Narrativa, sentido e história
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NARRATIVA, SEN TI DD, H IS T D R IA C ird Fl a m a r io n Ca r d o s o

lll I,

íi I• lll II Si) II

P A IM R U S

i(i

il-



3m n

F la m a r io n

4a r c e u

cm

C ardo so

G o iâ n ia ,

19 4 2 .

em

.ICENCIDU-SE EM HISTÓRIA NA JNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO 3C J

( 19 6 5 ) ,

a n e ir o

e

DOUTOROU"SE EM HISTÓRIA NA JNIVERSIDADE DE PARIS X Na n t e r r e ),

Foi

F r a n ç a (1 9 7 1).

na

pro fesso r

C o sta

na

e

p e s q u is a d o r

R ic a 1 1 9 7 1 - 1 9 7 6 )

e

NO MÉXICO ( 1 9 7 6 - 1 9 7 B I . L e c io n a

na

Fe d e r a l

F l u m in e n s e ,

U n iv e r s i d a d e d esd e

19 7 9 , ATUANDO NA GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA. Ne s t a

m esm a

DESDE

19 9 4 , OCUPA O CARGO DE

in s t it u iç ã o ,

PROFESSOR TITULAR DE HISTÓRIA A n t ig a

e

Me d i e v a l . E n sin o u

TAMBÉM NA P U C / R J (1 9 7 9 -1 9 B 4 I

E,

como

PROFESSOR VISITANTE DE PÓS-GRADUAÇÃO, NA U n iv e r s i d a d e de

J

Min is t r o u

curso s

pro gram as em

Fe d e r a l

do

R io

(1 9 S5 -1 9 B e ).

a n e ir o

H i s t ó r ia

em

d iv e r s o s

p ó s -g r a d u a ç ã o

de de

v á r id s

estad o s

BRASILEIROS. É AUTOR E ORGANIZADOR DE TRINTA LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL E NO EXTERIOR, INDIVIDUALMENTE OU EM COLABORAÇÃO, BEM COMO DE NUMEROSOS ARTIGOS EM REVISTAS ESPECIALIZADAS. DENTRE ELES: AGRICULTURA, ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO (Vo

zes,

l 9 7 9 ),

S

ete

o lh a res

SOBRE A ANTIGUIDADE

YcXjobr. + (Y - cXjopt.X -» Xa —> YfX - b) Y - cX + Xb

X: Peronella Y: marido b: cometer adultério c: castigar a: camuflar a situação obr.: indica obrigatoriedade opt.: indica uma escolha Ou, numa tradução semântica do esquema formalizado: X (Peronella) comete adultério, pelo qual Y (seu marido) deve castigar X. Mas X deseja que Y ignore o adultério, creia que não existe o adultério e, por conseguinte, X camufla a situação. Por conseguinte, Y (o marido) tem uma falsa visão da ação, acredita não haver adultério. E não castiga X. E X comete o adultério.(To­ dorov 1 9 7 3 , p. 122) Nos exemplos de aplicação que virão a seguir, n ão usarei formali­ zações à maneira de Todorov, preferindo trabalhar com a descrição verbal das seqüências segundo o esquema em cinco partes já indicado. Isso porque não vejo que a formalização do tipo que vimos seja de fato útil ou traga algo novo à análise: ainda mais porque o historiador estará interessado nos textos que usa, não em alguma hipotética gramática geral do relato ou teoria global da literatura.

45

C o n t i n u a n d o a s c o n s i d e r a ç õ e s a c e r c a d a s in t a x e n a r r a tiv a , T o d o r o v s e re fe re às

especificações.

T r a t a - s e d e , n a lin h a d a s f u n ç õ e s d e q u e fa la v a

P r o p p , b u s c a r e s t a b e l e c e r t ip o s d e a ç õ e s m e d ia n t e a s p e c t o s e m o d a lid a ­ d e s q u e a s e s p e c ific a m —

is to é , u m a a ç ã o n o f u n d o ú n ic a p o d e s e r

d o ta d a d e v á r ia s f o r m a s , p e l o q u e s e d e v e v e r if ic a r t a n t o o q u e c a d a fo r m a te m

d e ú n ic o

q u a n to

o q u e p a r t ilh a c o m

o u tr a s f o r m a s . A o f a z ê - lo ,

im p o r t â n c ia e s p e c i a l a d q u ir ir á , n a e s p e c i f i c a ç ã o d a s a ç õ e s , a n e g a ç ã o (c o m

a o p o s i ç ã o , v a r ia n t e d e s t a ) . S e , n u m r e la t o , u m a p e r s o n a g e m

é

p o b r e , d e p o is t o r n a - s e r ic a , p o r e x e m p l o , n ã o t e m o s n a v e r d a d e d o is p r e d i c a d o s a u t ô n o m o s , e , s im , a o p o s i ç ã o e n t r e u m a f o r m a p o s itiv a e o u tr a n e g a t iv a d o m e s m o p r e d i c a d o . D e v o d iz e r q u e , a t é a g o r a , n ã o m e s e n t i c o m p e l id o a le v a r e m c o n t a e s s a c a t e g o r i a e m a n á l i s e s a q u e t e n h a i n c o r p o r a d o e l e m e n t o s d a p o é t ic a t o d o r o v i a n a . N a p a r t e d e r r a d e ir a d e s u a s c o n s i d e r a ç õ e s s o b r e o a s p e c t o s in tá t ic o d a s n a r r a tiv a s , T o d o r o v fa la d a d u p l a

açõ esp rim á ria s/reações.

O s p r e d i­

c a d o s p o d e m r e f e r ir - s e a a ç õ e s p r im á r ia s o u s e c u n d á r ia s . A s p r im á r ia s s ã o a s q u e n ã o p r e s s u p õ e m q u a l q u e r a ç ã o a n t e r io r p a r a p o d e r e x is tir . O u tr a s a ç õ e s , p o r é m , d e p e n d e m d e a ç õ e s a n t e r i o r e s e s ã o , e n t ã o , s e c u n d á r ia s . U m e x e m p l o é a a ç ã o d e in f o r m a r - s e , q u e d e p e n d e d e , a n t e s , a lg o te r o c o r r id o

a

r e s p e it o

do

qual se

p o ssa

o b te r a in fo rm a ç ã o . A s a ç õ e s

p r im á r ia s é q u e s ã o a ç õ e s p r o p r ia m e n t e d ita s ; a s s e c u n d á r ia s p o d e m s e r cham ad as d e reaçõ es.

aspecto sem ântico. E n q u a n t o a s in tá t ic a s e o c u p a s ó d e in p ra esen tia , r e l a ç õ e s s in ta g m á t ic a s , im e d ia t a s , e n t r e e l e m e n t o s

P o r fim , o re la ç õ e s

c o - p r e s e n t e s n o t e x t o q u e s e a n a l i s a , a s e m â n t ic a s e o c u p a d a s a ç õ e s p a r a d ig m á tic a s ( r e la t iv a s a o d is c u r s o c o m o s is t e m a ) , a s q u a is p o d e m s e r

in p raesen tia e in absen tia :

u m fa to d o te x to e v o c a o u tro d o m e s m o te x to

m a s s it u a d o a lh u r e s , o u d e o u t r o t e x t o ; u m e p i s ó d i o s im b o li z a u m a id é ia , o u tr o

ilu str a u m

tra ço

p s ic o ló g ic o

e tc. A ch a T o d o ro v q u e o a s p e c to

s e m â n t i c o , m u ito tr a ta d o e m o u t r a s d is c ip lin a s lite r á r ia s , d e s e n v o lv e u - s e p o u c o n a p o é t i c a . A o tra ta r d o a s s u n t o , d is t in g u e d o is t i p o s d e q u e s t õ e s : f o r m a is e s u b s t a n c i a i s . As

questões fo r m a is

d a s e m â n t i c a te x t u a l t ê m a v e r c o m a p e r g u n ta :

C o m o u m t e x t o c h e g a a s ig n if ic a r a lg u m a c o is a ? A q u i s e d is t in g u e m a s ig n i f ic a ç ã o ( p r o c e s s o e m q u e u m s ig n i f ic a n t e e v o c a u m s ig n i f ic a d o ) e a s i m b o li z a ç ã o ( p r o c e s s o e m

q u e u m p r im e ir o s ig n i f ic a d o r e m e t e a u m

s e g u n d o ) . A s i g n i f i c a ç ã o s e d á n o n ív e l d o v o c a b u lá r io ; a s im b o li z a ç ã o ,

46

no

n ív e l d o

e n u n c ia d o

ou

te x to .

N esse p o n to

a p arecem ,

q u a n to

às

r e l a ç õ e s e n t r e s ig n i f ic a ç õ e s e s im b o li z a ç ô e s , o s t r o p o s d a r e t ó r i c a c lá s s i c a ( m e t á f o r a , m e t o n ím ia , s in é d o q u e , h i p é r b o l e e t c .) ; m o d e r n a m e n t e , p r e f e ­ r e m - s e t e r m o s l ó g i c o s ( i n c l u s ã o , e x c l u s ã o , i n t e r s e ç ã o e t c . ) . F o r a m a in d a p ou co

e x p lo r a d a s

a s p r o p r ie d a d e s

s im b ó li c a s

de

s e g m e n to s

t e x t u a is

m a i o r e s d o q u e a f r a s e : in t r a t e x t u a is ( u m a p a r t e d o t e x t o d e s i g n a o u t r a ) o u e x t r a t e x t u a i s ( u m a p a r t e d o t e x t o r e m e t e a o u t r o t e x t o ) . V o lt a m o s a e n c o n t r a r a q u i a n e c e s s i d a d e d o m é t o d o c o m p a r a t i v o b a s e a d o n a in te r t e x t u a lid a d e . As

questões sem ân ticas su bstan ciais s u r g e m

e m re sp o sta à p e rg u n ­

ta : O q u e e s t á s e n d o s ig n if ic a d o ? A p a r e c e a g o r a o p r o b l e m a d a r e l a ç ã o e n t r e a lite r a tu r a e o s f a t o s e x t r a lit e r á r io s ( o m u n d o c o m o r e f e r e n t e ) . S e g u n d o T o d o r o v , o q u e in te re s s a à p o é tic a é a c o n fo r m id a d e d e u m d a d o t e x t o a u m a n o r m a t e x t u a l d e t e r m i n a d a : a v e r o s s i m i lh a n ç a d o t e x t o d e f i n e - s e e m r e l a ç ã o a i s s o , n ã o a o m u n d o e x t e r io r . O u s e ja , a s r e l a ç õ e s d a o b r a s ã o c o m o g ê n e r o lite r á r io a q u e p e r t e n c e , n ã o c o m o m u n d o . A v e r o s s i m i lh a n ç a t e m

a v e r a in d a c o m

a r e l a ç ã o e n t r e o d is c u r s o e a

o p i n i ã o s o c i a l m e n t e v ig e n t e a c e r c a d o g ê n e r o : t r a t a - s e d e u m e l e m e n t o d a p s ic o lo g ia c o le tiv a q u e m u d a n o te m p o , fo r ç a n d o a q u e m u d e m as r e g r a s d o s g ê n e r o s lit e r á r io s . E m s e u e s t u d o d a lite r a tu r a f a n t á s t ic a , T o d o r o v f o r m u l o u a h i p ó t e s e

redes tem áticas n a f i c ç ã o e m g e r a l: a d o red e tem ática d o eu tra ta d a s r e l a ç õ e s d ir e ta s e n t r e

d e q u e e x is te m d u a s g ra n d e s

eu

e a d o tu . A

os

in d iv íd u o s ( p e r s o n a g e n s , a c t a n t e s ) e o m u n d o ta l c o m o r e p r e s e n t a d o n o r e l a t o ( m u n d o fís ic o , s o b r e n a t u r a l , s o c i a l e t c .) . A

red e tem ática d o tu

r e m e t e a u m a r e l a ç ã o p o r m e d i a ç ã o : e u / o o u tr o / o m u n d o . A p a r e c e , p o r e x e m p l o , q u a n d o a n t a g o n is m o , a m o r , s e x o e t c . e s t ã o n o c e n t r o d a tr a m a . A q u i c o m o a lh u r e s , n ã o t e m o s u m a q u e s t ã o d e p r e s e n ç a o u a u s ê n c ia a b s o l u t a , m a s , s im , d e p r e d o m ín io . E n cerran d o

e sta

b rev e

s ín t e s e

da

p o é t ic a

t o d o r o v ia n a ,

é

bom

r e s s a lt a r q u e o p r ó p r io T o d o r o v , a o a p lic á - la , n ã o s e s e n t e o b r i g a d o a e m p r e g a r s e m p r e t o d a s a s c a t e g o r i a s a t o d o s o s o b je t o s q u e e s c o l h e . A s s im , p o r e x e m p l o , a o a n a l i s a r B o c á c i o , d e d i c o u - s e a o a s p e c t o s in tá t ic o e s e c u n d a r ia m e n t e a o s e m â n t i c o , d e i x a n d o d e l a d o o a s p e c t o v e r b a l; a o p a s s o q u e , e m s e u e s t u d o a c e r c a d a lite r a tu r a fa n t á s t ic a , p r e d o m in a m o s a s p e c t o s v e r b a l e s e m â n t i c o , c o m m e n o r ê n f a s e n o s in tá t ic o .

M



Exemplo 1: As cam panhas do faraó Kamés (1 5 5 0 a.C . aproxim adam ente)



Texto

1. Ano 3 Hórus "Aquele que aparece em seu trono”, Duas Senhoras “Aquele que renova os monu2. mentos”, Hórus de Ouro “Aquele que toma contentes as Duas Terras", Rei do Alto e Baixo Egito Uadj3- khepemi (“Que o devir de Ra reverdeça"), Filho do Sol, Kamés (“Um touro o gerou”), dotado de vida, 4. amado de Amon-Ra, o senhor de Tronos das Duas Tetras (= Karnak), semelhante a Ra para sempre. 5. O rei poderoso no interior de Tebas, Kamés, dotado de vida para sempre, é um rei excelente. 6. Foi o próprio Ra que o instalou como rei e fez a vitória renovar-se para ele verdadeiramente. 7. Sua Majestade falou em seu palácio ao Conselho dos notáveis de seu séquito: 8. — Que eu compreenda isto: Para que serve o meu poder? Há um chefe em Hutuaret, um outro 9 em Kush. Eu permaneço associado a um asiático e a um núbio, cada homem possuindo a sua fatia do 10. Egito, partilhando comigo o país! Alealdade ao Egito nào vai além dele (= não ultrapassa os domínios 11. do rei hieso Apepi) até Mênfis Ique sejal, já que ele está de posse de Khemenu. Nenhum homem tem re12. pouso, despojado pelos impostos dos asiáticos. Mas eu lutarei contra ele, abrir-lhe-ei o ventre, pois meu 13 desejo é libertar o Egito e golpear os asiáticos. 14. Disseram então os notáveis do seu Conselho: 15- — Eis que a lealdade aos asiáticos se estende até Quesy. Eles puseram suas línguas para fora lo16. dos ao mesmo tempo. No entanto, nós estamos tranquilos em nossa parte do Egito. Abu está forte e a 17. parte central do país está conosco até Quesy. As melhores das terras deles são cultivadas em nosso pro18. veito; nosso gado pasta nos tremedais do Delta; o trigo cmmeré enviado aos nossos porcos; ninguém se 19 apodera de nosso gado; nenhum crocodilo (...) sobre isto. Ele possui a terra dos asiáticos, nós possuí20. mos o Egito. Se alguém vier e agir contra nós, então sim, lutaremos contra ele! 21. Eles (= os conselheiros) foram desagradáveis ao coração de Sua Majestade: 22. — Quanto ao vosso conselho (...) (Lacuna considerávell Aquele que divide a terra comigo não 23 me respeitará. Deverei eu respeitar estes asiáticos? Eu navegarei corrente abaixo até chegar ao Baixo 24. Egito. Se eu lutar com os asiáticos, o sucesso virá. Se ele crê estar contente com (...), em pranto, o país 25. inteiro (...) o governante no interior de Tebas, Kamés, aquele que protege o Egito! 26. Então eu naveguei corrente abaixo na qualidade de um vitorioso, com a finalidade de repelir 27. os asiáticos conforme a ordem de Amon, famoso por seus conselhos. Meu exército corajoso estava 28. diante de mim, semelhante á chama do fogo. Os arqueiros de Medjau puseram-se em cima de nossas 29 cabinas para procurar os asiáticos e fazê-los recuar de suas posições. O Oriente e o Ocidente traziam 30. azeite de untar para a tropa, o exército era provido de alimentos e bens em toda parte. 31 Despachei as tropas vitoriosas de Medjau, enquanto eu me detinha para imobilizar e comba32. ter Teti, filho de Pepi, no interior de Neferusy, sem permitir que escapasse enquanto eu repelisse os 33 asiáticos que haviam desafiado o Egito. Ele transformara Neferusy num ninho de asiáticos. 34. Passei a noite em meu barco, estando alegre meu coração. Ao alvorecer, caí sobre ele como 35 se fosse um falcão. Ao chegar o momento da refeição da manhã eu o repeli, derrubei a sua muralha e 36. massacrei a sua gente. Eu é que fiz a sua esposa descer para a margem Ido rio]. Meus soldados, seme37. lhantes a leões, estavam carregados do produto de seu saque, na posse de servos, gado, leite, azeite de 38 untar e mel, partilhando os seus l>ens, estando alegre o seu coração. O distrito de Neferusy parecia algo 39 tombado; e não havia demorado muito, para nós, paralisarl-lhe] o espírito.

