda, é: qual é a sua doença, a coisa que provocou suas dores e que o assusta? Em outras palavras: “O que é que dizem os livros?” © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
19
Quero aqui enfatizar que praticamente sempre este é o principal e mais imediato problema; a necessidade de um nome para a doença, um diagnóstico. É apenas na segunda instância que o paciente pede por terapia, isto é, o que pode ser feito para aliviar seus sofrimentos por um lado e as restrições e privações provocadas pela doença por outro. O não prestar atenção a esta ordem de importância é a causa de uma forma muito freqüente de irritação e de amargo desapontamento na relação médico-paciente — outro efeito colateral indesejável da substância “médico”. Quando um paciente, após uma série de cuidadosos e conscienciosos exames, recebe a notícia de que nada foi encontrado de errado nele, os médicos esperam que ele se sinta aliviado e mesmo que melhore. Certamente isso acontece com muita freqüência, mas em numerosos casos ocorre exatamente o oposto, sendo que a reação habitual do médico a este — a despeito de sua freqüência, sempre inesperada — evento é dolorosa e cheia de surpresa e de indignação. Isso talvez pudesse ser evitado se os médicos tivessem em mente que encontrar “nada de errado” não é resposta para a pergunta mais crucial do paciente, um nome para sua doença. Além do temor quase universal de que aquilo que encontramos é tão assustador que não contaremos para ele, ele sente que “nada de errado” significa apenas que não encontramos e, portanto, não podemos dizer a ele o que o assusta ou aterroriza e provoca-lhe dores. Desta forma ele se sente abatido, incapaz de explicar e aceitar suas dores, medos e privações. Com toda certeza não consistiria nenhuma ajuda para ele saber que suas suspeitas são justificadas; que a declaração “nada de errado” algumas vezes realmente significa que a medicina não sabe o que há de errado em seu caso particular. Minha principal razão para o tamanho da discussão deste caso trivial é que aqui o conflito entre o médico e o paciente está aberto. É verdade que isso não é completamente reconhecido por ambos, mas ambos sabem e sentem que suas relações estão sob tensão. O paciente pergunta “o que dizem os livros?” e em vez de responder a pergunta honestamente, o médico replica: “Não se importe com sua doença, pense apenas em suas dores e preocupações que eu possa resolver.” Deixando de lado a dúvida se esta promessa pode ser cumprida de forma tão completa como insinua a resposta do médico, a falta de compreensão entre o paciente e o médico é clara. Os problemas cruciais do paciente permanecem sem resposta, seu pedido de um nome para sua doença inominada e assustadora é deixado frustrado, isto é, sua “oferta” é rejeitada. Além disso, não se dá a ele a oportunidade de liberdade para exprimir seus medos e desapontamentos com franqueza. Pelo contrário, tenta-se transmitir uma confiança questionável de que não há nada de errado com ele, encoberta pela “oferta” de uma segunda série de exames desagradáveis e com uma promessa de ajuda vaga, e não muito realista. Assim ocorre uma perigosa confusão de línguas, cada parte falando em uma língua não entendida e aparentemente não entendível pela outra. Esta situação é capaz de provocar discussões, desapontamentos e freqüentemente mesmo controvérsias abertas e batalhas. Como mencionado, nesse caso a controvérsia é aberta. Existem vários casos nos quais — se bem que os sinais de uma confusão de línguas entre o paciente e seu médico estejam dolorosamente presentes — não há aparentemente controvérsia aberta. Alguns desses casos demonstram o trabalho de dois outros fatores, freqüentemente interligados. Um é constituído pela crescente ansiedade e desespero do paciente, resultando em queixas clamorosas mais e mais ferventes por ajuda. Freqüentemente a reação do médico consiste em sentimentos de culpa e desespero de que seus exames, feitos da forma a mais conscienciosa e mais cuidadosa, não tenham esclarecido corretamente a “doença” do paciente, que sua terapia a mais erudita, a mais moderna e a mais circunspecta não provoca alívio real. O próximo caso ilustrará esse ponto. Eu gostaria de prefaciá-lo, dizendo que foi relatado por um médico completo e consciencioso, ótimo em diagnóstico, sinceramente interessado em ajudar seus pacientes. Além de sua clínica, ele era assistente clínico de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
20
meio expediente no departamento médico de um grande hospital. Este caso clínico baseia-se no relatório do médico apresentado ao seminário e nas discussões que se seguiram, mas a compilação foi feita por mim mesmo. CASO 6 O paciente era um homem de 35 anos, diretor de uma companhia, aos cuidados de seu médico atual apenas nos últimos três meses. Ele tem estado doente por vários anos, queixando-se de dores no abdômen. Consultou vários especialistas eminentes e caros, e foi submetido a inumeráveis exames radiológicos, testes de alimentação etc. Seu apêndice foi removido no decorrer desses anos. Além disso, apresentava diarréia periódica, eructações e mesmo vômitos; um dos muitos diagnósticos foi “cólon espástico”. A família do paciente veio para a Inglaterra como refugiada poucos anos antes da guerra e viveu em condições muito restritas. No início da guerra o paciente alistou-se no Corpo de Pioneiros e foi muito feliz lá. Depois de algum tempo, entretanto, ele começou a perder peso. Foi mandado para o hospital e, em dado momento, contra sua vontade, foi considerado inválido para o exército e tem estado doente desde então. Após sua dispensa ele empregou-se na firma atual. Ele não tem capital e tem que aceitar condições muito duras, tais como pagamentos, principalmente de comissões com um salário muito pequeno e sem segurança. Embora ele seja um trabalhador árduo e de muito sucesso, e tenha melhorado muito os negócios, de certa maneira não consegue encarar seu patrão e pedir um aumento e condições mais seguras. Isso deve-se em parte pelas suas próprias dificuldades, mas parcialmente também pela personalidade do patrão, um homem duro e exigente, ele também muito doente e sob os cuidados do mesmo médico. O patrão costumava dar ao médico instruções de como tratar o paciente, e queixava-se de que os negócios estavam sofrendo repercussões da doença. O médico mantinha, entretanto, que não lhe interessavam os negócios, mas apenas o paciente. A mulher do patrão, uma sócia nos negócios, era ainda uma exploradora ainda mais implacável. O médico, achando que os vários sintomas poderiam constituir a expressão somática da ansiedade do paciente quanto à sua situação financeira insegura, aconselhou-o enfaticamente a solicitar um contrato mais adequado, mas o paciente foi incapaz de seguir este conselho. Sugeriu-se então que se submetesse a tratamento psiquiátrico, com o que o paciente concordou, mas após uma sessão com o psiquiatra, ele subitamente partiu para o continente para uma estação de águas. Sentiu-se muito melhor lá, mas recaiu após seu retorno e foi necessário ministrar-lhe sedativos para controlá-lo. Foi então chamado para uma viagem transatlântica por avião a fim de cuidar de um importante negócio. Se bem que previamente ele gostasse de voar, desta vez sentiu-se incapaz de fazê-lo e estava em tais condições que o médico o declarou incapaz de voar. Como se tratava de um assunto muito importante, o patrão moveu céus e terra para fazê-lo embarcar. O médico foi severamente censurado e grande pressão foi exercida sobre o paciente. O médico embora fosse também o médico responsável pelo patrão, permaneceu inabalável e tomou providências para que fossem realizados inumeráveis exames “completos”, desta vez em seu próprio hospital. O paciente, entretanto, não pôde suportar a tensão, concordou em voar, cancelou a hora marcada no hospital e reservou sua passagem. Dois dias depois ele voltou ao seu médico em desespero; ele simplesmente não podia encarar a idéia de viajar, o avião lhe provocaria claustrofobia. Desta vez o médico encorajou-o a não revogar a sua decisão, deu-lhe mais alguns sedativos e aparentemente foi bem-sucedido em reconfortá-lo, uma vez que o paciente saiu do consultório sentindo-se tranqüilo. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
21
Passado algum tempo o médico soube que o paciente tinha embarcado no avião, o qual, entretanto, teve que interromper a decolagem devido ao fato de o paciente ter apresentado um ataque agudo de claustrofobia. Chamou-se uma ambulância e ele foi levado para uma clínica de repouso onde seu antigo psiquiatra tomou conta dele. O clínico geral inicialmente decidiu manter-se afastado, principalmente devido ao fato de que o psiquiatra estava muito confiante de que com a administração de pentotal ele seria capaz de ajudar o paciente quanto às suas dificuldades imediatas; o paciente, entretanto, bombardeou o médico com telefonemas, até que ele concordou em tomar parte no tratamento, embora permanecesse duvidoso se o paciente seria capaz de cooperar com o psiquiatra. A principal razão para as suas dúvidas era o caráter do paciente. Até então o paciente tinha sempre concordado com todos os conselhos do médico, mas acrescentou que seria incapaz de executar estes conselhos porque seus nervos não suportariam a tensão. Tal era a situação quando o médico relatou o caso em uma de nossas discussões. Os problemas foram avidamente abordados pelo grupo. Um tempo considerável foi gasto quanto às possíveis razões pelas quais o paciente era incapaz de resolver os seus problemas, se bem que plenamente consciente deles, e porque o aumento da tensão levou a uma deterioração da sua condição física. O interesse principal, entretanto, centrou-se na abordagem terapêutica “certa”. O médico então acrescentou a sua descrição do paciente como sendo um homem inteligente e culto, dado a argumentos, que pode facilmente “controlar” seu médico. A maioria do grupo sugeriu lidar com o caso usando pulso forte; o médico não “toleraria coisas descabidas”, dever-se-ia dar um ultimato ao paciente. O médico recusou-se a aceitar isso; afirmou que seu trabalho era o de ajudar o paciente e não de brigar com qualquer de seus sintomas. O médico achou estranho, entretanto, que o paciente fosse capaz de tomar decisões difíceis em seu emprego, mas incapaz de tomá-las na vida privada; e o problema ainda mais intrincado era o de o paciente ser capaz de entender e aceitar explicações intelectuais, mas que essa aceitação intelectual não tinha efeito sobre o seu comportamento neurótico. Maiores detalhes foram relatados e logo tornou-se claro que o paciente sentia dificuldades apenas quando lidando com pessoas fortes, especialmente homens. Seu padrão era o de aceitar com sensibilidade qualquer conselho que lhe fosse dado, então desafiar o homem forte por uma deterioração na sua condição, isto é, por uma atitude de desamparo e fraqueza. Na discussão esse padrão foi comparado tal como a um estado alérgico em relação a certos tipos de estímulo, e alguns médicos retomaram seus antigos pontos de vista e recomendaram em sensibilizar o paciente com uma dose heróica, por exemplo, declarando que não mais se toleraria coisas sem sentido, esmurrando a mesa, fornecendo um ultimato, etc. A discussão que se seguiu, então, revelou graves dúvidas acerca da sabedoria de tal procedimento, tal dose heróica muito provavelmente cairia dentro do padrão do paciente e ele não hesitaria em responder com ainda mais fraqueza e submissão. O médico mostrou-se muito contente com essa mudança de opiniões durante a discussão e relatou que em diversas ocasiões tinha sido fácil curar a diarréia do paciente com alguma droga adequada por um período em torno de 15 dias, mas que em seguida o sintoma retornava. Além disso, o paciente era inteligente e desenvolvia dores em lugares onde não havia órgãos, isto é, ele tinha “órgãos” onde o médico não esperava encontrá-los. Outra sugestão foi a de dizer ao paciente que ele sofria de ansiedade crônica e que seu corpo reagia ao medo de forma patológica. De maneira característica o médico novamente concordou mas disse que isso também havia sido tentado e os resultados tinham sido nulos. Além disso quando o médico admitiu para o paciente que ele mesmo tinha problemas similares, isto é, sintomas somáticos quando em estados ansiosos, mesmo isso não aliviou os medos do paciente. Nesta fase alguns dados mais importantes foram relatados: o paciente sentia-se feliz entre homens (o curto período saudável durante seu serviço © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
22
no Corpo de Pioneiros), casou-se com a filha de um de seus companheiros, mas adoeceu logo depois do casamento. Discutimos, então, a possibilidade da existência de uma tendência homossexual latente no paciente, que pudesse explicar esses fatos e também porque ele tinha medo de ser “tratado” por um homem forte, porque primeiro ele capitulava e em seguida desafiava o homem forte com uma exacerbação de suas doenças etc. Na semana seguinte o médico relatou que no dia anterior à discussão o paciente tinha pedido alta da clínica de repouso devido a não poder suportar as injeções que lhe eram ministradas. O psiquiatra aborreceu-se e recusou a fazer qualquer outra coisa pelo paciente, logo nossas previsões quanto à inutilidade de um ultimato foram aqui provadas corretas. O médico rapidamente providenciou outro exame de raios X, o qual entretanto resultou inteiramente negativo. Quando informado deste fato o paciente mostrou-se muito aborrecido e desapontado, e o médico, em seu embaraço e para salvar o homem do desespero de si mesmo como um farsante sem valor, apontou para uma ligeira escoliose no relatório radiológico, acusou esta escoliose como responsável pelas dores e prescreveu um colete ortopédico. Na discussão que se seguiu o médico foi severamente censurado por ter sido insincero com o paciente. Foi-lhe dito que teria sido melhor se tivesse sido franco. Além disso, se o paciente concordou, o melhor que lhe poderia esperar seriam anos de tratamento ortopédico espúrio, envolvendo muita inconveniência e despesas desnecessárias. O médico aceitou essa crítica mas disse que tinha sido forçado a fazer alguma coisa porque acreditava que o paciente estava muito próximo de uma depressão grave, mesmo do suicídio. A outra questão discutida foi porque esperamos que os pacientes se sintam aliviados quando se lhes conta que não há nada de errado do ponto de vista orgânico com eles. Nós nos defrontamos com esse problema complicado já anteriormente quando discutimos o Caso 5; eu não quero seguir todas essas ramificações agora; serão discutidas mais tarde, no Capítulo 6. Próximo ao final desta reunião, foi levantada a proposição de que se enviasse o paciente a um departamento psiquiátrico para investigação apropriada, mas ficamos com a impressão de que ao clínico geral não era muito agradável esta sugestão. Uma semana depois, novamente no final do encontro, o clínico retomou ele próprio a discussão da semana prévia. Era óbvio que as graves críticas relacionadas com a sua insinceridade ainda o incomodavam. Ele relatou que havia submetido o paciente a outro exame completo, e que a escoliose não era tão irrelevante quanto parecera dantes; parecia agora que estava relacionada com ileíte regional. O médico estava obviamente muito orgulhoso de seu diagnóstico, mas sua satisfação não era completa. Contou-nos que seu paciente havia freqüentemente dito que se alguma coisa orgânica fosse encontrada para os seus sintomas ele estaria imediatamente livre de toda e qualquer ansiedade; mas agora com a ileíte tinha sido encontrada, o paciente não parecia de forma alguma contente. Todos os clínicos gerais congratularam-se com o médico por seu sucesso em ter encontrado a causa “real” dessa doença tão pouco clara*. Apenas os psiquiatras estavam bastante reservados e tinham que assinalar que, a despeito da descoberta de algum processo orgânico, o problema psiquiátrico permanecia sem solução. O médico concluiu, mas — talvez encorajado pelo seu sucesso — admitiu sua atitude ambivalente em relação a todos os tipos de psicoterapia, e especialmente à psicanálise. Ele não gostaria de submeter seu paciente a qualquer tipo de terapia que lhe fos-
*Este caso foi relatado num período muito inicial da nossa pesquisa. Quando discutindo o esboço deste livro, praticamente todos os clínicos foram incapazes de aceitar a minha descrição como correta. Ela é, na verdade, baseada em um registro da discussão feito durante o decorrer da mesma.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
23
se desconhecida. Todos nós concordamos que este seria um preço muito alto a ser pedido a um médico. Entretanto, tinha que se perguntar se essa atitude redundaria em beneficio para o paciente. Mesmo que o paciente não abandonasse o tratamento desta vez, mas se submetesse à operação e tivesse uma boa recuperação, era muito pouco provável que seu caráter e atitude em relação à vida pudessem ser mudados pelo bisturi do cirurgião. O médico estava mais esperançoso do que os psiquiatras. Ele contestou que neste caso as dores tinham se tornado um aspecto especial da personalidade. Agora, se o órgão doente tinha sido encontrado e iria ser removido, as dores iriam muito provavelmente desaparecer, provando ao paciente que ele tinha estado genuinamente doente e não neurótico. Tal experiência talvez pudesse ajudá-lo a recuperar-se completamente. Sou obrigado a encerrar o meu relatório agora, uma vez que o clínico nunca voltou a comparecer a nossos seminários, a despeito de várias cartas enviadas, convidando-o a que o fizesse. Uma interpretação é fácil: os fatos podem ter provado que o médico estava errado e que nós, os psiquiatras céticos, estávamos certos. É possível que seja assim, mas ao mesmo tempo a história clínica mostra também que nós, os psiquiatras, estávamos completamente errados no nosso tratamento ministrado ao clínico. Nossas interpretações, explicações — isto é, nosso tratamento — foram ineficazes e de pouca valia; o médico não pôde aceitar o nosso conselho nem ver que ele estava caminhando na direção errada. Além disso, esse caso é um lembrete útil para que não se espere muito de explicações intelectuais, mesmo quando elas se apóiam em fatos incontestáveis. Cada um dos participantes do grupo de discussão, psiquiatras e clínicos gerais, estava ciente da possibilidade de que as coisas poderiam correr mal com este paciente, exceto o próprio clínico. Ele permaneceu durante todo o tempo convencido de que a orientação mais adequada era a de continuar examinando o paciente até que uma causa orgânica pudesse ser encontrada, e então tratá-la; os sintomas neuróticos iriam então desaparecer sem maiores cuidados. Esta é uma crença quase que geral, provocando um grande número de exames, operações e tratamentos não muito necessários, ou mesmo bastante desnecessários. Embora este seja um problema altamente importante da medicina, para o nosso tópico presente é apenas de interesse secundário. Aqui nós encontramos novamente um paciente “oferecendo doenças a seu médico”. Infelizmente, neste caso, a despeito da necessidade desesperada de ajuda de um lado e trabalho consciencioso, incansável e circunspecto do outro, médico e paciente não puderam se entender. Como mencionado, o mesmo era verdadeiro para o clínico e os psiquiatras. No Caso 5 esta falta de compreensão levou ao início de uma controvérsia, e aqui leva a uma confusão de línguas que provoca uma quantidade desnecessária de sofrimentos para todos aqueles envolvidos. Há uma série de pontos nesta história clínica que iremos discutir mais tarde com maiores detalhes. Mas, antes de fazê-lo, eu gostaria de demonstrar através de mais uma história clínica uma forma especial deste “oferecer doenças” ao clínico. Esta é a forma que denominamos “a criança como o sintoma de apresentação”. Todos os participantes de nosso curso concordaram que em um grande número de casos, quando crianças, principalmente recém-nascidos, são trazidas com freqüência ao consultório, a pessoa realmente doente é a mãe (mais raramente o pai, muito freqüentemente os pais). Geralmente a doença particular do recém-nascido pode ser tratada com facilidade, mas apenas para dar lugar a uma outra. Este é um problema extremamente importante para a medicina em geral. Freqüentemente falamos de uma natureza hereditária das neuroses, ou de constituição neurótica etc. Eu não quero negar que tudo isso exista. Mas além da constituição herdada há o condicionamento direto da geração mais jovem pela neurose da mais velha, o passar da neurose de uma geração para outra, um fenômeno que poderia ser descrito como tradição neurótica. A criança, como sintoma de apresentação da doença de um ou de ambos os pais, é um campo facilmente acessível para o estudo dessa tradição. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
24
O Caso 2 é uma boa ilustração destas nossas proposições. Devido à sua importância, entretanto, eu desejo relatar mais um caso dentre os muitos que foram estudados. CASO 7 (SOB OS CUIDADOS DO DR. G.) Senhora D, 32 anos de idade. (Irlandesa.) Cerca de dois anos atrás fui chamado para examinar seu filho que contava então cinco anos de idade e que sofria o seu primeiro ataque de asma; desde então ele tem sofrido ataques graves com uma periodicidade de cerca de três meses e tendo havido necessidade de hospitalizá-lo por três vezes, quando a adrenalina não aliviava a crise. A Senhora D. compareceu a semana passada com outra criança e perguntei como estava passando Michael, o asmático. Ela disse que ele havia recebido alta recentemente do hospital e que se encontrava bem. Então eu disse “e como está a senhora?” e seus olhos ficaram marejados de lágrimas. Foi a primeira vez que eu pensei que pudesse haver algum aspecto psicológico em seu caso. Perguntei se ela gostaria de voltar e conversar comigo, após as horas de consultório, proposição esta com a qual ela prontamente concordou. É uma mulher jovem, bonita, simpática e serena, que aparenta 25 anos dos 32 que na realidade tem. Tem quatro filhos, um menino de 8, outro (Michael) de 7, uma menina de 4 e um menino de 3. Michael apresentou seu primeiro acesso de asma em julho de 1952 e a Sra. D tinha tido um filho em setembro de 1951. Michael é muito sereno, bem comportado, na verdade o melhor dos quatro filhos que tem. Ele fica em casa mais do que sai para brincar, e se tem algum dinheiro extra não compra doces para si mesmo, mas alguma coisa para ela, ovos por exemplo. Em relação a ela própria, tem-se apresentado deprimida por algum tempo, com insônia e cefaléias. Ela sempre foi muito ansiosa em relação a Michael, como, por exemplo, o fato de mandar buscar para ele ovos na Irlanda, porque os acha melhores do que os ovos ingleses. Seu pai morreu na Irlanda quando ela tinha seis meses de idade. Ela tem seis irmãos e irmãs. Sua mãe voltou a casar-se quando ela estava com 3 anos. O padrasto era muito bom, mas ela nunca conseguiu gostar dele. Desta segunda união nasceram quatro irmãos e irmãs. A mãe faleceu há onze anos, o que constituiu um duro golpe para a paciente. Dois dias antes da morte da sua mãe devido a uma hemorragia cerebral, a Sra. D sonhou que estava ultimando os preparativos para seu funeral. Ela também teve dois sonhos consecutivos nos quais olhava fotografias de seu próprio pai. Quando a mãe teve os filhos do segundo matrimônio, ela diz que sentiu-se relegada a um segundo plano. Ela não se comunica com o padrasto. Toda a sua infância foi uma luta contra a pobreza, e após abandonar o lar trabalhou em serviços domésticos. Ignorava tudo sobre sexo antes de se casar e a iniciação veio como um grande choque para ela. Era acostumada a ir à igreja regularmente, e sempre quis ser freira. Seu marido nunca sai com ela; quando ela vai ao cinema, vai sozinha. O marido não tem interesse ativo nas crianças; ele chega em casa, lê os jornais e vai para a cama. As crianças gostam muito dele, mas se por um acaso ele deixasse de vir em casa por uma semana, ela pensa que as crianças não perguntariam por ele. Certas coisas eram bastante óbvias. Desde a primeira conversa curta que tivemos assinalei que talvez as dificuldades que tinha tido em sua própria infância tivessem-na tornado ansiosa em relação a seus filhos. Apontei também o que a asma poderia significar; que o menino clamava por afeto; este assunto de comprar coisas para ela e não querer deixá-la é uma tentativa de comprar sua afeição, tentando provar que a ama, etc. nesta linha. Certamente poderia ter mencionado outras coisas, como, por exemplo, o sonho sobre a morte de sua mãe, e as fotografias de seu próprio pai, mas achei melhor esperar. Ela então mencionou que antes de uma de suas crises, Michael havia cortado sua mão. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
25
Pode-se especular se este fato foi deliberado ou inconsciente. Desejo acrescentar que até este momento apenas Michael era o paciente. Ele tinha sido examinado de forma realmente completa em dois hospitais pediátricos diferentes. Em nenhum foi mencionado qualquer aspecto psicológico do caso. Obviamente, não podemos aqui estender-nos na psicodinâmica de toda esta família e, em particular, não quero levantar o problema já tão vilipendiado da psicogênese da asma infantil, embora o caso contenha vários fatores interessantes que poderiam conduzir a conclusões importantes se fossem devidamente investigados; por exemplo, nas relações de Michael com seu pai distante e ausente (o qual, se bem que conste da lista do clínico, nunca foi visto por ele) e os detalhes mais sutis de suas relações com sua mãe superansiosa e eficiente. Em seguida há o problema de por que Michael teria tolerado sem doença o nascimento de sua irmã mais jovem e por que a asma começou só depois do nascimento da criança seguinte, que foi um menino. Do mesmo modo, alguns aspectos da neurose da mãe ficaram bastante nítidos depois desta primeira entrevista, se bem que, de forma alguma, todos eles. Talvez a parte mais importante de nosso tópico seja seu alto grau de inibição, principalmente no que diz respeito à auto-afirmação, ao egoísmo sadio agressivo e, acima de tudo, a fazer exigências. Tudo isso, somado a um ego bastante eficiente, possibilitou que se desenvolvesse “serenamente, sem confusões”. Isto fez com que o clínico por vários anos focalizasse sua atenção exclusivamente na criança, achando que a mãe não necessitava de ajuda. Na verdade, é quase certo que a sua maneira eficiente e adequada de lidar com a grave doença do menino era, de alguma forma, um pedido de ajuda. E tal idéia fica reforçada por sua perda de controle e choro quando o clínico demonstra pela primeira vez sinais de interesse, que na verdade era muito discreto. Aqui, nós temos a criança como sintoma de apresentação. Quando esse problema foi discutido, as opiniões entre os participantes do curso foram algo divididas. Alguns deles sustinham que caso tivessem tido a oportunidade e o tempo para investigar, teriam descoberto que praticamente todas as mães que freqüentam regularmente os consultórios com seus recém-nascidos constituíam casos psicológicos. Outros eram mais cautelosos; mas mesmo o mais cauteloso estimou que pelo menos um terço, se não mais, das mães que vinham devido a doenças de seus filhos, a criança podia na verdade ser considerada como o sintoma de apresentação da doença da mãe. Até que ponto pode-se suspeitar de um envolvimento do pai é muito difícil de estabelecer, uma vez que geralmente o pai, tal como no caso relatado, nunca comparece ao consultório; as conclusões devem ser tiradas de informações de segunda mão, as quais são sempre menos fidedignas. Mas há um grande número de casos em que a criança é obviamente o sintoma de apresentação da doença do pai. Durante a discussão um clínico mencionou uma família constituída por um jovem casal, com pouco mais de 20 anos, e duas crianças que praticamente tinham crescido em seu consultório. Suas visitas eram tão habituais que, quando o pai vinha sozinho, a filha mais velha, de três anos de idade, chorava porque não podia acompanhá-lo. Esta é uma boa ilustração dos casos que temos em mente. Na discussão, concordou-se que em cerca de um terço dos casos nos quais as crianças são trazidas ao consultório por seus pais, são os pais que necessitam de tratamento, que em um outro terço tanto os pais quanto as crianças precisam de tratamento, e que é apenas no terço restante que somente a criança precisa de tratamento. Aqueles que estão familiarizados com literatura psiquiátrica ficarão desconfiados frente ao reaparecimento desta proporção “um terço, um terço, um terço”. Admitimos que nossos dados baseiam-se apenas em conclusões subjetivas, mas constituem uma tentativa de descrever fatos empíricos muito importantes. Como explicá-los, é outro assunto. Possivelmente descrevem apenas a proporção de pessoas na população com problemas © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
26
de personalidade visíveis. Qualquer que seja a razão por trás desses dados, permanece o fato de que em muitos casos a doença de uma criança é também o sintoma de apresentação da doença dos pais. Mas retornemos ao nosso tópico principal. A Sra. D ofereceu a doença de seu filho ao médico, que a aceitou. Mãe, filho e médico acomodaram-se então para lidar com a asma do menino. Era esta uma situação boa o suficiente para uma terapia eficaz? O fato de que por mais de dois anos não se conseguiu muita coisa — a despeito dos cuidados médicos conscienciosos e da cooperação consistente por parte da mãe e da criança — fez-nos sentir algo duvidosos. Foi então que a gentil pergunta do médico iluminou a estrutura extremamente neurótica que se escondia por trás da eficiente fachada da Sra. D. A situação alterou-se substancialmente, mas devemos perguntar se para melhor ou para pior. Alguns assinalarão — de maneira bastante correta — que a asma em uma criança é geralmente uma doença exaustiva, muito crônica, que demanda muita paciência por parte de toda a família; em vez de quebrar as defesas da mãe o médico deveria tê-las reforçado; agora, além da criança asmática, ele também tem que tratar da mãe neurótica; de qualquer maneira, o clínico geral não pode fazer muito em casos tão difíceis, e as possibilidades de conseguir tratamento especializado para a Sra. D não são muito plausíveis. Por outro lado, deve-se admitir que seu diagnóstico do caso antes do evento, embora correto, era bastante superficial e incompleto. No conjunto, espera-se um diagnóstico mais profundo e amplo que permita ao médico uma definição mais exata do caso, e talvez também proporcionar um tratamento mais eficaz*. Voltaremos a este problema mais adiante. Para o tópico que abordamos no momento o ponto mais importante é constituído pelas reações do médico aos sintomas que lhe são apresentados. Sua primeira reação foi a de centrar sua atenção na asma do menino e excluir a doença da mãe. Sua segunda reação colocou também em foco a doença da mãe. Esta foi uma alteração considerável da situação, pela qual foi responsável o médico. Estes três casos, então, mostram claramente que as respostas do clínico às ofertas do paciente, ou ao sintoma de apresentação, é um fator contribuinte altamente importante para as vicissitudes da doença em desenvolvimento. Nos capítulos seguintes examinaremos alguns dos aspectos mais importantes das respostas dos médicos ou alguns efeitos colaterais tardios da substância “médico”.
*Ver evolução no Apêndice 3.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
27
Capítulo
4
Eliminação pelos Exames Físicos Apropriados
Nos capítulos anteriores vimos que quando algumas pessoas adoecem, oferecem a seu médico várias doenças em potencial (incluindo doenças de seus filhos), dentre as quais ele pode ou é forçado a escolher uma que seja aceitável. Neste capítulo, discutiremos um aspecto das respostas do médico às propostas do paciente, o aspecto que em medicina é tradicionalmente chamado diagnóstico. Permitam-me lembrar o caso do recém-nascido do sexo masculino (Caso 2) que foi levado ao médico por sua mãe uma ou duas vezes por semana praticamente durante um ano. O médico muito propriamente diagnosticou as várias doenças de menor importância presentes, tais como amigdalite, resfriado, gripe, tosse, bronquite, acessos de choro, etc. Muito conscienciosamente ele registrou todos esses rótulos de diagnóstico em suas anotações, prescreveu o tratamento apropriado para o caso em particular, e no papel o caso estava encerrado para ele. Ele sabia que a causa real da doença não residia na criança mas na relação mãe-filho, a qual não podia desenvolver-se livremente porque, em sua insegurança ansiosa, a mãe sobrecarregava de tensão a relação, restringindo a liberdade da criança além do ponto tolerável para uma criança sadia. Mas esse diagnóstico, o real, estava apenas na mente do médico e, embora ele estivesse consciente de sua importância e ele mesmo trouxesse o problema para discussão, foi necessário algum tempo e esforço para convencer tanto a ele quanto ao grupo de clínicos que compareciam ao seminário que todos os outros diagnósticos eram de certa forma superficiais e incompletos, talvez meramente uma forma de conveniência de curta duração. Como não tenho dúvida de que alguns de meus leitores sentir-se-ão relutantes em aceitar esse ponto de vista, proponho discutir em detalhe os argumentos a favor e contra ele. Permitam-nos usar um exemplo simples. A criança apresentava hipertemia, estava abatida, queixava-se de dor de garganta, e o médico via uma faringe inflamada e amígdalas vermelhas e aumentadas com folículos brancos. Seu diagnóstico, amigdalite folicular, foi confirmado pelos fatos, isto é, a criança melhorou em uma semana mais ou menos. Proponho que se deixe de lado considerações quanto a possíveis refinamentos deste diagnóstico, tais como a identificação de classe ou classes de cocos presentes na garganta e provocando alterações patológicas; ou, por © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
29
outro lado, as alterações que provocam uma diminuição da resistência da criança, tais como a exacerbação de um estado alérgico, desaparecimento de anticorpos sangüíneos, diminuição da resistência local nas amígdalas e na mucosa faríngea, etc. Mesmo se algumas ou todas estas alterações tivessem sido encontradas e fortalecessem o diagnóstico, não influenciariam meu argumento principal. Primeiro, o ponto de acordo; o diagnóstico “amigdalite folicular” estava correto até determinado ponto, da mesma forma o estavam os outros. Cada um deles descreveu adequadamente o estado presente do paciente, levou o médico a prescrever uma terapia eficaz, e permitiu-lhe prever com considerável precisão o curso desta doença em particular sob seu tratamento. Este é um dos possíveis níveis de diagnóstico. O que todos esses diagnósticos não fizeram foi capacitar o médico quanto a formar uma visão geral da situação, prever que o menino não se desenvolveria bem, padeceria de todos os tipos de enfermidades de menor importância, e — mais importante que tudo — eles não capacitaram o médico para prescrever um tratamento mais amplo que curaria não apenas a doença presente mas preveniria o desenvolvimento de qualquer outra doença futura. Este tipo de diagnóstico obviamente pertence a um nível diferente, mais profundo, ou mais amplo. A cura mais completa, correspondente a este nível mais profundo de diagnóstico, foi obtida neste caso através de acontecimentos externos que removeram alguns dos medos da mãe e facilitaram o seu modo ansioso e restritivo de lidar com seu filho. Todos conhecemos tais alterações bruscas, para melhor ou para pior, em nossos pacientes; geralmente não são compreendidas. O que eleva esse caso acima de tais experiências é que aqui o médico estava capacitado e teve a coragem para fazer um completo ou mais profundo diagnóstico ex-juvantivus. Entretanto, a despeito de sua coragem e perspicácia, mesmo depois de chegar a este diagnóstico mais completo e mais profundo, ele não se preocupou em mudar ou corrigir em suas fichas seus diagnósticos anteriores, considerados superficiais e incompletos. Além disso, mesmo quando na discussão perguntamos se alteraria ou os corrigiria, ele se recusou enfaticamente e, o que foi igualmente interessante, foi calorosamente apoiado em sua recusa por todo o grupo de clínicos. Indubitavelmente, confrontamo-nos aqui com uma divergência importante. Um médico geralmente sente-se embaraçado, mesmo envergonhado, se seu diagnóstico é considerado errado, não completamente correto ou mesmo apenas incompleto, e certamente não hesitaria em registrar o diagnóstico correto em suas fichas, fosse como uma correção ou como um adendo. Aqui, por consenso comum, tudo isso foi recusado. Uma razão apresentada consistiu nos aspectos profissionais; suponha que o médico tenha que fornecer um certificado, ou encaminhar o garoto a um especialista, ou — na eventualidade de o paciente se mudar para outro distrito — entregar suas fichas a outro clínico, etc.; em qualquer dessas situações seria fácil para ele, e seria entendido por seus colegas, falar ou escrever amigdalite, bronquite, etc., mas seria considerado bastante estranho, impróprio, se usasse as longas descrições psicológicas. O desejo de ser compreendido e aceito por nossos colegas é uma das razões que fazem com que nos mantenhamos presos a esses diagnósticos físicos incompletos. Esta atitude respeitosa frente aos rótulos de diagnósticos é, claro, também um legado de nosso treinamento. Os clínicos gerais têm sido treinados em hospitais por especialistas. Os especialistas sabem como curar doenças que pertençam a seu campo especial, se elas forem curáveis, e conhecem também as limitações de suas especialidades; mas, no que diz respeito à personalidade total do paciente, eles têm contato bem menor com ela, sendo que se pode mesmo suspeitar que não conhecem nada a respeito. Precisamos ter em mente que na clínica geral o problema real é freqüentemente a doença da pessoa como um todo — como tantas vezes foi pregado a todos os estudantes de medicina. A conse© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
30
qüência inevitável deste ensino, entretanto, é raramente mencionada, isto é, que as doenças descritas pelos rótulos hospitalares são apenas sintomas superficiais, e que os próprios rótulos, como aprendido nos hospitais-escola, são de pouco valor para a compreensão dos problemas reais com que se defronta o médico*. Isto significa que há uma clivagem entre a ciência médica tal como exercida nos hospitais e a clínica geral nos consultórios médicos. Há um grande número de casos onde as duas — a ciência médica e a clínica geral — pensam e atuam da mesma maneira, para grande benefício do paciente; mas há um vasto campo — nós estamos apenas começando a perceber quão vasto — onde as duas maneiras de enfocar divergem. Nosso conhecimento dos problemas funde-se com este outro, não bem delimitado, cujo campo é incerto, e nossa capacidade de lidar com eles é infelizmente baseada principalmente em dados empíricos e pouco na ciência. Talvez a principal razão responsável por este desagradável estado de coisas seja o fato de que os especialistas possuem, por assim dizer, apenas um conhecimento de segunda mão dos problemas descritos nos capítulos anteriores. Por outro lado, os clínicos gerais, que foram treinados pelos especialistas, são atraídos pelos sucessos de seus professores em suas respectivas especialidades, e em conseqüência tendem a pensar em seu próprio campo da clínica geral, de acordo quase que exclusivamente com as linhas de seus professores muito respeitados em seus próprios campos mas que têm muito pouca experiência da clínica geral. Outra razão importante para esta desagradável clivagem é a mutabilidade de nossa linguagem científica. Nós temos um conjunto extremamente útil de termos técnicos para descrever as experiências que os especialistas encontram em sua prática. Esta é uma linguagem exata e inequívoca, compreendida igualmente bem tanto pelo especialista e pelo clínico geral e usada por ambos com facilidade e segurança. Uma especialidade, reconhecidamente uma das mais jovens da medicina, ainda não foi capaz de desenvolver tal linguagem, e esta é a Psiquiatria. Ela divide esta insuficiência com a mais antiga das especialidades, a clínica geral. Esta necessidade de uma linguagem própria é uma razão para a compreensão insatisfatória e freqüente ponto de atrito entre o clínico geral e o psiquiatra. Nós psiquiatras ainda não podemos dar aos clínicos gerais o muito necessário conjunto de termos técnicos que possam por eles ser usados com confiança e que os ajudará a compreender os problemas mais profundos da personalidade de seus pacientes. Até o momento, nossas descrições de estados patológicos são vagas, complicadas, exaustivamente longas, facilmente confundidas quando não precedidas por longas explanações, e, o que é pior, qualquer clínico geral que as usa sente-se pouco à vontade por estar-se comportando como um intelectual, recherché e excessivamente consciente da própria importância. Desenvolver um grupo de termos para a discussão dos envolvimentos patológicos de uma pessoa como um todo, um grupo de termos tão bom como aqueles dos especialistas de hospital para descrever doenças específicas, será uma tarefa difícil que levará muito tempo para ser atingida. Será necessária uma estreita colaboração entre as duas especialidades primariamente envolvidas — a clínica geral e a psiquiatra. Um dos objetivos deste livro e assinalar esta necessidade e talvez contribuir um pouco para que nos aproximemos de alcançá-la.
*Quando discutindo o esboço desse capítulo, um médico mencionou um caso que relatamos a seguir: “Eu tive que encaminhar um paciente a um ortopedista. Ele não encontrou nada, mas começou a falar psiquiatricamente, com resultados os mais desastrosos. Sendo realmente excelente em seu próprio trabalho, ele pensava que psiquiatria era apenas senso comum, logo, sem que o percebesse, invadiu um assunto sobre o qual não conhecia nada. Esta é uma atitude muito comum entre os especialistas.” É necessário acrescentar que isso é verdade principalmente no que diz respeito à psiquiatria e clínica geral. Estas são as duas terras de ninguém, enquanto que todas as outras especialidades são geralmente cuidadosamente respeitadas.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
31
Qual, então, é a função deste nível de diagnóstico, para o médico por um lado e para o paciente, por outro? Para o paciente, a doença é sempre uma doença desagradável. Ele sente que algo não está correndo bem com ele, algo que pode vir a prejudicá-lo, ou que certamente o prejudicará, a menos que seja tratado com propriedade e rapidez. O que “este algo” é, é difícil saber. Freqüentemente “este algo” torna-se idêntico a seu nome, e para o paciente a função do diagnóstico é a de suprir o nome pelo qual este algo desagradável, malevolente e assustador possa ser chamado, pensado e talvez elaborado. A importância de reconhecer esta necessidade é bem ilustrada pelo Caso 5. Em outras palavras, estar doente e ainda freqüentemente pensado, e é certamente sentido, como ser possuído por algum demônio, e é crença geral, não apenas entre os pacientes, que o demônio possa ser expulso apenas pelo fato de se conhecer seu nome. Todos nós sabemos que isso está longe de ser sempre verdadeiro. O diagnóstico tem um efeito reconfortador para o médico e seu paciente. A atitude atual em medicina é que o tratamento não deve ser iniciado antes que se tenha chegado a um diagnóstico. Essa atitude é justificada e frutífera se o diagnóstico realmente descreve o processo patológico, isso é, se fornece muito mais do que apenas um nome nas mãos do médico. O diagnóstico “neurose” ou “neurótico” pode, como todos nós sabemos, ser feito por qualquer um, mas dificilmente indica ao médico qual o próximo passo a ser dado. É apenas uma espécie de nome mágico, e não diagnóstico no senso próprio. Se somos sinceros, devemos acrescentar que “neurose” é mesmo menos um diagnóstico do que dores, vertigem, constipação, cefaléias, etc., os quais são muito justamente detestados por qualquer professor de medicina. Talvez possamos também acrescentar, muito humildemente, que na clínica geral temos não raramente que nos contentar com tais diagnósticos inferiores. Além disso, os médicos, condicionados por seu treinamento, geralmente pensam primeiro no diagnóstico “físico”. As razões geralmente apresentadas são as de que as doenças físicas são mais graves e mais perigosas do que as doenças funcionais, isto é, que maior dano pode ser feito por não se diagnosticar uma doença física do que por não se diagnosticar uma doença funcional. Esta é uma meia verdade perigosa; em alguns casos as doenças físicas representam de fato uma ameaça mais séria ao bem-estar do paciente, mas em outros as doenças funcionais são sem dúvida as mais perigosas, como, por exemplo, no Caso 5 e no Caso 6, etc. Como conseqüência desta meia verdade, os médicos clínicos geralmente sentem-se muito envergonhados quando deixam escapar mesmo um pequeno ou extremamente irrelevante diagnóstico físico. (Uma boa ilustração é o Caso 2.) Outra razão para essa preferência pelo diagnóstico físico é que tal doença tem algo de mais definido e manifesto do que as funcionais. Parcialmente devido ao estado de nosso conhecimento, mas parcialmente também devido às falhas de nosso treinamento, os médicos sabem mais a respeito das doenças físicas, e seu melhor conhecimento faz com que eles se sintam mais seguros e em terreno mais firme do que quando têm que lidar com doenças funcionais ou neuróticas. Além do mais, e talvez este seja o fator mais importante, se o médico chega a um diagnóstico físico correto, mesmo se seu esforço terapêutico não obtém sucesso ou se não existe uma terapia apropriada para esta doença em particular, ele se sente reconfortado porque os sofrimentos do paciente podem ser debitados, explicados, o que por sua vez significa que podem ser aceitos pelo médico sem sentimentos de culpa. Ele sentirá, e estará certo, que fez um bom trabalho; ele encontrou a causa verdadeira do sofrimento. Pelo resto, ele não é responsável, mesmo se não há muito que ele possa fazer. Qualquer falha no sucesso terapêutico pode ser justificada pelo “presente estágio de nosso conhecimento”. Este tipo de pensamento compele o médico, quando diagnosticando, uma doença, a seguir uma seqüência de etapas curiosa e quase obrigatória, uma seqüência que é meca© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
32
nicamente obedecida sem que ao menos sejam examinadas suas vantagens ou suas desvantagens. (Ver Caso 1 e Caso 5.) Nós chamamos esta seqüência de acontecimentos, com discreto exagero, “eliminação pelos exames físicos apropriados”. Isto significa que as doenças são agrupadas em um tipo de ordem hierárquica grosseiramente correspondente à gravidade das alterações anatômicas que podem ser demonstradas ou presumidas nelas. Infelizmente, não apenas às doenças se aplica esse tipo de ordem, mas também aos pacientes, por assim dizer, presos a elas. Os pacientes cujas queixas possam ser acompanhadas de alterações anatômicas ou fisiológicas demonstráveis ou presumíveis têm lugar de destaque nessa escala hierárquica, sendo que os neuróticos ocupam os lugares deixados vagos depois de que todas as demais doenças tenham sido classificadas. Assim, é compreensível que cada médico, quando confrontado com um novo paciente, tente dar a este paciente um bom lugar na escala, relegando o paciente para a classe dos neuróticos apenas se não puder encontrar nenhuma justificativa para conferir-lhe um status respeitável. Um corolário desse estado de coisas é o fato de que cada médico orgulha-se de diagnosticar uma doença orgânica mas confessa com dificuldade o diagnóstico de neurose. Isto, também, é compreensível, se lembrarmos que o diagnóstico “neurose” pode ser feito por qualquer um, enquanto que diagnosticar uma doença física requer competência profissional especializada, permitindo ao médico sentir um orgulho justificável de seu diagnóstico. Outro corolário, que na verdade pertence aos Capítulos 16-17, sobre a função apostólica do médico, é que como resultado dessa atitude todos os nossos pacientes são treinados desde a infância para esperar um exame físico mais ou menos completo. Eles não são treinados para esperar qualquer exame psicológico e muito freqüentemente pode tornar-se amedrontado, desconcertado, ou mesmo ofendido frente a qualquer sugestão ou tentativa desse tipo. A atitude de alguns médicos a esse respeito é remanescente de meus dias de estudante, quando tínhamos que aprender a auscultar ou percutir, especialmente mulheres, através da vestimenta ou de uma toalha, porque nenhuma mulher bem-educada exporia, sem necessidade imperiosa, seus seios, mesmo para seu médico particular. Há outra falácia no enfoque da “eliminação por exames científicos apropriados”. Está implícito, se bem que não determinado, que o paciente não é alterado ou influenciado pelo processo de “eliminação”. O Caso 5 é apenas um dos inumeráveis casos que provam quão pouco verdadeira esta declaração pode ser. A atitude do paciente em relação a sua doença é em geral consideravelmente alterada durante e pelas séries de exames físicos*. Estas alterações, que podem influenciar profundamente o desenvolvimento de uma doença crônica, não são encaradas seriamente pela medicina e, embora ocasionalmente mencionadas, nunca foram objeto de investigação científica apropriada. De qualquer maneira, eu não conheço nenhum hospital no qual se dê tanta atenção de rotina às necessidades psicológicas de um paciente quanto àquela que é dada, por exemplo, ao funcionamento regular de seus intestinos. O máximo que o paciente pode esperar é apoio — rotina, bem intencionada, geralmente indiscriminada e freqüentemente ineficaz. Para resumir, geralmente os médicos clínicos preferem diagnosticar doenças físicas usando os rótulos aprendidos com seus professores especialistas, a diagnosticar proble-
*Posso usar um exemplo similar para demonstrar o que quero dizer? A análise dos conteúdos minerais de todo organismo vivo é altamente importante e, se realizada corretamente, fornece dados básicos que podem ser utilizados para qualquer teoria da vida ou de um processo fisiológico em particular. Mas esta análise pode ser realizada apenas depois que o organismo vivo tenha sido completamente incinerado. Embora não tão drástico, o “exame físico apropriado” de um paciente é igualmente incapaz para apreender e levar em conta processos sutis, psicológicos, e pode mesmo devastá-los. Qualquer um que se preocupe em sentar-se meia hora e ouvir um paciente durante o que se denomina “estadia de uma semana no hospital para observação” pode ter uma idéia das apreensões, ansiedades e fantasias incontroláveis das quais ele é presa durante este tempo.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
33
mas da personalidade como um todo. Como vimos, há várias razões para esta preferência. Primeiro não há na verdade um conjunto utilizável de termos para descrever o problema de personalidade de um paciente não psicótico; na prática aqueles que são disponíveis são pouco mais longe do que um punhado, tais como histeria, obsessão, neurose, ansiedade, depressão, etc. Quase não é necessário possuir-se experiência profissional para chegar a um diagnóstico desse tipo; ou, em outras palavras, neste campo o homem das ruas é quase tão bom quanto o médico treinado. Enquanto um diagnóstico real conduz o médico diretamente a uma terapia mais ou menos racional, o diagnóstico de problema da personalidade raramente o faz. Logo, há uma crença, absolutamente infundada, de que as doenças físicas são mais importantes que os problemas da personalidade. O resultado deste modo de pensar é o que chamei “eliminação pelos exames físicos apropriados” e a “ordem hierárquica” de doenças e pacientes.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
34
Capítulo
5
Incidência e Avaliação dos Sintomas Neuróticos
O primeiro objetivo deste capítulo é mostrar que “a eliminação pelos exames físicos” e a “ordem hierárquica” tais como foram descritas no capítulo anterior não existem na realidade. Uma das formas de se conseguir isto seria observar o médico trabalhando em seu consultório. Infelizmente, a presença de um observador inescrutável, não participante, afastado, influenciaria consideravelmente a atmosfera do consultório, talvez mesmo mudando-a basicamente. Se queremos evitar o risco, o único caminho é pedir ao médico que seja ele próprio o observador. Por conseguinte, solicitou-se aos clínicos que participavam dos seminários da Clínica Tavistock que anotassem em um dia combinado todos os pacientes vistos, mencionando suas queixas, os diagnósticos, os antecedentes psicológicos e o tratamento prescrito. Das listas de pacientes vistos eu escolhi duas, que serão relatadas completas. Desejo acrescentar que os dois médicos cujas listas foram escolhidas eram ambos conscienciosos, interessados no aspecto psicológico de seus pacientes e devotavam um tempo considerável à psicoterapia menor. Ambos trabalham em grupos de médicos muito atarefados, com longas listas e alguma clínica particular, o que significa que precisam trabalhar ininterruptamente e que não podem devotar tempo ilimitado para satisfazer aquilo que seus sócios consideram seu hobby psicológico. LISTA NO 1 (RELATADA PELO DR. M.) 1) Sr. Y, metalúrgico, 19 anos. Compareceu duas semanas atrás com conjuntivite. Não o conheço muito bem. Disse que quer voltar a trabalhar e requereu um certificado do Serviço Nacional de Saúde e dois certificados particulares, um para a companhia de seguros. Melhorou a semana passada, mas disse que não queria voltar ao trabalho então. Obviamente pretendia conseguir um pouco mais de dinheiro. 2) Sr. B, faxineiro, 63 anos. Paciente de meu sócio. Sofre de psoríase. Estava muito triunfante. Meu sócio havia-lhe dito que sua doença era incurável, mas havia sugerido um remédio “desesperado” — injeções de extrato hepático. Isso praticamente o “curou”. Ele disse que meu sócio ficaria muito contente quando o visse todo limpo e bem vestido. 3) Sra. F, 28 anos. Casada há dois anos. Queixas de dismenorréia. Obviamente histérica. Sempre alegre e sorrindo, do tipo que flerta. Também sofre de frigidez e é estéril. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
35
Quer e não quer um filho. Antes da última menstruação eu lhe dei pílulas para tomar e não apresentou dores. Ela mostrava-se em dúvida se as pílulas teriam sempre o mesmo efeito. Dois anos atrás consultou uma médica que lhe receitou pílulas que não lhe fizeram nenhum bem. Dei-lhe outra prescrição para a próxima menstruação e ela deverá voltar em seguida. 4) Sr. E, funcionário burocrata, 25 anos. Homem grande e forte, parecendo muito pouco um burocrata. Apresentou um panarício em um dos dedos do pé e queria sair de férias; perguntou se estaria tudo bem. Apliquei uma injeção de penicilina e deixei-o sair de férias. 5) Sr. H, operário, 41 anos. Sofre de asma crônica. Homem muito pouco inteligente. A esposa sofria de acne rosácea. Há oito anos tiveram um filho retardado mental e com paralisia espástica, que morreu há quatro anos, para grande alívio de ambos. Quando a criança nasceu a mulher mostrava-se freqüentemente doente. Desde a morte da criança a esposa não tem estado doente mas ele tem freqüentes crises de asma. Comparece de vez em quando pedindo um vidro de remédio e alguns dias de licença. Depois disso sente-se melhor por quatro ou cinco meses. Desta vez conseguiu seus remédios e alguns dias de licença. 6) Sra. M, 28 anos. Exame pré-natal. Feto com quatro semanas. Primípara. Muito bem e alegre. Medida a pressão arterial e feito o exame de urina. Retirou-se muito feliz. 7) Sr. B, 69 anos, comerciante. Pai de cinco filhos. Esposa sofre de cardiopatia há muitos anos. Ela era uma de nossas pacientes, mas nunca nos procurou ou chamou. Três ou quatro meses atrás morreu subitamente em uma cadeira. Os filhos todos sofrem de cefaléia. Conseguem certificados, não vão trabalhar e melhoram. No ano seguinte eles voltam novamente. Um dos filhos está particularmente mal, mas consegue grande alívio com pílulas cor de rosa (aspirina) que eu lhe dou já há cerca de sete anos. A nora do Sr. B é a mulher cujo caso eu relatei no seminário pouco tempo atrás — não conseguia abandonar o luto por sua mãe. Agora o Sr. B não pode abandonar o luto por sua esposa, embora eles não vivessem muito contentes juntos. Dei-lhe um tônico, e ele me verá novamente. 8) Sr. M, 23 anos, operário. Uma semana atrás tinha se queixado de dor no pulso esquerdo. O exame radiológico revelou uma fratura antiga, não consolidada, do escafóide do carpo esquerdo. Não se lembra de tê-lo traumatizado. Perguntei o que queria fazer a respeito e ele disse que deixaria que a decisão fosse minha. Encaminhei-o a um cirurgião ortopédico. Ele disse que não quer operação, mortalmente medroso de operações. 9) Sra. L, garçonete, 44 anos. Delgada, trajada com vestes muito pobres. Panarício por três a quatro semanas. Meu sócio deu-lhe injeções de penicilina. Ela contou que cada vez que vinham suas regras sofria de terríveis dores de cabeça, e solicitou-me que lhe desse tônico e pílulas como o fez meu sócio. Dei. Estava em dúvida se era realmente uma boa opção consultar-se comigo, e perguntou-me se eu achava que ela iria ficar boa agora. Ela também queria voltar a trabalhar, pelo dinheiro, logo liberei-a da licença. 10) Sr. M, jardineiro, 21 anos. Nascido na Alemanha, emigrou com 13 anos de idade — mãe alemã, viúva de guerra, trabalhou como doméstica aqui. Ele foi entregue a pais adotivos. Tornou-se um inglês completo, esqueceu quase tudo o que sabia de alemão. Muito feliz em seu trabalho; sua mãe voltou a casar, com um inglês. Vivem todos juntos e felizes com suas irmãs de criação. Tem aproximadamente 1,80m de altura, ombros muito largos. Disse que estava resfriado e com dor de cabeça e que sua mãe lhe havia mandado devido a ter sofrido anteriormente de bronquite e que não queria que adoecesse novamente. Eu lhe disse que era pouco provável que viesse a ter bronquite, que dissesse isso a sua mãe e que voltasse ao trabalho. Retirou-se aliviado e ainda com uma expressão muito infantil. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
36
11) Sra. C, com Susan, 7 anos de idade. Ela está se mudando de nosso distrito e veio dizer adeus. Ela queria receber uma solução otológica para sua filha e eu lhe dei uma receita. Está se mudando para o bem-estar das crianças. Acha que os constantes resfriados que têm são devidos à umidade desta região. 12) Sr. W, 82 anos. Aftas há várias semanas. Tentou bochechos e sal, sem resultado. Finalmente desistiu e procurou um médico. Retirou-se com alegria. 13) Sra. W, 62 anos, dona de casa. Por vários meses sofreu de indigestão e sensação de opressão no abdômen. Fala muito inarticulada. Extremamente difícil de se obter uma história dela. Examinei-a, encontrei um grande tumor abdominal. Enviei-a ao cirurgião. Mostrava-se muito ansiosa e preocupada acerca de poder se tratar de algo sério. O que na verdade queria dizer era se é câncer que a devorará toda? Eu disse que não achava que parecesse ser e ela retirou-se um pouco mais alegre depois do apoio que eu lhe dei. Dos 13 pacientes vistos, três obviamente são neuróticos (nos. 3, 9 e 7, e no último, toda a família, consistindo no pai, cinco filhos e, uma nora, todos parecendo ser neuróticos), três de alguma condição psicossomática (noss. 2, 5 e 10). Dos sete pacientes restantes, pelo menos dois ou três (noss. 8, 11 e talvez 13) mostraram traços neuróticos suficientes para justificar a pressuposição de que um exame apropriado revelaria uma neurose bastante grave. LISTA NO 2 O Dr. E prefaciou seu relatório mencionando que não havia trabalhado com prazer esse dia; ressentia-se de ter que permanecer no consultório numa tarde tão aprazível. 1) Rapaz de 15 anos, mãe hemiplégica, pai neurótico. Família insatisfatória que geralmente é consultada pelo meu sócio. Ele queria um certificado para as autoridades da Escola Naval dizendo que não tinha apresentado enurese nos últimos dois anos. Eu lhe disse para que dissesse às autoridades navais que me escrevessem dizendo o que queriam. 2) Srta. Q, uma histérica, em torno dos 45 anos, operada há cinco anos. Vive com o pai doente de 80 anos. Informou-me que veio pelas pílulas do pai, mas na verdade ela veio em busca de apoio e encorajamento para si mesma. Uma de suas queixas é fraqueza nas costas desde a sua operação. Ela levou as pílulas para seu pai e também algum apoio para ela, mas muito escasso. Normalmente ela consegue muito mais. 3) Sra. Z, 28 anos, inglesa, casada com um italiano, antigo prisioneiro de guerra. Ela tem dermatite recorrente na palma de sua mão. Desaparece e retorna. Eu nunca pude entendê-la bem. Ela fez uma observação significativa: “Eu não coloco minhas mãos na água. Minha mãe tem feito toda a parte de lavagem nos últimos dois meses. Todo esse aborrecimento não está dando resultado.” Perguntei a ela qual era o aborrecimento e ela disse: “Não lavar. É uma grande tensão para mim não lavar bem as coisas.” Mandei que voltasse a semana seguinte. 4) Sr. I, galês melancólico, 34 anos. Trouxe consigo um garoto para ser imunizado contra difteria e coqueluche — com quatro anos de atraso. Queixou-se de dor abdominal central que parecia muito significativa de dispepsia da vesícula biliar. Em seguida, na presença de seu filho, ele disse: “Por falar nisso, após as relações sexuais eu sinto uma forte sensação de queimação no estômago e algumas vezes eu evito as relações sexuais precisamente para não sentir isto.” Eu senti que ele tinha problemas para discutir, mas dispensei-o também. Irmã esquizofrênica. (P.S.: 15 dias depois raios X contrastado revelava úlcera duodenal ativa.) 5) Sra. U, mulher da classe operária, 50 anos. Queixou-se de sua visão que tinha piorado e queria um “certificado oftalmológico”. Ela disse que não podia ler livros após © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
37
um dia de trabalho. Quando ia saindo disse que era muito pior sempre que vinham suas regras e perguntou se eu pensava que poderia haver alguma relação. Consegui que se retirasse também. Deixo isso por conta do exame oftalmológico. Ela já usa óculos e deve mudá-los. 6) Sr. Z, 60 anos, hipertensão e parquinsonismo. Compareceu para uma repetição de sua receita de comprimidos. Tem doenças muito reais, mas é também um homem extremamente ansioso, e gostaria de ficar e conversar. Ele apenas faz referências a sintomas somáticos, mas é muito ansioso. 7) Sr. A, 32 anos. Operário irlandês. Dor muscular nas costas. Ao exame pareceu-me apenas uma honesta distensão muscular. Não aprofundei mais. 8) Srta. Y, 48 anos, cuidando de sua mãe doente de 80 anos. Ela comparece para me dizer que seu estômago está melhor. Tem úlcera duodenal de vez em quando. Não está tomando o medicamento já que a carne está racionada. Compareceu para os comprimidos de sua mãe. Faz pequenas bonecas com os vidros de aspirinas, muito interessantes. Quinze dias atrás apresentou-me meia dúzia delas e pediu-me que escolhesse uma para mim. Ela queria que eu ficasse com uma. 9) Sra. K, 72 anos. Entrou muito alegre e amistosa. Muito melhor que no ano passado. Eu não me lembro de tê-la visto antes mas ela me conhece muito bem. Queixa-se de lacrimejamento. O problema era que ela e seu novo marido (casados há um ano) estão sendo perseguidos por duas senhorias solteironas que moram na mesma casa. Sua família aprovou o novo casamento com muito prazer. 10) Motorista B, soldado, família irlandesa, sete crianças. Família peculiar — mãe extremamente bonita — pai extremamente rude, grosseiro e sem educação. Todas as meninas são muito bonitas. Dois filhos são feios, com traços muito grosseiros e dois são muito bonitos, jovens, com aparência de homossexuais. O paciente estava em licença no exército, queixou-se de dor de dente e solicitou-me que providenciasse para que fosse extraído de modo que pudesse prolongar o máximo possível a sua licença. Pareceu ter algum problema real que é incapaz de comunicar. 11) Sr. Q, vendedor de doces. Não comparece com muita freqüência. Queixou-se de sua garganta, que piora a cada noite. Acha que pode ser devido ao fato de ter falado durante todo o dia. Sua garganta estava infectada e muito vermelha. Havia algo mais; ele estava ansioso a respeito de alguma coisa que não captei, eu não estava com disposição. Sua mulher tem cerca de 40 anos. Graves cefaléias o ano passado. Investigação completa no hospital K, negativa. 12) Sr. P, 28 anos. Tem dermatite seborréica. Comparece queixando-se de irritação da pele em torno da orelha. É muito gordo. Tem comparecido durante as últimas semanas com bastante regularidade, sempre com esta queixa. Quando eu lhe disse que fizesse dieta e parasse de comer coisas de que ele gosta, mostrou-se satisfeito. Pareceu necessitar ser privado de coisas que gosta pelo médico rígido. 13) Sr. Q, 32 anos, classe operária pobre, quatro crianças. Nascido em pardieiro em Londres. Consultou um de meus sócios a semana passada, queixando-se de doença aguda com temperatura. Agora quer voltar a trabalhar no dia seguinte. Ele é um homem neurótico muito ansioso, e disse que pensou que sua doença pudesse ser devida aos nervos. Ele mudou seu emprego desde que eu o vi a última vez e agora ele tem que subir em grandes alturas, o que ele acha que pode ser relacionado a sua doença. 14) Srta. F, 12 anos, dor no pé, tirou o sapato e mostrou-me. Ela disse que era muito melhor quando ela usava sapatos e não sandálias. Eu lhe disse que usasse sapatos com saltos. Perguntei a ela sobre sua febre de feno. Ela disse que não tinha tido isso. Eu lembrei a ela que tinha sofrido disto no ano passado, mas ela disse “não”. Sua voz era © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
38
nasal e seu peito era catarral, mas ela persistiu em dizer que não sofria desta doença. Eu não pude entender isto. 15) Sr. F, problema conjugal; tanto a mulher quanto a mãe são histéricas graves, visitantes freqüentes do consultório. Ele queixou-se de impotência o ano passado e depois que foi examinado sua mulher engravidou. Insiste em que a criança não é sua. Ele é um homem com um grande potencial de violência. Quando se agacha e levanta novamente sente-se tonto e cai para trás, mas quando está em grandes alturas — ele trabalha em algo parecido a um andaime — não apresenta sintomas. Ele teve uma espécie de estafa mental após ser ferido na cabeça no exército e eles não o quiseram de volta novamente. Eu o atendi por cerca de 25 minutos. Nós já tivemos discussões antes. Ele me contou que queria abandonar sua mulher. Ele tem medo de poder matá-la se perder a cabeça. Normalmente eu relego esse problema à polícia, aos advogados ou à instituição pública competente, mas nesse caso eu concordei que eles deveriam considerar a possibilidade de separação. 16) Sr. I, 20 anos, agente de polícia. Sua mulher acaba de internar-se no hospital A e ele quer saber por quanto tempo ela vai permanecer lá e quanto ele terá de pagar. Eu lhe disse que ele terá de pagar quatro libras. Quando estava se retirando ele perguntou o que eu achava que havia de errado com sua mulher e quanto tempo ela ficaria doente e se eu pensava que poderia ser devido ao fato de sua mãe aborrecê-la. Eu não aceitei o convite, despedi-o, e disse-lhe que voltasse mais tarde. 17) Sr. F, homem de pouca inteligência. úlcera varicosa. Vem ao consultório todas as semanas para mudar ataduras com pomada. Tem uma sogra mentalmente deficiente, vai levá-la com eles nas férias. Expressa grande preocupação para com ela. 18) Sra. Q, 32 anos, inteligência pobre, duas crianças adotadas. Histérica crônica, não pode sair de casa, controla sua ansiedade aguda com amital sódico. Veio buscar receita para seus comprimidos e queixou-se de muita sonolência. Recentemente voltou a estar apta para o trabalho — trabalha em uma lavanderia — está se saindo muito bem. Foi encaminhada ao psiquiatra do hospital K e está esperando por um grupo. Está esperando há dois anos. Simpatizei com ela, alterei seus comprimidos de modo que não fique tão sonolenta. 19) Sr. U, irlandês, 32 anos. Nervoso e deprimido. Submeteu-se aos raios X de tórax uma ou duas semanas atrás, com laudo normal. Ainda se mostra ansioso a respeito, preocupado com o que possa haver de errado consigo. Marquei nova consulta para ele. Dos 19 pacientes vistos, sete sofrem de neurose evidente (nos 2, 3, 4, 13, 15, 18, 19) e outros nove (nos 1, 5, 6, 8, 10, 11, 12, 14 e 16) mostram sintomas em número suficiente para sugerir a presença da neurose. Apenas três casos (nos 7, 9 e 17) são relatados como não apresentando sintoma neurótico, mas ficamos com a impressão de que estes sintomas não aparecem apenas porque o médico não teve tempo ou disposição suficientes para aprofundar a conversação. As duas listas apresentam aproximadamente o mesmo quadro geral. As duas listas ainda coincidem em relação a um outro aspecto. Ambas registram com precisão conscienciosa os sinais e sintomas físicos bem como os tratamentos prescritos. As listas também mencionam a presença de sintomas neuróticos, mas apenas como se fossem de importância secundária, e raramente menciona-se uma terapia para eles. Deve-se repetir que ambos os médicos mostram interesse real nos aspectos psiquiátricos de seus pacientes e devotam parte considerável de seu tempo à psicoterapia. Conseqüentemente, isto significa que estão mais aptos a notar rápida e prontamente os sinais de um envolvimento psicológico do que o médico comum e que darão mais importância a eles. Entretanto, se deixarmos de lado as notas a respeito dos antecedentes psicológicos e os sinais de constrangimento por parte dos médicos por não terem tentado algo a respeito, não podemos deixar de sentir que, mesmo para esses dois médicos, no geral, © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
39
os pacientes com queixas principalmente físicas possuem um status melhor e talvez mais direito a um melhor tratamento do que aqueles com apenas sintomas neuróticos. Talvez a única exceção seja o no 15 da segunda lista. Se médicos que são genuinamente interessados em problemas psicológicos discriminam desta forma estes pacientes, podemos presumir com considerável certeza que o médico comum fará o mesmo. Penso que isso justifica a minha afirmação de que a “ordem hierárquica” descrita no capítulo anterior realmente existe. O mesmo é válido para a “eliminação pelos exames físicos” que, por assim dizer, é a cláusula operativa da ordem hierárquica. Suponho que essas listas produzirão um certo constrangimento em várias pessoas. É possível que alguns tentem elaborar este constrangimento, afirmando a si mesmos que tudo isso é desnecessário, uma conversa vazia a respeito de problemas psicológicos. São reflexões que aparentemente não conduzem a nada, de modo que seria muito mais sensato se os clínicos gerais continuassem com seus horários superlotados de sempre em vez de perder tanto tempo com frivolidades. Por exemplo, se um pai traz seu filho para ser vacinado (no 4 da segunda lista) o médico deve vaciná-lo e consultar em seguida o próximo paciente, que provavelmente estará esperando há muito tempo. Porque se importar com a vida sexual insatisfatória, dos pais ou com os sentimentos desagradáveis relatados pelo pai? Mesmo porque isto não é tarefa do clínico geral. No entanto, se tivermos em mente o que concluímos a respeito da “criança como sintoma de apresentação”, começamos a desconfiar se esta atitude é realmente correta. Geralmente é a mãe que traz a criança; além disso, uma criança com 4 anos de idade já ultrapassou de vários anos a época da vacinação. Deve o clínico geral notar ou não estes sintomas? Se deve, então é seu dever investigá-los no sentido de avaliar a sua importância, ou é melhor fechar os olhos para eles? A resposta não é fácil. Um caso-teste citado em numerosas ocasiões em nossos seminários era o de uma jovem grávida com queixas de sudorese ocasional e tosse discreta — não há dúvida que todo médico consciencioso examinaria cuidadosamente seu tórax e providenciaria raios X e mesmo um exame de escarro. Devem os sintomas neuróticos discretos ser considerados tão insignificantes ou tão desprezíveis? Constituem os primeiros sinais de um processo grave e insidioso que poderá culminar mais tarde, digamos, em uma depressão evolutiva ou em uma invalidez prolongada provocada por um sem-número de doenças menores, ou apenas numa perda geral de interesse pela vida? Ou devemos concluir que uma grande parte da população em geral mostra sintomas de problemas pessoais, isto é, que uma grande parte da população em geral é mais ou menos neurótica? Neste caso, a presença de sintomas neuróticos discretos não teria maior importância do que uma reação de Mantoux positiva em pacientes próximos aos 30 anos de idade. Evidentemente, neste caso as duas listas seriam desprovidas de interesse para o clínico geral. Mas a reação de Mantoux mostra a presença de anticorpos na pele; isto é, exceto quando positiva em diluições muito altas, indica que o processo infeccioso foi superado com sucesso. Pode-se dizer o mesmo de sintomas que sugerem neuroses? São eles sinais de conflitos passados, elaborados com sucesso, ou, pelo contrário, sugerem que o processo patológico ainda está ativo ou foi reativado? Esta é uma pergunta inquietante que, na maioria dos casos, todos os médicos e não apenas os clínicos gerais terão dificuldades de responder. Qualquer resposta obviamente representa um tipo diferente de diagnóstico do que os de abdômen agudo, gripe, panarício ou veias varicosas. Esta diferença é o que tentamos descrever como uma diferente profundidade ou nível de diagnóstico. Há alguns sinais de que não apenas os médicos, mas também a população em geral, começam a tomar consciência desta nova maneira de pensar. De acordo com alguns médicos que participaram de nossos cursos, os pacientes que algum tempo atrás vinham à consulta para receber um tônico atualmente dizem: “eu estou deprimido, doutor, pode me ajudar?” © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
40
Se a última alternativa é a mais próxima da verdade, quer dizer, se a presença de sintomas neuróticos significa que o processo patológico ainda está ativo ou foi reativado, então deve-se esperar encontrá-lo mais freqüentemente nas pessoas que procuram os clínicos gerais do que na população em geral. Infelizmente não possuímos dados fidedignos, baseados em pesquisas estatísticas, quanto à incidência de neurose tanto na população em geral quanto na população que comparece nos consultórios médicos, portanto deixaremos sem resposta esta pergunta. Mas eu acho que podemos dizer apenas com discreto exagero que as duas listas quase poderiam ser consideradas o registro de ambulatório de um psiquiatra. Quero acrescentar que essas listas não foram selecionadas, e sim escolhidas ao acaso entre as várias apresentadas no nosso curso. Há, entretanto, uma terceira possibilidade. A personalidade do médico e os interesses subjetivos podem exercer uma influência decisiva naquilo que ele nota e registra a respeito de seus pacientes; pode, por exemplo, ser extremamente sensível, especialmente se tiver tido algum treinamento psicológico. Este fator pode ter dupla influência. Ele perceberá mais e, dirigindo a atenção do paciente — desnecessariamente, digamos — para seus problemas neuróticos, ouvirá mais a respeito da neurose que seu colega comum. Além disso, os boatos a respeito do estranho interesse do médico espalhar-se-ão com rapidez, e pacientes que necessitem desse tipo de exibicionismo neurótico virão e abrirão seus corações para ele. Pode haver uma boa parcela de verdade em tudo isso, mas mesmo assim a importância do problema real não fica diminuída. Obviamente, se um médico aprendeu como usar um estetoscópio, usa-lo-á mais freqüente e eficazmente do que um homem destreinado, e pelo seu uso constante condicionará seus pacientes a esperar esse tipo de exame. O resultado óbvio será de que ele terá maior número de dados nos quais basear seu diagnóstico do que um homem sem o estetoscópio. Exatamente o mesmo é verdadeiro para cada novo método de diagnóstico tal como raios X de tórax, eletrocardiograma, pielografia venosa ou retrógrada etc. Estes métodos produzem novos dados que seriam inacessíveis sem eles. Nem todos os dados obtidos têm valor diagnóstico, e a medicina teve que aprender a avaliá-los e a integrar sua mensagem no conhecimento existente. Assim, o problema não é uma deficiência pessoal ou sensibilidade exacerbada, mas a avaliação dos dados obtidos por uma nova técnica. Conseqüentemente, isto significa que a presença de sintomas neuróticos — mesmo que discretos — deve ser levada a sério. Isto não significa, entretanto, que a sua mera presença automaticamente fixe o diagnóstico e com ele a direção que deve tomar a terapia racional. Pelo contrário, os sintomas neuróticos devem ser avaliados da mesma maneira que os sinais ou sintomas físicos. Um sopro sistólico no foco mitral não significa obrigatoriamente insuficiência mitral; freqüentemente a sua presença não tem maior significado. Por outro lado, o sopro diastólico é sempre patológico, isto é, tem uma importância diagnóstica incomparavelmente maior. Em geral, o mesmo pode-se dizer a respeito de sintomas neuróticos. Alguns deles são patognomônicos, outros sem muita importância. A avaliação adequada, entretanto, requer experiência e capacidade profissional, exatamente como a interpretação de uma chapa radiográfica. Se é verdade, como tão freqüentemente tem sido repetido na literatura, que pelo menos um terço do tempo do clínico geral é gasto em lidar com pessoas neuróticas, então a avaliação dos vários sintomas neuróticos reveste-se de uma importância fundamental. O problema envolvido é qual das duas atitudes é mais econômica, lidar com a neurose na esperança de que as doenças menores desaparecerão ou, como geralmente se faz hoje em dia, cuidar das queixas menos importantes, ignorando os envolvimentos neuróticos a respeito dos quais, de qualquer maneira, nada poderíamos fazer? Antes que possamos dar mesmo uma resposta geral, precisamos descobrir como entender as condições neuróticas e quanto podemos fazer para curá-las. Esta última pergunta será discutida na segunda parte deste livro, depois do que teremos que voltar a este problema fundamental. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
41
Capítulo
6
Nível de Diagnóstico
No capítulo anterior chegamos à conclusão de que é aconselhável que o médico aspire a um diagnóstico mais amplo e profundo. Refiro-me a um diagnóstico que não se limite a compreensão de todos os sinais e sintomas físicos, mas que também tente avaliar a pertinência dos assim chamados sintomas “neuróticos”. Citarei agora alguns casos para ilustrar o que entendo por nível de diagnóstico, isto é, como tentamos avaliar os diversos sintomas neuróticos. O Caso 8 foi relatado pelo Dr. Z, em junho de 1954, da seguinte maneira. CASO 8 Professor E, 49 anos. Sou médico de toda a família desde o final de 1949. Trato principalmente de seus dois filhos menores e de sua esposa, tendo-o visto pouco. Ela também é uma conferencista. Uma família excepcionalmente simpática. O professor E submeteu-se a nefrectomia esquerda devido a cálculo renal há alguns anos. Tratei-o uma vez de quisto sebáceo e outra de dor de garganta. Em agosto de 1953, procurou-me queixando-se de cefaléias ocasionais, desde novembro passado; sentia como que se as veias de sua cabeça estivessem inchadas. A pressão arterial era de 190 x 120. (O registro anterior mostrava a pressão arterial de 145 por 95.) Tive a impressão de que trabalhava em excesso, com o que concordou. Tem realizado muito trabalho administrativo, dedicando-se ainda à pesquisa, que constitui seu interesse principal. Vive sob grande tensão, mas gosta do que faz. Pareceu-me que melhoraria se diminuísse um pouco o ritmo de suas atividades. Receitei-lhe amital e mantive-o em observação durante algum tempo. Com o passar do tempo melhorou muito, mas em seguida voltou a piorar. Tinha aproveitado bem suas férias, voltou, odiou a idéia de voltar a trabalhar, e sentiu-se pior. Comecei a fazer algumas perguntas. e a semana passada tive com ele uma longa entrevista. Ele acha que tem trabalhado em excesso por cerca de dez anos, mas que era obrigado a fazê-lo uma vez que sua esposa também tinha tantas responsabilidades. Ela é muito competente, eficiente, com um grande senso de responsabilidade; ele obviamente a admira muito. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
43
Seu maior interesse na vida era o de ser um crítico literário, ficando todas as demais atividades em segundo plano. Ele mostra interesse por literatura e pintura desde criança. Embora vivesse em condições muito restritas, teve uma infância muito alegre. Nunca se sentiu enfastiado na vida. Costumava pintar e desenhar por horas a fio. Sempre esforçou-se em ser popular; nunca foi um atleta. Considera que era um pervertido. Masturbação infreqüente após o casamento; não teve nenhuma outra mulher antes ou depois. Acha que nunca foi um bom amante para sua mulher embora ela merecesse algo melhor. Senti que ambos teriam obtido melhores resultados caso se tivessem casado com pessoas diferentes. Ele disse que sua mulher queria muito ter filhos, embora tivesse horror à luxúria. Ele, entretanto, sente que esta é a única coisa em que ele é realmente bom. Acha que tem sido muito egoísta e que não é muito digno de confiança. Interrompeu as relações sexuais anos atrás. Masturbação ocasional. Perguntei a respeito de suas dificuldades presentes. Disse que ultimamente tem tido problemas com sua assistente, uma mulher de muito caráter, que está se aposentando. Ele não acha que seja realmente bom em administração. Numa entrevista anterior havia dito que talvez se aposentasse precocemente a fim de poder se concentrar na pesquisa. O paciente foi enviado a um cardiologista, o qual confirmou o diagnóstico de hipertensão essencial benigna, registrou uma pressão arterial de 190 por 120, coração normal, exame radiológico renal normal, uremia de 33. Segundo a opinião do especialista a condição do paciente não exigia nenhum tratamento em especial, mas o paciente deveria ser mantido em observação. O Dr. Z adicionou a este relatório que tinha conversado duas ou três vezes com o paciente e que o resultado dessas conversas parecia ser o de que o paciente tinha se mostrado capaz de organizar melhor a sua vida e que estava progredindo regularmente. Por exemplo, se bem que estivesse muito atarefado com os estudantes no final do ano letivo e com todas as incumbências administrativas, tolerou-as sem que voltasse a apresentar cefaléia.
Suponho que depois de ler esta história clínica, vários de meus colegas sentirão que houve “muita confusão por nada”. O caso não podia ser mais simples. Um dos rins teve que ser removido e, talvez devido a isso, desenvolveu-se uma hipertensão essencial benigna, responsável por sintomas de menor importância, tais como cefaléia, mas fora isso bem compensada. Tanto o médico quanto o especialista comportaram-se acertadamente — prescreveram alguns sedativos e aconselharam o paciente a moderar-se. Os resultados desse esquema terapêutico foram bastante bons, e quando surgiu uma pequena complicação o médico agiu inteligentemente solicitando a opinião do especialista, o que obviamente confortou o paciente. Talvez a única objeção que se pudesse fazer, dissesse respeito à intromissão desnecessária do médico em seus assuntos íntimos, principalmente nos aspectos mais delicados de sua vida sexual. Em primeiro lugar, deve ter sido extremamente embaraçante, tanto para o médico quanto para o paciente e, além disso, os dados que se tornaram conhecidos não contribuíram em nada para a compreensão do caso ou para o tratamento adotado. Será válido este argumento? Uma parte da objeção, a intromissão desnecessária na vida sexual do paciente, será abordada in extenso nos Capítulos 16 a 18, sobre a função apostólica do médico. Aqui vai-se apenas dizer que qualquer exame, físico ou psicológico, pode ou não ter sido embaraçoso. A diferença depende principalmente na tática adotada pelo médico. Se ele está convencido de que o exame é necessário e o conduz de forma compreensiva mas objetivamente profissional, todo embaraço que pudesse surgir estaria reduzido a um nível bastante tolerável. No contexto presente, o outro argumento, o da relevância, é o que realmente importa. Minha afirmação é a de que mesmo os dados escassos revelados por este exame “questionável” © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
44
clarificaram muito a situação global e tornaram mais apto o clínico a chegar a uma compreensão mais profunda do problema real. A impressão dada de início, de um casamento feliz como o mencionado no relatório, dá lugar a um quadro mais preciso de uma adaptação mútua entre os cônjuges, talvez pagando-se o preço da hipertensão no homem e, como o clínico informou durante a discussão, de episódios ocasionais de hemicrania na mulher. Em seguida é-nos mostrado que em sua juventude esse homem tinha a possibilidade de optar pelo menos entre dois meios de vida. Um, representado pelo seu desejo de luxúria, que o impulsionava a projetar seus vários prazeres sexuais, e o outro pela segurança reconfortante oferecida por sua esposa compreensiva, agradável e altamente eficiente; a última solução, entretanto, também significava renunciar, pelo casamento, à satisfação de seus desejos sexuais. O material surgido durante a entrevista não nos permite conjeturar acerca do que o levou a escolher a segunda opção, mas nos permite compreender como ele lidou com a renúncia que era necessária. As atividades de domínio e poder no mundo exterior tornaram-se pouco a pouco menos interessantes e mais desagradáveis para ele; tinha dificuldades com pessoas de caráter marcante, principalmente se fossem mulheres; e, em vez de tentar elaborar estes problemas externos, fugiu deles. A fuga foi bastante facilitada pelos seus excelentes poderes de sublimação. Encontrou ampla gratificação na pintura e na pesquisa acadêmica. Sua doença encaixa-se bastante bem nessa tendência geral; forçaria os médicos a aconselhá-lo a adotar uma vida mais tranqüila, a dedicar-se menos a trabalhos administrativos, o que corresponde exatamente a uma de suas fantasias, a saber, de aposentar-se prematuramente e concentrar-se na pesquisa. O questionamento realmente importante que o médico tem que fazer neste nível de diagnóstico é se a vontade de aposentar-se, de dedicar-se a uma vida mais pacata e contemplativa, dedicada à pintura e à pesquisa e sem sexo, constitui uma solução sensata que deva ser encorajada ou se é outro sintoma de uma neurose geral que deve ser curada ou pelo menos ser oferecida uma oportunidade de cura que o paciente possa aceitar ou recusar. Os opositores mencionados podem agora agregar a seu arsenal o novo argumento de que aprofundando-se no conhecimento do paciente o médico não produziu nada a não ser a revelação desse problema, extremamente desagradável, que o colocou numa situação não invejável e que lhe apontou responsabilidades que não havia pedido e que talvez não fosse seu dever arcar. Podemos simpatizar e mesmo concordar com parte deste argumento, mas precisamos perguntar qual é a alternativa. Se o médico não tenta obter esses dados, sua decisão será cega. Embora ele não vá saber o que estará fazendo, seu conselho não será menos decisivo para o futuro do paciente. Em outras palavras, a única diferença será que ele terá que tomar a responsabilidade pela decisão, sem saber a natureza de sua responsabilidade. Um fator importante nesse tipo de decisão cega é a própria atitude consciente e inconsciente do médico em relação à vida. Se ele é um dos médicos modernos, que acredita na suprema importância de uma vida sexual satisfatória, provavelmente tentará converter seu paciente a suas crenças, isto é, a evitar uma fuga completa para a esfera da sublimação. Do contrário, seu conselho basear-se-á, com quase toda certeza, exclusivamente na doença física. Quando discutimos este caso e a conduta terapêutica a ser adotada pelo médico, os humores mostraram-se exaltados. Alguns recomendaram sabiamente que se tivesse muito cuidado em vista da hipertensão e do fato de que o Prof. E possuía apenas um rim. Qualquer tentativa no sentido de reajustar a vida sexual deste homem desencadearia emoções altamente carregadas, não apenas nele mas também em sua mulher; possibilidades não desprovidas de perigo, em se tratando de um caso de hipertensão arterial. Outros, de mentalidade mais psiquiátrica, enfatizaram a possibilidade de uma depressão grave, © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
45
de desenvolvimento lento, que talvez já começasse a se mostrar sob a forma de uma fuga gradual das tarefas externas da vida, para a pintura e a pesquisa. Finalmente, alguns recomendaram que todos esses problemas deveriam ser abertamente discutidos com o paciente. Afinal de contas, ele agora estava próximo dos 50, e não dispunha de muito tempo para reajustar a si mesmo caso o quisesse fazer. O fracasso neste momento em oferecer aquilo que poderia constituir sua última chance talvez pudesse mais tarde acarretar graves reprimendas para o médico. No final foi o Dr. Z que decidiu adotar a primeira das atitudes mencionadas, a saber, não apenas permitir, mas recomendar uma vida moderada. Suas razões, além daquelas mencionadas, eram as seguintes — o Prof. E possuía uma inteligência acima da média e tirava muito prazer de seu trabalho de pesquisa e pintura. Em outras palavras, suas potencialidades para a sublimação eram muito boas e poderiam talvez prover uma descarga suficiente para todas as suas energias, incluindo as sexuais. Finalmente, contou-nos que a possibilidade de psicoterapia havia sido casualmente mencionada ao Prof. E, o qual, entretanto, não se mostrou muito propenso a aceitar a sugestão. Devo acrescentar que muito provavelmente a maneira pela qual o médico lidou com o problema da psicoterapia também teve uma influência importante sobre a decisão do paciente. O Dr. Z alimenta certas dúvidas quanto à eficácia da psicoterapia e a recomenda apenas em casos selecionados, mesmo assim de maneira relutante. Aqui temos outro exemplo no qual podemos ver o trabalho da função apostólica, que será discutida nos Capítulos 16 a 18. Ao mesmo tempo, este caso ilustra a grande importância do nome dado à doença. Toda a atmosfera, na verdade toda a atitude do Prof. E em relação à vida, será profundamente influenciada caso lhe seja dito que sofre de hipertensão benigna como uma solução neurótica para seus problemas básicos de personalidade. A primeira das formulações é “tranqüila”, facilmente aceitável por sua personalidade consciente, constituindo na verdade uma sanção externa que o alivia de alguma de suas responsabilidades, principalmente em relação a si mesmo. A outra, é verdade, abre novas possibilidades mas questiona suas soluções e, em vez de sancioná-las, exige, por um lado, uma decisão baseada numa revisão consciente de sua vida pregressa e realizações passadas e, por outro, de suas esperanças e possibilidades futuras. Talvez este caso possa ajudar-nos a entender porque os pacientes têm tão grande necessidade de que lhes seja dito qual a sua doença, que tipos de temores podem surgir neles se não se dá nome a sua doença e, afinal é igualmente importante, quais as implicações inevitáveis de qualquer diagnóstico, por mais inocente que possa parecer. Aqui, contrastando com os Casos 5 e 6, aparentemente não há luta ou confusão de línguas entre o paciente e seu médico. A doença proposta pelo paciente foi aceita pelo médico e um acordo foi fácil e rapidamente alcançado. Como mencionado há pouco, a situação teria sido inteiramente diferente caso o médico houvesse decidido ir além do diagnóstico de hipertensão. Se o acordo será duradouro ou não, é difícil dizer, uma vez que as possibilidades — até onde conhecemos a situação — encontram-se precariamente equilibradas. O próximo caso, embora parecido em alguns aspectos, nos mostrará o que acontece se não se consegue alcançar um acordo, ou mesmo um mero compromisso. O Caso 9 foi relatado pelo Dr. D, em fevereiro de 1954, da seguinte maneira. CASO 9 Eu tenho uma paciente, a Srta. K, de 23 anos, que constitui um problema; ela muda de um para outro em nosso grupo de três médicos. Não é muito inteligente. É a mais velha de dois filhos, e a outra tem 12 ou 14 anos. Família da classe operária, mãe e pai vivos. Eu a conheço há três anos e os sintomas sempre foram os mesmos. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
46
Queixa-se de uma inflamação na base e na região lateral da língua. Quando a examinei, parecia um pouco hiperemiada, mas isso era tudo. Nenhum tratamento ou tentativa de confortá-la surtiu efeito, uma vez que mostra-se convencida de que o que tem se transformará em um câncer. Pede a sua mãe que a examine todas as noites para ver se houve alguma alteração. Abandonou seu emprego de secretária, dizendo que se vai morrer de qualquer maneira, não há sentido em continuar com um trabalho difícil. Nunca teve, na verdade, nenhum caso com um homem, mas veste-se de uma maneira elaborada. Nunca sai à noite. Consultou um otorrinolaringologista que não encontrou nada errado. Anteriormente, havia sido enviada a um clínico geral, com o mesmo resultado. Ela é alguém com uma idéia hipocondríaca fixa que pode tornar-se psicótica ou suicida. É difícil fazer com que aceite que há algum problema psiquiátrico. Deseja sempre saber o que há com a sua língua. Como não é muito inteligente, não me interessei em marcar uma consulta mais longa. Entretanto, deveria ter-me esforçado mais. Esta moça poderia ter sido um dos casos incluídos nas duas listas discutidas no capítulo anterior. Na sua história clínica podemos estudar as atuações de todas as forças mencionadas anteriormente. Vemos a paciente oferecendo uma doença ao médico e o médico aceitando-a em princípio como uma possibilidade. Ela é então enviada a vários especialistas que confirmam o achado do médico de que há alguns discretos sintomas físicos, mas que a doença em si deve ser considerada como hipocondríaca. Tanto o médico quanto a paciente concordam, por assim dizer, em que há algo errado, mas nenhum dos dois parece apto a descobrir qual o real problema. Na discussão, apontou-se que vários fatores psicológicos muito interessantes não foram tomados em consideração quando da feitura do diagnóstico. Estes são: a) A paciente abandona um bom emprego e retirar-se na solidão até o ponto de não sair à noite. b) Desistir de todas as tentativas de ter um contato emocional com homens embora sua maneira de vestir fosse elaborada. c) Suas freqüentes mudanças de médico, especialmente quando um deles tentava entrar em contato mais profundo com ela, no sentido de fazê-la falar a respeito de seu problema. d) E, o mais importante, sua exigência obsessiva de que sua mãe olhasse sua garganta e a tranqüilizasse de que permanecia sem alterações, de que não piorava. Com o intuito de obter-se uma melhor compreensão do problema, sugeriu-se que se supusesse que a paciente possuísse um problema semelhante com seus genitais e que fosse de médico em médico pedindo para ser examinada no sentido de aliviar seus temores. Se tal fosse o caso, todos chegaríamos rapidamente à conclusão de que ela era uma exibicionista, temerosa da vida sexual normal, e que estava produzindo seu sintoma com a finalidade de chegar a um tipo de situação, embora sob uma forma desagradável, na qual ela estivesse concomitantemente assustada e desejosa. Se aceitamos que se trata de um caso de exibicionismo duplamente deslocado — ela mostra sua garganta ao invés de seus genitais e tem de mostrá-los a sua mãe em vez de a um homem — surge uma forte sugestão de que lidamos com uma elaboração histérica de fantasias sexuais reprimidas. Esta impressão fica reforçada se levamos em conta que ela tem que realizar seu ritual obsessivo cada noite, no sentido de se reassegurar que dentro de sua garganta tudo está normal. Sua maneira de vestir de forma elaborada pode constituir outro indício na mesma direção. Isso talvez explique por que ela não pode permitir a ninguém que estabeleça um rapport positivo com ela, isto é, aproximar-se dela, uma vez que isso poderia levá-la a falar sobre seu terrível segredo. Por outro lado, através de sua persistência, obtém tanto de sua mãe quanto de seus médicos, que a tranqüilizam, no sentido de que nenhum dano irreparável sucedeu. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
47
Premido por nossas críticas, o Dr. D prometeu um novo e mais detalhado exame, incluindo um exame psicológico apropriado. Não se ouviu mais falar a respeito desta moça pelo período de seis meses, até que em agosto o médico relatou o seguinte: Algumas vezes tentei fazer a paciente falar, mas ela mostrou-se absolutamente refratária a aceitar qualquer sugestão de que nada havia de errado do ponto de vista orgânico com ela. Em abril foi encaminhada a um dermatologista, cujo parecer foi negativo, e que, por iniciativa própria, enviou a paciente a um psiquiatra. O psiquiatra relatou que a fobia a câncer, que parecia constituir a principal queixa, tratava-se apenas de um sintoma numa moça extremamente perturbada. Além disso, ela apresentava reumatismo por todo o corpo, dor na base da coluna etc. O prognóstico era extremamente reservado, uma vez que se supunha que graves perturbações mentais poderiam seguir uma hipocondria tão grave em uma jovem. O psiquiatra sugeriu finalmente que a paciente deveria receber o mínimo de tratamento possível para seus diversos sintomas, a fim de evitar que seu medo de câncer fosse confirmado. Desde essa época a paciente consultou-se apenas com o mais jovem dos médicos, e o Dr. D não sabia se isso ocorria por acaso ou intencionalmente. Como dito, ela esteve 14 vezes no consultório entre fevereiro e agosto, isto é, numa média bastante maior do que um comparecimento quinzenal, queixando-se de todo tipo de dores e desconfortos. O médico acrescentou que ele havia sido definitivamente curado de sua tendência em acreditar de que havia algo organicamente errado com sua paciente, mas que infelizmente nem sua paciente nem seu colega mais moço o tinham sido. Esse caso ilustra bem os inconvenientes daquilo que chamamos “eliminação pelos exames físicos apropriados”. O leve sinal na língua da paciente foi levado a sério e ela foi enviada sucessivamente a um clínico geral, a um otorrinolaringologista e finalmente a um famoso dermatologista, todos tendo examinado sua língua mas não sua personalidade. Em determinado momento, mais por acaso do que intencionalmente, ela foi vista por um psiquiatra, mas seu informe não foi também de muita valia. A história mostra que é perigoso não apenas omitir um sinal físico, mas também encontrá-lo. Durante esses exames clínicos cerca de três a quatro anos foram perdidos, mas esta foi a parte menos importante da perda; a mais importante foi que os exames físicos confirmaram a crença da paciente de que havia algo a ser cuidado em sua língua. O exame psiquiátrico, realizado tarde demais e apenas como um exame complementar, não abalou a firme convicção da paciente. Neste caso podemos ver claramente a luta entre médico e paciente. A paciente tenta convencer o médico de que está fisicamente doente, e o médico, auxiliado pelos especialistas, tenta insistentemente convencê-la do contrário. Vemos também que não foi dado um nome para sua doença, ficando a sua necessidade ignorada e ela, em seu desespero, não tem outra alternativa a não ser prender-se à única possibilidade de que pode pensar, ou seja, de que tem um câncer em evolução. Há um outro aspecto interessante no caso, um aspecto que discutiremos detalhadamente mais tarde (Capítulo 18). Chamamos a isso a auto-seleção dos pacientes conforme seus médicos. Alguns pacientes passam de médico para médico até que encontram um que de certa forma é seu congênere. Se há um grupo de vários médicos com diferentes pontos de vista e opiniões, tudo isso pode acontecer, tal como neste caso, dentro deste próprio grupo. Após algumas vicissitudes, a paciente parece ter escolhido o mais jovem dos médicos, o qual provavelmente é aquele que possui a mentalidade mais organicista. Podemos perguntar-nos, entretanto, por quanto tempo. Eu não quero dar a impressão de que esta jovem seria um caso fácil. Pelo contrário, é certo de que se trata de uma jovem muito perturbada que foge gradualmente da vida sob o peso de sua grave doença. Estou plenamente consciente de que em seu caso de forma alguma seria tão fácil de obter informações sobre sua vida íntima como no caso do Prof. E. Mas desejo enfatizar vigorosamente que a “eliminação pelos exames físicos apro© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
48
priados” provocou uma série de sofrimentos desnecessários para a paciente e deu aos médicos bastante trabalho desnecessário. Por acaso, na mesma reunião, foi relatado um outro caso que mostra o mesmo problema de um ângulo inteiramente diferente. Esta paciente também ofereceu várias doenças orgânicas a seu médico, o Dr. R, o qual entretanto não deu muita atenção a elas. Usando uma espécie de tática de choque, tentou desvendar o conflito psicológico que ele considerava o problema real. Teve sucesso até um certo ponto, mas pagando o preço. Seu relatório é o seguinte: CASO 10 Srta. M, 19 anos, jovem que afirmou insistentemente não possuir motivos de preocupação. Consultei-a pela primeira vez em novembro de 1953, data em que se registrou como nova paciente. Há quatro dias com a garganta inflamada e esta manhã, ao acordar, não pôde levantar-se nem ir trabalhar, tão mal se sentia. Parecia nervosa, com olheiras, sem pintura, o cabelo penteado discretamente numa trança que formava um coque na nuca. Examinei-a cuidadosamente e apenas encontrei um princípio de faringite. Tinha acne facial, o que declarou incomodá-la muito. Perguntei se algo a havia perturbado, o que negou. Prescrevi um tratamento sintomático para a garganta e forneci um atestado para que apresentasse em seu trabalho. Regressou quatro dias depois, sentia-se melhor, porém tinha tosse. Examinei a garganta que encontrava-se mais ou menos igual à vez anterior. Perguntei-lhe se se sentia em condições de voltar a trabalhar, o que negou devido a achar-se muito abatida e com a perna edemaciada. Observei uma diminuta veia varicosa. Disse-lhe que estava muito preocupada consigo mesma, ao que respondeu dizendo que sentia-se deprimida e que desejava tomar um tônico. Receitei-lhe Metatona e recomendei-lhe que voltasse a ver-me quando terminasse a medicação. Foi trabalhar, só voltou hoje, isto é, dois meses depois, queixando-se de dor de garganta e de perda de peso há alguns meses. Examinei a garganta, tudo normal. Quando interrogada, respondeu que seu apetite era bastante bom, porém não como anteriormente. Acrescentou que havia várias semanas que não dormia bem. Insistiu em que não tinha motivos de preocupações. Em seguida, disse que tinha estado trabalhando muito (é estenógrafa) e assistindo aulas três vezes por semana, à noite, e que talvez essa fosse a causa de seu abatimento. Frente a novas perguntas, declarou que vivia sozinha desde a morte do pai, 18 meses atrás, com 69 anos. A mãe, de 52 anos, reside no campo; sentiu-se transtornada com a morte do marido, porém agora está melhor. A paciente não se transtornou com a morte de seu pai se bem que esse significasse muito para ela. Disse então que não havia se sentido perturbada, porém que durante várias semanas não tinha se sentido bem e não conseguia dormir normalmente. Mesmo assim, insistiu em que esse fato não a perturbara. Disse em seguida que havia ficado muito transtornada com o rompimento de seu noivado. Havia-se comprometido com um armênio: ele com 27 anos, ela com 19. Ele ortodoxo grego, ela anglicana. Os pais da jovem não simpatizavam com ele e os pais do jovem por sua vez escreveram para dizer-lhe que não aprovavam que saísse com uma inglesa, de modo que desmancharam o noivado. Continuam-se vendo quase todos os dias e continuam querendo casar-se. Perguntei-lhe com quanta freqüência mantinham relações sexuais. Respondeu “cerca de...” e começou a chorar. “... uma ou duas vezes por semana.” Disse que não queria que ninguém soubesse desse fato. Creio que esse era o único modo que eu tinha de obter o resultado desejado. Descontrolou-se, chorou e sentiu-se muito perturbada e enraivecida, mas finalmente conseguiu dominar-se. Disse-lhe que era bom confiar em alguém, uma vez que não tinha pai. Perguntou-me logo qual a minha opinião sobre o seu casamento com o armênio e eu disse: “O que é que você pensa?” Ela assinalou os diferentes modos de vida; o noivo havia observado que ela não sabia © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
49
cozinhar à moda oriental, além do que não sabia falar armênio. Como já era tarde, disse-lhe que conviria voltar em outra ocasião. Comentou que não achava certo conversar sobre assuntos pessoais ao que repliquei que era a ela que cabia decidir. Perguntou-me logo quando poderia voltar — voltará na semana que vem. Se bem que seja evidente que a Srta. M se encontra muito menos doente que a Srta. K, ambos os casos mostram certos aspectos em comum. Ambas têm aproximadamente a mesma idade, e mais ou menos os mesmos antecedentes sociais, assim como o mesmo trabalho. Ambas sugeriram doenças físicas a seus médicos. No Caso 9 a doença de caráter físico foi aceita em princípio como possibilidade e rejeitada em seguida depois do processo de eliminação pelos exames físicos apropriados. Entretanto, a doente não sugeriu outra doença. Como conseqüência deste procedimento a paciente teve que mudar constantemente de médico até encontrar um que aceitasse estar ela realmente doente e então estabilizou-se em uma doença crônica autêntica. No Caso 10, todos os sintomas físicos oferecidos foram considerados incidentes menores, de importância secundária; desde princípio acentuou-se as implicações de caráter psicológico. A paciente não gostou desse enfoque, resistiu às tentativas do médico e não prestou a menor colaboração. Então, o Dr. R adotou táticas de choque. A paciente foi tomada de surpresa e viu-se obrigada a revelar dados importantes sobre seus problemas sexuais, porém posteriormente lamentou muito tê-lo feito. Durante a discussão, o médico assinalou — e creio que com razão — que achava ter realizado o exame adequado e ainda conseguido uma certa proporção de terapia real; isto é, havia conseguido quebrar a resistência da paciente. Alguns de seus colegas, entre eles o psiquiatra, abrigavam dúvidas sombrias a respeito do custo eventual dessas táticas de choque e perguntavam-se como influiriam sobre o futuro da relação médico-paciente. Sentiram que, mesmo que o Dr. R estivesse orientado na direção correta, desenvolvia uma excessiva velocidade em relação ao ponto de vista da paciente, não dando tempo a essa última de acompanhá-lo. Apesar das advertências recebidas, quando voltou a consultar a paciente na semana seguinte, o médico continuou usando o mesmo tipo de técnica. A Srta. M chegou dizendo que não via utilidade em discutir seus assuntos pessoais com o médico; esse tipo de conversação não teria nenhum efeito sobre a doença de que sofria. Queixou-se, como de costume, de dor de garganta e de perda de peso. Enquanto a examinava, o Dr. R perguntou de modo muito casual que tipo de anticoncepcionais usava. Irritada, repetiu o que havia dito a vez anterior, isto é, que não os utilizava regularmente. O médico disse então que lhe parecia que ela desejava engravidar para que seu noivo se visse obrigado a casar-se com ela. Dado que a paciente mostrou-se bastante magoada e contrariada, o Dr. R não insistiu no tema. Mas ainda como a Srta. M não quisesse voltar para continuar o tratamento, o médico indicou uma radiografia de tórax para dispor de outra oportunidade de prosseguir com o caso. Como era de se esperar, a radiografia de tórax foi normal, porém a paciente não voltou para saber o resultado. Vários meses depois, em fevereiro de 1954, a jovem reapareceu de maneira casual, agora apresentando como motivo uma tosse discreta. O médico examinou seu tórax e a garganta, porém não achou sinais de doença física. Perguntou então à paciente se desejava falar-lhe algo de particular, porém ela respondeu enfaticamente que “não”, e que tudo ia muito bem. Continuava encontrando-se regularmente com o noivo. Creio que tanto o Caso 9 como o Caso 10 devem ser considerados fracassos parciais, se bem que o nível e o grau de fracasso — ou falta de êxito — seja diferente. No Caso 9, se bem que a discussão no seminário indicou aproximadamente ao médico em que sentido deveria orientar a busca de possíveis implicações psicológicas, em parte devido a sua própria personalidade e em parte devido à gravidade do caso, foi incapaz de estabelecer contato com sua paciente e de chegar ao diagnóstico. Por “chegar” ao diagnóstico © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
50
entendo obter indicações que permitam elucidar quais entre as idéias propostas pelos seminários são as corretas e quais as erradas para que, deste modo, mediante tal “chegar”, consiga-se dados que possibilitem uma terapia racional. A paciente recusou as não muito entusiastas aberturas do médico destinadas a colocar a discussão dos problemas que a inquietavam, e se “auto-selecionou” para outro médico do grupo, o qual não a incomodava com exames psicológicos. No Caso 10, o médico presumiu, provavelmente de maneira certa, que o verdadeiro problema da paciente consistia em seu infeliz caso sentimental e nas inquietudes e temores que o mesmo suscitava. Incapaz de resolver seus problemas, fugia na direção sugerida por sua própria constituição, isso é, para o campo psicossomático das doenças menores do aparelho respiratório. O médico estimou, corretamente em minha opinião, o perigo existente de que a paciente desenvolvesse uma afecção psicossomática crônica do sistema respiratório, por exemplo bronquite ou faringite crônica, asma ou alguma infecção, tuberculosa latente no momento, e fez todo o possível para encarar o problema real. Infelizmente, andou em um passo muito veloz para a paciente, e esta recusou-se a colaborar. Com respeito ao que chamamos “nível de diagnóstico”, é evidente no Caso 9 que o termo hipocondria constitui uma descrição correta porém demasiado superficial da enfermidade. Ajuda muito pouco ao médico a eleger uma terapia racional, e não oferece à paciente um nome útil que a apóie em sua luta contra temores e inquietudes. O termo hipocondria é na verdade tão superficial que se torna quase inútil. Acrescentarei que quase a mesma crítica pode ser aplicada ao relatório psiquiátrico. A descrição do caso não contém nenhuma informação nova e o conselho oferecido é totalmente negativo; indica ao médico o que não deve fazer, o que constitui uma ajuda muito limitada. No Caso 10 o médico aprofundou o diagnóstico, não se limitando a aceitar os sintomas físicos oferecidos pela paciente, e a fixar-lhes um rótulo, porém não pôde oferecer à paciente um nome aceitável para a verdadeira doença que a incomodava. Outro aspecto e de certa importância. Todos os professores de medicina enfatizam: não se deve formular uma terapia antes do diagnóstico. Estes dois casos põem em relevo as limitações de tal doutrina. Em muitos casos desse tipo não é possível diagnosticar sem alguma forma de terapia. A razão pela qual ambos os médicos tiveram êxito com suas respectivas pacientes consistiu no enfoque terapêutico indevidamente aplicado. No Caso 9, devido ao enfoque pouco entusiasta do médico, apenas uma discreta ajuda foi prestada à Srta. K. Apenas foi-lhe oferecido um negativum, não tinha “nenhuma doença física”, o que implicava uma atitude de rejeição por parte do médico à doença que a paciente propunha. Independentemente dessa negativa, a paciente não recebeu nenhuma indicação positiva a respeito da atitude que se esperava dela, ou sobre a maneira de encarar a busca de novos sintomas, temores, sentimentais ou idéias que fornecessem certa clareza quanto a seus problemas e possibilitassem a cooperação entre ela e seu médico no intuito de encontrar alívio e alguma forma de solução. Como conseqüência desse fracasso, restou-lhe apenas a possibilidade de aferrar-se a sua doença física, reforçando-a e sobrecarregando-a. No Caso 10, o enfoque terapêutico um tanto impetuoso adotado pelo médico abalou em parte a resistência da paciente e permitiu a confirmação do diagnóstico suposto. Entretanto, essa atitude exacerbou outras resistências, por exemplo indignação, ressentimento e suspeita. Daí que — pelo menos durante certo tempo — fosse muito provável que a paciente desconfiasse do médico e que evitasse oferecer-lhe alguma possibilidade de renovar a conversação sobre o tema. Trata-se de um desenvolvimento pouco desejável, o qual deve ser deplorado porque o médico fez todo o possível para oferecer à paciente uma ajuda aceitável. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
51
Finalmente, estes três casos (o Prof. E, a Srta. K e a Srta. M) demonstram a importância da reação do médico frente à oferta do paciente. No caso do Prof. E, o médico, após madura reflexão, aceitou a enfermidade oferecida, atribuiu-lhe um nome e chegou a um acordo com o paciente. É verdade que o paciente teve que pagar um preço pelo acordo feito, porém o preço, ao menos do ponto de vista de seu médico, foi razoável. No caso da Srta. K não foi possível chegar a nenhum acordo, e a paciente teve que mudar de médico. O novo médico e a paciente coincidiram, pelo menos momentaneamente, porém apenas pelo preço de uma doença crônica incapacitante e da qual não se sabe se a paciente poderá libertar-se. A Srta. M recusou todas as contraproposições de seu médico, segundo as quais os sintomas eram devidos a certa tensão mental, de modo que não foi possível chegar a nenhum acordo. Não mudou de médico, mas insistiu em seus dois sintomas principais, perda de peso e catarro nas vias respiratórias. No Capítulo 13 estudamos a evolução deste caso. Em todos os casos mencionados, o diagnóstico “mais profundo” permitiu ao médico alcançar uma melhor compreensão do problema, se bem que devamos reconhecer que isso não significou uma terapia melhor nem mais eficaz. No caso do Prof. E não houve modificação na terapia; no caso da Srta. K, após uma tentativa infrutífera de obter alguma melhora, permitiu-se a paciente continuar com sua enfermidade “orgânica”; finalmente, no caso da Srta. M, o oferecimento de psicoterapia mostrou-se inaceitável para a paciente, pelo menos sob a forma adotada. Estes resultados darão sem dúvida matéria para a crítica que afirma que se trata de “muita confusão por nada”. Felizmente, podemos mencionar notáveis êxitos terapêuticos, fundamentados no método que denominamos nível “mais profundo” de diagnóstico. Alguns serão descritos na Parte II — Psicoterapia. Além de proporcionar uma compreensão inegavelmente melhor do paciente, o diagnóstico “mais profundo” desempenha outra função. Consiste na redução do número de casos em que o médico se vê obrigado a tomar uma decisão às cegas, fundamentado exclusivamente no diagnóstico físico. Estas decisões às cegas, pouco influenciadas pela situação emocional do paciente e pelo controle adequado da relação médico-paciente, permite o livre jogo das inclinações pessoais, sentimentos inconscientes, convicções e preconceitos do médico, isto é, do que denominamos sua “função apostólica”. Proponho-me a esclarecer em parte esse aspecto de nosso trabalho cotidiano, e a capacitar o médico para que consiga estabelecer certo controle consciente pelo menos sobre parte do mesmo.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
52
Capítulo
7
O Conluio do Anonimato
Nos casos difíceis, o peso da responsabilidade não recai exclusivamente, em geral, sobre os ombros do clínico geral. Geralmente pede e recebe ajuda dos especialistas. As dificuldades que o impulsionam a pedir ajuda podem ser também descritas (do ponto de vista psicológico) como crises de confiança. O médico sente que não sabe o suficiente para ajudar sua paciente, ou o paciente tem dúvidas sobre a idoneidade dos conhecimentos e sobre a capacidade do médico. No primeiro caso, é preciso acentuar a confiança do médico em si mesmo, e em segundo a confiança do paciente em seu médico. Ou, em outras palavras, no primeiro caso se necessita principalmente de um diagnóstico mais preciso, no segundo, o reforço do potencial terapêutico do próprio médico. Em ambos os casos o aparecimento de especialistas a quem se solicitou um parecer introduz um certo número de novos fatores na relação médico-paciente; as complicações que tais fatores provocam serão examinadas neste e nos capítulos seguintes. Com a finalidade de dispor de material concreto de discussão, comecemos novamente por um caso clínico, como o relatado pelo Dr. Y em um dos nossos seminários.
