Nietzsche além-do-homem e idealidade estética
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Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética

Editores Antonio Florentino Neto Douglas Ferreira Barros Conselho Editorial Adriano Naves Brito Alcino Eduardo Bonella Daniel Omar Perez Eder Soares Santos Henry Burnett Jeanne Marie Gagnebin Luiz Paulo Rouanet Marcio Suzuki Marcos Lutz Muller Oswaldo Giacoia Jr. Robson Ramos Reis Sofia Stein

Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética Roberto Barros

phi

Ficha Catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880 B277n Barros, Roberto de Almeida Pereira de. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética / Roberto de Almeida Pereira de Barros. -- Campinas, SP : Editora Phi, 2016. 198 p. ; 16x23 cm. Inclui referências ISBN: 978-85-66045-39-0 Original, apresentando como dissertação (mestrado),Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte Filosofia. 3. Tragédia. 4. Estética. I. Título. CDD 701 193 Índice para catálogo sistemático: 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 2. Arte - Filosofia 3. Tragédia 4. Estética

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Editora PHI LTDA Rua Castro Mendes, 133 – Taquaral – 13076-120 – Campinas – SP www.editoraphi.com.br – [email protected]

Agradecimentos

Gostaria de registrar aqui meus agradecimentos a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a elaboração do presente livro. Aos colegas pesquisadores e alunos, que com suas pesquisas, textos e questionamentos, influenciaram a conclusão deste. Em especial aos colegas Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) e Oswaldo Giacoia Júnior (UNICAMP), pelos respectivos comentários. Agradeço também ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e a seu Diretor, Nelson Souza Júnior, assim como a CAPES, pelo apoio recebido. À editora PHI, pelo profissionalismo.

Índice

Lista de abreviações | 9 Apresentação | 11 Introdução | 15 I

A perspectiva trágica | 27

II Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte | 66 III A fala poética em Assim falava Zaratustra | 96 IV O além-do-homem enquanto ideal estético | 126 Considerações finais | 181 Referências bibliográfica | 192

Lista de abreviações*

GT/NT O nascimento da tragédia UB/CE

Considerações extemporâneas

DS/DS

David Strauss, o devoto e o escritor

HL/HL

Da utilidade e da desvantagem da história para a vida

SE/SE

Schopenhauer como educador

WB/WB

Richard Wagner em Bayreuth

MA I/HH I

Humano demasiado humano I

MA II/HH II Humano demasiado humano II VM/OS

Opiniões e sentenças variadas

WS/AS

O andarilho e a sua sombra

M/A

Aurora

FW/GC

A gaia ciência

ZA/ZA

Assim falava Zaratustra

JGB/BM

Além do bem e do mal

GM/GM

Para a genealogia da moral

WA/CW

O caso Wagner

GD/CI

Crepúsculo dos ídolos

AC/AC

O anticristo

EH/EH

Ecce homo

* Todas as referências feitas aos escritos de Nietzsche e às suas cartas se reportam à edição crítica

(Kritische Studien Ausgabe, (KSA), Berlin/New York, DTV: Walter de Gruyter, 1988. Em caso de recorrência a outras edições, elas serão indicadas nas notas. As abreviações se referem aos títulos em alemão e em português. Textos sem divisão em tópicos e não aforismáticos serão indicados pelo volume e número da página. Fragmentos póstumos serão citados a partir do volume e mencionarão a numeração do apontamento e a indicação de seu período provável de acordo com a edição mencionada.

NW/NW

Nietzsche contra Wagner

EP

Escritos póstumos

PHG/FT

A filosofia na época trágica dos gregos

GMD/DM

O drama musical grego

ST/ST

Sócrates e a tragédia

DW/VD

A visão dionisíaca do mundo

GTG/NPT

O nascimento do pensamento trágico

WL/VM

Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral

NF/FP

Fragmentos póstumos

PS/EF

Escritos filológicos

HPH/HF

Homero e a filologia clássica

Apresentação

Poucos temas despertaram tanto interesse na história da filosofia de Nietzsche, quanto o de além-do-homem (Übermensch). Nele, cruzam-se diversas questões impostas ao seu pensamento durante a década de 1880; questões que dizem respeito, no fundamental, às possibilidades implicadas no processo de “transvaloração de todos os valores”. Importantes pesquisadores estudaram, sob diversas perspectivas, a gênese dessa ideia na própria obra de Nietzsche até o momento fundamental no qual se formula de maneira mais incisiva e peremptória, logo no início do Zaratustra; aquele, cuja boa nova é justamente o anúncio do além-do-homem. Tema arriscado e complexo – uma vez que sua recepção mais intensa e, ao mesmo tempo, mais problemática, se deu por ocasião da apropriação nazista do pensamento de Nietzsche. O além-do-homem passou a ser então confundido com a “besta loura”, representante da “raça pura, superior”, ou ainda como a personificação de uma espécie de aprimoramento, melhoramento da humanidade no sentido do darwinismo. Além disso, o fato de que no além-do-homem se constitua uma espécie de primeiro ensinamento de “Zaratustra” traz consigo outro problema, o modo específico de expressão própria de Assim falou Zaratustra, que, como se sabe, apresenta-se na forma de um poema. Essa dimensão poética, tão cara a Nietzsche e tão decisiva no seu intento de recriar a própria ideia de filosofia, sempre foi um problema para seus intérpretes, de modo que chamar Nietzsche de “poeta”, ou o Zaratustra de “poesia”, passou a ser quase um insulto, uma desqualificação de sua atividade como fi­ló­sofo. Às expensas de Nietzsche, combateu-se nele o poeta de modo a valorizar o filó­sofo, v­ isando inseri-lo, muitas vezes a qualquer preço, no Panteão dos filósofos clássicos, dignos de atenção e respeito. É no interior desse dilema que o presente livro se situa. Ou melhor, é onde seu autor ousa situar-se para, como o leitor poderá constatar, construir sua pró­ pria posição, anunciada desde seu título. Não se trata, para R ­ oberto Barros, de negar a dimensão filosófica do Zaratustra. Muito pelo contrário! Mas não se trata tampouco de negar sua dimensão “poiética”, isto é, de ser indiferente à forma do livro, rebaixando assim o esforço nietzschiano ao encontrar outras formas de e­ xpressão para a filosofia que não aquelas já consagradas em sua época, quando a filosofia já e­ sta­va consolidada como “filosofia universitária”. Lembremos aqui, de propósito, o título do pequeno livro de Schopenhauer tanto admirado por Nietzsche, que desmontava o ensino u­ niversitário da filosofia na Alemanha como uma espécie de morte pouco trágica da atividade do 11

apresentação

pensamento. Daí decorre o posicionamento de Roberto Barros e a singularidade de seu percurso, que o fizeram formular, desde muito tempo atrás, a hipótese que norteia esse trabalho singular: a de que o além-do-homem possui uma dimen­são necessariamente estética! Nessa perspectiva, apresentar este livro é também testemunhar uma época; é recortar, no Brasil, um pequeno fragmento da recepção de Nietzsche entre nós, aquele que se situa no seu Norte ou, para usar uma expressão mais pujante, na Amazônia. Sim, este livro é resultado de um trabalho iniciado há mais de vinte anos, quando o autor era um jovem estudante da graduação. Entre o ardor juvenil – a “juventude”, disse N ­ ietzsche certa vez a propósito da sua própria, “se caracteriza pela falta de nuances” – e o ­resultado extraordinário que é o livro, seu autor acrescentou, certamente, o trato fino, o exercício paciente da “lapidação”, para lembrar outra imagem nietzscheana, ao definir seu “leitor ideal”, no Prefácio de 1886 à Aurora. Esse processo de fineza significou, c­ oncretamente, uma Dissertação de Mestrado defendida em 2000 na Unicamp, e uma Tese de Doutorado defendida na Universidade Técnica de Berlim, em 2006, aos quais se acrescentaram intensa atividade de pesquisa e ensino na Universidade Federal do Pará e d ­ iversas temporadas de estudo na Alemanha. Todas essas atividades já resultaram numa significativa lista de publicações de artigos e capítulos de livros, que tornam o trabalho de Roberto Barros, no âmbito dos temas de sua predileção, um interlocutor cada vez mais importante na cena dos estudos brasileiros sobre a filosofia do autor do Zaratustra. Roberto Barros, como os ilustres antecessores citados no seu livro e com quem dialoga, se confronta, se aproxima e se distancia, dos acima citados, como parte da premissa de que o estudo do tema do além-do-homem implica no estudo da própria filosofia de Nietzsche, isto é, de que uma mínima compreensão de seu estatuto ­pressupõe a compreensão da filosofia de Nietzsche no seu todo. Com isso, ele também se alinha a uma vertente de interpretação segundo a qual não se pode medir a extensão e a importância de um tema nietzschiano pelo número de citações feitas por Nietzsche na obra publicada, tendo em vista o caráter esparso das referências, também aqui, ao além-do-homem. Contudo, isso não implica que devamos, par contre, nos aliar à posição de Heidegger, que certa vez disse que o essencial da filosofia de Nietzsche se e­ ncontrava nos seus apontamentos póstumos, não publicados. Por outro lado, a longa maturação que resultou nesse livro, fez com que Roberto Barros pudesse aprofundar suas intuições juvenis que já haviam ganhado uma p ­ rimeira versão em sua Dissertação de Mestrado, qual seja, a de que a ligação entre o tema do além-do-homem e o conjunto do pensamento de Nietzsche se dá pelo fato de que o além-do-homem também possui uma dimensão necessariamente estética. A partir ­dessa hipótese, cujo refinamento incorporou as reflexões atuais de Roberto Barros acerca do 12

apresentação

estatuto da ciência na chamada segunda fase do pensamento de Nietzsche (tema de sua Tese de Doutorado publicada na Alemanha em 2007) ou ainda a do estatuto psicofisiológico da questão do conhecimento em Nietzsche, este livro nos convida, nos incita e nos insere numa aventura sem dúvida fascinante: a de retomarmos o pensamento de Nietzsche como se fosse a primeira vez. Não que os temas candentes e largamente estudados pela Nietzsche-Forschung ganhem sempre, nesse livro, uma nova formulação. Mas sim, que esses mesmos temas – essas mesmas questões – podem ser revisitados a partir de uma perspectiva pouco usual, na medida em que seu objetivo é justamente ressaltar o contorno, a “idealidade estética” do além-do-homem. Para isso, Roberto ­Barros recua até o Nascimento da tragédia, atravessa o período iniciado com Humano, ­demasiado humano, a fim de mostrar, justamente, o quanto as formulações, anteriores ao ­Zaratustra, acerca das relações entre arte e verdade, arte e dimensão trágica da existência, serão fundamentais para a compreensão do projeto filosófico, mas também poético, que o Zaratustra representa. Por fim, Roberto Barros, num último capítulo, muito especial e significativo da Nietzsche-Forschung brasileira, “lapida” ao extremo as relações entre além-do-homem e “Eterno retorno”. Com isso, ele nos mostra, com perturbadora c­ lareza, o quanto sua leitura ilumina, nesses mais de cem anos de história da recepção de Nie­tzsche, não só o que ainda estava na sombra, mas também o que já parecia definitivamente iluminado. Ernani Chaves Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará

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Introdução

Não foram poucos os autores que se referiram, positiva e negativamente, às múltiplas características da filosofia de Nietzsche; às múltiplas e alternantes facetas das formas de exposição1 do seu pensamento. As suas temáticas, formas de abordagem e os diferentes estilos destoam de maneira acentuada das formas acadêmicas de argumentação filosófica, deci­sivamente da alemã. No que diz respeito às críticas, grande parte delas se refere às mudanças de perspectivas e presumidas contradições lógicas de um pensamento que não imediatamente apresenta uma linha de continuidade.2 Esse aspecto não passou despercebido pelo próprio Nietzsche. Os prefácios de 1886, acrescidos às obras anteriores e também à sua biografia intelectual, Ecce homo (1888), revelam o empenho do autor em indicar uma unidade em seu pensamento, sem, todavia, desejar subordi­ ná-lo aos padrões tradicionais da exposição filosófica acadêmica alemã. Baseado na noção de experiência individual (Erlebnis) do pensar, Nie­tzsche afasta-se do princípio do sujeito neutro do conhecimento da fi­losofia moderna, assim como de esquemas categoriais norteadores da reflexão, optando, assim, por uma multiplicidade de modelos de exteriori­zação dos quais uma das matrizes mais significativas é a arte. Os p ­ ressupostos que lhe permitem essa tomada de direção são vários, mas alguns devem ser ­mencionados: (a) a identificação da insuficiência de meios da perspectiva metafísica em lograr os seus objetivos secularmente propostos, tais como a demonstração da existência de um conhecimento pleno e final do real. A isso se segue, (b) a negação de qualquer conceito normativo de verdade enquanto princípio fundante da exposição filosófica (Schacht, 1985, p. 52). A partir disso, parece ser possível afirmar que em Nietzsche a multipli­ cidade de estilos consiste por si mesma em uma nuance filosófica, que, por sua vez, tal como se deseja mostrar com a ar­gumentação a seguir, constitui um fator preponde­ rante à compreensão de seus direcionamentos filosóficos, pois exprime uma forma de ­oposição à tradição dogmática da filosofia (Nehamas, 1985, p. 58). 1

Um exemplo bastante significativo disso, como bem menciona Ernst Nolte, é o livro Nietzsche als Philosoph, de Hans Vaihinger, no qual o neokantiano, um dos fundadores dos Kantstudien, considera Nietzsche como um modismo filosófico, o critica pela ausência de sistematicidade e ainda duvida de sua saúde mental, Cf. Nolte, 1990, p. 228. 2 Essa parece ser, como também compreende Wolfgang Müller-Lauter (1981, p. 136), a dificuldade de Karl Löwith, que ainda tenta compreender a filosofia de Nietzsche segundo a orientação clássica da história da filosofia ocidental. 15

roberto barros

Esses aspectos se revelam como imprescindíveis para uma consideração de Assim falava Zaratustra enquanto obra filosófica. Referida pelo próprio autor como sendo sua obra fundamental, ela associa emble­maticamente uma profusão de pressupostos mobili­ zados nos escritos que lhe antecedem e, por esse motivo, esse se revela como um momento decisivo para o pensamento filosófico de Nietzsche. Com Assim falava Z ­ aratustra o filósofo encerra um ciclo em seu pensamento – sem, todavia, abandoná-lo. Nele encontra-se pressuposta uma elucidação crítico-­moral dos valores fundantes e basilares da cultura ocidental, que busca ­evidenciar a improbidade de toda forma de ­fundamento erigida em princípios hegemônicos. Com isso, sua meta é tornar evidente a possibi­lidade de ­novas e afirmativas possibilidades de expressão filosófica, que não aquelas tornadas canônicas pela tradição racionalista-metafísica. Sem que se considere a crítica aos princípios e às metas da metafísica, a aproximação crítica da filosofia das ciências naturais (Marietti, 1997, p. 267) e a indicação dos pressupostos morais destas, a obra de Nietzsche se torna de difícil compreensão, assim como a riqueza de variantes que, ainda hoje, lhe garantem uma posição singular dentre os escritos filosóficos. Com Assim falava Zaratustra, Nietzsche estabelece um ato de liberdade do pensamento, que então já demonstrara a sua criativa oposição a todas as restrições formais da filosofia, seja de ordem sistemática, seja de ordem estilística. Nessa obra, o conceito é preterido em favor da imagem. Isso é possível porque o primeiro é caracterizado pela superficialidade de suas abstrações e, assim, tem evidenciadas as suas limitações e arbitrariedades. Isso acaba por aproximá-lo da noção de representação, todavia, dissociada de qualquer fundamento de verdade. Ambos são compreendidos como formas de simplificação de um mundo múltiplo e em câmbio. Entretanto, para Nietzsche a imagem tem a pretensão de ser mais “verídica”, precisamente por evidenciar-se como repre­sentação a partir de pressupostos, e não como “verdade”. A fonte dos conceitos é o intelecto, desqualificado por Nietzsche enquanto instância superior e relacionada à verdade, tal como pensara toda a filosofia desde Platão. Para ele, a sua elevada valorização se baseia muito mais decisivamente na satisfação da necessidade de fixidez, que se deixa transparecer no caráter arbitrário da aferição dos nomes, que antecede o surgimento dos conceitos. A atuação do intelecto é superficial, simplificatória, de forma alguma remete a uma verdade ou designação definitiva da multiplicidade dinâmica que constitui a efetividade. Mas o principal argumento contrá­ rio a essa forma de consideração não é esse, mas a indicação do fundamento de crença, segun­do a qual a verdade fixa e final existe e é possível de ser alcançada. Com ele, Nietzsche se afasta de toda consideração meramente conceitual da verdade. Ele a ­analisa a partir de uma ótica exterior, composta de vários traços perspectivísticos, cujo pressuposto central é a compreensão da verdade como uma criação humana. 16

introdução

Para Nietzsche, a atitude intelectual que cria conceitos é metafó­rica, restritiva e de modo decisivo não vinculada a nenhum fundamento. Em verdade, apenas por autoindução ela se funda na pressuposição de que suas determinações podem, por si mesmas, constituir verdades. A partir da percepção de que a metáfora é a origem tanto da representação figurativa como do conceito, ele indica a forma restritiva deste, pois ele se mostra como um produto de um processo de simplificação, que se deixa enclausurar por formalismos sistemáticos que lhes são impostos, os quais passam a ser t­ omados como canônicos. Disso decorre a conclusão de que a racionalidade não pode mais ser tomada como instância intangível de consideração. Se ela, por muitos séculos, desfrutou desse status repetidas vezes reafirmado, isso se deve não a uma demonstração da efetivi­ dade dele e de sua presumível potencialidade, mas à obrigatoriedade moral de sua necessidade. Baseado na percepção de que a verdade e todas as formas de fundamentação e de fixação, nos mais diferentes domínios, podem ser entendidas como necessidades orgânico-mentais do homem, Nietzsche desarticula e prescinde da verdade metafísica, que ele interpreta como basilar a toda significação posterior desse termo. Todavia, toda a sua filosofia é orientada no sentido da veracidade (Wahrhaftigkeit), fundada na compreensão da impossibilidade de superação do anseio pela verdade. O posicionamento basilar que disso re­sulta consiste na percepção segundo a qual o anseio pela verdade acaba por suprimir a própria verdade, ao remeter à constatação epistemológica da impossibilidade desta, entendida enquanto princípio inalterável e determinante. A questão decisiva torna-se, então, não mais o que é, mas o que pode significar a pretensão à verdade. Essa questão é analisada por diferentes prismas na obra de Nietzsche e tem, por isso, diferentes respostas no decorrer de sua elaboração. Assim falava Zaratustra consiste em um escrito que marca uma tomada de posição e uma tentativa de superação da vacuidade advinda da percepção do desaparecimento das condições dessa consideração da verda­de, que nele é associada à morte de Deus. Os ensinamentos (Lehre)3 de Zaratustra apenas tornam-se possíveis de serem proferidos a partir dessa constatação e, desse modo, não constituem doutrinas (Doktrinen), pois não mais podem ser justificados enquanto tal (Stegmaier, 2009, p. 16). A desmistificação moral da verdade faz com que o ensinamento abissal do eterno retornar de todas as coisas e a perspectiva da vontade de poder possam ser justificadas como hipotéticas, como criações possíveis no domínio perspectivístico de um mundo transformado num mar desconhecido a ser singrado e num manancial de novas interpretações. 3

Muito embora, no Brasil, tradicionalmente se traduza o termo Lehre como “doutrina”, optou-se aqui por “ensinamento”, devido ao forte caráter determinista da palavra doutrina (Doktrin) em alemão. Conforme se verá, o ensinamento de Zaratustra, em muito devido às suas influências e aos seus direcionamentos artísticos, deixa poucas possibilidades para que se lhe compreenda como cânone. Antes, ele apenas pode ser considerado como ensinamento devido ao seu traço não doutrinal. 17

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Essa empreitada, porém, traz consigo um perigo inerente e ­nenhuma garantia de um porto seguro e definitivo, enquanto ponto final da jornada. Em oposição a isso, ela é, antes de tudo, indicada como um percurso incontornável rumo ao acaso. P ­ recisamente por isso ela pode ser considerada como trágica, pois se distancia de qualquer concepção ­teleológica de redenção. Todavia, a compreensão trágica das implicações que a ­morte de Deus e a supressão do conceito de verdade trazem consigo cria para Nietzsche a possibilidade de formular uma alternativa para o niilismo moderno, que é avesso à criação de novos valores, e assim é ultrapassada a gravidade do trágico antigo. Essa é a feliz ­aceitação incondicional do ocaso inerente à vida, que não mais é considerada segundo perspectivas de sua correção ou superação de sua dureza e de seu sofrimento i­ nerente (Löwith, 1956, p. 113). A leda aceitação dessa gravidade trágica é a meta da alegre ciência, que se propaga e está implícita na relação dos ensinamentos de Zaratustra. Tomado como ensinamento fundamental de Zaratustra (EH/EH Z/Z § 1), o pensamento do eterno retorno implica na aceitação de um princípio da indeterminação compreendido como intrínseco à vida. Ele caracteriza o assentimento dessas proposições à necessidade da tentativa de determinação do próprio ocaso. O além-do-homem, o primeiro ensina­mento de Zaratustra após o anúncio da morte de Deus, é o princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos trazem consigo. Ele é o fator de embelezamento necessário à aceitação do trágico, cuja primeira caracte­ rís­tica pode ser indicada como a força imagé­tica de embelezamento que a sua imagem traz consigo. Essa imagem é, todavia, transmitida oralmente por Zaratustra, o que evidencia a sua significação imagética e lhe atribui uma característica notadamente ­estética. A compreensão dessa função aproxima Assim falava Zaratustra dos pressupostos mobilizados por Nietzsche em O nascimento da tragédia. Isso é indicado pelo próprio autor e pelos traços trágicos de Zaratustra. Nesse sentido, pressupondo-se a indicação da tragicidade dionisíaca de Zaratustra, ele pode ser associado ao princípio apolíneo, indicado por Nietzsche como constitutivo e imprescindível à constituição do trágico. A abordagem a seguir busca demonstrar a relação desses aspectos e, com isso, evidenciar que na obra de Nietzsche o esforço filosófico fundado na compreensão valorativa ineren­ te ao pensar redunda em uma filosofia com forte conotação artístico-estética e que esse aspecto é significativo para que se possa compreender o ensinamento do além-do-homem em Assim falava Zaratustra. A argumentação visa, assim, acenar com uma proposta de interpretação desse ensinamento, antevisto enquanto expressão da i­nclinação artística da filosofia de Nietzsche, que assim associa o rigoroso pensamento filosófico com a força plasmática da arte. Tal abordagem parte dos seguintes pressupostos: em primeiro lugar, da considera­ ção das indicações do próprio autor, segundo as quais os escritos que antecedem Assim 18

introdução

falava Zaratustra devem ser entendidos como etapas de um esforço criativo de ­ampliação das possibilidades da expressão filosófica e de redimensionamento v­ alorativo que redunda naquela obra. Isso significa pressupor a existência de uma re­lação íntima e indissolúvel entre os escritos que, muito embora respeitem momentos diferenciados, nos quais encontramos mudanças de ênfase e de perspectivas, possibilitam tacitamente que se compreenda entre eles um liame temático, de imprescindível consideração. Dessa tomada de posição decorre um segundo ponto, decisivo para a abordagem aqui proposta: a consideração de aspectos que se fazem presentes na filosofia de ­Nietzsche desde O nascimento da tragédia (1872) e nos textos que se circunscrevem no seu perímetro temático, enquanto fatores que demonstram tendências de significativa importância para a formulação de concepções expostas em Assim falava Zaratustra (1883/5). A consideração da importância e significação efetiva desses escritos – em especial de O nascimento da tragédia – baseia-se no pressuposto de que eles consistem não na determinação decisiva do direcionamento da especula­ção filosófica de Nietzsche,4 porém em seu ponto de partida, que, a despeito das próprias críticas feitas pelo filósofo, não o impediram, em Ecce homo (1888), de considerar que aquele livro, apesar de suas falhas e comprometimentos, já anunciava “inovações decisivas” (EH/EH NT § 1). A valorização da arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir, mais ainda, a crítica da perspectiva racional, compreendida sob o ponto de vista de sua significação vital e intencionalidade inerente, parecem ser traços que, mesmo mediante reformulações e utilização de diferentes estilos argumentativos, se fazem presentes nos mais variados momentos de expressão da ­filosofia de Nietzsche. Esses aspectos podem ser encontrados, com diferentes formulações, t­ anto nos primeiros escritos, remetidos e intencionalmente relacionados à interpretação da arte e cultura gregas, como em Assim falava Zaratustra, sendo que, nesse livro, com pressupostos formulados mediante significativa presença de caracteres gregos. Dessa proximidade decorre uma nova consideração afirmativa e posterior de O nascimento da tragédia, que reforça a importância desse livro para a filosofia de Nie­ tzsche como um todo. Essa relação é largamente documentada pela pesquisa sobre Nietzsche, a partir da publicação da edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinati. Com efeito, Eckhard Heftrich indica o primeiro livro de Nietzsche como uma prefiguração de sua filosofia e acentua a relação de proximidade temática entre ele e Assim falava Zaratustra (Heftrich, 1962, p. 115). Volker Gerhardt acentua a im4

A esse respeito, escreve Fink: “posto que desse a impressão de formular um problema estético, psicológico, fisiológico, representou no fundo a primeira tentativa tateante de Nietzsche para expressar a sua concepção filosófica do mundo. Essa inadequação, que já caracteriza a primeira obra de Nietzsche, permanece, de certo modo, embora com sensíveis transformações, traço de toda a sua produção.” Cf. Fink, 1983, p. 22. 19

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portância de noções relacionadas à metafísica do artista e formulações posteriores de Nietzsche, mesmo levando-se em conta o afastamento dessa posição estética inicial e a inexistência de uma linha direta de ligação entre as temáticas (Gerhardt, 1984, p. 388). Nesse sentido, pode ser mencionado, com respeito ao escrito inicial de Nie­tzsche, a descoberta da necessidade artística do homem enquanto estímulo vital, aspecto posto como significativo para os delineamentos básicos da obra à qual foi acrescido, tais como a periculosidade do conflito entre arte e ciência e a positividade vital da primeira, menção que demonstra a importância desses pressupostos para a sua filosofia como um todo. O traço singular indicado nesse momento é a reafirmação da compreensão da ciência como produtora de aparência (Schein), devido à refutação da infalibilidade de seus ­pressupostos lógicos e racionalmente concebidos, o que também a torna passível de uma ­interpretação estética,5 perspectiva que, segundo o filósofo, a racionalidade lógico-conceitual tentou desqualificar desde sua origem. Desse modo, a racionalidade filosófica grega, para Nietzsche depreciadora da arte e fonte primeira do impulso científico, não extrapolaria o âmbito daquilo que ela própria considerou como fonte de erro e de ilusões sem valor. Pois ela teria sua efetiva origem em uma necessidade de refutação valorativa e não na justificação de seus pressupostos fundamentais. Entretanto, o fracasso do “projeto racional”, que não alcança seus o­ bjetivos diferenciadores: o alcance da verdade em si mesma (diferenciada do mundo fenomênico, tomado então como transitório e aparente) e, por conseguinte, a universalização do conhecimento desta, põe-na, sob a ótica de Nietzsche, em um patamar ainda inferior ao que a ciência relegou à arte, o de produtor de aparência sem conteúdo estético ­válido, em outros termos, de ilusão (Wahn) sem conteúdo vital ­afirmativo. Nietzsche adota esse posicionamento, partindo de uma concepção artística da tragédia grega, que o inclina a analisar todo o racionalismo filosófico ocidental, desde Sócrates até a ciência de seu tempo, e o leva a concluir que ambos se fundam ­unicamen­te sobre pressupostos valorativos, posicionamentos unicamente morais, decorrentes de um conflito, de uma oposição de perspectivas que, assim compreendidas, tornam sem ­sentido qualquer discussão acerca da superioridade unicamente epistemológica de uma perspectiva sobre a outra. Feita essa constatação, a intenção de Nietzsche é mobilizar essa oposição sob a consideração de uma noção afirmativa de vida, das vanta­gens afirmativas para esta e, portanto, fazer oposição a qualquer t­ endência valorativa que a deprecie. Essa, por conseguinte, parece ser a temática que mobiliza as energias do autor tanto em seus ­primeiros 5

Pois a obra, inovadoramente, propõe-se a ver “a ciência sob a ótica do artista” e a arte sob a ótica da vida. NT. “Tentativa de autocrítica” § 2. 20

introdução

escritos como nos últimos, sendo que, em ambos os momentos, pressupondo uma reavaliação positiva da força criativa da arte. É evidente que tais aspectos problematizados pelo filósofo inserem-se em uma longa tradição de reinterpretação da cultura grega e de seu significado para a cultura ocidental, que, na Alemanha, se estabelece decisivamente a partir de Winckelmann, passando por Lessing, Goethe, Schiller e Hölderlin. É importante, todavia, indicar que Nietzsche dialoga com essa tradição de pensamento de forma crítica e que isso não apenas possui implicações, mas marca fortemente as nuances centrais de seus posicionamentos. É a partir dessa diferenciação que o exercício filosófico de Nietzsche se direciona a novos objetivos. Os escritos subsequentes a O nascimento da tragédia são muito mais voltados para uma crítica dos valores morais da cultura ocidental e de sua proveniência do que para uma nova tentativa de afirmar a necessidade de uma consideração estética do mundo. Todavia, embora não declarados, é possível, nessa nova tomada de posição, apontar significativos aspectos dos trabalhos iniciais. Humano, demasiado humano, que, na opinião quase unânime de comentadores, inaugura a segunda fase da filosofia de Nietzsche, mostra outro posicionamento com relação à arte. Cônscio da impossibilidade de supressão das influências metafísicas na cultura – e, portanto, de um retorno a uma forma original de fruição estética –, o autor analisa a significação cultural da arte em seu tempo e as formas tradicionais de conside­ rá-la a partir da própria hegemonia científica. Trata-se de um ponto de vista novo, decisivo e bastante significativo à nova postura com relação à cultura, pensada anteriormente a partir da metafísica do artista. A decepção com o wagnerianismo, que também veio significar uma recon­sideração da filosofia schopenhaueriana, remete Nietzsche a um posi­cio­namento mais atualizado com relação à cultura. Parece-lhe então e­ vidente que, se a arte pode ter direito a pleitear significação na contemporaneidade, ela só pode fazê-lo se considerada a perspectiva dominante do seu tempo, a científica. Fora disso, ela se torna meramente epígono, presa ao passado, mas sem significação cultural determinante. Entretanto, esse novo posicionamento não significa nem um distan­ciamento das influências estéticas da filosofia da Nietzsche, menos ainda a pretensão de adequação da arte à ciência. Essa última pressuposição significaria um retorno ao projeto p ­ latônico, ao qual Nietzsche atribui não apenas o ocaso da arte, como o desmerecer da sensibilidade artística no ocidente. Ao pressupor a importância da interiorização à consideração do discurso estético contemporâneo, o autor busca, por outros caminhos, dar c­ ontinuidade à crítica à metafísica, presente em sua consideração inicial da arte. A percepção de uma influência metafísica em sua própria filo­sofia se reverte, então, na identificação do desvirtuamento do romantismo e em sua justificação da arte, identificável na crença no 21

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gênio e na ­inspiração, enquanto fontes da criação artística. O aspecto negativo dessas noções repousa na percepção da vetustez de sua importância para a criação artística moderna, pois elas possuem, na modernidade, uma significação apenas periférica e transferem este mesmo significado para a arte. Para Nietzsche, o descompasso dessas justificações com relação ao tempo histórico é responsável pela restrição da arte a uma significação ­subordinada na modernidade. Toda pretensão a uma outra significação, de maior acento que ainda possa ser remetida à sua antiga primazia, é inexequível, pois esta necessitaria novamente ser vinculada a princípios metafísicos ou transcendentes, os quais não possuem mais nenhuma precedência na modernidade e seriam, então, injustificáveis. Essa percepção de Nietzsche viabiliza uma nova tomada de rumos e a adoção das observações psicológicas e históricas, compreendidas como formas de análise das confi­ gurações valorativas atuantes na cultura, da sua “química” (MA I/HH I § 1). A mobilização da ciência a partir de Humano, demasiadamente humano se insere na ­interpretação histórico-psicológica desta e consiste decisivamente na perspectiva de lhes examinar as formas de justificação. Em última análise, o ponto de vista científico de Nietzsche consiste em uma forma de oposição à metafísica e aos valores promulgados por ela. Aos seus olhos, princípios basilares da teoria do conhecimento metafísico não resistem à aplicação dos próprios critérios de verdade no qual esta se baseou durante séculos, os da não refutação e da demonstrabilidade. Essa empresa tem continuidade nos demais escritos da década de 80, e é decisiva para a compreensão do movimento ­argumentativo da filosofia de Nietzsche. É da união de paixão pelo conhecimento e desejo de afirmação da arte que surgem A gaia ciência e Assim falava Zaratustra, com respeito aos quais o autor afirma, repetidas vezes, a importância da atenção aos pressupostos artísticos presentes nos livros anteriores para a compreensão dos seus conteúdos.6 Por conseguinte, não deve ser tomado como alea­tó­rio o fato de que, em Assim falava Zaratustra, podemos constatar a r­ etomada de temas e conceitos que recebem claramente influências do entusiasmo inicial. A esse respeito, torna-se ainda possível dizer que, nesse ­momento, mantém-se presente na filosofia de Nietzsche uma consi­deração trágica da existência (FW/GC § 342), que o autor tenta reafirmar como necessária, a partir da refutação do dogmatismo de outras formas de consideração (GT/NT § 6). É, portanto, desde sua obra inaugural que Nietzsche indica que a ciência não pode ser analisada sob o ponto de vista meramente ­científico, pois seu real fundamento de6

No caso de A gaia Ciência, expressa na influência dos artistas e trovadores ­provençais (EH/EH FW/ GC §1). No caso de Assim falava Zaratustra, o renascimento da arte de ouvir, a restauração da antiga inspiração dos poetas e o uso do ditirambo. (EH/EH Z/Z §1, 3 e 7). 22

introdução

corre de outro impulso que o desejo de conhecer. Por esse motivo, uma análise meramen­ te epistemológica ou analítica de seus pressupostos, com vistas a afirmar a sua necessidade, perde o sentido (Machado, 1999, pp. 7-8). A filosofia, ou mesmo toda p ­ retensão científica, passa a ter significado apenas quando relacionada a uma concepção de vida baseada no positivo fortalecimento e embelezamento dos impulsos fundamentais, tidos ainda como única forma de suportar o aspecto trágico da existência. Esta se torna sinô­ nimo positivo de indetermi­nação, e a hierarquização dos pressupostos de c­ onsideração e dos valores da cultura sofre uma significativa mudança: a racionalidade e a ­perspectiva científica deixam de ser as instâncias privilegiadas de consideração do mundo, p ­ assando a ser decisivos os princípios efetivamente ativos na valorização do existente, tais como a sua aceitação incondicional, mesmo em seus mais duros e terríveis aspectos e consequên­ cias. Isso Nietzsche nomeia “visão trágica do mundo”, dissociada de qualquer comprometimento com as formas tradicionais de aspiração à pureza científica. O ensinamento do eterno retorno do mesmo, que tem seu anúncio nos escritos que precedem Assim falava Zaratustra (FW/GC § 341), pode exemplificar satisfatoria­ mente esses direcionamentos. Ele encontra seu fundamento justamente na concepção da existência considerada sob o ponto de vista do caráter dionisíaco (Machado, 1993, p. 123) da vida compreendida como eterno movimento ou jogo de crianças (NF/FP: KSA 14 [188], primavera – outono de 1881). O postulado da eterna re­corrência de todas as coisas afirmado por ele remete a sua significação tanto à reflexão acerca de ­no­vas possibilidades éticas e de consideração da existência humana como também ao âmbito da estética (FP: KSA 9, II [162], primavera – outono de 1881), pois considera o mundo unicamente como eterno devir e fluxo constante de aparências, do que ­resulta a sua aproximação com o que se convencionou chamar a primeira filosofia de Nietzsche. Nesse sentido, são dignas de nota referências a pensadores como Martin H ­ eidegger e Gilles Deleuze que, mesmo de modos diferenciados, já consideravam o princípio for­ mador dessa concepção do eterno devir do mundo e de seu jogo de forças como fundamentada na imagem e conteúdo vital dos valores anunciados esteticamente. Heidegger, com efeito, mesmo considerando a filosofia de Nietzsche e sua formulação da noção de vontade como sendo o ponto derradeiro ao qual chegou a metafísica ocidental, considera que, para que se compreenda o que o filó­sofo desejava expressar com o ­ensinamento do eterno retorno do mesmo, é necessário um remetimento à experiência trágica descrita em O nascimento da tragédia, cuja essência é determinação fundamental do pensamento de Nietzsche (Heidegger, 1989, p. 279), o que lhe revela a ­dimensão estética (Ibidem p. 280). Para Deleuze, a concepção de trágico posta em O nascimento da tragédia seria a exposição da contradição original da existência e a s­ olução trágica desta contradição. 23

roberto barros

Isso teria remetido Nietzsche à sua interpreta­ção genealógica dos valores ocidentais e da metafísica, e o levado a enten­dê-las enquanto formas de velamento desse caráter original. A comprovação desse velamento resultaria em uma concepção de existência descrita como um jogo de dados, cujo princípio primeiro seria a afirmação do acaso, expressa na doutrina do eterno retorno (Deleuze, s.d., p. 45). A relação entre concepções formuladas em momentos diferenciados é e­ videnciada em inúmeras passagens pelo próprio Nietzsche. Para ele, Zaratustra, o anunciador do além-do-homem, é justamente aquele que alcançou as ideias mais profundas, que não vê nenhuma objeção contra a existência, assim como contra o eterno retornar de todas as coisas, o qual, por conseguinte, é a expressão de Dionísio (EH/EH Z/Z § 6). Com efeito, sendo o pensamento do eterno retorno do mesmo o ensinamento fundamental de Assim falava Zaratustra (Ibidem § 1), que marca o reapa­recimento do dionisíaco em obras publicadas, precisamente com ­respeito a este colocam-se imediatamente questões acerca do seu estatuto: a) se ele permanece segundo a mesma caracterização que no livro inicial de Nietzsche; b) se mantém a relação posta como indissolúvel com o seu par complementar, o apolíneo. Um aspecto em favor deste último ponto pode ser primeiramente mencionado. Do mesmo modo que em O nascimento da tragédia, Nie­tzsche expõe a perspectiva de que os gregos foram salvos do ­aniquilamento pela arte figurativa de Apolo, associada à música dionisíaca. Em Assim falava Zaratustra, o ensinamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo também possui o seu consolo aparente, trata-se do ensinamento do além-do-homem. Estudos mostram que essa é precisamente a relação entre os ensinamentos (Haase, 1984, p. 230), e ainda que esse livro fora pensado por seu autor segundo uma concepção trágica, como um drama em quatro partes (Ibidem p. 223). Diante dessas proximidades formais e temáticas, que ligam os diferentes momentos, uma consi­ deração atenta dessas fontes adquire grande significação. A argumentação que se segue tenciona tornar claros os fatores de aproximação entre o fator dionisíaco do ­pensamento do e­ terno retorno e os caracteres apolíneos do e­ nsinamen­to do além-do-homem, a p ­ artir da consideração da relevância de formu­lações dos primeiros traba­lhos de Nietzsche para a análise dos ensinamentos de Zaratustra. Nesse sentido, e a partir dos pontos de vista acima expostos, tenciona-se empreender uma análise de formulações p ­ osteriores da filosofia Nietzschiana, em especial do ensinamento do além-do-homem, visando explicitar a significação das formulações estéticas dos primeiros escritos de Nietzsche para a sua compreensão. Assim sendo, a abordagem é composta de quatro momentos. Primei­ramente, na análise do trágico e do dionisíaco nos escritos ­compreendidos no perímetro temático de O nascimento da tragédia, este tomado como escrito de significação particular no 24

introdução

contexto pleno da filosofia de Nie­tzsche.7 Em um segundo momento, tratar-se-á do novo posicionamento de Nietzsche acerca da ciência e da arte nas obras posteriores ao seu afastamento definitivo das influências da concepção artística de Wagner e da filosofia de Schopenhauer, nas quais ambas são objetos de novas considerações. No t­ erceiro capítulo, tratar-se-á da perspectiva artística de Assim falava Zaraustra e da relação entre os ensinamentos do além-do-homem e do eterno retormo, partindo-se do pressuposto de que um dos traços mais atuantes e subjacentes a eles é justamente a c­ ompreen­são trágica e dionisíaca da existência, o que Nietzsche afirma em 1889 e que confere a Assim falava Zaratustra uma decisiva significação estética. E com isso toco no ponto de onde eu pela primeira vez saí – o “Nascimento da Tragédia” foi a minha primeira transvaloração de todos os valores: com isso eu retorno novamente ao solo de onde meu querer, meu poder crescem – Eu, o último discípulo do filósofo Dionísio – Eu, o mestre do ensinamento do eterno retorno (GD/CI “O que devo aos antigos” § 4).

Todavia, o reaparecimento do dionisíaco em Assim falava Z ­ aratustra implica na questão de seu estatuto. Se, em O nascimento da tragédia, Dionísio é associado a Apolo dando origem à arte trágica, naquela obra posterior, Apolo não é mencionado, muito embora aspectos associados a ele possam ser antevistos tanto na figura resplandecente de Zaratustra (Machado, 1997, p. 40) como no ensinamento do além-do-homem, com o qual ele deseja criar a mais bela imagem. A partir desses pontos, o quarto e último capítulo se direcionará à consideração do ensinamento do além-do-homem a partir de seu traço apolíneo, p ­ osto como preparação e consolo que antece­de o ensinamento dionisíaco do eterno retorno. A possibilidade de interpretá-lo como ideal baseia-se justamente nessa proximidade entre o ensinamento e a perspectiva apolínea de que Nietzsche faz uso, aproximando-a da inspiração dos gregos na fase mítica de sua cultura e, portanto, diferenciado do idealismo artístico e filosófico de seu tempo. Segundo esses fatores, é possível pensar o além-do-homem como ensinamento que se justifica esteticamente, porque a intenção de Nietzsche não é mais fundamentar a sua filosofia segundo argumentos tradicionais, teóricos ou científicos (Abel, 1998, p. 249), mas fazê-lo por meio da sua força ­afirmativa e embelezadora da vida. 7

Pois, mesmo a despeito das críticas posteriores feitas pelo próprio Nietzsche àquele livro, ele ­também afirma que, dentre as inovações decisivas (entscheidenden Neuerungen) contidas nele, são dignas de atenção o entendimento do fenômeno dionisíaco (dionysichen Phänomens) entre os gregos, a interpretação do socratismo (Sokratismus) como instrumento de dissolução grega (Werkzeug der ­griechischen Auflösung), assim como a caracterização de Sócrates como decadente típico (typischer décadent). EH/ EH GT/NT §1. KSA 6. 25

Capitulo I

A perspectiva trágica

1. O apolíneo, o dionisíaco e o mistério de unidade O Nascimento da tragédia é um livro que tematicamente se insere em um longo ­contexto da reflexão na Alemanha acerca dos gregos e de sua sig­nificação para a formação do homem (Bildung), para a arte e para a cultura. Desde o século XVII, com Winckelmann, os gregos foram toma­dos pelos alemães como modelos a serem seguidos e copiados, enquanto arquétipos para a formulação de uma concepção de cultura elevada, carac­te­ rizada pela naturalidade e pela idealidade (Winckelmann, 1995, p. 13). Dessa t­ endência resultou um forte anseio por uma compreensão originária dos helenos, a partir do estabelecimento de clara diferenciação entre eles e as culturas alexandrina e romana. Mesmo que de modo multifacetado, a via de consideração iniciada por Winckelmann percorre toda a reflexão alemã acerca dos gregos e, sem dúvida, deixa seus vestígios nas reflexões iniciais de Nietzsche sobre os helenos (NF/FP: KSA 7, 7[66], final de 1870 – abril de 1871). Pode-se perceber a sua influência em O nascimento da tragédia, na interpretação da arte apolínea, na concepção da arte enquanto produto da manifestação dos impulsos artísticos da natureza e da serenidade grega, se considerada a nobre simplicidade e grandeza serena que Winckelmann interpreta no Laocoonte (­Winckelmann, 1995, p. 20). Mas a tendência, que esse autor tão emblematicamente inicia e identifica, origina, na Alemanha, dois movimentos concernentes à interpretação dos gregos. A primeira variante de valorização dos ­helenos é o neoclassicismo, que viria a aferir marca indelével à filologia germânica que, influenciada inicialmente pelo luteranismo (­Britto, 2009, p. 12) e pela interpretação das Escrituras, já se encontra e­ stabelecida em Baumgarten (Mattos, 2008, p. 76) e Wolff. Essa encaminha-se, decididamente, a partir do romantismo, para um esforço em buscar uma interpre­tação purista da língua alemã, a partir do ­pressuposto da originalidade da língua grega. A segunda tendência, a filosófico-artística, romântica, busca encontrar dados da singularidade helênica não apenas em fatores históricos, geográficos e políticos, mas também em suas qualidades inerentes, a partir de uma “interpretação” naturalista.1 Essa t­endência que, apesar de igualmente ter em Winckelmann seu principal precursor (Süssekind, 2008, p. 76), pode 1

Utilizo aqui essa designação no sentido segundo o qual Rudolf Steiner se refere à arte grega, como: “uma extensão do viver e atuar dentro da natureza”. Steiner, 1998, p. 13. 27

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ser estendida, ainda que de forma bastante díspare, a Lessing, ­Herder, Goethe, ­Schiller e Hölderlin. Os três últimos podem ser caracterizados como grandes expoentes de uma corrente de interpretação naturalista da arte grega, que buscou se afastar dos forma­lismos e modismos modernos, fundamentalmente do c­ lassicismo francês, objetando com isso identificar uma forma natural de manifestação artística. Hölderlin apresenta uma tendência que pode ser aproximada da inaugurada por ­W inckelmann, na medida em que, em Hyperion, o protagonista, que dá nome à obra, nasce e cresce em meio à natureza. Educa­do pelo irmão, Adamas, segundo os antigos mitos, Hy­perion apenas ­supera a solidão e a crueldade da guerra reencontrando, na Grécia, a natureza de sua juventude, apresentada pelo autor como oposta à civilização e à condição da cultura alemã. “Trata-se de palavras duras, que eu mesmo assim profiro, pois são verdadeiras: Eu não posso pensar em nenhum outro povo que fosse mais dilace­rado (zerrissner) que os alemães” (­Hölderlin, 1979, p. 190). Goethe e Schiller oscilam entre críticas direcionadas às artes francesas2 e influências gregas, sendo que, este último pode ser visto já como voltado à problematização do modo de se inter­pretar os helenos, o que o leva, de modo bastante particular, a até mesmo afirmar a superiori­da­de dos modernos sobre os antigos (Süssekind, 2005, p. 168). Esse aspecto possui ­grande repercussão nas posições adotadas por Nie­tzsche, desde a inovação de sua inter­pretação filosó­fica da tragédia grega – e não unicamente filológica (EF HF/HF, p. 268) – até a sua declaração de independência de sua interpretação dos helenos com respeito à ­tradi­ção (EH/EH “O que devo aos antigos”, § 2). Com isso, ele se aproxima de um ponto de vista já defendido por Goethe, que associa o espírito evoluído com a alta erudição da época e não se deixa restringir pela mera cópia dos antigos, mas pensa na assimilação de seus princípios como forma de impulsionar um impulso criativo (­Goethe, 2008, p. 233). Essas duas disposições estão decisivamente presentes nos posiciona­mentos de Nietzsche em O nascimento da tragédia, influenciando expressivamente em pressupostos que constituem eixos argumentativos centrais do livro. Nesse sentido, uma referência direta e positiva a Winckelmann, Goethe e Schiller encontra-se no § 20, e direciona-se respectivamente à crítica do enfraquecimento do impulso de consideração dos helenos. Os caracteres dessa censura, associados à forma de exposição do livro, como já dito, fundamentalmente filosófica – o que vem a ser um dos pontos centrais da crítica posterior de Wilamowitz-Möllendorff à interpretação da tragédia de Nietzsche –, revelam que, em seu livro inaugural, o autor encontra-se muito mais próximo da interpretação filosófico-literária dos gregos que da filológica (Machado, 2005, p. 15). Desse modo, a 2

Como nos casos de Goethe, com Ifigênia em Táuris, e de Schiller, com Don Carlos, em que personagens nobres e não mais apenas burgueses constituem as principais personagens. 28

a perspectiva trágica

sua reflexão se remete diretamente ao modo de como, a propósito de ­considerar a significação da arte trágica grega para a contemporaneidade (Chaves, 2007, Introdução, p. 8), é necessário ressaltar a singularidade da expressão artística dos helenos, que então ele interpreta como exemplo ­característico de uma experiência estética original. Nie­ tzsche considera um contínuo avanço para a ciência estética compreender que a continuidade no de­sen­volvimento (Fortentwickelung) da arte decorre da atuação dos dois impulsos estéticos da natureza sem mediação humana, do apolíneo e do dionisíaco, por meio dos quais o autor visa considerar os profundos ensinamentos secretos da intuição artística grega (­Geheimlehren ihrer Kunstanschauung), (GT/NT § 1). A significação desse retorno à Grécia arcaica se deve, por sua vez, a um projeto de reforma cultural que o autor então vincula à arte wagneriana e que o leva a interpretar a arte helênica como produto de uma cultura unitária, fundada na sabedoria intuitiva e natural da vida, assim como no desfrute estético da arte. Influenciado pela filosofia ­voluntarista de Schopenhauer e mediante uma supervalorização de sua consideração da arte tida como meio contra o sofrimento do existir, Nietzsche interpreta o trágico grego como verídica manifestação da força vital daquele povo, fundada, para ele, na compreensão do caráter atroz da existência, que se torna singular pela superação estética do temor dessa intuição. A arte grega parece-lhe, então, como o núcleo possibilitador da existência dos helenos, pois é por seu intermédio que a própria existência lhes é tornada possível. A partir dessa concepção pulsional, que associa arte e vida, segundo a qual, nos gregos, se manifesta artisticamente em um jorro pleno e i­ ncessante de criação e experimentalismos, Nietzsche elabora o princípio nuclear de uma ­concepção de ­cultura, que lhe servirá de base para as suas considerações sobre os rumos da c­ ultura europeia. Com efeito, ele faz uso de uma noção de unidade cultural decorrente de sua interpretação dos helenos, mas que contém forte conotação estética, advinda da fi ­ losofia de Schopenhauer. Ambos os aspectos são decisivos para que se entenda o seu e­ ngajamento em prol da arte wagneriana que, em última análise, tinha em vista um projeto maior de reforma da cultura ocidental. Na obra de Wagner, Nietzsche interpreta a possibilidade de demons­trar a virtuosidade de uma coesão de valores e da fundação de uma concepção outra de cultura, distanciada daquela por ele vivenciada na Alemanha, ainda em efervescência devido à unificação lograda por Bismarck. O sentido para isso lhe é indicado precisamente pela interpretação natural dos gregos, enquanto contraposto a conceitos políticos, a ele contemporâneos, de cultura e de formação (Bildung). As questões da ­cultura e da formação constituem os temas prioritários dos primeiros empreendi­mentos filosóficos de Nie­ tzsche, e é, então, tendo-os em vista que ele retorna aos gregos. A sua perspectiva ­estética, fundada em uma interpretação bastante particular e já crítica da filosofia de S ­ chopenhauer, 29

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assim como no interesse pela obra de arte total de Wagner associada aos gregos, evidencia fatores fundamentais desse projeto reformador (Britto, 2010, p. 200). Parte-se aqui do ponto de vista de que o remetimento a aspectos centrais da interpretação da arte helênica realizada pelo autor consiste em um passo necessário e mesmo ­decisivo para a compreensão da sua filosofia no período. Em O nascimento da tragédia, o fator primário que para Nietzsche caracteriza a singularidade dos gregos é o apreço daquele povo pela existência, apreço este que se manifesta artisticamente. Essa interpretação se baseia na compreensão da significação da experiência estética dos helenos diante da percepção sem anteparos do sofrimento inerente à existência. Ao invés de negá-lo, os gregos criaram artisticamente meios para o seu embelezamento, superando assim o horror do existir. Esses são temas com presen­ ça enfática e constante tanto nos escritos como nos f­ ragmentos póstumos do primeiro período de elaboração do pensamento do autor, e que podem, por isso, ser considerados como demarcadores de ­problemáticas centrais do mesmo (Fink, 1983, p. 17). Eles possuem significação decisi­va tanto no que diz respeito à problematização do modelo cultural euro­peu fundado na racionalidade universalista da ciência, como na c­ onsidera­ção desse direcionamento como problema estético-vital (GT/NT § 1). Nietzsche parte do pressuposto de que a sensibilidade grega demonstra que a expe­ riência artística possui um grau de significação vital obliterado em seu tempo e que precisamente esse desconhecimento é sintoma de uma depreciação do significado da experiência estética e mesmo da vida. Esses traços ele identifica como presentes. de ma­ neira decisiva, no horizonte da cultura europeia. Tal ampliação do significado da arte apresenta, portanto, um segundo foco, subjacente à sua abordagem estética (Young, 1992, p. 25), o da significação vital da fruição artística, aspecto que Nietzsche visa tornar claro por meio da consideração do significado da tragédia e do trágico no contexto da cultura grega, assim como pela contraposição com a experiência suscitada pela arte em seu tempo. Influenciado pelos novos direcionamentos da filologia na Alemanha, d ­ evido aos rumos estabelecidos pela interpretação de Goethe dos gregos e pelo consequente afastamento do classicismo alemão norteado por Lessing,3 Nietzsche interpreta a arte grega por meio de dois p ­ rincípios estéticos fundamentais, com os quais ele busca delinear e demonstrar a significação da tragédia grega. Seu ponto de partida é o de que a arte grega advém do mistério da unidade (Einheitsmysteriums) (GT/NT “Tentativa de 3

Efetivamente Nietzsche se distancia do procedimento acadêmico filológico clássico alemão, para o qual a estética de Lessing ocupa uma posição central. Essa mudança de direcionamento está relacionada à leitura dos livros de Jakob Bernays, Die Gründzüge der verlorenen Abhandlung des Aristoteles über die Wirkungen der Tragödie (1857) e Die Katarsis des Aristoteles und der Oedipus C ­ oloneus des Sofokles (1866), de Paul Graf York von Wartenburg, livros que constroem uma leitura não tradicional da catarse na tragédia. Cf. Crescenzi, 1994, p. 213-16. 30

a perspectiva trágica

autocrítica” § 5) de dois impulsos estéticos da natureza, cujo entendimento poderia esclarecer o conteúdo vital da arte helênica (Young, 1992, p. 30) e, desse modo, demonstrar a sua significação para um ­projeto de renovação artística da cultura. Logo nas primeiras linhas de O nascimento da tragédia, Nietzsche é claro ao afirmar que os termos (Namen) por ele analisados são originários dos gregos e tomados como forma de expressar uma perspectiva eminente­mente artística, ou seja, isenta de qualquer conceituação (GT/NT § 1). Esse traço o autor interpreta na arte grega e constitui o aspecto decisivo para que ele possa considerar os helenos como um povo singular, sob o ponto de vista de sua sensibilidade artística. Tal comentário decorre do fato de Nie­ tzsche compreender a arte grega, em especial a tragédia, como oriunda de uma motivação singular dos helenos para os sentimentos, para o desejo impetuoso e com ­grande aptidão para o sofrimento (Leiden) e que tais características seriam evidentes na sua arte e, consequentemente, na sua cultura. O filósofo deseja, com isso, ressaltar a significação da arte para a cultura e para a vida e, assim, propor uma avaliação s­ emelhante para a arte wagneriana, entendida por ele como via para uma possível renovação c­ ultural da Europa. Tal ponto de vista decorre da interpretação de que, na modernidade, dá-se o embotamento da compreensão do significado da arte e de que isso também significa um sintoma de desagregação vital e cultural. Os helenos, segundo Nietzsche, possuíam uma relação natural para com a vida e expressavam a dor e o sofrimento através do filtro e­ mbeleza­dor da arte (Schacht, 1995, p. 134). A arte trágica grega, em seu misto de beleza e sofrimento, é interpretada por ele como expressão de um desejo inconteste do homem grego por continuar vivendo.4 Ele sustenta a sua posição no argumento segundo o qual, na arte grega, o não mascaramento da verdade essencial do mundo em sua crueldade – fonte incessante e intranspo­ nível de sofrimento – consiste em uma justificação artística da existência, por meio da qual os gregos não apenas superaram o ­pessimismo diante do existir, como ainda lograram produzir uma cultura exuberante e afirmativa. Segundo essa interpretação, a arte grega, considerada pela ótica de Nietzsche, comporta dois significados: a) ela é considerada – como na tragédia – representação de uma estória de final infeliz, na qual o espectador já sabia o destino cruel reservado ao protagonista; b) ao mesmo tempo – e contrariamente ao primeiro efeito que poderia suscitar –, ela é também uma forma manifesta de apreço e júbilo pela ­existência, pois, a partir dela, os gregos teriam criado 4

GT/NT § 3. Para Baranger, a abordagem de Nietzsche da arte trágica grega o faz descobrir uma nova espécie de pessimismo. Segundo o autor, mesmo que Nie­tzsche tenha partido da ­interpretação schopenhaueriana do pessimismo, de raízes hindus, ele se refere a outro tipo de pessimismo, o pessimismo ativo, da força, concebido a partir do modelo dos gregos pré-socráticos. Baranger, 1946, p. 29. 31

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um antídoto contra uma compreensão pessimista do existir, cuja imagem excelsa seria a dos deuses olímpicos (GT/NT, § 3). Tomar a arte trágica grega como ponto de partida para a consideração das possibilidades da arte adquire significação para Nietzsche precisamente em decorrência da relação segundo a qual, nela, a união da arte com sofrimento e vida, ao contrário dos orientais que se voltaram para o quietismo e para a interiorização, teria levado os gregos à glorificação da existência ativa e ao anseio pelo viver. Na arte trágica, manifesta-se a própria vontade, de forma ideal, na música e nos personagens representados no palco. Esse aspecto singularizaria tanto os gregos como a sua arte, pois teria sido justamente ela o instrumento primeiro desse anseio, da expressão máxima do desejo de afirmação e embelezamento da vida: Esta é a esfera da beleza, na qual eles [os gregos] viam a sua imagem refletida, os olímpicos. Com essa arma lutava a vontade helênica contra o correlativo talento para o sofrimento e para a sabedoria do sofrimento. Desta luta, e como monumento de sua vitória, nasceu a tragédia (EP: GG/NP. KSA 1, p. 590).

Desse modo, a arte trágica grega constitui-se em um objeto paradig­mático de consideração por parte de Nietzsche, não unicamente devido à sua significação e­ stética, mas em decorrência da concepção de que ela possui uma significação outra, ainda mais fundamental, que extrapolaria o campo da expressão artística. Essa qualidade foi apartada da arte contemporânea, em decorrência do processo de racionalização da expressão artística, assim como devido à desvinculação da arte da formação do indivíduo (Bildung), ocorrida no transcurso do tempo que separa a cultu­ra grega da moderna.5 Essa é uma das afirmações centrais da obra inaugural de Nietzsche, por conseguinte, a partir dela ele busca argumentar em favor da interpretação segundo a qual a arte grega não se restringe a uma mera forma de expressão artística, tal como ela seria ­modernamente interpretada. Antes, ela é manifestação dos impulsos artísticos naturais (Kunsttriebe der Natur) (GT/NT § 1), procedentes da vontade, que, na tentativa de manter na ­existência as suas próprias manifestações, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, e­ nquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência. Por meio dos impulsos, a vontade tenta obstar a sua própria manifestação sem limites, o que Nietzsche identifica nos filósofos pré-platônicos e interpreta como a negação da vontade em prol da própria vontade (NF/FP: 7, 21 [16] verão de 1872 – início de 1873). Os impulsos e a arte gerada a partir de sua manifestação são formas e resultados da 5

A partir disso, Nietzsche pode afirmar que, no que se refere à Ópera, esta seria apenas o quadro distorcido (Zerrbild) do antigo drama musical, de onde decorre diretamente o macaquear (­Nachäffung) da antiguidade tornada sem força e ­segundo uma teoria abstrata. Cf. EP. “O drama musical grego” (NS/EP: GM/DM. KSA 1, p. 516). 32

a perspectiva trágica

domesticação (Bändigung) da vontade, que ocorre esteticamente, por intermédio da criação de mundos artísticos (Kunstwelten). A singularidade da arte grega decorre da característica de que nela os impulsos naturais se manifestam esteticamente, produzindo estímulos sensoriais e transmutando em experiência estética a percepção de fenôme­nos naturais, tais como a fecundidade do impulso primaveril (Fruhlingstrieb) e a ordenação do ciclo natural (EP: NPT, KSA 1, p. 582). Convencido dessa concepção, Nietzsche identifica dois impulsos naturais que, em contraposição mútua, a exemplo do sonho e da embriaguez, exprimem a origem da arte grega. O primeiro é expresso pela percepção apolínea do mundo, pré-condição para toda a arte figurativa (bildende Kunst) (GT/NT § 1), manifestação do mundo onírico dos gregos e que atua como anteparo embelezador diante da compreensão trágica da existência. A outra forma de manifestação natural, surgida posteriormente, é a arte dionisíaca, expressão livre dos impulsos vitais, que remete o homem novamente ao centro da natureza e da dura realidade desta. Por seu intermédio, é explicitada ao grego, pela segunda vez, a veracidade trágica da existência. Porém, ao mesmo tempo em que traz de volta a ­experiência pré-apolínea, titânica, do mundo, a arte dionisíaca une-se a Apolo e b ­ usca transfigurar e redimir essa percepção por meio de um sentimento místico de unidade (Mystische Einheitsempfindung), (Higgins, 1987, p. 22), responsável pela reconciliação não apenas entre homem e homem, como também deste com a natureza (EP: DW/VD § 1, KSA 1) e, portanto, com a vontade, o uno primordial (Ureinen), (GT/NT § 2), o ser original (Ursein), a essência contraditória do mundo, que coloca tu­do no espaço e no tempo e em forma de aparência. Para Nietzsche, o efeito primeiro do apolíneo é possibilitar o pricipium individuationis,6 ou seja, o fator subjetivo atenuante na relação direta entre homem e natureza, que se manifesta na experiência estética ­consciente. Movidos por sua sensibilidade singular e pela percepção da inclemência do mundo presente na sua primeira religião, os gregos criaram a arte figurativa de Apolo, fundada na bela aparência, como meio atenuante do retorno da antiga percepção. Mas, contrariamente aos modernos, eles criaram não uma negação do caráter ameaçador da existência, mas sim geraram uma forma afirmativa de 6

Young indica dois sentidos na utilização do termo “Apolo” por Nietzsche: em uma primeira ocorrência, ele se relaciona à arte e, em uma segunda, tem sentido metafísico. Com respeito ao ­primeiro significado, o comentador indica que Nietzsche deseja falar da conexão necessária entre o apolíneo e a beleza; no que se refere ao segundo, o filósofo utiliza a terminologia schopenhaueriana e pensa Apolo aproximando-o do pricipium individuationis, a faculdade humana que divide o mundo em uma pluralidade de impressões espaço-temporais individuais. (Op. cit., p. 32). De fato, na atualidade, é consenso que Nietzsche faz uso da dicotomia conceitual schopenhaueriana de vontade de representação para conceber o dionisíaco e o apolíneo. Porém, é importante ressaltar o seu distanciamento com relação a Schopenhauer já em seu primeiro livro. Fator que se evidencia no fato dele interpretar a arte grega não como um mero paliativo contra o sofrimento do existir, mas como antídoto efetivo contra o pessimismo causado pelo sofrimento deste. 33

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suportá-lo, por intermédio do embele­zamento da crueldade própria do existir. É esta, para Nietzsche, a caracte­rística fisiológica – porém não patológica – fundamental do apolíneo e que marca toda a arte helênica: simultaneamente, ser manifestação da experiência onírica, condição primeira de toda arte plástica e, destarte, a força de apaziguamento do caráter destrutivo da natureza.7 Desse modo, ele é o meio de afirmação da existência por intermédio do seu embeleza­mento, o que o torna uma potência artística afirmativa. Diante do terror do homem grego, suscitado pelas exigências do existir e representado na anterior teogonia titânica, a arte apolínea não nega uma compreensão verídica e cruel da existência, mas protege a­ quele do poder destrutivo dessa compreensão através de sua arte figurativa, cujo monumento é Homero (Machado, R., 1999, p. 20), o artista ingênuo,8 imerso no mundo da figuração (Barrack, 1974, p. 116) de um ­mundo determinado pelo destino inevitável. Assim, a salvação do homem grego é possível devido à arte e às criações do mundo figurativo do sonho, cuja expressão primeira seria o mundo intermediário dos olímpicos (Mittelwelt der Olympier) que, em última a­ nálise, é a expressão da vontade helênica (hellenische Wille). Esta coloca a arte diante de si como um espelho transfi­gurador (verklärender Spiegel), como forma de lutar contra o correlativo talento artístico para o sofrer e para a sabedoria do sofrer própria do homem grego (GT/NT § 3). A compreensão desses aspectos é essencial para se entender a descri­ção de N ­ ietzsche do processo de surgimento da tragédia. Segundo ele, é necessário associar a arte a­ polínea com outra de manifestação artística grega, a poesia popular, para, então, ser possível compreender a origem do trágico. As raízes da poesia popular remontam ao solo do impulso dionisía­co, que – em formulação claramente influenciada por Schopenhauer – seria a expressão da vontade, da essência volitiva do mundo, em sua ­busca de redenção do sofrimento causado pelo querer, mediante a bela a­ parência. O filósofo recorre, então, a uma das fábulas referentes a Sileno, o sátiro habitante das florestas e servidor de Dionísio, para justificar a interpretação da poesia popular como exemplo p ­ aradigmático do conteúdo de sofrimento inerente à arte grega. 7

Com tal proposição, Nietzsche busca acentuar a significação do pessimismo entre os gregos. Com ela, ele pode se afastar da interpretação tradicional dos gregos desde Winckelmann, que descreve os helenos como povo sereno e comedido. Baranger, op. cit., p. 34. 8 A indicação da proximidade entre as posições de Nietzsche e de Schiller se faz aqui necessária. Ao relacionar o artista ingênuo (naif) ao impulso apolíneo, Nie­tzsche se aproxima claramente da interpretação de Schiller, para quem o poeta, mesmo ao buscar representar o natural, nunca o faz de modo real. O seu representar permanece sempre ideal (Schiller. Acerca do coro trágico na tragédia, 1999, p. 688), pois esta, manifestada no poeta ingênuo, pode ser interpretada como uma atitude natural, sem jamais ser naturalista (Idem. Sobre a poesia ingênua e sentimental. p. 375). Em ­Nietzsche, como será abordado na terceira parte deste livro, o aspecto ideal da arte épica consiste em um ponto central de sua consideração positiva da arte grega. 34

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O sábio Sileno, perseguido por longo tempo na floresta pelo rei Midas, um dia veio, finalmente, a tornar-se deste prisioneiro. Inquirido acerca do que seria entre todas as coisas o mais preferível para os homens, o seguidor de Dionísio, forçado a responder, o fez com ironia, afirmando que, para os homens, estirpe miserável de filhos do acaso e do tormento, o melhor seria inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser, e que, depois disso, o melhor seria logo morrer (GT/NT § 3). Segundo Nietzsche, essa narrativa, produto da sabedoria popular dos gregos, exprime claramente os dois aspectos essenciais da natureza grega e de sua arte: o retratar a existência em toda a sua dureza9 e o caráter embelezador da sua representação. ­Desse modo, ela é interpretada como visão desesperançada, no que se refere ao amenizar da dureza inelutável da existência e do destino – aspecto perceptível na primeira r­ eligião grega –, mas que ameniza tal compreensão de forma afirmativa, por meio da representação artística esteticamente sedutora. A embriaguez do sofrer e do belo sonho tem seus diferentes mundos de deuses. O primeiro penetra, na onipotência de sua essência, nos mais profundos pensamentos da natureza, ele reconhece os terríveis impulsos para o existir e, ao mesmo tempo, a contínua morte de todos os ­ingressos na existência. Os deuses que ele cria são bons e maus. Assemelhados ao acaso, assustam através da imediata alteração da sistematicidade, são impiedosos e sem o prazer no belo. Eles são parentes da verdade, e se aproximam do conceito; raros e pesados, comprimem-se em formas. Olhar para eles transforma em pedra; como se deve viver com eles? Mas isso também não se deve: Este é o seu ensinamento (EP: GTG/NPT, KSA 1, p. 590/1).