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40. A região de Pershaq desaparecera quando a atingi. Seus cavalos haviam fugido para dcn 41. tro. As patrulhas (...). (Aqui se situa a maior lacuna do texto ] 42. — A notícia proveniente de tua cidade é vil. Tu fugiste ao lado de teu exército. Teu discurso 43- é mesquinho ao fazcres de mim um mero chefe e de ti um governante real, como se pedisses para ti o 44. cadafalso onde tombarás! Tu conhecerás o infortúnio, pois meu exército te persegue. As mulheres de 45 Hutuaret não (mais] conceberão, os seus desejos [já] não provocarão tremores dentro de seu corpo 46. quando for ouvido o grito de guerra do meu exército. 47. Eu atraquei em Perdjedquen, o coração feliz porque por minha causa Apepi conhecia um 48. momento difícil: aquele chefe de Retenu de fracos braços que planejava em seu foro íntimo atos de 49 bravura incapazes de acontecer para ele. Chegando a Inytnekhenet, eu atravessei em direção aos 50. habitantes (lit. eles) para dirigir-lhes a palavra. Fiz então pôr em ordem a frota, um barco atrás do ou51. tro; fiz com que pusessem [cada] proa encostada a (cada] popa. Alguns de meus Bravos (= um corpo 52. militar de elite) voaram sobre o rio. Como se fosse um falcão, o meu navio dourado os precedia; e eu 53 os precedia como um falcão. Fiz com que o valente barco líder inspecionasse as terras ribeirinhas, se54. guindo-o ‘A próspera" (nome da frota?], como se se tratasse de crocodilos (?) arrancando plantas nos 55 pântanos de Hutuaret. 56. Eu [já] vislumbrava as suas mulheres ( - de Apepi), no topo de seu palácio, olhando de suas 57. janelas em direção à margem, seus corpos imóveis, pois viam-me ao olhar por cima de seus narizes, no 58. alto de suas muralhas, como filhotes cercados no interior de suas tocas. E eu estava dizendo: 59 — É um ataque! Eis que eu vim e terei êxito! O resto [do país] está comigo. Minha sorte é 60. afortunada. Como perdura o bravo Amon, não te darei trégua, não permitirei que pises os campos sem 61. que eu caia sobre ti! Tua resolução falha, ó vil asiático! Eis que eu beberei do vinho de teu vinhedo, 62. que sera espremido para mim pelos asiáticos de meu butim. Eu arrasarei teu lugar de residência, corta63- rei tuas árvores depois de lançar tuas mulheres à carga dos barcos e me apossarei dos carros de guerra! 64. Não deixei uma prancha [sequer] nos trezentos barcos de pinho novo cheios de ouro, lá65 pis-lazúli, prata, turquesas, incontáveis machados de bronze, sem contar o azeite de árvore, o incenso, 66. o óleo de untar, suas diversas madeiras preciosas de todo tipo e todos as bons produtos do Retenu. Apo67. derei-me de tudo, não deixei coisa alguma: Hutuaret foi esvaziada! 68. — Ó asiático despojado, teus desejos falharam! Ó asiático vil, que vivias dizendo: Eu 69 sou um senhor sem par até Khemenu, até Per-Hathor e também até Hutuaret, junto aos dois rios 70. (= dois braços do Nilo)’’. Eu deixarei estes lugares desoladas, vazios de gente, depois de amisar as suas 71. cidades, queimar as suas residências, transformadas em minas ardentes para sempre devido ao dano que 72. fizeram nesta paite do Egito os que se puseram a servir aos asiáticos que agiam contra o Egito, seu 73 senhor. 74. Na parte superior do oásis eu capturei um mensageiro seu (= de Apepi) que estava nave75. gando rio acima em direção a Kush, a respeito de um escrito em que li, como expressão escrita do go76. vernante de Hutuaret: 77. ‘Aauserra (= Grande é o poder de Ra), o Filho de Ra, Apepi, saudando o meu filho, o go78. vernante de Kush. Por que te fizeste governante sem mo fazer saber? Acaso [não] viste o que o Egito 79 fez contra mim, o governante que lá está, Kamés, o forte, dotado de vida, expulsando-me de meu ter80. ritório sem que eu o atacasse — exatamente como fez de tudo contra ti? Ele escolheu os dois países pa 81. ra devastá-los — meu país e o teu — e os arrasou. Vem, navega rio abaixo e não tremas, pois ele está 82 aqui comigo e ninguém te espera no Egito. Eis que não o deixarei afastar-se até que chegues. Então 83. nós partilharemos entre nós as cidades do Egito e nossos países se alegrarão.” 84. Uadjkheperra, o forte, dotado de vida, é que controla as situações. Foram-me dados os

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Exemplo 1: As cam panhas do faraó Kamés (1 5 5 0 a.C . aproxim adam ente)



Textó

1. Ano 3 Hórus ‘Aquele que aparece em seu trono”, Duas Senhoras “Aquele que renova os monu2. mentos”, Hórus de Ouro “Aquele que toma contentes as Duas Terras”, Rei do Alto e Baixo Egito Uadj3. kheperra (“Que o devir de Ra reverdeça"), Filho do Sol, Kamés (“Um touro o gerou”), dotado de vida, 4. amado de Amon-Ra, o senhor de Tronos das Duas Terras (= Karnak), semelhante a Ra para sempre. 5- O rei poderoso no interior de Tebas, Kamés, dotado de vida para sempre, é um rei excelente. 6. Foi o próprio Ra que o instalou como rei e fez a vitória renovar-se para ele verdadeiramente. 7. Sua Majestade falou em seu palácio ao Conselho dos notáveis de seu séquito: 8. — Que eu compreenda isto: Para que serve o meu poder? Há um chefe em Hutuaret, um outro 9 em Kush. Eu permaneço associado a um asiático e a um núbio, cada homem possuindo a sua fatia do 10. Egito, partilhando comigo o país! A lealdade ao Egito não vai além dele (= não ultrapassa os domínios 11. do rei hieso Apepi) até Mênfis (que seja], já que ele está de posse de Khemenu. Nenhum homem tem re12. pouso, despojado pelos impostos dos asiáticos. Mas eu lutarei contra ele, abrir-lhe-ei o ventre, pois meu 13- desejo é libertar o Egito e golpear os asiáticos. 14. Disseram então os notáveis do seu Conselho: 15- — Eis que a lealdade aos asiáticos se estende até Quesy. Eles puseram suas línguas para fora to16. dos ao mesmo tempo. No entanto, nós estamos tranqüilos em nossa parte do Egito. Abu está forte e a 17. parte central do país está conosco até Quesy. As melhores das terras deles são cultivadas em nosso pro18. veito; nosso gado pasta nos tremedais do Delta; o trigo emmeré enviado aos nossos porcos; ninguém se 19 apodera de nosso gado; nenhum crocodilo (...) sobre isto. Ele possui a terra dos asiáticos, nós possuí20. mos o Egito. Se alguém vier e agir contra nós, então sim, lutaremos contra ele! 21. Eles (= os conselheiros) foram desagradáveis ao coração de Sua Majestade: 22. — Quanto ao vosso conselho (...) [Lacuna considerável] Aquele que divide a terra comigo não 23 me respeitará. Deverei eu respeitar estes asiáticos? Eu navegarei corrente abaixo até chegar ao Baixo 24. Egito. Se eu lutar com os asiáticos, o sucesso virá. Se ele crê estar contente com (...), em pranto, o país 25- inteiro (...) o governante no interior de Tebas, Kamés, aquele que protege o Egito! 26. Então eu naveguei corrente abaixo na qualidade de um vitorioso, com a finalidade de repelir 27. os asiáticos conforme a ordem de Amon, famoso por seus conselhos. Meu exército corajoso estava 28. diante de mim, semelhante á chama do fogo. Os arqueiros de Medjau puseram-se em cima de nossas 29 cabinas para procurar os asiáticos e fazê-los recuar de suas posições. O Oriente e o Ocidente traziam 30. azeite de untar para a tropa, o exército era provado de alimentos e bens em toda parte. 31 Despachei as tropas vitoriosas de Medjau, enquanto eu me detinha para imobilizar e comba32. ter Teti, filho de Pepi, no interior de Neferusy, sem permitir que escapasse enquanto eu repelisse os 33- asiáticos que haviam desafiado o Egito. Ele transformara Neferusy num ninho de asiáticos. 34. Passei a noite em meu barco, estando alegre meu coração. Ao alvorecer, caí sobre ele como 35 se fosse um falcão. Ao chegar o momento da refeição da manhã eu o repeli, derrubei a sua muralha e 36. massacrei a sua gente. Eu é que fiz a sua esposa descer para a margem (do rio]. Meus soldados, seme37. lhantes a leões, estavam cancgados do produto de seu saque, na posse de servos, gado, leite, azeite de 38. untar e mel, partilhando os seus bens, estando alegre o seu coração. O distrito de Neferusy parecia algo 39- tombado; e não havia demorado muito, para nós, paralisarl-lhe] o espírito.

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40. A região de Pershaq desaparecera quando a atingi. Seus cavalos haviam fugido para den41. tro . A s p a tr u lh a s (...). [A q u i s e s itu a a m a io r la c u n a d o t e x t o ] 42. — A notícia proveniente de tua cidade é vil. Tu fugiste ao lado de teu exército. Teu discurso 43 é mesquinho ao fazeres de mim um mero chefe e de ti um governante real, como se pedisses para ti o 44. cadafalso onde tombarás! Tu conhecerás o infortúnio, pois meu exército te persegue. As mulheres de 45. Hutuaret não [mais) conceberão, os seus desejos [já] não provocarão tremores dentro de seu corpo 46. quando for ouvido o grito de guerra do meu exército. 47. E u a t r a q u e i e m P e r d je d q u e n , o c o r a ç ã o fe liz p o r q u e p o r m in h a c a u s a A p e p i c o n h e c i a u m 48. momento difícil: aquele chefe de Retenu de fracos braços que planejava em seu foro íntimo atos de 49 bravura incapazes de acontecer para ele. Chegando a Inytnekhenet, eu atravessei em direção aos 50. habitantes Qit. eles) para dirigir-lhes a palavra. Fiz então pôr em ordem a frota, um barco atrás do ou51. tro ; f iz c o m q u e p u s e s s e m [ca d a ] p r o a e n c o s t a d a a [c a d a ] p o p a . A lg u n s d e m e u s B r a v o s (= u m c o r p o 52. militar de elite) voaram sobre o rio. Como se fosse um falcão, o meu navio dourado os precedia; e eu 53 os precedia como um falcão. Fiz com que o valente barco líder inspecionasse as terras ribeirinhas, se54. guindo-o ‘A próspera” [nome da frota?], como se se tratasse de crocodilos (?) arrancando plantas nos 55 pântanos de Hutuaret. 56. Eu [já] vislumbrava as suas mulheres (= de Apepi), no topo de seu palácio, olhando de suas 57. janelas em direção à margem, seus corpos imóveis, pois viam-me ao olhar por cima de seus narizes, no 58. alto de suas muralhas, como filhotes cercados no interior de suas tocas. E eu estava dizendo: 59-— É um ataque! Eis que eu vim e terei êxito! O resto [do país] está comigo. Minha sorte é 60. a fo rtu n a d a . C o m o p e rd u ra o b r a v o A írto n , n ã o t e ciarei tré g u a , n à o p e rm itire i q u e p is e s o s c a m p o s s e m 61. que eu caia sobre ti! Tua resolução falha, ó vil asiático! Eis que eu beberei do vinho de teu vinhedo, 62. que será espremido para mim pelos asiáticos de meu butim. Eu arrasarei teu lugar de residência, corta63- rei tuas árvores depois de lançar tuas mulheres à carga dos barcos e me apossarei dos carros de guerra! 64. Não deixei uma prancha Isequer] nos trezentos barcos de pinho novo cheios de ouro, lá65. pis-lazúli, prata, turquesas, incontáveis machados de bronze, sem contar o azeite de árvore, o incenso, 66. o óleo de untar, suas diversas madeiras preciosas de todo tipo e todos os bons produtos do Retenu. Apo67. derei-me de tudo, não deixei coisa alguma: Hutuaret foi esvaziada! 68. — Ó asiático despojado, teus desejos falharam! Ó asiático vil, que vivias dizendo: “- Eu 69 sou um senhor sem par até Khemenu, até Per-Hathor e também até Hutuaret, junto aos dois rios 70. (= dois braços do Nilo)”. Eu deixarei estes lugares desolados, vazios de gente, depois de anasar as suas 71. cidades, queimar as suas residências, transformadas em ruínas ardentes para sempre devido ao dano que 72. fizeram nesta parte do Egito os que se puseram a servir aos asiáticos que agiam contra o Egito, seu 73 senhor. 74. Na parte superior do oásis eu capturei um mensageiro seu (= de Apepi) que estava nave75. gando rio acima em direção a Kush, a respeito de um escrito em que li, como expressão escrita do go76. v e r n a n t e d e H u tu a r e t: 77. ‘Aauserra (= Grande é o poder de Ra), o Filho de Ra, Apepi, saudando o meu filho, o go78. vernante de Kush. Por que te fizeste governante sem mo fazer saber? Acaso [não] viste o que o Egito 79 fez contra mim, o governante que lá está, Kamés, o forte, dotado de vida, expulsando-mc de meu ter80. ritório sem que eu o atacasse — exatamente como fez de tudo contra ti? Ele escolheu os dois países pa81. ra devastá-los — meu país e o teu — e os arrasou. Vem, navega rio abaixo e não tremas, pois ele está 82. aqui comigo e ninguém te espera no Egito. Eis que não o deixarei afastar-se até que chegues. Então 83 nós partilharemos entre nós as cidades do Egito e nossos países se alegrarão.” 84. Uadjkheperra, o forte, dotado de vida, é que controla as situações. Foram-me dados os

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85 países estrangeiros, a Proa das Terras, os rios igualmente. Nunca encontrei o caminho da derrota, pois 86. nunca negligenciei o meu exército. O rosto do homem do norte (= Apepi) não se desviou, mas ele [já] 87. me temia enquanto eu navegava rio abaixo, antes que combatéssemos, antes que eu o atingisse. Ele viu 88. a (minhaj chama e escreveu a Kush, buscando a sua proteção. Mas eu capturei [a mensageml a caminho 89. e não deixei que chegasse. Então eu fiz com que lhe fosse devolvida, deixando-a a leste, perto de Tepih. 90. Meu poder entrou em seu coração e seu corpo foi devastado [devidol ao que lhe relatou o seu mensagei91 ro acerca do que eu fizera ao distrito de Hutnetjerinepu, ainda em seu poder. Eu então despachei uma 92. tropa vitoriosa que estava desembarcada para devastar Djesdjes, enquanto eu ficava em Saka, paia não 93 deixar que houvesse um rebelde em minha retaguarda. 94. Eu naveguei rio acima, meu coração estando forte c alegre, combatendo os rebeldes que 95- estivessem ao longo do caminho. Quão feliz é o navegar corrente acima paia o governante — vida, pros96. peridade, saúde! — cujo exército está diante dele! Os soldados não sofreram perdas, nenhum homem 97. deu por falta de um companheiro, seus corações não se lamentavam. Eu viajei em direção ao território 98. da Cidade (- Tebas) na estação da Inundação. Todos os rostos brilhavam, o país estava na abundância, 99 a margem (do riol estava agitada, Tebas estava em festa. Mulheres e varões vinham ver-me. Cada espo100. sa abraçava o seu companheiro, nenhum rosto estava molhado de lágrimas. 101. Eu queimei incenso para Amon em seu santuário e no lugar onde se diz habitualmente: 102. “— Recebe boas coisas!” — do mesmo modo que o seu braço havia dado a cimitarra ao filho de Amon 103. (vida, prosperidade, saúde!), o rei duradouro, Uadjkheperra, o filho de Ra, Kamés, o forte, dotado de 104. vida, aquele que controla o Egito e derruba o homem do noite, aquele que se apodera do país vitorio105. samente, dotado de vida, estabilidade e poder, enquanto o seu coração está satisfeito com o seu ka, 106. semelhante a Ra para sempre, eternamente! 107. Sua Majestade ordenou ao nobre, príncipe, preposto aos segredos do palácio ( = membro 108. do conselho privado do rei), encarregado do país inteiro, tesoureiro do Rei do Baixo Egito, aquele que 109. comanda as Duas Terras, primeiro capataz dos cortesãos, chefe dos tesoureiros, o poderoso, Neshi: 110. — Faze com que todos os feitos que foram cumpridos por Minha Majestade vitoriosa111. mente sejam relatados numa esteia a ser instalada em seu lugar no templo de Karnak, em Tebas, eter112. namente e para sempre! 113 Ele (= Neshi) então disse diante de Sua Majestade: 114. — Farei tudo o que foi ordenado! 115. Favores do rei foram ordenados (para) o chefe dos tesoureiros, Neshi. A tra d u çã o é d e m in h a au to ria. O

te x to original e g íp c io foi

co n su lta d o em : M IO SI, Frank T. A re a d in g b o o k o f S eco n d In term e-

d ia te P eríod texts. T o ro n to : B e n b e n P u b lica tio n s, 1 9 8 1 , p p . 35-53-



Anotações ao texto

Começaremos pelas anotações geográficas; nelas, a linha indicada é a da primeira ocorrência do topônimo. L. 5: Tebas, em egípcio Uaset, principal cidade do Alto Egito, era a capital da 17- dinastia; ficava onde hoje está a pequena cidade de Luxor.

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Hutuaret (1. 8), nos tempos greco-romanos Avaris, a capital dos invasores asiáticos Chicsos), era um porto fluvial do Delta oriental ao qual chegavam também barcos marítimos; desde as escavações de Manfred Bietak, identifica-se com a localidade atual de Tell el-Daba. Kush (1. 9) era o nome egípcio da parte da Núbia imediatamente ao sul da atual Assuã. Mênfis (1. 11), no Baixo Egito, próxima ao Cairo de nossos dias, era uma antiga capital real e, como Tebas, uma das maiores cidades durante toda a história faraônica dos dois últimos milênios antes de Cristo. Khemenu (1. 11), na época clássica Hermópolis, atual el-Ashmunein, era importante cidade do Médio Egito. Quesy (1. 15), na época clássica Cusae, hoje el-Qusiya, era cidade de importância média do Médio Egito, a meio caminho entre Tebas e Mênfis. Abu (1. ló), Elefantina para os gregos e romanos, atual Assuã, marcava o limite entre o antigo Egito e a Núbia (Kush). Medjau (1. 28) designa um povo e uma região da Núbia (Kush), tradicionalmente provedores de policiais e soldados para o Egito; na época do documento, porém, as tropas assim designadas podiam conter egípcios. Neferusy (1. 32) é cidade de porte médio da parte meridional do Médio Egito. Pershaq (1. 40) é localidade não identificada do Médio Egito, o mesmo podendo ser dito de Perdjedquen (1. 47). Retenu (1. 48) é nome egípcio da Síria-Palestina, genérico e um tanto impreciso na extensão do território que designa. Inytnetkhenet (1. 49), localidade não identificada, parece designar um entreposto naval e não uma cidade. Per-Hathor (1. 69) é provavelmente a atual Gebelein, ao sul de Tebas: Apepi reivindica, pois, a suserania sobre o Alto Egito e, como se vê pela menção a Khemenu (Hermópolis), o Médio Egito, reservando-se o governo direto do Baixo Egito, onde ficava Hutuaret (Avaris), sua capital. “Proa das Terras” (1. 85) parece designar a parte sul do Alto Egito. Tepih (1. 89), Afroditópolis para os greco-romanos, hoje Atfili, era localidade do extremo norte do Médio Egito, ao sul de Mênfis. Hulnetjerinepu (1. 91) — “o castelo do deus Anúbis” — é o 17s nomo do Vale, situando-se no Médio Egito ao norte de Hermópolis. Djesdjes (1. 92) é o oásis hoje denominado Bahariya, no deserto ocidental, o mais setentrional dos oásis maiores do deserto líbico: nota-se a estratégia de Kamés no sentido de cortar as comunicações e os transportes possíveis de tropas por terra, usando os oásis, entre a Núbia (Kush) e os domínios diretos do rei Apepi. Saka (1. 92) é a atual el-Qeis, situada no 17s nomo do Vale, região que, como se lê na linha 91, Kamés e suas tropas estavam devastando nessa ocasião. Passemos às anotações de natureza diversa ao texto.