CASO 11 O Sr. K, de 54 anos, foi-me apresentado em 1950 por sua esposa, a qual se queixava de depressão devido à constante preocupação nela provocada pelo estado de seu marido. (Aqui a esposa é o sintoma de apresentação da doença do marido.) O homem nunca se sentia bem, era muito excitável, e exigia que se prestasse muita atenção à sua alimentação. Suas doenças haviam se iniciado em 1934, devido a uma apendicectomia seguida de peritonite, a qual exigiu uma operação em duas etapas e logo uma terceira para correção da hérnia. O Sr. K é um homem alto e corpulento, de aparência algo elegante. Vive com sua esposa e sua filha em uma casa de classe média baixa. Suavizam a atmosfera de respeitabilidade muitos livros e vários instrumentos de música. O chefe da família é funcionário público, num posto de importância secundária; começou a trabalhar aos 14 anos como © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
53
mensageiro e ocupa atualmente uma colocação de caráter administrativo. Nunca gostou de seu trabalho, embora não saiba o que preferiria fazer. Lê e escreve poesia e contos. Toca flauta e trompete, e durante alguns anos fez parte de uma orquestra de amadores. Quando tinha 35 anos fez um curso por correspondência do Ruskin College sobre Inglês e Literatura, seguido de outro sobre Psicologia Geral. Seu pai foi um trabalhador rural que logo se converteu em funcionário. Era um músico nato, e tocava violino, apesar de não saber ler música. Um irmão, membro do Corpo de Bombeiros, escreve romances; uma irmã começou a tocar violoncelo aos 45 anos. Sua vida familiar parece feliz e afetuosa, exceto pelo fato de que tanto a esposa como a filha sentem-se tiranizadas por sua má saúde. A esposa exibe uma corrente subjacente de rebelião através da acentuação de seus sintomas da menopausa; a filha revela indícios de frustração, porém luta para superá-los. Quando o examinei queixou-se sobretudo de dores abdominais intermitentes: às vezes dobra-se de dor e ao acesso segue-se um ataque de diarréia. Habitualmente apresentava dores agudas antes da defecação e durante o ato de defecar sentia sensação de ardor. Em 1940, o médico anterior sugeriu que consultasse um cirurgião e esse, depois de investigar o caso, formulou a hipótese de que as queixas seriam devidas à presença de aderências. Foi-lhe prescrito luminal e atropina. Além de todos os sintomas mencionados, queixou-se de eructações e agregou que tinha medo de multidões, de ir ao cinema e ao salão para cortar o cabelo. Complicava sua história clínica uma queda com fratura de coluna, em 1939. Desde então queixou-se também de contrações nervosas na perna direita, com sensações intensas de calor. Isso ocorre apenas durante a noite. O Sr. K consultou-se comigo regularmente uma ou duas vezes por semana, durante um período prolongado. Realizado o exame clínico, não pude achar nenhum problema orgânico que justificasse sua saúde deficiente. A investigação de motivações psicológicas sempre voltava ao desagrado que sentia por seu trabalho. Melhorava rapidamente quando lhe era concedida licença. Em fevereiro de 1951 encaminhei-o novamente ao cirurgião, o qual tampouco pôde achar algo de anormal no aparelho digestivo do paciente. Em junho encaminhei-o ao Dr. S com esperança de que o especialista em psiquiatria esclarecesse o caso. Os sintomas do Sr. K persistiram, e às vezes sentiu-se próximo ao colapso mesmo que sem dores. Uma ou duas vezes foi levado à emergência de um hospital próximo. Em outubro de 1951 compareceu ao hospital das clínicas onde o Dr. S é chefe do Departamento de Medicina Psicológica, com a finalidade de submeter-se a uma sessão de narcoanálise. Nunca pude conseguir um relatório sobre os resultados obtidos. Entretanto, foi encaminhado ao ambulatório, onde considerou-se a possibilidade de um cálculo biliar. Chocou-me bastante a idéia de que essa possibilidade tivesse passado despercebida durante tanto tempo e de que pudesse ser a causa dos seus sintomas. Depois de novos exames foi operado, em janeiro de 1952. Após a operação sentiu-se bem e totalmente liberado dos sintomas até meados de abril. Voltou então a meu consultório, apresentando novamente espasmos, diarréias, dor na reborda costal esquerda e eructações. Tratei de convencê-lo de que não havia sido deixado nenhum cálculo por remover, e que agora, após a extração do cálculo biliar, não se podia pensar em uma causa orgânica, que seus sintomas eram totalmente devidos a fatores psicológicos, que devia superar suas ansiedades e aversões para poder enfrentar o seu próprio problema. Não lhe receitei nenhum medicamento. Voltei a vê-lo há dois dias. Seu estado de ânimo era de feliz resignação. Repassei novamente com ele toda a sua vida anterior e dessa vez tentei discutir também sua vida sexual. Parece que por esse lado nada há de errado, ou provavelmente não consegui superar sua resistência. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
54
Aqui, ao contrário do caso do Sr. U (Caso 5) aparentemente não há controvérsia nem luta. O paciente comparece submissa e apreciativamente desde 1950, assim como havia comparecido às consultas do antecessor do Dr. Y, desde antes da guerra. Também o Dr. Y mostrou-se paciente e esteve sempre disposto a rever a situação. Nesse relacionamento aparentemente bom e tranqüilo o paciente ofereceu a seu médico grande variedade de sintomas, quase sempre os mesmos, com meras variações de intensidade. O médico fez tudo quanto esteve a seu alcance para achar a solução do problema do paciente, e chegou ao extremo de enviá-lo a um psiquiatra, porém por um ou outro motivo a estratégia não teve bom resultado — todo o quadro nos provoca reminiscências bastante acentuadas do Caso 6, embora menos tenso e menos dramático. Durante esses anos aparentemente serenos, ocorreu um episódio interessante que expõe cruamente o pensamento e a prática da medicina atual. Quando, no outono de 1951, o assistente principal do psiquiatra não pôde descobrir nada, encaminhou o paciente ao ambulatório de seu próprio hospital. Ali, suspeitaram da existência de colicistite e cálculos biliares. De acordo com seu relatório, o Dr. Y sentiu-se terrivelmente envergonhado de não ter pensado nessa possibilidade e, açodado por seu sentimento de culpa, apressou-se a submeter seu paciente a um exame radiológico e, quando esse demonstrou a presença de cálculos biliares, procedeu-se com igual rapidez a preparação de uma cirurgia, na esperança de achar finalmente a solução real do caso. Depois da intervenção teve uma convalescença normal e três meses sem sintomas mas logo em seguida o paciente recaiu no estado anterior. Trata-se de um desenlace não raro no caso de operações abdominais indicadas com base em discretas, ou mesmo não tão discretas, evidências positivas de caráter físico, sem levar plenamente em conta toda a personalidade do paciente, especialmente o papel desempenhado pela doença em sua vida. Também nesse sentido constitui a contrapartida do caso do diretor de uma companhia (Caso 6) o qual, devido à nossa conduta pouco hábil, custou-nos um médico. Porém a inclusão desse caso não obedece à razão apontada. Meu objetivo principal é comparar por um lado o sentimento de vergonha do médico frente à sua incapacidade para diagnosticar a presença de cálculos biliares, com a ausência do mesmo sentimento frente a sua própria incompreensão do problema do paciente; e por outro, a velocidade e confiança com que se decidiu a operação, e a atitude um tanto derrotista e complacente com respeito ao problema real, psicológico. Este caso e o do diretor de companhia que mencionamos antes revelam alguns dos inconvenientes acarretados por responder às propostas do paciente diagnosticando, sempre que possível, uma enfermidade física. Se bem que para alguns as intervenções cirúrgicas constituam possivelmente o inconveniente mais grave, não creio que sejam de grande importância, principalmente no caso em questão. Por um lado, o Sr. K teve uma convalescença sem problemas e viu-se realmente livre de sintomas durante três meses; por outro, os sintomas e sinais eram altamente sugestivos: dores abdominais no flanco direito, as quais às vezes o obrigavam a dobrar o corpo, principalmente durante a noite, que poderiam ser o resultado dos abalos sofridos durante uma viagem de ônibus, das diarréias ocasionais, da presença de cálculos biliares demonstrada pela radiografia, etc. Mesmo que supuséssemos que os cálculos biliares nada tinham a ver com a verdadeira doença (como se sabe, freqüentemente são achados de autópsia em pessoas que no transcurso de sua vida jamais sofreram dores abdominais), tanto o diagnóstico quanto a operação estavam justificados, e não provocaram dano de maior monta. O verdadeiro inconveniente reside no método de pensamento, o sistema de “eliminação pelos exames físicos”, que custou a esse paciente cerca de 20 anos de sua vida. Esses 20 anos foram consagrados à perseguição de uma enfermidade física “apropriada” esquiva e talvez inexistente, ao mesmo tempo que não se prestava a devida atenção às possíveis causas psicológicas. Desejo acrescentar que durante esses 20 anos o caso poderia perfeitamente © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
55
ter sido de um dos pacientes mencionados nas duas listas de pacientes (Capítulo V), com o registro que dissesse: “Paciente bem conhecido, visitante habitual deste consultório; dores abdominais, cólicas, diarréias; foram-lhe prescritos seus medicamentos usuais: atropina e fenobarbital.” Entretanto, esse caso oferece outro aspecto importante. O médico responsável pelo paciente não estava só. Sendo um homem escrupuloso, de quando em quando — segundo nos inteiramos através de seu relatório — enviava seu desconcertante paciente a vários especialistas. Teve um bom número deles, e conseqüentemente teve também muitos relatórios. Dado que deste ponto de vista de minha tese se reveste de particular importância o espírito e o modo de pensar destes profissionais, desejo citar os relatórios de alguns deles. Com o fim de oferecer um quadro coerente, escolhi todos os informes do período dramático que culminou na intervenção cirúrgica, isto é, de fevereiro de 1951 a março de 1952. Cirurgião, Hospital H. 23-2-1951 Caro Dr. Y Sr. K Grato por haver-me enviado este paciente para uma nova consulta. A gastroscopia revela estômago normal, exceto pela presença de pequena e delgada cicatriz. O enema de bário revela o cólon normal. Tranqüilizei o paciente no sentido de que não existem indícios de nenhum tumor. Ainda apresenta excesso de peso. Creio que se sentiria melhor com uma dieta leve. Psiquiatra, de seu consultório 5-6-1951 Caro Dr. Y Ontem atendi a seu paciente, o Sr. K. Agradeço sua gentil recomendação.
Atendi pela primeira vez o Sr. K em 2 de outubro de 1944, data em que apresentou cãibras e tremores, e outros sintomas possivelmente de origem espinhal. Havia sofrido uma queda no gelo e contundido as costas em 1939. A radiografia revelou fratura na 11a vértebra dorsal, e esteve quatro meses engessado no hospital. As cãibras no pé direito tiveram início aproximadamente sete meses depois do acidente. Pareceu-me que se tratava de um histérico, porém para maior segurança, sobretudo porque os reflexos aquileus mostravam-se abolidos bilateralmente (o mesmo que agora), encaminhei-o ao Dr. Z (um dos principais neurologistas do Hospital J). Não recebi relatório do Dr. Z, o qual, segundo depreendi, enviou o paciente ao Dr. I do Hospital Y. O Sr. K continua queixando-se de cãibras, principalmente antes de dormir e particularmente quando o tempo é quente. Ultimamente não se incomoda muito com isso, sendo que seu principal mal-estar consiste em dores, no lado direito do abdômen. Esse sintoma segue e precede o ritmo intestinal, ou se relaciona com qualquer situação que possa ser fonte de ansiedade ou de tensão. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
56
Também se queixa de estado de pânico, caracterizado por atitudes tensas do corpo, quando come acompanhado ou está sentado no salão do barbeiro. Sempre foi homem de grande tensão nervosa, sofrendo de dispepsia nervosa desde 1934. É de uma complacência estranha frente a seus sintomas, quase ao extremo da belle indiferénce. Na medida em que seus sintomas obedecem a motivações conscientes, creio que constituem uma “cobertura” para seus diversos fracassos na vida; e não creio provável uma reação positiva a nenhum tipo de psicoterapia. De qualquer maneira, conseguirei que seja registrado no Hospital Z, incluirei seu nome na lista de psicoterapia; a qual, como pode imaginar, é incrivelmente grande.
Médico responsável pelo ambulatório do Hospital Z 30-11-1951 Caro Dr. Y Ref.: Sr. K O paciente me foi enviado pelo Dr. E do Departamento de Medicina Psicológica, por solicitação do Dr. S. Apresenta uma história de dor abdominal, que se apresenta sob a forma de ataques, quatro dos quais tiveram lugar no último ano, e que estão associados com dores no lado direito do estômago. Não apresenta vômitos. Os ataques duram quatro a cinco horas, e geralmente o obrigam a internar-se no hospital. O paciente assinalou que o sacolejar do ônibus provoca-lhe temor. Examinado, parece gozar de boa saúde, porém tem a língua saburrosa. Resistência no abdômen superior e duas cicatrizes de uma apendicite aguda associada com peritonite, da qual foi operado em 1935. Não foi observada hepatomegalia ou aumento no volume da vesícula biliar, nem problemas renais e não perdeu peso. Acredito que precise ser submetido a uma investigação mais aprofundada, porém, como não ignora, atualmente é muito difícil obter-se radiografias. Afirma que submeteu-se a uma radiografia esse ano no Hospital H, com contraste de bário e lhe agradeceria muito que nos enviasse uma cópia do laudo que lhe mandaram. Creio que deve ser excluída a possibilidade de cálculos biliares, porém, por outro lado, vemo-nos frente a dificuldades com a radiografia e, de minha parte, preferiria esperar um período de três meses. Entretanto, sugiro que receite pílulas coleréticas (Parke Davis & Co.), em número necessário para seu funcionamento intestinal, sendo que o reexaminarei novamente após este prazo.
(Cópia ao Dr. S) Médico do Hospital E 16-12-1951 Caro Dr. Y Ref.: Sr. K
Agradeço-lhe haver-me enviado este paciente. Creio que os relatórios dos diferentes médicos são quase mais interessantes que o paciente. Estou em desacordo com meus ilustres © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
57
colegas no que diz respeito à ausência de reflexos patelares. Sem dúvida existem, porém não posso dizer o mesmo dos reflexos aquileus*. Reflexos plantares cutâneos normais. Não apresenta sinal de Babinski. Esse fato, em conjunto com os reflexos abdominais normais e com os reflexos fotomotores também normais, pode ser considerado prova quase que definitiva de que não há patologia neurológica central ou periférica. Experimenta dores vagas no abdômen particularmente no lado direito, porém certamente nada decisivo e localizado. Não pude convencer-me de que havia sensibilidade sobre a vesícula biliar. Em seguida detectei uma massa interna sensível sob o lado direito, e uma ampola cheia de sílabos espásticos. O começo dos sintomas remonta a algum tempo depois de sua operação abdominal, e, em vista disso, solicitei um trânsito intestinal e um controle destinado a clarificar o quadro na medida do possível. Se for o caso de aplicar alguma medicação deveria ser constituída por espasmolíticos, como já foi feito. Contribuiria para sua melhora a ingestão de comprimidos de água de Vichy, duas ou quatro vezes por dia durante dez dias, de cada vez. Cirurgião, Hospital E 12-3-1952 Caro Dr. Y Ref.: Sr. K Consultei novamente seu paciente no ambulatório em 10-3-52. Esteve internado desde 22-1-52 a 18-2-52. Retirei sua vesícula biliar e encontrei colecistite crônica com cálculos biliares. A convalescência foi normal e agora se sente curado. Dei-lhe alta. Este caso constitui um bom exemplo do que denominamos “conluio no anonimato”. Na realidade, ninguém foi responsável pela decisão que culminou na intervenção cirúrgica. O primeiro cirurgião examinou conscienciosamente o paciente, porém sem nada encontrar, e o liberou com algumas palavras “tranqüilizadoras” e uma dieta leve. O paciente então procurou o consultório particular de um psiquiatra, e esse realizou outro exame físico exaustivo e, se bem que sem muitas esperanças na psicoterapia, incluiu-o na lista de espera. Em seguida, a seu tempo, o paciente foi reexaminado pelos dois assistentes principais do psiquiatra (nenhum deles escreveu relatórios) os quais o encaminharam a um clínico, surgindo então a suspeita quanto aos cálculos biliares. O médico pessoal do paciente sentiu-se envergonhado de ter omitido o diagnóstico “certo”, pediu uma segunda opinião e o médico convidado manifestou-se contra a opinião do psiquiatra e portanto de acordo com o diagnóstico de cálculos biliares, motivo pelo qual se procedeu à exerese da vesícula biliar do paciente. O segundo cirurgião foi o último — orgulhosamente dá alta ao paciente depois da operação, completamente recuperado. Ninguém mencionou, e talvez a ninguém tenha importado, o que se passava no interior do paciente enquanto era enviado de um médico a outro, para ser finalmente colocado sobre a mesa de operações. Agora, quem era o responsável pela saúde do paciente — o médico geral, o cirurgião, os dois especialistas, o psiquiatra ou seus dois assistentes? Gostaria de saber quantos dos especialistas que intervieram neste tratamento se deram ao trabalho de observar o resultado de suas recomendações. Quem não pôde deixar de observar os resultados foi, naturalmente, o clínico geral, porém sentiu-se livre de culpa e responsabilidade pois havia se limitado estritamente a seguir o conselho de especialistas capacitados. *Ver carta do psiquiatra, de 5-6-1951.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
58
Em qualquer situação desse tipo, isto é, quando o paciente coloca frente a seu médico um problema desconcertante, e este, por sua vez, encontra-se amparado por uma constelação de especialistas, certos acontecimentos tornam-se quase inevitáveis. Um dos principais consiste no “conluio do anonimato”. Adotam-se decisões vitais, sem que ninguém assuma a responsabilidade pelas mesmas. A grave operação do caso 11, que acabamos de descrever, é apenas um exemplo bastante dramático desse tipo de decisões, porém existem outros pelo menos de igual importância. CASO 12 Em março de 1954 a Srta. F, de 24 anos de idade, recebeu do Dr. C, que a havia tratado durante mais de um ano, a recomendação de submeter-se a um exame psiquiátrico — de acordo com a indicação de um eminente médico pertencente a um hospital-escola de Londres. O clínico geral sentiu-se descontente frente a essa complicada situação triangular, sobretudo porque os resultados não foram muito bons; além disso, a paciente começou a exibir novos sintomas. Quando ela deixou escapar a idéia de que a causa de seus mal-estares poderia ser devido aos “nervos”, aproveitou a oportunidade e providenciou um exame psiquiátrico. A Srta. F provém de uma família rural da classe média alta. Sua doença atual começou em um colégio interno, quando sofreu intoxicação alimentar, a qual também atingiu várias outras alunas. Todas, exceto a Srta. F, retornaram normalmente às suas atividades escolares depois de alguns dias. A própria paciente relatou a história que se seguiu à enfermidade durante o exame psiquiátrico. Uma vez que este texto revela claramente sua parte no conluio, citarei integralmente seu comunicado. “Quando tinha 15 anos, sofri uma intoxicação alimentar no colégio interno em que me encontrava, porém não foi nada de grave. Emagreci muito e me preocupei bastante, porque temi atrasar-me em meus estudos, na realidade sofri um colapso nervoso e grande parte de meus cabelos caiu. Fiquei em casa durante um ano e gradualmente recuperei o peso; voltei a um colégio interno menor quando me encontrava bem recuperada. Estava nessa escola quando comecei a notar que minhas pernas inchavam e gradualmente pioraram durante um certo período de tempo, até que meu médico prescreveu injeções de Merzalil, as quais produziram um efeito apenas temporário. Desde então recebi numerosas injeções também para restabelecer minhas menstruações (que haviam desaparecido completamente após a intoxicação alimentar, quando eu tinha 15 anos). As injeções de hormônios fizeram com que eu melhorasse um pouco e de vez em quando apresento leves indícios do aparecimento da menstruação, às vezes com intervalos de seis meses. A falta da menstruação me preocupou bastante e principalmente o fato de que as pernas incharam tanto, o que provocou muita inquietação e falta de confiança. Há um ano ou um ano e meio, apareceu um eczema muito feio e desagradável. O dermatologista disse que se tratava de tensão nervosa. Não consigo que desapareça e parece vir por episódios, principalmente quando quero ir a uma festa e mostrar-me limpa. Também me preocupa o problema econômico. Há nove meses desmanchei meu noivado, pois senti que meu noivo perdia o interesse por mim. Isto fez com que eu ficasse muito nervosa, e aumentou o eczema e também a inchação das pernas. Creio que perdi meu noivo devido às pernas e este feio eczema. Mamãe sofreu uma grave operação durante a primavera passada. Fui para casa cuidar dela. Agora encontra-se completamente restabelecida. Não ganhei dinheiro durante quatro meses e a questão econômica me preocupou muito. É muito difícil eu me tranqüilizar e animar quando saio para fazer alguma coisa, ir a uma festa ou a qualquer outro lugar. Acho que me falta confiança.” No decorrer deste longo relato a jovem menciona apenas um dermatologista e um clínico geral, omitindo completamente o fato de que consultou vários médicos impedindo que qualquer um deles assumisse a plena responsabilidade pelo tratamento. Na realidade, © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
59
desde o episódio da intoxicação alimentar, esteve permanentemente sob cuidados médicos. Entre os vários profissionais a quem procurou, encontravam-se o médico da família no campo e um amigo da família, eminente especialista de um hospital-escola londrino. Como a jovem vivesse em Londres, esse último a enviou a um clínico geral da mesma cidade, solicitando que a incorporasse à sua própria clientela e que lhe receitasse medicações, aplicasse injeções e assinasse os certificados do Serviço Nacional de Saúde. O tratamento recomendado consistiu principalmente em prolongadas séries de injeções hormonais destinadas a regularizar os ciclos menstruais, e de Merzalil para aliviar a inflamação das pernas. À medida que o tempo passava, o Dr. C sentia-se cada vez mais descontente com o papel que desempenhava, principalmente porque a Srta. F renovava continuamente suas queixas e dirigia graves críticas ao Dr. Z, o eminente especialista. Em certa ocasião, quando o Dr. Z havia saído em longas férias, as queixas da jovem tornaram-se tão insistentes que o clínico geral fez com que se submetesse a um exame psiquiátrico. Cito a sua carta de recomendação: Esta moça compareceu a meu consultório há um ou dois anos, depois de ter estado durante algum tempo sob os cuidados de um especialista. Apenas desejava que se receitasse, por intermédio do Serviço Nacional de Saúde, vários medicamentos que o especialista havia recomendado. Este último estava tratando uma amenorréia com complicadas combinações glandulares. Não me foi pedido que fizesse nada mais. É proveniente do campo, e durante a semana trabalha como secretária. No campo, a família tem seu próprio médico. Logo em seguida, a jovem desenvolveu outros sintomas de origem evidentemente nervosa, cãibras nos dedos, de modo que não podia datilografar, eczemas durante períodos de transtornos emocionais, etc., e ela mesma fez observação de que acreditava que todos seus achaques eram de origem nervosa. Reagiu muito positivamente à idéia de um tratamento, tendo em vista que o tratamento físico não produziu nenhum resultado. É filha única. Pai aposentado de 68 anos. Mãe, 55 anos. As menstruações da paciente apareceram aos 13 1/2 anos, tendo sido bastante regulares até os 15 anos, quando começou a preocupar-se com seus exames finais. As regras desapareceram durante vários meses, e apesar do tratamento endocrinológico. desde então só ocorrem de quando em quando. Sente-se bem quando me vê. É uma moça agradável, cordial, simples, que provoca uma certa impressão de imaturidade e infantilismo. Graduou-se em um bom colégio secundário, logo sua inteligência é superior à média. Superficialmente parece alegre, porém a existência de numerosas perturbações de caráter físico indica a dissimulação de sentimentos profundos. O edema das pernas, surgido durante a adolescência, sem causa aparente, parece ser edema de Milroy, o qual se supõe que seja sempre (pelo que sei) conseqüência de uma grave alteração psicológica. Não fiz seu exame psicológico. Não desejo tratá-la pessoalmente, pois pressinto que o caso pode ser difícil e prolongado. Envio-a para que se submeta a exame, com a idéia de que faça psicoterapia de grupo ou, mais provavelmente, individual*. Trata-se de uma situação bastante típica, que se desenvolve com grande freqüência quando certo número de médicos intervém no caso e nenhum deles assume a responsabilidade pelas decisões. O médico de família era consultado apenas quando a Srta. F
*Era preestabelecido em nossos seminários de pesquisa que, ao encaminhar um paciente para entrevista psiquiátrica, o médico declarasse explicitamente se desejava ou não continuar o tratamento e se estava apenas pedindo conselho ou transferindo a responsabilidade do tratamento para a clínica. Este acordo sempre funcionou bem.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
60
visitava seus pais, e intervia pouco no tratamento. O Dr. Z a via ocasionalmente e muito rapidamente, só se interessando pelos sintomas físicos; ao passo que o clínico geral, aquele que realmente aplicava o tratamento, se bem que em posição acentuadamente crítica a respeito de seu eminente colega por seu descuido frente ao aspecto psicológico da doença, considerava embaraçoso e talvez inútil dizer-lhe firmemente que acreditava ser de muito pouca utilidade o tratamento exclusivamente físico. O exame psiquiátrico revelou que esta situação difícil era obra tanto dos profissionais quanto da paciente. Impelida por sua estrutura psicológica — tema que não me proponho a discutir detalhadamente aqui — a Srta. F tinha que comportar-se como uma criança obediente e submissa. Aceitava sem resistência todos os conselhos e instruções, porém logo confrontava cada profissional com todos os demais, de modo que no final todas as sugestões careciam absolutamente de valor. Sua atitude de dependência induzia a todos a realizar os maiores esforços para ajudá-la, porém a jovem os manobrava até colocá-los em uma situação na qual a melhor boa vontade do mundo de nada serviria. Depois do relatório do psiquiatra, o seminário discutiu longamente o que poderia fazer o médico para sair da incômoda situação em que se encontrava. Seu problema consistia em que, por um lado, desejava ajudar a paciente; e por outro, se bem que em atitude crítica quanto ao Dr. Z, não desejava fazer nada que perturbasse as amistosas relações profissionais que mantinham. Durante a discussão, tornou-se pouco a pouco evidente que a única esperança de resolver esta situação consistia em entrar em contato com o Dr. Z e convencê-lo da necessidade de constituir uma frente ampla em relação à paciente, uma que a paciente não pudesse manobrar uns contra os outros. Além disso, embora o psiquiatra se mostrasse mais do que em dúvida, resolvemos que deveria oferecer ajuda à paciente, sempre que ela se mostrasse disposta a aceitá-la. Todos ficaram de acordo e a maioria, não todos, consideraram que as coisas começavam a orientar-se de maneira correta. É muito instrutivo observar o que realmente aconteceu. Eis aqui o relatório do Dr. Z durante a reunião seguinte: Escrevi uma carta detalhada ao especialista, explicando-lhe exatamente o ocorrido, que a jovem havia sido submetida a exame psiquiátrico e a natureza do relatório recebido. Acrescentei que enviaria o relatório, se assim o desejasse — estava de acordo em que se realizasse o tratamento psicoterápico, ou desejava continuar com seu tratamento físico? Respondeu de forma muito concisa e cortes que a jovem o havia informado de que havia marcado uma entrevista na Clínica Tavistock, porém sem mencionar que já lá havia estado. “Várias vezes falou com minha secretária, porém nunca mencionou o fato. Creio que não há dúvida de que sofre um problema orgânico com retenção hídrica periódica e perturbação urinária.” Então a jovem voltou a meu consultório e quando lhe expliquei que podia submeter-se a um tratamento psiquiátrico, disse-me: “Creio que deveria voltar ao consultório do Dr. Z. Foi muito amável comigo” e insistiu nisso. Mostrei-lhe que já havia comparecido a quatro ou cinco médicos e que estava manobrando cada um deles contra os demais. Com o mesmo intuito, se bem que houvesse em várias ocasiões falado com a secretária do Dr. Z, não mencionou que havia sido examinada por um psiquiatra e que agora está considerando a possibilidade de submeter-se ao tratamento proposto. Algumas semanas depois soubemos que a Srta. F aceitava em princípio o tratamento, porém solicitava que lhe fosse permitido adiar o início do mesmo, uma vez que desejava ter várias semanas de férias. Neste meio tempo consultou um ginecologista que lhe prescreveu novos medicamentos. Quando voltou a Londres começou o tratamento psiquiátrico e sempre que lhe era apontado algum aspecto especial, respondia: “Meu médico (referindo-se ao clínico geral) disse isso, ou disse aquilo.” Depois de quatro sessões interrompeu o tratamento, afirmando que se sentia notavelmente bem. O médico informou que quando foi a seu consultório a jovem declarou que havia abandonado o trata© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
61
mento, não porque se sentisse tão bem, mas porque não podia comparecer regularmente e não lhe parecia correto faltar. Vários meses depois, em junho de 1954, o Dr. C informou: Comparece regularmente para receber injeções, sempre em horas inconvenientes. Continua consultando o ginecologista para receber comprimidos. Aproximadamente um ano depois, em maio de 1954: Não há novidades. Continuo em minhas funções de provedor, e não sei como sair delas. Finalmente, em outubro de 1955: Em agosto perguntei como iam seus ciclos menstruais, ao que respondeu que tinham sido bastante regulares durante um ano. Porém nunca havia mencionado o fato, e se não o tivesse perguntado, provavelmente não lhe teria ocorrido dizer-me, apesar de comparecer à consulta quase todas as semanas. Sua assiduidade é atualmente mais irregular, todavia suas pernas ainda incham e apresenta os mesmos eczemas desagradáveis sobre a pele. Sua personalidade não mudou nada. Faço todo o possível para manter a atitude otimista recomendada durante a última reunião, na qual se discutiu o caso desta paciente, e espero o momento em que peça algo mais que hormônios. Entretanto, reuniu mais dois médicos, um deles pertencente a um hospital-escola londrino. Este caso parece mais complicado que o do Sr. K, porém isso se deve exclusivamente a que o relatório inclui o papel desempenhado pela paciente. O “conluio do anonimato” governa a situação, não apenas no que tange aos profissionais, pois também a paciente participa plenamente dela. Todos se esforçam e usam suas energias em intentos fúteis, porém não se pode atribuir a ninguém a responsabilidade pelo governo — ou desgoverno — da situação.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
62
Capítulo
8
O Clínico Geral e os Especialistas Consultados
Desejo recordar ao leitor que, segundo o expressamos no início de nossa jornada, propunhamo-nos a estudar por que é tão comum que, apesar dos esforços honestos de ambas as partes, a relação entre o paciente e seu médico resulte insatisfatória ou mesmo infeliz, quais são as causas desse desenvolvimento indesejado e como poderia ser evitado. Semelhante colocação implica que a maior parte do livro será de caráter principalmente crítico. Quando se estuda um processo patológico é necessário concentrar-se sobre a parte doente do corpo, porém nem por isso afirmaremos que todo o corpo se encontra igualmente afetado. Voltemos às complicações provocadas pela intervenção de um médico consultado na relação médico-paciente. No capítulo anterior estudamos o mecanismo e os inconvenientes do “conluio do anonimato”. Esse processo pode conduzir, e infelizmente com freqüência conduz, à difusão de toda responsabilidade. Adotam-se decisões importantes, freqüentemente vitais, e ninguém assume francamente a total responsabilidade pelas mesmas. Freqüentemente, em realidade muito mais freqüentemente do que se crê, o paciente colabora ativamente nesse conluio tácito. Nosso caso anterior, o no 12, apresenta claramente esta situação. Em todo caso de conluio do anonimato, se os dois médicos implicados são um especialista e um clínico geral, atuam também outros fatores, os quais contribuem para agravar ainda mais a situação. Estes fatores conjugam-se em um único: a perpetuação da relação professor-aluno. O clínico geral contempla com respeito ambivalente aos especialistas, os quais, devido a sua própria condição, devem saber, e freqüentemente sabem, mais do que aquele a respeito de determinadas doenças. Se os fatos não confirmam esta premissa, o clínico geral adota uma atitude de crítica acentuada e de descontentamento, porém não traduz seu sentimento em fatos, porque se sente impedido pelo respeito de que goza o especialista, herança de seus predecessores no hospital-escola. É verdade que alguns especialistas estão mais do que dispostos a manter esse tipo de relação. Em nossos seminários, os médicos freqüentemente leram relatórios de especialistas, particularmente aqueles que não consideravam satisfatórios. A razão mais freqüente de desagrado era que os especialistas omitiam opiniões desnecessárias e conselhos © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
63
pseudopsiquiátricos fúteis com fundamentos lamentavelmente inadequados, ao invés de declarar franca e sinceramente que não lhes tinha sido possível comprovar a existência de doenças de sua especialidade que pudessem explicar os sintomas do paciente. Ou, em outras palavras: que no caso em questão seus serviços especializados não eram necessários e careciam de utilidade. Muitos especialistas, como são os sucessos dos professores do próprio médico, obviamente sentem-se obrigados a fingir um conhecimento maior do que realmente possuem. O caso seguinte, no 13, ilustra bem estas correntes subterrâneas: a divisão de parte da carga de responsabilidade, o especialista que oferece conselhos superficiais e o clínico geral, descontente e paralisado por seu respeito ambivalente. O caso foi casualmente mencionado pela primeira vez pelo Dr. Y, em certa ocasião em que o seminário examinava o problema dos pacientes que exigem uma radiografia como fator de segurança. CASO 13 Esta mulher incorporou-se à minha clientela há três anos. Havia sido a feliz esposa de um agricultor viveu no campo e teve dois filhos, agora adultos. O marido sofreu um acidente, teve um abscesso no ouvido, o qual foi operado, porém em conseqüência tornou-se psicótico. Pouco depois a paciente sofreu também de mastoidite, da qual foi operada; tinha terror de que lhe acontecesse o mesmo que ao marido, porém recuperou-se bem. Nesta época (cerca de 1940) viveu próximo a um aeroporto da R.A.F., e apaixonou-se por um homem que lá trabalhava, decidindo casar-se com ele. Conseguiu divorciar-se do marido, baseando-se no estado mental deste (se bem que ele não estivesse tão mal como ela pretendia) e veio viver com esse homem em Londres. O homem era casado e tinha dois filhos, porém sua mulher recusou o divórcio. Viveram na casa dos pais do homem, e havia constante oposição entre a mãe e a paciente. Quando vi a paciente pela primeira vez, aproximadamente em 1950, queixava-se de fortes dores lombares, que supuz pudessem ser devidas a uma hérnia de disco, porém os exames demonstraram que não se tratava disso. Seus sintomas foram considerados histéricos. Em abril de 1953 a própria paciente sugeriu uma radiografia, e nessa ocasião relatei o caso. Enquanto me encontrava em férias foi atendida por meu substituto; ela havia passado férias na ilha de Man, e viajava de pé em um ônibus que deu um grande solavanco, bateu com a cabeça no teto, ficou tonta, porém nada disse uma vez que não desejava estragar o passeio de seus companheiros. Desde então tem sofrido cefaléias intensas e insônia. Encaminhei-a ao Hospital Z e de lá me enviaram uma carta datada de 10 de julho: “A paciente apresenta certamente um síndrome pós-traumático. A radiografia mostra a presença de uma zona sombreada em uma região do cérebro que ainda deve ser determinada. Também se observa estenose mitral. Marquei para vê-la novamente...” Em 17 de julho escreveram: “Persiste o síndrome pós-traumático da paciente. Na realidade, necessita de férias prolongadas. Também lhe seria útil dormir melhor, pelo que seria conveniente prescrever-lhe fenobarbital, até que melhore.” Nessa época eu já havia voltado de minhas férias. A paciente vinha freqüentemente ao consultório, tinha mau aspecto, não podia dormir, e as cefaléias eram terríveis; inquietava-a a possibilidade de que tudo aquilo tivesse algo a ver com a operação do mastóide. Sugeri que era estranho que tivesse sofrido de mastoidite depois do acidente do marido e perguntei-lhe se não acreditava que o fato havia afetado sua mente... Redargüiu que se sentia perfeitamente feliz e que jamais tinha voltado a pensar no marido. Em agosto escrevi ao médico do Hospital Z, expliquei-lhe a situação e pedi sua opinião. Respondeu o seguinte: “Ainda apresenta uma insônia grave, com depressão e perda de apetite. O caso é muito estranho, porque a lesão na cabeça não foi muito grave. Além disso, não há indício de diplopia. Sem dúvida os sinais que apresenta são de origem histérica. Não creio necessário incomodar um psiquiatra, sugiro que volte a © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
64
trabalhar, para ver se melhora. Posso sugerir-lhe uma mistura de cloral e brometo no lugar dos barbitúricos?” Aqui observamos novamente a inutilidade de enviar rotineiramente pacientes ao exame do especialista sem a “seleção” adequada. Essa rotina é tão fútil como submeter ao exame psiquiátrico todos os casos de fratura de perna ou de sarampo. Também vemos aqui até que ponto podem induzir a erros os relatórios dos especialistas. Finalmente, vemos o clínico geral olhando o especialista como um ser superior, e permite que esse o trate como a um simples fornecedor de remédios — quase como no caso anterior, o da Srta. F. Além disso, é interessante observar de passagem a atitude do clínico geral. Ele notou a inconsistência das cartas. A sombra “em alguma parte do cérebro” mencionada em 10 de julho parece ter sido completamente esquecida pelo especialista e por seus assistentes do Hospital Z e o clínico geral, em conluio tácito com eles, não voltou a mencionar o assunto. Certamente, o fato parece surpreendente, principalmente para quem sabe quão consciencioso é habitualmente o Dr. Y. Mais estranho ainda é que seu respeito ambivalente pelo especialista o haja inibido até o extremo de incapacitá-lo para utilizar seus conhecimentos na refutação da superficialidade do especialista. O especialista formulou o seguinte conselho: “Não creio necessário incomodar um psiquiatra.” O médico geral resmungou, porém o seminário teve que apelar para uma boa dose de pressão a fim de que revelasse que conhecia os seguintes fatos — primeiro, a existência de sentimentos de culpa evidentes na paciente com respeito ao esposo; de certo modo ela se auto-acusava e negava ao mesmo tempo ter-se despreocupado da doença do marido, afinal de contas talvez ele não fosse tão psicótico. O médico também sabia da existência de um conflito crônico entre a paciente e sua própria filha. A filha, se bem que fiel a sua mãe, tinha dúvidas quanto ao acerto do passo que esta havia dado ao divorciar-se; estava convencida de que o pai não constituía realmente um caso mental, e o continuava visitando. Além disso, a filha, como a mãe, vivia com um homem casado que não podia obter o divórcio. A mãe lamentava essa situação, talvez ainda mais porque, uma vez que ela mesmo estava em falta, não podia mostrar sua desaprovação. E, finalmente, havia as constantes disputas com a família de seu companheiro, particularmente com a mãe. Todos esses fatores sugerem que a paciente não tinha sabido resolver satisfatoriamente seus problemas de relação com os homens, e, obviamente, menos ainda com as mulheres. Levando-se em conta todos esses elementos, era muito improvável que os sedativos ou os tônicos representassem a melhor ajuda. O conselho do especialista, oferecido em completa ignorância de todos esses fatos significativos, era fútil e sem valor. Apesar do que, tão acentuada era a dependência ambivalente do médico em relação ao respeitado especialista, que precisou de bastante ajuda antes que pudesse libertar-se o suficiente para criticar a conduta do especialista — e a própria — neste conluio. Se bem que superficialmente pareça tratar-se precisamente do contrário de um conluio tácito, meu próximo tópico é apenas outro sintoma do mesmo problema. Ocorre não raramente que o clínico geral e seu especialista difiram quanto ao modo de vida recomendável para o paciente. Caso freqüente deste tipo de desacordo é o tratamento de um paciente com hipertensão, sobretudo quando foram detectados alguns discretos sinais premonitórios. Por exemplo, o clínico geral, que conhece todos os antecedentes, a personalidade do paciente, suas reações frente a qualquer restrição a sua liberdade, sua tendência aos temores hipocondríacos etc., pode chegar à conclusão de que a melhor maneira de ajudá-lo será preservar seu entusiasmo vital e sua capacidade de trabalho mesmo que isso implique aceitar alguns riscos. O especialista, que apenas possui um conhecimento superficial da personalidade do paciente e cujo julgamento baseia-se essencialmente em observações de caráter físico e em impressões subjetivas, pode crer na conveniência de uma vida prudente e tranqüila. A elaboração de meios e maneiras pelas quais os dois colaboradores — o especialista e o clínico geral — podem informar-se mutuamente sobre seus motivos e objetivos coloca um problema extremamente espinhoso. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
65
O clínico geral, por muito que tema os erros do especialista, vê-se obrigado pelas circunstâncias a solicitar a colaboração do mesmo com a finalidade de elucidar, por exemplo, até que ponto está afetado o miocárdio, quanta potência ainda possui de reserva, se a função renal está ou não afetada etc. Pessoalmente carece de elementos para obter esses dados. Outra fonte de inquietação é o fato de que o médico clínico nunca sabe o que será dito a seu paciente durante o exame ou depois dele. As instruções verbais, sobretudo em um ambulatório de muita atividade, freqüentemente são dadas não pelo próprio especialista, mas por alguns de seus secretários ou por um dos subalternos. O clínico geral não tem controle sobre essas pessoas e, de qualquer maneira, de acordo com nossa experiência, os especialistas não se preocupam particularmente em supervisionar essa esfera especialmente importante de seu serviço. Em geral, os relatórios escritos que incluem os achados somáticos são submetidos a um controle cuidadoso, para verificar a descrição precisa dos resultados dos exames. Talvez se cuide um pouco menos das recomendações terapêuticas transmitidas ao médico; com bastante freqüência parecem um pouco esquemáticas. Porém o que o pessoal menos graduado diz ao médico, depois de realizados todos os exames, é deixado — com raras exceções — a seu “senso comum”, ou capacidade de imitar os ipse dicta do “grande chefe branco”. A maioria dos clínicos gerais não se atreve a formular seu desiderata; ainda menos se atrevem a instruir o especialista quanto ao modo de falar com os pacientes que são enviados, nem a indicar o que deve ou não dizer-lhes. E mesmo que se atrevessem, pergunto-me quantos especialistas seguiriam as indicações em questão e quantos ficariam indignados frente a tamanha falta de respeito. A correspondência entre o Dr. C e o Dr. Z sobre a Srta. F (Caso 12) é uma boa, se bem que discreta, ilustração do problema. O resultado desta evasão mútua é o reforço do tácito conluio do anonimato. O especialista reclama dos clínicos gerais indolentes que escrevem pedidos de exames superficiais ou absurdos e que em nada ajudam a seu pessoal atarefado; ou que, por outro lado, escrevem epístolas perfunctórias e extensas, como se o especialista tivesse tempo de ler essas efusões e desiderata. Particularmente em Londres muito raras vezes o clínico geral e o especialista se reúnem e têm tempo e oportunidade de trocar seus pontos de vista, opiniões, objetivos terapêuticos e modo de alcançá-los. Nas poucas ocasiões em que o clínico geral se enche de coragem e telefona para o hospital, ou comparece para discutir o caso de seu paciente, acontece que quase que invariavelmente deve falar com um assistente e não com o especialista. Quase sempre o assistente, se bem que possua as mais altas qualificações como pós-graduado, tem menos idade — e talvez também menos experiência — que o clínico geral, o que não contribui para facilitar a situação. Geralmente o assistente, para ocultar a falta de confiança em si mesmo, trata de mostrarse cortesmente superior e vago, enquanto que o clínico geral mostra-se ao mesmo tempo humilde e irritado. Nas raras ocasiões em que o clínico geral é conduzido à presença do especialista, o tempo disponível é tão breve e a relação entre ambos tão tensa que dificilmente é possível realizar um exame exaustivo do problema, separando-se os dois profissionais sem que nenhum deles tenha assumido explicitamente a responsabilidade total pelo caso, com o que mantêm a norma de conluio do anonimato. O Caso 27, no Capítulo 18, é um bom exemplo desta situação. Outro exemplo de desacordo que mascara o conluio do anonimato ocorre quando o clínico geral e seu especialista discordam fundamentalmente quanto ao método terapêutico a ser aplicado em um caso em particular. O Caso 14 constitui uma ilustração impressionante desta situação tão desagradável. Ao mesmo tempo, mostra novamente como os padrões mentais inconscientes do paciente contribuem primeiro para criar e, em seguida, para usar este conluio, de modo a que os dois médicos fiquem pessoalmente envolvidos muito mais do que teriam desejado e, certamente, mais do que é conveniente para o tratamento. Em outubro de 1954 o Dr. B apresentou o seguinte relatório: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
66
CASO 14 Sr. I, 33 anos, atualmente aos cuidados de um psiquiatra, em uso de metedrina. Durante as três horas seguintes à injeção de metedrina senta-se e escreve suas experiências, bem como todo tipo de recordações. Leva em seguida esse material para que o psiquiatra leia. Eu o conheço há algum tempo. Em várias ocasiões sofreu perturbações agudas. Desta vez o examinei porque tinha bronquite e inflamação de garganta. Durante sua doença física, começamos a discutir seus problemas mentais. Agora chegou a um ponto de colapso, cedeu completamente, está preso ao leito. É um de quatro irmãos. O pai foi homem de negócios e os mantinha sob estrito controle; o paciente estava intimamente ligado a um de seus irmãos, morto na guerra; depois disto teve seu primeiro colapso. Em seguida casou-se pela primeira vez, com uma irmã da esposa do seu irmão favorito; porém brigava constantemente com sua mulher. Procurou-me há um ano e meio, em estado de grande tensão nervosa. Vi-o algumas vezes, e superou a fase aguda. Em seguida, soube que se havia casado pela segunda vez há três meses (verão, 1954). Os problemas atuais relacionam-se com seu segundo casamento. O presente episódio começou porque sua esposa usou um colar que lhe havia sido presenteado por um ex-namorado. O paciente desenvolveu um estado de agressividade muito aguda, incapaz de controlar, e hoje me disse que se sentia capaz de ferir sua mulher. Entrou em um estado de despersonalização. Deveria comparecer ao tratamento na semana passada, mas faltou. Tem consulta marcada para este sábado. Sinto que o tratamento a que vem se submetendo mobilizou boa quantidade de material inconsciente de ansiedade que não foi absolutamente elaborado. A metedrina piora consideravelmente seu estado. Falei pelo telefone com o psiquiatra e lhe perguntei se não achava mais conveniente apelar para o tratamento psicanalítico. Respondeu que não via nele nenhuma utilidade em casos depressivos e que o paciente teria esses ataques de quando em quando, porém que o tratamento com metedrina aliviaria os acessos de ansiedade aguda. No momento não sei muito bem o que fazer com esse homem. Frente às nossas perguntas, o Dr. B nos informou que o psiquiatra havia tirado o paciente da R.A.F. já há 18 meses o Dr. B havia aconselhado o tratamento psicanalítico, porém o paciente — quando se viu ameaçado de colapso — procurou o psiquiatra sem antes consultar seu médico. Alguns médicos do seminário expressaram-se vigorosamente em relação a essa atitude, declarando que pessoalmente ter-se-iam negado a manter contato com um paciente de conduta semelhante. Entretanto, o Dr. B susteve que o homem era seu paciente, que sofria de uma doença com sintomas tanto físicos quanto mentais; o fato de que houvesse procurado o consultório do psiquiatra contra seu conselho e pelas suas costas constituía simplesmente um acting-out emocional, apenas mais um sintoma. Em seguida informou detalhadamente os últimos desenvolvimentos. Examinei a situação com o paciente. Disse-lhe que, dado que eu era seu clínico geral, devia tomar as decisões sobre quais as linhas gerais do tratamento e que me colocaria em contato com o outro médico; o paciente mostrou-se de acordo. Porém, quando conversei com o psiquiatra, este mostrou pouco espírito de cooperação. Opôs-se terminantemente à minha sugestão de que poderia haver algum tratamento alternativo. Deu mais ou menos a entender que, em minha condição de clínico geral, não conhecia psiquiatria. Observou-se então que o paciente devia ter alguma participação na trama, e que possivelmente procurava manobrar cada um dos profissionais contra o outro. O Dr. B concordou com isso. “E agora está levando o jogo às suas últimas conseqüências. Domina completamente a situação. Sua esposa está aterrorizada, os dois médicos empenham-se em disputa cortês e eu tenho que fazer algo.” Em seguida disse: “Quando veio ver-me © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
67
pela primeira vez, antes de seu segundo casamento, discutimos bastante sobre a relação que mantinha com o irmão que morreu. Mostrava-se bastante evidente que se tratava de uma relação quase que homossexual. O irmão era também um pai substituto e a angústia edípica guardava também certa relação com esse fato. Depois das discussões mantidas comigo, tentou fugir de suas angústias refugiando-se no casamento, em vez de fazê-lo na análise.” Depois do casamento, ao qual, diga-se de passagem, o médico foi convidado, o paciente não compareceu ao consultório durante certo tempo. Logo apareceu com bronquite e dores de garganta, e se desenvolveu a atual situação. Depois de longa e complicada discussão, o seminário conseguiu esboçar o seguinte quadro da dinâmica do caso — o paciente dedicava a seu irmão uma fidelidade bastante acentuada, do tipo de submissão feminina, e provavelmente era, dentro dessa relação, o membro passivo e expectante. Depois da morte do irmão, procurou outro homem de caráter forte, capaz de ocupar o lugar deixado do irmão. Talvez o Dr. B tenha despertado certas esperanças no paciente, no sentido de que fosse o homem de caráter forte que cuidaria dele, porém em lugar de satisfazer essas esperanças, o Dr. B o repeliu com seu conselho de que se submetesse a tratamento psicanalítico. O desiludido paciente suportou a situação durante certo tempo e em seguida começou a procurar outro homem forte. Achou um psiquiatra de caráter forte, o qual — citamos o relatório do Dr. B — “lhe administrava todo tipo de injeções e o fazia trabalhar durante três horas”. Dentro dessa relação, voltava a ser o irmãozinho. Logo, algo ia mal. Entrou em crise e voltou ao consultório do Dr. B com uma enfermidade física, sempre na condição de irmão menor, em busca de ajuda. Frente a seu pedido, o Dr. B respondeu assumindo novamente o papel de irmão maior: “Agora me encarregarei de cuidar de tudo.” Por outro lado, complicaram a situação os padrões compulsivos estabelecidos sobre o modelo das relações dos irmãos com o pai; o irmão menor, o paciente, dividindo sua lealdade entre o pai e o irmão maior. O aspecto mais importante, que tanto contribuía para dificultar o manejo da situação, era o fato de que os dois médicos tinham aceitado os papéis que lhes haviam sido atribuídos e, na verdade, competiam pela confiança e pela lealdade do paciente. Fator que contribuiu para complicar mais ainda a situação foi a solicitude da esposa, com sua exibição provocativa do passado, frente ao qual um homem inseguro como o Sr. I não podia deixar de reagir com episódios violentos de caráter emocional. O Dr. B tinha plena consciência da existência desse fator e, para não provocar a suspeita do marido, evitou cuidadosamente toda relação com a esposa. Creio que os detalhes enunciados são suficientes para explicar porque os dois médicos se chocaram. Aparentemente o desacordo se referia ao método psicoterápico adequado. Como argumento definitivo, o psiquiatra assinalou a diferença de hierarquia profissional entre ele mesmo e o médico clínico, argumento que deixou a esse último sem possibilidade de replicar, a não ser com sua cólera indignada. Dado que já conhecemos bastante da dinâmica do caso, é-nos fácil compreender a inutilidade desse tipo de disputa. O desenvolvimento habitual destas situações (como o demonstram os casos anteriores, 12 e 13) consiste em uma sucessão de insatisfações do clínico geral e do especialista, os quais roubam um ao outro a responsabilidade do caso. Como exceção, nesse caso, o clínico geral possuía uma vivência suficiente de medicina psicológica para aclarar pessoalmente a parte principal do quadro dinâmico. Achava-se na desusada situação de que se sabe mais informado que o especialista, e teve o valor e a perseverança necessários para resolver o difícil problema. Ainda mais, quando a discussão realizada no seminário lhe permitiu comprovar que um bom número de seus colegas não acreditava que sua oposição ao psiquiatra constituía uma falta de ética, assumiu a responsabilidade total do caso. Por isso talvez seja interessante citar textualmente sua descrição retrospectiva, datada de março de 1955 acerca desse período: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
68
Desde o princípio enfoquei minha relação com o paciente (o Sr. I) de um modo interpretativo. Demonstrou o êxito desse método o fato de que depois da primeira entrevista o paciente mostrou-se um pouco menos ansioso. A dinâmica da situação se desenrolou, de acordo com o que pude recordar, da seguinte forma: destaquei a ansiedade que o paciente experimentava frente à idéia de continuar as injeções e censurei o método de suscitar recordações maciças de situações passadas quando não existia a possibilidade de integrá-las na experiência total do próprio indivíduo, como se faz quando se pratica a psicanálise. Gradual porém francamente, expressei minhas próprias opiniões sobre o valor dos métodos psiquiátricos físicos desse tipo e procurei demonstrar-lhe qual era o tipo de terapia específica aplicável às formas de angústia que padecia, ilustrando minha exposição com o exemplo da situação imediata, em relação comigo, com sua esposa e com o psiquiatra. Creio que o fator que decidiu a situação do paciente entre o psiquiatra e eu foi que descobriu por si mesmo a relação entre a sua doença atual e a cólera que o dominou quando viu sua esposa usando um colar presenteado por um ex-namorado. Não apenas consegui demonstrar-lhe que estávamos frente a uma situação repetida, na qual o paciente desenvolvia intensos sentimentos de culpa devido à cólera com que ameaçava a sua esposa, mas que, na realidade, a exploração desse material trazia alívio real para seus sintomas. Não deixei de notar que, até certo ponto, eu já havia começado a intervir. A opinião do seminário foi, segundo acredito, que em minha condição de clínico geral deveria tomar a cargo todos os aspectos do caso, e foi como resultado dessa colocação que o paciente decidiu colocar-se inteiramente em minhas mãos, cancelou sua consulta com o psiquiatra e, após diversas entrevistas com vários parentes, chegamos à conclusão de que eu devia tratar de encontrar um psicanalista para ele. Atualmente, a psicanálise do paciente está tendo bons resultados. O caso do Sr. I revela uma solução pouco comum desta situação muito conhecida e desagradável. No Caso 27 do Capítulo 18 veremos uma solução mais freqüente da mesma situação.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
69
Capítulo
9
A Perpetuação da Relação Professor-Aluno
Como será notado por todos os médicos, os poucos casos examinados nos nossos dois capítulos anteriores constituem apenas uma pequena amostra de muitos outros de estrutura semelhante. Em todos eles os fatores mais importantes de desacordo entre o médico geral e os especialistas são: 1) A inclinação predominante do pensamento médico atual para o diagnóstico de enfermidade de caráter físico, sempre que isso seja possível. 2) O fenômeno que denominamos conluio do anonimato. 3) A ambivalente relação professor-aluno, não completamente autêntica, entre o médico geral e seus especialistas. Posto que nos capítulos anteriores examinamos já o primeiro fator, voltemos agora nossa atenção para os outros dois. Seria fácil decretar que o conluio do anonimato cesse imediatamente, e que deste momento em diante apenas um médico fique a cargo de cada paciente. Este profissional deve sem dúvida ser o clínico geral, pelo menos enquanto o paciente está sob seus cuidados, isto é, enquanto não ingresse em um estabelecimento hospitalar. Infelizmente, a situação é demasiado complexa para tolerar soluções por decreto. No curso de nossa pesquisa podemos elucidar claramente algumas das razões dessa complexidade. Pusemos em prática um sistema que não só permitia mas que também exigia que o médico geral assumisse a plena e ilimitada responsabilidade de seu paciente. Se bem que este método preserva e mesmo realça a dignidade do clínico geral, este o aceita com muita dificuldade. Uma das razões para que tal fato ocorra reside na responsabilidade, freqüentemente realmente grave, que o sistema implica. É muito mais simples derivar a responsabilidade, dizendo por exemplo: “Consultei todos os especialistas importantes, e nenhum deles soube dizer-me nada que valesse a pena; de minha parte, não tenho por que ser melhor que os medalhões.” Em nosso trabalho experimental não se permitia essa atitude irresponsável. Se bem que se haja solicitado a opinião dos especialistas e se as tenha levado em conta, a mesma não era definitiva nem obrigatória; eram criticadas quanto a seus méritos e em seguida o médico responsável pelo caso decidia o que se deveria fazer, e aceitava a responsabilida© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
71
de total e única de sua decisão. Freqüentemente, essa decisão influía em todo o futuro do paciente. Também era necessário aceitar esse fato. Não é de se estranhar que em muitos casos os médicos gerais não aceitem uma carga tão pesada. Mas é surpreendente o fato de que os especialistas, incluindo os psiquiatras, mostrem-se dispostos a entrar em conluio com um médico geral para diluir a responsabilidade de todos os participantes. Ocorre freqüentemente que o paciente com complicações psicológicas submete-se ao exame de vários médicos “eminentes”, cada um deles oferecendo sua opinião sobre um ou outro aspecto do problema, porém raras vezes formulando uma decisão final responsável e explícita, mesmo que seja necessária. Se é possível, não se adota nenhuma decisão: deixam-se as coisas no ar, até que os acontecimentos promovem uma decisão, a qual então se reveste da condição de anônima. Desse modo, todos sentem que o caminho seguido não foi resultado da intervenção particular de cada um. Por outro lado, se as coisas correm bem, cada um dos profissionais que intervieram pode crer que sua própria contribuição foi muito importante, para não dizer decisiva. Um dos aspectos do nosso plano consistiu em anular este anonimato, instigando o clínico geral a aceitar e manter a responsabilidade plena pelo tratamento aplicado ao paciente. Se o médico necessitasse de mais ajuda além daquela que o seminário estava em condições de fornecer-lhe, podia encaminhar seu paciente para uma consulta na Clínica Tavistock, caso seu propósito fosse o de continuar pessoalmente o tratamento*. O paciente era submetido a certos exames por um psicólogo e entrevistado por um psiquiatra (geralmente o líder do seminário). Os resultados dos testes e das entrevistas com o psiquiatra eram relatados logo em seguida em nossas conferências e submetidos a um escrutínio impiedoso. A prova final do valor destes relatórios, de influência direta sobre o prestígio tanto do psicólogo como do psiquiatra, era dada em função da medida em que ajudavam ao médico a melhorar o tratamento do paciente. Trata-se de uma prova muito severa, como posso testemunhar através de minha experiência direta. Nem eu nem os psicólogos que intervimos na investigação achamos agradável aceitar que alguns de nossos relatórios não fossem mais do que lindas frases, nas quais se repetia de um modo um pouco diferente fatos que o médico já sabia de cor e que, por conseguinte, apenas contribuiu para aliviar a sua difícil tarefa. O “conluio do anonimato” discutido mais acima fornece um excelente recurso para se esquivar a essa autocrítica, freqüentemente estressante. O especialista não tinha necessidade de compreender a futilidade de seus relatórios, podendo continuar refugiado em seu pedestal seguro e “eminente”, o clínico geral pode irritar-se e sentir que sua opinião acerca de inútil e pretensioso especialista encontra-se plenamente justificada e que, portanto, não há necessidade de fazer nada. Nosso esquema, que obriga a enfrentar-se como iguais especialistas e clínicos gerais, fecha todas as vias de escape. Reconhecemos que nós, como todos, tivemos casos nos quais pouco ou nada podia ser feito; também essa eventualidade deve ser explicitamente aceita, assumindo-se a total e franca responsabilidade. Há, entretanto, outras razões pelas quais é tão difícil alterar este estado de coisas. O “conluio do anonimato” domina o campo, tanto na medicina como na educação, provavelmente por idênticas razões. Em ambas as esferas o peso da responsabilidade é excessivo, e todos, incluindo o paciente, tratam naturalmente de aliviá-lo envolvendo a alguém mais, ou se isso é possível, vários outros. Isso pode ser descrito como um processo
*Naturalmente, quando se tratava de caso grave, cujo tratamento excedia as possibilidades de um clínico geral, o paciente podia ser encaminhado do modo usual à clínica, a qual eventualmente se responsabilizaria pelo próprio; quer dizer, o paciente deixaria de ser responsabilidade do médico.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
72
de difusão da responsabilidade. Tanto a educação como a medicina viram-se obrigadas a criar instituições e mecanismos práticos que permitam que esta difusão tivesse lugar de uma maneira fácil e tranqüila, freqüentemente até chegar ao extremo do anonimato total. À medida que se generaliza esta diminuicão de responsabilidades, todos os interessados estão disposto a ingressar no conluio do anonimato. Do ponto de vista do paciente, esta situação é semelhante àquela muito conhecida em que uma única criança deve enfrentar todo um mundo de adultos, os quais, tratam de educá-la de acordo com as normas particulares a cada um, o que, de acordo com nossa terminologia, significa o cumprimento da “função apostólica” do adulto. (Ver Capítulos 16-17.) “Os adultos” adotam de um modo anônimo decisões vitais para a criança. Se tudo corre bem, os adultos interessados — país, parentes, amigos, a escola, a clínica de orientação da infância etc. — sentem-se justamente orgulhosos e gratificados. Se, entretanto, algo não correr bem, ninguém assume a responsabilidade individual. Todos que conhecem, como profissionais ou como leigos, o ambiente que rodeia uma criança com problemas, sabe quão lastimavelmente certas são essas duas afirmativas. Não é de se estranhar, pois, que no caso de um “paciente-problema” a semelhança de situações mobilize as ansiedades, animosidades, temores e frustrações, a cega confiança e as profundas suspeitas de seus primeiros anos. Este fato explica por que tantos pacientes voltam ao uso de métodos surpreendentemente infantis nas relações com o medico ou com os médicos; tais como subordinação absoluta e aceitação fiel a cada palavra do médico; ou, por outro lado, rebeldias extremadas, que os impulsionam a ridicularizar e menosprezar toda e qualquer sugestão do médico; e, finalmente, um método particularmente desagradável, o de habilmente jogar um médico contra o outro. A Senhorita F. e o Sr. I, os Casos 12 e 14, constituem exemplos bastante adequados desta habilidade terrível de certos pacientes, capazes de paralisar o médico de melhor boa vontade, complicando-o, em conflitos estéreis com seus colegas. Na esfera da profissão médica, o conluio do anonimato constitui um método para aliviar o peso da responsabilidade. Outro, de igual importância, consiste na perpetuação da relação professor-aluno. É muito natural que o médico, diante de um problema difícil no curso de sua clínica, peça conselho, e é igualmente natural que o peça àqueles que o formaram, ou a seus colegas — os especialistas. Olha-os com respeito e admiração, esperando que saibam mais do que ele. Reforça sua esperança o fato de que a prática atual da medicina é apenas pouco mais que a soma total das diversas especialidades*. Os grandes êxitos dos últimos séculos foram alcançados no terreno das diversas especialidades, e sob o influxo desta sucessão de triunfos certamente reais, os médicos tendem a esquecer que foi necessário pagar um certo preço por isso. Hoje, todos afirmam que quando uma pessoa está doente, todo o seu ser está doente, e não apenas sua pele, seu estômago, seu coração ou seus rins. Embora verbalmente se renda uma homenagem constante a essa verdade, infelizmente na prática médica cotidiana ela é ignorada. Suponhamos que o médico chegou à conclusão de que toda a personalidade de um paciente encontra-se doente; poderá alguém informar-lhe quais os especialistas devem ser consultados se surgir algum problema ou dificuldade? Comparemos este embaraçoso problema com a facilidade com que se pode encaminhar o paciente ao especialista correspondente para que proceda a um exame torácico, ou a um outro (especialista) para um exame quanto a uma úlcera duodenal e ainda a um terceiro em relação à dermatose que apresenta, e assim por diante. Nesses casos, nenhum médico tem a menor dúvida
*Um clínico, geral, de multa experiência e um pouco desiludido, disse-me o seguinte: “Atualmente, o médico necessita apenas conhecer umas vinte prescrições e os endereços de uns trinta especialistas.”
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
73
quanto aos poucos especialistas entre os quais terá que escolher; porém quando se trata realmente de uma doença da pessoa total, resta-lhe apenas duvidar e perguntar-se a quem recorrer em busca de ajuda. Não é estranho, pois, que sobretudo nesses casos mais difíceis, o clínico geral mostra-se relutante em aceitar a responsabilidade plena do seu paciente. É igualmente compreensível que o especialista consultado, de quem se espera ajuda, prefira administrar alguns conselhos em vez de confessar que não está em condições de agir, e que nem sequer sabe a quem seria possível pedi-los. Voltando à questão embaraçosa de a quem consultar quando o clínico geral chega à conclusão de que a enfermidade afeta toda a pessoa — por que não procurar um psiquiatra? Afinal de contas, embora fale-se de mente e corpo, apenas o corpo foi dividido entre as diversas especialidades maiores e menores; a mente — tanto na teoria quanto na prática — permanece mais ou menos não dividida. Seria justo esperar que a psiquiatria constituísse a resposta cabal ao nosso intricado problema. Sendo um psiquiatra, lamento admitir que a psiquiatria tampouco satisfaz esta necessidade (esperança), freqüentemente suas deficiências são ainda mais graves que das outras especialidades. A razão desse fracasso é que existem certas dificuldades devidas ao atual estado da psiquiatria, que estão porém ausentes no caso das outras especialidades. Os clínicos gerais informam freqüentemente que encontram muito mais dificuldades quando sugerem a um de seus pacientes que consulte um psiquiatra do que quando propõem qualquer outro tipo de exame. Essa dificuldade, inegavelmente maior, deve-se a um sentimento geral compartilhado pelo médico e por seu paciente. Analisaremos posteriormente essa resistência geral à psiquiatra. De modo que, no momento, deixaremos de lado os temores do paciente e a vinculação do próprio médico com este problema. Evidentemente, o médico que crê que um exame psiquiátrico é uma espécie de estigma ver-se-á às voltas com maiores dificuldades quando quiser enviar seu paciente, do que os seus colegas profissionais para quem o exame psiquiátrico é uma coisa lógica de se esperar. Além desse problema pessoal, isto é, individual, existe aqui uma dificuldade de caráter geral e neste capítulo proponho discutir apenas o aspecto determinado pela relação do médico com os seus especialistas. O encaminhamento de um paciente a uma consulta psiquiátrica (na realidade, a qualquer tipo de consulta especializada) é muito mais complicado do que pedir, por exemplo, um teste bacteriológico ou uma radiografia. O único ponto de contato entre as requisições consiste em que o clínico geral pede um exame que não está em condições de realizar pessoalmente; porém, enquanto para a análise bacteriológica é apenas necessário dispor de uma amostra, para a entrevista psiquiátrica necessita-se do paciente em sua totalidade. Isso envolve muito mais dificuldades do que pode parecer à primeira vista. Um exame psiquiátrico completo não pode omitir nenhuma das relações humanas importantes do paciente, incluídas as que tem com o médico; isto é, para dizer de forma um pouco exagerada, o psiquiatra não apenas examinará o paciente, mas também em considerável proporção ao próprio médico. Com isso não me refiro apenas aos seus possíveis erros de diagnóstico mas também e talvez principalmente sua forma particular de encarar os problemas de personalidade do paciente. Até certo ponto, esse tipo de ameaça encontra-se presente, com independência da natureza da especialidade de que se trate, porém em nenhuma esfera se reveste de tanta gravidade como no campo psiquiátrico. Quando se contempla a situação deste ponto de vista, compreende-se por que alguns clínicos gerais pensam duas vezes antes de encaminhar seu paciente a um psiquiatra. Alem desta complicação de caráter subjetivo, existem também razões objetivas em virtude das quais o clínico geral hesita antes de enviar um paciente ao psiquiatra. Logo descobre que na maioria dos casos as recomendações do psiquiatra não obtêm maiores resultados; mais ainda, estas recomendações parecem antes destinadas a salvaguardar os in© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
74
teresses do consultório psiquiátrico do que a ajudar o médico. Algumas destas recomendações rotineiras poderiam inclusive provocar efeitos bastante negativos nas relações do clínico geral com seu paciente. O que, temo, constitui uma grave acusação contra nós psiquiatras, de modo que convém que comecemos revisando algumas destas recomendações rotineiras. Suponhamos que o psiquiatra decida que, neste ou naquele caso, seja indicada psicoterapia apropriada (ou psicanálise) porém não dispõe de tempo para atender o caso, nem sabe quando poderá fazê-lo. Que fará nesse caso o clínico geral? É provável que o paciente tenha aceito seu conselho de má vontade, com apreensão e receio e que, por assim dizer, tenha abandonado a proteção que obtinha de suas defesas bem desenvolvidas para conseguir do especialista ajuda e tratamento. Para o paciente, esta nova situação pode significar, e na realidade é isso que se verifica, que o clínico geral não se considera em condições de enfrentar a doença. O psiquiatra consultado confirma essa opinião, porém não oferece ajuda concreta, agora ou no futuro imediato. Com reagirá esse pobre paciente, que agora não sabe em que se apoiar, se aceita a ajuda inferior que lhe é oferecida pelo clínico geral, e o que deve fazer esse último em tal caso? Deste ângulo, é evidente que a consulta piorou consideravelmente a situação. Igualmente negativos são os efeitos da opinião que freqüentemente se formula — “no momento não podemos fazer muito pelo paciente; não está suficientemente doente (isto é, para nós)”. Algo parecido ocorre freqüentemente com os casos limítrofes enviados a um ambulatório de um hospital psiquiátrico. Deve o clínico geral recomendar a seu paciente que se apresse em piorar para merecer receber ajuda, ou convém que continue sofrendo para evitar o tratamento? Também neste caso a entrevista psiquiátrica piorou a situação. Portanto, cada clínico geral dispõe de uma coleção praticamente inesgotável de opiniões psiquiátricas que não vão além desta recomendação: “Tranqüilize o paciente e prescreva algum sedativo ou um tônico — ou ambos.” Se bem que as entrevistas psiquiátricas que resultam nesse tipo de recomendação não ajudem substancialmente os clínicos, estes reconhecem de bom grado que preferem esse tipo de desilusão, porque pelo menos não piora drasticamente a situação. Apenas significa que o paciente deve contar com uma esperança a menos porém em todo caso não se deteriora a confiança do paciente em seu médico, já que o especialista também não demonstrou maior conhecimento. Outra fonte praticamente inesgotável de queixas são os próprios relatórios psiquiátricos. Em primeiro lugar, sempre chegam tarde demais. É verdade que muitos pacientes esperam que seu médico receba o resultado da entrevista no dia seguinte. É evidente o motivo de sua impaciência. Todos os exames realizados por especialistas, porém particularmente as entrevistas de caráter psiquiátrico, costumam suscitar temores e estados de ansiedade, sendo o resultado esperado com inquietude. Toda demora parece sinistra. Infelizmente, além dessa demora subjetiva, é freqüente que os relatórios cheguem realmente com atraso. Em segundo lugar, inúmeros relatórios psiquiátricos são excessivamente curtos e contêm pouco mais e às vezes menos do que o clínico geral já conhecia sobre o seu paciente. Tampouco ajuda ao clínico geral a inclusão no relatório de um ou dois rótulos diagnósticos. Sabe bem, como já tratei de demonstrá-lo no Capítulo 4, que esses rótulos apenas descrevem os verdadeiros processos patológicos e que não sugerem idéias sobre uma possível terapia racional. No melhor do casos são diagnóstico de sintomas, não de enfermidade. Não altera sua utilidade limitada o fato de que esses rótulos diagnósticos mudem com respeito à moda predominante no campo psiquiátrico. No transcurso de minha vida, fui testemunha da mudança de moda, da neurastenia à psicastenia, em seguida o caráter neurótico e recentemente a angústia ou estado depressivo; porém o que não mudou é o grau de colaboração recebida pelo clínico graças à descrição do paciente mediante qualquer desses nomes. Finalmente, existem os relatórios romanceados, © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
75
bastante raros. Devido ao fato de que alguns psiquiatras possuem bom estilo literário, esses relatórios romanceados freqüentemente constituem leitura agradável, mas infelizmente costumam terminar com a fútil recomendação de que se tranqüilize o paciente e se lhe administre fenobarbital e tônicos. Este livro inclui exemplos dos relatórios sucintos e dos romanceados, como prova de que minha descrição não é fruto do exagero. Até agora criticamos principalmente o especialista, o que certamente é injusto. Há, naturalmente, clínicos gerais que por uma ou outra razão não se incomodam quando são limitados ao papel de fornecedores de remédio. De acordo com as histórias que circulam entre os especialistas e seus assistentes, esses médicos mostram-se indiferentes, indolentes e mesmo completamente desinteressados. O famoso e sempre repetido chavão: “coração — por favor, examine e aconselhe” resume admiravelmente todas essas histórias. Segundo os especialistas, a proporção de pedidos de consulta desse tipo é bastante elevada; segundo os clínicos gerais, os especialistas tratam a maioria dos médicos, mesmo aqueles que desejam discutir a fundo seus respectivos casos, como se todos pertencessem à classe dos indiferentes. Novamente encontramos a atitude que consiste em esquivar-se à responsabilidade, o conluio do anonimato. É impossível estabelecer nitidamente qual a situação real, e decidir até que ponto cada grupo está certo ou errado. Constituiria um valioso trabalho de investigação reunir e revisar um bom número de cartas pelas quais os clínicos gerais encaminham seus pacientes, e os correspondentes relatórios dos especialistas. Não se trata de uma tarefa impossível, já que quase todos os hospitais arquivam meticulosamente a correspondência, de modo que a pesquisa poderia remontar a muitos anos atrás. O fato de que essa investigação não tenha sido realizada por algum organismo responsável como o Conselho de Investigações Médicas ou a Associação Médica Britânica é outro sintoma do conluio do anonimato. Além disso, seja qual for a situação, deve-se admitir que alguns clínicos gerais não merecem e talvez nem sequer recebessem com agrado um relatório detalhado e bem fundamentado do especialista. No caso desses profissionais, as cartas criticadas nos dois capítulos anteriores constituem talvez uma instituição compreensível. Devemos voltar agora ao problema de como lidar com esta situação difícil e embaraçosa. Toda proposta deve ser capaz de responder a dois problemas muito intrincados, os quais são, na realidade, duas variantes da mesma questão fundamental. A primeira variante pergunta quem ficará com a plena responsabilidade pelo caso. Inclinamo-nos a responder que essa pessoa deve ser o clínico geral. Entretanto, essa proposição implica que o clínico geral deve ser mais independente dos especialistas que colaboram com ele e deve assumir a responsabilidade complementar de examinar mais cuidadosamente seus pacientes para estar em condições de formular, quando realiza seu pedido de exame, os quesitos específicos que dirige ao especialista. Deve também aprender a criticar, com firmeza porém com simpatia, os relatórios e as recomendações dos especialistas, e a estimá-los em seu valor verdadeiro. Por último, porém não de menor importância, deve aprender a reconhecer os limites de conselho e de ajuda que é prudente esperar de seus especialistas. Nas páginas anteriores discutimos certos números de razões que explicam por que os clínicos gerais não se mostram, geralmente, muito ansiosos em assumir esta responsabilidade adicional. A outra variante pergunta qual será o papel do especialista em relação ao clínico geral; deve desempenhar a função de especialista auxiliar ou a de mentor e mestre? A implicação dessa formulação é bastante clara, porém proponho ilustrá-la com um exemplo. Se um médico envia uma amostra de sangue para um laboratório, recebe um informe do especialista, o laboratorista, o qual efetua um exame ou realiza uma prova que o médico não está em condições de levar a cabo. A razão desta incapacidade não vem ao caso; pode ser a falta de tempo, de equipamento, de capacidade técnica etc. Porém, apesar © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
76
de que o patologista é nesse sentido superior ao clínico geral, não toma a liberdade de inflingir-lhe quaisquer instruções. Pelo contrário, limita-se a fazer o que foi pedido e informa o resultado de suas observações. Na realidade, desempenha a função de especialista assistente que executa uma tarefa delimitada. O quadro altera-se completamente de aspecto quando a prova ou o exame fica por conta de um outro tipo de especialista, por exemplo, um clínico ou um cirurgião. O relatório desses profissionais inclui o resultado do exame, porém invariavelmente ultrapassa tais limites, afirmando qual deveria ser, na opinião do signatário, o diagnóstico da doença, oferecendo também instruções sobre o tratamento que convém aplicar. É perfeitamente natural que a relação do médico com os dois tipos de especialistas seja também diferente. Desejo precisamente sublinhar essa diferença perguntando se o especialista deve ser um mentor ou um auxiliar do médico geral. Como já vimos, os especialistas são tão propensos a adotar o papel de mentor como os clínicos gerais a aceitar o status pupillaris. Constitui o que denominamos “perpetuação da relação professor-aluno”, sócio bastante poderoso do “conluio do anonimato”. Trabalham em colaboração para prover mecanismos e instituições eficazes para a diluição das responsabilidades demasiado pesadas. Como somos todos humanos, cabe esperar que os especialistas se mostrarão tão mal dispostos a despojar-se voluntariamente de um fragmento de sua autoridade quanto os clínicos gerais a agregar mais responsabilidade à carga que já suporta. É fácil demonstrar que essa situação pouco satisfatória é respeitada por ambas as partes em benefício das vantagens inconfessas e mesquinhas, porém desejáveis, que acarreta. O pedido de consulta simbolizado na frase: “tórax — por favor examine e aconselhe”, exige uma dose muito menor de reflexão e de cuidado do que avaliar a amplitude do processo patológico e, baseada nessa avaliação, formular perguntas detalhadas, as quais inevitavelmente revelarão as limitações do médico. Do mesmo modo, raras vezes encontramse relatórios de especialistas nos quais sejam claramente definidos os limites exatos do conhecimento e da experiência do especialista, elementos sobre os quais se baseia o conselho oferecido, e revelem a partir de que ponto foi necessário passar a conjecturar ou a formular conselhos bem intencionados porém não tão bem fundamentados. De que lado devem vir as mudanças? Na minha opinião, cabe ao clínico geral a tarefa mais difícil. Para todos é muito difícil aceitar que se chegou real e irrevogavelmente à idade adulta e que, mesmo que haja no mundo, neste ou naquele campo, umas poucas pessoas às quais se pode recorrer, dentro de certos limites, para buscar conselho, na maioria dos casos é impossível esquivar-se ao peso total da responsabilidade. Essa carga resulta ainda mais difícil de suportar porque o clínico geral sabe muito bem que sua decisão afeta a vida e a felicidade futuras do paciente. Além disso, para o clínico geral o paciente não é apenas um enfermo, mas também uma pessoa bem conhecida e de quem se conhece os antecedentes familiares, os parentes, o passado, as desilusões, os êxitos e as esperanças, e muito freqüentemente também a vizinhança no meio ao qual vive. O especialista, por muita compreensão que possua, dificilmente se encontrará tão intimamente ligado. Além disso, se rechassa o papel não de todo justificado de mentor que possui poderes superiores de conhecimento e sabedoria, se aliviará a carga do especialista, acentuando-se ao mesmo tempo o peso de sua opinião no seu próprio campo especial. Por tudo isso talvez não seja totalmente fantástico abrigar a esperança de que aos especialistas caiba ser os primeiros a compreender as vantagens de aceitar francamente o papel de especialistas auxiliares do clínico geral. Uma entre as muitas alterações que esta situação implicará será o fato de que a frase segundo a qual esta ou aquele doença é “de origem histérica ou psicológica” não será considerado mais um resultado final satisfatório de um exame cuidadoso, lauréis bem obtidos sobre os quais é possível descansar — e sim um desafio. Nenhum médico cons© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
77
ciente receitará, por exemplo, fenobarbital ou um tônico no caso de uma doença ou sintoma supostamente de origem tuberculosa, senão que, ao contrário, insistirá em realizar um exaustivo exame diagnóstico e em elaborar um tratamento específico; da mesma forma, o fenobarbital e os tônicos e ainda as atitudes “tranqüilizadoras” são com freqüência inúteis nos casos “de origem psicológicas”. Estes pacientes necessitam bastante de adequada investigação e terapia racional. Tudo isso é verdadeiro, porém quem realizará esse exame e organizará esta terapia racional bem fundamentada? Atualmente, em termos gerais, a medicina não pode resolver nenhum desses problemas, porque foi dividida em numerosas especialidades, supostamente de grande eficiência. Nenhuma de tais especialidades parece interessada nas queixas de “origem psicológica” nem ainda elaborou os métodos adequados de tratamento destinados a curar estes padecimentos. Num certo grau, a psiquiatria padece da mesma deficiência geral. Seu modo de pensar e suas teorias patológicas têm orientação essencialmente filosófica. O mesmo pode-se dizer — talvez ainda com mais razão — da terapia psiquiátrica. Os principais elementos de seu arsenal são produtos químicos como os alcalóides, as vitaminas, os sedativos, a insulina etc., ou métodos físicos, tais como a eletroconvulsoterapia ou a leucotomia. A capacidade de pensar em termos psicológicos encontra-se apenas na sua infância e, portanto, as possibilidades concretas de psicoterapia são de uma inadequação patética em todo o mundo e neste país como nos outros. A fundação do Serviço Nacional de Saúde não alterou a situação para melhor nesse aspecto; pelo contrário, tendeu a agravá-la, pois a demanda acentuou-se consideravelmente, enquanto que as possibilidades de psicoterapia mantiveram-se as mesmas. Nesse sentido, é possível promover uma transformação de fato apenas através um penoso trabalho de pesquisa a longo prazo, realizado em estreita cooperação entre o clínico geral e o psiquiatra, de orientação psicológica. Em todas as suas variações, essa proposição repetir-se-á uma e outra vez, como um refrão, ao longo desse livro e teremos que discuti-la em maiores detalhes num capítulo mais adiante. Desejo aqui referir-me a ela apenas na medida em que afeta as relações entre o clínico geral e os especialistas. Essa pesquisa sobre patologia e terapia das doenças “de origem psicológicas”, isto é, sobre a pessoa total, não pode em minha opinião ser desenvolvida por especialistas, mas unicamente por clínicos gerais. Isso, entretanto, exige uma alteração fundamental de conceituação, dado que tanto a pesquisa quanto o ensino têm estado, durante as últimas gerações, quase que exclusivamente nas mãos dos especialistas. É verdade que mereciam esse privilégio, devidos aos inegáveis e notáveis êxitos que alcançaram em ambos os campos, prova do que o são nossas atuais possibilidades terapêuticas, consideravelmente maiores, e a maior eficácia do ensino médico. Porém os problemas que aparecem na esfera da patologia da pessoa total são — como tratei de demonstrar nos capítulos anteriores e de acordo com a análise que realizaremos nos seguintes — em grande parte desconhecidos e mesmo inacessíveis para os especialistas. Por outro lado, constituem o problema da prática clínica e, em medida considerável, da medicina psicológica. Por isso creio que nem o clínico geral nem o psiquiatra de orientação psicológica têm outra alternativa que não seja a de aceitar esta difícil honra e que a investigação deve ser realizada conjuntamente por eles, mesmo que a maior parte provavelmente venha a corresponder ao clínico geral. Quero acrescentar que este não estará sozinho em sua tarefa. Certamente poderá solicitar a cooperação e a ajuda de seus especialistas, porém estes poderão constituir apenas auxiliares especializados. Isto não será novidade na medicina. De maneira exatamente paralela, a atual investigação especializada necessita e utiliza a ajuda da química, da anatomia, da fisiologia, da patologia, da radiologia, da bacteriologia etc., porém o especialista, que trata o paciente, permanece constantemente no centro da pesquisa. Na investigação da patologia da personalidade total, a novidade consistira em que o centro se encontrará ocupado pelo clínico geral e seus pacientes. A necessidade desta pesquisa é atual, e premente. É necessário que os clínicos gerais respondam ao apelo. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
78
Em resumo, alguns dos mais importantes fatores do triângulo clínico — especialista — paciente, que algumas vezes tornam desnecessariamente tensas as relações entre eles, são: 1) Preferência pelo diagnóstico de enfermidades físicas e a tendência a recomendar, sempre que possível, tratamentos físicos ou operações, mesmo nos casos em que esse procedimento não se encontra plenamente justificado. 2) O excessivo peso da responsabilidade, frente à qual cada uma das três partes reage derivando parte desta responsabilidade às outras duas, atitude da qual resulta um conluio do anonimato quase que institucional. 3) A perpetuação da relação professor-aluno entre o clínico e o especialista, bem além do que seria compatível com a realidade. 4) A falta de compreensão quanto às tendências regressivas do paciente dentro dessa relação triangular, principalmente de sua inclinação a manobrar um profissional contra o outro ou os outros. 5) A falta de utilidade de muitos relatórios de especialistas, particularmente quando se referem a aspectos psicológicos — e os relatórios dos psiquiatras não constituem exceção à regra geral. Uma transformação positiva de fato apenas pode constituir resultado da pesquisa de longo alcance sobre a patologia da personalidade total, em relação com o que foi descrito anteriormente como nível mais profundo de diagnóstico. Na medida em que os problemas próprios desse campo constituem o problema da prática clínica, ninguém a não ser o clínico geral poderá desenvolver a pesquisa.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
79
Capítulo
10
Conselho e Conforto
Nos capítulos anteriores ocupamo-nos essencialmente do aspecto psicodinâmico do diagnóstico médico. Isto é, ao mesmo tempo que dávamos por entendidas as técnicas e capacidades que se supõe deva possuir o clínico geral, examinamos criticamente alguns dos processos psicológicos mais importantes implícitos na elaboração do diagnóstico. Nosso campo principal de investigação foi o papel desempenhado pelo médico; a função do paciente — se bem que não omitida absolutamente — ocupou um lugar de importância secundária em nossa exposição. Em nossa resenha vimos o paciente, o qual em seu estado ainda “não organizado”, realizava várias “ofertas” de doenças a seu médico, enquanto que esse respondia às sugestões recusando algumas e aceitando finalmente uma. Um aspecto importante da resposta do médico é o processo de “eliminação mediante exames físicos apropriados”, que resulta na organização de certa ordem hierárquica, tanto das doenças como dos pacientes. Sob o impacto da resposta do medico, costuma-se geralmente alcançar alguma forma de acordo entre o profissional e seu paciente, de modo que a doença entra em sua fase “organizada”. Nosso passo seguinte nos levou a analisar as complicações provocadas pela grande responsabilidade que o médico deve suportar em benefício de seu paciente. Se a carga mostra-se excessivamente pesada, solicita-se a ajuda dos especialistas. Conseqüência imprevista, porém talvez não totalmente indesejável deste mecanismo, é a “difusão da responsabilidade” por obra do “conluio do anonimato” e da “perpetuação da relação professor-aluno”. Porém agora chegamos ao terreno da terapia. O que se espera do clínico geral e o que ele faz realmente por seus pacientes? Admite-se em geral que pelo menos de um quarto a um terço do trabalho do médico consiste em psicoterapia pura e simples. Alguns investigadores elevam a proporção à metade ou ainda mais, porém, qualquer a cifra, subsiste o fato de que a atual formação médica não prepara adequadamente o profissional para enfrentar pelo menos uma quarta parte do trabalho que deve realizar. Embora muitos clínicos gerais sintam uma necessidade aguda de compreender melhor os problemas psicológicos e de adquirir maior capacidade terapêutica, mostram-se relutantes em aceitar a correspondente responsabilidade profissional. A razão mais fre© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
83
qüentemente levantada consiste em que, como estão as coisas, já tem demasiado o que fazer, e que lhes é impossível sentar-se e consagrar uma hora a um único paciente, semana após semana. Embora o argumento soe convincente, na realidade não possui bases sólidas. É verdade que estabelecer e manter uma relação psicoterápica adequada leva muito mais tempo que receitar um vidro de remédio. Entretanto, a longo prazo, pode levar a que em numerosos casos poupe-se muito tempo em benefício do médico e de seu paciente (e dinheiro na conta de remédios do Serviço Nacional de Saúde). Os Casos 12, 16 e 18, entre muitos outros, provam amplamente a verdade de nossa afirmação. Como vimos nos capítulos anteriores, na maioria dos chamados casos psicológicos o tratamento, na prática, consiste em receitar quase que mecanicamente alguns sedativos, se o paciente não está deprimido e um “tônico” e antidepressores se o está. Quando esses recursos fracassam, consulta-se a vários especialistas, dos quais resultam geralmente alguns relatórios “tranqüilizantes”, no sentido de que não se há comprovado a existência de nenhuma doença física. Eventualmente se consulta um psiquiatra, freqüentemente não como parte de uma política deliberada, mas antes como faute de mieux. Entretanto, esse tipo de conduta é fruto tanto das dificuldades do psiquiatra como das que deve enfrentar o próprio clínico geral. É de conhecimento geral que os serviços psiquiátricos sofrem de grave desproporção com a demanda, em permanente desenvolvimento; estão abarrotados de pacientes e, em conseqüência, o psiquiatra se vê obrigado a selecionar e eleger. Uma vez aceito o paciente, é então incluído na lista de candidatos que esperam vaga para tratamento, e costuma ocorrer que se perca completamente para o clínico geral. Se o paciente não é aceito, o relatório enviado ao médico contribui pouco para seu trabalho psicoterápico; exceto pelo aconselhamento de prescrição de sedativos ou de tônicos. Confinado a seus próprios recursos, o médico, freqüentemente envergonhado, receita algum placebo e oferece conselho ou um pouco de conversa “reconfortante”. (Uma piada bastante comum é aquela que consiste em perguntar: “Reconfortante — porém para quem?”) Em seguida, encontram-se os defensores da psicologia do “senso comum” que aconselham ao paciente tirar férias, mudar de emprego, dominar os nervos, não levar as coisas muito a sério, abandonar o lar, casar-se, ter um filho, ou não ter mais filhos, apelar para algum anticoncepcional, etc. Nenhuma dessas recomendações é necessariamente errada, porém a falácia consiste em crer que o médico experiente já possui psicologia suficiente de “senso comum” para resolver todos os problemas psicológicos ou de personalidade de seu paciente, mesmo sem tentar um diagnóstico correto. Não significa, por exemplo, que um médico possa utilizar um instrumento bem afiado ou outro instrumento qualquer de carpintaria para realizar com esses instrumentos pequenas cirurgias. Pelo contrário, deve observar cuidadosamente as regras de assepsia e de anti-sepsia, deve conhecer bastante a fundo as técnicas da anestesia local e geral e deve ser capaz de utilizar o bisturi, pinças e a agulha, ferramentas do cirurgião profissional. Exatamente o mesmo se aplica no caso da psicoterapia na clínica geral. A aplicação dos métodos empíricos aprendidos na vida cotidiana é de tão limitado valor na psicoterapia profissional como o são as ferramentas de carpintaria na cirurgia. Para demonstrar a limitada utilidade dos conselhos e reconfortos do “senso comum”, desejo citar um caso no qual apenas esse método foi empregado. O doutor S, apesar das graves críticas do seminário, não ultrapassou os limites tradicionais da medicina: redigiu uma história clínica, efetuou o exame físico quando achou necessário, “tranqüilizou” o paciente e forneceu conselhos de “senso comum” no estilo paternal que é próprio a seu caráter. Portanto, a senhora B jamais recebeu psicoterapia e nem sequer foi submetida a exame psicológico. Entretanto, muitos detalhes de sua história clínica, sagazmente observados, permitiram ao seminário perceber aspectos dos mecanismos e problemas implícitos no caso. Assim, podemos seguir as variações da história de sua enfermidade, criticar a técnica do médico e apreciar compreensivamente o êxito limitado que alcançou. Em maio de 1953 o doutor S relatou nosso Caso 15. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
84
CASO 15 A senhora B, de 24 anos, a quem conheço desde que tinha 17 anos, quando foi submetida a uma apendicostomia devido a uma colite. É filha única de uma mulher muito neurótica que a submeteu a um controle estrito. Há alguns anos aconselhei à paciente que saísse mais, que freqüentasse bailes, etc. Seguiu meu conselho e conheceu em um baile seu atual marido. Agora vivem com a mãe da paciente, porém a sogra não se dá muito bem com o genro. O casal tentou emigrar, porém descobriu-se que o marido tinha uma sombra no pulmão. A clínica de doenças pulmonares não pôde achar nada particular inicialmente, porém uma das muitas amostras colhidas resultou positiva, e ele foi internado em um sanatório. Depois de quatro meses voltou a sua casa e vieram ver-me há 15 dias. A mulher sofria sintomas nervosos, palpitações, insônia e às vezes diarréia. Perguntou-me se me parecia aconselhável ter um filho ao que respondi afirmativamente, porém o marido declarou que não desejava um filho pois não tinha uma posição segura, nem tinha casa, sem contar que ainda não sabiam se poderia emigrar, como é a intenção de ambos apenas o permita a saúde dele. Essa manhã telefonou à mãe da paciente para informar que sua filha está muito mal dos nervos. Em seguida veio ao consultório a própria paciente e disse-me que estava obcecada pela idéia de transformar-se em homem e que tinha que rezar constantemente para evitar que isso acontecesse. Tinha lido um caso assim nos jornais. As relações sexuais com o marido são raras. Examinei-a, assegurei que seus genitais eram completamente normais e que não tinha porque preocupar-se. Sentiu-se reconfortada ao ouvir minhas palavras e assegurou que não pensaria mais no assunto. O marido é um homem peculiar, sem amigos, preguiçoso. Quer esperar seis meses para assegurar-se de que seus pulmões estão perfeitos, e então providenciarão a emigração. Estão casados há dois anos e ele insiste em não ter filhos; fazem uso de anticoncepcionais.
Como os leitores deste livro devem supor, o seminário criticou o Dr. S em dois aspectos. Foi-lhe mostrado que “tranqüilizar” a paciente dizendo-lhe que “tudo estava bem” teria efeito durante um tempo muito curto. Reconheceu-se que a rapidez com que se havia praticado o exame havia aliviado a ansiedade da paciente, porém este resultado não era necessariamente desejado. Havia estabelecido certa terapêutica antes de formular os diagnósticos corretos. Havia atenuado a ansiedade da senhora B, talvez apenas temporariamente, porém sem dúvida havia perdido uma oportunidade de conhecer melhor o problema e as causas do estado de ansiedade. O Dr. S usou a eterna desculpa de que precisamente neste período não dispunha de tempo suficiente, porém prometeu realizar um trabalho mais completo quando voltasse a ver a paciente. Uma semana depois relatou o seguinte:
Fui chamado para examinar a jovem, que se encontrava acamada, com colite. Disse-me que depois da visita anterior pensou estar convencida de que não corria perigo de mudar de sexo, porém que desde então tinha mudado novamente de idéia e que agora não se sentia tão segura. A mãe da paciente relatou-me que a filha está desejando comparar seus próprios genitais com os da mãe para ter certeza que era normal, porém essa não aceitou a sugestão. Parece que meu exame não bastou para tranqüilizar a jovem, apesar de minhas esperanças. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
85
O seminário, e especialmente o psiquiatra responsável pelo grupo, assinalou triunfalmente ao Dr. S quão curtos haviam sido os efeitos de suas palavras de conforto e que a recusa de uma “oferta” da paciente mediante o exame físico apenas tinha tido como conseqüência outra “oferta” sobre a forma de colite; e que, definitivamente, era aconselhável que realizasse ele mesmo o exame psicológico da paciente, ou que enviasse a Srta. B a um psiquiatra. Uma semana depois o Dr. S trouxe novos dados:
A Sra. B veio ver-me quinta-feira passada e disse-me que se sentia muito melhor, porém crê que existe a possibilidade de converter-se em homem. Sente-se muito deprimida; o marido nunca sai com ela. Foi marcada uma nova consulta para a próxima segunda-feira. Cursa atualmente uma escola de datilografia. Veio na segunda-feira com o marido, disse que se sentia muito deprimida, porém mostrava-se muito variável — algumas vezes intensamente deprimida e logo em seguida muito contente. Chegou ao extremo de ameaçar suicídio, porém nem a mãe nem o marido a levaram a sério. Afirma que sua depressão é conseqüência da falta de amigos e de distrações. Como a paciente se sentia melhor e eu me encontrava muito atarefado, pedi que voltasse ao fim de uma quinzena.
Dado que o “oferecimento” de colite parecia não haver sido aceito, a Sra. B esboçou um terceiro “oferecimento”: depressão e leves ameaças de suicídio. Tampouco essa proposição obteve maior êxito. A mãe, o esposo e o médico se negaram a considerá-la como coisa séria. Nesta ocasião o Dr. S reconheceu ante o seminário que estava tratando de ganhar tempo. Posto que o casal se propunha a emigrar, não era prudente começar a remover os problemas da Sra. B; ter-se-ia podido suscitar reações de elevada carga emocional, que era impossível tratar no lapso de tempo disponível. Como o argumento encerrava certa proporção de verdade, era inevitável aceitá-lo, mas se advertiu novamente ao Dr. S que era possível que ocorresse fatos inesperados. O seguinte relatório chegou em princípios de julho, aproximadamente sete semanas depois do primeiro:
Embora a paciente me acredite quando lhe digo que é impossível que mude de sexo, às vezes não pode deixar de temer essa eventualidade e então experimenta a necessidade de rezar. Caso se produza a transformação, ela crê que será talvez como castigo por não haver se portado bem com seus pais quando era mais nova. Relatou-me que quando tinha cinco anos havia brincado com outra menina e que cada uma tocara os genitais da outra. Posteriormente havia pensado que isto era errado, e o havia contado à mãe. Antes de informar-me qualquer fato, discute-o primeiro com a mãe, a qual geralmente diz que se trata de coisa sem importância e que não vale a pena contar-me. A mãe ainda a controla muito. A paciente diz que gostaria de viajar para o estrangeiro para livrar-se dela, mas é um pouco longe, e preferiria ir a algum local de onde pudesse visitar a sua mãe sempre que o desejasse. Sua depressão é muito menos acentuada ultimamente, mas a paciente sofre acessos de inquietude com respeito à impossibilidade de mudar de sexo. Disse-lhe que voltasse dentro de uma semana. Afirma que lhe agrada vir e conversar comigo, porque depois das entrevistas sente-se alentada devido a que eu a escuto. Acrescentou o Dr. S: “A paciente não fala muito de seu pai. Este homem sofreu em certa ocasião uma hérnia de disco e esteve de cama durante duas semanas; em janeiro sofreu melena, da qual se recobrou logo. É viajante, freqüentemente ausente. A esposa o domina, e lhe diz o que deve fazer.” © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
86
Afinal, o Dr. S encontrou tempo para “escutar”* a sua paciente. Além de repetir suas dúvidas sobre a mudança de sexo, veio à luz certo material de importância. Percebemos a intimidade e tensão da relação mãe-filha, a qual chegava ao extremo de que uma mulher casada de 24 anos devia informar à sua mãe todos os detalhes de sua vida sexual, ou ainda pedir-lhe conselho sobre o que devia ou não discutir com o médico. Que esta relação não era puramente unilateral, quer dizer, determinada pelo caráter da mãe, ficava demonstrado pelo desejo da filha de comparar seus próprios genitais com os da mãe, com o fim de assegurar-se melhor. Este fato, unido ao jogo sexual com outra menina na idade de 5 anos, indicava claramente a existência de uma vinculação homossexual vigorosamente ambivalente com a mãe. A idéia e o temor obsessivos de uma possível mudança de sexo resultam assim inteligível como um método fantástico de escapar do conflito de ambivalência, e também se explica porque era sentida como forma de castigo. Se essa linha de pensamento é superficialmente correta, é fácil compreender por que um “reconforto de senso comum” — que nem sequer roçava os problemas reais da paciente — não podia exercer maior influência sobre ela. Uma semana depois iniciou-se um denouement dramático. O Dr. S relatou:
Há dois dias recebi um chamado telefônico urgente da mãe da paciente, informando-me de que a jovem havia tido uma briga com seu marido e havia ingerido veneno. Em realidade só havia tomado seis aspirinas e uma pílula para dormir. Quando cheguei à casa, a mãe, o pai e a filha estavam juntos num quarto, e todos começaram a falar sobre a briga. Poucos minutos depois chegou o esposo da jovem, e disse que o assunto não devia ser discutido em público, de modo que o pai e a mãe saíram. Então, a paciente censurou o esposo por não lhe dar um filho, e ameaçou divorciar-se. Expliquei ao esposo que ter um filho era um direito natural da mulher, e que se a esposa se divorciava, lhe corresponderia toda a responsabilidade. Esta manhã a paciente veio muito mais feliz. Disse que havia mantido relações sexuais três noites seguidas, o que lhe tinha dado muito prazer, porque não tinha tomado medidas preventivas. Entretanto, depois do ato sexual o marido lhe disse que se disso resultasse um filho ele não o amaria porque constituiria um obstáculo e um gasto indesejável; este é o problema que agora preocupa. Apesar desses novos fatos, a paciente continuou alentando fulgazes idéias sobre a possibilidade de trocar de sexo e me perguntou o que devia fazer quando a acometiam estas idéias, pergunta à qual não dei resposta.
Quase todos os médicos se voltaram contra o Dr. S porque novamente havia oferecido conselhos prematuros antes de determinar qual era a situação real. O Dr. S replicou que em uma emergência de tal natureza o médico geral tinha direito a usar sua personalidade; evidentemente não podia se sentar e esperar pelos resultados. Devia fazer algo e o futuro diria se suas decisões beneficiavam ou não a paciente. Reconheceu-se o caráter de urgência da situação, mas assinalou-se que ela havia sido criada em parte pela política de adiamento do Dr. S, que sempre achava boas razões para não aprofundar em cada situação particular. Em meados de agosto informou o Dr. S: Desde meu último relatório sobre o caso, vi duas vezes a paciente. Agora ela e o esposo vivem muito bem, mantêm relações sexuais regulares e satisfatórias e desejam tem um filho. A paciente se empregou como secretária e foi aprovada no exame de datilogra*O sentido desta expressão será discutido no Capítulo 11.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
87
fia. Sente-se muito melhor e está contente com tudo, embora não tenha podido dissipar de todo seus temores com respeito à possibilidade da mudança de sexo. Perguntou-me várias vezes se não achava possível que ela tivesse mudado desde a última vez em que a examinei, mas recusei proceder a novos exames, dado que isto teria implicado certa perda de prestígio, e a jovem me teria crido indeciso.
Relutantemente o seminário teve de admitir que apesar de tudo o conselho ao marido no sentido de que devia aceitar o direito de sua esposa a ter filhos não havia sido tão inconveniente. Até certo ponto o Dr. S havia tido êxito, mas ninguém sabia como e por quê. Menos ainda se sabia qual podia ser o preço de seu êxito, e quem o pagaria. De modo que se recomendou ao Dr. S não mostrar excessiva satisfação nem se rejubilar com os lauréis recebidos, mas estar atento aos desenvolvimentos futuros. Em outubro soubemos que o jovem casal havia achado um apartamento a várias milhas de distância da casa da mãe, e que haviam ido despedir-se do Dr. S. As relações sexuais eram satisfatórias, mas a moça “ainda tinha ocasionalmente idéias absurdas sobre a possibilidade de mudar de sexo, embora soubesse afastá-las imediatamente”. Em maio de 1954 ouvimos novamente sobre a Sra. B:
Ontem veio a mãe da paciente, e se mostrou muito inquieta e cheia de dores e sofrimento. Disse que a filha não se havia sentido feliz no lugar para onde se mudara inicialmente, e que agora estava em outro lugar, onde se sentia muito feliz. Mas ainda está trabalhando e está grávida, mas se nega a ver sua mãe. A mãe sente-se muito triste ante esta situação, sobretudo porque a Sra. B ameaça não deixar que ela veja o filho. Talvez agora a moça não necessite sentir que não é uma mulher completa. Agora me pergunto se todo o problema não se originou na mãe, que assumia a permanente representação da filha, e de quem se informava dos mais íntimos detalhes da vida sexual do jovem matrimônio. Talvez aqui esteja o motivo de que a jovem se sentisse tão vacilante a respeito de sua própria condição. Agora, não só está grávida, o que demonstra que é mulher, mas também se tornou independente da mãe.
Em novembro de 1954 o Dr. S recebeu uma carta do Sr. B, que nela lhe anunciava que havia nascido um menino, sem problemas, e que a Sra. B estava melhor do que nunca. Haviam renunciado à idéia de emigrar e pensavam mudar-se poucas semanas depois para uma casa que estavam construindo para eles no campo. O Dr. S telefonou à mãe e:
A felicitei. A senhora se sentiu muito surpreendida ao comprovar que eu estava inteirado do nascimento do menino. Nada lhe haviam comunicado, e se havia inteirado do nascimento graças a algumas relações comuns. Dois dias antes havia visitado a sua filha, e havia passado uma hora com ela. A filha e seu esposo afirmam que não querem ter contato com a mãe, e que não lhe permitirão tocar no menino. A mãe ofereceu ter com ela a filha durante uma semana, quando saíra do hospital, mas o casal recusou de pronto. Romperam completamente com a mãe.
Os conflitos neuróticos não foram resolvidos, só houve certo ajuste. De todos os meios, existe este ajuste, e é inegável que o Dr. S desempenhou um papel importante. Esta história © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
88
clínica demonstra que os métodos de “senso comum” podem ter êxito, mas não porque sejam de “senso comum”. Representam tiros no escuro, em uma direção possivelmente correta. E ainda pode acontecer que acertem próximo à mosca. Perguntamos quem pagaria o preço pelo sucesso do médico. Os acontecimentos mais recentes pareciam sugerir que seria a mãe da Sra. B; mas novas informações ainda viriam. Em janeiro de 1955, ouvimos do Dr. S:
A mãe dessa moça torceu o tornozelo pouco depois que a filha a abandonou, e agora fraturou o pulso. Creio que isto é muito interessante. Fraturou o pulso da mão direita, com a qual deve ter castigado a filha. Mostrou-se cheia de ódio; agora é uma pilha de nervos.