Segundo esse ponto de vista, os deuses pré-olímpicos seriam unicamente a expressão da verdade da natureza e, portanto, a expressão mais fiel da existência; de onde decorre o seu caráter sombrio e duro, pois esses traços são justamente representação da existência em sua verdade (Baranger, 1946, p. 33). Como antídoto contra esse saber, os gregos teriam criado para si a bela imagem do mundo olímpico, com as elevadas representações dos deuses em sublimes figuras, como forma de tornar suportável a dor por meio da aparência (Machado, 1989, p. 18). O que caracteriza essencialmente para Nietzsche a cultura apolínea é não apenas o seu conteúdo ter sido transmitido por meio do efeito embelezador da arte, mas nela 9

Vale ressaltar aqui que a temática da dor do mundo (Weltschmerz) consiste em um aspecto central do movimento Sturm und Drand. Para os representantes do movi­mento, ela é associada aos c­ onflitos entre indivíduo (gênio artístico) e sociedade, no qual a libertação das regras artísticas se dá por meio da liberação de impulsos, naturais e vigorosos. Outros aspectos relativos aos pré-românticos alemães, e a serem indicados como pertinentes à compreensão de determinados elementos presentes no primeiro livro de Nietzsche, são: a referência à idade média, a crítica da interpretação aristotélica do drama e a redescoberta de Homero. Cf. Werle, 2000. p. 23. 35

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não se encontrar nenhuma condenação ou desejo de abandono do mundo e da ­existência, pois a verdadeira dor dos homens homéricos está em separar-se da existência (GT/NT § 3). Esse posicionamento, que desempenha importante papel em toda a sua filosofia e influencia determinantemente a sua consideração da arte, o impulsiona a afirmar que o embelezamento apolíneo funcionaria como uma poção mágica (Zaubertrank), que a tudo diviniza, não importando se bom ou mau. Ele seria, portanto, a fonte de uma religião que encontraria a sua máxima expressão na imagem da montanha mágica do olimpo e na figura de seus deuses (NS/EP GTG/NPT § 1, KSA 1, p. 595). Desse modo, o grego é salvo da compreensão terrificante da verdade do existir pela arte figurativa de Apolo, através da serena alegria (Heiterkeit)10 da transfiguração a­ polí­nea dos deuses olímpicos. Destarte, para Nietzsche, a arte apolínea origina uma forma de embelezamento como meio de suportar o terrível que caracteriza a existência (GT/NT § 2). Disso decorre a sua afirmação de que toda a beleza e o ­comedimento do apolíneo repousam sobre um substrato de sofrimento (GT/NT § 4). Utilizando de nomenclatura schopenhaueriana, Nietzsche, ao explicitar aquilo que entende como impulso apolíneo e sua significação para a cultura grega, refere-se primeiramente ao Uno-primordial, a vontade, cujo alvo é a sua redenção pela aparência. É a partir da vontade que o grego percebe, de modo sublime, quão necessário é o mundo do t­ ormento para a sua i­ nclinação à arte e à beleza artística, o que lhe serve então de motivação para buscar uma visão redentora (erlösenden Vision) (GT/NT § 2) da existência. Um dos objetivos primordiais de O nascimento da tragédia consiste justamente em decodificar para o seu tempo essa nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos. Isso, a partir do ponto de vista de que, se ela se fundava em uma concepção acerca da existência, esse sentimento e a interpretação do mundo que ele suscita possuem um caráter estético afirmativo, que deve ser necessaria­ men­te aclarado, o que apenas pode ser feito mediante uma análise da proveniência e do sentido da arte grega. Todavia, esse intento não pode ser levado a cabo utilizando-se unicamente o discurso teórico (Barranger, 1946, p. 25), que de imediato já tem i­ ndicados os seus aspectos conflitantes com uma perspectiva fundamentalmente artística (­Machado, 1997, p. 25). Se, para Nietzsche, a tragédia grega tem uma origem natural, ou seja, se ela é a expressão da unidade primordial do mundo, da vontade (Higgins, 1987, p. 22), ­expressa artisticamente, precisamente por esse aspecto ela não deve ser interpretada segundo 10

Com respeito à opção pela tradução de Paulo Cesar de Souza (1999) do termo Heiterkeit como “serena alegria”, deseja-se ressaltar aqui também a validade da solução encontrada por J. Guinsburg (1992) em sua tradução brasileira da ­primeira obra de Nietzsche, ao expressá-la a partir do composto “sereno-jovialidade”. Com efeito, Heiter está associada à ideia de uma paz interior, ao passo que Heiterkeit aproxima-se mais de noções como alegria e hilaridade. 36

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pressupostos unicamente teóricos, pois esses pouco ou mesmo nada têm a ver com os instintos artísticos dos antigos gregos. É a consideração dos impulsos estéticos dos helenos que guia a interpretação nietzschiana do trágico, que pressupõe a total circunscrição no mundo natural, apenas passível de ser p ­ lenamente compreendida por meio dos dois impulsos estéticos da natureza. Desse modo, aquilo que Nietzsche ­compreende como ensinamento grego dos mistérios foi transmitido artisticamente e expressa uma visão natural de mundo e evidencia a sua dupla fonte (Doppelquell). No campo da arte, após um período de franca oposição e em um momento de fl ­ orescimento da vontade helênica, os dois impulsos aparecem confundidos, em uma contraposição que teria constituído o ponto culminante da arte grega (EP: NPT, KSA1, 583). Apolo é d ­ escrito por Nietzsche por meio de uma inter­pretação psicológica, que se estabelece ao dar vazão nos gregos à alegre necessidade da experiência onírica (freudige Nothwendigkeit ­Traumerfahrung), expressa mediante a arte apolínea.11 Isso torna a divindade grega ­sinônimo de todas as forças figurativas, o Deus áugure, pois, segundo a raiz do próprio nome, Apolo significaria o “deus aparente” (scheinende), a divindade da luz, que reina, por meio da bela aparência, sobre o mundo interior da fantasia (Nietzsche, GT/NT § 1). Em contraposição ao mundo cotidiano, a aparência apolínea apresenta-se como uma verdade superior, mais perfeita e ainda relacionada à capacidade reparadora e curativa do mundo do sonho, por meio da qual a vida torna-se digna e possível de ser vivida. A imagem apolínea, no entanto, não aspira alcançar o mesmo grau da realidade gros­seira (Young, 1992, p. 31), e eis em que consiste um de seus traços mais significativos. Para ela, não constitui qualquer falha o permanecer unicamente como imagem onírica, pois somente assim ela pode alcançar a liberdade frente às emoções mais selvagens e ­expressar a sábia tranquilidade própria do deus figurativo (Bildnergottes) (GT/NT § 2). Segundo Nietzsche, o apolí­neo consiste inicialmente no impulso dominante e solitário na arte ­grega, produtor da bela aparência do mundo do sonho, onde todo homem é um artista completo. Ele é, portanto, o pai de toda a arte figurativa, cuja expressão primeira são tanto as artes plásticas como também uma importante metade da poesia. Entretanto, a avaliação da origem da tragédia e do gênio trágico entre os gregos requer a consideração do dionisíaco em sua relação confli­tante, porém complementar (Young, 1992, p. 32) com o apolíneo. S ­ egundo o autor, o efeito da arte apolínea, o pro11

Muito embora não encontremos em NT referências a uma perspectiva psico­lógica específica, é inegável que nessa obra é possível antever traços que se fazem presen­tes na reflexão posterior do filósofo. A esse respeito, o próprio Nietzsche se refere, no “Prefácio” acrescido em 1886 a NT, às inovações psicológicas presentes no livro (§ 2). Dentre estas, podemos indicar aqui a relação entre o corpo, os instintos, as pulsões e a expressividade, que visa, desde a obra inicial, refutar as interpretações idealistas, racionalistas e moralizantes acerca das criações da ­cultura. A esse respei­to, conferir o artigo de Wotling, Patrick. “Der Weg zu den Grundproblemen”. Statut et structure de la psicologie dans la pensée de Nietzsche. Nietzsche-Studien, 26, 1997. 37

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piciar a serenidade mesmo diante da realidade apavorante, torna-se inócuo após nova revelação do verdadei­ro caráter da existência, suscitada na Grécia pela inserção do dionisíaco estrangeiro (Machado, 1999, p. 21). Dionísio é descrito por Nietzsche como o deus vindo do oriente, como a manifestação de impulsos ­artísti­cos que, sem a ­mediação do artista, irrompem da própria natureza e se satisfazem (befreidigen) por via direta (GT/NT § 1). Adentrando na Grécia, ele encontra na grande inclinação da sensibilidade helênica para o sofrimento uma qualidade ausente entre os orientais (NS/EP: GTG/NPT, KSA 1, p. 591). O seu efeito primeiro é a destruição da bela aparência da arte figurativa apolínea, remetendo o homem novamente ao estado de completa ­imersão e inconsciência no cerne da natureza, no qual a v­ erdade desta se manifesta imediatamente (Ibidem., p. 583). Segundo Nietzsche, tudo o que até então servira como f­ rontei­ra e medida de determinação, mostra-se, a partir de então, como aparência artística, e a desmesura é descoberta como verdade (Ibidem., p. 598). Nunca, porém, foi a luta entre verdade e beleza maior que na invasão dos servidores de Dionísio. Neles a natureza descobria-se e falava de seu segredo com terrível c­ lareza, com o tom, diante do qual a sedutora aparência anterior perdia o ser poder (NS/EP: GTG/NPT, KSA 1, 591).

No mundo da aparência apolínea, que tem por objetivo o respeito ético às medidas e ao estabelecimento das fronteiras do saber e do conhe­cimento da verdade, o preceito fundamental seria justamente a a­ dvertência “conhece a ti mesmo” (GT/NT § 4). O tom arrebatador das festas dionisíacas, o seu excesso de natureza, o seu desejo pelo sofrer e o reconhecimento da verdade da existência apresentam-se como o oposto desse ­princípio e teriam, novamente, desvelado a verdade encoberta pelo apolí­neo (Young, 1992, p. 35). Desse modo, o dionisíaco empalidece o brilho dos deuses olímpicos, do mesmo modo que afugenta as musas das diferen­tes artes, pois põe por terra os anteriores limites e medidas e, n ­ ovamente, expõe a sabedoria de Sileno (NS/EP: GTG/NPT, KSA 1, 594). Para Nietzsche, o efeito imediato da inserção do dionisíaco na ­cultu­ra e nas artes gregas resulta no aniquilamento dos hábitos e dos limites im­postos à compreensão da existência pelo apolíneo. O estado letárgico no qual são deixados os adoradores de Dionísio, durante o qual eles mer­gu­lham em suas experiências mais instintivas, deixa novamente à mostra o abismo estabelecido entre o mundo apolíneo e o mundo da realidade natural. O resultado mais assustador dessa experiência é a chegada da realidade da existência à consciência do grego, que lhe suscita asco e t­ er­ror diante de sua c­ ompreensão sem anteparos, do que resulta o desejo maior e imediato dos helenos, a fuga de um mundo a partir de então sentido como repleto de culpa e de destino atroz e inexorável. Ao grego resta, portanto, apenas a compreensão do terrível e do absurdo da existência. 38

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As musas das artes da “aparência” empalideceram diante de uma arte que em sua embriaguez falava a verdade. A sabedoria de Sileno gritava: “Sofrimento! Sofrimento!” contra os serenos olímpicos. O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, caía no esquecimento de si dos estados dionisíacos e esquecia os preceitos apolíneos. A desme­ sura se desvelava como verdade; a contradição e o enlevo nascido da dor se expressavam do coração da natureza. E assim foi que, em todo lugar onde penetrou o dionisíaco, o apolíneo foi superado e aniquilado (GT/NT § 4).

Esse conflito, no entanto, antes de se constituir em uma contraposi­ção ­unicamente negativa, revela-se também como um momento de realização da intenção básica da vontade. Para Nietzsche, a finalidade da vontade seria a manutenção da vida por meio de sua redenção estética, o que significa o seu apaziguamento através do efeito da ação artística. Esse conflito, segundo o autor, tem como fator primeiro justamente a reafirmação da necessidade do apolíneo, pois teria sido exatamente o seu impulso figurativo e o seu senso de medida, ao retirar as armas destruidoras do dionisíaco, que salvaram o grego do aniquilamento (Machado, 1993, p. 23). Aqui é alcançada a perigosa fronteira que a vontade helênica, com seu princípio funda­mental apolíneo otimista poderia permitir. Aqui ele [o apolíneo] atua imediatamente com sua força curativa da natureza, para novamente dobrar aquele ânimo negador. Seu meio é a obra de arte trágica e o pensamento trágico (NS/EP. GTG/ NPT. KSA 1, p. 595).

Portanto, antes de significar o banimento dos princípios e da arte apolínea, esse conflito teria revelado novamente ao grego a importância e a necessidade desta, demonstradas mediante a indicação de uma reconciliação de Apolo com Dionísio, na qual ocorreu a supressão do traço letal do deus estrangeiro e a transformação dos p ­ ensamentos sobre o terrível e o absurdo da existência em representações, com as quais, então, seria possível viver. Desse modo, o Deus délfico salva novamente os g­ regos da renúncia ao viver, por meio da adequação das suas forças representativas à música dionisíaca, e assim supera, com descargas artísticas, os sentimentos de asco e de absurdo, suscitados pela compreensão da verdade da existência (Ibidem., p. 595). Essa interpretação serve de base para Nietzsche na descrição do processo de formação da tragédia, a partir da consideração das expressões artísticas dos dois impulsos naturais. Segundo essa concepção, a tragédia se originou da imagem embelezadora apolínea, fonte da qual adveio o epos, resultado da atuação do artista épico em inserção total no mundo da contemplação estética, associada à música dionisíaca. Dessa originou-se o coro de seguidores do Deus bárbaro, enquanto expressão isenta de imagem, mas como contemplação intuitiva da dor original do existir. Ambos os impulsos são, cada 39

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um a seu modo, claras e nítidas representações do mundo, porém manifestas por diferentes meios e, portanto, nada mais que expressões da vontade, manifestas em sua busca por redenção estética. Da união de ambas resultou a canção popular (Volkslied), perpetuum vestígium da fusão do epos apolíneo e da música dionisíaca (GT/NT § 6). A canção popular, porém, se nos apresenta, antes de mais nada, como espelho musical do mundo, como melodia original, que procura agora uma aparência onírica paralela e a exprime na poesia. A melodia é, portanto, o primeiro e universal, podendo, ­portanto por isso, suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos (Ibidem).

Para Nietzsche, a poesia lírica origina-se da tentativa de imitação da música por meio de imagens e conceitos, resultado do momento no qual aquela, na sua amplitude e maior inteligibilidade (NS/EP: GMD/DM, KSA 1, p. 529), aspira ser a expressão musical do mundo; como melodia primeira que deseja uma aparência onírica e se expri­ me na ­poesia. Assim, na poesia da canção popular, a “linguagem se empenharia ao máximo para imitar a música” e a sua amplitude de possibilidades. Isso põe à mostra que a palavra, na imagística do conceito, atua como ­vontade, por também aspirar o mesmo grau de expressão da música. Ela faz oposi­ção ao estado de ânimo estético, puramente contemplativo: a afonia; ou o ânimo destituído de vontade (Willenlose ­Stimmung), que, desse modo, diferencia o conceito de essência do fenômeno (Wesen von der ­Erscheinung), ou seja, a vontade de sua manifestação estética (GT/NT § 6). A música torna-se, então, o veículo primeiro da vontade, a eterna sofredora e plena de contradição, que necessita para a sua redenção da aparência prazerosa (GT/ NT § 4). Isso dispõe Nietzsche a concluir que a tragédia se origina da união da representação com o coro, enquanto tentativa de apaziguar o impulso insaciável da vontade; o que ele descreve segundo a interpretação de Schiller, para quem o coro foi como uma muralha viva que a tragédia trazia em volta de si, a fim de salvaguardar sua base ideal e a sua liberdade poética (GT/NT § 8). Desse modo, os gregos criam um mundo real, dotado de mesma realidade que o mundo olímpico, que se constitui em um consolo meta­fí­sico (metaphysischer Trost), o qual assevera que a vida, apesar de toda a transitoriedade dos fenômenos, é i­ ndestrutível e cheia de alegria. Esse efeito pode ser visto no coro satírico, com seus seres naturais, eternamente existentes na história dos povos (GT/NT § 7). Para Nietzsche, é justamente com esse coro que se confortam os gregos em sua aptidão singular para o sofrimento. Eles veem o centro da terrível ação destrutiva na história e a crueldade da natureza, mas, ante o perigo de desejar uma negação do q­ uerer, encontram a salvação por meio da arte. A arte é, para os gregos, o antídoto contra o sofrimento causado pela percepção do sofrimento. Por meio dela, este se torna não 40

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apenas suportável, mas também apreciável, o que possibilita aos helenos a ­continuidade do querer viver. Nietzsche enfatiza essa função vital da arte na seguinte afirmação: “A arte o salva, e através da arte salva-se nele – a vida.”12 Nessa perspectiva, o êxtase dionisíaco funciona como um elemento letárgico (lethargisches Element), no qual emerge toda a vivência pessoal do passado e separa, por esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e a realidade sem anteparos. Ele afasta assim o asco (Ekel) advindo desta, assim como também a tendência à disposição ascética resultante desse estado. Da consideração desse poder de transformar os pensamentos sobre o horror e o absurdo da existência em representações sublimes, que servem como descarga artística do asco e do absurdo do existir, Nietzsche pode, então, dizer que: “o coro satírico dos ditirambos é o salvador da arte grega” (GT/NT § 7). Desse modo, a tragédia é considerada como o coro dionisíaco descarregado em um novo mundo apolíneo de imagens, daí o autor poder dizer que a arte trágica grega repousa sobre um ­mistério da unidade (Einheitsmysterium) (GT/NT § 5). 2. O dionisíaco como potência natural A consideração do dionisíaco implica em um aspecto ­imprescindível não apenas para a compreensão do que Nietzsche entendia por tragédia e perspectiva trágica entre os gregos, mas também para a análise do conflito entre essa visão de mundo e a perspectiva teórica, a qual o filósofo atribuiu a responsabilidade pela morte da tragédia e pelo estabelecimento da primazia da consideração teórica da arte. Muito embora tanto o apolíneo como o dionisíaco sejam considerados pelo autor como impulsos estéticos naturais, isto é, como manifestações da vontade em seu desejo de redenção pela a­ parência, o dionisíaco é considerado como ­impulso decisivo, por possibilitar uma maior aproximação de um entendimento da vontade, caráter que a sua arte exprime por meio de sua desmesura e intrínseca indeterminação formal. Diferentemente do apolíneo, através do qual a vontade visaria manter, na vida, os seres mediante a aparência e o ­embelezamento do mundo e do estabelecimento de ­marcas fronteiriças, tanto para o agir como para o conhecer, o dionisíaco é inter­pretado inicialmente como força bárbara, sem configuração formal definí­vel e irrefreável, mediante a qual o homem, sob sua influência, ­encontra-se totalmente inserido no seio da natureza, da mesma forma que experimenta sem a­ nteparos a verdade do existir. Em O nascimento da tragédia e nos escritos tematicamente próximos do período, o dionisíaco recebe a caracterização de impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico. Dessa forma, ele é posto i­ nicialmente 12

“Ihn rettet die Kunst, und durch die Kunst rettet ihn sich - das Leben.” Ibid. § 7, KSA 1, p. 56. 41

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em completa oposição ao sentimento de plena consciência visado pelo princípio apolíneo de individuação. Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, com tal ruptura do Principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, olhamos a essência do dionisíaco, que é aproximado o máximo possível de nós, pela analogia da embriaguez. Seja pela beberagem narcótica, da qual todos os homens primitivos falam em hinos, ou como com a penetrante proximidade da primavera a impregnar toda a natureza de alegria, despertam aqueles sentimentos dionisíacos, em cuja elevação o subjetivo se desvanece em completo autoesquecimento (GT/NT § 1).

Entre os gregos, o dionisíaco foi puro impulso natural, não imediata­mente relacionado ao artístico, mas sim ao corpóreo e, sob o seu efeito, se daria um estado de aproximação tanto entre homem e homem como entre homem e natureza. Na e­ mbriaguez dionisíaca, todos os princípios diferenciadores caem por terra, originando unicamente uma crescente massa de enfeitiçados que festeja a harmonia universal (Weltenharmonie). Artisticamente, a embriaguez dionisíaca manifesta-se em seus discípulos no canto, na dança, no andar sem rumo e no desaprender da fala, e, a­ inda mais, na sensação de tornar-se outro, como possessão. Nessa alte­ração, os possessos sentem-se como animais, tomam leite e mel da ­terra e soam como algo supranatural (Übernatürliches), atitude que caracteriza justamente a proximidade com a divindade, a sensação de divinização que constituiria o inacreditável idealismo da natureza (Wesen) grega (GT/NT § 1). Repousa justamente nesse traço a distinção entre a obra de arte apolínea e a dionisíaca. Enquanto a primeira é indicada como fruto da figuração do mundo dos sonhos do homem grego, a segunda é caracterizada pelo discípulo de Deus em estado de ­êxtase e em busca da ­assimilação do divino: A força artística da natureza não se manifesta mais aqui como de um único homem: um tom mais nobre, um mármore mais precioso será aqui trabalhado e modelado: o homem. Este homem formado pelo artista Dionísio relaciona-se com a natureza como a estátua para o artista apolíneo (GT/NT § 1).

Nesse universo de significados, o sátiro, seguidor do deus Dionísio – figura modelar e motivadora dos seguidores dessa divindade – é a imagem original do homem (Urbild des Menschen), expressão das mais altas e fortes emoções, anunciador da v­ erdade mais profunda da n ­ atureza e que, assim, encontraria correlação plena com o mundo, a indisfarçada expressão da vontade (GT/NT § 8). A ideia de corporeidade, presente na imagem do sátiro, implica a precedência do impulso, da palavra, com respeito à forma (música), o que explica o processo de ­abstração da arte dionisíaca, que, concomitantemente, significa uma manifestação estética ainda 42

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mais elevada da ­vontade, que em si é inestética (GT/NT § 6). A música dionisíaca, que tem sua origem justamente no coro de sátiros dos seguidores de Dionísio, em seu anseio de um retorno à natureza sem a interferência de nenhum conhecimento. Esse comportamento lhes revelaria a verdadeira compreensão da natureza, à qual eles se adequavam sem conjecturar, pois, em tal e­ stado de possessão, a natureza em seu devir constitui a única realidade. Esse é, portanto, o aspecto diferenciador entre o homem dionisíaco e o grego da cultura apolínea. Enquanto o primeiro vê a natureza e o mundo em sua expressão mais clara e a festeja e anseia, o homem da cultura apolínea considera a sua realidade com assombro, mas, muito embora também a aceitando, o faz mediante o véu da bela aparên­ cia, algo que o seguidor de Dionísio não necessitaria (Schacht, 1995, p. 132). Desse modo, o dionisíaco é interpretado por Nietzsche como a manifestação plena do natural, como a sua aceitação incondicionada e que, assim, gera a canção popular e a tragédia. Nesta, o coro, a visão tida pela massa dionisíaca, de acordo com a interpretação de Schiller13, é o “muro vivo contra a realidade assaltante”. O coro é o muro vivo contra a tempestiva efetividade, porque ele – o coro satírico – retrata a existência (Dasein) de maneira mais veraz, mais real, mais completa do que o homem culto, que usualmente julga ser a única realidade. A esfera da poesia não se encontra fora do mundo, qual fantástica impossibilidade de um cérebro de poeta. Ela quer ser exa­tamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e necessita, justa­ mente por isso, desfazer-se do atavio mendaz daquela pretensa efetividade do homem civilizado (GT/NT § 8).

Para Nietzsche, a constituição posterior do coro trágico é a imitação artística des­ se fenômeno natural, momento no qual se estabeleceu a sepa­ração entre os especta­dores e os servos de Dionísio. Entretanto, essa relação primeira não foi perdida, pois não deixa de estar presente na relação entre o público e o coro, na qual não se dá nenhuma oposição, s­ ignificando este a expressão daquele. Desse ponto de vista o coro, na sua fase primiti­va, é o espelhamento do próprio homem dionisíaco, pois:

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A opção pela interpretação de Schiller e, por conseguinte, o afastamento com respeito às interpretações aristotélicas e schleguianas reforçam o caráter filosófico-artístico que Nietzsche deseja conferir à sua análise da tragédia. Sua concepção, porém, apresenta um aspecto que não pode ser desmerecido aqui: mesmo ­enquanto manifestação dos impulsos estéticos, a tragédia advinda do coro nunca é para ele uma representação natural, mas sim ideal da natureza, pois a idealização consiste em um traço inseparável da arte grega. Esse aspecto é de grande significação para que se entenda a diferença entre o ideal artístico manifesto pelos helenos e o idealismo das interpretações alemãs, o que auxilia na compreensão da posterior retomada de Nietzsche por caracteres e temas relacionados aos gregos. 43

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O coro dos sátiros é primordialmente uma visão da massa dionisíaca, assim como, por outro lado, o mundo do palco é a visão desse coro de sátiros: a força dessa visão é forte o suficiente para, contra a impressão da “realidade”, contra os círculos enfileirados dos homens cultivados, tomar insensível e embotado o olhar (ibid. § 8).

Dessa relação participaria, ainda, o poeta trágico. Ele também ­estaria envolto em imagens e seria poeta apenas por compreender-se cercado de pequenas figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais í­ntimo o seu olhar penetraria. O sátiro, enquanto personagem do mundo ­artístico, é visto pelos gregos como um ser divino e sublime, representação da satis­fação ante a natureza, que destrói a ilusão de sua imagem original (Urbild) erigida pela cultura apolínea, deixando à mostra o verdadeiro homem, o sátiro barbudo, que, completamente imerso nos eflúvios da natureza, se rejubila ­diante de seu deus (GT/NT § 8). O sátiro era algo sublime e divino: assim necessitava parecer, em e­ special ao olhar dolorosamente quebrantado do homem dionisíaco. (…) sua vista passeava com ­elevada satisfação sobre os traços grandiosos da natureza, ainda não velados nem atrofiados; aqui a ilusão da cultura fora apagada da imagem original do homem; aqui era ­desvelado o ­verdadeiro homem, o sátiro barbudo, que jubilava seu deus (ibid. § 8).

Para Nietzsche, a figura do sátiro representaria para o grego a reintegração do homem à natureza, expressa através da sugestão artística do coro, que o colocaria, por intermédio de um estado de júbilo, em proximidade com o seu deus. A consideração do real significado do coro dioni­síaco como expressão natural consiste, para Nietzsche, em movimento de declarado afastamento das interpretações clássicas e “ideais” de seu tempo (GT/NT § 7) e, por isso, tem uma acentuada significação crítica em O ­nascimen­to da tragédia. A partir de então, da argumentação em fa­vor de um r­ edimensionamento do significado do trágico, da significação do dionisíaco e da música dionisíaca para os gregos, o autor pode tornar evidente o distanciamento entre a perspectiva moderna (NS/EP: GMD/DM, KSA 1, p. 523) e a dos helenos defendida por ele. Desse modo, o primeiro ponto mencionado como base para a crítica das interpretações modernas é o da tentativa de desnaturalização do trágico grego, para ele, reflexo do transcurso dessa significação durante os séculos que separam o grego do período mítico e o homem do final do século dezenove. Para Nietzsche, como se verá em seguida, essa alteração de significado é o efeito tácito de uma desmedida racionalização e moralização da arte e da natureza que, porém, evidentes na contemporaneidade, constituiriam a prova do distanciamento do sentido original da arte (NS/EP: GMD/ DM, KSA 1, p. 523). Diferentemente da concepção de poesia vigente na modernidade, mediada pela intelectualização do poetar, para o grego, a esfera da poesia não se c­ olocaria 44

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fora do m ­ undo, como uma fantástica impossibilidade própria do cérebro do poeta. Di­ ver­samente, ela visa ser a indisfarçada (ungeschminkte) expressão da ­natureza, algo outro que a moralização patente na perspectiva moderna. Nesse sentido, a tragédia grega significa a manifestação dos ­impulsos naturais mediante representação e música (Fink, 1983, p. 20), cujo aspecto fundamental c­ onsiste na tentativa de representação visual desta última. A primeira manifestação vocal da música, no coro dos seguidores de deus Dionísio, teria posteriormente originado a poesia lírica, e esta, finalmente, o coro, a estátua viva do deus (NS/EP: GMD/DM, KSA 1, p. 517). Do coro decorre a tragédia, em um momento no qual os gregos, ­diante do novo desvelar da verdade da existência, fundiram a música dionisíaca com a representação épica, como forma de restabelecer o seu princípio perdido de consolação e, desse modo, superar a náusea causada pelo defrontar-se com o absurdo do existir. Por conseguinte, o ­dionisíaco é justamente a causa dessa sensação, que, por meio da bela representação apolínea, teria sido atenuado em seu caráter aniquilador e se t­ ransformado em coadjuvante do apolíneo na nova expressão artística grega possibilitada por essa conciliação. A esse respeito escreve Nietzsche: O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Nesse encantamento, o entusiasta dionisíaco vê a si mesmo como sátiro e, como sátiro, por sua vez contempla o deus, isto é, em sua metamorfose ele vê uma nova visão exterior a ele, como a p­ erfeição apolínea de sua condição. Com essa nova visão, o drama está completo (GT/NT § 8).

O dionisíaco é, portanto, interpretado por Nietzsche, em O nascimento da tragédia e escritos tematicamente próximos, como manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência. Disso decorreria o seu imoralismo, ou seja, na aceitação plena da existência, mesmo em seus aspectos mais terríveis e destruidores. A esse respeito, a distinção entre o dionisíaco bárbaro, estrangeiro, e o dionisíaco grego, em seu viés artístico, adquire grande significação na caracterização do dionisíaco elogiado pela ­cultura grega. Se, em um primeiro momento, o dionisíaco tem ressaltadas as suas c­ aracterísticas conflitantes, agressivas e mesmo destrui­doras, em uma segunda consideração, ele tem claramente ressaltados os seus traços positivos. Se ele rompe o “véu de Maia” da aparência apolínea, é por meio dele que, posteriormente, se reafirma e fortalece o ­significado dessa experiência estética, precisamente aquela que atenua os seus efeitos destruidores. Segundo as suas características e efeitos estéticos de sua manifestação, o Dionísio é também um salvador dos gregos, pois é a música, que a partir de então é a responsável pela mais elevada forma de expressão artística dos helenos, justamente o seu antídoto contra o pessimismo (EH/EH GT/NT § 1). 45

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3. A morte da tragédia e o pensamento trágico Como mencionado anteriormente, segundo Nietzsche, a tragédia grega decorre da associação entre música e representação. Seu primeiro motivo é a necessidade dos gregos em encontrar uma forma de superar a sensação de asco e de absurdo diante da existência. Nesse momento, o princípio metafísico que o filósofo chama de “a vontade helênica” aproxima os dois impulsos naturais conflitantes e, então, atenua o efeito do conhecimento trazido novamente à consciência dos gregos pelo deus estrangeiro. A representação da dor do existir em espetáculos terríveis propiciou ao homem grego encontrar um meio de redimir o eterno ansiar próprio da vontade e mantê-lo na existência por meio da experiência artística. Os pensamentos terrificantes de asco e de absurdo acerca da existência (Dasein), vividos pelo herói trágico, são apresentados, a partir de então, em representações embelezadoras do sofrimento, com o que é possível ao grego continuar a viver, pois o destino trágico do protago­nista transforma-se em vitória (NF/FP: KSA 7, 7 [128], fins de 1870 – abril de 1871). Com isso, os gregos geraram os princípios artísticos do s­ ubli­me (Erhabene) e do cômico (Lächerlich), respectivamente, a domesticação (Bändigung) e a descarga (Entladung) artística desses sentimentos. ­Desse modo, os helenos encontraram na imitação e no jogo com a embriaguez artística um meio para a sua salvação, pois o sublime e o cômico são atenuantes da verdade por intermédio da beleza. O resultado primordial dessa atitude é a criação de um mundo intermediário entre beleza e verdade, possível unicamente pela associação entre Apolo e Dionísio, união que consistiu no ponto máximo da cultura artística grega, a partir da conversão do ditirambo em representação trágica. Entretanto, esse mundo da beleza e da contenção do elemento dionisíaco ­destruidor é também o mundo da expressão natural, de modo que é ainda possível reconhecer nele o homem instintivo, o cantor, o dançarino e o poeta, os quais, possuídos pela embriaguez dionisíaca, ainda são a manifestação mais clara da vontade natural em júbilo; com o diferencial de que, então, a partir de sua associação com o apolíneo, eles são apenas representados. Através da representação, os gregos teriam buscado alcançar esse m ­ odelo (Vorbild) da comoção do sublime e do cômico, o que teria marcado o momento em que o dionisíaco transitaria pelo mundo da beleza e não mais buscaria a imersão na v­ erdade da existência (NS/EP: DW/VD § 3, KSA 1). Sob o ponto de vista do mundo apolíneo, segundo Nietzsche, a Hélade é salva e expiada pela arte representativa, daí o autor dizer que Apolo, enquanto deus figurativo, é o salvador dos gregos, confrontados com o asco causado pela clara visão da existência novamente posta à mostra pelo dionisíaco, pois esse é o efeito do êxtase suscitado pela obra de arte no pensamento trágico-cômico (Ibidem. § 3). 46

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Nietzsche utiliza o adjetivo ingênuo (naiv) para caracterizar a singularidade da sensibilidade artística do homem grego, inserido em um mundo artístico no qual o poe­ ta apresenta-se como a figura singularíssi­ma, justamente por estar imerso em seu ­mundo de imagens de sonho. Um aspecto a ser ressaltado na caracterização desse caso, é que, nesse estado estético, o artista não efetua nenhuma separação de planos, tais como entre o mundo da vigília e outro mundo dos sonhos. Daí o autor afirmar que o ­verdadeiro poeta apenas assim o é se estiver cercado de figuras que vivem e atuam diante dele, e que ele é aquele para quem a metáfora não é uma mera figura de retórica, mas uma imagem substitutiva posta à sua frente em lugar de um conceito (GT/NT § 8). ­Partindo desse ponto, em uma diferenciação que adquire grande importância n ­ esse momento, Nietzsche considera que o fenômeno estético é apenas a capaci­dade de ver incessantemente o jogo vivo da existência e de viver continua­mente rodeado de hostes de ­espíritos, cuja ­capacidade caracteriza tanto o poeta como o dramaturgo, enquanto aqueles que sentem o impulso de metamorfosear-se e passar a falar de dentro de outros corpos e almas (ibid.). Essa sensação, não unicamente uma experiência estética, mas um sentimento representativo da unidade entre homem e homem e entre homem e natureza, seria o efeito suscitado pelo coro trágico (­Tragödienchor), o fenômeno dramático primordial (dramatisches Urphänomen), de onde decorre que, para Nietzsche, a tragédia seria justamente a representação dos impulsos cantados pelo coro, em uma união que teria originado o drama musical: Portanto reconheçamos na tragédia uma radical oposição de estilos: linguagem, cor, mobilidade, dinâmica da fala entram na lírica dionisíaca do coro e, por outro lado, no apolíneo mundo onírico da cena como esferas de expressão totalmente diferenciadas uma da outra. As aparições apolíneas, nas quais Dionísio se objetiva, não são mais o eterno mar, um tecer mutável, um viver incandescente, como é a música do coro, não mais são aquelas forças unicamente sentidas, forças poéticas intransponíveis em imagens, em que o entusiasmo do servidor de Dionísio pressente a proximidade do deus. Agora fala Dionísio, fala não mais através de forças, mas como herói épico, quase com a linguagem de Homero (GT/NT § 8).

Desse modo, a tragédia grega pode ser compreendida como o descarregar (­entladen) do coro dionisíaco em sempre novos mundos de imagens apolíneas. Ela é tomada como a objetivação dos estados dionisíacos por meio da redenção apolínea da aparência, do quebrantar e unificar do indivíduo com o ser primordial (Ursein), o que pode c­ aracterizá-la como a encarnação apolínea de saberes (Erkenntnisse) e efeitos dionisíacos, estando, por conseguinte, amplamente separada do Epos (ibid.). O coro exprime a experiência mais profunda e veraz da natureza e profere, em seu entusiasmo, sentenças oraculares de sabedoria acerca dela, pois, como aquele que descreve os sofrimentos do existir: “ele é, ao mesmo tempo, o sábio que, do coração do mundo, enuncia a verdade” (ibid.). 47

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Feitas tais distinções a respeito do apolíneo, do dionisíaco e da signi­ficação de ambos na compreensão do conteúdo estético da tragédia, Nietzsche pode, então, direcionar sua argumentação à consideração dos fatores por ele antevistos como ­determinantes do ocaso desta. Seu ­ponto de partida consiste justamente na interpretação de que o tema básico e eternamente subjacente da representação trágica foi sempre o ­sofrimento do deus Dionísio (GT/NT § 10), e que, a partir dessa compreensão, é possível ­demonstrar que a morte da tragédia decorre de sua retirada da cena e da restrição do efeito musical no espetáculo trágico. Essa interpretação provém da constatação de um distanciamento antevisto pelo autor, entre os três grandes expoentes do gênio trágico grego: Sófocles, Ésquilo e ­Eurípedes. Para Nietzsche, as tragédias, em especial as de Sófocles e em segundo plano as de Ésquilo (NS/EP ST/ST, KSA 1, p. 549), são a expressão límpida da bela e clara aparência da arte apolínea, encobrindo o outro aspecto, que é o fundo subjacente da tragédia, a sabedoria dionisíaca expressa no destino e no sofrimento do herói. A c­ lareza e a beleza do diálogo trágico, expressas nas obras desses dois autores, consistem na ex­ pressão máxima das capacidades simbólicas da inspiração apolínea, que, por meio da bela imagem da trama dramática, atenua os efeitos do sofrimento inerente ao destino do ­protagonista que, por sua vez, subsume em si a significação clara da realidade da existência e, portanto, da sabedoria dionisíaca. Nietzsche interpreta, nas obras de Ésquilo e Sófocles – não isento de pressupostos schopenhauerianos –, a sabedoria trágica como evidência da relação indissolúvel entre saber e sofrer (GT/NT § 9), cujo ensinamento está contido exemplarmente ­tanto no “Édipo” como no “Prometeu”. Entretanto, ao mesmo tempo, a beleza do desenrolar trágico da trama, resultado da serenidade (Heiterkeit) expressa na criação artística, desafia qualquer sentimento de infortúnio, gerando uma imagem luminosa ante a tristeza do saber trágico. Essa configuração da tragédia encontrou o seu fim em decorrência daquilo que Nietzsche chama de a “nova comédia ática” (ibid. § 11), a qual, nada mais é do que a clara manifestação e o ­produto final dos verdadeiros motivos que, segundo ele, levaram a tragédia grega ao seu fim. Na indicação dos traços e personagens decisivos dessa nova perspectiva, o autor aponta para a mudança efetuada por Eurípedes no cerne da concepção trágica, o qual, em franco distanciamento com relação à antiga tragédia e aos seus antecessores, deixou, pela primeira vez, de representar em suas obras Dionísio como o herói trágico (ibid. § 10). Essa atitude põe à luz a significativa mudança de perspectiva ocorrida no cerne da cultura ­grega e que teria também demarcado o fim de sua cultura trágica. Os fatores que possibilitam a Nietzsche efetuar tal consideração de Eurípedes e da concepção empreendida por ele são: a) primeiramente, que, com ele, ocorreu uma sensível e determinante depreciação do coro trágico e da música, em favor da busca por uma maior clareza do 48

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conteúdo expresso no espetáculo, alcançável por meio da palavra falada, da poesia (NF/ FP: KSA 7, 7 [129], fins de 1870 – abril de 1871); b) em segundo lugar, a ­supressão de Dionísio como o herói da cena trágica. Para justificar essa i­nterpretação, Nietzsche busca como argumento, além dos fatores anteriormente aludidos, também a contraposição desses traços com aquilo que ele chama de doutrina dos mistérios da tragédia (die Mysterienlehre der Tragödie. GT/NT § 10), com a qual ele torna clara a sua concepção acerca do significado dos fatores componentes da arte trágica. Segundo esse delineamento básico, a tragédia decorre de três ­fatores artísticos fundamentais: em primeiro lugar, da visão de Dionísio como herói lutador individual, que, por isso, experimenta os sofrimentos da individuação. Em segundo lugar, da visão de Dionísio destroçado pelos titãs, símbolo do anseio desmedido pelo titânico. E, finalmente, o ­terceiro fator: o Dionísio renascido, que, com o simples anúncio de seu reaparecimento – enquanto símbolo de reconciliação com a natureza –, levou a alegria ao coração dos helenos, por significar a superação da individuação, cônscia do sofrimento inerente à existência. Para Nietzsche, esses três fatores levaram os gregos à compreensão da individuação como causa do mal, ao conhecimento da unidade de tudo o que existe e da arte como suspensão da individuação e, assim, a sua compreensão como símbolo de uma unidade restabelecida (GT/NT § 10). Partindo desses pressupostos, enquanto fatores determinantes para a compreensão da significação do trágico para os gregos, o autor empreen­de a análise da nova comédia ática, da qual Eurípedes, justamente d ­ evido às inovações que empreendeu, é posto como um dos representantes. O traço primeiro aludido por Nietzsche nessa consideração é o ponto de vista segundo o qual, pela primeira vez na história da representação trági­ca, o povo, o homem comum é levado à cena, sendo, por conseguinte, abandonada toda a “idealidade” que marcara sempre as figuras represen­ta­das (ibid. § 10). Com Eurípedes e a nova tragédia ática, a música, decisi­vamente atuante para o nascimento da tragédia, é posta em plano secundário, do mesmo modo que o coro. Isso em favor de uma nova concepção, realista, vinculada a uma pretensão de significação histórica da tragédia, que deve se tornar uma representação do mundo aparente (NF/FP: KSA 7, 7 [124], fins de 1870 – abril de 1871). Essa perspectiva exige que o poeta se volte para a ­inteligibilidade do circundante e, portan­to, seja remetido a conceber a separação entre música do coro e linguagem (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 542), como forma de conferir maior realismo à tragédia. Como resposta à questão do porquê da mudança de ­direcionamento da representação trágica em Eurípedes, Nietzsche afirma a necessidade da consideração de dois protagonistas e de seus traços específicos de atuação para a compreensão desse acontecimento. Em primeiro lugar, do próprio Eurípedes, posto então não como poeta t­ rágico, 49

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mas como pensador, que tornou necessárias consciência e crítica como aspectos primordiais da criação artística.14 Em segundo lugar, Sócrates que, com a exigência de inteligibilidade da arte e de sua vinculação com a beleza e a virtude, exposta nas m ­ áximas “tudo deve ser inteligível para ser belo” e “só o sábio é virtuoso”, funda aquilo que Nietzsche chama de o socratismo estético (aesthetischer sokratismus), pelo qual E ­ urípedes se viu atraído. Também Eurípedes foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava por intermédio dele não era Dionísio, mas tampouco Apolo, porém um demônio de nascimento recente chamado Sócrates. Esta é a nova oposição: O dionisíaco e o socrático, e, devido a ela, a obra de arte da tragédia grega morreu (GT/NT § 12).

Os efeitos da assimilação dos princípios socráticos por Eurípedes são constatáveis por Nietzsche primeiramente na estrutura de sua representação trágica. Nela foi introduzido, por esse trágico, no início da representação, um prólogo, no qual uma ­personagem individual se apresen­ta contando quem ela é, o que precedeu a ação, o que aconteceu até então e, ainda, o que acontecerá posteriormente (GT/NT § 12). Essa inovação põe fim ao efeito das grandes cenas retórico-líricas, que uniriam a paixão e a dialética do protagonista na arte dionisíaco-apolínea. Ela remete de­cisivamente a tragédia a um novo campo de pressuposições e direcionamentos, que, em última análise, marcam o afastamento decisivo com relação ao sentido visado pelos dois impulsos originários. Separar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e o­ nipotente e voltar a cons­ truí-la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma consideração do mundo não dionisíacas – essa se revela em clara luz como sendo a tendência de Eurípedes (GT/NT § 12).

Essa atitude marca, segundo Nietzsche, o momento de ­afastamento do elemento dionisíaco da tragédia, assim como do apolíneo que, sem a necessidade de superar as verdades desveladas por aquele, não e­ ncontraria mais justificação para a sua pretensão de redenção da existência pela aparência. Eurípedes teria afastado não apenas o dionisíaco musical da representação trágica, mas também o apolíneo, e colocando em sua substi­tuição frios pensamentos paradoxais (kühle paradoxe Gedanken), que são pensamentos altamente realistas e de modo algum imersos no éter da arte (GT/NT § 12). Não conseguindo fundar o drama unicamente no apolíneo e, ainda, com sua tendência antidionisíaca, ele perde-se em um caminho naturalista e inartístico (naturalistische und unkunstlerische), que caracterizaria o socratismo estético (ibid. § 12), ou seja, a ­concepção 14

Disso decorre a afirmação de Nietzsche segundo a qual: “Eurípedes é o primeiro dramático a seguir uma estética consciente. Intencionalmente ele busca o mais compreensível: seus heróis são reais como eles falam”. NS/EP. ST/ST, KSA 1, p. 539. 50

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de que a arte deve ser baseada na lucidez consciente, de forma a minimizar seus efeitos aparentes. Essa tomada de posição possibilita a Nietzsche considerar a morte da tragédia como decorrente da aproximação de Eurípedes com a perspectiva socrática (ibid. § 12). Desta decorre a imposição do imperativo da inteligibilidade racional15 a toda a tradição trágica, posto então como único princípio de justificação e legitimação. A dialética, pelo contrário, a partir do fundamento de sua essência, é otimista: ela acredita em causa e consequência e, com isso, em uma necessária relação entre culpa e delito, virtude e felicidade: seus ­exemplos de aritmética necessitam nascer sem resto: ela nega tudo aquilo que não consegue decompor conceitualmente. A dialética ­alcança ­continuamente o seu objetivo, qualquer conclusão é para ela uma festa de júbilo, clarida­ de e consciência, o ar, no qual apenas ela pode respirar. Quando esse elemento adentra na tragédia, provém o dualismo entre noite e dia, música e matemática (NS/EP: ST/ ST, KSA 1, p. 547).

No contexto das diretrizes argumentativas de O nascimento da tragé­dia, a caracterização do socratismo adquire sentido enquanto delineamen­to da tendência antidio­ nisíaca e, portanto, antitrágica por excelência. Nesse sentido, e com relação à oposição entre o socratismo e a arte, o conflito entre ambas as perspectivas se inicia com o aparecimento na Grécia da perspectiva socrática, mas se estende até a atualidade do autor. Esse ponto de vista possibilita ao filósofo considerar a sua concepção do trágico segundo esse mesmo conflito, identificado por ele no cerne da cultura grega. Essa contraposição pode ser basicamente compreendida a partir da diferença aludida por Nietzsche entre os produtos dessas duas tendências. Segundo a consideração delas, tendo como pressuposto rele­vante a significação existencial das duas formas de ilusão, a artística e a científica, Nietzsche tenta tornar claro o conflito entre a experiência ingênua do artista e a consideração racional da arte fundada na inteligibi­lidade. Todavia, se Nietzsche fala em oposição, ele também indica a proxi­midade entre as perspectivas socrática e trágica. O socratismo aproxi­ma-se do artístico por se fundar na ilusão da verdade (Steinmann, 2000, p. 47), anunciada por Sócrates e divinizada por Platão. Por jamais ter demonstrado a existência da verdade, a tendência socrática é considerada por ele também como produtora de aparência, pois, segundo os postulados da própria racionalidade, a verdade não ratificada torna-se aparência, o que desvela os ­pressupostos artísticos da posição socrática: o fato de ela ser apenas uma “representação ilusória” (Wahnvorstellung) (GT/NT § 15), que jamais alcançou seus objetivos anunciados, mas mesmo assim logrou negar o valor da arte. 15

Ou como Nietzsche se refere à nova comédia ática: “schachspielartige Schauspiel”. NF/FP. KSA 7, 7 [124], fins de 1870 – abril de 1871. 51

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Nietzsche busca apoio para esse ponto de vista em uma c­ onsideração psicológica, de grande significação, tanto para esse momento, quanto para toda sua filosofia posterior. Com efeito, para ele, a tendência socrática não está totalmente dissociada do mesmo impulso que leva os gregos a criar os seus mundos artísticos. Antes, ela é ­primeiramente um produto dessa mesma necessidade da aparência, porém d ­ eterminada pelo imperativo da racionalização de suas concepções. Em outras palavras, a n ­ ecessidade socrática de sabedoria e do conhecimento é, sob o ponto de vista de sua justificação, também instinto, mas desprezada enquanto tal e dissimulada como desejo de conhecer. Por essa via, Sócrates negou a sabedoria da arte considerando-a como inconsciente, repousando um dos seus princípios fundamentais na afirmação: “Não se sabe o que não se pode dizer para se levar outros ao convencimento” (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 541). A partir de Sócrates, a sabedoria torna-se apenas o saber ­consciente, assim justificado segundo a sua possibilidade de aceitação universal inequívoca, capacidade que a arte, em sua origem e significado, jamais tenciona possuir. Isso consiste em algo que, para Sócrates, ela jamais ­alcança, por ser meramente uma figuração da figuração (Abbild des Abbildes) (NF/FP: KSA 7, 7 [124], fins de 1870 – abril de 1871) e, por isso, deve ser submetida ao conhecimento. Todavia, a sabedoria de Sócrates demonstra, para Nietzsche, possuir um traço instintivo, constatável em um laivo de inconsciência, manifesto em seu “demônio”, que nada mais é que o afirma­tivo e criativo que age em toda natureza produtiva, com a única distinção que: “em Sócrates, o instinto teria se t­ ornado crítico e a consciência pro­dutora” (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 542). Outro aspecto aludido por Nietzsche, e que marca ­exemplarmente esse aspecto fisiopsicológico da perspectiva socrática, seria o fato de o pensador grego, no final de sua vida e às portas da morte, narrar a seus amigos um sonho imagéico (Traumbild), que lhe ocorrera ­frequentemen­te e que lhe dizia que ele, enquanto homem racional, “fazia música”, o que o teria levado a se convencer que a sua filosofia seria a música mais elevada (ibid., p. 544). Desse modo, Nietzsche pode dizer que o socratismo estético é uma expressão racionalizada e espiritualizada do impulso artís­tico grego e que incorpora oportunamente alguns traços apolíneos, tais como a as­piração pela clareza e pela moderação. Devido a essa união ­concomitante de caracteres, ele aparenta ser, para os gregos, uma pura e nítida luz, de modo a conseguir colocar-se como precursor e arauto de uma sabedoria que deve nascer na Grécia. Esse traço da sabedoria socrática reforça a interpretação do autor de que ela é apenas outra manifestação da ­vonta­de helênica, porém exteriorizada inartisticamente. Sócrates teria renegado o instintivo inerente da arte grega em favor de um pressuposto de inteligibilidade criado por ele mesmo, o que teria lhe permitido ­descaracterizar o mito grego como sabedoria, devido à sua falta de coerência lógica. Tais princípios, entretanto, não estariam dissociados da tendência 52

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apolínea de clareza no diálogo, que seria mesmo o princípio originário da d ­ ialética, instrumento socrático por excelência (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 541). Assim interpretada, também a dialética tem origem no drama musical, na troca de falas entre o herói e o mestre do coro, sendo que, no ­entanto, a disputa entre ambos apenas se iniciou com a igualação da importância de ambos. A partir de então, a dialética se engrandece, de acordo com um impulso helênico basilar, a luta competitiva (Wettkampf ), que no diálogo torna-se a disputa com palavra e princípio (Grund), durante a qual o apaixonado diálogo da tragédia grega fica sempre distante. A partir do desagrado dos espectadores, que denominam essa tendência de “má Éris” (böse Eris), ela é banida como inimiga das artes e odiada pelas musas. A “boa Éris” (gute Eris), no entanto, permanece e, então, passa a dominar toda a ação musical e a inserir no meio trágico os três poetas concorrentes diante dos juízes e do povo. Contudo, a dissensão da palavra do meio judicial já se encontra na tragédia e disso decorre, pela primeira vez, um dualismo na essência e no efeito do drama musical. A partir de então, há partes da tragédia nas quais o sofredor retorna e soa mais alto o jogo de armas da dialética. Devido a isso, não é mais permitido ao herói do drama su­ cumbir (unterliegen), como na acepção trágica dos antigos mestres, sendo-lhe mesmo necessário tornar-se herói da palavra (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 545/6). Nietzsche interpreta esses traços em Sócrates, com a diferença de que, se no antigo drama domina um dualismo entre dialética e música, no pensador ele interpreta unicamente a supremacia da palavra, efeito similar ao que é por ele apontado na t­ ragédia euripidiana. Esse aspecto lhe serve de indicação para constatar que a oposição entre a arte trágica grega e o racionalismo socrático tem como centro de disputa a refutação do dionisíaco (GT/ NT. § 9, KSA 1). Por conseguinte, se, para Nietzsche, o dionisíaco significa instinto, proximidade com a natureza, possessão e inconsciência, cujo transporte é precisamente a música, Sócrates se põe para eles como o homem de c­ onsciência permanente, sempre clara e atuante, que aponta como erro de seus contemporâneos justamente o fato de eles não saberem o que fazem e que, portanto, agem por instinto (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 545/6). Por outro lado, na constituição do drama musical, a música é a expressão do dionisíaco, da eterna manifestação da multidão de possessos e enfeitiçados seguidores desse deus, ou seja, do indivíduo que erra, anela e sofre, e que justamente é retratado com ­preci­são e nitidez épicas pelo apolíneo. Desse modo, para o autor de O ­nascimento da tragédia, o socratismo ainda labora segundo pressupostos artísti­cos de atuação, entretanto (e eis o que consiste em um dos pontos centrais da diatribe de Nietzsche à estética socrática), ele não se considera como tal, antes faz o contrário, passa a considerar a arte e mesmo a existência segundo padrões lógicos e em aberta diferença com o mundo da e­ xperiência, de onde decorre o desejo de Sócrates de 53

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corrigir (GT/NT § 13) a existência, muito embora, com essa proposta, ele ajuíze a sua filosofia como música. Segundo o direcionamento possibilitado pela interpretação fisiopsi­cológica da estética socrática, tanto a arte quanto a racionalidade científica são encaradas por Nie­ tzsche como impulsos. A distinção entre ­ambas é que a primeira, e, em especial, a música é tida como linguagem i­mediata do Ser original (Gubernikoff, 1990, p. 101), portanto, como manifestação dos estímulos mais profundos da natureza e, assim, expressão da vontade em sua onipotência (Allmacht) (GT/NT § 16). A cientificidade, por sua vez, é tida como uma forma mitigada de expressão da vontade, mas que, antes de tudo, ao estabelecer as dicotomias entre falso e verdadeiro, real e aparente, consciente e inconsciente, traz consigo o problema da negação da manifestação mundana da vontade como aparência.16 Nessa constata­ção se baseia o cerne da crítica de Nietzsche à metafísica e à ciência nos primeiros escritos. Ela parte do princípio de que o efeito mais evidente da supremacia desse ponto de vista é a desvalorização da existência concebida esteticamente. Essa é posta em segundo plano pela perspectiva científica, em favor dos pressupostos logicamente concebidos. As repercussões artístico-culturais desse desdobramento são enormes. Diante da logicização e racionalização do Ser, operada por Sócrates e por Platão, resta à arte o terreno da mera impossibilidade de justificação ­unicamente estética. A partir de então, ela passa a ser subordinada à razão, e isso, no platonismo, significa à moral. O cerne para o qual se direciona a argumentação do autor consiste, portanto, na compreensão de que, nesses novos domínios, a aparência – tudo aquilo que não se adéqua aos princípios lógicos de não contradição e de estabilidade do Ser – é relegada a um segundo plano de validade, cujo exemplo significativo para Nietzsche é Platão, para quem os dados captados pela percepção sensorial seriam já cópias de semelhança apenas aparente com modelos eternos, tal como podemos ler em um fragmento do período: “A ideia platônica é a coisa com a negação do impulso (ou a aparência da negação do impulso). A harmonia demonstra o quanto é correta a proposição da negatividade” (NS/FP: KSA 7, 7 [28], fins de 1870 – abril de 1871).

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A importância da observação psicológica na filosofia de Nietzsche, d ­ ecisivamente presente no segundo livro do primeiro volume de Humano, demasiado humano, é significativa e digna de nota. Todavia, é importante perceber o início da formação da teoria pulsional nietzschiana já em NT, então, especificamente a partir da indi­cação de uma patologia do socratismo, que posteriormente vai ser ampliada à consideração do homem moderno de forma geral. Esse aspecto, com se verá poste­riormente, possui significativa importância para a mudança de perspectiva estético-teórica de Nietzsche na assim chamada segunda fase de sua obra. 54

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A aproximação entre ciência e arte não atenua para Nietzsche a animosidade de Sócrates e Platão para com esta, ela continua a ser compreendida por eles como produtora de ilusão, pois a superioridade dos postulados racionais, em detrimento dos artísticos, no que se refere à verdade do existente, já está posta e estabelecida. Assim, Nietzsche ­afirma sucessivas vezes, no decorrer de O nascimento da tragédia, que o objetivo da arte trágica grega apolíneo-dionisíaca seria convencer acerca do ­eterno prazer da existência, pois: “As criações da arte são os mais altos alvos do desejo da vontade” (NF/FP: KSA 7, 7 [27], fins de 1870 – abril de 1871). Justamente nesse ponto parece consistir o cerne da perspectiva científica que, em sua versão primeira e original, com Sócrates, partia de uma desvalorização da existência factual e tencionava não apenas investigar os abismos mais profundos da existência, mas também corrigi-la (GT/NT § 15). A partir disso, o autor pode afirmar a existência de uma luta entre a consideração trágica do mundo e a consideração teórica (GT/NT § 17), a qual ele responsabiliza pela morte da tragédia grega. Porém, para Nietzsche, o diagnóstico da modernidade, feito a p ­ artir da constatação da retração da capacidade estética humana, acaba por revelar os verdadeiros efeitos da perspectiva socrática, tanto os estéticos quanto os científicos. Para o filósofo, já é evidente em Sócrates a incapacidade da tendência científica em alcançar os seus fins visados. Por esse motivo, mesmo no socratismo, eles precisam ser justificados a partir de pressupostos estéticos. Em seus traços mais característicos, Sócrates utili­za uma forma artística de atuar que, mesmo no seu desejo de distanciamen­to da representação popular, retorna a ela para se fazer compreensível e colocar-se como fundamental (NF/ FP KSA 7, 7 [125], fins de 1870 – abril de 1871). A característica unicamente apolínea da noção de conhecimento do socratismo revela que a verdadeira oposição entre ele e a arte repousa precisamente na negação da sabedoria dionisíaca, justamente na contraposição à aceitação da incondicional realidade da existência, mesmo em seu caráter mais elementar e brutal. O socratismo, ao negar essa manifestação do mundo, o faz uni­ camente fundado em um artifício valorativo-moral, que mascara o seu verdadeiro fundamento, a saber, a tentativa de uma manifestação outra da vontade de alcançar uma posição de domínio, mediante a negação dos princípios anteriores e o estabelecimen­to de uma nova escala valorativa, o mesmo que Nietzsche identifica também na concepção trágica de Eurípedes: Também aqui percebemos a vitória da aparência sobre o universal e o prazer no prepa­ rado singular, quase anatômico, respiramos imediatamente o ar de um mundo teórico, que para o conhecimento científico é válido como mais elevado que a reverberação artística de uma regra do mundo (GT/NT § 17).