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L inhas 1-4:

A in d ica çã o d o a n o d e rein a d o (q u e n este c a so , p o ré m , p a re c e ter sid o ag reg a d a p o sterio rm e n te a o resto do te x to ) d o fa raó rein an te c o m su a titulatura co m p le ta , aco m p a n h a d a aind a d e e p íte to s varia­ d o s, e ra form a usual d e in iciar o s te x to s fa ra ô n ic o s. A titulatura, d e sd e a 5 a d inastia, era p rin cip a lm e n te solar, lig ad a a o d eu s Ra; e in d icativa da reu n ião d o A lto e B a ix o Egito — o sul e o n o rte do p aís —

s o b um rei ú n ic o m as dual. Ver ta m b é m a lin ha 25

(lim ita d a m en te) e as lin h as 1 0 3-106. Lin has 8 -1 3 :

O d iscu rso d o rei re fle te a d ivisão d o E gito, d u ran te o S eg u n d o P e río d o In term ed iário (a p ro x im a d a m e n te 1 6 4 0 -1 5 3 2 an tes d e Cris­ to ), e m d o is g o v e rn o s, o d o n o rte s o b o s reis d e o rig e m asiática (h ic s o s ) d e Avaris, n o D elta, o d o sul s o b a 17a d in astia d e T eb as; re fle te aind a o fato d e a N úbia (K u sh ), n o p a ssa d o s o b adm inistra­ ç ã o e g íp cia , ser agora in d ep en d e n te .

L inha 14:

O C o n se lh o do rei aq u i m e n cio n a d o a p a re c e e m e g íp cio s o b o n o m e djadjat. O ra, na é p o c a d o tex to h á s é c u lo s e ss e c o n se lh o a rc a ic o tinha sid o su b stitu íd o p o r o u tro, a qu en ebet. Isso ind ica o c a rá te r a b e rta m e n te arca iz a n te e d e to d o fictício d o p ró lo g o da narrativa (lin h a s 7 a 2 5 ), q u e n ã o p assa d e u m artifício discu rsivo p ara ressaltar a c o ra g e m e o sen tid o d e re sp o n sa b ilid a d e d o faraó.

L in has 15-16: “E le s p u se ram su as lín g u a s p ara fora to d o s a o m e s m o te m p o ”: e x p r e ss ã o id iom ática e m lín gu a p o p u la r (n ã o -lite rá ria ) d e sen tid o o b sc u ro . U m g e sto d e d esa fio a o s e g íp cio s? A lg u n s a c h a m q u e sig n ifiq u e “e le s se p u se ra m a falar to d o s a o m e sm o te m p o ”, o q u e n ã o p a re c e c a b e r n e ste p o n to . L inha 18:

O em rner é u m trigo d u ro, rico em am id o; c o m a cev a d a , era o c e r e a l m ais cu ltivad o n o E g ito d o s faraó s.

Linha 36:

A esp o sa d e T eti é, pois, em b arcad a p e lo faraó p esso alm en te rum o ao cativeiro c o m o presa d e guerra.

L in ha 60: L inha 63:

“C om o perdura A m o n ...” é fó n n u la usual d e juram ento. O s ca rro s d e gu erra p u x a d o s p o r cav a lo s, n a é p o c a arm a d e uso re la tiv a m e n te re c e n te , e ra m — c o m o o s p ró p rio s ca v a lo s — presa d as m ais a p reciad as q u a n d o d o saq u e.

L inha 7 7 :

“F ilh o ”, a p licad o ao g o v e rn a n te d e K ush, é d e s ig n a ç ã o h o n o rífica. A p ep i, q u e se co n sid era fa raó leg ítim o d o E gito, fin g e v e r n o rei da N úbia (K u sh ) um s u b o rd in a d o seu — já q u e n o p a ssa d o o s eg íp cio s g o v e rn a v a m a reg ião.

Linha 80:

“E x a ta m e n te c o m o fez d e tu d o co n tra ti”: alg u n s a u to res qu iseram v e r n e ssa s palav ras a p ro v a d e um a ca m p a n h a m ilitar an terio r de

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Kamés contra a Núbia (Kush), o que permanece como ponto de controvérsia entre egiptólogos. Linhas 95-96: “Vida, prosperidade, saúde!” é saudação ritual ao monarca reinante; ocorre também na linha 103 após a expressão equivalente “filho de Amon”. Linha 102:

“— Recebe boas coisas!”: o texto refere-se, aqui, a uma parte do templo de Karnak especialmente reservada à apresentação de oferendas a Amon (que também as recebia em seu santuário, a parte mais secreta do mesmo templo, a que poucos tinham acesso).

Linhas 107-109: A titulatura dos grandes funcionários da corte dos faraós era em grande parte hierárquica e honorífica. O direito a um dado título funcional não indicava obrigatoriamente o desempenho efetivo da função correspondente.



Análise

Ao voltar a Tebas após uma campanha no norte que deve ter sido a última — senão a única — de seu curto reinado, o rei Kamés, último integrante da 173 dinastia, mandou erigir no templo de Karnak uma esteia contendo a narrativa dos seus feitos militares recentes. Eram meados do século XVI antes de Cristo. O relato resultante, bastante longo, exigiu na realidade a superfície de duas esteias de pedra em lugar de uma só: o texto hieroglífico da segunda começa abruptamente, mostrando tratar-se de mera continuação. Essa segunda esteia de Kamés em Karnak foi achada em 1954 em condições de conservação bastante satisfatórias (em nossa tradução, seu texto começa na linha 42). Da primeira esteia, entretanto, restam somente fragmentos, encontrados em 1932 e 1935. Felizmente, uma cópia em hierático (escrita cursiva) do início de seu texto hieroglífico fora feita — contendo erros numerosos — logo após a ereção das esteias, como se pode inferir pelo contexto da descoberta e pela caligrafia, numa tabuinha de madeira recoberta de gesso (Tabuinha Carnarvon I), achada em 1908 numa tumba tebana contendo materiais da 17a dinastia. Os fragmentos da esteia permitiram efetuar algumas corre­ ções ao texto da tabuinha e preencher algumas lacunas, mas não todas. No entanto, boa parte do texto da primeira esteia se perdeu, ao que parece sem remédio. Ainda assim, o sentido do documento visto como um todo — a soma dos textos das duas esteias — pode apreender-se bastante bent; o mesmo ocorre com a própria campanha militar narrada, apesar de faltarem alguns de seus episódios.

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A importância histórica de tal documento é enorme: trata-se do único escrito que nos permite saber algo sobre a prosperidade do reino governado pelos dinastas asiáticos (hicsos — de h ek a u khasut, “gover­ nantes de países estrangeiros”) no Delta, completando as informações arqueológicas, bem como acerca da situação efetiva da política e das fronteiras vigentes no Egito dividido e na Núbia (Kush) do final do Segundo Período Intermediário — fase que iria terminar em 1532 antes de Cristo com a expulsão dos hicsos pelo sucessor de Kamés, seu irmão Ahmés I, que subiu ao trono por volta de 1550 antes de Cristo e é considerado o fundador da 18a dinastia e do Reino Novo. Do ponto de vista discursivo, o texto do faraó Kamés é também um documento su i generis entre as narrativas de guerra do Egito antigo, por sua expressão vigorosa e uma qualidade literária muito acima de todos os outros relatos subsistentes de campanhas militares egípcias. Algo que se perde na tradução é o jogo, no texto, de dois tipos de linguagem: um médio egípcio literário, formal, mas sob influxo considerável (com excelentes resultados textuais) do falar coloquial que só seria aceito literariamente em grande escala uns dois séculos mais tarde e que os especialistas de nossa época batizaram de neo-egípcio ou egípcio tardio. A originalidade e o vigor da expressão são tão fortes que vários egiptólogos se sentem tentados a atribuir ao faraó pessoalmente a autoria do texto, narrado em sua maior parte (desde a linha 26 em nossa tradução) em primeira pessoa — apesar de que a segunda esteia no final (linhas 107-115 da tradução) pareça, pelo contrário, indicar o cortesão Neshi como autor efetivo do mesmo, por ordem direta do rei. A que gênero pertence este documento? O egiptólogo alemão Alfred Herrmann propôs definir um grupo numeroso de textos egípcios, a partir do Reino Médio, como Kònigsnovelle ou “romance real”. Embora cada um dos textos em questão reflita em proporções variáveis fatos verdadeiramente ocorridos, esses eventos sofreram uma releitura poética consoante a concepção egípcia da monar­ quia divina, surgindo topoi discursivos recorrentes que descrevem não tanto indivíduos que eram reis, mas, sim, o protótipo do faraó ideal, com sua inteligência superior, seu caráter de campeão na guerra, sua piedade em relação aos deuses que lhe deram o ofício monárquico e o apóiam em todas as suas ações (que as divindades aliás solicitam ao rei em sonhos ou por outros meios, já que são ações que restauram a ordem da criação

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contra as ameaças do caos), sua adoração e aprovação pelos súditos etc. No entanto, a K õnigsnovelle não é um verdadeiro gênero, pois cobre textos de tipos e finalidades muito heterogêneos. Trata-se, mais, de uma modalidade de discurso sobre o rei, presente em vários gêneros. Se considerarmos só documentos que de algum modo relatem campanhas militares, AnthonyJ. Spalinger propõe dividi-los em diversos gêneros. As esteias de Karnak, erigidas por Kamés, configurariam um texto que deve ocupar um lugar privilegiado como o exemplar mais acabado do que chama de relato literário dos grandes feitos de guerra dos faraós. Integrariam gêneros diferentes, entre outros textos: os que se baseiam de perto no diário de campanha; os documentos militares de viés retórico quase exclusivo; os discursos pronunciados formalmente pelo rei (na realidade ou ficcionalmente) em certas ocasiões etc. Isso pode parecer complicado demais e até excessivo; os textos a classificar em gêneros são porém, para a Antiguidade, numerosos e heterogêneos: Spalinger men­ ciona mais de 40 só a partir da época das esteias de Kamés. O texto de que me ocupo, em sua parte propriamente narrativa, central (linhas 7 a 100: as referências serão sempre às linhas da tradução), contém, na verdade, duas composições literárias diferentes, postas — sem transição — uma ao lado da outra: um episódio de todo fictício e cheio de arcaísmos voluntários de tipo textual e histórico, narrado em terceira pessoa, da linha 7 à 25; e o relato da campanha militar, feito em primeira pessoa a partir da linha 26. Essa segunda composição sem dúvida teve base em fatos reais, mas nada existe nela de ingênuo e espontâneo e há muito de propaganda. Kamés estava trabalhando arduamente no sentido de restaurar não só a unidade política do Egito, como também a credibilidade do velho mito egípcio da monarquia divina, seriamente arranhado pelo longo declínio do poder real no final do Reino Médio e pelo posterior domínio estrangeiro direto sobre uma parte do país, indireto (tributário) sobre toda a parte restante, sem excluir o pequeno reino governado, de Tebas, pela 17a dinastia. Em tal contexto, o vigor excepcional do discurso torna-se compreensível, bem como sua retórica monárquica exacerbada. Um texto posterior, referindo-se ao antecessor imediato de Kamés, Sequenenra Taa II, afirma sem exagero que “não havia um monarca como rei desta época” (Papiro Sallier I ou British Museum 10.185: 1,1). Entenda-se: não havia um verdadeiro faraó con­ soante a tradição já então bem antiga acerca da monarquia divina do Egito. O próprio Kamés diz do rei hicso Apepi, referindo-se aos docu­

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mentos que no passado este lhe endereçara: “Teu discurso é mesquinho ao fazeres de mim um mero chefe e de ti um governante real” (linhas 42-43). Mas, até o esforço de Kamés, as pretensões de Apepi eram justificadas, num Egito dividido, mas sem dúvida próspero e economica­ mente indiviso (linhas 64-67; 16-19); humilhado, porém — pelo menos era o que achava a corte de Tebas — , em suas tradicionais pretensões a uma superioridade egípcia sobre os estrangeiros. Ao dizer que empregaria os métodos de Goldmann e Todorov, especifiquei que a intenção não era superpô-los, e, sim, subordinar o segundo ao primeiro. Vou, então, começar e terminar com o enfoque de Goldmann, usando a poética de Todorov somente como um auxiliar para a elucidação da estrutura imanente ou intrínseca do texto. As esteias de Kamés, mesmo se com grande originalidade, estão na tradição das características e convenções gerais da literatura do Reino Médio: U m p r o p ó s ito “d id á tic o " é a lg o c e n tra l n o re la tiv o a o u s o d o b e le tr is m o d o R e in o M éd io , p o r im p o rta n te s q u e s e ja m sua a s s o c ia ç ã o c o m e v e n to s p o lític o s e s p e c íf ic o s e se u c o n te ú d o p u ra m e n te e s té tic o . E ssa lite ra tu ra d e fin e -s e e a g e c o n s is te n te ­ m e n te c o m o u m a p o lê m ic a e m fa v o r da n o rm a s o c ia l d e um c ír c u lo re strito , c u jo s in te r e s s e s e sta v a m lig a d o s d e p e rto c o m a m a n e ira c o m o fu n cio n a v a a a u to r id a d e m o n á r q u ic a .( E y re 1 9 9 0 , p p . 1 5 0 -1 5 1 )

Assim, os letrados do Egito, os escribas, sempre uma pequena minoria — mesmo se há acaloradas discussões hoje em dia, de solução impossível na falta total de cifras, acerca de quão pequena (ou seja, da proporção dos que podiam ler e escrever em relação à população total) — , eram ao mesmo tempo emissores e receptores de textos como o que estou analisando. A ideologia monárquica desse grupo (em especial da parte dele mais próxima à corte), central em sua visão de mundo, é que forma, no caso, as estruturas categoriais significativas de que fala Gold­ mann como estrutura maior, englobante, capaz de explicar a estrutura menor cliscernível pela análise no interior de um texto literário. Trata-se de uma concepção cósmica do papel do faraó egípcio. Ele mesmo um deus, filho dos grandes deuses, que o favorecem, e

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mediador entre estes e os homens, comanda o mundo humano e natural (o Nilo sobe por causa dele, o ar é respirado porque o rei permite etc.). Os estrangeiros ou se submetem ao seu poder ou são massacrados. A destruição dos rebeldes e criminosos internos e externos pelo monarca assim como a caçada real aos animais “malignos” do deserto ou do pântano são atos cósmicos que ajudam a sustentar Maat, a filha de Ra, que é personificação da verdade-justiça e da ordem correta do universo em geral, da sociedade humana em particular. Outrossim, só o rei pode construir templos e, em teoria, o culto aos deuses é feito pessoalmente por ele (na sua ausência, por representantes seus). O faraó — visto mais como paradigma ou arquétipo do que como o rei concreto que no momento estivesse no trono — , assimilável ao deus criador primordial, do qual, em sua qualidade de Hórus vivo e filho do deus solar Ra, constituía-se em herdeiro legítimo e direto, era o sábio dos sábios, o campeão dos campeões, terrível para os rebeldes e inimigos, magnânimo e benfazejo para os que lhe fossem leais. Tudo lhe pertencia por direito, coisas e pessoas; portanto, toda riqueza e todo bem-estar nesta vida e na outra (as oferendas funerárias eram sempre apresentadas em nome do rei) dele dependiam em forma direta, eram mencionados (por exemplo nas autobiografias funerárias) como se dele dependessem. Os seus súditos o amam, obedecem-lhe, aclamam-no. Vê-se que não se trata de um agregado de características atribuídas ao rei: é uma verdadeira estrutura, deduzida da premissa básica de ser o faraó ao mesmo tempo homem e deus e, como deus, sucessor e herdeiro do criador do cosmo, razão pela qual comanda e possui “tudo aquilo sobre o qual brilha Ra”. Vou agora passar, em forma sintética, à aplicação das noções da poética todoroviana ao texto. O resumo não decorre só de problemas de espaço, mas também de que deve reter-se da análise unicamente o que seja funcional à descoberta e à comprovação da estrutura imanente do texto. Na prática, é óbvio que o que se faz de saída é ler muitas vezes o documento em estudo, buscando ponto a ponto as ocorrências e anotando-as; mas, a seguir, é preciso separar o mais importante do que importa menos ou do indiferente para as finalidades da pesquisa. Começarei pela análise do aspecto verbal do texto e, dentro dela, dos registros da fala, o primeiro dos quais é a oposição entre concreto e abstrato. No caso presente, predominam quantitativamente as frases concretas, como é típico de toda a literatura egípcia. Mas as ocorrências

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relativamente raras de frases abstratas são importantes, por configurarem os assuntos dessas frases generalizações ou abstrações com carga ideoló­ gica. Assim, por exemplo e sobretudo, nas linhas 29-30: “O Oriente e o Ocidente traziam azeite de untar para a tropa, o exército era provido de alimentos e bens em toda parte.” É claro que, como todas as expedições militares antigas, a de Kamés aprovisionava sua frota e suas tropas por meio de requisições, forçando os habitantes das regiões atravessadas a entregar alimentos e outros artigos necessários, mesmo se se admitir que algumas reservas fossem transportadas nas cargas dos barcos. No texto, porém, o que aparece é outra coisa. Existem maus egípcios, os que obedecem aos asiáticos e assim fazem dano não só ao seu país como à ordem cósmica, em que o Egito — governado pelo faraó divino — é necessariamente o senhor dos estrangeiros (linhas 71-73). Em contraste, os bons egípcios aprovisionam voluntariamente os soldados de Kamés, ilustrando assim o princípio ideológico de que os súditos que não são rebeldes e merecedores de destruição (por exemplo, linhas 94-95) amam e obede­ cem ao seu rei. Outros exemplos de generalizações com carga ideológica que resultaram em assuntos que não são singulares e descontínuos podem ser achados nas linhas 11-12 e sobretudo 95-100, estas últimas opondo-se tematicamente às já mencionadas linhas 71-73 e a uma frase como “Hutuaret foi esvaziada!”, linha 67. Note-se que as menções à intervenção divina (linhas 6, 27, 102-103) só configuram assuntos “abstratos" para nós, não na visão egípcia, que desconhecia uma separação estrita entre os mundos divino, humano e natural. E m s e g u n d o lu g a r, q u a n t o a o s r e g is t r o s d a f a la , d e v e - s e d e c id ir s e a lin g u a g e m d o t e x t o

e,

o que

é

é

o u n ã o fig u r a tiv a . E la

é

o c a s i o n a l m e n t e fig u r a tiv a

m a is r e l e v a n t e , a s f ig u r a s d e s e m p e n h a m f u n ç ã o i d e o l ó g i c a . E m

e s p e c i a l, a s d e r e p e t i ç ã o ( r e l a ç ã o d e i d e n t i d a d e ) , a s m a is n u m e r o s a s — p o r e x e m p l o n a s l in h a s

57-58 — ,

4, 26, 28, 33, 34-35, 36-37, 38-39, 52, 53, 54-55, é “s e m e lh a n t e a R a ”, “c o m o

q u a l i f ic a m p o s it i v a m e n t e o r e i, q u e

u m f a l c ã o ” e e s t á “n a q u a lid a d e d e u m v it o r i o s o ”, o u s e u s g u e r r e ir o s , q u e s ã o “s e m e lh a n t e s a l e õ e s ”; e , n e g a t iv a m e n t e , o s s e u s in i m i g o s : a s e s p o s a s d e A p e p i, p o r e x e m p l o , e s t a v a m “c o m o f i lh o t e s c e r c a d o s n o in t e r io r d e s u a s t o c a s ”. S ó a c h e i u m a fig u r a d e g r a d a ç ã o ( l in h a a n t ít e s e s ( p o r e x e m p l o , n a s l in h a s