Um dos membros da intensa e ricamente ambivalente relação homossexual havia fugido até a feminilidade e a maternidade; o outro fraturou o pulso e tornou-se uma neurótica completa. Que possibilidades tinha a jovem de conservar a saúde de que agora gozava e a mulher mais velha de recobrar-se do grave trauma que a acometia? Ninguém o sabia, e nenhum médico se achava em condições de avaliar essas perspectivas quanto à relação mútua, dado que ambas as mulheres se achavam separadas e a cargo de dois médicos diferentes. Era acaso a situação atual mais favorável ou não para a terapia do que a anterior, quando o Dr. S realizou um exame físico e “tranqüilizou” a Sra. B? Teve razão quando, durante a primavera de 1953, negou-se a “aprofundar”? O que podemos dizer é que o Dr. S e seu conselho ajudaram a jovem a libertar-se a expensas de sua mãe. Foi esse um preço justo, ou poderia ter sido melhor negócio se o Dr. S, em lugar de realizar um exame físico e de “tranqüilizar” a sua paciente, houvesse se consagrado à tarefa de “aprofundar”? Poderíamos formular muitas outras interrogações. No momento não teriam sentido, posto que não têm respostas. A pesquisa adequada, realizada pelos clínicos gerais, é o único meio de obter-se informações fidedignas sobre estes importantes problemas. Desejo reiterar, embora isto seja bastante óbvio, que esta investigação só pode ser realizada por clínicos gerais; ninguém, e certamente não os especialistas, tem acesso ao material dos pacientes. As respostas às perguntas desse tipo só podem ser obtidas na íntima e constante relação com o paciente, relação que é a essência da clínica geral. O melhor serviço de acompanhamento se dirigido por especialistas, é incapaz de alcançar a intimidade, que é condição essencial, sem a qual esse tipo de informação não se revela. Como veremos no capítulo seguinte, não basta formular perguntas ao paciente, mesmo de maneira a mais simpática. Apesar de nossa quase patética carência de conhecimentos sobre os dinamismos e as possíveis conseqüências do “conforto” e do “conselho”, essas são talvez as formas mais freqüentes de tratamento médico. Em outras palavras, são as formas mais freqüentes de administração da substância “médico”. Seria fácil acusar-me de agitador, e afirmar que entrevejo perigo inaudito onde só há algo perfeitamente simples e humano. Afinal de contas, o que pode ser mais natural do que simpatizar com um paciente que sofre, e tratar de demonstrar que boa parte de sua dor não é de causa física? Além disso, nosso sincero “reconforto” alivia o paciente e, posteriormente, as coisas se desenvolvem favoravelmente. Como o demonstra a prática de todos os dias, ambas; as afirmações são válidas — em certo sentido. Por isto transcrevi in extenso o caso da Sra. B. Se comparamos o princípio com o final da história, não podemos deixar de sentirmo-nos profundamente impressionados © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
89
ante o ocorrido. Achamo-nos ante uma mulher jovem, infeliz, subjugada por uma mãe dominadora; uma mulher que não recebe de seu marido nem ajuda nem apoio, ou pelo menos afeto sexual normal; que, desesperada, pensa no suicídio ou no divórcio e que em determinado momento desenvolve uma idéia fixa, ignorando se é homem ou mulher. No final da história vemos uma mãe feliz, que passou por um parto fácil, que se libertou de sua mãe e se prepara para ser a senhora de sua própria casa e de sua própria vida. Não resta dúvida de que a terapia de apoio e de aconselhamento do Dr. S contribuiu consideravelmente a produzir estas notáveis mudanças, quer dizer, foi ao mesmo tempo valiosa e efetiva. Tal é o argumento de meus oponentes, e prontamente de bom grado concedo que é válido, dentro de certos limites. Mas trata-se de uma imagem superficial, que não nos diz o que e por que aconteceu. Quando tomamos em conta os outros detalhes, que podemos seguir de perto graças aos francos informes do Dr. S. o argumento convincente, fundado nessa história clínica, se dissolve numa série de problemas insolúveis, pelo menos por enquanto e a simples e direta terapia do Dr. S parece ter sido nada mais do que um sortudo tiro no escuro. Está claro que a menos que um observador objetivo se empenhasse em atrair a antipatia geral chamando a atenção sobre o fato, seria fácil esquecer que um dos tiros — o exame físico e o conforto que se seguiu — foi um modesto fracasso. Em troca, o outro tiro — conselho sobre a conveniência de ter um filho — constituiu um êxito ribombante. Isto é típico da situação. Suprimem-se e esquecem-se as falhas, e procede-se a uma exibição orgulhosa dos êxitos. Permito-me recordar ao leitor que ambas as medidas terapêuticas — as palavras tranqüilizadoras sobre o sexo da mulher e o conselho de que tivesse um filho — eram de “senso comum”. Uma não teve efeito, e a outra produziu excelentes resultados. De modo que o problema não é o de quanto senso comum se necessita, mas como orientá-lo melhor. A resposta deve provir da intensificação do trabalho de pesquisa realizado por clínicos gerais de espírito crítico. Uma única história clínica é o fundamento de toda minha argumentação neste capítulo, sem dúvida, é uma história clínica bem observada e informada com franqueza. Isso constitui uma base suficientemente firme? Por um lado sim; seria fácil citar bom número de outros casos. Por outro lado, devido ao modo como conduzimos nossa pesquisa, seria muito difícil. No campo da prática médica são muito freqüentes os casos de conselhos formulados sobre bases insuficientes, e nós pudemos estudar vários exemplos disto. Mas não é fácil ver impressos os próprios erros. Por isso escolhi o caso no qual o conselho não foi totalmente inútil, tendo logrado êxito parcial. A maioria dos casos restantes faria o médico aparecer numa situação muito mais desagradável.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
90
Capítulo
11
“Como Começar”
No capítulo anterior vimos as limitações do conselho e do apoio, as duas formas de psicoterapia mais usadas pelo clínico geral. Para sermos justos, devemos acrescentar que os especialistas, mesmo os psiquiatras, lançam mão delas com a mesma freqüência, pelo menos, e com os mesmos resultados limitados. Desejo reiterar que, em si mesmos, o conselho e o apoio nada têm de mal; podem mesmo constituir armas terapêuticas muito poderosas. É negativo, isso sim, o fato de que se os administre ao acaso, sem avaliar apropriadamente seu provável efeito em cada caso particular. Durante a Primeira Guerra Mundial, como um jovem estudante de medicina, eu servia em um atarefado hospital militar. O oficial médico a cargo da enfermaria tinha um sistema de receitar altamente eficiente. Se o paciente se queixava da cabeça ou do pescoço, recebia aspirina; se do peito, codeína; se do abdômen, carvão medicinal; se das pernas, novamente aspirina. Se depois de quatro ou cinco dias o paciente não melhorava, era transferido a uma enfermaria especial, de acordo com sua queixa. Os resultados destes métodos por atacado eram aproximadamente tão bons como os da administração atual, por atacado, do conselho e do apoio. Ainda podemos dizer que a semelhança vai mais longe. A aspirina, a codeína e o carvão medicinal são medicamentos valiosos e testados. Sua administração, segundo a prática de meu oficial médico, pôde inclusive ser considerada — com certa indulgência — método de senso comum. O negativo deste tipo de tratamento reside em que se pratica certa intervenção terapêutica sem diagnóstico adequado. Nesse sentido, os defensores do conselho e do apoio do senso comum por atacado se colocam numa posição muito mais vulnerável que meu oficial médico, porque o agente terapêutico que utilizam não é tão inocente como a aspirina, o carvão medicinal, ou mesmo a codeína, que é uma droga de uso definido, já comprovamos em vários de nossos casos clínicos que a substância “médico” é poderosa e com muitos efeitos colaterais indesejáveis. De modo que o primeiro princípio tem de ser: nunca aconselhar ou tranqüilizar um paciente sem antes haver elucidado em que realmente consiste seu problema. Pois é freqüente que, uma vez esclarecido o verdadeiro problema, o paciente se mostre capaz de resolvê-lo sem o conselho nem o apoio do médico. Outro princípio empírico igualmente © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
91
importante é o que diz que o veredicto do médico “tudo bem” ou “não há doenças físicas” raramente tranqüiliza um neurótico, embora possa ter efeito no caso de um paciente fisicamente enfermo. Alguns médicos se inclinarão a subestimar o valor dessas observações. Dirão que sempre souberam isso, foi socado dentro deles diariamente durante seu treinamento e que todo o médico decente observa a regra segundo a qual não se deve iniciar o tratamento antes do diagnóstico. Voltemos uma vez mais ao problema do diagnóstico. Fazer o diagnóstico, na medicina física comum, como ensinada nas faculdades e hospitais, é tarefa exclusiva do médico. Sem dúvida solicita a colaboração do paciente, se bem que esta não seja muito necessária. É possível chegar a um diagnóstico mesmo que o paciente esteja inconsciente ou sob os efeitos de um anestésico. Admitimos que se trata de casos excepcionais, mas, como dissemos, o fato é que o médico examina o paciente para chegar ao diagnóstico. O médico sempre desempenha um papel ativo: o paciente pode manter-se passivo, embora cooperativamente passivo. Em termos psicológicos, o diagnóstico correto é tarefa de uma pessoa e essa pessoa é o próprio médico. Pode-se objetar que é impossível realizar um diagnóstico físico apropriado sem uma anamnese apropriada, e que a colheita desta exige a plena colaboração do paciente. É verdade. Sem dúvida, é impossível colher a história médica quando o paciente está inconsciente ou anestesiado. Mas é igualmente certo que todo estudante de medicina deve aprender a formular as perguntas apropriadas, e a fazê-lo corretamente, para deste modo poder estabelecer uma história pertinente. Em essência, fazer uma anamnese significa colher respostas a um conjunto de perguntas bem selecionadas. Com bastante freqüência qualquer outra coisa que o paciente queira explicar a seu médico será deixado de lado como irrelevante. Enquanto discutíamos, um médico recordou a primeira anamnese, que havia colhido quando ainda conhecia pouco a rotina correta. Uma vez redigida, leu-a ante toda a classe. Apenas havia começado, o professor o interrompeu: “Desculpe, mas não podemos ficar aqui toda a manhã. Quase toda a história é irrelevante para o diagnóstico. Se você pretende relatar toda a história do paciente, teremos que ficar aqui tanto tempo quanto o paciente viveu.” Trata-se de um problema de grande importância. O ato de colher a anamnese é uma espécie de zona limítrofe entre a situação unipessoal — o médico examina o paciente em busca de sinais de caráter físico, com o fim de estabelecer um diagnóstico físico — e a relação bipessoal, indispensável quando se pretende formular um diagnóstico psicológico, “mais profundo”. A medicina hospitalar desenvolveu uma técnica de elevada eficiência e muito fidedigna para ser empregada nesta região limítrofe. Poderíamos denominála “estruturação da relação bipessoal de acordo com o padrão do exame físico”. Fundamentalmente, consiste em uma série de perguntas que se iniciam com questões de caráter geral, o médico utilizando as respostas para estreitar o âmbito das perguntas seguintes, até que chega a uns poucos diagnósticos potenciais, passíveis de verificação ou de refutação através do exame físico. Por exemplo, se o paciente tem queixas abdominais vagas, umas poucas perguntas bem dirigidas permitirão geralmente ao médico decidir se convém pensar em constipação crônica, tuberculose pulmonar incipiente, ataques discretos coronarianos, flatulência nervosa, espasmos provocados por obstrução intestinal, primeiros sinais de gravidez etc. Para formular um bom diagnóstico o primeiro requisito é, naturalmente, conhecimento aprofundado, isto é, a capacidade do profissional em relembrar todo tipo de doenças e, em segundo lugar, deve possuir suficiente vivacidade a elasticidade mental para notar toda resposta inesperada ou incomum as suas perguntas e para mostrar-se capaz de modificar, em conseqüência, suas idéias iniciais. Mas sempre é ele que formula as perguntas adequadas que lhe permitirão obter as respostas que interessam; ao paciente só se lhe pede que compreenda as perguntas do © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
92
profissional e que responda a elas com veracidade. A relação pessoal entre os indivíduos envolvidos, embora um pouco mais importante que, por exemplo, a que existe enquanto um médico escuta os batimentos cardíacos ou palpa um abdômen doloroso, está longe de constituir o centro da atenção. A técnica de colheita da história médica não foi padronizada tão rigidamente como, por exemplo, a que se aplica à identificação de flores e de árvores; ainda assim, resume-se em um questionário sistemático. Infelizmente ainda não existe nada semelhante no campo da patologia da pessoa total, verdadeiro domínio da prática médica geral. Além disso, é ainda duvidoso se é possível desenvolver um tal sistema neste campo, particularmente no caso dos estados “não-organizados” de uma doença. À falta de uma técnica melhor, e como coisa do “senso comum”, os médicos, quando tropeçam com um paciente que apresenta problemas que transcendem o âmbito da medicina hospitalar, apelam para a colheita da anamnese. Embora os resultados não sejam muitos alentadores, os médicos não têm outra alternativa que continuar utilizando este método, dado que não conhecem outro. A psiquiatria tem a mesma dificuldade; tampouco aqui existe um questionário sistemático adequado. Como dado de interesse; podemos mencionar o método adotado por um dos nossos principais hospitais-escola psiquiátricos para resolver essa desagradável situação. Dado que não existe ainda rationale que permita ao médico que examina o paciente escolher a pergunta seguinte baseado nas respostas às perguntas anteriores, a solução adotada foi enumerar todas as perguntas que se considera pertinentes do ponto de vista de qualquer diagnóstico psiquiátrico. O resultado deste método consciensioso, penoso e que coloca a segurança em primeiro lugar é, além de bom número de outros documentos diferentes, um manual de registro de 11 páginas, chamado “folha de itens”, contendo mais de 500 perguntas. O interno principal ou o assistente necessita de dois dias de duro trabalho para obter do paciente as respostas a todas essas perguntas. Certamente, não é procedimento que um clínico geral possa ser convidado a imitar. Nossa experiência foi invariavelmente que, se o médico formula a pergunta segundo o método utilizado, para redigir a anamnese, sempre obterá respostas — mas quase nada mais. Antes que possa chegar ao que nos chamamos diagnósticos “mais profundos”, necessitará aprender a escutar. Escutar implica uma técnica muito mais difícil e sutil do que a que necessariamente deve precedê-la: a técnica, de descontrair o paciente, colocando-o em condições de falar livremente. A capacidade de escutar constitui uma nova habilidade, que exige uma modificação considerável, embora limitada, da personalidade do médico. À medida que descobre em si mesmo a capacidade de escutar aquelas coisas do seu paciente que surgem confusamente formuladas, porque o próprio paciente tem escassa consciência delas, o médico começará a escutar o mesmo tipo de linguagem em si mesmo. Ao longo deste processo ele logo descobrirá que não existem perguntas absolutamente diretas capazes de trazer à superfície o tipo de informação que ele busca. A estruturação da relação médico-paciente sobre o padrão de um exame físico inativa os processos que o profissional pretende observar, pois estes só podem acontecer em uma relação bipessoal. Tudo isto soa um pouco estranho e misterioso, de modo que resulta aconselhável ilustrar mais claramente a diferença entre esse enfoque e o que se aplica à colheita da anamnese. Todos os clínicos gerais que assistiram ao nosso seminário tinham plena consciência desse fenômeno. Quase todos eles disseram no meio de um informe sobre um ou outro dos seus casos: “Ao chegar a este ponto senti que havia mais do que parecia à primeira vista; de modo que pedi ao paciente que voltasse para que tivéssemos uma entrevista prolongada, o que me permitiria entrar em detalhes na história da vida do paciente.” Pedir ao paciente uma “entrevista prolongada” implica um enfoque diferente, uma etapa completamente distinta na relação médico-paciente. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
93
Para enfatizar a importância desta transformação denominamo-la “como começar”. Com o fim de demonstrar o sentido da mesma transcreverei o caso que inclui tanto a situação rotineira de acordo com o padrão de colheita da anamnese, como a “entrevista prolongada” e suas conseqüências. O Dr. G relatou o caso 16 em março de 1954. CASO 16 A Sra. O, de 41 anos, era originariamente minha paciente particular, mas desde a organização do Serviço Nacional de Saúde está em minha lista com toda a sua família. Durante os últimos seis a oito anos visitou-me regularmente uma vez por semana ou quinzenalmente. Apresenta suores, enxaquecas, hemicranias, depressão, fibrosite, formigamentos, pleurodinia, peso nos olhos, fatiga-se facilmente, sinusite... sem sinais de caráter físico. A única doença real que teve foi uma carúncula uretral, que lhe foi estirpada. É uma mulher muito bonita. Agora tem acessos de depressão e chora, queixa-se dos ruídos no andar superior, não pode fazer seus trabalhos domésticos. Sempre soube que suas doenças eram psiconeuróticas, mas temi aprofundar nelas. Provavelmente crê que sou um médico bastante bom, apesar de ainda apresentar estes sintomas. Experimenta terrível ansiedade com seus dois filhos; um deles acaba de sair do Exército, pesa 98 quilos e goza de perfeita saúde; o outro filho de 91 quilos é igualmente robusto. Sempre se inquieta quando pegam algum resfriado ou outra afecção deste estilo. O esposo é um homem decente, um pouco rude, mas gentil e bondoso com ela. Aguçado pelo seminário decidi investigar os aspectos psicológicos, e na semana passada perguntei à paciente se desejava vir depois das horas de consultório. Veio, e contou-me que seu pai era um alcoólatra, que costumava bater na esposa, o que obrigava às vezes a intervenção policial. Em certa ocasião a paciente teve de ir ao hospital com a mãe para que lhe dessem pontos. A mãe teve nove filhos, dos quais a paciente é a terceira. A mãe trabalhava muito duro, sempre estava doente. Morreu quando a paciente tinha 13 anos, de modo que esta teve que abandonar a escola e cuidar do resto da família até os 19 anos, quando casou. Nunca saía de casa. O pai trabalhava em um mercado de frutas, tinha que levantar-se às 3 da manhã, e sempre queria que ela o fizesse primeiro, para preparar o seu café etc. Recorda cenas terríveis em sua casa. Ela e as outras crianças ficaram uma vez altas horas da manhã em plena rua e, com medo de entrar, tiveram de ir para a casa de um vizinho, porque seus pais estavam brigando. A mãe era uma mulher maravilhosa, sempre se preocupava com que os filhos tivessem do que comer, independentemente de o pai trazer ou não regularmente seu salário. Pouco depois da morte da mãe, o pai trouxe outra mulher para casa e casou com ela; a paciente a odiava e deixou a casa seis meses antes de seu próprio casamento, para sair dessa situação. O pai morreu em 1939. Conhece seu atual marido desde que tinha 16 anos; quando saiu de sua casa foi viver com seus padrinhos, e o casal permaneceu ali durante certo tempo após o casamento. Seu marido é um homem muito bom, muito generoso, capaz de fazer qualquer coisa por ela. A paciente é frígida, o ato sexual é revoltante para ela, mas o esposo não sabe como ela se sente. Às vezes sente dores e sensação de aperto que sugere vaginismo. Crê que seus dois filhos são normais — certamente o são, exceto que copiaram da mãe o costume de correrem a mim apenas sentem o mais leve mal-estar. Foi feliz na escola, mas não tinha muito tempo para brincar com outros meninos. Recorda um episódio, quando tinha nove anos — acabava de se recuperar de uma doença — e acordou no meio da noite, sentiu desejo de ser confortada, entrou no quarto dos pais sem bater, e viu-os tendo relações sexuais. Ficou horrorizada e chocada e nunca pôde esquecer. Sobretudo sente-se culpada de não haver batido na porta. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
94
Imediatamente sofreu uma recaída de sua doença. Nunca mencionou o fato a ninguém, nem sequer a seu esposo. A Sra. O disse que sua sogra é uma mulher muito desagradável e suja. Costumava passar alguns dias com eles, mas a paciente persuadiu o marido para que não deixasse a sua mãe dormir ali; agora vem vê-los de quando em quando, mas não fica. Tais são os fatos principais. A paciente falou com bastante liberdade. No fim perguntei-me se não havia feito bem em nunca fazer nada a respeito. O problema parece haver chegado a um ponto morto.
Estamos ante um caso clínico muito instrutivo pois inclui claramente todos os detalhes que estamos discutindo. O médico presta atenção conscienciosa às doenças mutáveis de sua paciente, usa seus comprovados conhecimentos, aceita cada uma das “ofertas” e responde a elas de um modo positivo e em atitude compreensiva. É indubitável que sua aceitação ajudou a paciente a “organizar” a enfermidade — qualquer que seja a verdadeira natureza da mesma — sob a forma de doença de caráter físico. A relação entre médico e paciente se manteve incólume, apesar de dois fatos inter-relacionados: a) que o médico não foi capaz de curá-la, só conseguindo tornar toleráveis os sintomas; b) que, no geral, durante todos esses anos ela foi um aborrecimento para ele. A paciente e o médico, embora não saibam quando nem como, deslizaram até um conluio tácito, cada um deles aceitando as frustrações e irritações provocadas pelas limitações do outro, sem se atreverem a tocar no que não aparecia. Então, no princípio de março de 1954, o Dr. G, impulsionado por sua experiência no seminário, decidiu “começar” e ofereceu a sua paciente uma “entrevista prolongada” depois das horas de consulta. O resultado pode comparar-se com a abertura das comportas de um dique, e a paciente pôde falar de fatos que não tinha conseguido contar a ninguém durante toda a sua vida. Assim, reuniu-se uma vasta massa de informação importante, a qual arrojou luz sobre o verdadeiro problema no seu caso, e permitiu compreender porque a terapia de tipo físico não tinha podido ajudá-la. Quero acrescentar que toda essa informação surgiu sem necessidade de muita pergunta; tudo que o médico precisou fazer foi escutar. Finalmente, outro aspecto igualmente importante: o médico se sentiu muito perturbado depois da entrevista. Por um lado, segundo reconheceu posteriormente no transcurso da discussão, sentiu-se culpado “por não haver feito nada, durante todos esses anos, em relação às possíveis raízes psicológicas do caso”; pelo outro, sentia que “havia chegado a um ponto morto, e perguntava se não havia estado certo, afinal de contas, em não se aprofundar nos problemas da personalidade da paciente”. Interrogado pelos outros médicos, o Dr. G reconheceu que depois da “entrevista prolongada” a paciente havia parecido aliviada, mas por seu lado ele não via como continuar de um modo racional o trabalho começado. Como sua perturbação é uma reação típica deste tipo de situação, proponho citar suas palavras:
O peculiar deste caso consiste em que parece diferente de todos os demais... Nos outros casos eu experimentava a sensação clara de que podia chegar em algum lugar, ou que alguém poderia fazer alguma coisa, ou que se soubesse mais teria podido resolver o problema... Mas não sinto isto neste caso. Pergunto-me se foi acertado ir ao fundo do assunto, a despeito dos sintomas muito incomodativos. Não havia razões melhores para © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
95
adotar esta atitude agora do que em outro qualquer momento dos últimos três ou quatro anos, exceto o desejo de me dar importância no grupo apresentando um caso.
Desejo advertir a qualquer médico que decida, sem experiência prévia, oferecer uma “entrevista prolongada” a um ou outro de seus pacientes, que deve achar-se preparado para uma situação deste tipo. A exposição sincera da vida íntima de um paciente, com todas as suas misérias, pequenos e grandes temores, esperanças frustradas, alegrias escassas e freqüentemente muito precárias, constitui uma experiência profundamente comovente. Além disso, a ajuda que podemos imaginar ou oferecer é freqüentemente bastante inadequada com respeito às verdadeiras necessidades. Como conseqüência o médico, especialmente nas primeiras etapas da prática clínica, como no caso do Dr. G, experimenta sentimentos de impotência indignada, de injustiça, ainda que o sentimento de derrota do Dr. G não tenha se mostrado justificado. Devo acrescentar também que esse tipo de experiência às vezes provoca resultados exatamente opostos, o sentimento de que se obteve um bem merecido triunfo e excesso de confiança. Em geral é preciso tempo e bastante esforço mental para ajustar ambas reações no nível da realidade. Durante a discussão foram propostos todos os tipos de teoria, a fim de ligar o passado da paciente com a sintomatologia que exibia, e encorajou-se o Dr. G a que tentasse interpretar este ou aquele aspecto de acordo com as diferentes teorias. Entretanto, o Dr. G negou-se. Argüiu que ele era um clínico geral, e que não tinha a menor intenção de converter-se em psiquiatra amador, a atitude que aparece com freqüência em nosso seminário; ao final, todos convínhamos em que o que foi feito por ele podia e devia ser feito pelo clínico geral, como parte integrante de suas atividades. Ir mais além é assunto mais complicado. Os clínicos gerais interessados na psicoterapia, e que nela adquiriram certa capacidade profissional, podem ir além e incorporar a sua atividade a psicoterapia menor. O Dr. G não sentia interesse pela tarefa, nem se sentia com capacidade suficiente, de modo que sua decisão no sentido de deter sua iniciativa no ponto em que havia chegado era correta. Por outro lado, aceitou com boa vontade a sugestão de estar pronto a atender a Sra. O se esta lhe solicitasse novas entrevistas, e ainda encorajá-la discretamente quando da consulta seguinte, perguntando-lhe por exemplo: “Como se sente agora, depois de haver falado comigo sobre essas coisas?” Na semana seguinte o Dr. G informou:
Fui chamado para atender seu filho, que estava doente, realmente, e depois que o examinei a senhora me disse com o rosto radiante: “Sinto-me muito melhor — que me liberei de uma quantidade de tensões.” Parecia muito contente, e pensava vir a consulta na semana próxima. Obviamente algo mudou nela. Quase quatro meses depois, nos fins de junho de 1954, o Dr. G mencionou novamente a Sra. O:
Desde então (a discussão) vi-a uma vez com relação a coisas físicas habituais. Agora encontro-a somente na rua, mostra-se muito cordial, mas não vem ao consultório. Do ponto de vista de descongestionamento de meu consultório é uma boa coisa. Finalmente, um informe complementar de outubro de 1955, um ano e meio depois da “entrevista prolongada”:
Vejo a Sra. O de tempos em tempos — certamente muito menos do que antes. A re© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
96
lação entre nós é particularmente boa. Às vezes sofre de enxaquecas, mas toda a atmosfera é agora a de que “nos entendemos sem falar”, e há muito mais do que é dito, mas tanto o médico como a paciente concordam (silenciosamente) em que não é necessário abordar o tema. Conversações amistosas, encorajadoras, quebram o galho e o doutor é um bom amigo que ajeita as coisas porque sabe compreender os problemas ocultos. Eu diria que este caso teve bastante sucesso, talvez mais do que tantos outros de resultados espetaculares, quanto mais não seja por ter criado as relações existentes (inclusive um dia apareceu com um novo paciente, ante quem evidentemente me havia posto nas alturas).
Este caso constitui uma excelente resposta prima facie àqueles médicos que alegam sua falta de tempo para escutar tranqüilamente os pacientes. Se considerarmos que a Sra. O vinha ao consultório aproximadamente três vezes por mês, e que em cada ocasião tomava cinco a dez minutos de atenção, seu desaparecimento economizou ao médico uma ou duas horas de trabalho em quatro meses. Mesmo que consideremos o tempo consumido pela “entrevista prolongada”, o saldo positivo foi considerável; além disso, o relatório posterior demonstrou que esse saldo continuava aumentando. Outro aspecto do problema é o desaparecimento dos aborrecimentos e da irritação provocada no Dr. G, o alívio que lhe trouxe a transformação da Sra. O, de uma paciente queixosa, deprimida e insatisfeita, em uma amiga cordial e alegre. E, o que é mais importante, a “entrevista prolongada” permitiu ao médico uma compreensão melhor e mais segura dos problemas de sua paciente. Sem dúvida, sua responsabilidade aumentou ao mesmo tempo que melhorava sua compreensão. Dada a importância deste problema “como começar”, proponho-me a citar outro caso, mais complicado. Foi lembrado quando decidimos discutir o caso dos pacientes que pediam uma radiografia; pediu-se aos médicos que informassem sobre todos os pacientes desse tipo que se apresentassem durante a semana. O Dr. K informou o Caso 17, em outubro de 1955, nos seguintes termos: CASO 17 O Sr. Y está em minha lista há vários anos; tem quase 55 anos e conheço bastante bem a sua família. É indivíduo muito simpático de bom coração, e dirige uma sapataria. Padece de tuberculose crônica, doença que foi descoberta em 1951. Sempre teve aspecto de pessoa perfeitamente sã. Possui uma longa história de anos de indigestão e bronquite de inverno, esteve internado em hospital uma ou duas vezes antes de incorporar-se à minha lista. Nunca acharam nada. Não foi feita radiografia do peito, pois ninguém se preocupou muito com sua bronquite. De qualquer modo, enviamo-lo a um hospital em 1950 ou 1951, para se fazer um exame de rotina; graças à radiografia, descobriram que tinha tuberculose. Não foi considerada grave, e o paciente encarou a coisa com filosofia. Tememos que se sentisse um pouco perturbado, mas acertou seus negócios, e viajou à Suíça para realizar um tratamento que durou aproximadamente um ano. Agora retornou a seu trabalho. Está ao cuidado da clínica para tuberculosos, e realiza periodicamente exames de rotina. Ocasionalmente vem a meu consultório para que lhe receite comprimidos para indigestão, como fez durante anos. No passado fez diversas vezes a ingestão de bário sem que nunca se comprovasse a existência de úlcera, mas esta manhã apareceu às 10h30min, antes que eu começasse as minhas consultas. Disse: “Eu quero os raios X”, logo tive © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
97
que ouvir sua história. Disse que havia sentido o habitual, não propriamente dor, uma sensação de náuseas e mal-estar, e declarou que desejava fosse tirada uma radiografia. Perguntei-lhe: “Por que veio esta manhã?” Respondeu: “Não sei, simplesmente quero os raios X agora.” Abruptamente, perguntei: “O que lhe preocupa, teme que exista um tumor ou uma úlcera?” Disse que não, que não se preocupava com isto. Não consegui que me explicasse porque desejava a radiografia. Examinei seu estômago, intestino, etc., e procurei tranqüilizá-lo. Eu disse: “Aqui não há indícios de tumor nem nada deste estilo, de modo que não há motivos de preocupação.” Não pareceu que minhas palavras o aliviassem particularmente. Durante a conversa que seguiu falou quase todo o tempo. Discutimos se talvez “realmente, devem ser os nervos; quando estou preocupado meu estômago é que sofre. Se tenho um acidente com o carro, fico perturbado; embora se trate de uma coisa trivial, meu estômago fica perturbado”. Quando sai de férias, livre da tensão e da preocupação dos negócios, sente-se perfeitamente bem. Continuou desenvolvendo o tema e enfatizando ante mim a sua opinião de que a maior parte do problema obedecia a causas de caráter nervoso. Então intervi para dizer-lhe: “Bem, olha aqui, afinal de contas, o que teme, tem medo de que haja um tumor?” Ele disse: “Não, não.” De qualquer modo, continuei conversando um pouco e logo disse: “Bom, realmente não sei, não há nenhuma indicação no momento”, observação que o paciente pareceu aceitar bem. Expliquei-lhe que havia realizado um exame muito minucioso, e que não havia indícios de nada grave. Disse que havia esgotado a sua provisão de comprimidos, e que desejava tê-los à mão (toma apenas um por dia, sempre que sente necessidade). Logo, quando acabava de escrever a receita — estas coisas vitais sempre aparecem quando o paciente está a ponto de abandonar o consultório, no momento preciso em que o médico está menos disposto — disse algo que não entendi muito bem. Creio que foi: “Muitos de meus parentes parecem estar envelhecendo e têm artrite e outras coisas; e minha filha, brincando, insistiu a semana passada para que viesse ver o médico.” (Esta filha tem mais ou menos 19 anos.) Acrescentou: “Ela disse: ‘Agora deve manter-se jovem, papai; vai e consulta o médico.’’’ Ocorreu-me então que tinha vindo neste preciso momento porque sua filha desejava que se mantivesse jovem, e não como alguns desses parentes que estavam envelhecendo. Mas tem todo o aspecto de um homem jovem, de menos de 50 anos e não de 55. De modo que esta parece ser a razão.
Nesse informe franco e totalmente espontâneo há muitos detalhes característicos. Em primeiro lugar, a descrição fiel da confusão de línguas entre o médico e seu paciente. O profissional acredita que o paciente está inquieto ante a possibilidade de câncer, e faz todo o possível para “assegurá-lo de que tudo vai bem”. Nesse caso pode fazê-lo sincera e honestamente, pois não descobriu o menor sinal estranho após um exame cuidadoso. Entretanto, o paciente não é afetado, não lhe inquieta a possibilidade de câncer, e portanto não é possível tranqüilizá-lo por essas vias. Assim, impelido por seu treinamento e por suas idéias preconcebidas o médico não é capaz de “escutar”, e continua tratando de confortar o paciente. Desse modo se passa uma boa meia hora, durante a qual os dois homens estão falando de temas diferentes. Devo acrescentar que esse foi um caso excepcional, porque — como já assinalamos — havíamos decidido durante o seminário anterior ocuparmo-nos dos pacientes que pediam radiografia; durante a semana ninguém se havia apresentado para formular este tipo de pedido; o Sr. Y apareceu no final da manhã do dia do seminário. De modo que é possível que o Dr. K tenha sido mais cuidadoso que de costume pois sabia que teria que informar sobre o paciente em questão. Depois de havê-lo “tranqüilizado”, com o intuito de terminar a entrevista o doutor começou a redigir a prescrição habitual para o paciente. Então, terminados a colheita da anamnese e o apoio, houve um momento de silêncio, e o paciente começou a dizer algo © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
98
ao médico, no qual deposita sua confiança. Entretanto, este último estava tão atarefado com seu trabalho que não o escutou bem. Mas demonstrou sensibilidade bastante para alertar-se, e assim pôde obter certas informações de importância. Mas já o tempo premia — ia realizar uma série de consultas matutinas iniciadas com uns bons 40 minutos de atraso — de modo que foi preciso terminar a entrevista com a receita. Ora, é quase seguro que o verdadeiro motivo que impulsionou este homem a procurar a ajuda de seu médico foi seu temor em envelhecer. (Posteriormente recolheremos certas provas confirmatórias deste fato.) É muito provável que na sua rotina normal, alheia à influência do seminário, o doutor não tivesse “escutado” as poucas e inseguras frases pronunciadas pelo paciente enquanto escrevia a receita. Possivelmente o paciente teria recebido uma dose “conforto” e depois a ordem para uma radiografia. Afinal de contas, o Sr. Y tinha 55 anos, queixava-se de vago mal-estar abdominal e o médico teve a impressão de que ele estava preocupado — possivelmente ante a perspectiva de um câncer; certamente, ter-se-ia justificado uma ingestão ou um enema de bário, sobretudo se o médico fosse de natureza prudente. De qualquer modo a obtenção de um resultado negativo teria produzido um saudável efeito tranqüilizador. Mas, como já vimos nos capítulos anteriores, o veredito negativo do médico muito freqüentemente não dá resultado. Aqui nos achamos ante um caso que revela uma das razões pelas quais em certas condições não tem efeito. O exame radiográfico — positivo ou negativo — não tem relação com o problema do Sr. Y, e não constitui resposta a sua “oferta”. Entretanto com base nesse tino de raciocínio pedem-se e fazem-se inúmeras radiografias, e se redigem incontáveis receitas com os mesmos resultados fúteis. Não obstante, devemos estar preparados para novos acontecimentos. O Dr. K havia “começado” algo que teria que passar por um desenvolvimento ulterior. Um aspecto desse processo era a influência da enfermidade do Sr. Y, sobre a relação pai-filha. O pai tinha 55 anos, talvez sua capacidade sexual começasse a diminuir; é possível que, consciente ou inconscientemente, sentisse ciúmes de sua filha, a qual talvez começasse a reclamar a sua própria vida sexual. Perguntamos ao Dr. K, e soubemos que a moça de 19 anos era filha única e — que os pais trabalhavam pesado para lhe assegurar certo grau de segurança econômica. O Dr. K revelou bom número de detalhes de todo o tipo sobre a família, completando deste modo o quadro:
Creio que se eu fosse um estranho, esse homem não teria mencionado uma coisa tão trivial como o fato de que era sua filha que o enviava; só porque o conheço bastante bem atreveu-se a mencionar o fato. Ele poderia ter acreditado que era muito insignificante para mencioná-lo a um médico. E não pôde dizê-lo no princípio da entrevista, mas o deixou para o último minuto de nossa entrevista.
O ex-ajudante do Dr. K, agora a cargo do seu próprio consultório, era membro do mesmo seminário. Ele continuou a história:
Posso dizer algo sobre a relação pai-filha porque conheci a filha (quando era assistente do Dr. K). Viajou ao estrangeiro quando era bastante jovem ainda, creio que tinha 17 anos e, pelo que pude compreender, contra os desejos dos pais. Enquanto se achava no estrangeiro contraiu a paralisia de Bell. Durante cerca de dois meses submeteu-se a tratamento no local em que se encontrava, e creio que seus pais insistiram bastante para que voltasse, coisa que ela fez, mas relutantemente. Os pais estavam © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
99
muito preocupados, mas ela não. Indiquei fisioterapia e tratamento elétrico. Também neste caso a moça se mostrou satisfeita, mas não os pais, então ambos (isto é, pai e filha) vieram ao consultório e disseram que desejavam uma consulta particular. O pai queria consultar alguém que conhecesse a fundo o problema. Finalmente, enviei-os ao Dr. X (um de nossos mais distinguidos neurologistas), que lhes disse o mesmo que eu, e os tranqüilizou. Depois não tornei a vê-los, pelo que suponho que a consulta os satisfez. Ela era uma moça simples, mas não desprovida de atrativos. A paralisia era bastante visível, mas estava melhorando. De qualquer modo, eu diria que a atitude dos pais expressavam uma preocupação perfeitamente normal, pelo estado da filha.
Neste ponto observou-se que talvez a ansiedade demonstrada tivesse também outras fontes, embora exteriormente parecesse absolutamente normal. Depois de tudo, sabíamos que a filha havia saído de casa contra a vontade dos pais, havia ido ao exterior e regressado ante a insistência de seus pais, mas a contragosto. Tudo isso apontava o mesmo conflito latente no seio da família. Se considerarmos a preocupação do pai pela paralisia da filha associada à inquietude da filha pelo envelhecimento do pai, resultava a inevitável impressão de que entre ambos existia um vínculo muito intenso. Nossa pergunta seguinte referiu-se ao papel e à personalidade da mãe. O Dr. K informou o seguinte:
A mãe é uma mulher muito interessante, engraçada, de cabelos visivelmente tingidos. Formam uma família muito agradável e simpática, extraordinariamente amável. Ela sofre dos nervos. Mas já há algum tempo não a vejo, mas veio há dois anos aproximadamente em busca de um tônico para os nervos. Nunca me ocupei a fundo do assunto: mas agora o farei. Lembro-me de ter-lhe dado, em certa ocasião, um frasco de um medicamento; poucos dias depois pendurei, em minha sala de espera, um novo quadro, realmente moderno. Assombrou-me que esta mulher, de quem ninguém teria dito que possuía a menor sensibilidade artística, entrasse na semana seguinte em meu consultório realmente comovida. “Vim buscar outro frasco de tônico, doutor mas em realidade esse novo quadro produziu melhor efeito do que o medicamento.” Tanto a havia comovido o quadro. De minha parte jamais me teria ocorrido que a paciente fosse capaz de perceber o conteúdo emocional da obra de arte, evidentemente muito intenso. Relatou-me então que havia assistido a uma exposição anterior em X. Certo quadro havia suscitado nela a mesma tremenda emoção que repentinamente a havia feito melhorar. Continuamos discutindo, um pouco impressionados ante o fato de haver começado por um homem que sofria de uma vaga indigestão e que solicitava, aparentemente não sem razão, uma radiografia, para acabar com toda uma família nas mãos. O seminário concordou quanto ao diagnóstico, mas se manifestara grandes incertezas com respeito à melhor terapia. Como observou um dos médicos, “essa família tem três membros, e todos têm algum problema neurótico. Ora, convém tratá-los separadamente, ou tratar de algum ou nenhum?” Antes de iniciar a discussão deste ponto, o Dr. K chamou a atenção sobre um detalhe importante:
Eu diria que há um problema muito interessante. É o fato de que nas primeiras fases não suspeitei da existência de tuberculose. Naturalmente, devia haver pensado antes nessa possibilidade, mas em realidade o Sr. Y nunca se queixou. Aparecia com o nariz inflamado, ou com outra coisa nesse estilo, e o problema de seus pulmões nunca apareceu seriamente. Logo recebi a carta do hospital a qual dizia que o paciente tinha tuberculose. Se bem me lembro senti-me um pouco culpado, porque a pessoa que havia insistido na © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
100
necessidade da radiografia havia sido o próprio paciente. Quando chegou o informe positivo, senti-me realmente arrasado. Senti que o paciente estaria mal comigo, como tinha todo o direito de fazê-lo. Senti-me terrível com isto. Mas o paciente é homem que se compraz em manter boas relações com todo mundo. Agrada-lhe fazer um bom trabalho, satisfazer a seus clientes e fazer tudo que está a seu alcance pelas pessoas. Acreditei que a necessidade de abandonar seu pequeno negócio seria fator de absoluto transtorno, que tudo acabaria no mais completo caos, mas me surpreendeu a serenidade com que aceitou a situação.
Aqui temos um exemplo que demonstra a dolorosa surpresa que invariavelmente experimentam os médicos quando um paciente não se sente aliviado ante a notícia de que “não há nada errado”, e reciprocamente quando não se deixa oprimir ao inteirar-se de que sofre de uma doença grave. Alguns, como o Sr. Y, são muito capazes de enfrentar as más notícias; e é mesmo possível que sob certo ponto de vista elas satisfaçam certas necessidades ocultas. Durante este encontro consagramos bastante tempo a discutir a necessidade das pessoas de serem levadas a sério. Uma comprovação negativa coroada pelo inevitável “conforto” às vezes frustra esta necessidade enquanto que o descobrimento de uma enfermidade grave pode satisfazê-la. E ainda se sugeriu que se o Dr. K tivesse oferecido ao Sr. Y ampla oportunidade de conversar, quer dizer, se o houvesse tomado a sério, por exemplo em 1947 ou 1948, talvez tivesse logrado impedir o desenvolvimento do processo tuberculoso descoberto em 1950 ou em 1951. De qualquer modo, todos concordaram que agora dever-se-ia considerar seriamente a situação do Sr. Y, pois ele o necessitava muito. As atitudes tranqüilizadoras e os paliativos podiam obrigá-lo a desenvolver novos e talvez mais graves sintomas e doenças com o fim de atrair a atenção que necessitava; em resumo, devia incluir-se na “lista de perigo”. Para dizê-lo, nas palavras de um dos médicos do seminário: “O mais provável é que esse homem deva ser levado a sério em um plano ou no outro. Se não for levado a sério no plano psicológico, mais cedo ou mais tarde ele fará exigências para ser levado a sério no plano físico.” Perguntamos logo ao Dr. K em que termos se havia separado do seu paciente. Replicou que o Sr. Y havia recebido pílulas suficientes para um mês aproximadamente, e que estava seguro de que, como era habitual, voltaria em busca de mais. O grupo, especialmente o psiquiatra, sentiu certa inquietude ante a informação. O paciente podia sentir que o fato de abandoná-lo durante um mês equivalia a não levá-lo a sério e, além do mais, o intervalo de um mês certamente dificultava a tarefa de retomar o importante tema mencionado no último minuto da entrevista. O Dr. K procurou convencer-se de que seu paciente se havia mostrado feliz e sereno quando saiu do consultório. Foi lembrado, algo impiedosamente, de “que em 1948 ou 1949 seguramente recebeu com o mesmo ar de felicidade a nova receita de um expectorante; e se o Dr. K tivesse sido então membro do seminário, poderia ter empregado exatamente a mesma frase que agora estava dizendo”. Seguiu-se uma prolongada discussão, sob a atitude mais conveniente. Limitar-me-ei aqui a resumir as conclusões. O Sr. Y podia achar-se em uma situação precária. Não há motivo para pressa, mas quando voltasse deveria ter tempo suficiente para que expusesse o que lhe preocupasse, sem que lhe fossem feitas muitas perguntas. O Dr. K deveria voltar a examinálo muito cuidadosamente. Depois de tudo isso o médico deveria orientar a conversa até a família do Sr. Y, particularmente até a filha, a quem se considerava a mais gravemente necessitada de atenção, depois do pai. Embora evidentemente em estado de grande tensão não se acreditava que o Sr. Y requeresse ajuda imediata. Se essa avaliação do problema era ou não correta, é coisa que não podemos todavia determinar, pois o caso foi relatado em outubro de 1955. Uma das razões pelas quais foi incluído aqui consiste em que dá uma idéia sobre o modo de desenvolvimento das discussões no seminário e, em particular, sobre a forma em que o caso se enriquece na medida em que a discussão prossegue. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
101
Voltando aos problemas mencionados no começo desse capítulo, ambas as histórias clínicas ilustram bem a diferença entre os resultados da colheita da anamnese e de “escutar”. Acho justo assinalar que teria sido praticamente impossível formular perguntas que proporcionassem informações como a de que a filha do Sr. Y desejava que seu pai se mantivesse jovem; que a Sra. Y tingia o cabelo e se comovia profundamente ante a pintura moderna; que o Sr. Y não se havia preocupado nem um pouco com o fato de que seu médico não tivesse realizado um diagnóstico precoce de sua tuberculose, mas em troca estava muito inquieto pelo seu aspecto diante de sua filha, etc., etc. Do mesmo modo, teria sido impossível conseguir por meio de perguntas a confidência da Sra. O de que havia presenciado as brigas violentas e os atos sexuais dos pais (Caso 16). Por isso afirmamos que quem faz perguntas recebe respostas — e quase nada mais. Trata-se de desenvolver nos médicos a capacidade de escutar o relato dos fatos, segundo aparecem na relação médico-paciente durante a entrevista. Mais adiante, nos Capítulos 13 e 18 tornaremos a falar sobre a relação médico-paciente, e em particular sob a forma especial que adota na clínica geral, diferente da de qualquer outro campo da medicina. Esta forma especial da relação médico-paciente na clínica geral está condicionada pelo contato freqüentemente prolongado e íntimo entre o médico e o paciente. Descrevemo-la com a expressão “companhia de investimentos mútuos”; graças a ela a Sra. O foi capaz de abrir-se com seu médico na primeira ocasião que se lhe ofereceu, e o Sr. Y pôde, embora só no último minuto da entrevista, mencionar o verdadeiro motivo de sua visita ao consultório. Logo, aparece o difícil problema de “atribuir um nome à doença” (veja o Capítulo 4). Parte do mal-estar do Dr. G devia-se à impossibilidade em que se via de “dar nome” à doença de seu paciente, quando finalmente a havia descoberto. Diga-se de passagem que antes de que a “entrevista prolongada” lhe revelasse de que se tratava, o médico não tinha tido dificuldade alguma para dar nome a todas as doenças menores que a Sra. O “oferecia”. Mais ainda, sua inquietude se viu certamente agravada por sua incapacidade para conceber uma terapia racional. O fato de que apesar dos escrúpulos do médico o paciente melhorasse definitivamente não atenuou o ingrato episódio para o Dr. G, que é um profissional sensato, a quem agrada saber sempre em que solo está pisando. O caso do Sr. Y — pelo menos no momento — era um pouco mais simples. Embora tampouco seja possível atribuir um nome à doença, não havia necessidade imediata e premente de fazê-lo. O Sr. Y se satisfez chamando-a indigestão, e o médico, sabendo o que deve observar, tampouco sentiu a necessidade de achar um nome. Finalmente, uma palavra sobre a função do especialista, de qualquer ramo da medicina, em casos como estes. Suponhamos que um membro da família Y tivesse sido enviado a consultar um especialista. Na verdade a Srta. Y foi examinada por um neurologista, que diagnosticou uma paralisia de Bell, coisa que não era novidade para o médico ou para a família. Certamente, o neurologista teve êxito em tranqüilizar o pai — a filha não necessitava ser tranqüilizada — mas ignorava completamente o verdadeiro problema que o médico encarava, e tampouco se interessou por ele. O radiologista e o clínico que realizaram chapas contrastadas no Sr. Y achavam-se, se isto é possível, mais distanciados ainda. Simplesmente ignoravam os fatos e lhes teria sido difícil descobri-los utilizando suas habilidades anamnésticas. O médico da família estava de posse de todos os fatos, não como resultado de formulação de perguntas, mas porque conhecia seus pacientes. Entretanto, não os escutou. O seminário conseguiu reunir o médico com os fatos (no caso do Sr. Y, com dois médicos, o Dr. K, e seu ex-assistente). Essa situação, repetida com freqüência, demonstra porque geralmente é inútil que o especialista adote a postura de mentor, e que o clínico geral. persevere em seu antigo status pupillaris. Nestes casos o especialista nada tem que ensinar, porque o médico geral sabe muito mais — desde que se atreva a utilizar seu conhecimento. Em realidade, poderia ensinar muito ao especialista, mas ainda estamos longe disto. Primeiro o médico tem que aprender a escutar. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
102
Capítulo
12
“Quando Parar”
No capítulo anterior vimos dois médicos decidindo “começar” e os inesperados desenvolvimentos que se seguiram. A diferença principal na atitude do médico antes de decidir-se a começar e “quando começar” consiste em que renuncia a formular perguntas e se dedica a “escutar”. O que, naturalmente, não é toda a psicoterapia da prática geral, do mesmo modo que um diagnóstico não é toda a terapêutica da medicina clínica. Desejo enfatizar que o ato de “escutar” durante uma “entrevista prolongada” representa boa parte da psicoterapia e é, além disso, requisito indispensável, quase no mesmo sentido que o diagnóstico é indispensável para se chegar a uma terapia racional. Entretanto, antes de seguir adiante, desejo examinar o problema seguinte: “quando parar”. Parece um grande salto, um tipo de non sequitur. Na verdade é justamente o contrário. Os dois problemas, “como começar” e “quando parar”, acham-se estreitamente vinculados e em grande parte se superpõem. A razão é simples. Quando decide “começar”, o médico automaticamente resolve não se deter na conjuntura particular na qual então se encontra, e quando procura determinar “quando parar”, encontra-se naturalmente influenciado pelas dificuldades e pelos riscos implícitos no “começo” da fase seguinte do tratamento. Nosso primeiro caso constitui uma ilustração de um aspecto especial deste problema; poderíamos denominá-lo “quando parar de começar” ou até onde chegar na primeira — ou em qualquer — entrevista, e quando parar por enquanto. Um fator evidente é o tempo que um profissional pode consagrar a seu paciente nesse momento particular, em vista de seus numerosos compromissos. Muita gente, e particularmente os incipientes psicoterapeutas que tiveram algum êxito, pode crer que — se o tempo do médico o permite — quanto mais se consiga em uma entrevista, tanto melhor; em outras palavras, que enquanto o paciente produza material novo, sobretudo se se trata de material acompanhado de sincera e intensa emoção, é aconselhável continuar. A aparição de novo material emocional é sinal de que existe considerável pressão, ou mesmo ansiedade na mente do paciente, e o prolongamento da entrevista pode trazer considerável alívio. Estas esperanças geralmente se concretizam, mas nem sempre. Como já disse, é sobretudo o principiante que se sente tentado a continuar quase indefinidamente a “entrevista prolongada”. O principiante tem entusiasmo, freqüente© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
103
mente lhe sobra tempo e, se o caso parece desenvolver-se bem, por que interromper seu desenvolvimento orgânico por uma razão exterior e tão impertinente como o relógio? Por que não seguir o dénouement até seu final orgânico? Um médico experiente tem menos possibilidade de deixar-se seduzir por esse modo de pensar. É um profissional e não um entusiasta; já teve sua boa quota de êxitos e de fracassos, e um a mais ou a menos não faz diferença. Além disso, não dispõe de muito tempo. Outro fator ainda mais importante é de descrição muito difícil. Talvez pudéssemos chamá-lo senso de proporção. Uma “entrevista prolongada” é assunto de toma lá, dá cá. O paciente transmite muitas coisas a seu médico: sua confiança, certos segredos zelosamente guardados, que às vezes podem parecer insignificantes ou pueris a um estranho mas que para ele significam muito. Se nada acontece para restabelecer o equilíbrio, o paciente se inclinará a sentir-se despojado, roubado ou enganado. Depois, talvez se veja obrigado a desvalorizar ou a retirar o que disse ao médico, ou a fugir dele, indignado, humilhado, ou ainda possuído de ódio. É extraordinariamente difícil definir exatamente qual é o fator que restabelece o equilíbrio, de modo que depois da “entrevista prolongada” o paciente se sinta compreendido, aliviado, ou mesmo enriquecido, em lugar de despojado ou enganado. A diferença não reside no que se convencionou chamar “interpretação correta”, embora as interpretações corretas sejam uma parte disto. Tampouco consiste no “conforto”, como vimos no capítulo anterior. Talvez o melhor que eu possa oferecer seja dizer que o médico experiente sabe aproximadamente “quando parar” e que o principiante deve pensar duas vezes antes de prolongar a entrevista além de uma hora. Nosso Caso 18 ilustra bem todos os meus pontos de vista. Ocorreu em um período entusiástico de nosso desenvolvimento; alguns dos médicos do seminário haviam alcançado êxito em suas tentativas psicoterápicas e nossa moral era elevada. Essa atmosfera de autoconfiança e auto-segurança era tão contagiosa que os mais serenos se viam arrastados às vezes. Um deles, o Dr. P, antes um clínico geral de espírito crítico, cético e ardente defensor da tese de que a boa medicina física deve ocupar o primeiro lugar, um M.D. e M.R.C.P. (doutor em medicina e membro do Real Colégio de Médicos) apresentou um dia o seguinte relatório: CASO 18 A Sra. J telefonou-me para marcar uma entrevista. Não a conhecia; explicou-me que tinha ouvido falar de mim por uma amiga comum, mas pediu-me que não dissesse a essa amiga que ela vinha ao meu consultório. É uma mulher pequena, um pouco gorda, parecendo ter 55 anos; disse-me que tinha 43. Veio de uma das colônias, e está aqui há somente três semanas. Por cerca de nove meses sofreu enjôos intensos. Dois dias antes de seu início foi submetida a extração dentária, mas não ocorreu nada de anormal. Há dois anos que não menstrua. (Não tem filhos, fez vários abortos.) Seu médico anterior lhe ministrou todos os tipos de medicamentos. Supus que poderia sofrer de acoasmas, mas ouve muito bem. Também tem dores em todo o corpo, como se estivesse com febre. Estava também terrivelmente deprimida, e chorou bastante. Estava muito efusiva. Pensava conceder-lhe uma hora, mas ficou três. Pensa regressar logo à colônia. Agora sente que seu cérebro está solto dentro do crânio, e por isso não pode mover rapidamente a cabeça. Tem excelentes apetite e sono. Provém da Europa Central, onde perdeu o seu esposo por causa de Hitler. Posteriormente casou com um homem que tem um filho. Ama-o muito, mas não tanto como a seu primeiro marido. Examinei-a, comprovei ligeira protrusão ocular, reflexos muitos exaltados, coração e pulmões normais, certa torpidez sensorial das mãos e pés, pressão arterial 120/80. Dis© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
104
se que sua situação era difícil, jamais havia atingido o orgasmo com o marido; havia alcançado uma idade na qual desejava gozar a vida, e não podia fazê-lo. Disse-me também que tinha querido muito a seus pais, mas quando era jovem havia tido pensamentos perturbadores — desejava a morte do pai. Essa idéia assustou-a muito mas tudo se acalmou e agora só retorna de quando em quando. Agora tem pensamentos semelhantes, mas com respeito ao marido. Subitamente admitiu que se havia masturbado durante um breve período, quando tinha 9 anos, depois aos 30 anos, e quando lhe extraíram os dentes recomeçou. Expliquei-lhe que suas queixas não eram de origem orgânica; mas se quisesse, podia voltar a ver-me. Disse que provavelmente se limitaria a me telefonar, e pareceu muito feliz. Telefonou-me há quatro dias aproximadamente, e explicou que precisava ver-me urgentemente. Quando chegou estava muito excitada. (Eu havia mencionado na primeira entrevista que era importante conhecer sua idade, pois sofria de menopausa e sugeri que ela tinha 53 anos, coisa que me confirmou. Acrescentou que sua idade era a única mentira que me havia dito.) Contou que na colônia tinha uma amiga a quem havia surpreendido quando tentava cometer suicídio com gás, e que foi recuperada pela paciente. Esta amiga havia-lhe contado exatamente a mesma história que a Sra. J me contara na primeira vez que visitou-me no consultório. Explicou que desejava o conselho de um médico para sua amiga, e que esta era a única maneira de conseguir. Estava terrivelmente nervosa e agitada. De minha parte, não sabia como manejar a situação. A paciente disse que agora que me havia contado, sentia-se feliz. Confessei-lhe que ela estava mais doente do que eu havia pensado a princípio, e ela replicou: “O senhor não me acredita.” Disse que ela devia crer que tudo que me havia dito antes era terrivelmente desagradável, e lhe assegurei que podia contar com minha discrição. Começou a chorar e insistiu em que era verdade, que tudo que havia dito referia-se a sua amiga. Naturalmente, creio que o relato da primeira entrevista era autêntico, e falsa a história sobre a amiga. Eu me pergunto porque ela teria usado um disfarce tão estranho. Embora tenha sido interessante, para mim, isto é o resultado desse método rápido. Admitiu que os sintomas físicos eram seus, mas insistiu em que a história que me havia relatado correspondia à amiga. Disse-lhe que deixava a decisão em suas mãos; caso se encontrasse em dificuldades sempre que quisesse podia voltar a ver-me. Replicou que era muito amável de minha parte e se foi (desta vez sem pagar). Como explicam vocês essa atitude? Algo deve ter ocorrido para fazê-la envergonhar-se de tudo que me havia contado.
À parte as condições gerais anteriormente mencionadas, o caso da Srta. J incluía uma série de características particulares que impulsionaram o Dr. P a não interromper a entrevista. O relato era muito interessante, visível a inquietude da paciente, e o material que começava a aparecer muito prometedor. É quase seguro que, em uma entrevista de três horas, o Dr. P sentiu que havia realizado um bom trabalho, e só começou a duvidar ante os acontecimentos posteriores. E ainda depois da segunda visita da Sra. J foi incapaz de compreender o que havia de errado. Tentemos pois esclarecer os fatos. Da mesma maneira que quando o seminário discutiu o caso, aqui podemos estabelecer várias “pistas”. Podemos perguntar porque era importante para a Sra. J que sua amiga não soubesse que havia consultado ao Dr. P. Talvez a Sra. T vivesse sobre falsas aparências, e seu marido e amigos não sabendo seu passado, seu verdadeiro nome ou sua idade; os dois relatos eram em realidade um; talvez ela fosse a pessoa que tinha tentado suicidar-se ou que tivesse estado a ponto de fazê-lo, etc. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
105
Além dessas “pistas” há poucos pontos concretos que indicam uma possível explicação. Em primeiro lugar, a Sra. J viu-se obrigada a reconhecer que havia falsificado a sua idade. Em geral, raramente se obtém bons resultados com esse tipo de censuras ao paciente. Por um lado, estas inexatidões poucas vezes têm importância e, por outro, se são demonstradas nas primeiras etapas do diagnóstico ou do tratamento, criam uma atmosfera tensa e desagradável; e se a demonstração fracassa a atmosfera fica ainda pior. Se o ponto em dúvida é importante e o tratamento se desenvolve bem, o paciente se encarregará de corrigir as mentiras, explicitamente ou mediante uma alusão bem clara. Entretanto, o fator mais importante é, em minha opinião, a incapacidade do Dr. P em “parar”. É certo que, como ele mesmo mencionou em repetidas ocasiões, a Sra. J perguntou-lhe se lhe permitia continuar, perguntou se dispunha de tempo, etc. De qualquer modo ele devia ter interrompido num momento adequado, oferecendo-lhe outra entrevista no dia seguinte, se fosse necessário. Uma entrevista desordenadamente prolongada altera o equilíbrio do toma lá, dá cá; o mesmo material distribuído em várias seções dá tempo ao paciente para que restabeleça o equilíbrio — se assim posso dizer — vivendo entre as duas entrevistas. Ou, para dizer em termos mais familiares, a droga chamada “médico” deve ser administrada em dosagem adequada. É evidente que alguns pacientes não podem tolerar uma dose excessivamente concentrada, mas o efeito terapêutico desejado pode ser alcançado sem graves riscos se a droga é administrada in refracta dosi. Nosso caso clínico seguinte reflete este problema de um ângulo totalmente diferente. Veremos como “começou” o médico, o que fez, e quais foram os resultados de sua intervenção terapêutica. De passagem, veremos também porque o médico decidiu interromper a entrevista em determinado momento. Deste modo encararemos diretamente o problema enunciado: “onde parar”, e estaremos em condições de acompanhar o médico e de ver como resolveu o seu problema — é interessante adiantar que se apresentaram várias ocasiões para parar — e as conseqüências. O Dr. G iniciou seu relato com as seguintes palavras: “Neste caso realizei um autêntico Smith — e deu resultado.” No mesmo seminário havia outro médico — chamemo-lhe Smith — que praticamente em todos os casos submetidos a discussão preconizava o emprego de métodos os mais enérgicos, sobretudo a interpretação do maior número possível de facetas da conduta do paciente. Durante muito tempo o Dr. G manteve uma atitude cética, e a expressou em termos inequívocos. Entretanto, atraia-lhe a possibilidade de fazer algo positivo por seus pacientes. De maneira que “realizou um Smith” como se verá em nosso Caso 19, relatado em março de 1953*. CASO 19 O paciente, Peter, mecânico de caldeiras, de 26 anos de idade, era um jovem tranqüilo, magro, pálido, asseado e inofensivo. Casado há três semanas. Enxaquecas graves. Os comprimidos de codeína não produziam nenhum alívio. Dor “atrás dos olhos”; sente que “algo está errado no cérebro”. Não consegue dormir e a esposa tem que sentar-se a seu lado e segurar sua mão. Muito inquieto. Durante os últimos dois meses não pôde ir ao cinema; perde-se no filme e subitamente “volta a si”, experimenta sensação de “sufocação”, pânico, a tela parece distanciar-se, e tem que sair correndo do cinema. Além disso agora teme também as caldeiras e sente-se tenso quando trabalha nelas. Sempre teve dificuldades em fazer amigos e se contenta em seguir seu próprio caminho.
*Parte desse caso clinico foi publicada no British Medical Journal, 16 de janeiro de 1954.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
106
Não teve vida sexual antes do matrimônio. Atualmente é satisfatória para ele, mas a esposa só consegue chegar ao orgasmo mediante masturbações manuais. “Acho esquisito contar-lhe todas essas coisas.” Agrada-lhe viver em casa de seus sogros, apesar do barulho das crianças, mas em troca não lhe agrada tanto sair. A esposa sarou há pouco de tuberculose pulmonar e agora voltou ao trabalho. O paciente é muito “arrumadinho”; faz pessoalmente todo trabalho doméstico, porque lhe agrada e não por necessidade. Acha um “sarro” servir o café de sua esposa na cama. História familiar. A mãe morreu quando o paciente tinha três anos, e ele e dois irmãos maiores foram enviados a um orfanato, onde ele permaneceu até os 14 anos. O pai sofria de tabes e estava cego. Quando o paciente saiu do orfanato converteu-se em “pau pra toda obra” da casa. Era ele quem fazia as compras, cozinhava e limpava. Também se ocupava do pai, sem a ajuda dos irmãos. (Recordo pessoalmente o fato porque eu costumava tratar o pai e conhecia bem os antecedentes familiares.) Sua única mania era andar de motocicleta, e sempre levava o pai a passear. Crê que a cegueira do pai é conseqüência de ferida de experiências de guerra. Freqüentemente se pergunta como é estar cego, e com freqüência faz uma coisa “biruta” — guiar a motocicleta fechando os olhos para ver como era. A mãe de seu pai também era cega (assim lhe disseram) e ela era também a caçula de sua família. Tinha profunda antipatia pelo irmão mais velho, o que é recíproco. Esse irmão desempenhou sempre o papel de patrão: queria ser servido, não dava valor os favores que lhe eram feitos e queria que o paciente se comportasse com ele como um escravo. O irmão não bebe nem fuma e é sujeito de espírito muito crítico. Inclusive supervisionava os namoros do paciente, marcando a hora em que devia voltar para casa, aconselhando energicamente contra o casamento. O casamento do irmão se desfez ao cabo de três semanas e foi “anulado” (ouviu usarem essa palavra). O paciente o temia, mas agora não se falam e se cruzam na rua sem se cumprimentar. Com duas semanas o paciente se internou no hospital por causa da intensidade de suas enxaquecas. Deram-lhe alta poucos dias depois sendo dito que tudo se devia a seus “nervos”. Notas do Hospital (vistas por mim). “Vim ao hospital de táxi pois não posso caminhar devido à intensidade da cefaléia. Hipóteses: sinusite: hemicrania? Investigada, não encontrada nenhuma causa orgânica. Sistema nervoso central normal. Alta. Deve ser examinado novamente na semana próxima. Psiquiatria?” 13 de março de 1953. Veio a ver-me imediatamente depois de abandonar o hospital, queixou-se de que continuavam as dores de cabeça e de que não podia dormir. “Não sei porque me sinto assim; depois de tudo é a primeira vez na minha vida que estou livre de preocupações econômicas — por exemplo já terminei de pagar a motocicleta — e minha esposa está curada de sua tuberculose — e pode voltar a trabalhar. De modo que agora me permito pequenos luxos que antes me estavam proibidos.” Interpretação imediata depois de ouvir a história (isto é que o médico chamava “realizar um verdadeiro Smith”). Certamente não há nada orgânico e nada que guarde relação com a cegueira do pai. “Desde a infância você sempre se viu relegado a uma posição inferior. A Cinderela da família. Não tinha direito a estar bem. Sempre teve que levar uma carga sobre os ombros, e não tinha direito a receber afeto (do qual você realmente precisava). Agora, logo que se vê livre de suas tarefas (que representavam a sua posição inferior) imediatamente fica obcecado por sentimento de culpa. De modo que necessita expiar através de um sintoma e o mais óbvio é a dor de cabeça — atrás dos olhos — que o associa a seu pai, a quem você se sentia ligado (e, talvez inconscientemente, com ressentimento).” “Eu tinha pensado nisso.” 16 de março — Vi novamente o paciente. Disse que se sentia “maravilhoso”. Desapareceram as enxaquecas; agora sabe que não há nada orgânico, e compreende que os sin© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
107
tomas nascem de sua vida anterior; dorme toda a noite e concilia o sono imediatamente; não tem medo quando se encontra em multidão, e se sente muito agradecido. 7 de maio — O paciente regressou ao trabalho desde março, é muito feliz com sua esposa, dorme bem e não tem queixas. 22 de outubro. Não vi o marido há vários meses, só a mulher, que me informa que seu esposo se sente perfeitamente bem. Às vezes sente dor de cabeça, sem nenhuma gravidade, e continua trabalhando. Agora é mais fácil conviver com ele e, do ponto de vista de sua esposa, constitui uma cura total.
Bem, estamos ante um caso no qual se obteve um êxito completo. Peter padecia de uma grave neurose de ansiedade, a qual se havia convertido quase em fobia generalizada, complicada com enxaquecas tão graves, que em uma ocasião o haviam obrigado a procurar urgentemente um hospital, e num táxi, porque já não podia caminhar. Indubitavelmente o médico conhecia muito bem Peter e sua família, estava a par de muitos detalhes íntimos, e portanto não teve dificuldades em estabelecer a forma adequada do contato e em “começar” no momento exato da relação médico-paciente. Trata-se de outro exemplo da importância do “investimento mútuo”. Posto que o médico possuía abundante informação — como deve acontecer com todo médico de gabarito — não sentiu necessidade de redigir uma história médica, e pôde “escutar”. Os novos elementos de informação íntima encaixaram bem na imagem que ele havia formado de Peter, a enriqueceram, e lhe permitiram “fazer um Smith”. O resultado foi excelente. Aliviou-se a ansiedade geral, até desaparecer quase completamente, não houve mais insônia, nem enxaquecas, e o paciente, que havia estado gravemente enfermo e incapacitado para trabalhar, voltou as suas tarefas. Sete meses depois dessa única entrevista, a esposa considerava Peter completamente curado. Tratava-se de uma boa ocasião para “deter-se”? Creio que a maioria dos psiquiatras teria optado por dar alta a Peter, afirmando orgulhosamente que estava curado. O mesmo pensou, por outro lado, o clínico geral. Em maio de 1954, um ano depois do “Smith”, o médico apresentou um novo informe sobre Peter:
Veio ver-me no princípio da semana; tinha faltado dois dias ao trabalho por causa de uma grave enxaqueca (a primeira vez desde o “Smith”). Esteve perfeitamente bem até um certo dia em que foi ao cinema com a esposa; tiveram de entrar na fila, e logo começou a sentir dor de cabeça, sentiu-se muito mal e teve de voltar para casa. Quando veio ver-me, sentia-se muito melhor. Fazia muito tempo que não ia ao cinema, porque não lhe agrada; provoca no paciente o mesmo sentimento de claustrofobia que experimentava quando trabalhava nas caldeiras. A esposa pensa ir ao hospital para submeter-se a exame médico. Teve tuberculose e foi curada. Submeteu-se a uma histerotomia mas não consigo lembrar por quê. Escrevi ao hospital dizendo que ela queria um filho, mas não engravidava. Será possível que a tenham esterilizado quando praticaram a histerotomia? Replicavam que em seu arquivo não figurava que a houvessem esterilizado, mas que examinariam a paciente. Falei com ele, expliquei-lhe que não desejava ir ao cinema, e que a enxaqueca era seu modo de esquivar-se de um compromisso. Por sua parte sugeriu que estava preocupado com sua esposa; afirmou que havia se sentido absolutamente bem até pouco tempo antes. Com respeito no trabalho das caldeiras, inclusive vai sozinho a outros hospitais para trabalhar, coisa que não havia feito antes. A única coisa que desejava de mim era um certificado para trabalhar — pensava retornar a seu emprego no dia seguinte. Voltou na © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
108
manhã seguinte porque havia esquecido o certificado, e no hospital não permitiam recomeçar a trabalhar sem ele. Disse que agora se sentia muito bem e foi-se; não pediu comprimidos e parecia muito contente.
À primeira vista o estado de coisas não parecia mal. É verdade que se havia produzido uma ligeira recaída; novamente uma ligeira claustrofobia, mas o paciente não havia necessitado comprimidos; durante dois dias não havia ido ao trabalho, mas isso parecia ser tudo. Talvez tudo se originasse em sua inquietude ante a impossibilidade de ter filhos devido à eventual esterilidade da esposa. Além disso, a esposa se achava em exames e logo se conheceriam resultados, de modo que provavelmente a melhor política, do ponto de vista do clínico geral, era não se apressar a agir, mas esperar e ver. Por outro lado, podia entender-se de um modo igualmente justificado que a visita de Peter ao consultório era uma espécie de solicitação silenciosa por mais tratamento; já sabemos que não lhe era fácil formular pedidos diretos. Talvez fosse essa uma explicação um pouco mais completa, porque tornava inteligível seu esquecimento. Como não havia conseguido o que havia vindo buscar, quer dizer, mais tratamento, esqueceu seu certificado, que o obrigou a voltar, ocasião em que talvez o médico se mostrasse accessível. Depois de examinar o caso, o seminário aceitou a opinião do psiquiatra de que o deslize era significativo, quer dizer, a idéia de que Peter havia regressado ao consultório porque necessitava ajuda para resolver suas dificuldades. Logo soubemos, pelo Dr. G, que a tuberculose da senhora havia sido muito benigna, que, sem cavernas, era considerada curada, e que o especialista não objetava à gravidez: e mais, que se a esposa preocupava-se muito em engravidar, Peter parecia não se interessar tanto. Tentaram durante certo tempo e, como não havia indício de gravidez, a senhora havia pedido ao médico que descobrisse se a deficiência era dela. Por isso havia sido enviada ao hospital. Ao chegar a esse ponto, o seminário estava em condições de determinar o que havia ocorrido entro Peter e seu médico. Provavelmente havia vindo com um dilema, cujas duas soluções eram igualmente inaceitáveis. Se não pudesse dar um filho a sua esposa, era impotente, e se culparia; se lhe desse um filho, teria que dividir tudo com ele, apesar de ainda não haver recebido o suficiente para si mesmo; ainda não havia se recuperado das privações de sua infância e adolescência; de certo modo, ainda se achava convalescente da grave doença de carência psicológica de seus primeiros anos. A conduta de Peter, tanto no cinema, quanto no consultório, podia ser a expressão simbólica deste problema insolúvel. Foi ao cinema mas mal havia chegado à porta voltou e regressou apressadamente à casa; foi ao consultório médico, mas não pôde falar; quer dizer, não pôde expressar suas ansiedades, e teve de voltar novamente para sua casa. Discutimos em seguida se o Dr. G teve ou não razão em sua avaliação da gravidade e urgência da presente situação. As opiniões se achavam um tanto divididas. Os médicos inclinados em realizar psicoterapia menor, e que tinham confiança em sua própria capacidade, se pronunciaram pela conveniência de atuar imediatamente; os outros, menos seguros de si mesmos, defenderam uma tática de esperar para ver. Evidentemente, a capacidade e confiança do profissional em si mesmo são fatores de vital importância para determinar “quando parar”. Com respeito a sua própria atitude, disse o Dr. G: “Não me creio capaz de realizar esse tipo de tratamento que realiza o Dr. S (o Dr. S era um dos profissionais inclinados à prática da psicoterapia). O máximo que posso fazer é ir levando esse tipo de caso. Se não posso fazer isso, então é melhor que não me ocupe em absoluto do paciente. Já meti bastante a mão nesse assunto. Aprofundei bastante, do ponto de vista do paciente, e estudei seus problemas. Não creio conveniente aprofundar mais do que já o fiz.” Era um argumento de peso, mas não resolveu o problema. Assinalou-se que talvez um ano antes o Dr. G havia aplicado a seu paciente um excelente tratamento — digamos, um pneumotórax — com muitos bons resultados. Agora o paciente vinha para um © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
109
reabastecimento; por que não atendê-lo? Ou se o médico não se achava em condições de realizar o trabalho, por que não pedir a ajuda de um especialista? Essas observações renovaram as discussões sobre o problema principal: qual devia ser o critério para avaliar a urgência da situação. Devia-se levar a sério os pequenos sintomas ou não? Certos médicos, os que confiavam na sua própria capacidade como psicoterapeuta, argumentaram que a diferença entre as duas atitudes não era tão importante, isto é, que teria bastado que o Dr. G dissesse a seu paciente: “Hum, você esqueceu o certificado. Embora você tenha dito que desejava muito voltar ao trabalho, algo em você não tinha a mesma certeza.” Quando começamos a analisar mais a fundo essa diferença, compreendemos que o trabalho era muito mais sério. Na realidade, o Dr. G havia reforçado as defesas e repressões de Peter e havia permitido e de certo modo empurrado suavemente a que voltasse ao trabalho — ninguém podia predizer quanto tempo duraria essa situação, talvez alguns anos, talvez mais. O que possa ocorrer durante esse tempo é imprevisível. Por outro lado, o manuseio desse problema podia precipitar um colapso relativamente leve — ou não tão leve —, situação que exigiria séria atenção do clínico geral ou de um especialista. A discussão terminou com um incidente interessante. Um dos participantes realizou a seguinte descrição do acontecimento: “Peter veio a seu médico com os fatos conscientes de seu problema, e o médico reagiu a eles. A questão é: o médico devia limitar-se apenas a reagir a eles, ou também à vozinha que murmurava: ‘Socorro, socorro’?” A essa pergunta um tanto poética, mas especulativa, o Dr. G replicou que não havia ouvido nenhuma vozinha. A explicação não foi aceita; assinalou-se que o Dr. G não só a havia ouvido, mas havia respondido a ela, até o ponto de recordá-la e informar ao grupo. Mas algo nele o havia impedido de reagir com seriedade nesse mesmo instante. Perguntou-se então ao Dr. G se havia se sentido incomodado quando o paciente regressou, queixando-se novamente de enxaqueca, situação que demonstrava que a terapia não havia sido totalmente eficaz. Conveio em que se havia sentido um pouco abatido. Esta foi uma boa oportunidade para demonstrar a importância de “escutar” essas ligeiras reações emocionais em nós mesmos quando lidamos com nossos pacientes. Isso não significa dar livre curso as nossas reações emocionais, nem sequer expressá-las; significa que devemos “escutá-las”, e então tentar avaliar a informação como parte de toda situação que se desenvolve entre o paciente e nós mesmos. Na semana seguinte o Dr. G informou:
A esposa de Peter veio informar que havia ido ao hospital realizar o teste de esterilidade, mas ali comprovaram que estava resfriada. Enviaram-na de volta, disseram-lhe que voltasse dois meses depois. Pareceu-me que era a oportunidade de discutir o problema com ela, e expressei com muito vigor tudo o que o grupo me havia sugerido. O marido não queria que fosse ao hospital. “Para que se incomodar com isso?” perguntou. Ela, em troca, o desejava realmente. Agora que lhe disseram que voltasse dentro de dois meses, disse ao marido: “Não, esperemos outro ano: talvez tudo se ajeite.” Disse à senhora que ela acabava de sair do hospital, que dispunha de muito tempo para pensar e que não decidisse nada no momento. Ela se inclinava a não ir.
O episódio informado parecia demonstrar que verdadeiro problema era a imaturidade do marido, fato bastante compreensível dado o enorme vazio de sua infância e adolescência. O problema era saber como se podia ajudá-lo a alcançar um grau suficiente de maturidade antes que se visse obrigado a tentar as responsabilidades de ser um futuro pai. Durante certo tempo o grupo considerou a idéia de utilizar a esposa como meio, num sistema análogo ao que permite obter resultados terapêuticos no caso de crianças imaturas, enuréticas por exemplo, mediante tratamento das respectivas mães. O Dr. G acreditava que a esposa era pessoa bastante normal e apta a ser utilizada como meio terapêutico, mas não © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
110
via com bons olhos a idéia de tratar uma paciente que na realidade não necessitava de ajuda. Preferia tratar diretamente o marido, embora previsse aí maiores dificuldades. Quinze dias depois ofereceu um novo relato:
Tudo se desenvolveu precisamente como se sugeriu aqui. A senhora veio ao meu consultório. Não parecia entusiasmá-la a idéia de falar de seu esposo. Acho que estava tentando protegê-lo. Eu disse: “Quer falar com seu marido para que venha conversar um pouco comigo?” mas ele não apareceu. Normalmente viria às pressas. Por seu lado, a senhora afirmou que por agora pensava abandonar o assunto do exame médico; parece haver adotado a posição do marido. Eu tinha estado um pouco do seu lado, quando talvez não devesse. O que finalmente aconteceu foi que o médico concordou com os desejos conscientes do seu paciente, embora ele mesmo lhe advertisse por meio do seu esquecimento que não se estava fazendo o suficiente com respeito ao verdadeiro problema, a imaturidade do paciente. Este acordo — não obrigando Peter a desenvolver-se mais rapidamente — de qualquer maneira existia, de modo que talvez a complicada discussão no seminário e as escassas entrevistas com o marido e com a mulher tenham constituído muita preocupação por nada. Tinha exigido trabalho extra por parte do médico, mas tinha valido a pena? O médico replicou o seguinte:
Evidentemente que sim, em meu ponto de vista. No ponto de vista do paciente ainda não aconteceu nada. Entretanto, se penso melhor, chego à conclusão de que se modificou a relação do paciente comigo, disso não há dúvida. Normalmente, se eu dizia: “venha ver-me”, vinha voando e muito contente. Sempre que o encontro diz que é maravilhoso não sofrer mais enxaquecas. Agora, simplesmente não apareceu; em outras palavras, tem medo, pressente a coisa, que essa grande e onipotente figura do médico pode dizer-lhe algo que não suportará escutar.
Nada mais soubemos até fevereiro de 1955, isto é, oito meses depois do esquecimento do certificado e quase dois anos depois do desaparecimento das enxaquecas. O médico informou assim:
A esposa de Peter espera um filho, mas o casal não se sente muito feliz a respeito. Desde o meu último relatório, há aproximadamente oito meses, ela veio ocasionalmente, e finalmente tratei de iniciar uma conversa. Explicou que o marido tinha achado melhor adiar o exame, e que assim haviam feito. Falei de um modo bastante superficial, e sugeri que possivelmente ele temia um filho; não cheguei a ir muito longe. Há mais ou menos três meses e meio a senhora veio ao consultório e me disse que estava grávida. Não me pareceu muito feliz, e ultimamente me procurou com mais freqüência, por coisas de caráter físico, como amigdalite. Está sem dúvida ansiosa. Por outro lado Peter tem estado bem. Parece bastante contente com a idéia de ter um filho. Em certa ocasião brinquei com ele: “Agora vai ser papai... etc.” Nada em sua atitude geral indicava que não estivesse contente. Novamente nos perguntamos se a decisão tomada oito meses antes, quer dizer, esperar ou “parar”, havia sido sensata. Mediante essa tática, haviam-se evitado perturbações desnecessárias, ou se havia perdido uma oportunidade que talvez não voltasse a se apresentar? Talvez achemos a resposta dentro de alguns anos, no desenvolvimento do menino nascido deste casal. O último relatório é uma carta que me foi dirigida em outubro de 1955, dois anos e meio depois da “entrevista prolongada”: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
111
O menino chegou em seu devido tempo, em um mundo não demasiado hostil, em princípios de setembro, com todos superficialmente muito felizes. Durante a gravidez vi várias vezes a esposa de Peter devido aos cuidados pré-natais habituais. Utilizei as ocasiões para explorar alguns dos temores de Peter, sentimentos que a senhora soube compreender sem dificuldade. Peter vinha muito raramente ao consultório — ansioso em me fazer saber que sua estranha resistência contra o exame de sua esposa não era nada de mais. Na realidade, um episódio que o obrigou a faltar quatro dias a seu trabalho (a única vez que faltou durante todo o ano passado) poderia ter sido um fator desencadeante de uma enfermidade prolongada — chocou-se de cabeça contra um ônibus (em sua motocicleta). Teve uma grande escoriação na região frontal e se queixava de dor de cabeça. (Acho que mesmo o senhor permitiria o conforto de sentir dor de cabeça em tais circunstâncias!) basta dizer que retornou ao trabalho ao fim dos quatro dias. Parecia muito feliz com seu filho, e seu médico se sentiu tranqüilizado ante a possibilidade de ficar em paz com sua própria consciência sem a necessidade de aprofundar mais no caso. De modo que, feitas todas as contas, creio que obtivemos um bom resultado, particularmente quando comparo este homem, originalmente um histérico agudo e grave, com alguns dos casos que vão e voltam ao consultório de nosso psiquiatra local para conversações de dez minutos, e que no fim não parecem nada melhor, nem sequer superficialmente. Ou vocês chamariam a este “o Caso do Médico Atemorizado que Racionaliza!?”
Acho justificável o orgulho do médico ante seu próprio êxito, e ainda me parece compreensível a alfinetada que dirige aos psiquiatras. Além de revelar alguma coisa sobre os métodos seguidos em nossos seminários de discussão e em nossos trabalhos de pesquisa, a história clínica de Peter ilustra bem a grande responsabilidade do médico quando se trata de decidir o momento em que convém “parar”. Também mostra que a solução do problema “quando parar” se acha determinada não só pelas exigências da situação presente do paciente, mas também pela personalidade do médico. Para o grupo era evidente que alguns dos médicos participantes teriam tratado a Peter de um modo muito diferente, mas devemos admitir que ainda não sabemos qual, entre todos os métodos sugeridos, teria sido o mais efetivo. Como assinalei no primeiro capítulo, vemos vários problemas novos, mas estamos longe de ter todas as respostas. Necessita-se urgentemente de pesquisas, tanto intensivas quanto extensivas; e preciso enfatizar novamente, pesquisas que deverão ser alvo de clínicos gerais, bem adestrados, de capacidade de observação e espírito crítico. Em nosso caso seguinte poderemos estudar ambos os problemas — “como começar” e “quando parar” — de um ponto de vista diferente. O médico “esgotou seus recursos” e no outono de 1952 pediu conselho à Clínica Tavistock. Como já mencionei, organizamos uma espécie de serviço de emergência para esse tipo de situações, com a única condição que o médico esteja disposto a continuar o tratamento de seu paciente. Como essa paciente (Caso 20, Sra. N) foi uma das primeiras enviadas nesse esquema, o relatório inicial do médico foi muito consciencioso e longo, e teve de ser um pouco resumido: CASO 20 Cefaléias durante doze anos. Começaram depois de haver desmamado seu filho de 6 meses, e desde então a incomodam. Raros intervalos, no máximo de dois meses. Apare© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
112
cem cerca de 10 minutos após se levantar, duram todo o dia e desaparecem ao anoitecer. Se toma comprimidos para acalmá-las, as dores aparecem horas mais tarde. Descreve as cefaléias como extremamente intensas e que lhe tiram toda alegria de viver. A dor se localiza sobre os olhos e a paciente experimenta a sensação de que tem uma faixa muito apertada ao redor da cabeça, que fica muito quente. A radiografia dos seios da face não mostrou alterações. Tem noites ruins. Experimenta uma estranha sensação em todo o corpo, como se alguém lhe estivesse fazendo cócegas da cabeça aos pés. À tarde sente-se agitada, não consegue ficar quieta. Inquietude, sobressalto. Já consultou três ou quatro médicos. Um lhe examinou os olhos, outro disse que era um problema nervoso e lhe deu fenobarbital, e outro declarou que estava anêmica e lhe receitou ferro. O pai era chofer e jardineiro, e mudava de emprego com freqüência, de modo que se mudava muito. De acordo com a paciente era um homem temperamental, colérico, dado a enfurecer-se por qualquer coisa. A mãe sempre temia dizer algo que o incomodasse. A paciente vivia bem com ele, melhor do que a mãe. É a segunda de quatro irmãs. Dava-se bem com elas e com a mãe. Sua vida escolar foi feliz e rotineira. Aos 16 anos, depois de abandonar a escola, quis estudar balé, mas o pai não achou uma boa idéia, de modo que ingressou em um escritório, onde trabalhou como taquígrafa e datilógrafa. Não experimentou ressentimentos ante a frustração de seus desejos, embora nunca sentisse inclinação para o trabalho de escritório. De todo modo agora não se importa, pois só trabalha dois dias por semana. Aos 21 anos casou-se com um homem dez anos mais velho. Antes de casar-se teve grande número de namorados, mas nada sério. Desejava casar-se com seu atual marido, e não simplesmente sair do escritório. Quando começou a guerra tinha um filho de poucos meses de idade. Em 1940 foram evacuados para uma aldeia, enquanto o esposo permanecia em Londres ocupado em tarefas de guerra essenciais; de quando em quando vinha vê-la. Uma bomba lançou-o pelos ares, mas não sofreu feridas graves. Durante algum tempo seu temperamento se alterou, e era muito difícil lidar com ele. Esteve sem trabalhar curto período, e logo se reuniu a ela para descansar quinze dias. Nada lhe interessava, nem sequer a criança, o que ela achou muito estranho. Nesta época começaram as dores de cabeça, não consegue precisar melhor. O casamento foi muito feliz. Disse que os primeiros anos foram os mais felizes de sua vida, e sempre pensava que aquilo era bom demais, e que não podia durar. Nunca teve outros casos amorosos. Temia muito engravidar pela segunda vez, e durante alguns meses não permitiu que seu esposo chegasse perto dela. Quando finalmente aceitou ter relações sexuais, ficou muito preocupada com uma possível gravidez. Em 1945 regressou a Londres e foi a uma clínica para o controle de natalidade, depois do que seus temores a abandonaram. Não se opõe a ter outro filho, exceto pelo fato de que não vivem em sua própria casa. Sempre quis possuir sua própria casa, e nunca a teve. Mas a mulher que compartilha a casa onde agora vivem é muito simpática, e se dão bem. O fato de não possuir casa própria foi a razão principal que a moveu a trabalhar depois de ter se casado. Desejava sair dessa casa. Esse problema não preocupa ao marido e ela desejaria que o inquietasse mais, pois então se esforçaria para achar uma solução. Há pouco a paciente saiu de Londres durante umas férias que duraram quinze dias. As enxaquecas desapareceram por uma semana voltando depois de um jogo, e no transcurso da segunda semana as teve diariamente. É uma mulher jovem, agradável, bastante bonita, que não dá a impressão de que sofre muito. Sempre está bem vestida, e não consigo arrancar nada que explique essas cefaléias. Insiste em que apesar de certos problemas menores, como o da casa (situação que afinal de contas nada tem de grave), sua vida é feliz e satisfatória. Gostaria de consagrar-lhe o tempo necessário, se me dissessem o que devo fazer. Por hora, esgotei meus recursos, razão pela qual a envio à Clínica Tavistock. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
113
Resolvemos que um psicólogo* realizaria um teste sobre a paciente — o teste de Rorschach ou o Teste de Apercepção Temática — e que seria examinada por um psiquiatra, e que ambos, sem confrontar previamente seus relatórios, transmitiriam suas observações ao seminário. O psicólogo relatou: A Sra. N é uma mulher de aspecto cordial, com o rosto vivaz e expressivo de uma histérica. Seu modo de ser aparenta absoluta “normalidade”. Mostrou-se excessivamente disposta a cooperar com o teste, embora fosse necessário apressá-la de vez em quando. Este é um TAT de muito difícil interpretação clínica, porque não oferece características muito patológicas. O material é quase completamente convencional e poderia ser de qualquer pessoa normal em estado de conflito consciente ou semiconsciente a respeito de uma decisão importante, e que experimentasse um sentimento de culpa em relação com esse problema. O TAT reflete um problema dominante: saber se a paciente deve continuar em certa situação que é fonte de insatisfação, ou se deve romper com esse estado de coisas e procurar algo desconhecido porém mais excitante. Um tema desse tipo aparece em oito das 13 histórias... É difícil determinar em que nível convém interpretar esse material. Pode-se dizer que a estrutura caracterológica é histérica, que em sua conduta ao longo do teste a paciente estava negando que as ansiedades expressadas no teste fossem reais, que a paciente revela elevada proporção de sentimentos de culpa e de autopunição, que vê nos homens figuras sexuais superpoderosas, ante as quais tem que inclinar-se; mas, além desses aspectos de caráter muito geral, os temas não revelam certa conseqüência interior que aponte uma desordem de caráter subjacente. No final do teste, tive a impressão de que a paciente expressava um conflito que estava muito próximo da superfície, e que provavelmente era fruto das circunstâncias concretas de sua vida. Sente que provavelmente se acha em um conflito de lealdade entre o esposo e algum outro homem, e que suas dores de cabeça eram expressão direta da autopunição que se infligia nesta situação. Uma das histórias fala da mulher a quem sua filha viu fazendo amor com um homem que não é o marido. Conclui na maneira ingênua dos histéricos: “Sei que minha filha não verá com bons olhos esse assunto.” Esse incidente assume particular relevo quando ao final do teste a paciente afirmou que sua filha sempre pode dizer antes quando ela sofrerá uma de suas enxaquecas. Talvez haja errado completamente a interpretação do caso, mas se uma personalidade histérica, ainda razoavelmente sadia, se visse afetada por um conflito como o que acabo de descrever, eu esperaria precisamente esse tipo de TAT. Fiquei com a impressão de que tinha pelo menos consciência parcial do problema, mas que não estava disposta a admiti-lo.
Por fim o relatório do psiquiatra, também um pouco extenso, como o do clínico, devido ao mesmo excesso de zelo:
Pouco pode acrescentar-se à história clínica do Dr. C, salvo a repetir que a Sra. N sofre de suas enxaquecas há aproximadamente doze anos. Apresen-tam-se com bastante irregularidade. Os remédios não lhe trazem maior alívio, e os demais exames físicos trazem sempre resultados negativos. Às vezes se vê livre de suas enxaquecas, mas isso é raro. *Decidiu-se incluir no livro alguns dos relatórios dos testes psicológicos no sentido de mostrar o trabalho do seminário também por este ângulo. Estes relatórios podem ser algo surpreendentes para pessoas que não estão familiarizados com eles. Podem achar, por um lado, que é improvável que um psicólogo obtenha tantas e tão íntimas informações a respeito da doença do paciente; conseqüentemente, o conjunto pode dar a aparência de adivinhação sem fundamento. Outros podem achar que, se esse tipo de penetração pode ser obtido apenas através um teste psicológico, para que perder tempo com entrevistas psiquiátricas?
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
114
Tudo que a excita tende a provocar enxaqueca, e pouco importa que o fator desencadeante seja agradável ou desagradável. O mesmo ocorre quando pratica exercícios físicos mais ou menos enérgicos, por exemplo jogos ou danças. Em troca, caminhar alivia as enxaquecas. Quando lhe acometem as dores seu aspecto deve ser muito diferente, fazendo com que sua filha, de 13 anos, saiba sem necessidade de perguntar se a mãe tem ou não enxaqueca. Em tais ocasiões a Sra. N se sente deprimida e irritável; perde toda sua energia e não pode suportar os ruídos. É uma mulher cheia de preciosismos, quase até o ponto do maneirismo, com um rosto hebetado, gestos atraentes, tudo o que suscita uma impressão de “correção”. De acordo com o que ela mesma diz em sua vida não há problemas de nenhuma natureza, só o fato de que não tem sua própria casa e que deve conviver com outras pessoas. Na verdade a paciente ocupa um andar superior, completamente independente, onde ninguém pode se intrometer. É possível que tudo isso constitua experiência de reminiscências infantis, quando pelos primeiros dez ou mais anos, a família acompanhou o pai, que desempenhava as funções de motorista ou jardineiro tinha e de viver nas dependências destinadas aos criados, “entre outras pessoas, não em sua própria casa”. Outra chave do problema pode ser o fato de que o pai e a mãe, ambos com mais de 70 anos, vivem agora em casa própria, de uma pensão de velhice e das economias do pai. Os dois estão bem, mas o pai costuma preocupar-se com sua própria situação econômica, que julga incerta. Em realidade, pelo que diz a Sra. N, ambos estão comodamente instalados e vivem bem. Utilizei esse problema como trampolim para penetrar através da superfície absolutamente tranqüila que a paciente oferece ao profissional. Como tentativa, interpretei que talvez também ela estivesse inquieta por problemas que não eram muito importantes. Replicou-me dizendo que é o tipo de pessoa que tende a excessiva auto-exigência. Necessita terminar as coisas, “sente que tem mais trabalho do que tempo”, é-lhe indispensável “correr de um lado para outro” para cumprir suas obrigações. Embora seu emprego, de poucas horas, seja fácil e agradável, sempre passa noites más às quartas-feiras porque tem que ir ao trabalho às quintas e sextas. Foi bastante difícil conseguir que esclarecesse esses aspectos, pois constantemente tratou de confundi-los, por assim dizer, e desviar-me da pista mencionando fatos que contradiziam toda relação possível entre seu caráter e as enxaquecas. Depois que lhe assinalei que é muito importante para ela convencer a todo mundo, incluindo a si mesma, de que tudo está Observamos ambas as reações em nosso seminário. Entretanto, sob o impacto de maior experiência, estas opiniões iniciais exageradas se abrandaram e as pessoas gradualmente reconheceram que, embora estes testes psicológicos projetivos sejam de grande valor como auxiliares para o diagnóstico (como os raios X, por exemplo), podendo-se mesmo às vezes basear neles o diagnóstico, como regra a entrevista psiquiátrica, a despeito de suas dificuldades e limitações, constitui ainda nosso princIpal ponto de apoio, pelo menos por enquanto. Não quero discutir aqui os princípios e as técnicas dos dois testes que foram utilizados em nosso trabalho, pelo que aconselhamos a consulta de literatura especializada. É suficiente mencionar que os dois testes utilizados foram: a) o bem conhecido Teste de Rorschach, em sua forma original, embora as respostas dos pacientes tenham sido interpretadas de acordo com pontos de vista e técnicas mais recentes. b) o Teste de Apercepção Temática. A forma utilizada foi aquela criada pelo Sr. Phillipson, Psicólogo Chefe da Clinica Tavistock, que o chama de Teste das Relações Objetais. Consiste, além de um cartão branco, de três séries de quatro figuras, cada uma retratando, de forma algo sombreada, uma pessoa, duas pessoas, três pessoas e situações de grupo. Mostra-se essas figuras aos pacientes e pede-se que lhes dê vida em sua Imaginação, compondo uma breve história, descrevendo como a situação social se formou, o que está acontecendo e como termina. O teste é projetado para mostrar como o paciente vê diferentes situações sociais e que papel ele tende a desempenhar nelas. O material do teste e a técnica de administração e interpretação foram recentemente publicados em forma de livro.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
115
perfeitamente bem, ela então começou a falar de suas “agitações”. Quando a paciente pode manter-se serena e em paz, relaxa-se e dorme, seja qual for o lugar em que se encontra — no cinema ou no teatro — ou, pelo contrário, sofre espasmos de inquietude, e deve sair para dar um longo passeio ou acalmar-se com aspirinas. Estes espasmos sobrevêm não só nos teatros e nos cinemas, mas também, mais freqüentemente, durante a noite, em casa, e então tem que levantar-se da cama e caminhar, preparar chá ou tomar algum remédio. Finalmente pôde dizer-me algo com respeito a sua vida sexual, embora suspeito que Pie ofereceu um quadro pouco verídico. De acordo com suas palavras tudo vai perfeitamente bem, tudo é muito satisfatório para os dois, embora ocorra somente uma vez cada 15 dias aproximadamente, e a principal razão reside em que ela está geralmente cansada, e quando o esposo se deita já está dormindo. Finalmente quando soube que faltavam alguns minutos para concluir a entrevista, mencionou que no campo, onde refugiou-se, “conheceu” alguns homens que foram muitos bons amigos. Não creio que haja existido relações sexuais, mas suspeito de intensos jogos amorosos, sem chegar ao coito propriamente dito. Diagnóstico: superficialmente se percebe uma supercompensação muito bem integrada, tudo perfeitamente bem. É muito provável que essa situação só se possa obter graças a uma forte pressão interior e, na minha opinião, as enxaquecas constituem uma espécie de manômetro que reflete a verdadeira pressão. Outro meio de manter o equilíbrio consiste na atividade esgotadora que desenvolve e que lhe consome todo o tempo, atividade destinada a conseguir uma coisa própria, em que não haja gente perigosa. Quando não está ocupada, especialmente em coisas que a excitam — teatro, cinema, danças, cama —, tem cefaléias, adormece, ou fica agitada o que a obriga a fugir. Posso apenas limitar-me a conjecturar que o perigo que ela teme é a excitação sexual, mas não tenho material que o comprove. Em resumo, considero que o caso é uma mistura de supercompensação obsessiva e de conversão histérica. É muito difícil formular ao médico recomendações com respeito ao procedimento terapêutico. Existem várias possibilidades: 1) Deixar que continue em seu estado de equilíbrio precário, admitindo que não é possível ajudá-la e aceitando a censura correspondente, ao mesmo tempo que se trata de animá-la com uma atitude de compreensão. 2) O médico poderia tratar de convencer a paciente da conveniência de diminuir seu ritmo de trabalho, ao mesmo tempo que mantém toda a terapia em um nível discretamente nacional, uma espécie de reeducação compreensiva destinada a conquistar o melhor sistema de vida. 3) Se minha última conjectura é correta, poder-se-ia tentar trazer à superfície suas fantasias sexuais reprimidas e elaborar, em colaboração com a paciente, algum modo que permitisse satisfazê-las melhor do que através da conversão histérica.
Outra razão pela qual transcrevo os três relatórios, consiste em que os mesmos permitem formar uma idéia da ajuda que a clínica psiquiátrica pode oferecer ao clínico geral. Como já disse, os três relatórios são um pouco extensos; agora, depois de mais de três anos de experiências, todos poderíamos ter feito melhor. Entretanto, a preparação de relatórios melhores levaria inevitavelmente à diminuição do tempo de acompanhamento dos casos seguintes. O Dr. C concluiu seu informe com a frase: “Esgotei meus recursos.” Os relatórios da clínica explicaram-lhe por que havia ocorrido tal coisa. A Sra. N possuía um ego bastante rigoroso, e bastante bem integrado, o qual havia desenvolvido um eficiente sistema de defesa, consistente numa combinação de mecanismos obsessivos histéricos, graças aos quais apresentava uma barreira quase impenetrável. Também revelavam, entretanto, o que constituía provavelmente o melhor ponto de ataque — as intensas fantasias sexuais © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
116
da Sra. N, baseadas possivelmente em certas experiências das quais se sentia culpada. A história do tratamento demonstrará até que ponto foi correta a hipótese diagnóstica. Os relatórios foram submetidos à discussão em novembro de 1952 e o Dr. C decidiu aceitar a mais ambiciosa das recomendações que lhe foram sugeridas, e tentar trazer à superfície os desejos e as fantasias heterossexuais da paciente. Mas como existia a possibilidade de que o síndrome fora mera conseqüência da tensão pré-menstrual, decidiu em primeiro lugar tentar medicá-la com progesterona — o que foi aceito, mas não aprovado pelo psiquiatra. Como isso não deu resultados, renunciou-se a sua aplicação, em janeiro de 1953. A partir daí, o Dr. C viu regularmente a paciente duas vezes por semana, aproximadamente durante três meses, umas 20 vezes no total. Em diversas ocasiões informou ao grupo sobre os progressos do tratamento. Transreverei aqui somente o informe retrospectivo dos acontecimentos, datado de 7 de novembro de 1955:
De humor irritado, costumava brigar com a irmã maior, até que casou. Agora reprime sua cólera, por exemplo, quando um homem no escritório faz investidas contra ela — e contra as outras moças. Muitos sonhos de agressão e de frustração, por exemplo, que a perseguem com facas e revólveres, ou que foge de animais selvagens; tenta encontrar coisas ou atingir algum lugar, e é impedida. Insatisfeita com sua situação de empregada, e com a falta de ambição do marido. Lamenta que esse não tenha sido aceito no Exército — poderia ter sido promovido. Não é possível incitá-lo — mas ela nada diz. Desde a adolescência mostrou-se reservada para com os homens e com os pais — e agora adota a mesma atitude frente ao esposo e à filha de 12 anos. Sente-se mais natural entre crianças de tenra idade. Quando a evacuaram ela era a mulher mais jovem da aldeia. Os habitantes do lugar falavam dela. Sentia-se excitada e repugnada pelos casos amorosos de outras mulheres. Ao final desse período teve uma relação sexual com um polaco (oficial!). Realmente enamorada desse homem. “Pela primeira vez em minha vida perdi o controle de meus atos.” “Inteiramente possuída de cólera” frente à indiferença do marido quando esse se reuniu a ela, durante a sua licença. Recordou que as enxaquecas começaram depois que um ex-namorado lhe escreveu quatro ou cinco cartas apaixonadas. Queria que a paciente fugisse com ele, mas ela não tinha maior interesse pelo homem. De qualquer modo as cartas a perturbaram. Mesmo que sozinha, corava. Disse a ele que parasse de escrever.
Em abril de 1953 o Dr. C e sua paciente se perguntaram se havia chegado o momento de “parar”. Por um lado, as enxaquecas haviam desaparecido, e por outro parecia que a Sra. N havia perdido interesse no tratamento. Embora algo repetitivo, citarei o relatório do médico ao seminário:
Esta era a mulher que sempre sofreu enxaquecas quando fracassava em algo. Sentia muita frustração por seu marido, homem sem ambições e satisfeito com a situação em que se encontrava. Ela, em troca, necessitava possuir coisas tão boas ou melhores que as de suas amigas, e queria progredir e melhorar sua situação econômica a cada ano que passa. Havia-lhe sugerido que conseguiria satisfazer suas ambições se trabalhasse por sua conta própria, por exemplo, abrindo uma livraria e trabalhando para si mesma, em lugar de fazê-lo para outros, como era o caso agora. Achou uma boa idéia, e disse que pensaria nisso, mas desde então não tornou a ver-me regularmente. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
117
Tropeçamos aqui com o mesmo problema que no caso de Peter, embora a forma seja um pouco diferente. Os sintomas de apresentação, as enxaquecas desapareceram nos dois casos, e para ambos os pacientes a vida se tornou mais fácil e feliz. Em ambos os casos permaneceu sem solução uma série de sintomas e problemas neuróticos, embora a juízo do médico nenhum deles fosse muito grave. A diferença consistiu em que, no caso de Peter, o médico — depois de prolongado e íntimo conhecimento — realizou quase todo o trabalho terapêutico em uma só entrevista, e logo se deteve, enquanto que no caso da Sra. N, a terapia foi prolongada e, ao chegar a certo ponto, a cooperação da paciente fraquejou. Devia o clínico geral concordar em “parar” o tratamento, ou pressionar a paciente para continuar? Depois de refletir sobre o problema, o Dr. C decidiu aceitar a “oferta” de parar. Uma razão que contribuiu para seu assentimento foi a apreensão expressada por vários membros do grupo, que temiam que novas explorações fizessem periclitar o casamento da Sra. N, pois o equilíbrio era um tanto instável. O relatório seguinte é de dezembro de 1953, isto é, aproximadamente oito meses após o término do tratamento. A Sra. N não havia comparecido ao consultório durante sete meses, mas há um mês havia voltado. Suas cefaléias são agora assunto do passado. Sofre ainda de outros problemas, quando se sente nervosa não pode permanecer sentada em lugar nenhum, e tem de levantar-se à noite para preparar-se chá etc. No cinema dorme ou quer sair imediatamente. Ainda toma dexedrina. Ainda muito ambiciosa. Quando se perguntou qual devia ser, em sua opinião, o próximo passo, o Dr. C replicou: “Não está gravemente enferma, mantém-se perfeitamente, e não tem cefaléia. Tem certas dificuldades, por exemplo, a inquietude, mas elas não justificam vê-la durante algumas horas por semana.” Em junho de 1954, a Sra. N foi mencionada novamente: A última vez discutimos se era ou não conveniente aprofundar a análise do caso. Não a vi durante vários meses. Melhorou das enxaquecas e dos outros sintomas, e está se esforçando por progredir na vida, ganhar mais dinheiro para comprar outro carro, etc., tudo como de costume. Não me pediu comprimidos. O último informe, datado de outubro de 1955. não trazia novidades: Não tornei a ver a Sra. N. Deixou de trabalhar na vizinhança em julho de 1954, mas não vive longe de meu consultório, de modo que facilmente poderia ter contato comigo se assim o desejasse. Encontrei-a na rua em junho de 1954. Sua atitude como sempre era suave e sorridente, e disse que se sentia muito melhor. No caso da Sra. N o processo se desenvolveu favoravelmente. O médico, embora bloqueado a princípio, pelas eficientes defesas da paciente, pôde aproveitar a ajuda fornecida pela clínica, realizou um bom trabalho e alcançou um certo êxito. O caso não culminou na cura total, mas a vida da paciente se tornou incomparavelmente mais fácil. Ao mesmo tempo, tornou-se visível que a cooperação da paciente não era digna de confiança. Não foi possível resolver, nem sequer abordar, boa parte dos sintomas, mas o médico considerou que tanto a paciente como ele se teriam visto obrigados a consagrar muito trabalho e esforço à solução dos mesmos. Além disso, existia o perigo de que o casamento sofresse as conseqüências. De modo que, de acordo com a paciente, o médico resolveu interromper a terapia — talvez corretamente. Infelizmente, a paciente não voltou a consultar seu médico desde junho de 1954, pelo que não sabemos se a razão, pela qual não voltou ao consultório, está em que se sentiu melhor, ou se isso se deveu a descontentamento com o Dr. C, tendo mudado de médico, ou com a medicina em geral, o que a teria levado a tratar de resolver pessoalmente seus problemas. Mas talvez eu me esteja mostrando demasiado cauteloso, e a explicação mais provável consista em que a paciente tenha estado bastante bem. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
118
Capítulo
13
A Atmosfera Psicológica Especial da Clínica Geral
Nos dois capítulos anteriores examinamos com certo detalhe dois aspectos da psicoterapia na clínica geral: “como começar” e “quando parar”. Detivemo-nos um pouco neles porque ambos os problemas desempenham um papel incomparavelmente mais importante na clínica geral do que na psiquiatria ou, na verdade, do que em qualquer outro ramo da medicina. Quando um paciente chega a um ambulatório de psiquiatria ou a um consultório da Harley Street, há muito que já começou. A decisão de começar foi tomada por ele mesmo ou por seu clínico geral; o psiquiatra não interveio no assunto. Sua ação consiste em seguir as pegadas do paciente e, se isso é possível, alcançá-lo. Este ato de pôr-se a par do paciente é a técnica da entrevista psiquiátrica da qual não trataremos nessa obra. Desejo destacar aqui que a técnica da entrevista psiquiátrica e a que aplica o clínico geral quando resolve “começar” diferem consideravelmente em muitos aspectos. Sem dúvida, certo número de características são comuns a ambos, mas seria totalmente injustificado afirmar que o clínico geral deve ir ao psiquiatra para que lhe ensinem “como começar”. A parte que nossa técnica de entrevista psiquiátrica está longe de possuir o fundamento seguro, o grau de verificação prática e a padronização que caracteriza o exame clínico de rotina, os psiquiatras têm certamente muito pouca experiência com pacientes que se encontram na fase “não organizada” da doença. Precisamente nessa fase reveste-se de maior importância a decisão de “começar”. O modo de começar pode exercer fundamental influência sobre a “organização” da doença do paciente. Nós psiquiatras estamos em uma situação um pouco melhor quando se trata do segundo dos problemas apontados, quer dizer, “quando parar”. A mesma dificuldade aparece em todos os casos psicoterápicos, e deve ser resolvida oportunamente pelo profissional. Entretanto, a semelhança entre as duas situações não vai muito além disso, pois para o paciente de um clínico geral o fato de interromper o tratamento reveste-se de um significado completamente diferente do que possui no caso de um paciente de um psiquiatra. Este último só mantém uma forma de relação com o paciente. Sem dúvida, é uma relação rica e altamente envolvente, mas transcorre por um só canal. Interrompida, pouco importa se por iniciativa do paciente ou do terapeuta, rompe-se o que podemos considerar, apesar © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
119
de toda sua complexidade, o único fio condutor entre ambos. Essa ruptura reveste-se de um caráter definitivo, que falta no caso de um paciente do clínico geral. A relação entre esse último e seu paciente está formada por numerosos fios, os quais são mais sólidos na proporção da fidelidade do clínico geral a sua própria vocação. De modo que o clínico geral pode correr certos riscos com seu paciente, atitude que está vedada ao psiquiatra. Embora se interrompa a relação psicoterápica propriamente dita, o paciente pode regressar ao consultório, e assim o faz, com um resfriado, uma indigestão, um panarício, ou um dedo machucado, ou para vacinar seu filho e assim por diante, ad infinitum. Enquanto o psiquiatra raramente se pergunta “como começar”, e o problema relativo ao momento em que convém interromper é para ele uma decisão fundamental de conseqüências graves e definitivas, para o clínico geral ambas as questões são, por assim dizer, ingredientes de sua rotina diária. Podem aparecer em qualquer momento no curso de sua prática, e ele tem que tomar decisões pressionado pelas circunstâncias. Sem dúvida, em geral o médico comum não demonstra muito espírito crítico no exame das conseqüências de suas decisões; freqüentemente o valor prático das mesmas é o único ou seu mais importante critério. Seu sentimento de culpa, originado na consciência de que talvez não esteja fazendo o que é correto, e umas das razões pelas quais aceita tão submissamente a pretensão do psiquiatra quando esse afirma conhecer a maior parte das soluções para a psicoterapia na clínica médica. A outra razão é a perpetuação da relação professor-aluno, já discutida no Capítulo 9. Os relatórios de evolução de nosso seminário de pesquisa nos permitiram estudar de perto a relação particular que se estabelece entre o clínico geral e seus pacientes e sua influência sobre estes dois problemas interligados. Vejamos o que podemos aprender deles. Um bom começo será talvez o caso de Peter (Caso 19). Em certa época do tratamento, quando Peter não respondeu ao convite do Dr. G e não apareceu no consultório, o tratamento continuou, discretamente, por intermédio da esposa de Peter, utilizando para este fim os exames pré-natais aos quais ela devia se submeter. Os resultados foram muito aceitáveis e, apesar da resistência inicial de Peter à idéia de ter um filho, “o menino chegou e o mundo não era demasiado hostil”, para usar as palavras do Dr. G. É justo dizer que a nenhum psiquiatra ocorreria continuar o tratamento de um paciente que se nega a vir ao consultório, utilizando com esse fim as consultas pré-natais da esposa. Mesmo a discussão do tratamento interrompido com uma esposa (ou marido) acha-se em geral contra-indicada na prática psiquiátrica — salvo, talvez, no caso de um paciente gravemente psicótico. A atitude que não é aconselhável, que é impossível ou inconcebível para um psiquiatra, pode dar bons resultados no caso de um clínico geral. Muitos médicos se surpreenderiam talvez ante o fato de que se atribui tanta importância a algo que é evidente por si mesmo. O que é mais natural do que o fato de que uma mulher grávida consulte o médico da família, que ambos conversem sobre o esposo, no qual ambos estão sinceramente interessados, e que neste momento constitui um problema? E igualmente natural deve ser que o marido esteja ao par dessa conversação, e aceite — e quase certamente se beneficiará a longo prazo, se o médico possui capacidade suficiente. Os psiquiatras têm suas próprias idéias do que pode ocorrer nessas circunstâncias. Podem mesmo ter idéias acertadas, mas seu conhecimento de primeira mão sobre o que se pode e o que se deve fazer nesses casos é tão pequeno, que certamente não os autoriza a desempenhar o papel de mentores oniscientes. Aqui enfrentamos novamente a necessidade de pesquisa adequada, dirigida conjuntamente pelos clínicos gerais e os psiquiatras, numa sociedade de partes iguais. Para maior ilustração, voltarei ao caso de Srta. M, o Caso 10 do Capítulo 16. Já vimos “como começou o médico”, quebrando impetuosamente as defesas da paciente, o que lhe permitiu obter provas confirmatórias do seu diagnóstico, no sentido de que o verdadeiro problema da Srta. M era seu infeliz caso amoroso, e as preocupações e temores que o mesmo lhe provocara. Talvez as defesas da paciente fossem demasiado fortes ou talvez a técnica do médico tenha sido muito brusca; por uma ou outra razão a Srta. M se manteve em sua © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
120
negativa de aceitar as propostas psicoterápicas do Dr. R. Em fevereiro de 1954 recebemos o último relatório sobre esta paciente, quando ainda mantinha seu vinculo com o armênio, raiz, segundo o diagnóstico do Dr. R, de suas numerosas e leves doenças respiratórias. E agora continuemos o relato. O Dr. R informou nos fins de dezembro de 1954:
Em fevereiro de 1954 apresentei a minha última comunicação sobre o caso desta paciente. Regressou a 11 de novembro de 1954, queixando-se de “ataques de náuseas e vômitos” associados a vagas dores abdominais. Já os apresentava há um ano, mas havia piorado muito durante os últimos dois ou três meses, particularmente pouco antes da menstruação. As regras eram bastante irregulares e vinham precedidas de dores durante uma semana. O exame físico da língua, o pulso, o abdômen etc., foi negativo. (Não foi feito o exame vaginal.) Enquanto examinava o abdômen perguntei-lhe: a que associava as náuseas, e me explicou que quando era mais jovem sempre enjoava quando se excitava; então fez uma pausa, como se se lhe houvesse ocorrido algo, e disse que as náuseas haviam começado pouco depois de ter relações sexuais com seu namorado (o armênio). Explicou-me então, com certa dificuldade, que ele havia regressado a seu país, e que ela havia compreendido que ele não a amava realmente, mas somente a “utilizava para satisfazer seus desejos”. Mostrou-se muito amargurada ante essa situação, e eu adotei uma atitude de compreensão, mas recordei-lhe que isso mesmo já havia sido conversado durante nossa última entrevista, em fevereiro. Depois de uma longa entrevista, a paciente afirmou que agora acreditava ver mais claro. Discutimos o que era o que ocorria agora quando se sentia excitada sexualmente (não conhecia a palavra “masturbação”, e depois de uma simples explicação disse que não, que não fazia tal coisa. Não estava saindo com rapazes, e não se sentia excitada. Disse que agora não tinha mais preocupações, exceto esses “pontos” — acne). Sugeri que a acne podia ajudá-la a manter distanciados os rapazes, se isto era o que desejava para impedir novos casos amorosos, que contribuíam para perturbá-la. Sorriu, e pareceu haver entendido o que eu queria dizer-lhe, e replicou que talvez mais tarde teria menos medo dos “homens”, e voltaria a sair com eles. Receitei-lhe comprimidos de Beladenal e pedi que voltasse a ver-me duas semanas depois. Em 29 de setembro de 1954 informou-me que se sentia muito melhor. Depois de tomar os comprimidos durante dois dias desapareceram todos os sintomas, e depois a menstruação seguinte começou na data exata, sem dores antes das regras nem enquanto duraram. Sugeri-lhe outra consulta mas ela disse que voltaria a ver-me em qualquer momento se isso fosse necessário. Uma quinzena depois, fui chamado para atender um jovem, recém-chegado a Londres, no mesmo endereço da Srta. M (é uma casa de pensão). Sofria uma infecção aguda por vírus (do tipo da gripe) e, enquanto fazia minha segunda visita, referiu-se a “minha namorada que lhe telefonou para pedir que viesse ver-me”... sua “namorada” é a Srta. M! Poucos dias depois vi novamente a Srta. M — com gripe clássica — e quando veio ao meu consultório para que lhe entregasse o seu certificado trouxe seu namorado para me apresentar. Agora estão noivos!