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A tragédia morre do conflito entre saber teórico e visão artística, quando é estabe­ lecida a inserção do pressuposto de verdade na considera­ção da arte. Assim, é depreciando o próprio espírito formador dos mitos, a música, que passa a ser considerada como uma mera pintura sonora (Tonmalerei) voltada para a representação com a­ spiração à verdade (GT/NT § 17). A consideração do socratismo e da cientificidade por meio de um ponto de vista estético termina por remeter a sua análise a um problema moral, evidenciado pela análise do desejo socrático de verdade (EH/EH GT/NT § 2), que revela, finalmente, um terceiro aspecto: a análise do conflito travado entre arte e racionalidade filosófica sob o ponto de vista fisiológico ou da vida, pois se trata de um dos aspectos que aparece de maneira significativa nas obras que se circunscrevem ao ciclo temático de Assim falava ­Zaratustra e da concepção trágica de filosofia.17 A esse respeito, além da argumentação de ­Nietzsche desenvolvida em O nascimento da tragédia, pode-se encontrar diversos retornos a esse tema nos escritos posteriores referentes a esse trabalho inicial. Em 1886, a propósito de solucionar o problema da pouca receptibilidade de sua filosofia, Nietzsche escreve novos prefácios para os seus livros, desde O nascimento da tragédia até A gaia ciência. Essa ação é repleta de significados e de grande importância para o direcionamento que o filósofo desejava dar a partir de então ao seu pensamento, que naquele momento tinha Assim falava Zaratustra como obra decisiva (Burnett, 2000, p. 88). O primeiro desses prefácios foi acrescido à sua primeira obra e recebeu o título significativo de: “Tentativa de autocrítica”. Nele o autor busca não apenas fazer a crítica da obra inicial, como também reafirma os pontos decisivos da mesma, seus traços inovadores e ainda a sua importância para a filosofia posterior. Dentre os pontos que lhe parecem dignos de ser ressaltados com relação ao seu primeiro livro, ele indica imediatamente a significação de sua reflexão passada a ­respeito do conteúdo da arte trágica para os gregos, isso sob o ponto de vista da interrogação acerca de um suposto p ­ essimismo daqueles (GT/NT “Prefácio” § 1). Antes de argumentar a favor ou ­contra essa possibilidade, Nietzsche põe em questão o próprio significado d ­ esse sentimento entre os helenos. Seu intento, nesse momento, é claro, e se relaciona diretamente com uma das diretrizes primeiras desenvolvida na obra, para a qual esse escrito posterior é posto como esclarecimento, a saber: o questionamento do verdadeiro significado do conflito entre arte trágica e razão teórica. O ponto central, considerado inovador e defendido pelo autor como presente na obra, é justamente a descoberta da positividade do monstruoso fenômeno do dionisía17

Como se verá na terceira parte desta dissertação, a perspectiva de empreender uma filosofia ­segundo pressupostos dionisíacos e trágicos é essencial para que o ensinamento do além-do-homem possa ser satisfatoriamente compreendido em Assim falava Zaratustra em sua significação estética. 56

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co (ungeheure Phänomem des Dionysischen), em sua oposição ao socratismo. Isso, s­ egundo ele, esclarece o significado oculto da moral socrática, da dialética, da sobriedade e da serenidade do homem teórico (ibid. § 1). A reafirmação desses pontos, quase uma década e meia depois da publicação de O nascimento da tragédia, assim como e após o rompimento com suas influências iniciais, ao que seguiu o remetimento da reflexão filosófica em Nietzsche a outros âmbitos que não os da arte e da estética, apresenta-se, então, cheia de significados, dada a indicação dos efetivos fins visados por sua obra inicial e que teriam ficado obscurecidos pelos comprometimentos no momento da publicação. A primeira indicação feita a esse respeito é a de que, muito embora se trate de um livro problemático, ele originou-se de uma questão de primeira ordem, a qual, então, é indicada como profundamente pessoal (GT/NT “Prefácio” § 1). Segundo essa nova consideração, a temática central do pensamento que o livro encerra é a da relação entre os gregos e a música, em especial no que diz respeito à relação entre os mesmos e a tragédia (ibid. § 1). Esse questionamento remete imediatamente a outros, referentes ao valor atribuído à existência pelos helenos e ao significado de seu suposto pessimismo, do mito trágico e do fenômeno dionisíaco (ibid. § 12). A intenção de Nietzsche é afirmar novamente que, apesar dos muitos anos que separam livro e prefácio, o tratamento dessa questão mantém inalterados seus traços fundamentais. Dentre esses, se pode, com grande segurança, cogitar que o elogio da antiga arte grega ainda visa m ­ ostrar que, tal como fora afirmado em 1872, o verdadeiro sintoma de cansaço, doença e crepúsculo dos gregos foi precisamente o otimismo teórico da filosofia grega, nascida sob a influência de Sócrates. Nesse sentido, o argumento primeiro do autor é de que fora a racionalidade, com sua aspiração por conhecer os aspectos mais fundamentais do Ser e ainda por corrigi-lo, o verdadeiro sintoma de declínio dos gregos, pois, pela primeira vez, eles passaram a considerar a existência manifesta como problemática. Entretanto, essa significativa referência posterior à sua obra original pressupõe todo o trabalho especulativo que separa os dois textos, o que possibilita compreender que a crítica à ciência se remete mais precisamente aos princípios metafísico-morais de justificação da ciência e não efetivamente à postura científica em sua totalidade, posicionamento que Nietzsche confessamente adota desde Humano, demasiado humano, adequando-a a uma justificação não metafísica do saber (Barrenechea, 2011, p. 38). Desse modo, ele afirma que um novo e ameaçador problema está posto à sua frente, pois então, pela primeira vez, a ciência é associada à moral e, por esse motivo, passa a ser tida como problemática. Da constatação da imanência valorativa da ciência, Nietzsche chegava à compreensão de que a questão a seu respeito não poderia ser resolvida no terreno da própria ciência (GT/NT “Prefácio” § 2). Para o filósofo, a p ­ ercepção 57

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desse problema não resolvido confere significado à consideração do trágico grego em seu tempo, pois essa contraposição ­permanece a mesma, sendo que o fator que a faz verdadeiramente significativa, a crença na infalibilidade da ciência, é justamente o fator novo a ser, então, considerado. Opor arte e ciência significa explicitar um problema obliterado e, portanto, dirigir-se diretamente a enormes desdobramentos presentes no cerne da cultura ocidental. Sua intenção se delineia sob esse ponto de vista como tentativa de indicar as ­contradições de uma cultura que festeja de modo altissonante a supremacia dos valores racionais e científicos sobre todos os outros, compreendendo estes como de segunda ordem, sem, no entanto, demonstrar a pertinência de tal posição, em evidente dificuldade na modernidade devido ao não alcance do conhecimento definitivo proposto por Platão. Nesse sentido, Nietzsche indica os a­ spectos que o fizeram voltar a se referir ao p ­ roblema da arte trágica grega e a sua consideração anterior acerca do trágico. Longe da ­metafísica do artista, o ocaso da tragédia, considerada como manifestação vital positiva (GT/NT “Prefácio” § 16), pode tornar claro o momento de decadência da cultura europeia, a partir da compreensão das causas e significados do conflito travado entre os dois a­ spectos, sem correlativos na história da cultura contemporânea. Os dois fatores são: primeiramente, uma imedia­ta forma de manifestação artística, a qual é fundamentalmente a ­expressão dos impulsos vitais manifestos esteticamente, e, em segundo lugar, a crítica dessa perspectiva, que marca o nascimento de uma forma também inaudita de conside­ ração do mundo, a perspectiva teórica (GT/NT “Prefácio” § 15). O que se evidencia como problemático a Nietzsche são os efeitos subsequentes da hegemonia da razão teórica e dos valores afirmados por ela. A mobilização de esforços em favor de indicar e elucidar esse entrechoque decorre da desconfiança das ­consequências dessa vitória e dos seus reflexos na ciência. Essa é antevista nesse momento, segundo o ­ponto de vista de seus objetivos afirmados pela tradição, a partir dos fundamentos de sua justificação. Estes direcionaram durante séculos a filosofia, a fonte de justificação moral da ciência, que acabaram por referendar desprezo e desejo de afastamento condenatório do mundo e da vida, entendidos como fontes de erros e de imperfeições. Essa referência posterior ao problema do ocaso do trágico grego visa, em verdade, reconsiderar os fatores e os efeitos dessa depreciação no domí­nio da cultura. Considerando-se como o primeiro a antever esse conflito, Nietzsche reinsere na análise o pressuposto da vida pensada como força ativa e desejosa de perpetuação, qualidade que ele interpreta nos gregos míticos e indica como declinante no homem teórico. Por esse motivo, é-lhe possível afastar-se toda consideração unicamente teórica acerca do confli­ to entre arte e conhecimento, a partir do pressuposto de que o problema da ciência não pode ser resolvido no campo de significa­ção próprio da ciência, ou seja, do saber que 58

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se sobrepõe ao erro, mas, antes, que aquela deve ser considerada mediante a ótica da arte, tomada como sinônimo de manifestação de vida afirmativa (GT/NT “Prefácio” § 2). Desse modo, a compreensão das contradições dos dogmas metafísicos, reveladas pela própria ciência positiva, é fator de restauro da validade da perspectiva artística. Na fase final da filosofia de Nietzsche, o fator positivo desta não repousa mais no seu caráter trágico, mas justamente na representação sem restrições do traço múltiplo, indeterminável e móvel da existência, de onde decorre que o movimento de reconsideração positiva da perspectiva trágica traz, como aspecto subjacente, a necessidade de uma compreensão vital e extramoral, ou ainda, não científica, do dionisíaco. Justamente para o que, segundo o próprio autor, o livro daria uma resposta (GT/NT “Prefácio” § 14). Isso significa conside­rar essa questão em um nível ainda mais profundo que a mera ­clarificação desse fenômeno estético e da singularidade de sua expressão. A partir ­dessa mudança de perspectiva, a pergunta fundamental, então posta no prefácio, é a da r­ elação dos antigos helenos com a dor, com o seu grau de sensibilidade. Seu questionamento visa analisar se o anseio cada vez mais forte por beleza, festas, divertimentos e novos cultos entre os gregos brotou da carência, da privação, da melancolia e da dor (GT/NT § 4). A questão central é a possibilidade de sopesar o anseio pelo feio, a vontade i­ nclinada para o pessimismo, para o trágico, terrível, enigmático e aniquilador – de onde se originou a tragédia – como sintoma de força, de prazer, de ­saúde transbordante, de ­grande plenitude (GT/NT § 4). A proposição de Nietzsche a esse respeito é a de que o trágico, assim considerado, possui entre os gregos um significado fisiológico, imediatamente relacionado ao dionisíaco, este tomado enquanto símbolo fecundo, como sinal da riqueza e abundância de força juvenil dos helenos. Contrariamente ao otimismo da lógica e ao anseio por racionalização, sinônimos de serenidade para o homem científico, Nietzsche os interpreta como sintoma de força em declínio, pois atestaria justamente o decréscimo de forças necessárias à aceitação incondicional da vida, aspecto presente na expressão artística. Como? Se os gregos tivessem, precisamente na riqueza de sua juventude, a vontade para o trágico e fossem pessimistas? Se fora ­justamente a loucura, para utilizar uma palavra de Platão, que tivesse trazido as maiores bênçãos sobre a Hélade? E se, por outro lado e em contrário, os gregos, precisamente nos tempos de sua dissolução e fraqueza, tivessem sido sempre mais otimistas, superficiais, teatrais, bem como mais ansiosos pela lógica e pela logicização, portanto, ao mesmo tempo, “mais serenos” e “mais científicos”? (GT/NT “Tentativa de autocrítica” § 4).

Essa interpretação explicita a importância da consideração do trágico feita em O nascimento da tragédia, ao mesmo tempo em que o ­motivo de sua posterior consideração positiva, malgrado os comprometimentos da obra. O conflito entre o trágico e o teóri59

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co, ocorrido na Grécia, ainda possui significação devido aos seus efeitos ainda serem decisivamente sentidos na contemporaneidade e nas ideias modernas, o que lança sobre estas o mesmo grau de suspeita indicado na perspectiva inicial. Por conseguinte, a ­tácita constatação da influência dos mesmos pressupostos teóricos utilizados pela racionalidade grega para descaracterizar a arte encontrar-se-ia ainda no cerne dos pensamentos dominantes na modernidade, o que deixa à mostra que o conflito ocorrido entre os gregos não se limitou ao campo da arte ou da estética, mas que, pelos seus próprios efeitos, alcançou o campo das significações morais. Isso implica, para Nietzsche, que a própria moral deve ser posta em questão, pois, tal como a ciência – com a qual ela nesse momento é relacionada –, ela deve ser interrogada não mais segundo os seus próprios pressupostos, mas s­ egundo o princípio da vida abundante, tornado fundante e imprescindível para qualquer consideração. O que Nietzsche formula na seguinte questão: “O que significa, vista sob a ótica da vida, a moral?” (GT/NT “Tentativa de autocrítica” § 4). Contrariamente ao que Nietzsche interpreta ser a concepção dominante na cultura ocidental, a arte – e não a moral ou a ciência – passa a ser tida como a verdadeira atividade metafísica do homem, ao mesmo tempo em que, restituído o seu valor, o mundo passa a se justificar novamente como fenômeno estético e que sabe redimir-se apenas na ­aparência (GT/NT § 5). O pressuposto para uma nova menção a esse posicionamento em 1886, que não pode ser totalmente esclarecido aqui, é precisamente a reafirmação dos aspectos perspectivístico e moral da arte, que o autor identifica no dionisíaco e no pessimismo para além do bem e do mal do homem grego. Isso resulta em uma filosofia que reverte valorações ancestrais e que assim pode rebaixar a própria moral e a metafísica ao mundo da aparência, dessa vez, porém, não como ilusão ou erro, mas como interpretação depauperante, como resignação ante a vida, e isso por meio da própria arte (ibid. § 5). 4. A nova consideração do trágico e do dionisíaco A argumentação desenvolvida em “Tentativa de autocrítica” indica os desdobramen­ tos das ideias expostas em O nascimento da tragédia na filosofia posterior de Nietzsche. Nesse texto, todavia, há algo de novo. A crítica da moral e da cientificidade a ela relacionada é estendida à morali­dade cristã, entendida como fonte de sustentação dos dogmas metafísicos que determinam as formas de valoração da cultura ocidental. N ­ esse momento, argumenta Giacoia, Nietzsche passa a compreender o c­ ristianismo como “a mais extravagante figuração do tema moral que a humanidade já chegou a executar” (Giacoia, 1997, p. 14). Uma análise mais pormeno­rizada desse aspecto será feita no terceiro capítulo deste livro. Neste momento, no entanto, no que se refere à temática 60

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que relaciona c­ ientificidade e moralidade cristã, é necessário indicar que o ponto nuclear da crítica feita por Nietzsche à cientificidade e à moral incide sobre o desejo comum de ambas por estabelecer padrões absolutos, o que desterrou toda a arte no terreno da men­ tira (GT/NT § 5). Por isso, a moralidade cristã é aproximada da racionalidade dogmática e com ela considerada como hostil à vida, pois, demonstrada a intencionalidade das dicotomias com as quais ambas laboram, chega-se à conclusão de que toda a vida ­repousa sobre aparência, ilusão, múltiplas óticas e, finalmente, sobre arte. Ela necessita do erro e da manutenção do perspectivismo. O que leva Nietzsche a afirmar que todo posicionamento que tenta negar essa constatação demonstra ser restritivo e perigoso para a vida. O cristianismo foi, desde o início, essencial e, basicamente, asco e inape­tência de vida na vida, que, sob a crença em uma vida “outra” ou ”melhor”, apenas se disfarçava, escondia, adornava. O ódio ao “mundo”, a ­maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um além, inventado para melhor difamar o lado de cá. No fundo, uma aspiração pelo nada, pelo fim, pelo repouso, com vistas ao “sabá dos sabás” – tudo isso pareceu-me, assim como a vontade incondicionada do cristianismo, [vontade] de ­deixar valer somente valores morais. Sempre como a mais perigosa e sinistra de todas as formas possíveis de uma “vontade de declínio”. Ao menos um sinal do mais profundo adoecimento, cansaço, esmoreci­mento, esgotamento, empobrecimento de vida – pois ante a moral (espe­cialmente a cristã, que significa moral incondicional), a vida necessita carecer de razão de maneira constante e inevitável, porque vida é algo essencialmente amoral (Unmoralisches) – não necessita enfim a vida, opressa sob o peso do desprezo e do eterno não, ser sentida como indig­na de desejo, como desvalorizada em si (GT/NT “Tentativa de autocrítica” § 5).

A oposição ao cristianismo, leia-se a toda moral com aspirações dogmáticas, é feita sob uma perspectiva dionisíaca, entendida como ­força atuante e de incondicional aceitação de tudo, a partir do que são ­indicados os motivos do afastamento da filosofia da resignação de Schopenhauer, considerada como manifestação exemplar do ­horizonte da modernidade, do ambiente alemão e suas ideias modernas e do romantismo, que desconhece o significado do dionisíaco e que, por isso, constitui-se na menos grega de todas as artes (GT/NT § 6). Desse modo, Nietzsche considera, também nesse momento, o ­trágico como o verdadeiro caráter da existência e a sua arte como sinônimo de prazer e de força supera­ bundante. Isso passa a caracterizar a negação e o esquecimento dela como manifestação de um problema psicológico e fisiológico (GT/NT “Prefácio” § 4), pois, como princípio motivador da vida, a cientificidade e a moral a ela inerente não ultrapassariam o nível de uma manifestação vital incompleta, ou ainda, seriam formas de sobre­vivência e ob­ tenção de poder de manifestações vitais em declínio. 61

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A crítica da moralidade cristã, sob o ponto de vista da compreensão trágica da existência, sofre as mesmas críticas que a racionalidade ­teórica socrática. Ambas teriam criado uma nova forma de consideração do mundo, que, entretanto, ao invés de afirmá-lo, tal como a arte grega, o deprecia­ria, por julgar e afirmar que haveria para esse mundo e suas aparências uma possibilidade de refutação, ordenação, logicização e, portanto, de correção. Afastando-se de uma consideração teórica acerca da validade do conhecimento, Nietzsche interpreta tais aspectos sob o ponto de v­ ista psicológico, segundo o qual ele considera não os pontos de disputa da teoria e do pensar, mas as causas intencionais desses pontos (Fink, 1983, p. 15). Parece-lhe, então, claro que passados mais de dois mil anos, a inexequibilidade e o fracasso do projeto de correção da existência anunciado pela metafísica, que, por sua vez, nada mais seria, sob a ótica desta mesma intencionalidade, que um sintoma de decadência, de decréscimo de força vital, a qual, sob sua necessidade de negar o mundo dos fenôme­nos, acobertaria terminan­ temente uma forma de expressão fisiológica. A perspectiva trágica, portanto, deve ser compreendida como contrária aos valores morais vigentes, decorrentes da ­racionalidade teórico-moral grega e, desse modo, em favor de outra concepção de mundo (Baranger, 1946, p. 37). O mundo, em cada instante, alcançada redenção de Deus, o mundo como ­eternamente cambiante, eterna nova visão do mais sofredor, mais antitético, mais rico em ­contradições, que só na aparência sabe redimir-se: toda metafísica do artista pode denominar-se como arbitrária, ocio­sa e fanática – o essencial nisso é que ela já anuncia o espírito que um dia, qualquer que seja o jogo, se porá contra a interpretação e a significação moral da existência. Aqui se anuncia, porventura pela primeira vez, um pessimismo “além do bem e do mal” (GT/NT “Prefácio” § 5).

O que torna para Nietzsche a arte dionisíaco-trágica preferível à ilusão científica é justamente que aquela se afirma de imediato como ex­pressão da existência em sua verdade mais profunda, e que assim a afirma por meio da representação gerada pela intencionalidade da natureza. Nesse contexto, surgem o dionisíaco como divindade natural plena, como o deus artista completamente inconsiderado e imoral (unbedenklichen und unmoralischen Künstler-Gott), e o trágico, como a expressão artística da visão desse Deus: (...) que no construir como no destruir, no bom como no ruim, quer perceber-se de seu idêntico prazer e autocracia, que criando mundos, aparta-se da necessidade da abundância e superabundância do sofrimento das contradições nele acumuladas (GT/ NT “Prefácio” § 5).

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a perspectiva trágica

A reconsideração positiva do valor do trágico como expressão do natural c­ onverge e elucida-se nas perspectivas com as quais Nietzsche empenha esforços na segunda metade da década de oitenta (Schacht, 1995, p. 133). Com efeito, no tópico final de “Tentativa de autocrítica”, o autor nos mostra que a sua reconsideração do trágico já tem como objetivo ser um pressuposto para a compreensão do seu Zaratustra, indicado então como aquele que profere o consolo dionisíaco para a aceitação incondicional da e­ xistência (GT/NT “Prefácio” § 7). Em Ecce homo, escrito posterior aos prefácios, mas que mantém com eles íntima relação devido ao traço autobiográfico dado a eles pelo autor, o dionisíaco é relacionado com o ensinamento do Eterno retorno do mesmo, cuja compreensão ele condiciona à percepção de mundo do deus grego (EH/EH GT/NT § 3), que é indicada por Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos (1888) como o primeiro momento de sua transvaloração de todos os valores (GD/CI “O que devo aos antigos” § 4). O tema da morte da tragédia adquire, segundo esses ­desdobramentos, grande significação no âmbito pleno da filosofia de Nietzsche, pois encerra aspectos que, mesmo após a autocrítica do autor e a indicação dos traços incompatíveis com a sua real interpretação, ainda relaciona-se com direcionamentos nucleares da sua perspectiva filosófica. A partir dessa relação, o núcleo do conflito indicado por Nietzsche se polariza, então, em três princípios claramente delineados, que são: a vida, a arte e a ­moral (Baranger, 1946, p. 40). No que diz respeito a esta última, o dado significativo indicado é o da sua oposição em relação à vida, do mesmo modo que com relação à arte. Arte e vida, pelo contrário, significam, para o autor, sintomas de impulsos em livre e imediata atividade, e assim contrários a qualquer forma de resignação (Resignation) (GT/NT “Prefácio” § 6). Desse modo, a perspectiva trágica, que constitui o primeiro ponto a ser elucidado em O nascimento da tragédia, delineia-se primeiramente como opção do autor por uma forma de expressão e valorização afirmativa do mundo e da vida, oposta a todas as formas compreendidas como depreciadoras da existência, tal como o racionalismo niilista do s­ ocratismo (EH/EH GT/NT § 3) e a moralidade judaico-cristã. A opção pelo t­rágico se justifica como opção pela aceitação da vida em sua plenitude, tanto dos seus belos como de seus mais terríveis aspectos; significa desejo de justificá-la e afirmá-la, desse modo, ela desvincula-se de todas as convenções morais vigentes. A partir da colocação desses fatores, o autor pode, então, considerar-se como o ­primeiro filósofo trágico (erster tragischer Philosoph) e, de acordo com o que isso significa, a mais exterior oposição e antípoda da filosofia pessimista relacionada com a moral e com o idealismo; oposição que, pela transposição (Umsetzung) do dionisíaco em Pathos filo­ sófico (philosophisches Pathos), originou a filosofia trágica ibid. § 3): O conhecimento, o dizer sim à realidade, constituem para o forte a mesma ­necessidade que para o fraco; sob a inspiração da fraqueza, são a covardia e a fuga ante a realidade 63

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– o “ideal”. Não se é livre para o conhecer: os decadentes necessitam da mentira, ela é para eles uma condição de conservação. Quem a palavra “dionisíaco” não apenas compreende, porém se compreende a si mesmo na palavra “dionisíaco”, não carece de refutar nem Platão, nem o cristianismo, nem Schopenhauer: Ele cheira a putrefação (ibid. § 2).

Em se tratando tanto de O nascimento da tragédia como dos escritos posteriores que fazem referência a esse livro inicial, a contraposição primeira, que visa esclarecer a morte da tragédia entre os gregos, perma­nece a mesma. Ela ainda é mostrada como sendo a oposição entre as visões teórica e trágica do mundo (Delleuze, 1979, p. 22) que, para Nietzsche, tem o seu cerne na negação moral do significado e do valor da existência, isso devido a metafísica ter tentado por longo tempo negar o impetuoso e incessante fluxo conflitante do devir do mundo fenomênico como algo digno de consideração. A racionalidade socrática continua a consistir no símbolo dessa mudança, a qual Nietzsche se contrapõe e busca refutar em dois campos: a) primeiramente, no que se refere à justificação por meio da consideração eminentemente lógica dos princípios. Nietzsche os considera não como efetivos, mas como meramente aparentes, pois verdade e Ser têm a pressuposição de sua existência muito mais ligada às determinações de nossas estruturas linguísticas que a uma demonstração de sua existência efetiva; b) o segundo âmbito de crítica se dá no d ­ omínio da arte, pois a percepção do fator estético da persuasão teórica revela precisamente a sua limitação artística e, por c­ onseguinte, vital. Com isso, a racionalidade socrática pode ser resumida à mera produção de a­ parência sem conteúdo vital pleno. Finalmente, mesmo que se considere as influências e anseios de Nietzsche em O nascimento da tragédia, o conflito entre racionalidade lógico-conceitual e experiência artística lhe fornece um conjunto de instrumentos conceituais e interpretativos, que sempre se farão presentes com maior ou menor ênfase na sua filosofia. Nesse sentido, o ponto central e frequente nessas considerações é, significativamente, a relação entre saber e vida, sob o ponto indisputável para o autor de que esta deve ser n ­ ecessariamente afirmada, mesmo em seus aspectos mais cruéis e duros. Isso já teria ocorrido na arte grega, efeito que o autor deseja reproduzir no domínio das formas contemporâneas de consideração do mundo, incluída a própria ciência, daí decorre ele considerar a sua filosofia como sendo a transposição do dionisíaco para o âmbito do filosofar. O dizer sim à vida, ainda nos seus mais estranhos e duros problemas; a vontade de viver comprazendo-se em sacrificar seus mais altos tipos de ser à inesgotabilidade do devir – isso eu chamei de dionisíaco e e­ ntendia como a fonte de compreensão do poeta trágico. Não para nos ­libertarmos do terror e da compaixão, não para nos purificarmos de

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a perspectiva trágica

uma perigosa descarga – como Aristóteles erradamente pretendeu –, mas para, além do terror e da compaixão, mas para ser mesmo o eterno prazer do devir, prazer que e­ ncerra em si também o prazer em destruir...” Nesse s­ entido me considero o primeiro filósofo trágico – isso significa o extremo contraste e antípoda de uma filosofia pessimista. Antes de mim não há tal transposição do dionisíaco em Pathos filosófico: faltava a sabedoria trágica (EH/EH GT/NT § 3),

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Capítulo II

Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

A análise das duas últimas considerações extemporâneas, dos fragmentos póstumos e das cartas do final da década de 70 possibilita que se compreendam os motivos do rompimento de Nietzsche com respeito a Richard Wagner e à filosofia de Schopenhauer (Barros, 2006, p. 78). Essas fontes possibilitam entender que esse afastamento se deve fundamentalmente a dois fatores: primeiramente, à decepção do autor com a r­ essonância cultural do festival inaugural em Bayreuth e, em relação direta com isso, à compreensão de que uma reforma cultural concebida segundo parâmetros gregos não se realizaria. Fosse por meio da filosofia de Schopenhauer, fosse pela da arte wagneriana. Mesmo que nas extemporâneas Schopenhauer como educador e Richard Wagner em Bayreuth Nie­tzsche se refira a Schopenhauer e a Wagner de forma quase ideal, esses são escritos de despedida. Neles subjaz uma série de desassossegos com posicionamentos de ambos que não se coadunavam com as suas concepções, mesmo que se considere a metafísica do artista. Como é sabido, o rompimento definitivo com ambos ocorre efetivamente em 1878, com a publi­cação do primeiro volume de Humano, demasiadamente humano, escrito e publicado pouco após a inauguração do teatro operístico de Wagner em Bayreuth. As afirmações referentes ao assunto presentes em escritos poste­riores, tal como nos prefácios de 1886 e no autobiográfico Ecce homo, mostram Nietzsche tentando justificar o seu distanciamento como um livramento (Loslösung) daquilo que não pertencia a sua natureza. Associa­do aos aspectos constatáveis nos próprios textos ­anteriores ao r­ompimento, um argumento obtém grande plausibilidade e é aqui pressuposto, a saber: o de que Nietzsche assimilou a reflexão estética e a metafísica de Schopenhauer até a medida em que essa podia ser associada à sua interpretação dos gregos e de sua arte (Goedert, 1978, p. 3) e que Nietzsche se afasta daquele ao perceber mais claramente os pontos de distanciamen­to de sua concepção de filosofia trágica do pessimismo schopenhauriano (Young, 1994, p. 26). O mesmo se aplica a Wagner. Ao considerar o compositor alemão como um novo Ésquilo e crer que por meio da sua obra seria possível restabelecer a dignidade da arte entre os antigos helenos perdida na modernidade, Nietzsche revela importantes pressupostos de seu interesse pela arte wagneriana. No que se refere a esta nova interpretação de ambos, um dado relevante pode ser encontrado nos últimos escritos e consiste em associar Wagner e Schopenhauer – aque66

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le como leitor deste – com o conceito de décadence. Considerando o conteúdo de e­ scritos tardios como Nietzsche contra Wagner e O caso Wagner, é possível perceber claramente que as caracterizações de ambos não se direcionam prioritariamente às pessoas destes, mas à significação cultural de suas obras.1 O conteúdo das críticas feitas nos escritos do final da década de 80 pode ser significativamente elucidado com a compreensão do significado da música na primeira filosofia de Nietzsche. Como já mencionado anterior­ mente, a música fora pensada como a mais elevada forma de representação da essência do mundo, entendida em caracteres schopenhaurianos como a mais elucidativa ­expressão da vontade. Nela a infinita possibilidade de formas se aproxima representativamente da forma de manifestação da vontade no mundo. O diagnóstico da decadência da modernidade a partir da afirmação do banimento do dionisíaco da arte feito em O ­nascimento da tragédia se faz novamente presente nesses últimos escritos, mas então d ­ ecisivamente direcionado ao tema da supressão do dionisíaco – este já distanciado da metafísica do artista – da cultura enquanto força criativa. Desse modo, o mesmo pressu­posto, que nos primeiros escritos fora apresentado por meio de terminologia schopenhauriana e ilações à obra de Wagner, é usado então contra ambos. Wagner e Schopenhauer são compreendidos por Nietzsche como modelos exemplares do pessimismo e da decadência moderna, ou seja, como efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco. O esclarecimento desse aspecto é decisivo para a argumentação aqui levada a cabo. Sob o ponto de vista de que para Nietzsche, Wagner, com o seu Parsifal, enquanto justificação artística das ideias cristãs de inocência e de castidade,2 e Schopenhauer, com o seu pessimismo teórico e estético, tornam-se os símbolos mais emblemáticos da décadence moderna, do não dionisíaco, por excelência (Goedert, 1978, p. 6). Décadence significa aqui o movimento de desagregação e despotencialização da vida e do mundo, que Nietzsche interpreta em Sócrates, mas também no cristianismo e então, de forma emblemática, na filosofia e na arte de seu tempo. Ela resulta na perda da capacidade de aceitação da existência e com isso de abandoar o 1

Ou como o próprio Nietzsche escreve no prefácio de O caso Wagner: “Através de Wagner, a modernidade fala a sua linguagem mais íntima” (KSA 6, p. 12). 2 Wagner ocupou-se desde 1845 com o material da narrativa, ao mesmo tempo em que compunha Lohengrin e desenvolvia a ideia dos Mestres cantores de Nuremberg. O título inicial era Parzival, já em um rascunho de Zürich de 1857. A encenação apenas foi decidida em 1865, com o apoio financeiro do rei Ludwig II da Baviera. É deste período o desenvolvimento do texto em prosa da ópera. Todavia, apenas depois do primeiro festival de Bayreuth (Bayreuther Festspiele), Wagner iniciou a elaborar os libretos. Em 1877 deu-se a determinação dos procedimentos visando à encenação do drama musical, com um aspecto importante: a alteração do nome título de “Parzival” para “Parsival”, que em persa advém da fusão de tolo (parsi) e puro (fal). O herói do drama foi então concebido como uma espécie de puro ingênuo. O processo de composição foi iniciado por Wagner em 1877. Em abril de 1879, a escritura das partituras para os três atos ficaram prontas, assim como toda a obra. Mas a obra apenas viria a ser apresentada em janeiro de 1882, muito embora Wagner tenha feito uma pequena apresentação privada em 1880 para o Rei Ludwig II em Munique. 67

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desejo de sua alteração ou mesmo superação, como forma de por fim ao sofrimento inerente à existência. Em contraposição a isso, Nietzsche concebe a sua filosofia dionisíaca como forma de inverter as categorias de valor da tradição metafísico-cristã e por meio do embelezamento do viver e da atitude heroica de sua aceitação incondicional da vida, revalorizar os seus perigos e desafios. O dionisíaco mobilizado por Nietzsche comporta, portanto, uma dimensão estético-cultural, mas também uma decisiva significação teórica, pois implica também igualmente em uma nova concepção de saber, para a qual o existente não é visto como problema, mas como domínio de possibilidades de interpretação e de criação. Neste contexto, tanto a arte quanto a própria ciência ­consistem em noções decisivas para que se compreenda tanto a alegre ciência ­quanto Assim ­falava Zaratustra, esta obra entendida como escrito fundamental3 de seu autor. Entretanto, como a própria intenção dos prefácios e de Ecce homo revelam, Nietzsche deseja indicar que a compreensão destas mudanças pressupõe também o entendimento das características e da dimensão das alterações ocorridas no percurso intelectual que o levou a Zaratustra. Isso posto, a questão a ser esclarecida aqui é: a partir da ­consideração crítica da arte e de seu significado na modernidade presente em Humano, demasiadamente h­ umano, como é possível entender o ressurgimento do dionisíaco nos escritos posteriores? A resposta a essa questão parece remeter necessariamente à consideração dos ­pressupostos dessa m ­ udança e, por conseguinte, do rompimento de Nietzsche com as suas influências anteriores, especificamente com o wagnerianismo e com o pessimismo schopenhauriano. A este respeito, as afirmações feitas em Nietzsche ­contra Wagner e em O caso Wagner mostram-se decisivas. Elas levam a perceber que o abandono da concepção centrada na metafísica do artista se deve em grande monta à não adequação da fi ­ losofia de Schopenhauer e da significação cultural e artística de Wagner à concepção de arte e cultura de Nietzsche, fundada decisivamente em uma elevada e positiva consideração dos antigos gregos (UB/CE HL prefácio). Ao considerar Assim falava Zaratustra como uma obra filosófica capital, Nietzsche dá a entender que as suas compreensões tanto da arte como da ciência sofreram mudanças significativas e, desse modo, que o entendimento desses aspectos é um dado decisivo para abranger o sentido de sua obra. A assimilação de Assim falava Zaratustra como obra filosófica pressupõe destarte a inclusão 3

EH/EH “Prefácio” § 4. O reaparecimento do dionisíaco nos últimos escritos, segundo as próprias afirmações de Nietzsche, está vinculado ao seu Zaratustra e por esse motivo é um aspecto imprescindível à compreensão dos objetivos e significados do autor com aquela obra e com as suas ­doutrinas. Como podemos ler em Tentativa de autocrítica, o dionisíaco associado a Zaratustra não mais é aquele da metafísica do artista. O caráter autobiográfico dos prefácios e de Ecce homo demonstra que Nietzsche deseja esclarecer a sua obra a partir de sua própria vivência, de seu percurso intelectual, o que significa que, no que se refere à essa noção, ela se alterou no decorrer do percurso intelectual do autor. 68

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do movimento conceitual efetuado nos escritos que o antecederam, enquanto fator imprescindível à compreensão de Zaratustra, assim como da motivação dionisíaca da filosofia de Nietzsche. A arte nos escritos anteriores a Zaratustra Posto que o entusiasmo de Nietzsche pela filosofia de Schopenhauer se deve decisivamente à possibilidade antevista pelo então jovem ­professor de filologia em aproximar as posições filosóficas do autor de O mundo como vontade e representação das suas interpretações da cultura e arte gregas, pode-se entender que a partir da percepção de que essa aproximação repercute em inúmeras limitações e problemas, os p­ osicionamentos concernentes à metafísica do artista precisam também ser reconsiderados. A percepção das dificuldades desta aproximação incide sobre aspectos de ordem tanto teórica ­quanto prática e dizem diretamente respeito aos pressupostos a partir dos quais o drama musical wagneriano é interpretado por Nietzsche, sob a perspectiva do empreendimento de uma reforma da cultura. A consideração da obra wagneriana por Nietzsche parte prioritariamente da interpretação schopenhauriana da música associada ao interesse pelo trágico grego (Meyer, 1995, p. 25). O fundamento universalizante da metafísica da vontade o leva a identificar um processo de depreciação do valor estético da arte, que teria conduzido a cultura ocidental a um movimento de depreciação da vida, cujos efeitos negativos teriam se tornado evidentes em seu tempo. A música wagneriana, interpretada por Nietzsche como signo da inversão dessa tendência, consistiria no propulsor de um movimento de reforma e de renovação da c­ ultura, que teria por fi ­ nalidade última restaurar o sentido de elevação e de engrandecimento da vida, que Nietzsche interpreta nos gregos antigos. Em Schopenhauer, a música é retratada como a mais verídica repre­sentação da vontade (WV/MV III § 52), que Nietzsche denomina de Uno primordial (Ureinen), o princípio fundamental e incondicio­nado de todo existente (NF/FP: KSA 7, 12 [1], início de 1871). Ela é representação intuitiva apenas da infinitude formal, um abstractum da efetividade (ein Abstracktum der Wirklichkeit) (WV/MV III § 52), através do qual é pos­sível a aproximação da própria essência do mundo, não por meio do conceito, mas da pura intuição artística. Em diferenciação das demais artes, vinculadas em ­diferenciados graus a referências e à representação, a música é pura forma e “têm como finalidade comum revelar e ­esclarecer a ideia que constitui a obra de arte, a vontade em cada grau de sua objetivação” (WV/MV III § 51). A sua singularidade se deve ao seu caráter abstrato, que a impede de se deixar limitar pela reprodução estática da ideia em suas objetivações. Ela suplanta a tendência à objetivação da ideia e devido a isso consiste em uma imitação imediata da vontade, “visto que ela nunca exprime o fenômeno, 69

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mas a essência íntima, o interior do fenô­meno, a própria vontade” (WV/MV III § 52). A música é então a forma superior de representação das manifestações da vontade em sons, que diante da infinita polissemia de formas possíveis de expressão, se deixa mais fielmente expressar na multiplicidade infinita das formas musicais. Esta interpretação da música, como veículo e mais elevada forma de manifestação sensível do princípio metafísico do mundo, é decisiva para aproximação de Nietzsche com respeito à arte wagneriana e para a sua formulação inicial do dionisíaco.4 Ao entrar em contato com a obra de arte total (Gesamtkunstwerk) de Wagner, ele também leitor de Schopenhauer, Nietzsche interpreta o drama musical Wagneriano como signo da nova manifestação de um impulso artístico natural, longamente represado pelo racionalismo estético, cujo efeito primeiro é fundamentalmente o restabelecimento da significação da música, fator decisivo para a aproximação da ópera da tragédia ática. É, por conseguinte, precisamente desses caracteres que Nietzsche deseja se afastar nos escritos que marcam a sua ruptura com pressupostos basilares de seus direcionamentos iniciais. Como documentos elucidativos neste sentido, podem ser indicados os prefácios publicados em 1886, anexados aos livros anteriormente publicados, mas originalmente não prefaciados. Esses textos são significativos, pois com eles o autor tenta tornar evidente o sentido de sua filosofia até então, do mesmo modo que busca oferecer aspectos para uma melhor compreensão do Zaratustra. Um dos objetivos centrais dos prefácios é esclarecer as bases a partir das quais fo­ram concebidas noções decisivas deste escrito então considerado como fundamental. Dentre essas noções, uma das mais significativas é precisamente o dionisíaco. O modo como o autor empreende a sua reapre­sentação, afastando-o de associações que possam ligá-lo originariamente tanto à filosofia de Schopenhauer, como à concepção de obra de arte total de Wagner, é significativo. Para isso, é-lhe necessário afastar-se destas tendências, que ele então identifica como expressões do pessimismo romântico, da arte de efeito (Wirkungskunst) e do cientificismo classi­ficatório identificável por ele na filologia academicista. Esse projeto, entretanto, como se lhe bem mostrara Bayreuth, não poderia ser levado a cabo na contemporaneidade unicamente por meio do ­restabelecimento da perspectiva artística grega e de sua sensibilidade intrínseca. Ele neces­sitaria, e é isso que Nietzsche mostra perceber com Humano, demasiado humano, ser efetivado mediante uma crítica das próprias bases valorativas da cultura ocidental, que então ele identifica como decorrentes da metafísica. Esse é o principal ponto revisionista de Nietzsche no livro de 1878. Para ele, é a partir da vitória hegemônica da perspectiva científica, que os valores metafísicos se 4

Aspecto que viria a se tornar central na crítica de Willamowiz Möllendorf à perspectiva filosófico-filológica de Nietzsche em NT (cf. Möllendorff, 2005, p. 70). 70

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associaram ao conhecimento e mantiveram vivas as suas perspectivas de sustentação. Um dos mais significativos desdobramentos desse acontecimento foi a manutenção do pressuposto da inferio­ridade da arte e da sensibilidade em favor da valoração superior do conhe­cimento racional. Esse aspecto evidencia que a ruptura de Nietzsche com respeito aos seus direcionamentos iniciais não é total, pois sua p ­ erspectiva permanece ligada ao pressuposto do caráter ilusório da verdade socrática. Ele faz uso da própria perspectiva aberta por essa para criticá-la, demonstrando-lhe as próprias contradições. Em outras palavras, é a própria concepção de verdade do socratismo que acaba por demonstrar a fragilidade das posições deterministas relativas ao conhecimento. Isso se desdobra na compreensão do caráter ilusório das valorações por ele estabelecidas. No que se refere à arte, o que o Nietzsche percebe a partir do primeiro festival em Bayreuth (EH/EH MA I/HH I § 2), é que a crítica do socratismo e da metafísica não poderiam, por si só, garantir a possibilidade de renascimento de uma forma outra de sensibilidade artística. Devido a isso, a metafísica do artista necessita ser abandonada. A indicação do aspecto insuperável da criação artística humana não poderia por si mesma reverter a hierarquia avaliativa estabelecida pela metafísica. Para Nietzsche torna-se evidente que as condições para isso não mais existem e que a indicação das fragilidades do princípio hegemônico do homem teórico não poderiam remeter a um renascimento da arte trágica. A crítica a Wagner e ao romantismo caminha neste ­sentido. Ela visa a tornar claro o afastamento de Nietzsche das formas de justificação estética que retornam a princípios daquele movimento cultural fundado na ­valorização nostálgica do passado, com os quais ele pensara tanto a arte wagneriana como a filosofia de Schopenhauer. O novo posicionamento significa o surgimento de duas percepções básicas: a compreensão de que a sua jus­tificação não poderia mais ser feita mediante recursos a concepções de tempos passados (HDRH II, OS § 178), pois as condições para a compreensão dessas não mais existem e, neste sentido, a arte pode mesmo ser mesmo considerada como fonte de erros e ofuscamentos (MA I/HH I § 2), pois, segundo Nietzsche, na modernidade, ela buscou refúgio no único âmbito que lhe foi permitido pelo pensamento racional, na metafísica do gênio e da natureza e, desse modo, se a­ ssociou aos pressupostos que determinaram a sua própria derrocada. A sua primazia foi transferida à ciência rigorosa, que, se ­inicialmente faz uso de concepções míticas relativas à verdade, à racionalidade e ao conhecimento, pelos seus próprios avanços precisa desmascarar toda a crença na inspiração e na comunicação milagrosa de verdades (ibid.). É a ciência, portanto, que revela a inatualidade negativa dos pressupostos de justificação da arte, que traz à luz o mitológico e o arcaico dos m ­ odos tradicionais de justificação que, em última análise, advém da forma ancestral de considerar da própria arte. Por esse motivo, o artista, em sua atitude de perpetuar o passado, 71

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“não figura mais nas primeiras filas da ilustração” (ibid.). A partir disso, Nietzsche pode afirmar: “No que toca ao conhecimento das verdades, o artista tem uma moralidade mais fraca do que o pensador” (MA I/HH I § 146), pois na luta pela superior d ­ ignidade e importância, “não deseja abrir mão do fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para o simbólico, a superstição da pessoa, a crença em algo miraculoso no gênio” (id.). A precedência do conhecimento científico na modernidade e o declínio dos ­dogmas religiosos, passíveis de serem constatados mesmo no luteranismo, são processos que tornam evidente o pouco valor efetivo dado a interpretações sem fundamento, muito embora ainda ocorra o uso daqueles como forma de justificação. Ainda que afastada, por motivos histórico-metodológicos, do anseio por verdades metafísicas, a ciência não logra distanciar-se suficientemente destes pressupostos de consideração, o que revela a sua relação histórica com aspectos daquela tradição, que ela, em sua significação ­efetiva, refuta como incongruentes. Isto se revela de maneira evidente para Nietzsche na justificação do conhecimen­to e da ciência dogmática. Essa se dá ainda por intermédio de utiliza­ção de pressupostos cuja origem não é científica, mas determinantemente religiosa e metafísica. Esse aspecto a mantém relacionada a estágios anteriores da cultura, quando o verdadeiro conhecimento da verdade5 ­ainda não havia se efetivado e as formas de glorificação da religião e da metafísica se davam por intermédio de uma justificação similar à utilizada pelos artistas. Para Nietzsche, isso determinou o direcionamento da arte para o domínio da inverdade, do fantasioso e do mero enaltecimento, o que produziu a sua desvalorização e descrédito (NF/FP: KSA 8, 30 [171]). Entretanto, o desempenho desta função e a sua justificação por meio dela revela o segundo aspecto a ser aqui abordado acerca da arte na contemporaneidade: ele traz à luz a evidência de uma necessidade humana, que nem a metafísica nem o cientificismo conseguem apaziguar. Nesse sentido, segundo Nietzsche, mesmo servindo a finalidades estabelecidas por uma cultura racionalizada, a arte demonstra o valor do seu modo de afirmação por meio do embelezamento mítico. A sua inatualidade e obso­lescência decorrem disso e não de um aspecto inerente a ela, mas pela forte influência metafísica de sua consideração e justificação. Essa se tornou extemporânea, remetendo com isso a arte ao âmbito das falsificações, por mobilizar crenças injustificáveis na atualidade científica, tais como a crença na inspiração, na comunicação milagrosa de verdades e na genialidade. Isto resulta apenas na tentativa baldada de perpetuar a importância de uma espécie de criação, baseada no ato milagroso do gênio, o que, porém, segundo o autor, a coloca no lado oposto da ainda fraca pretensão científica à verdade de suas figuras (MA I/HH I § 146). 5

Portanto, o conhecimento de sua relatividade (MM II/HDH II, OS, § 7). 72

filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

O conceito de inspiração é um dos pontos centrais da crítica de Nietzsche à produção artística de seu tempo. A depauperação crítica da metafísica e o avanço das ciências a tornou impossível, fruto de crenças e superstições. A justificação da arte por meio de uma crença na genialidade do artista, que o poria em contato com a essência do mundo, a qual ele traduziria em sua obra (MA I/HH I § 164), tornou-se ­insustentável. Foi apenas a partir dessa crença encoberto o processo de proveniência da arte, que, segundo ele, revela que, por detrás da obra haveria mais do artista (Fink, 1983, p. 52) que do homem que a cria, porém, nunca como médium que capta uma essência metafísica. Vista segundo esses pressupostos, a arte adquire uma aproximação criticável com a religião e com a metafísica (MA I/HH I § 220), justamente no que tange à crença de ambas na compreensão da essência do mundo, contrariamente àquilo que aquela deve significar, posto que ascende principalmente de um declínio da religiosidade (MA I/HH I § 150). Para designar um estágio de percepção desses caracteres, Nietzsche mobiliza o conceito de cultura superior. Esse lhe é útil para identificar o estágio em que o estimar a verdade6 é se distanciar dos erros metafísicos e artísticos. Nela, a atividade intelectual não pode ser associada a formas de justificação e legitimação milagrosas, formuladas sem a observância do então necessário pensamento rigoroso. Durante a sua vigência, necessita-se de coragem, de virilidade e de moderação, para que se possa perceber e novamente lidar com as novas verdades atinentes ao mundo e à vida. O efeito mais evidente disso é a intelectualização da arte e a espiritualização dos sentidos, de modo que as formas de justificação, fundadas no remetimento direto ao simbólico, tornam-se símbolos de um estágio inferior da cultura e, desse modo: “ao rico olhar agora é permiti­ do ter maior validade que a mais bela estrutura e a construção mais sublime” (MA I/ HH I § 3). Nessa condição, na modernidade a arte demonstra uma séria ambiguidade, que a despotencializa. O posicionamento crítico com relação a ela responde ao mesmo estatuto utilizado na c­ rítica à metafísica e remete à ausência de justificação racional de seus a­ rgumentos. Ambas, metafísica e arte, são consideradas como produtos da paixão, 6

Cabe aqui indicar que para Nietzsche o termo verdade não traz consigo nenhum cunho metafísico, mas sim propositivo, no sentido de que o apreço pela verdade significa o apreço pela sua busca e não pelo desejo de sua posse (MA II/HH II § 20). Se pensada a influência do ­pensamento positivista das ciências naturais neste momento da reflexão do autor, deve-se compreender também que para ele essas são, decisivamente, formas outras de lidar com a verdade e com o conhecimento e que com as suas pesquisas demonstram a vacuidade de posicionamentos metafísicos dogmáticos (Marietti, 1997, p. 264). Para Nietzsche, porém, é claro que mesmo em seu tempo uma desejosa separação entre ciência e metafísica ainda não está consumada, o que se constitui em uma das metas de seu empenho filosófico que, ao distanciar o desejo de conhecer do desejo de posse de verdades definitivas, vê ampliadas as possibilidades de evidenciar o aspecto interpretativo-represen­ tacional da ciência, criando com isso possibilidades de uma reconsideração positiva, isenta de condicionamentos morais, da arte na modernidade. 73

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como fonte de erros e de autoilusão (MA I/HH I § 9) e esta constatação é resultado da busca pelo conhecimento, que, na modernidade, acaba por ser movido por um lidar sóbrio, realista com relação ao mundo, como proce­dimento metodológico passível de ser exemplarmente constatado nas ciências naturais (MA I/HH I § 6). Entretanto, a virtuosidade da ciência se limita a possibilitar essa compreensão. Ela se empenha em afastar de sua referência todo e qualquer padrão de consideração que remeta a formas metafísicas de justificação, fundamentalmente aquelas que pressupõem verdades finais. O grande mérito das ciências naturais consiste em demonstrar a fragilidade fática da metafísica e não o de tê-la levado à comple­tude, a partir da demonstração da exatidão da verdade e do ­conhecimento (Vattimo, 1987, p. 53-54). Por intermédio da referência às ciências, Nietzsche visa a restabelecer um processo de valoração criativa na busca pelo conhecimento, o que historicamente fora obstado pelos dogmatismos metafísico-filosófico e religioso. Desse modo, a desconfiança com respeito à verdade se t­ ransforma em um princípio de criação cujos efeitos mais elevados são a valorização do ­desconhecido e a probidade (NF/FP KSA 9, 6 [67], outono de 1886). É a ciência, enquanto única via para a ­verdade (MA II/HH II § 213), que liberta a criação de novas formas de interpre­ tação e de representação. Ela se aproximada do processo criativo da arte e demonstra a possibilidade de justificação desta, muito embora ambas necessitem ser afastadas de pressupostos interpretativos canônicos. Esse aspecto determina os fatores decisivos de uma das mais signifi­cativas mudanças sofridas por Nietzsche, a saber, o abandono dos pressupostos relacionados à metafísica do artista (Young, 1992, p. 60) e o surgimento do espírito livre. Essa ligação é ressaltada no conjunto dos prefácios de 1986, de modo que, no escrito para a ­primeira parte de Humano, demasiado humano, o filósofo já se refere a esse livro como resultado de um “grande livramento” (grosse Loslösung), e no qual também se deu a invenção do “Espírito livre” (MA I/HH I, prefácio § 2-3). O “Espírito livre” relaciona-se com o “grande livramento” por meio do ­dese­jo e do interesse pelo que fora até então proibido e ainda por uma curiosidade que se contrapõe aos valores e às formas tradicionais de ­consideração (ibid., § 3). O novo espírito concebido por Nietzsche significa não apenas a efetivação de um afastamento, mas também o início de uma fase de experimentos na qual, segundo Vattimo, ele busca uma nova forma literária compatível com a sua missão de pensador e seus novos temas teóricos (Vatimo, 1987, p. 88). No que se refere a um significado estético do “Espírito livre”, Nietzsche ressalta tal aspecto ainda no primeiro prefácio de Humano, demasiado humano: (...) aquele excedente de forças plásticas, curativas, modelares (nachbildenden) e restauradoras, que é justamente o sinal da grande saúde. Aquele excedente que dá ao ­Espírito

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a livre, a perigosa prerrogativa de viver para o experimento (Versucht) e poder o­ ferecer-se à aventura: a maestria – prerrogativa do Espírito livre (MAM I/HH I, prefácio § 4)

Conforme essa indicação, fica claro que, mesmo em Humano, dema­siado humano I, livro no qual Nietzsche se encontrava empenhado em empreender uma ampla mudança nos rumos de sua reflexão, não deixa de estar presente uma importante dimensão estética, que diretamente se relaciona aos temas centrais de seus novos direcionamentos. ­Considerada a partir do grande “livramento”, a obra representava uma reconsideração do posicionamento do autor com respeito à arte e à perspectiva trágica, aspectos se mostram significativos para a presente abordagem, quando considerada a importância do sentido estético da linguagem em Assim falava Zaratustra (Fink, 1983, p. 55). Um dos primeiros posicionamentos que possibilitam compreender a mudança de pressupostos e o distanciamento da consideração da arte em Humano, demasiado ­humano com respeito à fase anterior, pode ser notado na afirmação presente no segundo a­ forismo do quarto livro ­desta obra, intitulado “Da alma dos artistas e escritores”. Nele Nietzsche mencio­na o abandono moderno da crença nas possibilidades da arte como veículo de amadurecimento da humanidade (Vermännlichung der Menschheit)7, assim como a sua consideração sob a ótica do esclarecimento (MA I/HH I § 147). A compreensão d ­ esse direcionamento pode ser feita por duas vias interpretativas: inicialmente, a partir da alteração de perspectiva sofrida por Nietzsche após a sua já mencionada decepção com Wagner e o wagnerianismo, o que veio a abalar a sua perspectiva inicial, de uma r­ efutação da validade dos princípios norteadores da cultura ocidental através de uma restauração da visão de mundo artístico – mítica (NF/FP KSA 8 II [25], Verão de 1875). Em segundo lugar, da constatação de que, para tornar-se efetiva, a arte necessitaria de um certo mundo e de uma certa cultura (Vattimo, 1987, p. 52) e que essas condições não mais existiriam. Como resposta e contraposição a essa constatação, Nietzsche cria o “Espírito livre”, com o qual ele visa a levar ao extremo a inelutável vitória da ciência e do desejo de verdade, visando (Brusotti, 2010, p. 67), todavia, a mostrar com esse aprofundamento tanto a beleza, como os perigos e limitações dessa tendência. Portanto, em 7

A opção por traduzir “Vermännlichung” por amadurecimento e não por masculinização ou v­ irilização, se deve a vários fatores: muito embora a raiz da palavra possa ser relacionada ao termo que pode indicar um sentido remetido ao gênero masculino (männlich), no aforismo, o termo está r­ elacionado ao artista de uma idade impúbere e por isso parece indicar algo mais amplo que os significados primeiramente mencionados. Nesse sentido, optou-se amadurecimento, muito embora se compreenda a pertinência dessa última opção que, por exemplo, consta na ótima tradução de Paulo Cesar Souza (Cf. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 147). Uma outra justificativa à solução aqui encontrada está presente no aforismo 159 da mesma seção. Nele, Nietzsche insiste na ideia de um atraso nas formas de manifestação artística e se refere a esse a­ specto mediante os termos atraso e infantilidade (Kindheit), o que, ao nosso ver, pode referendar ainda mais a opção de tradução aqui feita. 75

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um primeiro momento, a arte é posta como adversária do conhecimento, justamente porque a sua já men­cionada recorrência ao passado e a princípios vetustos de j­ustificação a afastam da perspectiva científica. Todavia, esse é apenas de um aspecto da crítica que, como se verá, não se direciona à arte propriamente dita, mas a sua forma ­contemporânea de justificação, que a mantém estática, presa a um passado inalterável. A seu favor, Nietzsche simultaneamente r­essalta a necessidade humana dessa referência estético-criativa e a sua positividade, enquanto forma de alegria para com a vida (­Lebensfreunde), através da qual até mesmo a própria metafísica poderia ser esclarecida enquanto jogo criativo (NF/FP: KSA 8, 29 [45], Verão de 1878). Afastando-se da concepção ­romântica de arte, o autor afirma que ela deve requerer uma nova espécie de genialidade, aquela que já superou a descon­fiança na mul­tiplicidade das paixões (MA I/HH I § 629), a confiança na neutralidade do método e no recurso à autoridade (ibid. § 633), qual seja ela, a justiça (Gerechtigkeit), aquela que evidencia a multiplicidade de opiniões nascidas das paixões e que torna o “Espírito livre” – aquele que não quer se limitar à estreiteza dessas opiniões, que é um andarilho, que transita entre elas e entre os partidos – um: “traidor de todas as coisas que em geral poderão ser traídas – e ainda sem o s­ entimento de culpa” (MA I/HH I § 637). Essas passagens revelam aspectos significativos da crítica feita à arte em Humano, demasiado humano. Essa deve então ser compreendida não como uma condenação da arte em favor da noção tradicional de ciência estabelecida na modernidade, mas antes muito mais como uma contrapo­sição a uma concepção de arte que, em sua justificação, se funda em princípios vetustos e diretamente responsáveis pela sua depreciação. A crítica incide, portanto, não sobre toda a arte, mas especificamente à justificação estética da arte fundada em concepções que não têm mais lugar na modernidade e que podem ser facilmente relacionadas a pressupostos metafísicos (MA I/HH I § 222). Por outro lado, os limites dessa crítica podem ser percebidos nas indicações das p­ ropriedades posi­tivas da manifestação artística, tais como o embelezamento, o realce e o prazer advindo de suas formas de expressão. Essas qualidades evidenciam a sua possível independência de justificações relacionadas a pressupostos metafísicos, ao mesmo tempo que o seu caráter afirmador da vida, o qual Nietzsche busca transpor para a sua fi ­ losofia. Esse ensinamento da arte, de ter prazer na existência e de ver a vida humana como uma parte da natureza, sem um movimento comum violento, como objeto de um desenvolvimento regular, – essa doutrina cresceu em nós, ela retorna à luz agora como onipotente necessidade do conhecer (MA I/HH I § 222).

A inclinação metafísica da arte de seu tempo torna-se digna de atenção para Nietzsche apenas em sentido histórico, pois demonstra o ­fracasso da tentativa de jus76

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tificá-la mediante um remetimento a princípios supramundanos. Em Humano, ­demasiado humano, o filósofo nega à c­ iência a capacidade de proporcionar um conhecimento definitivo das coisas. Destarte, a sua reflexão com respeito à arte e à ciência se revela como prioritariamente direcionada a uma crítica da cultura, de seus valores norteadores, para Nietzsche responsáveis pela perpetuação e consolidação de princípios que obstam ­tanto o desenvolvimento cultural no sentido de um não dogmatismo interpretativo, quanto a criação afirmativa e embelezadora da vida, advinda de formas outras de interpretação e representação. Para Nietzsche, naquele momento – e em diferenciação ao projeto de reforma da cultura – esse objetivo não poderia ser alcançado sem o ­auxílio da cientificidade, porém de uma determinada forma de atuação dessa,8 livre da influência dos erros consolidados pela tradição ligada a uma ­forma determinada de moral (MA I/HH I § 153), fator que delimita de modo significativo a sua apologia da ciência (Vattimo, 1987, pp. 54-5). Percebe-se então que, no que se refere às novas e às antigas perspec­tivas, em linhas gerais, Nietzsche mantém princípios norteadores básicos de sua filosofia anterior, tais como a negação da possibilidade de alcance de uma verdade definitiva (MA I/HH I § 2) e da hierarquia que esse princípio passou a suster, do mesmo modo que reafirma o vínculo afirmativo entre arte e vida, sem, entretanto, relacioná-las essencialmente (NF/FP KSA 8, 23 [150], inverno 1876 – verão 1877). Esses aspectos, por sua vez, são redimensionados segundo a radicalização do próprio desejo científico de verdade, que a partir de então, afastado da busca por um conhecimento definitivo, revela um mundo constituído unicamente por perspectivas diferentes, no qual toda forma de comunicação tem em vista ser a expressão daquele que a constrói e utiliza. Ao considerar o homem científico como o desenvolvimento do homem artístico (MA I/HH I § 222), Nietzsche não tem em vista negar o valor da manifestação a­ rtística, mas apenas conferir-lhe um significado novo, em uma época que não mais ­efetivamente crê em antigas noções como a de inspiração ou vincula a significação das representações a um suposto e determinante pressuposto de verdade. É dessa maneira que a arte pode auxiliar a ciência e a filosofia, pois nela as representações metafísicas – tais como alma, corrupção e salvação – se conservam em m ­ uito menor grau. Nela tais noções obtêm um grau bem menor de ­necessidade e, por esse motivo, através dela se pode mais ­facilmente ultrapassar a pressuposição metafísica e chegar a uma filosofia científica libertadora (MA I/HH I § 27). 8

Eugen Fink defende a ideia de que o elogio da ciência em HH parte primeiramente da utilização de uma psicologia destrutiva e desmascaradora, que revela os subterrâneos anseios do homem. A ciência é então tomada positivamente como instrumento de dissipação das ilusões que por um longo tempo se mantiveram na cultura ocidental (Fink, op.cit., pp. 49-50). 77

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Como via para a inversão das formas tradicionais de consideração, a arte pode então ser inserida no horizonte da ciência e ser aproximada do espírito livre, tendo em vista as suas próprias potencialidades. Por outro lado, evidencia-se também que nem todas as formas de arte podem prosperar, fundamentalmente a arte com pressuposições metafísicas (MA I/HH I § 220). Desse modo, esta nova justificação estética da arte apenas parcialmente permanece trágica9 ou romântica, do mesmo modo que apenas parcialmente é moderna. Ela é muito mais apresentada como aliada da beleza da repre­ sentação a serviço da vida, pois os pressupostos morais – e, destarte, as formas de justi­ ficação – sempre se alteraram (MA I/HH I § 126). A arte de que fala Nietzsche é aquela que possibilita a criativa libertação dos pressupostos dogmáticos e que, como contínua reanimação e reformulação, caracteriza-se decisivamente como processo de recriação. O sentimento de liberdade que disso decorre, renova sentimentos positivos com relação à vida e a existência, aspectos que Nietzsche deseja integrar à busca ­científica. Antes de tudo, durante milênios ela [a arte] ensinou a olhar com interesse e desejo à vida em todas as formas e a levar nosso sentimento tão longe, até que finalmente digamos: “seja como ela for, a vida, ela é boa”. Este ensinamento da arte, de ter prazer na existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza, sem demasiado brusca simultaneidade (Mitbewegung), como objeto de uma evolução regulada – esse ensinamento cresceu em nós, ele chega agora à luz como a mais atual necessidade do conhecimento. Poder-se-ia renunciar à arte, mas com isso não seriam lesadas as capacidades assimiladas (gelernte) por meio dela: de modo similar, como a religião, foi abandonada, não porém as [capacidades] obtidas por meio de elevações de s­ entimentos (Gemüths-Steigerungen) e sublevações (Erhebungen). Tal como as artes plásticas e a música são a medida da riqueza de sentimentos realmente aumentada e adquirida através da religião, assim ocorreria com a multiplicidade e intensidade de viver plantadas por elas, que exigiriam sempre satisfação. O homem científico é a continuação do desenvolvimento (Weiterentwicklung) do homem artístico (MA I/HH I § 222).