58

31-32

e

91-92,

17) e

u m as p ou cas

“d e s p a c h a r ” tr o p a s

aparece em oposição a “deter-se” ou a “ficar”, tipo de antítese cuja razão ideológica, como foi indicado por alguns egiptólogos ao analisar outros documentos, nos escapa). Em seguida, a questão: Trata-se de um texto monovalente ou polivalente? Ele é altamente polivalente, já que remete a muitos tipos de textos literários e militares do Reino Médio. O episódio inicial (o debate fictício entre o rei e seus conselheiros) tem elementos inspirados por textos sapienciais da 12- dinastia, como as Instruções d e K agem ni e as P rofecias d e Neferty. Uma passagem da segunda esteia (linhas 96-100) lembra o Conto d o náufrago. Os episódios em que o rei age como campeão — por exemplo: “...eu o repeli, derrubei a sua muralha e massacrei a sua gente. Eu é que fiz a sua esposa descer para a margem [do rio]” (linhas 35-36) — recordam o tom da esteia de Senuosret III em Semna, na Núbia, entre outros documentos de teor militar. Isso é de grande relevância num reinado que tentava retomar as grandes tradições monárquicas, perdidas ou enfraquecidas há muito tempo. É possível ainda que a associação no texto da linguagem corrente, coloquial, à literária seja uma tentativa de aproximação ao “clima" dos relatos orais da tradição popular. O que o texto tem de monovalente (aquilo em que remete a si mesmo, não a outros textos) é também importante. No momento da constituição de um exército e uma frota profissionais, permanentes, por Kamés, pela primeira vez na história do Egito, a figura discursiva do rei campeão associa-se — o que não ocorria antes nem ocorre em textos posteriores (nos quais será comum a depreciação das tropas para melhor ressaltar o valor pessoal do faraó) — a uma apreciação constantemente positiva e textualmente abundante da coragem e do papel das tropas, bem como da solicitude do rei para com elas: linhas 26-30, 31, 36-38, 44, 46, 51-55, 85-86, 91-92; e vale a pena ressaltar a exclamação: “Quão feliz é o navegar corrente acima para o governante (...) cujo exército está diante dele!” (linhas 95-96). Em quarto e último lugar entre os registros da fala está a oposição complementar objetivo/subjetivo. O discurso alterna com freqüência o registro objetivo — narrativa seca de fatos — e o subjetivo. Este último predomina, principalmente na subcategoria do discurso emotivo. Assim se pode notar no contraste entre as falas altamente emotivas do rei (8-13 e 22-25) e a dos conselheiros (linhas 15-20), no prólogo; ver também, como outro exemplo, o contraste entre as linhas 47-51 (discurso objetivo)

59

e

51-55

( s u b je t i v o ) . U m a p a r t e p r e d o m i n a n t e d o t e x t o — e t a lv e z a q u e

m a is p e r s is t a n a m e m ó r ia a p ó s a le itu r a — s ã o a s lo n g a s tir a d a s e m o tiv a s q u e K a m é s d ir ig e a u m in t e r l o c u t o r a u s e n t e ( o re i riv a l A p e p i) , lin h a s

42-46, 59-63, 68-73

e, c o m a m e sm a fu n ç ã o m a s c o m o n a rra d o r e n ã o

n u m a p r e t e n s a f a la d ir e ta , lin h a s

84-93-

E n q u a n t o o r e g is t r o e m o t i v o te m

a f u n ç ã o d e “f a z e r p a s s a r ” e s u b l in h a r a m e n s a g e m i d e o l ó g i c a p r e t e n d id a , o r e g is t r o o b je t i v o c o m q u e a lt e r n a s e r v e p a r a p r e s ta r c r e d i b i li d a d e fa c tu a l a o t e x t o , a o m e n c i o n a r f a t o s e e p i s ó d io s c o n c r e t o s . A p ó s o s r e g is t r o s d a fa la , o m o d o . A c h a T o d o r o v q u e o g r a u d e e x a t i d ã o c o m q u e o d is c u r s o e v o c a s e u r e f e r e n t e é m ín im o n o r e la t o d e f a t o s n ã o - v e r b a i s — p o r d e f i n i ç ã o , a b u n d a n t e s n u m a n a r r a tiv a d e f e it o s m ilita r e s . M a s o m é t o d o t o d o r o v i a n o , n e s s e p o n t o , t e m m a is a v e r c o m o s f a t o s v e r b a is . S e e x c e t u a r m o s d o is c a s o s d e d is c u r s o r e l a t a d o —

27), p r o v a v e lm e n t e a o d a r a ( l in h a s 102-103), e o r e la t o d e u m

a

o r d e m d e A m o n ( l in h a

c im it a r r a d e g u e r r a a

s e u f ilh o K a m é s

m e n s a g e iro a A p ep i

( l in h a s

90-91)

— , o e s t i l o d ir e t o é q u e a p a r e c e q u a n t o a e s s e s fa to s

v e r b a is , d e s c o n t a n d o n o e n t a n t o u m c a s o d e e s t ilo i n d ir e t o a o r ç f e r ir - s e o f a r a ó d e T e b a s a d is c u r s o s a n t e r i o r e s d e A p e p i, p r o v a v e lm e n t e c a r ta s

42-43). N a s fa la s r e p r o d u z id a s , K a m é s te m 8-13, 22-25, 42-46, 59-63, 68-75, 110112). A s e x c e ç õ e s s ã o : a fa la d o s c o n s e l h e i r o s ( l in h a s 15-20), a c a r ta d o r e i A p e p i t r a n s c r ita v e r b a tim ( l in h a s 77-83), a c u r ta f ó r m u la d e a p r e s e n ­ t a ç ã o d e o f e r e n d a s a A m o n ( l in h a 102) e a b r e v e fa la d o c o r t e s ã o N e s h i ( l in h a 114). A s f a la s n u m e r o s a s e à s v e z e s lo n g a s a t r ib u íd a s a K a m é s o u d e s p a c h o s o f ic i a is ( l in h a s

a p a la v r a m a jo r it a r i a m e n t e ( l in h a s

e n l a ç a m o m o d o c o m o q u e já v im o s a c e r c a d o c a r á t e r p r e d o m i n a n t e ­ m e n t e s u b je t i v o d o t e x t o ; e e n l a ç a m - n o a in d a à v is ã o e à v o z , p e l o q u a l t r a ta r e i a g o r a d e s s e s e l e m e n t o s d o a s p e c t o v e r b a l, d e i x a n d o p a r a d e p o is o e x a m e d a s q u e s t õ e s r e la tiv a s à t e m p o r a lid a d e .

Quanto à visão, ela é basicamente subjetiva e interna: Kamés é personagem protagonista e refletor, além de narrar em primeira pessoa a maior parte do texto e ter, nele, muitas falas, como vimos; e não se priva de interpretar os fatos que narra. Acha, mesmo, coerentemente com a imagem do rei prototípico, que pode vislumbrar as motivações psicológi­ cas íntimas de seus inimigos (linhas 56-57, 68, 87-88, 90-91)- A literatura egípcia não usava o artifício de sonegar informações, reservando-as para momento posterior, nem de apresentar ao leitor falsas informações a corrigir depois. Ainda quanto à visão, o discurso procede a avaliações morais das ocorrências à luz do código ético derivado da ideologia da

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monarquia cósmica dos faraós, deixado sempre implícito. Por exemplo, quando Kamés diz dos egípcios partidários dos asiáticos que agiam contra o Egito, seu senhor, que o castigo daqueles decorrería de terem feito "dano” (linhas 71-73), refere-se implicitamente à teoria da legitimidade intrínseca do faraó como descendente dos deuses e seu herdeiro, e à superioridade também intrínseca dos egípcios sobre os asiáticos, por terem tal rei divino como governante. No tocante à voz, o que se tem a dizer é análogo. Kamés é narrador onisciente (ele vê dentro das pessoas), personagem principal e que se reserva quase todas as falas mais importantes, ocultando de todo no texto o autor empírico do mesmo, presumivelmente o cortesão Neshi. E, portanto, Kamés o agente do processo de construção do discurso e do próprio relato, extremamente presente no texto — que além do mais é narrado em primeira pessoa na sua parte maior. Vê-se que a subjetividade da linguagem, o modo, a visão e a voz são, aqui, aspectos de uma mesma coisa: a estratégia discursiva que, entregando o essencial da enunciação ao próprio rei divino, empresta-lhe autoridade para a veiculação da mensagem ideológica. E o rei, ao tomar a palavra como narrador (linha 26), logo (linha 27) a emprega para recordar que suas ações foram solicitadas pelo seu pai divino, Amon, o que volta a lembrar pouco antes de deixá-la (linhas 102-103) — já que o epílogo (linhas 107-115) está narrado em terceira pessoa — , ampliando mais ainda tal autoridade. O narratário visado é a elite de letrados da corte ou próximos a ela; mas a inscrição em esteias com figuras bem como a própria materialidade monumental das esteias permitem alguma ampliação desse destinatário. Por fim, concluindo a apreciação do aspecto verbal, estão as questões atinentes à relação entre o tempo do relato e o tempo dos acontecimentos. No tocante à ordem, as inversões temporais são mais freqüentemente internas do que externas, embora estas últimas existam (por exemplo: linha 33). Dentre as anacronias, há duas categorias mais centrais na construção do relato e sua ideologia: as prospecçôes internas em que o rei prevê as suas vitórias futuras, mostrando que, numa visão cósmica, elas são inevitáveis inerentemente (linhas 12-13, 24, 60-63, 70-73 etc.); e as voltas ao passado de pequeno alcance — referentes à campanha militar ainda em curso — , retrospecçôes internas em que Kamés (linhas 42, 85-89 etc.) e, uma única vez, o seu rival Apepi (linhas 78-81) refletem sobre os acontecimentos recentes, com efeito parecido.

6l

Quanto â duração, os discursos diretos ou comentários numerosos, quase sempre de Kamés, provocam algum efeito de pausa, interrompen­ do em certas ocasiões a ação propriamente dita (por exemplo: linhas 84-89). A elipse ocorre várias vezes, como é necessário num documento da extensão deste, que narra meses de campanha militar: assim, entre o debate fictício entre Kamés e seu conselho e o início da campanha, os preparativos da mesma ou o próprio embarque em Tebas são saltados (linhas 25-26); o mesmo quanto ao que ocorre entre o ataque a Neferusy e aquele a Pershaq (linhas 39-40), entre outras ocorrências da elipse. Conto tem de ser num texto que em número limitado de linhas se refere a um tempo dos eventos que se conta em meses, o tempo do discurso é no conjunto mais curto do que o dos acontecimentos. Mas há cenas — discursos diretos — que ocasionam o efeito contrário quando ocorrem, já que a ação pára. No que diz respeito à freqüência, embora predomine o discurso singulativo, qualitativamente o discurso iterativo — que indica costume, mas também ordem cósmica constante — é, talvez, mais importante do ponto de vista ideológico. Por exemplo, o rei se põe em movimento para “repelir os asiáticos”, o que fará várias vezes, não uma só (linhas 26-27), o país aprovisiona em toda parte e em diversas ocasiões o exército (linhas 29-30), o “dano” que os traiciores fazem ao Egito é contínuo e repetitivo (linhas 71-73), Kamés é um rei cujo “coração está satisfeito com o seu ka" (linha 105) — sendo o k a um dos elementos que constituem a persona­ lidade humana — constantemente etc. Também cruciais desse ângulo são os dois exemplos de discurso repetitivo em que ocorrências já relatadas — mesmo se alguns desses relatos, na parte final da primeira esteia, estejam perdidos para nós — voltam a ser referidas em reflexão de Apepi (linhas 78-81) e logo a seguir de Kamés (linhas 86-89; também 110-111), ressaltando a eficiência da ação militar do faraó de Tebas. Passando ao aspecto sintático, um texto narrativo com as caracte­ rísticas deste pode ser considerado mitológico, na terminologia de Todorov, em seu aspecto temporal-causal de superfície, explícito; mas também tem, num nível mais profundo, o caráter de texto ideológico, que chega a aflorar em algumas das perorações do rei em forma que só não é explícita quanto ao código ético envolvido. No mesmo sentido, age o fato já apontado de que, pouco depois de começar a narrativa em primeira pessoa e pouco antes de a concluir, o rei Kamés invoque a intervenção de Amon, seu pai divino.

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Seja como for, é perfeitamente possível apresentar a sintaxe narra­ tiva do texto de acordo com o método de Todorov. Acharíamos assim, em primeira aproximação, uma seqüência 1, principal, com organização que passo a expor.

Seqüência 1 S itu ação in icial:

P ro p o siç ã o narrativa 1: n u m E gito d ivid id o, o faraó d e T e b a s, K a m és, n ã o tem co n tro le so b re a N úbia (an tig a m e n te d o m in ad a p e lo s e g íp cio s) e p ag a trib u to a o rei h ic so d e I Iutuaret, q u e g o v ern a o B a ix o Egito d iretam en te e co n tro la o resto d o p aís e m fo rm a ind ireta (lin h as 8 -1 2 , 1 5 -20, 6 8 -7 0 ).

P ertu rbação P ro p o sição narrativa 2: K am és d ecid e, p o r ord em d e A m on e con tra a d a situ a çã o op in ião d e seu C on selh o, em p reen d er a guetra contra o s h icso s e se inicial. p õ e e m m ovim ento c o m o ap o io d os súditos (linhas 8-13, 21-30). Desequilíbrio, É a gu erra, n o v a situ ação q u e in verte a inicial (a qu al era d e paz n a crise: h u m ilh ação). Consta d e várias p ro p o siçõ es narrativas, q u e con tam o s êxitos obtid os p o r K am és à frente d e sua frota e seu exército. Vou num erar as q u e se con servaram , m as lem bran d o q u e outras se perd eram (d aí inserir em certo p o n to as reticências entre parên teses). P ro p o siç ã o narrativa 3: K am és, c h e g a n d o a o M éd io E gito, a taca c o m su ce sso a lo ca lid a d e d e N eferu sy, g o v ern a d a p o r T eti, um e g íp cio a serv iço d o s h ic so s; N eferu sy é v en cid a, a e sp o s a d e T eti é escra v iz ad a, o s so ld a d o s s a q u e ia m o lu g ar (lin h a s 3 1 -3 9 ). P ro p o siç ã o narrativa 4: a ta q u e a P ersh a q , n o M édio E gito, p a ssa g e m in co m p le ta (lin h as 4 0 -4 1 ). ( . .. )

P ro p o siç ã o narrativa 5: n a v e g a n d o p ara o n o rte, o faraó d e T e b a s e se u s c o m a n d a d o s atacam , n o D elta, a cap ital d o s h icso s, H utuaret, o n d e A p ep i, o rei h ic so , e n c e rra ra -se c o m seu e x é rc ito atrás d e fo rtific a çõ e s a p ó s as vitórias d e K am és m ais a o sul. A cid a d e n ão é to m a d a , m as o s e g íp cio s se a p o d e ra m d e trezen to s b a rc o s c o m rico ca rre g a m e n to asiá tico (lin h a s 4 2 -7 3 ). P ro p o siç ã o narrativa 6: e n q u a n to d ev asta, já v o ltan d o p ara o sul, a re g iã o d e H u tn etjerin ep u , n o M éd io Egito seten trio n al, K am és im p e d e , a o cap tu rar u m m e n sa g eiro , u m a m an o b ra d o rei A pepi p ara o b te r a a lian ça e o a p o io m ilitar im ed iato d o rei d e K ush (N ú b ia ); m an da e n tã o d ev astar o o á sis d e B ah ariy a, co rta n d o assim a p o ssib ilid ad e d e ju n çã o , p o r terra, d as fo rça s d e seu s ad versário s d o n o rte e d o sul (lin h a s 7 4 -9 3 ).

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In terven ção n a crise:

P ro p o siçã o narrativa 7: o co rren d o a ch eia anual d o Nilo, K am és d ecide voltar a T ebas, p o n d o fim à cam p an h a contra A pepi e seu s aliados, em b o ra n o cam inho aind a reprim a “reb eld es” (linhas 9 4-100).

Novo equilíbrio:

P ro p o siçã o narrativa 8: c o m o na situação inicial, o Egito está d e novo e m paz; m as, para K am és, é a paz d o vitorioso, p ela qual re ce b e as acla m a çõ es do p ov o e ag rad ece a seu pai A m on (linhas 101-106).

As linhas 107-115 poderíam também integrar-se à última proposi­ ção narrativa, mas talvez convenha considerá-las como uma seqüência 2, subsidiária à principal. Outrossim, as proposições narrativas 3 a 6 da seqüência 1 ou principal podem, cada uma, construir-se como seqüência: há, portanto, quatro seqüências, cada uma relativa a um feito de guerra, imbricadas ou inseridas na principal; seriam as seqüências 3 a 6, cujo grau de detalhe é bem variável. Das que se conservaram, são as duas últimas as mais desenvolvidas, mas as quatro que temos foram as que restaram de um número maior. Deixando de lado a apreciação do que Todorov chama de especi­ ficações, fixemo-nos — mas só de passagem — nas reações. As ações secundárias — aquelas que supõem uma ação primária anterior à qual reagem — cumprem uma função relativamente importante na construção do texto: o rei Kamés reage à divisão do país; os conselheiros, à decisão do rei; este, à opinião covarde dos conselheiros etc. Sobretudo, em seus discursos e peroraçôes, Kamés su p õe reações de seu contrincante, Apepi; e deste temos, em uma carta, algumas reações que não são supostas: a ter tomado conhecimento da elevação de um novo governante em Kush, à campanha de Kamés. Falando agora do aspecto semântico, se acompanharmos Todorov na oposição temática entre a rede do eu e a do tu, o texto aparece situado decididamente na rede do tu: as ocorrências são mediadas por relações entre pessoas (ou de deus a pessoa, o que para um egípcio não é de todo diferente) — de Kamés com seu pai Amon, de Kamés com seu Conselho, de Kamés com Apepi (como vimos, tomado como destinatário ausente), de Apepi com o rei de Kush, de Kamés com sua frota e seu exército etc. Preferirei, entretanto, abordar a questão semântica — a resposta à pergunta: O que significa o texto? — usando o enfoque de Goldmann, mas à luz da análise empreendida segundo a poética todoroviana dos

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aspectos verbal e sintático, bem como da exposição já feita das estruturas categoriais significativas (no caso, a ideologia da monarquia faraônica como realeza cósmica). O gráfico 1 representa minha opinião acerca de qual seria a estrutura intrínseca, o significado interno do texto inscrito nas esteias de Kamés em Karnak. Nele, a um mundo divino que é de um só bloco opõe-se um mundo humano dividido, em função de uma situação insólita. Os “rebeldes” não são, aqui, dentro das fronteiras egípcias, unicamente súditos recalcitrantes; a rebeldia dos estrangeiros — agentes do caos — transportou-se para o interior do país. Ora, que houvesse rebeldia ocasional e sempre minoritária de egípcios (logo castigada, pois a rebelião contra um rei divino é inaceitável no plano cósmico tanto quanto no dos homens), bem como de estrangeiros nas periferias que representam os desertos e os países estrangeiros, seria algo corriqueiro e previsto; mas que, no Alto e no Baixo Egito, na própria terra n eg ra como se dizia então, houvesse estrangeiros usurpadores e estes contassem com a submissão e o apoio de uma parte dos egípcios, e que, em outro território no passado sob domínio faraônico, a Núbia ou Kush, houvesse agora também um poder usurpador local, eis aí desafios maiores à ordem cósmica que o rei divino do Egito devia eliminar: uma desordem escan­ dalosa que cumpria corrigir sem demora. No processo de o fazer, não há lugar para o que hoje seria chamado de neutralidade: há os bons, que combatem, liderados pelo faraó, pela legitimidade e pela ordem universal instituída pelos deuses em torno do monarca, seu descendente direto e herdeiro legítimo; e há os maus: asiáticos desafiadores, egípcios que os apóiam, o rei de Kush — embora deste pouco se ocupe o texto. Este último enfatiza o próprio rei entre os bons; secunda­ riamente, mas com importância considerável, os militares; por último o povo, os bons súditos. Entre os maus, salienta o rei Apepi, transformado no discurso em figura simetricamente oposta à do faraó. Onde Kamés é legítimo, bravo, decidido e mantém o controle, Apepi é jactancioso, vil, covarde e tem seus planos e desejos frustrados. Não pode haver dúvida sobre como terminará o conflito: em sua fase atual, cujo bom termo, que o fim do texto mostra sendo festejado, enseja a ereção das esteias e a composição do próprio documento; mas também nas fases ainda por realizar, no essencial a queda de Apepi, a tomada de Hutuaret e o castigo de todos os egípcios aliados aos asiáticos, fases essas descritas n o fu tu ro (linhas

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43-44, 61-63, 70-73). O resultado é indubitável e está decidido de antemão porque a ordem de expulsar os estrangeiros veio, em primeiro lugar, do deus dinástico Amon, “famoso por seus conselhos" (linha 27).