Se a Srta. M tivesse sido tratada por um psiquiatra de enfoque igual ou semelhante ao do Dr. R, qualquer das numerosas rupturas teria sido quase seguramente definitiva. Mas como o Dr. R era seu clínico geral, a paciente pôde retornar a ele uma ou outra vez, não obstante haver recusado inequivocamente a ajuda psicoterápica oferecida. Poder-se-ia responder, talvez com razão, que um psiquiatra capaz teria utilizado métodos menos rudes e deste modo teria evitado ferir os sentimentos da paciente, e despertar intensa indignação, ressentimentos e resistência. Seja como for, devemos reconhecer que o ritmo do tratamento teria sido provavelmente mais lento e que talvez tivesse sido necessário investir um © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
121
número maior de horas de trabalho para obter o mesmo resultado. A esse aspecto me referia quando afirmei que o clínico geral pode correr certos riscos, dado que o paciente mantém com ele relações que não são exclusivamente de caráter psicoterápico. Posso mencionar de passagem que parte do trabalho psicoterápico foi realizado enquanto o Dr. R palpava o abdômen da paciente. Trata-se de uma situação perfeitamente normal no caso do clínico geral, mas tenho dúvidas em relação a quantos psiquiatras poderiam utilizá-la do mesmo modo. Posso acrescentar também que numerosos clínicos gerais — como se comprovou no curso de nossas discussões — separam cuidadosamente o trabalho psicológico das tarefas de caráter físico; enquanto o paciente está nu, só se efetua exames físicos, e o exame psicológico é deixado para o momento no qual o paciente se vestiu novamente. Em um dos capítulos seguintes voltaremos a falar sobre essa diferença de técnica. Outro aspecto interessante desse caso é a atitude firme do Dr. R. Logo que compreendeu que tinha a chave do assunto, “começou” o tratamento em todas as ocasiões em que teve ao seu alcance a paciente, independente dos sintomas que ela pudesse oferecer-lhe. Essa atitude firme se manteve inabalável, apesar das negativas tenazes da paciente. Sem dúvida, a confiança do Dr. R em seu próprio diagnóstico ajudou a Srta. M a suportar com bastante ânimo o abandono pelo armênio, seguido por meses de solidão, e reconhecer eventualmente que, afinal de contas, seu médico tinha estado certo. Inclusive poderíamos sugerir que o fato de que o Dr. R viu através de suas defesas, e, por assim dizer, estivesse do lado da personalidade mais positiva da paciente, ajudou-a consideravelmente a superar suas dificuldades. O epílogo, contido no relatório de acompanhamento, com data de novembro de 1955, parece confirmar esse ponto de vista. Até o fim a Srta. M permaneceu absolutamente fiel a si mesma. Deu a seu médico a satisfação de permitir-lhe que aplicasse um diafragma — dado a natureza de sua história, um fato muito importante — mas nada ainda lhe informou sobre seu casamento. Desapareceu novamente, mas ainda não se incorporou à lista de outro médico. É difícil determinar que parte dessa muito acentuada ambivalência se origina em seu caráter e individualidade, e que parte é reação ante a técnica do Dr. R. Mas, seja qual for a resposta, é seguro que sem a ajuda do Dr. R a paciente teria que enfrentar dificuldades muito maiores. Nosso próximo caso (Caso 21) demonstra novamente quanto maior pode ser a escala das “respostas” do clínico geral às “ofertas” de seu paciente. Este fator lhe permite em muitos casos enfrentar situações muito além das possibilidades técnicas do psiquiatra. O Dr. M, depois de tentar suas forças durante vários meses e de enfrentar graves dificuldades, em setembro de 1952 enviou a sua paciente, a Sra. Q, a nosso serviço de emergência. Aqui está o relatório correspondente: CASO 21 A Sra. Q, de 23 anos de idade, casada, sofre ataques de tremores. Freqüentemente tem dor na fossa ilíaca direita, pensa então que pode tratar-se de apendicite, pensa compulsivamente em uma operação iminente (embora intelectualmente saiba que não é provável que se trate de apendicite) e então tem o ataque de tremores. Caracterologicamente, a jovem é uma histérica, mas comprovei que é muito difícil penetrar em suas defesas. Admite que as interpretações são corretas, mas esse reconhecimento em nada modifica sua atitude. É muito apegada à mãe e não foi capaz de renunciar a seu papel infantil quanto a ela (a mãe dirige a casa, a Sra. Q só tem dinheiro para seus gastos imediatos, teve de regressar de seu apartamento mobiliado para a casa materna, já atulhada etc.). Com essa relutância a renunciar à mãe como objeto exclusivo de amor, conservou certo desejo do pênis, e se mostra incapaz de ser mulher. É frígida, teme ter filhos, e ainda lhe assusta a idéia de dançar. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
122
Costumava urinar na cama, morder as unhas, masturbar-se manualmente, e recorda vividamente que “brincava de médico” com seus irmãos. (O único instante que demonstrou certa emoção foi quando me relatava este incidente.) Possui intensa vida de fantasia, mas não foi capaz de relatar-me seu conteúdo. Odeia o pai, por quem se sente rejeitada. Vê no pai sobretudo o rival pelo amor da mãe. Quando se a escuta tem-se a impressão de que não só ficou fixada emocionalmente na primeira fase inicial do período edípico, mas às vezes retorna aos níveis anais (excesso de limpeza, preocupação com dinheiro, conduta sádica com o esposo). Mantém relações amorosas ilícitas com um ex-namorado, e se mostra despreocupada das possíveis conseqüências. Geralmente suas ansiedades profundas a preocupam tanto, que as dificuldades da realidade não a perturbam. A única coisa que importa é o presente, e o amanhã pode cuidar de si mesmo. Em certa ocasião me disse que costuma comprar toda a sua ração* mensal de doces e que a come de uma vez. Expliquei-lhe esse fenômeno em linhas superficiais, e se mostrou de acordo; mas me pareceu que essa interpretação, do mesmo modo que muitas outras, não produz o menor efeito. Atendo-a desde fevereiro deste ano, e no total teve aproximadamente sete sessões. Pareceu melhorar com respeito aos sintomas histéricos, mas as defesas de seu caráter se mantiveram inabaláveis. Deixou de vir, mas retornou há poucos dias e me explicou que os tremores haviam piorado como nunca; tenho a sensação de que não estou realizando nenhum progresso. Parece-lhe que seria melhor incluí-la num grupo dirigido por um especialista? Eu creio que sim, se a paciente estivesse preparada para enfrentar a desordem própria do grupo. Serei grato pela sua opinião.
Este relatório pertence também aos primeiros tempos de nosso projeto, e estou certo que o Dr. M redigiria hoje um relatório diferente. Por outro lado, ilustra bem a atmosfera em que se levou a cabo o tratamento da Sra. Q. Embora o Dr. M fosse um autêntico clínico geral, é evidente que conhecia bem a literatura psicanalítica e que usava a terminologia correspondente com facilidade, eu diria que inclusive com prazer. É quase seguro que com o mesmo prazer utilizou seus conhecimentos de conceito psicanalítico no caso dessa paciente, sob a forma de interpretações que disparou sobre ela. O caso foi discutido em princípios de outubro. O psicólogo** aplicou um Teste de Apercepção Temática e aqui transcreverei o seu relatório escrito. (Abundam os termos técnicos, mas devo acrescentar que ante o seminário apresentou suas observações em linguagem menos técnica, e as ilustrou com as próprias respostas da paciente.)
Contato inicial negativo: autêntica falta de cooperação, embora aparente cooperar quando sente que está recebendo atenção. Sentimentos agressivos, negativos, deslocados para as figuras: “figuras impróprias”, “uma confusão” “não são claras”. Lança as culpas de seu desempenho pobre nos defeitos das figuras, do mesmo modo que inconscientemente censura o psicólogo que não lhe dá o que ela pretende, rapidamente e sem condições. Exibe em sua conduta e em seus comentários sua permanente necessidade de apoio, e revela uma situação na qual o traço mais consistente é a desproteção. A interpretação de
*Chocolates e doces eram racionados na Inglaterra na época do relatório. **Ver nota ao pé da página no Capítulo 12, págs. 114-115.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
123
sua conduta provoca poucos ou nenhum efeito dinâmico, apenas uma aparência de aceitação, desmentida imediatamente pelo comentário ou conduta centrados em seu próprio eu. Seu comentário final consistiu em expressar incerteza sobre se deseja ser ajudada. Suas respostas às figuras são breves, ásperas, descritivas. Não há uma verdadeira história, nem interação de personalidades, nem elaboração de nenhum problema. Muitas interpretações ilógicas de seqüências e várias percepções concretas e extremamente incomuns. É muito difícil esboçar o quadro de um determinado tipo de personalidade talvez porque não exista. Concebe o mundo sobretudo do ponto de vista de suas necessidades infantis, e reage com pouco controle e considerável grau de projeção quando ditas necessidades não são gratificadas. Superficialmente se observa uma relação geralmente obsessiva com as pessoas e com o mundo; concebe o mundo de um modo bastante tosco, de acordo com as incongruências e contradições que ela mesmo encerra. As relações heterossexuais desempenham pequeno papel nas histórias; necessita que os homens lhe prestem atenção, teme que sua vida sexual seja conhecida e desaprovada, e em geral mostra considerável indecisão e ambivalência em suas relações com os homens. O quadro mais profundo sugere esforços para defender-se contra depressão muito grave, conseqüência da agressão infantil ante as frustrações das necessidades orais. Um tema dominante é a falta de apoio e de afeto, a rejeição por parte dos pais, a carência de comodidade e de diversões. As exigências orais diretas se intrometem, freqüentemente um tanto ilogicamente. Sua preocupação pela arrumação e limpeza é ao mesmo tempo uma expressão de cólera e de desprezo ante os pais que não satisfazem nem gratificam seus desejos, e uma tentativa de controle. O esforço obsessivo é, nela, uma defesa mais débil. Essencialmente está furiosa com o seio por havê-la frustrado e existe boa proporção de projeção paranóide. Essa projeção paranóide se translada nas suas fantasias sexuais, que a paciente teme possam ser devassadas e descobertas. Isto sugere que as relações fantásticas que determinam sua vida heterossexual sejam principalmente de caráter oral infantil. Em situações que implicam um desafio emocional direto de outras pessoas, o controle é pobre. Superficialmente haverá uma efusão de compaixão e de preocupação (provavelmente com fervor religioso), e mais profundamente acessos de raiva da rejeição infantil, agressão grosseira (fundamentalmente contra as mulheres?), fantasias de poder e de controle paralelamente a certa depressão (fútil?). Não é capaz de manter separados o mundo exterior e o interior, concebe a realidade exterior sobretudo do ponto de vista de sua fantasia. Sua capacidade de mudança é muito pouca: sob a superfície há excesso de agressão, muito poucas defesas efetivas e muito escassa capacidade de afeto real.
O psiquiatra ofereceu o seguinte informe:
Em si, o caso é bastante simples. É uma mulher imatura, narcisista e histérica, fortemente vinculada de um modo ambivalente à mãe, e ainda mais ambivalente ao pai. Sua atitude é: “Sou uma menina, todos devem cuidar de mim, e em compensação eu serei boa e amável e acomodada com todos.” Pelo que pude ver, as dores abdominais não são muito graves e, embora estivesse disposta a aceitar um tratamento cômodo para aliviá-las, no momento não está disposta a encarar nenhuma terapia que possa lhe causar tensão. As circunstâncias de sua vida são muito estranhas, mas muito características. Ela e o esposo vivem em um quarto na casa da mãe da paciente, e o quarto está cheio de móveis que eles compraram com a esperança de conseguir uma casa. O marido paga uma © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
124
quantia semanal à mãe da Sra. Q, e a mãe cuida deles, prepara a comida e se encarrega da roupa lavada. A Sra. Q nem sequer limpa bem seu próprio quarto, pois é muito difícil fazê-lo em vista da grande quantidade de móveis. Sua única atividade consiste em alguma costura, e às vezes ajuda a mãe a passar a roupa. Não tem dinheiro e lhe bastam alguns trocados que a mãe lhe dá do dinheiro do marido. O marido quer filhos, mas ela teme horrivelmente a dor, não é capaz de tolerar sequer a idéia de ter um filho. O marido é padeiro e tem que deitar muito cedo, de modo que a vida sexual do casal é muito menos intensa do que ela desejaria. De qualquer modo, suporta a situação e não se permite pensar, por exemplo, que pode seduzir o marido e fazer amor com ele. Evidentemente o Dr. M conhece tudo isso. O problema reside em saber o que fazer com a paciente, e eu deliberadamente centrei toda a entrevista nesse ponto. Com a charmosa belle indifference des hysteriques, a Sra. Q se manifestou de acordo com todas as minhas observações. Tratei de demonstrar-lhe que apenas está indo à deriva e que, como teme as conseqüências dessa atitude, fecha os olhos e se possível começa a dormir. De alguma forma sabe que dentro de dez ou 15 anos lamentará terrivelmente tudo isso, mas esse conhecimento a perturba muito pouco. O problema é: o que deve e o que pode fazer um clínico geral nessas circunstâncias? Pode decidir, já que a paciente não o faz, que esse tipo de vida é totalmente impróprio, que a paciente deve assumir a total responsabilidade de si mesma e de sua família e deve viver sua vida. É evidente que essa atitude despertará resistência na paciente, e o resultado será uma disputa amarga entre ela e seu médico. A outra possibilidade consiste em permitir que a paciente continue sua vida como o faz agora, mas essa atitude criaria grande sentimento de culpa no médico que, por assim dizer, ficaria tolerando sem mover um dedo que uma mulher jovem e fisicamente sadia, de boas possibilidades, destrua sua vida em troca de poucas vantagens imediatas. A causa real de todo problema é o temor da paciente à dor, que a todo custo pretende evitar. Obrigá-la a que se trate equivale a expô-la a situação traumática, e é muito provável que reaja fugindo, de modo que a minha recomendação consiste em que se coloque o problema franca, firme e repetidamente à paciente, mostrando sempre que nada se poderá fazer a menos que ela solicite. Isso é o que eu fiz, mas estou quase certo de que a influência dessa idéia se dissipará logo, de modo que o médico terá que começar quase que do princípio.
Os dois relatórios não coincidiam. O psiquiatra não duvidava da gravidade dos problemas, mas não considerava que o caso fosse totalmente desesperado. Não pensava em cuidar da paciente, mas alentava o clínico geral para que continuasse pacientemente, um passo por vez, disposto a suportar a aparição de longos intervalos vazios. Na realidade esse prognóstico facilitava o tratamento do caso por um clínico geral, mais que por um psiquiatra, sempre apressado por seu horário. O relatório do psicólogo era muito grave. Não achava a personalidade coerente, muito pouco controle sobre as exigências primitivas de sua própria personalidade, muito escasso contato com a realidade, muito pouca capacidade de transformação, etc. Essa discrepância nos desconcertou um pouco, pois os relatórios de ambas as fontes geralmente harmonizavam bem, confirmando-se e completando-se mutuamente. Depois de examinar a situação, decidiu-se pedir a outro psicólogo que submetesse a Sra. Q ao teste de Rorschach. Esperávamos que um teste diferente eliminasse parte da discrepância. O segundo teste foi relatado ao seminário uma quinzena depois. Dado ao relatório muito longo, e como, nos pontos principais, coincide com o teste anterior, citarei somente a síntese diagnóstica. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
125
É evidente que as defesas da paciente não são adequadas para a manutenção de sua saúde mental, mas são suficientemente estáveis para mantê-la em sua atual condição histérica imatura enquanto não se veja obrigada a enfrentar uma situação, na qual suas defesas se vejam ameaçadas. No momento controla suas ansiedades vivendo num mundo de fantasias no qual todos os monstros se disfarçam em animais de brinquedos, e desse modo consegue reprimir o desenvolvimento dos seus problemas psicóticos depressivos. Há muito poucos pontos fortes e é muito reduzida a capacidade aparente de percepção interior. É característico dessa paciente o fato de que, à medida que se exerce maior pressão durante o desenvolvimento do Rorschach, mais acentuadamente psicóticas se tornam suas respostas. Depois de examiná-la, fiquei com forte sensação de que seria perigoso penetrar em suas defesas, e que é melhor deixá-la como está.
De modo que o segundo informe não resolveu a discrepância, e por nosso lado não estávamos muito seguros da conveniência de que o médico embarcasse numa aventura terapêutica um tanto duvidosa. Uma semana depois, o Dr. M informou que, neste meio tempo, a avó materna da Sra. Q havia morrido. Isto significava que o avô que era inválido deveria mudar-se para a casa de sua filha (a mãe da Sra. Q). Deste modo, a paciente e seu esposo se veriam obrigados a sair do quarto que ocupavam, e a procurar outro lugar. Até então, segundo se havia previsto, a Sra. Q havia recusado as propostas do Dr. M, que a exortava a encarar frontalmente seus problemas. Decidiu-se deixar as coisas como estavam, mas — apesar dos dois relatórios dos testes — sem abandonar a esperança de que a vida independente, que uma série de fatos exteriores denotavam agora à paciente, a levaria a compreender a necessidade de submeter-se a adequado tratamento psicológico. Nossas expectativas se mostraram corretas e em princípios de 1953 a Sra. Q pediu para ser atendida. Inteiramo-nos, graças aos informes do Dr. M, que a Sra. Q ia todos os dias à casa de sua mãe, para descansar ali várias horas, e que contava a sua mãe literalmente tudo quanto lhe acontecia, incluindo os temas que surgiam no transcurso do tratamento, que a paciente era incapaz de dar algo a algum homem, fosse o marido, o amante ou o médico. Abriu-se a primeira brecha nesse quase impenetrável sistema de defesa quando o Dr. M conseguiu fazer compreender à Sra. M que ela se permitia sonhar desperta e fantasiar enquanto descansava na casa de sua mãe. A paciente reconheceu que não relatava a sua mãe o conteúdo de tais sonhos. Logo se tomou evidente que o conteúdo de suas fantasias era formado por experiências sexuais rudes e agressivas. Ao fim de algum tempo a paciente pôde falar livremente desses sonhos, do Dr. M como amante e principalmente em suas necessidades de separar os homens de suas esposas (o marido era casado antes, e tanto seu amante como o Dr. M são homens casados). Estas violentas reações de transferência foram apropriadamente interpretadas. Em outubro de 1953 a paciente achou que podia estar grávida; o Dr. M, que faz bastante trabalho pré-natal e de obstetrícia, não realizou um teste, pois lhe pareceu que era demasiado cedo. Ressentida, a Sra. Q foi ao médico da vizinhança, muito parecido ao Dr. M em certo aspecto importante. Voltou envergonhada; e o Dr. M aproveitou a oportunidade para destacar a semelhança da oscilação da paciente entre seu esposo e seu amante, com a fuga em busca de outro médico. Embora a gravidez fosse um alarma e as menstruações voltassem, para grande desilusão da Sra. Q, ela continuou o seu tratamento. Entretanto, logo começou a chegar tarde às entrevistas, e seu interesse começou a decair. Em fins de 1953 deixou de comparecer regularmente, e desde então o Dr. M atendeu-a irregularmente, como uma paciente comum. Citarei agora duas cartas do Dr. M sobre a Sra. Q de agosto e novembro de 1953. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
126
No Natal de 1953 já havia amadurecido consideravelmente, empregou-se, transformou seu apartamento em um lugar bonito e no princípio de 1954 ficou grávida. Não teve enjôos durante a gravidez, sobretudo não houve vômitos; compareceu para os cuidados pré-natais, insistiu em ter o filho em casa (em seu lar materno) e negou-se a que a assistisse durante o parto outra pessoa que não fosse eu. Sua pressão arterial elevou-se um pouco nas etapas finais da gravidez. O parto, que assisti, foi um dos mais fáceis que já vi em anos. Mostrou muito espírito de cooperação, quis ver imediatamente a criança e planejou e tomou as medidas necessárias numa atitude madura. Antes do tratamento havia considerado o esposo com muito desdém. Poucos minutos depois do nascimento, quando a parteira quis mostrar a criança à família, ela disse: “Por favor, dê primeira a criança a meu marido.” O aspecto principal durante as entrevistas realizadas foi a discussão e interpretação de sua transferência, a qual ela testou muito. Em certa ocasião inclusive, foi a outro médico e retornou envergonhada; agora, ainda me atribui o papel de pai de sua criança (“o menino tem cabelos como os seus, Dr. M”). Isto foi levado ao plano da consciência e aceito por ela, e eu noto que agora resolve o problema mediante o simples recurso de ser uma paciente fiel. Chama-me a atenção nesse e em outros casos semelhantes o fato de que, uma vez completado o trabalho psicoterápico, o paciente não é independente, mas que surge uma nova forma de dependência, talvez mais madura, a qual é satisfatória tanto para o paciente quanto para o médico. Segundo me parece, a Sra. Q já não está enamorada de mim, e eu me tornei, muito mais do que em qualquer ocasião anterior, o médico de toda a família, e sou chamado de “amigo da família”. Em lugar de um corte, de uma separação, como imagino ocorre depois da psicanálise, a paciente e eu continuamos unidos por tênues laços, cujo caráter não é estritamente médico. Em outro caso, a paciente também está enamorada de mim, disse que gostaria de transformar este sentimento em uma relação que permitisse me converter em “amigo da família”, ou em algo não tão abertamente determinado pelo sexo, mas de qualquer modo fora da estrita relação médico-paciente onde é indispensável estar doente para procurar o médico. Talvez isso signifique que a paciente tenha superado sua dependência infantil em relação ao médico, mas ainda precisa dele para alguma coisa. Não sei bem qual é esta coisa.
Embora tivéssemos ignorado os dois testes psicológicos coincidentes, a Sra. Q era um caso grave de diagnóstico duvidoso. Na realidade, a paciente interrompeu o tratamento pelo menos por duas vezes — em abril e em novembro de 1952. A maioria dos psiquiatras teria considerado que essa atitude constituía razão suficiente para desinteressar-se do problema, mesmo se a história anterior fosse menos estarrecedora e a imaturidade da paciente menos impressionante. Na verdade o psiquiatra não se teria visto obrigado a tomar uma decisão, pois a Sra. Q não teria retornado ao consultório. Este caso demonstra mais uma vez como é diferente a relação entre clínico geral e seus pacientes, por um lado, e o especialista e seus pacientes, pelo outro. Situações que poderiam resultar definitivas, no consultório do especialista, podem ser bem toleradas pelo clínico geral. Quando se interrompe a relação psicoterápica, ele volta ao seu papel de clínico geral; logo reassume novamente a função de psicoterapeuta, retorna ao papel de clínico, e mais tarde se converte em obstetra — quer dizer, tem com seu paciente toda a sorte de contatos íntimos, que seriam impossíveis no caso de um psiquiatra —, finalmente se transforma em um “amigo da família”. E, enquanto isso, aju© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
127
dou a uma mulher incrivelmente imatura, neurótica histérica grave, a alcançar as condições de mulher e esposa eficiente, e, muito provavelmente, de mãe bastante aceitável. Tudo isso foi logrado em menos de dois anos — fevereiro de 1952 a novembro de 1953, no transcurso de aproximadamente 50 sessões. Sem o tratamento, a Sra. Q e seus filhos teriam sido pontos constantes de dificuldades e de irritação para o profissional. Não é difícil calcular quanto tempo o médico economizou, por exemplo, em dez anos, graças a essas 50 sessões. Em troca, seria mais difícil calcular a economia em energia e em sofrimentos tanto da paciente quanto do médico, conseguida graças a que se evitaram as frustrações, as desilusões e as irritações que teriam aparecido durante esses hipotéticos 10 anos. A escala, incomparavelmente mais ampla, das possíveis formas de relação entre o clínico geral e o paciente fornece um aspecto especial importante. Observamo-lo em praticamente todos os nossos casos, mas não fomos capazes de estudá-lo sistematicamente. O médico pode “dar” algo a seu paciente, algo bom e útil. Esse algo é a medicina, o “frasco” tradicional na Inglaterra. Com isto não quero me referir ao placebo. O placebo foi primeiramente ridicularizado e logo praticamente eliminado dos casos que discutíamos. A habitual e implacável pergunta era: a que se propunha um médico quando receitava o frasco? Esta era a melhor terapia possível neste momento ou no caso dado? Se se considera deste ângulo o ato de “receitar o frasco”, surge uma série de problemas fundamentais. Citarei alguns. O médico deve atender um consultório cheio de pacientes, e não pode consagrar a certo paciente tempo suficiente, embora seja evidente que ele necessita de algo. Uma possível solução consiste em oferecer-lhe outra data para um dia de mais conveniência, e receitar-lhe um frasco, calculado de modo que quando retorne ao consultório o haja quase terminado. Deste modo se matam dois coelhos de uma só cajadada; o paciente terá uma razão adicional para voltar ao encontro, e o médico poderá iniciar a entrevista com uma simples e natural pergunta: o remédio fez efeito? Em troca, se por uma ou outra razão surgir um bloqueio no progresso do tratamento, e no momento mostrar-se ineficaz ou contra-indicado realizar-se novas explorações, uma dose calculada de remédios determinará o retorno do paciente a um exame posterior, quando talvez a atmosfera seja mais propícia. Por outro lado, se o clínico geral vacila com respeito à conveniência de parar, pode indicar ao paciente que volte em busca de uma nova receita ou para controlar os resultados obtidos, o que lhe permite controlar o desenvolvimento dos acontecimentos. e “começar” de novo se a situação o exige ou sugere. O envio do paciente para a realização de diversos exames é outro método freqüentemente empregado com o fim de manter contato. O médico recebe o resultado correspondente e, mais cedo ou mais tarde, o paciente volta em busca do resultado, o que oferece ao médico outra oportunidade. Essas técnicas foram mencionadas em diversos casos incluídos nesse livro; além disso, todo médico as conhece e utiliza. Entretanto, o que não se diz habitualmente é que o inesperado ocorre com bastante freqüência. Uma droga inocente, receitada como fator de contato, determina a desaparição de um sintoma crônico; embora se tenha esgotado o conteúdo de um frasco de remédio, o paciente não volta; o paciente não volta nem para inteirar-se do resultado de uma radiografia importante, etc. Por que essas tecnologias às vezes produzem resultados esperados, outras nos surpreendem com resultados muito maiores do que nos antecipávamos, e outras enfim fracassam lamentavelmente? Trata-se indubitavelmente de importante campo de investigação, mas devo confessar que só posso assinalá-lo, mas ainda não podemos contribuir. Novamente podemos destacar a necessidade de uma pesquisa mais difundida e mais planejada, tanto mais que a compreensão real desses problemas sem dúvida influirá profundamente no consumo nacional de drogas, por demais elevado, e aliviará os serviços especializados, desnecessariamente sobrecarregados de trabalho. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
128
Capítulo
14
O Clínico Geral como Psicoterapeuta
A) DOIS CASOS ILUSTRATIVOS Já examinamos, ainda que de modo resumido, os numerosos problemas relativos ao “como começar” e ao “quando parar’, também vimos quantos recursos a mais possui o clínico geral, se comparado aos especialistas. Chegou, pois, o momento de estudar o próprio clínico em seu papel de psicoterapeuta. Nesse ponto devemos encarar grande número de dificuldades. A primeira delas é comum a todos os aspectos da psicoterapia. A mente é inconcebivelmente multidimensional, ao passo que toda descrição se acha limitada a uma só dimensão. A linguagem pode descrever só uma seqüência de fatos por vez; se vários deles ocorrem simultaneamente, a linguagem deve realizar um movimento de vaivém entre as linhas paralelas, o que dificulta ou confunde a compreensão do ouvinte. Uma ulterior e quase insuperável complicação é o fato de que os processos mentais não ocorrem simultaneamente ao longo de linhas paralelas, mas se influem mútua e profundamente. Esta é uma das razões — e talvez a principal — pela qual são tão escassas as boas histórias clínicas psicoterápicas. Em geral, são confusas, complicadas e longas. Temo que, apesar de meus esforços em contrário, as minhas sejam do mesmo tipo. A origem da segunda dificuldade é o fato de que, em uma medida considerável, somos apenas principiantes. A psicoterapia dos clínicos gerais foi até aqui mera habilidade empírica, bem intencionada, fortuita, dificilmente testada, e muito longe da padronização que confere segurança. Esta crítica, embora em proporção muito menor, é aplicável a todos os tipos de psicoterapia — incluindo a psicanálise, ultimamente objeto muito de estudo — mas a nunca tanto como na nossa esfera de atividade. Portanto, deve-se conceder ao médico grande liberdade para que trate seus pacientes de acordo com a sua própria personalidade. Dado que nos havíamos proposto a estudar “a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral”, nossa tarefa teria sido impossível se tivéssemos imposto condições rígidas em nossa droga, o médico. De modo que se resolveu, não sem certas apreensões de parte de alguns participantes, uma política suicida. Todos os médicos foram autorizados, e mesmo alentados, a utilizar livremente toda a força de sua personalidade. A conseqüência disso foi a grande diversidade das técnicas adotadas. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
129
Para oferecer um quadro representativo de nosso trabalho, este capítulo deveria incluir pelo menos dois casos de cada um dos 14 médicos que compõem nosso seminário de pesquisa. Infelizmente, isso é impossível, e talvez mesmo indesejável. De modo que se decidiu reproduzir neste capítulo apenas dois casos. Além disso, no capítulo seguinte, examinaremos outro caso, muito difícil. Quando selecionei os três casos tive presente a necessidade de oferecer exemplos de bom trabalho, considerado aceitável pelos membros do seminário, tanto do ponto de vista do método utilizado como do resultado obtido. Esses exemplos, em conjunto com os restantes casos descritos ao longo do livro, demonstram quais são as realizações que, em nossa opinião, pode-se esperar de um clínico geral. Isso não significa que todo clínico geral deva alcançar o mesmo nível. Semelhante pretensão seria absurdo. Certos médicos, além de sua prática normal, se inclinam à cirurgia menor, e outros à medicina pré-natal e à obstetrícia; outros, enfim, se interessam pela pediatria, ou os anestésicos etc. Ninguém se interessa por todos os ramos da medicina. Em geral, o mesmo pode dizer-se da psicoterapia. Agora, quando volto as vistas sobre os casos que escolhi percebo que, embora não fosse essa a intenção, os três foram tratados por aqueles membros de nosso grupo aos quais caracterizei como “inclinados à prática da psicoterapia”. Era um resultado previsível. Quando se realiza certo trabalho de investigação sobre obstetrícia no campo da medicina geral, o material provirá inevitavelmente dos médicos que demonstram particular inclinação por esse ramo da profissão. Reciprocamente, isto significa que nem todos que assistiram nosso seminário poderiam ter realizado esse tipo de tratamento, nem tampouco se interessavam em fazê-lo. Na realidade, um grande número de participantes estava interessado, mas não todos. A última dificuldade que devo mencionar consiste em que eu desejava demonstrar simultaneamente como funcionavam os nossos seminários. Isso criou a necessidade de interromper freqüentemente as histórias clínicas, a fim de informar o rumo de nossas discussões sobre os diversos problemas, na medida que esses apareciam. Espero que, graças a esse método, as histórias clínicas tenham ganho vivacidade, dado que nossas discussões revelaram a existência de muitas opiniões, críticas e preocupações contrapostas, assim como nossos muitos problemas e incertezas. Em junho de 1953, a Dra. H relatou nosso Caso 22, o Sr. V, de 30 anos de idade, a quem viu aproximadamente oito vezes (duas vezes por semana), e que melhorou consideravelmente. CASO 22 Em primeiro lugar me procurou a esposa, e me disse que o marido se mostrava genioso, deprimido, tinha fortes dores abdominais, dores no pescoço e na cabeça. Freqüentemente se tornava violento, e jogava coisas sobre ela; ela o temia, e às vezes pensava em fugir de casa devido a seu comportamento. O psiquiatra que tratou do marido no Hospital R aconselhou-a a colocar um diafragma anticoncepcional, e crê que desde que tomou essa medida as relações entre ambos melhoraram muito, embora ele não tenha conseguido libertar-se de sua depressão. Posteriormente vi o marido. Foi examinado pela primeira vez em 1949, no Hospital R (é um hospital-escola), sofrendo de um quadro de ansiedade. Foi enviado ao Hospital B, onde permaneceu quatro meses. Desde 1950 tem sido visto de quando em quando pelos psiquiatras do Hospital R, os quais não parecem fazer muita coisa, exceto mantê-lo estacionário com medicamentos. A Dra. H complementou sua descrição com a leitura de uma carta do Hospital R, à qual vinha acrescentado um informe do Hospital B: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
130
De: Hospital R. a: Dra. H, 1o de junho de 1953 Estimada Dra. H: Referência: Sr. V. Esse paciente foi atendido aqui pela primeira vez em dezembro de 1949, melhorou muito, e teve alta dois anos depois. Durante esse tempo foi paciente interno do Hospital B. Incluo cópias fotostáticas de sua ficha. Na ocasião do último exame a que se submeteu havia experimentado uma recaída de seus sintomas originais, e também de sua pityriasis capitis. Se necessitar de mais alguma informação, terei o maior prazer em dá-la. Sinceramente seu, Assistente Chefe Depto de Medicina Psicológica. Hospital B: relatório médico sobre o Sr. V. Idade 26 anos, casado. Ingresso: 28-12-49, via Hospital R. Alta. 14-3-50. Ocupação: pintor e decorador. Queixas: temores, não pode suportar a multidão, teme ser ferido. Pesadelos, sono inquieto, suores, tremores. História familiar: pais vivos e em boa saúde. Dois irmãos e quatro irmãs. É o mais velho dos irmãos (uma outra irmã mais velha, faleceu). Pai, 53 anos pintor e decorador. Dá-se bem com o pai. “É homem de natureza agressiva, defende seu ponto de vista. Não é como eu, não teme nada.” De caráter vivo. Muito popular e sociável. Mãe: 53 anos. Natureza pacifica e serena, “embora seja capaz de zangar-se”. Dirige a casa eficientemente, parece haver-se ocupado mais da educação dos filhos do que do pai. Não é ansiosa. Há aproximadamente dois ou três anos de diferença entre cada filho. Todos se dão bem. Não há disputas familiares. “Sempre fomos tratados em um plano de igualdade.” História pessoal: infância normal. Não teve problemas de saúde. Menino um pouco nervoso, temeroso da violência, mas não recorda situações específicas das quais tenha sido testemunha. Não temia o escuro nem os animais, etc. Costumava brincar com suas irmãs e irmãos, jogos de fantasia, etc. Foi à escola dos 4 aos 14 anos. Agradava-lhe a escola mas não era muito brilhante, embora tenha alcançado o ultimo ano. Dava-se bem com seus companheiros, até a idade de 10 a 12; os outros tomaram o caminho da delinqüência, e se separou deles, de modo que durante certo tempo foi impopular. Durante esse período sabia defender-se se era atacado, mas dentro do possível evitava brigar. Trabalho: ajudante numa cantina, seis meses; abandonou devido a pagamento insuficiente. Ascensorista, 18 meses, deixou o emprego por causa da guerra; evacuado. Agradava-lhe a vida do campo, e permaneceu no trabalho que ali tinha até que foi convocado. Enquanto se achava no campo ajudava sua mãe nas tarefas da casa. Fez vários amigos, costumava ir a bailes etc. Várias namoradas, mas nada sério. Casou-se há quatro anos após 10 meses de noivado. Uma filha, de 2 anos e 9 meses. Relações sexuais satisfatórias, uma ou duas vezes por semana. Bom ajustamento com a esposa. Casamento feliz. Vivem em dois quartos, no andar superior de uma casa. Incômodo, não lhe agrada o lugar; está na lista de candidatos a moradia. A esposa também trabalha. Agora o paciente trabalha com o pai, como pintor e decorador. Fuma 10 cigarros por dia, bebe muito pouco. História da doença atual: convocado em 1942. Treinado neste país para a infantaria. Enviado ao exterior vários meses depois, ao Oriente Médio. Não lhe desagradou a convocação, desejava-a. Excitava-o a idéia de sair do país. Depois de certo tempo no Orien© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
131
te Médio, foi enviado para as Ilhas Gregas, ocupadas por tropas britânicas depois de ter sido capturada dos italianos. Foi invadida pelos alemães depois de intenso bombardeio, e o paciente foi preso, feito prisioneiro de guerra. Esteve em vários campos de prisioneiros, na maioria, dos quais foi maltratado. Libertado e de regresso à Grã-Bretanha, começou a trabalhar como decorador e pintor; casou-se em 1946. Descobriu que agora não era mais sociável como antes, as multidões o aterrorizavam, sentia que ia haver uma briga. Descobriu que temia aos “homens de aspecto rude”, pois poderiam atacá-lo. Temia que os postes de luz lhe caíssem em cima, que as facas o cortariam etc. Tornou-se genioso e irritável, teve freqüentes pesadelos; não necessariamente experiências de batalha, por exemplo, ver corpos em uma vala convertidos praticamente em polpa. Consultou seu médico local, e este lhe receitou um sedativo. Recentemente sentiu-se muito pior, voltou ao médico; não o havia visto durante certo tempo, e o aconselhou a que fosse no ambulatório psiquiátrico de R, e foi quando sua internação em B foi providenciada. Estado mental: mostra-se tenso e ansioso, parece sentir medo. Fala em voz baixa e freqüentemente trêmula. Seus modos dão a impressão de vaga teatralidade; assim, quando perguntam qual é seu problema, responde: “Tenho medo.” Freqüentemente próximo ao choro, particularmente quando se mencionam experiências de guerra. Parece de inteligência mediana, não há indícios de psicose. A impressão geral é de timidez e inadaptação, de temor autêntico e de ansiedade, tudo isso apresentado de um modo dramático. Observações físicas: n.d.n. Diagnóstico e impressão geral: personalidade histérica muito imatura, atualmente com traços de ansiedade. Tratamento e evolução: 24-1-50: apresentou intenso temor quando sob a ação do pentotal, reviveu as experiências da batalha. e expressou sentimentos de culpa por haver morto alemães que tinham “esposas e filhos”. Quando voltou a si sentiu-se muito melhor, e expressou alívio. Sentia-se tranqüilizado e confortado... 27-1-50: sente-se muito melhor. Não tão atemorizado. Contou o quanto odiava lutar e matar alemães, “alguns deles eram homens mais velhos, como meu pai”. Neste paciente está contra-indicada toda a terapia que o perturbe; responde bem ao tratamento de apoio, com reforço de suas intensas repressões, as quais sofreram um golpe durante a luta na guerra. 8-2-50: sente-se bem, mas está bastante preocupado com certos pequenos problemas domésticos — a esposa acha que a mãe do paciente a ignora, e ele sente ansiedade ante a possibilidade de uma situação desagradável. Foi encorajado a repreender sua mãe. Logo que se traçou uma linha de ação, sentiu-se e pareceu muito melhor. 3-3-50: muito melhor. Agora não sente medo; “tudo parece muito bobo”. Tem condições de alta no final da semana. Diagnóstico final: estado ansioso em uma personalidade basicamente histérica. Condições de alta: melhorado. Prognóstico: bom com respeito ao atual estado de ansiedade, pobre com respeito à inadaptação fundamental. (Assinado) Psiquiatra. A Dra. H formulou comentários bastante amargos tanto sobre a carta como sobre o relatório. A primeira era pouco mais do que uma série de frases corteses e vazias, e não tinha utilidade para o clínico geral; o segundo era pomposo, impreciso e em muitos aspectos importantes errôneo e incompleto. Reforçou suas críticas com certos detalhes complementares da história do Sr. V: Quando o paciente me procurou pela primeira vez, mostrou-se ansioso, tenso, tímido, mal podia falar, mas gradualmente se abriu. A princípio falou de suas dores, estava convencido de que algo estava errado, apesar do resultado negativo de todas as investigações. Pro© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
132
vém de uma família muito numerosa, e é o mais velho de sete filhos. Quando ele tinha três anos de idade, sua irmã mais velha morreu de peritonite, e ele sempre temeu sofrer uma operação igual. Teve uma infância terrível, assumiu todas as responsabilidades que teriam correspondido a sua irmã se essa tivesse vivido, tais como cuidar das crianças menores, fazer as compras etc., e se tornou o confidente da mãe. Também se sentiu responsável pela conduta de todos os seus irmãos e irmãs (um deles urinava na cama). Viviam todos em dois quartos, e se sentia envergonhado de sua mãe cada vez que ela engravidava. Quando esteve no Hospital B lhe disseram que sua doença estava relacionada com suas experiências como prisioneiro de guerra, mas não pode compreender que assim o seja. Pois o alegrou sair de sua casa, que ele odiava, e temia lutar, de modo que para ele foi um alívio cair prisioneiro. Aparentemente sua enfermidade começou quando voltou da guerra. Embora a família se tivesse mudado para um apartamento maior, detestava voltar a morar com eles, e tratou de escapar casando-se. Entretanto, durante o primeiro ano de casados, ele e sua mulher tiveram de viver com os pais do paciente, e isto foi demasiado para ele. Sempre teve medo do pai, e ainda tem. O pai foi boxeador, um homem muito forte, sempre disposto numa desordem e numa briga, e o paciente procurou proteger dele os irmãos e irmãs. Sente que deve ser sempre leal a seu pai, embora esse freqüentemente proceda mal, e no trabalho (ambos estão no mesmo ramo — pintura e decoração) se o pai comete algum erro ele se apressa a encobri-lo. Disse que sente pela mãe, e que deseja compensá-la pela atitude do pai. Sempre lhe atemorizou a idéia de masturbar-se, pois a mãe lhe disse que se o fizesse ficaria doente mental. Procurou conter-se, e se masturbava em raras ocasiões. O paciente afirma que agora se sente muito melhor, porque pela primeira vez em sua vida pode discutir livremente com alguém o problema da masturbação. Agora pode sair, dorme bem, não toma remédios, trabalha melhor, não sente dores. Além disto, mantém com a esposa uma relação realmente satisfatória. Do apartamento dos pais se mudaram em primeiro lugar para uma casa bem pior. Entretanto, há meses conseguiram um apartamento do governo. O paciente visitou a sua família pela primeira vez em três semanas, e alegrou-se em comprovar que podiam ajeitar-se bastante bem sem ele. Agora pode brincar com sua criança, de 6 anos, com quem nunca tinha tido paciência. A menina urinava na cama, mas durante a última quinzena deixou de fazê-lo. A surpreendente discrepância entre os relatórios do hospital e da médica corresponde quase seguramente a diferentes técnicas. O primeiro constitui o resultado típico do método de “colheita da anamnese”. O médico que colhe a história formula uma quantidade de perguntas e recebe as respostas mas nada mais. As respostas foram unidas, prendeu-se a elas rótulo diagnóstico — estado ansioso em uma personalidade basicamente imatura e histérica. Tentou-se uma reação com pentotal e os resultados foram necessariamente interpretados, à luz do diagnóstico. Como o alívio provocado pela reação desapareceu logo, o paciente recebeu as inevitáveis pílulas de fenobarbital, e eventualmente foi devolvido a seu médico particular, para que este o continuasse tratando — praticamente no mesmo estado em que se achava antes de ir ao Hospital R. Um desenlace bastante comum. Entretanto, a Dra. H já havia aprendido a “como escutar”. Sem formular perguntas, conseguiu do paciente importantes informações, as quais não só arrojaram nova luz sobre a estrutura da neurose, mas foram seguidas de considerável melhoria. Durante a discussão sobre o relatório assinalou-se que o psiquiatra do Hospital B havia estado quase que seguramente sobre a pista certa: havia observado corretamente que, sobre a influência do pentotal, o paciente mencionava o quanto odiava matar alemães que “tinham esposa e filhos”, e que se pareciam a seu próprio pai. Influenciado por sua impressão de que toda a terapia que pudesse perturbá-lo se achava contra-indicada neste caso, o psiquiatra não quis aprofundar, nem sequer quando o paciente sofreu uma recaída. Evidentemente, o pai se achava no centro dos conflitos neuróticos do paciente, e a masturbação era somente um dos sintomas secundários. Possivelmente o fato de que © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
133
o Sr. V tivesse necessidade de resgatar e de proteger sua mãe do pai mau e agressivo, era provavelmente outro aspecto do mesmo conflito. Em geral, pressentia-se que o êxito já alcançado era provavelmente apenas transitório, e que a Dra. H devia estar preparada para enfrentar algumas tormentas, em todo caso, não devia se apressar a dar o caso por terminado. Sobretudo, não devia se deixar levar pela necessidade do paciente de pintar prematuramente um quadro otimista de sua própria melhora. Uma quinzena depois tivemos outras novidades.
Em geral, o Sr. V manteve a sua melhora, mas na segunda-feira veio ao consultório queixando-se novamente de dores abdominais, cefaléias e depressão. Segundo parece, tinha discutido com seu patrão a propósito do horário, e com seus companheiros de trabalho sobre o problema de salários. Com respeito a este último problema sentiu obrigado a discutir o assunto com seu patrão, representando os companheiros, embora em realidade não fosse necessário que o fizesse. No decorrer de nossa discussão compreendeu que estava repetindo a situação que tinha vivido em sua casa com seu pai (o patrão) e seus irmãos e irmãs (os companheiros de trabalho). Então ele disse que havia pregado mal certo papel de parede, e que temia que o ocupante da casa notasse e se queixasse ao patrão. Disse que procuraria outro emprego porque já estava farto do que tinha. Não foi trabalhar na segunda-feira, mas se sentiu culpado disto. Observei que queria abandonar o emprego porque temia que seu patrão descobrisse o erro cometido com o papel de parede. Disse então que podia voltar a ver-me segunda ou terça, à tarde mas não aparecem em nenhuma das ocasiões. Pergunto-me se conviria tomar a iniciativa de fazer-lhe uma visita.
Era evidente que se havia desencadeado a tormenta, e alguns de nós começamos a suspeitar que talvez, afinal de contas, o psiquiatra do Hospital B estivesse certo. Por outro lado, era possível que o paciente estivesse pondo à prova a capacidade profissional da Dra. H. Finalmente, aconselhou-se que não fosse vê-lo, se não desejava ver-se implicada ainda mais no caso; mas, se estava particularmente interessada e se achava disposta a enfrentar as conseqüências devia fazê-lo; mas nesse caso devia manejar o paciente com cautela. A Dra. H decidiu visitar o paciente em sua casa, e o tratamento continuou. Nosso grupo recebeu informes periódicos sobre a evolução do enfermo, mas só transcreverei o informe sintético e retrospectivo apresentado em junho de 1954, isto é, aproximadamente um ano depois que a profissional começou o seu trabalho psicoterápico. Embora seja inevitável que o segundo relatório repita boa parte do que se diz no primeiro, será reproduzido integralmente, pois demonstra de que modo os mesmos fatos se revestem de uma importância diferente à medida que o tratamento se desenvolve.
O Sr. V é um grande êxito. Foi prisioneiro da guerra na Alemanha, e foi tratado muito mal. Voltou ao país em 1946-47 e não pôde estabelecer-se. Tinha graves dores abdominais e esteve no Hospital B durante mais de dois meses. Em 1949-50 o diagnóstico foi de estado ansioso em uma personalidade basicamente pobre e o prognóstico bom com respeito ao atual estado de ansiedade e negativo com respeito à inadaptação básica. Ia freqüentemente à sala de emergências do Hospital R, onde o tratavam com fenobarbital e medinal. O psiquiatra escreveu-me o seguinte: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
134
“Esta associação parece fazer muito bem ao paciente.” Então comecei um tratamento psicológico. Descobri que os problemas não se haviam originado com a guerra (como acreditavam no hospital), mas que remontavam à infância e à relação com o pai, que era boxeador e decorador. Anteriormente, o Sr. V tinha trocado constantemente de emprego e tomado drogas. Agora se mantém no mesmo emprego desde o Natal e foi promovido a supervisor. Sente-se muito bem, e ultimamente vem ao consultório apenas uma vez por mês, não toma remédios, e não sente dores. A filha, que costumava urinar na cama, está agora perfeitamente bem, e a esposa, que estava doente, também está bem. Aprofundei bastante o caso. Tem mais confiança em suas próprias forças, porque foi capaz de progredir mais do que o pai. Já é melhor decorador que o pai, e pode suportar isso. Agora, quando está com o pai, consegue relaxar e não sente medo. Era o mais velho de muitos irmãos. Algo muito importante: ressentia-se muito de todos os filhos que a mãe teve, um após o outro; sentia grande ansiedade pela irmã, mais velha do que ele, que morreu de peritonite devido a apendicite. Comprovei que as dores abdominais remontavam a este evento. A irmã morreu quando ele tinha 4 ou 5 anos, e o paciente nunca pôde esquecê-la; sempre que sente algo, é apendicite ou peritonite. O pai o castigou muito, tinha que cuidar constantemente das outras crianças e desempenhar o papel de babá; não lhe foi permitido crescer e viver sua própria vida. Foi muito maltratado; para dizer a verdade, sempre porque ele mesmo o provocava. Discutimos muito detalhadamente o problema. Manifestou intenso desagrado com respeito ao Hospital B e as ab-reações às quais se submeteu ali. Analisei o que o pentotal significava para ele e seus temores de ser morto e despojado. Consegui que fosse ao dentista, pela primeira vez, na semana passada, e lhe extraíram um dente com uma injeção. Naturalmente temia muito essa situação. Insistiu muito no tema, e sabe que pode fazê-lo. Também sentiu dores nas costas e cefaléias. Sofria dores sempre que via seus pais, ou que se via às voltas com algum problema com sua família ou com o patrão no trabalho. Compreendeu que o patrão representava mais ou menos o pai. Começa a entendê-lo cada vez mais claramente.
O seminário, e sobretudo os clínicos gerais de inclinação psicoterápica, felicitou a Dra. H pelo sucesso do tratamento. O mesmo fez o psiquiatra e admitiu que a princípio havia sentido sérias dúvidas com respeito à possibilidade de que um clínico geral, carente de uma formação completa em matéria de psicoterapia, lograsse algum resultado neste caso tão difícil. Dedicamos bastante tempo ao exame dos fatores que foram provavelmente os responsáveis pelo êxito. O primeiro deles era a capacidade da Dra. H em escutar e deixar-se usar pelo paciente. Provavelmente contribuiu também o fato de que ela fosse uma mulher. O Sr. V sem dúvida teria sentido maiores dificuldades se tivesse que lidar com um homem. Em todo caso, dois homens muito capazes — os psiquiatras dos Hospitais R e B — o haviam rejeitado, como o havia feito seu pai, e deste modo talvez tivessem preparado o terreno para uma mulher compreensiva e maternal, como a Dra. H. Finalmente, o Sr. V, embora não fosse um ignorante, tampouco era um intelectual. A compreensão dos mecanismos que provocavam suas dores, problemas e ansiedades deve ter sido fonte de considerável satisfação e a realização intelectual consistente em adquirir capacidade de controle sobre estes lhe infundiu confiança e orgulho; tudo isso talvez não tivesse impressionado a um espírito mais sofisticado. Seja como for, o Sr. V, depois de haver sido rejeitado pelos psiquiatras, com prognóstico bastante negativo, foi curado pela psicoterapia de um clínico geral. No caso que se objetasse a palavra “curado”, citarei o relatório de evolução de novembro de 1955, quase um. ano e meio depois de concluído o tratamento:
O Sr. V vai muito bem. Agora ocupa o posto de supervisor de uma importante firma de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
135
decoradores. Há mais de um ano está no mesmo emprego e não faltou ao trabalho. Em raras ocasiões vem ao consultório (aproximadamente uma a vez cada três meses) com alguma queixa de menor importância. Geralmente converso um pouco com ele, e vai embora sem receita. A esposa está grávida — é uma gravidez planejada — e ele se sente muito feliz com o fato.
O segundo caso incluído neste capítulo, o Caso 23, revelará mais detalhadamente o trabalho psicoterápico. Também ilustrará as críticas suscitadas pela técnica do médico, e quais foram confirmadas pelos fatos ou não. Deste modo demonstrará de um modo bastante cabal o grau em que nossa técnica repousa sobre fundamentos seguros, e quais são os aspectos que exigem urgentemente novas pesquisas, mais experiências. Insistirei no fato de que os informes deste caso — como os de todos os restantes citados neste livro — se baseiam em notas taquigráficas. As críticas foram formuladas na época e nos termos aqui mencionados. Há aproximadamente três anos a Srta. S, de 22 anos de idade, “ofereceu” sintomas dispépticos a seu médico anterior; foram “aceitos”, e a paciente e o médico se ajustaram a uma doença aceita, crônica, mas não incapacitante. A paciente mudou-se para um bairro diferente. Em fevereiro de 1953, o Dr. R informou ao nosso seminário: CASO 23 A Srta. S veio no dia 20 de novembro registrar-se na qualidade de paciente-nova. Muito jovem, cabelo em tranças; parecia ansiosa. Durante os últimos dois e meio a três anos havia sofrido muito de indigestões. Em julho, seu médico anterior lhe disse que corria perigo de desenvolver uma úlcera péptica, e que devia manter-se em uma dieta estrita. Veio pedir-me que lhe receitasse comprimidos alcalinos. Isto ocorreu em meio a uma atarefada tarde de consultório, de modo que marquei para vê-la novamente. Quando se preparava para sair, perguntei se estava preocupada com alguma coisa; ela disse que devia fazer alguns exames, mas que não se incomodava muito com isso. É estudante, tem uma bolsa em uma escola de arte por um ano, e no ano seguinte se aperfeiçoará em ensino. Acrescentou logo que havia outra coisa, seu namorado, mas que depois me contaria a respeito. Voltou no dia 4 de dezembro. Disse que desde a idade de 5 até os 8 anos costumava ter ataques biliosos, mas havia conseguido livrar-se deles. Sentia-se infeliz na escola, havia começado a estudar aos 5 anos e mudou de escola aos 8. Não se sentia feliz devido a sua timidez. Sente-se bem na faculdade; agrada-lhe, mas não é muito entusiástica. Não sente verdadeiro desejo de pintar, é a mãe que insiste. A mãe, de 54 anos, voltou a casar-se há poucos anos. Uma mulher muito infeliz. O padrasto e a mãe não se dão bem. A mãe não gosta de que a paciente tenha boas relações com o padrasto. O pai da paciente abandonou a esposa quando a filha tinha 5 anos; a mãe disse que era um alcoólatra. Perguntei-lhe se havia sentido a falta do pai e ela disse que a sentia agora. Disse-lhe: “Quer dizer com isso que agora gostaria de conversar com ele sobre seus problemas?” Disse: “Sim.” Contou-me sobre seu namorado, um estudante sem um centavo, que vivia de uma bolsa. Há quatro anos que o conhece, tem estado pensando em se casar logo, apesar das dificuldades financeiras, mas a mãe não gosta dele. Perguntei se havia tido relações íntimas com ele, mas replicou que não, o que mais tarde descobri não ser verdade.
Para o psiquiatra nada mais fácil que repetir seu ditado: quando se faz perguntas, recebe-se respostas e praticamente nada mais. Teria sido melhor esperar. A pergunta induziu a paciente a dar uma resposta falsa, que podia ser difícil de corrigir depois. O Dr. R não se deu por vencido. Continuou: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
136
Posteriormente perguntei: “Quando teve relações sexuais?” Recordou o que me havia dito, e corou. Percebi e disse que não tinha importância. A paciente tem um irmão, de quem gosta muito. Examinei-a: não achei nada de anormal, exceto certa zona dolorosa, a qual, segundo ela, era sua úlcera gástrica; disse-lhe que era bobagem. Expliquei-lhe os efeitos das emoções sobre as condições físicas, e disse que sua dieta não tinha sentido. Perguntei-lhe como andava sua indigestão e ela me respondeu que não havia tido nenhuma. No dia 8 de dezembro, data da segunda entrevista, contou-me que sua mãe tinha um caráter muito dominador e que pretendia viver sua vida através da paciente. Ambas tinham os mesmos gostos, mas a paciente sempre se opunha furiosamente a sua mãe. Ameaçava sair de casa, mas a mãe lhe dizia quanto havia feito pelos filhos, e que se havia casado com o padrasto para que eles tivessem segurança. Uma noite tiveram uma briga e a mãe andou pela rua a metade da noite; quando voltou, escreveu uma carta que deixou sobre o leito da paciente. Era uma carta terrível que a paciente destruiu apenas lida. Nela a mãe exigia coisas impossíveis, e queria que a paciente permanecesse a seu lado todo o tempo. Conversamos sobre o sentimento de culpa que sentia em relação à mãe. Marquei uma consulta para uma semana depois, mas três dias depois telefonou e me disse que era indispensável que viesse ver-me, pois se sentia terrivelmente confusa. A mãe tinha vindo à cidade passar o fim de semana. Tinha chegado à tarde, mas a moça disse que já estava cansada de ficar com ela. Disse: “Não me importaria se não a visse nunca mais”, e chorou durante uns dez minutos por ter dito esta coisa horrível. Tivemos uma prolongada discussão sobre os sentimentos de culpa e o ódio à mãe e ao final disse que se sentia muito melhor. Aconselhei que ficasse com sua prima (que vive com ela) o máximo possível durante o fim de semana, para não ficar muito tempo só com a mãe. Voltou novamente no dia 15 de dezembro. O fim de semana com sua mãe foi extraordinário, porque, seguindo algumas de minhas sugestões, conseguiu manejar bastante bem a mãe, sendo a primeira vez que esta não consegue manejar a paciente. Em seguida falamos do namorado. Não chegaram a ter relações sexuais, mas eram tão íntimos que praticamente não fazia diferença e sentia-se muito culpada. Devia ir a sua casa no Natal. Telefonou depois do Natal e disse que tinha algo para me mostrar. Veio no dia 22 de janeiro, e mostrou seu anel de noivado. Havia tido com o namorado uma longa conversa sobre o futuro, ambos haviam examinado os diversos problemas, e como conseqüência disso haviam noivado, os olhos bem abertos. Para sua grande surpresa, a mãe havia recebido bem a notícia. Disse então que desde o Natal vinha sendo capaz de enfrentar as pessoas e de conversar com todos sem sentir timidez ou corar. Eu disse: “Você já não se sente envergonhada”, e ela disse: “Sim, é isso.” Ao que acrescentei: “Nada tem de que envergonhar-se, e pode encarar a vida de maneira adulta.” Já não usa tranças, e maqueia um pouco o rosto. Vi-a novamente no dia 5 de fevereiro. Sentia-se muito melhor, mas havia estado pensando muito no pai, e lhe preocupava o modo como a mãe o devia ter tratado. Assinalei que seria muito melhor que concentre-se seu pensamento nos problemas do presente. Falou então sobre o trabalho, manifestou desejo de estar em X, onde seu noivo estuda, de casar-se, de que ela possa trabalhar, e de que ele possa continuar seus estudos. Esse foi o ponto a que chegamos. A paciente ri agora de sua indigestão e diz: “Imagine eu ter tomado esses remédios durante anos.” Poderia ter-se poupado três anos desse tratamento.
Os médicos sem experiência neste tipo de trabalho considerarão surpreendente, quase incrível, que a Srta. S pudesse ser curada tão rapidamente de sua dispepsia, quase que por milagre. Afinal de contas, uma queixa que persistiu durante três anos devia ser grave, e o médico anterior deve ter se sentido impressionado, pois advertiu a paciente do perigo de uma úlcera péptica. Trata-se de outro exemplo do perigoso que é pensar © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
137
primeiro no diagnóstico físico; depois de alguns anos de “acordo” entre o médico e a paciente quanto a uma possível doença física, essa última pode tornar-se realidade. Por outro lado, é verdade que o Dr. R — de acordo com seu próprio caráter — aplicou métodos um tanto impetuosos para promover a transformação da doença física em psicológica. Depois, de afirmar-se claramente no papel de um pai substituto benévolo e compreensivo, rejeitou e ridicularizou a possibilidade de uma doença de caráter orgânico e usou de toda a sua influência para converter a Srta. S a sua própria fé psicossomática. Na realidade, “pregou um sermão” sobre o tema durante a primeira “entrevista prolongada”; era uma boa oportunidade para converter a Srta. S, já que havia demolido suas primeiras defesas, e ela ainda não havia tido tempo de organizar-se novamente. É um exemplo instrutivo de fervor “apostólico” no médico, sentimento que o impele a fazer todo o possível para transmitir a sua paciente sua própria convicção sobre o verdadeiro caráter de uma doença. Durante a discussão que se seguiu ao relatório, esses dois aspectos apenas foram tocados; para o seminário não constituíam novidade. Mas dedicamos bastante tempo ao oferecimento um tanto enérgico que de si mesmo havia feito o Dr. R como pai substituto. Na realidade, ele não se havia simplesmente limitado a aceitar o papel de pai cheio de simpatia e de compreensão; deliberadamente havia-se voltado contra a mãe, aliando-se com sua filha-paciente contra ela. Essa atitude, como demonstra a história da infância de muitos neuróticos, é um passo que oferece certo perigo. Além disso, o Dr. R praticamente havia “aconselhado” a paciente a não ter sentimentos de culpa pelo fato de odiar a mãe, nem envergonhar-se de suas próprias experiências sexuais. No momento, os resultados eram certamente muito bom e alentadores. As opiniões do seminário se dividiram. Um dos médicos recomendou que, se o Dr. R havia conseguido tanto, devia diminuir a intensidade e freqüência das sessões, retrair-se e desaparecer gradualmente. Outro, o Dr. S, que gosta de ser o médico esperto, que sabe mais, era a favor de continuar sem alterações. Pensava que a paciente sentir-se-ia mais segura agora, mais livre para agir tendo a aprovação do Dr. R, e que, conseqüentemente, amadureceria. Aqui tivemos uma pequena divergência. O Dr. R protestou quanto à classificação de seu enfoque como aprovação ou desaprovação. Também o Dr. S declinou de aceitar a aplicação dessa terminologia a seu enfoque; queria que se falasse em “apoiar” a paciente em suas decisões. Voltaremos a esse problema no capítulo sobre a função apostólica. Houve, entretanto, comum acordo em dois pontos. Um, o fato de que a Srta. S, como sua mãe, era perfeitamente capaz de “manejar” coisas e pessoas; e agora que tinha o exemplo do Dr. R, tinha muitas possibilidades de começar a “manejar” seu noivo, do mesmo modo que o Dr. R a havia “manejado”. O outro ponto consistia em que o médico, impelido por seu sucesso, pudesse tornar-se excessivamente ambicioso e, em seu papel de pai ideal, tentar pôr ordem na muito complicada relação mãe-filha, o que seria transcender os limites razoáveis das possibilidades da clínica geral. O Dr. R concordou com ambos os pontos, e acrescentou a seu relatório:
Durante a última entrevista disse que sentia que provavelmente o pai ainda vivia, e que gostaria de conhecê-lo. Mostrei que havia desenvolvido uma imagem idealizada de seu pai, e que ele podia não corresponder a sua expectativa.
Foi surpresa para o seminário quando percebeu, durante a reunião seguinte, quão perto da verdade haviam sido nossas predições. Disse o Dr. R:
Vi a Srta. S na sexta-feira à noite, e novamente ontem (isto é, na terça-feira). Na sexta-feira © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
138
estava muito preocupada porque havia brigado com sua senhoria e lhe havia avisado que iria embora. O noivo a havia visitado durante o último fim de semana, e havia usado o quarto da amiga da paciente. A senhoria sugeriu que a mãe da paciente não gostaria de saber que a paciente tinha ficado até tarde junto a seu noivo. E acrescentou: “Além disso, você deixou acesa a lâmpada da escada toda a noite, gastando eletricidade.” A paciente respondeu-lhe que já estava cansada de suas queixas, que ia embora e tiveram uma briga. A paciente começou o relato com voz calma, mas depois começou a chorar. Perguntei-lhe como era a senhoria, e disse: “Uma solteirona, de 60 anos, muito dominadora.” Sugeri-lhe que, em realidade, havia tido outra briga com a sua mãe e respondeu: “Sim, ela é precisamente como minha mãe.” Conversamos muito tempo. Lembrou que não se havia dado bem com certa professora na escola, porque era dominadora como a mãe, e que tinha dificuldades com uma mulher onde estuda atualmente, e pela mesma razão. Sempre que conhece mulheres autoritárias, não se dá com elas. Disse então que não sabia onde ir, onde ficar, de modo que a encaminhei a outra paciente, a qual eu sabia que dispunha de quartos desocupados. Voltou a noite passada. Havia alugado o quanto, e crê que gostará de lá. Suas duas amigas, com quem tem vivido até agora, também vão deixar a outra casa, e novamente irão viver todas juntas quando acharem acomodações apropriadas. Acrescentou que durante o fim de semana seu noivo e ela haviam decidido casar-se no verão, e que ela trabalhará em X enquanto ele continua estudando. Disse então que se sente bastante indecisa, não está segura de que quer casar-se por amor ou para ter uma solução para seus problemas. Perguntei-lhe se lhe parecia boa idéia a de casar-se para resolver seus problemas, e a paciente respondeu que não, mas que não via como voltar atrás sem feri-lo. Disse então que não achava que não queria se casar, com ele porque não o amava, mas que se sentia em dúvida. Não pudemos chegar muito longe. Surpreendeu-me ao final da entrevista com a afirmação de que agora se sentia muito mais feliz, mas confesso que não sei o que realmente ocorreu durante essa entrevista. Era evidente que toda a situação havia mudado. Haviam desaparecido todos os “oferecimentos” de doenças físicas. O Dr. R acrescentou:
Perguntou-me ao o reumatismo tinha algo que ver com as perturbações emocionais. Sempre sofreu dele, mas agora fazem dois meses que desapareceu. Em lugar de “oferecer” queixas físicas a Srta. S apresentou a seu médico uma série de problemas psicológicos, aceitos por ele. Haviam chegado a um novo “acordo” com respeito à natureza dos verdadeiros problemas, e a paciente e o médico se tinham posto a trabalhar para achar uma solução. As ditas dificuldades previstas na semana anterior surgiram clara e definitivamente durante as últimas duas entrevistas: a) A complicada relação entre uma filha um pouco inibida mas essencialmente rebelde e “controladora” e todas as figuras maternas dominadoras. b) O desejo de um pai bom, compreensivo e auxiliador, capaz de ajudá-la em sua luta contra a mãe. Qual devia ser a conduta de um clínico geral em tal situação? Como já vimos, o Dr. R acedeu aos desejos da Srta. S e consagrou seus melhores esforços ao papel de pai compreensivo e poderoso. Foi uma terapia sensata e, em caso afirmativo, em que proporção convinha aplicá-la? Em que ponto convinha “parar”? Recordemos o ponto de partida: o médico é um medicamento. Este caso constitui boa ilustração da importância deste medicamento, e do pouco que sabemos a respeito de sua farmacologia. Rapidamente o seminário compreendeu que o Dr. R não podia “desvanecer-se” como um de nós havia proposto uma semana antes, em parte porque a paciente não o permitia — na realidade o estava “controlando” bastante – e em parte porque ele mesmo não queria fazer isso. O êxito que já havia obtido era muito tentador e ele obviamente queria conseguir mais. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
139
Esse último é um aspecto extremamente importante da psicologia de muitos médicos; querem, e na realidade devem, ser “bons médicos” e o Dr. R era talvez o mais veemente representante desse tipo de profissional em nosso grupo. Pudemos seguir o desenvolvimento dessa mesma situação em vários de seus casos. Ajudava seu paciente, o paciente melhorava mas queria mais ajuda, ante o que o Dr. R não tinha outra alternativa que responder ministrando-lhe mais ajuda, a qual promovia novas melhoras, e assim sucessivamente. Em certos casos foi possível cortar essa espiral em um ponto favorável, mas em outros ela foi origem de exageradas expectativas do paciente, ou do médico, ou de ambos, esperanças que não era possível satisfazer, razão pela qual o tratamento terminava em amarga desilusão. Tal era o problema que devíamos resolver. Era sensato adotar a decisão de “parar” agora que haviam desaparecido os sintomas de dispepsia e as ligeiras dores reumáticas, e quando os dois mais prementes problemas psicológicos, o estabelecimento de um modus vivendi com a mãe e a decisão com respeito ao casamento, pareciam achar-se bem encaminhados? Naturalmente, o Dr. R devia manter-se em segundo plano, disponível em caso de necessidade, mas esta nova linha de ação implicava reduzir a administração de sua pessoa, de uma dose terapêutica a outra de mera manutenção. Outra alternativa consistia em que continuasse desempenhando o papel de pai poderoso e que apóia a filha contra a mãe, mas essa tática poderia provocar dificuldades e complicações mais graves que o problema de achar alojamento para a Srta. S em uma situação de emergência. Uma terceira alternativa consistia em fazer a Srta. S tomar consciência da intensidade com que necessitava de uma poderosa figura paterna, e de sua inclinação a envolver em seus problemas o Dr. R. Essa atitude podia ajudá-la, mas como sabíamos quão grande havia sido seu desespero quando o pai abandonou a família, quando ela tinha 5 anos, não podíamos ignorar o perigo de provocar nela necessidades mais intensas do que as que podiam ser atendidas dentro dos limites estabelecidos pela clínica geral. Gradualmente o seminário compreendeu que “comportar-se como um pai, mas de maneira velada, é coisa diferente de não se comportar como pai, ficando um pouco de fora mas permitindo que o paciente sinta o médico como um pai”. Trata se de duas atmosferas terapêuticas diferentes. “Ou, em outras palavras, intuir o que o paciente espera do médico, satisfazer suas expectativas, e desempenhar a função de pai em grau bastante limitado isto é uma coisa. A outra consiste em não ser o pai, mas mostrar ao paciente que ele espera de seu médico algo semelhante, e que ele poderá responder a esta expectativa até certo ponto, mas nunca totalmente. Até que ponto e de que forma terá que explicar-se isso ao paciente — este é um dos principais problemas da psicoterapia praticada pelo clínico geral.” Depois disso, não foi difícil resumir a situação. O Dr. R estava desempenhando o papel de pai compreensivo, benévolo e poderoso. Não estava claro até que ponto a paciente devia adquirir plena consciência de tudo isso, mas era seguro que o Dr. R devia ter total consciência de seu papel. Tal foi, em realidade, a ajuda que o seminário lhe prestou. O perigo consistia em que se continuasse representando o papel de pai, exerceria escasso controle sobre a relação entre a Srta. S e ele mesmo, pois não poderia defenderse adequadamente contra o tipo de esperanças que a paciente alentaria. Era muito provável, por exemplo, na disputa com a senhoria, que desempenhasse considerável papel a esperança de receber ajuda do Dr. R, ou ainda obrigá-lo a que a ajudasse. Além disso, não se deve esquecer que a briga começou porque seu noivo havia dormido em um quarto, vizinho ao seu, situação objetada pela senhoria mas que a Dr. R aprovou, ou foi induzido a aprovar. Recomendou-se ao Dr. R que ficasse em guarda contra futuros envolvimentos, os quais facilmente podiam tornar-se excessivos. Uma semana depois recebemos um novo relatório do Dr. R:
A Srta. S veio no dia 16 de fevereiro, falou muito de sua atitude ambivalente com o © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
140
noivo, e da razão pela qual estava indecisa quanto a conveniência de casar-se com ele. Sugeriu que temia provocar a cólera materna casando-se com ele — se a mãe desse sua bênção, estava disposta ir adiante. Perguntei-lhe se havia algum outro motivo de temor. Mencionou uma série de coisas, achar uma casa, dificuldades financeiras etc. 23 de fevereiro: as três moças encontraram um novo apartamento. Embora não seja em meu distrito, a paciente deseja permanecer na minha lista. Afirmou que não tinha muito o que dizer, que seu trabalho ia melhor e seus pensamentos giram incessantemente em torno de sua própria incerteza com respeito ao casamento. Primeiro disse que se sentia culpada porque estava abusando de meu tempo, e que seus problemas eram os mesmos que de qualquer moça em vias de casar-se. Repliquei-lhe que não era perda de tempo se contribuísse para ajudá-la. Perguntou-me então se poderíamos resolver todos os seus problemas antes que ela fosse para X, se continuássemos conversando uma vez por semana. Observei que possivelmente ela se inquietava ante a idéia de ir para X e deixar-me talvez sentindo que separar-se de mim era como voltar a separar-se de seu pai. Respondeu que assim era. Conversamos um pouco sobre o assunto e foi-se embora, depois de afirmar que se sentia muito feliz. Foi muito interessante observar o desenvolvimento do aspecto “controlador” da Srta. S. A jovem, todavia, não se havia firmado, mas pouco a pouco assumia maiores responsabilidades. Começava a sentir-se pouco à vontade porque ocupava o tempo do médico, e a compreender ao mesmo tempo que, mesmo com a sua dedicada ajuda, ela não poderia resolver todos os seus problemas antes de decidir-se se casaria agora ou depois. De modo que todos chegamos à conclusão de que neste caso a maior parte do trabalho psicoterápico já havia sido realizado, e de que o resto não levaria senão umas poucas sessões. Repetimos que talvez este fosse o tipo de caso que podia ser resolvido satisfatoriamente por um clínico geral, quer dizer, estávamos frente a uma personalidade razoavelmente sadia, que enfrentava um grave problema, que mostrou-se excessivamente difícil devido a certos conflitos neuróticos inerentes à estrutura mental. Dado que a paciente era incapaz de alcançar uma solução, se refugiava na doença; e se uma de suas ofertas era aceitável para o médico, surgia o perigo que todas as energias da paciente se consagrassem a combater a doença “aceita”. Neste caso, este desenlace desfavorável havia sido felizmente impedido pela intervenção do Dr. R, e sua ajuda paternal havia permitido a paciente recuperar-se novamente; talvez os restantes problemas se resolvessem por si mesmos. O relatório seguinte chegou em meados de março. A Srta. S veio ver-me no dia 9 de março. Esteve na casa de sua mãe durante o fim de semana, conversou longamente com a mãe, e esta manifestou sua aprovação ao casamento dos dois jovens. A paciente mostrou-se muito surpreendida de que as coisas tivessem andado tão bem, e de que seu irmão, que pouco se importava com ela, apoiasse seu projeto de casamento contra a vontade da mãe. Disse que se sentia muito mais feliz, e parecia — havia obtido a “permissão” que desejava — bem arrumada. Informou-me que este fim de semana pensava em ir a X, e sentia que agora estava em condições de arrumar-se sozinha. Perguntou-me se desejava vê-la novamente, e respondi que não achava necessário, mas que se alguma vez sentisse que queria voltar a conversar, podia fazê-lo. Agradeceu-me e foi-se. Esperam casar em setembro. Esta manhã me telefonou, disse que desejava vir ao meu consultório para discutir algo que havia ocorrido em X, mas em geral parecia muito contente com as coisas. Tem consulta amanhã à tarde. Embora as coisas estivessem se desenvolvendo bem, era cada vez mais evidente que a Srta. S necessitava do Dr. R como de um pai bom, de quem não podia prescindir. No final de maio ouvimos sobre a Srta. S: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
141
Ocorreu algo extraordinário. A paciente se inteirou de que o pai que desapareceu quando ela tinha 6 anos, reapareceu e está vivendo com um irmão em V e a paciente quer ir vê-lo. Perguntou-me se devia fazer isso e conversamos a respeito. Disse que a curiosidade a impulsionava a conhecê-lo, mas que o mais provável é que termine por odiá-lo. Depois de examinar o problema, decidimos que ela escreveria ao tio e lhe perguntaria se o pai desejava vê-la. Se o vir temo que a paciente se sentirá profundamente transtornada; fabricou a imagem ideal de seu pai e ela mesmo reconhece que esse homem não pode ser tão bom como ela espera. Pode-se fazer alguma coisa? A resposta unânime foi que a única coisa que o Dr. R podia fazer era discutir com a paciente a possível desilusão. Respondeu o seguinte: “Já o fiz ontem à noite. A paciente escreverá, e virá ver-me na próxima semana. Mas tudo ia esplendidamente até que isso aconteceu.” Não obstante as justificadas apreensões, tudo saiu bastante bem. No final de junho o Dr. R informou: A Srta. S me telefonou e veio no dia 22 de junho despedir-se. Vai para caça no verão, e vai casar-se. O noivo acaba de ser aprovado nos seus exames e ganhou uma bolsa de viagem de 50 libras, com a qual pensam passar a lua-de-mel em Paris. Parecia muito diferente. Disse-lhe isso, e me respondeu que lhe havia surpreendido descobrir a tremenda influência da mente sobre o corpo e que uma vez que o havia compreendido e aceito, estava apta a ver as coisas por outro ângulo. Achou que a haviam ajudado muito as discussões que tínhamos tido. Falou do pai, que redescobriu. O tio informou que o pai não estava muito interessado em vê-la, mas a paciente crê que apesar de tudo ela e o noivo irão vê-lo no verão; mas não ficará perturbada se ele não mostrar interesse. A paciente demonstra agora uma atitude razoavelmente adulta quanto às coisas. Vai me mandar uma fatia de seu bolo de casamento. Este foi sem dúvida um sucesso. O Dr. R nos informou que desde novembro de 1953, data em que a Srta. S se incorporou a sua lista de pacientes, o médico e a paciente tiveram vinte “entrevistas prolongadas”, cada uma das quais de aproximadamente uma hora. Durante a primeira quinzena foi vista quatro vezes e posteriormente com freqüência cada vez menor. Ignorávamos, entretanto, se o que havia conseguido de seu médico era de valor durável; isto é, se os problemas fundamentais haviam sido resolvidos em proporção suficiente para permitir à paciente seu próprio desenvolvimento, ou se posteriormente requeriria mais ajuda. O Dr. R encerrou a discussão: Durante a última entrevista me disse o seguinte: “Suponho que se no futuro algum problema me perturbe o mais provável é que sofra de perturbação do estômago, mas então saberei o que devo fazer: discutirei meus problemas com meu marido ou médico — se puder.” Sem dúvida, a conversão da Srta. S à “fé psicossomática”, isto é, à fé do Dr. R era completa, e talvez fosse permanente. Era muito provável que em uma emergência isto a ajudasse consideravelmente a não se refugiar outra vez em “doenças” dispépticas ou reumáticas. No final de setembro de 1954 o Dr. R informou: Recebi uma fatia do bolo de casamento da Srta. S; escreveu-me que são muito felizes; estabeleceu boas relações com seu pai, que ele deu um grande presente de casamento. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
142
Capítulo
15
O Clínico Geral como Psicoterapeuta
B) UM CASO DIFÍCIL O caso que agora relataremos foi certamente difícil por uma quantidade de razões. Primeiramente, o caso em si era difícil; depressões graves em um homem basicamente histérico, limítrofe entre a neurose e a psicose, a ponto de ser internado em um hospital psiquiátrico como paciente voluntário. Além disso, o tratamento foi iniciado pelo clínico geral sem discussão prévia no seminário, em uma fase crítica de nosso próprio desenvolvimento. Enquanto isso o seminário havia realizado certos progressos. Uma minoria dos participantes se mostrava exuberante e segura de si mesma e sentia que “nós, os clínicos gerais, se levássemos a coisa a sério poderíamos realizar tão boa psicoterapia como os psiquiatras, senão melhor”. Os outros, a maioria, sentiam-se fora de seu elemento, e invejavam a seus “valentes e talentosos” colegas de vocação psicoterápica, ao mesmo tempo que de um modo ambivalente e desconfiado esperavam que o psiquiatra os guiasse e assumisse a responsabilidade de assinalar “quando parar” com seus pacientes. Na realidade, alguns deste último grupo renunciaram então, durante certo tempo, a praticar psicoterapia. A Dra. H pertencia ao grupo menor, de inclinações psicoterápicas. Qualquer médico que fizesse parte do seminário que se dispusesse a fazer psicoterapia podia solicitar a alguns dos especialistas da Clínica Tavistock a supervisão regular de seus casos. O chefe do seminário não realizava trabalho de supervisão, pois temia-se que isso pudesse dar ao médico que trabalhasse com ele algo parecido a uma posição privilegiada. Embora os especialistas por breves períodos tomassem parte em nossas discussões, via de regra não tinham contato conosco. Havia-se previsto a possibilidade de que essa organização flexível provocasse certas complicações, mas decidimos correr os riscos antes de sujeitar todo mundo a um sistema de “cooperação” rígida. Nesta atmosfera se produziu uma crise triangular, envolvendo o paciente, a Dra. H e o especialista, o Dr. X. Em pouco tempo, o seminário e seu líder estiveram a ponto de ver-se envolvidos no assunto. Dado que então já sabíamos algo do “conluio do anonimato”, da “diluição de responsabilidade” e da “perpetuação da relação professor-aluno” (discutidos em capítulos anteriores, 7 a 9) o chefe do seminário conseguiu, com certo © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
143
esforço, manter-se e manter o seminário fora do choque provocado pela crise. Pôde assim, de sua posição independente, ajudar a clínica geral a assumir a responsabilidade total pelo caso — a despeito de seu ressentimento e insegurança, por um lado, e de sua tendência à crítica excessiva pelo outro. Foi uma tarefa difícil para todos os interessados, e estou agradecido aos protagonistas deste drama por haverem permitido a publicação deste relato. Várias são as razões pelas quais desejo incluir essa história clínica. Dada a natureza das dificuldades que o caso oferece, assinala aproximadamente os limites das possibilidades do clínico geral. Sei perfeitamente que haverá aqueles que digam que um caso dessa natureza de modo nenhum deve ser tratado por um clínico geral. Não discutirei essa opinião, tanto mais que em várias ocasiões durante o tratamento eu mesmo me senti muito inseguro. Felizmente — com certa, embora não muita, ajuda da sorte — o tratamento teve êxito, fato que creio valer a pena registrar. Devo precisar mais o que acabo de dizer. Nem todo clínico geral poderia sequer pensar em aceitar esse tipo de caso. A Dra. H tinha uma vocação particular para a psicoterapia, e de certo modo possuía o entusiasmo dos “noviços”. O sentimento de que possuía essas qualidades tornava-a audaz, embora nunca irresponsável. Tratou de casos que teriam constituído um teste muito duro para qualquer psicoterapeuta adestrado. Naturalmente, teve sua proporção de êxitos e de fracassos. Esta história clínica ilustra também a grande ajuda que um seminário como o nosso pode prestar a um clínico geral quando esse se vê em dificuldades com seu paciente. Estou seguro que todos os interessados convirão comigo em que se a Dra. H não tivesse podido discutir em nosso seminário as suas dificuldades técnicas e seu próprio envolvimento pessoal, não teria conseguido circunavegar os recifes entre os quais ela e o Sr. P se viram, devido a sua audaz decisão em aceitá-lo para tratamento. Finalmente, essa história mostra também parte das dificuldades e imprevistos da relação, entre o especialista e o clínico geral. Na realidade, exibe tão claramente todos os aspectos dessa relação, já discutida nos capítulos anteriores, que seria difícil, para não dizer impossível, achar um substituto. No curso deste tratamento todos cometemos erros em uma ou outra ocasião, e desejo expressar meu reconhecimento frente ao fato de que ninguém objetou à publicação dessa história, inclusive suas partes pessoais. Desejo recordar ao leitor que todos os detalhes desse caso foram tomados de um registro taquigráfico praticamente textual das discussões. No dia 6 de janeiro de 1954 a Dra. H apresentou o seu primeiro relatório sobre o Sr. P. CASO 24 No Natal o Sr. P teve aguda depressão e solicitou-me muito. Na segunda-feira discuti o caso com o Dr. X, que aceitou vê-lo. Mas sua secretária me telefonou para dizer que ele não poderá atender o paciente antes de 3 de fevereiro. Que deverei fazer? — seu caso é urgente. O Sr. P tem 34 anos, é casado e tem duas crianças (meninas). Veio em julho pela primeira vez. Tinha sofrido um colapso nervoso três ou quatro meses antes. Seu médico anterior havia pedido a um psiquiatra que realizasse uma visita domiciliar ao paciente, e este foi internado durante três semanas no Hospital C. Apenas conversou e tomou comprimidos, melhorou e teve alta. Recaiu uma quinzena após a alta. Então veio me procurar, porque ouviu dizer que eu realizava tratamento psicológico. Atendi-o regularmente, a princípio uma vez por semana, e logo duas vezes semanais. Durante dois períodos, em que teve depressão aguda, vi-o todos os dias, em cada caso durante menos de uma semana. É funcionário civil de escritório, e durante esses seis meses conseguiu continuar trabalhando. No Natal sua crise foi completa, e desde então não pôde retornar a seu trabalho. Só tem uma perna, tendo perdido a outra em Dunquerque, e usa uma perna artificial. Tem graves ataques de ansiedade, medo de morte e terríveis sentimentos de culpa quan© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
144
to ao passado. Casado depois da guerra, tem sido constantemente infiel a sua esposa. Precisa sempre andar com mulheres inferiores a ele, tendo-as durante um dia e logo as abandonando. Também tem sentimentos de culpa com respeito à masturbação e a seu hábito de espiar no interior dos automóveis onde há casais fazendo amor, para então voltar para casa e masturbar-se. Também se excita quando vê filmes ou lê histórias de amor. Nunca teve verdadeira satisfação com a esposa. Provém de uma família da classe média baixa. O pai, soldado, foi muito rígido. A ambição do paciente era elevar-se; sempre temeu que as pessoas descobrissem que vinha de um lugar humilde. Não recebeu muito boa educação. Pouco antes da guerra quis ingressar na Marinha, mas foi rejeitado e então se incorporou ao Exército, com o propósito de seguir carreira, mas a perda da perna impediu isso. Sofreu mais ou menos 20 operações na perna; tem sentimentos de culpa ante o fato de achar-se vivo, pois outros foram mortos e ele deveria ter morrido também. Teve uma infância difícil, os pais brigavam constantemente; quando havia uma discussão, os pais não se falavam durante dias e dias. O menino sentia terror de ambos. Discutimos seus pais e seus sentimentos para com eles, e começou a compreender muitas coisas. Mas a esposa combinou a visita dos pais do paciente para o Natal, e este foi o ponto de partida de sua depressão. Novamente ocorreram cenas, e os pais não se falaram. Ele se considerou culpado de todo o ocorrido. Veio ver-me no dia de Natal, chorando como um menino e não sabendo o que fazer. Desde então a esposa tem vindo e também o resto da família. Tive de dar-lhe certificados para justificar a sua ausência do emprego e receitar-lhe comprimidos. O paciente teme o ETC (eletrochoque) — viu outras pessoas que se submeteram a eles —, e todos lhe dizem que deve recebê-los. Também a esposa insiste em que vá a um médico apropriado e que se submeta a tratamento adequado. O pessoal de sua repartição lhe recomenda que vá a um hospital, onde possam tratar sua depressão. O Dr. X acredita que há uma transferência negativa demasiado intensa e que será impossível para mim resolver este caso já que também sou médica da família. Aterroriza-lhe a idéia de suicidar-se. Antes não podia viajar de trem; agora esse sintoma desapareceu. Sente que vai desmaiar, sente dores de cabeça, zumbidos nos ouvidos e todos os sintomas habituais. Quando era menino quase perdeu o braço esquerdo devido a uma vacina mal aplicada; também sofreu graves queimaduras em ambas as pernas. Sente-se muito pior no escritório e melhor em casa. A grave depressão de princípios de 1953 se deveu a que no escritório o rebaixaram de categoria. O Ministério comprovou que não havia sido apropriadamente treinado como funcionário civil (conseguiu o trabalho por intermédio do hospital onde lhe amputaram a perna) de modo que o rebaixaram de categoria e puseram outro em seu lugar. Desde então se sentiu bastante bem, embora não feliz; seu casamento nunca foi satisfatório. Durante todos esses anos sua esposa se sentiu muito deprimida. É originária de A, e sempre quer voltar para perto de seus pais. Saíram de A e vieram para Londres porque o paciente já estava farto que a esposa estivesse sempre com os pais.
A todos nos impressionou a gravidade do caso, e a temeridade demonstrada pela Dra. H em aceitar o tratamento do paciente, mas — como já se explicou antes — tudo isso ocorria em um momento crítico de nosso desenvolvimento, de modo que resolvi não interferir e deixar que a Dra. H e seu supervisor, o Dr. X, resolvessem por si mesmo o problema. Acrescentou a Dra. H.:
O Sr. P pretende por-me constantemente à prova e obrigar-me a que eu o envie de volta ao hospital, para que ali o submetam a tratamento, quer dizer ao ETC. Quando © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
145
veio ao meu consultório, no Natal, disse que estava disposto a ir ao hospital, porque sem dúvida eu já estava farta dele. A esposa me pressiona a fazer algo.
Depois de uma discussão preliminar, formulamos três interrogações: primeiro, se havia sido ou não sensato aceitar o caso para tratamento. Segundo, o que se havia passado entre o Sr. P e a Dra. H, piorando o estado do paciente, ao extremo de fazê-lo causar tantos incômodos a sua família e à Dra. H. Terceiro, se a “transferência negativa” ou a “reação terapêutica negativa” constituía um sinal, como parecia crer o Dr. X, de que o clínico geral devia interromper o tratamento. Durante certo tempo foi simplesmente impossível conseguir que o seminário discutisse o primeiro problema. Finalmente, quando consegui que os participantes fixassem sua atenção, negaram-se simplesmente a examiná-lo. O único ponto admitido como válido foi que os clínicos gerais dispunham de pouco tempo e que por conseguinte não podiam aceitar pacientes que exigissem consultas demoradas. Vi-me obrigado a deixar o problema neste ponto porque, como já assinalei antes, tudo isto ocorria em uma etapa crítica de nosso próprio desenvolvimento. Só consegui que se aceitasse que, se um médico aceitava um caso como o do Sr. P, devia estar preparado para algumas crises. A questão era saber se o clínico geral estava em condições de superar tais crises em seu consultório. Caso contrário, não devia aceitar a responsabilidade. Em seguida, os médicos conseguiram compreender que tolerar crises desse tipo não é apenas problema de tempo, mas também de capacidade profissional para suportar a irritação, a frustração e mesmo a ansiedade provocada pela conduta do paciente. Isso foi reconhecido pelos médicos, mas assinalaram que a função do especialista era, ou devia ser, aliviar a irritação e ansiedade do médico. O especialista, graças a seu conhecimento, podia ver mais longe, e devia ser capaz de solucionar as dificuldades; uma melhor compreensão devia dissipar as ansiedades e frustrações provocadas por uma crise. Em suma, um quadro otimista, cor-de-rosa, ambivalente — no qual preferi não mexer. Rapidamente concordamos em que o tratamento do Sr. P podia ser continuado de três modos diferentes: 1) obter ajuda e conselho de um especialista; 2) pedir ao especialista que se encarregasse do paciente, resolvesse a dificuldade que havia surgido, e então devolvesse ao clínico geral — sugestões ambas bem conhecidas e constantemente aplicadas na prática médica; 3) possibilitar que o clínico geral possa chegar a compreender o motivo da crise, de modo que a irritação e a ansiedade diminuam até alcançar níveis toleráveis. A Dra. H — sem muita segurança quanto ao que queria — inclinou-se pela terceira possibilidade, mas disse: “Tudo foi provocado pela visita dos pais. Creio que teve certo sentimento de culpa com respeito a seus pais. O único modo de resolver o problema criado por essa culpa era ser declarado doente, física ou mentalmente, e ser punido.” Essa explicação não foi aceita. Observou-se que possivelmente o paciente havia apresentado à médica dois tópicos: 1) haviam chegado os pais, e a situação era intolerável; 2) sua falta de confiança no método de tratamento da Dra. H. Quando um paciente apresenta dois tópicos, depende sobretudo do médico qual deles será trabalhado. Talvez a Dra. H sentisse apreensão ante a perspectiva de discutir francamente a insatisfação do paciente para com ela, e destacou indevidamente o problema dos pais. A Dra. H admitiu que isso era possível. Perguntou-se então como havia encarado durante os seis meses do tratamento a desconfiança e a insatisfação do paciente com seu méto© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
146
do, quer dizer, sua “transferência negativa”. Talvez não tivesse prestado atenção suficiente a esse tema. A princípio, a Dra. H rejeitou a idéia. “Sempre me mantive alerta ante a possibilidade de uma colocação deste tipo, mas constantemente ocorreu o contrário. O paciente diz a quem o queira ouvir que prefere este tratamento”. Foi-lhe recordado que o Sr. P padecia certa compulsão que o levava a alentar esperanças nas mulheres, para desiludi-las em seguida. Então, a Dra. H acrescentou um detalhe de importância: “Freqüentemente o paciente me coloca no mesmo plano que a esposa, e ao mesmo tempo diz que não podia ter uma mulher que estivesse no nível da esposa. Sua mãe corresponde em grande parte ao tipo de pessoa punitiva e castradora, e algumas vezes ele me disse que minha aparência lhe recorda a mãe.” Então foi possível demonstrar à Dra. H que a crise atual não se relaciona basicamente com a mãe e que, pelo contrário, a mãe constitui um meio excelente de repressão — a crise guarda relação com a Dra. H. Além disso, o conceito mesmo do Natal, o nascimento de um filho a uma mãe tão doce, não castradora, é parte integrante do verdadeiro conflito do paciente. Talvez a interpretação da Dra. H tenha sido o fator que o impediu de expressar sua agressividade e o levou à depressão. Em vez de ficar aborrecida quando lhe foi demonstrado que havia omitido algo, a Dra. H — em atitude habitual sua — interessou-se mais ainda e compreendeu então que o Sr. P era um paciente de muita importância para ela. Era conhecido de muita gente, seu escritório, onde seus colegas tanto se interessavam por sua saúde, estava no mesmo bairro que o consultório — de modo que o fracasso estrepitoso do tratamento implicava certo risco para a reputação da médica, e era natural que isso a afetasse, já que apenas começava a formar sua clientela. Uma vez rompido o gelo, a Dra. H recordou o seguinte: Chamou-me a atenção que não me mencionasse na solicitação que apresentou à Clínica, onde diz: “apresentado à Clínica por...” deixou o espaço em branco. Logo começaram a surgir outros detalhes da mesma natureza: Desde o Natal não veio mais sozinho; ou o acompanha a esposa ou, como é o caso ultimamente, traz a filha. Além disso, vem durante o horário de consultas, e não depois, de modo que se vê obrigado a esperar. Deseja que chegue o momento de ser examinado pelo especialista. Enquanto espera vem ver-me, e diz que seria impossível existir se não pudesse vir ver-me. Enquanto isso, a atmosfera do seminário se havia esclarecido consideravelmente. Notamos novamente que tanto o paciente como seu médico podiam apresentar simultaneamente sentimentos ambivalentes, isto é, agressivos e apreciativos, não de todo reprimidos e tampouco completamente reconhecidos; e que isso podia provocar graves crises, posto que, devido a que são motivos de desagradáveis tensões, costuma-se relegá-los ao transfundo mental, de certo modo fora do alcance de nossa parte responsável. Apareceram aspectos novos, e pouco a pouco surgiu a idéia de que podia ocorrer que o Sr. P não fosse, afinal de contas, tão fraco como havíamos acreditado. Em todo o caso tinha conseguido semear a ansiedade com respeito a sua enfermidade e ao tratamento não só no seio de sua família e entre seus companheiros de trabalho, mas também envolvido nela a Dra. H e, através dela, também o Dr. X, seu supervisor. Não tivemos tempo de começar a discutir essa última complicação, intimamente relacionada a nossa terceira possibilidade, a saber, porque o Dr. X achou o caso do Sr. P contra-indicado para tratamento com um clínico geral. Entretanto, tomei a responsabilidade de entrar © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
147
em contato com o Dr. X, com vistas a solicitar-lhe que examinasse o Sr. P como caso de emergência, para que a Dra. H pudesse prosseguir o tratamento*. Uma quinzena depois soubemos que o Dr. X havia examinado o paciente, mas que a Dra. H não havia recebido o relatório nem procurado o Dr. X para as supervisões. Chamou-se a atenção sobre a contradição entre a premente necessidade de ajuda da Dra. H, duas semanas antes, e sua atual indiferença, e sugeriu-se que talvez a razão fosse que ela mesma tivesse necessitado de alguma terapia que lhe permitisse superar a irritação e a ansiedade provocada pela falta de progresso do Sr. P. Ela havia conseguido que dois atarefados especialistas, o Dr. X e eu, como chefe do seminário, realizássemos uma consulta de emergência em seu benefício; talvez esses esforços tivessem acalmado sua irritação, e não acreditávamos que o resto fosse importante. Interrogada sobre o desenvolvimento do tratamento, a Dra. H informou: Depois da sessão do seminário não sabia se continuava ou não. Então o paciente se entrevistou com o Dr. X e no dia seguinte veio ver-me. Depois de combinada a data com o Dr. X, sentiu-se muito melhor, desapareceu sua depressão, e regressou ao trabalho. Depois da entrevista sentiu-se muito bem. Agradaram-lhe os testes a que foi submetido, achou-os muito interessantes. Muito impressionado com o Dr. X. Discutiram o ETC e o Dr. X explicou, como eu mesma já havia feito, que o ETC não seria um tratamento suficientemente profundo para ele e ofereceu tratamento de grupo. Sobretudo impressionou o oferecimento do Dr. X no sentido de escrever ao chefe (do Sr. P) sobre o assunto. No dia seguinte informou ao seu chefe que havia consultado um psiquiatra e que este lhe escreveria uma carta. O chefe mostrou-se muito contente. Todos os empregados do escritório o invejam porque receberá tratamento na Clínica — finalmente se está fazendo algo de concreto por ele. Continuarei vendo-o uma vez por semana, durante uma hora. Creio que isso foi realmente valioso. Atendi-o na quinta-feira passada, e combinei para que viesse no dia seguinte de manhã, mas apareceu segunda-feira, ao meio-dia. Antes se queixava sempre de enxaquecas, mas agora era o coração. Seu cunhado morrera repentinamente de trombose coronária, e agora o paciente sentia dores em volta do coração; mas agora compreende que é seu costume transferir suas doenças para seu próprio corpo. Voltarei a vê-lo novamente amanhã. Precisamente deste modo começa a “diluição da responsabilidade”. A Dra. H, estimulada pela sua própria capacidade e por suas ambições um tanto otimistas, havia aceito um caso difícil para tratamento. Queria realizar um trabalho melhor do que o de um psiquiatria, e em realidade conseguiu certo êxito. Em seu desejo de ser uma “boa médica” descuidou de prestar atenção à “transferência negativa” do seu paciente, quer dizer, a sua desconfiança frente às mulheres de caráter, a sua necessidade de humilhá-las, e a seu temor à represália, relacionado a esses sentimentos. Surgiu uma crise, e em lugar de esclarecer os dinamismos que a provocaram, envolveu na crise, possivelmente através de seus relatórios ansiosos, também o Dr. X. Entretanto, com a ajuda da discussão no seminário, conseguiu resolver boa parte do problema, mas omitiu informar ao Dr. X. Não é difícil imaginar as razões da omissão; embaraço com respeito a sua própria incapacidade, revelada no incidente mencionado, certo atrito sempre presente nas relações entre o supervisor — supervisionado, o ressentimento que alimentava ante o fato de que o Dr. X não lhe tivesse impedido desencadear uma tempestade num copo d’água e, o último mas o não menos importante, a atitude geral de desafio, de crítica e de desrespeito no seminário com respeito aos psiquiatras.
* Quando o esboço desse capítulo foi discutido, a Dra. H — acho que com razão — criticou a sensatez de minha intervenção. Obviamente tínhamos tido que enfrentar uma crise e ela própria havia pedido ajuda, mas teria sido mais prudente se eu tivesse sido capaz de permanecer fiel a meus próprios ensinamentos e me recusado a desempenhar o papel de útil mentor. Agora ela acha que as coisas começaram a ir mal entre ela e o Dr. X após minha intervenção. Para mim, o ponto mais interessante é que, até o dia da discussão, eu achava que a minha intervenção era certamente um meio muito sensato, talvez o único sensato, de sair de um impasse. Não estou tão certo agora.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
148
De acordo com a Dra. H, essa última razão, embora válida para o grupo em geral, não era aplicável a sua relação com o Dr. X. O Dr. X, impressionado sem dúvida pela desproporção entre a gravidade da doença do paciente e a inadequada formação psicológica da Dra. H, revelada pela própria crise, decidiu que o Sr. P devia ser atendido pela Clínica. Infelizmente deixou de informar, e por óbvias razões, à Dra. H da natureza de seus motivos. No seminário vimos a Dra. H resmungando impotente ante a decisão do psiquiatra, e acrescentou: “Não posso ir contra a sua recomendação, pois o paciente depositou grandes esperanças nela.” A Dra. H criticou acerbamente que se houvesse incluído o Sr. P na lista de espera para tratamento na Clínica, sem indicar-lhe claramente quando podia começar, e que durante um período indefinido de espera fosse deixado entregue à vontade da sorte e à deficiente capacidade de sua clínica geral. Apesar de que aparentemente havia aceito as recomendações do Dr. X, a Dra. H continuava o tratamento como se nada tivesse ocorrido já existiam todos os elementos do “conluio do anonimato”: um caso difícil, uma clínica geral aborrecida, que resmunga e se rebela, e um especialista que desconfia da capacidade da clínica geral, e cuja desconfiança parece bem fundada. Em minha opinião a primeira tarefa do seminário era dissipar o anonimato. Um dos dois profissionais implicados no caso devia assumir a responsabilidade total do caso e, em lugar de criticar o outro, devia aceitar a plena responsabilidade do futuro do paciente. De acordo com esse critério, eu disse à Dra. H:
Se você pede que se examine de urgência um paciente, e não recebe uma carta, pouco importa quem é o especialista, ao clínico geral cabe dar os passos necessários para conseguir o que precisa. Você é responsável pelo bem-estar deste homem. O Dr. X é somente seu especialista assistente e você não pode argumentar que não receitou certos medicamentos ao paciente que os necessitava porque sua secretária se esqueceu de lhe lembrar. Enquanto o paciente se encontra sob seu tratamento, a responsabilidade do caso é sua.
Apesar das experiências vividas em comum — havíamos trabalhado juntos durante mais de dois anos — isso foi demasiado para o seminário, e seus membros se negaram a aceitar minhas observações. Apresentaram todo tipo de argumentos: o Dr. X era, afinal de contas, um especialista de reputação; era simplesmente impossível ignorar sua importante opinião; e sua era a culpa se a Dra. H não havia recebido um relatório apropriado. Que podia fazer um pobre clínico geral em dificuldades, senão consultar um especialista? Devia a Dra. H censurar a esse especialista? Etc. Tudo isto e muito mais foi refutado. Assinalei o seguinte: “O Dr. X disse mais ou menos assim: ‘Esse homem será incorporado a um grupo, e até então deve esperar.’ Nem sequer sabemos se a Dra. H está ou não de acordo com a proposta.” A atmosfera se acalmou pouco a pouco e me pareceu que talvez houvesse chegado o momento de fazer uma interpretação do significado dos acontecimentos para o Sr. P, do motivo de sua melhora e também do sentido de tudo isso para a Dra. H. Observei que agora que havia sido substituída pelo Dr. X, era muito provável que já não representasse o papel da boa mulher; havia sido deposta. O que encaixava no padrão neurótico do paciente — procurava mulheres, mas só para abandoná-las. Ignoramos se é positivo ou negativo, do ponto de vista de seu futuro, que esta situação se haja repetido. Talvez o Dr. X não conheça sequer a existência desse padrão. Então, um dos membros do seminário acrescentou: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
149
A melhora do paciente se deveu provavelmente ao fato de que pode manejar a consulta com o Dr. X contra a Dra. H. Rematei minha interpretação do seguinte modo: Muito provavelmente — vocês talvez recordem a discussão que tivemos há duas semanas — os pais foram os que transtornaram o paciente, e assim apareceram no primeiro plano, mas o verdadeiro problema era com a Dra. H. A intervenção do Dr. X, que determinou o deslocamento da Dra. H, encaixa perfeitamente. A Dra. H foi castigada, e o paciente continuou com seu padrão habitual. A relação entre o paciente e a sua médica, como um todo, não foi elaborada. Segundo parece, essa interpretação foi assimilada, pois a Dra. H admitiu: Só depois da discussão realizada aqui compreendi até que ponto me havia deixado dominar pelo pânico; devia ter continuado e não provocado toda esta confusão, nem enviado o paciente para cá. Fiz isto porque no escritório onde o paciente trabalha falavam contra mim, e minha reputação poderia ter sido facilmente prejudicada. A próxima vez devo ter mais coragem e não renunciar tão rapidamente ao paciente. Creio que teria sido muito melhor que o psiquiatra tivesse dito ao paciente: “Conversarei sobre o assunto com o seu médico.” Em lugar de informar-lhe sem mais nem menos que o incluiria na lista de espera e que enviaria uma cartão ao chefe do escritório. Essa atitude implicava tirar-me o paciente das mãos. Deste modo é difícil voltar e dizer ao paciente: “Vou tratá-lo.” Aprendi muito disto tudo. Os resmungos e as criticas com respeito ao especialista não haviam desaparecido de todo, mas a tormenta se havia dissipado quase totalmente, e a atmosfera se havia desanuviado consideravelmente. A Dra. H compreendeu o papel que ela mesma havia desempenhado no desenvolvimento da crise, e assim pode perguntar-se a si mesma se não convinha discutir com o Sr. P tudo quanto havíamos elucidado no seminário. Foi-lhe lembrado com certa dureza que novamente havia tentado envolver um especialista, dessa vez ao chefe do seminário, no tratamento. Aceitou a repreensão com bom humor, e todos conviemos que ela mesma devia ser juiz do grau de tensão que o paciente poderia suportar, e que deveria adotar sua decisão de acordo com sua estimação desse fator. Duas semanas depois, no dia 10 de fevereiro, recebemos um novo informe da Dra. H:
Certamente cometi um erro quando enviei o Sr. P à Clínica; havia perdido a confiança em mim mesma. No decurso das sessões subseqüentes surgiu o fato de que o paciente se havia ressentido muito quando foi enviado para cá. O paciente pensou que o meu propósito era que outro psiquiatra o examinasse para confirmar meu diagnóstico. Todo esse assunto foi, na verdade, o ponto crucial do tratamento. Agora se abriu realmente, e me diz o que efetivamente ocorre, coisa que nunca fez antes. Há uma vigorosa transferência positiva, ou melhor dito, existe um processo alternado, pois manifesta ambas as formas. Tratei de explicar-lhe o que havia ocorrido, quer dizer, que ele me havia provocado para que eu o rejeitasse; precisamente o que costumava fazer com as mulheres, seduzi-las, e logo as provocar para que o deixem. Por exemplo, marca um encontro com uma mulher na porta de um cinema e a deixa esperando meia hora, e ainda a observa enquanto espera para assegurar-se de sua raiva e de que romperá com ela. Compreendi que me havia manobrado para colocar-me na mesma situação. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
150
Certamente, este foi um bom progresso. A oportunidade foi aproveitada para demonstrar a importância das inte-relações entre o paciente e seu médico. Se ambas as partes compreendem a natureza dessa interação, o tratamento pode prosseguir — como estava ocorrendo agora no caso em pauta. Sem dúvida, o paciente havia tentado repetir seu padrão compulsivo com as mulheres, agora em relação a sua médica. Em geral, se o médico compreende o mecanismo do padrão em questão e se pode explicar convincentemente o caso a seu paciente, afrouxa a rigidez da repetição e pode acontecer algo diferente. No caso do Sr. P a diferença consistiu em que a mulher a quem ele havia abandonado não rompeu com o paciente, em troca o compreendeu, e deste modo ele pode continuar sua relação com ela. Uma semana depois, no dia 17 de fevereiro, informou-nos a Dra. H:
Chegou ao ponto em que podemos conversar francamente de suas fantasias. A transferência está emergindo mais claramente. Tem sonhos sexuais comigo, e consegue aceitar tudo isso porque eu posso relacionar esses sonhos com suas experiências infantis. Por exemplo, dormia no leito da mãe, e até o dia de hoje não sabe se realizava ou não jogos sexuais com ela. Por outro lado, os pais freqüentemente o castigavam de maneira cruel, e o paciente sempre espera que eu vá castigá-lo. Em uma de suas fantasias imaginou que desejava ser levado a um emprego melhor e regressar a A, de onde é originário. Discutiu o assunto com a esposa, e esta imediatamente aceitou a idéia e se manifestou muito contente. Agora o paciente imagina que não pode deixar-me. Por outro lado, desejava testar-me. Se eu tivesse dito que seria bom que fosse embora, corresponderia a rejeitá-lo. Isso ocorreu a semana passada. Na segunda-feira me telefonou para dizer-me que havia sido convidado a uma partida de sinuca, e perguntou se devia ir. Repliquei que deixava que ele próprio decidisse. Decidiu ir. Ontem, na hora do almoço telefonou-me sua esposa, dizendo que ele estava tão mal como antes, realmente desesperado, e que fosse vê-lo depois. Agora, depois que tudo passou, creio que ele queria que eu dissesse “passe depois” quando telefonou pela partida de sinuca. De todos os modos, fui vê-lo. Custou-me 20 minutos, após os quais sentiu-se perfeitamente bem. Novamente me testou, afirmando que necessitava de tratamento por choque, e perguntou por que devia ver-me mês após mês. Expliquei a ele. Logo que cancelou a consulta comigo sentiu-se culpado, e perdeu a partida de sinuca. Creio que consegui melhorá-lo novamente.