O enfoque que desejamos dar a esta abordagem é o de demarcar claramente a posi­ ção que Nietzsche adota a partir de Humano, ­demasiado humano I acerca da arte, a fim de melhor compreender como é possível e qual a significação da forte conotação artística dada a Assim falava Zaratustra. Nesse sentido, a partir da consideração geral do 9

Em um Fragmento póstumo de 1878, Nietzsche escreve: “Motivo de uma visão trágica do mundo: a luta glorifica o perdedor. Os fracassados estão em maioria. O terrível comove mais fortemente. Desejo pelo paradoxal, preferir a noite pelo dia, a morte à vida. Tragédia (Trag) e comédia (Kom) dão uma caricatura da vida, não um modelo ‘Patológico’. Goethe contra o trágico – Por que tentá-lo? - Conciliante Natureza.” NF/FP: KSA 8, 29 [15]. 78

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estatuto da arte em Humano, demasiado humano, passaremos à consideração específica da poesia nessa mesma obra. Essa incursão se justifica pela ­referência do próprio Nie­ tzsche à inspiração poética de seu Zaratustra, de modo que, se em Assim falava ­Zaratustra Nietzsche faz uso do discurso com preocupações artísticas como veículo transmissor de seus pensamentos abissais, deve-se compreender que a sua consideração com respeito à arte se alterou, que então ele antevê a possibilidade de conferir a ela n ­ ovamen­te um uso efetivo no que se refere a sua significação cultural. Por conseguinte, ao escrever Assim falava Zaratustra da maneira como o fez, ele pressupõe que algo nesse contexto pode ter sido alterado. Desejamos abordar esta discussão nos novos horizontes que se abrem para o pensamento do autor a partir de sua concepção de um projeto de ­transvaloração de todos os valores, o qual, com efeito, segundo ele mesmo, já se ­iniciara em O Nascimento da tragédia (GD/CI. “O que devo aos antigos” § 5). Em favor de ambas as hipóteses, nos remetemos basicamente a dois textos: primeiramente ao aforismo 568 de Aurora e, em seguida, à seção de Crepúsculo dos ídolos intitulada “Como o ‘mundo verdadeiro’ tronou-se enfim uma fábula”, na qual, ­mediante um pequeno esquema de seis pontos, Nietzsche condensa toda a história da filosofia, de Platão ao seu Zaratustra, e a retrata como a manutenção do pressuposto metafísico do “mundo verdadeiro” em contraposição ao “mundo aparente”. Essa oposição, com efeito, é resolvida por Zaratustra no último tópico desta seção, com a abolição de ambos, solução considerada pelo autor como o ponto culminante para a humanidade (GD/CI “Como o mundo verdadeiro ‘tornou-se finalmente uma fábula’”). Obviamente, esse pequeno esquema, escrito em 1888, já pressupõe aspectos que ocupam o centro da reflexão madura de Nietzsche e que não podem ser aqui dire­tamente tratados, tais como a concepção do mundo como vontade de poder e o pensamento do eterno retorno do mesmo. Todavia, é certo que, como ponto de partida, a posição adotada em Humano, demasiado humano, delineada em Aurora e que se faz decisivamente presente em A gaia ciência e em Assim falava Zaratustra, pode fornecer dados importantes para a consideração e explicitação dos fatores que se alteraram e possibilitaram a Nietzsche escrever uma obra de conteúdo filosófico peremptório para ele sob a forma de exercício literário, que, muito embora comporte diferentes estilos, possui uma clara ênfase ­artística. A consideração da poesia em Humano, demasiado humano, em traços gerais, res­ pei­ta em muitos aspectos os mesmos pressupostos usados na interpretação da arte em sentido amplo. Nesse momento ela é tomada por Nietzsche como experimentando a mesma estagnação da arte em geral, causada por ligação e dependência excessiva com o passado (MA II/HH II, OS § 176). O que lhe parece problemático, nesse caso, é a consequência dessa ligação com o tempo presente, fortemente marcado ­pelas inter­ 79

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pretações teleológicas e superadoras do passado. Esses traços podem ser encontrados nos aforismos no quarto capítulo do livro, intitulado “da Alma dos artistas e escritores”. No que se refere à poesia, o § 148 dessa secção é significativo, pois evidencia os pressupostos da crítica de Nie­tzsche, mas também indica aspectos positivos da arte na modernidade. Em um sentido geral, essa seção versa sobre a já mencionada i­ maturidade das tradicionais formas de justificação da arte na atualidade. O título do aforismo já é por si só sugestivo: “O poeta como facilitador (Erleichter) da vida”. Nele os poetas são indicados como aqueles que, apesar de quererem facilitar a vida através de suas criações, desviam o olhar da árdua atualidade, ou proporcionam que se veja o momento iluminado e com novas cores, porém com as que eles trazem do passado. Para isso, eles necessitam virar-se para trás e, assim, se tornam pontes para tempos e representações longínquas, para religiões agonizantes ou mortas, meros epígonos (Epigonen), que jamais propiciam ao homem uma efetiva cura de seus males, mas apenas paliativos para o momento: [os poetas] impedem os homens até mesmo de trabalhar pela efetiva melhoria de suas condições, na medida em que superam precisamente a paixão da insatisfação, que impulsiona à ação, com descargas p ­ aliativas (MA I/HH I § 148).

O que para Nietzsche constitui o fator próprio da decadência da arte na modernidade consiste precisamente o status central adquirido pelo conhecimento científico e pela sua nova concepção de veracidade e falsidade. O retorno aos antigos torna-se problemático porque, diferentemente dos modernos, os antigos artistas não se iludiam com a arte, mas deliberadamente cercavam e embelezavam a vida com mentiras (MA I/HH I § 154). O poeta moderno, mesmo diante da constatação da superioridade valorativa da verdade, ainda busca, sem sucesso, ofuscar essa característica e, anacronicamente, justificá-la como algo divino ou demoníaco e nisso ele fracassa c­ ompletamente, pois a modernidade não respeita mais tais princípios. Mas Nietzsche busca ressaltar os aspectos positivos desta constatação. Ele argumenta em favor da aversão ao forma­lismo que o grande artista, o artista criador, então pode vivenciar. Afastado dos antigos – que no seu apreço pela forma, mostravam-se ­exteriores às suas paixões e encantamentos e, desse modo, como domadores da vontade (Willens-Bändiger), transformadores de animais (Thier-Verwandler), criadores de homens (Menschen-Schöpfer) e, de modo geral, plasmadores (Bildner), transformadores e aperfeiçoadores da vida (Um-und ­Fortbildner des Lebens) – o grande artista moderno pode ser, decisivamente, um desencadeador da vontade (Entfesseler des Willens), porém ainda de modo desordenado e excessivo. Todavia, no contexto da possibilidade moderna de superação da crença no determinismo metafísico, ele pode ainda ser interpretado positivamente, como um libertador da vida 80

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(Befreier des Lebens), pois com sua atitude, ele pode desarrear, desagrilhoar e derrubar (MA II/HH II § 172). Com isso, ele revela, novamente, funções primordiais da arte, tais como o necessário, embelezar e tornar suportável a vida, assim como o ocultar e o reinterpretar tudo que é feio, doloroso e horro­roso que irrompe da natureza (MA I/ HH I § 174). O grande poeta moderno é aquele que, em seu ato de comunicar algo aos outros homens,10 imprescindivelmente retorna à atividade ­poética original e mediante a ausência de respeito à forma, remete o ouvinte para um movimento de libertação das convenções que o cercam. É por isso que ele não pode exercer a antiga exigência feita pelos gregos aos seus poetas, de serem mestres dos adultos, pois neste caso o artista moderno mostra-se como um mau mestre de si mesmo, como mau poeta e m ­ odelo, portanto: Nos casos mais favoráveis, como que a tímida, atraente pilha de ruínas de um templo mas, ao mesmo tempo, uma caverna de desejos, com flores, figueiras, ervas daninhas crescidas sobre ruínas, onde moram e visitam cobras, vermes, aranhas e pássaros – um objeto para reflexões enlutadas acerca de por que agora o mais nobre e caro deve crescer exatamente como ruína, sem o passado e o futuro do ser perfeito? (MA II/HH II § 172).

A dificuldade do poetar e da criação artística na modernidade repousa então basi­ ca­mente em dois aspectos: na inatualidade do seu referencial originário e no seu e­ xtravio do sentido original deste mesmo referencial, que é o embelezar a vida (das Leben verschönern) (MA II/HH II § 174). Um dos traços dessa condição é indicado como o afas­ tamento do antigo entendimento da arte como discurso de convenções, o qual, quando é abolido, remete ao sacrifício da inteligibilidade (ibid., OS § 122). Mesmo vista desse modo, a arte mantém um estatuto positivo nesse aforismo. Pois mesmo tendo indicadas as suas limitações, ela, na interpre­tação de Nietzsche, ainda possui as c­ ondições e o contexto de manter o seu antigo significado de potência embelezadora, mesmo em um mundo no qual os pressupostos valorativos foram alterados (Fink, 1983, p. 52). Todavia, Nietzsche insiste na indicação de que apenas a possibilidade da função afirmativa da arte não é suficiente para poder lhe restituir significação. Isso apenas pode ser levado a cabo em uma acepção mo­derna, científica, não mais fundada em concepção ancestral e adequada aos padrões da contemporaneidade. As condições para isso Nie­ 10

Para Young, esse aspecto demarca a espécie de poeta ao qual Nietzsche direciona o seu elogio; não aquele voltado para vôos metafísicos (metaphysical flight), mas o que se volta para o futuro, portanto o poeta voltado para a atualidade, apenas para a vida. O comentador indica ainda que isso não significa que N ­ ietzsche caia em um naturalismo, mas sim que ele opta decisivamente pela realidade (1992, p. 74). 81

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tzsche indica já em Humano, demasiado humano I, quando refuta as formas u ­ nicamente simbólicas de representação (MA II/HH II § 173). Os fatores decisivos para tal ­intento demandam, todavia, a consideração histórico-crítica da proveniência das categorias morais de valoração, como forma de evitar uma confiança excessiva na capacidade cognitiva da ciência. Essas ca­tego­rias são responsáveis pela definição das formas dos modos culturais de valoração e avaliação que, dentre outros casos, determinam os ­modos de justificação da arte, sem, porém, jamais necessitar de uma verdade definitiva. Ciência, moral e o renascimento da arte Aurora, publicado em 1881, deixa transparecer a intenção de seu autor já em seu subtítulo: “pensamentos acerca dos preconceitos morais”, que desde já indica a consideração da moral como algo não imanente, mas de forma perspectivística.11 Se em Humano, demasiado humano, Nietzsche encontra-se empenhado em marcar o seu afastamento com respeito a Wagner e ao wagnerianismo, mostrando a vacuidade de ­qualquer projeto direcionado a uma redenção do homem teórico fundada em uma perspectiva estética, em Aurora, ele aborda diretamente as causas da impossibilidade desse anseio, as valorações morais. Por conseguinte, nesse livro, o filósofo aprofunda sua reflexão a respeito dos valores morais atuantes na cultura e inicia a sua campanha contra a sua essencialização e absolutização. Trata-se do início daquilo que Gilles Deleuze chamou de a filosofia dos valores, ou seja, a única maneira de realizar a ­crítica total da filosofia e que implica em uma inversão crítica (Deleuze. s.d, p. 6). Essa pode ser entendida como o esforço do autor em mostrar que a moral, assim como os valores que ela representa, tem uma proveniência e que na sua gênese agiu precisamente uma força criadora, o que torna peri­gosa e empobrecedora toda rígida tentativa absoluta de determinação moral. Temas decisivos tratados nesse livro são a crítica das noções tradicio­nais de racionalidade, de consciência e do Eu (M/A § 116), então analisadas não mais como puras substancialidades, mas como produtos de processos fisiológicos. A isso acrescente-se a análise do próprio processo de surgimento da forma tradicional de avaliação moral de ambas, cujas origens remetem Nietzsche a uma análise crítica da influência de i­ mpulsos vitais (M/A § 102), entendidas enquanto fontes de ­dogmatismos religiosos e ­metafísi­cos assimilados pela cultura e pela ciência ocidental. Tais direcionamentos se opõem ao posicionamento racionalista, a partir do qual a racionalidade poderia ser a fonte pri11

Para Nietzsche, considerações morais são sempre pré-determinadas (NF/FP KSA 10, 4 [133]), ele não mais aceita hipóteses acercas de ações ou avaliações desinteressadas ou não egoístas. Para ele, juízos trazem sempre consigo a expressão das valorações morais prévias, com as quais aquele que avalia labora. Um dos objetivos centrais de Aurora é expor esses pontos de vista. 82

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mordial de determinação de valores morais e de pressupostos epistemológicos necessários. O autor percebe que a insistência neste padrão de consideração redunda de maneira significativa na inércia da filosofia (M/A § 542), na delimitação de sua ­atividade em um jogo conceitual abstrato, moralmente autojustifi­cado, que resultou em inevitável distanciamento daquela com respeito à ciência e ao mundo. Não se trata de negar e assim superar todas as valorações morais (M/A § 103), mas de levar, a partir da compreensão da proveniência e não da necessidade fundante delas, ao estabelecimento de um outro tipo de relação para com as mesmas (N/FP KSA 10, 4 [147]). Ao Compreendê-las como produtos humanos, afastando-as de qualquer caráter ­essencial ou superior, significa em Nietzsche o desejo de suprimir-lhes toda neces­sidade de veneração. Assim, é possível compreendê-las como outra coisa que “obediência a costumes” (M/A § 9). O que Nietzsche almeja com isso é uma nova, inaudita, amplitude para todos os domínios de ­interesse humano, pois a partir de então todas as antigas dimensões e limites morais precisam ser revistos, sem a perspectiva de uma valoração mais verídica, mas apenas de modos outros de valoração possíveis. Os ­impactos de uma tal perspectiva na filosofia de Nietzsche são significativos e infringem direcionamentos decisivos às suas considerações acerca da ­ciência e da arte. Com respeito à primeira, a impossibilidade de indeterminação moral – que não consiste em ceticismo moral como contemporaneamente se insiste em se referir a essa posição, mas antes na negação da possibilidade de seu determinismo – implica uma amplitude de novas significações a serem experimentadas, cuja percepção acaba por romper os domínios do saber e adentrar nos domínios da sensibilidade e então da arte, pois a percepção deste novo contexto acaba por superar o pessimismo científico de origem metafísica presente a seu ver no cerne da modernidade e por conferir n ­ ovamente beleza à infinidade de significações então redescobertas. Mais especificamente, trata-se de uma redescoberta, pois essa experiência já existira na atividade artística, antes do seu rebaixamento moral levado a cabo pela metafísica. Ao ser desqualificada pela ­metafísica em sua aspiração pelo incondicionado, não apenas a arte, mas o mundo sensoriamente perceptível e simbolicamente expresso foi negado e banido do domínio das atividades superiores em favor do mundo metafísico ou transcendente. A forma de oposição a esta hierarquização em Nietzsche se dá em seu esforço por demonstrar a inexistência da necessidade deste mundo, assim como da moral que o afirma. Desse modo, é-lhe possível romper com os formalismos impostos pela tradição, tal como os das relações necessárias e determinadas entre os domínios epistemológico, moral e estético. Assim, é possível poder pleitear, mediante a consideração moral da ciência e da metafísica, a justificação da primeira, aproximando-a da experiência simbólico-interpretativa da arte. Isso é plausível para Nietzsche a partir da possibilidade da transformação da incomen83

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surável amplitude significativa do existente em um critério estético de beleza (Schulz, 1983 p. 4), a partir da aferição de significação positiva mesmo à realidade mais feia, pois essa passa a possuir novo e amoral potencial de significação. A felicidade do homem do conhecimento (Erkennender) aumenta a beleza do mundo e torna tudo o que existe mais ensolarado; o conhecimento põe sua beleza não só em torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas – possa a humanidade futura dar o seu testemunho dessa afirmação! (M/A § 550).

Assim pode-se falar de um ressurgimento de condições possibilitadoras da atividade artística criadora em Aurora. Todavia, essas decorrem não de uma tentativa de refutação, mas da própria aspiração científica pelo saber que, liberta de todo d­ ogmatismo moral, percebe-se ­aproximada da arte enquanto atividade interpretativa e plasmadora do real (­Brusotti, 1998, p. 267). Para Nietzsche, é nesse sentido que se pode mencionar a possibilidade de um renascimento da arte. Não da arte restrita a uma moralidade excludente, mas de uma arte afirmativa, meio de um ­impulso criativo fundado nas possibilidades de interpretação e reinterpretação, assim como na alegria e no desafio da representação do existente (M/A § 468). Para isso, ela deve se tornar uma atividade interpretativa e se justi­ficar pelo direcionar-se a outras bases e pressupostos que não os da arte romântica. Mesmo quando ela faz uso de termos que podem ser rela­cio­nados a essa, o faz em outro sentido, justificado-se não apenas no efeito, mas na força afirmativa do modo de como ela se relaciona com o mundo e com a vida. É exatamente esse princípio que Nietzsche deseja inovadoramente transpor para a filosofia e para a ­ciência (M/A § 550), a fim de salvá-las do ceticismo (M/A § 477) e do pessimismo que ele inter­preta no horizonte da modernidade e denuncia como sintoma de decadência. O renascimento de novas possibilidades de justificação da arte é anunciado no penúltimo aforismo de Aurora, após o autor ter empreendido todos os seus ataques ao problema das convenções morais. Neste aforismo encontra-se uma passagem significativa para a compreensão do reaparecimento afirmativo de possibilidades para uma consideração da arte e de suas possibilidades. O aforismo, bastante sucinto, mas de ­grande significação, é o seguinte: Poeta e pássaro – A Fênix mostra ao poeta um papel inflamado e ­quase carbonizado. “Não te assustes! Diz ela, é a tua obra! É que não tinha o espírito do tempo, e ainda menos o espírito dos que são contra o ­tempo: devia consequentemente ser queimada. Mas é bom sinal. Há várias espécies de auroras” (M/A § 568) .

Se forem considerados o conteúdo e os pressupostos que Nietzsche indica no seu livro posterior, A gaia ciência, esse aforismo contém cla­ramente a indicação do renascer 84

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do discurso poético12 e, consequentemente, de suas novas possibilidades na modernidade. O espírito contrário ao tempo aqui mencionado, se referido ao aforismo 225 de Humano, demasiado ­humano I, pode ser facilmente reconhecido como o “Espírito livre”, aquele que é uma criação do próprio autor, portanto, que antes não existia, mas que é o espí­rito de seu tempo. A Fênix, como símbolo da ressurreição após a des­truição13, indica o ressurgimento da poesia após a crítica em Humano, demasiado humano, o que então requer que se o­ bserve quais as novas condições que tornaram isso possível. O tema que começa a surgir aqui – e que expressa ­significativamente o horizonte de Aurora, é o da transvaloração de todos os valores, ideia que tem o seu conceito formulado em 1883 (Machado, 1999, p. 85), mas que já se encontra posto em algumas anotações do outono de 1881: “Al­teração da valoração – é minha tarefa” (NF/FP: KSA 9, 11 [76], primavera – outono 1881). O significado estético dessa alteração é indicado em outro ­fragmento do mesmo período: O belo, o asqueroso etc., é o juízo mais antigo. Tão logo ele p ­ retenda a verdade absoluta, o juízo estético transforma-se em exigência moral. Tão logo neguemos a verdade absoluta, devemos renunciar a todo exigir absoluto e nos voltarmos para os juízos estéticos. Esta é a tarefa: criar uma abundância de valo12

Dois fragmentos póstumos, do outono de 1880, fornecem aspectos que possibilitam pensar em uma tendência de Nietzsche em valorizar a poesia com relação à música depois de seu ­afastamento de Wagner. No primeiro, ele afirma: “A música não tem mais som para o encantamento do e­ spírito, ela quer reproduzir (wiedergeben) a condição do Fausto, Hamlet e Manfredo. Assim, ela mantém afastado o espírito e pinta disposições de ânimo que são altamente desagradáveis, sem espírito ou outra coisa que sirva para ver. Ela embrutece (vergröbert) e pinta o desconforto e o lamento, talvez com espírito musical, porém que terrível é essa arte, quando ela pinta o feio sem critério: Que martírio são os próprios tons, os ­maçantes tons” (NF/FP KSA 9, 6 [39]). Ainda nesse fragmento, após falar da desnaturalização da música em seu tempo e da tendência dessa para o sentimento e para os sentidos, o autor afirma com respeito à poesia: “O poeta é mais elevado que o músico, ele eleva mais, diga-se a todos os homens, e o pensador tem ainda p ­ retensões mais elevadas” (ibid.). Que uma tal mudança de perspectiva está relacionada com Wagner, pode-se confirmar no fragmento seguinte: “Eu amei o homem. Como ele vivia. Como em uma ilha e, sem ódio, se mantinha ­fechado do mundo. Assim eu entendia isso! Quão distante ele se tornou de mim, assim como ele agora, nadando na torrente do egoísmo e da hostilidade nacional, vai ao encontro às necessidades ­religiosas deste povo emburrecido pela política e pela avidez pelo ­dinheiro. Antes eu pensava: ele não tinha nada com a atualidade – eu era um louco completo.” (ibid., 6 [40]). Esses fragmentos mostram que a valoração da poesia, a forma de expressão de Zaratustra, em detrimento da música se dá devido à frustração de Nietzsche com Wagner. 13 Segundo Maria Cristina Ferraz, a figura da Fênix tal como aparece em várias passagens dos ­escritos de Nietzsche (em § 208 e 209 de MM I/HH I, EH/EH Z § 1, M/A § 568, Z/Z “Do caminho do criador”) é frequentemente empregada pelo filósofo para caracterizar a relação entre certo tipo de criador e sua obra, entre o artista que transpôs o seu fogo para ela e que, mesmo transformando-se em cinzas, encontra-se feliz por vê-lo preservado em sua obra. Segundo a autora, a figura da Fênix se relaciona ainda com o pensamento do eterno retorno e com o dionisíaco, a partir da noção de destruição e eternização pelo fogo. Cf. Ferraz, 1994, pp. 73-80. 85

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rações estéticas com direitos iguais: para cada um indivíduo o último fato e a medida das coisas.

Redução da moral à estética!!! (NF/FP: KSA 9, 11 [79], primavera – outono 1881).

Que Aurora – cuja arte é, todavia, a música (NF/FP: KSA 9, 12 [119], outono de 1981) –, contém a preparação para o ressurgimento da arte em A gaia ciência,14 a qual tem como aspecto subjacente uma alteração dos valores fundada primeiramente na decisiva negação da possibilidade de um pressuposto verdadeiro absoluto, Nietzsche mesmo o indica em 1888, em Ecce homo, quando volta a comentar o seu livro e ­descreve onde buscou a sua nova alvorada: (...) uma transvaloração de todos os valores, em um livramento de todos valores morais, em um dizer sim e ter confiança em tudo quanto foi até hoje proibido, desprezado, maldito (EH/EH, M/A § 1) .

Um outro aspecto a ser trazido aqui à discussão, pois compõe um dado significativo para que se compreenda a nova tomada de posição de Nietzsche em A gaia ciência, é que a transvaloração de todos os valores marca também o ressurgimento do ­dionisíaco na filosofia do autor. Como ele próprio afirma, o primeiro momento da transvaloração de valores se iniciara com O nascimento da tragédia e com a descoberta do dionisíaco (GD/CI “O que devo aos antigos” § 5). Com respeito a esse ponto em particular, deve ser lembrado que desde então o dionisíaco é ­diretamente contraposto ao socratismo e à interpretação moral do mundo, isso em favor de uma perspectiva estética e de uma concepção artística ­inovadoras. Desse modo, o renascimento do poético anunciado em Aurora, filosoficamente manifesto em A gaia ciência e que tem já em vista Assim falava Zaratustra, deve ser compreendido segundo estes dois aspectos, a saber: o do projeto de transvaloração de todos os valores – o qual em sua amplitude implica em uma mudança radical não ­apenas no que se refere às formas de expressão, mas também decisivamente ao seu significado e alcance – e com o reaparecimento da visão dionisíaca do mundo. A inversão dos valores possibilita a reaparição positiva da arte e do dionisíaco, pois são abolidas as antigas dicotomias de bom – mau, falso – verdadeiro, verdadeiro – aparente, possibilitando assim a afirmação incondicional de tudo o que existe, aspecto próprio daquele Deus e de sua arte. Esses mesmos traços se fazem presentes em A gaia ciência e aparecerão decisivamente nas considerações posteriores de Nietzsche a r­ espeito de Assim falava Zaratustra. Essa perspectiva estética transposta para o campo da ­atuação 14

Enquanto escrito, A gaia ciência foi inicialmente concebida por Nietzsche como um ­prosseguimento de Aurora (Salaquarda, 1999, p. 76). 86

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filosófica visa a restabelecer, ao pensar a condição de possibilidade dessa a partir da sua aproximação da arte, justamente o seu traço originário que fora obliterado devido à adequação da filosofia ao determinismo da moral. A suspeição com respeito à n ­ ecessidade dos valores morais é aquilo que para Nietzsche marca o limiar da moder­nidade, que então passa a ser caracterizada justamente pela compreensão de que formas de consideração sem atribuição de valores não existem, de igual modo que verdades devem ser compreendidas como formas de aferição de valor e, portanto, que não há verdades em si mesmas (NF/FP: KSA 9, 3 [19], primavera de 1980). Assim, em A gaia ciência a arte, liberta da tutela da verdade, passa a significar para Nietzsche a possibili­dade de ­expressão simbólica e imoral da existência, que a embeleza quando a representa simbolicamente, pois lhe revela e afirma a beleza por meio da evidência da infinidade de possibilidades de consideração. A filosofia compreendida por Nietzsche visa a esse mesmo r­ esultado, conferir irrestrita significação à existência, o que a aproxima da representatividade interpretativa da arte. Entretanto, a esse respeito, é necessário diferenciar simbolização e falsificação. A primeira se caracteriza como representação por meio de formas e modos não peremptórios e que não necessita alterar valorativamente aquilo que representa, mas ­apenas alterar-lhe a forma de percepção e expressão. A falsificação, por seu turno, significa a moralização formalista, que impede e delimita ­arbitrariamente a experiência do representado, chegando mesmo a negá-la ou buscando substituí-la por uma forma mais positiva de expressão, ainda que por meio de mediações simbólicas tornadas v­ erdadeiras por meio de alguma convicção moral (FW/GC § 334). A alegre ciência e a arte ­pensadas por Nietzsche constituem o antípoda desta forma de manifestação moral. Elas visam a levar à percepção de que na ciência as convicções não têm direito de cidadania, assim como as boas razões devem ser rebaixadas ao domínio das hipóteses (ibid.). As implicações mais significativas desses posicionamentos é o afastamento de toda e qualquer justificação moral da objetividade e o remeti­mento ao perspectivismo singularista. Ambas são compreendidas como impulsos à exteriorização em busca de uma aproximação afirmativa para com o mundo e para com a vida, que, porém, não podem ser restringidos por pressuposições morais. A arte e ciência para Nietzsche devem ser compreendidas como manifestações de singularidades que não temem expressar-se enquanto tal, que se exteriorizam sem nenhuma pretensão pia de universalidade ou verdade (FW/GC § 381), mas que sim o fazem apenas por um impulso instintivo próprio (Kofman, 1983, p. 43), o qual apenas podem entender os que tiveram ­experiência semelhante (FW/GC § 87 e § 93). A arte embeleza aquilo que representa, pois dá à imperfeição das coisas novas formas de significação além da existência comum. Ela é um convite à exteriorização, porque induz à autoexpressão, devido à afi­nidade da expe87

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riência estética do artista com a dos demais homens. Esse caráter Nietzsche deseja tornar comum tanto à arte quanto à ciência (NF/FP: KSA 9, 11 [23], primavera – outono de 1881). Pelo que devemos ser gratos. – Foram primeiro os artistas e nomeadamente os do teatro, que primeiro colocaram nos homens olhos e o­ uvidos para ver e ouvir com algum divertimento aquilo que cada um é, aquilo que particularmente vive, aquilo que cada um quer; primeiro eles nos ensinaram os valores do herói que se esconde no homem ordinário, eles que ensinaram a arte de se autoconsiderar como herói, a distância e significado e transfiguração de alguma forma – a arte de se “pôr em cena” ante a si mesmo. Apenas assim nós conseguimos ultrapassar algum detalhe mesquinho de nós mesmos!. Sem essa arte viveríamos sempre no primeiro plano e inteiramente no domínio dessa ótica que faz parecer enorme o mais próximo e o mais vulgar, como se deixasse a realidade aparecer em si mesma (FW/GC § 78).

A acentuação e o elogio da significação da experiência estética da arte, compreendida amoralmente, como desejo de expressão e aparência, reabre a contenda entre razão e sensibilidade, inaugurada pelo socratismo e, nesse momento, concede primazia à arte. Ela é então posta como neces­sidade vital para aqueles que têm inclinação por ela e que, por isso, não podem ser obrigados a se adequarem a um princípio universal falso que, dogmatizado, é o responsável pela supressão de inúmeras outras formas de pensar e, portanto, de possibilidades. Em A gaia ciência, portanto na obra que anuncia uma nova experiência filosófica, Nietzsche associa deci­sivamente uma interpretação fisiopsicológica da aspiração humana pelo conhecimento a uma perspectiva valorativa, o que o faz afastar-se de todas as formas de convencionalismos deterministas e rumar para um experimentalismo interpretativo, não metafísico, concebido como resultado da análise crítica dos processos de proveniência dos princípios tidos como fundamentais. Sua intenção é demonstrar que o desejo de fixidez, que está na base de toda metafísica e da moral e que as sustém, nada mais é que uma manifestação de ordenação e orientação, cuja proveniência é primeiramente orgânica, mas que devido à tradição filosófico-racionalista, foi interpretada moralmente como possuindo uma origem justificada. Proveniência do lógico. – De onde decorreu (entstanden) a lógica na cabeça humana? Sabiamente do ilógico, cujo reino, na origem, há de ter sido ingente. Mas uma multiplicidade incontável de seres, que inferiam de modo diferente do que nós inferimos agora, pereceram: isso poderia até mesmo ter sido mais verdadeiro! Quem, por e­ xemplo, não soubesse descobrir o “igual” com suficiente constância, com respeito à alimentação ou aos animais inimigos, quem, portanto, subsumia excessivamente demorado, era demasiado cuidadoso na subsunção, tinha menor possibilidade de sobrevivência do que aquele que em mesmo caso sobrevinha logo a igualdade. A inclinação ­preponderante, 88

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porém, a tratar o semelhante como igual, uma inclinação ilógica – pois não há em si nada igual –, criou primeiramente todos os fundamentos da lógica (FW/GC § 111).

Diferente do pensamento lógico, a arte relaciona criador e ­espectador de forma não redutiva, muito embora o desejo de persuadir não possa ser excluído da ­perspectiva do artista. A sua forma de imposição é, todavia, simbólica, sem a pretensão de exatidão, mas sim de persuasão estética. Nesse sentido, considerados imoralmente, a arte e o pensamento racional se aproximam, evidenciando que a valorização da universalização o­ rientada pela lógica é determinada por valores culturais e não pela realidade de seus pressupostos. Mas Nietzsche busca afirmar uma relação hierárquica outra no que diz respeito à mani­ festação artística. Nela é indicada a pos­sibilidade de existência de um princípio decisiva­ mente afirmativo, decorrente do caráter próprio da criação em detrimento da determina­ ção. Ele se apresenta na atuação simbólica, que produz uma diferenciação entre os homens e os faz pensar em si mesmos como animais superiores e in­feriores – isso devido aos primeiros: “pensarem que veem e ouvem indizivelmente mais e pensando veem e ouvem” (FW/GC § 301). Essa superioridade se funda na significação criativa, propositiva e não em axiomas ou dogmas morais ou essenciais. Tal aspecto determina um fator decisivo de justificação da arte, que remete positivamente à sua possibilidade de criação e afirmação que, segundo Nietzsche, enriquece e eleva a vida e suas possibilidades, ao mesmo tempo que possibilita a compreensão do aspecto valorativo de toda criação. Nós, que pensando e sentindo somos os que fazem realmente e sem cessar alguma coisa que ainda não existe – todo o mundo que sempre aumenta em avaliações, cores, pesos, perspectivas, escalas, de afirmações e de negações. (…) O que possui valor ­neste mundo atual, não o possui por si mesmo, segundo sua natureza – a natureza é sempre sem valor: – porém atribuiu-se-lhe certa feita um valor e fomos nós que os demos, nós os presenteadores! Nós criamos o mundo que interessa ao homem! Mas esta é precisa­ mente a ciência que nos falta, se a encontrarmos por um instante, a esquecemos no seguinte; desconhecemos nossa melhor força e os contemplativos nos avaliam por baixo – não somos nem tão orgulhosos, nem tão felizes quanto poderíamos ser (FW/ GC § 301).

O que há de se festejar na arte é precisamente a impossibilidade de se proferir ou manter uma determinação, um juízo ou princípio universal acerca de qualquer coisa. Nela até mesmo o formalismo é entendido como meio de expressão e não como verdade, o que a torna um meio de autoconhecimento do homem, pois é uma ­representação do mundo humano sem restrição de perspectivas. O elogio da arte em A gaia ciência, ao mesmo tempo que reabilita p­ osicionamentos anteriores de Nietzsche, tal como o da possível amoralidade e da força de ­embelezamento 89

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da manifestação artística, apresenta ainda aspectos novos e de grande importância. Dentre eles, é necessário notar que a reconsideração positiva da arte se dá conjuntamente com a proposta de uma nova ciência, que por si só implica em uma crítica da noção tradicional de cientificidade. Esta é alvo de críticas, porque Nie­tzsche interpreta nela, no seu desejo por uma explicação cabal e final do mundo, um aspecto negativo, que é o do desmerecimento de tudo ­aquilo que não pode ser enquadrado nas suas generalizações e postulados. No quinto livro de A gaia ciência é denunciada a periculosidade e restrição dessa crença em um mundo compreendido cada vez mais segun­do as medidas e avaliações estabelecidas pelo intelecto humano. O resultado mais evidente disso Nietzsche chama de “mundo da verdade” (Welt der Wahrheit), cuja principal característica reside na avaliação negativa do caráter múltiplo da existência em favor de uma regularidade ­requerida pela racionalidade humana (FW/GC § 373). Contra essa concepção ele alega, utilizando-se do exemplo prático da arte, que talvez seja possível que o que é considerado como aparente na existência possa vir a tornar-se o seu caráter específico, por conseguinte, que a aparência nada mais venha a ser que aparência, sem, entretanto, necessitar possuir uma e­ ssência (cf. Canções do príncipe Vogelfrei. Para Goethe). Isso significa compreender que a expectativa de uma verdade acerca do mundo cria uma tensão valorativa entre dois opostos que efetivamente não existem. A dicotomia verdade-falsidade é ilegítima sob o ponto de vista do conhecimento, pois a compreensão dos processos de construção do conhecimento humano pode demonstrar que ela não existe como algo efetivo. Para Nietzsche, todo desejo de descrição final da realidade revela-se como um resquício da aspiração metafísica pela verdade, o que é por ele ainda perceptível na ciência. Uma interpretação científica do mundo, como vós a entendeis, poderia por c­ onsequência ser ainda uma das interpretações do mundo mais estúpidas, isto é, ser a mais pobre de sentido de todas as interpretações de mundo. Isso dito ao pé de ouvido e à consciência dos senhores mecanicistas, que atualmente gostam de transitar entre os filósofos e que imaginam que a mecânica seria a doutrina das leis primeiras e últimas, sobre as quais, como sobre um fundamento, toda a existência necessita ser edificada. Entretanto, um mundo essencialmente mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sentido (FW/GC § 373).

Opor-se a toda forma de dogmatismo e de moralização do saber consiste na motivação de Nietzsche e para isso ele busca referenciais na arte. Isso se evidencia no aforismo acima citado, que é significativamente concluído com a hipótese de que o modo mecânico-causal de consideração, aplicada à música, resultaria na não ­compreensão 90

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desta. A oposição estabelecida aqui entre mecanicismo e música apresenta grande significado quando entendido que para Nietzsche a música pode ser ­comparada ao jogo de forças (FW/GC § 10) e assim se converte em um ­símbolo de indeterminação e de ilimitadas possibilidades de manifestação. A ciência com influências metafísicas é então mobilizada como o antípoda da expressão artística criadora e é, desse modo, caracterizada por um elevado grau de restrição. Essa referência à música indica o cerne daquilo que Nietzsche deseja criticar na ciência. Muito embora o aforismo se refira particularmente à física mecânica, as críticas direcionadas a ela podem ser estendidas a toda ciência tradicional, de pretensões finalistas, pois se trata primeiramente de uma crítica de seu modo de considerar voltado à tentativa de estabelecer determinações absolutas, não importando as restrições das mesmas. Por outro lado, a arte, desvinculada dessa pretensão (FW/GC § 85), pode ser tida como outra forma de se relacionar com o mundo e com a existência, devido a sua forma de relacionamento com ambos. Nossa última gratidão para com a arte. – Não tivéssemos mencionado boas as artes e inventado essa espécie de culto ao não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mentira (Verlogenheit), que a­ gora nos é dada por intermédio da ciência – a compreensão da ilusão e do erro como uma condição do existente que conhece e sente –, não pode­ria ser suportada. A probidade (Redlichkeit) teria como consequência o nojo e o suicídio. Mas agora a nossa probidade possui um poder opositor (Gegenmacht), que nos ajuda a mitigar tais consequências: a arte como boa vontade (guten Wille) para com a aparência. Nós não proibimos sempre nosso olho de arredondar, de poetar até o fim: e então não é mais a eterna incompletude que transpomos sobre o rio do devir – então pensamos portar uma deusa e somos orgulhosos e infantis nessa serventia. Como fenômeno estético a existência, ainda é sempre suportável para nós e pela arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, a partir de nós mesmos, podermos realizar um tal fenômeno. Temos de nos serenar temporariamente, por intermédio do olhar-nos de longe, de cima e de uma distância artística, rindo e chorando de nós; nós temos de descobrir o herói, assim como o tolo que reside em nossa paixão do conhecimento, temos de ocasionalmente alegrar-nos com nossa ­tolice, para que possamos manter alegre a nossa sabedoria! (FW/GC § 107).

Com A gaia ciência, Nietzsche rompe com qualquer pretensão de um saber definitivo. A sua nova concepção de saber une a compreensão científica da inexistência da verdade e do perspectivismo com o experimento criador da arte para então justificar a ambos por meio da criação e do experimento (NF/FP: KSA10, 5 [1] 214, novembro de 1882 – Feve­reiro 1883). É este movimento programático (Brusotti, 1998, p. 382) que o leva a escrever Assim falava Zaratustra como obra filosófica, todavia escrita poeticamente. Esse livro se insere no projeto de rever as tábuas valorativas sob as quais foi 91

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erigida a cultura moderna e assim poder aspirar rever as antigas hierarquias em favor da dinamicidade do pensamento. A perspectiva desta mudança não busca efetuar uma condenação pura e simples da ciência e do conhecimento – do mesmo modo que não afirma incondicionalmente toda manifestação artística – mas se empenha em fazer a crítica da crença na infalibilidade de ambos e da necessidade da moral (FW/GC 335), para então lhes propor uma outra forma de ver o mundo, a da arte liberta, não d ­ ogmática, criadora, em contraposição às aspirações fixas por definições e valorações irretorquíveis. No que concerne a esse ponto específico, é possível então iniciar a aproximação entre A gaia ciência e Assim falava Zaratustra. Sob o ponto de vista dos pressupostos que Nietzsche mobiliza naquele primeiro livro, percebe-se que nele se encontra o ­passo definitivo para o experimento da forma que constitui Assim falava Zaratustra. É a partir da afirmação do caráter múltiplo das perspectivas humanas, consideradas então já sob a ótica do sentimento de Poder (FW/GC § 13), que resulta a crítica das formas gregárias de avaliação (ibid., §§ 23; 116) e, o que desejamos acentuar aqui, dos pressupostos tradicionais de consideração da comunica­bilidade. A respeito desta questão podem ser indicados os breves aforismos 179, 189 e 226 de A gaia ciência. Eles evidenciam o novo estatuto conferi­do por Nietzsche à linguagem e ao estilo. Ambos não são mais r­ elaciona­dos à objetividade, à veracidade ou à neutralidade. Antes, eles são decisi­va­mente considerados como formas perspectivísticas de expressão, meios e formas observáveis das relações entre os homens e desses com o ­mundo. Neles podemos ler que Nietzsche compreende não apenas a impossibilidade da expressão total dos sentimentos pelo pensamento (GC § 179), mas também a simplificação do que é expresso por este (ibid., § 189). Es­ses aspectos, antes de constituírem pontos de crítica, são indicados e saudados como ampliação das possibilidades de comunicação, pois implicam na afirmação da necessidade do exercício de criação voltado a formas indetermináveis de comunicação. Este posicionamento também deve ser entendido como esforço, com vistas a uma libertação da l­inguagem com respeito à metafísica (Marietti, 1997, p. 265), o que deve, todavia, resultar em uma tentativa de lhe conferir não apenas maiores possibilida­des artísticas, mas também científicas, pois remete o lidar com ela necessariamente ao exercício do experimento à criação. Esse posicionamento, cujo pano de fundo é a própria percepção científica da impossibilidade da verdade metafísica, não significa, todavia, o direcionamento a um ce­ticismo científico, mas a indicação da necessidade de formas outras de justificação tanto da arte quanto da ciência. Assim sendo, ele não significa a refutação da pretensão de cientificidade, ou do seu rigor; muito pelo contrário, significa o anúncio e o desejo de uma forma ainda mais rigorosa de conhecimento, fundada na compreensão da atuação da vontade de poder entre as perspectivas, que resulta decisivamente em uma atitude 92

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perspectivo-interpretativa, da qual deve decorrer um elevado rigor das interpretações que visam à amplitude e à validade. Matemática. – Nós queremos introduzir em todas as ciências a ­sutileza e a severidade das matemáticas, mas isso apenas é possível sem a c­ rença de que nesse caminho chegaremos a conhecer as coisas, mas somente a determinar nossas relações humanas com as coisas. A matemática é simplesmente o meio do conhecimento humano geral e último (FW/GC § 246).

Apartado da moral e de seus sucedâneos, o rigor e a necessidade de probidade do conhecimento levam Nietzsche a afirmar o aspecto humano deste. É precisamente a compreensão desse caráter que o leva a afirmar que o ápice do conhecimento e de sua busca consiste precisamente em compreender a impossibilidade de seu alcance (Marques, 2000, p. 196). Neste sentido, a arte é novamente mobilizada para remediar um possível ceticismo pessimista com respeito ao conhecimento e à ciência. É ela que lhe fornece argumentos para propor uma estetização da aspiração ­humana pelo saber. Com ela, Nietzsche visa a mostrar que a motivação p ­ ropiciada pelo desfrute estético do conhecer, do descobrir e da ampliação de novas possibilidades para o conhecimento, pode suplantar o possível temor causado pela constatação da inexistência da verdade. A arte de que fala Nietzsche é aquela que aprendeu a superar a elevada consideração de suas r­ epresenta­ções (NF/FP: KSA 9, 5 [19], verão de 1880) e que assim não é mais tentada a ­considerá-las como revelações. Isso deve assimilar a ciência, ela deve compreender que tornar o não verdadeiro como verdadeiro, porém sem essencializá-lo, pode servir de grande impulso à vida (ibid., 5 [22]) e à ciência, pois assim renascem possibilidades infinitas de ­consideração. O mundo sem verdades absolutas, mas apenas condicionadas, é o mundo do perspectivismo, no qual a amplitude tornada possível para o surgimento de novas possibili­ da­des de pensamento leva ao confronto criativo e seletivo entre perspectivas. Tal ­aspecto é referido por Nietzsche no § 374 de A gaia ciência como um novo “infinito”, que retomando o pressuposto do intelecto como fonte de nossas representações – agora não mais tomadas como verdadeiras ou possivelmente essenciais – signi­fica a possibilidade de criação de infinitas formas representacionais. Mas penso que hoje pelo menos estamos distantes da risível imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele é permitido ter perspectivas. Mais que isso, o mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre em si infinitas interpretações. Mais uma vez acomete o grande calafrio – mas quem teria imediatamente desejo de divinizar no­ vamente este mundo monstruoso e desconhecido à maneira antiga? E então a adorar o desconhecido como “O desconhecido”? Ah, são tantas possibilidades não divinas 93

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(ungöttliche) de interpretação desse desconhecido, demasiada diabrura, estupidez, loucura de interpretação – mesmo a nossa própria, humana, demasiadamente humana, que nós conhecemos... (FW/GC § 374).

Perspectivismo significa o afastamento com relação a posicionamentos unilaterais (Marques, 2000, p. 183) que podem exemplarmente ser constatados nas dicotomias metafísicas e morais. Fazer a crítica d ­ esses posicionamentos consiste em afastar-se de toda convicção de proferir um discurso ultimativamente verdadeiro, em oposição a um falso. Esse aspecto é decisivo para a compreensão de A gaia ciência inserida no ­projeto de transvaloração de valores e no mundo pensado como vontade de p ­ oder, mas também a importância de sua posição como obra que antecede o experimento poético de Assim falava Zaratustra, compreendido como obra filosófica. A confirmação de que com Zaratustra se justifica como tal a partir da pressuposição do fim da dicotomia entre falso e verdadeiro, podemos ler em um trecho posterior, de Crepúsculo dos ídolos, ao qual já nos referimos anteriormente. A intenção do tópico intitulado “Como o ‘mundo verdadeiro’ tornou-se enfim uma fábula”, ao qual acompanha ainda o esclarecedor acréscimo: “A história de um erro”, é a de sinteticamente mostrar a história da antiga criação de um “mundo verdadeiro” pela meta­física platônica. A argumentação se pauta em indicar as diferentes formas com que tal criação percorre a história da cultura ocidental, no interior da qual ela se torna inalcançável, indemonstrável, intransmissível, desconhecida, inútil e supérflua, até ser finalmente refutada. A conclusão do percurso de tal ideia se dá com Zaratustra, entretanto, não com a simples refutação do mundo verdadeiro ou ainda com um remetimento ao seu contrário, um mundo aparente, que também seria criado pela metafísica. Com a personagem nietzscheana ambos os mundos são abolidos. Nós abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente talvez?… Não! com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo das aparências! (Meio dia: momento da sombra mais curta, fim do erro mais d ­ emorado, ponto culminante da humanidade: Zaratustra.) (GD/CI “Mundo verdadeiro”, p. 81).

A rejeição dos mundos verdadeiro e aparente (Abel, 2010, p. 39) não se dá, portanto, em favor de um princípio superior fundado na veracidade, mas afirma-se exatamente no espaço criado pela supressão deste pressuposto (Kaulbach, 1980, p. 167). Nietzsche opta pela despoten­cialização da oposição instaurada pela metafísica, a partir da ­demonstração genealógica do erro original que tal princípio constitui. É-lhe então possível abandonar esta lógica dicotômica de consideração e optar por uma forma de justificação baseada na força afirmativa da criação. A alegre ciência é o exercício destes direcionamentos, do mesmo modo que o arrojo estilístico de Assim falava Zaratustra. 94

filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

O experimento estilístico desse livro tem um significado decisivo para Nietzsche não apenas pelos seus ensinamentos,15 mas pela sua significação com respeito a toda a tradição metafísica que o autor almeja superar. Deste último aspecto trataremos nos tópicos seguintes. Neste momento desejamos apenas acentuar que essa mudança de rumo potencializa novamente a arte e as possibilidades de sua força de e­ mbelezamento do mundo então concebido como unidade dinâmica indeterminável, o que torna a criação artística uma forma privilegiada de expressão desse caráter, do mesmo modo que de sua afirmação e embelezamento.

15

Como parece tornar evidente o fato de que os dois ensinamentos fundamentais do livro, o pensamento do eterno retorno do mesmo e o ensinamento do além-do-homem, desaparecerem quase que completamente dos escritos posteriores. As referências mais significativas a ambos e mesmo com respeito a Zaratustra dizem respeito muito mais ao esclarecimento do percurso intelectual e espiritual de Nietzsche, que o levaram a feitura da obra, que a tentativa de salvaguardar e afirmar a pertinência teórica de ambos. 95

Capítulo III

A fala poética em Assim falava Zaratustra

Na segunda parte de Assim falava Zaratustra, no discurso intitulado Dos poetas, ao ser indagado acerca da afirmação de que “Os poetas mentem excessivamente”,1 Zaratustra exclui-se daqueles que fazem questionamentos acerca do porquê das coisas e então direciona o esclarecimento da pergunta a sua experiência pessoal (Erlebnis). Em s­ eguida, porém, ele mesmo faz referência a si como poeta, ao mesmo tempo em que afasta de suas palavras qualquer aspiração à verdade, então colocada como princípio de fé: “A fé não me faz bem-aventurado”, diz ele, “sobretudo a fé em mim” (Z/Z Dos poetas). Entretanto, segundo Zaratustra, todos os poetas têm a crença de que percebem mais das coisas existentes entre o céu e a terra, a partir do que se vangloriam em relação a todos os outros mortais (ibid.). Daí serem eles os produtores de um mundo apenas sonhado, o mundo elevado dos deuses e do além-do-homem. Ah, há tantas coisas entre o céu e a terra com que somente os poetas se deixam sonhar!

E, especialmente, acima do céu: pois todos os deuses são parábolas e apreensão de poetas! Em verdade, algo nos leva sempre para o alto – precisamente, para o reino das nuvens: nelas pousamos as nossas coloridas roupagens e, então chamamo-lhes deuses e além-dos-homens (Z/Z II Dos poetas).

Mesmo que nas palavras seguintes Zaratustra afirme estar cansado dos poetas (Z/Z II Dos poetas), isso se dá muito mais pela vaidade (Eitelkeit) e pela s­ uperficialidade dos mesmos, que por qualquer outro argumento referente ao poetar, pois nesse r­ epousam ainda esperanças: Transformados eu via os poetas que voltavam o olhar para si mesmos. Penitentes do espírito eu via chegar: O que cresceu deles. Assim falava Zaratustra (Z/Z II Dos poetas).

Segundo tais aspectos, pode-se compreender que, para Nietzsche, nesse m ­ omento, a fala poética já adquire uma outra significação e se justifica devido ao seu traço criador, capaz de fomentar potencialidades humanas. Entretanto, o autor tenta evidenciar que 1

“Mas os poetas mentem em demasia”. Afirmação semelhante e que se refere à poesia encontra-se em GC § 84 e, naquele momento, atribuída a Homero. 96

a fala poética em assim falava zaratustra

segundo esta nova ótica, ela jamais ultrapassa o nível de exteriorização individual daque­ le que faz uso dela. A expressão poética dos pensamentos de Zaratustra não r­ espeita o anseio cristão da aspiração poética universal, quer dos pré-românticos como Hölderlin, quer da filosofia da arte de Hegel (Heise, 1988, p. 14). A opção por ela em Assim ­falava Zaratustra justifica-se por ser um elogio à expressão individual daquele que se entende como apto e acessível a esta forma de linguagem e que, desse modo, não mais aspira à universalidade, mas motivar outras subjetividades a realizar o mesmo. Assim, é ­superado o conceito de verdade e a própria filosofia é compreendida como uma forma de ­expressão singular, mas que aspira aceitação por parte de outras perspectivas. Essa noção é central em Assim falava Zaratustra e expressa todo o horizonte transvalorativo de seu autor. Esses traços podem ser demonstrados exemplarmente em duas passagens p­ resentes na terceira parte de Assim falava Zaratustra, intituladas respectivamente de Da face e do enigma e O convalescente. Na primeira, Zaratustra encontra-se em um barco e ­abandona a ilha dos bem aventura­dos e a seus amigos. Nesse barco, motivado a falar, ele narra o seu ­encontro com o espírito de gravidade (Geist der Schwere), que, meio anão, meio toupeira, anuncia a queda de tudo o que fora lançado para o alto, nisso incluso o próprio Zaratustra. Provocado pela repetição desta máxima proferida pelo anão, que tenta ­afirmar a falta de sentido de toda busca por elevação, Zaratustra pronuncia o seu ensinamento fundamental, o pensamento do retornar cíclico de todas as coisas que, porém, não é desconhecido do seu adversário, que isso demonstra ao mencionar a mentira de toda retidão, assim como a tortuosidade de toda verdade (Alle gerade lügt... Alle Wahrheit ist krumm. Z/Z III Da face e do enigma § 2). Mas entre Zaratustra e o anão há uma diferença decisiva: Zaratustra não se limita a simplesmente mencionar a circularidade de tudo, como faz o seu opositor, ele a afirma. Isso torna o pensamento intolerável para o seu adversário e o faz desaparecer, pois ele pode suportar ideia da circularidade, mas não a sua aceitação, que significa a aquiescência também do declínio mencionado pelo espírito de gravidade (Salaquarda, 1979, p. 33). Um aspecto tão relevante nessa p ­ assagem quanto o anúncio e a afirmação do pensamento do eterno retornar de todas as coisas é a relutância de Zaratustra em pronunciá-lo. Ele menciona aos ouvintes o temor que tinha de seus próprios pensamentos: “Assim eu falava, cada vez mais baixo, pois tinha receio de meus próprios pensamentos e das intenções por detrás deles (Hintergedanken)” (ibid.). O mesmo temor é demonstrado por Zaratustra na seção O covalescente. Nesta, Zaratustra, após um tumultuado despertar, fala consigo mesmo: “levanta-te de meu imo, pensamento abissal! Eu sou o teu galo e o teu alvorecer, verme dorminhoco! De pé, de pé! A minha voz deve acordar-te!” O pensamento abissal de Zaratustra é o pensamento do eterno retorno do mesmo, que ele insta a falar do abismo mais profundo do seu eu (Z/Z III O convalescente § 1). 97

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Esse, com efeito, consiste em uma das mais significativas fontes para a compreensão do ensinamento em seu sentido individual. A esse respeito, a cena inicial, que descreve o levantar de Zaratustra, é esclarecedora, devido a vários aspectos: Zaratustra é aquele que com o seu canto desperta o seu próprio pensamento mais profundo, aquele que é, em última análise, ele mesmo (Heidegger, 1997, p. 102), pois já está separado de toda outra possibilidade de recurso à autoridade exterior a si mesmo. E assim lemos na passagem seguinte: Moves-te, espreguiças-te, agonizas? Levanta! Levanta! Não agonizar – falar-me é o que deves! Zaratustra, o sem Deus, te chama! Eu, Zaratustra, o anunciador da vida, o anunciador da dor, o anunciador do círculo – chamo-te, meu mais abissal pensamento! (Z/Z III O convalescente § 1)

O pensamento abissal de Zaratustra é desperto pelo seu canto e é, antes de tudo, seu pensamento, pois: “À toda alma pertence um outro mundo; para toda alma, qualquer outra alma é um por trás do mundo” (hinterwelt) (ibid.). Com os dizeres referentes e remetidos ao próprio eu de Zaratustra, Nietzsche indica o caráter particular de toda forma de referência humana com respeito ao mundo. A sua insegurança em descrever o seu pensamento – que é demonstrada pela comunicação desse não por ele mesmo, mas pelos seus animais – evidencia o abandono da percepção de que qualquer imagem ou menção do humano seja ou possa aspirar ser a expressão derradeira da totalidade e da existência. Este ­traço se comprova imediatamente na consideração da fala, que é uma loucura (Narrethei), pois com ela ele dança sobre todas as coisas e entrega-se à mentira dos tons (Lüge der Töne). Para os que pensam como Zaratustra o mundo é um eterno retornar de todas as coisas, um eterno florescer, transcorrer e morrer, tudo permanece na roda do Ser (Rad des Seins). Devido a essa constatação, Zaratustra encontra-se doente de sua própria redenção (Krank noch von der eigenen Erlösung/ Z/Z III O convalescente § 2), cujo consolo (Trost) por ele inventado é a necessidade de voltar a cantar (wieder singen müsse). Para isso, ele necessita de novos cantos, de novas liras, para assim carregar o seu próprio destino, que não foi ainda o de nenhum ser humano. O saber de Zaratustra é a compreensão da singularidade de seu próprio destino e de seus perigos. O primeiro deles inicia-se com o tornar-se ele mesmo e, portanto, com a necessidade de aceitar o eterno retornar e o peso de sua própria existência (Salaquarda, 1979, p. 33). Então bem sabem os teus animais, ó Zaratustra, quem és e quem necessi­tas te tornar: Tu és o mestre do eterno retorno – este, agora, é o teu destino (Z/Z III O ­convalescente § 2).

O que marca a singularidade de Zaratustra é que ele ensina, interme­diado pelos animais que o acompanham, o eterno retorno, com vistas a superar o grande fastio do 98

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homem (Der grosse Überdruss am Menschen), suscitado pelo retornar do pequeno homem (Z/Z III O convalescente § 2), e isso é feito a partir dos ensinamentos do eterno retorno e do além-do-homem, entendidos como convicções advindas do seu meio-dia, m ­ omento no qual os princípios de elevação do homem encontram-se com ele em maior simetria. Mas como indicado no prólogo, o grande astro necessita dos homens como fonte de significação. São esses que o v­ eneram. Por esse motivo, os ensinamentos de Zaratustra permanecem criações do seu interior, ao qual ele se encontra restrito, o que não lhes constitui argumento contrário, do mesmo modo que não o impede de querer transmiti-los. A validade dos mesmos se justifica no desejo e nos perigos de sua exteriorização, que se manifesta após a invenção do consolo do c­ anto, que, segundo os animais, possibilita a Zaratustra carregar o seu grande e particular destino. Se considerada, como veremos posteriormente, a relação intrínseca entre o ensinamento do além-do-homem e o ensinamento do eterno retorno (Abel, 1988, p. 190), enquanto criações do próprio Zaratustra, como produtos de sua inclinação artística indicada na passagem anterior, pode-se compreendê-los como consolo ante a sua enfermidade, causada pelo seu confronto com o seu próprio destino. Então a afirmação: “Para mim – como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior” (Z/Z O convalescente § 2), associada à ideia de que com os nomes e sons os homens apenas dançam sobre as coisas, ou ainda, de que a fala pode ser associada à mentira dos tons, impossibilita de imediato a hipótese de Zaratustra proferir seus ensinamentos mediante o pressuposto de uma verdade objetiva,2 passível de ser rigorosamente transmissível aos outros homens. É o cansaço suscitado pela perpetuação da pequenez humana que faz com que Zaratustra tenha de se confrontar com a responsabilidade do seu próprio destino e com sua enfermidade. Se ele a supera com as suas canções, é porque ele já se livrou do monstro moral que lhe penetra­ra na goela, sufocando-o.3 Esse é responsável por toda 2

No discurso intitulado Das moscas da feira, Zaratustra afirma: “Não invejes esses homens absolutos e apressadores, ó amante da verdade! Nunca, até aqui, andou a verdade de braço dado com qualquer ser absoluto” (Z/Z I). 3 Esta cena, não com Zaratustra como protagonista, mas com um pastor, encontra-se também na terceira parte da obra, na passagem intitulada Da visão e do enigma. Nela após Zaratustra ter sido perturbado pelo espírito de gravidade, confronta-se com ele proferindo, ainda timidamente, o seu pensamento abissal. A exposição do ensinamento é interrompida por uivos, que Zaratustra pensa serem eles de um cão; trata-se porém de ganidos de um homem, de um jovem pastor sufocado e convulso devido a uma negra cobra que se lhe agarrara à garganta. Após tentar puxar a cobra, sem conseguir, Zaratustra grita ao jovem que ele morda a cabeça do animal e a decepe. Ele, de quem a identidade é o enigma, o faz, após o que levanta-se imediatamente, não mais um pastor, porém como um homem que ri um riso que, segundo Zaratustra, nunca se extinguirá. Esta cena mostra claramente a superação da moral, do espírito de gravidade e as novas possibilidades que se abrem para a vida humana com a extirpação da moral que sufoca os homens; dai as palavras finais de Zaratustra: “Meu anseio por esse riso me devora: oh, como posso, ainda, suportar viver! E como, agora, suportaria morrer!” (Z/Z III, p. 202). 99

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ideia do absolu­to, cuja supressão gera a vacuidade do incondicional. É com as suas canções e poetar que Zaratustra suporta desde então o peso de seu destino e pode aspirar pelo futuro e pelo além-do-homem. Nas palavras de Zaratustra: Eu caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro, daquele futuro que eu vejo. E isso é toda a minha poesia e aspiração: que eu junte e componha em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo acaso. E como suportaria eu ser homem, se o não fosse também, poeta e decifrador de ­enigmas e redentor do acaso! (Z/Z II Da redenção).