Gráfico 1: Esquemadaestrutura semânticadotextode Kamés

Que relação mantém a estrutura intrínseca do texto com aquela, maior, da ideologia englobante da monarquia divina? Há, sem dúvida, uma relação de funcionalidade. Mas também se pode verificar que a estrutura interna do texto é dedutível da outra, uma exemplificação e confirmação dela numa situação insólita, singular: a do domínio estran­ geiro. Não se trata só de reafirmar aquela ideologia monárquica. Trata-se de mostrar que voltou a ser válida, agora que o faraó tornava a agir como se esperaria de um faraó, por ordem dos deuses. As esteias de Karnak se referem a um processo de restauração em curso; restauração político-militar, mas igualmente ideológica e textual, corporificando-se nas esteias mesmas. Depois de um longo hiato, eis que de novo se erigem monu­ mentos que comemoram triunfos — pois, quanto a Kamés, “foi o próprio Ra que o instalou como rei e fez a vitória renovar-se para ele verdadeira­ mente” (linha 6).

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Já vimos que a estratégia de enunciação que permite construir a estruturação semântica interna e assim assentar a ideologia monárquica é revelada principalmente pela análise do aspecto verbal do texto. O discurso subjetivo de Kamés corresponde bem a configurações concomi­ tantes do modo, da visão e da voz que, na parte essencial da narrativa, fazem coincidir na pessoa do rei o protagonista, o personagem refletor por excelência, o narrador (onisciente) relatando em primeira pessoa, aquele que interpreta e emite juízos morais. Kamés está então capacitado a armar o texto — narrativo, ideológico e propagandístico.



Exemplo 2: O conto islandês de Helgi Thorisson (século XIV)



Texto

1. Havia um homem chamado Thorir, o qual lavrava a terra em Raudaberg, perto do fiorde de Oslo, 2. na Noruega. Ele tinha dois filhos, Helgi e Thorstein, ambos homens excelentes, embora Helgi fosse o 3- mais talentoso dos dois. O seu pai era um homem de alguma distinção e gozava da amizade do rei Olaf 4. Tryggvason. 5. Um verão, os irmãos partiram numa viagem de comércio em direção ao norte, a Finnmark, levando 6. manteiga e toucinho defumado paia vender aos lapões. O seu comércio teve grande sucesso e, no fim do 7. verão, eles velejaram para o sul outra vez. Um dia, chegaram à ponta chamada Vimund, onde há belas 8. florestas. Eles desembarcaram e cortaram para si uma árvore. Helgi penetrou na mata mais longe que o 9- resto de seus homens. De repente um pesado nevoeiro caiu sobre a floresta, de modo que ele não conse10. guiu achar o caminho de volta para o barco aquela mesma noite; logo caiu a noite e ficou muito escuro. 11. Helgi viu, então, doze mulheres se aproximarem cavalgando através da mata, todas montando ca12. valos vermelhos e vestindo vestidos vermelhos. Elas desmontaram. 'Iodo o seu equipamento de monta13. ria era de ouro brilhante. Uma das mulheres era muito mais bela do que todas as outras; e estas últimas 14. atendiam a grande dama. 15. Elas soltaram os seus cavalos para que pastassem. As mulheres ergueram uma esplêndida tenda 16. feita de tiras de diferentes cores, bordadas de ouro em toda a sua superfície. As pontas da tenda estavam 17. ornadas de ouro e no topo do mastro que se elevava atravessando a tenda havia uma bola de ouro bem 18. grande. Depois de tais preparativos, as mulheres anumaram a mesa e nela dispuseram todo tipo de igua19- rias de escol. Buscaram então água para lavar as mãos, usando um recipiente e bacias de prata com in 20. cmstações abundantes de ouro. 21. Helgi estava de pé perto da tenda observando-as e a grande dama lhe disse; 22. — Vem cá, Helgi; come e bebe conosco. 23- Foi o que ele fez, notando que a comida e o vinho eram deliciosos, as taças, magníficas. Depois a 24. mesa foi tirada e as camas foram arrumadas; camas muito mais ornadas do que as de outras pessoas. En25- tão a grande dama perguntou a Helgi se preferia dormir sozinho ou partilhar um leito com ela. Ele per 26. guntou o seu nome. Ela disse:

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27. — Chamo-me Ingibjorg. Sou a filha de Godmund das Planícies de Glasir. 28. Ele disse: 29 — Gostaria de dormir contigo. 30. Assim, dormiram juntos por três noites consecutivas. 31. Na terceira manhã o tempo estava bom, de modo que se levantaram e vestiram. Ela disse: 32. — Eis que agora nos separaremos. Aqui estão duas caixas, uma cheia de ouro e a outra de prata. 33 Vou dar-te estas caixas, mas em caso algum deverás dizer a alguém onde as obtiveste. 34. As mulheres então partiram cavalgando do mesmo modo que haviam chegado. Helgi voltou ao 35. navio. Acolheram-no com alegria e lhe perguntaram onde havia estado, mas ele não quis dizer. 36. Velejaram então em direção ao sul ao longo da costa até chegar à casa de seu pai, cheios de di37. nheiro. O pai e o irmão de Helgi quiseram saber onde ele havia conseguido tantas riquezas que estavam 38. naquelas caixas, mas ele nada disse. 39 Passou o tempo até o Natal. Então, uma noite, uma tenível tempestade começou a soprar. Thor40. stein disse a seu irmão: 41. — É bom nos levantarmos e irmos ver o que está acontecendo ao nosso barco. 42. Foi o que fizeram, verificando que o barco estava seguro. 43 Helgi mandara instalar uma cabeça de dragão na proa do seu barco, que foi toda decorada acima 44. da linha d água. Foi nisto que Helgi investiu uma parte do dinheiro que lhe dera Ingibjorg; uma outra 45 paite ele escondera no pescoço do dragão. 46. Os irmãos ouviram um grande ruído e então dois ginetes apareceram de repente, carregando Hei 47. g* consigo. Thorstein não tinha idéia do que lhe acontecera. Quando o tempo clareou, Thorstein foi 48. para casa e contou a seu pai o que ocorrera. Todos acharam a notícia terrível. 49 O pai de Helgi foi imediatamente ver o rei Olaf, contando-lhe o que ocorrera e pedindo-lhe que 50. averiguasse o que acontecera ao seu filho. O rei respondeu que faria como Thorir pedia; mas disse tam51 bém que duvidava muito que Helgi voltasse a ser útil a sua família. Em seguida, Thorir voltou 52. para casa. 53 O tempo coneu e era de novo o Natal. Naquele inverno o rei Olaf residia em Alreksstead. No oita54. vo dia do Natal, ã noitinha, três forasteiros vieram ao salão, diante do rei Olaf, quando este estava senta55. do à mesa. Eles o saudaram respeitosamente. O rei respondeu à saudação. Um daqueles homens era 56. Helgi, mas ninguém reconheceu os outros dois. 57. O rei perguntou por seus nomes. Ambos responderam chamar-se Grim. Eles disseram: 58. — Fomos-te enviados por Godmund das Planícies de Glasir. Ele te manda seus cumprimentos e tam59- bém estes dois cornos de beber. 60. O rei aceitou os dois cornos — coisas preciosas que eram, todos incrustados de ouro. O rei Olaf pos61. suía outros dois cornos de beber, conhecidos como Hymings e considerados grandes tesouros: mas os 62. cornos enviados por Godmund eram muito melhores do que aqueles. 63- Os forasteiros disseram: 64. — O que deseja o rei Godmund, meu senhor, é que sejas seu amigo. Ele dá mais valor a tua amizade 65- do que à de qualquer outro rei. 66. O rei não respondeu a isto, mas fez com que os levassem a tomar assento. O rei fez com que os 67. dois comos — também diamados Grim— fossem enchidos com boa cerveja e, depois, mandou que fossem 68. benzidos por um bispo. Então o rei mandou que os comos chamados Grim fossem trazidos aos dois ho69 mens chamados Grim, de modo que eles deles bebessem em primeiro lugar. 70. Disse o rei Olaf: 71. Estes cornos de beber,

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Umpara cada hóspede, 73 São para os homem de Godmund 74. Enquanto aqui repousam: 75. Cada Grim há de beber 76. Do como que leva o seu nome, 77. Pondo à prova a qualidade 78. Da ceneja que fazemos. 79- Os dois homens chamados Grim tomaram os cornos e então se deram conta do que o bispo entoara 80. sobre a bebida. Eles disseram: 81. — É exatamente como nosso rei Godmund nos disse: este rei é cheio de truques, ele paga o bem 82. com o mal — já que o nosso rei o trata com todas as honrarias. Levantemo-nos e partamos. 83 Foi o que fizeram. Causaram um grande tumulto no salão, derramando a bebida e apagando todas 84. as luzes. Então todos ouviram um grande ruído. O rei rezou pedindo a proteção de Deus e ordenou aos 85 seus homens que se levantassem e pusessem fim ao ruído; mas os dois chamados Grim, bem como Hel86. gi, já se haviam ido. Quando as luzes foram acesas de novo, verificou-se que três homens haviam sido 87. mortos; os cornos chamados Grim jaziam junto aos cadáveres. O rei disse: 88. — Eis algo bem estranho! Esperemos que coisas assim não aconteçam com freqüência. Disseram-me 89 que Godmund das Planícies de Glasir é um grande feiticeiro e que não é bom tê-lo como inimigo. Não 90. é brincadeira que alguém caia em seu poder, mesmo se pudéssemos fazer algo a respeito do que 91. ocorreu. 92. O rei disse então aos seus homens que cuidassem dos cornos e continuassem a beber deles — e eles 93- não causaram qualquer outro problema. 94. A passagem na montanha que ambos os Grim haviam atravessado ao se dirigirem a Alreksstead se 95- conhece agora como a Passagem de Grim; desde então, ninguém usou nunca tal rota. 96. Passou o inverno, logo o resto do ano, até que era de novo o oitavo dia do Natal. O rei estava na 97. igreja com sua corte assistindo à missa. Então três homens vieram até a porta da igreja; um deles ficou, 98 mas os outros dois voltaram a partir. Eis o que disseram antes de ir-se: 99-— Nós trouxemos um esqueleto para tua festa, meu senhor: dele não te livrarás de novo 100. tão facilmente. 101. Os acompanhantes do rei viram que o homem que havia ficado era Helgi. Quando o rei entrou pa102. ra comer e seus homens tentaram conversar com Helgi, perceberam que estava cego. O rei perguntou 103- o que lhe acontecera e onde estivera por tanto tempo. Helgi respondeu contando-lhe toda a história: 104. como havia encontrado as mulheres na floresta; como os Grim haviam causado a tempestade quando 105. ele e o seu irmão foram tratar de salvar o seu barco; c como os Grim então o liaviam levado para God106. mund das Planícies de Glasir, entregando-o a Ingibjorg, a filha de Godmund. O rei Olaf perguntou: 107. — Tu gostaste de lá? 108. Helgi respondeu: 109- — Sim, muito: não há lugar algum em que eu tenha vivido melhor. 110. Então o rei lhe perguntou acerca de como vivia Godmund, quantos homens comandava, que coisas 111. fazia. Helgi elogiou muito a respeito disso tudo, respondendo que muitas mais coisas havia a dizer 112. sobre o rei Godmund além de todas as que lhe pudesse contar. O rei perguntou: 113 — Por que te foste tão rapidamente no outro inverno? 114. Helgi respondeu: 115 — O rei Godmund enviou os dois Grim para enganar-tc. Ele só deixou que eu viesse por causa de 116. tuas orações no sentido de saber o que me acontecera. A razão de nos irmos com tanta pressa o ano 72.

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117. passado foi que os Grim não foram capazes de beber a cerveja depois de a fazeres benzer. Ficaram fu118. riosos ao serem derrotados daquela maneira. Mataram os teus homens porque Godmund ordenou-lhes 119 que assim procedessem se não fossem capazes de prejudicar a ti pessoalmente. Quanto aos cornos, ele 120. os mandou só para impressionar-te e para que não reparasses em mim. 121. O rei perguntou: 122. — E desta vez, por que saíste de lá? 123- Helgi respondeu: 124. — Por causa de Ingibjorg. Ela disse que não conseguia dormir comigo sem sentir-se mal cada vez 125 que tocava meu corpo nu: esta foi a principal razão de eu ter de partir. Outrossim, o rei Godmund não 126. quis resistir ao dar-se conta de que querias tanto tirar-me de lá. Quanto ao estilo de vida e ao esplendor 127. do rei Godmund, não tenho palavras para descrevê-los, nem para falar das inúmeras pessoas que ele 128. comanda. 129 O rei perguntou: 130. — Por que estás cego? 131. Helgi respondeu: 132. — Ingibjorg arrancou meus dois olhos quando nos despedimos. Ela disse que as mulheres da Norue133- ga não gozariam de minha companhia por muito tempo. 134. Disse o rei: 135 — É preciso dar uma boa lição a Godmund, se Deus quiser, devido ás suas matanças. 136. O pai de Helgi, Thorir, foi então chamado. Ele não pôde agradecer o bastante a Olaf por tirar o seu 137. filho das ganas daqueles monstros. Thorir voltou para casa, mas Helgi ficou com o rei e viveu só mais 138. um ano exato. 139 O rei Olaí levou consigo os cornos Grim quando partiu em sua última viagem. Diz-se que quando 140. o rei Olaf desapareceu do Longa Serpente as cornos também sumiram e desde então não foram vis141. tos. E isto é tudo que podemos dizer-vos acerca dos Grim.

H elgi Thorisson (H elg i, filh o d e T h o rir) é um c o n to islan d ês p re se rv a d o

num

m an u scrito d e m ais ou m e n o s

1 3 9 0 . M inha

tra d u çã o foi d o in glês, m as fe z -se u m a co m p a ra ç ã o d etalh ad a co m a e d iç ã o d o te x to orig in al p o r G u d n i Jó n s s o n (1 9 5 0 ). O te x to inglês em : PÁLSSON, H erm an n e EDW ARDS, P aul (trad u ção e in tro d u ção d e ) Seven

Viking rom ances. H arm o n d sw o rth : P en g u in B o o k s,

1 9 8 7 , p p . 2 7 6 -2 8 1 .



Anotações ao texto

Linhas 3 -4 :

R ei O la f T ry ggv ason : trata-se d e um rei h istó rico da N orueg a, q u e re in o u en tre 99 5 e 1 0 0 0 . A p a re ce n e s se c o n to c o m o tam b ém e m o u tro atribu íd o à p rim eira m e ta d e do sécu lo X IV — Thorstein tháttr

b a ejarm ag n s — c o m o g ran d e rei cristão, e m b o ra seu rein ad o d e fato n ã o ten h a sid o d o s m ais n o táv eis e term in a sse em form a d esa stro sa , c o m o se v erá ad ian te. Linha 5:

70

Finnmark é o extrem o norte da Escandinávia, ond e viviam lapões tribais.

L inha 2 7 :

“G o d m u n d d as P la n ície s d e G lasir”: a o co n trário d o rei O la f e d as o u tras lo ca lid a d e s q u e o c o n to cita, o rei G o d m u n d e seu re in o das P la n ície s d e G lasir Cisto é: “P la n ície s b rilh a n te s”) sã o d e to d o im ag in ário s. P o r isso m e sm o , re c e b e m n o s c o n to s isla n d e se s trata­ m e n to s v ariad o s e até co n trad itó rio s.

N este c o n to , G o d m u n d ,

a p e sa r d e m a lig n o fe iticeiro , é m o n a rca o p u le n to q u e rein a so b re

Thorstein tháttr baejarm ag n s , G o d m u n d seria u m a e s p é c ie d e título assu m id o p o r

u m país rico e m ag n ífico ; n o já m e n cio n a d o

c a d a rei d as P la n ície s d e G lasir: ta m b é m aí, tratar-se-ia d e um m o n a rca im p o rtan te, p o ré m b e n e v o le n te e o p o s to às fo rça s d o m al (a p e s a r d e p a g ã o ); já e m B ósa sa g a og H errauds, G o d m u n d é figura cô m ica d e vilão tru cu len to , m as in c o m p e te n te . A su p o sta lo ca liz a ­ ç ã o d as P la n ícies d e G lasir é em g eral d eix a d a vaga: um ú n ico tex to diz q u e estariam situ ad as a le ste da T erra d o s G ig an tes e esta, p o r sua vez, a le ste e a o n o rte do m ar B á ltico . L inha 4 6 :

“O s irm ãos ou v iram u m g ran d e ru íd o ”: as in te rv e n çõ e s m alé fica s lig ad as à m agia (o s g in e te s “a p a re c e ra m d e re p e n te ”, o u seja , m aterializaram -se d e sú b ito ; e na lin h a 10 4 re v e la -se q u e cau saram a te m p e sta d e ) sã o , n e ste c o n to , tip ica m e n te a c o m p a n h a d a s d e ru íd o s (v e r lin ha 8 4 ).

L inha 53:

“N aq u ele in v ern o o rei O la f resid ia e m A lrek sstead ”: c o m o tan tos m o n a rca s m ed iev ais, O la f n ão tem re sid ê n cia fixa; m o v e -se p o r seu território, co n su m in d o e m cad a lug ar o s tributos in n atu ra q u e lh e s ã o d evidos.