Tratava-se de outra crise, mas dessa vez enfrentada pela médica sem necessidade de ajuda exterior. Paralelamente a esses fatos, ocorreram outros entre o clínico geral e o especialista. Neste caso o seminário e seu chefe deverão reconhecer seu próprio fracasso. Segundo parece, o especialista estava convencido de que o caso do Sr. P não devia ficar sob os cuidados de um clínico geral sem as correspondentes qualificações em psicoterapia. O especialista provavelmente considerou que se tratava de um paciente gravemente neurótico; que a capacidade da Dra. H não era suficiente para enfrentar os obstáculos criados pela suprema habilidade com que o paciente complicava a todos os que o rodeavam em complexos padrões de transferência; que nossas experiências psicoterápicas com clínicos gerais eram perigosamente irresponsáveis e ambiciosas, e assim por diante. A superação da dificuldade criada por esse franco desacordo entre os objetivos do seminário e as opiniões do Dr. X exigiam grande esforço. O caminho mais prático para sair do labirinto de respeitos, lealdade e dependências contraditórias consistiu em assinalar uma ou outra vez que só um médico podia assumir a responsabilidade total de cada pacien© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
151
te. Quem aplica o tratamento cabe tomar as decisões e enfrentar a responsabilidade conseqüente. O critério de validez de uma decisão consiste em saber se a mesma cria ou não melhores perspectivas terapêuticas para o paciente. Portanto, sempre que a Dra. H tratou de manter aberta uma porta de escape, recordou-se conseqüentemente de que era ela que devia decidir o que julgava melhor para o Sr. P — a terapia de grupo com a sua grande lista de candidatos em espera de vaga ou a ajuda imediata, ministrada por ela mesma — e agir de acordo. Finalmente esta colocação determinou que a Dra. H suspendesse suas sessões de supervisão com o Dr. X, o que a obrigou a buscar outro supervisor em condições de ajudá-la. Este período, desde o Natal, data em que se instalou a crise, até meados de março, quando a Dra. H pôde pôr-se de acordo com outro supervisor, não foi de modo algum fácil para ela, nem para o seminário, nem para seu chefe e tampouco, seja dito de passagem, para o Dr. X. De um modo ou de outro todos nos vimos envolvidos na confusão. Creio que todos aproveitaram a experiência; e todos, sem excetuar o chefe do seminário, alcançaram uma compreensão mais madura das possibilidades e limitações de nosso poder terapêutico. Em abril inteiramo-nos de que se havia produzido outra crise com o Sr. P. A Dra. H nos recordou que:
Na opinião do Dr. X, era provável que este paciente sofresse graves crises de depressão, e podia ficar de muito difícil manejo nos limites da clínica geral. Depois consegui levar adiante o tratamento e enfatizamos bem, embora sofresse esporadicamente crises de depressão. Entretanto, durante as últimas duas semanas sentiu-se gravemente deprimido. Agora alenta constantemente fantasias e sonhos a meu respeito, e todo assunto centra-se sobre a possibilidade de manter relações sexuais comigo. Por hora não consigo tirá-lo desse ponto. Devo mencionar certo detalhe. Quando tinha 9 anos realizou com a mãe jogos sexuais que estiveram a um passo de converterem-se em ato sexual; por exemplo, acordava durante a noite e se encontrava sobre a mãe; afirma que ela despertou sua sexualidade, mas quando ele tentou fazê-lo de novo, ela lhe riu na cara. Fez uma nova tentativa com a irmã, quando ela tinha 13 anos e ele 11; a menina falou ao pai e o paciente recebeu uma boa surra. Quando ele tinha 11 ou 12 anos, a mãe sofreu um grave colapso nervoso e esteve doente durante dois anos, como conseqüência da morte de seu pai. Tudo isso veio à luz, e ele compreendeu agora que essas experiências estabeleceram o rumo de tudo que agora trata de fazer com as mulheres. Eu represento a mãe; mas, afirma o paciente, eu não sou sua mãe, sou uma mulher solteira; então por que não concretizar essa relação? Ocorreu outra mudança; anteriormente sempre tentou obrigar-me a enviá-lo para ETC — agora mostra-se desinteressado de tudo. Dorme mal, não come, e está desenvolvendo todo tipo de sintomas orgânicos; sente dores no coração, sente-se doente. Pergunta-me por que não o envio para que lhe façam um raio X, pois está seguro de que algo está errado. Segunda-feira vi-o pela última vez. Veio a uma hora da tarde em condição lamentável, absolutamente seguro de que está doente. Tinha ido ao escritório durante a manhã, mas disse que já não podia suportá-lo mais.
Como bem o sabe todo médico experiente — quer se trate de um clínico geral ou de um especialista — a história de infância que surgiu nesse caso não é tão rara como seria de desejar. Adultos gravemente perturbados e insatisfeitos como a mãe do Sr. P são capazes de utilizar seus indefesos filhos como receptáculo de suas emoções reprimidas. Depois, sob o peso de seus sentimentos de culpa, necessitam ridicularizar o menino tolo que levou a sério o ocorrido e que espera que continue. Este caso é típico também de outro ponto de vista, pois depois de rejeitado pela mãe, o menino tentou a sorte com a irmã © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
152
— tentativa que também acabou em desastre. Não podemos estranhar, pois, que já homem, o paciente sentisse um impulso irresistível a seduzir mulheres para rejeitá-las depois, inflingindo a outros, em seu ressentimento inestinguível, a mesma experiência que ele havia sofrido. O fato de que os mecanismos emocionais determinantes de sua conduta permanecessem inconscientes, tornava incontrolável este padrão repetitivo. Quando o seminário escutou o relatório, sua primeira reação foi de comoção e ansiedade. Certo número de médicos se declarou a favor de aplicar imediatamente ETC no paciente. O argumento foi sua depressão recorrente, mas talvez a verdadeira razão consistisse na grave apreensão provocada pela terrível história infantil do Sr. P. Outros médicos recordaram a opinião do Dr. X e começaram a vacilar — talvez esse tipo de tratamento fosse deveras demasiado ambicioso para um clínico geral. Devo reconhecer que também eu tive meus momentos de vacilação. De qualquer modo, sustive que antes de tornarmos uma decisão devíamos conhecer todas as possibilidades. Que recursos existiam fora do ETC ou do envio do paciente à Clínica Tavistock para sua incorporação a um grupo terapêutico? A Dra. H continuou:
Também me pediu da última vez que o enviasse a um médico homem. Expliquei-lhe que se tratava da mesma situação do ETC, em outras palavras, de enviá-lo para a pai, para que este o castigasse, tal como ocorrera durante sua infância. Sinto que deveria prosseguir no tratamento desse paciente. Bastaria que compreendesse que sua depressão não é mais que uma repetição... Aqui, um dos médicos diagnosticou corretamente o caráter da emergência. Disse o seguinte: Evidentemente se agora enviamos este homem, depois que reconheceu que deseja sexualmente a Dra. H, ao ETC ou a um psiquiatra homem, isso implicaria repetir e reforçar o padrão determinado pelos traumas sofridos na infância. Não poderíamos, em troca, oferecer tratamento de apoio à Dra. H?
Então recordei ao seminário e à Dra. H:
Também em seu caso, Dra. H, pode existir certa repetição. Não é a primeira vez que a vemos às voltas com um caso interessante e difícil, realizando excelentes progressos no tratamento de um paciente, para cair logo em uma situação critica. Não poderia ocorrer que a crise se originasse em você e não só no paciente?
Ao chegar a este ponto ocorreu um episódio divertido. Certo número de médicos homens informou que considerava conveniente, quando devia tratar uma paciente sexualmente agressiva, colocar uma enfermeira, ou alguma outra pessoa, sentada no consultório ou em um quarto vizinho. Quando observei que os médicos pareciam mais temerosos do ataque sexual de suas pacientes que as médicas, a Dra. H replicou que não tinha o mais leve temor, e outra médica inquiriu muito divertida se podiam tirar o título a uma médica que tivesse casos amorosos com os seus pacientes. Resultou que no caso do Sr. P a relação médico-paciente incluía um elemento de agressão sexual numa forma simbólica bastante transparente. Cada vez que aparecia um novo sin© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
153
toma físico, o Sr. P exigia insistentemente que a Dra. H o examinasse. Entretanto, a médica se recusava tenazmente a praticar exames físicos e lhe oferecia em troca enviá-lo ao especialista que ele próprio escolhesse. As razões da Dra. H eram que não desejava sobrecarregar a relação de transferência já francamente sexual entre o paciente e ela pedindo que se despisse para proceder ao exame físico. O problema em questão, a saber, se um médico em relação psicoterápica estreita com seu paciente deve ou não examiná-lo fisicamente, foi sempre um dos favoritos do seminário. Trata-se de um tema inesgotável, rico em inúmeras variações: o médico e o paciente podem ser do mesmo sexo, ou de sexos opostos; podem ter aproximadamente a mesma idade, ou idades muito diferentes; o exame pode realizar-se da cintura para cima ou para baixo; pode ter existido um passado não-psicoterápico, durante o qual ditos exames eram coisa corrente, ou a relação deve começar com o tratamento psicoterápico; o médico é talvez o médico da família, e ficaria estranho que examinasse a A e que não o fizesse a B, sendo idêntica a doença, etc., etc. Como é impossível traçar normas fixas, este tópico se converteu em um dos freqüentes problemas difíceis de nosso seminário. Depois de haver resumido a situação, a qual, nessa intensa etapa do tratamento, revelava que qualquer exame físico equivalia a um ataque sexual simbólico contra o paciente. e a negativa em examiná-lo era algo como rejeitá-lo e ridicularizá-lo (atitude, precisamente, da mãe do paciente) só podíamos deixar que a Dra. H decidisse, juntamente com seu paciente, qual das duas atitudes constituía o mal menor. Em todo caso, sempre existia uma terceira possibilidade — enviar o paciente a um hospital para que se submetesse a um exame físico. Depois dessas reflexões e um pouco estimulado por mim, o seminário retornou ao problema que — em minha opinião — era fundamental, a saber, porque no caso da Dra. H as crises eram mais freqüentes do que no de qualquer outro participante. Foram sugeridas várias explicações: a Dra. H aceitava casos muito difíceis; aprofundava-se nos problemas dos pacientes; além disso, em sua condição de principiante tinha mais tempo do que os demais médicos do seminário; e assim por diante — explicações todas que, em geral, não revelavam grande coisa. Então a Dra. H repetiu a razão de sua inquietude:
Pela primeira vez, o Sr. P não come e tem insônia. Costumava se sentir aliviado depois de cada sessão, mas isso é coisa do passado. Não sente interesse por nada, e não há melhora depois de ver-me. Não há uma atitude francamente suicida mas me preocupa o fato de que tenha sofrido grande número de acidentes no curso de sua vida.
De minha parte, resumi a situação nas seguintes palavras:
Qual entre essas ansiedades deve merecer-nos consideração principal? Se a Dra. H envia o paciente ao hospital ter-se-ia resolvido o problema de sua ansiedade como médica, mas o paciente teria conseguido promover outra repetição do seu trauma. Às vezes nós médicos devemos decidir em salvar-se a vida da mãe ou a do filho; segundo parece, às vezes é preciso definir entre salvar o clínico geral ou o paciente.
Não me surpreendeu que minhas palavras não fossem bem recebidas. Quase todos os médicos apoiaram a Dra. H; todos sentiam que ela já havia tido sua oportunidade, devia reconhecer que havia perdido e que o melhor que podia fazer era aceitar o oferecimento do Dr. X, e enviar o Sr. P à Clínica para que ingressasse num grupo. Não obstante concordou-se que a Dra. H devia averiguar antes quanto tempo necessitaria o paciente esperar antes de ser atendido e que, neste meio tempo, devia continuar o tratamento. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
154
Uma semana depois a Dra. H informou:
Vi-o novamente na quinta-feira, antes de nossa última reunião. Procurei demonstrar que no momento dependia muito de mim, e que na realidade havia regressado à condição infantil totalmente dependente da mãe e que não se sentia de todo satisfeito comigo. Essas observações levaram-no a revelar a verdadeira base de toda depressão. O paciente e sua esposa receberam questionário do Hospital C no qual era perguntado como se sentia desde a alta. Não sabia o que fazer e tinha sentimentos contraditórios. No princípio fantasiou sobre a figura do psiquiatra como representação de seu pai, que se interessava por ele e lhe dizia “venha a mim”. Discutimos o problema. Durante muito tempo, adiou sua resposta ao questionário. Certo dia o respondeu, e escreveu que sua médica o submetia a tratamento psicológico, e que este lhe parecia mais positivo que o tratamento do hospital. Quando enviou a carta sentiu-se muito contente, mas durante a última quinzena se sentiu muito contrito por haver rompido com o seu psiquiatra-pai; sempre sentiu que podia voltar mas agora lhe parece que é impossível. Ao mesmo tempo, comprou um pássaro, aleijado como ele. Durante várias semanas cuidou do animal, mas a esposa o persuadiu de que se desprendesse dele e comprasse outro. Expliquei-lhe a semelhança entre sua atitude atual e o ato de romper com o pai. Demonstrei-lhe que fantasia a respeito do papel do psiquiatra como pai bom que o protege mas em realidade não é seu pai, que para o médico o Sr. P não é mais do que um paciente, e a carta recebida era simplesmente um questionário. Também mencionei o ETC, o pai que castiga. Mencionei além disso que sentia necessidade do pai, porque este o havia protegido na infância, quando tinha que enfrentar algo desagradável, por exemplo dentista, hospital ou a escola. Durante meses o pai o havia levado ao hospital, onde cuidavam de suas queimaduras. Então, o Sr. P me perguntou se o pai o havia levado por amor paterno ou porque se sentia responsável pelo acidente no qual o paciente havia recebido as queimaduras.
Aparentemente, tinha sido possível contornar outra crise. O problema em torno do qual parecia haver girado esta crise eram as lealdades contraditórias do Sr. P entre o pai poderoso que podia feri-lo (surras, ETC) mas que ao mesmo tempo se interessava por ele e o protegia (levava-o ao hospital e lhe enviara um questionário), e a mãe, que o estimulava mas talvez não o amasse bastante. Com muito pouca ajuda a Dra. H percebeu todas essas correntes e decidiu — novamente — prosseguir o tratamento, e cancelar seu pedido urgente de vagas na lista de tratamento na Clínica. Por outro lado, recolhemos uma impressão sobre as possíveis causas da crise recorrente na Dra. H. Era capaz de prestar excelentes serviços aos seus pacientes enquanto sentia que a necessitavam e apreciavam; se um paciente se voltava contra ela ou preferia outro profissional, sua confiança em si mesma vacilava e seu domínio da situação também, e se debilitava sua capacidade terapêutica. O informe seguinte é de fins de maio, mais de um mês depois da última crise:
Recordarão que informei a existência de uma crise, aproximadamente há dois meses. Depois, aprofundei bastante, e explorei a situação do ponto de vista da relação entre o paciente e eu mesma, que havia passado a desempenhar o papel de mãe. Nos últimos dois meses se operou uma mudança súbita. Sentiu-se notavelmente bem, e não surgiram doenças de caráter físico. Ele mesmo sugeriu a conveniência de vir somente uma vez por semana. Iniciou uma série de atividades complementares. É presidente de um comitê de locatários. É árbitro em partidas de críquete... Todavia, apresenta altos e baixos. Ainda sofre certo sentimento de ansiedade, mas pode compreendê-lo e dominá-lo. Antes ou tinha uma crise ou vinha pedir ajuda, mas © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
155
agora é realmente capaz de enfrentar a vida. Pensa sair de férias na próxima semana, coisa que teria sido impossível seis meses antes. E jamais o submeti a exame físico. Os “dois meses” mencionados no informe da Dra. H revelam quão intenso foi seu alívio ante o fato de que, depois de tudo, se havia mostrado capaz de guiar o barco do paciente evitando todos os recifes. Para dizer a verdade, os dois meses em questão foram somente seis semanas. Naturalmente, todos nos sentimos muito aliviados. Depois de compartilhar a alegria da Dra. H, alguns profissionais colocaram um problema importante. Seria a Dra. H capaz de separar-se dessa intensa transferência? Ser-lhe-ia possível voltar ao papel de médico da família, ou se veria obrigada a continuar permanentemente desempenhando as funções de “boa mãe”? Infligiria outro trauma ao Sr. P se essa relação intensa se tomasse insuportável para ela e se visse forçada a afastar seu paciente? Pessoalmente, sentia-me mais otimista. Depois de tudo, as mães não têm outra alternativa que continuar sendo mães toda a vida. Indubitavelmente, os meninos crescem e se tomam independentes em maior ou menor grau, mas no fundo conservam sempre sua condição infantil. Por que a Dra. H não podia representar durante certo tempo a “boa mãe” que o Sr. P nunca tinha tido? Além disso, o problema oferecia outro aspecto. Todo menino exige atenção desde o princípio. Os pais, estimulados por seus próprios impulsos reprimidos, podem responder de um modo francamente sexual e submeter o menino a uma forma e intensidade de estímulo que a criança não pediu e que é excessivo para ele. Algo desse estilo tinha ocorrido entre o Sr. P e sua mãe. O menino se havia aproximado dela em busca de amor, e a mãe havia respondido com uma grosseira reação de caráter sexual. Na relação terapêutica entre o Sr. P e a Dra. H ocorreu algo completamente distinto. Pela primeira vez no curso de sua vida uma mulher respondia a seus apelos, e o fazia prestando-lhe atenção em um plano que não era sexual nem grosseiramente sexual. Mais ainda, por muito que o paciente se esforçasse, não pôde induzir a médica a ultrapassar esses limites. Assim, o paciente conseguiu modificar suas idéias pelo menos sobre uma mulher, e talvez sobre as mulheres em geral. Talvez lhe fosse possível desenvolver-se a partir desse ponto e forjar a imagem de uma mulher que não exigisse demasiado, e que estivesse disposta a dar-lhe de acordo com as suas necessidades. Essas reflexões podiam constituir a base de uma atitude mais madura quanto à vida. Em todo caso, a Dra. H havia sido advertida, e sabia a que ater-se. Certamente, a minha visão no processo era otimista, mas por uma vez a realidade ultrapassou a predição otimista. Um mês mais tarde, em fins de junho, recebemos o seguinte informe:
O Sr. P tirou três semanas de férias pela primeira vez desde que iniciou o tratamento comigo. Enviou-me um postal no qual me diz que se sente muito bem. Voltou ontem, e com grande surpresa de minha parte se encontra extremamente bem. Enquanto estava fora de Londres foi a A onde vivia antes e onde reside a família de sua esposa. Durante anos a fio sua esposa quis voltar e ele quis fugir. Agora o paciente decidiu voltar. Trabalhava no Ministério de... e conseguiu transferência para Londres porque a situação familiar em A se havia tornado insuportável. Assim começou a sua depressão. Dessa vez, enquanto se achava em A, foi visitar seu antigo chefe, que lhe disse que deseja tê-lo de volta, e que o promoveria imediatamente. Além disso, o Sr. P combinou com o Conselho de A para que lhe construam uma casa. Mais ainda, encontrou um homem que tem uma casa pré-fabricada e que deseja trocá-la com alguém que disponha de acomodações em Londres. O Sr. P projeta chegar a um acordo com este homem e ocupar a casa pré-fabricada até que esteja pronta a construção prometida. Sentiu-se perfeitamente bem, não sofreu um só ataque de ansiedade, não manifestou animosidade contra seus sogros, não teve crises de depressão, e se sentiu perfeitamente feliz. Sua esposa mudou completamente desde que ele cedeu no assunto de retorno a A. Sua única dúvida se refere a separar-se de mim. Pensa em mudar-se © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
156
em setembro, e afirmou que tinha esperança de continuar me procurando para discutir problemas, até o momento de sua partida. Concordei e sugeri que estabelecêssemos um intervalo mais prolongado, e ele disse que voltaria dentro de duas semanas.
Entretanto, o assunto não terminou aqui. Em fins de setembro, a Dra. H informou:
Agora podemos considerar realmente concluído o caso do Sr. P. Dirigiu-se a A aproximadamente há 15 dias e sente-se muito bem. Conseguiu um excelente emprego. Separou-se de mim com bastante facilidade. É interessante observar que durante sua última visita me disse que sua esposa estava grávida, e que ele a havia engravidado mais ou menos sem conhecimento dela. O paciente sempre desejou ter um filho, o casal já tendo duas filhas. A princípio ela não gostou muito, mas agora aceitou a situação, sobretudo porque voltam para casa. O paciente tem agora um cargo no mesmo ministério, exatamente o que desejava.
A Dra. H certamente mereceu nossas felicitações e as esperanças que todos expressamos de que a melhora do Sr. P fosse permanente. Um dos membros do seminário acrescentou: “Tomara que seja um menino.” Às vezes tudo acontece como deve, e graças a um informe complementar de novembro de 1955 soubemos o seguinte:
Desde que se mudou para A, no ano passado, não tive notícias diretas do Sr. P. Um amigo do paciente me disse que se sente muito bem, tem um bom emprego e, além disso, há seis meses nasceu um varão.
No período de vida do seminário, isto é, ao longo de mais de três anos, foram tratados quatro casos “difíceis”. Foram eles: uma esquizofrênica fronteiriça, a qual, depois de certa melhora inicial muito prometedora, teve seu tratamento interrompido devido às exigências deslocadas e crescentes que fazia a seu médico; um caso de histeria ansiosa gravemente perturbada, que pode ser considerada um êxito parcial; um mulher de idade madura com uma neurose de caráter profundamente arraigada do tipo obsessivo-dominador, a qual às vezes se via obrigada a apelar para confabulações muito complicadas que buscavam desorientar o médico com o fim de mantê-lo pisando em brasas, caso que, em minha opinião, também deve ser considerado como muito melhorado. E, finalmente, o Sr. P. Agora, quando contemplamos retrospectivamente os fatos, notamos que os quatro casos possuem certos traços em comum. Sobretudo a intensidade do sofrimento e, em relação com este, o pedido quase irresistível de ajuda, que induziu os médicos a aceitarem o tratamento, embora compreendessem que teria sido mais razoável negar-se a isto. Nos quatro casos assistimos a uma sucessão de crises; o transfundo dinâmico das crises revelava diferenças individuais, mas em todas o paciente sentia que o médico não demonstrava suficiente compreensão e espírito de colaboração, pelo qual se via obrigado a expressar esta crítica sob a forma de mais acentuado sofrimento, provocando desse modo intenso sentimento de culpa no médico e o desejo veemente de fazer mais pelo paciente. Foi difícil convencer em cada caso ao médico que demonstrar “mais simpatia” e tentar “fazer mais” de nada serviria, porque só criaria um interminável círculo vicioso. Em certos casos conseguimos cortar essa espiral, mas fracassamos em outros. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
157
Quando, em janeiro de 1956, discutimos o esboço deste capítulo, o seminário conveio que os quatro casos haviam sido extremamente difíceis, que os médicos apenas haviam conseguido levar adiante o tratamento, e que certamente nada teriam podido fazer sem a ajuda do seminário. Outro ponto de importância consistiu em que os médicos que haviam tratado esses quatro casos declararam unanimemente que não os teriam aceito se tivessem sabido o que lhes esperava; e com idêntica unanimidade afirmaram que se alegravam de haver passado pela experiência, pois haviam aprendido muito. Embora pareça estranho, alguns dos médicos restantes declararam que não lhes desgostaria testar suas forças se se apresentasse um caso adequado. Seja como for, e minha opinião, pelo que vale, é a de que um clínico geral deve pensar duas vezes antes de aceitar tratar de pacientes tão difíceis, e que certamente não deve fazê-lo por sua conta própria e sem ajuda.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
158
Capítulo
16
A Função Apostólica — 1
Embora os diversos fenômenos que constituem a “função apostólica do médico” sejam inequívocos e facilmente observáveis por qualquer um, para o autor este capítulo ofereceu maiores dificuldades que nenhum outro. Dificuldades que não se originaram nas complicações do tema, mas na consideração devida aos médicos participantes. Como já mencionei várias vezes, todos os casos citados neste livro foram observados por clínicos gerais que tomaram parte em nosso seminário de pesquisa. Quando planejamos o livro, todos convínhamos em que os relatórios escolhidos para publicação seriam submetidos à aprovação tanto do clínico geral responsável pelo caso quanto do seminário, em conjunto. A maior parte dos fenômenos que constituem a “função apostólica” é expressão das atitudes particulares do médico com respeito a seus pacientes ou, em outras palavras, de sua personalidade. Não pode nos surpreender o fato de que o médico fosse geralmente o último a adquirir consciência de suas próprias particularidades, e sobretudo o último a aceitar a publicação das correspondentes descrições. Freqüentemente ocorria que uma ou outra de tais peculiaridades era evidente aos olhos de todo o seminário, enquanto o interessado continuava totalmente inconsciente de sua existência, ou convencido sinceramente de que determinada atitude — isto é, uma de suas “reações” habituais — era o único modo possível, natural, ou inteligente de tratar o problema em questão*. Mesmo que, quando algum caso, convincente para todos os demais, era citado como exemplo, não importa se por um dos participantes ou pelo líder do seminário, o médico em questão permanecesse descrente. Portanto, não foi de modo algum fácil obter material ilustrativo que fosse ao mesmo tempo convincente para os leitores e convincente e aceitável para o aludido médico. A missão ou função apostólica significa em primeiro lugar que todo o médico tem uma vaga mas quase inabalável idéia sobre o modo como deve se comportar o paciente quando está doente. Embora este conceito pouco tenha de concreto e de explícito, é *Que o líder do seminário não constituía exceção a esta regra é mostrado, por exemplo, por seu comportamento durante uma crise de nosso “caso difícil” como descrito na nota de pé da página 147.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
161
imensamente poderoso e influi, segundo podemos comprová-lo, praticamente em todos os detalhes do trabalho do médico com o seu paciente. Era como se cada médico possuísse o conhecimento revelado do que os pacientes deviam e não deviam esperar e suportar, e além disso, como se tivesse o sagrado dever de converter à sua fé todos os incrédulos e ignorantes entre seus pacientes. Precisamente por esta razão surge a idéia de aplicar-lhe o nome de “função apostólica”. É fácil notar a influência da função apostólica quando se trata de um problema misto, quer dizer, de uma situação que encerra problemas médicos e morais. Por exemplo, certo dia um médico informou ao seminário que uma moça bastante bem vestida tinha ido a seu consultório para pedir um certificado que lhe permitisse gozar de uma quinzena a mais de férias. Este tipo de pedido não é raro, como todos sabemos. O médico se negou, e coroou sua recusa com um breve sermão moral. Durante a discussão, outro médico expressou a opinião de que o sermão estava fora de lugar; de seu lado, teria aconselhado invocar o sentido de responsabilidade social da moça, explicando-lhe quais eram os direitos e deveres de cada cidadão de acordo com a lei do Serviço Nacional da Saúde. Um terceiro (de reconhecido treino em psicologia) considerou errôneas ambas as recomendações e assinalou que antes de tomar alguma medida — isto é, antes de responder positiva ou negativamente à “oferta” da paciente — o profissional devia ter tentado averiguar por que a paciente queria abusar de seus direitos. Deste modo, explicou, antes de aceitar ou recusar o pedido, o médico devia pelo menos tentar certo diagnóstico diferencial entre a fraude neurótica e o que se realizava por mera falta de escrúpulos. Também se observou certa inclinação a considerar que talvez o médico devesse fazer vista grossa em certos casos, especialmente quando sabia que o paciente era normalmente um tipo decente. Este último aspecto nos levará a um importante aspecto da função apostólica, que examinaremos no Capítulo 18, e, ao qual denominamos a “companhia de investimento mútuo” entre o médico e o paciente. Como vemos, neste caso existia certo número de “respostas” possíveis ante a “oferta” da paciente. Todas as que citamos são mais ou menos razoáveis. O importante é que a personalidade do médico constitui o fator determinante quase absoluto na escolha da resposta adequada. Se interrogamos ao profissional, pouco lhe custará apresentar-nos uma série de razões impressionantes, justificando sua escolha particular, mas quando examinamos mais atentamente os motivos alegados notamos que constituem meras racionalizações secundárias. Por trás de tais razões é fácil — pelo menos para o observador de fora — perceber as firmes convicções do profissional com respeito ao que o paciente tem direito a esperar do seu médico. Mais ainda, o objetivo e muito freqüentemente o efeito da resposta é induzir o paciente a adotar as normas do médico, quer dizer, convertê-lo à teoria e à prática de tal fé. No caso que acabamos de citar, o problema não é puramente médico, e suas implicações morais facilitam a observação do mecanismo da “função apostólica”. Mas ainda nos casos puramente médicos, é muito difícil, de regra geral, que o médico não intervenha, isto é, não revele sua opinião sobre o que devia ser a atitude própria e adequada do paciente em determinadas circunstâncias. Como conseqüência disto, o paciente se vê obrigado a aceitar “a fé e os mandamentos” do seu médico e a converter-se, pelo menos superficialmente, ou a rejeitá-los para resignar-se a suportar uma situação de regatear crônico ou, como último recurso, ir a outro médico, cujas “fé e mandamentos” sejam mais exeqüíveis. Admito que esta descrição esteja intencionalmente desequilibrada, e portanto é injusta. Qualquer médico poderá opor-lhe a grande variedade de relações que sustem com distintos pacientes em seu consultório. De bom grado aceito a objeção. Naturalmente, a relação médico-paciente é sempre e invariavelmente o resultado de um compromisso entre as “ofertas” e exigências dos pacientes e as respostas do profissional. Neste capítulo me proponho, em benefício da exposição, a omitir a parte que corresponde ao paciente, para © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
162
concentrar-me sobre a contribuição do médico e sobre seus efeitos; a contribuição do paciente e as relações entre ele mesmo e seu médico serão examinadas, nos Capítulos 18 e 19. Assim, depois de aceitar o fato de que cada médico é suficientemente flexível e adaptado para permitir o desenvolvimento de grande variedade de relações entre ele mesmo e seus pacientes, proponho-me a discutir neste capítulo as limitações dessas elasticidades, os fatores individuais que determinam suas fronteiras e o modo como tais limitações afetam a “prática” do médico, tendo em conta quase todos os matizes de significado dessa palavra complexa, por exemplo (para citar o Concise Oxford Dictionary), “ação habitual”, “exercício habitual de certa arte”, “hábito”, “trabalho profissional”, “disposição”, etc. Constituem uma legião na clínica geral os casos nos quais o médico procura converter o paciente as suas próprias normas. Um exemplo freqüentemente citado é o dos chamados noturnos. Todos sabem que quando se começou a aplicar o sistema do Serviço Nacional de Saúde aumentou subitamente o número de chamados noturnos. Desde então diminuiu novamente e agora a proporção é discreta, principalmente por causa da função apostólica da profissão médica, cujos membros atuaram em acordo. Como curiosidade mencionarei aqui o método utilizado por certo médico para resolver o problema. Constituiu em informar seus pacientes que se cada um deles pretendia que respondesse ao chamado noturno para atender a menor queixa no dia seguinte se sentiria demasiadamente fatigado para atender apropriadamente os graves problemas de sua clínica. De acordo com o médico, esse método apostólico deu bons resultados. Outro exemplo consiste na atitude dos médicos quanto aos chamados telefônicos em geral. Uma médica informou ao seminário que havia dito a todos os seus pacientes que reservava certa hora do dia durante a qual podiam chamá-la para consultar sobre problemas de menor importância. De acordo com a experiência da médica, tratava-se de uma boa medida; os pacientes apreciavam os benefícios da mesma, não telefonavam em outras horas, e, mais ainda, não sobrecarregavam as horas de consulta com questões e problemas de caráter secundário. Foi acerbamente criticada por vários médicos, que afirmavam que, em princípio, era imprudente formular recomendações telefônicas aos pacientes, que o telefone devia ser utilizado somente para transmitir informes breves e concretos, por exemplo a temperatura, se o paciente havia sentido novas dores, como havia dormido, etc., e que qualquer outro tipo de comunicação devia ser efetuado pessoalmente. Também se assinalou que essa cômoda conversa telefônica consumia demasiado tempo. Não tomarei partido na controvérsia, mas desejo destacar que os pacientes pareciam capazes de aceitar ambos os sistemas, e de aproveitá-los. Mais ainda, era evidente que cada caso era escolhido pelo médico, o qual, porque o considerava um bom sistema, convertia seus pacientes, adaptando-os ao método de sua preferência. Trata-se portanto de outro exemplo de função apostólica. Como é óbvio, ambos os sistemas possuem mais implicações. Um deles implica uma atitude bondosa, maternal, que de certo modo dá a entender ao paciente que pode esperar pelo menos cálida simpatia e freqüentemente também certo grau de ajuda imediata, cada vez que se veja obrigado a enfrentar pequenos problemas da vida diária. O outro seria uma atitude realista, justa e compreensiva, de caráter paternal, que espera que o paciente domine seus temores e os sofra até certo ponto, e que peça ajuda só quando esta é essencial, situação na qual pode estar seguro de que receberá não só colaboração mas simpatia. Existem inumeráveis outros campos da clínica médica geral nos quais é fácil observar a presença da função apostólica. Não é possível enumerá-los todos; o máximo que posso oferecer aqui são uns poucos exemplos mais de sua influência fundamental sobre o tratamento do paciente. O Caso 25 foi relatado pelo Dr. S em julho de 1954, do seguinte modo: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
163
CASO 25 Sra. T (família composta de mãe, pai e três filhos). Em 1949 cheguei à conclusão de que esta paciente era um tanto neurótica. Tentei descobrir em que consistia a sua doença; como resultado disso, abandonou meu consultório e não a vi durante um ano. Depois me pediu que readmitisse, ao que acedi. Novamente tive que enfrentar uma série de dificuldades com toda a família, os meninos sempre com todo tipo de doenças infecciosas. Durante este período a mãe teve o terceiro filho. Não o queria e havia insistido constantemente para que interrompesse a gravidez. A paciente sofria de permanente condição catarral alérgica, coriza e lacrimejamento. Receitei-lhe drogas anti-histamínicas e melhorou, mas então apareceu com outros sintomas. Novamente tentei descobrir qual era o fator de perturbação emocional. Falou com bastante franqueza, e me disse que não se sentia feliz com o marido. Mas não voltou, e novamente retirou de minha lista toda a família. Isto foi há quatro ou cinco meses. Agora me telefonou para perguntar-me se podia reincorporar-se a minha lista. Perguntei-lhe por que tinha ido embora, posto que da última vez que nos havíamos visto, nos separamos em boas relações de amizade. Explicou que tinha saído da minha lista porque o outro médico ficava mais perto. Na realidade, a paciente mora a cinco minutos do meu consultório, mais ou menos a mesma distância que a separa do outro medico. Perguntei-lhe por que não ficava com o outro médico, e disse que não se sentia bem com ele. Com respeito a seu pedido, informei-lhe que lamentava, mas que no momento não tinha vaga: “É verdade, ou se trata de uma desculpa?” — perguntou a paciente. Insisti em que no momento não podia aceitá-la, mas que se chamasse dentro de três semanas dir-lhe-ia se poderia aceitá-la ou não. Não me importou perder a família, embora se tratasse de cinco pessoas. Duas vezes me deixou, e pela mesma razão — minha tentativa de explorar a natureza real de suas queixas.
Este relato, bastante comum, por outro lado oferece vários aspectos que merecem ser discutidos. Em primeiro lugar, cabe perguntar se um médico que durante muito tempo tenha sido o apoio de uma família se transforme em inquisitivo investigador e, se a resposta é afirmativa, qual é o momento adequado. E qual é a técnica que permitirá ao paciente aceitar tal transição; quer dizer, qual é a técnica que evitará perturbá-lo e ainda desequilibrá-lo? Já examinamos alguns aspectos desses problemas nos Capítulos 11 e 12, “Como Começar” e “Quando Parar”. Os métodos escolhidos pelo médico para resolver esses problemas técnicos influirão consideravelmente, como já vimos, no curso dos acontecimentos posteriores. Aqui só nos interessa o terceiro de tais problemas, quer dizer, a influência da função apostólica, que impulsionou o Dr. S a rejeitar sua paciente quando esta lhe pediu que fosse readmitida novamente, atitude que de certo modo significou castigá-la por sua má conduta e exigir-lhe que voltasse como pecadora arrependida. Entretanto, devemos ter presente que qualquer que seja a atitude adotada pelo médico ela influirá permanentemente em sua relação com o paciente em questão. O caráter de tal influência e a possibilidade de que a mesma prometa melhores ou piores resultados terapêuticos constituem um importante problema; algumas de suas implicações já foram analisadas nos capítulos anteriores. Aqui nos interessa o fato de que esse tipo de desenvolvimento reveste-se de grande importância emocional para o médico, como demonstrou a acalorada discussão no seminário. Um profissional, por exemplo, declarou que para ele era norma absoluta não aceitar nenhum paciente que já se tivesse retirado de sua lista. Quando se lhe recordou que isso equivalia a inflingir severo castigo ao paciente, replicou que em tais casos estavam em jogo seus sentimentos, e que não via por que não podia castigar deste modo o paciente. Devo acrescentar que este profissional é homem sensível e humano, e de nenhum modo o indivíduo duro que suas “normas” parecem sugerir. Sua atitude foi apoiada por outros médicos e vários deles sugeriram que © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
164
a Sra. T já havia abandonado duas vezes seu médico, e que era provável, que se tornasse uma reincidente crônica. Outro médico opinou que a paciente devia ser readmitida sem mais delongas, e outro sugeriu que se pedisse que voltasse ao consultório para conversar; durante a entrevista seria possível perguntar por que havia abandonado duas vezes seu médico, principalmente quando este tentou explorar seus problemas emocionais. Um terceiro profissional observou que todas essas idas e vindas constituíam provavelmente uma crise recorrente, um sintoma da personalidade da paciente, a qual devia ser compreendida e tratada, e não transformada violentamente mediante métodos educacionais. Mencionarei alguns outros métodos característicos individuais — discutidos no mesmo seminário — que os médicos aplicam com relação a este problema particular. Um deles, por exemplo, disse que se um paciente o abandonava, era porque não estava satisfeito com seus serviços; por conseguinte, não havia razão nenhuma para readmiti-lo. Se tivesse valido a pena discutir as razões desse abandono, o paciente o teria feito antes de retirar-se. Portanto, se um paciente ia embora por sua livre e espontânea vontade, o médico sentia que devia existir alguma razão muito grave, e não podia deixar de sentir que o haviam ofendido intencionalmente. Outro médico se manifestou de acordo com esta última posição, e acrescentou que quando um paciente o abandona, sentia uma espécie de humilhação. Anteriormente também havia tido sentimentos de culpa, além de intensa cólera contra o paciente. Agora, depois de assistir ao nosso seminário, não se sentia tão culpado, e se limitava a supor que sua personalidade e a do paciente não se harmonizavam. De qualquer modo, susteve que correspondia a castigar o paciente, de modo que quando este desejasse voltar lhe cobraria mais caro pela primeira consulta, e se o paciente recusasse a pagar, imediatamente o médico se negaria a continuar atendendo. Outro médico relatou o caso de um seu colega, que sempre via com prazer o retorno de um enfermo, pois então aproveitava a oportunidade para dizer-lhe: “Assim não é possível atender no consultório. Quando você vai embora, vai para sempre” e assunto terminado. Estes exemplos demonstram que o médico em questão deve enfrentar um complicado conflito de emoções. Não pode deixar de sentir que foi desfeiteado e humilhado, que demonstrou não ser tão bom médico como desejaria, ou como crê que é. Embora ante nossa própria consciência reconheçamos facilmente nossas imperfeições, é diferente quando outro nos sugere a mesma crítica, e particularmente quando o faz um paciente. Em torno desse ponto se desenvolveu o primeiro grupo de emoções suscitadas pela situação. Em termos gerais, costuma-se encarar o problema de dois modos diferentes. Um consiste em projetar sobre o paciente a causa de nosso ressentimento, qualificando-o de ingrato e castigando-o de algum modo — isto é, o segundo grupo de emoções. E existe um certo tipo de atitude, como oferecer a outra face — o terceiro grupo — em virtude da qual o médico reconhece que não é bom como deveria ser, e aceita humildemente o paciente quando este resolve voltar. A par de tudo isso, está o aspecto financeiro da questão e o sentido que, por último mas não menos importante, há uma atitude geral entre os médicos de que fomos educados para ajudar as pessoas, e devemos sentir-nos agradecidos — sempre que se requer a ajuda novamente. Este conflito de sentimentos existe em todo médico. Todo médico precisa achar uma solução que satisfaça os sentimentos mais importantes e mais aceitáveis para ele, e que ao mesmo tempo frustre ou reprima os menos importantes e menos aceitáveis. Essa reação será, portanto, sua rotina individual, a qual, embora não absolutamente rígida, de qualquer modo fixa limites visíveis à elasticidade do profissional. Raramente se reclama ao médico que formule explicitamente os motivos que fundamentaram sua rotina “normal”. Quando deve fazê-lo — como ocorreu no curso de nossas discussões — o resultado é uma combinação de desconcertado embaraço e de racionalização quase transparente, de desculpas e tentativas para se esquivar do problema, de crítica agressiva a qualquer © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
165
forma de rotina que outros sugiram e, por último mas não menos importante, certa freqüente tomada de consciência das próprias limitações e dos motivos que as informam. Para completar o caso da Sra. T, o Dr. S informou em maio de 1955:
Há dois meses voltou a ingressar na minha lista, depois de havê-la obrigado a esperar uma vaga, e devo reconhecer que desde então se comportou muito bem. Antes me vi obrigado a visitar sua casa com bastante freqüência para ver os meninos. Agora vi a mãe só uma vez e a um dos meninos depois de uma operação. Mesmo os anti-histamínicos que há vários anos lhe receito são habitualmente solicitados por telefone.
Evidentemente havia-se conseguido restaurar a paz, e talvez para satisfação de todos os interessados. Mas o informe nada diz de problemas emocionais, e cabe supor que o preço da paz foi certo acordo tácito no sentido de não tocar neste tipo de questões. Em outras palavras, desta vez correspondeu ao paciente a tarefa de “converter” o profissional, obrigando-o a renunciar às suas tentativas de exploração dos problemas emocionais de seus clientes e aceitar, pelo menos momentaneamente, o papel de mero sustentáculo. Haverá os que digam que se trata de uma boa solução, que foi uma lástima que se inflingisse à paciente desnecessários sofrimentos por causa da impertinente e inútil curiosidade psicológica do médico. Devemos reconhecer que o médico não teve êxito, talvez porque sua capacidade técnica não era adequada para esse caso em particular. Entretanto, sua falta de êxito não deve distrair nossa atenção do problema principal, a influência da função apostólica. Outra esfera importante na qual é possível estudar a função apostólica é o problema do exame psicológico do paciente. Seja dito de passagem, esse problema foi um dos que surgiram no caso anterior, Caso 25. Quando um médico examina os reflexos oculares ou os batimentos cardíacos sabe que, de qualquer modo, não há maior perigo de causar dano ao paciente, mas em troca sente que não pisa o mesmo terreno firme quando se vê obrigado a investigar os detalhes íntimos das relações marido e mulher, ou de qualquer outro problema “psicológico”. São muitas as razões que implicam essas desconfianças. Uma, a falta de capacidade técnica. Como já se assinalou em numerosas ocasiões, a formação médica não oferece ao futuro médico a experiência necessária nessa técnica, apesar de que seja indispensável para tratar pelo menos uma quarta parte dos pacientes, se não mais. Sua prática cotidiana o obriga a assimilar essa técnica, por sua própria conta e risco — e por conta e risco de seus pacientes. A outra razão consiste em que, como já se explicou no Capítulo 11, o exame físico pertence à esfera da biologia unipessoal. Nesse terreno se aproxima bastante da verdade a afirmação de que o paciente pode ser examinado como se fosse um objeto, do mesmo modo que se examina um automóvel para comprovar se o carburador recebe suficiente quantidade de gasolina. Exagerando um pouco pode-se afirmar que um diagnóstico físico não exige muito mais, enquanto que num exame psicológico o médico precisa estabelecer relações pessoais com o paciente, porque significa que penetra em um terreno completamente diferente, com aplicação de métodos distintos e diferente grau de envolvimento pessoal. Um terceiro grupo de razões que explicam essa desconfiança poderia ser denominado o respeito pela vida íntima do paciente. Quando um paciente nos consulta por certas dores na região precordial ou sobre uma indigestão obstinada, temos direito a investigar os detalhes de seu regime sexual ou de sua vida emocional? Nos capítulos anteriores vimos várias vezes esses problemas. Como em tantas outras ocasiões, trata-se aqui de uma meia-verdade. Em um caso de indigestão nenhum médico vacilaria em praticar um © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
166
exame retal, ou ainda uma sigmoidoscopia, se suspeitasse da presença de um processo patológico no intestino grosso. Não se trata, neste caso, de uma violação da intimidade do paciente? A resposta deve ser incondicionalmente afirmativa, mas podemos acrescentar que o enfoque compreensivo e objetivo do médico permitirá ao paciente aceitar a intervenção desagradável; e se o médico possuir indispensável capacidade técnica, este e outros exames similares poderão ser praticados sem que o paciente — ou o médico — sinta excessivo embaraço ou dor. A mesma observação se aplica aos exames psicológicos. Um enfoque objetivo e sensato prepara o paciente e se o médico adquiriu capacidade suficiente, poderá levar adiante o exame sem provocar embaraço demasiado ou dor excessiva. Mas o paciente deve ser convencido de que o exame em questão é desejável ou necessário. Em vários casos citados neste livro observamos diferentes matizes da atitude negativa ou positiva do médico com respeito aos exames psicológicos. Existe outra possível complicação. Quando um de nossos semelhantes se encontra fisicamente doente — embora certamente mostremos uma atitude de simpatia — talvez nos mantenhamos distantes e diferentes dele (ou dela), porque gozamos de boa saúde e não sofremos de diabetes, pneumonia, artrite reumatóide ou seja lá o que for. Mas se o paciente se sente infeliz com sua sorte, ou se tem algum problema com seu companheiro ou companheira sexual, nós médicos não podemos deixar de nos sentir afetados pessoalmente, pois todos padecemos problemas de natureza semelhante, que resolvemos melhor ou pior. De certo modo, quando examinamos o nosso paciente não podemos evitar de examinar nossa própria pessoa, o que equivale a revelar nossas próprias idéias e nossos desejos sobre o que se deve fazer nesta situação particular. O último fator ultrapassa em muito a importância dos restantes. Em realidade, oferece a explicação da tenacidade dos dois primeiros — a carência de capacidade psicológica, e sua contrapartida, a possessão de conhecimentos limitados ao tratamento “objetivo” dos pacientes, ao mesmo tempo que se evita toda relação bilateral com ele. Estes dois fatores se arraigam em nossa educação médica tradicional, mantida por nossos hospitais-escola e aceita pelos estudantes. Professores e estudantes — com boas razões — evitam tacitamente situações que possam desembocar no exame de seus próprios problemas pessoais e destas soluções individuais — embora tal exame corra exclusivamente por conta dos próprios interessados. O método mais freqüentemente empregado para anular a pressão externa ou a necessidade interior deste exame consiste em proclamar nossas próprias soluções individuais as melhores ou mais inteligentes, e então, acesos pelo fogo apostólico, “praticar” a medicina de modo a que possamos converter a todos infiéis a nossa “fé”. Surpreendeu-nos muito quantos médicos mencionaram no curso de sua “prática” o método que lhes é próprio para resolver um ou outro — de seus diversos problemas pessoais, esperando que o paciente veja em tais resoluções outros tantos modelos. Entre muitos casos, o do diretor da companhia (Caso 6) constitui um exemplo trágico desta “prática”. No caso da Srta. S (Caso 23), assistimos a uma conversão com êxito e final feliz. A Sra. C (Caso 1) também pôde ser convertida, mas só transitoriamente como demonstra a história subseqüente reproduzida no Apêndice. Trata-se de um fator de extraordinária importância. A negativa a auto-examinar-se e o favor apostólico geralmente se encontram inter-relacionados e se reforçam mutuamente. Desejo destacar novamente que o zelo apostólico — do mesmo modo que o reconforto — não é em si mesmo atitude negativa; ao contrário, trata-se de uma droga de grande poder, e de notáveis possibilidades. Como no caso de conforto, o inconveniente do zelo apostólico reside em que habitualmente é receitado ao acaso, sem se efetuar a menor tentativa de proceder a um diagnóstico diferencial. Um dos melhores métodos para desenvolver a © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
167
capacidade psicoterápica do médico consiste em conseguir que tome conhecimento de sua compulsiva função apostólica, abrindo deste modo o caminho para que não a pratique automaticamente em todos os casos. São muitas as esferas da medicina moderna nas quais a ciência pouco contribui para o trabalho do clínico geral, e nas quais este deve apoiar-se essencialmente sob seu senso comum, que é simplesmente outra denominação da função apostólica. É fácil reconhecer estes setores da medicina pela inquietude e embaraço com que os médicos falam deles. Um desses setores é o que consiste em “visitar doentes”, especialmente se este é um paciente particular. Por “doentes” me refiro aos inválidos crônicos pelos quais a medicina nada pode fazer. Muitos apreciam e agradecem consideravelmente o escasso conforto e a esperança que obtêm da visita do seu médico. Entretanto, essa atitude do paciente só consegue acentuar o incômodo do profissional, pois sabe muito bem que sua capacidade e seus conhecimentos “profissionais” são de muito pouco valor. Obtém gratidão, apreço e ainda dinheiro em troca de uma atividade que ele mesmo estima como quase totalmente fictícia. Do ponto de vista “objetivo”, esta avaliação de seus serviços é correta, mas o mesmo não ocorre psicologicamente. Como a formação médica não reconhece oficialmente a existência de valores psicológicos, o profissional se vê obrigado a elaborar suas próprias normas. Em outras palavras, necessita converter o paciente para que este aceite que as normas individuais que o médico aplica em suas visitas são as únicas válidas. Outro campo mais perigoso ainda é o papel do médico como “confortador”. Hoje, à medida que é maior o número dos isolados e dos solitários, diminui o das pessoas ante as quais seria possível expor os próprios problemas. É inegável que diminui dia a dia o número dos que procuram sacerdotes. A única pessoa que está sempre à mão, sobretudo desde a criação do Serviço Nacional de Saúde, é o médico. Em muitos, as tensões emocionais vêm acompanhadas de sensações físicas ou possivelmente a relação é mais estreita ainda. De modo que vão ao consultório e apresentam suas queixas. Em grande número de casos o importante é o fato de que o paciente se queixa, e os sintomas, pelo menos durante a etapa “desorganizada” de qualquer doença, carecem objetivamente de importância, e habitualmente não se observam sinais de nenhum tipo. Aqui também o médico se acha à mercê de seu senso comum, pois sua formação só lhe permite encarar o tratamento de enfermidades físicas “reais”. Ocorre com freqüência que, em seu desconcerto, receite um vidro de remédio, com indicações bastante insuficientes sobrecarregando deste modo o consumo nacional de medicamentos. Ainda assim, alguns melhoram com a ajuda desses medicamentos, embora ninguém saiba por que — o médico menos do que qualquer pessoa. Por outro lado, como comprovamos em várias de nossas histórias clínicas, o primeiro vidro de remédio pode determinar que o paciente “organize” sua doença de modo que esta resulte inacessível do ponto de vista terapêutico. Tampouco neste caso alguém sabe — os médicos que receitam remédios menos do que ninguém — quantos pacientes seguirão por este caminho. Mas dado que uma “entrevista prolongada” exige capacidade psicológica, quer dizer, um exame das próprias soluções, é mais fácil converter o paciente à própria fé nos medicamentos, particularmente se levarmos em conta que toda a população já recebeu considerável educação neste sentido. Existe um terceiro campo, de grande interesse, com respeito ao qual infelizmente pouco sabemos. Trata-se da função do médico como “padre confessor”. Devo pedir desculpas pela minha tendência a utilizar muitos termos tomados da teologia, mas justifica-se pelo fato de que eles descrevem exatamente o meu pensamento. Muita gente escrupulosa sente que ficar doente, e sobretudo permanecer doente, equivale a cometer uma falta, a exigir vantagens injustas. Sentem-se culpados porque recebem mais atenção do que merecem, porque não trabalham, porque vivem do trabalho dos outros etc. Existe o tipo de pessoa perfeitamente disposta a receber algo mais do que a sua parte, para a qual tudo © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
168
que se pareça a uma doença é bem-vindo, e que realiza verdadeiros esforços para “pescar” doenças. Ambos os tipos se sentem culpados, embora por motivos diferentes, e torna-se extremamente difícil conseguir-se que melhore se o médico não faz algo com respeito a esses sentimentos de culpa. Quer dizer, o médico deve permitir que esses pacientes lhe falem francamente sobre suas apreensões e sentimentos de culpa; em suma, deve atuar de modo como um padre confessor, e ainda se encarregar de dar a absolvição. Os textos médicos mencionam essas situações só de passagem, de modo que o senso comum, quer dizer, sua função apostólica, deve acudir novamente em ajuda do médico. Outros dois interessantes tipos de pacientes pertencem à mesma categoria geral. Ambos mostram excessiva ansiedade. Um deles sente-se aterrorizado ante a possibilidade de sofrer determinada doença, e vai com freqüência ao consultório para que o médico lhe assegure que tudo vai bem, apenas para voltar pouco tempo depois com a mesma ou outra inquietude parecida. Outro tipo de paciente não se permite debilidades, e menos ainda enfermidades. Para ele, a doença constitui humilhação irremediável, uma imperdoável fraqueza. As pessoas “queixosas” custam à nação legiões de vidros de remédios e os dois últimos tipos custam legiões de fúteis exames especializados. Mas que outra atitude pode adotar um médico? Parece-lhe que o paciente goza de perfeita saúde, e entretanto a ansiedade persiste; por que, pois, não reconfortá-lo com “outra opinião”? Depois de vários meses, se a condição persiste, necessitar-se-á outra opinião, e uma terceira. Já analisamos a difusão da responsabilidade e o conluio do anonimato e suas conseqüências nos Capítulos 7 a 9. Tudo isto exerce importante influência sobre o paciente. Cada vez que se encontra em dificuldades, espera que seu médico o submeta a exame físico e lhe receite um vidro de remédio. Se deste modo não resolve o problema, supõe que será encaminhado a um especialista, o qual utilizará um complicado e misterioso aparelho. Em troca, não espera que se realize uma “entrevista prolongada”, um verdadeiro exame psicológico; e a idéia de que lhe conviria consultar um psiquiatra pode provocar nele um grave choque. Através de sua função apostólica, os médicos educam a população com respeito ao que podem e ao que não podem esperar quando vão ao consultório. Esta educação, embora muito eficiente, não é inalterável. Ensinamos a nossos pacientes a não se sentirem demasiado incomodados quando nos mostram seu corpo; não seria excessivamente difícil ensinar-lhes que freqüentemente é indispensável revelar também seus problemas psicológicos. O primeiro passo em direção a este objetivo é naturalmente a educação dos próprios médicos. Sempre em relação a essa repugnância geral a investigar os problemas pessoais, quer dizer, psicológicos, dos pacientes, comprovamos que — como era de esperar — os exames dos problemas sexuais suscitavam maior resistência. Em muitos casos os médicos informavam sobre casais que conheciam há muitos anos, com os quais mantinham prolongados e estreitas relações de amizade e como conselheiros médicos de confiança; em cada caso, o médico havia acreditado encontrar-se ante um casamento indubitavelmente feliz, mas logo se descobria — com grande surpresa do profissional — que marido e mulher tinham estado vivendo uma vida de discórdias e brigas constantes. Este doloroso descobrimento era tão freqüente que se um médico começasse a informar sobre certo casal feliz, quando um dos cônjuges tinha ido procurá-lo, todos os pacientes do seminário começavam a sorrir condescendentemente e com conhecimento de causa. Sem dúvida, o casal havia contribuído para o conluio de silêncio, mas o mesmo podia se dizer do médico. Depois de cada relatório todos nos perguntamos se havia sido boa política e boa “prática” médica do profissional aceitar o conluio do silêncio, e quanto atrito, infelicidade e sofrimento se teria podido evitar mediante uma franca e oportuna discussão dos problemas conjugais. Entretanto, as dificuldades que deve enfrentar um médico em nenhum terreno são tão graves como no da sexualidade. Quando trata qualquer problema com este tema não © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
169
pode deixar de revelar seus próprios pontos de vista e convicções com respeito ao que está bem ou mal que qualquer um — isto é, ele mesmo — ofereça e exija. É essencial a adequada satisfação da vida sexual adulta? Ou ainda que muito agradável, em realidade é de escassa importância ou ainda desprezível? Em todo problema que afete as relações conjugais, ditos problemas estão implícitos e devem ser respondidos. Infelizmente, sabemos pouco deles, e o pouco que sabemos é geralmente omitido nos textos médicos, de modo que também neste caso o único aliado do médico é seu senso comum, quer dizer, a sua função apostólica. Finalmente, coloca-se o problema gigantesco, igualmente abandonado aos recursos do bom senso, relacionado com a proporção de dor, de sofrimento e de renúncia que é parte inerente e natural da existência humana, e que por isso mesmo é preciso suportar. Quando se impõe ao profissional intervir para aliviar o sofrimento — por exemplo, prescrevendo morfina — ou impor certas privações — por exemplo ordenando uma dieta estrita ao doente de úlcera, ou uma vida tranqüila e cômoda aos que padecem doenças cardíacas ou hipertensão. É evidente que seus conselhos sofrerão a influência de suas próprias opiniões sobre qual é a proporção de prazer e de excitação que fazem a vida digna de ser vivida, e qual é a proporção de sofrimento e de privação que a transformam num invólucro vazio, superficialmente agradável, em algo real. Também aqui há um campo onde pode exercer-se livremente o zelo apostólico. São igualmente incertos nossos conhecimentos sobre os efeitos da forma ideal da função apostólica ou, para usar novamente a metáfora já conhecida do leitor, sobre a forma em que o profissional deve administrar-se a si mesmo. Deve adotar a atitude de uma espécie de guardião imbuído de autoridade, que sabe perfeitamente o que convém a seus pupilos, que não necessita dar explicações, e que espera, em conseqüência, que lhe prestem obediência leal? Atuará como mentor, oferecendo seu conhecimento especializado e sua disposição a ensinar ao paciente como adaptar-se à modificação das condições, e como adotar uma nova e mais fecunda atitude? Adotará a postura do homem de ciência distanciado, que descreve objetivamente as vantagens e os inconvenientes das diversas possibilidades terapêuticas e dietéticas, e que permite a seu paciente absoluta liberdade de escolha, embora ao mesmo tempo lhe atribua a responsabilidade da decisão? Deve comportar-se como um pai bondoso e protetor, que se esforça por poupar a seu pobre paciente-filho qualquer situação ingrata ou toda responsabilidade que possa tornar-se dolorosa? Ou há de desempenhar a função de defensor “da verdade acima de tudo”, firmemente convencido de que nada pode ser pior do que a incerteza, atuando em conseqüência com base nesse princípio? A resposta naturalmente consiste em que o médico deve julgar o que melhor convém a cada paciente. Sem dúvida, cabe a ele representar o papel de juiz, mas quem pode dizer-lhe quais são os critérios pertinentes que formarão o seu próprio juízo? Tudo isso se abandona ao senso comum do médico, isto é, a sua função apostólica. Na realidade, determina a forma em que o médico se administra a si mesmo, não tanto as necessidades do paciente quanto as particularidades do profissional. As diversas formas que acabamos de descrever caracterizam a conduta habitual de certos médicos antes do que a de certos pacientes. Outro problema interminável se refere à necessidade de que o paciente expresse ou não seu reconhecimento pelos serviços do médico, e se a resposta é afirmativa, como deve fazê-lo. Esta questão está estreitamente relacionada ao inesgotável problema de honorários. Do ponto de vista terapêutico, é melhor ou pior que o paciente dependa de seu médico ou que seja independente dele? Convém que se sinta superior porque paga ao médico, ou inferior porque o médico esta acima de todo problema financeiro? A solução dessas interrogações, tão antigas e respeitáveis como a medicina propriamente dita, repousa exclusivamente sobre o bom senso. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
170
A situação seria completamente distinta se conhecêssemos melhor esses importantes efeitos secundários de nossa substância, o médico. Mencionemos alguns já enunciados neste capítulo: quando trata de um inválido, quer dizer, quando “visita o doente”, deve o seu papel ser o de envergonhado explorador malgré lui, o de consolador e confortador não de todo honesto, o de distanciado observador científico ou qual? Com respeito aos problemas sexuais, deve ser ardente lutador pela felicidade de cada indivíduo, ou guardião da santidade do matrimônio? Em qualquer dos casos, há de persistir tenazmente em sua atitude e, se não, qual é o limite? Que grau de gratidão deve esperar e aceitar, em palavras, em presentes ou em dinheiro, dos pacientes que sofrem de enfermidades crônicas e incapacitantes? E que proporção de crítica, de ressentimento ou ainda de ódio há de tolerar quando sua terapia fracassa? Estes e muitos outros problemas contribuem para o que temos denominado a farmacologia dessa substância que é o próprio médico. É desejável que saibamos, portanto, a respeito dessa substância tanto quanto sabemos, por exemplo, do digital. Sabemos que a safra de cada ano é diferente, mas que de qualquer modo é possível uma tipificação razoável; que muitos pacientes reagem de maneira individual quando se lhes aplica digital e que é preciso vigiar tais reações; que existe considerável diferença entre dose de caráter preventivo ou terapêutico, ou simplesmente de manutenção. Estes conhecimentos foram adquiridos graças à realização de investigações laboriosas; e será necessário fazer o mesmo trabalho no caso de nossa substância.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
171
Capítulo
17
A Função Apostólica — 2
Um aspecto particularmente importante da função apostólica é a necessidade que o médico sente de provar ao paciente, ao mundo inteiro e sobretudo a si mesmo, que é bom médico, um profissional bondoso, digno de confiança e capaz de ajudar. Ainda que nos doa, nós médicos sabemos muito bem que se trata de uma imagem por demais idealizada. Temos nossos temperamentos e idiossincrasias particulares, portanto nem sempre nos mostramos tão bondosos e compreensivos como desejaríamos; nosso conhecimento é incompleto e fragmentário; e mesmo com a melhor boa vontade do mundo, existem certos pacientes aos quais não podemos ajudar, embora seja apenas porque há, e sempre haverá, condições incuráveis. De qualquer modo a maioria dos profissionais, e particularmente os jovens e conscienciosos, tem grande necessidade de aliviar toda a forma de sofrimento humano, até onde suas capacidades lhes permitem semelhante atitude. Infelizmente, no plano da medicina psicológica tanto quanto no da medicina física, o princípio de aliviar a todo custo o sofrimento pode terminar em desastre. Tivemos que aprender, por exemplo, que nos casos abdominais mal definidos nos quais se suspeita de apendicite, não era aconselhável dar morfina, pois o alívio da dor pode dissimular importantes processos, e o médico pode ver-se induzido a alentar uma falsa segurança. Algo semelhante ocorre em muitos casos do domínio da medicina psicológica. Trata-se de um fato que está longe de ter sido geralmente reconhecido. Em conjunto, sempre que aparece algum sinal de sofrimento mental ou de ansiedade, o médico se ocupa em primeiro lugar de “tranqüilizar” o paciente, com a esperança de lhe aliviar o sofrimento. Nos Casos 15 e 17 observamos bons exemplos desta atitude otimista. Os resultados são os mesmos que no plano da medicina física. Se o médico consegue aliviar a dor, talvez dissimule os sintomas e ainda é possível que estes desapareçam totalmente e que tanto o médico quanto o paciente permaneçam na obscuridade com respeito à causa real da enfermidade, ao mesmo tempo que, fato bastante freqüente, o processo patológico avance, dificultando ou esterilizando toda forma de terapia. É fácil aconselhar ao médico a aplicação do princípio segundo o qual o diagnóstico é anterior ao tratamento; quer dizer, o conceito de que não deve tranqüilizar o paciente antes de saber qual é o mal. O médico aceita intelectualmente esta colocação, mas não pode segui-la devido às suas próprias emoções, quer dizer, a sua necessidade de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
173
comportar-se em harmonia com sua própria função apostólica. Presenciar estados de ansiedade ou de dor mental sem fazer nada é coisa cruel, egoísta, desumana; e assim, em lugar de esperar o desenvolvimento dos sintomas, o médico, desejoso de aliviar sua própria consciência, apela para a rotina, o conforto maciço ou a terapia de apoio. Freqüentemente colocamos ao seminário a desagradável pergunta: “Conforto ou apoio para quem?” Na maioria dos casos é o médico que necessita, e obtém, confortamento e apoio. Que os pacientes se beneficiem disto, é outro assunto. Reinterarei aqui o que já assinalei no Capítulo 10, a saber, que em si mesmo o reconforto não é necessariamente uma atitude errada. E ainda pode desempenhar a função de poderosa droga que, corretamente utilizada, promova notáveis benefícios. O inconveniente reside em que é prescrita ao acaso, sem diagnóstico adequado. Se enfocamos o problema do ângulo oposto, notamos que com grande freqüência se administra reconforto em benefício do médico, que não consegue suportar a idéia de que carece de conhecimentos suficientes ou de que é incapaz de ajudar. Mais freqüentemente do que é reconhecido, a mesma observação é válida no caso de muitos exames especializados e de muitas drogas receitadas. Em conjunto, há muito de verdade na paradoxal afirmação de que o “conforto” e o placebo possuem efeitos consideravelmente maiores quando se trata de condições físicas, sobretudo se os pacientes são pessoas mais ou menos normais, não muito neuróticas, afetadas por alguma doença de caráter orgânico; mas a eficácia desses recursos diminui rapidamente em proporção com os problemas da personalidade. Embora essa afirmação seja resultado da experiência cotidiana, os médicos necessitam continuar a prática do “simples tratamento de apoio”, do “conselho” e, sobretudo, do “conforto”, provando-se a si mesmo que são bons médicos e que, se as coisas não melhoram, a culpa corresponde exclusivamente à enfermidade ou ao paciente. Todos conhecemos o caso extremo dessa premência de ajuda, o furor terapêutico, contra cujos perigos todo professor de medicina adverte seus alunos. Por outro lado, pouco se escreveu da necessidade compulsiva que experimentam certos pacientes de ter um “mau” médico, inútil, impotente do ponto de vista terapêutico. Isto se deve a que poucos médicos gerais podem tolerar este papel, e menos ainda são os que se adaptam a ele conscientemente. A grande maioria dos médicos impulsionados por seu zelo apostólico necessita fazer todo o possível para criar em seus pacientes, e em si mesmos, a impressão de que são bons e úteis médicos. Estas duas tendências antagônicas, a necessidade de ajuda do médico e a necessidade do paciente de provar que seu médico é inútil, costumam provocar certa tensão. Nossa próxima história clínica, o Caso 26, relatado pelo Dr. G, reflete esta tensão, e demonstra os métodos um tanto heterodoxos eleitos pelo profissional para aliviá-la. CASO 26 O Sr. Z* é um homem de 58 anos, e pertence à lista do Dr. G desde maio de 1939; sua história médica remonta a 1925, isto é, persistente por trinta anos, durante 16 dos quais esteve com seu atual médico. Durante todo este tempo jamais deixou de queixar-se. Teve dores no reto, as quais “lhe provocavam desmaios” dormência na perna esquerda, agudas enxaquecas “aliviadas apenas pelas marchas militares transmitidas pelo rádio”. Sente-se muito mal quando tem de esperar trens e ônibus, e sofre tonteiras quando está parado. Sabe “que jamais se livrará de seus enjôos, até que o ponham no caixão”. Sua indigestão é “chocante” e, para demonstrá-lo, algumas de suas entrevistas com o médico
*Este relatório foi publicado em The Lancet (1955), abril 2, pp. 683-8.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
174
foram pontuadas por eructações. Além disso, sofre de certa dispnéia, “nervos”, sempre sente que está a ponto de estourar, sofre dores em todas as partes do corpo etc. Naturalmente durante esses trinta anos foi examinado por inúmeros especialistas; em realidade as notas sobre este paciente requerem uma pasta especial. O diagnóstico variou de neurose a neurastenia, passando por debilidade nervosa e hipocondria. A par destes rótulos um tanto fora do lugar e de escasso valor, os informes dos especialistas só contêm observações negativas, por exemplo o fato de que não há carcinoma no reto, que a ingestão de bário e a colecistografia trouxeram resultados negativos, que o peito está são etc. Devo acrescentar que o informe do psiquiatra é exatamente do mesmo teor. Apesar de tudo isto o paciente pode manter uma relação bastante boa com sua esposa; e embora não tenha filhos e as relações sexuais sejam pouco freqüentes, a esposa afirma que o paciente “é bom marido”. Mais ainda, durante os últimos vinte e cinco anos só faltou ao trabalho duas a três semanas, embora desempenhe tarefas de responsabilidades, às vezes muito fatigantes, como supervisor de uma grande fábrica. É indubitável que o Sr. Z chegou há muitos anos à conclusão de que os médicos nada podem fazer por ele, pois nenhum remédio conseguiu alguma vez melhorar seu estado. De qualquer modo, durante todo este tempo veio regularmente às sextas-feiras à tarde em busca de seu frasco de medicamentos. E sempre diz o mesmo: “Ninguém pode curar-me.” O médico aprendeu a aceitar essa crítica e quando o paciente o solicita receita um novo medicamento. Às vezes chega ao extremo de retornar à farmacopéia da estante e dizer ao paciente: “Já lhe dei tudo que há neste livro, sem o menor resultado. Faça-me o favor de escolher o que agora desejaria tomar?” Observe-se que estas palavras não são ditas com irritação ou fastio, mas com espírito amistoso, e em tom que, se bem expresse derrota, é também de sincera compreensão. Seja dito de passagem, o Sr. Z parece gostar dessas cenas; talvez lhe parecendo que se trate de uma mostra de confiança nele!
O Dr. G resumiu a situação nas seguintes palavras:
No transcurso de anos estabeleci com o paciente uma relação em virtude da qual aceito que nada pode melhorá-lo ao mesmo tempo que nos compadecemos juntos; metaforicamente nos damos tapinhas nas costas com mais ou menos alegria, quando vem buscar o seu frasco semanal de medicamento, o qual, segundo ambos sabemos, de nada lhe servirá. Não se mostra ressentido comigo, e não me crê incompetente porque não posso curá-lo. Na verdade sou um bom companheiro, não como algum desses outros médicos. Orgulha-se um pouco de sua capacidade de resistência ante os maus efeitos de meus medicamentos e comprimidos, e particularmente sua capacidade de agüentar apesar dos consideráveis sofrimentos que deve suportar, “a diferença de alguns desses jovens debilóides de hoje”. Não tem problemas comigo. Intui quando desejo que se vá e sai rapidamente. Se estou atarefado, entra e se mostra disposto a partir sem maior discussão, ao mesmo tempo que me diz com alegria que “há uma multidão na sala de espera”. Realmente se pôs do meu lado.
O Dr. G teria podido concluir seu informe, e não teria faltado com a verdade, com essas outras palavras: “Pus-me de seu lado, e realmente há muitos anos que estou assim.” É evidente que o paciente tem estado oferecendo a seu médico uma doença após a outra. Fiel à sua educação e à sua função apostólica, o Dr. G examinou pacientemente cada uma de tais ofertas, e logo pediu conselhos a seus colegas mais eruditos, mas afi© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
175
nal se viu obrigado a rejeitar todas as ofertas como inaceitáveis. Durante este período “não-organizado” o paciente se retraiu gradualmente até ocupar a posição já conhecida: “Vocês médicos para nada servem, mas posso suportar a situação porque sou forte.” Se aceitamos o ano de 1925 como ponto de partida do período “não-organizado” — muito provavelmente começou antes — o paciente tinha então 28 anos. Como demonstra a própria história clínica, o Sr. Z desenvolveu e “organizou” através dos anos uma doença bastante grave; e certas pessoas poderiam crer improvável que nenhum tratamento médico tivesse o menor efeito. Entretanto, deve-se assinalar que jamais se lhe ofereceu a oportunidade de “começar”. Temos direito a perguntar qual teria sido a sorte do Sr. Z se, em lugar de enviá-lo a um especialista após outro e de receitar frascos e mais frascos de medicamentos, algum médico se tivesse preocupado, ao princípio do processo, em sentar-se com ele para ter uma “entrevista prolongada” de acordo com o método apropriado e no momento oportuno. Quem sabe o que teria podido ocorrer? De qualquer modo, o Sr. Z se estabilizou, criou e “organizou” uma impressionante doença que afetava toda sua vida. Embora os sintomas superficiais variassem e se sucedessem, mantinha-se a estrutura fundamental da enfermidade, e à medida que passavam os anos ganhava maior solidez. Um aspecto de sua doença consistia em enfastiar seu médico, lançando-lhe no rosto de vez em quando que era um “inútil” e que “não servia absolutamente para nada”. Não se pode excluir de todo a possibilidade de que esta atitude fosse em parte vingança ante a postura de rejeição do Dr. G com respeito às “ofertas” do paciente. O relatório nada diz nesse sentido, mas podemos imaginar que o Dr. G teve que suportar uma série de períodos pouco agradáveis. Pediu ajuda a seus colegas especialistas, mas só recebeu conselhos negativos; quer dizer, indicou-se-lhe o que não devia fazer, mas em nenhum momento foi dito como ajudar o paciente e sobretudo não se esclareceu “como começar”. Cabe perguntar quantos de nós, em nossa condição de clínicos gerais, de especialistas e mesmo de psiquiatras, teríamos mostrado em tão irritante situação a mesma atitude calma e imperturbável, amistosa e compreensiva do Dr. G. Quantos teríamos adotado a decisão de retirar a farmacopéia da estante e, com toda a sinceridade, a teríamos oferecido ao paciente para que este escolhesse o medicamento que acreditasse mais positivo? Foi graças a essa atmosfera de irremovível e amistosa compreensão que o Sr. Z pôde fazer as pazes com seu “inútil” e “inepto” doutor, e conseguiu aceitar a companhia do profissional ao longo destes inquietos anos de doença, de dor e de sofrimento. É evidente que tinha urgente necessidade de companhia, e sem ajuda do médico não teria sido capaz de manter-se e de manter uma vida privada tolerável ou talvez não absolutamente infeliz. Resumamos. Nesse caso todas as doenças orgânicas propostas pelo paciente foram rejeitadas uma a uma, mas o profissional aceitou a existência de dor e de sofrimento e honestamente tratou de aliviá-los. Por sua vez o paciente rejeitou essa contraproposta e, talvez estimulado pelo ressentimento, qualificou seu médico de inepto e impotente. O médico aceitou esta última proposição, quer dizer, o fato de que não era capaz de aliviar o sofrimento nem a dor, e também concordou em manter sua atitude amistosa e compreensiva. Sobre esta base se estabeleceu um compromisso, e médico e paciente se adaptaram a uma forma de doença aceitável para ambos*. Agora suponhamos que esse paciente tivesse pertencido à lista de um médico que, devido à sua própria personalidade, se sinta obrigado a mostrar-se bom e útil, e cuja função apostólica o impulsiona a tentar todos os recursos da arte para curar seus pacientes, sem exceções — ou piedade... Retornemos agora ao tópico principal deste capítulo, a função apostólica do médico. *Ver, entretanto, o acompanhamento deste caso no Apêndice.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
176
Todo médico cria, consciente ou inconscientemente, uma atmosfera particular devido à sua forma individual de “praticar” a medicina, e logo trata de converter seus pacientes para que a aceitem. Para demonstrar a existência dessa atmosfera particular, característica de cada médico, o fenômeno mais importante da função apostólica, resolveu-se identificar mediante uma letra do alfabeto a cada um dos clínicos gerais que tomavam parte em nosso seminário. Deste modo, ao mesmo tempo que se mantinha o anonimato, era possível reconhecer facilmente a individualidade de cada um. Devo acrescentar que quando chamamos a atenção sobre o papel das individualidades, não estamos formulando nenhuma espécie de crítica; pelo contrário, nos limitamos a assinalar as maiores possibilidades inerentes às “respostas” médicas. Torna-se extremamente duvidoso que cada profissional possa alcançar um grau suficiente de elasticidade para incluir todas as variantes úteis relatadas neste livro, e outras mais. Mas não haverá de prejudicar-nos o fato de que nos proponhamos uma meta elevada. Passemos em revista agora tais atmosferas individuais. Neste livro citamos casos correspondentes a 15 médicos. Doze pertencem à “velha guarda” de 14 médicos que foram meus companheiros durante o primeiro projeto em grande escala, um (Caso 6) se retirou, e dois (Casos 17 e 27) pertencem a um grupo mais recente. No que segue proponho-me a comentar as características dos médicos representados por mais de um caso. Trata-se de seis médicos. Desejo desculpar-me ante os outros nove e ante os seis primeiros porque a minha descrição parecerá sem dúvida uma espécie de caricatura. Embora incompleta, a imagem que ofereço aqui será reconhecida pelos colegas, enquanto que a vítima sentirá indignação, porque foram omitidas suas boas qualidades e se exagerou os aspectos negativos, de modo que o resultado parece uma injusta deformação. Comecemos pelo Dr. S. Como demonstram seus casos (15, 25 e 28) trata-se de um homem de benévolo autoritarismo; bondoso, cordial e paciente, muito disposto a tolerar boa dose de má conduta, desde que o enfermo o aceite no papel de “velha raposa”, que sabe o que faz, e que o faz bem. Mas quando o paciente desafia sua autoridade paternal, mostra falta de respeito ou ainda rejeita sua ajuda, o Dr. S pode mostrar-se duro e irreconciliável. Pela mesma razão mostra-se muito cauteloso e evita sair do terreno que conhece bem. Dentro desses limites presta bons serviços, mas além deles nega-se simplesmente a incursionar. Comparemo-lo com o Dr. E, talvez o mais representativo dentro do grupo do irresistível impulso a ser um bom médico. É consciencioso, circunspecto, e está disposto a realizar os maiores esforços para descobrir as raízes psicológicas da conduta dos seus pacientes. É generoso com o seu tempo mas seus pacientes devem reconhecê-lo como um bom médico, e mais tarde ou mais cedo mostrarão seu reconhecimento respondendo ao tratamento; realmente é muito difícil para ele aceitar o fracasso. Três de seus casos relatados aqui, os Casos 4, 10 e 23, revelam essas características. Além disto, é homem de arraigadas convicções e temos várias oportunidades de vê-lo convertendo seus pacientes à “fé psicossomática” (um de tais exemplos é o Caso 23, incluído no Capítulo 14). Em seu zelo apostólico pode ser intrépido, impetuoso mesmo. É muito diferente a atmosfera criada pelo Dr. G. É cauteloso e deseja ser respeitado, um pouco como o Dr. S. Do mesmo modo que seu colega, desgosta-lhe sair do terreno que domina; por outro lado, uma vez que o paciente iniciou seu processo de desenvolvimento, o Dr. G é capaz de segui-lo, embora com certa relutância, e alcançar profundidades que podemos qualificar de surpreendentes. Mas a primeira oportunidade retoma a terreno seguro e então é difícil que repita a experiência. Para ele, uma vez basta, e invariavelmente consegue que o paciente se satisfaça e fique de acordo com os resultados obtidos. Tanto é o que o Dr. G pode conseguir em uma só “entrevista prolongada” que, segundo parece, seus pacientes consigam aceitar essa tática e beneficiar-se dela. Seus Casos 16, 19 e 26 ilustram nossas afirmações. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
177
O Dr. C, homem de paciência realmente inesgotável, é o membro mais velho de nosso grupo. Mais de uma vez nos surpreendeu a tolerância e a eqüanimidade com que suportava a conduta dos pacientes excepcionalmente difíceis e intratáveis, aos quais todos nós teríamos renunciado muito tempo antes, ou pelo menos teríamos procurado sujeitar firmemente. Ele, em troca, continuava imperturbável, encolhendo os ombros ante nossa pouca paciência e nossas opiniões apressadas, para alcançar freqüentemente o coroamento com sucesso de um tratamento difícil. Nenhum dos dois casos citados aqui (Casos 12 e 20) revelam toda a medida de sua paciência, mas sim o suficiente para suscitar certa impressão. Sua paciência lhe permitiu acumular uma rara coleção de casos impossíveis: entre eles uma mulher está grávida desde 1947; várias paranóias rejeitadas por hospitais psiquiátricos; uma mulher de 50 anos inválida, crônica, devido a dores reumáticas nas costas, tratada sem êxito por vários hospitais e que retornou ao trabalho depois que o Dr. G lhe “curou” as costas; cerca de cinqüenta paquistaneses que não sabem falar inglês, mas vão ao consultório para queixar-se de seus problemas sexuais, e outros desse estilo. Acrescentarei que em mais de uma ocasião me agradeceu calidamente por havê-lo salvo do tédio da prática médica rotineira; mas uma vez acrescentou: “Às vezes, depois de um dia muito longo, teria preferido que não me salvasse.” E há o versátil Dr. M (Casos 1 e 21), que foi capaz de praticar com a mesma paciente uma psicoterapia bastante profunda, o que permitiu a paciente aceitar sua própria feminilidade e a gravidez, e que então — sem a menor pausa — se transformou em obstetra, cuidou da paciente durante a gravidez, fez o parto, acabando na condição de médico de confiança de toda a família. Finalmente, a Dra. H, a quem seguimos ao longo do Capítulo 15, de crise em crise, contornando todas as tormentas, para alcançar finalmente uma muito notável cura. Essas seis atmosferas são únicas e cada uma delas é diferente de qualquer das outras. Mais ainda, o que podemos dizer desses seis médicos é aplicável a qualquer outro médico. É igualmente notável a adaptabilidade do paciente ou, para empregar um termo recente, conversibilidade. Sem dúvida, o médico não pode evitar ser ele mesmo, e por muito elástico que se mostre em sua “prática”, deve obedecer ao impulso de seu zelo apostólico; de regra geral, é o paciente que se converte e então pode aproveitar os serviços do médico. Nos seminários freqüentemente fazíamos um jogo consistente em perguntar-nos o que teria ocorrido se o paciente X tivesse procurado outro médico. Trata-se de um jogo útil e divertido; imagine-se por exemplo a sorte da Srta. F (Caso 12) se tivesse estado na lista do intrépido Dr. E, ou do versátil Dr. M, em lugar de ser atendida pelo paciente e benévolo Dr. C. O que teria ocorrido a Peter (Caso 19) sob a direção do Dr. S ou da Dra. H? Entretanto, esse jogo implica um grave problema, a saber: que atmosfera, que fé apostólica oferecerá ao paciente as melhores possibilidades de recuperação? Ter-se-ia Peter desenvolvido melhor sem o “Smith” e sob a influência benévola e paternal do Dr. S, ou se submetido à psicoterapia profunda da Dra. H, que teria implicado possivelmente várias crises? Qual desses médicos teria oferecido a melhor possibilidade? Teria tido êxito a conversão da Srta. F à fé psicossomática do Dr. E, e teria terminado por casar-se, como ocorreu nos Casos 10 e 23? Teria o Dr. M conseguido obrigá-la a aceitar seu papel feminino, como fez no Caso 21? Ou teria a paciente fugido de ambos os médicos? Trata-se de problemas fundamentais, não só da psicoterapia do clínico geral, mas de toda a psicoterapia, e estão longe de ter sido resolvidos. São também, sob muitos pontos de vista, problemas que o psiquiatra não resolveu ainda. A maior parte do que sabe sobre estes processos pertence à literatura psicanalítica sobre a teoria e a prática da “interpretação”. Entretanto, deve-se destacar que, apesar dos numerosos artigos escritos sobre o tema, nosso conhecimento se encontra praticamente em sua infância. Existe a literatura muito mais reduzida sobre as formas de expressão dos pacientes e sobre o método que o terapeuta deve aplicar ao tratamento. Mas tudo isto se refere somente aos fatos acontecidos na situação psicanalítica estritamente controlada. Está por se ver em que medida © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
178
essas observações resultarão aplicáveis à clínica geral. No Capítulo 13 discuti alguns fatos significativos que não podem deixar de infundir cautela aos psicanalistas quando se pretende estender a vigência das regras da técnica psicanalítica em sua forma atual à psicoterapia do clínico geral. Sabemos muito pouco para nos mostrarmos dogmáticos. O seminário achou difícil aceitar as conseqüências desse pouco satisfatório mas inegável estado de coisas. Os clínicos gerais pediam insistentemente ao psiquiatra que lhes ensinasse quais eram as idéias corretas e quais as falsas. Só relutantemente acabaram por aceitar que não sabemos o suficiente para estabelecer regras fixas e definitivas, para afirmar categoricamente que este enfoque é definitivamente errado, esta técnica discutível, tal atitude certamente útil, ou aquela interpretação oportuna e correta. Embora se sentisse pressionado, o psiquiatra só podia assinalar problemas e possibilidades, mas raramente estava em condições de oferecer formas positivas. Sua colocação principal consistiu em enfatizar repetidamente que éramos membros de uma equipe de pesquisa, e que estávamos tratando de explorar e reconhecer regiões desconhecidas da medicina. Esta colocação nos trazia de volta a nosso ponto de partida, a idéia da necessidade de uma farmacologia da substância mais freqüentemente receitada, o próprio médico. O estudo da “função apostólica” é talvez o modo mais direto de estudar o efeito principal — o efeito terapêutico — dessa substância.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
179
Capítulo
18
O Médico e Seu Paciente
Nos dois capítulos anteriores examinei com certo detalhe a função apostólica do médico, que o obriga a converter seus pacientes a suas próprias normas e credos. De outro ponto de vista o processo de conversão pode ser descrito como educação ou formação. Já mencionei várias vezes que durante os últimos cem anos conseguimos educar nossos pacientes, na realidade toda a população do mundo ocidental, para compreender a necessidade do exame clínico de rotina e para aceitá-lo sem muita vergonha ou apreensão. Assinalei também o fato de que os médicos não têm preparado seus pacientes para aceitarem a franca discussão de seus problemas pessoais como parte necessária do exame. Entretanto, essa falta de condicionamento não parece ser um obstáculo insuperável. Repitamos o que já dissemos em um capítulo anterior: vários médicos informaram que, à medida que se difundia na vizinhança o rumor de seu interesse pessoal e profissional nos problemas psicológicos, isto é, um ano aproximadamente depois de ter começado a realizar “entrevistas prolongadas”, vinham pacientes de outros médicos para submeter-se a exame psicológico. No Capítulo 16 discutimos exemplos mais ou menos espetaculares desse tipo de educação, como, por exemplo, o problema dos chamados noturnos, a troca de médicos etc. Outro aspecto, mais importante, desta educação é o adestramento do doente para que adote uma atitude correta quanto à sua enfermidade. Por atitude correta entendo a que cria boas possibilidades terapêuticas. É difícil descrever detalhadamente os objetivos e os métodos desse processo educacional, porque possui muitos aspectos. Em geral caberia dizer que os pacientes devem ser educados para adotar uma atitude de madura responsabilidade quanto às suas doenças; mas é necessário acrescentar uma ressalva: devemos deixar certas válvulas de escape à atitude de dependência infantil. Como ocorre freqüentemente na prática médica, aqui também o problema é o da proporção; que grau de maturidade deve-se exigir e que grau de dependência infantil em relação ao médico deve ser tolerado? Ou, em outras palavras, quanta dor, sofrimento, desagrado, limitação e restrição, temor e culpa deve suportar só o paciente, e em que ponto começará o médico a ajudá-lo? Em geral à medida que aumenta a maturidade do paciente, melhores serão os resultados de um tratamento puramente “objetivo”, e menor a necessidade que sente o paciente de uma “terapia compreensiva subjetiva”, e vice-versa. Achamo-nos aqui frente a outro importante setor da © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
181
prática médica incondicionalmente entregue ao bom senso do médico, quer dizer, a sua função apostólica. Isso é tanto mais lamentável quanto mediante seu enfoque prepare o terreno para o futuro. Realmente quase se poderia dizer que o médico geral começa o tratamento enquanto o paciente está sadio e que o tratamento concreto, prescrito quando aparece a enfermidade, é só uma continuação de um tratamento já em desenvolvimento. Seja dito de passagem que esse não é necessariamente o caso dos especialistas. Naturalmente o processo de educação é mais intenso durante uma doença, do próprio paciente ou de um dos seus parentes próximos, vizinhos ou amigos. Durante a fase inicial de uma doença aguda, quando o paciente se acha ainda sob a influência do choque inicial, isto é, quando a sua enfermidade é ainda “não-organizada”, o médico constitui geralmente um apoio e permite ao paciente uma atitude de dependência. Quando passa o choque inicial, e a enfermidade em lugar de desaparecer se “organiza” e adota uma forma crônica, sempre que seja possível o médico deverá tentar obter a colaboração do paciente para estabelecer um compromisso aceitável entre os seus costumes habituais e as exigências da doença. Em outras palavras, o objetivo será converter o paciente ao hábito desse compromisso, embora raramente isto se consiga completamente. Pouca gente possui o grau de maturidade mental e emocional indispensável para realizar tão difícil tarefa. Os dois extremos conhecidos são o paciente por demais severo, que não se permite o menor relaxamento, e o paciente excessivamente ansioso, que não se satisfaz com nada. Neste terreno é evidente a necessidade de grandes variações, de acordo com a maturidade mental e sobretudo emocional do paciente. Toda enfermidade, por leve que seja, implica sempre renunciar a uma parte da liberdade e dos prazeres aos quais se está acostumado. Digamos de passagem que ocorre freqüentemente que as pessoas jovens aceitem mais facilmente que os mais velhos essas desagradáveis situações. Na tarefa de educar o paciente, é de ajuda considerável ao médico o que poderíamos chamar o orgulho do paciente por sua doença. Isto é especialmente certo quando se trata de uma enfermidade rara ou quando o paciente consegue um grau considerável de controle da situação. Essa atitude não é de nenhum modo característica da enfermidade. O orgulho do indivíduo em suas próprias realizações contribui notavelmente para todas as formas do desenvolvimento e da maturação pessoais. Entretanto, não se deve esquecer que nesse terreno o médico deve enfrentar grandes dificuldades técnicas. Não dispusemos de tempo no curso de nossa investigação para estudar detalhadamente este problema, de modo que devo limitar-me a algumas breves e desconexas observações sobre o tema. Um dos problemas consiste em determinar que grau de regressão o paciente tolerará, isto é, até que ponto pode permitir-se ao paciente retornar da conduta adulta à conduta mais primitiva, infantil; e quando é possível permitir essa situação. Em certos casos o médico pode ver-se obrigado a aconselhar o seu paciente, ou a pressioná-lo suave ou mesmo vigorosamente, para que abandone a sua atitude madura e adote outra regressiva e dependente. Certas pessoas necessitam de assumir e suportar mais responsabilidades do que a que lhes convém, especialmente quando estão doentes. O problema contrário consiste em determinar que grau de maturidade cabe exigir do indivíduo, com que rapidez, e em que ponto. Como é sabido certas pessoas simplesmente não podem suportar o aumento de suas responsabilidades ou de suas apreensões e se têm que enfrentar uma situação deste tipo necessitam esquivar-se dela submetendo-se à dependência de alguma autoridade. Um método comum de ajudar aos pacientes que sofrem de determinada doença crônica, irreversível, consiste em relacioná-los com alguém que tenha conseguido adaptar-se bem ao mesmo problema. Certas pessoas acham mais fácil imitar do que tomar a iniciativa de idealizar um método próprio. Entretanto, o médico deve estar em guarda porque toda privação imposta ao indivíduo pela doença pode ser atribuída ao médico. Por exemplo, muitos pacientes sentem © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
182
que bastaria que o médico fosse mais amável ou mais simpático para que lhes permitisse beber mais, deitar mais tarde, comer alimentos mais variados, fumar mais etc. É fácil observar a gradual aparição desse ressentimento, mas é muito mais difícil controlá-lo ou preveni-lo. Esta ressentida fantasia freqüentemente provoca sentimentos de cólera e de ódio contra o médico, frente à falta de compreensão que este demonstra e a suas desagradáveis receitas e suas restritas ordens dietéticas; provocando irritação e freqüentemente — como reação a ela — temores e ansiedades aos quais o médico talvez responda do mesmo modo. Por outro lado certas pessoas, particularmente as que têm sentimentos inconscientes de culpa ou as de tendências masoquistas, aceitam facilmente ser submetidas a uma dieta estrita ou a certo modo de vida, porque, para elas, sofrer equivale a aliviar sua própria culpa. Sabemos muito pouco de todos esses problemas. Por outro lado, do ponto de vista do estudo do problema da maturidade — ou, em termos psicológicos, da estrutura do ego — a clínica geral constitui um campo por demais prometedor. A conduta das pessoas quando ficam doentes, ou quando notam que estão doentes, e as formas e os métodos com os quais enfrentam os problemas da enfermidade crônica poderiam fornecer tão abundante material quanto a observação de crianças em desenvolvimento. Há aqui alguns problemas sugestivos pertencentes a esta esfera: quais são os fatores que determinam o desenvolvimento de uma atitude de dependência infantil ou de independência madura quanto à enfermidade? São essas atitudes inerentes à doença, de acordo com a individualidade do paciente, ou estão determinadas, ou talvez só reforçadas, pela interação das “ofertas” do paciente e as “respostas” do médico? Definitivamente voltemos à farmacologia da substância chamada “médico”, e desta vez trata-se de um de seus mais importantes efeitos secundários. E também neste caso deve destacar a necessidade de que os clínicos gerais consagrem mais tempo à pesquisa, porque são eles que realizam o primeiro exame do paciente quando este fica doente, e é a eles que cabe observar permanentemente o desenvolvimento da atitude do paciente frente à enfermidade. Todo médico convirá, assim creio, em que a atitude do paciente quanto a sua doença é de suprema importância para o êxito da terapia, e em que ao médico corresponde a tarefa de “educar” o paciente para que este preste a sua colaboração. Desejo ilustrar com uma história clínica algumas das dificuldades com que se tropeça nesse terreno. O caso escolhido, embora complexo, não é raro. As complicações foram resultado da interação de vários fatores, alguns deles já examinados nessa obra: a criança no papel de sintoma de apresentação (Capítulo 3); a intervenção de um especialista, origem de todas as complicações assinaladas nos Capítulos 7 a 9; e as conseqüências de atribuir ou não um nome à doença (Capítulo 6). Havia um desacordo não explícito quanto aos objetivos e métodos da educação — neste caso a educação dos pais do paciente; finalmente o fator que analisaremos no capítulo seguinte, a necessidade do paciente — nesse caso, a dos pais — de que a doença fosse levada a sério. O clínico geral embora tenha acertado em todos os demais aspectos não notou esta necessidade; por conseguinte, seu diagnóstico de toda situação foi incompleto, não foi bastante “profundo”; o tratamento do caso e os objetivos e métodos educacionais, embora objetivamente corretos, eram inaceitáveis para os pais, e estes se viram obrigados a mudar de médico. Em um de nossos recentes seminários, um clínico geral relatou assim o caso: CASO 27 Uma menina de 12 anos estava muito doente, com febre de origem desconhecida. Não tinha a menor idéia do que podia ser. Os pais estavam muito inquietos e nervosos e quando notei a situação sugeri: “Por que não pedir a opinião de outro médico?” e eles © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
183
replicaram: “Estávamos pensando nisto mesmo.” De modo que lhes propus trazer outro médico e se manifestaram de acordo. Mas então telefonou a avó e disse que tinha um parente, pediatra. Chegou o parente e afirmou que se tratava de paratifo. Mas em minha opinião não era essa a doença. De qualquer modo chegou o dia seguinte e a mãe disse: “A menina tem paratifo. O que devemos fazer?” Embora tenha assinalado que não estava muito seguro de que se tratasse dessa doença, como o outro médico era um especialista não me atrevi a dizer que não acreditava na validade de seu diagnóstico. Em resumo, disse que devíamos esperar a resultado do exame bacteriológico e deixar o assunto nas mãos do especialista. Fizemo-lo assim. As análises foram negativas. Entretanto, os pais estavam telefonando duas vezes por dia para informar-se dos resultados, o que era uma situação muito desagradável para todos. Chamou-se novamente o especialista e esse insistiu: “Não há dúvida que é paratifo.” Era um homem extremamente simpático e ainda chegou a vir ver-me. Tomamos café e bebemos juntos. Ficou cerca de uma hora e me contou a história de sua vida. Certamente é um homem muito inteligente e falou muito. Conhece todo mundo, faz conferências e realiza numerosas consultas. Expliquei-lhe que o caso colocava muitos problemas; por exemplo o fato de que eu era um médico inscrito no Serviço Nacional da Saúde, e que me via obrigado a realizar duas visitas diárias e a responder a chamadas telefônicas durante a noite porque um especialista havia formulado um diagnóstico de paratifo. Propus que a menina se internasse num hospital, em parte para desembaraçar-me dela, em parte também para não assumir a responsabilidade do caso, porque não sabia do que se tratava. Respondeu que ele tinha muita experiência com paratifo, e que de qualquer modo estaria sempre à disposição se fosse necessário. No dia seguinte passei meia hora com a mãe porque essa se negava a que a menina fosse para o hospital. Afirmou que sua filha se sentiria infeliz em um hospital, porque ali não seria atendida como é devido. Respondi que provavelmente ela se sentiria infeliz sem a filha. A propósito a menina é uma mocinha de 12 anos muito inteligente. Tratei de persuadir a mãe para que compreendesse que estava enfocando a situação de um modo egoísta, e assinalei que a solução que eu propunha era melhor para todos, e especialmente para a menina, embora pudesse tornar-se dolorosa para a mãe. A senhora insistiu em ver novamente o especialista e este declarou que a menina não necessitava ir ao hospital. Isto ocorria num sábado e nesta mesma noite o pai veio buscar-me e tive que ir à casa. No domingo voltou outra vez; eu não estava em casa, mas minha esposa lhe deu o nome do médico de plantão. Este lhes disse que deviam levar a menina ao hospital e então telefonaram novamente para o especialista. O especialista disse por telefone que falassem com o clínico geral. Segunda-feira pela manhã recebi o resultado da análise do sangue. Não era paratifo mas febre glandular. De modo que todos se haviam equivocado. A menina continuava em casa mas eu recebi um chamado telefônico no qual me disseram que não era necessário que fosse novamente à casa, pois haviam compreendido que era melhor para toda a família procurar outro médico; pessoalmente eu havia chegado à mesma conclusão. Ora, várias foram as pessoas complicadas no caso. Em primeiro lugar, a personalidade do especialista. Falou muito, é um homem muito simpático e muito inteligente, e o diagnóstico de paratifo era certamente um dos muitos que correspondia considerar, mas o certo é que afirmou enfaticamente sua opinião, e o fez ante os pais. Discuti este problema quando esteve em meu consultório e insistiu que o melhor era revelar aos pais este grave diagnóstico. Manifestei-me em contrário. Afirmei que semelhante afirmação devia perturbá-los, mas rejeitou a minha colocação. Ora, é um bom pediatra e impressionou-me muito, porque sabe mais do que eu. Tentei insistir em um diagnóstico menos grave ou que se enviasse a criança ao hospital. Não concordou comigo e disse aos pais exatamente o contrário do que eu havia afirmado, de modo que os pais perderam a confiança em mim. Realmente não é problema de fácil solução. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
184
Este caso clínico suscita muitos problemas interessantes, os quais foram entusiasticamente abordados pelo seminário. Em primeiro lugar, era aconselhável aceitar um especialista desconhecido, proposto pela família, especialmente tratando-se de um parente? Um especialista desconhecido sempre implica riscos para o clínico geral, pois ainda não existe entre ambos uma relação efetiva. Se surge algum desacordo, provavelmente se imporá a mais elevada reputação do especialista, fato que, no final, não será sempre um benefício para o paciente. E este risco é indubitavelmente maior quando o especialista mantém vínculo de parentesco ou de amizade com a família. Depois de formular algumas perguntas, inteiramo-nos de que, durante a primeira visita do especialista, os dois médicos haviam examinado juntos a menina, e logo se haviam retirado para discutir o caso mas sem conseguir concordar quanto ao diagnóstico. O especialista insistia em que era paratifo enquanto que o clínico geral se mostrava hesitante e pouco disposto a dar uma opinião. Finalmente prevaleceu a opinião do especialista e foi comunicada a família, sem mencionar que o clínico geral não estava de acordo com ela; assim começou o mal dissimulado desacordo entre os dois médicos e a inevitável luta subterrânea. É bastante interessante o fato de que os dois médicos discordassem abertamente quando se colocou o envio da paciente ao hospital. Isto se deveu em parte a que a relação profissional de cada um com a família era diferente; um era um especialista a quem se chamava só ocasionalmente e se pagava por cada visita, outro um clínico geral que devia manter-se noite e dia a serviço de uns pais excessivamente ansiosos e um pouco desconsiderados, cujas exigências ultrapassavam de muito o que era “objetivamente” razoável. O problema consiste em saber o que fazer com esse tipo de gente, como “educá-los” para que adotem uma atitude “razoável”. Retomarei ao tema mas antes desejo mencionar outro aspecto da discussão. No seminário discutimos como era possível que o especialista tivesse visitado duas vezes a paciente sem a presença do clínico geral. Era necessário que o médico tolerasse essa situação? Teria sido correta a atitude do especialista? O clínico forneceu novos detalhes e soubemos que a primeira de tais visitas havia tido lugar durante o meio dia de descanso do médico. A família havia sofrido outra crise de ansiedade, e havia bombardeado tanto a casa do médico como a do especialista com chamados telefônicos, mas o especialista se havia negado, com todo acerto, a visitar sozinho a criança. Finalmente a esposa do clínico geral lhe havia telefonado para pedir-lhe como favor que fosse tranqüilizar a família; só então o especialista havia aceito ir. Este caso constitui um bom exemplo do difícil que se torna entender-se dois profissionais de diferentes concepções apostólicas. É certo que neste caso complicaram o problema alguns fatores secundários, particularmente a diferença de status entre ambos os médicos, e o desacordo com respeito ao diagnóstico. Entretanto, este último fator foi nestas circunstâncias um problema de menor importância, embora não duvidemos de que a medicina científica e objetiva colocaria precisamente aí a ênfase. Assim fez o nosso médico e por isto se sentiu realmente ferido quando, apesar do acerto do seu diagnóstico, foi convertido em bode expiatório e finalmente punido. Este caso é excepcional também no sentido de que tanto o médico geral como o especialista se mostravam não apenas absolutamente corretos e superficialmente cooperativos, mas que também trataram de atuar de modo realmente amistoso, até o ponto de que se sentaram para ter uma longa conversação e conhecer-se melhor — fato que pode qualificar-se de desusado. Entretanto, apesar de toda a boa vontade demonstrada, simplesmente não puderam chegar a um acordo. Uma das razões dessa confusão de línguas foi a diferença de credos apostólicos com respeito ao grau de ansiedade que o paciente — ou os pais — devia suportar sem ajuda exterior; mas a outra consistiu em que se detiveram em um nível superficial do diagnós© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
185
tico. É certo que em tal nível se opuseram, mas no plano do clínico geral a diferença entre paratifo, febre glandular ou febre de origem desconhecida, desde que a condição febril não dure mais, digamos, do que uma semana, não é de importância suprema, embora reconheçamos que o é no plano da medicina científica. Estou disposto a suportar a censura severa dos médicos de espírito científico, e convenho de bom grado em que, em alguns casos, o diagnóstico diferencial pode ser essencial para formular o tratamento adequado. De qualquer modo, permita-se-me formular uma pergunta irreverente: em que proporção dos casos tratados no curso da clínica geral? Além disso, é tão considerável a importância de tal diagnóstico para que o médico se detenha nesse nível e descuide totalmente do diagnóstico “profundo”? Esta foi exatamente a atitude de nosso clínico geral neste caso, e embora suas dúvidas com respeito ao diagnóstico superficial de paratifo se mostrassem justificadas, seu castigo posterior foi talvez não tão injusto, porque não conseguiu apontar um diagnóstico “mais profundo” e mais compreensivo. O seminário chegou à óbvia conclusão de que se deve permitir a certas pessoas ser presa de ansiedade se algo começa a andar mal, e que esse estado de ansiedade deve ser aceito e tratado apropriadamente pelo médico. Necessitam sentir temor e se o médico se esforça por tranqüilizá-las, fazem tudo até encontrar uma boa razão que lhes permita ter medo. Este tipo de gente necessita sofrer uma doença grave, não se conformando com o susto. Assim, o especialista acertou, embora seu diagnóstico superficial tenha sido errôneo, e o clínico geral, a despeito da correção de seu diagnóstico superficial, nada pôde fazer. Seu fracasso foi tanto mais grave uma vez que conhecia a família há anos. Por conseguinte, a primeira tarefa do médico consiste em formular um diagnóstico melhor e mais compreensivo. O problema seguinte consiste em determinar o que se fará uma vez estabelecido o diagnóstico. Se o profissional pode descobrir porque o paciente ou seu pais necessitam sentir temor, e evidente que deverá tentar o diagnóstico e tratamento correspondentes. Infelizmente em casos bastante graves como o que acabamos de informar, esta tarefa raramente se encontra dentro das possibilidades do clínico geral. Mas se não pode alcançar este objetivo, de qualquer modo deve aplicar ao paciente um tratamento sintomático racional. Por exemplo, em um caso de enxaqueca que não seja possível achar motivo, e preciso que o paciente receba algo, aspirina, codeína etc., pois do contrário não poderá suportar a situação ou não poderá suportar o seu médico. O que nos traz de volta a nosso tema, a educação do paciente para adotar uma atitude inteligente quanto à sua enfermidade ou quanto à doença de seu filho. Quando devemos dar paliativos, em que proporção e durante quanto tempo? Quando devemos interromper a administração dos mesmos, ou reduzir a cota para pedir ao paciente que em seu próprio interesse aceite certa dose de inevitável sofrimento ou de ansiedade? Como já assinalamos, não possuímos conhecimentos suficientes sobre esses problemas de caráter eminentemente psicológico e devemos propor que se aprofunde a investigação em torno do mesmo. Nesta história clínica analisamos as necessidades das pessoas excessivamente ansiosas. Isso, entretanto, é apenas um caso particular. Todos os pacientes nos “oferecem” suas diversas necessidades e nós médicos devemos “responder” de um modo ou outro. A resposta mais comum é dar algo ao paciente. Talvez a mais ingrata experiência de um médico seja ver-se impossibilitado de dar uma solução “racional”. Entretanto essa atitude, a de dar, tem outro aspecto. Quando a adotamos, especialmente quando estamos convencidos de que o que damos é “bom” para o paciente, descarregamos a culpa sobre ele. Portanto, será sua a responsabilidade se não melhora. No seminário freqüentemente tivemos motivo de perguntar-nos se o objetivo real de determinada receita era o benefício do paciente ou a conveniência do médico. Para que exista uma relação mutuamente satisfatória é preciso que ambos sintam que se deu um passo “positivo”, pois do contrário é inevitável a conclusão de que o médico é, até certo ponto, a causa do sofrimento, dado que não consegue curá-lo nem aliviá-lo. Certos pa© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
186
cientes deslizam irresistivelmente até esta conclusão hostil, a maioria por causa da sua personalidade, e alguns talvez justificadamente. Mas reveste-se de particular interesse e mais importância para o nosso tema o fato de que existe certo número de médicos que alenta o mesmo sentimento, quer dizer, que crê não haver cumprido seu dever com o paciente. A maioria desses médicos recruta-se entre os médicos jovens. Os membros mais recentes do pessoal de um hospital dispõem de amplas possibilidades de diluir sua responsabilidade e, salvo talvez durante uma intervenção cirúrgica, é raro que um só médico esteja a cargo de um paciente do hospital. Mas o clínico se encontra quase sempre sozinho frente ao paciente, e carece de meios organizados que lhe permitam diluir sua pesada responsabilidade. Não é estranho pois que deva fazer todo possível para convencer que realmente deu algo de valor a seu paciente. Devo mencionar novamente o fato de que nosso conhecimento dos fatores dinâmicos presentes nas relações médico-paciente é incerto e escasso, e que nem sequer sabemos se temos consciência de todos os fatores importantes. Aqui, em todo caso, dispomos de um exemplo dos mesmos. Em primeiro lugar, o paciente está quase sempre atemorizado, embora em grau variado, e não sabe a que ater-se. Vai ao médico, o homem que sabe. O paciente teme pelo futuro e espera ser reconfortado. Freqüentemente sofre, e alenta esperanças de que receberá alívio para sua dor. Os pacientes devem enfrentar o fato de que estão doentes, quer dizer, temporária ou talvez permanentemente incapacitados. Alguns agradecem realmente ao médico que, por assim dizer, lhes permite adoecer; outros se mostram profundamente ressentidos. Freqüentemente o médico se vê obrigado a ser árbitro de uma delicada situação concreta, como, por exemplo, quando um paciente abusa de si mesmo para enfrentar suas responsabilidades e sua família deseja que continue na mesma atitude, ou quando se cuida como é devido de um enfermo grave, ou quando um paciente afetado de uma condição não incapacitante exige atenção excessiva e cuidados de seus parentes, e assim por diante, ad infinitum. Como se pode deduzir dessa enumeração, são muitos os fatores da relação médico-paciente que impulsionam o paciente a estabelecer com o médico uma relação de dependência infantil. Isto é inevitável e só cabe presumir que grau de dependência é desejável. A resposta óbvia consiste em que isto dependerá da natureza da doença, da personalidade do paciente e — não devemos esquecer — do credo apostólico do médico em questão. Esta frase, tão bela e correta, não é outra coisa do que um disfarce de nossa ignorância. O problema real consiste em saber que grau de dependência constitui um bom ponto de partida para uma terapia bem-sucedida e quando esta atitude se converte em obstáculo. No princípio deste capítulo discutimos a necessidade de educar o paciente para adotar uma atitude razoavelmente madura quanto à sua enfermidade — ou quanto à enfermidade de seu filho. Que grau de dependência infantil e de maturidade razoável harmonizam bem, e que proporção de cada atitude concorrerá para a formação de uma boa mistura terapêutica? Entretanto só podemos assinalar a existência desses importantes problemas, pois não podemos oferecer respostas bem fundamentadas. Só sabemos com certeza que o bom senso, quer dizer, o credo apostólico, constitui uma guia indigno de confiança. Citemos dois casos comuns nos quais o médico tem que resolver este problema, o de combinar as proporções adequadas: com que freqüência deve se visitar um inválido, e quanto tempo tem-se que consagrar em cada ocasião? Quando convém espaçar as visitas diárias, ou as duas visitas diárias, no curso de uma enfermidade aguda em processo de melhora? À parte o complicado problema dos honorários, em que consiste a boa “prática”, capaz de criar uma base sólida, tanto no paciente quanto no ambiente que o rodeia, para o tratamento de qualquer enfermidade futura? Como o demonstra a última história clínica, a resposta a essas perguntas não é de modo algum clara, nem é problema de bom senso. A carência de técnica adequadamente comprovada neste campo de extraordinária importância é tanto mais lamentável quanto a relação do médico com seus pacientes, se omitirmos os “nômades” (ver Capítulo 19), que é íntima e duradoura. Todos © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