A partir dessas indicações, podemos constatar que em Assim falava Zaratustra o experimentalismo com o estilo está ligado a uma desvinculação teórica do princípio tradicional de verdade (Abel, 2007, p. 27). Esse é um fator determinante às pretensões artísticas e filosóficas de seu autor. Tendo-se em vista toda a acerba crítica feita por Nietzsche aos pressupos­tos que inviabilizavam a união entre saber e arte, em Assim falava Zaratustra este traço possui importância decisiva não apenas no que se refere ao estilo, mas também à estrutura e à disposição das partes. A este respei­to, o ponto central a ser aqui em seguida analisado é a posição do enunciado ensinamento do além-do-homem e a sua significação na estrutura argumentativa do livro. O pensamento do eterno retorno do mesmo é o ensinamento funda­mental de Assim falava Zaratustra, obra à qual Nietzsche se refere posteriormente como escrita a partir de inspiração poética identificada como dionisíaca. Entretanto, tal concepção não surge nessa obra e nem está unicamente relacionada a pressupostos artísticos que o autor integra a sua filosofia. A sua elaboração, como mostram inúmeros estudos a respeito do tema, deve ser compreendida no contexto de um movimento de interesse e de valorização das ciências naturais na Alemanha da segunda metade do século XIX, que no ambiente filosófico é fortemente marcado pela tendência de retorno à filosofia kantinana, anunciada por Otto Liebmann em seu livro de 1865 Kant e os epígonos (Kant und die Epigonen). Nietzsche particularmente segue com entusiasmo o trabalho do proto-neokantiano Friedrich Albert Lange, cuja significação para a sua filosofia não deve ser minimizada.4 Mas ele acompanha também as posições defendidas por Ludwig Von Hartman, Eugen Dühring, Otto Caspari e William Thompson, os quais sofreram fortes influências de Afrikan Spir, mas também da pesquisa teórico-física (D’Iorio, 4

Acerca desse tema, que não pode ser desenvolvido aqui por questões textuais, devem ser feitas três referências significativas. O artigo de Jörg Salaquarda, publicado em 1978 no volume 7 dos N ­ ietzsche Studien, intitulado Nietsche und Lange, o livro de George L. Stack, Nietzsche and Lange (De G ­ ruyter, 1983) e, no Brasil, a premiada tese de doutorado do Prof. Rogério Lopes (UFMG), intitulada Naturalização do transcendental, defendida em 2008. 100

a fala poética em assim falava zaratustra

2006, p. 78). Isso o leva, com respeito à física, a afastar-se do pressuposto da estabi­lidade substancial, que ele interpreta como conceito oriundo da metafísica, assim como das ideias de linearidade, de determinação e de antropomorfização da natureza. A mobilização de pressupostos das ciências naturais em oposição à reflexão metafísica finda por fornecer-lhe pressupostos para criticar posições defendidas por filósofos de grande renome na época – Caspari, Hartmann e Düring – devido a insustentabilidade ­científica, em sua visão, de suas posições. A insistência dos filósofos neste modelo de ­pensamento lhe evidencia o horizonte de significação moral e perspectivística das ciências (ibid., p. 94). Todavia, a relação de Nietzsche no que se refere a elas permanece crítica. Mesmo com a mobilização de r­esultados da investigação científica ele permanece cético no que tange à ­possibilidade de dados definitivos e inalteráveis referentes às suas descobertas. Os ­dados científicos que mobilizam o seu interesse se referem prioritariamente à b ­ usca de argumentos demonstráveis com vistas a evidenciar a própria temporalidade dos resultados e das perspectivas científicas. Em consonância com o movimento de t­ ransição do problema da relação sujeito-objeto para o da relação objeto-conceito, própria do século XIX (Rehinberger, 2007, p. 11), Nietzsche aproxima a ciência da história com vistas a se afastar de qualquer essencialização da primeira (Marietti, 1997, p. 263). Sua abordagem direciona-se marcadamente ao problema da conceituação, da origem de nossas referências com respeito ao mundo e essa abordagem o leva a um sentido outro que o da filosofia idealista alemã. O seu objetivo não é mais descrever um suposto pro­ cesso de objetivação do pensamento, que para a filosofia racionalista é tomado como evidente. Ele busca demonstrar a construção e a dimensão histórica dos princípios nos quais essa pressuposição se baseia. Todavia, o pensar histórico em Nie­tzsche não se associa com qualquer forma de teleologia ou de processualismo, mas com ele o autor visa desconstruir valorativamente toda forma de dogmatismo por meio da evidenciação de sua proeminência histórica. Um importante instrumento de implementação desse empreendimento – que apenas de modo superficial poderia ser tratado aqui – é a ­análise psicológica baseada na noção de estímulo (Reiz), bastante presente no horizonte do neokantismo alemão da segunda metade do século XIX (Lambert, 2000, p. 23) e que possibilita evidenciar o processo interno, não imediatamente autoconsciente, de constru­ ção de nossas ­representações do mundo e mesmo da linguagem (MM I/ HDH I § 11). Esse direcionamento apresenta consequências decisivas no que se refere ao conteúdo e à forma de comunicação do pensamento do eterno retorno nos escritos de Nietzsche. Ele esclarece a forma comedida com que o mesmo é anunciado nos escritos publicados. Por seu intermédio deve-se compreender a própria tentativa de Nietzsche de buscar argumentos científicos de justificação ao pensamento do retornar de todas as coisas. Essa tentativa se baseia fundamentalmente em encontrar argumentos sólidos na 101

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própria ciência, os quais possibilitem a demonstração da incoerência do desejo de conhe­ cer com qualquer forma teleológica ou causal de interpretação do existente. Ante a percepção da fragilidade das justificações metafísicas do saber, Nietzsche interpreta o desejo de conhe­cer como motivado por princípios não inteiramente relacionados à verdade. Segundo ele, a aspiração pelo saber pode ser esclarecida em outros níveis, tais como o fisiológico e o psíquico, ela pode ser entendida enquan­to necessidade orgânica – do mesmo modo que a lógica – ou ainda segundo o pressuposto da vontade de poder, que também pode ser constatado no orgânico (Fleischer, 1993, p. 120). Essas vias de interpretação possibilitam a Nietzsche retomar a perspectiva da morte da arte enunciada em O nascimento da tragédia, dessa vez com vistas à refutação dos princípios de sua decadência. Seu intento é demonstrar que conhecimento e arte apenas foram dissociados pela invenção da verdade metafísica, que em última análise caracteriza-se por uma perspectiva artística inestética. Ciência e arte podem ser associadas em dois pontos determinantes, a saber: (a) A partir da produção simbólica, seja por meio de imagens, sons ou conceitos, que não necessitam ser remetidos, como pensaram Sócrates e Platão, a um axioma. (b) Em segundo lugar, por meio da percepção, por parte da própria ciência, da inexistência e mesmo da impossibilidade da verdade, o que remete Nie­tzsche a prescindir desta para a justificação do conhecimento (Kaulbach, 1990, p. 229). Mediante tais pressupostos ele interpreta como evidente a autodissolução da verdade e isso implica na impossibilidade de essencia­lização de qualquer ­pensamento. Os efeitos de tais posicionamentos possuem influência decisiva na forma e no estilo de comunicação do pensamento do eterno retorno. Nietzsche faz uso de três formas estilísticas para comunicá-lo: O ensaio, o aforismo e a narrativa (Nehamas, 1991, p. 35). A mudança deve indicar, em oposição à tradição metafísica, o afastamento da ideia de verdade, assim como o perspectivismo dela resultante (ibid., p. 35). A esse respei­to, podem ser aqui mencionadas duas referências importantes a ele nas obras publicadas. Primeiramente, a menção de forma ensaística à circularidade do existente na segunda das considerações extemporâneas. Mesmo de modo crítico o pressuposto do retornar dos acontecimentos é mencionado utilizando o conjuntivo II (HL/HL § 2) e é contra­posto à exaltação olímpica da vida e não à veracidade icônica (ikonische[r] Wahrhaftigkeit) da história monumental. Uma segunda referência importante e que se opõe a essa, evidenciando uma alteração de Nietzsche na forma de consideração do pensamento se dá por meio da metáfora da destruição e do renascimento no já anteriormente mencionado aforismo 568 de Aurora. Esse aforismo aproxima, por meio da figura da Fênix, as duas referências dos ensinamentos da narrativa referente a Zaratustra, constituindo com isso uma unidade temática de diferentes estilos que pode, como acentua Nehamas, indicar a independência de ideia e de estilo (Nehamas, 1991, p. 57). 102

a fala poética em assim falava zaratustra

Esta aproximação, porém, não ocorre por paridade de ­pressupostos, mas por similaridades artísticas, o que significa semelhanças estéticas. A história monumental encontra a sua justificação, a sua causae e o seu e­ ffectus, na produção do “exemplar e no digno de ser imitado” (­vorbildlich und nachahmungswürdig) (HL/HL § 2), como forma sugestiva de afirmação vital, precisamente naquilo cujas possibilidades Nietzsche antevê prioritariamente na arte. A história monumental, apologética e relacionada ao épico e ao renascimento da arte, anunciada mediante a metáfora da fênix grega, aproxima os ensinamentos de ­Zaratustra ao dos gregos pré-socráticos, todavia não decisivamente dos filósofos, mas dos artístas (Cancik, 2000, p. 109-112), daqueles que não conheceram e não necessitaram da verdade enquanto fundamento. Esta proximidade remete a um aspecto não menos ­decisivo: tanto a história monumental, quanto a poesia e a tragédia gregas se baseiam na transmissão de princípios cuja assimilação é individual (Collins, 1997, p. 293). Elas se caracterizam não por transmitir modelos ou princípios morais absolutos ou isentos de contradições – como Platão acentua em sua crítica à poesia homérica em A república. O seu fundamento é a geração de uma experiência de criação de represen­tações de mundo que Nietzsche identifica como estético-fisiológica e que é inerente à arte. O alvo da arte grega e da história monumental, do mesmo modo que dos ensinamentos de Zaratustra, não é a humanidade quantitativa, mas o homem justificado pela individualidade afirmativo-criadora. O pensamento do eterno retorno adquire com isso uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais, estéticas, cosmológicas, mas também evidencia uma experiência física redutível ao indivíduo. Se lhe cogitarmos um conteúdo ético atinente ao seu sentido cosmológico,5 precisamos também compreender, como anteriormente mencionado, que na filosofia de Nietzsche, pensada a partir do princípio teórico da vontade de poder, universalismos são interpretados como fundamentalmente perspectivos (Fleischer, M., 1993, p. 35), ou seja, como manifestações pulsionais direcionadas à sintetização de verdades, mas não com a pressuposição da possibilidade de que essas possam se constituir em princípios universais incondicionados (Abel, 1998, p. 189). O caráter fisiológico do pensar em Nietzsche pode ser mobilizado para aproximar os diferentes sentidos que o eterno retorno a­ glutina, pois é por meio dele que Nietzsche problematiza e nega a possibilidade de fixação da verdade, ao demonstrá-la como necessidade orgânica (FW/GC § 111). A inclinação humana à ciência apenas pode ser interpretada como uma necessidade natural, se a verdade for compreendida como metáfora, como necessidade fisiológica (Moore, 2002, p. 74), e que por esse motivo deve ser apartada de toda conotação metafísica. O mesmo 5

Muito embora não podendo restringi-los a esses aspectos. Conf. Marton, 2000, p. 93. 103

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vale para as pretensões morais e cosmológicas, sem que isso porém signifique recair em um pessimismo cético, pois a ausência da verdade não é mais um problema a ser superado e, por conseguinte, a afirmação da inexistência da verdade metafísica não implica na contradição da inverdade de sua afirmação. É neste sentido que parece poder ser compreendido o caráter e a pretensão de demonstração científica do eterno retornar de todas as coisas. Em Nietzsche, o perspectivismo pare­ce seguir os mesmos caminhos da física de seu tempo, que, porém, tende não à verdade ou à fixidez, mas ao experimentalismo, sendo este decisivamente não dogmático ou metafísico. Antes, a sua forma de justificação baseia-se na ideia de uma grande possibilidade de perspectivas sustentáveis, ao que Nietzsche acrescenta o pressuposto de um incessante conflito entre elas. A for­ ma de exposição de pressupostos do pensamento passa então a não ser decisiva para a aceitação ou não daquilo que se deseja comunicar, a partir do ponto de vista de sua liberdade criativa ­frente a delimitações morais. Isso leva o postulado da liberdade ­criativa do pensamento não à verdade científica em sentido clássico, mas ao experimento a­ rtístico como forma de convencimento (Marton, 2000, p. 109), porém com irrealizáveis preten­ sões hegemônicas. O traço não universalizante do pensamento do eterno retornar de todas as coisas se a­ presenta significativamente presente em Ecce homo e nos prefácios de 1886, cuja finalidade era fornecer esclarecimentos sobre o significado filosófico, mas também existencial da obra do autor, assim como fazer entender os sen­ti­dos dos ensina­ mentos de Zaratustra. A partir destas possibilidades interpretativas – relacionadas ­tanto à oposição à metafísica e a sua teleologia, quanto ao experimento estilístico entendido como símbolo de liberdade ante as formas históricas de cerceamento do pensamento e de sua expressão que ele identifica na tradição filosófica ocidental – d ­ esejamos aqui indicar dois aspectos associados e imprescindíveis aos direcionamentos temáticos propostos: a) A significação do estilo e da forma de anúncio do pensamento do eterno retorno em obras publicadas e, b) o caráter individual da justificação estilística em Nietzsche, permitida pela negação da possibilidade de uma verdade peremptória. Por meio deles tenciona-se evidenciar a importância do experimento filosófico-estético em Assim falava Zaratustra (Loeb, 2013, p. 926), compreendido enquanto produto da adequação de pressupostos artísticos à filosofia (Kaulbach. 1980, p. 270). Partindo das indicações de Nietzsche em Ecce homo encontramos importantes indicativos acerca da história de seu Zaratustra que se mostram com particular riqueza de conteúdo, no que diz respeito à compreensão estilística de seus direcionamentos. Quando o autor indica que fora na primavera de 1881 que lhe ocorreu a ideia do e­ terno retorno do mesmo, a tese fundamental de Zaratustra, ele se refere a um r­ enascimento da arte de ouvir e que, por esse motivo, dever-se-ia considerar Assim falava Zaratustra como uma obra musical (EH/EH Zaratustra § 1). 104

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A metáfora, indicada como a expressão desse momento, é a de uma Fênix musical. Entretanto, segundo Nietzsche, o parto (Niederkunft), que trouxera a obra ao mundo se daria apenas dezoito meses depois, em 1883, sendo que, nesse período intervalar, nasce A gaia ciência, “que tem ­centenas de sinais da proximidade de algo sem ­semelhante, afinal ela dá inclusive o início de Zaratustra, na penúltima parte do quarto livro, ela dá o pensa­mento abissal” (ibid., § 1). Conforme a análise dessa referência, c­ om­preende-se que tanto no que concerne à concepção, como à forma de comunicação do ­pensamento do eterno retorno, Nietzsche encontra-se envolvido com uma ideia de atividade filosófica cujo modelo de criação e de expressão é o da arte e, em especial, o da música e da poesia, aspectos que devem ser analisados na consideração do significado da obra de seus diferentes estilos e na forma de comunicação dos seus ensinamentos. Portanto, como aspecto importante à compreensão dessa relação, deve ser i­ ndicado que desde O nascimento da tragédia o impulso artístico remete Nietzsche a um ­afastamento das formas clássicas de exposição do pensamento filosófico; em especial, da forma do sistema e com aspiração à determinação das regras de exposição,6 o que é ­determinante na forma de comunicação do pensamento do eterno retorno e que claramente ainda se evidencia em Assim falava Zaratustra (Groddeck, 1997, p. 187). A esse respeito, deve ser citada aqui novamente a influência de Goethe e de Schiller nesta tomada de posição. Enquanto leitor atento da Correspon­dência entre Schiller e Goethe e do prefácio de Noiva de Messina no ­período da elaboração de sua obra inaugural, Nietzsche assimila de a­ mbos a problemática de uma nova estética, que busca fundir a percepção concreta da natureza com símbolos estéticos. Dessa leitura, decorre a decisiva problematização da r­ elação entre palavra (épico) e música (lírica), que não apenas lentamente o afasta de Wagner (Venturelli, 1989, p. 192), mas que determina aspectos decisivos de sua “metafísica do artista”, como a afirmação segundo a qual apenas como fenômeno estético a vida pode ser justificada (ibid., p. 199). Partindo dessa interpretação, observemos que Nietzsche relaciona o renascimento da arte de ouvir com o seu retorno a um Pathos afirmativo por excelência, por ele entendido como Phatos trágico (EH/EH Zaratustra § 1), que n ­ aquele momento, escreve, faz-se presente no Hino à Vida, composição para coro e orquestra surgida dois anos antes na casa de E. W. Fritsch, com letra de Lou Salomé, cujo s­ entido, segundo o filósofo, pode ser compreendido nos últimos versos: “A dor não aparece ali 6

Mesmo que não concordemos aqui com a perspectiva de uma sistematicidade da filosofia de Nietzsche defendida por Löwith (1986, p. 17), o autor não deixa de indicar com pertinência o aspecto importante de que o que o filósofo combatia nos sistemas filosóficos não era a unidade metodológica que motiva a vontade fundamental de conhecer, mas sim que o que é renegado no pensar sistemático é a sua clausura dogmática em um mundo simulado. (dogmatisch fixiert und “­verklausulierte” Welt). 105

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como objeção contra a vida: ‘se já não tens alegria para me dar, pois bem! tens ainda a tua dor’”.7 O renascimento do trágico, assim considerado, parece decorrer do afastamento do otimismo teórico da filosofia metafísica e da própria ciência, o que remete Nietzsche à compreensão da indeterminação das coisas e nele redunda na aceitação do sofrimento, e na sua anexação à vida, aspecto que exprimem a sua experiência naquele momento (EH/EH Zara­tustra § 5). A continuidade do relato inclui a descrição de alguns momentos da vida do autor e de aspectos relativos ao surgimento de suas obras. É a partir disso que o filósofo afirma ter surgido o primeiro Zaratustra, o personagem como tipo (Typus), cujo entendimento tem como pressuposto fundamental, a condição fisiológica da “grande saúde” (­grosse Gesundheit). A compreensão dessa noção como traço pessoal, remete a um dos últimos trechos do quinto livro de Gaia ciência (ibid., § 2); com ­efeito, diz o referido texto integralmente citado pelo autor: Nós – os novos, inominados, difíceis de compreender, os nascidos prematuros para um futuro ainda não demonstrado – necessitamos para um novo fim também de um novo meio, precisamos de nova saúde, mais forte, mais arguta, mais tenaz, mais ousada e mais alegre do que foram todas as saúdes até então. Aquela cuja alma tem sede de vivenciar (erlebt) todo o âmbito dos valores e desejos (Wünschenbarkeiten) até então; de visitar todas as costas deste “mediterrâneo” (Mittelmeers) ideal; aquela que quer c­onhecer pelas aventuras de sua própria experiência (Erfahrung) – como diz a coragem de um conquistador e de um explorador do ideal – um artista, um santo, do mesmo modo de um legislador, de um sábio (Gelehrten), de um homem pio, de um adivinho, de um apóstata (Göttlich-Abseitigen) no velho estilo. Para isso, ele tem antes de tudo ­necessidade de uma coisa: da grande saúde, aquela que não apenas se tem, mas que c­ onstantemente se adquire e se necessita conquistar, porque se a negligencia (preisgiebet) incessante­ mente – e é ­necessário negligenciar (preisgeben)!... E agora, após termos estado tanto tempo a caminho, nós, argonautas do ideal (Argonauten des Ideals), mais corajosos do que é prudente, náufragos mais que habituais e lesos, mas, como fora dito, mais saudáveis do que se nos desejaria permitir, perigosamente saudáveis, sempre novamente saudáveis – quer nos parecer, como se nós, como pagamento, tivéssemos à nossa f­ rente 7

“Der Schmerz gilt nicht als Einwand gegen das Leben: ‘Hast du kein Glück mehr übrig mir zu geben, Wohlan! Noch hast du deine Pein...” A respeito da repercussão no próprio autor desses pensamentos, segundo Kaulbach, Lou Salomé oferece dados decisivos; em um de seus relatos, ela se refere ao comportamento de Nietzsche no período em que ele lidava detidamente com o pensamento do eterno retorno. Ela se refere aos seguintes aspectos: “Verdadeiramente ele se envolvia com aqueles pensamentos como uma inabalável fatalidade que o queria mudar e estilhaçar; ele se distinguia pelo ânimo de colocar ao alcance para si e para os homens uma irrefutável verdade. Inesquecíveis são para mim as horas nas quais ele me confiava algo, primeiro como um mistério, em cuja confirmação e autenticação ele ­confiava: apenas em voz baixa e falando com todos os sinais de um profundo espanto. E ele indicava efetivamente que a consciência do eterno retorno da vida lhe deveria ser algo terrível” (Salomé, Apud. Kaulbach, 1985, p. 40). 106

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uma terra desconhecida, cujas fronteiras ninguém vislumbrou, um além de todas as terras, rincões do ideal, um mundo tão rico de coisas belas, estranhas, questionáveis, terríveis e divinas, que nossa curiosidade, do mesmo modo que nossa sede de posse, se extasiariam – como nós poderíamos nos deixar satisfa­zer nesses momentos – e com um tal apetite na consciência e no saber – e ainda com o homem atual? Ruim o suficiente, mas inevitável, que nós apenas possamos olhar – ou até mesmo nem os p ­ ossamos olhar – com uma nauseante seriedade impaciente para seus mais altos alvos e e­ speranças. Outro ideal corre diante de nós: um ideal maravilhoso, experimental, rico em perigos, com o qual nós não gostaríamos de persuadir ninguém, porque nós não declaramos facilmente a ninguém o direito a ele: o ideal de um espírito ingênuo, isto é, que ­indesejosamente, com sentimentos pululantes e potencialidade, joga com tudo o que até aqui foi chamado de sagrado, bom, intocável, divino, de onde tira o povo de modo barato suas medidas de valor, tais como perigo, decadência, subjugo ou minimamente como repouso, cegueira, esquecimento tempo­rário. O ideal de um humano supra-humano (übermenschlich) bem estar e benevolência, que parecerá com ­suficiente frequência inumano, como por exemplo, se colocar ao lado de toda atual seriedade ­terrena, de toda festividade dos modos, palavra, som, olhar, moral e tarefa, como sua paródia mais corpórea e involuntária – e com a qual, apesar de tudo isso, somente então c­ omeça a grande seriedade, o questionamento primeiramente colocado, o destino da alma altera-se, o ponteiro retorna, a tragédia começa… (FW/GC § 382).

De acordo com as indicações contidas nesse aforismo, a relação ­entre os homens novos, difíceis de compreender, os precursores de um futuro ainda não demonstrado, indica claramente aqueles a quem Nietzsche espera que compreendam as ideias do tipo Zaratustra; aqueles que devem mudar o rumo do filosofar e de seu tempo, o que demonstra a seletividade do ensinamento.8 A saúde mais vigorosa caracteriza o aspecto fisiológico necessário à aceitação do saber trágico, mas que também exige intrepidez na escolha do reconhecimento e aceitação incondicional de todos os valores e aspirações existentes até então. Disso decorre a sua sede de aventuras por meio da própria experiência e explorações, capacidade que caracteriza um explorador do ideal, do “mediterrâ­ neo”, ideal a ser descoberto e conquistado. Nesse delineamento do que Nietzsche entende por grandeza de saúde, encontram-se numerosos aspectos que se relacionam claramente à própria existência do autor e esta com as suas formulações filosóficas, aspecto decisivo para que se compreenda a significação da opção estilística em sua filosofia. Uma forma de considerar esse ­aspecto consiste em relacioná-lo com a concepção de mundo segundo a ótica da vontade de 8

O que pode ser constatado nos versos de Zaratustra: “traço em volta de mim, círculos e fronteiras sagradas; vai diminuindo sempre o número dos que sobem comigo aos altos cumes, onde seduz montanha cada vez mais alta, de cumeadas mais e mais inacessíveis” (EH/EH Zaratustra § 6). 107

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poder, que se faz presente nos apontamentos do período que antecede a primeira publi­ cação de A gaia ciência, mas é definitivamente mencionada no décimo terceiro aforismo deste mesmo livro e constitui assim um importante pressuposto à compreensão das pretensões de Assim falava Zaratustra.9 A pesquisa desenvolvida por Wolfgang Müller-Lauter acerca da doutrina da vontade de poder chega à constatação de que ao pensar o mundo segundo essa concepção, Nietzsche o concebia como uma dissensão de vontades conflitantes, tendo por única finalidade o aumento do âmbito de atuação de sua força. Desse modo, para Müller-Lauter, a vontade não teria outra finalidade a não ser a ampliação do alcance e da imposição de seu poder, tornando a existência sem nenhuma outra finalidade que não essa, o que revela o traço de mobilidade e indeterminação do mundo: O mundo de que fala Nietzsche revela-se como jogo e rivalidade de forças ou de von­ tades de poder. Se ponderarmos, de início, que essas aglomerações de quanta de poder ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades continuamente mutáveis, não porém da unidade (Müller-Lauter, 1997, p. 75).

Relacionando esta interpretação ao conteúdo do aforismo citado, a “grande saúde” pode ser entendida como a capacidade de suportar as possibilidades da vida entendida como multiplicidade e o mundo como vontade de poder, mas que, por isso, jamais pode ser compreendida como aquisição definitiva. Ela está associada à metáfora do lançar-se ao mar e, tal como esta, refere-se ao afastamento da segurança da terra, à ­constante reconquista, a não permanência de estados, de modo que a opção por ela implica ­também a aceitação de sua perda constante e na necessidade de sua reaquisição. É justamente isso que caracteriza os argonautas do ideal, aqueles que são “mais corajosos do que exige a prudência” e que têm diante de si um mundo sem fronteiras, rico de coisas be­ las, estranhas e dúbias, terríveis e divinas. O tema do lançar-se ao mar é introduzido decisivamente nos textos do período intermediário, desde Aurora (M/M § 575). Com ele, Nietzsche apresenta metaforicamente o afastamento da estabilidade da terra em prol de navegar sem destinos definidos. A opção pelo mar decorre da compreensão de que a terra, entendida enquanto fonte de fixidez e estabilidade, não mais existe (FW/ GC § 124). Lançar-se ao mar significa uma viagem no infinito desconhecido, uma alegoria da superação do niilismo enquanto consequência da morte de Deus (Hufnagel, 2008, p. 153). À ideia do navegar rumo ao desconhecido associam-se ainda duas perspectivas: a da beleza e da sedução do desconhecimento do mundo (FW/GC § 382) a 9

Gerdhardt, Volker. Da vontade de poder. Para a gênese e interpretação da fi ­ losofia do poder em Nietzsche, In: Frederico Nietzsche. Cem anos após o projeto “vontade de poder – transmutação de todos os valores”, Org. de Antônio Marques. Lisboa: Vega, 2012, p. 13. 108

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partir do fim do p ­ rincípio de verdade, e a do amor fati (ibid., § 276), enquanto amor pela vida tragica­mente pensada, em todas as suas consequências. Esse novo horizonte pensado segundo o princípio da vontade de poder implica a aceitação da verdade da existência de mundos perspectivos e antagônicos (Müller-­Lauter, p. 11), aos quais estão limitados ­todos os quanta de poder; concepção que torna insustentável a aspiração por um princípio doutrinal universal, ou mesmo a possibilidade de comunicação integral de algo. A totalidade do mundo orgânico é o enredamento de seres com poetizados pequenos mundos em torno de si: no qual eles exteriorizam suas forças, seus desejos, seus costumes nas suas experiências, como mundo exterior (Außerwelt). A capacidade de criar (figurar, inventar, poetizar) é a sua capacidade elementar (Grundfährigkeit): de si mesmos têm naturalmente apenas tal representação falsa poetizada simplificada (NF/FP: KSA 11, 34 [247] Abril-junho de 1885).

A essa condição Müller-Lauter chama de mundos perspectivos e indica ainda que, na filosofia de Nietzsche, não resultam numa ­somatória de perspectivas, pois elas são completamente incongruentes (ibid., p. 101). Segundo tais aspectos, compreender o mundo como vontade de poder remete o indivíduo a compreender a necessidade de fazer a escolha de exteriorizar-se, de modo a buscar ampliar o círculo de atuação de seu poder, ou então, submeter-se às outras vontades eternamente atuantes.10 Müller-Lauter nos indica ainda que essa e­ xteriorização se dá por meio de interpretações, e desse modo não há nenhuma interpretação correta. O mundo deve ser desde então compreendido como soma de forças, o que já constitui uma interpretação perspectivista dele, no qual a noção de verdade seria a intensificação do poder pressupondo a infinita interpretabilidade (ibid., p. 126). Desse modo, explicita-se o traço de que, para a filosofia da vontade de poder, não pode haver um caráter meramente contemplativo, porque ela própria é expressão do querer poder em um mundo liberto de toda tentativa de determinação última e fundamental, ou segundo o próprio Nietzsche: Compreendei finalmente o que em verdade sois! Deus está morto, combatei também então a sua sombra! As tábuas de valores que até aqui elevastes sobre vós não tem 10

A indicação da relação entre as noções de individualidade e vontade de poder pode ser lida no fragmento do outono de 1887: “O individualismo é uma modesta e ainda inconsciente espécie de ‘vontade de poder’; aqui mostra-se o suficiente do indivíduo: para se livrar (freizukommen) da predominância da sociedade (seja essa do Estado ou da igreja…), ele se coloca não como pessoa em oposição, porém claramente como indivíduo (Einzelner); ele representa toda particularidade (­Einzelnen) contra a coletividade (Gesammtheit). Isso significa que ele se coloca instintivamente como igual a de todos os particulares. O que ele combate, combate não como pessoa (Person), porém como indivíduo (Einzelner) contra a coletividade” (NF/FP: KSA 12, 10 [82] (202), outono de 1887). 109

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nenhuma validade! Não nos deixeis determi­nar por esses valores, determinais vós mesmos os valores! Transvalo­rai os valores antigos; a partir de vossa autocompreensão como querer-poder, criai novos valores (ibid., p. 135).

Assim, interpretar consiste em criar, em poder transformador, que na consideração de Müller-Lauter, remete a dois aspectos diretamente relacionados tanto com o além-do-homem como com o ensinamento do eterno retorno:11 primeiramente, que a obtenção de novas perspectivas caracteriza a elevação do homem e ainda, que a ­filosofia entendida como interpretação das interpretações não se compreende em Nietzsche co­mo absoluta; pelo contrário, por seu intermédio deseja-se a compreender tudo como interpretação (Müller-Lauter, 1978, p. 149). Mas, a partir desses aspectos, retornemos ao aforismo 382 de A gaia ciência e à noção de “grande saúde”, a fim de melhor indicar os traços que o remetem ao pensamento do eterno retorno do mesmo e ao seu fundo individual. Segundo o aforismo, a “grande saúde” faz com que aqueles que puderam optar por ela se separem dos homens atuais, pois um outro ideal lhes corre à frente, desconhecido, mas que é o ideal de um “espírito que brinca ingenuamente”, sem intenções e com excesso de forças; o que ultrapassa tudo aquilo que serve de razão e medida para os demais e que é considerado a partir de então como perigo de decomposição, rebaixamento, esquecimento de si. Esse ideal parece sobre humano, inumano, quando comparado a tudo o que foi sério, ­terrestre, solene, moral. A verdadeira seriedade inicia-se apenas nesse momento, com o v­ erdadeiro problema, o do destino da alma, do retorno do indicador para a compreen­são trágica do mundo. Essa compreensão, por sua vez, nasce do questionamento dos ­valores morais e da grande aventura que disso decorre, da necessidade de criar novos valores.12 Isso ­implica a refutação da moral como medida a­ bsoluta, significa a reabertura da questão do s­ entido 11

Pois a importância da escolha individual já fora posta no próprio questionamento feito ao indivíduo no momento da revelação do eterno retornar de todas as coisas, o que implica a noção de individua­ lidades diferenciadas e, portanto, conflitantes. A relação entre vontade de poder e o eterno retorno é indicada também por Eugen Fink (1972, p. 180), que indica a primeira concepção como a fonte do devir e, portanto, com o eterno retorno do mesmo. 12 Ao analisar a peculiaridade da linguagem que profere o eterno retorno do mesmo, Kaulbach i­ ndica que esses valores são pensados por Nietzsche como distanciados e mesmo em oposição aos da tradição religiosa e filosófica, mas que nem por isso são valores reativos – antes, são oriundos de um desejo consciente de criar sentidos mundanos, os quais, em sua positividade, são passíveis de serem eternamente desejados e assim afirma a significação e a validade do eterno retorno. ­Acentuando o traço racional da crítica de Nietzsche à racionalidade, Kaulbach chama esse aspecto de autarquia da razão perspectiva (Autarkie der perspektivischen Vernunft), que em oposição e como constatação das consequências do fracasso dos ­pressupostos tradicionais, do perspectivismo moral e da crença em um sentido pré-­determinado para o mundo, implica a necessidade de reflexão sobre o sentido dado pela razão perspectiva e a possibilidade de poetizar e filosofar mediante a fantasia do “Pathos trágico” (tragisches Pathos) Kaubach (1985, p. 48). 110

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da existência e um remetimento ao novo desafio apresentado por esta nova c­ ompreensão. O abandono dos antigos valores morais e dos pressupostos interpretativos neles ­fundados recoloca a existência como universo de possibilidades ignoradas e exige daquele que deseja lançar-se nela a “grande saúde”, ou a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos que o viver nessas condições pressupõe e ainda o anseio por elas e pela necessidade de nelas criar. Ela implica um viver sem restrições, fundamentalmente isento de qualquer depreciação do caráter móvel, indeterminado e conflitante do mundo.13 Pode-se dizer, portanto, que a “grande saúde” é necessária em um mundo com­ preen­dido como vontade de poder e, desse modo, segundo o pensamento do eterno retorno, no qual o indivíduo, momentaneamente diante dessas duas constatações e do perigo da vontade de nada, cria para si um novo ideal, que é, em verdade, uma oposição a todo idealismo, o que o torna inquiridor e criador. O criar (schaffen), distanciado dos pressupostos m ­ orais da tradição, desdobra-se em possibilidades incontáveis e é aproximado por comparação da criação artística, o que acentua o seu caráter não objetivo. A indicação da ­importância desse aspecto para a compreensão do pensamento do eterno retorno e da forma de seu anúncio é indicada por Nietzsche em Ecce homo e com ­relação a Assim falava Zaratustra. Nesse momento, o autor afirma que se pode justificar a sua nova concepção de mundo a partir da noção de “Inspiração” (Inspiration), cuja significação é relacionada com a antiga noção de inspiração dos poetas de outrora segundo a qual: “Por pequeno que seja o vestígio da superstição, dentro de si o homem não s­ aberia repelir a sensação de que seria a representação, mero porta-voz, mero médium de poderes superiores” (EH/EH Z/Z § 3). Com a inspiração não supersticiosa relaciona-se também a noção de revelação (Offenbarung), indicada como a compreensão repentina de uma certeza que abala e altera até o mais fundo do ser. Apenas então surge o pensamento, como necessidade absoluta, sem tateio, sem escolha, relacionado à plenitude de alegria em que formas extremas do s­ ofrimento e do terror aparecem como partes integrantes e indispensáveis; desse modo: “como cores necessárias no interior de uma tal superabundância de luz; relação de instintos rítmicos, que abrange em suas relações um exagerado mundo de formas” (ibid., § 3). Isso ocorre, afirma o autor, “no mais alto grau da ­involuntariedade” (unfreiwillig) (ibid., § 3), como uma torrente de sentimento de liberdade, de plenitude, 13

Acerca do que escreve Fink: “Ora, essa construção apriorística, ‘a compreensão ontológica’, é um ser coisal, que nós pensamos graças às categorias, aos conceitos do entendimento – não tem nenhuma ‘validade objetiva’, é a mentira de uma pressuposição fundamental pertencente à razão humana. O único real é exclusivamente o vir-a-ser – não um vir a ser de um ente já aí, que se modificaria, mas um puro vir-a-ser, um escoamento e um fluxo incessante, um movimento sem fim, essa ‘vida’ jorrando do mundo, que está presente por toda parte, que produz tudo e a tudo aniquila” (1972, p. 178). 111

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de poder, de divindade e então: “A involuntariedade das imagens, das metáforas é o mais notável; não se tem mais conceitos do que é figura e do que é signo, tudo ­oferece-se como a mais próxima, a mais correta, a mais simples expressão” (ibid Zaratustra § 3). Segundo Nietzsche isso se mostra efetivamente nas palavras de Zaratustra: “como se as coisas mesmas chegassem e se oferecessem para converterem-se em símbolos” (ibid. § 2). Essa, com efeito, é a ­experiência de Nietzsche de inspiração que, segundo ele, necessitar-se-ia retornar séculos para encontrar alguém que pudesse dizer possuir a mesma (ibid. § 3). É por isso que Assim falava Zaratustra coloca-se como trabalho singular dentre todos os outros, inalcançável até mesmo pelos maiores poetas (ibid. § 6) e cujo ato excelso (höchste That), a visão do “dionisíaco”, faz com que todas as ações humanas pareçam pobres e limitadas. Zaratustra é, por conseguinte, o anunciador do eterno retorno do mesmo e isso também significa o possibilitador de um ressurgir do dionisíaco enquanto forma de compreensão ilimitada, amoral e artística do mundo, que permite a compreensão una da existência, mas modo contrário às antigas morais.14 Ele contradiz com cada palavra, as maiores afirmações do espírito; nele, todas as contradições se conciliam em uma nova unidade. As mais elevadas e as mais baixas forças da natureza humana, o que há de mais doce, de mais tênue, o que há de mais terrível, manam de uma fonte com imortal segurança (EH/EH Z/Z § 6).

Zaratustra refuta a antiga moral porque retorna à natureza e a compreende como una, pondo fim à separação até então imposta entre aparên­cia e essência. Para ele, tudo é existência, até mesmo o que é percebido como o objeto da imaginação. Por isso, antes de Zaratustra, escreve Nie­tzsche: “Não se sabe até então o que é grandeza, o que é profundidade: menos ainda o que é verdade” (ibid., § 6). Segundo essa nova amplitude, a afirmação das possibilidades da simbolização restaura o valor da superficialidade da imagem e se afasta de qualquer especulação acerca do funda­mento determinante. A existência deixa de ser encarada como problema, para então ser vista unicamente como una em sua manifestação. Nisso consiste a sabedoria de Zaratustra, a sua penetração psicológica, que resulta que: “a mais poderosa força de simbolização que existiu até agora é pobre e brincadeira contra este retorno da linguagem à natureza da figuração (Bildlichkeit)” (EH/EH Z § 6). Essa aceitação incondicional da existência – mas também esse novo confronto com ela devido ao seu traço dionisíaco – a constatação do ocaso dos antigos valores morais, remete à superação do homem estagnado pelos ­antigos dogmas, leva-o, por conseguinte, ao além-do-homem, que pode ser então ­compreendido 14

A presença dessa oposição na filosofia de Nietzsche é indicada por Heidegger (2000, p. 36), ao afirmar que desde o início da metafísica ocidental o Ser é ­tomado no sentido da estabilidade. 112

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como a mais alta realidade, que coloca abaixo de si tudo o que até então se chamou grande (ibid.). Esse, escreve Nietzsche, é o próprio conceito de Dionísio (ibid.), que remete à consideração do problema psicológico do tipo Zaratustra: Como aquele que em um grau inaudito diz não, que nega tudo para o que até então se disse sim. Todavia pode ser a oposição a um espírito de negação, como aquele que é o mais pesado, o do destino. Uma ­fatalidade na tarefa de espíritos carregados e, entre­ tanto, o que pode ser o mais leve e afastado – Zaratustra é um dançarino -: Como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade (Realität) (ibid., Z/Z § 6).

A reposta a essa questão advém justamente da compreensão de que os “­pensamentos abissais” (abgründlichste Gedanken), possibilitados por Zaratustra, não acham objeção contra a existência, mesmo contra o ­eterno retorno (ewige Wiederkunft), o que consiste, segundo Nietzsche, novamente na própria compreensão de Dionísio. A tarefa de Zaratustra, que é também a de seu autor: “é a afirmação até a justificação e até mesmo a redenção de todo o passado” (ibid., Z/Z § 8), sendo que o sentido dessa tarefa comporta dois significados: a) A aceitação dionisíaca de tudo o que e­ xiste e existiu, enquanto necessidade de perpetuação de uma existência eternamente cambiante e conflitante, que tem sua riqueza justamente nesses aspectos, mas também b) o desejo do porvir, do futuro, que aceitando todo o passado, integra-o a si, e o redime, mediante a sua aspiração pela mudança: “Redimir o passado e tudo ‘o que foi’ para transmutar (umzuschaffen) um ‘assim eu o queria!’ – isso eu chamaria primeiramente redenção” (ibid., Z/Z § 8). O homem posto diante dessa nova compreensão não intelectiva do mundo e da existência, aceita a dor e não deseja a piedade, traços típicos daquilo que Zaratustra denomina como o grande asco (grosse Ekel ). Ele passa a ser considerado ­primeiramente a partir de suas possibilidades, como pedra que necessita de figuração. O deixar de querer, de valorar e de criar é então denominado de o grande cansaço (grosse Müdigkeit), ao qual é contraposta a vontade de procriar (Wille zur Zeugung), motivo de a­ fastamento da crença em deuses e outros mundos, por necessidade de criar e de retorno aos homens (EH/EH Z/Z § 8). Essa é a tarefa de Zaratustra, mostrar aos homens novamente a necessidade do ansiar por novas pos­si­bilidades, a expressão do destino do homem (EH/ EH, Porque sou um destino § 1), cuja figura fundamental é a do além-do-homem. A partir do conteúdo dessa seção de Ecce homo, compreende-se que o e­ nsinamento do eterno retorno do mesmo exige uma nova forma de consideração da existência que, antes de tudo, exclui toda pressuposição depreciativa dela e a afirma ­incondicionalmente.15 15

Pois, como escreve Heidegger (2000, p. 31), comentando a afirmação de Nietzsche de que o valor 113

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Trata-se do saber dionisíaco, da manifestação dos instintos naturais e artísticos que, desse modo, coloca-se em total contraposição aos valores modernos.16 O dionisíaco de que fala Nietzsche jamais significou simplesmente um retorno ao mitológico, mas se insere na ampla percepção e consequência de sua interpretação da crise dos ­pressupostos tradicionais do pensamento ocidental (Figal, 2008, p. 37). Ele pressupõe a necessidade da transvalo­ra­ção dos valores, pois é o ato decisivo de retorno da humanidade a si pró­ pria e que no autor se faz carne e gênio (EH/EH Porque sou um d­ estino § 1). O eterno retornar pensado dionisiacamente é compreendido não a partir de pressupostos metafí­ sicos, mas como meio de reconferir valor à existência imanente, o que Nietzsche ­expressa na metáfora do retorno à terra e ao homem – esse porém pensado individualmente e segundo a sua força ativa e criativa. O princípio do pensamento do eterno retorno não pressupõe um mundo efetivamente compreendido, mas experimentado como indeterminação e como jogo estético (Grlic, 1985, p. 41), que, desse modo, é também afastamento de todo idealismo com pretensão ao absoluto (Müller – Lauter, 1971, p. 116/8). É a partir disso que Nietzsche pode afirmar: “Seu ensinamento, e só ele, considera a veracidade como superior virtude – e isso significa a oposição à covardia (Feigheit) do ‘idealista’ que foge perante a realidade” (EH/EH Porque sou um destino § 3). O ensinamento do eterno retorno do mesmo é o ensinamento capital de ­Zaratustra, considerado como aquele que profere novamente a sabedoria amoral, destrutiva, porém afirmativa de Dionísio (EH/EH Porque sou um destino § 2), que compreende a amplitude da existência, a aceita e mesmo a deseja, em seus mais estranhos, problemáticos e terríveis casos, para deles desfrutar esteticamente. Destarte, ela exige uma nova p ­ ostura diante do mundo e cria a imagem do além-do-homem como ­símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo. Assim compreendido, o conteúdo e­ stético do ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana (NF/FP: 9 II [165], primavera – outono de 1881). Seu significado para o indivíduo singular deve ser pensado como contraposição às g­ eneralizações sem conteúdo efetivo do saber científico,17 como solução para o vazio decorrente da pleno do mundo não pode ser avaliado, não se trata de negar a capacidade do homem de avaliar o valor do mundo, mas que tal conceito de valor é totalmente incompreensível. Buscar um valor total do mundo, continua o filósofo, significaria condicionar o incondicionado ao condicionado, o que marcaria na filosofia de Nietzsche a constatação da incompreensão metafísica de que o caráter do mundo é o do eterno devir e que portanto o existente em sua totalidade não tem nenhum valor. 16 Ou com o resultado ao qual chegaram esses valores, trata-se do Niilismo, ou seja, o resultado final do desejo de verdade acerca do existente, que resulta na própria destruição da veracidade (Müller-Lauter, 1971, p. 116.) e, portanto, no desmascaramento da crença no verdadeiro mundo, o que resulta na compreensão do Niilismo como consequência da moral e conduz à sua superação, através da aceitação do pensamento do eterno retorno (Kaulbach, 1985, p. 33). 17 Marton escreve a este respeito: “Com o eterno retorno, Nietzsche desautoriza as filosofias que supõem uma teleologia objetiva governando a existência, desabona as teorias científicas que presu114

a fala poética em assim falava zaratustra

compreensão do fracasso da metafísica e da percepção da morte de Deus. O ­movimento cíclico e retroativo que o ensinamento anuncia adquire importância primeiramente para o indivíduo, que não deve ser entendido como sujeito moral ou ontológico, mas como aquele que compreende e aceita a existência unicamente como um jogo de forças eternamente conflitantes, sem fim, e que deve assumir a responsabili­dade de sua própria existência. Sob o ponto de vista filosófico, o eterno retorno ­pressupõe a não estabilidade da existência e uma alternativa para todo pensamento teleológico. Determinante para a compreensão dessa concepção é a significação desse pensamento para o homem em sua singularidade, o que reduz o tom cosmológico do ensinamento a sua significação vital. O mundo das forças não sofre nenhuma diminuição: pois, antes, ele teria se tornado

fraco e morreria no tempo infinito. O mundo das forças não sofre nenhuma p ­ aralisação: pois ela teria sido alcançada antes, e o relógio da existência alcançaria momentos de

calma. O mundo das forças não chega nunca a um equilíbrio, ele não tem nunca um

­momento de calma, sua força e seu movimento são igualmente grandes em cada t­ empo. Quais estados esse mundo também pode apenas alcançar, ele necessita o ter alcançado não apenas uma vez, mas incontáveis vezes. Assim, esse momento: ele já foi uma vez

e muitas vezes retornará do mesmo modo, toda força se difunde desse modo, como agora: e do mes­mo modo o coloca com o momento, desse dar à luz, que é a criança do

agora. Homem! Toda a tua vida será como uma ampulheta, será sempre invertida e

sempre voltará a correr – um grande minuto de tempo, até todas as condições, das quais tu tornaste, no correr circular do mundo, novamente se encontram. Então encontras cada dor e cada desejo, cada amigo e cada inimigo, cada esperança e cada erro, cada

vergôntea e cada vista do sol novamente, a plena conexão de todas as coisas. Esse anel, do qual tu és um grão, resplandece sempre novamente. E em cada anel da existência

humana (Menschen-Daseins) em geral, há sempre uma hora onde um, então muitos, então todos os mais poderosos pensamentos emergem, do eterno retornar de todas as

coisas – isto é, dentre todas as vezes para a humanidade, a hora do meio dia (FP: 9 II [148]. Primavera – outono de 1881).

Desse modo, o ensinamento do eterno retorno pode ser c­ onsiderado como uma forma de percepção da existência, que mesmo ­interpretada sob uma ótica positiva, parece muito mais plausível que as teleologias racionalistas. Com ele, Nietzsche visa definitivamente a possibilitar a aceitação dessa, compreendida no interior de um jogo mem um estado final para o mundo, desacredita as religiões que acenam com futuras recompensas e punições. Recusa a metafísica e o mundo suprassensível, rejeita o mecanicismo e a entropia, ­repele o cristianismo e a vida após a morte” (2000, pp. 25-6). 115

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incessante de f­ orças e de transcorrer de momentos (Marton, 2000, p. 21). A aceitação dessa verdade cabe unicamente ao homem singular e altera decisivamente a sua vida, pois significa a exigência sem refúgios da decisão acerca de sua própria existência (Ibid, p. 16), compreendida no movimento cíclico de possibilidades limitadas, mas indetermi­ nável, cujo único compromisso passa a ser com a vida e com a criação. O ensinamento do eterno retorno do mesmo revela-se como aceitação da ­existência singular em sentido amplo, porque leva ao extremo a consideração do mundo como fluxo incessante e que assim reduz a existência à escolha de pequenos momentos infinitos (Müller-Lauter, 1971, p. 116).18 Não se trata de um saber imposto, mas primeira­ mente de uma compreensão decorrente da percepção interna da vida, em um m ­ ovimento de afastamento de qualquer consideração teórica e idealista que se justifique pela necessidade da maior amplitude e rigorosa validade universal.19 Trata-se sim de um ensinamento anunciado para poucos e que tem por alvo o homem singular, o indivíduo, que deve redimensionar a ­significação de sua existência, para então poder suportar a sua dureza e a responsabilidade para com ela compreendida como devir incessante em um mundo regido pela vontade de poder e ainda desejá-la eternamente em amplitude cada vez maior (Heidegger, 1997, 258). Esse anseio constitui a última justificação possível do ensinamento, posto a partir de então como pressuposto afirmador da vida que, portanto, pode ter seus pressupostos afirmados segundo uma consideração estética do mundo (Müller-Lauter, 1997, p. 86/7). Esses direcionamentos determinam a importância do experimento estilístico de Nietzsche em seu Zaratustra. Manifestar-se estilisticamente significa evidenciar a percepção individual do eu, sem, no entanto, poder conferir a esse qualquer característica essencial (Bornedal, 2010, p. 135). Significa evidenciar que a alternância de estilos pressupõe tanto a independência daquilo que é dito com respeito à forma de expressão utilizada para comunicá-lo, como o seu significado não dogmático (Nehamas, 1991, p 56-7). Em Nietzsche a pluralidade de estilos possui uma dimensão existencial, pessoal (NF/FP: KSA 10 I [109], julho – agosto de 1882), 18

Em um fragmento de 1881, Nietzsche escreve: “o pequeno momento infinito é a alta realidade e a verdade, um quadro relâmpago do eterno fluir. Assim se aprende como todo conhecimento saboreado repousa sobre o erro grosseiro da espécie, o refinado erro do indivíduo, e o mais fino ­equívoco dos criadores de momentos”... (NF/FP: KSA 9, II [I56], Primavera – outono de 1881). 19 Ao pensar o eterno retorno do mesmo, Löwith (1986, pp. 32-3) indica a significação da libertação da vontade dos esquemas tradicionais de interpretação do mundo e de sua moral inerente. Indica ainda a relação entre os espíritos tornados livres em HDH, aqueles que então iniciam o questionamento dos valores e concep­ções comuns e passam a perguntar pelo fundamento, até a vontade tornada livre querer, em oposição ao dever imposto pela moral. Segundo o autor, essa noção que será expressa na filosofia posterior de Nietzsche pela figura dos s­ enhores da terra tem como pressuposto tanto a constatação da morte de Deus, como a superação do Niilismo dela proveniente, pela compreensão da necessidade do eterno retornar das coisas, como também da ideia de uma supra-humanidade futura. 116

a fala poética em assim falava zaratustra

mas também filosófica, que apartadas de qualquer significação racionalista ou m ­ etafísica, referem-se prioritariamente a uma relação de proximidade e de interpretação do leitor (Visensteiner, 2013, p. 227). Esses aspectos possuem significação central no que se refere a Assim falava Zaratustra. Essa obra pressupõe uma filosofia que impulsiona à interpretação e não a uma pretensão dogmática ou doutrinal (Marton, 2014, p. 117). Por conta disso, a sua forma de persuasão não deve recair nos modelos metafísicos ou positivistas tradicionais, pois a sua forma de persuasão prescinde da verdade incondicionada. Forma de anúncio da concepção do eterno retornar de todas as coisas Compreendido no interior do movimento argumentativo iniciado com Humano demasiado humano, que relaciona indissoluvelmente a vivên­cia (Erlebnis) do autor com os seus posicionamentos filosóficos, a consideração da forma de anúncio do ­ensinamento do eterno retorno do mesmo articula os temas centrais da filosofia madura de Nietzsche. Se a elaboração desse pensamento encontra-se fundamentalmente nos aponta­mentos póstumos e não nas obras publicadas, e ainda que esses possuam volume muito maior do que aquilo veio a lume, isso se deve ao fato de que em seus cadernos o autor experimentava pensamentos que a­ pareceriam ou não em seus livros (Colli, Montinari, 1972, p. 59). A isso se vincula o fato de que a invenção do “espírito livre” repercute em uma liberdade do estilo e das formas de expressão e consideração de pensamentos, e­ ntendidos a partir de então como produção e manifestação de uma singularidade em um mundo entendido como percepção singular momentânea (Marton, 2000, p. 28). Isso pode ser compreendido sob dois aspectos, que encontram correlativos nas posições filosóficas adotadas por Nietzsche no período. Em primeiro lugar, como uma forma de reflexão que não encontra mais objeções em partir da perspectiva de seu autor, sem, todavia, permanecer reduzida a essa. Não se trata de um posi­cionamento filosófico solipicista, mas de uma concepção compreendida como último resultado da radicalização do d ­ esejo de conhecer, que resulta na compreensão de que toda atividade reflexivo-interpretativa pode ser pensada como movimento próprio de expressão que sempre pressupõe a sua limitação interpretativa.20 Com isso, o pensamento é dissociado da verdade e compreendido a partir de sua significação perspectivística, que assim sendo, invalida todo c­ onceito universal de verdade (NF/FP 25, 81 [28], janeiro de 1884). Com a crítica à noção dico­tômica da verdade, são postas por terra as separações entre essência e aparência, 20

Nesse sentido, pode-se ler em um fragmento de 1888: “Eliminemos esses ingredientes: assim não resta coisa alguma; porém, quanta dinâmicos, em uma relação de tensão com todos os outros dinâ­ micos quanta, cujo Ser sai vitorioso em sua relação com todos os demais quantas, em seu atuar sobre os mesmos – a vontade de poder não é um Ser, não é um Devir, porém um Pathos da mais elementar efetividade, que se produz primeiramente em um devir, em uma ação…” (NF/FP: KSA 13,14 [79], Primavera de 1888). 117

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essencial e acidental, que poderiam ser remetidas a uma concepção definitiva de v­ erdade. O pensamento do eterno retorno pode com isso ser baseado no pressuposto da a­ firmação da existência em sua totalidade. Disso decorre a valorização da ideia de originalidade desejosa de perpetuar-se no ­tempo cíclico, que Nietzsche menciona com respeito a si mesmo e que o m ­ otiva a justificar todo exteriorizar-se como manifestação afirmativa e ­ampliação das possibilidades de criação. A justificação do pensamento passa a ser fundada na força de sua ação criativa, pensada no âmbito pleno das demais singularidades que então adquire como critério o seu grau de afirmação. Tal interpretação encontra justificativa na constatação da morte de Deus, a partir da indicação do fim da crença na efetiva validade dos valores da moral judaico-cristã, anunciado no aforismo 125 de A gaia c­ iência e que nos cadernos de Nietzsche se relaciona com a problemática da ascensão do niilismo enquanto direcionamento da vontade para o nada, que para Löwith significa a última forma de possibilidade do querer (Löwith, 1986, p. 40). A constatação do niilismo presente no horizonte da cultura o­ cidental decorre da percepção da morte de Deus e do esgotamento da validade dos valores da tradição metafísica e judaico-cristã (NF/FP: KSA 13, [6], maio – junho de 1887). A contraposição a ele se dá em Nietzsche a partir da negação da existência da verdade e, a partir disso, do critério de ­necessidade atribuído a ela. Com isso ele almeja mostrar como desnecessário o pessimismo decorrente do seu não alcance e, em consequência remeter o homem ao “deserto de sua liberdade” (Wüste seiner Freiheit), pois esse é o primeiro movimento do Eu liberto do dever moral e voltado para o abso­luto querer (Ich will) do homem.21 Mas niilismo também significa desconfiança em relação ao sentido da existência (Kaulbach, 1985, p. 38), causada pela crise dos antigos valores e metas, portanto pela ausência de um consolo para os desafios do existir. Em Nietzsche, a constatação do niilismo enquanto consequência da autodissolução da moral, ou seja, do e­ sgotamento da possibilidade de validade dos valores morais fundados em uma verdade estável – a partir da sua própria ideia de veracidade22 – recoloca, todavia, a existência humana em primeiro plano e exige a sua eterna perpetuação (Löwith, 1986, p. 44). O pensamento do eterno ­retorno do mesmo é o resultado dessa vontade, do desejo de afirmar e j­ ustificar a eternidade do mundo e isso significa imediatamente o afastamento de to­da moral que, segundo a interpretação de Nietzsche, sempre o desmereceu.23 Ele implica a ne21

Ou segundo Kaulbach, da autarquia da razão perspectiva (1985, p. 33). ibid., p. 36. 23 “isso não se relaciona de modo algum com o melhor ou o pior mundo: Não ou sim, essa é a questão aqui. O instinto niilista diz não: sua mais suave alegação é que não ser é melhor que ser, que a vontade de nada tem mais valor que a vontade de viver, seu aspecto mais rigoroso é que, se o nada é sobremodo mais desejável, esta vida em oposição é absolutamente sem valor – será rejeitada” (FP. 22

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gação de uma unidade histórica da humanidade e da ideia de progresso e a necessidade de superação dos homens atuais (Löwith, 1986, p. 40). O anseio por uma humanidade outra, futura, implica a criação t­anto de novos valores para a sua consideração, como a negação da ­interpretação moral do mundo por meio da vontade de poder. Significa também a cria­ção de novas formas de expressão que confirmem a refutação dos antigos valores. Histórica e culturalmente, a crítica se direciona contra toda a ação teórica e teologia relacionadas, e visa a realizar aquilo que Nietzsche interpretou como seu estado de vontade livre (Kaulbach, 1985, p. 34), a­ quela que percebe o perspectivismo do mundo, do mesmo modo que a total ausência de sentido deste, regido pela necessidade de sentido que constitui o niilismo, cuja constatação decisiva é expressa por ele no anúncio da morte de Deus. A morte de Deus é constatada na alteração da significação da divindade na modernidade, na qual a sua necessidade, interpretada como necessidade do absoluto, a­ inda se sustém apenas devido à sensação da impossibilidade da não existência deste p ­ rincípio. Nietzsche interpreta esta mudança como sinal da autodissolução da moral tradicional, que remete a época atual a uma extrema forma de Niilismo, pois a necessidade do absoluto é então percebida como imperativo irrealizável. O homem moderno, impulsionado pelo desejo de verdade que Deus até então representara, compreende a inexistência da verdade e de nenhum s­ entido absoluto (Kaulbach, 1985, p. 38). Isso c­ aracteriza, para Nietzsche, a autodissolução das antigas significações, que ele interpreta como o ­resultado extremo da absolutização de Deus e de todos os princípios tornados f­ undantes e a ele relacionados. Com ela, estabelece-se o sentimento de impossibilidade de qualquer outra alternativa para a sua supressão, pois os homens desaprenderam a criar e por isso continua-se a viver com a ideia de Deus, muito embora sem significação decisiva. A morte de Deus só pode ser totalmente dimensionada se levada em consideração a posição e significação estratégica dessa comunicação com respeito a Assim falava Zaratustra. Mas, por outro lado, o aforisma 125 de A gaia ciência apresenta-se também imprescindível para a c­ ompreensão dos ensinamentos de Zaratustra, precisamente a­ quele que visa rever todas as formas dicotômicas de consideração, justamente aquelas que fundamen­tam a necessidade de um Deus absoluto. O anúncio, feito primeira­mente no aforisma acima mencionado, é finalizado com uma interrogativa semelhante a que se faz presente no anúncio do pensamento do eterno retorno do mesmo. Trata-se do ato de chamar a atenção para as possibilidades positivas do vazio desvelado pela constatação da morte da divindade e para o ocaso de suas formas de justificação, como possibilidade de transmutá-la em algo positivo. Neste sentido, o niilismo é indicado por KSA 13, 17 [7], maio). 119

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Nietzsche como momento decisivo que, segundo Kaulbach, coloca o homem d ­ iante de duas possibilidades: ou deixar-se dominar pela ausência de sentido e perder-se na resignação ou então tomar uma posição para si mesmo e se fazer livre e independente do sentido do Ser, passando a compreender a necessidade de criar o seu próprio ­sentido (Kaulbach, 1985, p. 39). Em Nietzsche este apelo à criação significa também a valorização da e­ xteriorização individual como perspectiva antidogmática. Disso decorrem as suas experiências com o estilo e com a linguagem, pois a crítica da moral se efetiva também como crítica à assimilação ôntica dos padrões linguísticos, ao compreendê-los como instrumento de transmis­são da noção de fundamento e, portanto, de verdade (MA II/HH II, O ­andarilho e sua sombra § 11). Em um mundo concebido como vontade de poder, ou seja, como fluxo incessante e indeterminável de forças com suas respectivas perspectivas, a própria linguagem precisa ser redimencionada para ser veículo dessa nova percepção do ­mundo, que não é mais a verdade acerca dele, mas o exercício experimental de exteriorização da individualidade (BM § 43 e § 292), que se expressa no âmbito das demais s­ ingularidades. Daí decorre que, nos escritos publicados, o pensamento do eterno retorno do m ­ esmo é anunciado de modo cuidadoso, como experimento, que pressupõe não a afetividade do retornar de todas as coisas, mas de como o indivíduo se comporta diante dessa possibilidade (Figal, 2008, p. 57). O aforismo 341, no fim do quarto livro de A gaia ciência, deixa bastante evidente esse aspecto. O retornar é mencionado como pensamento e questiona a respeito da reação do leitor diante do furtivo e demoníaco anúncio: Esta vida, como você a vive neste momento e já viveu, você necessitará viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e não haverá nada de novo nela, mas cada dor e cada ­prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é indizivelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe retornar, tudo na mesma sequência e encadeamento – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A eterna ampulheta do existir será sempre virada novamente e você com ela, partícula de ­poeira!

O demônio áugure desse pensamento apresenta então duas opções: ranger os dentes e amaldiçoar o anunciador de tal pensamento ou experimentar a sua ­intensidade como um momento imenso e como revelação divina. Nesse sentido, no que se refere à aceitação do pensamento, apresentar-se-iam também duas opções: a transformação ou o esmagamento por meio dele. Entretanto, é importante ressaltar a importância da afirmação final do demônio, que anuncia a possível e inumerável repetição do ­momento. A partir dela, pode ser alcançada a compreensão do título do aforismo. O peso que recairia sobre os atos dos homens significa a percepção dos efeitos da maior das gravidades que, por conseguinte, decorreria da percepção da ausência absoluta de tutela, nem 120

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da divindade, nem do destino, em outras palavras, trata-se da atração do mundo e da percepção do peso da própria vida. A gravidade pressupõe a aceitação desta percepção, a necessidade de sua anuência e da aceitação da vida, a fim de alcançar o estado de “não desejar nada além desta última, eterna confirmação e chancela”. O questionamento desse último aspecto parece-nos de grande importância, ­diante do traço existencial do pensamento. Partindo-se do caráter hipotético ou condicional, marcado em alemão pelo conjuntivo na língua alemã, tal hipótese almeja – mas sabida­ mente não o pode alcançar, nem mesmo por aqueles que a aceitem – ser plenamente universalizada. Ela recai como um grande peso, o maior deles, sobre os ombros do indivíduo, que ciente do ocaso dos valores superiores e mesmo da morte de Deus (NF/ FP: KSA 10, 5 [1]. Novembro de 1882 – fevereiro de 1883) vê-se responsável por si mesmo e isso significa, diante da possibilidade do eterno retorno do instante, as possibilidades de perpetuação ou alteração desse, sob pena de que o legar essa r­ esponsabilidade a outras instân­cias significa a necessidade de se submeter eternamente a uma repetição passiva do instante. O eterno retorno do mesmo consiste em um pensamento que recai sobre a individualidade singularizada e não sobre o gênero humano universalmente pensado. A necessidade de expressão dessa individualidade, em decorrência da compreensão do mundo como vontade de poder (NF/FP: KSA 10, 9 [43], maio – junho de 1883), distancia-se de toda pressuposição ultramundana ou meramente moral acerca da existência. Desse modo, a singularidade torna-se força produtiva, que desvinculada de qualquer fundamento, necessidade de crença, passa a ter e a querer produzir o seu próprio sentido, portanto, torna-se o espírito livre par ­excellence (FW/GC § 347). Para essa espécie de homem, a percepção do niilismo resulta não em enfraquecimento, mas em fortificação das forças necessárias para o viver, para o produzir e, desse modo, para a liberdade do experimento que, na forma mais radical de afirmação, resulta em viver segundo o amor fati, ou a prova da vontade afirmativa da força e da confiança na produção do próprio sentido (Kaulbach, 1985, p. 42.). Com respeito à filosofia e aos fi ­ lósofos, isso resulta em uma ampliação de significado: Talvez para o surgimento do espírito e filósofo independente, forte, a dureza e a ­astúcia forneçam condições mais favoráveis que a suave, fina, complacente disposição, a arte de aceitar as coisas com leveza, que é apreciada justamente num filósofo. Pressuposto o que vem antes, que o conceito de “filósofo” não seja restrito ao filósofo que escreve livros – ou até que traz a sua filosofia aos livros! (BG/BM § 39).

Esta nova forma de considerar a filosofia requer também novas formas de e­ xpressão que não mais estejam imiscuídas das pressuposições morais da tradição e que se pautem 121

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fundamentalmente pela validade da criação de possibilidades. Assim, a linguagem que profere o pensamento do eterno retornar de todas as coisas pode ser tanto uma l­inguagem de elevação, de autodeterminação, como uma linguagem racional; porém, em todos esses casos, ela permanece experimental, criadora de possibilidades, que, porém, devem ser entendidas como perspectivísticas ­realizações de mundos (Kaulbach, 1985, p. 46). Decorre disso o aspecto do anúncio do pensamento ser feito por meio da “alegre ciência”. Apenas através do significado que encerra essa nova concepção de saber, com sua liberdade diante da gravidade ­negativa da moral e grandeza de ideais, ele pode pleitear e adquirir validade, que é uma concepção imprescindível de ciência ­justamente por poder transmitir o ensinamento da nova gravidade, o saber trágico, todavia alegremente, pois o otimismo teórico da ciência moralizada foi superado pela heroica gargalhada ante os desafios do existir. É nesse sentido que pode ser entendida a afirmação de Nietzsche, segundo a qual se pode estabelecer uma hierarquia dos filósofos ­conforme a qualidade do seu riso ( JB/BM § 294). Mediante essa nova concepção de ciência e de sua forma de expressão, o saber trágico contido no ensinamento do eterno retorno é aceito como Fatum, mas que é su­ perado através da criação de novos sentidos possíveis. Essa é a significação da fala dionisíaca de Zaratustra (Kaulbach, 1985, p. 42). O dionisíaco implica o trágico e, segundo Heidegger, relaciona-se com o pensamento do eterno retorno a partir da compreensão trágica da existência. O trágico se insere no domínio da estética e é posto por Nietzsche como o maior dos estilos (grösste Stille), o que o torna um comunicado para poucos. Ele anuncia a redescoberta do terrível da existência que, entretanto, não deve resultar quer em sentimento de medo ou aversão, quer em resignação e anseio pelo nada, pelo contrário, ele é afirmativo a partir da sua inalterada filiação com o belo, pois a tragédia é onde o terrível e o belo afirmam-se em sua oposição. Mas o trágico e o dionisíaco consistem ainda para Nietzsche em uma posição filosófica fundada na necessidade do questionamento e na vivência daquele que aspira e não teme os perigos inerentes ao desconhecido, que destarte diferencia-se de toda tentativa dogmática de conhecer e inicia uma nova forma de relação com o saber. Sim, se me fosse permitido, eu lhe aferiria [a Dionísio], conforme a prática humana, belos, festivos, pomposos e virtuosos nomes, muitos louvores a sua coragem de explorador e descobridor, a sua ousada probidade, veracidade e amor à sabedoria ( JGB/BM § 295).