L in has 5 9 -6 2 : O s c o rn o s d e b e b e r ricam en te d e c o ra d o s e c o m n o m e s e sp e c ífic o s sã o um d ad o real, h istó rico , d as cu ltu ras g erm ân icas d a Alta Id ad e M édia; ta m b é m

a p a re c e m

p ro e m in e n te m e n te nas sag as e n o s

c o n to s isla n d e ses relativ o s a o p e río d o v ik in g o u à fa se im ed iata­ m e n te s u b se q ü e n te . As últim as lin h as d es s e c o n to (1 3 9 -1 4 1 ), q u a n ­ d o o n arrad or im p lícito d o m esm o s e e xp licita p ela ú n ica vez, p o d e ría m in d icar q u e , para o autor, o s c o rn o s d e b e b e r e seu d e sa p a re cim e n to c o n co m ita n te a o d o rei con stitu íram , s e n ã o o te m a p rin cip al, um a d as m o tiv a çõ e s cen trais para a c o m p o s iç ã o do c o n to . L in has 6 6 -8 0 : A s b e b e d e ira s rituais m ascu lin as n a g ran d e sala d e u m rei ou sen h o r, d u ran te as q u ais se o u v iam b a rd o s e a q u e le s p re se n te s im p rov isav am v erso s, sã o ta m b é m um tra ço a u tên tico d as culturas g e rm â n ica s alto -m ed iev aís, su b sistin d o p o r b a stan te te m p o m esm o a p ó s a cristia n ização . Lin has 9 4 -9 5 : E ssa p a ssa g e m in d ica u m a trad ição p o p u la r q u e ten ta e s c la re c e r u m a o rig em : o u seja , u m m ito e tio ló g ic o in co rp o rad o a o co n lo .

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Linhas 139-140: O rei O la f T ry g g v aso n a tiro u -se a o m ar d e seu b a rc o , o Longa

Serpente , na b atalh a e m q u e foi d erro tad o , n o a n o 1 0 0 0 , p o r um a c o lig a ç ã o su e co -d in a m a rq u e sa e “n u n ca v o lto u a o seu rein o da N o ru e g a ” — o q u e tan to era in terp retad o c o m o te n d o m orrid o q u a n to te n d o e sc a p a d o a n ad o . C om e fe ito , h á um a trad ição afirm a n d o q u e o rei fo i v isto, p o sterio rm en te a o seu d esa p a re ci­ m e n to , e m p a íses e stran g eiro s, in clu in d o a T erra Santa.



Análise

A grande ilha da Islândia, na região ártica da Europa, foi descoberta por monges irlandeses, que a povoaram muito esparsamente no período 790-860. Em 860, chegaram os escandinavos (noruegueses). Durante a chamada “era dos assentamentos” (870-930) deu-se a colonização das partes aproveitáveis da ilha — sobretudo costeiras — por povoadores escandinavos, celtas e mestiços. A tradição fala de imigrantes noruegueses, mas de fato houve também suecos e dinamarqueses que lá se instalaram como granjeiros. As razões da migração para a Islândia foram a busca de terras e o aumento do poder monárquico na Escandi­ návia continental, afetando a independência dos agricultores-navegantes vikings. Entre 927 e 930, quando a Islândia tinha uns 30 mil habitantes (sendo do dobro o seu máximo demográfico medieval), surgiu um poder político republicano de tipo aristocrático centrado na Assembléia Geral ou Althing, integrada por 36 (posteriormente 39) g od ar. Estes últimos eram sacerdotes pagãos além de deterem poderes de justiça e governo. Elegiam um presidente ou porta-voz do A lthing. Os g o d a r eram, ainda, grandes proprietários rurais. No ano 1000, deu-se a conversão da ilha ao cristianismo: de início, os bens da Igreja estavam sob o controle dos godar. A Islândia exportava lã, cordas, peles, queijos, peixes, sebo, falcões de caça, enxofre; importava madeira — de que era desprovida, com a exceção de madeira carregada para as praias locais pelo mar — , breu, metais, farinha, mel, vinho, cerveja e tecidos. A economia local, basica­ mente pastoril, destruiu com rapidez a cobertura vegetal pobre e o frágil equilíbrio ecológico de uma ilha onde só algumas partes eram aproveitá­ veis. A falta de madeira impossibilitava a construção de barcos novos

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grandes, oceânicos, cujo número baixou desde o século XI; ao desapare­ cerem os últimos no século XIII, os islandeses declinaram e se empobre­ ceram economicamente, passando a depender de todo da navegação estrangeira (norueguesa). A monarquia e a Igreja da Noruega tinham planos de subordinar a Islândia. Isso se viu facilitado pela dispersão dos assentamentos, pelo feroz individualismo islandês — não respeitando muitas vezes os granjeiros as decisões do A lthing — e por conflitos sociais. Com efeito, o empobrecimento geral levou à concentração de terras e bens, tornando a sociedade islandesa mais semelhante à da Europa feudal pelo desenvol­ vimento dos laços pessoais de dependência. Os bispos islandeses que­ riam a submissão à coroa norueguesa, à qual se aliaram com o fito, entre outros, de subtrair os bens eclesiásticos ao controle dos g od ar. Tudo isso teve lugar num contexto de intermináveis escaramuças, vinganças priva­ das e, por fim, guerras civis no século XIII. Entre 1262 e 1264, a república se submeteu ao rei Hakon da Noruega e aceitou um novo direito civil e eclesiástico. A Noruega atravessava na ocasião uma fase econômica difícil. Na ilha, o comércio declinava, pois quase não chegavam barcos. Desde 1270, o clima se foi tornando mais frio. O número de proprietários decrescia enquanto aumentava o de arrendatários e parceiros, além de ampliar-se em forma alarmante a mendicância e a miséria. Em 1362, a maior erupção vulcânica conhecida depois da do Vesúvio no século I d.C. provocou o degelo de glaciares e inundações: duas paróquias desapareceram então definitiva­ mente na Islândia. A literatura islandesa desenvolveu-se desde o século X, primeiro na forma de poesia oral. Eram da ilha os bardos de todas as cortes escandinavas e também havia poetas da Islândia nas ilhas Britânicas. De início, a escolaridade não estava sob controle eclesiástico. O país chegou a ter uma proporção surpreendente de letrados na população para a Idade Média, incluindo mulheres e artesãos. As sagas parecem ter resultado da confluência da tradição oral com outros fatores. A dispersão do povoamento aliada a invernos longos e severos que isolavam as granjas, o desejo de preservar tradições familiares da época do povoa­ mento em histórias narradas ao pé do fogo, bem como de imortalizar as aventuras dos vikings locais e daqueles da Escandinávia continental, o influxo da literatura irlandesa (vidas de santos, contos folclóricos herói-

7.3

cos) — tudo isso confluiu, então, para que surgissem as sag as no século XIII. O gênero mesclava tradições históricas islandesas e norueguesas, a épica, uma literatura de lazer, uma afirmação cristã, mas ao mesmo tempo o orgulho e a nostalgia de uma época paga considerada mais feliz e próspera do que o difícil final da Idade Média local — mais heróica também. O auge das sagas deu-se entre 1230 e 1280. Depois surgiram contos e romances puramente de lazer influenciados pelas sagas, por literatura religiosa e por romances de cavalaria do continente. Um desses contos é o que aqui estudarei — H elga thãttr Thórisson a r — , composto no século XIV e conservado num co d ex redigido por volta de 1390, o F lateyjarbók. Começando a análise pelo aspecto verbal, temos em primeiro lugar que o discurso é, no conto, predominantemente concreto. As incidências de elementos abstratos na maioria das vezes se fazem por meio de exemplos e efeitos, o que lhes tira o caráter abstrato. A linguagem é moderadamente figurada. Entre as figuras predomi­ nam as gradações; por exemplo: linhas 2-3, 8-9, 13, 24, 62, 64-65, 109Note-se que, das sete gradações indicadas, quatro se destinam a sublinhar hiperbolicamente as excelências e as riquezas do reino pagão imaginário das Planícies de Glasir. Há menos figuras de identidade (linhas 66-68: os cornos de beber e os Grim têm o mesmo nome; também linhas 75-76). Achei uma única antítese: “ele paga o bem com o mal" (linhas 81-82). Recordemos que, nesse ponto, Todorov só considera figuras constituídas por palavras contíguas ou muito próximas. O texto é altamente polivalente. Manifesta — implicitamente sempre — a referência a numerosos discursos anteriores. Para começar, as sagas, no caso por meio de uma viagem de comércio e aventura e do tipo de barco de Helgi (linhas 5-10, 43-44). Em seguida, o texto remete ao folclore escandinavo pagão, reunido na Islândia no século XIII no E dda (o poético e aquele em prosa): daí saem, no conto, o país fabuloso das Planícies de Glasir (linhas 27, 58, 105-106 etc.), poemas de improviso proferidos nas bebedeiras masculinas (linhas 71-78), feitiçaria e poderes dos pagãos (linha 22: Ingibjorg adivinha quem é Helgi sem que ele o diga; ver também linha 89). Há ainda influência do folclore cristão europeu, fixado em literatura religiosa escrita por leigos (linhas 66-68, 79-80, 116-117); eficácia da bênção da cerveja pelo bispo e, nas linhas 115-116, eficácia das orações do rei cristão. Nota-se também o influxo dos romances franceses de

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cavalaria (linhas 11-20, por exemplo). Da maior importância são os elementos oriundos do H eim skringla e da G esta D anorum . O H eim skríng la de Snorri Sturluson (morto em 1241) é uma crônica histórico-fabulosa dos reis da Noruega: daí saíram as tradições acerca de Olaf Tryggvason, sua fama de rei cristão, seus cornos de beber, seu desaparecimento no mar (linhas 3-4, 49-52, 60-62, 139-141 etc.). A G esta D anorum , obra de Saxo Grammaticus (morto em 1216), rendeu ao conto a figura mítica do rei Godmund (linhas 27, 58 e seguintes, 110 e seguintes). O fato de que o narrador implícito se torne explícito na linha 141 indica um desejo de continuidade com os contadores orais de histórias. Em estudos voltados para a ligação entre literatura e ideologia, a incidência de discursos anteriores é pista importante: no caso do presente conto, confirma a atitude ambígua dos islandeses cultos para com o passado pagão viking, aqui, um tempo que foi espacializado, transporta­ do para terras imaginárias num tempo histórico real que é 995-1000 (anos em que reinou Olaf Tryggvason). A linguagem alterna objetividade e subjetividade. Esta última é tanto devida a modalizações freqüentes quanto à emotividade ou expres­ sividade intermitente, às vezes devida ao narrador implícito (linha 39) ou a personagens (linhas 81-82, 88-90). Há, a respeito, uma mudança perceptível a partir da linha 107 até a linha 137: uma intensificação da subjetividade nos relatos de Helgi e nas observações do rei e — por intermédio do narrador anônimo — de seu pai Thorir. No caso de Helgi é clara a ambigüidade não resolvida no tocante ao mundo pagão. Passando à questão do modo, o conto alterna as formas mais resumidas do discurso relatado ou do discurso indireto (linhas 24-26, 35, 37-38, 49-51 etc.) com discursos diretos, curtos de início (linhas 22, 27, 29 etc.), mais longos eventualmente depois (linhas 71-78, 88-91, 115-120, 124-128). É justamente nesses discursos diretos mais longos que, sobre­ tudo, as opiniões de personagens servem de veículo ideológico. Se virmos agora o que diz respeito ao tempo, quanto à ordem, há de início poucas anacronias, de alcance e amplitude pequenos: retrospecçôes (linhas 43-51, 58-59 etc.) e antecipações (linhas 92-93 etc.). Casos mais interessantes são as temporalidades múltiplas (linhas 94-95) e a inversão de temporalidade (linhas 98-100: primeiro se diz que os Grint se foram, só depois o que disseram antes de ir-se). Isso para começar. Porque, em seguida, no relato de Helgi em resposta ao rei, as retrospec-

çôes são de regra, sendo seu alcance variável (desde o início das aventuras ou só até um passado mais recente) e sua amplitude bem grande para um conto tão curto (linhas 103-133)- É que aqui está, para o autor anônimo, a chave do relato, o momento em que tudo é explicado e explicitado. Ao fazê-lo, sem que o perceba, sua ambigüidade diante da dicotomia mundo cristão/mundo pagão fica também evidenciada. No final do conto há duas antecipações (linhas 135, 139-141). No relativo à duração, tratando-se de conto muito curto, é natural o uso de recursos para abreviar o relato. O tempo do discurso, salvo nos discursos diretos, é muito mais curto do que o da ação ficcional. Há, ainda, o recurso à elipse (linhas 39, 53, 96). Mesmo nas falas mais longas do relato de Helgi, o tempo ficcional passado é mais longo do que o do discurso que o narra. Predomina, quanto à freqüência, o discurso é singulativo, a não ser no relato de Helgi ao rei: aí, ao referir-se a episódios anteriores, o discurso tende a ser repetitivo (linhas 104-133). Mesmo antes há alguns exemplos de discurso repetitivo (linhas 35, 37-38, 88). Outrossim, o relato de Helgi também contém fatos não narrados anteriormente, além de uns exemplos de discurso iterativo (linhas 110-111; linha 124-125: “cada vez que tocava...”). Tratando agora da visão, o relato é em terceira pessoa e, na sua maior parte, objetivo. O rei Olaf eventualmente (linhas 50-51, 88-91 etc.), os Grim (linhas 81-82) e em especial Helgi em seu relato (sobretudo linhas 111-112, 115-120, 124-125) são personagens-reíletores em certas circuns­ tâncias. Predominantemente externa de início (com algumas passagens em visão interna quando personagens opinam), a visão passa a ser interna nas respostas de Helgi ao rei e até a linha 137. A estrutura do conto depende centralmente de que algumas informações sejam sonegadas. Em especial, nas linhas 46-48 não se informa: que os ginetes são os Grim; o que ocorreu a Helgi depois de raptado. As informações acerca desses e de outros episódios são deixadas para o relato de Helgi a Olaf. Há uma informação falsa, nas linhas 64-65, desmentida pelos próprios aconteci­ mentos subseqüentes (linhas 81-87) e verbalmente por Helgi (linhas 115-120). Analogamente, esse traço tem importância estrutural na cons­ trução do relato. A apreciação moral é deixada primeiro ao rei (linhas 88-91), eventualmente — e ironicamente — aos Grim (linhas 81-82), a Helgi em sua narrativa, por fim, a Thorir por intermédio do narrador

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implícito (linha 137: “...aqueles monstros”). Na maioria dos casos, a apreciação parte do ponto de vista cristão; mas não anula a ambigüidade já assinalada. No pertinente à voz, existe um narrador implícito que só se explicita uma vez, no final (linha 141). Embora implícito, opina com freqüência (linhas 13, 15, 18-19, 60 etc.). Em suas respostas ao rei Olaf, I lelgi assume o papel de narrador. Indo agora ao aspecto sintático, constataremos de saída termos neste conto um relato mitológico com alguns elementos de relato ideoló­ gico (força da oração de Olaf, força da magia pagã). A causalidade é primeiro implícita, mas se explicita na narrativa de Helgi ao seu rei. Apresentarei agora a sintaxe narrativa. Seqüência 1 Situ ação inicial:

P ro p o siç ã o narrativa 1: D o is irm ão s — H elgi e T h o rste in — , filhos d e um g ra n jeiro n o ru e g u ê s , am ig o d o rei cristão O la f T ry g g v aso n , e stã o e m p re e n d e n d o u m a viag em d e c o m é rc io em d ireç ã o a o n orte da E scan d in ávia, à reg ião d o s la p õ e s d e F in n m àrk (lin h a s 1-7).

P ertu rbação P ro p o siçã o narrativa 2: D u rante a viagem d e volta, num a d as paradas d a situ a çã o para con sertos no b arco (p ara o q u e era p reciso cortar m ad eira), na inicial: região llorestal da ponta Vim und, Helgi se p erd e cam in h an d o na floresta em virtude de um forte n ev o eiro (lin has 7-10).

Desequilíbrio, P ro p o siç ã o narrativa 3: A n o ite su rp re e n d e H elgi na flo resta, já q u e crise. n ã o tem c o m o v oltar a o seu b a rc o (lin h a 10). In terven ção n a crise:

P ro p o siç ã o narrativa 4: U m a d am a se a p ro x im a c a v a lg a n d o c o m o u tras m u lh eres a c a v a lo d e seu séq u ito . C avalos e ro u p a s são v e rm e lh o s. D e sm o n ta n d o , aca m p a m , in stalan d o rica ten d a, e p re ­ param um a re fe içã o a q u e H elgi é c o n v id a d o (lin h as 1 1 -2 4 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 5: C h eg ad a a h o ra d e dorm ir, H elg i é co n v id a d o a o leito da d am a In g ib jo rg , filh a d o rei G o d m u n d d as P la n ície s d e G lasir. T o rn a -se seu a m an te p o r três n o ite s c o n s e c u ti­ v a s (lin h a s 2 4 -3 0 ).

Seqüência 2 S itu ação inicial:

C o in cid e c o m a p ro p o s içã o narrativa 5 acim a.

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P ertu rbação P ro p o siç ã o narrativa 6: Na terceira m an h ã, q u a n d o o te m p o s e abre, d a situ ação o u seja , d isp ersa-se o n e v o e iro , In g ib jo rg d e s p e d e H elg i, d á-lh e inicial: o u ro e prata (p ro ib in d o -lh e d e co n ta r o n d e o s o b te v e ) e se vai c o m su as d am as (lin h as 3 1 -3 4 ).

Desequilíbtio, O te x to n ã o e sp ecifica e ste p o n to exp licita m e n te n u m a p ro p o siçã o crise. n arrativa; p o r im p lica çã o , H elgi v oltou a um a situ a çã o q u e lem bra a da p ro p o s içã o 3 n o sen tid o d e estar so zin h o na flo resta — m as, se m o n e v o e iro , já n ã o está p erd id o .

In terven ção n a crise.

P ro p o siç ã o narrativa 7: H elg i volta a o navio, o n d e o a c o lh e m co m

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 8: F a z e n d o seg re d o a cerca d e c o m o o b te v e as

aleg ria (lin h a s 34 -3 5 ).

riquezas, H elgi volta c o m seu irm ão para a casa d e seu pai, m ais rico d o q u e antes; investe um a parte da prata e d o o u ro na d eco ração do seu barco , n o qual e sco n d e o resto (linhas 36-38, 43 -4 5 ).

Sequência 3 S itu ação inicial:

C o in cid e c o m a p ro p o s içã o narrativa 8 acim a.

P ertu rbação P ro p o siç ã o narrativa 9: C h eg ad a a é p o c a d o N atal, nu m a n o ite de d a situ ação te m p e sta d e , H elgi e seu irm ão v ã o v erificar a se g u ra n ça d o b arco . inicial: D o is g in e te s a p a re c e m d e re p e n te e se a p o d e ra m d e H elgi, lev a n ­ d o -o co n sig o (lin h as 3 9 -4 2 , 4 6 -4 7 ).

Desequilíbrio, P ro p o siç ã o narrativa 10: T h o rste in , ig n o ran d o o q u e fo i d o irm ão, crise. v o lta s e m e le a casa e c o n ta a o p ai o q u e vira, co n ste rn a n d o -o e a o s se u s (lin h as 4 7 -4 8 ).

In terven ção n a crise.

P ro p o siç ã o narrativa 11: T h o rir, o p ai d e T h o rste in e H elgi, apela a o rei O laf, p e d in d o -lh e p ara av erig u ar o q u e o co rre ra a o filho rap tad o (lin h as 4 9 -5 0 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 12: E m b o ra p rom eta fa z er o q u e p e d e seu a m ig o , o rei duvida q u e H elg i p o ssa d e fato s e r rein teg rad o à fam ília; T h o rir volta p ara su a g ran ja (lin h as 5 0 -5 2 ).

Sequência 4 S itu ação inicial:

78

P ro p o siç ã o narrativa 13: O rei O la f p assa a é p o c a d e N atal c o m sua c o rte e m A lrek sstead (lin h a 53).