187
os seus atos influem necessariamente no paciente e no final de contas tais influências se somam. Nesse sentido não modifica muito a situação o fato de que o paciente paga honorários, quer dizer, o fato de que sinta que o médico é, de certo modo, seu servidor pessoal, ou de que seja certa instituição anônima a que nomeia o médico, rodeando-o de um halo refletido de autoridade, com toda a ambivalência que este promove. É da maior importância destacar que a educação não é exclusivamente unilateral. Médico e paciente desenvolvem-se conjuntamente muito melhor com conhecimento mútuo. Esta influência mútua não é um processo simples, desenvolvido segundo uma orientação totalmente positiva ou absolutamente negativa. Tanto o médico como o paciente devem aprender a suportar certo grau de frustração. O médico não está automaticamente disponível a cada vez que é chamado, e não lhe agrada que o chamem durante a noite ou aos domingos. Embora atenda ao chamado, não pode curar tudo imediatamente; certo grau de dor e de ansiedade não poderá ser aliviado, pelo menos durante certo tempo. No mesmo sentido ocorre freqüentemente que o paciente não aprecie o grande serviço que o médico lhe presta e não mostre gratidão, seja desconsiderado, coloque exigências fora de lugar, seja desrespeitoso, etc. Por outro lado, existem recordações comuns de fatos como um diagnóstico correto e uma atitude oportuna que evitaram uma situação de gravidade, de muitos pequenos atos de ajuda, realizados de bom grado e aceitos com gratidão em numerosas pequenas dificuldades, ou de alguma comoção grave que o médico ajudou a suportar etc. Sobre esta base de mútua satisfação e de mútua frustração se estabelece uma relação original entre o clínico geral e os pacientes que lhes são fiéis. É muito difícil descrever esta relação do ponto de vista psicológico. Não se trata de amor nem de respeito mútuo, nem de identificação recíproca, nem de amizade, embora contribuam a formá-la elementos de tudo isto. Denominamos — na falta de melhor expressão — uma “companhia de investimento mútuo”. Com isto queremos dizer que o médico adquire gradualmente um capital muito valioso, investido em seu paciente; e que, reciprocamente, o paciente adquire um muito valioso capital investido em seu clínico geral. Durante os longos anos de vinculação com o paciente, o clínico geral adquire gradualmente uma grande massa de detalhes importantes. Conhece os antecedentes do doente, ou vários membros da família, freqüentemente várias gerações, o tipo de pessoas que constituem suas amizades, a loja, o escritório ou a fábrica em que trabalha, a rua ou vizinhança em que vive etc. Sabe o que seus amigos ou vizinhos dizem ou murmuram sobre ele, seus antecedentes de trabalho, como conheceu a esposa e que tipo de filhos tem. Mas estes são os fatores de menor importância. O principal do capital é formado, como já vimos, pelas experiências comuns quando o paciente está sadio, e particularmente quando está doente, pela freqüência com que solicita conselho médico, e pelo tipo de doença que apresenta então, por sua conduta quando ocorre algo inesperado, quando um membro de sua família adoece gravemente ou morre, ou quando ele mesmo sofre uma doença de maior ou menor gravidade. Do mesmo modo o paciente sabe quanta ajuda e que tipo de ajuda pode esperar de seu médico. É evidente que se reveste de suprema importância que estes bens de capital, resultado do duro trabalho de ambas as partes para ganhar a confiança da outra e para convertê-la ao seu próprio credo, não se desgastem, quer dizer, que sejam utilizados de modo a produzir benefícios adequados tanto ao médico quanto ao paciente. Aqui devo repetir meu refrão. Trata-se de uma esfera de conhecimento de extraordinária importância, descuidada pela ciência médica. Uma das razões de tais descuidos consiste em que os pesquisadores — nossos especialistas hospitalares — mal têm contato com ela. Constitui o domínio do clínico geral, em realidade, tratando-se do seu próprio trabalho cotidiano. Só ele pode determinar que métodos poderão ser utilizados com proveito e quais deverão ser evitados enquanto “educa” os pacientes; quando organiza e administra os bens dessa companhia de investimento mútuo. Em contraste com o clínico geral, © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
188
o especialista não forma parte desta companhia de investimento mútuo; deve começar do zero, a menos que o clínico geral seja capaz de preparar tanto o seu paciente quanto o especialista para a entrevista que terão. Em outras palavras, o clínico geral deve ser capaz de mobilizar e de emprestar parte do capital investido nele por seu paciente para seu uso durante os exames realizados pelo especialista. Que isto não ocorra assim com tanta freqüência como seria necessário é imputável tanto aos clínicos gerais como aos especialistas. A solicitação freqüente: “Tórax, por favor examine e aconselhe” tem a mesma utilidade que algumas das cartas de especialistas que citamos neste livro. Por outro lado, o especialista possui vantagens de outro tipo, é um estranho, um homem novo, seu enfoque é diferente, e seus pontos de vista não estão influídos por suas experiências anteriores com o paciente. Para ele, a doença não é tanto um problema humano quanto científico. No mesmo sentido, para o paciente o especialista é um personagem importante e desconhecido, uma folha em branco, uma autoridade superior ante a qual eleva os olhos; enquanto que o médico é um velho conhecido, a quem conhece demasiado bem, com todos os seus velhos hábitos, debilidades humanas, e ainda problemas e deficiências pessoais. Outro aspecto da diferença entre a casual relação especialista-paciente e a companhia de investimento mútuo é a duração. Os especialistas (incluídos os membros das seções psiquiátricas dos hospitais) geralmente vêem um paciente poucas vezes, e raramente seguem o desenvolvimento dos seus exames ou dos seus esforços terapêuticos. Como pode comprovar-se graças à literatura sobre o tema, um desenvolvimento fidedigno e completo é um acontecimento tão raro que seus resultados geralmente merecem as honras da publicação. O clínico geral se encontra em uma posição completamente diferente devido a que, queira ou não, está obrigado a seguir o desenvolvimento de seus casos, a maioria de seus pacientes retorna a ele, agradecidos ou resmungando, uma e outra vez. Por uma ou outra razão os clínicos gerais parecem relutantes a falar do desenvolvimento completo dos seus casos, embora em realidade pudessem ser os verdadeiros juizes dos resultados. Contentam-se em queixar-se dos especialistas ineficazes, mas muito raramente reúnem a coragem e o tempo necessários para relatar construtivamente e por escrito suas experiências.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
189
Capítulo
19
O Paciente e Sua Doença
Os capítulos precedentes, realmente a maior parte do livro, foram ocupados pela discussão da relação entre o médico e o paciente. Sem dúvida, isto não é absolutamente justo. A enfermidade começa antes que o médico apareça em cena, e em alguns casos muito antes. Recordo-me da frase favorita de um de meus professores: “Quanto mais leve seria a tarefa do médico se o câncer, a sífilis e a sujeira provocassem dor!” Infelizmente, existem outras doenças que não provocam bastante dor, incômodo ou temor, permitindo assim que o paciente se mantenha afastado durante um tempo excessivo. Reciprocamente, isto significa que deve existir uma relação entre o paciente e sua enfermidade, independentemente da figura do médico. É inegável que se trata de uma relação de extraordinária importância, a qual bem merece exame apropriado. São muitas as razões pelas quais a tratei tão brevemente neste livro. Uma delas é a minha própria formação e experiência. Posto que sou psicanalista, quase toda minha experiência provém do que aprendi na situação psicanalítica. Quase todas as descobertas psicanalíticas provêm dessa fonte, caracterizada por uma relação particular, desequilibrada e bilateral. Um dos membros dessa relação goza de uma posição superior na medida em que possui conhecimentos mais profundos, e maior e melhor compreensão, em que pode explicar, e o faz — isto é, interpreta —, os fatos que se desenvolvem entre os membros da relação. Em compensação, transferem-se a sua pessoa em emoções muito carregadas, situação que ele tem que tolerar. O outro membro desta relação peculiar é comparativamente débil, e veio em busca de ajuda porque não pode compreender por si mesmo seus problemas; em outras palavras, porque existem certos problemas que lhe são inexplicáveis. Este estado de coisas provoca no paciente tensões elevadas; o modo de aliviar a tensão consiste em transferir suas emoções ao membro mais forte, o analista. É fácil compreender por que os analistas não podem deixar de explicar todas as formas da relação médico-paciente à luz da sua própria experiência com os pacientes na situação analítica. É importante ter presente que isto equivale a explicá-la em termos da relação que existe entre uma criança e o adulto. Mas também significa que o nosso conhecimento sobre a situação unipessoal é muito mais escasso; isto é, sobre a situação na qual não existe outro ser humano ao qual possam ser transferidas as emoções, e na © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
191
qual o homem dependa essencialmente de si mesmo. As situações desse tipo revestem-se provavelmente da mesma importância que as situações bipessoais, amplamente estudadas pelos analistas. Um bom exemplo dessa situação unipessoal é, por exemplo, a criação artística. Todas as explicações psicanalíticas propostas tratam de convertê-la em um tipo de relação bipessoal, embora seja óbvio que em realidade não existe uma segunda pessoa, e que o artista cria sua obra de arte por si e de si mesmo. A óbvia explicação analítica, um tanto superficial, consiste em considerar a obra de arte como uma espécie de filho nascido do artista criador. Esta concepção se encontra vigorosamente apoiada pelo jogo de imagens dos idiomas que conheço pessoalmente, todos os quais utilizam palavras usadas em relação ao parto para descrever o ato criador. Citemos umas poucas: o artista concebe uma idéia, ou está prenhe de idéias, sofre as dores do parto, dá à luz uma obra de arte, algumas de suas idéias abortam ou constituem conceitos que nasceram mortos etc. Tudo o que demonstra que esta explicação, ainda que essencialmente correta, é pouco substancial, e não faz justiça à riqueza da experiência real. Em termos gerais o mesmo se aplica às nossas concepções teóricas sobre a doença. Sabemos que por uma ou outra razão durante o período inicial, “não organizado”, de suas doenças — etapa que pode durar alguns minutos ou vários anos — o indivíduo retrai-se gradualmente do seu meio e primeiro cria e logo desenvolve a doença em sua própria pessoa, extraindo-a de si mesmo. Conhece-se mal a natureza deste período, o qual, de acordo com a nossa experiência, reveste-se de suprema importância para o destino futuro da doença e do doente. Nossos métodos psicanalíticos não nos trazem uma técnica adequada na medida necessária para seguir em detalhe o desenvolvimento do paciente em seus esforços na sua luta com o processo da doença. Durante esse período, do mesmo modo que durante a criação artística, não há testemunhas e certamente falta o sócio exterior ao qual seria possível transferir as emoções, e ser então captável através de nossos métodos analíticos. Aqui, como no caso da criação artística, uma das explicações psicanalíticas vê a doença como uma espécie de filho, neste caso um filho mau e malcriado, que em lugar de trazer prazer é fonte de dor e aborrecimento para o seu criador. (Estes tipos de imagens podem tornar-se conscientes e ser expressos exatamente nessas palavras no caso de certos pacientes, por exemplo as mulheres que sofrem de um tumor.) Devo repetir o que já disse. Embora essa explicação seja provavelmente certa, é também superficial e incompleta. Se a observação psicanalítica direta não fornece dados satisfatórios que permitam o desenvolvimento de uma teoria, voltamos os olhos à ciência médica, a qual elaborou ao longo dos séculos certas teorias sobre a natureza das enfermidades. Além de seu valor e utilidade científicas, todas estão determinadas psicologicamente, quer dizer, refletem um aspecto ou outro da relação do homem com a sua doença. Discutirei somente qual é a mais importante teoria atual ainda que, se estou certo, sua importância esteja diminuindo gradualmente. Em sua forma mais simples, considera o indivíduo como um ser essencialmente são e bem integrado. Perturba a sua harmonia um agente exterior que penetra as defesas do corpo (ou da mente). O agente pode ser uma força física, que provoca machucados, feridas, contusões, fraturas etc.; uma substância química, por exemplo um ácido, um veneno, um gás letal, um líquido caústico; ou um germe, origem de uma infecção; ou ainda um trauma mental. A doença, de acordo com esta teoria, é a soma total do dano original e das defesas corporais (ou mentais) mobilizadas contra ele. A fonte psicológica dessa teoria é a crença — e a esperança — viva em todos nós, de que somos essencialmente “bons” e de que todo “mal” deve vir de fora. Por conseguinte, o tratamento apropriado consistirá em expulsar esse algo “mau” de nossa própria pessoa. Essa idéia primitiva serviu de base a inumeráveis técnicas, desde a magia e o exorcismo primitivos, passando pelos “purgativos”, os enemas e as flebotomias, a numerosas e desnecessárias operações cirúrgicas. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
192
Em geral uma ou ambas as idéias opostas dão forma — ou talvez apenas dêem cor — à concepção do paciente sobre sua própria doença. Em termos gerais o mesmo pode dizer-se das teorias médicas sobre as doenças. De acordo com a primeira de tais idéias, o paciente estava sadio e “bom” até que algo nele mesmo começou a funcionar “mal”. De acordo com a segunda, o “fator negativo” não tem nada a ver com o paciente, provém do exterior e é, no verdadeiro sentido da expressão, um “corpo estranho”. Em ambos os casos, o “fator negativo” o ameaça com dores, privações e mesmo com a destruição, a menos que possa defender-se ou desembaraçar-se dele, por si mesmo ou com ajuda de seu médico. Qual dessas duas concepções opostas é válida, ou pelo menos mais próxima da verdade? Trata-se de um problema de difícil solução. Quanto menor a duração de uma doença — e portanto o período de observação — melhor se adequa a teoria do agente exterior. Um dedo machucado ou um grave acesso de gripe pode ser seguramente atribuído a algo “mau” com origem no mundo exterior. Mas se um paciente retoma periodicamente com uma lesão de menor importância, não podemos deixar de supor que existe certa inclinação a sofrer acidentes, ou absenteísmo deliberado; e se “pega” um número excessivo de infecções, falamos de hipersensibilidade, condição alérgica etc. Quanto mais prolongado o período de observação, mais se acentua a impressão de que a doença é uma condição do paciente quase tão característica como a forma de sua cabeça, sua altura ou a cor de seus olhos. Esse raciocínio nos conduz diretamente a um dos problemas eternos da medicina: qual é o fator primário, uma enfermidade orgânica de caráter crônico ou certo tipo de personalidade? Esses dois fatores são independentes entre si, interdependentes, ou um deles é causa e o outro efeito? E se é assim, que papel corresponde a cada um? Têm os irritadiços possibilidades de contrair úlceras pépticas, ou essas tornam irritadiças as pessoas? São as crises biliares, ou mesmo os cálculos biliares, produto da amargura de certas pessoas, ou estas ficaram amargas como conseqüência das crises dolorosas? Até bem pouco tempo atrás entendia-se tacitamente que toda enfermidade crônica determinava o desenvolvimento de uma “superestrutura neurótica”. Durante os últimos quarenta anos, sobretudo graças à influência de pioneiros como G. Groddeck, S. Ferenczi e S. E. Jelliffe — os três foram originalmente clínicos gerais —, o pensamento médico se modificou gradualmente. Essa transformação determinou o que hoje chamamos medicina psicossomática. Naturalmente o problema não acaba aqui. O passo seguinte consiste em determinar qual é a origem da disposição, psicossomática ou de qualquer outra natureza. Se estou certo, a psicanálise está a ponto de desenvolver uma nova concepção, a que poderíamos denominar “enfermidade fundamental” ou talvez “deficiência fundamental” da estrutura biológica do indivíduo, envolvendo em vários graus tanto sua mente quanto seu corpo. A origem dessa deficiência fundamental pode ser achada em uma discrepância considerável das necessidades do indivíduo entre os seus primeiros anos de formação (ou possivelmente meses) e os cuidados e atenção disponíveis nos momentos importantes. Este fenômeno cria um estado de deficiência, cujas conseqüências apenas em parte são reversíveis. Embora o indivíduo possa adaptar-se bem, ou mesmo muito bem, subsistem vestígios de suas primeiras experiências que contribuem para o que denominamos sua constituição, sua individualidade ou a conformação de seu caráter, tanto no sentido psicológico como no biológico. A causa dessa diferença primitiva entre necessidades e satisfações pode ser congênita, isto é, a criança formula exigências excessivas, ou ambiental, isto é, cuidados insuficientes, irresponsáveis, irregulares, excessivamente ansiosos, desmedidamente protetores ou simplesmente carentes de compreensão. Se esse enfoque teórico se torna correto, todos os estados patológicos dos anos posteriores, as “doenças clínicas”, deveriam ser considerados sintomas ou exacerbações da “doença fundamental” provocada pelas diversas crises do desenvolvimento individual, externas e internas, psicológicas e biológicas. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
193
Se aceitamos este conceito, a controvérsia entre a origem interior e exterior da doença se resolve em uma série complementar. À medida que se acentua a intensidade de um fator, é menor a necessidade de que outro intervenha. Deste modo surge a imagem de um conflito entre as possibilidades do indivíduo e seu meio. Suponhamos que a “deficiência fundamental” não tenha sido demasiado grave, e permita ao indivíduo desenvolver-se bastante bem, quer dizer, adaptar-se sem tensões excessivas a uma variedade bastante grande de condições. Mas se a tensão que suporta aumentasse repentinamente ou se afetasse zonas influenciadas por sua “deficiência fundamental”, ver-se-ia obrigado a encarar o problema que talvez lhe possa ser excessivamente difícil. Neste caso “médio” chegamos em graduações imperceptíveis, em um sentido, ao caso extremo da criança não viável e da coréia de Huntington, ou em outra direção a uma infecção maciça ou a uma bomba lançada pelo inimigo. Admito de bom grado que meu conceito não peca pela originalidade. A única originalidade que pode reclamar consiste em que reúne as enfermidades da idade adulta e as experiências dos primeiros períodos formativas da vida e os relaciona entre si. Outra vantagem dessa teoria reside em que pode constituir uma hipótese de trabalho capaz de possibilitar a compreensão dos processos do paciente enquanto este se encontra todavia às voltas e sozinho com sua doença. De qualquer modo desejo destacar que o pouco que conhecemos sobre esta importante fase é resultado da reconstrução operada com os dados que obtemos posteriormente do paciente, uma vez que sua doença o obrigou a consultar-nos. Também nesse terreno os clínicos gerais dispõem de uma oportunidade única, negada aos demais profissionais. Podem conhecer o paciente, e freqüentemente é este o caso, antes de que a doença se declare francamente, quando ainda está sozinho com sua doença. Esta situação muda fundamentalmente quando o paciente alcança a etapa em que começa a queixar-se. Embora sua doença se encontre em geral ainda em fase não organizada, necessita agora — e encontra — um sócio, em certo sentido um sócio superior, do qual pode esperar ajuda e ao qual pode transferir algumas de suas emoções. Aqui, nós analistas nos sentimos à vontade e podemos usar tranqüilamente nossos próprios métodos e — como espero tê-lo demonstrado — nossas idéias podem contribuir para aliviar a árdua tarefa do clínico geral. Entretanto, não se trata certamente de uma relação unilateral. É verdade que o clínico geral pode aprender muito de nós com respeito à importantíssima interação entre as proposições do paciente e as reações do médico, determinadas por seu próprio conceito da função apostólica. Mas não é menos certo que nós analistas podemos aprender também muito das experiências dos clínicos gerais. Por motivos óbvios, neste livro podemos apenas mencionar o fato, mas não nos prestarmos a seu exame detalhado. Retornemos pois ao nosso tema principal. Comprovamos que, quando o paciente enfrenta um problema que para ele é de difícil solução, em parte ou principalmente por causa de sua “deficiência fundamental” sua organização sofre certo contraste e depois de algum tempo, que pode durar alguns minutos ou vários anos, consulta o médico para queixar-se de alguma doença. Trata-se de um fato desconcertante; no início da relação médico-paciente ocorre muito freqüentemente que os pacientes venham com um problema. Em outras palavras, os pacientes consultam os seus respectivos médicos somente quando, por assim dizer, converteram a luta contra seus problemas em doença. Estou seguro de que certo número de médicos ficará surpreso com esta formulação. Que tem de mau esta situação? perguntarão logo. A tarefa dos médicos é tratar as doenças; naturalmente as pessoas recorrem a eles quando estão doentes. Está certo, mas é também obrigação do médico praticar a medicina preventiva. Talvez fosse desejável modificar o caráter de nossa função apostólica e educar nossos pacientes para que nos tragam seus problemas antes de que se inicie a doença; se fosse aplicado tão precoce tratamento, melhorariam muito as perspectivas de uma terapia com sucesso. Ademais, existe a possibilidade de que nosso conhecimento © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
194
realize progressos extraordinários se conseguimos determinar que tipo de pessoa enfrenta problemas e os resolve sem apelar para a doença, e quais são os que se entregam a ela. É muito provável que o tempo seja outro fator de importância. Assim, por exemplo, a medicina sabe que o câncer raramente começa antes dos 40 anos, e que é difícil achar uma úlcera péptica que tenha começado depois dos 40. Não é impossível que estes e outros fatos empíricos de natureza semelhante tenham raízes psicológicas, as quais sem dúvida seriam muito mais acessíveis ao estudo detalhado no período anterior ao começo da doença propriamente dita. Simultaneamente com o começo da doença põe-se em movimento uma série de processos secundários. Poder-se-ia dizer que a doença cria uma situação vital à qual o paciente deve adaptar-se. Este reajuste é um processo complicado e multidimensional, pelo que devo limitar-me à enumeração de alguns de seus mais importantes aspectos. Uma das mais primitivas e poderosas tendências da mente humana é a que tecnicamente chamamos narcisismo. Isso significa, de nosso ponto de vista, que nos sentimos íntegros, inviolados, imperecíveis, importantes, capazes e, sobretudo, dignos de amor. A vida e a realidade nem sempre se harmonizam com este sentimento; durante o nosso desenvolvimento e no curso de nossa vida madura, nosso narcisismo se vê ferido várias vezes. Constitui um grave choque chegar a compreender, pouco importa se gradual ou subitamente, que, devido à doença, nosso corpo (ou a nossa mente) perdeu momentaneamente a sua capacidade e que talvez nunca mais possamos crer que nossas esperanças se realizarão completamente em algum futuro não especificado. As experiências passadas, particularmente durante a nossa infância e adolescência, nos ensinaram certos modos de encarar tais choques. Nossos pais e professores exercem profunda influência sobre esse processo de aprendizagem e sobre seus resultados. O ato de enfrentar uma doença pode ser comparado com esse processo de maturação e o papel do médico com o de nossos pais e mestres; assim como as concepções e as convicções de nossos pais e mestre contribuíram pouco ou retardaram consideravelmente nosso desenvolvimento até a maturidade, também o médico e sua função apostólica nos influirão durante o processo da doença. Para certas pessoas, ficar doente constitui rude golpe, para outras bem-vindo alívio. Há aqueles que, devido à gravidade de sua “deficiência fundamental”, acham a vida muito difícil, que só obtêm escassas satisfações, e cuja economia mental ou biológica é precária e instável. Para esses indivíduos, mesmo as doenças de menor importância são excessivas, a vida é um fenômeno esgotador, que os frustra e deprime, e a enfermidade lhes oferece uma oportunidade aceitável para retrair-se e “cuidar de si mesmos”. Seja um grave choque ou uma bem-vinda justificativa para refugiar-se, a doença é sempre uma forma de vida. Isto é especialmente certo no caso das enfermidades de certa duração, que dão tempo ao paciente para que se adapte a ela. Esta adaptação não é idêntica ao processo que denominamos “organização”, mas constitui um fenômeno paralelo e ambos se influem constante e reciprocamente. Do ponto de vista do tema que agora nos ocupa só nos interessa a doença como forma de vida. Trata-se de um tema muito amplo e, embora possuamos sobre o mesmo numerosos dados de caráter empírico e apesar de que certo número de médicos eminentes tenha tratado de resumir suas experiências de toda uma vida sobre o problema, falta ainda uma investigação sistemática. Minha muito modesta tentativa está longe de satisfazer as necessidades. Basearei minha discussão sobre a teoria psicanalítica dos lucros primários e secundários. Embora conveniente como orientação inicial, essa teoria não pretende ser inequívoca nem pretende ser mais do que um enfoque primário e tosco. Nenhuma forma de vida pode subsistir sem certo grau de gratificação. Isso significa reciprocamente que quando se pretende modificar uma determinada forma de vida é preciso utilizar uma força compulsiva ou oferecer gratificações mais aceitáveis em lugar daque© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
195
las que a mudança impossibilitou. Parece lugar-comum, mas vale a pena destacar que esta norma se reveste de total validez do ponto de vista da relação do paciente com sua doença e também para o caso de uma determinada forma de terapia que aspire modificar tal relação. Citemos um exemplo convincente entre muitos outros: o predomínio dos métodos físicos, “brutais”, no campo da terapia psiquiátrica sobre os métodos psicoterápicos, mais onerosos do ponto de vista do tempo que consomem. Os diversos tratamentos por choque, e sobretudo a leucotomia, obrigam brutalmente o paciente a renunciar a alguns de seus sintomas, suas formas de vida — e a contentar-se com outros, menos objetáveis na opinião de seus semelhantes. Todo aquele que haja tido a oportunidade de ver pacientes leucotomizados sabe como dolorosamente certo é o que acabamos de afirmar. Examinemos pois em primeiro lugar a doença como fonte de gratificação direta. Para evitar mal-entendidos devo destacar que em toda enfermidade a dor, a limitação, a apreensão etc., se encontram sempre presentes. Todas as gratificações possíveis não são senão parciais, fatos complementares, ou são completamente anuladas pelo sofrimento. Mas é impossível omitir à extraordinária importância emocional do ato de comer em quase todas as enfermidades gástricas e em algumas de caráter metabólico, das funções digestivas nos casos de desordens intestinais, particularmente nas constipações crônicas etc. Um exemplo desconcertante, citado freqüentemente, é o dos sonhos fecais dos acromegálicos, de acento francamente ambivalente, fonte em parte de intenso desgosto e de temor, mas ao mesmo tempo “interessante”. Neste aspecto a psicanálise pode oferecer certa ajuda, através da teoria das zonas erógenas do corpo. Infelizmente tudo isso não é mais que um princípio. A razão está provavelmente em que o material observado pelos psicanalistas é fruto de seleção rigorosa, quer dizer, está formado por pacientes que sofrem quase todos de enfermidades psicológicas e em que muito poucos são casos de caráter orgânico. O clínico geral que atende uma gama muito mais variada de pacientes, possivelmente nos fornecerá dados mais abundantes, que nos permitirão ampliar e aprofundar nossas teorias psicanalíticas. O segundo subgrupo de gratificações diretas está formado pelas oportunidades que a doença oferece e que permitem ao paciente retirar-se dos diversos tipos de relações insatisfatórias ou frustrantes, exigentes ou espoliativas. Os exemplos constituem uma legião: a mulher frígida cuja dismenorréia constitui bem-vinda dispensa de seus deveres conjugais; a uretrite de um homem que não está seguro de sua potência; as numerosas dificuldades para comer e as manias alimentícias das crianças excessivamente mimadas, que lhes permitem escapar das garras de seus pais demasiados poderosos (geralmente se trata das mães) mediante certa debilidade; as crises de asma que inevitavelmente acometem o paciente quando vai visitar a casa de seus pais ou a de seus sogros. Fenômeno mais notável é o considerável estreitamento da personalidade durante uma enfermidade grave; não só pode ocorrer que desapareça gradualmente o interesse pelo próximo mas que a relação do paciente com a realidade se torne incerta e frágil. Esse subgrupo é bem conhecido, sobre ele a observação geral reuniu suficiente quantidade de material. Infelizmente se alude ao problema quase sempre no plano das anedotas interessantes e é precisamente aqui que é indispensável a realização de uma investigação sistemática. Em uma zona intermediária entre o último subgrupo e o seguinte, isto é, entre o retraimento e a regressão, existe o que a psicanálise denomina introversão. É algo mais que o retraimento porquanto o interesse do indivíduo não só se aparta do meio, mas ao mesmo tempo se concentra firmemente sobre sua própria pessoa. Os processos e as sensações mentais, as idéias e as emoções alcançam uma importância dificilmente observada em outras condições. O fenômeno em si é bem conhecido, mas todavia se compreende mal o mecanismo mais íntimo, provavelmente porque nas primeiras etapas o paciente acha-se só e não dispõe de um alguém a quem transferir suas emoções. Portanto, quase tudo que sabemos a respeito da fase não organizada deste período provém de uma reconstrução baseada nos dados posteriores do paciente, quando vem a nós em busca de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
196
ajuda, ou de nossas impressões subjetivas e idéias teóricas preconcebidas. É indispensável saber muito mais sobre o desenvolvimento das fases formativas da introversão. Se as compreendêssemos melhor, talvez conseguíssemos evitar o desenvolvimento da hipocondria grave, o mais grave dos problemas desse subgrupo. O quarto subgrupo de gratificações diretas graças às enfermidades pode ser denominada regressões. Trata-se de algo mais do que retraimento ou introversão, porque determina além disso o aparecimento de formas infantis na conduta do paciente. Embora seja inegável a freqüência dessa forma, sabe-se menos da regressão do que de qualquer das formas anteriores de gratificação. A relação entre a doença e o retraimento é bastante clara em muitos casos, mas em troca é muito pouco clara a função da regressão. Pode ser conseqüência da gravidade, da doença, um caso extremo, como o é o delírio quando o paciente sofre de febre muito alta. Pode constituir o abandono desesperado, como se impossível a tarefa de enfrentar a vida e a dor em atitude madura, como, por exemplo, a adoção da posição fetal em grande número de condições dolorosas, ou a atitude de certos pacientes, que gostam ou exigem serem alimentados ou lavados quando isto não é de nenhum modo objetivamente necessário, ou a instituição ou o costume de encarregar uma enfermeira de suster a mão do paciente submetido a anestesia local. A regressão pode constituir também uma tentativa de autocura, o caso provável da temperatura elevada em certas infecções; talvez o paciente regresse a um nível mais primitivo para buscar uma oportunidade de desenvolver-se em uma direção diferente, evitando assim a que se tornou bloqueada pela enfermidade. Como já disse, a par de sua existência pouco se sabe sobre o significado e a função da regressão. O fato é inquietante, porque as respostas do médico à “oferta” de regressão do paciente são de grande importância para o desenvolvimento futuro. Nem sequer sabemos se convém prevenir ou estimular a regressão e, em caso afirmativo, em que doenças, em que etapas da doença e em que tipo de doentes. É evidente o perigo de que o paciente possa se sentir demasiadamente cômodo em determinado estado regressivo ou em outro caracterizado pelo excesso de pressão e de “maturidade”; quer dizer, o perigo de que se “organize” demasiadamente bem e se torne inacessível à verdadeira terapia. Novamente devo chamar atenção sobre a necessidade de mais intensas pesquisas. O segundo grande grupo de ratificações, que permite ao paciente submeter-se à doença ou aceitá-la como forma de vida é o dos lucros secundários. A doença do mesmo modo que qualquer outra condição humana pode ser utilizada para obter algo que o indivíduo considera útil ou valioso. O exemplo mais conhecido é o da neurose de compensação, mas há muitos outros. Para o observador de fora, as vantagens secundárias podem parecer de pouco valor, e mesmo bastante tolas, mas são importantes para o paciente e devem ser reconhecidas como tais por seu meio e pelo médico. Sobre este particular é possível citar numerosos exemplos: emprego de uma braçadeira como sinal de que se acaba de receber uma inoculação ou vacina, chegar de táxi ao hospital ou ao consultório do médico, reunir-se com outros pacientes, alguns deles realmente muito doentes, na superlotada ou murmurante sala de espera; em geral, ser o centro de certa agitação, e ser tratado como uma pessoa importante. Tudo isto é fácil de observar mas em certos pacientes suscita problemas que não são de fácil solução. Há entretanto formas mais complicadas e à medida que aumenta a complexidade das mesmas, tanto mais difícil se torna separá-las das formas examinadas acima, quer dizer, das gratificações diretas. Sobretudo o retraimento e a regressão constituem formas às quais é muito difícil classificar inequivocamente. Antes de seguir adiante, devemos analisar brevemente dois importantes aspectos da relação do paciente com sua doença: o medo e a dor. Ambos oferecem grandes oportunidades à capacidade terapêutica do médico, mas ambos, sobretudo os métodos utilizados para acalmar o medo, pertencem infelizmente ao domínio da terapia de “bom senso”. Já © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
197
mencionamos ao princípio deste capítulo que para certas pessoas a doença era o resultado de um processo “negativo” em seu interior, o qual por conseguinte atacava de dentro. Este fenômeno pode gerar graves estados de ansiedade, os quais, como certas doenças progressivas, por exemplo algumas formas de câncer, certas infecções ou determinadas condições degenerativas, podem ter justificativa biológica. Há além disto os temores e as frustrações das pessoas que sofrem de uma doença crônica, que devem renunciar a alguns de seus prazeres habituais, em parte por causa da própria doença — a diminuição da visão, por exemplo, excluindo certas ocupações, todos os jogos de bola, a luta ou o boxe — ou devido à dieta necessária para a realização de um tratamento eficaz. Antes da insulina, eram quase proverbiais as frustrações dos diabéticos; atualmente os grupos mais conspícuos são os fumantes que sofrem úlcera e os doentes de colite ulcerativa que só toleram uma dieta branda. Finalmente, o problema suscitado pelo temor do paciente à morte. Os clínicos gerais e as enfermeiras que mantêm íntimo contato com pacientes que se aproximam da morte possuem inesgotável provisão de extraordinários relatos nos quais se refletem o medo, o heroísmo, a humilhação, e a suprema dignidade ante a proximidade da morte. Seria sumamente valioso dispor de uma orientação perita, solidamente fundamentada sobre o que convém fazer em tão difíceis circunstâncias; infelizmente, também nesse caso o nosso único recurso é o bom senso. O mesmo se pode dizer em geral da atitude do paciente ante a dor. Em primeiro lugar, todos os médicos convirão em que os enfermos podem tolerar melhor a dor diagnosticada do que o sofrimento sem diagnóstico — e talvez o mesmo pudesse dizer-se dos médicos. As atitudes sociais ante a dor são muito diferentes. Em determinadas sociedades o homem não pode chorar, noutras se tolera o choro masculino. Como de costume as mulheres gozam de maior liberdade, mas tenho a impressão de que neste país as mulheres choram e gritam muito menos durante o parto do que as mulheres do meu país, a Hungria. Não há dúvida quanto a qual dos costumes é melhor do ponto de vista das parteiras e dos médicos, mas não sabemos qual é o melhor para as mulheres. Trata-se pois de outro grande problema que necessita ser investigado. É mais fácil suportar a dor incessante “mordendo os lábios” ou cedendo e gritando? Até pouco tempo atrás a medicina considerou a dor exclusivamente do ponto de vista fisiológico e disso resultou o que talvez seja o capítulo mais bem estudado da farmacologia, quer dizer, o dos analgésicos e anestésicos, e a criação de uma nova especialidade. Os últimos anos nos trouxeram os diversos sistemas de parto sem dor, inicialmente com ajuda de drogas e mais recentemente tratando de aliviar a ansiedade da mulher e de obter a sua cooperação. Isto demonstra que na tarefa de aliviar a dor ainda há grandes oportunidades ao médico de mentalidade psicológica. Creio que esse é o lugar adequado para mencionar a descrição subjetiva que o paciente faz de suas próprias dores e de outras sensações originadas no seu corpo. Torna-se surpreendente o quanto mais rica e variada é a concepção de nosso corpo durante a doença. Trata-se de um imenso campo psicológico, apenas considerado pela ciência. Por que as pessoas dizem que suas dores são lancinantes, em pontada, em queimação, opressivas, constritivas, urgentes, em garra, sufocantes, latejantes, cegantes, cansadas etc.? Por que usam frases como “parece que tenho uma pedra dentro de mim”, “como se uma parte do meu corpo estivesse morta”, “pesado como chumbo”, “um peso morto no ventre”, “um ferro em brasa”, “como se fosse de algodão”, “me sinto como lã”, ou “gelado”, e assim por diante? Sabemos que certas frases características são geralmente próprias das pessoas que sofrem determinadas doenças, mas sabemos muito pouco do grau em que essas frases estão determinadas por processos fisiológicos ou pelas fantasias do paciente a respeito dos processos que possivelmente se desenvolvem no seu interior. Seria sem dúvida um estudo fascinante para o médico geral que conhecesse bastante seus pacientes, não só durante a enfermidade, mas também antes e depois dela. *** © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
198
Para concluir este capítulo proponho-me a mencionar um curioso grupo de pacientes, ao qual denominamos o grupo de doentes de “envelope gordo”. As palavras “envelope gordo” constituem uma expressão puramente descritiva, relacionada com a extraordinária abundância das notas acumuladas sobre o paciente. Isto pode obedecer a várias razões: 1 — A desconcertante doença do paciente, que exigiu bom número de exames especializados. 2 — Suas visitas excessivamente freqüentes ao consultório. 3 — Seu costume irritante de mudar freqüentemente de médico. Os três fatores não estão obviamente interligados, mas é raro que apenas um seja responsável pelo envelope (prontuário) gordo, estando freqüentemente presentes todos os três. O que isso significa? Quando abordamos este tópico no seminário, discutimos a taxa “natural” de mudança que é própria da clientela de um médico. Trata-se de uma tarefa agora fácil graças à existência do Serviço Nacional de Saúde. Com grande surpresa de nossa parte observamos que entre 8% e 10% dos clientes de um médico mudam de lista no curso de um ano. Tais as porcentagens de um consultório em Londres ou dos subúrbios; nas zonas rurais as cifras são um pouco inferiores mas igualmente constantes. Só uma pequena minoria desses pacientes realiza francamente a troca, mediante aviso prévio. Alguns mudam de endereço e utilizam o fato como pretexto, ainda que o que façam seja mudar-se para outra casa na mesma rua. A maioria se limita a consultar outro médico e deste modo se inicia a troca. Outro fato surpreendente foi que essas cifras pareciam praticamente independentes da personalidade do médico, sua fé apostólica, capacidade, interesse pela psicoterapia etc. Em primeiro lugar perguntamos por que esses pacientes mudavam de médico. Tivemos que abandonar a investigação porque quando um médico perde um paciente é obrigado a entregar suas fichas ao Conselho Executivo local, de modo que não ficam rastros do ex-cliente, salvo na memória do médico; e dado que esses casos devem ser considerados fracassos, o próprio médico não pode ser considerado uma fonte fidedigna. É possível considerar outros enfoques, como, por exemplo, ter imediatamente uma discussão com cada paciente que mudasse de médico, ou examinar grupos de novos pacientes que tivessem abandonado o médico anterior. Infelizmente tudo isto é muito trabalhoso e uma vez que a nenhum médico agrada discutir somente seus próprios fracassos, o seminário, apesar de todas as boas intenções, sempre achava que tinha em sua agência algum problema mais urgente. De qualquer modo, a investigação das verdadeiras causas dessas mudanças seria uma tarefa fascinante. Certo número desses clientes pertence ao grupo do “envelope gordo”, os pacientes difíceis de todo consultório, os nômades que vagam de um clínico geral a outro, sem ficar muito tempo com nenhum deles. Um caso especial desse nomadismo é a mudança realizada dentro de um grupo de médicos associados e levada a cabo sem o menor formalismo. Durante certo tempo supus que havíamos achado um método bom para estudar este interessante grupo. Entretanto, logo tropeçamos com dificuldades. Descobrimos com surpresa que, se bem os sócios advirtam as trocas e as comentem, jamais discutem os casos nem se interessam por eles. Costuma ocorrer que apenas um dos médicos de uma sociedade tenha mentalidade psicológica; o outro ou os outros toleram a situação, às vezes com resmungos e outras com bom humor. Mas esta tolerância se viu submetida a duras provas quando um médico que participava de nosso seminário queria discutir com seu sócio porque um paciente o havia abandonado para passar para um colega, ou vice-versa. De modo que decidimos — pelo menos por enquanto — deixar as coisas como estavam. Ainda assim recolhemos algumas histórias clínicas de grande interesse, três das quais, os Casos 1, 5 e 9, aparecem nos capítulos anteriores, ou no Apêndice III, e ilustram algumas de minhas observações. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
199
O pouco que aprendemos sobre as causas do nomadismo pode ser resumida em uma frase: A auto-seleção dos pacientes de acordo com o credo apostólico do médico. Se o paciente e o médico não “encaixam”, e o médico não consegue converter o paciente para que adote o seu credo apostólico, o paciente não tem outra alternativa do que procurar outro médico. A auto-seleção e a função apostólica são duas faces da mesma moeda e constituem os ingredientes fundamentais dessa particular e muito característica atmosfera individual de todo consultório, base da companhia de investimento mútuo. Deste ponto de vista, os consultórios onde atuam vários médicos são instituições valiosas para os pacientes. Se não podem aceitar os métodos de um médico, podem mudar para outro; pois este último, por muito que esteja adaptado a seu companheiro, sempre terá seu próprio credo apostólico. Em certos casos, entre os quais se conta o Caso 1, o paciente utilizou o serviço de ambos os médicos, de acordo com suas próprias necessidades circunstanciais e até certo ponto para satisfação geral. Repitamos que esses casos poderiam constituir a base de valiosas investigações sobre o tipo de terapia que os pacientes necessitam em períodos diferentes da doença. Talvez se desenvolvam os mesmos processos no outro tipo de pacientes de “envelope gordo”, os doentes que necessitam ir de um especialista a outro. Talvez terminemos por comprovar que na relação especialista-paciente a função apostólica e a auto-seleção dos pacientes atuam do mesmo modo que nos consultórios dos clínicos gerais. Dado que as investigações de nosso seminário não se estendeu aos especialistas, faltam-se conhecimentos de primeira mão sobre o que ocorre nos consultórios de meus colegas. Pelo que se refere ao meu próprio, é indubitável a validade do que coloquei acima. O terceiro grupo de “envelope gordo”, o de pacientes que vão ao consultório com muita freqüência, mas se mantêm fiéis ao mesmo médico — do que o Caso 26 constitui notável exemplo —, é um aviso para que não mostremos pressa em nossos julgamentos. O estabelecimento de uma companhia de investimento mútuo eficaz não impede que o paciente se converta em um paciente difícil. Como já assinalamos, não há fronteiras definidas entre os três grupos, e às vezes cada um deles se confunde com os outros, de modo que apenas cabe colocar novamente a necessidade de uma investigação mais completa. Acrescentarei que, além dos casos mencionados, isto é, os Casos 1, 5, 9 e 26, nossos Casos 2, 4, 6, 11, 12, 16, 17, 19, 21, 22 e 24 pertencem também ao grupo de pacientes de “envelope gordo”. Todo trabalho de investigação que ajude ao médico a resolver melhor os problemas deste grupo aliviará consideravelmente a carga que suporta. Que vários deles, por exemplo os Casos 16, 19, 21, 22 e 24, possam ser considerados verdadeiros êxitos e que, pelo menos durante certo tempo, os envelopes respectivos se estabilizem em suas proporções atuais, são fatos que demonstram que vamos na direção correta.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
200
Capítulo
20
Psicoterapia pelo Clínico Geral
Como acabamos de ver, a história de uma doença tem várias etapas. O princípio do processo, de acordo com as minhas idéias, é a “deficiência fundamental” — conceito que até agora é mais uma teoria do que um fato. Surge então um problema determinado por um conflito entre as exigências do meio e as possibilidades próprias do paciente, mais ou menos gravemente restringidas de acordo com a influência da deficiência fundamental. Certas pessoas superam seus problemas resolvendo-os, outras suportam a tensão que a determinada situação provoca e outras reagem adoecendo. Inicialmente essas últimas procuram lutar por sua própria conta contra a doença; posteriormente, quando compreendem a inutilidade de sua atitude, consultam um médico. Nesta etapa a doença não se acha ainda “organizada”, como já vimos na Parte I, há geralmente várias “ofertas”, entre as quais o médico elege a que tratará. Seu objetivo deve ser, naturalmente, escolher a doença que apresente melhores perspectivas de cura; com o que me refiro não só a uma ajuda paliativa para o sintoma superficial ou para a doença clínica superficial, mas a uma terapia que ofereça as melhores possibilidades em relação com a vida futura do paciente. Numerosos casos incluídos nessa obra poderiam servir para ilustrar esses conceitos. Tomemos por exemplo o caso da Srta. S (Caso 23). Aqui a deficiência fundamental só pode ser deduzida por suas conseqüências. Foram elas: uma relação muito tensa entre uma mãe dominadora e demasiado exigente e uma filha rebelde, “voluntariosa” mas cheia de sentimentos de culpa; o desejo de ter um pai compreensivo, o qual, por sua vez, tinha que ser idealizado; considerável dificuldade de se transformar em mulher adulta e aceitar as conseqüentes responsabilidades. Sua deficiência fundamental foi provavelmente causada pela desarmonia entre a atitude dominadora, inadequada e excessiva da mãe, e sua própria necessidade de ser compreendida e sobretudo de decidir sua própria vida, de ser ela mesma. Tudo isto se viu reforçado e complicado pela separação dos pais, que determinou a idealização do pai ausente e uma atitude hipercrítica mas dependente com respeito a mãe. Exacerbaram o conflito seus crescentes desejos e necessidades sexuais. Tentou resolver o problema adoecendo com dores reumáticas e dispepsia. Além de outras vantagens, sua doença teria adiado todas as decisões quanto a seu casamento — não teria sido sensato, talvez fosse totalmente impossível, pensar no casamento e dificulda© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
201
des financeiras quando no momento podia sofrer uma úlcera péptica. Assim seu problema teria continuado insolúvel e corria o risco de converter-se em uma mulher dispéptica e amarga. Durante quase três anos o médico anterior ajudou a Srta. S, devido a seu “acordo”, a “organizar” a enfermidade sobre essas bases. Com seu enfoque, o Dr. E “desorganizou” primeiro a dispepsia e o reumatismo e depois obrigou a Srta. S a transformar o seu oferecimento, a doença física, em um problema psicológico; finalmente, em lugar de “organizar” algo em torno da nova situação, ajudou a Srta. S a resolver seus problemas mais graves. Resta saber se a ajuda resolveu definitivamente o problema da paciente. Sem exame da extensão da deficiência fundamental toda predição é mera conjectura. Outra esfera na qual essas idéias podem ser de utilidade é no do diagnóstico. No Capítulo 6 examinamos os diferentes níveis do diagnóstico, mas o fizemos exclusivamente com base em observações diretas realizadas no consultório médico. As idéias expressas acima nos permitem conferir um sentido mais preciso ao termo. No caso de Peter (Caso 19), por exemplo, os diagnósticos “enxaquecas”, “histeria”, “hemicrania”, “agorafobia” foram todos corretos e, na medida em que descreviam um aspecto importante do quadro total, eram de utilidade. Mas não nos permitiam predizer, por exemplo, que o paciente encontraria certa dificuldade para aceitar o papel de pai e que, surgindo esse novo problema, vacilaria, por assim dizer, entre a saúde e a recaída em suas cefaléias e fobias, e que necessitaria da ajuda de um médico. Tampouco nos permitiam explicar por que devia casar-se com uma mulher muito boa e compreensiva, mas um tanto frígida, que só conseguia satisfazer-se apelando para a masturbação; nem por que aceitava o papel de “pau pra toda a obra” em casa etc. Tudo isto e muitos outros traços de seu caráter e de sua doença tornam-se mais inteligíveis se consideramos a impressionante história infantil, caracterizada pela falta de amor. Compreendemos então porque tinha que fazer toda e qualquer coisa para conseguir afeto, porque se mostra apreensivo ante a chegada de um rival e, por outro lado, porque lhe era difícil tolerar o desaparecimento excessivamente rápido de suas preocupações. A isso precisamente nos referíamos quando aludimos à necessidade de um nível apropriado de diagnóstico e isto é mais ou menos o que pode e deve realizar um clínico geral. Devido às muitas limitações que lhe impõe sua prática, creio que em ocasiões determinadas poderá aprofundar-se na medida suficiente para examinar a natureza e a amplitude desta deficiência fundamental. Os casos de Peter e da Srta. S são relativamente simples. Quando recebeu o “Smith”, a doença de Peter não se achava ainda organizada, as diversas vantagens primárias e secundárias não se haviam revelado e menos ainda haviam arraigado na sua personalidade; portanto a tarefa do médico não era muito complicada. Na doença da Srta. S, próxima à “organização”, a vantagem primária não era muito considerável e as secundárias quase não existiam; por outro lado as perspectivas de converter-se em uma mulher madura e independente eram muito atraentes. Tampouco em seu caso foi muito difícil a tarefa do médico. Em termos gerais o mesmo pode dizer-se da Srta. M (Caso 10), da Sra. Q (Caso 21) e talvez também do Sr. V (Caso 22). Por outro lado no caso do diretor da companhia (Caso 6), da Srta. F (Caso 12), ou do Prof. E (Caso 8) a doença já estava “organizada”, isto é, se converteu em parte integrante da personalidade do paciente, de modo que foi impossível separá-la da pessoa. Para descrever a diferença, poder-se-ia dizer que há pessoas que têm uma doença e outras que estão doentes. Para certas pessoas a doença é algo estranho, imposto e agradecem tudo que façam para liberá-la dela; outras, em troca, a consideram parte da sua vida, com a qual cresceram juntas. É evidente que as possibilidades terapêuticas são menores no segundo de tais grupos. No caso do Prof. E, por exemplo, o Dr. Z concordou com seu paciente; ambos aceitaram a doença, portanto a vida do paciente se adaptou a ela e — como demonstra o relatório de acompanhamento — aparentemente com êxito. Nossa intervenção no caso do diretor da companhia foi inútil e apenas nos levou a perder o médico. A © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
202
Srta. F permaneceu no mesmo estado e graças à paciência do Dr. C não o perdemos também. Mas devemos chamar atenção sobre o fato de que em nenhum dos três caso mencionados conseguimos separar o paciente de sua doença e ganhá-lo para nossa causa, convertendo-o em nosso aliado na luta contra ela. Embora em muitos dos casos restantes essa conquista do paciente foi consideravelmente difícil — sendo o Caso 21 (Srta. Q) e o Caso 24 (Sr. P) bons exemplos — por uma ou outra razão a tarefa nunca pareceu tão difícil como nos três casos mencionados. Deveu-se a diferença a certa condição indeterminada da doença, à estrutura particular da doença, à natureza da “deficiência fundamental” — ou a nossa técnica medíocre? Problema muito pertinente, mas de difícil solução. No caso do Prof. E já mencionei que o Dr. Z não era um psicoterapeuta entusiasta; é possível, embora incerto, que esse médico tivesse podido converter o paciente impulsionando-o a buscar ajuda psicoterápica. Em que medida esta atitude podia beneficiá-lo nós não sabemos. De qualquer maneira, é indubitável que a técnica do Dr. Z no caso que nos ocupa suscita certas dúvidas. Nossas dúvidas repousam sobre bases mais firmes em relação com o tratamento do diretor da companhia, o Caso 6. Do nosso ponto de vista, o médico cometeu erros, embora nada fizesse que fosse contrário aos princípios médicos aceitos. Mas ainda assim se considerarmos provado a existência de deficiências de caráter técnico, isso não significa que outro médico de melhores recursos técnicos teria podido separar o paciente do seu estado de “organização”. O Caso 12, correspondente à Srta. F, constitui útil advertência contra o excesso de confiança. Nesse caso atuaram um clínico geral de experiência e paciência e um psiquiatra capaz, em atitude de sincera cooperação, mas não se ajudou o paciente. Algo semelhante ocorreu sem dúvida no Caso 1, o da Sra. C. Apesar de prometedor êxito inicial, a paciente não pôde aproveitar a oferta de ajuda do Dr. M e durante um tempo considerável solicitou atenção do sócio do nosso médico, um médico pouco disposto a perturbar o estado de “organização” da doença com investigações psicológicas. Essas considerações nos colocam um dos mais sérios problemas da psicoterapia na clínica geral: “O que tratar?” É fácil responder a esta interrogação na fase aguda ou nas últimas etapas de uma doença. Na fase aguda os sintomas são tão perturbadores, nas últimas etapas tão arraigados — por exemplo o Caso 3 — que não há possibilidade de escolha. Às vezes mesmo nessas duas situações o médico dispõe de certa liberdade de escolha do ponto de vista de ataque terapêutico; mas o problema de “o que tratar” é realmente importante nas fases iniciais, “não organizadas” de uma doença. O Caso 28, relatado pelo Dr. S, ilustra bem este problema. CASO 28* A paciente era uma mulher casada, de 38 anos, bem vestida, e bem-falante, mas de expressão muito infeliz, queixava-se de dores entre as omoplatas. Tinha estado na lista do médico durante muitos anos mas este só a havia visto em duas ocasiões, quando a paciente se havia queixado de picadas de insetos. O exame físico nada revelou, exceto um nódulo, quase seguramente sem importância, na glândula tireóide. Como o marido não estava incluído na lista do médico, o Dr. S perguntou, de maneira mais ou menos casual, se a paciente vivia com o esposo, ao que ela respondeu afirmativamente e logo acrescentou que não tinham filhos, embora estivessem casados há 14 anos; de qualquer modo, concluiu, já não se preocupavam com o assunto. O médico perguntou então se em outros aspectos a paciente era feliz com seu esposo, ao que ela replicou: “Infelizmente não.” Durante os últimos cinco anos não haviam mantido relações e os afetos do marido haviam tomado outra direção.
*Este relatório foi publicado em The Lancet (1955), abril 2, pp. 683-8.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
203
Tudo isto foi dito com muita calma, desapaixonadamente. O Dr. S perguntou então se também os afetos da paciente haviam tomado outra direção. Vacilou bastante mas finalmente respondeu: “Não.” Aqui o médico resolveu deter-se e receitou para a paciente certo preparado de aspirina. suficiente para uma semana, ao mesmo tempo que lhe recomendava voltar depois de uma semana se não se sentisse melhor. Escreveu na ficha um diagnóstico provisório: “Fibrosite?” Considerou que diante das perguntas formuladas e o enfoque humano possivelmente havia aberto a porta e que a paciente voltaria ao cabo de poucos dias em condições de falar mais clara e francamente sobre suas dificuldades reais.
A transcrição dessa história clínica poderia ter sido igualmente oportuna no Capítulo 2, “Como começar”, ou no Capítulo 12, “Quando parar”, pois o médico teve que resolver ambos os problemas — na hora, apressado pelas circunstâncias. Mas deixarei de lado ambas as questões e me limitarei a examinar a escolha realizada pelo médico quando teve de determinar a doença que convinha tratar. Quando examinou a paciente, o médico achou quatro doenças possíveis: duas de caráter físico e duas psicológicas. Em primeiro lugar, o nódulo na glândula tireóide, que podia servir de início. Entretanto, o médico o desprezou, pois considerou, provavelmente com razão, que não era de importância. Havia também as dores reumáticas nas costas. O médico pesquisou cuidadosamente sinais físicos confirmatórios e, embora não os achasse, de qualquer modo receitou algum medicamento para as dores. Isto é, notou-as mas toda sua atitude procurou convencer a paciente da conveniência de não tomá-las a sério. A depressão, que não passou inadvertida ao médico, mas que este considerou reação a um casamento infeliz — uma espécie de sintoma secundário. E finalmente o próprio casamento. De modo que a paciente “propôs” pelo menos quatro doenças: uma ligeira hipertrofia da glândula tireóide, reumatismo muscular, depressão e frustração sexual crônica como fator de infelicidade. Essas quatro doenças eram independentes entre si? Ou uma delas era conseqüência ou sintoma das outras? Neste caso qual era a causa real? Mais ainda, se era impossível curar a causa mais profunda, qual era a melhor perspectiva de aplicar uma terapia real? Por exemplo, tratava-se de uma autêntica depressiva, cujo humor constantemente sombrio e a hostilidade ambivalente reprimida eram insuportáveis para o marido, de modo que com o tempo “seus afetos tomaram outra direção”? Ou era uma mulher comum, infelizmente casada com um homem essencialmente infiel? Neste último caso, sua infelicidade podia ser expressão de seu insolúvel amor ambivalente, o qual possivelmente havia determinado uma depressão reativa. No mesmo sentido podemos considerar suas dores vagas como uma espécie de sintoma de conversão, no qual se expressa sua incapacidade para suportar com amor que tudo perdoa ou para livrar-se agressivamente delas. Ou o discreto nódulo da tireóide e as vagas dores musculares indicavam alguma perturbação endócrina, de que tanto a depressão quanto a infelicidade sexual seriam talvez sintomas secundários? Poderíamos continuar indefinidamente este tipo de especulação sobre as possíveis causas e dinamismos de seu estado. Entretanto, devemos ter presente que esta especulação não é mero e inútil passatempo, porque precisamente deste modo o médico decide o que tratar, quando e como. O produto final dessa semiconsciente, seminconsciente reconstrução da patologia dinâmica do paciente é a base da resposta do médico às proposições do paciente. Qual foi neste caso o resultado da escolha do médico?
Durante mais de seis semanas nada se soube da paciente. Repentinamente o médico da fábrica onde a paciente trabalha telefonou ao Dr. S. Informou-lhe que a mulher lhe © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
204
havia falado de sua tensa vida familiar e havia pedido ajuda. O médico da fábrica sugeriu uma medicação à base de brometos e pediu que a receitasse pelo Serviço Nacional de Saúde. O Dr. S assinalou ao seu colega, com toda razão, que se necessitava algo mais que brometo para ajudar a paciente; que estava sempre disponível se a paciente desejasse vê-lo; e que não tinha objeção em tentar os brometos em primeiro lugar. Apesar desta complacente atitude, a doente não reapareceu.
Estamos ante um fracasso, como o denominou o próprio médico, ou ante um êxito parcial? Creio que de tudo houve um pouco. A paciente sentiu medo frente ao método demasiado enérgico do médico e não voltou nem sequer quando ele lhe ofereceu, por assim dizer, uma ponte de ouro; nesse sentido o tratamento deve ser considerado um fracasso. Por outro lado, quando consultou o médico da fábrica, já não se queixou de dores, mas sim de suas tensas relações conjugais. Graças à terapia do Dr. S, a doença havia revertido a sua origem, assumindo o caráter de um problema que oferecia melhores perspectivas para uma autêntica terapia etiológica. Este é o segundo ponto que desejo ilustrar mediante esta história clínica. Como vimos na primeira parte deste livro, existe o risco de que os médicos, condicionados por sua própria formação, prefiram diagnosticar e tratar enfermidades físicas a considerar sequer a possibilidade de uma doença psicológica. Entretanto existe também o risco contrário, a saber, a possibilidade de que o médico se incline a desdenhar todos os sintomas físicos e a enfocar diretamente o que ele crê constitua a raiz psicológica do problema. Este tipo de diagnóstico ou de método terapêutico significa que o método trata de arrebatar o sintoma ao paciente e ao mesmo tempo de obrigá-lo a encarar conscientemente o doloroso problema que provavelmente constitui a causa do sintoma. Em outras palavras, o paciente se vê obrigado a abandonar seus sintomas limitados para voltar ao grave sofrimento mental que procurou evitar fugindo até o refúgio da doença física, que se toma mais suportável para ele. Devemos compreender que a doença “funcional” do paciente não é o problema, e a fortiari, tampouco é um problema psicológico. A presença de uma doença “funcional” significa que o paciente teve um problema que procurou resolver com uma doença. A enfermidade lhe permitiu queixar-se o que não podia fazer com respeito ao problema original. As razões dessa impossibilidade podem ser múltiplas. Talvez queixar-se sobre o problema original seja demasiado vergonhoso, embaraçoso, desagradável, inquietante ou doloroso. O que talvez explica por que o paciente raramente vai ao médico para colocar francamente um problema. De regra geral aparece com uma doença e ao médico cabe descobrir o problema original, do qual o paciente não pode falar e que foi trocado por uma enfermidade. De modo que se bem na verdade nos interesse o problema original, devemos começar por abordar a doença. Certos médicos esquecem esse princípio e crêem que sua tarefa imediata consiste em descobrir o conflito original. Este tipo de tour de force psicológico, o qual é realmente uma violação da vida privada do indivíduo, se pratica hoje com freqüência maior do que nunca. Sobretudo a psicanálise pôs nas mãos dos profissionais — médicos, psicólogos, assistentes sociais — métodos com os quais antes não se havia sequer sonhado. Muitos deles adquiriram sensibilidade para detalhes minúsculos, aos quais antes não se prestava atenção e para chegar a conclusões certas com crescente segurança. Chamamos a esse procedimento técnico da entrevista psicológica ou psiquiátrica e, segundo parece, herdamos de nossos antecessores na profissão uma não muito elogiável indiferença ante ela. Sempre que nossas conclusões sejam aproximadamente corretas, não nos preocupam muito o sofrimento inflingido ao paciente por nossos métodos de diagnósticos. Indubitavelmente um especialista ou quem aplica um teste psicológico pode entregar-se mais despreocupadamente a esta belle indiffèrence des diagnosticiens. O paciente não lhes © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
205
pertence, e vai ao consultório com o único fim de submeter-se a um determinado exame; cumprida a sua missão, devolve o paciente ao consultório. Infelizmente, o clínico geral forma a última linha; o paciente é seu e a ele compete cuidar dele. De minha parte, pergunto quantos especialistas se preocupam em averiguar o que dizem os doentes ao médico da família sobre os métodos e a conduta do próprio especialista. Entretanto, os riscos reais são mais consideráveis ainda. A psicanálise nos ensinou não só a observar e a interpretar corretamente pequenos detalhes, mas também a utilizar nossa capacidade e nosso conhecimento com certa segurança, quase diria audácia. Nós psicanalistas podemos proceder deste modo por duas razões: a transferência do paciente é em grande medida nossa aliada, e permanecemos durante muito tempo em íntimo contato psicológico com o paciente. Se surgisse algum fator ameaçante, o notaríamos imediatamente e poderíamos intervir no caso de se apresentar uma emergência. Muitas pessoas adquiriram considerável capacidade de diagnóstico e conhecimento graças ao estudo assíduo da literatura psicanalítica, mas é preciso ter presente que, no curso de uma entrevista breve, psiquiátrica, psicológica ou social, as condições são completamente diferentes; e creio que esta diferença deve ser respeitada, tanto pelos analistas como pelos não-analistas. Depois de formuladas essas ressalvas, desejo recordar a posição especial do clínico geral analisada no Capítulo 13. Já vimos que, caso se mantenha fiel à sua vocação e inclinação como médico da família, poderá estabelecer com seu paciente mais variada gama de relações do que as que são possíveis em qualquer outro ramo da medicina. Em relação a este aspecto desejo destacar duas importantes diferenças. Uma é que o médico geral jamais necessita apressar-se. Isso não significa que pode demorar-se indefinidamente, mas sim que nunca necessita se sentir premido pelo tempo se as resistências do paciente são demasiado acentuadas, não sendo necessário que aceite a batalha ali e no momento; o paciente voltará ao fim de alguns dias, de uma semana ou de um mês, e o trabalho psicoterápico poderá ser recomeçado de onde foi interrompido. A outra diferença consiste na grande variedade de relações possíveis sempre à disposição do clínico geral. Se encontra bloqueada a colocação psicoterápica franca, pode continuar prescrevendo algum medicamento “sensato”, por exemplo um hipnótico, uma vitamina, um preparado para tosse, algum produto para combater dores de cabeça ou para melhorar o apetite ou regular o funcionamento dos intestinos; se fracassa este recurso pode remeter o paciente ao especialista com o fim de que seja submetido a um exame “sensato”: raios X, ECG etc. e se a coisa parece desesperada pode mudar de enfoque e tratar outros membros da família, por exemplo a esposa (ou o marido), o filho, a sogra, ou ainda chegar inopinadamente à casa do paciente, depois de visitar algum outro paciente que viva na mesma rua. Tudo isso significa que o clínico geral pode enfrentar riscos calculados que excedem as possibilidades de qualquer outro médico. Entretanto, não deve nunca esquecer de que é o médico da família e não um psiquiatra amador. Desejaria poder definir mais exatamente que sentido atribuo a essa importante diferença. Por nossa parte realizamos várias tentativas destinadas a clarificar a diferença fundamental e infelizmente todas fracassaram. O único fato que pode ser estabelecido de um modo seguro foi que os limites variam de acordo com a personalidade do médico. O que para um é clínica geral para outro é psiquiatria de amadores. já analisamos e mostramos algumas dessas diferenças nos Capítulos 12, 16 e 17, aos quais remete o leitor. Para o principiante, do mesmo modo que para o clínico geral experiente, o melhor conselho é: quando em dúvida, não se apresse e escute. Indubitavelmente é muito perigoso não avançar no mesmo ritmo do paciente, manter-se atrás dele, obrigando-o assim não só a achar a solução de seus problemas mas a arrastar consigo o próprio médico. Entretanto, esses perigos são relativamente pequenos comparados com os que resultam em violação injustificada da intimidade do paciente ou o confronto prematuro deste com © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
206
um problema que ainda não está em condições de encarar. É igualmente perigoso apressar um paciente, não lhe dar tempo suficiente para elaborar sua própria solução ao problema e para que supere suas próprias resistências a tal solução, particularmente as que se originam na vergonha, no embaraço, e sobretudo no sentimento de culpa. Tudo isso exige tato, paciência e tempo. Nesta obra citei casos de médicos que se inclinam a avançar lentamente e de outros que se comprazem em correr riscos. Para ser justo, devo acrescentar que não mencionamos alguns de nossos piores fracassos. Por um lado, o objetivo do livro é demonstrar o que podem e devem fazer os clínicos gerais e não exibir erros. Por outro lado, nossa pesquisa foi uma aventura em território desconhecido e os erros constituíram o preço desse trabalho de exploração. Tendo em conta tais limitações, os casos relatados neste livro oferecem um quadro equilibrado da grande variedade de técnicas utilizadas por médicos diferentes e das vantagens e inconveniências de cada uma delas. Novamente me vejo obrigado a reconhecer a escassez de nossos conhecimentos sobre “o que tratar, quando e como” e a reclamar a provisão de recursos destinados a aprofundar a investigação. *** Proponho-me a discutir agora alguns interessantes problemas especiais da psicoterapia na clínica geral. Um deles está determinado pelo fato, nem sempre encarado com seriedade, de que toda doença é também o “veículo” de um pedido de amor e de atenção. Um dos mais comuns conflitos do homem é o determinado pela discrepância entre sua necessidade de afeto e a proporção e qualidade de afeto que o meio pode e quer oferecer. Certas pessoas adoecem para obter a atenção e o interesse que necessitam e a doença constitui simultaneamente a reclamação, a justificação e a expiação da porção suplementar de afeto que o paciente exige. Essas inter-relações são freqüentemente bastante claras, mas não tem sentido obrigar prematuramente o paciente a reconhecê-las e a renunciar a elas. A necessidade de amor, de interesse, de simpatia e sobretudo de ser levado a sério deve ser aceita e até certo ponto satisfeita através do tratamento antes que o paciente possa experimentar métodos diferentes para obter o afeto e a atenção que deseja. Outro problema técnico estritamente relacionado com o paciente é o que se refere a quando e como o médico afastará a paciente de suas fantasias. Mencionamos em várias ocasiões que toda doença suscita fantasias sobre a natureza de sua essência, sobre o modo como começou, sobre sua causa, sobre sua eventual cura, total ou parcial, sobre seus desenlaces etc. Como todos sabem, estas fantasias constituem freqüentemente graves entraves à terapia. Por outro lado pode ocorrer que o paciente utilize certos meios para retrairse da realidade, com o fim de “atender-se” ou “cuidar-se”. Em outras palavras, se os verdadeiros problemas, em sua forma original e direta, são excessivamente difíceis, certos pacientes tentarão transformá-los, atribuindo-lhes formas fantásticas; atitude que possui a grande vantagem, entre outras coisas, de criar uma situação da qual é possível queixar-se. Quando o médico demonstra a esse tipo de paciente que não existe nenhum problema de caráter físico, isso equivale a exigir-lhe que renuncie a suas fantasias cuidadosamente elaboradas e que afronte a amarga realidade de seus conflitos. O assunto termina com bastante freqüência em uma luta entre o médico e o paciente; aquele destaca que suas fantasias não têm fundamento real e este se mostra incapaz de aceitar a realidade exterior como juiz definitivo de cada situação, aferrando-se desesperadamente às suas fantasias. Este quadro dinâmico nos dá uma razão a mais para considerar fútil o “reconforto”. Quando aceita ser confortado, o paciente reconhece implicitamente que suas fantasias não tinham sentido e que eram infundadas e falsas. Se o problema fosse tão simples como pressupõe o primitivo procedimento do reconforto, a maioria dos pacientes teria chegado a ele sem necessidade de ajuda externa. Em geral pode-se dizer o mesmo do placebo. Receitar uma droga inofensiva e sem efeito equivale dizer ao enfermo: esta droga inofensiva será mais poderosa que todas suas fantasias. A experiência demonstra que © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
207
é mais fácil prometer do que cumprir. De qualquer modo, os placebos são em geral mais eficazes do que um mero conforto. Isso é devido quase seguramente à diferença existente entre responder à doença do paciente com algo concreto a fazê-lo com meras palavras. Naturalmente, a primeira atitude se aproxima mais do que seria levar realmente a sério a doença. Finalmente um terceiro problema, que também poderia ter sido considerado nos capítulos sobre a função apostólica. Mencionei que o paciente desenvolve uma doença com o fim de poder queixar-se, já que não lhe e possível colocar claramente seu problema ou conflito original, mas desejo acrescentar que essa formulação peca pela unilateralidade. Queixar-se é um fenômeno social par excellence. Ainda que para decidir se a queixa com respeito a um dado problema é possível ou admissível, a individualidade do paciente seja um fator importante, o sócio, isto é, a pessoa a qual o paciente se queixa, é quase tão importante. O terceiro fator dessa relação é a atmosfera social, que varia com o sexo, a idade, a classe social tanto do paciente quanto do seu médico e sobretudo com a época. Se não me equivoco, atualmente não é tão raro que as mulheres se lamentem com seu médico da falta de satisfação em sua vida sexual. Há trinta anos uma queixa desse tipo era extraordinariamente rara e na época eduardiana ou vitoriana devia ser simplesmente inaudita. Talvez os médicos suspeitassem disso em algumas de suas pacientes e talvez ainda o discutissem em voz baixa entre si, mas teria sido impossível que uma mulher bem-educada e seu médico discutissem o caso de um modo concreto e objetivo. As coisas mudaram muito, principalmente devido à função apostólica do médico e de outros profissionais e semiprofissionais. Graças a essa mudança a tarefa do médico se tomou um pouco mais fácil — não necessitando conjecturar nem enganar e podendo falar com franqueza — mas por isso mesmo sua responsabilidade é maior; agora está obrigado a tratar de doenças que antes não eram de sua incumbência. Talvez seja justo acrescentar que também aumentou seu potencial terapêutico; pode tratar as doenças em suas primeiras fases, antes que desenvolvam sintomas secundários e que assentem profundamente na personalidade do paciente. Acho que é impossível deter esse processo e que sobretudo os clínicos gerais devem preparar-se para enfrentar uma crescente proporção de pacientes que colocarão diretamente problemas de caráter psicológico. *** Antes de concluir este capítulo proponho-me a examinar com certo detalhe os resultados finais da psicoterapia praticada pelo clínico geral. Na esfera da psicanálise o caso ideal é o paciente que, depois de um intensivo período de trabalho terapêutico, se encontra em condições de dar por terminadas suas relações com o analista e isto para seu próprio beneficio; resolveu a maioria de seus antigos problemas, aprendeu a encarar seus problemas atuais e futuros, a dependência com respeito ao analista serviu seu propósito e agora é possível renunciar a ela; de modo que, uma vez completada a tarefa, nem o paciente nem o analista sentem necessidade nem desejo de continuar a relação que os unia. Nem todos os pacientes concluem assim a análise, mas de qualquer modo esse desenlace constitui o ideal. Devemos concluir que a psicoterapia praticada pelos clínicos gerais tende buscar ao mesmo resultado final? Creio que uma colocação semelhante careceria de justificação e de realismo e sobretudo implicaria uma contradição. A essência da relação entre o clínico geral e o paciente é sua continuidade e todo tratamento, particularmente se teve êxito, representará um novo e considerável incremento do capital conjunto da “companhia de investimento mútuo”, segundo descrevemos no Capítulo 18. A ruptura permanente das relações entre o paciente e o médico depois de um feliz processo terapêutico equivale a dissolver a companhia com a perda de todo seu capital e um considerável empobrecimento de ambos os sócios. De qualquer modo dão-se situações desse tipo; exemplos disso são a Sra. D (Caso 7), a Sra. N (Caso 20), e o Sr. P (Caso 24); talvez também © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
208
a Srta. M (Caso 10) deveria ser incluída. Desejo assinalar que a desaparição de um paciente não tem relação com o êxito nem com a profundidade do tratamento. O Sr. P (Caso 24) e a Srta. M (Caso 10) receberam considerável, quase diríamos fundamental, ajuda, e os outros dois pacientes — a Sra. D (Caso 7) e, a Sra. N (Caso 20) — podem ser tranqüilamente qualificados de êxito. Nos quatro casos, como demonstra a história clínica, a terapia foi bastante profunda e permitiu aos pacientes discutir com seus médicos experiências que a ninguém haviam revelado. Alguns desses pacientes simplesmente desaparecem; se pertencem à lista do Serviço Nacional de Saúde, o comitê local envia um formulário impresso no qual solicita ao médico a entrega de suas fichas; se são pacientes particulares, nem sequer isso. Seria interessante comprovar as verdadeiras razões que lhes moveram a mudar de médico, se isso se deveu a circunstâncias externas, a ressentimentos ou a embaraços ante a excessiva informação do médico sobre suas respectivas vidas privadas, ou a ansiedade suscitada pelo manejo não totalmente correto do caso, etc. A resposta seria valiosa porque esses pacientes — particularmente os que desaparecem sem explicação — representam grande perda para o consultório do médico. Mencionemos uma das formas que adota esse prejuízo: o médico não sabe sequer se a terapia praticada teve ou não alguma eficácia, como no caso da Sra. D (Caso 7), ou da Sra. N (Caso 20). Raramente ocorre que o paciente vá despedir-se do médico, como o fez a Sra. 11 (Caso 20), a Srta. M (Caso 19) e a Srta. X (Caso 23). Outro desenlace possível é o que descreve o Dr. M em seu adendo ao caso da Sra. Q (Caso 21). A relação médico-paciente continuou intacta e ainda se desenvolve para alcançar uma forma mais madura, mais satisfatória tanto para a paciente como para o médico. O profissional se converte em amigo de confiança, no mais autêntico sentido da palavra e com freqüência em amigo de toda a família do paciente. Em certos casos a relação conserva alguns elementos emocionais com certo colorido sexual, mas não creio que esse fator constitua mais, em todo caso, do que costuma ser comum nas relações entre o médico e o paciente, salvo o fato de que nos pacientes com passado psicoterápico esses elementos se elevam ao plano da consciência, e portanto é possível mantê-los submetidos a controle. Vários de nossos casos pertencem a esse grupo: o Sr. K (Caso 11), Sr. J (Caso 14), a Sra. O (Caso 16), Peter (Caso 19), a Sra. Q (Caso 21), o Sr. V (Caso 22) e muitos outros que não foram relatados neste livro. Na minha opinião são esses os casos que realmente correspondem ao clínico geral. Exigem do médico alto grau de elasticidade, mas são ao mesmo tempo os mais satisfatórios para ambas as partes. O médico experimenta a sensação de ter realizado um bom trabalho e o recompensa a possibilidade de observar os resultados de sua terapia. O paciente sabe que tem em seu médico um seguro guardião dos resíduos dos seus antigos problemas, e que, se surgisse alguma nova questão, poderia pedir ajuda, em cujo caso o médico e o paciente estariam em condições de continuar o trabalho psicoterápico onde o deixaram. Esta é precisamente a forma mais proveitosa de administrar a “companhia de investimento mútuo”. Podemos apresentar alguns interessantes casos que refletem esse desenlace particular. Além do de Peter (Caso 19), também são exemplos instrutivos os casos da Srta. M (Caso 10), o Sr. K (Caso 11), da Sra. Q (Caso 21) e do Sr. V (Caso 22), sobretudo se se leva em consideração os informes complementares. A diferença de atmosfera entre esse grupo e os outros é sem dúvida surpreendente. No terceiro grupo o paciente mantém uma atitude de dependência com respeito ao profissional, em aparência está resolvido a acompanhá-lo permanentemente, mas não se observa nenhuma mudança que indique melhoria. A Srta. F (Caso 12) e o Sr. Z (Caso 26) são exemplos notáveis dessa categoria. Devo acrescentar que esses dois casos não são, nem de longe, os únicos exemplos relatados em nossos seminários. Um interessante subgrupo desse tipo, mencionado várias vezes, é formado pelos pacientes © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
209
que não se distanciam, mas vagam de um médico a outro dentro de um consultório onde trabalham vários médicos. O observador tem a impressão de que algo não funciona na relação entre esses pacientes e seus médicos e de que bastaria compreender a origem da dificuldade para que fosse possível ajudar essas pessoas. Como já assinalei, este grupo constituiria um fascinante tema de investigação, com a condição de que se lograsse obter informes francos e verídicos de todos os sócios do consultório. Infelizmente não se pode dizer que se trate de uma tarefa fácil. A Sra. C (Caso 1), a Sra. A (Caso 2), o Sr. U (Caso 5) e a Srta. K (Caso 9) pertencem a este grupo. Devo concluir novamente admitindo nossa comparativa ignorância com respeito aos processos que determinam esses importantes eventos. Não podemos predizer com certeza qual paciente completará seu tratamento, nem como o fará, ou se a forma especial em que o termina é ou não desejável em seu caso; e sobretudo que tipo de técnica psicoterápica terminará do modo mais adequado o tratamento em questão. Também aqui devo concluir repetindo meu refrão sobre a necessidade de realizar uma investigação mais completa. *** Para concluir este capítulo, desejo destacar que a ferramenta psicoterápica — contrapartida do bisturi do cirurgião, do estetoscópio do clínico ou do aparelho de raios X do radiologista — é o próprio médico. Isso implica que o profissional deve prestar constante atenção à sua própria pessoa e às condições que asseguram sua eficiência. Do mesmo modo que é difícil operar com um bisturi não afiado, ou obter chapas nítidas com um aparelho defeituoso, ou ouvir claramente com um estetoscópio inutilizado, assim o médico não poderá escutar corretamente se não se encontra em bom estado. A outra implicação consiste em que o médico deve aprender a usar-se com a mesma habilidade que o cirurgião demonstra no uso do seu bisturi, o clínico no emprego do estetoscópio, e o radiologista no de suas lâmpadas. E ainda podemos levar mais longe esta comparação. Assim como o cirurgião especializado em otorrinolaringologia, por exemplo, precisa aprender a usar o bisturi com a mão esquerda tão bem como o faz com a direita, assim o psicoterapeuta está obrigado a manejar sua própria pessoa com confiança e desenvoltura nas mais difíceis situações. Esses dois requisitos são incondicionais e quem não possa satisfazê-los deve manter-se à margem da psicoterapia.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
210
Capítulo
21
Sumário e Perspectivas Futuras
À medida que nos aprofundamos nos problemas da clínica geral, mais nitidamente se destaca a imensa necessidade de psicoterapia. As possibilidades atuais na Grã-Bretanha — salvo para a minoria abastada — são pateticamente inadequadas. A razão principal desse insatisfatório estado de coisas reside em que na maioria os psiquiatras são hostis a todos os tipos de psicoterapia ou são ecléticos altivos que dissimulam sua hostilidade atrás da afirmação de que em casos “apropriados” aconselham psicoterapia e mesmo realizam pessoalmente o tratamento; e, quando não se mostram hostis, só se interessam pelos métodos físicos, por exemplo, os diversos tratamentos por choque, as operações no cérebro e as drogas, cujo número aumenta constantemente. O que se pode fazer no caso dos pacientes que necessitam de psicoterapia, e especialmente os que necessitam do tipo de psicoterapia examinada neste livro? As nossas experiências demonstram que os poucos psiquiatras que não são hostis à psicoterapia não atendem com prazer este tipo de paciente, pois seu interesse profissional se concentra essencialmente sobre a psicoterapia maior; e o reduzido número de especialistas interessado neste tipo de trabalho vê sua tarefa muito dificultada pela escassez de pessoal e pela falta de comodidades adequadas. Não é exagerado afirmar que obter psicoterapia para um adulto sob o sistema do Serviço Nacional de Saúde é quase tão difícil como ganhar o maior prêmio na loteria. A causa principal desse estado de coisas é a falta de psiquiatras treinados em psicoterapia. Todos os hospitais-escola, tanto para graduados como para pós-graduados, oferecem cursos completos sobre anatomia e fisiologia do cérebro e sobre todos os métodos farmacológicos e físicos utilizados em psiquiatria, mas, que eu saiba, praticamente nenhum organiza cursos sistemáticos de formação psicoterápica. Na maioria dos hospitais onde se oferecem esses cursos adota-se a forma de uma aprendizagem pouco definida, por exemplo, seis meses no consultório de um especialista de maior ou menor orientação psicoterápica. Neste tempo o futuro psiquiatra adquirirá talvez certa capacidade superficial e um pouco de prática, mas é bastante improvável que alcance a “limitada, embora considerável, mudança de personalidade” que — como veremos no Apêndice sobre treinamento — é fundamento indispensável da capacidade psicoterápica. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
211
Dado que muitos psiquiatras não tiveram oportunidade de adquirir capacidade psicoterápica, ou não se interessaram em obtê-la, sua atitude quanto aos pacientes necessitados de psicoterapia — e quanto aos médicos gerais que a solicitam — é essencialmente negativa. Neste livro incluímos certo número de relatórios negativos redigidos por psiquiatras, assim como as características observações que os mesmos provocaram nos clínicos gerais aos quais foram dirigidos. Se a imprensa médica consagrasse mais espaço tanto a esses informes quanto às reações dos médicos a eles, estou seguro de que aqueles e estes desapareceriam rapidamente. Tudo que acabo de dizer dos psiquiatras, é a fortiori aplicável aos clínicos gerais que foram treinados por eles. Desejo registrar que em 1955, durante uma das reuniões da Seção Médica da British Psychological Society, um especialista pertencente a um importante hospital-escola de Londres afirmou orgulhosamente que todos os estudantes desse hospital recebiam adequada educação das matérias psiquiátricas e psicoterápicas exigidas pela clínica geral. Essa adequada educação consiste em um breve curso sobre o “desenvolvimento psicobiológico da criança” durante o ano pré-clínico, outro breve curso sobre o “modo de examinar o paciente” durante o curso de introdução à clínica, e o curso principal durante o primeiro ano de clínica, em cujo desenvolvimento os estudantes se incorporam durante seis semanas ao departamento psiquiátrico. Compare-se essa atitude orgulhosa do psiquiatra com a indignação de um professor de anatomia ou de um obstetra, se alguém se atrevesse a sugerir que seis semanas de instrução anatômica ou obstétrica são suficientes para assegurar a formação dos futuros clínicos gerais. Além disso, sabemos que numerosos clínicos gerais depois de formados jamais atenderão a um parto, mas que todos terão que enfrentar os problemas psicológicos de seus pacientes como parte inevitável do trabalho cotidiano. Esta é a razão de que a minha descrição do “clínico geral” e do “psiquiatra” revista-se de caracteres um tanto idealizados e utópicos. Por outro lado, como o demonstram as observações transcritas, é possível achar clínicos gerais cujo interesse é suficientemente intenso para impulsioná-los a adquirir as condições necessárias e com mais esforço poderíamos achar também psiquiatras com as mesmas predisposições. De qualquer modo, no momento tratam-se de aves raras, e a capacidade que possuem é fruto do trabalho individual, realizado por conta própria e geralmente sem ajuda dos hospitais-escola. Mas mesmo se omitimos esses fatores adversos de caráter ambiental, os quais talvez sejam meramente temporários, continua sem solução o problema fundamental: quem vai praticar esse tipo de psicoterapia, o clínico geral ou o especialista? Reconhecemos que os limites desse campo — psicoterapia na clínica geral — estão mal definidos e que os métodos e técnicas utilizáveis não foram ainda elaborados e ainda menos adequadamente validados e padronizados. Mas tudo isso simplesmente modifica o problema essencial: quem terá de dirigir a investigação neste campo, quem assumirá a responsabilidade de definir seus limites e de elaborar suas técnicas adequadas? O problema pode ser abordado por diferentes ângulos. A resposta mais fácil baseia-se na consideração do número de pacientes afetados. Se é exato que pelo menos uma quarta parte do trabalho do clínico geral corresponde a pacientes com doenças de origem psicológica, é manifestamente impossível conceber um serviço psiquiátrico capaz de enfrentar a tarefa, a menos que revolucionemos tanto nossa organização universitária como a estrutura geral dos estabelecimentos psiquiátricos. Outra possibilidade consistiria em criar um novo ramo de medicina e um novo grupo de especialistas em psicoterapia “menor”. Contra essa proposta podem enumerar-se todos os argumentos habitualmente formulados para criticar a excessiva especialização de nossa profissão. Há, entretanto, um argumento de muito maior peso. Com ele chega© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
212
mos à solução preconizada ao longo de todo o livro, a saber, que a pessoa apropriada para esse trabalho e para encarar essa investigação é o clínico geral. Sua posição na comunidade constitui muitas vezes ponto de observação, do qual pode, e assim o faz, observar o desenvolvimento dos problemas de personalidade de seus pacientes; e, salvo raras exceções, é o primeiro a quem se acode em busca de ajuda. Deste modo, graças a seu trabalho cotidiano, realiza automaticamente todas as observações que serão a única base sólida da nova psicoterapia. Assim, durante parte desse último capítulo, abandonemos o mundo da implacável realidade, por exemplo as limitações econômicas, os petrificados métodos de ensino e os míopes interesses criados de caráter profissional, a escala desnecessariamente restrita das respostas dos médicos, fruto de temores e apreensões, e todos os restantes fatores que impedem ao clínico geral de conseguir essa “considerável, ainda que limitada, mudança em sua personalidade”, que é indispensável (Apêndice 1). Suponhamos que uma reforma fundamental do ensino médico — e da economia social — tenha permitido superar essas dificuldades e que nos disponhamos a travar relação com este utópico clínico geral. Que aspecto terá? (No que se segue recapitularei as mais importantes comprovações de nossa pesquisa e indicarei entre parênteses os capítulos nos quais se discutiu com certo detalhe cada problema.) Em primeiro lugar nosso utópico clínico geral se sentirá menos impressionado pela experiência e capacidade de seus especialistas. O que não significa que esses últimos descerão de categoria, pelo contrário, seu valor crescerá na medida que em que reconheçam as limitações que sofrem. Uma vez que se tenha compreendido que os problemas da medicina hospitalar diferem consideravelmente dos da medicina de consultório e que a transferência sem crítica dos bem testados métodos da medicina hospitalar à clínica geral constitui uma medíocre e ineficaz solução, cada disciplina poderá desenvolver-se livremente e ainda beneficiar-se dos resultados e dos êxitos da outra (Capítulo 9). Por conseguinte, o novo clínico geral não aplicará automaticamente os métodos elaborados e demonstrados pela prática no hospital. Isso se aplica especialmente ao método de colheita da “história médica”, com sua quase padronizada seqüência de perguntas. Ainda que compreenda o valor da “formação pertinente” saberá também que quem formula perguntas obtém respostas... mas quase nada mais (Capítulo 11). No mesmo sentido terá consciência de que o complemento automático, no curso do diagnóstico, das normas de “eliminação através de exames físicos adequados” o protegerá da possível omissão de uma doença orgânica, mas obrigando-o ao mesmo tempo a estabelecer uma “ordem hierárquica das enfermidades e portanto dos pacientes que as sofrem” (Capítulos 4 e 5). Outro perigo implícito no sistema de “eliminação através de exames físicos adequados” que tentaremos evitar, consiste em achar certo sinal físico acidental e com freqüência sem importância, para logo induzir e ajudar o paciente a “organizar” sua doença em torno dele (Capítulo 3). Certos números de nossas histórias clínicas — Casos 5, 6, 9, 10, 11, 19, 23, 26, 27 e 28 — refletem distintas variantes das calamitosas conseqüências que pode provocar esse procedimento diagnóstico aplicado mecanicamente. Nosso clínico geral aprenderá que as “doenças clínicas”, exaustivamente estudadas e classificadas pela medicina hospitalar, são apenas episódios, mesmo que freqüentemente bastante dramáticos ou mesmo trágicos, em uma longa história. Ainda que tenha plena consciência de que seu dever é cuidar de seus pacientes durante esses episódios, e aqui com freqüência necessitará e receberá a valiosa ajuda dos serviços especializados, saberá também que todo episódio deste tipo representa simplesmente uma das várias “doenças” que o paciente “oferece ou propõe” a seu médico (Capítulos 2, 3, 18 e 19). O modo como o médico “responde” a essas “ofertas” tem conseqüências importantes para o futuro do paciente. Aqui se lida com problemas mais importantes que a possibilidade de omitir um processo orgânico, o temível erro que nosso atual sistema de ensino sabe incutir com tanto êxito na mente de todo médico (Capítulos 4, 6 e 20). © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
213
O método hoje estabelecido para esquivar-se deste erro e ao mesmo tempo das responsabilidades das “respostas”, não reconhecidas francamente, mas certamente sentidas em toda sua intensidade, consistirá em diluir as responsabilidade mediante o “conluio do anonimato” e a “perpetuação da relação professor-aluno” (Capítulos 7 e 9). Na utopia, se renunciou a esses sistemas, porque há muito que os especialistas compreenderam a vantagem de abandonar a postura de mentores oniscientes e superiores e aceitaram o papel mais realista e mais satisfatório de ajudantes peritos do clínico geral, que agora é o responsável absoluto por seus pacientes. Durante breves períodos, quando determinada terapia ou certos exames indispensáveis exigem a contribuição de um especialista, o paciente pode passar às mãos do médico chamado em consulta, mas só durante um tempo limitado e para propósitos também limitados, como ocorre quando um paciente necessita de exames de laboratório ou radiológicos. O médico, único responsável por seu paciente, pode seguir o desenvolvimento da história em todos seus detalhes, graves ou não, em estado de boa saúde ou durante o transcurso da enfermidade. Os médicos de hospital, desde os jovens internos até os especialistas veteranos, podem, em suma, conhecer fragmentos dessa história na medida em que se reflete nas respostas dos pacientes as perguntas tradicionais. O clínico geral, especialmente quando possui certa experiência no manejo do capital conjunto da “sociedade de investimento mútuo” formada entre ele e seu paciente (Capítulos 18 e 20), necessitará de escassa informação adicional, já que conhece a maioria dos antecedentes do seu cliente. Portanto, não necessita formular as perguntas do questionário clássico; em troca deve achar tempo para que seu paciente fale e para “escutá-lo” (Capítulos 11, 12, 20 e Apêndice 1). O que, temo, talvez constitua ainda uma grave dificuldade ou uma utopia. Por muito favorável que possa ser o sistema econômico e médico de utopia, o tempo dos clínicos gerais será o artigo que sempre e de qualquer modo, especialmente durante os meses de inverno, terá que resultar particularmente escasso. De qualquer modo, assim como hoje é necessário encontrar tempo para praticar um exame clínico adequado, não obstante todas as pressas do médico ou do especialista, na utopia será preciso achar tempo para proceder à “entrevista prolongada” em todos aqueles casos nos quais o médico considere necessário “começar” (Capítulos 11 e 12). De nenhum modo se satisfará o clínico geral com diagnósticos superficiais como os que aparecem nas fichas do hospital e, pelo contrário, considerará um dever chegar a uma compreensão mais cabal das “ofertas” do paciente, quer dizer, a um diagnóstico “mais profundo” (Capítulo 6). Posto que nos achamos na utopia, damos como certo que os psiquiatras, com a ajuda dos clínicos gerais, tenham desenvolvido uma terminologia que permita aos profissionais descrever as comprovações realizadas no curso deste diagnóstico “profundo”, quer dizer, os diversos problemas psicológicos ou da personalidade, em linguagem tão simples, concisa e geralmente inteligível, como a que utiliza a medicina hospitalar para descrever as doenças de caráter “clínico”. Deste modo os médicos não tropeçarão com dificuldades quando desejarem denominar as enfermidades psicológicas que tenham diagnosticado em seus pacientes (Capítulo 3). Ignoro o que pensarão os novos clínicos gerais da minha proposta encaminhada para diferençar a “deficiência fundamental” e o conflito das “doenças clínicas” oferecidas pelo paciente entre as quais o médico tem que escolher a que apresente melhores possibilidades terapêuticas (Capítulos 19 e 3, 12, 13, 20). Se essas idéias suportaram a prova do tempo e da experiência, os médicos da utopia vigiariam para impedir que o paciente “organizasse” sua doença ao redor de um sinal físico acidental e desprovido de importância, atitude que desgastaria de um modo fútil e estéril suas energias e as de seus médicos. Os clínicos gerais terão aprendido já quando é necessário tratar a “enfermidade clínica” oferecida por um paciente e quando convém ignorá-la e concentrar a atenção sobre o “conflito” subjacente. Em outras palavras, na utopia, os médicos aplicarão critérios fidedignos que lhes permitirão dizer “o que tratar” (Capítulo 20). Por outro lado, seus © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
214
hospitais-escola lhes terão ensinado as técnicas requeridas pelo ato de “escutar” durante uma “entrevista prolongada” (Capítulos 11 e 12 e Apêndice I). Também, toda a comunidade terá recebido a educação que a capacitará para considerar coisa subentendida que o médico deve examinar o paciente tanto física como psicologicamente (Capítulos 3, 4, 18 e 20). Só temos idéias vagas sobre o caráter da solução técnica e muitas dificuldades provocadas por essa combinação de exames físicos e psicológicos. O exame psicológico, a “entrevista prolongada” seguirá ou precederá ao exame físico, ou coincidirá com ele? Será possível estabelecer uma rotina tão fidedigna como a que possuímos no caso do exame clínico? (Capítulos 4, 13 e 20). Nosso conhecimento é demasiado escasso para realizar predições neste campo. Mas se recordarmos que as duas técnicas essenciais do exame clínico clássico, a percussão e a ausculta, são inovações relativamente recentes — a percussão datando de 1761 e a ausculta de 1819 — talvez não seja excessivamente ambicioso abrigar a esperança de que durante os próximos cem ou cento e cinqüenta anos os nossos futuros colegas poderão tipificar uma rotina digna de confiança para a realização da “entrevista prolongada” e ainda para a sua combinação com o exame físico. Isso significa que todos os estudantes de medicina da utopia deverão adquirir um mínimo de capacidade psicodiagnóstica para aprovar seus exames finais? Essas técnicas, ainda que não sejam muito preciosas, exigem certa elasticidade mental e pessoal, assim como certo grau de maturidade geral; no momento não vejo como será possível organizar cursos universitários para que todos os estudantes adquiram os conhecimentos correspondentes e para que se opere a “limitada, ainda que considerável, mudança da personalidade”, que é o fundamento incondicional dessas técnicas (Apêndice 1). Além disso, não sei se é desejável, ou possível, exigir essa mudança para todos os estudantes (Apêndice 2). Por outro lado, o médico que haja adquirido essas técnicas será um médico melhor do que o seria sem elas. Todo o que disse com respeito às capacidades psicodiagnósticas se aplica com tanto maior razão às capacidades psicoterápicas. Não cabe dúvida de que neste campo, mesmo na utopia, haverá certa seleção (Apêndice 2); só alguns se sentirão atraídos à psicoterapia e destes poucos chegarão a ser mestres em sua especialidade. O que pelo mais é aplicável a todos os ramos de nossa profissão. Se minhas idéias com respeito à “deficiência fundamental” ao “conflito” e às diversas “enfermidades clínicas oferecidas” se demonstrarem aceitáveis à luz da experiência, podemos esboçar quais serão as tarefas do clínico geral neste campo. Como já assinalei, cuidará do seu paciente durante o desenvolvimento de uma “enfermidade clínica” e, se for necessário, chamará os especialistas em busca de ajuda e conselho, exatamente como faz agora, mas também se esforçará para impedir que o paciente “organize” sua enfermidade em torno de um dado físico de pouca importância. Se não há perigo, ou logo que ele desapareça, procurará encarar o “conflito” que determinou a queixa do paciente (Capítulos 2 e 18 a 20). Certamente saberá que não deve “confortar” o paciente antes de haver descoberto o problema de fundo (Capítulo 10). Em que medida será capaz de penetrar no conflito do paciente dependerá principalmente de sua própria personalidade, quer dizer, de sua função apostólica (Capítulos 16 e 17). A Parte II inclui histórias clínicas que ilustram as diferentes técnicas utilizadas e as diferentes profundidades alcançadas por clínicos gerais psicoterapeutas que intervieram em nossa investigação; suponho que existirão mesmo na utopia. Embora exista um inconfundível fio condutor que vai da “doença oferecida” ao “conflito” e mais profundamente ainda em direção à “deficiência fundamental” (Casos 10, 19, 21 a 24), não creio possível que no campo da prática geral se alcance a “deficiência fundamental” e menos ainda que se a repare em um paciente gravemente enfermo. Essa tarefa corresponderá provavelmente à psicoterapia maior. Mas uma vez feitos esses es© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
215
clarecimentos devo destacar que todo psiquiatra poderá orgulhar-se de alguns dos êxitos mencionados neste livro. É evidente, por outro lado, que a fronteira entre um clínico geral e a psicoterapia maior não pode nem deve ser estritamente delimitada, talvez nem sequer na utopia. Assinalei que na utopia o especialista não será o mentor de natureza superior, mas o perito ajudante do clínico geral. Reciprocamente isso significa que o clínico geral não poderá esconder-se atrás da sólida e inabordável fachada de um aborrecido e fatigado, mas não muito responsável, provedor de drogas e autor de inúmeras cartas, certificados e pedidos de exames; em troca, deverá suportar o privilégio da responsabilidade em benefício da saúde e do bem-estar de seus clientes e em parte também da futura felicidade deles. Que papel desempenhará a psiquiatria na medicina utópica? A resposta depende do ponto de vista de cada um sobre o futuro da psiquiatria, a qual no momento sofre certa divisão ou talvez apenas certa bifurcação. Alguns psiquiatras preconizam exclusivamente o tratamento de caráter físico, mediante drogas, choques de diversos tipos e operações do cérebro; outros se inclinam à psicoterapia; e apesar de que ambos os grupos troquem palavras muito delicadamente, e às vezes não tão delicadamente medidas, os representantes dessas duas tendências certamente não têm as mesmas opiniões. É matéria de conjetura se essas duas tendências separar-se-ão ainda mais, de modo que cada uma delas acabe formando uma especialidade independente ou se confluirão novamente em algum ponto do futuro longínquo. Como é óbvio não posso começar aqui a escrever um tratado sobre o assunto, de modo que devo contentar-me em assinalar a incerteza própria da situação atual. Por sorte, a psicoterapia do clínico geral, não só superficial mas essencialmente, é independente e em grande medida alheia a essa controvérsia. Os problemas que o clínico geral deve enfrentar raramente exigem uma leucotomia. O fato de que com tanta freqüência prescreva drogas e de que remeta pacientes para serem submetidos a tratamento de choque deve-se principalmente a razões de conveniência, à sua própria formação, mas especialmente sua dificuldade em conseguir psicoterapia para seus pacientes ou para aplicá-la por sua própria conta. Portanto as duas tarefas fundamentais e pelo menos de um dos ramos da psiquiatria utópica serão educar nossos clínicos gerais na técnica psicoterápica e provar recursos psicodiagnósticos e psicoterápicos para pelo menos uma razoável proporção dos pacientes que necessitem deles. É provável que as facilidades para o psicodiagnóstico se organizem utopicamente sobre o molde de nosso serviço de emergência (Capítulos 12 e 13). Depois de examinar o paciente que lhe foi enviado, o especialista não se limitará a fixar algum rótulo diagnóstico sem importância e a aconselhar o médico que tranqüilize o paciente e lhe administre um tônico ou um sedativo. Em lugar disso descreverá onde reside, em sua opinião, o problema real, que métodos deve adotar o clínico geral para revelá-los, e de que modo esse paciente em particular pode ser ajudado por seu médico para resolver determinada situação. Tarefa que não será excessivamente difícil para o especialista porque possuirá conhecimento suficiente do médico e de sua função apostólica individual. Não será preciso que existam recursos psicoterápicos em tão enorme escala como agora parece necessário. Em primeiro lugar, os próprios clínicos gerais estarão em condições de tratar boa parte dos pacientes necessitados de ajuda; em segundo lugar, as pessoas em geral se mostrarão menos reservadas e inibidas, solicitarão ajuda antes e poderão falar de seus conflitos quando esses ainda não se hajam convertido em doença. É quase seguro que os médicos estarão em condições de curar os seus pacientes quando esses se achem ainda nestas primeiras etapas de “não-organização” e que portanto o número de pacientes cronicamente neuróticos diminuirá consideravelmente (Casos 8, 10, 11, 13, 14, 15, 16 e 19 a 24). © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
216
A tarefa mais interessante dos psiquiatras do futuro será estudar, em cooperação com os clínicos gerais, a patologia essencial da “deficiência fundamental”. Algumas de nossas observações se vinculam às primeiras etapas de seu desenvolvimento e portanto sugerem uma possível via de investigação; referimo-nos à “criança como sintoma de apresentação” e à “tradição neurótica”, transmitida de geração em geração (Casos 2, 7, 23 e 24). Se os clínicos gerais e os psiquiatras conseguirem cooperar neste campo, talvez esteja à vista o desenvolvimento de uma patologia da personalidade total e com ela uma mais completa compreensão teórica e uma mais eficiente capacidade terapêutica tanto no terreno da clínica geral como no da psiquiatria. Paralelamente ao desenvolvimento de uma melhor compreensão, surgirá uma terminologia mais precisa. Só o homem de escasso e heterogêneo conhecimento necessita utilizar grandes frases para descrever o pouco que sabe. No campo da técnica médica, o novo psiquiatra, em colaboração com o novo clínico geral, deverá fixar os critérios que lhe permitirá abordar os três problemas inter-relacionados: “como começar”, “quando parar” e “o que tratar” (Capítulos 11, 12 e 20). No decorrer de nossa investigação comprovamos que existem períodos durante os quais convém deixar sozinho o paciente, ou simplesmente cuidá-lo, sem esperar nada dele, e que existem outros durante os quais necessitam ter alguém a quem se queixar, alguém que “escute” com espírito de compreensão e simpatia. Esses períodos podem alternar-se rapidamente ou cada um desses prolongar-se, mas muito pouco se sabe das forças que os governam. Intimamente relacionado com o problema anterior é o que se refere à regressão e à maturidade (Capítulos 17 e 19). Quando e sobretudo em que direção deve-se permitir a regressão do paciente, isto é, uma atitude de dependência infantil com respeito a seu médico ou a seu ambiente? Quanto deve durar um período regressivo, e até que ponto é aconselhável permitir o desenvolvimento do mesmo? Na utopia, médicos gerais e psiquiatras saberão igualmente muito mais sobre essas questões, e o tratamento que aplicarão aos pacientes será portanto mais definido e eficaz. Sobretudo, tanto os clínicos gerais como os psiquiatras possuirão critérios que os capacitarão a decidir como deve terminar cada caso individual (Capítulo 20). Também conseguirão que uma terapia bem sucedida (de caráter físico, farmacológico ou psicológico) incremente o capital conjunto da “companhia de investimento mútuo” (Capítulo 18) e que não provoque, se isto pode ser evitado, a separação entre o médico e o paciente. Se, por outro lado, tal separação é aconselhável frente à perspectiva de um resultado duradouro e de confiança, ambos serão capazes de concluir a relação ao mesmo tempo que salvam os valores mais importantes da companhia de investimento mútuo. Finalmente, o problema mais importante da clínica geral, a “função apostólica” do médico (Capítulos 16 a 18 e 20). Disporão os médicos utópicos de uma autêntica farmacopéia da substância chamada “médico”, que lhes indique como e em que proporções se há de administrá-la, quer dizer, quais são as doses apropriadas para fins curativos, de manutenção ou preventivos? Creio que a resposta é afirmativa. Talvez não se trate de um código rígido, que fixe regras inflexíveis e válidas para todos os médicos, para todas as circunstâncias e para todos os pacientes, mas de um conjunto de normas elásticas que permitirão considerável liberdade de ação, e que não entregarão a droga mais importante de nosso arsenal terapêutico à irresponsabilidade do “bom senso”. *** Os principais resultados de mais de cinco anos de investigação estão representados por uma série de problemas, muitos deles espinhosos e incômodos. Em comparação com os numerosos problemas colocados, são muito poucas as soluções que podemos oferecer, e sobretudo apenas podemos “aconselhar” ao médico sobre o que convém ou não convém fazer; menos ainda se pode dizer que essa obra ofereça algum gênero de “conforto”. Freqüentemente tanto durante nossos trabalhos coletivos como depois, meus colegas se queixaram dessa situação. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
217
Os que não começaram pelo último capítulo e leram todo o livro saberão qual é a minha resposta. Os “conselhos” são geralmente tiros no escuro (com a melhor intenção, sem dúvida), quase sempre resultam fúteis, e o mesmo pode dizer-se, com maior razão ainda, do “reconforto”. Comprovamos que é muito mais útil, tanto para o médico como para os pacientes, diagnosticar o problema; na maioria dos casos, uma vez feito isso não é necessário buscar conselho nem conforto. O problema real será provavelmente desagradável ou ainda doloroso, mas será real e trabalhando duramente é possível que se consiga fazer algo concreto para resolvê-lo. Meu diagnóstico é que a clínica geral está gravemente enferma, mas a doença em si é benigna e, caso se aplique a terapia adequada, o prognóstico bom. Em troca, a medicina científica ou hospitalar está sempre forte e abundam as realizações e êxitos. Sem dúvida trata a sua irmã doente, a clínica geral, com certa condescendência, como se essa fosse um parente pobre. A medicina de hospital distribui caritativamente esmolas e permite que sua irmã pobre se alimente das migalhas que caem da mesa opulenta da ciência médica. Convém “confortar” os clínicos gerais, assegurando-lhes que as coisas não estão tão mal e que deve tranqüilizá-los o fato de que sempre podem dispor de um especialista que os “aconselhe”, cada vez que surja um problema ou uma emergência real? Não é mais proveitoso e realista demonstrar em que medida os atuais sintomas são obras dos próprios médicos, e capacitá-los para que, com base no diagnóstico, considerem seriamente sua própria doença (em lugar de permitir que se os “tranqüilize”) com o fim de tomar medidas práticas? Todos os clínicos gerais que intervieram em nossa investigação aceitaram este fato desagradável depois de alguma insistência. Sobretudo lhes inquietava o fato de que a nova experiência e os conhecimentos que acabavam de adquirir não vinham simplificar o trabalho e a realidade que enfrentavam. Isso é compreensível; enquanto o paciente está enfermo ou convalescente, procura-se aliviar-lhe as dificuldades da vida; quando melhoram, aumentam inevitavelmente as responsabilidades. O mesmo ocorreu no caso de meus colegas; à medida que aprendiam a ver mais, mais exata e mais profundamente, o trabalho era mais complicado e mais pesadas as responsabilidades. Todos sem exceção se queixaram da situação criada, mas todos acharam o trabalho incomparavelmente mais interessante e mais frutífero. Durante todos esses anos não ouvi nenhum clínico geral afirmar que preferiria voltar atrás e menos ainda que havia voltado aos antigos métodos e técnicas que praticavam antes de unir-se ao nosso seminário de pesquisa.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
218
Apêndice
1
Treinamento
Este capítulo está dirigido em primeiro lugar aos psiquiatras que possam interessar-se pelo ensino aos clínicos gerais ou aos estudantes neste ramo da medicina — e não principalmente aos clínicos gerais. Isto explica porque seu tom é um pouco diferente do que se emprega no resto do livro e porque se faz um uso mais liberal dos termos técnicos psiquiátricos. Em geral os médicos formados constituem muito melhor material para o ensino da psicoterapia do que os estudantes de medicina*. Em primeiro lugar, o ensino não é obrigatório; o propósito não é o de fazer exames. Os médicos vêm voluntariamente e formam um grupo auto-selecionado, cujos membros desejam adquirir certa capacidade nova porque estão interessados nela. Em segundo lugar, o clínico geral tem sobre o estudante a inestimável vantagem de ter sido golpeado pela vida. Tem êxitos e fracassos e testemunhou muito sofrimento humano, assumindo a responsabilidade — pelo menos parcial — de aliviá-lo ou de conseguir que o paciente o tolerasse. Teve tempo de pôr à prova em sua própria prática o que aprendeu na faculdade e no hospital e portanto depende menos da autoridade e sua atitude frente a esta é menos rebelde, isso é, é mais humilde. Além disso, o clínico geral costuma ser um homem de mais idade, mais maduro do que o estudante. É duvidoso que um rapaz ou uma moça de 20 a 23 anos de idade, que dificilmente pôde viver a experiência real de uma relação sexual estável de certa duração, que possivelmente nunca ganhou a vida e não tem a responsabilidade de uma família que dependa dele, possa compreender as sutis e complexas ramificações das relações conjugais e os conflitos, freqüentemente profundos, entre as necessidades individuais e as obrigações quanto aos outros. Também deste ponto de vista o clínico geral em torno dos 30 anos é material humano mais prometedor. Outro grupo interessante poderia ser recrutado entre os assistentes (possivelmente entre os internos veteranos) que trabalham juntos em um hospital geral não muito pe-
*À luz de minha experiência com estudantes de medicina no University College Hospital de Londres é que se baseiam as afirmações neste parágrafo e no seguinte [Acrescentado em 1963].