A forma de anúncio do ensinamento nas obras publicadas deve, pois, considerar dois aspectos relacionados: a) Primeiramente o vínculo entre a interioridade do autor e suas obras, em especial a partir de Aurora, livro que tem continuidade em A gaia 122

a fala poética em assim falava zaratustra

ciência. b) O segundo aspecto, que se relaciona a este primeiro, funda-se em uma consi­ deração do movimento interno das concepções no pensamento de Nietzsche que, no que se refere ao ensinamento do eterno retorno, pressupõe, por parte do leitor a compreensão – a partir de sua proximidade instintiva e fisiológica com o autor – do c­ onteúdo do ensinamento e de sua forma de exposição, para o que a noção do dionisíaco ­consiste em exigência fundamental. Com respeito ao primeiro aspecto, podemos considerar a anotação de Heidegger, que a primeira referência acerca do ensinamento do eterno retorno se dá em Aurora, na sentença de Rigveda: “Há ainda muitas auroras que ainda não luziram” e que esta menção altera a intenção inicial de Nietzsche de fazer silêncio a respeito de sua concepção por dez anos (Heidegger, 1989, p. 234). A partir deste dado pode-se ponderar que o autor não possuía ainda total clareza a respeito do modo de apresentação de sua concepção, traço que pode ser confirmando por meio da consideração de duas passagens da correspondência do autor no período da visão de Surlei. Em uma carta de 14 de agosto de 1881, endereçada a Heinrich Köselitz de Sils-Maria, Nietzsche escreve: Em meu horizonte surgiram pensamentos, tais como eu ainda não vira antes. Nada quero falar sobre isso e conservar a mim mesmo em uma tranquilidade imperturbável. Eu deverei viver ainda alguns anos! (…) As intensidades dos meus sentimentos me fazem estremecer e rir – já não pude deixar algumas vezes o quarto, por motivos v­ isíveis, os meus olhos estavam inchados – por quê? Nos dias anteriores, durante os meus passeios, chorei muito, mas não eram, de fato, lágrimas sentimentais, mas de júbilo; eu cantava e dizia doidices, possuído por um novo olhar, com o qual eu excedera todos os homens (KSB 6, p. 112).

Essa carta antecede a publicação de Aurora e é escrita por Nietzsche em condição de total isolamento, no mesmo momento do surgimento em seus cadernos dos p­ rimeiros esboços da doutrina do eterno retorno do mesmo. A outra referência significativa pode ser lida em uma carta de 25 de janeiro de 1882, também endereçada a Köselitz: Duas palavras sobre minha “literatura”. Já há alguns dias terminei os livros VI, VII e VIII de ‘Aurora’ e, com isso, meu trabalho está feito. Quero repensar os livros 9 e 10 para o próximo inverno – ainda não estou suficientemente maduro para os e­ nsinamentos elementares que eu quero expor nos livros finais. Há, entre eles, um pensamento que, de fato, precisa de ‘milênios’ para tornar-se algo. De onde tomarei coragem, para expressá-lo! (ibid., p. 159).

Os livros referidos por Nietzsche são as primeiras partes de A gaia ciência, mas que nesse momento eram concebidas como continuações de Aurora. O pensamento que necessita de milênios é precisamente o ensinamento do eterno retorno, então presente 123

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no horizonte do autor, que naquele momento já planejava a feitura de um livro que receberia o ­título de “O eterno retorno e Zaratustra” ( Janz, 1985, Vol II, p. 84). Essas indicações fornecem aspectos importantes para a consideração da forma do anúncio do ensinamento do eterno retorno. Possibilitam considerar que Nietzsche, muito embora já concebesse a importância do pensamento, ainda não o tinha suficientemente elaborado para, naquele momento, levá-lo a lume. Isso pode ser relacionado com o conteúdo de seus cadernos nos quais o tema surge em seus escritos, sem ­nenhuma menção às questões científicas que o motivaram até mesmo a cogitar se ocupar com elas em estudos sobre ciências naturais. As poucas referências podem ser então consideradas, a partir da biografia, como anúncios iniciais, que posteriormente teriam complementação decisiva em obra específica. No que se refere ao segundo aspecto acima aludido, podemos ler no fragmento: De onde reconheço o meu igual. – Filosofia, como até agora a entendi e vivi, é a voluntária procura também dos lados indesejados e nefandos da existência. Da longa experiência, decorrente de uma andança através do gelo e do deserto, aprendi a ­encarar de outro modo tudo o que se filosofou até agora: – a história ocultada da filosofia, a psicologia de seus grandes nomes para mim veio à luz. “Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa o espírito?” – isso se tornou para mim p­ ropriamente o medidor do valor. O erro é uma covardia… Cada conquista do conhe­cimento decorre do ânimo, da dureza contra si, do asseio para consigo…Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo fundante (­grundsätzlichen), sem querer dizer com isso que ela se detenha em um não, em uma negação, em uma vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até o inverso – até um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção –, quer o eterno curso circular: – as mesmas coisas, a mesma lógica e ilógica das conexões. O mais elevado estado que um filósofo pode alcançar: por-se dionisiacamente diante da existência – minha fórmula para isso é amor fati. Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos lados até agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições prévias), mas em função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais verdadeiros, lados da existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior clareza. Do mesmo modo, faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência; compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente aqui diz sim (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por outro lado, e aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções). Adivinhei, com isso, em que medida uma espécie mais forte de homem teria necessariamente de p ­ ensar a elevação e intensificação do homem em direção a um outro lado: seres elevados 124

a fala poética em assim falava zaratustra

(höhere Wesen), para além do bem e do mal, para além daqueles valores que não podem negar sua origem na esfera do sofrer, do rebanho e da maioria – eu procurei pelas indica­ções dessa inversa formação ideal (Idealbildung) na história (os c­ oncei­tos “pagão”, “clássico”, “nobre”, descobertos e dispostos de modo novo –) (NF/FP: KSA 13, 16 [32], primavera – verão de 1888).

Finalmente, a análise da forma de anúncio e de alguns pressupostos do pensamento do eterno retorno fornece indicações importantes e rela­cionadas ao ensinamento do além-do-homem. A acentuada significação do estilo utilizado pelo autor para proferir o seu ensinamento capital revela o necessário desligamento com a tradição filosófica, com os seus pressupostos e formas de exposição. Por outro lado, resulta em uma recuperação das possibilidades da arte que, então, pode, a exemplo dos antigos, pré-­filosóficos, com sua inspiração e força figurativa, ser veículo do impulso de afirmação da vida. Além disso, e em favor desta interpretação, a associação entre o dionisíaco e o trágico que constitui um aspecto significativo do ensinamento do eterno retorno, relaciona-o à perspectiva estética de O nascimento da tragédia, justamente aquela que é criticada e tem muitos aspectos reconsiderados positivamente nos prefácios de 1886 e em Ecce homo, o que pensado com respeito a Assim falava Zaratustra e ao ensinamento do além-do-homem, coloca a questão a respeito da importância desses aspectos na sua formulação.

125

Capítulo IV

O além-do-homem enquanto ideal estético

A tragicidade Como já anteriormente mencionado, a relação do ensinamento do além-do-homem com o pensamento do eterno retorno do mesmo evidencia que em Assim falava Z ­ aratustra ela necessita ser pensada mediante a busca e a construção de possibilidades de expressão para os ­ensinamentos de Zaratustra. A consideração deste tópico visa a retomar aspectos já indicados pelo próprio Nietzsche, segundo os quais a forma de anúncio do pensamento do eterno retorno nas obras publicadas, em especial em A gaia ciência, o liga a Assim falava Zaratustra e que essa ligação ­evidencia a amplitude do en­sinamento nesta obra. Como a argumentação até aqui tencionou mostrar, essa relação pode ser debatida com ganhos a partir da análise da estilística utilizada pelo autor para escrever o livro de 1883 e ainda, que o estilo e sua importância estão decisivamente relacionados ao renascimento da poesia comunicado em Aurora (§341 e § 342), possibilitado pela interpretação moral e perspectivista da ciência, que desabo­na a hegemonia dos discursos metafísico e científico ante a outras formas de expressão. Todos esses aspectos levam a pressupostos que compõem a argumentação a seguir, quais sejam eles: (a) anteposição prévia da expo­sição de vários temas sem indicada relação direta com o assunto basilar, mas que formam com ele um conjunto intencionalmente planejado. (b) Que tal recurso tem como finalidade selecionar o leitor por meio de um labirinto argumentativo que garanta que aquele que finalmente chegou a compreender a mensagem final do escrito, tenha com o autor fortes - ou mesmo as mesmas - afinidades (Löwith, 1987, p. 23). Esse aspecto se torna evidente quando considerado o empenho de Nie­tzsche em fornecer, quer nos prefácios de 1886, quer em Ecce homo, indicações acerca de aspectos que, segundo ele, deveriam ser observados em suas obras, dentre as quais Assim falava Zaratustra significa um ­ponto de convergência. Estes sinais, com efeito, tencionam mostrar que com esse livro ele leva ao extremo sua concepção de liberdade de criação e experimentalismo, que resultam na construção de uma escrita poética associada à filosofia, entendida como linguagem existencial de seu autor (Kaulbach, 1985, p, 20). A reconsideração dos escritos anteriores a Assim falava Zaratustra revela que esse traço tem claramente suas raízes na noção de inspiração artística aludida em O nascimento da 126

o além-do-homem enquanto ideal estético

tragédia,1 o que, por sua vez, pode ser constatado no caráter trágico conferido àquela obra (Groddeck, 1997, p. 187). É, pois, precisamente em decorrência de Nie­tzsche concebê-la desse modo que se pode obter uma compreensão mais clara do significado da figura do além-do-homem anunciado no prefácio, antecedendo à comunicação do ensinamento do pensamento do eterno retorno do mesmo.2 Considerando-se que a comunicação da nova gravi­dade do eterno retornar de todas as coisas é feita por Nie­ tzsche em agosto de 1882, nos últimos aforismos da primeira edição de A gaia c­ iência, e ainda, que no final de abril de 1883 é publicada a primeira parte de Assim falava Zaratustra, pode-se antever que não é despropositada a opção por uma tal forma de comunicação.3 Antes, ela fizera parte da estratégia de publicação do próprio Nietzsche, sendo que a mesma perspectiva atuante no prefácio de Assim falava Zaratustra, ­segundo o próprio autor, serve de base para a elaboração dos prefácios de 1886.4 Com respeito aos prefácios, um novo aspecto deve ser indicado: o de que eles não apresentam mais uma referência analítica ou reformuladora dos temas dos livros aos quais foram acrescidos, mas tinham como questão de grande importância a afirmação de seu autor como um “Espírito livre” (Groddeck, 1997, p. 190). Essa liberdade do espírito apresenta-se como determinante para a escolha dos critérios segundo os quais Nietzsche elabora Assim falava Zaratustra, para cuja compreensão, deve-se novamente indicar a precedência da “alegre ciência”; justamente uma nova forma de conceber o saber, e que tem sua origem na inspiração dos artistas da Provença. Relacionada ao 1

Em uma carta de Nietzsche a Franz Overbeck, de 13 de junho de 1885, podemos ler : “A reflexão acerca dos problemas pr incipais (pr in cip iel l e n Problemen), que involuntáriamente constitui o conteúdo do meu verão na alta Engadina, traz para mim novamente, não obstante os ataques muito temerários da minha interiori­dade ‘cética’, as mesmas decisões (Entscheidungen): elas já estão, da forma mais velada e obscura possível, no meu Nascimento da tragédia e tudo o que eu assimilei (hinzugelernt) nesse meio tempo é uma parte disso” KSB 7, p. 67. 2 Heidegger (2000, p. 122) se pronuncia a esse respeito dizendo que Zaratustra, enquanto aquele que ensina o “eterno retorno do mesmo” e o além-do-homem, não pode ensinar imediatamente o primeiro ensinamento porque há um outro enunciado em seu caminho; o segundo, que por sua vez não designa o homem tal como nós conhecemos, mas como uma espécie que renegaria toda a humanidade; ele é aquele que se eleva acima do homem de hoje, mas unicamente para conduzir esse homem primeiramente ao seu Ser. 3 No prefácio de GC, § 4, Nietzsche se refere ao novo gosto que agiria em sua filosofia a partir desse livro e afirma que nele: “atua a decência de não querer ver tudo nu, assistir a tudo, entender a tudo e a tudo ‘saber’”, o que, segundo ele, exige que se honre mais o pudor (Scham) e o ­esconder-se da natureza atrás de enigmas e incertezas. 4 Em uma cara de 7 de agosto de 1886, enviada ao seu segundo editor, E. W. Fritzsch, Nietzsche apresenta o seu novo plano de publicação. Nessa carta, um dos principais cuidados do autor incide sobre Assim falava Zaratustra, cujas três primeiras partes deveriam ser publicadas em uma única edição. Nesse sentido, Nietzsche acentua que o Prefácio do livro, na primeira parte, “serve para toda a obra” (gilt für das g­ anze werk), do mesmo modo que de modelo para os cinco novo Prefácios que ele ­planejava para as suas obras anteriores, de NT até GC, aos quais ele se referia pela primeira vez ao editor. Cf. Groddeck (1997, p. 188).



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“espírito livre”, a “gaia ciência” tende acentuadamente para o perspectivismo da arte, conferindo aos ensinamentos proferidos por seu intermédio tanto a pretensão de conhecimento metódico e rigoroso, como a força imagética e plasmadora da perspectiva artística, a partir do pressuposto de que a própria existência é então com­preendida como um fenômeno estético (FW/GC § 107). No que se refere ao pensamento do eterno retorno do mesmo, estes aspectos o afastam de qualquer pressuposição de um desejo de fundamentação científica da con­ cep­ção nos moldes tradicionais.5 Mesmo as referências de Nietzsche ao mundo natural e às teorias físicas da época, nada mais são que a confirmação temporal ou histórica da fragilidade das formas tradicionais de consideração advindas da metafísica, o que impede que se as sobreponha à percepção que constata a não ordenação lógico-causal do mundo e desse modo tenta justificá-lo.6 O pensamento do eterno retorno é primeiramente não metafísico, apenas assim ele pode pleitear ser científico, pois pressupõe a fragilidade do conceito tradicional de verdade da metafísica, que Nietzsche ainda identifica na ciência tradi­cional. Nesse sentido, pode-se aceitar parcialmente a interpretação de Martin H ­ eidegger, que acentua o caráter contrário à metafísica dessa posição, afirman­ do que com ela Nietzsche busca imprimir ao devir o caráter do Ser (Heidegger, 2000, p. 140). Destarte, é necessário ­acrescentar que a noção de Ser mobilizada por Nietzsche não pode ser aproximada da concepção metafísica e, destarte, da ideia de fundamento. Ela se ­refere ao mundo tacitamente percebido em sua imanência, em seu devir (­Werden) ( Jaspers, 1981, p. 321). Por conseguinte, podemos antever, com um olhar mais cuidadoso, o ­retorno de Nietzsche a traços bastante próximos da noção de criação da beleza artística como 5

Mesmo que Nietzsche tenha efetivamente planejado levar a cabo estudos de f­ísica e matemática com vistas a fundamentar cientificamente a concepção do eterno retorno (cf. Marton, 2000, p. 22), essa iniciativa pode ser vista como resultado da constatação de que os resultados alcançados por alguns pensadores e cientistas naquele momento, tais como Dühring, Mayer, Boscovich e Helmholtz, demonstravam a insuficiência interpretativa dos antigos parâmetros científicos. Aproximamos aqui nossa interpretação da de Vattimo (1987, p. 106), que argumenta que pelo próprio conteúdo e direcionamento de suas anotações, a justificação científica do pensamento do eterno retorno serviria muito mais a uma tentativa de formular uma versão exotérica do ensinamento que de comprová-la segundo padrões positivos. 6 Para Günter Abel, deve-se fazer, com relação à formulação do eterno retorno, uma distinção entre pensamento e teoria científica. Segundo a sua interpretação, m ­ esmo as menções a um desejo de justificação científica da concepção enquanto teoria não significam de forma alguma que o pensamento saia da exigência do seu ­próprio sentido. Quando pensado como teoria, o eterno retorno não exige a mesma justeza da ciência tradicional, que sempre pensou a teoria como a correspondên­ cia da função cognitiva entre entendimento (Verstand) e coisa (Sache), o que remete Nietzsche a considerar a falsificação das hipóteses científicas e de seus ­pressupostos. (Conf. Abel, 1998, p. 77/81). Abel ressalta ainda o importante aspecto interpretativo da filosofia de Nietzsche, o qual ele utiliza na consideração tanto das ­ciências como do conhecimento teórico e que o leva a formular uma nova concepção de ciência (ibid., pp. 190-1). 128

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forma de ­tornar suportável a existência, defendida em O nascimento da tragédia. Em Assim ­falava Zaratustra, entretanto, temos uma perspectiva diferenciada. A crítica à metafísica o afasta do pressuposto da dicotomia entre aparência e essência, ainda presente nas concepções do apolíneo e do dionisíaco, aspecto que não lhe é mais necessário à ­afirmação da potência da expressão artística. Segundo Vattimo, com esta ­perspectiva, é possível pensar em uma aliança entre ciência e arte, entendida a ­primeira como conhecimento metódico do mundo, como representação e estabele­cimento da consciência do erro, e a segunda como forma de manutenção da vida, como auxílio que ajuda a comportar a consciência, do erro necessário (Vattimo, 1987, p. 60). A existência individual, decisivamente compreendida como interpretação de um fenômeno esteticamente percebido, encontra seu termo na necessidade de aceitação do perspectivismo e da multiplicidade inumerável de interpretações e pontos de vista, portanto, na impossibilidade de opção por um “mundo verdadeiro” e por uma interpretação “correta”. Os efeitos desta concepção se fazem sentir acentuadamente no campo da autodeterminação do homem. Por conseguinte, um dos aspectos centrais postos pelo pensamento do eterno retorno do mesmo. No que se refere ao indivíduo, ela significa a libertação da moral normativa tradicional e remete aquele à necessidade de uma nova escolha: ou à afirma­ção das próprias ações pressupondo a nova interpretação da existência – resultando em posicionamentos restritos fundamentalmente aquele que e­ xerce a sua autarquia – ou a total anulação de si mesmo e a aceitação de outras interpretações e determinações. Para Nietzsche, é precisamente este o perigo fundamental da noção tradicional de racionalidade. A necessidade imperativa de objetividade e a crença na veracidade desta redunda na negação de possibilidade de qualquer alteridade não lógico-causal, identitá­ria e teleológica. A ­oposição a esses pressupostos é um dos traços mais e­ videntes na perspectiva estilística e filosófica do autor, assim como decisiva à aproximação delas da arte, deliberativamente, por esta significar para ele uma força i­ nextinguível de criação e, assim, oposta à metafísica. Esses aspectos estão relacionados às concepções tanto do ensinamento do eterno retorno do mesmo como do além-do-homem. Para a sua compreensão, basta considerar a signi­ficação estética do além-do-homem e o afastamento de ambos os ensinamentos dos pressupostos tradicionais. A análise dos fragmentos do período de elaboração do primeiro projeto do ensinamento, que se estende pelo interva­lo de tempo de novembro de 1881 até fevereiro de 1883, mostra que foi precisamente no mesmo período da conclusão e i­ mpressão dos manuscritos do prefácio e da primeira parte de Assim falava Zaratustra (Haase, 1984, p. 229), que a ideia do além-do-homem surge nas anotações de Nietzsche. Nos fragmentos póstumos referentes ao delinear dos traços do pensamento do eterno retorno a partir do fragmen129

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to II [141] da primavera-outono de 1881, a palavra Übermensch não é mencio­nada. A partir de apontamentos posteriores e da sua função em Assim falava ­Zaratustra, como se verá, ela pode ser relacionada com a criação artística da bela imagem i­ndicada no seguinte fragmento: Nós quereremos sempre vivenciar novamente uma obra de arte! Assim se deve plasmar a própria vida, de tal modo que ante suas partes únicas, tenha-se o mesmo desejo! O do pensamento capital! Apenas no fim será então exposto o ensinamento do eterno retorno de tudo o que já foi, depois de ser plantada, inicialmente, a tendência para criar algo que, sob o brilho do sol desse ensinamento, pode prosperar com cem vezes mais força (NF/FP: KSA 9, II [165], primavera – outono de 1881).

Esse aspecto pode ser confirmando na anotação 4 [75] (KSA 10, novembro de 1882-fevereiro de 1883), onde o além-do-homem é indicado como superabundância da vida. Associado à aparição causada pelo ópio e pela dança dionisíaca, ele não sofre por suas consequências. No mesmo período, o ensinamento é então diretamente relacionado ao pensamento do eterno retorno, este entendido como “reluzente sol ­matutino sobre as últimas catástrofes” (FP: KSA 10, 4 [127], novembro de 1882-fevereiro de 1883) e, desse modo, indicado como princípio consolador para a nova sabedoria ­trágica: (...) “retorno” aprendido – “eu esqueci a miséria”. Aumenta a sua ­piedade. Ele vê que o ensinamento não pode ser suportado. Ápice: a morte divina. Ele inventa o ensinamento do além-do-homem (NF/FP: KSA 10 4 [132], novembro de 1882 – fevereiro de 1883).

Nas anotações do fim da primeira metade de 1882, portanto, ainda no período de formulação de A gaia ciência, o eterno retorno é relacionado à grandeza heroica ­entendida como estágio de preparação (NF/PF: KSA 10 I [70], julho – agosto de 1882). Nessas anotações, é possível constatar um movimento de aproximação entre a compreensão do ­eterno retornar das coisas e a necessidade de um elemento positivo para estabelecer decisivamente o equilíbrio exigido pela nova gravidade. A ideia do além-do-homem surge então relacionada às noções de consolo (Trost) (Ibid, p. 231) e de elevação (NF/ FP: KSA 10 4 [180], novembro de 1882 – fevereiro 1883), enquanto fator que torna suportável o novo ­ensinamento da nova gravidade. Ele é resultado da invenção (Erfindung) e da criação (NF/FP: KSA 10 5 [204], novembro de 1882 – fevereiro 1883), cuja ­fun­ção é servir de opção às consequências da assimilação do eterno retorno do mesmo e da negação da piedade enquanto sentimento positivo. ­Desse modo, como também ­observou Heidegger, podemos constatar que ambos constituem um único ensinamento e são indissociáveis, de modo que se Zaratustra ensina o além-do-homem, ele o faz como preparação para o ensino do eterno retorno do mesmo (Heidegger, 1997, p 276). 130

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Nesses fragmentos, encontram-se ainda três noções fundamentais, que ­relacionadas constituem significativos aspectos a partir dos quais é possível pensar a relação entre os dois ensinamentos: primeiramente, a consideração afirmativa da vida por meio de padrões artísticos. Em segui­da, a referência à vida como criação individual e, por fim, o pressuposto que possibilita os dois primeiros aspectos, o anúncio da morte de Deus (Machado, 1997, p. 47). No aforismo 343, o primeiro do quinto livro posteriormente acrescido A gaia ciência, precisamente aquele a que se segue ao anúncio do eterno retorno e que a­ ntecede ao Assim falava Zaratustra (§ 344), a m ­ orte de Deus é anunciada como “O maior dos acontecimentos recentes” (Das grösste neuere Ereigniss). Ele significa, segundo a ­indicação de Nietzsche, um momento singular na história da Europa, pois se trata para ele do ocaso da moral europeia, muito embora isso seja uma constatação ­restrita, não ­percebida pela grande maioria de seus contemporâneos. A reflexão que se segue realça a amplitude que o autor deseja dar às suas palavras, especificamente quando utiliza o pronome pessoal nós (wir) em sentido específico, sempre relacionado a uma semelhança de interpretações diferentes do mundo. Mesmo nós, adivinhos natos, que esperamos igualmente sobre os montes, colocados entre o hoje e o amanhã e na tensão entre hoje e amanhã, nós primogênitos e prematuros do século vindouro, que percebemos as sombras que necessitam envolver a ­Europa, que já deveriam chegar-nos à vista: então, onde repousa isso, sem participação direta neste ressecamento, antes de tudo sem cuidado ou medo do que representa para nós seu aparecimento? (FW/GC § 343).

Aqueles aos quais Nietzsche se refere são os seus semelhantes, indicados pela qualidade nata. São os “espíritos livres”, os que nesse momento percebem que o antigo Deus está morto e quais são as consequências dessa morte. A nova amplitude evidenciada pela libertação da moral dogmática. Enfim o horizonte nos parece livre novamente, mesmo constatando que ele não e­ steja claro, é permitido finalmente que nossos navios possam sarpar. Toda ousadia frente ao perigo é novamente permitida, todos os acasos daqueles que buscam o conhecimento o são: o mar, nosso mar, repousa novamente aberto diante de nós e talvez nunca tenha havido mar tão hiante (FW/GC § 343).

A morte de Deus é o acontecimento decisivo para que se possa es­tabelecer uma nova compreensão de tudo, do saber, do mundo e, decisivamente, da existência. ­Tratada desde então sob o ponto de vista do distanciamento da dicotomia entre falso e ­verdadeiro, a partir desta constatação, a reflexão pode não apenas admitir outras formas de se v­ oltar para a existência, mas também compreender que a própria relação com ela deve ser 131

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pensada não mais mediante um desejo de determinação. Isso resulta em uma nova concepção de ciência, afastada dos pressupostos tradicionais. De tal maneira a questão “por que ciência?” reconduz a um problema moral: “para que decisivamente moral, se vida, natureza, história, são ‘imorais’?” Não há dúvida alguma, o verídico (Wahrhaftige), em sentido transitório e último, como o pressupõe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo, que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo”, como? Não necessita ele com isso precisamente negar o seu oposto, este mundo, o nosso mundo? Com isso se compreenderá aonde eu quero chegar, precisamente, pois é sempre sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência – que também nós, conhecedores de hoje, nós, os sem-Deus e os antimetafísicos, também ainda tomamos nosso fogo da f­ ogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina… (FW/GC § 344).

Essa nova noção de saber afasta-se da necessidade do fundamento que dera origem à ciência e à lógica, cujo traço indelével pode ser antevisto no conceito de substância (FW/GC § 111) que, visto sob o prisma da tradição metafísico-teológica, está a­ ssociado às ideias de princípio primeiro e de Deus. Isso torna relativos todos os valores e põe à mostra a restrição das tentativas de avaliação absoluta, o que possibilita a compreensão das infinitas possibilidades de consideração da existência promovidas por essa m ­ udança perspectivista. A noção de existência é então ela mesma reavaliada e posta em ­suspenso. Ao pensar nela, Nietzsche não mais o faz pressupondo a possibilidade de uma determinação final e definitiva de seu significado (FW/GC § 1), portanto, reflete sobre ele em completo afastamento da ideia de mundo pensada pela metafísica. Essa temática é apresentada em A gaia ciência, por meio da relação entre sabedoria e manutenção da vida – desse modo não mais com a verdade – e ainda com a p­ erspectiva trágica ampliada pelo riso e pela sabedoria. Não apenas o riso, mas o trágico, com toda a sua sublime desrazão, são os únicos que pertencem aos meios e às necessidades de manutenção - E, Consequentemente! Conse­ quentemente! Consequentemente! OH, vós me compreendeis meus irmãos? Entendeis esta nova lei da v­ azante e da maré? Também nós temos o nosso tempo (FW/GC § 1).

Consideradas essas referências, pode-se compreender que a morte de Deus e a “alegre ciência” se relacionam com uma perspectiva que associa tanto o cômico como o trágico e o épico em sentido não tradicional e com vistas à afirmação de possibilidades, de formas de pensamento não dogmáticas. Ela pressupõe a aceitação da tensão, do conflito e do sofrimento, mas se relaciona com ele de outro modo, não apenas com ­seriedade ou tragicidade, mas também com o audaz riso diante da sua existência. D ­ esse 132

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modo, a discussão e a necessidade metafísica do fundamento passam a ser interpretadas a partir da noção de intencionalidade inerente à existência, entendida como vontade de poder7 e determinantemente atuante na aspiração racional e científica pela verdade e pelo conhecimento. Essa interpretação leva Nietzsche a afirmar o aspecto indefinido da existência e a impossibilidade de sua interpretação definitiva. Eu penso, porém, que atualmente estejamos minimamente afastados da risível imodéstia de querer decretar tudo a partir do nosso ângulo, que apenas a partir dele seja permitido ter perspectivas. O mundo tornou-se para nós mais uma vez “infinito”: enquanto não pudermos repelir a possibilidade que ele encerra infinitas interpretações (FW/GC § 374).

O mundo tornado novamente infinito significa o retorno à ampla compreensão dionisíaca, sinônimo de superabundância de vida (­Ueberfülle des Lebens) (FW/GC § 370) e noção central do ensinamento do eterno retorno e do desejo pela existência como amor fati (ibid., § 276). O além-do-homem é o ensinamento que não apenas torna suportável essa visão da existência, mas a torna desejável. Ele ensina o não se condoer com a compreensão trágica do mundo, pois ele a aceita como a condição própria da e­ xistência (Haase, 1984, p. 236) e então impulsiona o homem à ­criação como forma de suportar a autopiedade e o desejo de fuga do mundo e da vida. Pela aceitação da existência, ele deve ser afastado de todo o idea­lismo moderno, do mesmo modo que de toda crença e anseio por um além do mundo. Antes, deve ser compreendido como princípio a­ firmativo e não como meta (Ziel) pré-estabelecida. Com ele, é ensinada ao indivíduo que anseia se adequar à compreensão do eterno movimento de recorrência da existência a necessidade da autossuperação, entendida como vontade de poder e que por isso deve, a partir da percepção da morte da suprema divindade, tomar para si a responsabilidade e o peso de seu próprio destino. O caráter trágico da existência evidenciado pelo pensamento do eterno retorno do mesmo revela-se tanto nos comentários de Nietzsche a respeito de Zaratustra como também nos fragmentos póstumos. Uma análise desses mostra a relação de complementaridade dos dois ensinamentos. Numa série de fragmentos do outono de 1883, pode-se ler no esboço de um drama de quatro atos, cuja morte de Zaratustra evidencia o caráter trágico: No ato II, chegam os diferentes grupos e trazem os seus presentes. “O que fazeis ?” – perguntam eles –; “Isto foi feito do espírito de Zaratustra”. 7

Aspecto que faz com que Zaratustra profira as seguintes palavras: “Onde eu encontrava vida (­lebendinges), lá eu encontrava vontade de poder; e ainda na vontade do servo, eu encontrava vontade de ser senhor” (Z/Z. Da autosuperação. KSA 3, p. 147/8). 133

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O ensinamento do eterno retorno torna-se primeiramente motivo de riso para a corja, que é fria e sem grande necessidade interior (innere Noth). Primeiramente, o mais comum impulso vital (Lebenstriebe) fornece a sua chancela. Uma grande verdade ganha antes de tudo os homens mais elevados (höchsten Menschen): esse é o ­sofrimento dos verídicos (leiden der Wahrhaftigen). Ato I. Solidão decorrente da vergonha de si: Um ensinamento pronunciado, para o qual ele se sente deveras fraco (ou não suficientemente duro). As tentativas de ­alterá-lo. O solo dos povos escolhidos o ­convidam para a festa da vida. Ato II. Ele permanece incógnito nos festejos. Ele se denuncia ao achar-se honrado demais. Ato III. Feliz ele anuncia o além-do-homem e seu ensinamento. Todos tombam. Ele morre de dor pelo sofrimento que criou, quando a visão o abandona. Festa da morte. “Nós o matamos” – meio-dia e eternidade” (NF/ FP: 10 16 [3]. Outono de 1883).

A ideia do consolo aparece em fragmentos do mesmo período, que enfatizam a dureza do ensinamento fundamental de Zaratustra e a necessidade da mesma carac­ terística para aqueles que aceitam o p ­ ensamento. Nesse contexto, surge a ideia do além-do-homem associada a essa d ­ ureza, assim como a sua concepção como fulcro: […] Quando ele mostrou ao mesmo tempo a verdade do retorno e do além-do-homem, a compaixão o dominou (NF/FP: KSA 10, 16 [54] outono de 1883);8 ­posteriormente: […] Primeiro a legislação. Então, depois disso, foi-lhe dada, através da mesma, a perspectiva da geração do além-do-homem – momento mais horripilante! Zaratustra anuncia o ensinamento do retorno – que agora lhe é suportável pela primeira vez! (FP: KSA 10 16 [86] Outono de 1883).

Esses fragmentos evidenciam a relação entre o pensamento do eterno retorno do mesmo e o ensinamento do além-do-homem como seu princípio atenuante. Este aspecto é pressuposto necessário à ­compreensão do ensinamento primeiro de Zaratustra enquanto saber não científico e contrário à compreensão teológica do mundo (Kaulbach, 1985, p. 34). Como será analisado na seção a seguir, a importância desses direcionamentos é decisiva mesmo na concepção de Assim falava Zaratustra, pois permite que ela possa ser pensada segundo padrões de concepção m ­ usical, o que em Nietzsche está 8

“Tudo adverte (warnt) Zaratustra acerca de continuar a falar: Sinal. Ele é interrompido. Um se mata, outro enlouquece. Disposição de uma divina exuberância artística (Stimmung eines göttlichen ­Übermuths im Künstler) -: é necessário vir à luz. Quando ele mostrou ao mesmo tempo a verdade do retorno e do além-do-homem, a compaixão o dominou.” Haase menciona apenas a última afirmação desse fragmento; de acordo com a perspectiva da presente obra, gostaríamos de acentuar que ambos os ensinamentos de Zaratustra estão relacionados a uma: “Disposição de uma divina exuberância artística”. 134

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associado à figura de Dionísio e a uma perspectiva trágica transposta para a filosofia, o que pode ser constatado desde o seu planejamento inicial como drama, assim como na relação entre as suas partes. O reaparecimento do trágico e do dionisíaco relacionados ao protagonista significa que essas duas concepções, mesmo que de forma outra (­Tevenar, 2013, p 426), são atuantes também na estruturação da obra, sendo esse aspecto relevante para que se compreenda nela a relação entre os ensinamentos proferidos por Zaratustra. O ensinamento do além-do-homem em Zaratustra Segundo a perspectiva da significação da inspiração poética na filo­sofia de Nie­ tzsche, no período de Assim falava Zaratustra pode-se tomar como sugestivas as palavras de Eugen Fink, que afirma que o livro é uma cadeia de discursos simbólicos mantidos em conexão por uma débil fábula (Fink, 1983, p. 76). Esta fábula narra os percalços do protagonista após o seu isolamento voluntário, por dez anos em uma montanha, quando o seu convívio se restringiu apenas aos animais que lhe faziam compa­nhia, uma águia e uma serpente. A narrativa indica que passados os dez anos, o isolamento torna-se-lhe fecundo e ocorre a Zaratustra uma nova consideração da existência, e devido a ela, ele decide retornar aos homens – dos quais ele havia desejosamente se separado -, a fim de lhes comunicar seus novos ensinamentos (Lehre). Ocorrem então movimentos de afastamento e aproximação entre o sábio e os homens, levando a narrativa a se encerrar novamente com a solidão de Zaratustra, como ­evidência da incapacidade do homem moderno em compreender os preceitos do sábio – mesmo os tipos tomados como superiores. Todavia, essa nova solidão de Zaratustra adquire uma nova conotação. Ela significa a autarquia de sua incompatibilidade com a modernidade e a aceitação ­trágica dos perigos da busca por aqueles aptos a assimilar os seus ensinamentos. Visto pela ótica da expressividade que Nietzsche desejou dar a A ­ ssim falava Zaratustra, os acontecimentos ocorridos no decorrer dos capítulos possuem significação secun­ dária em relação aos ensinamentos proferidos. Isso que pode ser constatado já no título da obra, que indica claramente que o mais importante são os discursos de Zaratustra e não as suas vicissitudes. Este aspecto foi também indicado por Heidegger, para quem “para todos” posto no subtítulo significa o direcionamento dos ensinamentos para todo homem na medida em que ele é ele mesmo e assim torna-se digno de pensar; e “ninguém”, todos os curiosos que tem vertigens diante da linguagem meio cantante e meio ­criadora de Zaratustra, que é o pensamento que procura o seu verbo (Heidegger, 2000, p.101). A narrativa, com efeito, não é o principal objeto da análise aqui pro­posta. Ao invés de considerá-la, desejamos insistir na análise da ­concepção de Assim falava Zaratustra como drama e, ao mesmo tempo, como obra filosófica, estruturada com vistas a produ135

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zir no leitor um efeito dramático, que, todavia, visa a comunicar ensinamentos compreen­ didos como decisivos à existência humana. Esse aspecto é determinante no que se r­ efere à interpretação do ensinamento do além-do-homem como contraideal (Müller-Lauter, 1971, p. 118) e ideal estético. Considerando-se o percurso e os direcionamentos assumidos pela filosofia de Nie­ tzsche, Assim falava Zaratustra realiza aquilo que o autor se pergunta se teria podido realizar em O nascimento da tragédia: dar vazão ao seu pensamento filosófico sob a for­ ma de poesia (GT/NT Tentativa de autocrítica § 3). A este respeito, a referência a Assim falava Zaratustra em Tentativa de autocrítica é esclarecedora. Com ela desejamos acentuar que Nietzsche visa claramente mostrar que há afinidades entre O nascimento da tragédia e aquela obra, isto devido um aspecto decisivo: o reaparecimento do dionisíaco (ibid., § 6). Com efeito, Zaratustra, relacionado ao Deus grego, marca o ressurgimento da perspectiva trágica, do mesmo modo que serve de indicação de que a história do ocaso de Zara­tustra é o início de uma tragédia (FW/GC § 342), a qual, como o próprio Nietzsche afirma em 1872, consiste na expressão do caráter terrível da ­existência, mas tornado suportável e mesmo desejável por meio do véu da bela aparência da arte figurativa apolínea. Sendo Assim falava Zaratustra um drama e o protagonista o anunciador do traço dionisíaco da existência posto pelo pensamento do ­eterno retorno, encontramos Nie­ tzsche fazendo uma importante referência a uma das duas noções sob as quais ele estruturou a sua interpretação inicial do trágico. Se naquele momento o apolíneo e o dionisíaco enquanto impulsos artísticos tornam para os gregos o sentimento de terror diante da existência inclemente uma força positiva, as menções posteriores ao dionisíaco e ao trágico trazem consigo o questionamento acerca do apolíneo. A aproximação entre essas duas obras serve de indicação de caminho para a abordagem desta questão. Ela possibilita que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento prepa­ratório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ­ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser tomado como a bela imagem apolínea, posta previamen­te como forma de consolo e meio de suportar do p ­ ensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo. Esses aspectos, com efeito, são pontos que desejamos acentuar em seguida. Neste momento nos limitaremos a mostrar a significação do ensinamento do além-do-homem no plano geral da obra, a fim de evidenciar que em Assim falava Zaratustra ele se faz 136

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presente com a mesma significação de princípio atenuante com a qual está presente nos fragmentos póstumos e que pode ser claramente relacionada com uma perspectiva apolínea da primeira filosofia de Nietzsche. Nesse sentido, é digno de nota ­consideramos a posição central do ensinamento do além-do-homem no prólogo, no qual não há referências ao pensamento do eterno retorno e que, portanto, apresenta aquele ensinamento como primeira imagem. O prólogo é iniciado com a descrição do despertar de Zaratustra e a referência a sua nova compreensão da significação da existência ­humana proferida ao sol matinal: “Tu grande astro! O que seria tua felicidade se tu não tivésseis aqueles que iluminas!” (Z/Z Prólogo § 1). A constatação da significação humana para o sol consiste na p ­ rimeira afirmação da compreensão da mudança perspectivística que se afasta dos princípios tradicionais da filosofia desde Platão, os quais pressupõem precisamente o contrário, a dependência humana de um princípio superior e aferidor de valor (Honneth, 2004, p. 69). A isso se relaciona a própria concepção de Nietzsche do personagem Zaratustra. Segundo ele, o retorno ao sábio persa se deve ao desejo de retornar precisamente ­aquele que primeiro estabeleceu a rígida dicotomia entre bem e mal, da qual o ocidente, tanto na filosofia como na religião, se tornou dependente. Zaratustra é então apresentado como aquele que apresenta traços daquele que deverá buscar rever esta forma de valoração originária e direcionar o homem a novas buscas de sentido. Com isso é evidenciada a primeira diferença entre o Zaratustra de Nietzsche e o sábio da religião persa, que expressa sua sabedoria mediante princípios religiosos que pressupõem a dicotomia entre bem e mal (Spinks, 2003, p. 120), caos e ordem. Nietzsche indica a escolha do personagem precisamente por reconhecer nele a origem da dicotomia bem-mal, a qual então ele deveria subverter (EH/EM Porque escrevo livros tão bons § 1). D ­ iferentemente disso, o Zaratustra nietzscheano deseja voltar a ser homem (Z/Z Prólogo § 1) e p ­ rofere por isso uma sabedoria filosófica, humana em seu sentido pleno, resultado do desejo de fusão do artista criador (Schaffender), do santo amante (­Liebender) e daquele que aspira conhecimento (Erkennender) em um fim prático (NF/FP: KSA 10, 16 [11], Outono de 1883). A sua sabedoria é ­resultado do seu isolamento e da liberdade de seu espírito, que após o seu ­acúmulo, ele então deseja comunicar em sua nova aproximação dos homens, esta marcada pelo desejo de transmutação destes. Esta primeira descrição do prefácio demonstra que a ótica do Zaratustra de Nie­ tzsche não é mais a da dicotomia entre o bem e o mal. Ao buscar afirmar o significado da existência humana, e não mais de valores transcendentes, ele se revela como representante de uma transvaloração de todos os valores (Suffrin, 1988, p. 24), que Nietzsche identifica como necessária no auge da experiência niilista da modernidade e que ele já iniciara com sua filosofia desde o primeiro volume de Humano, demasiadamente h­ umano. 137

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Nesse sentido, a referência ao sol é significativa. Para o ocidente, desde a filosofia platônica o astro é considerado como fonte máxima de valores afirmados como universais, de onde decorrem as noções de bem e a ideia de perfeição moral (virtude) a ser b ­ uscada pelo homem racional. Disso resultou tornar-se ele o símbolo, a imagem que expressa, tanto da ideia de bem moral quanto a de meta última do conhe­cimento. Ou nas p ­ alavras de Sócrates em A República: O que eu vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do cognoscível está a ideia do bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos a conclusão de que é a causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz do mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisa ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria, tanto na vida pública como na particular (Platão. A República, 517 c-d ).

A nova compreensão de Zaratustra expressa no início do prólogo inverte esta relação de significação. Ela refuta a antiga hierarquia metafísica e coloca o homem na posição de centro de gravidade da existência. Sem o homem, o astro não tem significação própria e com a percepção da importância da existência humana, ele se torna até mesmo ­dependente dela. Este aspecto se confirma na cena seguinte, no encontro de Zaratustra com o velho crente na floresta, o qual, se imediatamente não reconhece o viajante, ao fazê-lo percebe nele traços que evidenciam mudanças sofridas desde a sua primeira passagem pelo local, dez anos antes. Trata-se de qualidades que estão ­expressas na pureza do olhar de Zaratustra e no seu caminhar semelhante ao de um dançarino (Z/Z Prólogo § 2). Ambas as qualidades são indicadas em oposição àquilo que ­Zaratustra afirmará em seguida a respeito dos cristãos e outros crentes, adoradores de um pressuposto de verdade superior que cria a falsidade e a esperança em uma outra forma de existência e em um além do mundo que, nesse momento, tem evidenciada a sua periculosidade. O velho ­santo é a evidência do descaminho a que é remetido o homem que crê nestes valores. Ele não tem ensinamentos e não se dirige aos homens (Fink, 1983, p. 72). Direcionou a sua existência unicamente a valores transcenden­tes, necessariamente apartados da terra e do mundo dos homens, considerados então como negativos em contraposição à positividade divina. Zaratustra se coloca em oposição a essa interpretação, assim como ao responsável pela sua manutenção, que ele denomina de espírito de gravidade (Geist der Schwere).9 Considerando-a negativa, ele visa a ensinar o seu 9

Precisamente o princípio que impede que todas as coisas ascendam, tornando-as pesadas e prendendo-as fixamente a terra. Mesmo se considerado que o retorno à terra é um dos ensinamentos de Zaratustra, uma redução desse movimento a essa finalidade o tornaria restritivo. A noção de sentido da terra comporta tanto uma crítica da ontologia metafísica e da desvalorização da vida mundana, como uma crítica do reducionismo da vida a apenas alguns pequenos desejos e satisfações 138

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abandono e assim afirmar o seu amor pelos homens e a c­ ompreensão da morte de Deus (Z/Z Prólogo § 2).10 Esses aspectos consistem em pressupostos para o anúncio do ensinamento do além-do-homem, que Zaratustra profere no prosseguir da narrativa, tão logo chega à cidade próxima a montanha onde encontrara o velho santo. Na cena, o povo e­ ncontra-se reunido na praça do mercado esperando pela apresentação de um equilibrista, m ­ omento no qual Zaratustra se dirige a todos e se refere pela primeira vez ao além-do-homem: Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa mar dessa grande maré cheia e retroceder desejosamente ao animal, em vez de superar o homem?

É necessário observar que essas são as primeiras palavras de Zaratustra, proferidas imediatamente após sua chegada à cidade e ao encontro com a multidão, o que e­ videncia a importância do ensinamento do além-do-homem, pois é por meio dele que Z ­ aratustra se apresenta aos homens após o seu longo retiro. Dois termos são empregados significati­ vamente nesse enunciado, os quais, inseridos no movimento filosófico empreendido por Nietzsche até este momento, apresentam significativa importância. Primeiramente a noção de dever da superação (­Überwindung) do homem, indicada pelo emprego do verbo modal sollen (dever), que implica uma exigência não absoluta,11 assim como o traço de ­seletividade do ensinamento. Partindo-se disso, pode-se afirmar que a ­superação da qual Zaratustra fala dirige-se ao homem atual e que ela é o próprio princípio motor do ensinamento (Fleischer, 1993, p. 67), pois a inexistên­cia do anseio por algo superior ao homem confronta este com o perigo de uma regressão à animalidade e de uma su(Z/Z Prefácio § 4). O sentido da terra significa de forma inerente a capacidade de projetar-se para além de si, que, segundo Nietzsche, caracteriza o homem, todavia de forma afirmativa e não depreciativa, como a transcendência metafísica r­ eligiosa. Isso consistiria na vitória do espírito de g­ ravidade e, portanto, na confirmação do último homem como forma última de existência humana. Em última análise, a vitória dos valores não autoafirmativos (Nabais, 2007, p. 134). 10 Com respeito ao significado da morte de Deus para a consideração do e­ xperimento estilístico de Nietzsche em Assim falava Zaratustra, desejamos relacionar duas perspectivas: primeiramente a de Pierre Suffrin, para quem a morte de Deus faz retornar novas possibilidades de construção (1988, p. 35). Essa noção, quando transposta para o campo das formas de expressão, parece ser possível de ser relacionada com a análise de Bindschedler, que considera a morte de Deus segundo o traço poético de Zaratustra, o qual, por sua vez, decorre da negação da moral e de sua dicotomia entre verdade e mentira. Segundo a autora, a morte de Deus, que nada mais seria para Nietzsche que uma imagem poética, significa o apagar da luz com a qual a humanidade tinha mantido o quadro de sua crença na sua verdade. Se Deus era, portanto, apenas uma imagem poética, são também os poetas de uma nova poesia, que não acreditam mais na “verdade” que o matam (1966, p. 66). 11 Diferentemente do que pressuporia a utilização do modal “müssen”. Conferir a respeito NF/FP: KSA 10, 4 [43], 10. Novembro de 1882 – Fevereiro de 1883. 139

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pressão de possiblidades. A significação específica dessas duas noções é dada na passagem seguinte: Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, mas em vós há ainda muito do verme. Primeiramente fostes macacos e ainda agora, o homem é mais macaco do que qualquer macaco. (Z/Z Prólogo § 3)

O traço negativo da animalidade no homem é justamente não possi­bilitar a plena humanidade, expressa na capacidade humana de elevar-se por meio da sua força plástica (Z/Z I Do caminho do criador). O além-do-homem é o ensinamento que visa a superar esta restrição na qual o homem moderno, diante da descrença perante seus antigos e absolutos ideais, vê-se adstrito. A mensagem que o ensinamento contém não é, todavia, a da necessidade de um retorno, mas a da reafirmação da criação, da capacidade humana que deve suplantar a bruta animalidade. Assim sendo, essa não é negada, mas necessita ser superada com vistas a suscitar sempre novas possibilidades criativas, pois o dizer sim a tudo ensinado por Zaratustra torna-se pleno apenas na afirmação do querer (Müller-Lauter, 1971, p. 141). A referência à criação de algo superior, porém, necessita ser diferenciada do anseio ultramundano. No caso do ensinamento de Zaratustra, ele não implica a desvalorização da existência humana ou do mundo; contrariamente a isso, ele os afirma a partir da elevação do homem e de sua existência, e assim desvincula-se de qualquer crença em um além do mundo (Suffrin, 1988, p. 56), efeito primeiro do enfraquecimento da significação da existência humana: Vede eu vos ensino o além-do-homem! O além-do-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: “o além-do-homem seja o sentido da terra!” Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acreditais nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Eles são misturadores de veneno, que o saibam ou não. Desprezadores da vida são eles, e moribundos, envenenados por seu próprio veneno, dos quais a terra está cansada: Portanto, que eles logo partam!

O abandono de qualquer especulação que visa a ultrapassar a própria existência compreendida como percepção e vida decorre da negação de toda perspectiva de hierarquização dessa a partir de valores não imanentes ao mundo, aspecto que se revela incisivamente no anúncio da morte de Deus. Inicialmente, era o delito contra Deus o maior dos delitos; mas Deus morreu e, assim, morreram também esses delinquentes. O mais terrível, agora, é delinquir contra a terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável que ao sentido da terra! (Z/Z Prólogo § 3). 140

o além-do-homem enquanto ideal estético

A afirmação da morte de Deus inverte a escala de valores que nele se susta e indica novas possibilidades para a existência, pois com aquela se encerra a fundamentação no absoluto, entendida como expressão de uma estimativa de valor que, em última instância, evidencia-se então como perspectivista. Com a morte de Deus, Zaratustra busca efetuar não apenas a refutação das antigas valorações morais, mas propõe o abandono do absoluto dos antigos valores em favor da redescoberta das posi­tividades afirmativas e criadoras da vida e de suas possibilidades. Isso não pode ser feito segundo os pressupostos tradicionais dos pensamentos metafísico e religioso, que remeteriam a novas aspirações de correção e melhoramento do mundo enquanto promessa de um plácido viver. Valo­rizar a terra tal como Zaratustra menciona, significa aceitá-la na ­amplitude espantosa de suas possibilidades e, com isso, afirmá-la i­ncondicionalmente, mesmo os seus perigos e desafios, o que repercute em uma necessidade incondicional de redimensionar a expectação de felicidade do antigo anseio. A hora em que dizeis: “o que me importa a minha felicidade! É miséria, sujeira e mesquinha satisfação. Mas a minha felicidade deveria justificar a existência mesma!” (Z/Z Prólogo § 3).

O ensinamento do além-do-homem consiste então primeiramente em um ­aspecto do princípio de revalorização incondicional e afirmativo da vida, pressuposto na s­ abedoria de Zaratustra. Ele deve funcionar para os homens como um princípio motivador do anseio pela elevação da vida e de suas possibilidades, que assim busca motivar o amor pela existência e o anseio pelo ultrapassamento dos estados básicos que constituem a mera animalidade e, desse modo, a aspirar pelas possibilidades mais elevadas que a sua humanidade pode possuir. O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo. Um perigoso transpor, um perigoso estar a caminho, um perigoso olhar para trás, tremer e parar. O que há de grande no homem é ser ponte e não meta: o que pode amar-se no homem é uma transição e um ocaso (Z/Z Prólogo § 4).

O além-do-homem comporta então dois fatores aparentemente contraditórios: a valorização e o desejo de afirmação da vida vivida e, ao mesmo tempo, o próprio colocar-se em risco implícito na busca pela autossuperação. Esses dois traços conciliam-se como aspectos indissociáveis da aceitação incondicional da vida posta pelo ­ensinamento do eterno retorno e, portanto, pelo do além-do-homem. O ensinamento do além-do-homem significa a afirmação incondicional da existência humana criadora, que com a sua proposição ­denuncia toda consideração metafísico141

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-religiosa com aspiração à fixidez como uma forma de enfraquecimento (Fink, 1983, p. 71) e restrição da vida. Por intermédio dele e em sua contraposição ao último-homem, o homem que aspira a estágios mais elevados recebe uma nova atribuição de valor, aferida pelas novas e ilimitadas possibilidades que advém do e­ nsinamento. Ele passa a ser considerado pela sua capacidade de almejar e lançar-se à busca das r­ealizações desse anseio. A noção de anseio pela elevação, pela autossuperação, é então traço decisivo à compreensão do ensinamento e do efeito motivador que ele visa a suscitar, com vistas a reafirmar o valor da vida e do mundo pensado então como vontade de poder (Müller-Lauter, 1871, p. 127). Amo aqueles que não sabem viver senão como os que sucumbem, porque são aqueles que transpõem. Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do anseio pela outra margem. Amo aqueles que não procuram primeiro um motivo atrás das estrelas para se ­sacrificar e sucumbir, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se torne o além-do-homem (Z/Z Prólogo § 4).

É por esse motivo que o além-do-homem, apartado de toda justificativa idealista, não é uma revelação, mas sim um ensinamento ­inaudito na modernidade (Heidegger, 2000, p. 105).12 Esse traço fica claro na continuidade da narrativa do prólogo. Após o anúncio feito por Zaratustra, a reação do povo reunido é o motejar, justamente o que leva ­Zaratus­tra a compreender a extemporaneidade de seu ensinamento (Z/Z Prólogo § 5): “Necessita-se primeiro partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir com os olhos? Necessita-se retumbar como tambores e pregado­res penitentes? Ou acreditarão somente em balbuciantes?” O ouvir, n ­ esse caso, significa metaforicamente a força da cultura e da influência da religião como obstáculo à visão clara do mundo; daí Z ­ aratustra dizer que o que impede a compreensão do povo é justamente a sua Formação (Bildung), da qual a multidão se orgulha. O ensinamento do além-do-homem é, desse modo, claramente caracterizado como inatual e ainda como oposto ao momento em que é anunciado (NF/FP: KSA 10, 5 [1] 250. Novembro 1882 – Fevereiro 1883), aspecto que será indicado por Zaratustra em sua segunda tentativa de expor esse primeiro ensinamento.

12

Com respeito à interpretação de Heidegger, vale lembrar a observação de Gerard Lebrun (1978, p. 45-6), segundo a qual Heidegger é cônscio de que Nietzsche não acredita em uma evolução da humanidade e nem na chegada de uma classe universal, antes, mesmo a superação de um tipo particular por um tipo que ­possibilita ao ser humano se reconhecer nele, esse tipo, com efeito, deve ser separado do ideal de dominação humanista, herdeiro do esclarecimento, o que o torna, ­portanto, uma outra variante da mitologia do progresso. 142

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Diante de seu fracasso inicial,13 baseado no desprezo pelo presente em favor de um futuro terreno, Zaratustra profere um novo discurso, com o qual ele visa a alcançar os espectadores mediante o remetimento ao sentimento de orgulho pelo além-do-homem. Ele reinicia a sua pregação, fazendo referência precisamente àquilo que dá sentido a esse e­ nsinamento: as possibilidades humanas e o perigo que paira sobre elas. É tempo de o homem fincar a sua meta. É tempo de o homem plantar a semente da sua mais alta esperança. Seu solo ainda é suficiente rico para isso. Mas logo esse solo estará po­bre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele. Dor! Chega o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio para além-do-homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar!

O efeito primeiro da depreciação das possibilidades humanas de ansiar por estados sempre mais afirmativos de si mesmos é denominado por Zaratustra como o último homem (der letzte Mensch), imediatamente aquele que desconhece e se embaraça ­diante de noções elevadas como amor, criação (Schöpfung), anseio (Sehnsucht) e estrela (Stern). Ele é a­ quele que a tudo apequena, que prolifera com grande rapidez e que tem a vida mais longa, mas que, antes de tudo, é não criador, pobre em ­possibilidades e, centrado na medida (Fleischer, 1993, p. 68), busca nivelar tudo aos seus padrões, não aceitando qualquer outra possibilidade para a existência humana.14 Com a expressão último homem, Nietzsche visa a denominar o homem e os modos de considerar de seu tempo (Machado, 1997, p. 53), sentido que é reforçado no prólogo, com a interrupção ­abrupta do discurso de Zaratustra pelos gritos da multidão pedindo justamente pelo último homem.15 A cena que se segue é a simbólica interpretação dos traços determinantes da modernidade niilista, tais como Nietzsche os lê, e contra os quais foi proferido o ensinamento do além-do-homem. Imediatamente após a tristeza suscitada em Zaratustra pela recusa de seu ensinamento, surge o anunciado equilibrista de cordas (Seiltänzer), o principal motivo da reunião do povo na praça. A isso de segue o seu equilibrar-se entre as torres e, sob a praça na qual se encontra o povo reunido (Z/Z Prólogo § 6), o surgimento do farsista (Possenreisser), que pulando pela corda profere as seguintes palavras: 13

Suffrin (1988, p. 86) comenta que o fracasso do primeiro discurso de Zaratustra decorre do comprometimento dos ouvintes com a tradição moral e seus valores, o que os impede de compreender o ensinamento do além-do-homem e, pelo contrário, ainda se voltarem em favor do “Último Homem”. 14 “Nenhum pastor é um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro modo, vai voluntário para o manicômio” (Z/Z § Prólogo § 5). 15 Z. Prólogo § 5. Ou seja, aqueles que, diferentemente dos criadores, não aspiram por nenhuma vontade criadora ou autoafirmação, mas pela vontade negativa, pelo niilismo. Cf. Suffrin (1988, p. 71). 143

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“Em frente, coxo”, dizia a sua voz apavorante, em frente, moleirão, tratante, cara pálida! Para que eu não te comiche com o meu calcanhar! Que fazes aqui entre as torres? Dentro da torre é o teu lugar! Deveriam trancar-te lá, pois impedes a livre passagem de alguém melhor do que tu!” (ibid.).

A cada palavra, descreve Nietzsche, o farsista aproximava-se mais do primeiro equilibrista, até que, quando se encontra a apenas um passo atrás dele, fez uma coisa espantosa, que fez todas as bocas se calarem e os olhos arregalarem-se: Soltou um grito diabólico e acometeu por sobre o outro, fazendo-o cair, justamente aos pés de Zaratustra, o único a permanecer em seu lugar. Ferido e com os ossos partidos, o moribundo ainda direciona a seguinte pergunta a Zaratustra: “Eu sabia já há muito que o Diabo me daria uma rasteira. Agora, ele me arrasta para o inferno; queres impedi-lo?” (ibid.). A resposta dada por Zaratustra revela um dos traços mais significativos da sabedoria que o anima, do mesmo modo que o conforto que ela visa a proporcionar. “Não existe o diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo; não temas mais nada! (…) Nada mais”, falava Zaratustra, “fizeste do perigo o teu ofício, nisso não há nada de desprezível. Agora morres, vítima do teu ofício; por isso, quero sepultar-te com minhas mãos” (Z/Z Prólogo § 6).

O significado dessa cena, descrita em uma dinâmica que relaciona a delicadeza e a significativa tensão do equilíbrio do trapezista ao caráter alegórico e mórbido do farsista, contém dois aspectos imprescindíveis para a compreensão dos fatores que acompanham e dão significação ao além-do-homem: a) primeiramente a caracterização de Zaratustra como o contraditor da moral polarizada entre bem e mal, da moral judaico-cristã, posta desde já como depreciadora da vida. Em segundo lugar, b) a c­ aracterização clara da existência como restrita ao eterno risco da ­queda e que, todavia, precisamente no perigo, obtém a sua justificação. O trapezista ­representa o homem que aspira, que deseja, que objetiva algo além que a p ­ assividade da multidão. Ele é aquele que se esforça por ­alcançar o outro lado da linha.16 c) O terceiro e último ponto a ser mencionado é o conteúdo das palavras finais de Zaratustra, que antes de se constituir em uma ­mensagem de de­salento, comunica ao moribundo um elogio e um estímulo. Na sua ousadia, Z ­ aratustra interpreta um símbolo do desejo de elevação e de afirmação da vida – mesmo com todos os seus perigos, ausência de garantias e do ocaso certo – que ele deseja ensinar, mesmo que para um moribundo.17 16

O trapezista, pelo seu próprio ofício já se diferencia do “último Homem”; aquele que tem os seus pequenos prazeres para o dia, outros para a noite e que venera a saúde. Cf. Z § 5, p. 19. 17 Como se verá em seguida, esse traço possui grande significação quando relacionado ao p ­ ensamento do eterno retorno do mesmo: a vida sob o signo da d ­ estruição implica também na autossuperação e criação, precisamente aquilo que impede que a existência estagne e se restrinja às valorações do 144

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A gravidade por si só deve ser entendida a partir da dificuldade dos movimentos e dos perigos do ofício do equilibrista. Ela simboliza a própria existência humana, mencionada então como tênue e sem qualquer sentido, a ponto mesmo de um farsista tornar-se fatal para ela (Z/Z Prólogo § 7). O farsista colorido, a personificação do ­espírito de ­gravidade (Machado, 1997, p. 59), mesmo fantasiado de forma burlesca denota um acerbar da gravidade, a exigência da queda e da fixidez. Ele é aquele que, tornando mais difícil e perigosa a vida do equilibrista, i­ncitando-o à queda. Assim ele se torna não só o motivo da precoce decaída do homem (Z/Z I Do ler e do escrever), mas também da desistência do último-homem diante de toda possibilidade e de desejo de anseio e de elevação. Após a não compreensão de seus discursos pelo povo e ainda o seu clamor pelo último-homem, o sétimo tópico do prólogo descreve o final do primeiro dia do ocaso de Zaratustra. Após o anúncio e a rejeição do ensinamento do além-do-homem, ele se encontra em meio à escuridão, sentado ao lado do cadáver do equilibrista, prematuramente morto pelo espírito de gravidade e que, nesse estado, nada mais pode ansiar. Imerso em suas reflexões, Zaratustra reafirma o traço de ultrapassamento contido no seu primeiro ensinamento,18 ao mesmo tempo que a sua caracte­rização como criação humana ao dizer: “Eu quero ensinar aos homens o sentido do seu Ser: que é o além-do-homem, o raio que irrompe da negra nuvem chamada homem” (Z/Z Prólogo § 7). A chegada do frio noturno e a constatação da impossibilidade de ser imediatamente compreendido faz com que Zaratustra se decida por enterrar o cadáver de seu único companheiro, instante no qual, se aproxima dele o farsista da torre, que declarando-se seu inimigo, afirma o perigo de morte que pesa sobre o sábio, caso ele deseje permanecer na cidade. Vai embora desta cidade, oh Zaratustra, dizia ele; demasiados são os que aqui te odeiam. Te odeiam os bons e os justos, e chamam-te de seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da crença correta (­Gläubigen des rechten Glaubens), e chamam-te um perigo para a multidão. A tua sorte foi que riram de ti; e, em verdade falaste como um f­ arsista. A tua sorte foi que te colocaste com esse cão morto, ao rebaixar-te assim, salvaste-te, por hoje. Mas vai-te embora imediatamente desta cidade - ou amanhã eu pulo por cima de ti, um vivo por sobre um morto (Z/Z Prólogo § 8).

Esse trecho demarca decisivamente a relação de oposição entre o espírito de gravi­ dade, a moral fundada na fé que, devido à percepção da morte de Deus, se torna n ­ iiista espírito de gravidade. A r­ espeito conferir Barrack (1974, p. 124). Para Heidegger (1997, p. 273) o Übermensch não é um ideal suprassensível, do mesmo modo que também não “é uma pessoa que em algum momento ou em algum lugar se apresentará. Ele é como a mais alta subjetividade da subjetividade concluída, o puro potente (Machten) da vontade de poder”.

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e a oposição de Zaratustra com respeito a ambas. Zaratustra é o inimigo dos bons e justos dentre a multidão, aquela que é incapaz de compreender o ensinamento do além-do-homem e o seu significado. A passagem seguinte, a descrição do encontro de Za­ ratustra com os coveiros na porta da cidade, é a confirmação dessa oposição. Os coveiros são aqueles cujo ofício é precisamente o de estabelecer uma última, única e final forma de relacionamento do corpo imóvel com o mundo. Na cena eles ­encontram-se relacionados com a morte e, ao mesmo tempo, com uma certa noção de pureza estabelecida por eles e incompatível com o bocado de carne do cadáver (Braten). Os coveiros têm o seu elo com a moral da antiga gravidade, cuja noção de pureza desqualifica tanto o corpo quanto o mundo, aspecto indicado pela sua referência ao diabo, símbolo negativo, referido no gracejo feito pelos coveiros, segundo o qual: “Acaso Zaratustra pretende roubar do diabo o bocado que lhe cabe?” (Z/Z Prólogo § 8). A nona parte do prefácio marca o fim dos cuidados de Zaratustra com o morto, o seu despertar após uma noite passada na floresta e a descoberta de uma nova verdade que ele comunica ao seu próprio ­coração. Tal verdade consiste no direcionamento decisivo que ele deseja dar à sua sabedoria, a ser transmitida aos vivos e apenas àqueles que desejem assumir a responsabilidade da própria existência. Porém, preciso de companheiros vivos, que me sigam porque querem seguir-se a si mesmos – e para lá onde eu quero. Uma luz veio sobre mim: não para o povo fala Zaratustra, mas para companheiros! Zaratustra não deve se tornar cão e pastor de rebanho! Atrair muitos para fora do rebanho - para isso eu vim. Zangados devem estar comigo o povo e o rebanho: ‘ladrão’, quer chamar-se Zaratustra para os pastores. Pastores digo eu, aqueles que se dizem bons e justos. Pastores, digo eu, mas eles se dizem crentes da fé correta (Z/Z Prólogo § 9).