Perturbação P r o p o s i ç ã o n a rra tiv a 1 4 : A c o r t e d o r e i O l a f r e c e b e a v isita d e trê s d a situ a çã o fo ra steiro s — n u m d o s q u ais r e c o n h e c e H elgi. O rei o s r e c e b e , os inicial: d e s c o n h e c id o s se a p resen ta m c o m o ch a m a n d o -se, a m b o s , G rim : v ê m da co rte d e G o d m u n d d as P la n ície s d e G lasir e trazem de p re se n te para O laf, da p arte d e seu sen h o r, d o is p re c io s o s c o rn o s d e b e b e r q u e ta m b é m s e c h a m a m G rim (lin h as 5 3 -6 2 ).

Desequilíbrio, P ro p o siç ã o narrativa 15: E m b o ra o s e stran g eiro s se d ig am a m ig o s e crise. en v ia d o s p o r u m rei am ig o , fe ste ja n d o c o m O la f e s e u s h o m en s, o rei d e s c o b re q u e s ã o fe iticeiro s p a g ã o s, já q u e n a o p o d e m b e b e r certa cerv eja q u e u m b isp o b e n z e u (lin h a s 6 3 -8 0 ).

In terven ção n a crise.

P ro p o siç ã o narrativa

16: D a n d o -se

c o n ta d o q u e o

rei fizera

m a n d an d o b e n z e r a cerv eja para testá-lo s, o s G rim atu am m a g ica ­ m e n te e , a p ó s m atarem três h o m e n s da c o rte d e O laf, d esa p a re c e m , le v a n d o H elgi co n sig o (lin h as 8 1 -8 5 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 17: As m o rtes s ã o co n statad as e a c o rte d e O la f reto rn a à n o rm alid ad e; o rei in terp reta o q u e o co rre u (lin h a s 8 6 -9 5 ).

Seqüência 5 S itu ação inicial-,

P ro p o siç ã o narrativa 18: Na é p o c a d o N atal d o a n o seg u in te, o rei e stá na igreja c o m sua co rte para a m issa (lin h a s 9 6 -9 7 ).

P ertu rbação P ro p o siç ã o narrativa 19: T rês h o m e n s — fica im p lícito q u e d e n o v o d a situ a çã o s ã o o s G rim e H elgi — c h e g a m à porta da igreja. A ntes d e ir-se, o s inicial: G rim a n u n ciam q u e d eix am H elg i c o m o rei, d an d o a e n te n d e r q u e a q u e le está m arcad o para m o rrer (lin h as 9 7 -1 0 0 ).

Desequilíbrio, P ro p o sição narrativa 20: Verifica-se q u e H elgi está ceg o . Interrogado crise. p e lo rei, o recém -ch eg ad o esclarece diversos acon tecim en to s passad os e narni a sua vida na corte m agnífica do rei G odm und. F ica-se sab en d o q u e seu retorno à N oruega se d ev e ao p o d er das o ra ç õ es do rei O laf em sua intenção, as quais ten n in am p or fazer com q u e G od m u nd decida desfazer-se d ele; Ingibjorg, incapaz d e tocá-lo, tam bém por causa das o ra çõ es d e O laf (e n ten d e-se im plicitam ente), despeitada, ceg a -o antes d e m andá-lo d e volta ã N oruega (linhas 101-133)-

In terv en ção n a crise.

P ro p o siç â o narrativa 21: T rata-se d e u m a in te rv e n çã o p u ram en te retó rica. O rei O la f d eclara s e r p re c is o d ar um a b o a liçã o a G o d m u n d p o r s eu s m a le fício s. C h am a, e n tã o , T horir, q u e lh e a g ra d e ce p ela lib e rta çã o d o filh o (lin h a s 1 3 4 -1 3 7 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 22: H elgi p assa a v iv er na c o rte d e O laf, m as m o rre um a n o d ep o is (lin h as 1 3 7 -1 3 8 ).

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P ertu rbação P ro p o siç ã o narrativa 6: Na terceira m an h ã, q u a n d o o te m p o s e abre, d a situ ação ou seja , d isp ersa-se o n e v o e iro , In g ib jo rg d e s p e d e H elg i, d á-lh e inicial: o u ro e prata (p ro ib in d o -lh e d e co n ta r o n d e o s o b te v e ) e se vai co m su as d a m a s (lin h as 3 1 -3 4 ).

Desequilíbrio, O te x to n ã o e sp e c ific a e ste p o n to exp licita m e n te n u m a p ro p o siçã o crise. narrativa; p o r im p lica çã o , H elg i v o lto u a u m a situ a çã o q u e lem b ra a da p ro p o s içã o 3 n o sen tid o d e estar so zin h o n a floresta — m as, se m o n e v o e iro , já n ã o e stá p erd id o .

In terven ção n a crise.

P ro p o siç ã o narrativa 7: H elg i volta a o navio, o n d e o a c o lh e m co m

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 8: F a z e n d o seg red o a c erca d e c o m o o b te v e as

aleg ria (lin h a s 34-3 5 ).

riquezas, H elgi volta co m seu irm ão para a casa d e seu pai, m ais rico d o q u e antes; investe um a parte da prata e d o ou ro na d eco ração do seu barco, no qual e sco n d e o resto (linhas 36-38, 43-45).

Sequência 3 S itu ação in icial:

C o in cid e c o m a p ro p o s içã o narrativa 8 acim a.

P ertu rbação P ro p o siç ã o narrativa 9: C h eg ad a a é p o ca d o N atal, n u m a n o ite d e d a situ ação te m p e sta d e , H elgi e seu irm ã o v ã o v erificar a seg u ra n ça d o b arco . inicial: D o is g in e te s a p a re c e m d e re p e n te e se a p o d e ra m d e H elgi, levan d o -o c o n sig o (lin h as 3 9 -4 2 , 4 6 -4 7 ).

Desequilíbrio, P ro p o siç ã o narrativa 10: T h o rste in , ig n o ran d o o q u e fo i d o irm ão, crise. volta sem e le a casa e co n ta a o p ai o q u e vira, c o n ste rn a n d o -o e a o s se u s (lin h as 4 7 -4 8 ).

In terven ção n a crise.

P ro p o siç ã o narrativa 11: T h o rir, o pai d e T h o rste in e H elgi, apela a o rei O laf, p e d in d o -lh e p ara av erig u ar o q u e o co rre ra a o filho rap tad o (lin h a s 4 9 -5 0 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 12: E m b o ra p rom eta fazer o q u e p e d e seu a m ig o , o rei duvida q u e H elgi p o ssa d e fato ser rein teg rad o à fam ília; T h o rir volta p ara su a g ran ja (lin h as 5 0 -5 2 ).

Seqüência 4 S itu ação in icial:

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P ro p o siç ã o narrativa 13: O rei O la f p assa a é p o c a d e N atal c o m sua c o rte e m A lrek sstead (lin h a 53)-

Perturbação P r o p o s i ç ã o n a rra tiv a 1 4 : A c o r t e d o re i O l a f r e c e b e a v isita d e trê s d a situ a çã o fo rasteiro s — n u m d o s q u ais re c o n h e c e H elgi. O rei o s r e c e b e , os inicial-. d e s c o n h e c id o s se ap re se n ta m c o m o ch a m a n d o -se, a m b o s , G rim : v ê m da co rte d e G o d m u n d d as P la n ície s d e G lasir e trazem de p re se n te para O laf, da p arte d e seu sen h o r, d o is p re c io s o s c o rn o s d e b e b e r q u e ta m b ém se ch am am G rim (lin h as 53-621.

Desequilíbrio, P ro p o siç ã o narrativa 15: E m b o ra o s e stran g eiro s se d ig am a m ig o s e crise. en v ia d o s p o r u m rei am ig o , fe ste ja n d o c o m O la f e s e u s h o m en s, o rei d e s c o b re q u e sã o feiticeiro s p ag ão s, já q u e n ão p o d e m b e b e r certa ce rv e ja q u e u m b isp o b e n z e u (lin h a s 6 3 -8 0 ).

In ten e n ç ã o n a crise.

P ro p o siç ã o

narrativa

16: D a n d o -se

co n ta d o q u e o

rei fizera

m a n d a n d o b e n z e r a cerv eja para testá -lo s, o s G rim atu am m ag ica ­ m e n te e , a p ó s m atarem três h o m e n s da c o rte d e O laf, d esa p a re c e m , le v a n d o H elgi co n sig o (lin h a s 8 1 -8 5 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 17: As m o rtes sã o co n statad as e a c o rte d e O la f retorn a à n o rm alid ad e; o rei in terp reta o q u e o co rre u (lin h a s 8 6 -9 5 ).

Sequência 5 S itu ação inicial-,

P ro p o siç ã o narrativa 18: Na é p o c a d o N atal d o a n o seg u in te , o rei e stá na igreja c o m sua c o rte para a m issa (lin h a s 9 6 -9 7 ).

P ertu rbação P ro p o siç ã o narrativa 19: T rês h o m e n s — fica im p lícito q u e d e n o v o d a situ a çã o sã o o s G rim e H elgi — ch e g a m à porta da igreja. A n tes d e ir-se, os inicial-. G rim a n u n cia m q u e d eix a m H elg i c o m o rei, d a n d o a e n te n d e r q u e a q u e le está m arcad o para m o rrer (lin h a s 9 7 -1 0 0 ).

Desequilíbrio, P ro p o siçã o narrativa 20: Verifica-se q u e Helgi está ceg o . Inteirog ad o crise. p elo rei, o recém -ch eg ad o escla rece diversos a con tecim en to s passad os e narra a sua vida na corte m agnífica do rei G odm und. F ica-se sab en d o q u e seu retorno à N oruega se d ev e a o p o d er das o ra çõ es d o rei O laf em sua intenção, as quais term inam p or fazer co m q u e G od m u nd d ecida d esfazer-se d ele; Ingibjorg, incapaz de tocá-lo, tam b ém p o r causa das o raçõ es d e O laf (e n ten d e-se im plicitam ente), despeitada, ceg a -o antes d e m andá-lo d e volta à N oruega (linhas 101-133).

In terv en ção n a crise.

P ro p o siç ã o narrativa 21: T rata-se d e u m a in te rv e n çã o p u ram en te retó rica. O rei O la f d eclara s e r p re c is o d ar u m a b o a liçã o a G o d m u n d p o r seu s m a lefício s. C h am a, e n tã o , T horir, q u e lhe a g ra d e ce p ela lib e rta çã o d o filh o (lin h a s 1 3 4 -1 3 7 ).

Novo equilíbrio:

P ro p o siç ã o narrativa 22: H elgi p assa a v iv er n a co rte d e O laf, m as m o rre um a n o d e p o is (lin h a s 1 3 7 -1 3 8 ).

A relação entre as sequências principais é de encadeamento. Há, porém, o que seria uma seqüência 6 incompletamente desenvolvida, relativa à vida de Helgi no reino de Godmund, imbricada na seqüência 5. Uma seqüência 7, estranha à principal linha narrativa, é a da morte do rei Olaf e o desaparecimento concomitante dos cornos de beber, também sem desenvolvimento, encadeada à seqüência 5 (linhas 139-141). As reações assumem alguma importância na construção, sendo numerosas num conto tão curto: aquelas diante do rapto de Helgi (linhas 47, 48, 50-51), diante das mortes perpetradas pelos Grim (linhas 88-91, 135), de Helgi quanto ao reino de Glasir (linhas 109, 111-112, 126-128), de Ingibjorg quanto a Helgi: desejo por ele, implicado pela sedução (linhas 24-29) e por fazê-lo raptar (linhas 46-47, o que é esclarecido nas linhas 104-106), não mais poder tocá-lo sexualmente (linhas 124-125) etc. A função das reações parece ser de classificar as personagens em boas e malignas: no caso de Helgi, mostram sua ambigüidade diante do reino pagão e mágico de Godmund e Ingibjorg. Semanticamente, o relato é relativamente mais denotativo do que conotativo, havendo pouca simbolização no nível do enunciado (mas na linha 99 “esqueleto” simboliza Helgi cego e com a morte marcada ou prevista). Quanto às simbolizações intratextuais, partes do texto remetem a outras partes: em especial, o relato de Helgi rememora e esclarece passagens anteriores do conto. E possível vislumbrar temas que remetem a outros textos e a contextos culturais não explicitados: a cor vermelha é signo de algo demoníaco e maligno, os cornos de beber são tema comum na literatura escandinava e nas tradições remanescentes sobre o rei Olaf, episódios e formas de narrar remetem às sagas etc. Isso ajuda a construir os níveis de expectativa ou verossimilhança por parte do público-alvo. Predomina a rede temática do tu: relação Ingibjorg/Helgi, Thorir/rei, rei/Helgi, Godmund/Olaf (à distância) etc. A rede do eu aparece secun­ dariamente (linhas 5-10). Passarei agora a uma análise inspirada por Goldmann, à luz do estudo todoroviano do texto já empreendido em linhas gerais. O grupo social de origem — e alvo ou narratário do texto — é a elite letrada islanclesa. O hábito de ler em voz alta, típico da Idade Média, ampliaria certamente o narratário. O texto revela uma posição pró-norueguesa (recorde-se que a Islândia havia sido incorporada ao reino da

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Noruega em meados do século XIII, como se mencionou). No entanto, a origem do texto não parece ser o setor eclesiástico dos letrados (ou, pelo menos, não deve ter sido escrito por um homem da Igreja escrevendo como tal): isso pela condescendência e ambigüidade para com aspectos do mundo pagão imaginário, por uma visão mágica e supersticiosa da religião cristã, por uma aceitação tácita do amor carnal fora do casamento. A estrutura implícita do texto — ver o gráfico 2 — baseia-se numa dualidade que opõe o m u n do cristão rea l (mas muito idealizado e reinterpretado) da Noruega de 995-1000 ao m undo p a g ã o im ag in ário das Planícies de Glasir. O mundo e a monarquia cristãos têm signo positivo; mas o paganismo fantástico é visto ambiguamente. Isso reflete e transpõe miticamente uma ambigüidade real, presente na ideologia da elite letrada islandesa do século XIV: cristã, mas com nostalgia de um passado histórico pagão (menos remoto no tempo do que na média da Europa, sendo a conversão dos escandinavos bastante tardia). A superioridade de princípio do cristianismo se vê no poder da oração do rei e da do bispo (ao benzer a cerveja), que compelem o mundo pagão. Este tem aspectos negativos (feitiçaria, caráter demonía­ co que simboliza a cor vermelha dos cavalos e das vestes de Ingibjorg e de suas damas, crueldade dos Grim e de Ingibjorg, ruídos sobrena­ turais, más intenções de Godmund para com Olaf e seus homens); mas também tem riqueza, esplendor, generosidade (presentes de ouro e prata; presente de cornos preciosos), vida agradável, um rei que em muitos aspectos responde ao ideal dos grandes monarcas dos roman­ ces de cavalaria. Helgi é muito mais objeto do que sujeito nos momentos cruciais. A sua transição do mundo cristão ao pagão se faz primeiro pela sedução, depois pelo rapto, não por iniciativa sua. Mas, apesar de apreciar a vida na corte de Godmund, não se integra de verdade: não participa dos assassinatos perpetrados pelos Grim; não deixa de ser cristão: quando tal fato é ressaltado pelas orações de Olaf, Ingibjorg já não pode ter relações sexuais com ele. Daí que já não tenha lugar em mundo algum: a cegueira e a morte precoce são o preço que paga.

Gráfico 2: Esquema daestrutura semânticadocontodeHelgi Thorisson MUNDO CRISTÃO, a Noruega de O a f Tryggvason - Mundo das coisas ordinárias, conhecidas (idealizado) - Rei cristáo O laf com suas virtudes e sua corte itinerante - Mundo superior ao pagão

PASSAGENS. INFLUÊNCIAS. MEDIAÇÕES. sempre unilaterais.................

MUNDO PAGÃO: as Planícies de Glasir -Am biguidade: 1) aspectos positivos: m agnificência, riqueza, generosidade, rei esplêndido com muitos vassalos, vida agradável; 2) aspectos negatrvos: feitiçaria, crueldade, arbitrariedade, más intenções -Apesar das aparências, mundo inferior ao cristão

Helgi no mundo cristão. I : um viking

O mundo pagão a g e ......... sobre o cristão em forma m aligna, usando engodo, magia, presentes

Helgi no mundo cristão. 2 : cego; marcado para morrer

As orações de cristãos................. Sedução sexual........Ação do rei Olaf: institucionalm ente poderosos e por meio de rezas compelindo (rei. bispo) compelem presentes; rapto Godmund e o mundo pagáo Ingibjorg (que se vinga em Helgi)

Helgi em G lasir: contente, mas perm anece cristão e não se integra verdadeiram ente

Poder-se-ia perguntar: Além de ajudar de diversas maneiras a evidenciar e comprovar os elementos de construção e os elementos temáticos do conto, neste caso específico o que, na aplicação dos métodos da poética todoroviana, foi mais importante no sentido de ajudar a achar a estrutura intrínseca do texto? Duas coisas, a meu ver. Em primeiro lugar, a constatação do caráter altamente polivalente do docu­ mento. Com a conversão da Islândia, relativamente recente, passaram a entrecruzar-se na ilha influências e textos cristãos e pagãos (neste caso se trata da fixação por escrito, em que os islandeses tiveram um papel essencial, das tradições pagas de tipo cultural e histórico da Escandinávia continental e da própria Islândia). O caráter pouco desenvolvido e alusivo do conto de Helgi suporia dos leitores ou ouvintes, para seu entendimen­ to, que conhecessem os conteúdos básicos desses textos de signo distinto. Embora para os islandeses se tratasse do contraste entre um passado (pagão) e um presente (cristão), mencionei que o conto espacializou o que era temporal. Em segundo lugar, a sintaxe narrativa é, aqui, essencial. O conto se organiza de modo a, primeiro, mostrar um tanto enigmatica­ mente o mundo de Glasir, em paralelo com aquele, corriqueiro para um islandês em virtude da existência de múltiplas tradições orais ou já fixadas

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por escrito, da Noruega do rei Olaf Tryggvason; para então, na última das seqüências principais (seqüência 5), prover explicações que, por certo, mantêm e sublinham o contraste e a oposição entre os mundos cristão e pagão. Mantendo e sublinhando também, mas implicitamente, a ambigüidade islandesa a respeito. Este exemplo nos permite salientar um ponto importante: cada leitura segundo um dado método é u m a leitura; em outras palavras, sempre há outras leituras possíveis. Numa das ocasiões em que o conto de Helgi foi tomado como caso a estudar ao lecionar em disciplina instrumen­ tal relativa ao uso de métodos derivados dos estudos literários e semióticos em história, um aluno de pós-graduação propôs do texto uma leitura diferente da minha, num sentido totalmente cristão, sem a ambigüidade que mencionei. Deu grande importância às repetidas menções ao Natal no texto em questão, tomando-as como uma referência ao ciclo litúrgico anual; e, de um modo geral, viu no conto uma ilustração do enfrentamento cristianismo/paganismo com taxativa vitória cristã. É óbvio que uma leitura assim pode ser feita. Em minha opinião, porém, a menção ao Natal surge, no caso, de cristianização de uma oposição anterior do inverno (quando na Escandinávia as pessoas ficavam imobilizadas em casa ou, no caso do rei, onde escolhesse passar tal estação) ao verão, época de navegação e aventuras. E a ambigüidade de que falei rne parece a chave de leitura adequada em virtude do contexto que me proporciona o conhecimento de vários outros escritos islancleses dos séculos XIII e XIV. Mesmo assim, a minha é só uma leitura entre outras possíveis.