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
219
queno. Embora não tenha tido experiência com um grupo dessa natureza, aproveitaria com o maior gosto qualquer possibilidade neste sentido. Consultantes e especialistas apareceram como visitantes ocasionais em um ou outro de nossos seminários. Ainda que os problemas de seus pacientes sejam os mesmos, o enfoque técnico do especialista, em realidade toda a atmosfera da sala ou do consultório do hospital, é tão diferente da que prevalece na do consultório do clínico geral que nos vimos obrigado a contentar-nos em reconhecer essa diferença. Resta-nos saber se será possível organizar um seminário para os especialistas, consagrados à tarefa de investigar os problemas psicológicos de sua própria prática; em caso afirmativo os frutos do mesmo seriam por demais interessantes. HABILIDADE PSICOTERÁPICA Retomemos pois aos clínicos gerais e digamos novamente que ao menos uma quarta parte, e possivelmente muito mais, de seu trabalho cotidiano corresponde a casos de caráter psicológico. Nessas condições, torna-se desconcertante que os programas tradicionais de estudo não levem em conta o fato, e portanto não preparem, como é necessário, o médico para que enfrente tão importante aspecto de seu trabalho. A consciência dessa deficiência foi a causa das reclamações cada vez mais intensas dos clínicos gerais durante os últimos trinta anos, no sentido de que se proveja alguma forma de ensino de psicoterapia. Em todo o mundo os psiquiatras procuraram responder a esta demanda e deste modo organizaram-se vários “cursos”. Mas apesar do intenso trabalho, do interesse e do entusiasmo de ambas as partes, os resultados têm sido geralmente desalentadores. Creio que o motivo desse fracasso relativo é o fato de que professores e alunos têm adotado sem crítica as formas e os métodos dos hospitais-escola e dos cursos tradicionais de extensão; quer dizer, cursos concentrados, quase tempo integral, de uma duração aproximada de duas semanas, cujo material principal são as conferências e visitas às enfermarias, ilustradas com histórias e demonstrações clínicas. Esqueceu-se completamente que a psicoterapia é, acima de tudo, não conhecimento teórico, mas capacidade pessoal. O único modo de adquirir uma nova capacidade técnica consiste em expor-se à situação real e aprender a reconhecer os problemas que ela encerra e os métodos que permitem encarar tais problemas. As conferências sobre problemas e métodos podem contribuir, mas nunca substituir a experiência direta. Outra razão que explica o fracasso nos cursos tradicionais consiste em que não levaram em conta o fato de que a aquisição da habilidade psicoterápica não consiste só na aprendizagem de algo novo: também e inevitavelmente implica certa limitada, ainda que considerável, transformação da personalidade do médico. TREINAMENTO EM PSICOTERAPIA O único curso sistemático de treinamento em psicoterapia é o sistema psicanalítico (que foi adotado até certo ponto pela escola junguiana). Consiste de três partes separadas: análise pessoal, cursos teóricos e trabalho prático sobre supervisão. Na forma clássica, desenvolvida em Berlim e espalhada pelo mundo, as três partes são mantidas separadas uma da outra. A única exceção é o sistema húngaro, com sua insistência de que a supervisão do primeiro caso ou casos de um candidato devam ser feitos por seu analista didata. Essas diferenças têm muitas repercussões importantes e a relevante ao nosso presente tópico é a seguinte. No sistema de Berlim a contratransferência do candidato a seu © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
220
paciente é, por acordo tácito, não tratada na supervisão, mas deixada para ser trabalhada na análise pessoal. Assim, a ênfase na supervisão é focalizada na compreensão das peculiaridades da psicodinâmica do paciente, que é usualmente expressada na questão padronizada: “O que o paciente tentou levar a seu analista?” No sistema húngaro a inter-relação da transferência do paciente e da contratransferência do seu analista está no foco de atenção desde o começo e permanece ali. O que é estudado é a interação dessas duas transferências, isto é, como elas influenciam e modificam uma a outra. Não é fácil integrar este tipo de supervisão no sistema clássico, com sua clara separação da supervisão da análise pessoal. O exame do fenômeno transferência inevitavelmente leva a um exame dos padrões habituais de reação do candidato, quer dizer, os seus conflitos e dificuldades pessoais, seus problemas não resolvidos e freqüentemente inconscientes. Este tipo de supervisão contém sempre alguns elementos da análise pessoal, o seu fim sendo que o candidato deva ao menos se tornar consciente de seus padrões automáticos e das ansiedades que os causam, mesmo que esses permaneçam sem solução no momento. Quando Enid Balint e eu começamos nosso primeiro esquema de treinamento no Centro de Estudos Familiares (em Londres) enfrentamos o problema de como treinar os assistentes sociais, tratando com os problemas conjugais de seus clientes, a se tornarem conscientes e sensíveis a processos inconscientes — sem oferecer a eles o bem provado método de análise pessoal. Na verdade, nós tínhamos de ser muito cuidadosos para evitar que nosso esquema de treinamento se tornasse uma terapia para os assistentes sociais, ao menos evitar que o seu principal objetivo fosse o de se tornar terapêutico, porque as possibilidades terapêuticas eram proibitivamente caras e tinham de ser postas de lado. Enfrentando esse problema eu decidi usar minha experiência com o sistema húngaro de supervisão e fazer um treinamento em psicoterapia com base principalmente no estudo aprofundado por método de grupo da contratransferência dos assistentes sociais. De modo a me tornar capaz de examinar essa última em detalhe eu tinha de criar comissões nas quais ela pudesse aparecer tão livremente quanto possível. Então não admiti o uso de qualquer material escrito nas reuniões sobre casos; o assistente social tinha que relatar livremente sobre sua experiência com o cliente, um reminiscente da “livre associação”, permitindo todo tipo de distorções subjetivas, omissões, reflexões, interpolações subseqüentes etc. Usei este relato — como é usado no sistema húngaro de supervisão — como algo similar ao conteúdo manifesto no sonho e tentei inferir daí os fatores dinâmicos que lhe davam forma. Tanto as reflexões do relator como as críticas e comentários do grupo ouvinte eram avaliados como uma espécie de associação livre. A verdadeira prova da correção ou incorreção da reconstrução do que aconteceu entre o assistente social e o cliente na entrevista era a entrevista subseqüente da mesma maneira como a prova da interpretação de um sonho é geralmente o sonho subseqüente. O método, como nós o desenvolvemos em conjunto para treinar clínicos gerais em psicoterapia, é baseado nas mesmas idéias. Em nossos seminários de pesquisa nós não tínhamos possibilidade para a análise pessoal. Todo o treinamento era levado a efeito discutindo os relatos dos clínicos gerais sobre seus pacientes no grupo, composto de seus colegas que tomavam parte no curso. O material mais importante usado é a contratransferência, do médico, quer dizer, a maneira na qual ele usa sua personalidade, suas convicções científicas, seus padrões de reação automática etc. DUAS TAREFAS PARA ADQUIRIR CAPACIDADE TERAPÊUTICA Quando iniciamos esta experiência tivemos de encarar duas tarefas; era preciso criar condições: a) que permitissem aos médicos aplicar desde o princípio psicoterapia sobre supervisão e © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
221
b) que os capacitassem a visualizar de certa distância seus próprios métodos e suas reações frente ao paciente, reconhecer os aspectos de sua própria maneira de lidar com o paciente que fossem úteis e suscetíveis de compreensão e desenvolvimento e os que não fossem tão úteis, e que uma vez compreendido seu sentido dinâmico, necessitassem ser modificados ou abandonados. As duas tarefas se acham intimamente vinculadas mas em benefício da clareza as tratarei separadamente. a) Logo que se compreende que grande parte do trabalho cotidiano do clínico geral consiste em tratar doenças de caráter neurótico, a primeira tarefa não parece muito difícil. O único fator consiste em não separar de sua prática o médico, em estimulá-lo a continuar na tarefa que está desempenhando em cada caso e em oferecer-lhe ampla oportunidade de discutir seu trabalho cotidiano. Até aqui tudo parece perfeito mas este plano supostamente simples encerra numerosas dificuldades. Em sua maioria elas foram examinadas na primeira parte, especialmente nos Capítulos 7 a 9, quando encaramos o problema da “diluição da responsabilidade” através do “conluio do anonimato” e da “perpetuação da relação professor-aluno”. b) Comecemos por assinalar que não existe um método provado e estabelecido de uso geral para o ensino da psicoterapia, quer dizer, para ajudar o candidato a efetuar a “limitada embora considerável transformação de sua personalidade” indispensável para aplicar a nova técnica adquirida. Enquanto os conheço, os diversos métodos adotados estão baseados em uma espécie de indefinido noviciado. A única exceção é a psicanálise (e até certo ponto a escola de Jung) já mencionada antes. Para dizê-lo com certa crueza, pode-se afirmar que o único ensino sistemático da psicoterapia, isto é, o ensino psicanalítico, se converteu em uma terapia de exageradas exigências. Tenho plena consciência de que neste caso piso terreno em grande parte inexplorado e bastante inseguro, mas acho necessário esclarecer que no momento carecemos de critérios estabelecidos sobre as normas mínimas e ótimas que regem a transformação da personalidade que é desejável e necessária para o psicoterapeuta. O sistema analítico trabalha sobre a base do princípio um tanto oneroso de que “quanto mais, melhor”. Dado que esses sistemas e essas normas estavam fora do alcance de nosso plano vimo-nos obrigados a elaborar nossos próprios métodos e a definir nossas normas particulares. EMPREGO DE MÉTODOS DE GRUPO O eixo de nosso plano é a conferência semanal na qual se discutem os casos, em volta de dez ou doze reuniões em cada um dos três períodos anuais. Para assegurar a participação intensiva e por outro lado para obter material suficientemente variado, comprovamos que é aconselhável formar grupos de aproximadamente oito pessoas. Além das conferências oferecemos a todo o médico que o solicite a supervisão individual dos seus casos, quer dizer, aproximadamente uma hora semanal de “discussão privada”*. Já assinalei que tratamos de evitar na medida do possível a tentação permanente de criar uma atmosfera de “aprender sendo ensinado”. Nosso objetivo é ajudar os médicos a adquirir maior sensibilidade ante o processo que se desenvolve, consciente ou inconscientemente, na mente do paciente, quando o médico e o paciente estão juntos. Esse tipo de “atenção” é muito diferente do método de colheita da “história clínica” e tropeçamos com grandes dificuldades quando quisemos liberar os médicos do costume de aplicar automaticamente esse tipo de enfoque. A diferença entre ambos os métodos foi objeto de certa análise no Capítulo 11, devo repetir aqui parte do que ali se disse. A diferença *A experiência subseqüente provocou algumas dúvidas quanto ao valor da “supervisão individual” em nossa forma de treinamento [Acrescentado em 1963].
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
222
principal consiste em que a redação da história clínica gira quase exclusivamente em redor de fatos objetivos ou fatos que podem ser expressados facilmente em palavras; fatos, enfim, com respeito aos quais tanto o médico como o paciente podem adotar uma atitude distinta, “cientificamente objetiva”. Os fatos que nos interessam são de caráter acentuadamente subjetivo e pessoal, e freqüentemente apenas conscientes, ou então absolutamente alheios a todo controle consciente; e também costuma ocorrer que não existam formas inequívocas que permitam descrevê-los em palavras. De qualquer modo esses fatos existem e influem profundamente na atitude individual frente a vida em geral e em particular no ato de ficar e de estar doente, aceitar a ajuda médica etc. Pode-se afirmar sem medo de errar que esses fatos que se desenvolvem constantemente na mente de todo ser humano só em parte são adaptações inteligentes ao meio em permanente transformação; em medida considerável se acham governados por pautas quase automáticas, originadas principalmente na infância, mas influencia pelas experiências emocionais da vida posterior. Nossa primeira tarefa foi impulsionar os médicos a tomarem consciência da realidade desses padrões automáticos e logo capacitá-los para o estudo cada vez mais detalhado da influência de muitos padrões sobre a atitude do paciente quanto à sua doença e do modo como colorem e ainda determinam suas relações com todo ser humano e especialmente com seu médico. Outro fator que afeta a relação dinâmica do paciente com seu médico é a reação do próprio médico, a qual também em parte está governada por padrões automáticos. A interação desses dois jogos de padrões, sua eventual “harmonia” e o caráter desta última determinam em considerável proporção a eficácia de todo tratamento. Sua influência é menos importante nas enfermidades breves e agudas, mas nas doenças crônicas é quase fundamental. Para conseguir melhor “harmonia” e com maior número de pacientes, o médico deve dispor de ampla gama de reações, o que significa que deve tomar consciência de seus próprios padrões automáticos e adquirir gradualmente pelo menos um mínimo de liberdade com respeito às mesmas. A LIMITADA, EMBORA CONSIDERÁVEL, TRANSFORMAÇÃO DA PERSONALIDADE O ensino intelectual, por elevada que seja sua qualidade, praticamente não exerce influência sobre esse processo de liberação e de acomodação geral. Na realidade, se necessita de uma atmosfera livre e amistosa do ponto de vista emocional, na qual seja possível enfrentar o fato de que nossa verdadeira conduta é com freqüência totalmente diferente do que pretendíamos que fosse e do que sempre acreditamos que era. Adquirir consciência da discrepância entre nossa conduta real, nossas intenções e crenças não é tarefa fácil. Mas se existe uma coesão positiva entre os médicos do grupo, os erros, omissões e limitações de cada um dos membros podem ser examinados francamente e aceitos pelo menos parcialmente pelo interessado. O grupo desenvolve constantemente uma melhor compreensão de seus próprios problemas, tanto coletiva quanto individualmente. O indivíduo pode aceitar mais facilmente a compreensão de seus próprios erros quando sente que o grupo os compreende e se identifica com o interessado em tais faltas, e mais ainda quando nota que não é o único que os comete. Além disso, o grupo não necessita de muito tempo para descobrir que a técnica de cada membro, incluída a do psiquiatra-chefe no seminário, é a expressão da personalidade individual, e que a mesma norma naturalmente é aplicável a seus erros habituais. CRISE Sem dúvida às vezes ocorrem crises quando um ou outro dos membros acha difícil aceitar todas as implicações de alguns dos métodos que utiliza no manejo dos seus pa© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
223
cientes, ou a compreensão de certas facetas de sua personalidade das quais até então tinha apenas vaga consciência. Entretanto, esses incidentes são suportáveis pois constituem acontecimentos dentro da vida do grupo e não afetam somente o indivíduo. É fácil descrever esse estado de coisas mas é mais difícil explicar a sua dinâmica. Na medida que as identificações mútuas dos integrantes sejam mais ou menos intensas, todo membro pode enfrentar tensões, porque se sente aceito e apoiado pelo grupo. Seus erros e fracassos, ainda que humilhantes, não o singularizam na condição de membro inútil do grupo; pelo contrário, sente que ajudou o grupo a progredir e que seus fracassos foram compensados por outros tantos pontos de apoio*. Pode surgir uma crise quando existe certa tensão entre um e outro membro e o resto do grupo, tensão que o chefe não detectou a tempo (acrescentarei que nem sua função nem sua formação psiquiátrica conferem ao chefe do grupo uma unidade absoluta contra essa possibilidade) de modo que, em lugar de restabelecer a concessão, sua crítica ajuda a agravar a situação. Os sinais desse isolamento ou dessa tendência ao isolamento e a conseqüente sensibilização podem ser considerados equivalentes do que os psicanalistas chamam de resistências. Por um lado constituem sinais premonitórios de que se está afetando certa importante atitude do indivíduo na situação de grupo; por outro lado, o modo de realização e de manutenção dessa atitude de isolamento indica qual é o problema. Do mesmo modo a reação do grupo integrado com respeito a essa tentativa de isolamento revela a outra face da moeda, quer dizer, as contratransferências do grupo com respeito a este problema particular da personalidade. Deve-se arrojar luz sobre a maneira de isolar-se um membro da equipe assim como sobre o método que o grupo aplica na solução do assunto. Constitui material muito valioso para o estudo das funções interpessoais e sua elucidação completa é indispensável caso se aspire a estabelecer uma coesão afetiva. Se essas crises ocorrem com freqüência excessiva ou se deixam uma esteira de amargos ressentimentos, pode-se supor que o ritmo de ensino tenha sido excessivamente intenso ou que durante certo tempo se obrigou o grupo a trabalhar sobre considerável tensão. Entretanto, a inexistência de crises constitui um sinal igualmente ominoso; significa que não há desenvolvimento da sensibilidade nem da garra do grupo e que o grupo e seu dirigente correm autêntico perigo de degenerar em uma sociedade de elogios mútuos na qual tudo é perfeito, o grupo estando formado de pessoas simpáticas, inteligentes e compreensivas. Deve-se descontar que a aquisição da técnica psicoterápica equivale ao descobrimento de certo número de fatos ingratos e inevitáveis sobre nossas próprias limitações. Essa tensão desagradável deve ser enfrentada e o grupo se desenvolve quando pode enfrentá-la e interrompe seu progresso quando deixa de fazê-lo. Ao chefe do grupo corresponde a tarefa de criar uma atmosfera na qual cada membro (incluído ele mesmo) seja capaz de suportar um embate quando lhe chegue a vez. É condição prévia de nossa técnica que se estabeleça no grupo este tipo de atmosfera e só nela será possível conseguir o que temos denominado “a coragem da própria estupidez”. O que significa que o médico se sente livre de ser ele mesmo frente a seu paciente, quer dizer, livre para utilizar toda a sua experiência passada e sua capacidade atual sem inibição excessiva. Ao mesmo tempo está preparado para suportar as graves objeções do grupo e ocasionalmente inclusive a aguda crítica do que denominamos sua “estupidez”. Ainda que todo informe e toda a conferência sobre casos concretos implique claramente tensão e esforço, o resultado é quase sempre o aumento das possibilidades individuais e uma melhor inteligência dos problemas.
*Psiquiatricamente, a depressão decorrente da tomada de consciência das próprias limitações deve ser plenamente aceita; a identificação com o Ideal comum do grupo deve permanecer, agora como antes, um objetivo desejável a ser atingido, mas o líder do grupo deve estar alerta para quando e como algum dos membros for forçado ou induzido a uma posição paranóide de alguém que tenha sido “isolado”.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
224
IMPORTÂNCIA DO RITMO (TIMING) Um dos mais importantes fatores neste tipo de treinamento é o ritmo; o que significa em primeiro lugar que não deve haver pressa. É melhor deixar que o médico cometa erros e talvez ainda se deva estimulá-lo a que incorra neles, em lugar de impedi-lo. Isto soa um pouco absurdo, mas não o é; todos os membros de nosso grupo possuíam considerável experiência clínica, de modo que se justificava essa tática de obrigá-los a “nadar ou afogar-se”. Além de que essa política não minava a confiança e a dignidade do médico, tinha a vantagem de que conferia amplo material para discussão, pois todos se achavam constantemente ocupados com pacientes e se mostravam ansiosos para informar suas observações e descobertas, seus êxitos e suas dificuldades. Se o ritmo é mais ou menos adequado, o médico se sente livre para ser ele mesmo e possuir “a coragem da própria estupidez”. Gradualmente adquire consciência do tipo de situação na qual provavelmente perderá sua sensibilidade e capacidade de reação ou, em outras palavras, na qual se comportará automaticamente. Entretanto, os informes dos outros médicos ensinaram-me outros métodos aplicáveis em situações semelhantes. A discussão dos diversos métodos individuais, a demonstração de suas vantagens e limitações o estimula a realizar experiências. Um profissional anunciou o resultado de uma experiência deste tipo com as seguintes palavras: “Neste caso apliquei um autêntico ‘Smith’* e deu resultado” com o que quis dizer que havia adotado uma atitude que, em seu entender, Smith costumava adotar. Todas as experiências desse tipo significam um passo a uma maior proporção de liberdade e a uma técnica melhor. ATITUDE DO CHEFE DO GRUPO Talvez o mais importante fator seja a conduta do chefe do grupo. Apenas se pode dizer que constitui um exagero afirmar que, se sabe adotar uma atitude correta, ensinará mais com seu exemplo que através da combinação dos restantes fatores. Afinal de contas, a técnica que preconizamos supõe essencialmente o mesmo tipo de atenção que o médico deve aprender e praticar logo com seus pacientes. Se permite a livre expressão de todos, se cria a possibilidade de que cada um diga o que tem que dizer a seu modo e quando ele mesmo decide fazê-lo, formulando as sugestões apropriadas, isto é, falando só quando realmente se espera que o faça, e formulando suas idéias de modo tal que, em lugar de indicar a maneira certa, ofereça aos médicos a possibilidade de descobrir pessoalmente algum método eficaz de tratar os problemas do paciente — o chefe do seminário pode demonstrar no “aqui e agora” o que precisamente deseja ensinar. É evidente que ninguém pode satisfazer totalmente tão rigorosas normas. Felizmente não é necessário alcançar tanta perfeição. O chefe do grupo pode cometer erros — na verdade os comete freqüentemente — sem causar maior dano se é capaz de aceitar as críticas se formuladas nos mesmos termos ou mesmo em termos ainda mais taxativos do que os que ele supõe deve aceitar do grupo. Evidentemente essa atmosfera de liberdade não se desenvolverá se o chefe tratar de dissimular ou de justificar seus erros. Constitui um indício alentador o fato de que o grupo possa triunfar dele, ainda se se divertem um pouco a suas expensas, sempre que o façam sem rejeitar nem adotar uma atitude de hostilidade contra ele.
*Ver Caso 19 no Capítulo 12.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
225
A CONTRATRANSFERÊNCIA DOS MÉDICOS Já mencionei que o mais importante material de nosso método de ensino é o modo como o médico utiliza sua personalidade, suas convicções, seus conhecimentos, seus padrões habituais de reação, etc., fatores todos que podem ser sintetizados na expressão “contratransferência”. No nosso enfoque essa contratransferência se reveste de três aspectos e em nossos planos os utilizamos todos, ainda que com intensidade diferente. São eles: 1) a relação médico-paciente. 2) a relação médico-chefe do grupo. 3) a relação entre o médico e o restante do grupo. Utilizamos muito raramente a relação médico-chefe do grupo, pois no grupo procuramos evitar as discussões e emoções de caráter pessoal e íntimo; quer dizer, tratamos de evitar que o grupo se converta em atividade francamente terapêutica. Para alcançar esse objetivo o chefe do grupo procura conseguir a mais íntima fusão com o grupo. A interpretação conseqüente dos permanentes e sempre caminhantes sentimentos de transferência dos diversos participantes concentraria ainda mais as emoções sobre o chefe, como ocorre nos grupos terapêuticos. Todos sabemos quais são as conseqüências dessas interpretações. As emoções transferidas, exceto talvez durante a última fase da situação terapêutica, se intensificam e tomam um caráter cada vez mais primitivo. Em nosso método procuramos evitar esse tipo de desenvolvimento, ainda que tenhamos plena consciência da impossibilidade de consegui-lo completamente. É inevitável que sua hierarquia e sua função singularizem o chefe do grupo, e sobre ele se concentre boa quantidade de emoções. O fato em si deve ser reconhecido e aceito mas nos abstemos de interpretá-lo detalhadamente. As poucas ocasiões durante as quais tivemos que interpretá-lo revestiram-se de caráter de exceção e não sabemos se teria sido possível evitá-las mediante uma técnica mais completa, isto é, prestando maior atenção à contratransferência em outro terreno. De qualquer modo não é possível subestimar a importância dessa relação. O chefe do grupo representa os padrões aos quais aspira o plano de ensino. Sempre que um clínico geral entrevista um paciente está em espírito presente o chefe do grupo. Por conseguinte e de acordo com a postura emocional do clínico geral, a entrevista tem por objetivo mostrar-se ao chefe e demonstrar que estava equivocado, comprovar que o clínico geral aprendeu sua lição e que pode arranjar-se sem o chefe, ou que sua opinião foi mais válida e penetrante. Naturalmente as mesmas atitudes emocionais colorem os informes representados ao grupo. Ainda que tenhamos plena consciência dessas implicações, raramente fazemos alusão às mesmas e, como já se disse, o chefe procura fundir-se com o grupo. Creio que mediante o emprego da contratransferência do médico a seu paciente habilitamos o profissional a adquirir no mínimo essa “considerável embora limitada” transformação da personalidade, sem necessidade de uma prolongada análise pessoal. Talvez o sistema que utilizamos com maior freqüência seja o da comparação dos métodos de cada médico com os de seus colegas de grupo. Simplificando um pouco as coisas, poderíamos dizer que utilizamos a associação fraterna em lugar do pai primitivo. Para lograr esse seu objetivo o chefe deve aceitar duas atitudes. Primeiro deve liberar o restante do grupo na medida do suficiente para permitir expressar suas críticas num modo construtivo-agressivo. Ambos os aspectos são igualmente importantes; a agressividade total, quer dizer, o ódio destrutivo é tão inútil como um suave e doce espírito de colaboração construtiva. Entretanto devemos esclarecer que mesmo que se tenha constantemente presente que a criação dessa atmosfera é uma das tarefas principais do grupo, não se trata de uma tarefa fácil de se realizar. Com o fim de alcançar esse objetivo é essencial que o chefe do grupo se reprima, se abstenha de formular seus próprios comentários e suas críticas até que todos os demais © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
226
tenham tido tempo mais que suficiente para expressar-se. Para poder realizar um comentário completo sobre uma complicada relação médico-paciente é necessário que o ouvinte, graças a sua própria fantasia, se inclua na situação e logo observe suas reações potenciais ante o problema. Devido a que exista resistências, isso ocorre com certa lentidão, de modo que tanto o grupo como o chefe devem aprender a ser pacientes. Ainda depois que os participantes aprenderam a prestar atenção com quase total liberdade a seus próprios desenvolvimentos internos, a experiência demonstra que costumamos adquirir consciência de nossas próprias reações só fragmentariamente, de modo que tempo e paciência são fatores de vital importância. Isso se torna particularmente difícil quando por uma ou outra razão o grupo vacila: é evidente que se contém para não criticar o médico informante. Nestes casos a técnica correta consiste em interpretar a vacilação ou excesso de amabilidade do restante do grupo e não em criticar o médico informante. Como já disse, essa atitude exige uma boa dose de autocontrole de parte do chefe, sobretudo porque resulta sumamente tentador mostrar-se serviçal, compreensivo e, especialmente, adotar uma atitude construtiva. Se cede a essa tentação, ensinará excelente teoria, mas em detrimento da verdadeira formação. Muito provavelmente o resultado será que os médicos mais promissores pouco a pouco se aborrecerão e se retirarão, enquanto que os menos úteis admirarão e idealizarão o chefe, assimilarão seus ensinamentos e o acompanharão sempre na posição de fiéis e leais alunos. É muito mais difícil encarar a situação oposta, quando depois de um informe, o grupo se mostra hipercrítico ou absolutamente indiferente e desprovido de espírito de cooperação. Essa situação é geralmente sintoma de que um dos membros se “singularizou”, para usar nossa expressão habitual. São numerosas as causas possíveis dessa tensa situação; enumerarei umas poucas, mas não me escapa que não esgotarei o problema. O caso mais freqüente consiste em que o membro “singular” não segue o mesmo ritmo do grupo, especialmente com respeito ao nível alcançado por sua compreensão emocional da relação médico-paciente. Isso pode dever-se a que se adiantou muito a seus colegas ou a que está muito atrás; qualquer de ambas as alternativas provoca irritação considerável e é tolerada com dificuldade pelo restante do grupo. Esta situação pode ser encarada de acordo com diferentes métodos e todos eles supõe uma forma de interpretação. O chefe pode destacar a conduta do grupo mediante sua própria conduta, a qual, naturalmente e na medida do possível, deve ser imperturbável; evidentemente fica incluído todo indício de irritação. Se isso não basta, pode comparar o trabalho do médico informante e o do restante do grupo e destacar as diferenças e os significados das mesmas. Isto costuma bastar porque ajuda o informante e seus colegas a tomarem consciência dos diferentes ritmos de desenvolvimento e a compreenderem as causas de irritação. No curso de nosso trabalho nunca nos vimos na necessidade de interpretar uma situação deste tipo com tanta extensão. O problema mais difícil é suscitado quando a causa da “singularidade” de um membro é sua própria insegurança. Geralmente o interessado procura dissimular essa situação mediante formações reativas. O médico informará exageradamente seus êxitos iniciais, se permitirá informar certos desenvolvimentos ulteriores até que surja uma crise. Neste ponto, talvez informe com amargura seu aparente fracasso e atribua a culpa ao seminário. Outro sintoma pode ser o retraimento mais ou menos completo do médico, o fato de que quase nunca relate o caso e que se limita a intervir com amargos comentários que demonstram sua pouca confiança na psicoterapia ou a repetir estéril e automaticamente o mesmo comentário. Neste caso o médico está bem defendido com formações reativas sente que sua atitude está justificada por suas experiências e deste modo choca-se com as resistências inconscientes do restante do grupo. No momento nosso método para resolver essa situação consistiu em ganhar tempo, na esperança de que o desenvolvimento do restante do grupo conseguisse arrancar o médico “singular” a seu retraimento. Essa tática não é muito boa nem muito má; graças a ela conseguimos certa proporção de êxi© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
227
to, mas acreditamos que no caso de profissionais realmente inseguros esse esforço para ganhar tempo não será suficiente. Não estamos muito seguros do que convém fazer, porque a interpretação apropriada de toda situação excederia os limites que nos fixamos, quer dizer, se acercaria do processo terapêutico e se distanciaria das condições próprias do ensino. A CONTRATRANSFERÊNCIA DO MÉDICO A SEU PACIENTE Nas partes anteriores examinamos alguns dos problemas que se colocam em torno ao manejo de duas das três transferências mencionadas, a saber: as transferências do médico ao chefe do grupo por um lado e ao restante do grupo por outro. Entretanto, a parte principal do trabalho cotidiano das conferências coletivas se relaciona com a contratransferência do médico a seu paciente. Já demos exemplos da forma de manejo dessa contratransferência em casos concretos. O Capítulo 15 constitui um bom exemplo, do mesmo modo que os Casos 5, 6, 17, 19, 23 e 28. Espero que esses informes demonstrem que são as conferências coletivas as que fornecem a força motriz da “considerável, embora limitada, transformação da personalidade” sobre a qual, em nossa opinião, deve basear-se o adestramento psicoterápico. Graças às nossas conferências o médico toma consciência de sua própria implicação, e de suas resistências pessoais nas relações que tem com os pacientes e com o restante do grupo — e mesmo consegue compreendê-las. Nesse sentido desejo destacar novamente a importância do ritmo, quer dizer, o fato de que o psiquiatra chefe deve marchar a passo com os clínicos gerais, ajudá-los a tomar consciência do nível alcançado pela compreensão de cada um, mas sem se adiantar demasiado. O mais elevado nível teórico pouco significa em um ou outro sentido. A superioridade emocional e a exibição precoce da mesma criam uma atmosfera de superiores e inferiores na qual começa o ensino e sofre o verdadeiro adestramento. Sempre que seja possível, o objetivo será criar uma atmosfera na qual cada um possa falar sem pressa, enquanto os demais escutam com certa atenção livre e flutuante, no que se tolera certo grau de silêncio e se consegue elucidar o que realmente quer dizer ou expressar o orador. Às vezes é possível dizer e analisar certos conselhos sem que isso seja motivo de tensão, em outras circunstâncias as mesmas idéias provocarão risos, surpresas, embaraço e mesmo sofrimento. De qualquer modo, independentemente da reação do grupo, as emoções suscitadas tanto no informante como em sua audiência devem ser aceitas e avaliadas como expressões de processos inconscientes ativados pelo informe. Uma vez que o profissional sinta que goza de liberdade suficiente para observar, para experimentar e finalmente para escutar durante as conferencias coletivas, em lugar de se sentir ambicioso por compreender a psicodinâmica de seus pacientes, pode começar a prestar atenção, em sua própria prática, aos problemas de transferência e contratransferência entre seu paciente e ele mesmo. Um aspecto de suma importância é o fato de que as conferências coletivas e, no caso, sessões de supervisão, oferecem possibilidade de observar simultaneamente como se comportam os médicos quando detém autoridade, e quando estão com alguém que, no caso, é autoridade. Em realidade tratase simplesmente de duas facetas da mesma relação que, bem entendidas. inevitavelmente se harmonizarão. Temos comprovado que se se pode ajudar o médico a percebê-las quando denotam particular vivacidade (na reação do próprio médico com seu paciente) o profissional adquire uma visão mais clara de seu próprio trabalho. Se se omite um exame dessas e de outras relações de transferência e contratransferência, pode-se desembocar em certo envolvimento crescente do paciente com o médico, muito © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
228
freqüentemente de um modo desconcertante e na maioria dos casos o próprio médico não compreende como sucedeu tal coisa. Provavelmente ocorreu que o paciente tornou-se envolvido não só com seu médico mas com a unidade médico-plano de adestramento, e com toda a ambivalência que lhe é própria. Essa dificuldade, ainda que seguramente a mais importante, não é certamente a única que se interpõe no caminho do paciente quando seu médico é do curso. Também cabe incluir todas as dificuldades demasiado conhecidas provocadas pela compreensão parcial e fragmentária do médico a respeito do caso, multiplicada pelo problema que o profissional deve resolver: que parte de sua própria compreensão convém transmitir ao paciente e quando e como deve fazer. COMPARAÇÃO COM OUTROS PLANOS DE FORMAÇÃO PSICOTERÁPICA As duas seções anteriores permitem notar que as interpretações e transferências do médico sofreram clara e deliberada limitação. Poder-se-á obter uma idéia muito geral de nosso conceito caso se tenha presente a diferença fundamental entre adestramento e terapia. Essa diferença corresponde aproximadamente à que existe entre operar com a transferência franca e pública e fazê-lo com a transferência oculta e privada de um determinado médico. A primeira pode-se tornar evidente para todo o grupo; mais ainda, é problema que interessa a todos, pois cada um necessita se adaptar a ela em cada conferência, por exemplo apoiando-a, orientando-a, rejeitando-a etc. Mas a contratransferência particular de cada médico é conhecida só dele mesmo e talvez nem sequer conscientemente. Mais ainda, a modificação dessa última contratransferência exigiria um estudo mais profundo da personalidade do médico, que equivaleria a uma forma de terapia. Sei perfeitamente que não foi dito grande coisa a respeito dessas limitações auto-impostas de nossas interpretações, e que além disso essa descrição simplificada implica a omissão deliberada de bom número de complicações dinâmicas. Finalmente, se essas limitações se tornam injustificadas, ou que proporção delas subsistirá, é outro assunto e só a experiência posterior poderá decidir a respeito. Neste ponto pode ser interessante para comparação examinar o modo de utilização dessas relações de transferência no adestramento analítico e mais superficialmente, os dois planos de adestramento desenvolvidos por Enid Balint e por mim; o que se organizou para os assistentes sociais do Centro de Estudos de Famílias, e o que foi destinado aos clínicos gerais na Clínica Tavistock. Nos três planos há uma estrutura de três etapas e a descrição da mesma talvez seja mais simples no caso do primeiro. Aqui o objetivo principal sobre o qual se concentrou nossa atenção foi a relação entre o assistente social e o cliente cujo atento estudo, em nossas conferências coletivas, permitiu ao assistente social compreender o problema primário que impulsionava seu cliente a pedir ajuda. Tal problema era a relação que ameaçava provocar ou provocava um colapso entre o cliente e seu companheiro sexual. As três etapas da estrutura são, portanto: a relação entre o cliente e o assistente social, a relação do cliente com seu companheiro, e a relação do assistente social com o grupo e com o chefe do mesmo. A atenção se concentra sobre a relação entre o cliente e o assistente social, de acordo com os informes trazidos nas conferências gerais. Na formação analítica o interesse se concentra na relação “aqui e agora” entre o candidato e seu analista, e se interpreta do ponto de vista das relações passadas do candidato com seus pais. A análise remonta às relações emocionais não superadas da infância, da meninice e da juventude, e essas relações constituem objeto de transferência e da análise. Durante um tempo prolongado só existe a estrutura de duas etapas — os problemas primários da infância do candidato e seus atuais problemas da situação analítica. Só quando sua compreensão de ambas as questões progrediu suficientemente é-lhe permitido começar a tratar do paciente. Então acrescenta, por assim dizer, um terceiro © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
229
escalão — isto é, sua relação com o paciente — entre seus problemas primários e sua relação com o analista. Em conseqüência, existe uma tendência razoável a compreender e descrever essa terceira e nova relação do ponto de vista das duas já estudadas. A mesma estrutura de três etapas existe em nossos trabalhos com os clínicos gerais, mas com significativas diferenças. O interesse principal se concentra na relação médico-paciente; logo está a relação do paciente com sua enfermidade; e em terceiro lugar, a relação do médico com o grupo e seu chefe (e com o supervisor). O eixo principal de nosso plano é o estudo simultâneo dessas três relações. Apesar dessa semelhança no trabalho com os clínicos gerais, nossas interpretações têm sido até agora mais limitadas ou menos detalhadas do que em qualquer dos dois planos mencionados. Todavia não posso oferecer uma explicação satisfatória desse fenômeno. É possível que o tempo de aplicação de nosso plano seja ainda muito breve para que possamos determinar se essa limitação é só temporária, quer dizer, para estabelecer se temos de aprofundar, entrar em maiores detalhes à medida que o curso se desenvolva. Por outro lado existe outro importante fator que é particular desta esfera de atividade. No Centro de Estudo de Famílias o paralelo mais próximo ao nosso trabalho com os médicos, o problema principal é a relação entre os companheiros sexuais, a qual pode ser entendida como uma relação com objeto exterior. Cabe supor que na relação com outro objeto exterior, o assistente social exercerá sua influência, os mesmos temores, mecanismo defensivo, apreensões e desejos. O problema essencial que o médico deve enfrentar é de natureza absolutamente distinta. Da relação do paciente com sua enfermidade não existe um objeto exterior evidente. Os aspectos mais importantes são a dor física, a deterioração das funções físicas, possivelmente a presença de modificações corporais visíveis, novas e inquietantes sensações, etc. A psicanálise sabe bastante a respeito das ansiedades e das inibições neuróticas. Também sabe algo, não muito, a respeito do sofrimento mental, mas pode-se dizer que ignora os problemas que o médico deve enfrentar. Os problemas primários no plano aplicado no Centro eram essencialmente as relações sexuais como objetos de amor e de ódio. No caso do plano que agora nos ocupa devemos estudar a relação do paciente com sua enfermidade e a respeito muito pouco sabemos. De modo que seria uma boa conclusão repetir pela última vez o meu refrão de que necessitamos de mais trabalho de investigação, tarefa que provavelmente só poderão realizar os clínicos gerais.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
230
Apêndice
2
Seleção — Clínicos Gerais *
A seleção das pessoas apropriadas para a tarefa é sem dúvida um objetivo muito desejado. Infelizmente só estamos começando a compreender em que consiste a tarefa e passará bastante tempo antes que possamos defini-la sequer aproximadamente. Quando se iniciou o plano de adestramento, nossas idéias sobre a psicoterapia aplicada pelos clínicos gerais eram tão imprecisas que cheguei à conclusão que a única política honesta consistia não em selecionar, mas em confiar na auto-seleção dos próprios médicos; em resumo, anunciamos na imprensa médica a organização de “cursos de introdução aos problemas psicológicos na clínica geral” e aceitamos todos os médicos que se apresentaram. Sabia que essa atitude implicava riscos e as vantagens eram talvez iguais aos inconvenientes. A aceitação de todas as solicitações nos permitiu formar uma opinião sobre o tipo de profissionais interessados na psicoterapia, sobre suas necessidades e sobre o tipo de “tratamento” que reclamavam. Evidentemente era impossível que o “tratamento” aplicado, quer dizer, nosso plano de adestramento se adaptasse às necessidades de todos ou de cada um, e certo número de médicos se retirou. No princípio do curso a “proporção de baixas” foi elevada, aproximadamente 60% dos primeiros grupos e em torno de 35% nos mais recentes. Como se pôde supor que ocorreria em quase todos os grupos havia uns poucos médicos quase neuróticos que na realidade desejavam tratamento mascarado como ensino. Felizmente em sua maioria esses profissionais se “auto-excluíram” logo que compreenderam que nosso plano não lhes oferecia o que necessitavam. Um ou dois que não adotaram esse procedimento receberam um conselho de procurar a terapia apropriada ou foi-lhes pedido para interromper seu comparecimento, tarefa muito desagradável que o chefe do seminário teve que enfrentar. Outro grupo de desertores precoces estava integrado por médicos, de hierarquia “superior”. Tratava-se de clínicos gerais de experiência, solidamente estabelecidos, de boa reputação entre seus pacientes como entre os colegas, e de muito intenso “zelo apostóli-
*Um livro acerca desse tópico está em preparação, escrito por E. e M. Balint, R. H. Josling e P. Hildebrand.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
231
co”. Desde o princípio pregavam seus próprios e bem provados métodos e ao mesmo tempo se mostravam incapazes de escutar e menos ainda de considerar seriamente outros métodos que não fossem os próprios. Esta atitude os colocou inevitavelmente no papel de competidores do chefe do seminário, representante dos objetivos do seminário, o que por sua vez determinou uma atmosfera tensa e difícil. Depois de alguns intentos fracassados de converter o restante do grupo a sua própria “fé” esses profissionais se retiraram, quase seguramente insatisfeitos e hipercríticos. O terceiro grupo de desertores precoces foi o dos médicos de “um período”. Compareciam regularmente, intervinham ativamente nas discussões, pareciam aproveitar consideravelmente as conferências, e logo começavam a aplicar os novos métodos aprendidos no seminário. Na realidade tínhamos elevada opinião deles, mas após um período de trabalho ou no máximo dois, e raramente três, não retornavam ao curso. Às vezes desapareciam por completo e nada mais sabíamos deles; outras vezes seguiam com benévolo interesse o desenvolvimento da equipe, mas a uma distância segura; ou finalmente adotavam uma postura crítica com respeito os nossos objetivos. A crítica mais freqüentemente ouvida afirmava que o trabalho em que estávamos empenhados constituía mera e desnecessária perda de tempo. O quarto grupo de desertores era formado por médicos muito conscientes e compreensivos, para os quais sua tática e seus pacientes significavam muito; aparentemente lhes sobrava vontade de aprender. A primeira impressão que suscitavam era a de que constituíam um grupo por demais prometedor. Além disso, acompanhavam-nos durante dois ou três períodos e se separavam a contragosto, lutando com um conflito. Todos eles eram o que se podia denominar, com certo exagero, caráteres obsessivamente conscienciosos. O que insistentemente solicitavam, e aparentemente necessitavam eram normas fidedignas, eficientes, métodos mais práticos, problemas intelectuais suscetíveis de discussão e solução objetiva e, sobretudo, nada de implicações psicológicas de caráter pessoal. Para esse tipo de médico não tinham sentido nossos métodos casuais, fortuitos e deliberadamente desprovidos de plano. Possivelmente não notavam a necessidade da “considerável embora limitada transformação da personalidade” que era o objetivo fundamental de nosso plano de educação. De qualquer modo, o reverso da moeda mostra as deficiências de nosso sistema. Permitiu-se que o ritmo do progresso e a atmosfera das discussões se desenvolvesse de acordo com a conveniência da maioria do grupo e reconheço-o ser inconveniente, da personalidade do chefe; isso não significa que o plano fosse rígido e desapiedado, mas que prestava menos atenção às necessidades dos grupos minoritários. Entretanto, as apontadas são só as primeiras impressões. A técnica de adestramento descrita no capítulo anterior se acha todavia em etapas experimentais, quer dizer, se reveste de formas toscas. Tínhamos plena consciência dessa situação e decidimos aceitar os riscos implícitos. Nossa primeira preocupação consistiu em desenvolver uma técnica eficaz para uma proporção razoável dos médicos interessados, com o fim de comprovar se tal técnica de adestramento era efetivamente viável. Os resultados dos dois projetos pilotos, o plano do Centro e o plano da Clínica Tavistock para clínicos gerais, são sumamente estimulantes, ainda que todavia não possam ser considerados definitivos. Uma vez resolvido o problema de nossa técnica, ocupamo-nos em examinar nossas “baixas”, quer dizer, as razões pelas quais certo número de nossos inscritos nos abandonou. É verdade que a psicoterapia, do mesmo modo que, por exemplo, a cirurgia, não está ao alcance de todos; seja como for, nossa “proporção de baixas” é considerável. Reciprocamente, isso implica que nossa técnica de adestramento é por hora pouco flexível e demasiado numerosa para certos número de clínicos gerais. Entretanto, existe uma importante diferença entre a formação psicoterápica e a que é própria de qualquer outra das especialidades médicas. Todo progresso terapêutico obri© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
232
ga o médico a incorporar um novo conhecimento, ainda que só se trate de aprender um modo correto e receitar uma nova droga. Em outras palavras, assimilar uma nova terapia implica uma mudança. Mas enquanto as mudanças exigidas por novas técnicas em outros ramos da medicina não exercem maior influência sobre a personalidade do médico, a técnica psicoterápica afeta de um modo bastante profundo a personalidade. Deste ponto de vista, a atitude desses profissionais que se retiraram foi talvez um compreensível ato de defesa contra uma violação não autorizada de sua vida mental particular, por conseguinte deve ser encarada com respeito. O perigo oposto e simétrico consiste na possibilidade de que o grupo de adestramento degenere em terapia pura e simples. Temos consciência total desse perigo, o qual em realidade existe em todas as formas de adestramento psiquiátrico, mas até agora conseguimos evitá-lo. Antes de seguir adiante desejo ilustrar os conceitos anteriores mediante algumas cifras, as quais, entretanto, não constituem mais do que uma aproximação muito geral. São demasiada fragmentárias para merecer o qualificativo de fidedignas; devido a um erro de caráter administrativo se extraviaram os arquivos correspondentes a dois grupos; o seu maior defeito consiste em que os grupos de desertores não estão definidos inequivocamente. Em certos números de casos o julgamento foi puramente subjetivo ou a falta de informação fidedigna decidia se um desertor era classificado como neurótico, obsessivamente consciencioso, médico “por um período” etc. Possuímos arquivos completos de seis grupos, quer dizer, de 61 registros. Para mostrar a limitada fidelidade das cifras, foram subdivididos em dois setores; uma coluna analisa os grupos iniciais, dois a cinco, e a outra os mais recentes, sete e oito. (Os arquivos dos grupos um e seis se perderam.) Sinto-me um tanto inseguro a respeito da direção mais conveniente em que deve desenvolver-se nosso plano. Estão abertas duas possibilidades: a) seleção b) ampliar o alcance e a elasticidade do adestramento. Depois de mais de cinco anos de experiência e depois de observar o destino de oito grupos, isto é, de aproximadamente 75 médicos, decidi entrevistar a todos interessados antes de aceitá-los como membros do seminário. É provável que esse sistema permita dissuadir antecipadamente a maioria dos médicos gravemente neuróticos e dos “superio-
Análise
de
Comparecimento
Percentual aproximado
Número
Percentual aproximado
Total
Número
7-8
Percentual aproximado
Grupos
Número
Grupos 2-5
Comparecimento regular Gravemente neurótico “Superiores”
14 4 2
39 11 6
16 2 2
64 8 8
30 6 4
50 10 7
Obsessivamente conscienciosos
8
22
3
12
11
18
Médicos “por um período”
8
22
2
8
10
16
Total
36
Admissões
25
61
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
233
res”. De acordo com nossas cifras, ambos os grupos representam aproximadamente 15% do total de solicitantes. Entretanto, os verdadeiros problemas são os que colocam os outros dois grupos: os médicos “obsessivamente conscienciosos” e os médicos “por um período”; cada um desses grupos representa, como já se disse, aproximadamente 20% dos solicitantes e juntos cerca de 30% a 40%. Além disso ainda a maioria deles parece estar integrada por candidatos de valor, do ponto de vista dessa especialidade e, como já se disse, a decisão de abandonar-nos foi para todos eles motivo de conflito, amargura e decepção, quer dizer, de desnecessária tensão. Retrospectivamente, creio que em uma entrevista inicial aproximadamente a metade dos “excessivamente conscienciosos” e em torno de um terço dos médicos “por um período”, isto é, mais ou menos 20% poderiam ter sido eliminados por sua carência de perspectivas promissoras. Voltarei imediatamente ao problema colocado pelos 15% restantes. A outra possibilidade consiste em conferir ao nosso adestramento e ao nosso plano de investigação maior elasticidade. Neste terreno abrigo o fim das dúvidas sobre o caminho mais aconselhável. Não seria muito difícil criar métodos que permitissem a uma maior proporção de nossos inscritos permanecer mais tempo no curso. Mas não seria uma perda de tempo para os psiquiatras? E, o que é mais importante ainda, este prolongamento talvez improdutivo não seria injusto para os potenciais desertores? Talvez a “limitada, embora considerável, transformação” implicasse um risco para uma persona-lidade delicadamente equilibrada, que talvez fosse melhor deixar liberada as suas próprias soluções e a sua função apostólica individual. Por outro lado, poderia ocorrer que a “limitada embora considerável transformação da personalidade” fosse exatamente o que essas pessoas necessitam e que provisse a solução de alguns de seus problemas de personalidade assim como de certas dificuldades individuais que enfrentam no curso de suas respectivas clínicas. Não creio que as inevitáveis limitações de uma entrevista inicial me permitirão — ou a um profissional mais experimentado — alcançar decisões fundadas em relação com este ponto de vital importância. Alimento, isso sim, a esperança de que será possível dissuadir da idéia de iniciar o curso alguns dos candidatos menos prometedores e reduzir assim nossas “faixas de baixas” a cifras entre 25% e 30%. Ante a proporção de deserções em outros sistemas, desde o ensino de estudantes de medicina aos cursos de formação psicanalística — para citar dois casos extremos — nossa cifra inicial, 60% de fracasso, foi indubitavelmente elevada. Nossa atual proporção de 35% é aceitável e se pudesse ser reduzida a 25% ou 30% poderia ser qualificada de elogiável. PSIQUIATRAS Nas páginas anteriores procurei oferecer uma idéia dos tipos de problemas com os quais se tropeçam durante a seleção de clínicos gerais destinados a receber adestramento psicoterápico. Espero que se compreenda claramente que exatamente do mesmo modo nem todo psiquiatra e nem sequer todo psiquiatra de formação psicanalista está em condições de encarar essa tarefa: as duas disciplinas mencionadas são talvez pré-requisitos necessários, mas certamente não constituem em si mesmo bases suficientes. Além de sólidos conhecimentos sobre psicoterapia e medicina, sobre impulsos, necessidades e emoções inconscientes, suas formas de expressão, e sobre o modo e oportunidade de interpretá-las, o psiquiatra deverá conhecer também a terapia de grupos em particular e a organização de grupos em geral. Além disso, e sobretudo, deve compreender que sua capacidade de especialista se acha limitada pelas condições de seu meio e que um meio diferente, por exemplo o consultório do médico, exige métodos diferentes. Essa diferença foi examinada em várias ocasiões, particularmente no Capítulo 13 e nos Capítulos 16 a 18. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
234
A transferência global dos métodos psiquiátricos, ou, para o caso psicanalítico, a psicoterapia praticada pelo clínico geral cria limitações excessivamente severas, pouco realistas e desnecessárias, e portanto não contribui a assegurar o êxito da empresa. Outra conseqüência indesejável nesse enfoque consiste em que suscita no clínico geral a impressão de que a psicoterapia é uma ocupação mais elevada de mais valor e mais profunda. Neste caso pode desinteressar-se de seu próprio consultório e solicitar o ingresso em alguma escola de psicoterapia; se o aceitam renunciará à clínica geral e se o rechassam pode converter-se em um clínico geral frustrado e descontente. O perigo todavia mais grave consiste na possibilidade de que se converta por iniciativa própria em psicoterapeuta amador, sem formação adequada. Em qualquer dos casos, a profissão terá perdido o que poderia ter sido um bom clínico geral. O objeto do psiquiatra a cargo do curso deve ser — tal como se destacou muitas vezes ao longo deste livro — pôr o clínico geral em condições de ser melhor médico, com a melhor compreensão dos problemas de seu paciente e com maior capacidade para ajudar a resolvê-los. Uma vez compreendido esse princípio, o psiquiatra não se sentirá tentado a “ensinar” seus próprios conhecimentos em uma forma diluída e inferior; em troca, unirá forças com os clínicos gerais com o propósito de estabelecer quais são os aspectos, e a proporção dos conhecimentos psicoterápicos ou analíticos aplicáveis com proveito no consultório do médico. Essa atividade, como posso testemunhar como experiência, constitui uma tarefa realmente fascinante, comparado a ser um professor de múltiplos conhecimentos, ou mesmo onisciente. Por outro lado, a tarefa exige considerável proporção de elasticidade e liberdade quanto a todo preconceito. Logicamente em cada uma das conferências é preciso enfrentar técnicas as quais o psiquiatra está acostumado, ou ainda idéias teóricas que acreditava mais firmemente fundadas. Para alguns psiquiatras essa constante revisão pode ser excessivamente severa. Infelizmente existem vários meios de evitar essa custosa tarefa, todos eles muito plausíveis e tentadores tanto para os psiquiatras como para os clínicos gerais. Um deles consiste em ensinar formas psicodinâmicas, bem fundadas e estabelecer por conseguinte uma relação tipo professor-aluno na qual o psiquiatra poderá se destacar e os clínicos gerais adquirirem excelentes conhecimentos à custa do desenvolvimento de sua capacidade. Outro meio consiste em permitir que as conferências se desenvolvam no sentido da terapia. Isso também é gratificante para ambas as partes. O psiquiatra se torna um médico bom e útil que realmente oferece algo valioso; os clínicos gerais, especialmente nas etapas iniciais, se beneficiam notavelmente e para citar a Gilbert, “tudo vai bem, tanto quanto possível”. Este é o desenvolvimento mais perigoso, dado que toda terapia razoavelmente positiva vai acompanhada, em regra geral, por melhoramentos da norma de trabalho; este progresso pode ser considerado então prova da correção da técnica de adestramento. Minha longa experiência de formação analítica me infundiu prudência com respeito a essa possibilidade, com resultado de que careço de experiência de primeira mão sobre as conseqüências últimas de sua aplicação sistemática. Espero, como já disse no capítulo anterior, que as transferências dos participantes ao psiquiatra, e simultaneamente toda atmosfera das conferências, se tornarão cada vez mais primitivas e que se elevará a carga emocional. Entendo que uma vez criada essa situação a maior parte do tempo deverá ser consagrada à terapia, que só se poderá reservar uma pequena proporção ao treinamento. Sempre que sucumbi à tentação de converter num “bom médico”, apareceram imediatamente todos os sinais de alarma; e o médico interessado, numa atitude ambivalente — ansiosa e atemorizada — reclamando mais terapia, certa estranha expectativa silenciosa e aguda, ante a possibilidade de uma experiência reveladora, do restante do grupo, e um impulso muito intenso em mim a expressar-me livremente. Logo que notava o que estava ocorrendo me detinha. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
235
O terceiro método para esquivar-se da tarefa consiste em assumir o papel de mentor superior que sabe o que é bom e conveniente para o clínico geral, o que se deve fazer e onde se deve parar. A tática que põe a segurança em primeiro plano goza sempre de aceitação geral. O psiquiatra não impulsiona os médicos a “nadar ou afogar-se” mantémlos sempre perto da costa e está constantemente alerta para adverti-los quando há riscos de profunda implicação pessoal. Os clínicos gerais se sentem seguros — e dependentes. Não são eles que tomam decisões, mas o psiquiatra benévolo e sábio, um profissional merecedor da maior confiança. É evidente que esse método de ensino é absolutamente oposto ao espírito de nossa investigação, mas devemos reconhecer que poderia constituir a solução de alguns de nossos fracassos. Sobretudo alguns dos “obsessivos” e dos médicos “por um período” possivelmente julguem esse modo mais em harmonia com seu modo de sentir e de pensar, e por conseguinte mais aceitável. Como se depreende claramente de todo o anterior, a personalidade do psiquiatra é fator essencial da seleção. Ela decidirá se abordará a tarefa de formar clínicos gerais, que métodos adotará, que atmosfera criará — e que tipos de êxitos e de fracassos terá. Os princípios aplicáveis ao clínico geral são também válidos, naturalmente, para o psiquiatra; quer dizer, sua “prática” da medicina, incluindo seus métodos para o treinamento dos clínicos gerais (ou sua recusa em treiná-los), é uma expressão de sua função apostólica. E claro, o mesmo vale para mim, e a fortiori para este livro.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
236
Apêndice
3
Relatórios de Acompanhamento
INTRODUÇÃO A primeira coisa que precisamos ter em mente é que os 28 pacientes relacionados no livro não constituem uma amostra representativa. Eles não são representativos da população metropolitana, ou das clínicas dos médicos que tomaram parte da pesquisa, ou mesmo dos casos que foram discutidos em nosso Seminário. Como foi mencionado diversas vezes no decorrer do livro, a participação em nossas discussões era voluntária; um médico apresentava um caso quando possuía alguma razão para isso; por exemplo: se era um caso difícil, que o preocupava, se ele queria provar alguma coisa e o caso constituía um bom exemplo disso, se nos queria mostrar quanto sucesso tinha etc. Quando eu decidi publicar a pesquisa, examinei todos os registros de nossas discussões passadas, e escolhi entre elas esses 28 casos para ilustrar os diversos problemas da prática médica que a nossa pesquisa trouxe à luz. Há, entretanto, ainda um outro aspecto que é comum a todos os 28 casos, na verdade a todos os casos discutidos em nosso Seminário, ou seja, que além do diagnóstico médico tradicional, tentamos chegar em cada um deles a um nível “mais profundo” de diagnóstico. Isto nos permitiu dar, em cada caso, além do prognóstico tradicional, um prognóstico mais amplo que incluía o relacionamento futuro do paciente com seu médico e uma predição de se a terapia racional iria ou não ter sucesso nesse caso em particular. Um acompanhamento sistemático não fazia parte de nosso plano original. Essa idéia desenvolveu-se gradualmente à medida que nos tornamos mais e mais cientes de como os eventos que ocorriam com o paciente e em sua vida de relação seguiam as nossas predições. Quando a idéia tornou-se suficientemente específica e concreta, o esboço do livro encontrava-se praticamente terminado, sendo portanto decidido passarmos a fazer um acompanhamento sistemático, estendendo-se até 31 de dezembro de 1955 sendo seu resultado incluído como o Apêndice 3 da primeira edição. A ocasião de uma segunda edição permitiu-nos desenvolver um segundo acompanhamento sistemático, cobrindo o período até 30 de junho de 1963. Uma vez que as datas de quando os casos foram original© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
237
mente relatados variava de 1951 a 1954, a extensão dos primeiros acompanhamentos variaram da mesma maneira, fornecendo uma média bastante grosseira de três anos. Sabemos, com base em outra pesquisa, que na área metropolitana de Londres cada ano cerca de 8% a 10% dos pacientes registrados com um médico abandonam a clínica. Podemos adicionar que em uma clínica bem estabelecida, mais ou menos o mesmo número de pacientes entra como pacientes novos para a lista do médico. Essa reciclagem anual não parece depender — como se poderia esperar — da capacidade profissional do médico, de seu conhecimento e personalidade, mas principalmente do lugar onde seu consultório for situado. É menor nas cidades provincianas e ainda menor nas áreas rurais. Levando-se em conta 8% a 10% como reciclagem anual, dos 28 pacientes relatados nesse livro, 20 a 22 deveriam permanecer na lista do médico até três anos. Na verdade, os dados verdadeiros foram os seguintes: A extensão do segundo período de acompanhamento é exata e a mesma para todos os nossos casos. Foi de 1o de janeiro de 1956 até 30 de junho de 1963, isto é, de seis anos e meio. Tomando-se esse tempo como base para os nossos cálculos, dos 18 casos nas listas dos diversos médicos, nove a dez deveriam permanecer ao final de período de seis anos e meio. Os dados reais eram os seguintes: Os dados calculados e os observados mostram uma concordância satisfatória que sugere que os 28 casos relatados comportam-se em alguns aspectos como uma amostra representativa da população metropolitana de Londres. Evidentemente, uma ênfase especial deve ser dada ao advérbio “em alguns aspectos”; caso contrário corre-se o risco de se criar uma impressão incorreta. Como os casos clínicos originais, os relatórios de acompanhamento aparecem aqui na forma em que foram compilados por escrito ou relatados verbalmente no Seminário pelo médico responsável. CASO 1 (SRA. C, RELATADO PELO DR. N)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Julho de 1954. A Srª C. (32 anos) não compareceu a consultas por aproximadamente dois anos após nossa última conversa. Durante esse tempo esteve sob os cuidados do meu sócio mais antigo, com o desejo de lidar com suas doenças no plano físico. A Srª C. foi vista por meu sócio aproximadamente 12 vezes durante o intervalo de dois anos. Notei também que, em nossos arquivos, consta que no ano passado foi encaminhada a um urologista, o qual achou que seus sintomas eram devidos a tensão nervosa. O urologista encaminhou-a algumas semanas depois a um ginecologista e cerca de dois meses mais tarde o urologista encaminhou-a ao psiquiatra do mesmo hospital. O psiquiatra relatou: 8 de outubro de 1953
Tabela I Ao Final do Período 1 (31 de dezembro de 1955) Permaneceram nas Listas 18
Incertos
2
Abandonaram a Clínica 7
Desconhecidos
1
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
238
Total
28
Tabela II Ao Final do Período 2 (30 de junho de 1963) Permaneceram nas Listas 11
Incertos
1
Abandonaram a Clínica 14
Desconhecidos
2
Total
28
Srª C. Consultei essa paciente em 5 de outubro de 1953. Queixa: depressão e crises de choro nos últimos quatro anos. História: a paciente era a mais velha de cinco crianças e teve uma infância feliz. A paciente casou-se em 1940, estando seu marido empregado em um serviço de reserva. Desde o início seu marido lhe disse que não queria ter filhos. Três anos depois do casamento ela ficou doente, com vários sintomas corporais, tais como dores e pontadas no peito. Seu marido continuou a praticar coitus interruptus. A paciente sofreu bastante de dispepsia, mas ultimamente tem apresentado crises de choro. Seu médico anterior havia sugerido que a frustração do sentimento maternal poderia estar relacionada com seu problema. No último ano sua tensão nervosa piorou quando uma jovem veio viver com ela e a paciente sentiu que o seu marido estava dedicando muita atenção a outra mulher, embora não houvesse suspeitas de conduta inadequada. A paciente encontra-se muito tensa e excessivamente meticulosa, e apresenta freqüentemente premência urinária. Um irmão foi enurético até a idade adulta. Diagnóstico: histeria. Comentário: conversarei com o marido e tentarei ver se consigo que o esquema marital mude para melhor Sinceramente seu, (assinado) Médico Responsável. Algum tempo atrás ela chamou-nos a sua casa; como eu estava de plantão, compareci. Mostrava-se muito deprimida e contou-me que seu marido estava muito amistoso com uma jovem amiga deles e estava muito hostil para com ela. Eu a vi duas vezes desde então, quando ela me contou mais ou menos a mesma história. Veio novamente ao consultório a noite passada, como último paciente (um sinal diagnóstico seguro de que ela queria tomar posse do médico para a noite), e sem dizer uma palavra começou a chorar muito alto e de forma dramática, segurando minha mão. Contou-me novamente das ligações do seu marido com a amiga, quando perguntei o que pretendia fazer ficou com raiva e disse que eu não a entendia. Não havia nada que ela pudesse fazer, uma vez que seu marido ficava irado cada vez que ela falava sobre esse caso e que ele a mataria se ele soubesse que ela havia falado sobre isso comigo, ou se ela contasse aos seus pais ou sogros. Disse que contaria ao marido da sua amiga quando esse saísse do hospital onde no momento se encontra, e isso seria sua vingança. Estava muito zangada comigo. Quando perguntei como gostaria que eu a ajudasse, disse rudemente que tinha vindo apenas para me pedir um vidro de tônico. Dei a receita, e deixei a porta aberta para que voltasse. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
239
Janeiro de 1956. Como relatei em julho de 1954, não vi com freqüência a Srª C. após meu relatório original e depois que ofereci psicoterapia. Isso não era o que ela queria, procurou o meu sócio daí em diante, o qual gosta de lidar com doenças físicas e, como vejo em sua ficha, ela tem na verdade várias doenças físicas, principalmente distúrbios digestivos e menstruais. No ano passado, entretanto, voltou a mim. Estava numa crise grave. Seu marido tinha lhe traído com sua melhor amiga e de uma maneira tão cínica e óbvia que eu tenho poucas dúvidas de que ele queria ser descoberto. Ela culpou a maldade do homem e da mulher por isso, mas também sentiu-se culpada em relação à sua frigidez que pode ter levado o marido a traí-la. Nosso relacionamento estava então muito melhor do que em qualquer período anterior. Enquanto nos anos anteriores eu a via como uma “mulher atacante, querendo me seduzir, e contra quem eu tinha que me defender, minha atitude agora não é mais defensiva. Ela agora sabe que pode falar a um médico compreensivo e achou possível falar a respeito de seus sentimentos hostis com seu marido e seus pais e sobre sua frigidez. Depois de algum tempo o casal voltou a se unir. Eu a vi apenas umas cinco ou seis vezes e por 15 minutos de cada vez. Não compareceu ao nosso consultório por algum tempo, até que voltou a consultar novamente o meu sócio, e depois a mim uma ou duas vezes. Seus conflitos não estão resolvidos. Ela ainda é uma histérica mas aparentemente pode lidar com isso e por enquanto não sentiu necessidade de ficar doente. Talvez eu me autovalorize pensando que isso possa ser devido a minha mudança de atitude quando ela descobriu que em seu relacionamento comigo não havia necessidade de usar seu padrão histérico habitual em relação aos homens. Entretanto, um novo problema surgiu. Seu marido, que é cliente de meu sócio, apresentava agora problemas digestivos e meu sócio me diz que acha ser muito difícil lidar com ele.
Esta é, por várias razões, uma história instrutiva. Mostra que com diagnóstico correto e com considerável habilidade terapêutica não é sempre possível induzir o paciente a abandonar sua doença “organizada” e a fazer algo no sentido de resolver o problema original. É verdade que esse foi um dos nossos primeiros casos e que talvez o Dr. M estivesse menos habilitado do que está agora. Esta dúvida aparece de uma forma bastante clara em seus relatórios sinceros e francos. Outro fato interessante é a mudança de médico que a paciente fazia. Podemos mesmo conjecturar as razões. Sempre que estivesse apta a aceitar o fato de que tivesse algum problema psicológico, consultava o Dr. M. e sempre que fosse demais para ela, tentava fugir da pressão dos problemas e procurava seu sócio. Esse sintoma importante — mudar de um médico para outro — de sua doença global, infelizmente era apenas um lado para chegar a um melhor diagnóstico, mas não para propósitos terapêuticos. Finalmente, o caso constitui outra ilustração instrutiva do “conluio do anonimato” ou da “difusão da responsabilidade”. Como a Sra. F (Caso 12), a Sra. C. manipulou seus médicos de forma que ninguém estava apto a ser inteiramente responsável por ela. Como é inevitável em tais casos um grande número de especialistas também foi envolvido. Além daqueles mencionados no relatório original, seu número foi aumentado por um urologista, um ginecologista e um psiquiatra. E, como na maioria dos casos desse tipo, o relatório do psiquiatra teve pouca utilidade para o clínico geral.
PERÍODO 2,
TERMINADO EM
30
DE JUNHO DE
1963
A Srª C trocou há muitos anos a nossa clínica pela de uma médica, eu não ouvi falar dela desde então. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
240
Entretanto, seu marido permaneceu em nossa lista e é agora um dos pacientes de meu sócio. Se estiver interessado, meu sócio terá o maior prazer em lhe enviar um relatório sobre ele.
Como o relatório do sócio era bastante extenso dou aqui apenas um breve resumo dele:
O Sr. C é um homem gravemente doente. Está incapacitado para o trabalho desde março de 1959. A causa imediata de sua incapacidade foi um problema cardíaco sugestivo de infarto, mas que foi diagnosticado no hospital como histérico. Por vários anos antes desse ataque, isto é, desde 1955, queixava-se de vários sintomas cardíacos, todos diagnosticados como funcionais. Uma tentativa sem sucesso de psicoterapia por parte do clínico geral revelou sentimentos agressivos bastante intensos no Sr. C, chegando a impulsos assassinos contra sua mulher, os quais — de acordo com o médico — eram bastante justificados pelo comportamento da esposa. Consultou-se então um psiquiatra; este concordou com o ponto de vista do médico e encaminhou o Sr. C a um centro de reabilitação, onde ficou por algum tempo, sem que isso beneficiasse. Em 1961 o Sr. C pediu para voltar a trabalhar no seu antigo emprego; começou mas apresentou tais sentimentos agressivos contra seu supervisor que teve que abandonar sua tentativa. Desde então não tentou outra vez.
O médico conclui seu relatório:
A Srª C consultou-me em uma ocasião para se queixar da contínua falta de saúde do seu marido e de meu insucesso em curá-lo. Ela certamente despertou uma violenta agressividade em mim! Disse-lhe que ela tinha feito isso, e talvez o fizesse também com seu marido, ao que respondeu: “Vocês médicos são todos iguais” — e talvez sejamos.
Assim, o tratamento da Sra. C — e o de seu marido — pode ser encarado como um fracasso. Na verdade, foi um dos nossos primeiros casos, e todos nós, o clínico geral tanto quanto o psiquiatra, não tínhamos muita experiência neste período acerca do campo da psicoterapia feita pelo clínico geral. Por outro lado também devemos assinalar que diversos tratamentos que se iniciaram no mesmo período prosperaram de forma favorável. Logo, deve haver razões específicas no caso da Sra C que provocaram o fracasso. A causa mais comum para o fracasso de qualquer psicoterapia é a não compreensão para os verdadeiros problemas do paciente. Isso é sem dúvida alguma verdadeiro neste caso. Embora haja alguma indicação de que o Dr. M diagnosticou que o Sr. C fosse um homem neurótico, a gravidade da sua neurose não foi reconhecida por ele. Isso tornou-se aparente apenas quando a Sra. C abandonou a clínica, isto é, tarde demais. Conseqüentemente, seu comportamento foi apenas parcialmente compreendido. Vezes sem conta ela foi descrita como uma mulher histérica e sedutora com emoções insinceras e superficiais — da mesma forma que seu marido foi descrito pelo sócio do Dr. M como um homem desesperado levado a extremos pelo comportamento impossível da esposa. Há muitas verdades nestas descrições complementares de marido e mulher. Pode-se mesmo © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
241
aventar algumas coincidências para reforçá-las: as queixas cardíacas do marido iniciaram-se em torno de 1955 e pela mesma época sua mulher abandonou o Dr. M e começou a vagar entre os membros da sociedade médica, tomando-se cada vez mais insatisfeita e irritada. Da mesma forma, o ataque cardíaco deve ter acontecido mais ou menos na mesma época ou logo depois que a Sra. C abandonou a clínica e mudou para uma médica, o que talvez signifique abandonar qualquer esperança de ser entendida por um homem. Evidentemente seria fácil ser esperto depois dos acontecimentos. O que poderia ter sido feito mais cedo? Temo que a única coisa que eu possa fazer é dar a resposta-padrão, que é: não acusar o parceiro ausente, mas tentar concentrar-se nos problemas apresentados pelo paciente no consultório, isto é, naquele que veio ao médico com queixas. Se o Dr. M tivesse sido capaz de compreender a aproximação sedutora da Sra. C em relação a ele como uma tentativa desesperada de demonstrar a maneira pela qual tratava seu marido e suas necessidades, portanto, de ser ajudada a entender porque tinha que fazer isso, talvez então o resultado tivesse sido diferente. Por falar nisso, mutatis mutandis, o mesmo é verdade para o tratamento ministrado pelo seu sócio para o Sr. C, digo talvez, porque nesse caso tanto o Sr. como a Sra. C tinham estado muito doentes por algum tempo e é bastante incerto que o clínico geral, para não dizer todos, poderiam ter ajudado a se reajustarem um ao outro, de modo a que o seu relacionamento se tornasse tolerável. Tivemos que admitir que nosso diagnóstico original e que o prognóstico favorável nele baseado eram definitivamente errados. CASO 2 (SRA. A, RELATADO PELO DR. E)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
26 de janeiro de 1956. Atualmente ela tem tido muito pouco contato comigo, mas tem procurado mais a meus sócios, particularmente o mais novo, que é suave com ela. Durante todo o ano de 1953 sofreu de dispepsia sendo examinada com raios X contrastado por ingestão de bário e enema, todos negativos. As consultas para seu filho, incluindo as visitas domiciliares, eram em média de uma por mês. Do outono de 1953 até o meado de 1954 ela se queixou da fimose e da balanite de seu filho. Ela costumava perguntar: “O Sr. acha que ele precisa fazer circuncisão?” Eu dizia: “Não.” Finalmente consultou meus sócios e eles a encaminharam a um cirurgião. O cirurgião relatou: “Ele não apresenta uma fimose grave mas se beneficiaria pela circuncisão.” Foi circuncisado em abril de 1954 e enquanto a ferida cicatrizava a mãe mostrava-se muito ansiosa. A ferida infeccionou. Em maio a mãe da paciente comprou para ela um apartamento e mudaram-se para acomodações muito mais adequadas. Em junho ficou grávida. A mãe da paciente achava que esta não era forte o suficiente para levar a termo a gravidez e achava que devia ser interrompida, mas a paciente optou por continuar grávida. Teve muitos problemas, toxemia, todo tipo de coisas. Finalmente ela foi submetida a episiotomia por sofrimento fetal. A criança nasceu. Ela teve que interromper a amamentação. Começou a apresentar então menorragia que continua desde então. Internou-se duas vezes para dilatação e curetagem. Dois meses antes da criança nascer, teve um discreto ataque de pneumonia e esteve no hospital por uma semana mais ou menos. A paciente disse: “Ele tem sido muito dependente de mim. Agora eu tenho um filho, e tenho que preservar minhas energias para ele; ele terá que cuidar de si mesmo.” Desde que o bebê nasceu o filho mais velho está melhorando muito; ouve-se muito menos sobre ele e é visto menos ainda. O bebê constitui a preocupação principal agora, tendo sido a carga retirada do filho mais velho e colocada no bebê. Aos 2 meses de idade o bebê foi internado no hospital com diarréia, e aos 9 meses engoliu um brinquedo de plástico. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
242
Esse é um caso de livro do que chamamos “a criança como sintoma de apresentação” e a “tradição neurótica”. A doença do menino seguia paralelamente ao estado da mãe. Sempre que ela estivesse sob alguma tensão o filho adoecia e sempre que a tensão da mãe decrescesse o menino melhorava. É de se esperar que agora, após o nascimento do novo filho, a relação entre o filho mais velho e a mãe será menos íntima e ele terá algumas possibilidades de se desenvolver. Infelizmente a mãe está concentrando agora no bebê e é um sinal ominoso o fato dela ter tido que ir ao hospital duas vezes em seu primeiro ano. Obviamente a tradição neurótica já começou.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
As ansiedades maternas continuam a afetar o novo bebê como antes, deixando o filho mais velho algo imune. Por um ano ou dois ela continuou correndo desesperadamente de um médico para outro, sem que qualquer tipo de controle fosse possível. Finalmente abandonou nosso consultório com N. Após três meses pediu-nos para voltar. Aceitamo-la novamente mas ainda uma vez a mesma seqüência de fatos ocorreu e após o período de um ano ela nos abandonou com N. Não há mais acompanhamento disponível.
Um acompanhamento bastante desapontador. O pouco que li a respeito das duas crianças não nos permite formar um quadro que seja digno de seu desenvolvimento. A neurose materna é bastante bem descrita. Seus principais sintomas: ansiedade, inquietação, dependência e desapontamentos desesperados são bastante claros, mas são diagnosticados apenas como um acontecimento e não como uma doença. Conseqüentemente, é muito provável que ela não receba tratamento específico. Por outro lado pode-se admitir que com a gravidade de seus sintomas e com sua inteligência limitada teria sido difícil para qualquer um tratá-la apropriadamente. O prognóstico inicial duvidoso mostrou-se correto. CASO 3 (RELATADO PELO DR. D)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Deixou o distrito. Apareceu uma vez para uma conversa amistosa; infelizmente, o Dr. P não se encontrava no consultório.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Não houve mais contato com o médico, o que era de se esperar. CASO 4 (RELATADO PELO DR. R)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Vi-a novamente em 20 de julho de 1954. Contou-me que enquanto tinha estado na casa dos seus pais, em férias, não teve problemas, mas uma semana após retornar a Londres havia ocorrido uma recorrência de seu sangramento e dor retais. Ao exame havia uma pequena fissura anal. Não estava melhor com o tratamento simples em 9 de agosto de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
243
1954, encaminhei-a portanto a um cirurgião “como paciente particular, a seu pedido”. O cirurgião subseqüentemente relatou que a fissura deveria ser operada. Em 20 de setembro de 1954, ela voltou queixando-se de ter tido menstruações freqüentes nos últimos dois meses; havia 14 dias entre as menstruações e estas eram muito intensas. Não pude examiná-la dessa vez, uma vez que estava sangrando e sugeri que voltasse a me procurar quando tivesse cessado. Ela então me perguntou se eu poderia continuar tratando dela caso se mudasse para outro lugar de Londres uma vez que estava prestes a fazê-lo. Após uma discussão na qual expliquei que não podia tratar dela pelo serviço nacional de saúde se ela tivesse tão longe de mim, ela disse-me que viria consultar-me como uma paciente particular. Até agora eu não a vi nem ouvi falar dela novamente!
Parece que nesse caso o médico e a paciente nunca puderam se entender. A despeito de todos os esforços do Dr. R havia sempre alguma tensão e atrito entre eles. Talvez o pedido da paciente para que seu médico continuasse a tratá-la, a despeito de sua mudança para Londres, constituísse a última tentativa de conseguir a atenção e talvez também a afeição de que necessitava. A resposta profissionalmente correta do médico foi possivelmente interpretada por ela como uma rejeição, e portanto teve que deixá-la mais uma vez desapontada e abandonada.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1973
Não houve mais contatos, como previsto. CASO 5 (SR. U, RELATADO PELO DR. E)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Ele tem cuidadosamente me evitado, embora tenha consultado com bastante freqüência meus sócios. Em maio de 1954 foi encaminhado ao Hospital W devido às suas dores, examinaram-no e eventualmente pediram que ele consultasse um psiquiatra do hospital. Não voltou ao hospital, nem consultou aquele sócio e por alguns meses mesmo deixou de vir ao consultório, mas continuou trabalhando. Em dezembro de 1954 consultou o sócio no 3, que o encaminhou ao Hospital M para exame. Eles o examinaram, novamente, mas nada de surpreendente foi revelado. Quatro meses mais tarde voltou ao sócio no 2, que o encaminhou novamente ao Hospital W, departamento de medicina física. Embora o médico que o examinou não pensasse que havia muito de errado, tratou dele. O paciente parece agora ter-se resignado a seus sintomas, e continua o melhor que pode. Ele não comparece pessoalmente, apenas manda buscar vidros de remédio. Uma vez, por engano, dei-lhe a medicação incompleta e esta me foi devolvida, dizendo ele que cheirava diferente. Não o vi por 18 meses. mas fui a sua casa uma vez examinar sua criança; ele apenas disse “alô” de maneira muito polida e não fez comentários. Sua mulher teve sintomas de ansiedade no verão de 1955. Seu filho mais velho, agora com 12 anos, é muito tímido e passivo, bastante feminino. Eu tentei discutir o assunto com a mãe, mas não consegui ir muito longe.
O acompanhamento confirma nossas piores previsões. A despeito de todos os esforços do Dr. E e de todos os demais, a situação desenvolveu-se quase que exatamente como havíamos previsto. O Sr. U deixou os poucos amigos em que podia confiar e tornou-se © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
244
um “nômade”, vagando de um sócio para outro no consultório e de especialista para especialista em vários hospitais. O paciente modelo, como o vimos antes do acidente, transformou-se em um homem introvertido e desconfiado, que é forçado a não confiar nos médicos que tentam ajudá-lo. Acho que foi justo dizer que, se o seminário não houvesse esclarecido alguns pontos desse caso, ele teria desaparecido entre os vários outros “prontuários gordos” da clínica. Embora não tivéssemos podido prevenir o desenlace, acho que alcançamos alguns bons resultados por trazer esse problema a palco.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
O menino mais novo, com nefrite, continuou com vários episódios graves da doença, durante os anos. Numa ocasião, na fase final da puberdade, teve um ataque do que foi diagnosticado como encefalite. Sua escolaridade sofreu consideravelmente e pensou-se que estivesse atrasado devido a algum dano cerebral subseqüente à encefalite. Na adolescência a sua saúde física melhorou de maneira marcante, e as exacerbações da nefrite pareceram desaparecer, mas ele se transformou em um jovem bastante solitário, introvertido e excêntrico. Fiz um esforço considerável nessa época com ele e com a família, no sentido de tentar evitar deterioração de sua condição, uma vez que temia um colapso esquizóide. Vi-o semanalmente por vários meses e estabeleci um certo, senão intenso, relacionamento com ele. Fiz com que se submetesse a vários testes psicológicos para mostrar que ele não apresentava nenhum dano cerebral. Mostrou-se nesse instante mais amistoso e mais sociável não apenas comigo mas na vida em geral. Deixou então a escola e entregou-se ao Serviço Civil em nível de escritório; manteve sua melhora e quando visto pela última vez comportava-se como um jovem razoavelmente normal. Houve pouco contato com o irmão mais velho que permanecia, quando visto, extremamente passivo e bastante feminino. A mãe apresentava freqüentes queixas ginecológicas (menorragia etc.), que levaram-na finalmente à histerectomia. Foi mais ou menos na mesma época em que o filho mais velho melhorou, que o pai gradualmente tornou-se mais amigável e recuperou sua confiança em mim. Ficou comigo, deixou de consultar os outros sócios e não mais me pediu que o encaminhasse ao hospital. Ele havia se reconciliado com o seu todo, exceto por desenvolver sintomas gástricos. Radiografias contrastadas mostraram-se negativas e ele foi capaz de discutir o assunto de uma forma sensata comigo. Nessa época a família foi bastante infeliz para descobrir que uma lanchonete havia sido instalada exatamente embaixo de seu apartamento com barulho contínuo durante o dia, continuando pela noite. Este inimigo externo pareceu unir a família e atuar como uma força de coesão. Todas as suas insatisfações foram focalizadas na lanchonete e no barulho. Recentemente mudaram-se e tiveram que trocar de médico.
Esta é uma resolução desconcertante. Se o seminário ainda estivesse funcionando na época em que os eventos descritos ocorreram, teríamos dedicado bastante tempo em discutir as possíveis explicações, pedindo ao Dr. E que observasse novamente os vários membros da família U, e então tentasse rever as explicações à luz dessas novas explicações. Em vez disso, tudo que posso fazer é dar aqui algumas das explicações que me ocorreram. Sem dúvida, a tensão sofrida por essa família permaneceu em grande parte inalterada durante o período de acompanhamento. Não pode ser decidido, entretanto, se a tensão era causada apenas pela grave doença do filho mais jovem ou, em grande parte, pela crise emocional do pai. De qualquer forma, ambas parecem haver diminuído na mesma época. É seguro assumir que o sincero interesse do Dr. E no rapaz e a sua ajuda bemsucedida em restaurar a sua autoconfiança desempenharam um papel considerável nesta © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
245
melhora. O rapaz superou o período difícil que provocou alguns sintomas inquietantes e encontrou para si mesmo um trabalho satisfatório na seção burocrática do Serviço Civil e — quase que ao mesmo tempo — o Sr. U superou seu desapontamento e novamente aceitou o Dr. E como o seu amigo de confiança. Igualmente, nós não sabemos se os problemas ginecológicos da mãe eram um fator contribuinte, ou uma conseqüência desses estados críticos. E, finalmente, o problema mais importante, se o Sr. U estava de fato capaz de restabelecer sua antiga amizade com o Dr. E, na qual o caso da lanchonete era um acidente ou, a despeito de alguns esforços espúrios, ele permaneceu o mesmo homem desapontado, em cujo caso a lanchonete pode ter sido apenas uma desculpa bem-vinda. Entretanto, mesmo se aceitamos a explicação mais favorável, o Sr. U teve que atravessar uma crise de confiança que durou vários anos, devido a incompreensão entre ele e seu médico, exatamente como previsto no Capítulo 3. CASO 6 (“DIRETOR DE COMPANHIA”) Nenhum relatório de desenvolvimentos subseqüentes. CASO 7 (SRA. D, RELATADO PELO DR. G)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
A Srª D mudou-se de meu distrito e eu não a tenho visto por algum tempo. Tanto quando posso lembrar (as antigas notas foram enviadas ao Conselho Executivo), ela veio ver-me ocasionalmente conversamos um pouco – sem mais interpretações. O relacionamento era bom. Michael não teve mais ataques de asma, pelo menos eu não fui mais chamado para tratar dele. Não sabemos com certeza se a cessação dos ataques asmáticos eram relacionados às “entrevistas longas”, mas é um fato que isso aconteceu post hoc.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Não houve mais contatos o paciente. CASO 8 (PROF. E, RELATADO PELO DR. Z)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Ele está muito melhor, trabalhando sem dificuldades. Eu lhe disse que se estivesse achando determinadas coisas muito solicitantes deveria planejar sua vida e seu departamento de tal maneira que não fosse submetido a interrupções. Fez uma coisa que nunca tinha tido coragem de fazer antes — trancou sua porta por uma grande parte do tempo que estava lá, e foi capaz de organizar a administração de uma forma muito melhor. Não nos preocupamos com a hipertensão agora. Aparentemente o Dr. Z colocou a situação corretamente em 1954 e sua decisão de não ir mais longe foi sensata — pelo menos por enquanto. Seria muito interessante acompanhar este caso, digamos, nos próximos 10 ou 15 anos. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
246
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1973
O paciente tem se sentido bastante bem nos nove anos que transcorreram desde meu relatório original. Manteve-se bem por vários anos, consultou-me a intervalos infreqüentes por incômodos menores, tais como: quisto sebáceo, cera nos ouvidos, exame oftalmológico, cefaléias ocasionais, mas sempre dizendo que se sentia muito bem. Umas tomadas ocasionais de pressão arterial mostraram que estava bem mais baixa do que 130-155 . 95-105 No final de 1959 sentiu-se com reumatismo especialmente suas pernas pela manhã ou após sentar e ouvir uma conferência; tinha também frigidez da musculatura dos ombros e do pescoço postural. Encaminhei-o a um departamento de fisioterapia, onde foi examinado e ministrado um curso de exercício postural. Isso provocou uma melhora limitada. Na primavera de 1960 suas cefaléias pioraram, ele sentiu também alguma náusea; o padrão sugeria hemicrania, mas isto nunca se desenvolveu com qualquer grau maior de freqüência. Em dezembro de 1961 ele disse que estava apresentando uma hemicrania discreta, cerca de uma vez por semana e que se preocupava que pudesse sofrer uma delas enquanto dirigindo um comitê. Em março de 1962 ele escreveu pedindo uma repetição da receita e me disse que seu desempenho na direção estava sendo um grande sucesso. Durante 1962-63 ele tem me consultado com mais freqüência com dores de cabeça e aumento da pressão arterial. Desde o início de 1962 que tem estado preocupado com sua mulher, que tem trabalhado sob grande tensão. Ela tornou-se uma professora e tem recebido um número cada vez maior de deveres departamentais. Ela também publicou vários livros de sucesso durante o ano, todos envolvendo uma grande quantidade de pesquisa meticulosa. Ele diz que ela é uma administradora competente e o membro mais valioso de todos os que integram o comitê no qual ela serve, mas ele tem estado temeroso que a tensão se mostre forte demais para ela. Embora ela própria haja me consultado várias vezes em 1962, tem conseguido, com pouca ajuda, permanecer em plena atividade. Ambas as crianças adotadas estão indo bem. Para resumir, tem-se a impressão de uma família integrada, com um marido e uma mulher que têm grande afeição um pelo outro e interesses comuns em alto grau. Não há dúvida que o Prof. E tem a maior admiração e amor, no senso mais lato, por sua mulher, e que não está de forma alguma ciumento de suas recentes conquistas acadêmicas, um pouco maiores que as suas. Contrariamente a sua freqüentemente citada intenção, ele não se retirou para uma vida mais tranqüila e tem lidado com seu trabalho administrativo de uma forma eficaz. Acho que nesse caso ter-se-ia obtido um resultado melhor tentando reajustar sua vida sexual nas linhas discutidas em 1954. Eu não tenho dúvidas que a única entrevista* foi de enorme ajuda para o paciente C para mim mesmo. Deu-me uma nova versão desse homem pacato e gentil que, por seu lado, livrou-se de um material que foi aceito de uma maneira tranqüila e que de outra forma poderia ter-se constituído em fonte de tensão por anos a fio. RELATÓRIO DE UMA ENTREVISTA COM A SRª E A entrevista teve lugar em 1954, poucos meses depois da “entrevista prolongada” do professor E, durante a qual ele me perguntou se eu gostaria de conversar com a sua mulher. *O Dr. Z se refere aqui a “entrevista prolongada” em 1954 descrita no relatório original (páginas 43-44).
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
247
Infelizmente, devido a um lapso, esse relatório foi omitido no meu primeiro relatório de acompanhamento. Ela disse que toda vida sexual tinha sido abandonada há mais de um ano, depois que a atividade tinha sido diminuída por vários anos. Ela achava que a causa eram mais as crianças do que a guerra. Começou anos atrás quando eles não receberam ajuda adequada e todos estavam doentes juntos. Logo depois seu marido foi operado. Gradualmente tornou-se menos potente e houve um período em que ambos eram infelizes porque a relação sexual era tentada mas hão era conseguida. Durante os anos em que ela tentou engravidar foi muito melhor. Nos primeiros anos de casamento ela usava um contraceptivo. Engravidou algumas vezes mas abortou aos 3 meses e foi finalmente aconselhada a evitar a concepção.
Este é um acompanhamento muito interessante. Em vários aspectos prova que o Dr. Z, em 1954, avaliou corretamente a situação extremamente complexa dessa família e que a abordagem terapêutica que adotou foi realista e útil. Permitiu-lhe que fosse de considerável assistência a essas duas pessoas valiosas e ajudou-os a continuar a levar uma vida ativa e frutífera. Esta declaração não se aplica apenas à sua carreira acadêmica mas também, como o bom relatório acerca do desenvolvimento das ditas crianças mostra, à sua vida familiar. Além disso, esse relatório deverá silenciar os críticos que duvidam da sabedoria daquilo que chamamos “entrevista prolongada”, durante a qual o médico permite a seu paciente falar livremente — entre outras coisas — sobre seus prazeres e problemas sexuais, contentamentos e desapontamentos. Como o acompanhamento de mais de nove anos mostra, a entrevista prolongada não provoca qualquer distúrbio na relação médico-paciente. Pelo contrário, permite ao médico entender melhor o seu paciente e, possivelmente, diminui a tensão sobre a qual o paciente vivia. Este é o lado positivo da situação. Há, entretanto, alguns lados negativos também, os quais, para sermos justos, devem também ser mencionados. Embora o Prof. E haja mantido, ou mesmo melhorado, seu status e eficiência profissionais, não pode haver dúvidas que durante os últimos anos foi sua mulher que se desenvolveu mais. Embora o Dr. Z afirme explicitamente em seu relatório que isso não provocou nenhuma alteração no afetuoso relacionamento entre marido e mulher, eu acho que deve ser ressaltado que foi durante esses anos que tanto o marido quanto a mulher apresentaram algumas queixas psicossomáticas a seus médicos. Quero com isso dizer as hemicranias, as dores musculares do marido, e as queixas de menor importância da mulher. Se juntarmos isso tudo, chegamos à conclusão de que a situação pode perfeitamente ter permanecido fundamentalmente a mesma através o período de acompanhamento. A tensão considerável que diagnosticamos em 1954 está ainda lá nos dois cônjuges, bem como em seu casamento, mas aparentemente devido às suas boas potencialidades de sublimação, eles parecem ser capazes de tolerar essa tensão embora com algumas dificuldades. A questão é ainda se pode-se confiar em que esse acordo resistirá ao teste do tempo. Aquilo que aprendemos das informações adicionais contidas no segundo relatório de acompanhamento — acerca dos abortos da Sra. E e da sua descoberta desapontadora de que não seria capaz de ter filhos, a decisão de adotar duas crianças e o abandono gradualmente paralelo de qualquer tentativa de vida sexual — encaixa bem no quadro que construímos originalmente e reforça nossas afirmativas diagnósticas. Pode também explicar a admirável capacidade para o trabalho da Sra. E, tanto como uma administradora e pesquisadora, que agora parece talvez substituir gratificações por uma maternidade criativa que lhe foi negada. Uma vez que tanto o Prof. quanto a Sra. E são pessoas talentosas, esse tipo de gratificação substitutiva pode em grande parte encher suas vidas de contentamento. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
248
CASO 9 (SRA. K, RELATADO PELO DR. B)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Não muito tempo depois de meu último relatório (agosto de 1954) ela se ligou a um jovem. Descobrindo que seus pais se opunham ao casamento, engravidou propositalmente e então casou-se com ele. Ela agora tem um filho. Não tem mais nenhum dos sintomas que apresentava na época em que encontrou esse jovem e estabeleceu uma relação séria com ele. O casamento é, tanto quanto sabemos, feliz, exceto pelo fato de que não possuem casa própria, sendo que o casal passa boa parte do seu tempo, por esse motivo, vivendo separadamente. Estou ciente de que ela tem uma mãe superansiosa, mas eu nunca a vi pessoalmente, porque ela é cliente do meu sócio. Este é um relatório atordoante. Ou todas as nossas conclusões sobre o caso estavam erradas, ou aconteceu uma espécie de milagre, algo como um episódio quase psicótico se desvanecendo sem deixar traços. Não posso acreditar que esse seja o caso, e suponho que a melhora atual mostrar-se-á apenas superficial e temporária. Será muito interessante acompanhar esse caso pelos próximos anos.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
A Srta. K — como já foi relatado — casou-se e teve uma filha sem dificuldades em 1955. O casamento durou menos de um ano. O marido era um homem de pouca personalidade que a abandonou e fracassou em sustentá-la desde então. O casamento nunca pareceu importante em sua história médica, embora o problema de sustentar e educar a criança fosse muito importante. Ela tem dependido em grande parte da ajuda de sua mãe que cobre generosamente suas necessidades, embora com ressentimento. A Srta. K tem consultado tanto meu sócio quanto a mim pelo menos uma vez por semana desde 1955. No geral, ela permaneceu fiel a nós dois, mesmo havendo mais médicos na sociedade. Até um ano atrás sua necessidade era invariavelmente por reafirmação que este ou aquele sintoma somático não era devido a câncer ou leucemia. A maioria dos sintomas localizava-se na boca ou no ânus, mas havia outros em todos os lugares. Precisávamos ocasionalmente de opiniões de ambulatórios hospitalares quando a pressão se tomava muito tensa mas em geral tentávamos impedir que entrasse em contato com os especialistas. Geralmente nós examinaríamos os sintomas e diríamos: “está tudo bem”, “é uma de suas estranhas sensações” e ela ficaria reassegurada por mais alguns dias. Encaminhamo-la a um psiquiatra em 1958 (antes disso não queria essa consulta). Seu relatório é o seguinte: Obrigado por sua carta a respeito dessa moça, que eu vi ontem à tarde. Parece-me que ela tem diversos problemas diferentes, os quais por sua vez necessitam também de abordagens diferentes. 1) Sua preocupação hipocondríaca na garganta é, eu suspeito, uma manifestação de uma tendência hipocondríaca profundamente incorporada, que provavelmente não se alterará muito, mesmo que as circunstâncias sociais melhorassem. De qualquer modo, aconselho que por um tempo considerável seja-lhe dado reconforto repetido, de que não é nenhuma doença grave, certamente que não é câncer. Também será necessário manter esses sintomas dentro de limites toleráveis. Se achar que chegou a hora de outro exame especialmente da garganta, no sentido de reforçar o reconforto, terei o máximo prazer em consegui-lo aqui. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
249
2) Sua tendência geral em preocupar-se acerca de seu futuro e os sintomas ansiosos associados — os tremores que ela sentia até pouco tempo atrás, à noite, eu considero também o desconforto epigástrico — parece ser atribuído a seu sentimento de frustração. Seu modo de vida claramente nos dá muito pouca satisfação no sentido de que seus vencimentos, além da pensão que recebo do marido para a criança, serve pouco no sentido da garantia do seu futuro o do criança. Ela não tem esperanças de conseguir uma casa própria ou de ser capaz de desenvolver algum tipo de vida social ou de fazer novas amizades. E acho muito difícil descobrir como isso pode ser alterado a menos que ela tomasse alguma providência no sentido de que a criança fosse adotada ou, pelo menos, entregue a alguém que cuidasse dela. Ela parece muito hesitante em levar em consideração algo desse tipo mas ao menos que o faça, o seu modo de vida parece incapaz de muita modificação. A situação continua inalterada e também inalterável permaneceu a resistência a qualquer tentativa de interpretação psicológica. Foi em 1962 que ela teve que retornar ao psiquiatra. Sua carta é a seguinte: Essa jovem finalmente apareceu em nosso ambulatório hoje. Lamento que tenha passado tanto tempo sem vê-la. Suas graves e recorrentes reações hipocondríacas parecem ter tido início quando ela tinha cerca de 16 anos — muito antes de seu casamento insatisfatório e das preocupações financeiras e privações sociais que envolvem seu colapso. Entretanto eu imagino que as extremas restrições de sua vida presente — piores durante os três últimos anos, desde que o marido parou de mandar dinheiro regularmente — devem estar servindo para manter a ansiedade e a hipocondria da qual ela é uma expressão. É difícil imaginar que ela possa ser ajudada por psicoterapia individual, mas eu acredito que pode pelo menos haver uma chance de que ela possa responder a terapia de grupo. Estou por conseguinte solicitando ao Dr. X que estabeleça a sua indicação para um de seus grupos. Desde essa época houve algumas alterações. Ela compareceu ao grupo e também ao clube social do hospital com regularidade e entusiasmo. Ela ainda precisa visitar-nos acerca de sintomas físicos, mas em novembro de 1962 eu anotei: “Um mês sem uma consulta.” Seus sintomas tornaram-se menos físicos e mais psicológicos. Ela tem-se queixado de ser incapaz de se concentrar no seu trabalho ou de querer fugir de tudo. Ela discute abertamente os problemas de viver com o pai, que não fala com ela há quatro anos, e com a mãe que cuida da sua criança mas com a qual ela constantemente briga e que não tem tempo para suas queixas. Ela admite que sua criança é um peso para ela “embora ela signifique tudo para mim”. Ela quer sair de casa mas: “Como posso, se meu marido não me dá dinheiro e eu tenho J para cuidar?” Os advogados do marido iniciaram recentemente um processo legal e isso lançou-a em tal estado de ansiedade que ela se tornou incapaz de trabalhar e teve que receber certificados. Esperamos que possa ir breve passar um período no Centro de Reabilitação X. Levamos 10 anos para alcançar este ponto mas a moça está começando a cuidar da sua vida. Não é uma visão encorajadora para ela. Como seu médico, eu sinto que me encontro agora frente a um problema material e que há pelo menos uma esperança de ajudar. Nenhuma solução está à vista. Sua filha tem agora 9 anos. Teve nefrite mas se recuperou. Era uma criança indisciplinada e agressiva até a idade de 5 anos e sua mãe não tinha controle sobre ela. Atualmente vemo-la pouco. Esse segundo relatório de acompanhamento parece confirmar meus comentários acerca do relatório algo otimista do primeiro período. De nossa vantajosa situação atual, cerca de © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
250
10 anos após o casamento, o que pareceu ao Dr. D em 1955 uma possível solução para alguns dos mais conflitos da Srta. K, nós podemos ver que foi apenas uma tentativa, desesperada mas ineficiente e sem esperança, fadada ao fracasso. Não se tratava apenas de que seu marido não fosse o homem apropriado, que quisesse ter uma mulher e uma criança, mas de que a Srta. K não estava apta para romper os laços ambivalentes que a ligavam a sua mãe. Sua situação geral permaneceu inalterada em todas suas características principais; a despeito de se tornar uma mulher casada e mãe, permaneceu uma criança dependente, que não pode criar uma vida própria na qual possa dispensar a ajuda da sua mãe; da mesma forma, a despeito do fato de que começou a ter uma vida sexual adulta, não pôde abandonar seu exibicionismo deslocado, precisava continuar insistindo de que seus médicos olhassem em sua garganta e ânus para ver se não havia câncer em nenhum deles. O relatório não diz nada acerca de se continuou o mesmo ritual com sua mãe, logo há uma possibilidade de que ela tenha sido capaz de abandonar uma parte de sua sintomatologia. Durante todos esses anos ela foi vista, semanalmente, pelo Dr. D ou o seu sócio que consistentemente tentaram fazer com que aceitasse a possibilidade de que seus sintomas tivessem origem psicológica, e que um psiquiatra deveria por conseguinte ser consultado. Essas iniciativas foram a princípio simplesmente recusadas, postas de lado, até que em 1958 fez uma visita abortada a um psiquiatra e, em 1962, com uma aparente aceitação. Uma explicação possível para tal alteração pode ser encontrada em sua projeção parcialmente bem-sucedida. Ela teve sucesso em encontrar um objeto muito adequado, seu marido, para acusar de tudo que fosse infeliz e errado em sua vida. Foi este homem mau que a abandonou, que não lhe deu dinheiro suficiente para criar apropriadamente sua criança impedindo-a assim de adotar seu lugar apropriado na vida social. Este sucesso parcial em aliviar-se da culpa e dos subseqüentes sentimentos de culpa é uma explicação possível para a sua boa vontade recente em consultar um psiquiatra e em aceitar a psicoterapia de grupo que lhe foi oferecida. Entretanto, essa última colocação deva talvez ser alterada. Examinando mais cuidadosamente as duas opiniões psiquiátricas contidas no segundo relatório de acompanhamento, bem como aquela no primeiro relatório em 1954, pode-se admitir que elas constituem apenas descrições corretas, embora algo superficiais, de sua sintomatologia, bastante bem conhecida de seu médico, e que houve poucas tentativas por parte deles em compreender a dinâmica que levou ao desenvolvimento de seus sintomas hipocondríacos e a sua patológica forma de vida. Conseqüentemente, em vez de uma terapia, baseada na compreensão adequada, toda a ajuda que os psiquiatras puderam oferecer ao altamente pressionado clínico geral foi recorrer a aconselhar reassegurar, e eliminar através de exames físicos apropriados. A utilidade bastante limitada desses métodos foi discutida nos Capítulos 4 e 10. CASO 10 (SRTA. M, RELATADO PELO DR. R)
PERÍODO 1,
TERMINANDO ENTRE
31
DE DEZEMBRO DE
1955
O caso foi acompanhado até o Natal de 1955 no Capítulo 13.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
A Srtª M voltou à consulta no dia 8 de julho de 1957, simplesmente para me dizer que “temo que as coisas não estejam indo bem — meu casamento terminou”. Continuou me dizendo que “ele parou de se importar comigo desde cedo”. Eu não tive nada mais para discutir com ela acerca de sua presente situação. Não tinha sintomas mas estava © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
251
nitidamente deprimida. Eu a vi em 11 de julho de 1957, quando ela me pareceu estar se adaptando bem à sua nova situação, que era a de viver em quartos do outro lado do rio e trabalhando novamente. Eu estava interessado em destacar que, embora a última vez que a tenha visto tenha sido em março de 1955, ela não tinha mudado para outro médico até a presente data, Eu tive que dizer isso a ela, embora o lamentasse muito, que não podia mantê-la em minha lista uma vez que ela estava agora em um distrito muito distante do meu. Recebi então o formulário usual solicitando seus registros médicos a fim de serem enviados a outro médico, ao qual ela se havia transferido em agosto de 1957. Eu lhe sugeri que, caso viesse ela a achar que eu pudesse ajudá-la, que teria prazer em vê-la, mas tal não ocorre desde julho de 1957. Uma história triste mas um acompanhamento muito interessante. Primeiro, penso que deve ser assinalado que, quando a Srta. M viu-se frente ao desastre do fim de seu casamento, ela voltou a seu antigo clínico geral queixando-se, não de pequenos mal-estares físicos, mas de seu aborrecimento presente. Uma grande alteração, indubitavelmente um excelente resultado do tratamento prévio do Dr. R, e uma abertura promissora para um pouco mais de terapia. É pena que o Dr. R não tenha feito mais nessa ocasião do que aceitar os fatos: de que seu casamento tenha se desfeito e de que a Srta. M estivesse agora vivendo em um distrito muito distante do seu. O que ele poderia ter feito era ter examinado essa paciente nos detalhes os mais finos e os mais importantes do desfecho do casamento. Por exemplo, o que fez com que o marido da Srta. M “parasse de gostar dela”, aparentemente da mesma maneira que fez o armênio? É bastante possível que o resultado desse exame tivesse revelado faltas nos métodos da Srta. M em encontrar parceiros para si mesma, bem como faltas em seus métodos em tratá-los. Outro aspecto do mesmo exame poderia ter sido centrado na relação médico-paciente, que começou, por assim dizer, com o pé esquerdo, com a Srta. M escolhendo quartos numa área impossivelmente distante de Londres. Isso poderia ser considerado como um exemplo de seu relacionamento com os homens em geral; ela precisa criar condições que tornem extremamente difícil para qualquer homem — incluindo seu médico — manter um contato mutuamente satisfatório com ela. Evidentemente, se o Dr. R tivesse iniciado com um exame desse tipo, isso teria significado uma continuação de sua responsabilidade médica pela Srta. M por um tempo considerável — uma responsabilidade não facilmente aceita por um clínico atarefado em relação a um paciente do SNS vivendo bem fora de sua área. Como todos sabemos, há vários métodos de segunda linha para lidar com estas dificuldades; infelizmente, cada um deles tem a desvantagem adicional inevitável de restringir o relacionamento livre e fácil entre o clínico geral e seu paciente, o qual, principalmente nesse caso, mostrou-se tão valioso para o tratamento. Quaisquer os motivos, o Dr. R decidiu não se envolver nesses exames e por conseguinte não sabemos as respostas as nossas perguntas. Como assinalado diversas vezes neste livro, se o paciente e seu médico têm que se afastar após um período de psicoterapia que levou a algum insight e compreensão, isso inevitavelmente significa o encerramento daquilo que chamamos “companhia de investimento mútuo” com consideráveis perdas para ambos os lados. Isso foi o que aconteceu nesse caso e, como o exame não foi realizado, não sabemos se tal resultado poderia ou não ter sido evitado. O Dr. R obteve do Conselho Executivo o nome endereço do atual médico da Srta. M. Através da ajuda desse médico fomos capazes de conseguir alguns poucos detalhes da história médica recente da Srta. M que — de forma alguma completa — mostra o que pode acontecer com o paciente depois que a “companhia de investimento mútuo” foi encerrada. A Srta. M transferiu-se para outro clínico geral na área de Londres, com o qual ficou até o início de 1960. Quando em julho de 1957 consultou o Dr. R, estava deprimida e queixava-se a respeito de seu casamento desfeito, mas não oferecia nenhum sintoma psicossomático. Após perder o Dr. R ela voltou a seus antigos hábitos e num dado momento foi encaminhada ao Hospital A, de onde o clínico geral recebeu a seguinte carta: © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
252
2 de dezembro de 1959 Eu vi a sua paciente acima mencionada no Ambulatório. Queixava-se de um vago desconforto epigástrico periódico nos últimos, 6 meses. Ela achava que a crise recente estivesse apenas precedendo sua menstruação. Quando eu a vi, estava assintomática. Fui incapaz de detectar qualquer indicação de lesão orgânica. ao exame clínico. Associado com alguns de seus ataques, havia diarréia, como mencionado em sua nota, mas eu concordo que o diagnóstico possa perfeitamente ser diarréia emocional. Como sabe, ela divorciou-se a semana passada. Atualmente, não considero indicado nenhum tratamento além de apoio, mas gostaria de vê-la novamente dentro de três semanas, para reexaminá-la, e determinar a relação entre a sua dor e a menstruação. (Assinado) Especialista Consultado. E cerca de seis semanas depois, uma segunda carta: 19 de janeiro de 1960 Após minha carta de 2 de dezembro de 1959 examinei a Srª M novamente ontem no Ambulatório. Ela me conta que vem se sentindo bem por algumas semanas, mas seus sintomas de cólica abdominal e de diarréias reapareceram há três semanas. Nenhuma ligação orgânica óbvia foi clinicamente detectada e considero seus sintomas devidos a uma diarréia emocional. Penso que iria melhorar com o uso de tranqüilizantes tais como Stelazine 1 mg por dia ou mistura de caolin, de que ela pode fazer uso quando seus sintomas estiverem presentes. Gostaria de vê-la novamente em dois meses para reavaliação. (Assinado) Especialista Consultado. Nós que conhecemos sua história médica dos últimos anos podemos ver que ela reproduziu agora todos seus antigos sintomas. Entretanto, em vez de qualquer tentativa de compreensão de seus conflitos atuais e de suas conexões com os sintomas apresentados por ela, testemunhamos em seu caso a rotina inconsistente que a maioria dos pacientes do seu tipo recebe: na carta de dezembro, o especialista declara que não considera indicado qualquer tratamento exceto apoio, enquanto que na sua carta de janeiro, pela mesma condição — embora a paciente nesse meio tempo tenha melhorado — ele recomenda o tranqüilizante e um pouco de caolin. É claro que ele não dá qualquer explicação para a alteração da sua conduta, pelo simples fato de que ela não pode ser racionalmente explicada. A Srta. M foi então chamada de Londres para uma cidade no campo para ajudar a servir de enfermeira para sua mãe que estava seriamente doente. A última carta é de seu médico atual: 18 de julho de 1963 Obrigado por sua nota sobre a Srtª M. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
253
Nessa nota diz que ela era sua paciente até agosto de 1957. Você se lembrará portanto que seu casamento desfez-se, após o que ela tornou-se muito perturbada. Contraiu vários sintomas — dores abdominais, diarréias, menstruações irregulares etc. Foi vista no Hospital A pelo Dr. X. Com o decorrer do tempo estabilizou-se. Conheci a Srtª M pelos últimos 16 anos o diria que ela se tornou inteiramente ajustada. Atualmente cuida de sua mãe que está bastante doente. Uma carta típica, bem intencionada e cheia de esperança. Embora com algumas dúvidas, esperamos que o futuro prove que a avaliação feita pelo médico do presente estado da Srta. M seja correta. CASO 11 (SR. K, RELATADO PELO DR. Y 1969-1971)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Após o relatório original em maio de 1952, o Dr. Y começou a psicoterapia com o Sr. K. Como o tratamento enfrentou algumas dificuldades, o Sr. K foi encaminhado ao nosso serviço de emergência e examinado em setembro. Aqui eu não posso relatar em detalhes acerca de seus complicados problemas psicológicos e as maneiras que desenvolveu para lidar com eles. É suficiente dizer que o Dr. Y era capaz de fazer uso da ajuda fornecida pelo Seminário e que o tratamento do Sr. K continuou a despeito de alguns incidentes graves em seu emprego, a intensidade dos sintomas do Sr. K gradualmente diminuiu. Em julho de 1953 suas condições melhoraram tanto que foi possível interromper a regularidade das sessões psicoterápicas. Desde então ele reverteu ao estado de um paciente “normal” e tem sido visto, apenas raramente, cerca de três ou quatro vezes por ano, por problemas normais. De vez em quando ainda toma alguns antiácidos.