Essa passagem revela o traço seletivo dos ensinamentos de Zaratustra, posto ­agora como criador, do mesmo modo que a oposição que ele decisivamente estabelece para com todos os crentes e crenças afirmadas como absolutas, aspecto possibilitado pela morte de Deus e que visa a afirmar, a partir de então, novas possibilidades de criação, pois segundo Zaratustra: O destruidor das tábuas de valores (der zerbricht ihre Tafeln der Werthe), o criminoso, é o criador (Schaffender). Criação significa a superação da antiga gravidade e, desse modo, a possibilidade de uma nova hierarquia de significações e do novo, indicada para o homem através da individualidade criadora.

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Companheiros, procurem o criador, e não cadáveres; nem, tampouco, rebanhos e c­ rentes. Participantes da criação, procurem o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas. (…) Aos que criam quero eu me unir, aos que colhem, que festejam; quero mostrar-lhes o arco íris e todas as escadas do além-do-homem (Z/Z Prólogo § 9).

O ensinamento do além-do-homem justifica-se, portanto, não pela possibilidade de realização ( Julião, 2007, p. 86), mas por aquilo que fomenta e possibilita seu remeti­ mento a estados superiores não determinados e postos como possibilidades. Daí Zaratustra indicar, no final do nono tópico, que sua canção é feita para os solitários ou em solidão a dois, “aqueles que têm ouvidos para o inaudito” (Z/Z Prólogo § 8). Nas partes subsequentes de Assim falava Zaratustra, o além-do-homem é mencionado em várias passagens, tanto direta quanto indireta­mente. Entretanto, em nenhuma delas a noção tem a mesma ênfase que no prólogo. Isso não deve ser entendido como um afastamento gradual do ensinamento no interior do livro, mas como um dado estrutural do mesmo que, concebido como drama, visa a transmitir um Pathos trágico. Assim, se o ensinamento do além-do-homem é proferido ­enfaticamente no início de Assim falava Zaratustra, isso se deve ao fato de que ele é a preparação para o anúncio do ensinamento capital da obra, o do eterno retornar de todas as coisas, o que lhe evidencia o traço antecipatório com respeito àquele. Efeito estético e idealidade épica Os aspectos a serem aqui apresentados e explorados com vistas a uma interpretação estética do ensinamento do além-do-homem, para o que a argumentação anterior visou a fornecer os pressupostos, são: a) primeiramente, o afastamento efetuado por Nietzsche desde os seus primeiros escritos de quaisquer noções de fundamento e, portanto, de verda­de, no sentido que esses termos vieram a adquirir para a tradição fi ­ losófica e metafísica ocidental. Isso pressupõe, no que diz respeito às referências elucidativas a Zaratustra nos escritos posteriores, uma reconsideração do movimento argumentativo do autor com respeito a essa obra. Mesmo que isso também signifique um ­afastamento crítico com respeito a posicionamentos de O nascimento da tragédia, o estudo dos fragmentos póstumos trás à luz uma nova gama de importantes referências a algumas concepções deste escrito, neste segundo momento; porém, mais próximas dos posicionamentos teóricos do autor na década de oitenta, tais como o filosofar histórico, antimetafísico por excelência, e a compreensão da atuação estético-metafórica da razão humana. Com isso, chega-se ao segundo aspecto, decisivo e cuja análise foi empreendida nas partes ante­riores: b) A crítica nietzscheana às possibilidades de transmissão definitiva de qualquer espécie de discurso, a partir da indicação das limitações e arbi147

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trariedades das línguas e gramáticas;19 posicionamento justificado por ele como forma de afastamento das aspirações e crenças conceituais e epistemológicas da filosofia racio­ nalista-metafísica (Machado, 1997, p. 17). Esses aspectos possuem ampla importância quando relacionados à autoconsideração do autor como o mais oculto dos obscuros, do mesmo modo que na construção do labirinto argumentativo por meio do qual N ­ ietzsche desejava selecionar o seu leitor (M/A Prólogo § 5). Esses dois pontos possibilitam analisar a forma de comunicação dos pensamentos nucleares de Nietzsche por meio da fala poé­tica e da inspiração musical de Zaratustra, aproximando-a da elevada consideração alemã da idealidade dos gregos, mas que, ao mesmo tempo, o distanciam dela, devido a sua indicação crítica da sua moralização. O afastamento do racionalismo e da metafísica, a compreensão da i­ mpossibilidade de justificação do saber segundo pressupostos próprios, remete Nietzsche à formulação de uma concepção de filosofia fundada nos princípios da interpretação e da criação, que acabam por aproximá-la da arte. Trata-se de uma filosofia isenta de determinismos, sejam eles in­terpretativos ou conceituais. Esse posicionamento é, todavia, entendido por ele como elevada concepção de cientificidade, que surge e se eleva por meio da compreensão filosófica da fragilidade da moral do conceito metafísico de ­conhecimento e da sua aspiração por uma verdade final acerca do existente. A filosofia – e esse é o traço que se deseja aqui significativamente ressaltar –, indissociável do rigor científico em sentido imanentista, pode com isso ser aproximada decisivamente da experiência estéti­ca da arte e ainda assim justificar-se como tal, a partir da evidência da justificação unica­mente moral da verdade absoluta. Não existe uma relação essencial entre valor e coisa. Todas as relações dessa natureza se deixam reduzir a atitudes metafóricas que, em última análise, são então interpretadas como estéticas. A história e a psicofisiologia da história – ou seja, a compreensão dos processos metafóricos de simplificação de onde se ­origi­na a própria história e as demais formas de compreensão humanas – demonstram a necessidade da superação da ontologia e a evidência do perspectivismo (FW/GC § 242). Assim sendo, a filosofia em Nietzsche não busca e até mesmo não pode mais se j­ustificar por meio de verdades axiomáticas, mas busca fazê-lo por meio da compreensão da potencialidade de uma certa espécie de efeito estético que, em última análise, é um dos fins últimos da arte (FW/GC § 78). Visando a ser afirmativo para então ser “verdadeiro”, Nietzsche não descarta, mas reformula a noção de verdade, confrontando-a à ideia de probidade intelectual e reti19

Nietzsche escreve em um fragmento de 1882: “O inteligível na linguagem não é a palavra mesma, porém o tom, força, modulação, tempo, com a qual uma s­ equência de palavras é proferida – imediatamente a música atrás das palavras, as paixões atrás da música, a pessoa atrás dessas paixões: portanto, tudo que não pode ser escrito. Por causa disso ele não tem nada a ver com literalidade.” NF/ FP: KSA 10 3 [1] 296. Verão – outono de 1882. 148

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rando-lhe o acento metafísico. Com isso, é por ele mobilizada a noção de veracidade (wahrhaftigkeit) (NF/FP: KSA 12, 5[71] 2, verão de 1886 outono de 1887), enquanto produto tardio da própria verdade (Müller – Lauter, 1871, p. 97), que então perece junto com a divindade absoluta. A filosofia de Zaratustra, enquanto ­coroamento de um amplo processo de introspecção criativa, representa o levar às úl­timas consequências o anseio pela verdade, que acaba por inviabilizar a noção tradicional dessa, estabelecida pelo racionalismo e pela metafísica. Disso resulta a necessidade de um outro posicionamento filosófico, que compreende, a partir da constatação da derrocada dos princípios originários e fundantes da metafísica, a impossibilidade e a inexistência ­efeti­va da verdade em si e então precisa aceitar a veracidade como limite interpretativo do homem (NF/FP: KSA 13, 14[168], primavera de 1888). Apartada da metafísica, a veracidade não necessita ser compreendida como referente à verdade tradicional, mas sim ser entendida como ­limite interpretativo do homem, em sua relação com um mundo, então compreendido como desconhecido (ibid.). Contudo, a noção de veracidade não significa o fim da aspiração pelo conhecimento. O que se altera é apenas a relação do homen do conhecimento (Wissender) para com ambos. A partir disso, ele pode até mesmo ­continuar a ambicionar a ­universalidade, pois no mundo regido pela vontade de poder essa aspira­ção é até mesmo irrefreável. A probidade intelectual descortina a impossibilidade ­dessa pretensão tirânica e então remete o filosofar a um exteriorizar interpretativo da individualidade em sua relação com o mundo. Na elaboração do pensamento de Nie­tzsche, tais posicionamentos teóricos podem redundar em um perspectivismo argumentativo, aproximado da arte e indicador de sentido, no qual são valorizados o experi­mento e a criação, entendidos como forma de valorização estética da própria ciência, pois conferem uma nova e enigmática beleza ao mundo (FW/GC § 339). Com Assim falava Zaratustra, Nietzsche visa comunicar uma espécie de pathos artístico fundamental, que ele então denomina, n ­ ovamente, de trágico. Esse é n ­ ecessário para que se compreenda a aventura que se torna o conhecer livre do domínio moral. Antes de pensar como os fi­lósofos herdeiros do legado platônico, segundo o qual o conhecimento levaria à justiça e ao bem, Nietzsche concebe o desejo de conhecer como uma difícil e arriscada empreitada, que para ele não possui quer um fim, quer qualquer garantia de benefício para o homem (FW/GC § 309). A única vantagem que pode advir dela deve ser interpretada sob a égide da experiência estética, advinda do maravilhamento diante de um mundo tornado desconhecido e não previsível, mas que, desse modo, tornou-se perigoso, incerto e indeterminável. Para suportá-lo - e mesmo para desejá-lo - é necessária a visão audaz (FW/GC § 324), trágica (FW/GC § 342), que afere beleza a tal perigo. 149

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Deseja-se aqui relacionar o renascimento do pensamento trágico na filosofia de Nietzsche com a indicação da possibilidade de renascimento da arte, presente no penúltimo aforismo de Aurora. Para isso, é n ­ ecessário ainda pressupor a crítica dos pressupostos da arte moderna realizada em Humano, demasiado humano. Partindo-se do ponto de vista de que esses constituem aspectos imprescindíveis à consideração da importância do discurso poético em A gaia ciência – enquanto livro que anuncia tanto o pensamento do eterno retorno como Zaratustra – pode-se encontrar nos escritos de Nietzsche inúmeras passagens, segundo as quais a arte constitui a forma prioritária de oposição ao niilismo cultural e teórico. Tal ponto de vista permite também compreender a filosofia de Nietzsche enquanto esforço interpretativo que associa rigor com experimentação de novas possibilidades de análise da efetividade. O trágico mostra-se então como um aspecto chave para que se compreenda a asso­ciação dos traços científico e artístico na filosofia de Nietzsche, assim como para que se possa circunscrever a nova significação da idealidade em seu interior. Isso se deixa evidenciar na referência posterior, então no quinto livro acrescido posteriormente A gaia ciência, mais precisamente no penúltimo aforismo (§ 382), já anteriormente mencionado. Nesse, Nietzsche indica pressupostos para a compreensão da significação trágica de sua filosofia, precisamente a descoberta e conquista do ideal (EH/EH Z/Z § 2), mas sobrepõe que é necessário compreender o seu novo estatuto. A gaia ciência indica o renascimento da concepção trágica do m ­ undo e a integração do dionisíaco à filosofia. O primeiro aspecto consiste em uma concepção artística, que ressurge associada à nova perspectiva científica europeia do século XVIII (Thadden, 1993, p. 47), mas que Nie­tzsche então associa à arte, a partir de sua compreensão do goro da metafísica em sua pretensão de correção do mundo. O trágico daí advém. Ele significa a aceitação incondicional da vida tomada como algo ­indeterminável e desconhecido e tal afirmação diz respeito mesmo aos seus mais duros e estranhos problemas (NF/FP: KSA13, 24 [1] § 9, outubro – novembro de 1888). Na obra de Nietzsche, as menções ao trágico e ao dionisíaco remetem imediatamente à questão de sua concepção, decisivamente no que se refere à interpretação de ambos presente em O nascimento da tragédia. Tanto nos escritos tardios como nos póstumos, como Ecce homo e Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche é enfático na diferenciação de suas concepções das por ele a­ tribuídas aos gregos. O que ele transpõe para a filosofia não é mais a pretensão de restabelecimento, nem do trágico, nem do dionisíaco, mas a importância e o efeito de perspectivas vitais, fundamentalmente não socráticas e, portanto, não metafísicas. O trágico e o dionisíaco em Nietzsche não são gregos, eles tornaram-se filosóficos e isso significa em sua filosofia princípios vitais em sentido amplo. A ­função de ambos é dupla e ambígua. Ao mesmo tempo em que podem servir de princípios de aceitação da existência, eles 150

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implicam a indicação do p ­ erigo da busca pelo conhecimento. Por esse motivo, a arte se faz novamente necessária, para restabelecer a dinâmica de forças indispensável ao homem para continuar a viver e a desejar viver. Precisamente essa relação parece ser o motivo da não necessidade de Nietzsche de enfaticamente mencionar o apolíneo, pois o dionisíaco ao qual Nietzsche se refere, parece trazer ainda consigo a reconciliação indicada em O nascimento da tragédia e que o faz poder produzir a b ­ eleza, mesmo diante da insuperável compreensão trágica do m ­ undo. Partindo-se deste ponto, é possível aproximar a compreensão do ensinamento do além-do-homem como o traço apolíneo inerente à filosofia trágica de Nietzsche. Ele pode ser interpretado como o anteparo contra o temor causado pelas concepções da vontade de poder e do eterno retornar de todas as coisas e, desse modo, deixa-se aproximar do princípio apolíneo, tal qual este é descrito no primeiro livro de Nietzsche. Tendo em vista essa proximidade, desejamos nos deter especificamente na consideração do ­aspecto ideal aludido no aforismo 382 de A gaia ciência e, mais particularmente, na expressão “mediterrâneo” ideal, a qual está diretamente relacionada ao início da tragédia e à o­ posição a toda seriedade e moral experimentadas presentemente pela humanidade. Tomaremos como primeiro ponto de consideração desses aspectos os movimentos de aproximação e de afastamento de Nietzsche com relação à perspectiva trágica grega, pois apesar de aparentarem uma oposição, deseja-se tratá-los aqui segundo uma perspectiva de desdobra­ mento, responsável pela formulação dos princípios criativo e experimental de sua fi ­ losofia. Como primeira questão a respeito do estatuto da perspectiva artístico-trágica, mencionamos a noção de inspiração, que é retomada por Nietzsche em Ecce homo, em uma indicação bastante significativa: Nie­tzsche afirma que a inspiração atuante em Assim falava Zaratustra deve ser entendida segundo a concepção dos poetas das grandes épocas passadas; como a criação interpretada como revelação imediata e n ­ ecessidade absoluta, cujo caráter mais estranho é o da necessidade da imagem e da metáfora (EH/ EH Z/Z § 2). Esse mesmo tópico de Ecce homo se e­ ncerra com o autor reafirmando a mesma ideia e ainda acrescentando que talvez fosse necessário recuar milhares de anos, para que se encontrasse alguém que pudesse afirmar ter tido a mesma espécie de sentimento (ibid., § 3). Propomos aqui uma análise do significado do aparecimento da n ­ oção de ­inspiração remetido a Assim falou Zaratustra, a partir da possibilidade de significação que lhe pode ser dada após a sua crítica em Humano, demasiado humano. Com isso a intenção é aproximá-la da referência ­feita em Ecce homo, a fim de saber se há entre elas algum traço de mediação. Um primeiro indício de aproximação possível é a alteração do modo de compreender a arte relacionada a antigos padrões de justificação, ­aspecto que ­adquire importância a partir do reaparecimento do dionisíaco e do poético associados a Zara151

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tustra e reafirmados em Ecce homo. Humano, demasiado humano, como já mencionado, marca para Nietzsche ­justamente o momento de libertação de qualquer anseio pelo restabelecimento de uma perspectiva trágica. Entretanto, isso deve ser melhor observado, pois simultaneamente a este distanciamento o autor não deixa de considerar positivamente a cultura grega, muito embora demarque a sua extemporaneidade. Segundo Giorgio Colli e Mazzino Montinari, para que se compreenda a proveniência da obra, é necessário que se dê especial atenção aos aforismos escritos sem fim literário, determinado no verão de 1875, que são os seguintes: 32, 33, 108, 114, 125, 148, 154, 158, 163, 224, 234, 261, 262, 360, 474, 607. Todos eles desenvolvem reflexões relacionadas a temas gregos, sendo que, dentre todos, quatro apresentam como aspecto particular referências a Homero: § 114, § 125, § 154 e § 262 (Colli, KSA 14, p. 115). O conteúdo desses aforismos apresenta aspectos significativos, passíveis de servir como dados importantes à consideração da ideia de inspiração e de sua ligação com o ensinamento do além-do-homem. Um aspecto expressivo desses aforismos é o de que eles indicam a relação entre arte, embelezamento e afirmação da vida e que constituem traços ­decisivos à compreensão do ensinamento. Um fator preponderante a ser aqui indica­do é a ocorrência de vários deles fazerem referências importantes à poesia, ao épico e a Homero. Com efeito, no aforismo 33 intitu­lado O equívoco sobre a vida ­necessário à vida, Nietzsche se refere positiva­mente ao pensamento imperfeito, fonte de ­diferentes formas de consideração do homem e, a partir dele, faz o elogio do retorno do olhar para as exceções, para os talentos superiores e para as almas ricas, cheias de fantasia, pois aquele que assim vive supera a vivência eminentemente excepcional (Ausnahme) com relação aos outros homens. Ele se sente como parte de uma consciência universal da humanidade (Gesamamtbewusstsein de Menschheit), toma-se como o alvo de todo o de­ senvolvimento do mundo, alegra com as suas obras e supera o desespero causado pela percepção da ausência de sentido e de objetivos da existência humana, argúcia i­ nerente à grandeza de sua fantasia. O sentimento de universalidade advém da capacidade de deixar de ver (übersieht) os outros homens individualmente, o que só é possível por meio do pensamento impuro (MA I/HH I § 33). Quem procede desse modo (e mesmo aquele que o faz de modo contrário, considerando todos os homens) é sempre uma exceção (Ausnahme), como alguém que é forte o suficiente para, mesmo percebendo que a humanidade não tem nenhum alvo,20 exteriorizar-se e sentir-se como tal, esbanjando (Vergeudet) como a florescência isolada na natureza, o que é um sentimento acima de todos os outros. Entretanto, o sentir-se como huma­nidade e não apenas como indivíduo

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“pois a humanidade em sua totalidade não possui nenhuma meta” (ibid.). 152

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e desperdiçar-se enquanto tal é um sentimento superior a todos os outros, algo que apenas um poeta é capaz, pois eles sabem sempre consolar-se (ibid.). No aforismo 108, Nietzsche aproxima a religião, a arte e a filosofia metafísica enquanto produtoras de narcóticos que visam a tornar suportável o sofrimento imanente à vida, porém sem aceitá-lo e, assim sendo, alterando os juízos acerca da vida, produzindo com isso alívio e entorpecimento. Desse modo, elas se aproximam, porém de forma bastante diferente, do efeito trágico que também existe em decorrência do sofrimento. Enquanto o trágico necessita precisamente do impiedoso e irrevogável destino, a religião continua a preterir, em lugar da aceitação do sofrimento, o narcótico ante o mal humano. Com o decréscimo do e­ feito da religião e da arte, dá-se um afastamento com respeito às causas desse mal, o que afeta também o poeta trágico, pois lhe falta matéria para compor, pois a sua arte se alimenta precisamente do sofrimento e por isso se torna cada vez menor. No aforismo 114 encontramos a primeira referência a Homero, na qual é feito um elogio do modo como os gregos se relacionavam com os deuses homéricos, os quais não eram vistos como mestres dos homens, mas: “Viam apenas como o reflexo dos mais bem logrados exemplares de sua própria casta, portanto um ideal, não o contrário de sua própria essência (Wesen)” (MA/HH I § 114). Segundo Nietzsche, eles se sentiam aparentados uns com os outros, como possuindo um interesse mútuo, uma aliança de guerra (Symamanchie). A peculiaridade daquela crença estava em fazer os homens possuírem uma ideia nobre de si, a partir de sua relação com uma nobreza mais alta. O oposto de uma tal religião é o cristianismo, que com suas invenções psicológicas quer “aniquilar, quebrar, aturdir, embriagar” e de modo a não haver nenhuma medida (Maass), o que o torna, no mais profundo entendimento, bárbaro, asiático, pouco nobre, não-grego (ungriechisch). Nova referência a Homero é feita no aforismo 125, quando o p ­ oeta é indicado como aquele que estaria tão à vontade entre os deuses que não deveria ser necessariamente religioso (unreligiös). Desse modo, ele ­poderia livremente remodelar a crença popular, medíocre, rude e em parte horri­pilante – que, porém, é a fonte da poesia – como um escultor com a ­argila (ibid., § 125), do mesmo modo que Ésquilo e Aristófanes e os modernos Shakespeare e Goethe. No aforismo 154, Nietzsche se refere à ­necessidade da fantasia homérica (homerische Phantasie) para os gregos, como meio de superar e acalentar temporariamente o ânimo excessivamente apaixonado e a acentuada inteligência, que lhes tornava a vida amarga e cruel. Eles, entretanto, não se iludiriam, porém tinham necessidade da leviandade da fantasia homérica e assim, propositadamente, driblavam a vida com mentiras. Logo, isso os tornara grandes mentirosos e o tema das canções feitas para os deuses era a miséria humana (o predileto das divindades), o que 153

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os tornou cônscios de que “unicamente através da arte poderiam tornar a miséria ­prazer” (MA I/HH I § 154), e essa é compreendida por Nietzsche como a característica de todos os povos poéticos, que associariam o desejo da mentira – assim como o convívio diário com ela – à inocência. Como primeiro argumento de justificação da significação da temática desses aforismos para a consideração do além-do-homem, indica-se aqui a forte possibilidade de interpretá-lo como ensinamento formulado a partir de influências gregas, do mesmo modo que tal possibilidade adquire significativa relevância, tanto para a interpretação de seu ­conteúdo, como para sua posição em Assim falava Zaratustra. Deve ser ainda indica­do a posição do último dos aforismos acima mencionados em Humano ­demasiado Humano. Com efeito, ao § 154 se seguem dois outros que tratam precisamente do conceito de inspiração, nos quais Nietzsche c­ riti­ca a ideia da produção artística como resultado dela, isso a partir do ponto de vista de que “todos os grandes (artistas) foram grandes trabalha­dores (Alle Grossen waren grosse Arbeiter), incansáveis não apenas no criar, mas também em repudiar, analisar (Sichten), transformar e ordenar” (MA I/HH I § 155). No aforismo seguinte, 156, o autor afirma que a inspiração apenas aparece em épocas em que a força de produção (Productionkraft) estagnou devido a um obstáculo, o que gera finalmente um imediato d ­ erramamento (Erguss), sem trabalho interior p ­ révio (ohne vorhergegangenes inneres Arbeiten), que, porém, é interpretado como inspiração imediata e como milagre que se realiza (vollziehe). Nietzsche prossegue argumentando que, mesmo que todos os artistas tentem manter essa concepção, tal ca­pital não caiu do céu, foi acumulado (angehäuft), do mesmo modo como acontece no domínio do bem, da virtude, do vício (MA I/HH I § 156). A crítica à noção de inspiração, destarte, caminha paralelamente a concepção de uma ciência da arte que deve se opor às falsas conclusões e maus costumes do ­intelecto, advindas do sentimento mitológico arcaico da justificação artística moderna (MA I/ HH I § 145). Entretanto, muito embora o seu tom crítico, essa perspectiva também se associa ao elogio da poesia grega arcaica21 e, em especial, da arte homérica, que desde O nascimento da tragédia é considerada como a arte apolínea por excelência, mas que nesse momento é tratada como arte demasiado huma­na, por conseguinte, como ­produto das leviandades fantásticas da menta­lidade poética. Esses aspectos devem ser levados em consideração para que se possa analisar o último aforismo dos anteriormente indi21

Nietzsche não faz nenhuma menção a esse termo em seus escritos, mas ele é utilizado aqui por ser ele, desde a segunda metade do século XIX, a designação do período da cultura grega a que o autor se refere como pré-socrática ou trágica, portanto, não clássica. Cf. Cancik (2000, pp. 36; 41). 154

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cados por Colli e Montinari. Esse, com efeito, refere-se diretamente a Homero, recebe assim precisamente o nome do poeta como título e inicia-se com a seguinte afirmação: Homero – a maior evidência na formação grega ainda permanece ­sendo a de Homero ter se tornado tão prematuramente pan-helênico. Toda liberdade espiritual e humana que os gregos alcançaram retroage a este fato (MM I/HDH I § 262).

Muito embora essa afirmação inicial, Nietzsche indica que a fatalidade dos gregos consistiu na trivialização de Homero, que lhes ­restringira o muito circunspecto ­instinto de independência (ernsterer Instincte der Unabhängigkeit). Mesmo que de tempos em tempos houvesse ­movimentos contrários a ele, o poeta sempre saiu vitorioso, o que demonstra que todos os poderes espirituais desempenhariam repressão junto de seu efeito liberatório (befreiende Wirkung), mas que haveria uma diferença entre a sua ­tirania, a da bíblia ou a da ciência.22 O elogio da função narcótica da tragédia e da formação grega remetida primeiramente a Homero, tal como é tratado nestes aforismos, é aproximada na modernidade e, muito embora criticamente, do efeito causado pela religião. Esta, todavia, como sabido, é acerbamente criticada por Nietzsche. A referência à ciência da arte, no aforismo 145 do capítulo IV (Da alma dos artistas e escritores) de HH I, indica um importante aspecto para a consideração noção de inspiração da qual Nietzsche faz uso em Assim falava Zaratustra. Se essa noção volta a ser utilizada por ele, os aforismos indicam que é em um sentido não totalmente moderno, mas perpassado pelas compreensões histórica e científica dominantes na contemporaneidade. Tais compreensões podem, porém, aproximá-la novamente do seu sentido grego, enquanto ordenação e reformulação do desordenado, e não mais legitimá-la por intermédio de referência a uma miraculosa origem ou à criação incondicionada. A partir disso, o filósofo pode formular a noção de “mediterrâneo”, ideal relacionado à “grande saúde”, cujos conteúdos possuem motivações e temáticas facilmente reportáveis aos gregos. A ideia de uma ciência da arte possibilita compreender e evidenciar a percepção de que um moderno retorno ao épico é possível, a partir da compreensão das possibilidades do efeito por ele causado e não pela sua antiga forma de legitimação. Isso pode ser compreendido quando considerada a aproximação da noção de “grande saúde” com a interpretação épica homérica, representada por Nietzsche pela aceitação ampla da vida.23 Mas, por outro lado, a afirmação final do aforismo 262, que menciona o caráter opressor de todas as potências espirituais, 22

Ibid. I § 262, p. 219. Aspecto que já fora posto por Nietzsche em “A disputa em Homero”, último dos cinco “Prefácios” escritos por ele e presenteados à Cosima Wagner no natal de 1872. Cf. KSA 1, p. 783.

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indica precisamente a separação entre a perspectiva épica homérica e a que Nietzsche faz uso contemporaneidade. Ante essas indicações, evidencia-se em Humano, demasiado humano uma nova consideração de um dos aspectos mais presentes no anseio juvenil de Nietzsche: o de uma reformulação da cultura e da formação dos indivíduos através da perspectiva trágica, o que ele, todavia, já no final da década de setenta, considera impraticável. Por outro lado, os aforismos indicam claramente que não há uma recusa desses pressupostos pelo a­ utor, muito embora, ao interpretar a atuação e justificação do poeta moderno, ele o denuncie como inatual, demonstrando a distância entre o momento de seu surgimento e maior vigor e a sua efetiva validade na contemporaneidade. Desse modo, pode-se entender que muitos dos aspectos com os quais Nietzsche se refere negativamente à mentalidade artística em Humano, demasiado humano reaparecem posteriormente relacionados a Assim ­falava Zaratustra. As novas menções ao dionisíaco nos apontamentos para a sua obra capital, possibilitam que se fale de uma nova utilização de pressupostos associáveis ao “Mistério de unidade” de O nascimento da tragédia, presente na obra posterior na associação entre a aparência apolí­nea do ensinamento do além-do-homem e o traço dionisíaco do pensamen­to do eterno retorno do mesmo. Esses aspectos evidenciam a importância de pressupostos r­ ecorrentes a sua interpretação dos gregos nos escritos posteriores. Essa relação, com efeito, encontra-se posta em A gaia ciência, no aforismo 143, no qual Nietzsche articula uma perspectiva ideal e uma crítica das morais de pretensão absoluta. O direcionamento primeiro do aforismo é mostrar o eterno conflito entre moralidade e individualidade a partir das religiões politeístas e monoteístas, de modo a mostrar as vantagens daquelas e as restrições destas: A maior utilidade do politeísmo. – Que o indivíduo pudesse edificar seu próprio ideal e dele deduzir sua lei, seus prazeres e seus direitos – isso servia até aqui como o mais monstruoso dos embaraços humanos e como a idolatria em si (…) (FW/GC § 143).

Segundo Nietzsche, fora graças ao politeísmo, a “maravilhosa arte de criar deuses”, que esse impulso (Trieb) individual pôde se descarregar, purificar, aperfeiçoar e ­enobrecer, posto que antes fora considerado como vulgar. O politeísmo é apresentado nesse momento como oposto à moralidade restritiva, pois embora para ele no passado a palavra de ordem de toda eticidade (Sittlichkeit) tenha sido combater o instinto de um ideal próprio (eigene), existia apenas o homem como norma (Norm), que cada povo acreditava possuir como única e última, acima, fora de si, num mundo distante e superior (in einer fernen Überwelt) e expressa nas suas divindades. Disso resultava uma grande quantidade de normas e deuses que, todavia, não significavam a negação uns dos outros. 156

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Desse modo, acrescenta, os indivíduos (Individuen) foram aceitos pela primeira vez, adquiriram direito à existência e toda a criação de seres não humanos te­ve por finalidade justificar o egoísmo e a glorificação do indivíduo. A invenção de deuses, heróis, e além-dos-homens de todas as espécies, assim como de homens comuns e sub-homens, de anões, fadas, c­ entauros, sátiros, demônios e diabos, foi a invariável preparação para a justificação do egoísmo e da autoglorificação do indivíduo (FW/GC § 143).

Este aspecto demarca a diferença entre politeísmo e monoteísmo. O primeiro concebeu suas divindades em convívio e em liberdade, o que acabou por ser estendido à sociedade. O segundo, por sua vez, consiste em uma sequencia rígida da doutrina de um homem normal, de onde decorre a ideia de um deus normal, ao lado do qual os outros deuses são postos como mentirosos. Este foi o maior perigo para a humanidade, o perigo de estagnação prematura (vorzeitige Stillstand) em um princípio ideal de normalidade, que a eticidade do costume (Sittlichkeit der Sitte) traduz definitivamente em carne e sangue (FW/GC § 143). Por esses aspectos, o politeísmo mostra-se como rico em possibilidades e em liberdade, ao passo que o monoteísmo, com sua crença moral na normalidade, mostra-se restritivo e empobrecedor das possibilidades humanas. No politeísmo encontrou-se prefigurada a liberdade de espírito e a multiplicidade de espíritos do homem: a força para se criar olhos novos e próprios, e cada vez mais novos e mais próprios: de tal modo que, apenas para o homem entre todos os animais, não haja nenhum horizonte e nenhuma perspectiva eterna (FW/GC § 143).

O conteúdo desse aforismo adquire grande significado para a abordagem aqui proposta. Se for considerado o fato de que A gaia ciência já antecipa, estilística e tematicamente, traços de Assim falava Zaratustra (Salaquarda, 1999, p. 75), a aproximação feita entre politeísmo e mito a partir do fator comum em ambos da invenção de seres e, mais ainda, a relação indissolúvel entre mito e arte, pressuposta pelo termo invenção (Erfindung), tal conexão remetida ao ensinamento do além-do-homem apresenta-se repleta de conteúdos. Fica claro na argumentação de Nietzsche que, conjuntamente ao elogio do politeísmo, é feita a indicação da arbitrariedade da moral mono­teísta, voltada não à afirmação por embelezamento do indivíduo singular, mas empenhada unicamente em formular doutrinas rígidas e deterministas de uma suposta normalidade humana. O politeísmo, por seu turno, é elogiado pelos seus parâmetros humanos, assim como pela indeterminabilidade destes, o que implica em um processo criativo. 157

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Estes mesmos traços podem ser antevistos em Assim falava ­Zaratustra e relacionados ao ensinamento do além-do-homem. O pressuposto b ­ ásico do seu anúncio é a morte da divindade única, absoluta. Fonte da dominan­te forma de combate à individualidade na contemporaneidade. É a percepção de sua morte que possibilita que o ensinamento seja direcionado decisivamente a um processo criativo, pressuposto na noção de autossuperação (Selbstüberwindung). A questão naturalmente decorrente ­dessa analogia diz respeito então ao significado do épico e do mítico grego para Nietzsche neste momento de sua produção. Uma resposta possível a essa interrogação pode ser encontrada tanto nos escritos que antecedem, mas também decisivamente em escritos posteriores a Assim falava Zaratustra, tal como em Ecce homo e em referência a ­Zaratustra. Referindo-se a ins­piração poética de seu escrito, o autor desvincula a sua criação de modelos anteriores: “Esta obra vive absolutamente por si própria. Deixemos os poetas de lado: nada criaram até agora com tamanho poder. A minha visão do ‘dionisíaco’ foi um ato excelso; à sua medida todas as ações humanas aparecem pobres e limitadas” (EH/EH Z § 6). Nessa seção, Nietzsche evidencia o que pretendera com o seu Zaratustra, precisamente efetuar regresso do falar humano à própria natureza da imagem, sem, no e­ ntanto, indicar uma forma unívoca de fazê-lo. Desse modo, é decisivo bem dimensionar a afirmação de que aquilo que Zaratustra profere é, segundo o autor, a fala do Deus Dionísio, aquele que exprime e representa os eflúvios mais fundamentais da natureza. Dionísio, com efeito, ao ser relacionado à natureza, necessita também o ser com a com­ preensão da indeterminação dessa, aspecto central na filosofia de Nietzsche. D ­ esde os seus primeiros escritos, inquirir a natureza significa opor-se a toda a pretensão por defini-la ou corrigi-la. Antes, ele busca tentar livrar os seus posicionamentos de tais pretensões, para então evidenciar as potencialidades afirmativas de sua indeterminação (FW/GC Prefácio § 4). Parece, com efeito, altamente provável que a reaproximação com respeito a noções bastante significativas de sua primeira fase de produção se deve muito mais a uma retomada de suas possibilidades interpretativas que propriamente uma retomada do a­ nseio de renascimento da arte g­ rega. Nos escritos posteriores, nos quais Nietzsche se refere ao dionisíaco como forma de tornar compreensível o seu Zaratustra, ele o faz com muitos aspectos que ratificam a tendência a utilizar essa noção para criticar a disposição restritiva e dogmática tanto da religião quanto do racionalismo metafísico, diante do mundo.24 Ele indica ensinamentos de Zaratustra como os seus “pensamentos abissais” (abgründlichsten Gedanken) (EH/EH Z/Z § 6), resultantes de um ­refinamento estilís24

Como fica claro em Tentativa de autocrítica. 158

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tico que pode mesmo conferir ao além-do-homem a mais alta realidade (ibid., Z/Z § 6). É óbvio que a esse respeito Nietzsche pressupõe não apenas a impossibi­lidade de um fundamento verdadeiro, último e definitivo para o ensinamento, mas também a inversão de valores que confere nova significação ao termo realidade. O além-do-homem é a aparência sem antípoda que se tornou então real, porém sem ultrapassar aquilo que a partir de então caracteriza o real, o seu devir, a aparência.25 Desse modo, ele não pode consistir em princípio normativo último ou único para todo homem e toda forma de relacionamento desse com o mundo, pretensão que o autor já exclui com relação ao mito desde O nascimento da tragédia 26 e que per­corre toda a sua filosofia. Estes aspectos constituem pontos decisivos para que os ensinamentos capitais da sua obra madura possam ser formulados tendo como justificativa a sua força estética.27 A respeito do conteúdo dos aforismos anteriormente analisados e de suas a­ ssociações com o ensinamento do além-do-homem, desejamos indicar aquilo que apenas foi aludido no decorrer da argumentação: que a libertação do espírito,28 a campanha contra os preconceitos morais, em outras palavras, a luta pela transvaloração dos valores, possibilita a Nie­tzsche reconsiderar as possibilidades da arte a partir de pressupostos extraídos da mentalidade mítica grega, em especial do épico e do trágico, sem, no e­ ntanto, pretender restabelecê-la. A confirmação desse aspecto pode ser feita segundo uma passagem elucidativa presente no prefácio de A gaia ciência, precisamente posterior a Nietzsche afirmar a neces­sidade de uma nova arte, uma arte apenas para artistas, e ainda evidenciar que a sua filosofia não corrobora com qualquer vontade de verdade, de “­verdade a qualquer preço”, que ele denomina de loucura juvenil (­jünglingswahnsinn) no amor pela verdade. Uma forma diferente de lidar com a verdade é en­tão indicada nos gregos, que Nietzsche não deseja repetir, mas que, ­todavia, deve ser mencionada: Oh esses gregos! Como entendiam acerca do viver: para isso é necessário permanecer corajosamente na superfície, na cobertura, na e­ piderme, para adorar a aparência, formas, tons, palavras e crer no completo Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais 25

A ponto de Nietzsche escrever em GD/CI: “O mundo ‘aparente’ é o único, o mundo verdadeiro foi acrescentado (hinzugelogen) pela mentira”. A “razão” na filosofia § 2. 26 Em uma visão retrospectiva, o primeiro momento da transvaloração. 27 Com respeito a isso escreve Roberto Machado: “ao escrever Assim falava ­Zaratustra, Nietzsche não está propriamente interessado em renovar ou modificar os c­onceitos da filosofia; seu objetivo principal, do ponto de vista da forma de expressão, é libertar a palavra da universalidade do conceito, construindo um pensamento filosófico através da fala poética, mais do que, como nas outras obras, através do uso do aforismo, do fragmento ou mesmo do ensaio” (1997, p. 21). 28 “Quem conhece toda a seriedade da minha filosofia na luta contra os ­ressentimentos de vingança e de ódio, perseguindo estes sentimentos na própria doutrina da “vontade livre” (freien Wille) – a luta com o cristianismo nada mais é que um caso isolado dessa luta – compreenderá porque m ­ otivo quero aqui pôr à luz por completo a minha atitude pessoal, a segurança do meu instinto na prática.” EH/EH Porque sou tão sábio § 6. 159

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– na profundidade! E não voltamos a eles, nós, atrevidos do espírito, nós que galgamos os mais altos e perigosos picos do pensamento atual, e vimos tudo a nossa volta como abaixo de nós? Não seremos nisso – gregos? Adoradores da f­ ormas, do tom, das p ­ alavras? Portanto – Artistas? (FW/GC Prefácio § 4).

Esse trecho corrobora com a compreensão de que o novo direcionamento fi ­ losófico de que fala Nietzsche não é o do racionalismo ou da moralidade canônica judaico-cristã, mas que está associado a uma perspectiva artística, para a qual os gregos que antecederam a conceituação racional da filosofia servem de modelo. Todavia, a título de dimensionamento do significado dessa passagem, é interessante compará-la com as afirmações de Nietzsche na seção O que devo aos antigos em Crepúsculo dos ídolos. Nela, ele faz referência precisamente ao fato de ter com a sua filosofia encontrado um novo acesso ao mundo antigo (GD/CI O que devo aos antigos § 1), mas, entretanto, afirma que o apreço por essa influência não se aplica ao estilo, porém aos seus pressupostos, pois indica, com respeito a este aspecto, dever muito mais ao classicismo romano que aos gregos. Seu ponto de vista, todavia, é também discordante com relação à tradição alemã de interpretação dos helenos, nominalmente da de Goethe e de Winckelmann (NF/FP: KSA 8, 39 [1], 1878 – julho de 1879), que não perceberam um fator decisivo à sua compreensão, a evidência funda­mental do instinto helênico (Grundthatsache des hellenischen Instinktis): a sua vontade de viver (Wille zum Leben) que se manifesta no orgiástico dionisíaco. Com ela, afirma, os helenos garantiram a “vida eterna, o ­eterno retorno da vida, o futuro, prometido e consagrado no passado, o triunfan­te sim à vida (...)” (ibid.). A compreensão do orgiástico e da vontade de viver dos helenos consistiu na via de acesso do autor ao transbordante instinto helênico, do simbolismo de sua manifestação dionisíaca. Foi precisamente a identificação da psicologia do orgiástico, entendida como “sentimento transbordante de vida e força”, e segundo a qual “mesmo a dor age como estimulante”, que possibilitou a Nietzsche dar conteúdo a sua formulação do trágico, aspecto que ainda deve ser remetido ao seu livro inicial, enquanto primeira transvaloração de todos os valores e que, por conta do dionisíaco, deve ser vinculado a Zaratustra e ao ­pensamento do eterno retorno (GD/CI O que devo aos antigos § 5). Partindo-se dessas afirmações, pode-se concluir que o que Nietzsche assimila nos gregos e o que ele busca manter no seu pathos filosófico (EH/EH Porque escrevo livros tão bons § 4) inspirado pelo traço imoral do dio­nisíaco é, decisivamente, a manutenção de um âmbito possível e ­irrestrito para a criação, tanto para a filosófico-científica, como para a artística, o que o faz buscar aproximar ambas. O pensamento do eterno retorno, advindo dessa inspiração e ao ser associado ao ensinamento do além-do-homem, possibilita a interpretação deste segundo ensinamento ­segundo pressupostos apolíneos, por conseguinte épicos, como se buscou demonstrar com a análise precedente. O traço 160

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épico, apolíneo, do ensinamento do além-do-homem deixa-se evidenciar no seu c­ aráter ideal, no anseio pela eternidade da bela forma, na legislação aristocrática (NF/FP: KSA 13 2[106], outono de 1885 – outono de 1886), na experiência ­psicológica fundamental de um mundo poetizado e sonhado, um mundo da bela aparência como redenção do devir (FP: KSA 13 2[110], outono de 1885 – outono de 1886). Para que isso seja corretamente considerado, é necessária uma consideração da noção de ideal mobilizada por Nietzsche, desvinculada de todo o significado conferido ao termo pela tradição me­tafísico-religiosa. Com efeito, em 1887, na terceira dissertação de Para a genealogia da moral, ao fazer a crítica do ideal ascético, Nietzsche se refere aos últimos idealistas entre os fi ­ lósofos e doutos e os denomina “descrentes”, devido serem aqueles que teriam se ­afastado de toda forma de crença e nos quais se manifesta decisivamente a consciência ­intelectual (GM/GM III § 24). Segundo o autor, eles se consideram espíritos livres precisamente por terem como ideal o mais acentuado desejo de conhecimento e por isso crêem que se libertaram da tradição. Entretanto, acentua, um olhar mais cuidadoso revela que não se afastaram da crença metafísica na verdade, daí Nietzsche afirmar: “Esses estão longe de ser espíritos livres: eles creem ainda na verdade” (ibid.). O verdadeiro afastamento da metafísica e do ideal ascético, entretanto, leva em consideração não mais a verdade, mas o seu valor, noção que, segundo o filósofo estaria posta no aforismo 344 e em todo o quinto livro de A gaia ciência, no aforismo intitulado “Em que medida nós também ainda somos devotos” assim como no prefácio de Aurora (GM/GM III § 24). No aforismo de A gaia ciência acima mencionado, Nietzsche proble­matiza precisamente o desejo incondicional e a crença na possibilidade de alcançar uma verdade. A ciência aparece aos seus olhos como inserida no domínio da crença, na fé em seus pressupostos, a qual pode ser expressa de modo pertinente segundo o princípio de que: “Nada se faz mais necessário que a verdade, e em relação a ela todo o restante tem apenas valor de segunda ordem” (FW/GC § 344). O autor, porém, contrariamen­te a essa proposição, remete a discussão acerca da verdade para um outro campo, o da sua utilidade, no qual a dicotomia entre vontade de verdade e não querer ser enganado, entre verdade e aparência, perde o sentido, diante do efeito que o engano e a aparência podem ter para a vida. Pois basta perguntar-se fundamentalmente: “Por que não queres enganar?”, especialmente se houvesse a aparência – e há essa aparência – de que a vida dependa dessa aparência, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocegamento, e se, por outro lado, a grande forma da vida sempre tivesse se mostrado, de fato, do lado mais inescrupuloso polytropoi. Um propósito como esse poderia, talvez, interpretado brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas poderia t­ ambém 161

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ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à vida… “vontade de v­ erdade” – isso poderia ser uma velada vontade de morte – (FW/GC § 344).

Na estruturação da argumentação de Para a genealogia da moral, a referência a esse aforismo tem sentido como argumento constitutivo da abordagem do tema do ideal ascético e de seu contendor. Ele explicita aquilo que Nietzsche afirmará em seguida: que também a ciência não pode ser vista como contrária ao ascetismo, mas que, antes, ela deve ser compreendida como a “força propulsora na configuração interna desse” (GM/GM III § 25). Por outro lado, o da aparência que afirma a vida, é a arte que se apresenta como a efetiva antagonista do ideal ascético. Eis o ponto que aqui nos interessa: a contraposição fundamental entre ambas é vista por Nietzsche precisamente no conflito entre Platão e Homero. A arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: Assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo – ali, o mais voluntarioso ‘partidário do além’, o grande caluniador da vida; aqui o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea (GM/GM III § 25).

Essa referência, no momento em que é feita, relacionada aos textos que foram escritos para servirem de fio condutor a Assim falava Z ­ aratustra, como o quinto livro de A gaia ciência e o prefácio de Aurora, indica que a consideração positiva da perspectiva mítica grega e de seu fundamental viés estético é ainda uma influência importante para Nietzsche. Isso aponta também a possibilidade de se compreender Assim falava Zaratustra e sua inspiração como aproximada da dos poetas do passado, como uma obra que deseja conferir ao seu discurso a mesma força de afirmação e embelezamento que Nietzsche sempre interpretou na arte grega, na qual Homero é por ele indicado como personagem decisivo por ser o ­modelo do artista ingênuo, imerso na produção da aparência que se justificava por si mesma pelo efeito estético que propiciava.29 Mas a cultura mítica grega é fonte de inspiração para Nietzsche ainda por outro motivo: ela é a prova da possibilidade de uma cultura apartada e distinta de uma moral unívoca e de seus pressupostos. Ela continua a representar para ele uma perspectiva 29

Maria Bindschedler analisa esta referência a Homero no contexto da crítica da lógica e seus juízos e do elogio do poeta como “idólatra involuntário” (­unfreiwilliger Vergöttlicher), que, porém, pode ser tido como louco – no sentido de Nietzsche – diante da necessidade e de suas intenções. Segundo a autora, essa referência deve ser entendida como esforço de Nietzsche em refutar as formas tradicionais de consideração da mentira e da criação artística, para então poder afirmar que o que há de notável na arte é precisamente a sua afinidade com a mentira - o que, portanto, exclui Homero do âmbito da repreensão de Platão. Cf. Nietzsche und die poetische Lüge (Bindschedler, 1966, p. 60). 162

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diferenciada daquela que, segundo ele, se estabeleceu no ocidente a partir de Platão, foi ­­continuada pelo cristianismo e deu origem à ciência. Esta tem o seu efeito mais ­nefasto não apenas na afirmação dogmática de seus princípios, mas a­ inda na condenação de toda outra forma de avaliação e consideração do ­mundo e da vida. Este, com efeito, é o tema do aforismo 261 de Humano, demasiado humano, que antecede ao aforismo intitulado “Homero”, ao qual é relacionado. O aforismo é intitulado Os tiranos do espírito (Die Tyrannen des ­Geistes) e nele po­ demos confirmar que Nietzsche, mesmo nessa obra, exclui os gregos do período mítico de sua crítica, ao afirmar que apenas onde cai o raio do mito brilha a vida dos gregos e que o restante são sombras (MA/HH I § 261). Os filósofos, por sua vez, são acusados de tirania no que diz respeito à sua crença no conhecimento, na esperança de, com um único salto, chegar ao ponto final de todo o ser e lá solucionar o enigma do mundo (ibid.). Crentes na plausibilidade de seus anseios, os filósofos teriam rebaixado tanto o mito como os seus concorrentes, o que teria sido uma manifestação daquilo que todo grego queria ser: um tirano e essa tirania da verdade entrou-lhes furiosamente no corpo como um veneno (id.). O direcionamento dado à argumentação precede significativamente pontos que serão enfatizados nas obras seguintes e se remete a problematizar aquilo que foi interpretado como o curso natural da história grega. Segundo esta consideração, a cultura grega que sucedeu o período mítico pode ser vista como uma forma de empobrecimento de suas possi­bilidades, quando vista sob a ótica da continuidade, pois: “Eles [os gregos] tinham uma grande multiplicidade para serem sucessivos, como a tartaru­ga na corrida com Aquiles: e é a isso que se chama evolução natural” (ibid). Posta a partir da pressuposição de que algo descontínuo teria ocorrido na filosofia grega, a pergunta decisiva é: se Platão tivesse ficado livre do enfeitiçamento socrático (socratische Verzauberung), não se teria encon­trado uma outra espécie mais elevada de filósofo? Os séculos sexto e quinto, escreve Nietzsche, parecem prometer algo mais e ainda mais elevado do que ele próprio produziu, e acrescenta: “E não há ainda ­nenhuma perda mais pesada, como a perda de um “tipo”, de uma nova e até então não d ­ escoberta da mais alta possibilidade de vida filosófica (ibid.). Referindo-se a uma ruptura na evolução do tipo filosófico manifesto na Grécia no período de Tales a Demócrito, que teria demarcado o malogro dessa espécie filósofo, Nietzsche denomina tirania do e­ spírito filosófico a crença na possibilidade da posse da verdade absoluta (Besitzer der absoluten Wahrheit), cujo alcance chegou até épocas recentes, mas cujo período e­ ntão se encerra, em favor de um novo domínio, indicado como o dos oligarcas do espírito (Oligarchen des Geistes). Esses se reconhecem como membros de uma sociedade correspondente, unindo todas as opiniões e juízos que antes separavam e dividiam e que assim se opõem 163

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ao oclocrático caráter dos espíritos incompletos (halbgeistes) e da incompleta formação (Halbbildung), pois eles têm em outros os seus melhores amigos e entendem os seus sinais (ibid.). Esse aforismo, mesmo considerando as objeções que se lhe possam fazer com respeito a sua datação e perspectivas que o norteavam, demonstra claramente o ponto da história ocidental que Nietzsche toma como decisivo para a formação do pensar filosófico que se estende até o seu tempo. Com efeito, é no século IV a. C, com a perspectiva socrática, que para ele se estabelece decisiva e rigidamente a crença na possibilidade da posse da verdade e na determinação do mundo, o que teria seduzido to­dos os filósofos e restringido as possibilidades de outras formas de vida filosófica. Em conside­ ração contrária, a visão dos primeiros filósofos gregos é caracterizada positivamente devido a sua ampla aceitação da multiplicidade e do alcance da liberdade humana. A referência ao mundo grego, sob o ponto de vista da identidade Homérica, ­surge então como significativa para que se possa compreender o ideal ao qual Nietzsche se refere no aforismo 382 de A gaia ciência; com efeito, a alma daquele que precisa da “grande saúde” é aquela que deseja experimentar todo o âmbito dos valores e desejos até o presente e então visitar as costas do “mediterrâneo” ideal. O uso das aspas, distinguindo o termo, é significativo, demonstra que Nietzsche se associa, mas mantém ressalvas ao mesmo, especificamente ao relacionar esse ideal aos valores e desejos que existiram até o seu tempo. Essa interpretação encontra base na indicação da n ­ ecessidade de um novo fim e de um novo meio. O autor designa que na verdade esse ideal apenas lhe propiciou chegar, mediante naufrágios e contusões, à “grande saúde”, àquela que então, finalmente, possibilita que o antigo ideal tenha a sua limitação reconhecida, o que torna aqueles que percebem isso argonautas de um novo ideal. Tomemos agora o que resta das afirmações do aforismo 382 de A gaia ciência: a distinção entre o “mediterrâneo ideal” e o novo ideal ao qual Nietzsche se refere e então nos detenhamos nas últimas palavras, na contraposição a toda seriedade, naquilo que até o momento foi tido como terrestre: a solenidade, a entonação e, f­ undamentalmente, a moral. Então, relacionando isso com o que Nietzsche afirma em 1887, em Para a genealogia da moral, acerca da contraposição basilar da cultura ocidental entre Platão e Homero, compreendamos o retornar do ponteiro e, novamente, ao épico, nesse ­momen­to associado ao dionisíaco e, desse modo, criando novas possibilidades para o r­ essurgimen­to de uma perspectiva trágica. Acrescentemos ainda a esses aspectos, a título de nova justificativa, o conteúdo do aforismo 224 de Além do bem e do mal, cujas primeiras pa­lavras são:

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O sentido histórico (ou a capacidade de intuir rapidamente a hierarquia de avaliações segundo as quais um povo, uma sociedade, um homem viveu, o ‘instinto divinatório’ para as relações entre essas valorações, para o relacionamento da autoridade dos ­valores para com a autoridade das forças atuantes).

O sentido histórico direciona-se à análise das hierarquias morais e decorre precisamente da multiplicidade de morais geradas da semibarbárie (Halbbarbarei) da confusão de classes (FW/GC § 103) e de raças que a Europa experimenta no final do século XIX. Ele faz com que se desenvolva um fino sentimento para o labirinto das culturas incompletas (unvollendenten Culturen) e toda semibarbárie que existiu até ­então, o que revela o seu caráter não nobre (unvornehmer). A contraposição aqui é s­ ignificativa e a posição de Nietzsche está indicada pela utilização dos termos grafados. Desse modo, podemos entender que a semibarbárie recebe uma consideração positiva em ­detrimento daquilo que na modernidade é considerado nobre, isso a torna contrária ao seu tempo e essa diferenciação tem como exemplo mais feliz o retorno aos gregos e em especial a Homero. Nós apreciamos, por exemplo, novamente Homero: é talvez nosso mais venturoso avanço, o fato de sabermos desfrutar Homero, do qual os homens de uma cultura nobre (os franceses do século XVII, tal como Saint-Evemond que, digamos, lhe censurou o espirit vaste, e mesmo o último soar dessa cultura, Voltaire) não souberam e nem sabem tão facilmente se apropriar – e que não se permitiram aproveitar.

O gosto pela multiplicidade própria do sentido histórico resulta em homens despretensiosos, desinteressados, modestos, bravos, muito gratos, pacientes, acolhedores e, o que aqui nos chama particularmente a atenção, plenos de dedicação e de autossuperação (voller Selbstüberwindung). Tal indicação queremos relacionar imediatamente com as palavras finais do aforismo: Talvez nossa grande virtude do sentido histórico esteja ­necessariamente em oposição ao bom gosto, pelo menos ao melhor gosto, e apenas de modo precário, hesitante, constrangido, possamos copiar em nós as pequenas, breves, excelsas fortunas (­Glücksfälle) e transfigurações da vida humana, tal como aqui e ali fulgem: aqueles momentos e portentos nos quais uma grande força ateve-se voluntariamente ante o desmedido e ilimitado –, em que desfrutamos de uma abundância de sutil prazer na repentina sujeição e petrificação, no deter e empertigar-se num chão que ainda trepida. A medida nos é estranha, confessemos a nós mesmos; o comichão que sentimos é o do infinito, desmedido. Como um cavaleiro sobre o cavalo em disparada, deixamos cair as rédeas ante o infinito, nós homens modernos, semibárbaros – e está precisamente lá a nossa felicidade (Seligkeit), onde nós mais frequentemente estamos em perigo. 165

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Esse aforismo evidencia em que sentido Nietzsche se refere a Homero. Ele não pensa em um retorno puro e simples aos ideais gregos, muito menos em uma ­restauração da cultura mítica daqueles, mas, antes de tudo, ele visa a fundar uma nova consideração do heroísmo descrito no épico grego, que ele então deseja assimilar a sua filosofia como forma de oposição e de refutação do dogmatismo da moral platônico-cristã (NF/FP: KSA 11, 25 [293], janeiro de 1884). Isso lhe possibilita então reavaliar o bárbaro i­ neren­te ao homem, enquanto forma de oposição àquilo que se tornou necessário, clássico, na cultura. A referência a Homero, então, evidencia-se como a alusão ao primeiro objeto de crítica do platonismo, quando do surgimento de uma nova mentalidade moral g­ rega fundada no racionalismo platônico. Relacionado ao sentido histórico p­ ositivamente pensado, Homero também é ligado à fortuna, que, todavia, o épico pode ­propiciar apenas relacionando o viver com o constante perigo, o que em A Gaia Ciência implica a necessidade de uma “grande saúde”, remetendo a um novo ideal, ao ideal de um bem estar e benevolência sobre-humano, que perece frequentemente inumano (FW/GC § 382). A relação entre o aforismo de Além do bem e mal escrito em 1886 e o tópico de Para a para a genealogia da moral, tem como nexo a referência a Homero. A relação entre estes textos e o aforismo 382 de A gaia ciência pode ser estabelecida a partir da referência às formas de ideal contidas neste escrito. A alusão a Homero indica a perma­ nência de um termo que é inegavelmente repleto de significados em Humano, ­demasiado humano e que deve então ser relacionado com ideia da Transvaloração de todos os v­ alores (Groddeck, 1997, p. 190). Esta relação pode ser antevista no título que ele desejou dar ao quinto livro de A gaia Ciência: Wir ­Umgekehrten (ibid., p. 197). Um outro aspecto que deve ser mencionado é o fato de que o filósofo cogitou a hipótese de publicar, por uma questão de tom e con­teúdo, o quinto livro de A Gaia ciência em uma nova edição de Além do bem e mal (ibid., p. 193). Isso colocaria de maneira mais próxima a perspec­ tiva segundo a qual Homero significa para Nietzsche um exemplo positi­vo de formulação de saúde afirmativa, em uma “grande saúde”, a qual, tendo em vista as relações entre o quinto livro de A gaia ciência e Assim falava Zaratustra, podem ser prioritariamente remetida ao prefácio e à primeira parte deste livro. Pressupondo estas aproximações, desejamos retornar ao comentário de Assim ­falava Zaratustra feito em Ecce homo, especificamente à já mencionada inspiração que ­Nietzsche afirma ser atuante na concepção do livro, remissão a partir da qual podemos ­compreender que essa noção, referida aos poetas de outrora, pode ser facilmente relacionada ao traço artístico que Nietzsche sempre elogiou nos gregos anteriores ao século VI a. C, representantes da cultura mítica. Estudos confirmam essa interpretação, de que no mundo grego anterior ao surgimento da grafia, o poeta ocupa a posição de portador e transmissor daquilo que então 166

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significava o vocábulo verdade (alétheia). Na poesia épica, o relato guardado na ­memória é transmitido com acompanhamento musical, o qual, tido como proveniente dos ­deuses e transmitido aos homens por intermédio das musas, conferia ao aedo um grau de autoridade plena no que se refere à própria visão de mundo dos h ­ elenos, ou segundo Marcel Detienne: “Com efeito, a palavra cantada, pronunciada por um poeta dotado de um dom de vidência, é a palavra eficaz; ela institui, por virtude própria, um mundo simbólico-religioso que é o próprio real” (Detienne, 1988 , p. 17). A interpretação da significação e função imagética do épico i­ ndicadas por Marcel Detienne adquire ainda mais proximidade com os pontos indicados por Nietzsche, ao afirmar que tal registro da palavra pode ser esclarecido se posto em relação com o ­traço fundamental, que é a imbri­ca­ção entre o conteúdo temático, moral, da poesia com a organização da sociedade em que se inseria (Ibid). No que se refere a ­Nietzsche, a compreensão desse vínculo possui dois momentos. Inicialmente ele busca retomá-lo, motivado pela arte wagneriana e com uma perspectiva reformista da cultura segundo padrões gregos. Em um momento posterior, essa mesma tentativa de restauração é denunciada como extemporânea, sem âmbito para a sua compreensão na modernidade. Todavia, mesmo a ­partir disso, o valor da potência da fruição estética não é negado. Isso é evidenciado no § 261, na primeira parte de Humano, ­demasiado humano I, no indicativo do autor em demonstrar a impossibilidade da expressão ­artística em seu tempo, se ela for pensada segundo padrões inerentes ao passado. Outro argumento a ser indicado como passível de aproximar a p ­ erspectiva nietzscheana do épico grego – aspecto que pode ser remetido a uma consideração tanto do ensinamento do além-do-homem como do aparecimen­to do termo aristocrático nas obras posteriores a Assim falava Zaratustra (Wotling, 1995, p. 342) – consiste no fato de que tanto a poesia grega quanto o ensinamento de Nietzsche tem um direcionamento formador não canônico, com características bastante próximas, tal como a ausência de justificação histórica ou fatual e o não remetimento a um tipo unívoco e representativo da excelência (aristeia). Por conseguinte, o elogio poético grego, ao organizar o mundo ­ático, o fazia segundo o modelo da soberania da sociedade arcaica, e, desse modo, pode ser compreendido como um elogio aristocrático (Detienne, 1988, p. 19). A poesia em Nietzsche e especificamente no que se refere ao ensinamento do além-do-homem, também visa a elogiar a excelência humana em sentido não específico. Associada ao épico – mas não ­somen­te a ele – ela exprime também o desejo de surgimento de um novo sentimento aristocrático, mesmo pressupondo que as aristocracias históricas não lhe possam servir de justificativa. A concepção aristocrática de Nie­tzsche não é, portanto, histórica, mas estética e, neste sentido, criadora. Se funda na força de sua capacidade imagética, no sentimento de beleza que suscita e que por meio dele pode servir de anteparo tanto 167

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contra o niilismo, como contra o temor advindo da assimilação do pensamento do eterno retorno. O que Nietzsche assimila dos gregos é a função e a significação estética da n ­ arrativa poética para a mentalidade autárquica da soberania. Entre os gregos essa o fazia ­segundo o modelo de uma ordenação ­ancestral do cosmo, cujas figuras ingentes eram os deuses, modelos e princípio de justificação da classe dominadora.30 Tratava-se, por ­conseguinte, de uma cultura para a qual não havia distinção entre real e simbólico e que se j­ustificava primordialmente por meio do relato poético. Há muitos aspectos que aproximam a noção de aristocracia em Nietzsche da dos ­gregos arcaicos e os ter integra ao ensinamento do além-do-homem. Se para os gregos os deuses eram seres existentes, a aspiração que suscitavam não podia ser remetida a um modelo definível. A multiplicidade de deuses e de heróis não possibilitava tal assentamento. A aristéia não pode ser reduzida a um tipo definível. De igual modo, o ­ensinamento do além-do-homem, a partir da crítica aos ideais das tradições filosófica e cristã, assim como de sua significação estética, não implica a ­indicação de um fim determinado ou de uma meta moral fixa (Stegmaier, 2009, p. 34). Antes, ele consiste em um ativo ansiar pela superação engrandecedora da condição momentânea (NF/FP: KSA 10, 4 [20], novembro de 1882 – fevereiro de 1883). Ele representa um tipo (Art) elevado e não um indivíduo isolado (Wotling. 1995, p. 343) e delimitado, pois no domínio da cultura a grandeza é medida pela grandeza do estímulo (Reiz), precisamente quando os mais poderosos pensamentos podem ser suportados e amados (NF/FP: KSA 10, 2 [5], verão – outono de 1882). Outro ponto significativo é a seletividade do ensinamento que, considerada a influência da epopeia na filosofia de N ­ ietzsche, possibilita com que o anseio pela superação (Überwindung)31 indicado no ­ensinamento do além-do-homem possa ser aproximado do desejo incansável do aristocrata ­homérico pela Areté,32 com vistas à afirmação do indivíduo em um meio que era, antes de tudo, a expressão e a reprodução de uma concepção de mundo fundada na força e na autoridade (MA I/HH I § 461). 30

O que é evidenciado na Ilíada na afirmação de Agamenon a Aquiles: “Reis não queremos ser todos que, aqui, nos achamos reunidos. É mau que muitos comandem; um, só, tenha o posto supremo; Um, seja o rei, justamente a quem Zeus, descendente de Crono, deu cetro e leis, para o mando, no povo exercer inconteste.” Ilíada. Canto II (204 – 207), p. 62. 31 A relação entre Homero e autossuperação já foi aqui indicada no § 224 de BM. 32 Acerca do significado desse conceito, escreve Jaeger: “Não temos na língua portuguesa um ­equivalente exato para esse termo; mas a palavra ‘virtude’, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.” (1989, p. 18).



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Em favor da possibilidade de aproximação destes aspectos, nos repor­tamos novamente ao comentário de Assim falava Zaratustra feito em Ecce homo, em especial ao quarto tópico. Nele, Nietzsche, após ter se referido à “grande saúde” e à sua experiência inspiratória, indica que em Roma, cidade na qual tivera dificuldades causadas por problemas de s­ aúde, encontrava-se em local totalmente impróprio para o poeta Zaratustra. Roma, enquanto antiga capital do império romano, nobre, afirmativo, expressão de uma moral senhorial - moral que, contudo, cristianizou-se (Witzler, 2001, p. 115) –, não pode ser o local de surgimento das palavras do sábio persa. A cidade para a qual o autor se dirigiu em seguida, Áquila, já é indicada por ele como local apropriado, por ter sido uma cidade que se rebelara contra Roma e que para ele encarna uma ideia ­contrária à capital romana, tal qual o local que o autor afirma desejar fundar, contrário à igreja (EH/EH Z/Z § 4). É claro nessa referência que Nietzsche quer distanciar seu Z ­ aratustra tanto da assimilação dos gregos pelos romanos, quanto do cristianismo, e isso indica também um traço a ser considerado ao se cogitar a ­influência grega atuante na sua filosofia, especificamente com relação ao e­ nsinamen­to do além-do-homem. Com efeito, após as afirmações mencionadas acima, o autor indica em Assim falava Zaratustra uma parte decisiva, intitulada “Das velhas e novas tábuas”. Essa se encontra presente na terceira parte da obra e é composta por trinta pequenas partes, articulando vários posicionamentos; porém, dentre esses, encontramos a indicação de uma nova concepção de mundo e de formas de relacionar-se com ele, às quais são aliados o além-do-homem e o apelo pela criação de uma nova n ­ obre­za, tudo isso pressupondo a quebra das antigas tábuas de valor e a incomple­tude das novas (Z/Z Das velhas e novas tábuas § 1). Dentre os demais temas mencionados, encontram-se passagens significativas para a argumentação desenvolvida aqui. Inicialmente, a indicação de que a ­destruição das velhas tábuas implica a superação do debate acerca do bem e do mal e que esta questão deve ser, a partir das novas condições, remetida ao criador: Mas aquele que cria uma meta para o homem e dá à terra o seu sentido e o seu futuro: ele primeiramente cria algo que é bem e mal” (ibid., § 2). A referência ao bem e ao mal relacionados à atitude criadora, m ­ arca a necessidade de abandono das velhas cátedras e da velha presunção de conhecer os dois princípios. O ato criador, desse modo, afastado de toda pressuposição cognoscitiva tradicional,33 encontra sua justificação na criação de um sentido e de um futuro para a terra, ­apartado desde então do espírito de gravidade e suas criações: constrição, ordenação, n ­ ecessidade, continuidade, finalidade e vontade de bem e de mal (ibid.). 33

Porém, com uma “verídica selvagem sabedoria” (wild Weissheit wahrlich) como grande anseio. Ibid § 2. 169

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Zaratustra menciona que foi durante uma tal existência, sobre a qual se dança e se passa por cima dançando, que foi recolhida a palavra além-do-homem, assim como a convicção de que o homem é algo que deve ser superado, de que ele é uma ponte e não um fim (Zweck), e que lhe cabe ser feliz pelo seu meio dia e crepúsculo, como que no caminho para novas auroras (ibid., § 3). Com o seu poetar, Zaratustra vem para ­redimir os homens do acaso, ensina-lhes a criar o futuro e a redimir de maneira criadora tudo o que foi, a isso ele chama de redenção. Redimir o passado no homem e recriar todo o “assim foi” até que a vontade diga: “Mas assim eu o quis! Assim irei de querê-lo”. Isso lhes designei redenção. Somente isso ensinei-lhes a chamar redenção (ibid.).

O além-do-homem advém de uma atitude libertária ante a antiga moral e de um ato criador que, recriando o passado lhe dá um sentido futuro e, desse modo, o redime. Uma das novas tábuas postas diante de Zaratustra diz precisamente que o homem necessita ser superado (ibid., § 4) e para isso há muitos caminhos, cuja escolha cabe a cada um, pois superar a si mesmo é um direito que necessita ser tomado e não dado (ibid., § 4). O sentido da autossuperação é a criação de uma nova ­nobreza (neuer Adel), que saiba viver em perigo constante, que não deseje conservar-se e que assim se s­ acrifique com vistas ao outro lado (ibid., § 6). Precisamente esta ousadia temerária é responsável por uma nova espécie de verdade de ciência e pela quebra das antigas tábuas (ibid., § 7). Esta nova nobreza distingue-se da plebe (Pöbel) precisamente pelo seu apreço pelo passado. Mediante ele, ela deverá escrever em novas tábuas a palavra “nobre” (ibid., § 12), tornando aqueles que o fizerem semeadores do futuro (Säemänner der Zukunft). Reafirmando a separação entre a sua concepção de nobreza e a de seu tempo, Nietzsche afirma que esta nova casta nada tem a ver com ouro e não pode ser comprada, ela tem origem em sua própria honra. Não de onde viestes, seja, doravante, a vossa honra, mas para onde ides! Que a vossa vontade e o vosso pé, que quer ir além de vós mesmos – seja a vossa própria honra! (ibid., § 12).

Mas o fito da honra não está na restituição do passado, mas sim no futuro, no porvir pleno de possibilidades. A terra dos vossos filhos deveríeis amar: seja esse amor a vossa nova nobreza – o não descoberto, nos mais longínquos mares! A elas digo para as vossas velas procurar e procurar! Deveis fazer bem aos vossos filhos, para que eles sejam filhos de seus pais: deveis assim redimir todo o passado! Essa nova tábua eu coloco acima de vós! (Ibid § 12). 170

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A nova nobreza deve significar o contraposto a toda forma de negação do mundo sob a justificativa do sofrimento inerente à existência, aos eternos descontentes (Nimmer-Frohen). Entretanto, seu significado mais profundo deve advir do eterno desejo de criação, pois mesmo o que existe de melhor deve ser superado (ibid., § 14). Assim, é-lhe necessário saber não desperdiçar as suas forças com qualquer oponente, para, desse modo, poupar-se para o inimigo mais digno, do qual é necessário se orgulhar (ibid., § 21). O seu ambiente, portanto, não é o do povo, que não merece nenhum rei e está apenas a cata de vantagens para si: Espreitam-se uns aos outros, espreitam uns aos outros alguma coisa – chamam isso “boa vizinhança”. Oh, bem aventurado tempo longínquo em que um povo dizia a si mesmo: “eu quero ser senhor dos outros povos!” Então, meus irmãos, o melhor deve dominar, o melhor também quer dominar! E, onde o ensinamento soa diferente, há, por lá – falta do que é melhor (ibid., § 21) . Essa concepção hierárquica das relações entre os homens advém do passado, pois: Aquele que penetrou a fundo as antigas origens acabará, estai certos, por procurar fontes do futuro e novas origens. (…) Porque o terremoto mesmo – obstrui, sim, muitas fontes e cria muita gente sedenta, mas, também, traz à luz forças internas e misteriosas. O terremoto revela novas fontes. Em terremotos, do ruir de velhos povos, irrompem novas fontes.

O traço de inatualidade dessa nova concepção de nobreza também pode ser ante­ visto a partir de sua total oposição aos atuais bons e justos, àqueles que representam o maior perigo para o futuro dos homens (die grösste Gefahr aller Menschen-zukunft) (ibid., § 26). O que eles mais odeiam é o criador (Schaffender), aquele que parte as tábuas dos velhos valores; o destruidor (Brecher), ao qual chamam de criminoso (Verbrecher) e, d ­ esse modo: “sacrificam a si mesmos o futuro – crucificam todo o futuro dos homens!” (ibid.). Esse futuro decorre do descobrimento da terra do homem, o que exige dele que se torne navegador esforçado e paciente, a fim de se lançar no mar e atingir a terra pátria, a terra de seus filhos (Kinder – land), que se encontra longe, mas para onde arremete o grande anseio (grosse Sehnsucht) (ibid., § 28). Essa vida, que assim exige dureza, é voltada à criação e “os criadores mesmos são duros” (Die Schaffenden nämlich sind hart), para assim poderem criar obras eternas: Felicidade, escrever na vontade dos milênios, como em bronze – mais duros do que o bronze, mais nobres do que o bronze. Duríssimo é somente o mais nobre. Essa nova tábua, meus irmãos, suspendo por cima de vós: tornai-vos duros.

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O que possibilita a criação do além-do-homem, da nova nobreza a ele r­ elacionada, assim como a redenção do passado, é a transformação de toda necessidade em um grande destino; de modo que com Zaratustra ela torne o homem pronto e maduro para o grande meio-dia, pronto para um arco que almeja uma seta, que, por sua vez, deseja uma estrela ­pronta e madura, que é feliz pelas destruidoras setas do sol e está pronta para se destruir na vitória, na grande vitória. Uma estrela pronta e madura em seu meio dia, incandescente, traspassada, feliz ante destruidoras setas solares : Um sol mesmo e uma inexorável vontade solar; pronta para destruir na vitória Ó vontade, mudança de toda necessidade, tu, minha necessidade! Reserva-me para uma grande vitória! Assim falava Zaratustra. (Z/Z “Das velhas e novas tábuas” § 30)

O tópico final desta parte de Assim falava Zaratustra confirma aquilo que aludimos acima, que a retomada de pressupostos gregos e a sua utilização efetiva como discurso contrário às valorações morais torna-se possível apenas devido à transvaloração de todos os valores (Marton, 2014, p. 123), ação que derruba os antigos dogmas e então possibilita ao homem voltar-se para si mesmo, para sua história e seu passado mais verdadeiros, não deturpados pela moral religiosa (NF/FP: KSA 9, II [175] Primavera-outono de 1881). Então, a partir deles, torna-se possível desejar superar-se e querer determinar o próprio futuro de uma maneira altiva e viril ante a vida e a sua dureza. É a transvaloração que possibilita que o passado seja retomado e redimido com vistas ao homem futuro, liberto da moral das antigas tábuas e tendo a sua frente o além-do-homem (Wotling, 1995, p. 335) como ideal e contraideal, como forma não apenas de se contrapor aos ideais vinculados à moral (Müller-Lauter, 1971, p. 114), mas t­ ambém como expressão de uma nova concepção do mundo, entendido por meio do ­pressuposto da vontade de poder. Considere-se ainda que, para Nietzsche, um ideal apenas se ­afirma se ele se confronta com outro ideal; assim se supera o ideal único (ibid., p. 118), pois esta é a condição que evita o dogmatismo de toda e qualquer idealidade. A indicação desta passagem de Assim falava Zaratustra em Ecce homo, justamente após a referência ao antigo conceito de inspiração, possibilita­a confirmação de que naquela obra é possível pensar em um novo olhar para o passado, não relacionado à moral das antigas tábuas. O sentido futuro conferido à atitude da destruição da velha moral ­revela, no entanto, que não se trata de um retorno unicamente, mas, a partir do seu resgate como contradiscurso,34 de mostrar que já houve outras formas de valorar e 34

Nesse ponto parece ser pertinente a interpretação do movimento de Nietzsche em favor do mito, não como um anseio de restabelecimento, porém como a­ rgumento de uma crítica aos rumos e padrões adotados pela cultura ocidental. A esse ­respeito cf. Salaquarda (1979, p. 179). 172

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que, portanto, é possível que se criem novas, aspecto que o apelo por uma nova n ­ obreza evidencia. Mas voltemos aos traços com os quais Zaratustra deseja caracterizar esta nova nobreza: o amor à terra, a decisão pessoal, a oposição à plebe (NF/FP: KSA 10, 16 [27], outono de 1883), incapaz de aspirar algo além de si mesma e de seus pequenos p­ razeres, o desejo de autossuperação, o sacrifício futuro, o viver na adversidade e a sua ­diferenciação dos bons da moral, e os aproximemos dos traços da aristocracia grega, tal como são retratados na poesia homérica e em Arquíloco. Uma primeira forma de aproximar ambas as p ­ erspectivas pode ser alcançada por intermédio da análise da aristocracia guerreira grega. Segundo Werner Jaeger, em seu longo estudo ­sobre a Paideia grega, este conceito deve ser pensado na Hélade, i­mediatamente a partir de um retorno à antiga aristocracia guerreira que, com seus princípios seletivos e de diferenciação, é a fonte da identidade dos gregos: A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma nação. A história da formação grega – o apa­recimento da personalidade nacional helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa no mundo a­ ristocrático da Grécia primitiva, com o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao qual aspira o escol da raça” ( Jaeger, 1989, p. 18).

Segundo Jaeger, na distinção grega entre educação como aprendizado prático e formação do indivíduo em sentido pleno, interior e exteriormente, é necessário compreender que a formação postulou-se para essa aristocracia, segundo princípios ideais, ou ainda, segundo os ­modelos postos figurativamente pela sua religião. Da educação, nesse sentido, distingue-se a formação do homem por meio da criação de um tipo ideal, intimamente coerente e claramente d ­ efinido. Essa formação não é possível sem se oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser. A utilidade lhe é indiferente ou, pelo menos, não essencial. O que é fundamental nela é o caloν, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem desejada, do ideal (ibid., p, 17).

O conceito decisivo da formação grega, tal como se apresenta na versão mais antiga e original de sua aristocracia militar, na Ilíada (ibid., p. 28), é o conceito de Areté.35 Palavra do mesmo grupo semântico de aristoi, nome que designa um grupo numeroso de guerreiros que se ergue acima da massa e no interior do qual se dá enfaticamente a luta por ela como mais alto e distintivo prêmio (ibid., p. 20). Segundo Jaeger, entre os indivíduos desses grupos ocorria o empenho incessante e durante toda a vida 35

A esse respeito escreve Jaeger: “A luta e a vitória, no conceito cavaleiresco, a autêntica prova de fogo da virtude humana. Elas não significam simplesmente a superação física do adversário, mas a comprovação da arete conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais” (Paideia, p. 21). 173

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pelo alcance da supremacia entre seus pares, uma corrida para alcançar tal distinção ( Jaeger, 1989. p. 21) e esse ponto pode ser estendido até o campo da delimitação do espaço no qual atuava o aristocrata grego. Desse modo, na delimitação do seu âmbito de ­presença e atuação, o guerreiro se circunscrevia a um espaço delimitado, ao centro (eς mesoν das assembleias dos aristoi, local da partilha do butim de guerra, feito segundo o desempenho de cada combatente (Detienne, 1988, p. 47). A esse âmbito, tal como podemos ler na Ilíada, apenas tinham acesso ­aqueles que afirmaram o seu singular valor individual em combate ou com f­ açanhas, o que o tornava para a elite guerreira o lugar comum, que pelo próprio caráter aristocrático da epopeia, apresentava-se como uma assembleia dos heróis. No grupo dos guerreiros profissionais, a palavra-diálogo com seus t­raços específicos continua sendo, apesar de tudo, um privilégio, o privilégio dos “melhores”, dos aristoι do laós. A essa elite opõe-se a ‘massa’, o dêmos, que designa a circunscrição territorial, depois, o conjunto de pessoas que nele habita. O dêmos “não ordena, não julga, não delibera…Não é, todavia, nem povo, nem estado” (ibid., p. 53).

Na Ilíada, epopeia que descreve acentuadamente a temática da guerra e dessa classe, todos os esforços dos anéres (andrés), homens na plenitude de sua natureza viril (Vernant, 1973, p. 31), são voltados ou para a glória ou para a bela morte no campo de combate. O aristocrata homérico, nessa epopeia, tinha em vista o reconhecimento do seu valor como guerreiro, de suas aptidões corpóreas e de seu adestramento para a atividade da guerra. Com o aprimoramento dessas qualidades, ele desejava suplantar todos os outros que, como ele, adquiriram o direito estar no centro da assembleia dos aristoi (NF/FP: KSA 10, 7 [101], primavera – verão de 1883). Desejamos acentuar, baseados nos traços basilares referentes à descrição normativa do aristocrata na epopeia homérica, uma possível presen­ça desses mesmos aspectos na filosofia de Nietzsche.36 Isso a partir da descrição elogiosa da mentalidade aristocrática homérica, que o filósofo empreende (NF/FP: KSA 11, 25 [293], janeiro de 36

O interesse de Nietzsche pelos antigos gregos está documentado nos três ­primeiros volumes da Kritische Gesammtausgabe (KGW). Nesses volumes, encontram-se textos da pré-adolescência do autor com significativas referências a temas da história e da cultura grega. Conf. Barros (2006). Em um escrito póstumo de 1883 podemos ler: “Conquistar para mim a completa imoralidade do artista no sentido de minha matéria [(Stoff )] (Humanidade) [(Menschenheit)]: Esse foi o trabalho de meus últimos anos. Para conquistar para mim a liberdade espiritual (geistige Freiheit) e alegria (­Freudigkeit), para poder criar e não ser tiranizado por estranhos ideais (fundamentalmente pouco advém disso, do que eu tinha me desprendido: porém, minha forma favorita de desprendimento (Losmachung) era a a­ rtística: isto é, eu esboçava uma figura (Bild) de quem eu tinha me interessado até então: assim Schopenhauer, Wagner, os gregos (o gênio, o santo, a metafísica, todos os ideais até agora, a mais alta moralidade) – ao mesmo tempo um tributo de gratidão” (NF/FP: KSA 10, 16 [10] Outono de 1883). 174

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1884). Deve-se ­ressaltar que o louvor se remete a uma sociedade que tem seus valores ­transmitidos e perpetuados por uma longa tradição artística através unicamente de relatos orais (EF: HF, p 256), apenas a partir da qual um indivíduo tem ou não direito à existência. Hoje sabemos que tanto a Ilíada como a Odisséia representam a última fase do movimento épico na Grécia, originados dos poemas, sagas, lendas e mitos dos gregos.37 Estudos como o de Marcel Detienne, Jean Pierre Vernant, dentre outros, nos possibilitam uma maior aproximação do período de elaboração desse material, assim como do ambiente no qual ele foi produzido. Sabemos que em uma cultura sem grafia, a ­memó­ria possuía uma enorme importância na transmissão e manutenção dos caracteres culturais. No que diz respeito ao poeta e sua atividade a­ ssociada aos valores da soberania guerreira, seu louvor se direcionava imediatamente aos fatos e grandes feitos afirmativos da importância desta casta, os quais apenas por intermédio do aedo poderiam ser perpetuados. Por mais prodigiosa que fosse a sua memória, ela jamais poderia reter todos os fatos ocorridos, o que implica em uma dupla significação da memória na Grécia ­arcaica: primeiramente a necessária seletividade da memória do poeta, que, explicitamente adotando o critério da excelência e superio­ridade afirmada na religião, adota a memória como princípio temático de suas composições elogiosas da excelência divina, humana e animal. Disso decorre o segundo aspecto a ser indicado, o da necessidade do indivíduo inserido em uma tal cultura de cada vez mais acentuar a sua singularidade e destacar-se dos demais homens (Detienne, 1988, p. 20), pois apenas assim, e mediante grandes feitos no campo de batalha, ele poderia aspirar à perpetuação de seu nome para as gerações futuras.38 Ligado aos ritos de soberania e, portanto, às explicações religiosas acerca da ordenação do universo, a palavra poética, no que se refere à aris­tocracia guerreira, adquire um movo significado: ela celebra simultaneamente as façanhas individuais e singulares dos guerreiros, assim como conta a história dos deuses (ibid., p. 17). Enquanto palavra laudatória em uma cultura oral é ela que estabelece os graus de significação dos feitos e da vida vivida. Acerca disso escreve Detienne: “Definitivamente, um homem vale o mesmo que o seu logos. São os mestres do louvor, os ­serventes das musas, que decidem sobre o valor de um guerreiro: são eles que concedem ou negam a vitória” (ibid., p. 19). 37

Nunes, Carlos Alberto. A questão homérica § 1, São Paulo: Ediouro, s. d. É precisamente isso que canta o poeta no início do V canto acerca do Herói Diomedes: “Palas Atenas, a donzela de Zeus, em Diomedes infunde força e coragem sem par, para que entre os Argivos pudesse sobressair mais que todos e glória imortal conquistasse.” Ilíada. canto V (1-3). 38

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O mundo do herói homérico efetiva-se no âmbito de exigências em graus cada vez mais elevados, poder-se-ia mesmo dizer que sua e­ xistência consiste em um constante superar-se, em aprimorar a sua Areté, para pô-la à prova diante da de seus concorrentes,39 o que pode ser e­ videnciado, por exemplo, na Ilíada, nas palavras de Glauco diante de Diomendes: Quanto a mim, tenho orgulho de filho chamar-me de Hipóloco, que me mandou para Tróia sagrada, insistindo comigo para que sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me, sem desonrar a linhagem dos nossos, que sempre entre os fortes de Éfira foram contados, bem como na Lícia vastíssima (Ilíada. Canto IV. Versos 206 -210).

O anseio pela memória é o anseio pela eternidade, pela perpetuação imagética de uma vida, unicamente possível mediante a sua guarda pela memória e pelo exercício poético. Assim, pela justificação da vida vivida, a partir das exigências vivificadoras da memória, essa passa a desempenhar o único meio de conferir sentido à vida do ­indivíduo singularíssimo. Se o herói deseja a morte gloriosa, ele o faz não por uma aspiração de abandono ou de autodestruição, porém, por uma ambição desmedida de fazer-se presente eternamente na memória dos homens. Este aspecto podemos antever no canto III da Ilíada, expresso pelo poeta nas palavras de Agaménone, ao estabelecer os termos do combate a se dar entre Páris e Menelau : “porque a memória do feito para que às gentes vindouras se estenda” (Ilíada. Canto III. Verso 287);40 ou ainda no discurso de Heitor ao lançar aos gregos o desafio de um combate singular: Se febo Apolo, porém, me fizer vencedor do adversário, despoja-lo-ei da armadura e, levando-a para Ílio sagrada, no templo irei pendurá-la de Apolo, frecheiro infalível, mas o cadáver será restituído aos navios simétricos, para que os fortes Aquivos cacheados lhe dêem sepultura e um monumento lhe elevem na margem do lago Helesponto; para que possam dizer às pessoas dos tempos vindouros, quando, em seus barcos de remos, cruzarem o mar cor de vinho: “Eis o sepulcro de um homem que a vida perdeu há bem tempo; pelo admirável Heitor, em combate esforçado, foi morto” 39

Exemplo significativo com respeito a esse aspecto são as palavras de Agamenon a Aquiles, o herói modelar da epopeia: “És, dos monarcas alunos de Zeus, a quem mais ódio tenho. Sempre encontraste prazer em contendas, combates e lutas”. Ilíada. Canto I. 176-7. 40 Ilíada. Canto III. 287. 176

o além-do-homem enquanto ideal estético

Isso dirão, certamente; imortal há de ser minha glória (Ilíada. Canto VII. 81-91).

A morte heroica, a ser buscada no campo de batalha, no auge da juventude e da beleza, impele o aristos a incansavelmente ocupar os primeiros lugares no combate. Dele é exigido estar sempre onde a luta é mais acirrada e as exigências de força e de ­destreza sejam maiores que as dos demais combatentes; pois ele aspira fundamentalmente que, em caso de morte pelo traspasso, essa venha a propiciar-lhe a mais alta e imorredoura glória.41 A morte heroica tem, por conseguinte, este c­ aráter ambíguo: por um lado, ela é fruto de um profundo apreço pela existência,42 que impele o herói a desejar vivê-la intensamente, embelezando-a e fugindo da “inamável velhice, que agrava excessivamente a postura”;43 por outro, ela é a confirmação da condição terrível a qual estão sujeitos os homens, “os mais infelizes dos seres que vivem na face da terra e sobre ela se movem”,44 mas que mesmo assim, a desejam intensamente. Para o aristocrata homérico na Ilíada o sentido da existência é conferido pela sua possibilidade de embelezamento e salvaguarda da ação aniquiladora do tempo e do esquecimento. Esta realização encontra-se ao alcance apenas dos indivíduos que, mediante grandes feitos heroicos e de uma morte alcançada na tentativa de realização de atos de bravura, tornam-se a demonstração do sentido da bela morte a ser contada às gerações futuras. Assim eles perpetuam o mesmo modelo que já lhes fora transmitido45 41

Por conseguinte, são estas as palavras de Heitor, ante as muralhas de Tróia e ao perceber a proximidade de sua morte pelas mãos de Aquiles: “Pobre de mim! É bem certo que os deuses à morte me votam. Tive a impressão de que o forte Deífobo estava a meu lado, mas na cidade se encontra; foi tudo por arte de Atena. Inevitável, a morte funesta de mim se aproxima. Há muito tempo, decerto, Zeus grande e seu filho flecheiro determinaram que as coisas assim se passassem, pois eles, sempre benévolos, soíam salvar-me; ora o Fado me alcança. Que pelo menos, obscuro não velha eu a morrer, inativo; hei de fazer algo digno, que cheque ao porvir, exaltado” (id.., Canto XXII. 297- 305). 42 Dai Aquiles dizer a Ulisses acerca de Agamenon na cena da comitiva: “Tal como do Hades as portas, repulsa me causa a pessoa que na alma esconde o que pensa e outra coisa na voz manifesta”. Ilíada. Canto IX. 312 – 313. 43 Id., Canto XXIII. 623. 44 Id., Canto XXII. 446-7. 45 Acerca da significação desse legado para a “formação” do herói homérico, nos remetemos à figura do próprio Aquiles. Afastado dos combates e recluso ao seu navio, é descrito no momento da chegada da pequena comitiva que pretende demovê-lo de sua decisão de não mais participar dos combates nos seguintes versos: “Quando chegaram às tendas e naves dos fortes mirmidões, aí enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora 177

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e desejam impelir, no mesmo caminho, os homens futuros. É neste sentido que se deve entender a lógica da honra heroica, o seu apreço pela vida, manifesto simultaneamente como desejo de morte, pois segundo a sua ótica: “São mais poupados na guerra os que sabem morrer bravamente; os fugitivos nem glória jamais terão nem defesa” (Ilíada. Canto XIX. 564-5). A perspectiva aristocrática forneceu o germe da noção de autoaprimoramento, que posteriormente constituirá o cerne da concepção clássica de Paideia grega, que Platão busca alterar e adequar segundo seus pressupostos filosóficos. A oposição a Platão feita por Nie­tzsche mediante um retorno à cultura grega pré-filosófica oferece importantes indícios de que pressupostos compreendidos por ele na época mítica dos gregos são transpostos para a sua filosofia como forma de oposição ao platonismo e ao cristianismo. Diante do momento histórico de construção de identidades nacionais na Europa e decisivamente na Alemanha, o autor de Assim falava Zaratustra faz uso do culto à ­singularidade grega em oposição ao processo de massificação interpretado por ele como em franco ­andamento na Europa. Nesse sentido, a noção grega de aprimoramento individual lhe fornece um ponto de partida, até mesmo histórico, a partir do qual a oposição ao dogmatismo filosófico possa ser levada a cabo (NF/FP: KSA 11, 25 [208], janeiro de 1884). A mentalidade aristocrática grega e­xpressa na epopeia tinha por princípio primeiro a formação do indivíduo ­segundo padrões ativos, afirmativos e embelezadores de sua conduta, direcionados a fazê-lo ambicionar insaciavelmente os mais altos valores distintivos.46 Sua expressão poética era simultaneamente o elogio e o c­ulto á ­excelência, critério primeiro e único estatuto da palavra elogiosa, na qual o homem comum não se fazia presente. Esses são critérios que Nietzsche claramente pressupõe à sua ­aristocracia espiritual. A perspectiva aristocrática se justifica por ser o escol entendido como fonte originária das valorações morais (NF/FP: KSA 10, 7 [22], primavera – verão de 1883), o que torna imprescindível o seu reaparecimento tendo como fundamento um ­conceito elevado de cultura e de indivíduo. O conceito de aristocracia de Nietzsche pode ser so­lidamente interpretado a partir desses princípios, ele não designa especificamente uma classe social ou política (NS/FP: KSA 13,16 [17], primavera – verão de 1888), mas uma disposição de espírito cuja comunicação poética Zaratustra faz por meio do ensinamento do além-do-homem.

de cavalete de prata, toda ela de bela feitura, que ele do espólio do burgo de Eecião para si separara. O coração deleitava, façanhas de heróis cantando.” (Ilíada Canto IX 185-189, p. 156). 46 Tal é a acusação feita a Aquiles, modelo de excelência mas, ao mesmo tempo, a mais contraditória personagem de toda a Ilíada, que não demonstra nenhuma deferência com relação ao líder do exército, mas unicamente o desejo incessante de se sobrepor a todos os demais. Cf. Canto I. V. 287. 178

o além-do-homem enquanto ideal estético

Isso não deve significar que Nietzsche tente restabelecer historicamente a mentalidade aristocrática grega. Antes, ela lhe serve para evidenciar as formas moralizadas de dominação inerentes à própria universalização moderna. O seu intuito fundamental é apresentar uma forma de superação possível do niilismo e do fim da criação (NF/FP: KSA 10, 4 [81], novembro – fevereiro de 1882) cuja retomada á a intenção da assimilação do trágico e do dionisíaco à filosofia e expresso pelo pensamento do eterno r­ etorno do mesmo. O ensinamento do além-do-homem possui com isso uma forte e determinante significação estética, cuja j­ ustificativa fundamental (MA II/HH II § 218) é o seu significado existencial, tal qual a arte grega.47 Trata-se, portanto, na filosofia de Nietzsche voltada para a figura de Zaratustra, de uma revalorização positiva da força de embelezamento da arte, o que lhe confere significação vital, precisamente como antídoto contra o niilismo e a sensação de vazio causada pela crise dos antigos va­lores da tradição (Machado, 1997, p. 19). Mostrar os traços de proximidade entre o ensinamento do além-do-homem e a perspectiva ­heroica da poesia épica homérica significa indicar que, com a constatação do ocaso dos valores tradicionais, outras formas de consideração podem ser conside­radas possíveis no ­domínio da expressão (NF/FP: KSA 13, 16 [16], primavera verão 1888). É a percepção da periculosidade para a vida dos antigos pressupostos estabelecidos desde Platão, mantidos e acentuados pela crença judaico-cristã ( JGB/BM § 62), que Nietzsche interpreta como sendo o ponto culminante que a cultura ocidental alcança em seu tempo (NS/FP: KSA 13,16 [15], primavera – verão de 1888). A evidência do ocaso desses valores manifesta no fatalismo da cultura, de onde decorre a constatação da morte de Deus, que significa o abandono dos pressupostos tradicionais fundados na afirmação da paridade entre verdade e virtude. O vazio causado pela supressão do absoluto expresso pela deidade é por Nietzsche, contudo, interpretado positivamente, como indício da possibilidade do novo, de novas criações. A retomada dos pressupostos gregos respeita esta perspectiva. Ela significa não o desejo de restabelecer um novo modelo canônico, absoluto para o homem enquanto cura contra o niilismo, mas antes mostrar a virtualidade mesmo de uma aceitação ­deste como elevado desafio para indivíduos de uma cultura, que assim se veem confrontados com a experiência de um mundo desconhecido, da imprevisibilidade dos conflitos dinâmicos de força, que Nietzsche filosoficamente nomeia de dionisíaco (Marton, 2010, p. 146). 47

Em um escrito póstumo do período final da elaboração da primeira parte de Zaratustra, intitulado Discursos aos meus amigos (Reden an meine Freunde), podemos constatar o retorno de Nietzsche a temas postos em NT. Nesse pequeno escrito pode-se encontrar claramente posta a noção de justificação estética da vida, em contraposição à moral, cujo modelo é precisamente a arte trágica grega. Cf. NF/FP: KSA 10, 7 [7] Verão de 1883. 179

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Dessa maneira, a aceitação do trágico e do dionisíaco da existência implica uma postura heroica, que em Nietzsche está associada ao conhecimento também trágico, aquele que não leva a redenção, ao bem moral ou à salvação, mas inapelavelmente à própria destruição (NF/FP: KSA 10, 222, verão – outono de 1882). Nisso se revela a sua grande virtude e o seu caráter épico, pois o desejo de conhecer com suas representações interpretativas não significa nada além que uma luta imagética contra a morte inevitável. Por meio do embelezamento e do apreço pela indeterminação da existência confere a concepção trágica do conhecimento nova e positiva valorização da vida e do existente, mas também no próprio ocaso (Z/Z I “Da morte livre”, p. 95). Devido a esses traços Assim falava Zaratustra pode ser pensado como uma ­tragédia, mas também como paródia do próprio trágico, do épico e mesmo do heroísmo, pois o seu ideal só se torna possível a partir da impossibilidade de crença em qualquer forma objetiva de idealização fundada no conhecimento incondicionado, daquilo que Nie­tzsche chama de “loucura do período da virtude” (Wahnsinn der Tugend-Periode). A partir disso é possível de se falar de heroísmo, designado como “ocaso em consequência da virtude” (NF/FP: KSA 10, 1[32], julho – agosto de 1882). Ele pode ser interpretado como anúncio de possibilidade diante da compreensão da falibilidade e do comprometimento moral de todo discurso com pretensão a sistema ou doutrina. É por meio da palavra poética que Nietzsche deseja novamente revelar de modo afirmativo o caráter trágico da existência, pensada a partir de então segundo a gravidade do eterno retornar de todas as coisas (Machado, 1997, p. 24), tornada suportável pela beleza desafiadora do ensinamento do além-do-homem. Eu não quero a vida novamente. Como eu a suportei? Criando. O que me faz suportar o momento? O vislumbrar o além-do-homem, aquele que afirma a vida. Eu mesmo tentei afirma-la – Há! (FP: KSA 10, 4 [81], novembro de 1882 – fevereiro de 1983).

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Considerações finais

Ao conceber Assim falava Zaratustra como tragédia Nietzsche pode v­ oltar a fazer uso de pressupostos dos princípios artísticos para ele fundantes do trágico grego: do dionisíaco e do apolíneo. Tal fator aproxima este livro de seu escrito inaugural. Esta proximidade, como foi mostrada, é indicada pelo próprio autor no prefácio posterior a­ crescido à obra, onde podemos encontrar toda a confluência de argumentos que possibilitam esse retorno, tais como o afastamento do romantismo e da metafísica e, a partir disso, a possibilidade do dionisíaco e de uma nova arte da qual Zaratustra é trasgo (Unhold) (GT/NT Tentativa de autocrítica § 7). A consideração dessa imediação implicou por sua vez a necessidade de interpretar a aproximação entre escritos distanciados por mais de uma década a partir da ­declarada importância conferida a Assim falava Zaratustra. Desse modo, pareceu bastante plausível que o ressurgimento do dionisíaco deveria ser pensado como pressuposto de justificação à presença de caracteres de seu outro complementar, do apolíneo (Barrack, 1974, p. 115), nos ensinamentos de Zaratustra. Segundo a perspectiva de O nascimento da tragédia, Assim falava Zaratustra, concebida como obra trágica, é passível de também ser interpretada como contendo caracteres de ambos os impulsos artísticos. Isso possibilita que se compreenda o ensinamento do além-do-homem como a bela imagem, que serve de preparação e antídoto para o difícil suportar do ensinamento fundamental de Zaratustra, que é o pensamento do eterno retorno do mesmo. Mas esse ressurgimento traz consigo pressupostos novos, subentendidos a partir de novos direcionamentos teóricos de Nietzsche, decisivamente depois de sua decepção com o wagnerianismo e afastamento do pessimismo de Schopenhauer. Para que fosse possível analisar de forma pertinente a retomada desses pressupostos mostrou-se necessário ­analisar a partir de quais outros intentos o autor remete-se novamente ao seu O nascimento da tragédia. A indicação dos objetivos desta retomada encontra-se volumosamente indicada tanto nos prefácios de 1886, como em Ecce homo, os quais visam decisivamente a fornecer dados à compreensão de Assim falava Zaratustra, cuja recepção e compreensão não satisfizeram as expectativas de seu autor. Todavia, o estatuto do trágico se altera decisivamente no espaço de tempo que separa O nascimento da tragédia de Assim falava Zaratustra e isso diz respeito também a Apolo e Dionísio. Os novos direcionamentos de Nietzsche a partir de Humano, de181

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masiadamente humano influenciam nesta nova consideração. Enquanto esses dois princí­ pios são pensados segundo a perspectiva ontológica da metafísica do artista, que colocava o primeiro como força atuante no nível do fenômeno e o segundo como coisa em si, como vontade propriamente dita, na filosofia posterior de Nietzsche (Barrack, 1974, p. 116), o dionisíaco possui significação central, ao passo que em Assim falava Z ­ aratustra Nietzsche não emprega o termo Apolo uma única vez (ibid., p. 118). Esse aspecto possui grande importância na nova significação conferida ao dionisíaco e deve ser considerado a partir do ponto segundo o qual, se a tragédia de ­Zaratustra não se caracteriza mais como o antigo drama grego, portanto pela sua seriedade – m ­ uito embora ela seja concebida como poesia preceptorial (Lehrgedicht) – ao mesmo tempo ela deve ser entendida também como paródia tanto do evangelho cristão como de todos os valores tradicionais (Allemann, 1974, p. 54). Entretanto, mesmo não sendo diretamente indicado, o traço apolíneo da obra revela-se na figura de Zaratustra em dois aspectos: No fato de que com Zaratustra a filosofia se aproxima da arte e se torna uma atividade antiniilista por excelência, portanto voltada para a redenção do sofrimento, da ação e do conhecimento, o que pressupõe o heroísmo (NF/FP: KSA 13, 17 [3], 2. Maio-Junho de 1888). Na sua atitude heroica diante da vida pensada como eterna recorrência de todas as coisas, Zaratustra necessita da arte como aspecto necessário para o anúncio da necessidade da criação do mais alto tipo heroico, o além-do-homem (Barrack, 1974, p. 118). O traço artístico do ensinamento que se evidencia no poetar de Za­ratustra deve ser entendido também em sua dimensão filosófica, i­ mplícita na aferição de p ­ rofundidade à revalorização da superficialidade a partir da superficialidade deste. Mesmo afirmando que os poetas mentem em demasia, Zaratustra justifica a mentira como estando em serviço da transitoriedade e da aparência, e assim da efetividade e não de uma vaga visão onírica (Allemann, 1974, p. 57). Com a tragédia de Zaratustra, Nietzsche efetua um distanciamento com relação à significação dos dois princípios estéticos da metafísica do artista. Ele, todavia, não abandona a ­virtualidade que os dois princípios tornados filosóficos passam a possuir. Se o filósofo ainda pensa a produção poética como um meio de produzir a bela projeção do sofrimento inerente ao mundo que o dionisíaco significa, tal produção poética passa a ser justificada não mais unicamente por esse fator, mas antes, fundamentalmente, pela força afirmativa da aparência que produz, que mesmo parodiando a si mesma, deseja ser tomada a sério (ibid., p. 57). O mesmo se passa com respeito à concepção ­tradicional da tragédia e do trágico. A sua finalidade na filosofia de Nietzsche é a elevação (Steigerung) do sentimento de vida, para o que ele se utiliza da arte como estimulante (ibid.). Desse modo, são contrapostos o desmascara­mento do poeta pela boca de Zaratustra com o elogio da potência p ­ oética e a sua justificação como 182

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criação; assim, Nietzsche insiste na consideração da força da figuração como redenção do sofrimento. “Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, atenua o peso da vida. Mas, para que o criador exista, são necessários o sofrimento e muitas transformações” (Z/Z Nas ilhas dos bem aventurados). Indicado como anunciador da concepção dionisíaca do mundo, a aparição ­primeira de Zaratustra demonstra o seu traço apolíneo no ­desejo de produzir a eterna beleza, cujo objeto incomum e distante é um não existente e ideal (Barrack, 1974, p. 119). O além-do-homem é o ­anteparo de beleza colocado entre o homem e o mundo, pensado dionisiacamente como vontade de poder e eterno retornar de todas as coisas (­Heidegger, 1997, p. 40). Pensado no sentido da nova nobreza, que assimila o p ­ assado e a partir dele cria, redimindo-o, ele é a imagem ideal, eminentemente não cristã, que ensina uma nova forma de amor à terra e à vida: o anseio pela autossuperação. Essa é pensada como preceito para a existência no mundo da nova significação da existência imposta pelo ensinamento do eterno retorno, para a escolha entre eternidade e aceitação ­incondicional de tudo o que existe, ou esvaecimento completo no retroagir unívoco de um ciclo signifi­ cativo. O anseio de autossuperação do homem é o estímulo com vistas a sempre prontificá-lo a adequar-se ao mundo pensado como indeterminado, tornado evidente pelo desmascaramento da ­crença no “mundo verdadeiro” e na moral que a sustenta, concebidos desde e­ ntão como estranhamento com relação a vida (Kaulbach, 1980, p. 33). O niilismo é o efeito primeiro desta constatação, ele decorre da percepção da dis­ sipação de todos os anteparos morais que ainda mantinham o “mundo verdadeiro” como possibilidade. Sob a ótica da moral, a necessidade da veracidade servira como antídoto para o niilismo prático e teórico (“Lenzer Heide”, NF/FP: KSA 12, 5 [71] § 1). A verdade fixa se tornou com isso uma necessidade, de onde decorreu a dependência c­ ultural da ideia de um mundo potencialmente estável. Quando essa crença arrefeceu, devido ao próprio aprofundamento da necessidade de v­ eracidade e à percepção da sua inexistencia, expôs-se o mundo efetivo, o do perspec­tivismo (Kaubach, 1980, p. 33).1 Na perspectiva de Nietzsche, com ele advém uma nova exigência de veracidade, que, no entanto, não se direciona à criação de um novo mundo, mais verdadeiro, mas à s­ upressão da dicotomia excludente entre verdadeiro e falso, e à aceitação de tudo o que existe 1

Ou ainda no póstumo: “Como eu pensava no objetivo (Zweck), pensava também no acidental. É necessário ser possível esclarecer o mundo depois dos objetivos e o mundo através do acidental, do mesmo modo como pensar, como querer, como movimento, como calma: do mesmo modo que Deus e como o diabo. Então tudo é o eu. Não são nossas perspectivas, nas quais nós vemos as coisas, porém são as perspectivas uma qualidade (Wesens) de nossa espécie, uma da maiores: em cujos quadros (Bilder) nós olhamos”. FP, KSA 10, 4 [172], p. 162.

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como multiplicidade de perspectivas, para as quais o m ­ omento da decisão imposto pelo 2 pensamento do eterno retorno mostra-se como um compromisso com a criação e com o futuro (Barrack, 1974, p. 41). É precisamente este sentido futuro, o qual Nietzsche confere às palavras e ensinamentos de Zaratustra, que revela um outro aspecto da idealidade do além-do-homem: a sua inexistência (Z/Z Dos sacerdotes). Entretanto, isso não impede de ele ser posto como ensinamento tanto para a humanidade atual como para a humanidade futura, com vistas à superação e à grandeza de ambas (Z/Z Prólogo § 4), mas pensadas como produtos de individualidades. Esses aspectos nos põem novamente à frente o aspecto apolíneo do ensinamento, o qual pode ser também antevisto no herói épico homérico, para quem todo esforço de engrandecimento, embelezamento e autossuperação, são impulsionados por uma imagem apresentada a ele como modelo a ser seguido. Analogamente, todo o sacrifício do aristocrata épico tem também um significado ­humano, que extrapola a importância momentânea da Kléos e a amplia, aspecto que se revela na preocupação pelo legado da memória gloriosa às gerações futuras. Nesse ponto específico, o além-do-homem se aproxima do herói épico apolíneo, aquele que se sacrifica não para atingir um alvo exterior imediato, mas para produzir a 2

Em anotações direcionadas à escritura de Z Nietzsche escreve: Isto que vem O próprio ambicionar no nada. Guerra sobre o princípio de melhor não ser do que ser. (A) Primeira consequência da moral : A vida é para ser negada. Última consequência da moral = A própria moral é para ser negada. (B) Assim: Decorre da primeira consequência. Liberação do egoísmo. Liberação do mal. Liberação do indivíduo. Os novos bons (“eu quero”) e os velhos bons (“Eu devo”). Liberação da arte como recusa do conhecimento incondicional. Elogio da mentira. Recuperação da religião. (C) Através de todas essas liberações cresce o estímulo da vida. Sua mais íntima negação, a moral, eliminada. Com isso início do declínio. A necessidade da barbárie à qual a religião também, por exemplo, pertence. A humanidade necessita viver em ciclos, única forma de duração (Dauerform). Não a cultura mais longa possível, porém a mais curta e elevada (hoch). Nós na época do meio dia. (D) O que determina a altura da altura (Höhe der höhe), na história da cultura? O momento onde o estímulo é o maior. Significa, portanto, que o mais poderoso pensamento se tornou suportável querido. NF/FP: KSA 10, Verão-outono de 1882. 184

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mais bela imagem (Barrack, 1974, p. 120), pensada como elevado ideal às gerações futu­ ras. Todavia, em Assim f­ alava Zaratustra, obra em que tanto o dionisíaco como o ­apolíneo sofrem signi­ficativas mudanças, o estatuto do épico é outro. Em O N ­ ascimento da ­tragédia, a seriedade e o sublime eram relacionados à disciplina e ao he­roís­mo; naquela obra, a superação do espírito de gravidade é uma das caracte­rísticas da personagem apolínea que é Zaratustra. Por esse m ­ otivo, o além-do-homem e o herói apolíneo não podem ser os mesmos, pois este preci­sa perder a sua seriedade e solenidade e dançar como o vento (ibid., p. 122). Eles podem, porém, ser aproximados pelo desdém de Zaratustra pela fraqueza e anseio de autossuperação que distinguem o além-do-homem (Wotling, 1995, p. 333). Desse modo, o além-do-homem apresenta aspectos tanto apolíneos quanto dionisíacos, haja visto que são a­ spec­tos indissociáveis: o primeiro é o desejo de autossuperação, e o s­ egundo, o perigo que tal desejo implica, pois deve ser compreendido em um ­mundo onde conflito, criação e destruição lhe são aspectos inerentes. Em decorrência disso, o dionisíaco e o apolíneo são entendidos não mais como impulsos artísticos da natureza, mas como estados fisiológicos, por meio dos quais a arte se manifesta (NF/FP: KSA 13, 14 [36], início de 1888). Em Assim falava ­Zaratustra eles devem ainda ser entendidos como relacionados à noção de autossuperação, pois esse desejo integra o dionisíaco como motriz do ciclo de morte e vida que permanece em Nietzsche na fase posterior ao distanciamento da filosofia de S ­ chopenhauer (Barrack, 1974, p. 128). No aforismo 370 de A gaia ciência, em tom de justificativa, Nie­tzsche diferencia claramente o pessimismo dionisíaco e o que ele denomina de pessimismo romântico. Menciona as concepções de toda arte e filosofia consideradas como remédios e auxílio a serviço da vida em crescimento e em luta, o que pressupõe sempre sofrimento e sofredores. Há, porém, aqueles que sofrem por abundância de vida, que desejam a arte ­dionisíaca e a visão trágica e aqueles que sofrem por seu enfraquecimento, que exigem da arte e da filosofia a calma, o silêncio, mar sem ondas, ou então a embriaguez, o espasmo e o delírio. Os últimos, escreve Nietzsche, são os românticos, cujos nomes mais célebres são os de Wagner e S ­ chopenhauer, e que neste momento são postos em diferenciação do homem mais rico em plenitude de vida, o homem dionisíaco: aquele que pode se permitir a visão do mais terrível, do problemático; o luxo da destruição, da decomposição, e a negação. A partir dessa distinção é questionado aquilo que é criado com estas perspectivas no domínio da arte, ou seja, Nietzsche coloca o problema, se na manifestação artística de ambas encontram-se traços de abundância ou de empobrecimento da vida, ou como o próprio autor formula a questão: “aqui foi a fome ou o supérfluo que se tornou ­criativo?” (FW/GC § 370) Essa pergunta, de caráter fisiológico, remete a uma outra, que toca no 185

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sentido da criação, pois Nietzsche quer questionar se o que a motiva é a necessidade de eternizar, de ser, ou então o desejo de destruição, de mudança, do novo, de futuro, de devir (Werden). Sob tal ótica, este primeiro impulso poder ser interpretado como expres­são de força abundante, prenhe de futuro (zukunftsschwangeren), cujo termo ­designativo é dionisíaco. Mas pode também ser o ódio do fracassado, do desprovido, do enjeitado, que necessita destruir porque todo subsistir o revolta e irrita. Desse modo, a vontade de eternizar pode vir de duas fontes, primeiramente da arte apoteótica (Apotheosenkunst), que espalha um brilho homérico de beleza e glória sobre todas as coisas (ibid.); depois, pode vir do sofrimento, da tortura, que gostaria de moldar o mais pessoal, único e ­estreito sofrimento em lei e coação obrigatória, para assim cravar a imagem de sua tortura. Essa segunda origem é o pessimismo romântico, do qual Nietzsche deseja diferenciar uma outra forma de ­pessimismo, que poder-se-ia chamar clássico, se o temo já não ­estivesse desgastado pelo uso, o pessimismo dionisíaco (ibid., § 370). O conteúdo desse aforismo fornece aspectos importantes no que diz respeito ao sentido com que Nietzsche concebe o dionisíaco que se faz presente em Assim falava Zaratustra. A ele pode ainda ser acrescida a afirmação do aforismo 372 de A gaia ­ciência, intitulado “Por que não somos idealistas” (Warum wir keine Idealisten sind ), no qual, criticando toda a tradição filosófica de desprezo pelos sentidos e analisando essa a­ titude sob a ótica da fisiologia, o autor afirma: Em suma: todo idealismo filosófico foi até o presente algo como d ­ oença, em que não foi, como no caso de Platão, a previdência de uma saúde muito rica e perigosa, o medo dos sentidos preponderantes, a sabedoria de um sábio discípulo de Sócrates. Nós, homens modernos, talvez não sejamos suficientemente saudáveis para ter necessidade do idealismo de Platão? E nós não tememos os sentidos, por que… (FW/GC § 372).

Desejamos chamar a atenção para as últimas palavras desse a­ forismo, destacadas pelo próprio autor, e então relacioná-las com a noção de idealismo à qual Nietzsche se refere no aforismo 382 de A gaia ciência. Com isso, desejamos argumentar que a crítica do idealismo feita pelo autor possui um alvo preciso: o idealismo filosófico iniciado por Platão, propagador do socratismo, que, na compreensão de Nietzsche, alcança o seu tempo com o romantismo. Trata-se do idealismo fundado na transcendência, na depreciação dos sentidos e que se tornou o elemento c­ onstante em toda a tradição filosófica até então, mas que se encerra com o aparecimento dos filósofos modernos que Nie­tzsche anuncia. No aforismo 382, o novo ideal proposto pelo filósofo tem como condição ­prévia a “grande saúde”, que faz com que aquele que a possui queira lançar-se a aventuras e à ­ ualidades exploração de novos e perigosos mares.3 Essas, por conseguinte, são as mesmas q 3

A relação entre saúde e ideal pode ainda ser lida no póstumo: “Conceito de saúde e ideal d ­ ependente 186

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do dionisíaco referidas no aforismo 370, onde encontramos referências a uma arte ho­ mérica (apolínea) e dionisíaca. A partir desse ponto, pode-se delinear melhor os traços do novo ideal a que Nie­ tzsche se refere, que poderia ser denominado “clássico” e deve ser compreendido imedia­ tamente como separado das formas vigentes de idealismo, tanto do filosófico como do romântico, os quais para ele não são expressão de uma saúde atuante, mas ou de uma moral restritiva ou de um estado doentio, o que acaba por produzir o mesmo efeito. O ideal ao qual Nietzsche se refere é o ideal dionisíaco, o da aceitação e mesmo da necessi­ dade da pluralidade de estados, desafios e de condições adversas; que acaba por exigir um tipo mais forte de homem, que vive, habitua-se e mesmo deseja viver nas ­intempéries, a fim de cada vez mais ver-se necessitado a buscar estados mais elevados. Em favor des­ sa distinção, fazemos nova referência à seção Por que escrevo tão bons livros? de Ecce homo, última obra de Nietzsche. Nessa, encontramos referências claras com respeito à ­utilização do termo ideal e de sua significação para se compreender a ideia do Übermensch. A palavra além-do-homem, como designação do tipo mais a­ ltamente bem logrado, em oposição ao homem “moderno”, ao homem “bom”, aos cristãos e outros niilistas – uma palavra que na boca de Zaratustra, do aniquilador da moral, torna-se uma palavra que dá muito a pensar –, foi, quase por toda parte, com tal inocência, entendida no sentido daqueles valores cujo oposto foi apresentado na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo “idealista” de uma espécie superior de homem, meio “santo” meio “gênio” (EH/ EH Por que escrevo livros tão bons § 1).

Nietzsche prossegue afastando a significação do termo de qualquer darwinismo ou “culto de heróis” e acentua que talvez fosse melhor procu­rar o seu significado em um César Bórgia. Esta referência que se e­ sclarece nas passagens seguintes e precisamente em contraposição a qualquer forma de idealização de homem, por conseguinte, na afirmação de que esse é um ato contra a natureza (ibid., § 5) e de que o além-do-homem seria aquele que teria a capacidade prática de poder suportar a realidade tal qual ela é, mesmo em seus aspectos mais terríveis e problemáticos (ibid.). César Bórgia é uma referência justamente por ter sido uma exceção no que se refere ao ideal e à moralidade cristãs, e ainda por ter sido um homem de ação nas condições mais duras e problemáticas; desse modo, teria sido uma figura singular e superado a moralidade do seu tempo. A partir dele, é possível se compreender o aspecto ideal do além-do-homem, devidamente afastado da idealidade em voga,4 pois ele foi um do Alvo do homem? Porém, o alvo mesmo é uma expressão de uma determinada qualidade do corpo e suas condições. O corpo e a moral.” NF/FP: KSA 10, 4 [217], novembro de 1882 – fevereiro de 1883. 4 Segundo Wotling, na “pré-história” da noção de übermenschlich (surhumain), ou seja, na ­constatação 187

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dos que se colocaram acima de sua época e de sua moral,5 demonstrando a ­qualidade que Nietzsche deseja conferir ao homem futuro através do além-do-homem, a ­exigência da autossuperação.6 Em favor de uma distinção entre o além-do-homem e o tipo idealista de homem superior, um outro aspecto importante é a inexistência daquele. Em Assim falava Zaratustra ela é afirmada claramente (Z/Z Dos sacerdotes), do mesmo modo como a justi­ficação estética da vida a partir da força da criação, que não mais necessita de um fundamento e então se encontra livre para se direcionar para o futuro. Primeiramente dizia-se Deus, quando se olhava para mares distantes: mas agora, eu vos ensino a dizer além-do-homem. Deus é uma suposição; mas quero que o vosso supor não vá além de vossa vontade criadora. Podeis criar um Deus? Então calai-vos diante de mim a respeito de todos os deuses! Mas bem podeis criar o além-do-homem. Não vós mesmos, talvez, meus irmãos! Mas podeis tornar-vos pais e ancestrais do além-do-homem; e que essa seja a vossa melhor criação (Z/Z Das ilhas bem aventuradas).

O ensinamento do além-do-homem diferencia-se do ideal ­idealista porque, para ele, a noção de criação substitui as noções de Deus e do imperecível. Desse modo, ele pode servir de modelo a ser seguido no novo tempo que se inicia, o do devir, do novo de que a palavra precede o conceito, ela apresenta-se sempre em sentido negativo e associada aos tipos superiores da cultura, o santo e o idealista (HDH II VO, § 73/ HDH I § 143). O autor argumenta que a análise desta noção feita a partir da ótica da vontade de poder descobre a origem do dualismo entre alma e corpo e leva Nietzsche, desde Aurora (§ 548), a dar novo sentido ao termo a partir da hierarquia da vontade de poder e da verdadeira grandeza humana, a partir do dístico da Überwindung. Esses aspectos servem de base para que o comentador conclua que o pensamento nietzscheano do além-do-homem se constrói a partir da recusa da interpretação idealista em associação com o santo e com a ideia de gênio. (Wotling, op.cit, p. 330 – 5). 5 Segundo Wotling, César Bórgia e Napoleão são tomados por Nietzsche como encarnações históricas do homem superior, dos criadores, expressão da força dos instintos e da vontade de poder. São aproximados por Nietzsche de Goethe, H ­ afiz e Shakespeare, que podem ser tidos como modelos do tipo superior, como prefigurações do tipo “übermenschlich” (ibid, p. 351/2). 6 O que, porém, não significa dizer que César Bórgia representa o tipo último de nobreza para Nietzsche. A sua interpretação do duque renascentista pode ser bem melhor compreendida a partir da sua leitura de Maquiavel (Vacano, 2007, p. 73) e da sua admiração pela interpretação de Jacob Burckhardt (Chaves, 2000, p. 50), que levam Nietzsche a interpretar Maquiavel como um iluminador da antiguidade (NF/FP, 25 [38], KSA 11, p. 21) e Cesare Bórgia como aquele que une a animalidade e o refino do artista criador em uma única pessoa, do que resulta uma singularidade criativa, cuja configuração pulsional (volitiva) o levou a se contrapor à moral e ao poder estabelecido de seu tempo, tendo em vista uma visão política sob a ótica do artista. Nietzsche, porém, mobiliza outras variantes para o conceito de nobreza, tal como nos indica Oswaldo Gaicóia, ao afirmar que: “o ideal nie­tzscheano da nobreza da força não se perfaz no tipo brutal da fera loira ou na figura histórica de Cesare Borgia, mas sim na beleza que não mais ataca”. Cf. O Platão de Nietzsche, O Nietzsche de Platão. Cadernos Nietzsche 3, 1997, p. 33. 188

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heroísmo, tornando necessários aqueles que compreendem o pensamento do eterno retornar de todas as coisas, o qual deve ser justificado pelo desejo de novas criações. Por isso, enquanto figura que representa o ensinamento da superação, ele pode justificar-se até mesmo esteticamente. Más e anti-humanas chamo a todas as doutrinas do uno e da completude, do imóvel, do sacio e do imperecível. Todo o imperecível – é apenas uma imagem poética! E os poetas mentem demais. Mas do tempo e do devir, devem falar as melhores imagens: um louvor, devem ser, e uma justificação de toda transitoriedade” (Ibid Nas ilhas bem aventuradas).

Assim, se revelam aspectos que possibilitam compreender o ensinamento do além-do-homem como ideal estético: a) primeiramente, pela negação da possibilidade ou da necessidade de um princípio de verdade que deva servir de fundamento e justificação de qualquer forma de expressão, noção posta por Nietzsche desde O nascimento da tra­ gédia, quando faz o elogio do poeta trágico e o caracteriza como aquele que usa a metá­ fora como imagem substitutiva em lugar do conceito (GT/NT § 8). b) Em decorrência disso e do projeto de uma transvaloração de todos valores que torne isso novamente possível, abre-se uma possibilidade de discurso que, voltado totalmente não para a ver­ dade pensada como objetivo, fim ou meta determinada, mas para uma concepção de vida como criação, busque inspiração na ação criativa da arte. Essa concepção artística, por sua vez, não pode criar sob o signo na antiga crença na verdade,7 daí a retomada daquela que, para Nietzsche, fora a única experiência estética ingênua no ocidente, a arte grega. Disso decorre um novo a­ specto c), o de que esse movimento não é um mero retornar, mas sim uma revalorização, que tem por objetivo indicar a necessidade da criação através da demonstração da restrição das estimativas em voga. A partir desses três pontos básicos, pode-se compreender que Nietzsche conceba Assim falava Zaratustra como um drama criado sob o símbolo de Dionísio e, portanto, de Apolo, não das divindades gregas propriamente ditas, mas sob o signo delas, como novas concepções do mundo e da existência, totalmente afastadas da moralidade e dos valores que Nietzsche se empenhou em refutar. Considerar o ensinamento do além-do-homem como um ideal, requer que se esclareça em que sentido uma filosofia que faz um duro ataque aos ideais pode comportar uma proposição do mesmo caráter. Por esse motivo, é necessário compreender de que modo o termo ideal, tomando positivamente, pode ser compreendido na filosofia de 7

Em NT Nietzsche já afirma que na atuação de Eurípedes, o trágico sob influências socráticas, encontra-se o fim da idealidade que sempre marcara as figuras representadas na tragédia (GT/ NT § 11). 189

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Nietzsche. Um dos caminhos possíveis, como se tentou argumentar aqui, é considerar o conteúdo artístico do ensinamento do além-do-homem a partir de suas características apolíneas. Aproximar traços desse ensinamento de outros presentes na epopeia grega se justifica não como uma tentativa de sua análise, mas como forma de explicitar o traço apolíneo conferido por Nietzsche a ele. Essa indicação se confirma quando analisados os pressupostos segundo os quais Nietzsche elabora a obra e a disposição de suas partes, quando a noção de ideal encontra-se presente no horizonte do autor no período de elaboração de Assim falava Zaratustra.8 Mas isso podemos constatar ainda nos póstumos, como, por exemplo, no seguinte fragmento: Assim como nós não temos mais necessidade da moral, do mesmo modo não temos da religião. O “eu amo Deus” – a única velha forma de religiosidade – converteu-se em amor a um ideal, tornou-se criadora, puro Deus-homem (NF/FP: KSA 10, 4 [90], novembro de 1882 – fevereiro de 1883).

Por conseguinte, utilizando o recurso aos fragmentos como confirma­ção de ­aspectos que Nietzsche não explicita diretamente nas obras publi­cadas, podemos encontrar argumento de que Assim falava ­Zaratustra fora concebido segundo perspectiva trágica, para a qual a arte é posta como necessidade. O ressurgimento do trágico e da inspiração ­dionisíaca aproxima o conteúdo de Assim falava Zaratustra de pressupostos gregos que Nietzsche já utilizara em seu primeiro livro, no qual os helenos são descri­tos como um povo de cultura fundamentalmente artística, que t­ eria chegado ao fim devido à crítica racional do seu caráter ideal (GT/NT § 11). A concepção de Assim falava Zaratustra como drama, expressa novamente a sabedoria dionisíaca e permite que se considere, com a­ centuadas diferenças, o ensinamento do além-do-homem como ensinamento apolíneo e anteparo contra a dureza implacável do dionisíaco. Desse modo, o além-do-homem pode ser considerado como um ensinamento ideal no sentido da significação que esse termo possui para Nietzsche, a partir de sua interpretação dos gregos, como bela imagem que serve de ­impulso à afirmação e ao embelezamento da vida e, destarte, constitui uma forma de c­ ontraposição ao niilismo causado pela percepção da ausência dos antigos valores tidos como ­absolutos. 8

Preocupado com a aproximação de Zaratustra da tendência antissemita efervescen­te na Alemanha, Nietzsche escreve em um rascunho de uma carta a sua irmã: “Agora que tanto já foi alcançado, tenho de me defender com unhas e dentes da confusão com a canalha antissemita, depois que minha própria irmã, minha ­antiga irmã, estimulou a mais funesta de todas as confusões. Após ter lido na correspondência antissemita o nome de Zaratustra, minha paciência se esgotou: encontro-me agora em estado de legítima defesa em relação ao partido de seu esposo. Estas malditas caricaturas antissemitas não devem tocar no meu ideal!!!” Citado e traduzido por Maria Cristina Ferraz (1994, p. 61). 190

considerações finais

Criar um ser mais elevado do que nós mesmos somos, é o nosso Ser. Criar algo acima de nós. Este é o impulso da criação, isto é o impulso da ação e da obra.

Como todo querer pressupõe um alvo, assim o homem pressupõe uma Essência que

não está lá, mas que porém oferece uma finalidade para sua existência. Essa é a liber-

dade de toda vontade! Nessa finalidade repousa o amor, a glorificação, o ver a perfeição, a nostalgia (FP. KSA 10 5 [1] 203 – Fevereiro de 1883, p. 209).

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Equipe de realização Editor Antonio Florentino Neto Assistente de editoração Flávio Moreira Diretora executiva Simone Viana Revisão Adriano F. Guimarães Elza Ferreira de Sauza Gabriela Guedes Diagramação e arte da capa Eva Maria Maschio Formato 16 x 23 cm Papel Pólen soft 70 g/m2 – miolo Cartão supremo 250 g/m2 – capa Tipologia Adobe Caslon Pro National

Este livro foi impresso na Gráfica psi7 em ------- de 2016.