PERÍODO 2,
TERMINADO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Após 1953 o Sr. K compareceu ao consultório apenas em intervalos trimestrais, algumas vezes mandando sua esposa para seu medicamento antiácido. Ele estava bastante feliz, de uma maneira masoquista, em não ser reconhecido como a pessoa capaz que sabia ser, esperando por sua aposentadoria, não estando nem perseguido nem suprimido, e fazendo os seus colegas invejosos de sua maneira de aproveitar a vida. Suas condições físicas, embora não completamente recuperadas, permaneceram sobre controle até 1957-1958, quando ele apresentou sinais de uma hérnia de hiato, que foi confirmado por raios X contrastado. Foram-lhe dadas, e ele aceitou, regras gerais de comportamento no sentido de evitar desconforto. Ao mesmo tempo foi feito um ECG, uma vez que se queixava de dor no hemitórax esquerdo inferior e dificuldades respiratórias. O eletrocardiograma mostrou “algumas, embora não muito convincentes, evidências de degeneração miocárdica”. Aposentou-se por essa época. 1958 — recebeu uma funda para uma hérnia inguinal direita. 1959 — estava sofrendo de bursite no ombro direito, que foi curada com injeções de hidrocortisona. Abandonei a minha clínica no SNS em janeiro de 1960. Em março de 1960 o Sr. K teve um discreto ataque das coronárias e foi enviado ao hospital por meu sucessor. O ECG mostrou “desvio para a esquerda do eixo, sem isso dentro dos limites normais”. Raios X do tórax n.d.n. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
254
Foi mantido no hospital por um curto período e então voltou para casa. Meu sucessor disse que “não era problema” e era raramente visto no consultório. Não há mais entradas em sua ficha. Devido a esse acompanhamento, visitei o Sr. K e encontrei-o levemente eufórico, gozando a vida — mas não “tremendamente” como eu tinha sugerido em uma pergunta. Tinha ganho muito peso parecendo muito gordo, apenas suas mãos finas lembrando ainda sua aparência anterior. Gasta seu tempo “fazendo” coisas na casa, algum trabalho de carpintaria, decoração, jardinagem, criando cactos. Não faz mais música, lê pouco e em geral acomodou-se a uma vida comum e aborrecida. Passou a dedicar-se a joalheria mas de maneira puramente mecânica, inserindo pedras em padrões preparados. Como respeito ao seu trabalho anterior e as pessoas com quem trabalhava, ele é algo paranóide... “eles eram uma turma horrível, as condições tonteavam você, você não podia falar com ninguém...” Em contraste com isso ele verificou quantos amigos tinha feito desde que se aposentou. Todos o conhecem na vizinhança (e evidentemente olham-no com respeito), ele se sente querido e com valor. Ele ainda não gosta de multidões, não gosta de ir ao cinema — tem televisão — mas não viaja, exceto em suas férias. Seus problemas gastrointestinais estão sob controle. Ele sabe o que tomar e quando tomar. Muito raramente ainda pânico súbito por exemplo quando convidado para jantar ele subitamente tem a antiga sensação de uma borboleta em seu estômago, com a sensação de queimadura e sentimento de vazio. Mas ele reassegura a si mesmo pensando que, apesar de tudo, está entre amigos. Seu ataque cardíaco teve lugar após podar uma árvore no jardim. Para ele foi um acidente sem maiores conseqüências. Ele explica o fato de que está aproveitando a vida, mas não da maneira mais completa, por sua nostalgia da juventude e, de uma forma geral, sua perda de interesse. “Vive-se de dia para dia.” Não tem medo da morte, uma vez que se tornou espiritualista. Muitos anos atrás, em conversa com o seu irmão ele viu o fantasma de sua mãe colocar-se entre eles. Ele considerou isso uma demonstração favorável para ele e devido à sua rivalidade para com o irmão, não atraiu a atenção deste. Ele agora também mantém-se sozinho com suas vantagens (se os amigos no trabalho soubessem!). Ele freqüenta sessões espíritas regularmente e tem “uma aura azul”, isto é, ele é considerado um “médium”. Os homens ainda desempenham em sua vida um papel muito mais importante do que as mulheres. Ele está ou igual ou melhor que os outros homens — principalmente no lar. Sonha muito, mas acha impossível lembrar-se de um sonho. As mulheres são escassamente mencionadas. Sua mulher, que costumava ser rocher de bronze através dos anos de sua contínua doença, sucumbiu à doença de Ménière. Ela comparece ao Hospital X uma vez a cada três meses embora a queixa não seja muito intensa. Ela consegue sua atenção, especialmente desde que os ataques ocorrem quando se inclina — uma coisa que ele estritamente evita devido a sua hérnia de hiato — “e um de nós precisa fazer isso?” Sua filha, agora com 30 e poucos anos, uma funcionária pública conscienciosa, com um episódio histérico mais ou menos 10 anos atrás, quando teve que ser internada em um hospital psiquiátrico, fez muitos esforços para se casar, sem sucesso. Ela consegue prender-se a homens inalcansáveis. Enquanto o orgulho do Sr. K é ferido por sua filha ser ainda uma solteirona, ele se sente gratificado no mesmo tempo de que ela fique em casa completando o lar com sua presença e dinheiro. Em sua relação comigo, o Sr. K deixou claro de que ele é bastante independente. Ele não “aborrece” nenhum médico agora. Ele compra seu próprio remédio (uma vez que meu sucessor não continuou a dar a ele o que eu prescrevia e que ele não quer o que ele prescreve) e ele é um “médium” afinal de contas. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
255
No conjunto ele parece contente com sua vida tal como está.
O relatório contém muitos detalhes interessantes que nos permitem acompanhar de maneira adequada o desenvolvimento do Sr. K. Suas crises de dores que o dobravam, desapareceram completamente; a coliscectomia parece ter sido justificada. Todas as outras dores e incômodos que o afligiam tanto depois da operação e que impeliram o Dr. Y a tentar psicoterapia, foram consideravelmente reduzidas quase que a insignificância; assim, a psicoterapia parece ter sido igualmente justificada. Imagino quantos médicos perceberão e aceitarão essas duas implicações paralelas em relação à sua prática diária. Em outras palavras, quantos médicos verão que o processo descrito neste livro como “eliminação mediante exames físicos apropriados” é, em muitos casos, um procedimento de alto custo, tanto para o paciente como para o médico e não deve ser usado como uma rotina automática. Após essas conclusões gerais examinemos detalhadamente o que aconteceu ao Sr. K. Um homem de muitas habilidades e promissor, mas que não era capaz de desenvolver a sua eficiência individual devido às suas diversas inibições, tanto em relação a homens quanto a mulheres. Embora todos os médicos que o atenderam tivessem reconhecido e diagnosticado imediatamente essas inibições, nada foi feito em relação a elas; em vez disso cerca de duas décadas foram gastas caçando várias condições físicas, mais ou menos irrelevantes, que ele oferecia além de seus sintomas psicológicos. O Sr. K já se encontrava com seus 50 anos quando o Dr. Y compreendeu a futilidade de sua política médica e ofereceu-lhe psicoterapia. Como vemos no primeiro relatório de acompanhamento, essa mostrou-se muito difícil, e não é surpreendente que nesta idade relativamente avançada, o Dr. Y pudesse apenas ajudá-lo de forma limitada. Como o segundo relatório de acompanhamento mostra, ele se tornou um homem pomposo, obeso, narcísico, que precisa sempre estar certo, que aparentemente tem apenas orgulho e vaidade, mas não muito amor por ninguém mais, incluindo sua mulher e filha. Além disso, seu ganho de peso, aparte de não constituir um bom sinal prognóstico para a sua condição cardíaca, sugere um estado depressivo crônico, contra o qual ele tenta se defender por superalimentação e por se reassegurar de que está aproveitando a vida e de que é muito melhor do que qualquer outro. Isso sugere uma situação precariamente equilibrada e, portanto, o prognóstico deve permanecer incerto e reservado. CASO 12 (SRTA. F, RELATADO PELO DR. C)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
14 de janeiro de 1956. Não melhorou. Seus ciclos menstruais são bastante regulares e seu comportamento infantil encontra-se inalterado. Ela ainda me procura esporadicamente para tomar injeções, é sedução infantil, ela está sempre muito grata a mim e acha que sou maravilhoso. Ninguém dá injeção tão indolores quanto as minhas e ela está melhorando esplendidamente. Enviou-me um cartão de Natal, com amor, e o assinou com o seu primeiro nome (mas isso ela já me havia feito no ano passado também). Acne na sua face vai e volta como antes, e ela regularmente solicita ungüentos de anti-histamínicos. Ela não me diz, mas tenho certeza que não está tomando seus comprimidos de hormônio como regularmente o fazia. Seus pedidos de receitas são menos freqüentes. Eu mesmo pensei que estivesse melhorando. Ou melhor, eu mesmo pensei que estivesse melhorando junto com ela. Não tinha que engolir minha irritação em relação às suas visitas fora de hora ou na hora da refeição. Estava conseguindo aceitar (como achava) todas as pequenas inconveniências que ela me infligia, e estava desejando que estivesse me mudando no sentido de uma pessoa benevolente e boa para a qual ela poderia dirigir se quisesse. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
256
Por conseguinte, fiquei desapontado há uma semana quando compareceu e, após sua injeção e o comportamento infantil usual, disse que ela possivelmente poderia conseguir um emprego no campo, na cidade onde seus pais haviam recentemente comprado uma casa. “Como sabe, eu adoro o campo.” Eu não sabia o que fazer disso, se era uma ameaça vazia ou séria. Quando eu começo a lidar melhor com ela ameaça de me abandonar. Tudo que pude pensar foi que ela pensava que se ficasse mais tempo teria que abandonar suas ilusões, e estava por conseguinte fugindo do perigo. Estou certo? O aspecto interessante nessa história foi o grande poder da compulsão a repetição. Como vimos no relatório original no Capítulo 7, a ninguém foi permitido ser propriamente responsável pelo caso da Srta. F. Caso essa ameaça ocorresse, ela ou produziria outro médico e o jogaria contra o outro ou fugiria. Aparentemente ela parece em vias de optar pela última, no caso do Dr. C. É difícil dizer que esse padrão repetitivo poderia ter-se tornado firmemente “organizado”, ou mesmo evitado de desenvolver-se no início. Infelizmente parece que pouco pode ser feito agora.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
A Srtª F deixou o distrito. Não tivemos notícias. As predições apreensivas do primeiro período de acompanhamento estavam corretas. É uma pena. CASO 13 (RELATADO PELO DR. Y)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
A paciente veio ver-me de vez em quando. Tentei fazê-la falar e relatar seus sintomas de sua vida passada, bem como suas preocupações atuais. No que diz respeito à sua vida passada, ela encontrava-se tão bem defendida que não admitia nenhuma interpretação. Suas atuais preocupações são: 1) A situação impossível de brigas constantes com a mãe de seu amante. 2) A preocupação a respeito de sua filha que está a ponto de repetir seu próprio padrão de vida, a saber, viver com um homem que não pode conseguir o divórcio de sua mulher. Sentiu-se aliviada, sendo capaz de discutir seus problemas comigo, mas suas dores de cabeça permanecem. Alguns meses depois a mãe de seu amante, também uma de minhas pacientes, veio dizer-me que ela e seu marido estavam se mudando uma vez que ela não conseguia suportar a vida em sua casa por mais tempo. Daí em diante as dores de cabeça da minha paciente melhoraram e ela está obviamente aliviada das brigas cotidianas. Sua filha terminou com o amante e desde esse período contraiu um casamento oficial. Minha paciente está agora bastante bem. Os problemas da vida cotidiana sobre seus problemas mais profundos mostraram ser demasiados para ela e devem ter causado seus sintomas. Com a solução de seus problemas atuais ela voltou a seu antigo estado de um equilíbrio bem defendido. Tem estado bastante bem desde então.
PERÍODO 2,
TERMINADO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Após sua operação de veias varicosas a paciente não foi mais vista até janeiro de 1958, quando desenvolveu uma pneumonia após gripe. Essa foi completamente curada. Atual© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
257
mente ela parece uma pessoa muito mais feliz. As circunstâncias melhoraram tanto desde que os pais se mudaram, e ela tem a casa para si mesma e para seu amante. Sua filha dissolveu o relacionamento com seu namorado (casado e não disponível, exatamente como o de sua mãe) e casou-se com um árabe que se encontra estabelecido na Inglaterra e tem um bom emprego após ter estudado engenharia. 1959 (novembro) — queixas de indigestões. 1960 — radiografias contrastadas e gastroscopia não mostraram nade exceto “discreta gastrite”. Atualmente largou seu emprego de vendedora de uma pequena loja da vizinhança e tornou-se gerente de uma pequena loja no Centro. Sentia-se bem, exceto por uma dispepsia ocasional. As cefaléias haviam desaparecido. Trabalhava duro, saindo de casa às sete e voltando às oito, embora estando livre nos fins de semana. Fevereiro de 1962. Acordou uma manhã sentindo-se muito fraca e com dor no peito. Pensou que fosse indigestão, foi ao trabalho com grande dificuldade e andou pelas ruas “como embriagada”. Na hora do almoço foi levada para casa. Meu sucessor — nessa época eu já havia abandonado a clínica de SNS — enviou-a ao hospital. O hospital relatou: “ECG n.d.n. Sua dor não é típica de nenhum estado particular. Os sintomas de dor torácica em queimação pioravam ao se inclinar ou deitar. Raios X contrastado.” Foi mandada para casa, mas examinada novamente, em março de 1962, quando o relatório diz: “Eu pensei que a dor precordial da paciente fosse bastante típica (!). EEG inteiramente normal mas potencializado por testes de exercício mostra uma evidência definitiva de isquemia. O raios X contrastado foi perfeitamente normal. Precisa perder uma tonelada de peso e receber nitritos e sedação.” Quando eu a vi para o acompanhamento, parecia bem e alegre. Teve dois ou três outros ataques de menor importância de angina de peito, mas agora sabe o que fazer. Ela não se assusta quando o ataque começa, não pensa em morte, mas apenas de lidar com a situação de maneira técnica. Tentou não deixar ninguém saber a respeito disso (incluindo seu atual médico) porque as outras pessoas poderiam ficar preocupadas. Quando um vizinho recentemente “apagou por causa das coronárias” ela pensou — “isso acontecerá comigo um dia”, mas não permaneceu pensando nisso. Nunca teve medo da morte. Submeteu-se a uma grave operação de mastóide quando jovem, logo após o acidente com seu marido que o transformou em um caso psiquiátrico, sonhou que tinha morrido. Viu a procissão de seu próprio funeral com todos os parentes, um caixão coberto de flores; mas ela mesma estava fora do caixão, voando sobre ele embora seu corpo estivesse dentro. Sentiu-se muito alegre e apenas desejou que pudesse fazer ver àqueles que a pranteavam como a situação realmente era. Desde então não teve mais medo de morrer. Vê essa experiência como um favor pessoal que lhe foi feito pelo destino, escolhendo-a para um “final feliz”, como em praticamente quase todas as suas situações de vida. Até esse ponto todos os seus problemas têm sido resolvidos de uma maneira satisfatória. É verdade que seu marido ainda está vivo e em um hospital psiquiátrico onde está internado por quase trinta anos. Ele ainda deseja muito voltar para casa, mas isso é impossível, ele está confuso e com idéias suicidas! Ela não o tem visto há anos, nem o tem feito sua filha, que costumava visitá-lo regularmente embora a intervalos longos e o viu pela última vez há três anos. Eles deixaram de visitá-lo porque a perturbavam muito. A paciente sente que pagou sua dívida em relação a ele criando as duas crianças e trabalhando tanto que foi capaz de dar a ambos uma boa educação. Também, até o advento do serviço de saúde, ela tinha que pagar três libras por semana por sua internação. Ela vive muito feliz com seu homem; o fato de que não podem se casar, uma vez que sua mulher recusa-se a se divorciar, não a perturba absolutamente. Ele é aceito por suas crianças e ela por sua família. A paciente ignora sua coronária até o ponto (ou talvez encubra seus medos dessa forma) que pretende deixar seu atual emprego e abrir uma loja de sua propriedade. O casamento de sua filha mostrou-se muito bom e ela está esperando um bebê. Seu filho também está casado e feliz, com duas crianças. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
258
Um desenvolvimento fantástico, mas bastante de acordo com o relatório anterior. CASO 14 (SR. I, RELATADO PELO DR. B)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Vi o Sr. I profissionalmente apenas uma vez desde meu último relatório em março de 1955, quando ele apresentava uma discreta bronquite com depressão subjacente, da qual tinha consciência e em relação da qual pode compreender que era assunto para seu analista, ao qual não tinha sido capaz de ir por algumas semanas. Superou rapidamente sua depressão quando voltou ao tratamento. Encontrei-o várias vezes na rua e seu estilo geral melhorou muito e ele parece estar alegre e trabalhando bem.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
O Dr. B abandonou sua clínica e mudou-se de Londres. Em conseqüência o Sr. I não pode ser acompanhado. CASO 15 (SRA. B, RELATADO PELO DR. S)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Não tenho visto a Sra. B, apenas sua mãe, que me diz que a Sra. B e sua criança vão muito bem. A mãe vai visitá-la, e é-lhe permitido ficar com ela, mas não para dormir. Enquanto está lá o genro está fora. Ela nunca o vê. A mãe está muito satisfeita com o progresso de sua filha e da criança.
Este é um desenvolvimento altamente interessante. Aparentemente a filha não era capaz — e talvez não quisesse — romper completamente com sua mãe. Muito provavelmente a mãe colocou todo o seu poder em jogo na tentativa de restabelecer todo o seu domínio sobre sua filha. De qualquer forma, a ambivalente relação-mãe-filha foi aparentemente restabelecida e o genro foi novamente excluído dela, como antes. Não é de se estranhar, portanto, que a mãe “esteja muito satisfeita com o progresso”. A questão é se o marido será capaz de suportar a tensão, especialmente se, como é possível, a relação mãe e filha tornar-se mais íntima e mais intensa com o tempo. Se a Sra. B estivesse ainda sob os cuidados do Dr. S eu aconselharia vivamente a ele que tentasse clarificar a ela seu papel neste triângulo, como uma medida preventiva contra complicações futuras. De qualquer forma um caso muito interessante de se observar.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Pela mãe, soube que minha antiga paciente, a Sra. B, desenvolveu um diabetes há três anos, mas que é capaz de viver melhor com seu marido e as duas crianças. O relacionamento entre o casal e os pais dela também melhorou, e agora visitam-se em bons termos. Ultimamente a Sra. B vinha suportando moralmente sua mãe, quando seu pai esteve no hospital por hematêmese devido a uma úlcera péptica. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
259
P.S. Desde meu último relatório de acompanhamento por acaso encontrei o Sr. B em uma grande loja, em 29 de agosto. Parecia bem e próspero, com prazer de me ver novamente e me disse que ele é um dos principais vendedores do departamento e que tem tido sucesso também como escritor. Publica artigos, publicou dois livros e um terceiro está em preparo. Ele se refere orgulhosamente às suas duas filhas, de 9 e 5 anos e a sua mulher como uma excelente dona de casa a qual, a despeito de seu diabetes, que foi detectado há dois anos, mantém a doença sobre controle de forma muito inteligente. Vivem fora de Londres numa casa agradável, e conseguem ver os pais de sua mulher freqüentemente. Estão ansiosos por convidar os avós oferecendo a eles transporte de ida e volta em seu carro. Sua sogra aceitaria o convite com prazer, mas o pai, um inválido com uma úlcera péptica, mostra-se relutante em viajar. Encorajado por meu interesse na família, no dia seguinte o casal apresentou-se com as crianças em meu consultório. Estavam indo almoçar com seus pais. A Sra. B mostrava-se saudável, confiante, de bom humor, e estava com muito prazer, muito orgulho de mostrar suas duas meninas, bem desenvolvidas e bem-educadas. Pareceu-me para mim uma família contente e normal e não poderia ter esperado um melhor sucesso na minha tentativa de ajudar o casal no seu estado caótico quando lutavam por ajustar-se na casa dos sogros. Aparentemente, o “senso comum” nesse caso fez-me acertar na mosca. Um desenvolvimento muito satisfatório, na mesma direção mas sem dúvida melhor do que o meu prognóstico reservado em 1955. Uma “coexistência pacífica” — ou melhor seria chamá-lo um armistício? — foi estabelecida entre a mãe e o marido, mas não se sabe, certamente não o Dr. S, a que preço e a que custo. O desenvolvimento de uma condição diabética em uma mulher jovem de cerca de 30 anos pode ser interpretado como o fato de que a Sra. B teve que arcar com a maior parte da responsabilidade. Isso, entretanto, pode ser um ponto de vista muito pessimista e, talvez, fosse mais justo conceder à Dra. S o sucesso de sua terapia de “senso comum”. Ou devemos esperar até o próximo relatório? CASO 16 (SRA. O, RELATADO PELO DR. G)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Não há muito a acrescentar, exceto de que a Sra. O encontra-se agora no hospital com uma discreta recorrência de suas carúnculas uretrais. Acho que muita coisa boa foi feita nesse caso: não houve recidivas de suas queixas crônicas e ela me vê bastante raramente. Nos últimos seis meses eu a consultei cerca de duas vezes enquanto que ela costumava vir quase que cada semana. A última vez que a vi ela estava na casa de outra paciente, a qual ela estava ajudando a tratar.
Nossas previsões parecem ter sido corretas. O relacionamento frustrante entre o médico e a paciente desapareceu completamente e a economia de tempo por parte do médico continua, para a satisfação de todos os envolvidos.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Eu a vejo com bastante freqüência, principalmente, por bronquite recorrente e mais recentemente por sangramento pós-menopausa e uma recidiva de carúnculas uretrais, as © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
260
quais foram novamente removidas. O relacionamento permanece bom. Ela vem e fala livremente quando sente vontade e eu próprio não sinto mais ansiedade contra ela. Diria que o ganho maior desse caso foi para o médico. Ela não me deprime mais e eu posso continuar tratando dela sem maiores dificuldades.
Posso apenas repetir o que disse em 1955, ou seja, que nossas previsões parecem ter sido corretas. A economia de tempo ainda continua, e, o que é mais importante, o relacionamento frustrante entre o médico e a paciente desapareceu completamente para satisfação de todos. Considerando que “a entrevista prolongada” que fundamentalmente alterou a situação teve lugar em março de 1954, este acompanhamento longo, chegando a quase dez anos, é um suporte importante para a recomendação de que pacientes cansativos não devem ser automaticamente entupidos com prescrições mais ou menos racionais ou com placebo de senso comum. CASO 17 (SR. Y, RELATADO PELO DR. K)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Cerca de um mês após o primeiro relatório o Dr. K citou novamente o Sr. Y: Ele voltou... estive conversando com ele a respeito de fazer radiografias e reconfortei-o. Você disse que ainda havia muito mais — na verdade ele voltou novamente duas ou três semanas depois dizendo aproximadamente a mesma coisa... Será que ele poderia fazer uma radiografia? Como se nós não tivéssemos tido a conversação anterior. Conhecendo o homem e pensando que obviamente ele precisaria ser reconfortado, eu não entrei em muitos detalhes na época e disse: “Suponhamos que os raios X mostrem a úlcera a mais perfeita, o fato é que o tratamento não será diferente, será?” Mas foi muito curioso; se você começasse a explicar... “a respeito de que você está preocupado, tem medo de que seja um tumor?” Ele diria: “Não, não, não.” “Por que você quer a radiografia?” Tudo o que ele diz é que ele precisa fazer uma radiografia. É extraordinário esse sentimento. Ele precisa dessa radiografia, embora ele não saiba exatamente bem porque a quer. Tão logo quanto você comece a questioná-lo ele não tem nada atrás disso. E ele não lhe permitirá sugerir que este não é o verdadeiro problema. Como ele não pode conseguir sua radiografia sem consultar o médico que anteriormente tratou de seu tórax, no hospital, eu encaminhei o Sr. Y a ele. Estou agora esperando seu relatório. Nesse ponto podemos ver duas forças se exercendo.
Por um lado há o paciente que não pode ser reconfortado, que precisa ter uma radiografia, sem saber por quê. Obviamente ele não pode expressar seus temores, mas sem dúvida ele os sente. Ele sem a menor dúvida está na lista de perigo, e deve ser encarado de maneira séria. Por outro lado há o médico, que possui agora uma melhor visão das coisas mas ainda não tem a habilidade e a confiança necessárias para transmitir suas idéias ao paciente numa linguagem que seja mutuamente inteligível. Falar de outros propósitos é dolorosamente atual, e o único caminho de sair-se disso — o único aceitável, tanto para o médico quanto para o paciente — é solicitar a opinião de um especialista. O especialista em questão é um clínico geral, e é duvidoso se ele será capaz de entender o caso do Sr. Y com a profundidade suficiente. A resposta comum, e fácil, é de que nada foi ou será perdido por pedir a opinião do especialista. Se o achado é positivo o exame foi necessário; se é negativo tanto o médico quanto o paciente sentir-se-ão “reconfortados” e, se considerado indicado, um psiquiatra © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
261
pode então ser consultado. O que é completamente negligenciado, ou mesmo reprimido, é que por esse procedimento o paciente é forçado (ou ajudado) a “organizar” sua doença em linhas físicas e as chances de qualquer ajuda psicoterápica são consideravelmente diminuídas. É provável que a mera sugestão que deva consultar o psiquiatra tornar-se-ia inaceitável para ele e nenhum passo foi tomado no sentido de prepará-lo para essa possibilidade. Devido à sua falta de preparo, será bastante difícil para o médico colocar esse paciente no caminho de pensar em sua doença não em termos físicos, mas em termos psicológicos. Essa dificuldade é grande o suficiente se os achados dos especialistas são negativos, mas se o mais leve, o mais discreto sinal positivo é encontrado, ela será praticamente insuperável. No último caso, o Sr. Y será outra ilustração do perigo de se encontrar uma “doença física”. A história clínica não deixa dúvida de que ele está lutando com seus conflitos neuróticos, mas se ele tiver a má sorte de possuir o mais discreto sinal físico, será praticamente impossível oferece-lhe ajuda para seus problemas verdadeiros. No início de 1956, o Sr. Y foi novamente mencionado. Havia indicações de que ele ainda não havia feito suas radiografias. O retardo não o preocupava, ele esperava pacientemente. O Dr. K adendou a seu relatório que tinha esquecido de mencionar que o Sr. Y tinha outra filha mais velha, que era casada e vivendo por conta própria, não no mesmo distrito.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Continuei a ver o Sr. Y — de três a dez vezes por ano, principalmente para renovar a receita para sua indigestão ou para o eczema seborréico na implantação de seus cabelos. Sofreu de indigestão por cerca de vinte e dois anos e de irritação do couro cabeludo por oito anos. Não teve mais problemas com seu peito. Não houve mais psicoterapia e ele na verdade nunca quis conversar sobre seus problemas. Ele gosta de afastar seus problemas com uma piada “estou preocupado com minha pele hoje, doutor, não com meu estômago. Eu posso cuidar disso. É apenas um assunto de ser cuidadoso e de evitar comidas fritas”, e com um amplo sorriso “o senhor sabe que uma mulher pode matar seu marido apenas pelo uso judicioso de uma frigideira”. Em outra ocasião quando se queixava de sua indigestão, disse que lamentava não poder aproveitar a comida, uma vez que era “o maior prazer da vida” e também mencionou uma briga que tinha tido com sua mulher a respeito da administração da loja. Encaminhei-o ao hospital em duas ocasiões, em 1956 e 1961, para raios X contrastados e em ambas ocasiões os raios X não mostraram anormalidades. Uma radiografia da vesícula biliar em 1961 também foi negativa. A filha mais moça do Sr. Y, aquela com a paralisia de Bell, casou-se cerca de um ano depois da primeira entrevista, vive no exterior e ele ocasionalmente viaja com sua mulher para visitá-la. A Sra. Y foi operada em 1956, para histerectomia por fibróides que causavam menorragias nos dois anos anteriores. Soube que sua mãe havia morrido em 1955 e que ela não mostrava inclinação para relações sexuais desde então e pensei que poderia ser que alguns dos sintomas do Sr. Y na época fossem relacionados a seus sentimentos de rejeição por ela. No conjunto, o Sr. Y parece equilibrado e capaz de lidar com os sentimentos ambivalentes que ele forçosamente tem em relação à sua amorosa esposa. Ele continua em sua loja a encontrar seus fregueses de forma agradável e com um grande sorriso. Ele e sua mulher conhecem todos os problemas de seus clientes intimamente e na verdade seus clientes trazem a eles seus problemas devido ao alívio que eles sabem que conseguirão — o Sr. Y ri deles e a Sra. Y oferece simpatia ou pena.
Este relatório de acompanhamento contém alguns detalhes novos que confirmam nossa tentativa originária de diagnóstico. Aprendemos dele que a Sra. Y, já em 1955, na época da primeira consulta de seu marido ao Dr. K, apresentava graves sangramentos que leva© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
262
ram a uma histerectomia alguns meses depois; e, além disso, que foi também por essa época, senão mais cedo, que ela parou de ter relações sexuais com seu marido. Outro ponto importante é que a filha mais jovem casou-se cerca de um ano após a primeira consulta, o que significava possivelmente que já estivesse na época envolvida com algum jovem; um ponto para suportar essa interpretação é que ela voltou a viver no campo, de onde voltou bastante relutante quando seus pais tornaram-se agitados quanto à sua paralisia de Bell. Tudo isso sugere fortemente que próximo ao final de 1955, o Sr. Y encontrava-se sob uma grave tensão, sentindo que todas as suas mulheres — sua esposa bem como sua filha favorita, o estavam abandonando; não é de admirar que sob essa pressão ele tenha vindo a seu médico para descobrir se ele era homem suficiente. O relatório original, a discussão no seminário e o primeiro acompanhamento ilustram bem a difícil situação que se desenvolveu entre o médico e o paciente. Ambos deram o melhor de si, mas tudo que puderam conseguir foi conversar um com o outro sem se entenderem. O Sr. Y mencionou sua verdadeira preocupação de uma maneira parcial quando seu médico estava ocupado escrevendo sua receita; e o médico, embora anotando e relatando este acontecimento, não pôde na verdade escutá-lo. Conseqüentemente, o caso seguiu o curso usual da “eliminação através de exames físicos apropriados”. A abertura, oferecida timidamente e com reservas pelo paciente, não foi aceita, e essas experiências quase certamente reforçaram suas defesas que de qualquer forma já eram fortes. Embora seja bastante possível que ele tenha oferecido algumas outras poucas tímidas e indecisas aberturas a seu médico, é mais provável que não. Qualquer que seja o caso, o resultado é o mesmo: uma parede de tijolos quase impenetrável constituindo uma defesa camuflada como uma aprovação agradável e cooperativa do trabalho do médico. Haverá certamente algumas pessoas que discordarão dessa descrição e assinalarão que os resultados globais não foram maus. A filha casou, afastou-se da superproteção dos pais, vive longe e talvez feliz. É verdade que a Sra. Y teve que se submeter a uma histerectomia e abandonar sua vida sexual talvez muito precocemente, mas tornou-se uma mulher simpática, querida por todos. E finalmente, o verdadeiro paciente, o Sr. Y, não teve nenhuma doença grave nos últimos dez anos e tem sido capaz de manter seu caráter agradável e alegre a despeito de sua desagradável indigestão crônica. Sem dúvida, seu médico “tem sido uma grande ajuda para ele durante esses anos, reconfortando seu paciente quando ele pensou ser necessário, através de um exame físico apropriado. Tomamos conhecimento de dois exames radiológicos e de uma gastroscopia em oito anos, o que é razoável em vista do fato de que o Sr. Y está no grupo etário em que se precisa ser cauteloso quanto à possibilidade de um tumor. Tudo isso deve ser concedido a nossos críticos. A única coisa que posso fazer é formular a perene pergunta — qual foi o preço desses resultados? A resposta é: uma separação geográfica dos pais e da filha; uma interrupção provavelmente prematura dos prazeres sexuais para o casal, com as conseqüentes tensões que tiveram que suportar e talvez mais. É possível que a habilidade do Sr. Y “de rir das coisas” que é mencionada várias vezes no escrito do Dr. K seja um tipo de palhaçada, escondendo seu amargo desapontamento através de uma máscara de rir. Sua piada acerca da mulher que pode matar o marido com uma frigideira está bem de acordo com essa suposição. Nesse caso sua indigestão crônica pode ser outro sintoma sugerindo que ele tem que engolir muito mais do que tem que ser digerido. A simpatia e o bom trato da Sra. Y dedicado a todos de uma forma tão conspícua pode ser uma tentativa de autojustificação — um tipo de defesa contra seus sentimentos de culpa; como se ela estivesse dizendo não ser verdadeiro que ela fosse uma mulher dura para seu marido; pelo contrário, ele é muito agradável e simpático, para todos os outros. Seu cabelo pintado e o “sobressalto” quando viu o quadro na sala de espera do Dr. K concordam bem com essas pressuposições. É claro que tudo isso é, como disse, pressuposições; mas é também pressuposição que estas duas pessoas vivam felizes e bem ajustadas. O problema é que é quase im© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
263
possível descobrir a verdade porque todos eles, especialmente o Sr. Y, foram bem treinados para esperar exames físicos por parte de seus médicos e qualquer tentativa ou sugestão de um exame psicológico causará surpresa ou se defrontará com incompreensão ou mesmo uma resistência gelada. CASO 18 (SRA. J, RELATADO PELO DR. P)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
O Dr. P nada mais soube a respeito dessa paciente, o que era de se esperar.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Nenhum contato. Previsão inicial parece ter sido correta. CASO 19 (PETER, RELATADO PELO DR. G)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Em 12 de março de 1956, a mulher de Peter veio ver-me na semana passada com seu filho, que tinha tosse. Perguntei sobre Peter. “Desde que a criança nasceu ele é outro homem. Tem tido pouquíssimas dores de cabeça, nenhum sentimento de medo. Mesmo seus pais notaram isso. Ele idolatra a criança. Não é mais uma pessoa temperamental e mal-humorada.” A melhora sem dúvida manteve-se. Devemos aceitar isso como um final feliz da história, isto é, aceitar que Peter recebeu a ajuda suficiente para superar sua “deficiência básica” ou ainda se justifica permanecermos duvidosos? Seria muito instrutivo acompanhar essa família, particularmente o desenvolvimento da criança, pelos próximos anos.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Perdoe-me se eu vejo esse caso como um triunfo. Ele deveria saber de sua carta para mim porque apareceu esta manhã! Sua mulher está no hospital, onde acaba de submeter-se a uma apendicectomia e ele tem cuidado das três crianças — posso dizer, crianças normais. Ele gostaria de um descanso do trabalho por alguns dias porque ele teve duas semanas bastante difíceis. Além disso, não teve “nenhum dos seus antigos problemas por anos”, uma “dor de cabeça ocasional” e sente-se plenamente confiante de que seu problema anterior “é coisa do passado, graças ao senhor, doutor”. Ele tem uma família adorável de três crianças normais e sadias, nenhuma delas criança-problema. Estou tentando encontrar furos nisso, procurando provas do que esse “sentir-se muito bem” possa constituir prelúdio, mas não encontro nada. Parece muito bom para ser verdade e nós médicos relutamos em aceitar estas curas rápidas, que parecem impossíveis, uma vez que “nós na verdade não fizemos nada” e “não aprofundamos em sua psicopatologia” etc. etc. Mas se ele continuar assim pelos próximos dez anos, não creio que ele vá se preocupar com esse problema técnico. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
264
Acho que o Dr. G, apoiado em um acompanhamento de mais de dez anos, tem plena justificativa chamar seu tratamento de um triunfo. Sua “entrevista prolongada” em março de 1953, e seu subseqüente lidar com o caso, transformaram um jovem gravemente neurótico, que atravessou uma desagradável infância e adolescência, em um homem adulto com uma esposa satisfeita e três crianças normais — de forma alguma um resultado de pouco valor qualquer que seja o padrão que se considere. CASO 20 (SRA. N, RELATADO PELO DR. C)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Após algumas tentativas consegui entrar em contato com a Sra. N pelo telefone. Trabalha atualmente em uma espécie de serviço burocrático no almoxarifado de um hospital, daí a dificuldade de entrar em contato com ela. Comecei a desejar não ter conseguido falar com ela, uma vez que ela não parava de falar. Tinha estado a ponto de me telefonar várias vezes, mas não tinha querido me incomodar etc. Suas dores de cabeça desapareceram, mas não a hipersonia. Ela algumas vezes sente-se muito mal, porque as pessoas notam. É uma consumidora regular de Drinamil. Se não o toma, ela se sente como se tivesse sido cloroformizada e não consegue manter-se de pé. Adormece em ônibus. Cada vez que relaxa pega no sono. Ontem dormiu durante o jantar. Ela gostaria de me ver novamente para conversar a respeito, e eu marquei uma consulta. Agora fico pensando o que fazer em relação a isso. Ela colocou seus termos e parece que está tentando me forçar. Como ela agora está pedindo ajuda, eu não sei como isso pode ser recusado, mas também não sei como posso encontrar tempo para ela — embora esteja muito tentado. Será que um grupo resolveria seu caso?
Aparentemente nossa incerteza em aceitar os resultados terapêuticos de seu caso eram excessivamente cautelosos. Suas dores de cabeça desapareceram, mas não sua “deficiência fundamental”. Visto desse ângulo a decisão de “parar” talvez estivesse correta. É difícil avaliar a natureza de sua hipersonia, com base apenas em uma conversação telefônica. Ela poderia ser causada por uma narcolepsia de desenvolvimento insidioso mas também poderia ser devido a uma deterioração de seu antigo sintoma histérico, ou mesmo a uma combinação de ambos. Obviamente serão necessários maiores exames, tanto psicológicos como neurológicos.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
A Sra. N teve uma recaída em 1957 e voltou para algumas sessões. Menos pelas dores de cabeça dessa vez do que por diversos sintomas subjetivos, tais como insônia, pesadelos, dispepsias nervosas, “sentimentos horríveis” etc. Ainda dormindo durante o dia. Hostilidade a homens em geral e a seu marido em particular foi algo que veio à tona de forma bastante clara. O mesmo padrão anterior, sedução e então rejeição. Queixou-se da falta de interesse de seu marido por ela mas no entanto bloqueia qualquer tentativa de aproximação feita por ele, isto é, vai para a cama uma hora antes dele é finge estar dormindo quando ele se deita. Consegui entender algo disso e concordou que isso expressava um ressentimento interior. Seus sintomas desapareceram e deixou de vir ao consultório. No final não dormia mais no metrô nem no ônibus, exceto quando vindo à consulta. Não houve mais contato até dois meses atrás, quando telefonou marcando uma consulta. Livre das dores de cabeça por cerca de sete anos, isto é, até os últimos quatro anos quando © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
265
elas voltaram. Aparentemente levou quatro anos para decidir-se a voltar às consultas. Tem trabalhado no escritório de um grande hospital e um dos médicos sugeriu que fosse examinada. Passou por todos os departamentos e tudo foi negativo. Então, ela disse: “Tomei todos os remédios existentes e nenhum deles funcionou.” Então foi ao departamento neurológico e nada foi encontrado sendo-lhe aconselhado que procurasse o departamento de psiquiatria o que recusou. Disse: “Já era suficientemente desagradável conversando aqui, eu não queria conversar com eles.” Foi submetida a exercícios de relaxamentos e quando esses terminaram a sua dor de cabeça estava pior do que antes. Quando chegou era a mesma mulher bem-vestida, bem defendida, sedutora, bastante preciosista. Bem conservada, aparência jovem. Veio ver-me devido ao fato de que alguma de suas amigas disseram de que o hipnotismo era uma coisa muito boa e será que eu poderia recomendar o hipnotista a ela? Eu poderia, é claro, ter feito isso facilmente, mas eu estava curioso e não queria perdê-la, especialmente porque sabia que um relatório de acompanhamento seria pedido mais cedo ou mais tarde. Eu detesto hipnotismo. Suponho que todos nós já fizemos algumas incursões nele e muitos de nós se encheram dele. Eu sempre me senti um pouco charlatão e nunca obtive nenhum resultado que durasse. Mas, como eu não queria perdê-la e como de qualquer maneira o hipnotismo não dura muito, eu disse que eu o faria por algumas vezes para ver se ela auferia algum benefício. Assim, começamos cada sessão com cerca de cinco minutos de hipnotismo e então veio a primeira surpresa. Para uma mulher com sintomas histéricos eu esperava que ela aprofundasse facilmente, mas não o fez. Ela atingiu um nível muito moderado de hipnose leve mas não foi além. Passou-se bastante tempo antes que seu objetivo se tornasse claro e que eu pudesse ver que jogava comigo no seu antigo padrão de sedução e rejeição. Convidando-me a uma espécie de relação sublimada hipnótica-erótica e ao mesmo tempo mantendo-me afastado. Ela sofreu duas tensões especiais: sua filha abandonou o lar e mora em um apartamento com outras moças; e ela própria teve um caso com um escandinavo por cinco meses antes que as dores de cabeça reaparecessem. O caso terminou uma vez que ele teve que sair de Londres, mas não precisaria ter terminado se ela não quisesse. Seu marido descobriu sobre esse caso e ela confessou; mas parecia que ela queria que ele o descobrisse e estou certo que ela poderia ter facilmente enganado a ele e feito com que ele esquecesse sobre isso. Neste meio tempo ele tinha se tornado ciumento de outros homens que dedicavam atenção a ela. Ela disse que foi um grande choque para ele; ele perguntou se ela queria o divórcio e ela disse que não. Daí em diante o marido alterou seu comportamento; antes costumava passar as noites fora de casa e ela se considerava negligenciada, agora ele fica em casa o mais que pode e passou a solicitá-la muito sexualmente. Ela se queixa disso tanto quanto se queixava de sua falta de atenção anterior. Se pelo menos ele me deixasse sozinha etc. Sentiria ela o mesmo se isso ocorresse com seu amante escandinavo? Bem, é, não. O escandinavo vestia-se sempre de maneira imaculada enquanto que o marido é sempre um pouco descuidado. (O pai era sempre um dandy em relação às suas roupas.) As dores de cabeça eram tipicamente durante os fins de semana. Desapareciam durante o dia e durante a semana quando estava fora de casa, trabalhando em seu escritório. A filha a aborrece por vir vê-la aparentemente apenas quando precisa de alguma coisa, seja roupa de cama para seu apartamento ou algo semelhante. Ela não gosta de sentir que está sendo utilizada. O que apareceu de novo foi ela falar continuamente a respeito de querer uma casa própria com sua própria porta da frente e com um jardim em volta separando-a de seus vizinhos, o que não parece ter relação com sua vivência infantil, era como se essa atitude fosse ditada pela profissão de seu pai que o obrigava a viver com a família nas casas de outras pessoas. Na verdade em todos os seus empregos ele teve uma casa própria e assim esse seu desejo não se pode originar nessa fonte. Após oito entrevistas, as dores de cabeça tinham praticamente desaparecido e então ela as interrompeu para viajar nas suas férias de verão com seu marido. Eu pensei que ela © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
266
tivesse ganho um pouco de visão quanto ao seus problemas e notei que seus ressentimentos em relação ao seu marido eram parcialmente realistas e parcialmente determinados por sua vontade de que ninguém chegasse ao nível do quadro infantil de seu pai imaculado. Ela disse que me telefonaria quando voltasse de suas férias, o que fez. Disse que suas dores de cabeça haviam desaparecido completamente embora o marido estivesse estado com ela todo o tempo. Havia ocorrido a usual (para ela) demanda sexual excessiva, mas isso aparentemente não desencadeou as dores de cabeça. Veio ver-me e as dores de cabeça haviam aparentemente desaparecido e combinamos que ela me telefonaria se recomeçassem. Telefonou-me três ou quatro dias depois dizendo que as dores de cabeça tinham voltado tão intensas quanto antes e marcou uma consulta. Portanto o caso continua se desenvolvendo. Eu me encontro sem saber o que fazer. Sinto que ela está jogando comigo em relação a sua opinião de que é o desejo frustrado desse tipo de sonho que lhe dá as dores de cabeça e, no entanto, eu não acho que isso possa ser verdade. Eu me sinto um pouco aborrecido com ela e tentado a me ver livre dela, por exemplo, encaminhando-a a terapia de grupo. Eu fiz isso uma vez, sete anos atrás, mas infelizmente a terapia de grupo não funcionou e ela abandonou o tratamento; isso torna extremamente difícil para mim sugerir a mesma coisa novamente. E no entanto, além disso, minha curiosidade faz com que eu queira continuar com ela, eu mesmo. O acompanhamento está bastante de acordo tanto com nossas opiniões e predições iniciais, com uma única exceção, a saber, que a idéia de narcolepsia de base orgânica pode agora ser abandonada. O decorrer do tratamento, abrangendo no total dez anos, é típico do que chamamos “atmosfera psicológica especial da clínica geral”. A Sra. N era capaz de consultar seu médico sempre que quisesse e, em resposta a isso, o médico continuava com tanta psicoterapia quanto a situação requeresse. CASO 21 (SRA. Q, RELATADO PELO DR. N)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
O acompanhamento encontra-se incluído no Capítulo 13.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
a) Até agosto de 1960. Essa história clínica foi usada novamente no livro escrito por Michael e Enid Balint — Técnicas Psicoterápicas em Medicina, Londres e Nova Iorque, 1961 — como o Caso 1. Sua história foi acompanhada lá, até agosto de 1960 nas páginas 12-16 e 212-213. O resumo do acompanhamento é reimpresso aqui:
Com o passar dos anos a Sra. Q tornou-se mais e mais independente. Paralelamente a isso sentia que seu casamento tornava-se cada vez mais insatisfatório, principalmente no terreno sexual. Desenvolveu uma amizade com outro homem, indiano, que era gentil, generoso, gostava muito dela e a tratava de maneira carinhosa. Assim era uma pessoa completamente diferente de seu marido. Depois de algum tempo ela decidiu deixar o marido, pedindo divórcio com base em crueldade. Inicialmente mudou-se com sua criança para casa de seus pais, mas permaneceu na lista de seu médico. Os pais não aprovaram seu caso amoroso e se recusaram a tomar © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
267
conta da criança, insistindo que isso era um dever da Sra. Q. Por outro lado eles estavam dispostos a aceitá-la em sua casa. Nessas circunstâncias ela tinha que aceitar suporte por parte do seu amigo indiano. Durante esse período a Sra. Q veio ocasionalmente contar ao médico os desenvolvimentos e eventualmente pedir-lhe que fosse uma testemunha no processo de divórcio, o que ele aceitou. O Sr. Q entretanto, defendeu a causa, prometeu durante a audiência alterar sua maneira de ser e ofereceu a reconciliação que foi recusada pela Sra. Q. Nessas circunstâncias o juiz não deu o divórcio, mas deu a custódia da criança à Sra. Q. Atualmente ela está vivendo com seu amigo, oficialmente como sua governanta, fazendo frente às dificuldades de sua posição surpreendentemente bem e ela espera ter um filho dele rapidamente. Não teve nenhuma doença nos anos recentes. Nada mais se fez em relação a seus ciúmes de sua irmã e cunhado, na verdade o médico acha que ela os vê muito pouco, se é que os vê. Na opinião do médico ela certamente tornou-se mais madura, veste-se adequadamente e não é mais criança. Ela sabe que se seu marido puder provar o adultério, seu filho pode ser tirado dela. Ela diz que o ama muito mas sente que não sacrificaria sua vida e independência completamente para ele. Teve que tomar uma difícil decisão em relação a ficar com seus pais, que não a tratavam muito bem e estar certa de que poderia manter a criança, ou sair e viver com seu amigo arriscando portanto perder a criança. Após uma longa consideração e sem nenhum auxílio exterior, decidiu-se pela segunda opção. b) Restante do período. O Dr. M menciona que nesse meio tempo a Sra. Q conseguiu o divórcio de seu marido e então continua: Em meu último relatório eu lhe contei a respeito da ligação da Sra. Q com um indiano. A mulher do indiano veio para este país a fim de encontrá-lo e, embora por algum tempo a Sra. Q permanecesse em termos amistosos com ele, mesmo na esperança que ele mandaria de volta sua mulher para a Índia e se casaria ao final com ela, ela gradualmente passou a ter uma visão mais realista da situação e cerca de três anos atrás rompeu todos os contatos com ele. Ficou muito infeliz durante algum tempo, mas empregou-se então como vendedora, o que a levava por toda a Inglaterra. Mostrou-se muito competente e eficiente em seu trabalho, foi promovida, encontrou outro homem, mais velho, com quem casou há um mês. Tenho-a visto pouco, exceto uma ou duas vezes por ano quando aparece para me dizer como está indo. Durante esse período praticamente não teve nenhuma queixa física. Seu relacionamento com seus pais não é dos melhores, embora seu filho fique com eles. Eu acredito que ela pretenda levar seu filho para sua nova casa, mas não estou certo quanto a isso. O Dr. M adenda então a seu relatório que os pais da Sra. Q fizeram parte durante certo tempo da clínica do Dr. E, que relata a respeito deles o seguinte: A família, constituída pelos pais da Sra. Q e pelo filho dessa última, mudou-se para meu distrito e, após algum tempo, o Dr. M persuadiu-os a fazer parte de minha clínica. A Sra. Q mudou-se junto com eles mas ficou com o Dr. M. Eu achei os avós, isto é, os pais da Sra. Q, duas das mais desagradáveis pessoas com quem já me encontrei: eles sorriam fraca e insinceramente. Eu estava muito interessado nas © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
268
condições familiares devido a meu contato com o caso da Sra. Q mas, depois de certo tempo, eu me notei antipatizando completamente com os pais. O Dr. M e eu discutimos freqüentemente quão difícil é, na clínica geral, tomar conta de pacientes de outro. Vi bastante vezes a Sra. Q e devo dizer que, contrário às minhas expectativas, achei-a uma pessoa agradável, bastante diferente de seus pais. Foi difícil reconhecer nela a mesma pessoa descrita nos relatórios psiquiátricos e psicológicos de 1952. Havia deixado e se divorciado de seu marido e estava em vias de contrair outro casamento. Foi interessante observar os esforços que os pais fizeram para jogar-me contra o Dr. M. O garoto é a menina dos olhos dos avós e muito mimado. A despeito disso ele tem uma personalidadezinha bastante agradável. Ambos os pais tiveram várias doenças graves com as quais souberam lidar, no geral, de maneira satisfatória. Quando os vi pela última vez, a Sra. Q tinha partido, empregada como uma comerciante viajante no norte do país. A criança foi deixada com os avós e parecia ir muito bem. Eu acredito que desde então a família tenha se mudado de meu distrito.
Aparentemente a melhora nas condições da Sra. Q ainda está continuando. Está se tornando mais e mais independente de seus pais e paralelamente a isto tornando-se mais madura. É verdade que ela não poderia deixar de cometer alguns erros no caminho para a maturidade, mas não podemos nos esquecer que isso acontece com um número bastante grande de pessoas. E, se nos lembrarmos, como o faz o Dr. E, de condição extremamente pobre na qual a encontramos em 1952, não podemos deixar de nos impressionar pelas grandes alterações que ela foi capaz de conseguir. Indubitavelmente ainda tem um longo caminho a percorrer, logo esperemos que ela encontre, em seu novo lar no norte de Inglaterra, um novo médico tão versátil e útil quanto o Dr. M. CASO 22 (SR. V, RELATADO PELO DR. H)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
26 de janeiro de 1956. Vi o Sr. V três vezes desde o Natal. Por falar nisso, sua mulher está grávida. Quando veio pela primeira vez contou-me que havia mudado de emprego em outubro (depois de dezoito meses em uma firma na qual ele estava muito feliz). Ele tinha novamente levado a culpa de alguma coisa; ele não podia suportar isso, e deixou seu emprego. Passou o Natal com sua família, passou mal, a mudança de emprego o deprimiu muito. Uma semana depois do Natal telefonou para o gerente de sua antiga firma e perguntou se o receberiam de volta. Eu disse: “Por que você não veio me ver durante todos esses meses depois que mudou de emprego?” Ele respondeu: “Eu não queria desapontá-lo.” Ele só me veio ver depois que havia se decidido a voltar. Eles o aceitaram de volta, e disseram a ele que sabiam durante todo tempo que não havia sido seu erro. Ele repetiu a mesma situação que já tivemos antes. Eu disse: “Você disse que eu sou sua mãe e que você não quer me desapontar e que você reage a seu gerente como a seu pai. Esse medo de me desapontar existe apenas porque você me faz sua mãe, mas eu não sou sua mãe, e você poderia ter vindo.” Veio na semana seguinte quando tudo estava bem novamente; não sentia dores nem depressão. Eu acho que foi realmente um bom resultado que ele tivesse tido a coragem de voltar para sua antiga firma. Abril de 1956. Ele me telefonou na semana passada para me dizer que sua mulher teve um filho homem. Ele disse que se considera um homem de muita sorte.
Um acompanhamento extremamente interessante. Ilustra bem aquilo que chamamos a “companhia de investimento mútuo”. Depois que a psicoterapia terminou, o paciente e © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
269
o médico não se separaram mas apenas reduziram a freqüência de seus encontros. Quando problemas posteriores ocorriam, o paciente, depois de alguma hesitação, podia recorrer à ajuda de seu clínico geral e os dois podiam retomar o caminho do ponto onde haviam parado. Foi necessária muito pouca psicoterapia para reforçar os processos já em trabalho no paciente.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
a) Esse caso foi acompanhado no livro de Michael e Enid Balint — Técnicas Psicoterápicas em Medicina. Londres e Nova Iorque, 1961 — como Caso 2 até agosto de 1960 nas páginas 16-22 e 214-215. Infelizmente a estrutura do caso é tão complexa que qualquer resumo resultaria em distorção. Por conseguinte, para detalhes, eu preciso encaminhar o leitor à obra mencionada. No conjunto, com alguns altos e baixos, o Sr. V manteve-se bastante bem, teve outro filho e melhorou em seu negócio com bastante sucesso. Em 1960 ele estava tão bem que ele seriamente procurou uma casa para comprar para sua família.
b) Restante do período
O Dr. H relata: o Sr. V não comprou uma casa, mas a família está vivendo no mesmo apartamento público em meu distrito. Tudo correu aparentemente bem com ele até o início deste ano. Veio me procurar queixando-se de dores de cabeça, perda de peso e estava deprimido. Contou-me que a sociedade com seu irmão terminou e que ele foi deixado sozinho para pagar dívidas consideráveis. Seu negócio não foi bom durante os frios meses de inverno e ele foi forçado a empregar-se como motorista para entregar pão. Tinha que levantar muito cedo todas as manhãs, trabalhava nisso até meio dia e de tarde continuava com suas decorações. Nesse mesmo período o pai de sua mulher estava muito doente no hospital, em conseqüência de uma hemorragia cerebral e ele me visitou logo após a morte de seu sogro. Discutimos a identificação com seu próprio pai e com seus medos de morte; pedi-lhe que viesse ver-me novamente, mas — como em ocasiões anteriores — não manteve o compromisso. Não o vi novamente como paciente, mas o empregamos novamente para redecorar nossa velha casa no ano passado e como havia um pequeno conserto para ser feito eu utilizei a oportunidade para entrar em contato com ele alguns dias atrás. Ele largou seu emprego de motorista e está trabalhando agora por conta própria como decorador. Parece estar bastante ocupado e satisfeito. Desculpou-se por não ter voltado, mas achou que não era necessário. Sua mulher trabalha como governanta para uma senhora de idade, em meio expediente. Ela raramente vem ao consultório agora. Ela e sua mãe estão muito melhores desde que seu pai, que por muitos anos foi um homem doente, morreu. A filha da Sra. V desenvolveu-se em uma moça de boa aparência e trabalha como operadora de comptômetro. Os dois meninos vão à escola e ambos são vivazes e fortes.
Aparentemente a “companhia de investimento mútuo”, mencionada em meu comentário sobre o relatório do período anterior, ainda está funcionando bem para ambos os sócios: tanto para o paciente quanto para o médico. Se nós lembramos do relatório original do hospital de 1950, e do relacionamento que se desenvolveu sob sua influência entre o Sr. V e os médicos do hospital e então comparamos isto com sua presente situação e com seu presente relacionamento com o Dr. H, não podemos deixar de nos impressionar pela imensa diferença. Essa diferença foi provocada pela psicoterapia, realizada por um clínico geral. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
270
CASO 23 (SRTA. S RELATADO PELO DR. R)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Janeiro de 1956. A Srta. S trouxe seu marido para apresentá-lo a mim. Estão prestes a se mudar de Londres; ele conseguiu um emprego em uma cidade da província e eles vieram dizer adeus logo antes do Natal de 1955. Nesse período tudo estava satisfatório.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
O Dr. R não teve mais contato com a paciente. CASO 24 (SR. P, RELATADO PELO DR. H)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Não soube de mais nada. É uma pena, mas aparentemente o Sr. P pertence ao grupo de pacientes que desaparecem depois que a psicoterapia concluiu-se com sucesso. Seria interessante saber quais serão os resultados finais em alguns anos.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
O Dr. H não recebeu nenhuma notícia do Sr. P. CASO 25 (SRA. T, RELATADO PELO DR. S)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
A Sra. T durante um período de alguns meses após a renovação de nosso relacionamento comportou-se suave e gratamente por algumas intervenções em benefício das crianças. Para si mesma apenas pediu repetições de uma receita de anti-histamínico que eu lhe receitei há quatro anos para uma condição alérgica nasal. Ela continuou fazendo uso dessa substância mais ou menos sem interrupção e geralmente a solicitava por telefone. Um dia, entretanto, compareceu com uma queixa de dor abdominal baixa, insistindo que se tratava de uma doença ginecológica. Eu me permiti ser seduzido a um exame. Pareceu desapontada acerca de meus achados negativos e de minha rejeição a seu pedido de ser enviada a um especialista e aparentemente procurou logo um colega da vizinhança, novo para ela que lhe deu uma carta encaminhando-a a um especialista. No dia seguinte ela mandou os seus cartões para mim, com o pedido de assiná-los com a transferência para o outro médico. Algumas semanas depois eu soube que nenhum problema orgânico foi encontrado no hospital. Seu marido, que encontrei uma vez, respondeu-me a uma pergunta acerca de por que sua mulher tinha largado minha clínica dizendo: “O senhor conhece essas mulheres.” © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
271
PERÍODO 2,
TERMINADO EM
30
DE JUNHO DE
1963
A Sra. T deixou o distrito cerca de cinco anos atrás. Não teve mais contato comigo, mas soube através do patrão de seu marido que ela contraiu tuberculose pulmonar. A despeito de todos os esforços feitos pelo médico, nenhum relacionamento duradouro pôde ser estabelecido com essa mulher. Esses esforços incluíram todo tipo de exames médicos, tentativas de compreensão de seus problemas emocionais, tolerando seu comportamento cada vez pior com paciência, usando estritamente o bom senso para educá-la no sentido de mudar seu desagradável comportamento etc. Nada disso adiantou. O erro não estava nos métodos, cada qual deles sensato em si mesmos; o problema era que o “médico” não foi capaz de entender nesse caso os problemas individuais da paciente e, em conseqüência, não pôde descobrir uma maneira de aproximar-se dela de forma significativa — quero dizer, significativa para a paciente. CASO 26 (SR. Z, RELATADO PELO DR. G)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
Janeiro de 1956. Compareceu no princípio de dezembro — foi visto por meu substituto, que deixou uma nota com uma longa lista de suas queixas. Foi visto por mim alguns dias depois, queixou-se amargamente de vertigens. Não estava muito amistoso. “Deve haver algo errado. O senhor não acha que eu deveria ver um especialista e descobrir o que há realmente?” Enviado a um especialista — relatório: “Uma longa lista dos sintomas, n.d.n. organicamente; os sintomas são funcionais. Ele é um verdadeiro e antiquado hipocondríaco.” Não ofereceu nenhuma sugestão para tratamento, na verdade sentia-se um uso bastante afeiçoado do termo “hipocondríaco antiquado” — algo como “os bons dias de outrora”. Foi incluído na lista de doentes e permaneceu nela por seis semanas. Não podia pegar o ônibus, sentia-se muito fraco. “O senhor acha que eu devo largar o emprego e conseguir um outro mais perto de casa, que não me obrigue a esperar o ônibus?” e em seguida, “todos parecem achar que eu estou uma pilha de nervos, será que devo consultar um ‘médico de nervos’?” Dei-lhe uma recomendação para ver nosso psiquiatra local. Relatório: “Neurose de ansiedade crônica, com sintomas histéricos de ansiedade desde a Primeira Guerra Mundial. Não acho que consiga sobreviver sem seus sintomas agora e temo que nenhuma forma de psicoterapia ambulatorial venha a ter efeitos.” Eu o vi duas vezes ainda depois disso, ainda descompensado, embora não agressivo. Ele ainda gosta de mim, mas não estava contente nem orgulhoso de suas incapacidades no momento. Ele apareceu relutantemente em 14 de janeiro, e eu não o tenho visto desde então — um longo período para ele! Como disse em minha nota anterior, o verme voltou com uma vingança e realmente me abalou, uma vez que eu tinha sentido situação sob controle, a despeito de suas sugestões em contrário. Um outro relatório em 17 de fevereiro. Ele veio. Sua velha atitude estava lá — “eu não vi o senhor durante cerca de um mês” triunfalmente. Queixou-se de dores no peito e tosse. Mostrava-se amistoso, não agressivo e não especialmente deprimido. Admitiu estar se sentindo um pouco melhor, embora ainda fraco. Ele disse: “O senhor é um psiquiatra melhor do que aquele do hospital!” Por conseguinte, voltou a sua antiga forma. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
272
Aparentemente as coisas se assentaram, o antigo acordo entre o paciente e médico novamente trabalhando. Mas nós não sabemos a respeito de que foi a crise, porque aconteceu exatamente próximo ao Natal, se é apenas um caso isolado sem maiores conseqüências, ou uma grave indicação de que a tensão do Sr. Z está se tornando grande demais. Tentar obter esse tipo de informação teria provavelmente significado quebrar o acordo, e nem o psiquiatra e nem o Dr. G estão dispostos a tanto — por motivos óbvios. Ser deixado em paz com sua doença é mais do que o Sr. Z podia suportar, e logo ele teve que voltar a seu médico. Talvez a curta rebelião, demonstrando uma vez mais que seu médico era realmente um médico “mau” e impotente, tornou a volta mais fácil. Devemos perguntar, entretanto, durante quanto tempo durará a presente paz.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
Desde as últimas notas a respeito, ele apresentou: 1) anemia perniciosa (para a qual está recebendo injeções regulares de Cytamen) e 2) um discreto enfarte do miocárdio. É um caráter transformado, aparece apenas para seus comprimidos necessários de Cytamen. Ele é aparentemente um homem normal e não exibe seus sintomas hipocondríacos anteriores. Somos ainda camaradas, mas com uma atmosfera discretamente mais séria em nossas transações, quase como se ele agora realizasse que o que eu estou prescrevendo para ele é realmente necessário e lhe fará bem. No passado, o sentido de sua aceitação do remédio era provar que eu era impotente para melhorá-lo. Ele era a prova contra toda a minha mágica, eu era impotente. Eu me tornei agora um mágico muito mais poderoso. Na verdade nossas negociações foram conduzidas em um nível mais prático e sério. Suas condições orgânicas encobriram sua neurose. Na verdade, eu acho que a anemia perniciosa e o enfarte do miocárdio paradoxalmente o curaram, embora o último possa eventualmente matá-lo.
Um desenvolvimento muito intrigante, que mereceria um estudo de pesquisa apropriada. Aparentemente o Sr. Z pôde tolerar um médico “mau” apenas enquanto ele estava certo que sua vida não estava em perigo. Parece que enquanto ele sentia que sua vida estava a salvo, a coisa mais importante para ele era manter sua superioridade e para isso não importava que ele tivesse que pagar com considerável sofrimento e ansiedade. O trauma do enfarte do miocárdio mudou a situação fundamentalmente. Como o Dr. G, quase certamente de forma correta aponta, o Sr. Z fez seu médico tornar-se um “mágico muito mais poderoso”. E isso pode ser verdadeiro em todos os sentidos, tudo o que seu médico prescreve pode ter um bom efeito, senão ele (o Sr. Z) cairia presa de intolerável ansiedade. Seria muito interessante descobrir como essa mudança influenciou as outras áreas de sua vida cotidiana, especialmente seu relacionamento com seus colegas de trabalho e sua mulher. CASO 27
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
O médico não ouviu falar da família desde o rompimento, embora eles não tenham retirado seus nomes de sua lista. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
273
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
O médico não teve mais contato com a família, exceto que por ter sido informado que eles se haviam mudado para a lista de outro médico. Algum tempo atrás ouvimos de alguns vizinhos que a família havia deixado o distrito. Ele também não procurou o especialista desde os eventos relatados. CASO 28 (RELATADO PELO DR. S)
PERÍODO 1,
TERMINANDO EM
31
DE DEZEMBRO DE
1955
A paciente, embora ainda em minha lista, não voltou desde a consulta relatada.
PERÍODO 2,
TERMINANDO EM
30
DE JUNHO DE
1963
O médico não viu mais a paciente desde a consulta, mas soube através da irmã da paciente que logo após ele haver relatado a sua consulta com ela ao Seminário, a paciente encontrou um viúvo do Canadá, casou-se com ela, e — de acordo com a irmã — vive feliz no Canadá. SUMÁRIO DAS PREVISÕES Para determinar a fidedignidade de nosso nível “mais profundo” de diagnóstico, examinemos agora até que ponto nossas afirmações originais nos anos de 1952 a 1954 foram confirmadas pelos casos durante os dois períodos de acompanhamento. Isso seria um procedimento extremamente simples, exceto pelo problema causado pelos pacientes que deixaram seus médicos. Há várias maneiras pelas quais o fato de deixar o médico pode ser tratado. Primeiro pode-se encarar esse fato como um acidente externo com o qual nem o paciente nem o médico nem o tratamento tiveram nada a ver. Conseqüentemente, se o médico não ouve mais falar a respeito de seu antigo paciente, o caso deverá ser classificado como “sem acompanhamento disponível”. Este procedimento seria objetivo e inequívoco, mas deixaria de lado um grande número de diferenças altamente importantes e poderia levar a algumas inferências infundadas ou mesmo erradas. Para mostrar o que quero dizer, posso citar o Caso 23, no qual o médico com sucesso resgatou uma jovem à beira da neurose, ajudou-a a desenrolar de uma complicada situação familiar e tornou-a capaz de encontrar um companheiro aparentemente satisfatório. Como o marido empregou-se em uma parte distante das Ilhas Britânicas, a paciente veio dizer adeus a seu médico e desde então nada foi ouvido a seu respeito. Comparemos essa situação com a do Caso 1, na qual uma mulher após muitos anos de tentativa persistente ainda se sentia mal entendida pelo seu médico, começou a vagar pelos sócios do consultório e eventualmente sentiu-se compelida a mudar para outro médico do mesmo distrito. Ou, como no Caso 5, no qual fizemos uma previsão de que uma crise séria poderia ser a conseqüência dá maneira pela qual o médico tratou sua paciente. A crise na verdade durou por muitos anos, a desconfiança criada por ela desaparecendo apenas gradualmente, mas então — aparentemente por uma razão externa — a família decidiu abandonar o distrito. Não pode haver dúvidas que esses três casos representam três situações dinâmicas inteiramente diferentes e não devem ser agrupados juntos. Se, entretanto, tentássemos encontrar © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
274
o verdadeiro significado do abandono do paciente e classificar o caso de acordo com isso, o procedimento teria sempre alguns elementos subjetivos e não poderia evitar ser alvo de equívoco. No sentido de tentar evitar ambas essas críticas, usarei ambos os métodos. Como mencionado no preâmbulo deste apêndice, no final do período 2, isso é, em 30 de junho de 1963, de nossos 28 pacientes originais haviam oito com os quais ainda seus médicos tinham contato (em suas listas). É algo incerto se o Caso 21, para o qual fizemos um prognóstico favorável originalmente, abandonou ou não seu médico ao final. Há dois casos sobre os quais não sabemos nada: um é o Caso 6, cujo médico abandonou o Seminário em nossos primeiros estágios e sobre quem não pudemos descobrir nada; o outro é o Caso 14, para o qual demos um prognóstico favorável e fomos capazes de acompanhar até o final do Período 1, entretanto, esse médico abandonou a clínica durante o Período 2 e deixou Londres; logo nós não sabemos o que aconteceu a seu paciente. Esses dois casos devem ser classificados como verdadeiramente “desconhecidos”. Quero repetir que esses dados são tão objetivos quanto os dados podem ser; por exemplo, eles poderiam ser obtidos por um simples questionário pedindo aos médicos para assinalar se o paciente X estava ou não em contato com ele ainda. Estatisticamente eles são altamente significantes. Onde cerca de metade — dez entre 19 — dos pacientes com prognóstico reservado mantiveram contato com seus médicos, apenas um em nove desses com prognóstico desfavorável o fez. Conversamente, isso significa que com base em nosso diagnóstico “mais profundo” fomos capazes de predizer, com quase 90% de probabilidade, que certos pacientes abandonariam seus médicos. Além disso, uma expressão mais detalhada de nossa Tabela IV mostra que mesmo o tempo do período de abandono pode ser previsto. Quatro casos com prognóstico desfavorável abandonaram dentro de dois anos e outros dois casos, 2 e 12, abandonaram logo após dois anos e apenas um caso, o 5, ficou consideravelmente mais tempo. Entretanto, como não demos especial atenção ao tempo de abandono em nossas predições, eu não posso seguir essa questão tão interessante mais longe. Vejamos agora o outro método, com base no julgamento clínico. Isso significa examinar cada caso detalhadamente, no sentido de observar até que ponto as predições originais foram confirmadas pelas observações clínicas. Esse método, é claro, permite uma gradação muito mais fina, mas inevitavelmente conterá alguns elementos subjetivos. Demos um prognóstico favorável para os casos 1, 7, 11, 13, 14, 16, 21, 22, 23 e 24. Desses, ao final do primeiro período, os casos 7 e 24 abandonaram seu médico. É verdade que cada um deles tinha razões externas que os compeliam ao abandono e esses foram francamente discutidos com os médicos. Além disso, ambos fizeram uma visita de despedida e nessa época não havia indicação de alguma mudança que fosse ocorrer em suas condições. Ainda deve ser apontado que nenhum deles entrou em contato com seus médicos desde então; é verdade também que o Caso 7 era uma mulher irlandesa simples, da qual não se podia esperar que escrevesse cartas e a história do Caso 24 é tal que torna compreensível o fato que o paciente não queira ser relembrado de seu passado. Embora a
Tabela
III
Prognóstico Original
Total
Ainda em Contato em 30.6.63
Favorável Reservado Desfavorável
10 9 9
Casos 11, 13, 16, 22 Casos 8, 15, 17, 19, 20, 26 Caso 9
Total geral
28
Total 4 6 1 11
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
275
Tabela
IV
Prognóstico Original
Total
Abandonaram no Período 1
Abandonaram no Período 2
Total
Favorável Reservado Desfavorável
10 9 9
Casos 7, 24 Caso 25 Casos 3, 4, 18, 27
Casos 1, 23 Casos 10, 28 Casos 2, 5, 12
4 3 7
Total geral
28
14
Sra. V, Caso 13, tenha vindo com seu novo marido para dizer adeus a seu médico antes do Natal de 1955, foi apenas em 1956 que seu nome foi removido da lista do médico. Desde então não houve mais notícias a seu respeito. Mais ou menos o mesmo aconteceu à Sra. Q, Caso 21, próximo ao fim de nosso segundo período de acompanhamento, mas tanto quanto sabemos seu nome ainda não foi removido da lista do médico. Portanto, nós a rotulamos como “incerta”. Verdadeiramente “desconhecido” é apenas o Caso 14, cujo médico, mencionado acima, abandonou sua clínica. Foi apenas em um caso, o Caso 1, que o nosso prognóstico original foi completamente revertido. Isso já foi feito de saída com base no primeiro relatório de acompanhamento, e os eventos subseqüentes confirmaram o prognóstico revertido; o paciente abandonou a clínica do médico desapontado. Para resumir: Um prognóstico reservado foi dado para os Casos 8, 10, 15, 17, 19, 20, 25, 26 e 28. Desses, os Casos 17, 20 e 28 podem ser considerados como tendo confirmado nossas previsões iniciais. O Caso 19, Peter, desenvolveu-se muito melhor do que esperávamos; isso já era perceptível no primeiro relatório de acompanhamento, mas o segundo relatório de acompanhamento é tão bom que seu prognóstico deve alterar-se de reservado para favorável. Os Casos 8 e 10 parecem, ao término do nosso primeiro período de acompanhamento, desenvolver-se melhor do que o esperado; essa impressão, entretanto, não foi confirmada pelos eventos subseqüentes, portanto acho que nossas conclusões originais devem permanecer inalteradas. Entre os restantes, o Caso 25 abandonou ao final do primeiro período, enquanto que os Casos 10 e 28 abandonaram na primeira parte do segundo período. Em todos esses três casos foi possível obter mais ou menos informações fidedignas acerca das condições dos pacientes. Estas informações, bem como suas maneiras de deixar seus médicos, são, em minha opinião, uma boa evidência confirmatória de nosso prognóstico reservado. Entretanto, nos Casos 25 e 28 o abandono tinha sido previsto. O Caso 15 é difícil de classificar, o paciente abandonou a lista do médico próximo ao final do nosso primeiro períoTabela V Prognóstico Favorável Prognóstico
Paciente
Casos
Confirmado
Ainda com o médico Incertos Abandonaram no Período 1 Abandonaram no Período 2 Abandonou
11, 13, 16, 22 21 7, 24 23 1
4 1 2 1 1
14
1
Alterado para desfavorável Desconhecidos
Total geral
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
276
Total
10
do de acompanhamento, mas permaneceu em contato com ele através de sua mãe e também diretamente. Além disso, embora ela haja desenvolvido um diabete recentemente, de acordo com o último relatório de acompanhamento ela parece estar bem ajustada. Portanto, por enquanto, seu prognóstico deve permanecer inalterado. Um prognóstico reservado foi dado para os Casos 2, 3, 4, 5, 6, 12, 18 e 27. O Caso 6 não pôde ser acompanhado porque o médico responsável abandonou o Seminário; é realmente “desconhecido”. Foi previsto que os Casos 3, 4, 18 e 27 abandonariam seus médicos e não manteriam nenhum contato com eles no futuro; todos abandonaram durante o Período 1 e os médicos não tiveram mais notícias deles desde então. Os Casos 2 e 12 abandonaram seus médicos no princípio do Período 2; seus relacionamentos até esse ponto e seu modo de abandonar confirmam nossas predições. Como discutido em detalhe em meus comentários no segundo relatório de acompanhamento, é muito difícil de classificar de maneira adequada o Caso 5. É possível que o paciente tenha conseguido atravessar a crise prevista, em cujo caso seu prognóstico desfavorável deve ser alterado para “reservado”, mas é igualmente possível que seu abandono fosse um sintoma tardio da mesma crise. Nesse caso nossas conclusões originais devem permanecer inalteradas. Como não há evidência de peso para uma mudança, eu adotei uma política mais conservadora e deixei seu prognóstico inalterado. No Caso 9, os eventos subseqüentes, pelo ao menos até 1962, provaram que, contrário ao esperançoso primeiro relatório de acompanhamento, nosso prognóstico desfavorável inicial estava mais próximo da verdade. É possível, entretanto, que no último ano uma melhora definida teria tido lugar em relação as condições do paciente. Como isso é ainda duvidoso, deixei o paciente com seu prognóstico inalterado. Em conclusão, a fidedignidade de nossas previsões tomadas com base em julgamento clínico podem ser resumidas de forma concisa na Tabela VIII. O que nos dizem esses dados? Evidentemente os achados contidos na Tabela III reaparecem na Tabela VIII. Vemos que mais de metade — exatamente 11 de 19 — dos pacientes com prognóstico favorável ou reservado mantiveram-se em contato com seus médicos, enquanto apenas um paciente entre os nove com prognóstico desfavorável o fez. Entretanto, as previsões com base no julgamento clínico, como era de se esperar, podem oferecer uma gradação mais fina. Se entre os 12 pacientes que mantiveram contato com seus médicos, isto é, aqueles nas Colunas 1, 2, 5, em apenas um caso nossa previsão foi alterada de “reservado” para “favorável” (Caso 19, Peter). Nos outros 11 casos a observação clínica direta confirmou nossas previsões. Igualmente, levando-se em consideração os 14 pacientes que abandonaram seus médicos, isto é, aqueles das Colunas 3, 4 e 6, aqui também em apenas um houve necessidade de alterar o prognóstico de “favorável” para “desfavorável” (Caso 1, Sra. C). Em todos os outros 13 casos, tanto o abandono quanto o modo de se realizar esse abandono foi previsto e realizou-se de acordo com o que esperávamos. Nos Casos 6 e 14 perdemos contato com os médicos e portanto temos que classificá-los como “desconhecidos”. Tabela VI Prognóstico Reservado Prognóstico
Paciente
Casos
Total
Alterado para favorável
Ainda com o médico
19
1
Confirmado
Ainda com o médico
8, 15, 17, 20, 26
5
Abandonaram no Período 1 Abandonaram no Período 2
25 10, 28
1 2
Total geral
9
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
277
Tabela VII Prognóstico Desfavorávels Prognóstico
Paciente
Casos
Total
Confirmado
Ainda com o médico
9
1
Abandonaram como previsto no Período 1
3, 4, 18, 27
4
Abandonaram no Período 2
2, 5, 12
3
6
1
Total geral
9
Desconhecidos
Ou, para colocar os mesmos achados em uma forma diferente, um acompanhamento de quase dez anos mostrou que nós não éramos quando damos um prognóstico desfavorável para um paciente, mas em aproximadamente 10% dos pacientes com prognóstico favoráveis ou reservados, nossas previsões eram incorretas. Na verdade, como aconteceu, em um caso demos um prognóstico melhor e no segundo um pior do que aqueles provados pelos eventos; portanto é pouco provável que tenhamos sido vítimas de um erro sistemático, tal como uma tendência constante a sermos muito otimistas ou muito pessimistas quanto a nossas previsões. Uma palavra a respeito da aparentemente alta taxa de abandono dos pacientes com prognósticos favoráveis. Sua causa principal é que esse grupo continha duas mulheres jovens que foram suficientemente ajudadas pelo tratamento para criar sua própria personalidade ou casaram durante o primeiro período de acompanhamento (Caso 23) ou casaram novamente durante o segundo período (Caso 21). Como em ambos os casos os maridos viviam em uma cidade distante de Londres, seus casamentos levaram a uma perda de contato com os médicos. Além dessas duas, havia apenas mais uma jovem que se casou entre os 28 casos. Era o Caso 10, com o prognóstico reservado. Não houve tal caso entre os pacientes com prognóstico desfavorável. Finalmente o problema provocado pelo grupo algo misturado de pacientes de prognóstico reservado. Indubitavelmente alguns dos pacientes, como o Caso 19 e possivelmente o Caso 8, poderiam ter sido agrupados entre os pacientes com prognóstico favorável, enquanto que outros, como os Casos 25 e 28, poderiam ter sido classificados como desfavoráveis. Embora justificada até certo ponto, essa classificação teria ainda deixado numerosos pacientes com um prognóstico verdadeiramente reservado, com os Casos 10, 15, 17, 20 e 26 e portanto o ganho teria sido muito pequeno. Mesmo assim, quero declarar que o grupo “reservado” é menos homogêneo que os outros dois. Suponhamos agora que tenhamos boa sorte e que uma terceira edição revista venha a ser requerida em alguma data futura. O que se pode esperar de um terceiro acompanhamento? Primeiro, precisamos estar preparados para o fato de que mais alguns entre os médicos terão abandonados suas clínicas ou mesmo de que alguns de nós não estarão mais aqui. Evidentemente o mesmo pode ser verdade quanto aos pacientes. Conseqüentemente, o que podemos esperar são algumas informações posteriores interessantes acerca de um ou de outro dos casos; mas, uma vez que os “desconhecidos” e os “abandonaram o médico” aumentarão inevitavelmente, o valor dos dados coletados irá diminuir. Essa apreciação, bastante sombria mas realista, de nosso futuro foi a razão pela qual adendei esse sumário algo ao relatório de acompanhamento do presente Período 2. © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
278
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
279
4
5
1
10
Reservado
Desfavorável
Total
Paciente ainda com o médico
1
Favorável
Prognóstico
Coluna
1
—
—
1
Incerto se o paciente abandonou
Confirmado
2
4
7
4
1
2
no Período 1
6
3
2
1
no Período 2
Paciente abandonou
3 Alterado
1
—
1
—
para melhor: paciente ficou
5
1
—
—
1
para pior: paciente abandonou
6
Tabela VIII No Final do Período 2 (30 de Junho de 1963)
2
1
—
1
Desconhecido
7
28
9
9
10
Total
8
Quero repetir que nossos 28 casos não são uma amostra representativa; além disso, é bastante possível que com um número maior de pacientes com talvez problemas mais complexos e certamente com menos tempo e entusiasmo a nossa disposição os resultados de nossas previsões poderiam ter-se provado piores. Mesmo assim, acho que é valioso lembrar que foi numa pesquisa bastante bem documentada esses resultados foram obtidos. Esse fato pode encorajar alguns pesquisadores a realizar experiências com um enfoque parecido ao nosso. Devo também acrescentar que temos registro de mais de 200 pacientes discutidos pelo mesmo grupo de médicos durante a pesquisa original, isto é, entre os anos de 1952 a 1955. Seria um projeto muito interessante usar esses escritos como base para previsões e então pedir aos médicos que as coloquem à prova acompanhando os pacientes. Isto, entretanto, seria uma tarefa realmente difícil, que necessitaria de subsídios consideráveis.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
280
Apêndice
4
Função Adicional da Clínica Psicológica POR JOHN D. SUTHERLAND
Durante a assimilação da técnica psicoterápica do tipo descrito, o processo de aprendizagem reveste-se de dois aspectos. Por um lado se trata da organização do conhecimento e da experiência das manifestações psicológicas, e por outro existe, pelo menos durante um período considerável de tempo, o processo de adaptação da própria personalidade do médico, à medida que descobre em outros perturbações emocionais de significação particular para ele próprio. Ambos os aspectos se acham inter-relacionados e sua influência conjunta pode demorar a aprendizagem. Certamente se pode afirmar que a fixação de um limite de tempo ao período de treinamento psicoterápico é relativamente uma questão arbitrária, porque o processo da aprendizagem continua durante muitos anos. Entretanto, do ponto de vista prático, é preciso atribuir um limite de tempo ao chamado “período de treinamento”; mas o que ocorre depois deste período reveste-se de importância considerável para a clínica. Vários dos clínicos gerais que tinham completado seminários expressaram desejo de manter uma relação permanente com um psiquiatra especializado, com o fim de discutir seus respectivos casos ou pelo menos para ter uma oportunidade de fazê-lo de maneira conveniente. Neste tipo de trabalho se repete constantemente uma situação que obriga o clínico geral a buscar conselho: “Procurei ajudar o Sr. ou a Sra. X, que sofre certas doenças deste ou daquele modo. As coisas não vão bem, e qual pode ser a origem do problema.” Precisamente quando se suscita esse tipo de problemas o informe escrito é, em regra geral, de muito escasso valor. Em realidade o clínico geral necessita discutir seu caso com o especialista, e para isso necessita conhecêlo suficientemente bem, com o fim de falar livremente sobre suas próprias e eventuais contribuições à relação médico-paciente. Pela mesma razão o especialista deve ter conhecimento bastante completo do clínico geral, para estar em condições de julgar como pode haver afetado ao paciente a contribuição do profissional. Por conseguinte para que a ajuda seja eficaz, o médico e o especialista devem manter uma relação suficientemente pessoal para que ambas as partes falem francamente. A ajuda permanente através de seções individuais é um método um tanto custoso quando se trata de tempo de um especialista, pelo que se dispôs que um dos consultantes do pessoal da Clínica manteria um horário semanal fixo para atender as consultas dos © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
281
ex-membros dos distintos cursos. Esta forma de organização tornou-se efetiva e econômica. Naturalmente os clínicos gerais já haviam conseguido conhecer-se bem durante o período de treinamento, de modo que se tomava fácil colocar seus respectivos casos frente aos colegas no curso dessas conferências. Poucos eram que assistiam regularmente a todas as reuniões e a maioria vinha quando desejava apresentar um caso. Os mais antigos membros do pessoal da Clínica Tavistock chegaram a conclusão que consagrar parte de seu tempo a essas “conferências” permanentes constitui uma função extremamente valiosa da clínica especializada num centro comunitário de saúde mental. Não há dúvida de que quando o especialista pode dedicar certa parte do seu tempo à formação e manutenção de certo número de clínicos gerais interessados nos problemas psicológicos, realizam uma contribuição a provisão de psicoterapia em escala adequada as necessidades da comunidade, mais eficaz do que se obteria se ele mesmo tentasse realizar o tratamento. Este tipo de trabalho com os clínicos gerais foi considerado tão importante pelos especialistas da Clínica Tavistock como contribuição aos serviços de saúde mental, que durante os últimos anos têm sido criadas outras formas paralelas de organização. Assim, ao mesmo tempo que se formaram grupos de clínicos gerais, procurou-se satisfazer às necessidades de outras profissões cujos membros podem desempenhar também importante papel no enfoque dos problemas psicológicos, quando a intervenção da clínica psiquiátrica pudesse ser inapropriada. Esses grupos receberam a oportunidade de adquirir certa capacidade psicoterápica, precisamente como se fez nos casos dos clínicos gerais, e logo se continuou prestando ajuda sob a forma de conferências regulares. Até agora esses grupos incluíram psiquiatras que não possuíam uma particular formação psicoterápica, assistentes sociais ocupados em problemas conjugais, médicos interessados em problemas do bem-estar da mãe e da criança, funcionários sanitários e funcionários judiciais. Por conseguinte nossa experiência durante os últimos anos nos sugeriu a idéia de que, para aumentar os recursos de nosso serviço de saúde mental, a clínica especializada em psicologia deve satisfazer duas funções: 1) o tratamento das condições mais graves e mais complicadas; 2) a) a formação de clínicos gerais e de outros grupos profissionais; b) a manutenção de permanente relação de consulta com esses grupos por meio de conferências regulares. É impossível definir os limites do tipo de caso que o médico geral pode encarar, pois muito depende de sua personalidade, da capacidade técnica adquirida e do grau de ajuda especializada que pode dispor. Entretanto, o ponto principal consiste em que se mantenha uma relação permanente e portanto pessoal com o especialista, ele poderá realizar boa quantidade de trabalho que de outro modo lhe seria impossível abordar. Em nossa experiência comprovamos que quando esses diferentes grupos sabem utilizar o conhecimento altamente especializado e a capacidade técnica do psicoterapeuta, é possível realizar um bom trabalho, dentro dos limites das técnicas ensinadas. A relação permanente através das conferências regulares exclui a necessidade de que o clínico geral ou qualquer outro tipo de colaborador realize tarefas superiores as suas forças, ficando salvaguardados os interesses de todas as partes, paciente, clínico e especialista. Dessa colocação se deduz outra implicação de interesse para a clínica que destina parte do tempo dos seus especialistas, a saber, que os especialistas, ou pelo menos um grupo auto-selecionado deles, necessitam trabalhar em comum durante certo tempo e também necessitam enfocar os problemas cotidianos com um critério razoavelmente semelhante. Alguns especialistas se destacarão por exemplo nas tarefas de treinamento, mas sempre haverá grupos de alunos que se convertem em “grupos de manutenção”. O clínico geral deve sentir que quando passa de um especialista a outro achará conceitos e “linguagem” © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
282
semelhantes. Desde que iniciamos a aplicação de nosso plano comprovamos a conveniência de que uma parte dos especialistas assistisse de quando em quando as sessões dos grupos de clínicos gerais, para que as linhas essenciais do trabalho fossem conhecidas de todos.
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
283
Índice Remissivo
A Abdômen agudo, 40 dor no, 21 Acne, 121 facial, 49 rosácea, 36 Acompanhamento, relatório de, 237 de uma entrevista, 247 introdução, 237 Adestramento psicoterápico, 228 técnica de, 232 Adrenalina, 25 Afecção psicossomática crônica do sistema respiratório, 51 Aftas, 37 Agorafobia, 202 Agressão sexual, 153 Agressividade, 147 Alcalóides, 78 Ambulatórios hospitalares, 249 Amígdalas, 29 Amigdalite folicular, 29 Amital sódico, 39 Analgésicos, 198 Anemia, 11 Anestesia local, 197 Anestésicos, 130, 198 Anonimato, conluio do, 53-62, 72 Ansiedade(s), 173 aguda, 39 ataques de, 144
estado de, 85 excessiva, 169 maternas, 243 sentimento de, 155 Antiácidos, 254 Anti-histamínico, 164, 271 Apendicectomia, 10, 53 Apendicite, 10 aguda, 57 suspeita de, 173 Apendicostomia, 85 Apetite, perda de, 64 Aposentadoria, 254 Aprendizagem, processo de, 281 Artrite reumatóide, 167 Asma crônica, 36 Aspirina, 36, 204 Assistentes sociais, 205, 221 Ataque(s) de ansiedade, 144 de diarréia, 54 sexual, 153 simbólico, 154 Atitude de dependência infantil, 217 Atropina, 54, 56 Autocura, tentativa de, 197 Autopunição, 114
B Babinski, sinal de, 58 Balanite, 242 Barbitúricos, 65
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
285
Bário contraste de, 57 enema de, 56 ingestão de, 175 Beladenal, 121 Bell, paralisia de, 102, 263 Biologia unipessoal, 166 British Psychological Society, 212 Brometo, medicação a base de, 205 Bronquite, 30, 36, 67 Bursite, 254
C Cabeça, dor de, 36, 206, 247, 264 Cãibras nos pés, 56 Cálculos biliares, 55 Campanhia de investimento mútuo, 217 Câncer, 47, 98, 198 Capacidade, 167 psicológica, carência de, 167 psicoterápica do médico, 168 terapêutica, duas tarefas para adquiri, 221 Carência de capacidade psicológica, 167 Carúncula uretral, 94 Casamento insatisfatório, 250 Cefaléia(s), 38, 44, 112, 202 Centro comunitário de saúde mental, 282 de estudo de família, 230 Certificados do Serviço Nacional de Saúde, 60 Choque, tratamento por, 196 Choro, crise de, depressão e, 239 Ciência médica, 218 Claustrofobia, 21 Clínica(s) geral(is) atmosfera psicológica especial da, 119-128, 267 seleção, 231-236 psicológica, função adicional da, 281-283 Tavistock, 229, 282 Clínico-geral, 217 e especialistas consultados, 63-69 psicoterapia pelo, 201-210 Colapso, 67 esquizóide, 245 nervoso, 152 Colecistite crônica, 58 Colecistografia, 175 Cólera, sentimentos de, 183 Cólica, 56 abdominal, 253 Colite, 85 ulcerativa, doenças de, 198 Cólon normal, 56
Concepção, 248 Conflito(s) de lealdade, 114 neuróticos, 88 Conjuntivite, 35 Conluio do anonimato, 72 Conselho de Investigações Médicas, 76 e conforto, 83-90 Constipação, 12 Consulta de emergência, 148 psiquiátrica, encaminhamento de um paciente a uma, 74 Consultório médico, 202 Contraceptivos, uso de, 248 Contraste de bário, 57 Contratansferência do médico, 226 a seu paciente, 228 Conversão histérica, 116 Coqueluche, 37 Coração, dores no, 152 Couro cabeludo, irritação do, 262 Credo apostólico, 187 do médico, 200 Crise de choro, depressão e, 239 de depressão, 152 esporádica, 152 grave, 152 Critério de validez de uma decisão, 152 Culpa, sentimentos de, 144, 165, 169, 207, 263
D Dano cerebral, 245 Debilidade nervosa, 175 Decisão, critério de validez de uma, 152 Deficiência fundamental, 201, 215 Degeneração miocárdica, 254 Dependência infantil, atitude de, 217 Depressão(ões), 94 crise de, 152 grave, 152 choro e, 239 graves, 143 reativa, 204 Dermatite, 37 seborréica, 38 Desconforto epigástrico, 250 periódico, 253 Diabetes, 167, 259 Diafragma uso de, 130 Diagnóstico, 43 nível de, 43-52 profundo, 214 sofrimento sem, 198
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
286
superficial, 214 Diarréia, 85, 242, 253 ataque de, 54 emocional, 253 Dieta leve, 58 Difteria, 37 Difusão da responsabilidade, processo de, 72 Diplopia, 64 Dismenorréia, 35 Dispepsia(s), 239, 242 da vesícula biliar, 37 nervosas, 265 Dispnéia, 175 Distensão muscular, 38 Doença(s) como veículo de um pedido de amor e de atenção, 207 crônica autêntica, 50 de caráter, 214 clínico, 214 orgânico, 174 de colite ulcerativa, 198 de Menière, 255 funcionais, 32, 205 ginecológica, 271 infecciosas, 164 paciente e sua, 191-200 Doentes de envelope gordo, 199 Dor(es) abdominal(is), 37, 55, 254 cansadas, 198 cegantes, 198 constritivas, 198 de cabeça, 36, 206, 247, 264 de garganta, 12, 43 diagnosticada, 198 e pontadas no peito, 239 em garra, 198 em pontada, 198 em queimação, 198 entre as omoplatas, 203 epigástrica, 9 lancinantes, 198 latejantes, 198 mental, 174 muscular(es), 204, 248 nas costas, 38 na região precordial, 166 no abdômen, 21 no coração, 152 no hemitórax, 254 no pulso, 36 no reto, 174 opressivas, 198 retal, 243 reumáticas nas costas, 204 sufocantes, 198
urgentes, 198 Dormência na perna, 174 Drogas anti-histamínicas, 164
E Eczema seborréico, 262 Edema de Milroy, 60 Educação médica tradicional, 167 Eletrocardiograma, 41 Eletrochoque, 145 Eletroconvulsoterapia, 78 Emergência, consulta de, 148 Encaminhamento de um paciente a uma consulta psiquiátrica, 74 Encefalite, 245 Enema de bário, 56 Enfermidade(s) crônicas, 171, 183 físicas, 168 orgânica de caráter crônico, 193 psicológicas, 196 Ensino da psicoterapia, 222 Entrevista prolongada, 168, 176, 181, 214, 248, 261 psicológica, técnico de, ou psiquiátrica, 205 psiquiátrica, 74 relatório de uma, 247 Envelope gordo, doentes de, 199 Enxaqueca, 94, 107, 148, 186, 202 aguda, 174 Episódio histérico, 255 Espasmos, 92 Especialistas consultados e clínico-geral, 63-69 Estado de ansiedade, 85 Estudantes e professores, 167 Exame(s) do fenômeno transferência, 221 físico(s), 29 apropriados, eliminação pelos, 29-34 da língua, 121 pré-natal, 36 psicológico, 167, 181, 215 psiquiátricos, 60, 74 radiológicos, 263 retal, 167 torácico, 73 Exercícios de relaxamento, 266
F Família, centro de estudo de, 230 Fantasias, 117 e sonhos, 152 heterossexuais, 117 Faringe inflamada, 29
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
287
Faringite, 49 Farmacopéia, 176 Fé apostólica, 178 Fenobarbital, 56, 78, 113 Fenômeno transferência, exame do, 221 Fibrosite, 94 Fimose, 242 Fissura anal, 243 Flatulência nervosa, 92 Fobias, 202 Formação piscoterápica, planos de, 229 Formigamentos, 94 Fraude neurótica, 162 Frígida, 94 Frigidez da musculatura dos ombros, 247 Frustração, 146 do sentimento maternal, 239 sentimento de, 250 sexual crônica, 204 Função apostólica, 161-180 do médico, 161, 208 aspecto particularmente importante da, 173 importante aspecto da, 162 influência, 162 mecanismo da, 162
G Gânglios, 12 cervicais, 13 submentonianos, 12 Garganta dor de, 12, 43 inflamada, 49 Gastroscopia, 56, 263 Glândula tireóide,203 hipertrofia da, 204 nódulo na, 203 Grau de maturidade mental e emocional, 182 Gravidez, interrupção da, 164 Gripe, 40
H Habilidade psicoterápica, 220 aquisição da, 220 Hematêmese, 259 Hemicrania, 94, 202 discreta, 247 Hemitórax, dor no, 254 Hemorragia cerebral, 25, 270 Hepatomegalia, 57 Hérnia, 254 de hiato, 254 inguinal direita, 254 Hidrocortisona, injeções de, 254
Hipertensão, 38 essencial benigna, 44 Hipertermia, 12 Hipertrofia da glândula tireóide, 204 Hipnótico, 206 Hipnotismo, 266 Hipocondria, 51, 175 Histeria, 202, 239 Hospital psiquiátrico, 178, 255 Hospital-escola, 62, 167, 212, 220 Humilhação, 165 Humor irritado, 117
I Impulsos, 153 Indigestão, 37 Infantilismo, 60 Infarto, problema cardíaco sugestivo de, 241 Infecções, 198 Infelicidade sexual, 204 Ingestão de bário, 175 Inibições neuróticas, 230 Injeção(ões) de hidrocortisona, 254 de Merzalil, 59 de penicilina, 36 Insônia, 13, 85, 265 Insulina, 78, 198 Inter-relações paciente-médico, 151 Intimidade, violação da, 167 Intoxicação alimentar, 59 Irritação do couro cabeludo, 262
J Jogos sexuais, 151 Julgamento clínico, 277
L Lacrimejamento, 164 Lesão orgânica, 253 Leucotomia, 78, 196, 216 Língua exame físico da, 121 suburrosa, 57 Lombalgia, 10 Luminal, 54
M Mantoux, reação de, 40 Maturidade mental e emocional, grau de, 182 Medicamento(s), 168 a base de brometo, 205 antiácido, 254 Medicina hospitalar, 92, 213
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
288
psicológica, 68 utópica, 216 Médico(s) capacidade psicoterápica do, 168 contratransferência do, 226 a seu paciente, 228 credo apostólico do, 200 de confiança da família, 178 de espírito científico, 186 e seu paciente, 181-189 função, 161 apostólica do, 161, 208 aspecto particularmente importante da, 173 importante aspecto da, 162 influência, 162 mecanismo da, 162 como padre confessor, 168 geral como psicoterapeuta, 129-158 um caso difícil, 143 respostas do, e ofertas dos pacientes e as, 17-27 zelo apostólico do, 167, 170, 174 Medo, 197 da morte, 144, 255 sentimento de, 264 Menière, doença de, 255 Menorragia, 242, 245 Menstruação(ões),59 falta de, 59 irregulares, 254 Merzalil, injeção de, 59 Metatona, 49 Metedrina, 67 Método(s) de colheita da anamnese, 133 educacionais, 165 psiquiátricos, transferência global dos, 235 Milroy, edema de, 60 Morfina, 173 Morte, medo da, 144, 255 Mucosa faríngea, 30 Musculatura, frigidez da, dos ombros, 247
N Narcolepsia de base orgânica, 267 Neurastenia, 75, 175 Neurose, 32, 39, 143, 175 de caráter profundamente arraigada do tipo obsessivo-dominador, 157 Nódulo na glândula tireóide, 203
O Obstrução intestinal, 92 Ombros, frigidez da musculatura dos, 247 Omoplatas, dores entre as, 203
P Paciente(s) contratransferênciado médico a seu, 228 cronicamente neuróticos, 216 e sua doença, 191-200 encaminhamento de um, a uma consulta psiquiátrica, 74 gravemente, 151 deprimido, 152 neurótico, 151 médico e seu, 181-189 ofertas dos, e as respostas do médico, 17-27 regressão do, 217 sexualmente agressiva, 153 Paciente-problema, 73 Palpitações, 85 Panarício, 40 Paralisia, 36 de Bell, 102, 263 espástica, 36 Parkinsonismo, 38 Pedido de consulta, 77 Peito, dores e pontadas no, 239 Penicilina, injeção de, 36 Perda, 10 da virilidade, 10 de apetite, 64 de peso, 50 Peritonite, 57, 133 Perna, dormência na, 174 Personalidade, 165 problemas da, 174 sintoma da, 165 Perspectivas futuras, 211-218 Perturbação, 164 emocional, 164 endócrina, 204 Pesadelos, 131, 265 Pielografia venosa, 41 Pílulas coleréticas, 57 Placebos, 208 Pleurodinia, 94 Pneumonia, 167 Premência urinária, 239 Pressão arterial, aumento da, 247 Problema(s) cardíaco sugestivo de infarto, 241 conjugais, 169 da personalidade, 174 emocionais, 165 psicóticos depressivos, 126 Processo, 72 de aprendizagem, 281 de difusão da responsabilidade, 72 Professores e estudantes, 167
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
289
Prognóstico(s) desfavoráveis, 278 favorável, 276 reservado, 277 Psicastenia, 75 Psicodiagnóstico, 216 Psicose, 143 Psicoterapeuta amador, 235 médico-geral como, 143-158 um caso difícil, 143 Psicoterapia, 57 ensino da, 222 pelo clínico-geral, 201-210 treinamento em, 220 Psiquiatra, 217, 234 Psiquiatra-pai, 155 Psoríase, 35 Pulso, dor no, 36
Q Queimação, dores em, 198 Queimadura, sensação de, 255 Queixas psicossomáticas, 248 Quisto sebáceo, 43
R Radiografia, 9 de tórax, 9, 39 do peito, 97 Reação(ões), 40 alérgica, 164 de Mantoux, 40 hipocondríacas, 250 terapêutica negativa, 146 Reflexos abdominais, 58 Região precordial, dores na, 166 Regime sexual, 166 Regressão do paciente, 217 Rejeição, sentimentos de, 262 Relação(ões) cliente-assistente social, 229 conjugais, 205 heterossexuais, 124 mãe-filha, 259 médico-paciente, 20, 153, 187, 209, 230, 281 paciente-enfermidade, 230 professor-aluno, 222, 235 perpetuação da, 71-79 sexual, 175, 219, 248 sublimada hipnótica-erótica, 266 Relatório(s) de acompanhamento, 237 de uma entrevista, 247 introdução, 237
dos especialistas, 76 Relaxamento, exercícios de, 266 Responsabilidade, diluição da, 148, 222 Reto, dores no, 174 Reumatismo muscular, 204 Ritmo intestinal, 56 Rubéola, 13
S Sarampo, 65 Saúde mental, centro comunitário de, 282 Sedativos, 78 Seleção, clínicas gerais, 231-236 psiquiatras, 234 Sensação de queimadura, 255 Sentimento(s) ambivalentes, 147 contraditórios, 155 de ansiedade, 155 de cólera, 183 de culpa, 144, 165, 169, 207, 263 de frustração, 250 de medo, 264 de rejeição, 262 de vazio, 255 maternal, frustração do, 239 Serviço Nacional da Saúde, 78, 162, 168, 183 certificados do, 60 Sessões, 254 espíritas, 255 psicoterápicas, 254 Sexualidade, 152, 169 Sigmoidoscopia, 167 Sinal de Babinski, 58 Sintoma(s), 35 da personalidade, 165 neuróticos, incidência e avaliação dos, 35-41 Sinusite, 94 Sistema, 51 psicanalítico, 220 de Berlim, 220 húngaro, 221 respiratório, afecção psicossomática crônica do, 51 Smith, 107 Sociedade de investimento mútuo, 214 Sofrimento, 173 mental, 173 sem diagnóstico, 198 Sono inquieto, 131 Stelazine, 253 Suicídio, idéia de, 145 Suores, 94 Supercompensação obsessiva, 116 Superproteção dos pais, 263
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
290
T Tavistock, clínica, 229, 282 Taxa de hemoglobina, 11 Técnica psicoterápica do tipo descrito, 281 Técnico de entrevista psicológica ou psiquiátrica, 205 Temores hipocondríacos, 65 Tendência hipocondríaca, 249 Tentativa de autocura, 197 Teste(s), 114 das relações objetais, 115 de apercepção temática, 114, 123 psicológicos, 245 Tonteiras, 174 Tórax, radiografia de, 9, 39 Torpidez sensorial das mãos e pés, 104 Toxemia, 242 Tranqüilizantes, 194, 253 Trânsito intestinal, 19 Tratamento, 154 por choque, 196 psicoterápico, 154 sintomático racional, 186 Treinamento, 219-230 atitude do chefe do grupo, 225 comparação com outros planos de formação psicoterápica, 229 contratransferência do médico, 226 a seu paciente, 228 crise, 223 duas tarefas para adquirir capacidade terapêutica, 221
em psicoterapia, 220 emprego de métodos de grupo, 222 habilidade psicoterápica, 220 importância do ritmo (timing), 225 limitada, embora considerável, transformação da personalidade, 223 psicoterápico, 281 Tremores, 56, 131, 250 Tuberculose pulmonar, 107 incipiente, 92 Tumor abdominal, 37
U Úlcera, 198 duodenal, 37 péptica, 137, 259 varicosa, 39
V Vaginismo, 94 Valores psicológicos, 168 Veias varicosas, 40 Vesícula biliar, 57 dispepsia da, 37 Violação da intimidade, 167 Virilidade, perda da, 10 Vitaminas, 78, 206 Vivência infantil, 266 Vômitos, 21, 57
Z Zelo apostólico do médico, 167, 170, 174
© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA
291