Exemplo 3: Visão distópica e humor negro num rom ance d e fic­ çã o científica de Stanislaw Lem ( 1971)



O texto e o autor

O romance que analisaremos, publicado originalmente em polonês em 1971, será aqui citado e terá as indicações de páginas feitas segundo a tradução portuguesa: Lem, Stanislaw. C ongresso fu tu rolõg ico. Trad. de Manuela Alves. Lisboa: Editorial Caminho, 1986. Stanislaw Lem (1921- ) nasceu em Lvov, na Polônia, filho de um médico judeu rico, mas que a guerra iria arruinar. Sua família imediata

escapou de morrer sob o nazismo graças a documentos falsos, mas o irmão de sua mãe foi assassinado pelos invasores e seus amigos judeus foram enviados em 1942 a um campo de concentração: todos morreram. A invasão interrompeu seus estudos de Medicina. Participou da Resistên­ cia. Em 1946 mudou-se para Cracóvia e por fim se formou como médico. Em 1947, tornou-se pesquisador assistente de uma organização científica. Sabendo já francês, alemão, algum russo e latim, além do polonês, aprendeu então o inglês escrito devido à obrigação de ler para a organização que o empregava manuais de lógica e método científico, livros de psicologia e psicometria, ciências naturais etc. Em sua atividade, teve problemas com o governo socialista polonês por envolver-se na querela contra Lyssenko e por levar a sério a cibernética de Norbert Wiener, considerada uma pseudociência no mundo socialista. Suas leituras científicas desembocaram em seus escritos na área da ficção científica, numa modalidade de início fortemente utópica — Os astron au tas (1951), A N ebulosa d c M agalhães (1955) — , segundo ele mesmo, porque em tais obras expressava seu desejo de um mundo pacífico após os horrores da Segunda Guerra Mundial. Lem acha esses romances ruins: comentando-os, disse ser estúpido sustentar esperanças vãs e errôneas. Sua fase máxima como romancista é a segunda, de 1956 até 1968, com livros como S olaris (1961) — provavelmente o seu melhor romance — , R etorno d as estrelas { 1961), O in v en cív el( 1964) e C iberíad a (1965). Também escreveu obras não-ficcionais: Sum m a tecbn olog iae, de 1964, é a mais importante, tratando de uma seleção de temas e aspectos sobre como via os desenvolvimentos tecnológicos do futuro — alguns desses temas muito presentes no livro que vou analisar. O romance a ser estudado pertence à terceira fase da ficção de Lem, iniciada em 1968: fase fortemente pessimista, distópica. Lembremonos de que o termo distopia foi cunhado, em primeiro lugar, nos países de língua inglesa, como antônimo de utopia. Segundo o próprio autor, no período anterior — o de S oláris — ele descrevera situações futuras sem se preocupar com as etapas que vinculam o futuro com o presente, ao passo que nos livros pós-1968 passou a preocupar-se com tal ligação presente-futuro. C ongresso fu tu ro ló g ico opta por um humor negro para se ocupar de temas muito sérios; o livro tem passagens extremamente cômicas. Não me fixarei aqui nesse aspecto, porém. Acho que, entre outras razões, a opção por um tom cômico decorreu da comodidade de

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assim poder apresentar uma visão detalhada do século XXI (como o encarava então) na forma de uma alucinação, sem se incomodar com o que há de inverossímil numa alucinação tão coerente, ordenada e detalhada. Em outros aspectos, porém — como sempre ocorre na obra de Lem — , o ângulo científico é abordado com pertinência e seriedade.



Análise

Desta vez não procederei a uma análise completa segundo o método derivado da poética de Todorov. Interessa-me somente abordar a sintaxe narrativa do C ongresso fu tu rológ ico. Vou fazê-lo, aliás, cortando o texto unicamente no nível das sequências (isto é, sem cortar tais seqüências em proposições narrativas), já que tal bastará para o tipo de estudo temático a empreender depois. Minha ignorância total do polonês não rne permitiría ler a obra no original e, sem isso, não tem sentido ocupar-me do aspecto verbal do texto. C on gressofittu rológico pode ser dividido em oito seqüências. Estas se encadeiam da 1 à 3. Na seqüência 3 se imbricam as outras seqüências, 4 a 8, como um bloco (entre si, estão encadeadas). A seqüência 8 é, de longe, a mais importante — a principal razão de ser do livro — , ocupando, na tradução portuguesa, 102 páginas de um total de 177 (numeradas de 5 a 181, considerando só o texto propriamente dito).

Seqüência 1 S itu ação Ijo n T ich y , astron au ta q u e re c e n te m e n te v oltou à T erra, in stala-se in icia l n o H otel H ilton d e N ou n as (ca p ita l im aginária da C osta R ica) para (páginas5-18): assistir a o O itav o C o n g re sso M undial d e Fu tu rolo g ia, c u jo tem a é a su p e rp o p u la çã o . Isso , n u m m o m e n to e m q u e se p re p a ra um a gu erra civil n o p aís, g o v ern a d o p o r u m ditador. R e b e ld e s raptam o cô n su l e o u tro fu n cio n á rio da le g a ç ã o d o s E stad o s U n id os, e x ig in d o tro cá -lo s p ela lib e rta ç ã o d e to d o s o s p risio n eiro s p o lític o s da Costa Rica. As ativid ades da m an h ã e d o in ício da tarde q u e a n te c e d e m o in ício d o c o n g re s so serv em para ap resen ta r a situ a çã o n o h o tel, o n d e há q u atro c o n v e n ç õ e s e m a n d a m en to — d o s fu tu rolog istas, d o s filu m en istas (c o le c io n a d o re s d e c a ix a s d e fó sfo ro s), d o s ed ito ­ res d e literatura lib era d a (p o rn o g rá fica ) e d o s v e tera n o s d o p ro testo estu dan til — , u m terrorista q u e p la n e ja m atar o p ap a, m u itos

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jo rn alistas. O utrossim , T ich y v em a s a b e r d e P irh u lo , esp ecialista m e rce n á rio e m re v o lu çõ e s c o m exp lo siv o s.

P ertu rbação d a situ ação in icial (p ág in a 18):

Em seu q u arto , a p ó s o b a n q u e te d e ab ertu ra d e seu co n g re sso , T ic h y to m a um c o p o d e ág u a da to rn eira, ig n o ra n d o q u e o g o v ern o d a Costa R ica, c o m o tática an tiin su rrecio n al, e n c h e u d e elem e n to s q u ím ico s “b e n ig n iz a n te s” o sistem a d e a b a s te c im e n to d e águ a da cap ital.

Desequilíbrio, P o r e fe ito d as d rogas, so fre u m ataq u e d e a m o r e b e n e v o lê n c ia crise in d iscrim in a d o s, d u ran te u m b le c a u te e um a p a n e d o s te le fo n e s do (páginas 18-24} h o te l — p a n e p assag eira, p o rém . In terven ção P e r c e b e n d o o q u e a c o n te c e , T ich y re co rre à a u to m o rtifica çã o , n a crise b a te n d o e m si m esm o e in g erin d o ou tras d ro g as q u e n eu tralizem a (páginas24-26): d a águ a. Novo A p ó s u m q u a rto d e h o ra , a c r is e p a s sa . T ic h y to m a u m b a n h o e equ ilíbrio s e p re p a r a , p o is d e v e d irig ir-s e à s e s s ã o in ic ia l d e tra b a lh o s (p ág in a 26): fu tu ro ló g ic o s .

Seqüência 2 S itu ação S a in d o d o q u arto , T ich y p e r c e b e q u e tud o p a re c e n orm al — in icia l m e s m o p o rq u e o s h ó s p e d e s d o s g ran d es h o té is n ã o costu m am (páginas26-33): b e b e r água da torn eira c o m o e le fizera. C o m e ça a s e s s ã o inicial do C o n g re sso F u tu ro ló g ico , c o m a a p re se n ta çã o d e c o m u n ic a çõ e s ca tastro fistas so b re a d estru içã o in elu táv el d o m u n d o p ela su p erp o ­ p u la ç ã o , a so lu çã o ja p o n e s a d e ed ifício s g ig a n te sc o s c o m total re c ic la g e m , a crim in alização d o s n a scim en to s n ã o au to rizad o s. Um c o q u e te l M o lo to v q u e m ata u m a p arte da a u d iê n cia n ã o ap a rece c o m o alg o fora d o ord in ário . A p ós o jantar, re to m ad a a sessã o , um d o s d e le g a d o s su íço s ap re se n ta outra c o m u n ic a ç ã o catastrofista (in e v ita b ilid a d e d o c a n ib a lism o n o futu ro).

Perturbação da E x p lo s õ e s e tiros m o stram q u e as h o stilid ad es c o m e ça ra m na situação inicial cid a d e : a ca b a m p o r in terro m p er a se s s ã o d e to d o s o s sim p ó sio s em (p ág in a 33)- c u rs o n o hotel. D esequilíbrio, N um prim eiro m o m en to , o c o r re m c o n fu s õ e s c a u s a d a s p e la m escla crise d e p e s so a s d as d iversas c o n v e n ç õ e s e m e m b ro s d o s t a ff d o hotel, (págjnas3ô-34): b e m c o m o re a ç õ e s à v io lê n c ia e às m a n ife s ta çõ e s n as ru as p ró x i­ m as. O g o v e rn o en tã o a taca c o m ATT ( “am a teu p ró x im o ”) em a e ro s so l e o c a o s se in stala: ed ito re s e s ec re tá ria s d a literatura p o rn o g rá fica , arrep en d id o s, p e d e m q u e o s fla g e le m o u ch u tem

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p e lo m al q u e fizeram , so ld a d o s con fra tern iz a m c o m rev o lto so s, in fo rm a n tes se au to d e n u n cia m e p e d e m ca stig o etc.

In terv en ção U m fu tu rolog ista, o s u íço T ro ttelrein er, lid eran d o o p ro tag o n ista e n a crise a lg u n s ou tros, le v a -o s a se p ro te g e rem c o m m á sca ra s d e o x ig ê n io (páginas43-46): co n tra as d ro g as p sic o tró p ica s e m ae ro sso l q u e im p re g n a m o ar. Novo O g ru p o d e p e s so a s em q u e stã o se refu g ia na p arte m ais b a ix a d o equ ilíbrio h o te l — o e sg o to — , e m cu ja p latafo rm a já estã o o s ad m in istrad o res (páginas4649} d o H ilton c o m su as secretárias. O s re c é m -c h e g a d o s jan tam (e n c o n ­ tram a com id a trazida p e lo p e sso a l d o h o te l) e p re p a ra m -se para p a ssa r a n o ite ali: to d o s o s q u e estã o n o su b te rrâ n eo d o e sg o to o cu p a rã o p o r tu rn o s, d o is a d o is, as seis ca d e ira s reclin áv eis d isp o n ív e is, o u s e d eitarão na p latafo rm a à b eira d o e sg o to .

Sequência 3 (primeira parte) S itu ação inicial:

C o in cid e c o m a p arte final da s e q ü ê n c ia 2.

P ertu rbação d a situ a çã o A cred ita n d o e rro n e a m e n te q u e o ar já e ste ja livre d e p sic o tró p ico s, in icia l T ich y e o p ro fe s so r T ro tte lre in e r tiram as m áscaras d e o x ig ê n io , (p ág in a 49): e x p o n d o -s e às a lu c in a çõ e s. Desequilíbrio, A s p ro p o s iç õ e s d esta p arte da s e q ü ê n c ia 3 sã o , p o r su a v ez, crise: s e q ü ê n c ia s co m p le ta s q u e , n o seu c o n ju n to e n c a d e a d o , im b ricam se n a 3 (s e q ü ê n c ia s 4 a 8).

Seqüência 4 Situ ação in icia l (páginas49-50} A lu cin a n d o , T ich y v ê -se c o m o u m a árv ore. P ertu rbação C aind o n o e sg o to , T ich y se re c u p e ra d a situ a çã o re to m a r sua m áscara d e o x ig ê n io : in icia l en ta n to , é u m a a lu c in a çã o , d e m o d o (páginas5051): abertu ra n o teto d o su b te rrâ n eo d o

m o m e n ta n e a m e n te e trata de a m á scara q u e reto m a, n o q u e d e nad a serv e . P o r um a e sg o to , v em s o c o rro m ilitar

n o rte -a m erica n o : outra a lu c in a çã o .

Desequilíbrio, T ich y e T ro ttelrein er v o a m c o m a p a re lh o s p ro p u lso re s às costas. crise F.nquanto T ro ttelrein er d e c id e ir p e d a la n d o até o s E stad o s U nid os, (páginas51-57): T ich y — c o m resto s d e sua a lu c in a çã o “v e g e ta l” — na nova a lu cin a çã o p e g a ca ro n a c o m d u as m u lh e re s lasciv as q u e p a re c e m

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p á ssa ro s. Elas o levam à p ro x im id a d e d e um a c a sa o n d e um a festa e stá a c o n te ce n d o .

Intervenção na crise (pógptas57-58):

T e n d o a ilu são d e q u e um a d as m u lh eres (o u p ássaros?) lh e b ate na c a b e ç a , d e s c o b re q u e

d e fato q u em

o faz é o p ro fe sso r

T ro ttelrein er, q u e ren d o tirá-lo da alu cin a çã o : o q u e co n se g u irá só p o r m o m e n to s, já q u e o ar co n tin u a c h e io d e e le m e n to s q u ím ico s p sico tró p ico s.

Novo equilíbrio (página 58):

D e volta à platafo rm a d o s u b te rrâ n eo , ju n to a o e sg o to .

Seqüência 5

Situação inicial:

C o in cid e c o m o n o v o e q u ilíb rio da s e q ü ê n c ia 4.

Perturbação T ro tte lre in e r e ou tro h o m e m arrastam T ich y para u m h e licó p tero : da situação m a is u m a a lu cin a çã o ; su p o sta m e n te , o h e lic ó p te ro o s levará à inicial c o n tin u a ç ã o d o C o n g re sso F u tu ro ló g ico em B erk e le y , na C alifórnia. (páginas5860} O h e lic ó p te ro cai. Desequilíbrio, L ev ad o a um ho sp ital n u m a a m b u lâ n cia , T ich y p e rd e o s sen tid os: crise a o d esp ertar, d e s c o b r e q u e seu c é r e b ro foi tran sp lan tad o para o (páginas6063):corpo d e um a jo v em n eg ra (o u tra a lu cin a çã o ). IntenxsI27-138): d iv a g a ç õ e s sem ân tico -lin g ü ísticas, T ro ttelrein er d is p õ e -se a revelarlh e a v e rd ad e so b re o m u n d o d o futuro.

Desequilíbrio , Nada é o q u e aparenta ser n aq u ele m undo. Há outro tipo de drogas crise — o s m ascon s — , q u e n ão tem a ver com o con tro le do com porta(págjnas138-179):m en to ou do co n h ecim en to d os indivíduos, e, sim , co m a falsificação da p e rce p ção da realidade. O m undo está de fato superpovoad o, em p o b recid o , sem recursos suficientes. Toda a p rosp erid ad e e saúde d as pesso as, até m esm o a p resen ça e o uso d e elev ad o res e autom ó­ veis, são ilu sões qu im icam en te induzidas. O s m ascon s são aerossóis q u e im pregnam o ar sem q u e as p essoas saibam . T ich y é inform ado d essas coisas em duas o ca siõ es — num restaurante e n o apartam ento d e Trottelreiner — e, a cada vez, o nível de distopia revelad o é pior. T rottelreiner m en cion a o futuro (e secreto )

76° C on gresso

Futurológi-

co , q u e encam inhará idéias drásticas para solu cio n ar a superpopula­ ç ã o . Numa outra etapa do p ro cesso d e revelação, T ich y encontra-se c o m seu ex-am ig o Sym ington, d e fato o ch efe d o establishm ent em N ova York: este lhe con ta ser a realidade ainda m uito pior do que dissera Trottelreiner, nu m m u n d o q u e na v erdad e está, n ão n o ano

2039, e,

2098, co m um a po p u lação 26 b ilh ões d e clandestinos.

sim , em

registrados e

de

69 b ilh õ es

d e habitantes

In terven ção n a crise Tichy lança-se sobre Symington — e então este ponto se funde com (págpxtsl7318D ): ponto equivalente da seqüência 3, reintroduzindo-a.

Sequência 3 (conclusão) In terven ção A p ó s a ilu são d e a tracar-se c o m Sy m in g ton — q u e s ó existia em n a crise su a a lu c in a çã o — , T ic h y d e s c o b r e q u e , na v erd ad e, m ais um a vez (página 180): ca iu na águ a d o esg o to .

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Novo D e sp e rta n d o da últim a a lu c in a çã o , T ich y p e rc e b e q u e e ste v e o equ ilíbrio te m p o to d o n o s u b te rrâ n eo , alu cin a n d o . M as ag o ra o e fe ito d o s (pqgmasl8CH81J:e le m e n to s q u ím ico s n o ar se ap laca p o r fim . O ro m a n ce term in a no su b te rrâ n eo , na p latafo rm a ju n to a o esg o to .

Stanislaw Lem é um cientista, filósofo e racionalista de fortes convicções, que passa para sua ficção científica. Seus dotes de ensaísta aparecem mesmo nos romances: no C ongresso fu tu rológ ico, ver as numerosas disquisiçôes semânticas, em ciências naturais, éticas, socioló­ gicas etc., que chegam a interromper longamente a ação. Não lhe interessa a literatura por si mesma: seus interesses reais são a estrutura do mundo e da sociedade, o conhecimento, a teoria filosófica do ser (ontologia). Uma ficção não-problematizada intelectualmente parece-lhe inútil, vazia, tediosa. Para ele, a ficção científica deveria ser, como gênero literário, um laboratório para tentar experimentações em novas formas de pensar (um vanguardismo cognitivo); e deveria lidar com os seres humanos vistos como espécie inteira, não como indivíduos específicos: seu modelo é, neste ponto, o I I.G. Wells d ’A g u erra dos m undos. Por tal razão, em seu F an tasia e fu tu ro lo g ia (1971) e em ensaios mais recentes, é fortemente crítico em relação à ficção científica norte-americana e à inglesa, que teriam traído os valores intelectuais, a herança cultural da humanidade, sacrificando-os a enredos pueris que recordam contos de fadas ou romances policiais. A comparação do C ongresso fu tu rológ ico com outros romances do próprio Lem da mesma fase, como D iários estelares (1971) e K atarC 1975), mostra muitos pontos comuns. Alguns vinham da fase anterior e estão presentes, por exemplo, em R etorn o d as estrelas e no livro não-ficcional Sum m a tech n olog iae. preocupação com o controle químico do compor­ tamento, as transformações semânticas, as alucinações (em diferentes romances ou contos do autor, podem ser causadas por agentes diversos), a simulação da realidade por meios variados (químicos, cibernéticos), os transplantes e a engenharia biológica. Mas, na fase que nos interessa, num clima fortemente colorido pelas obsessões pós-1968: terrorismo e foquismo, convicção de que a superpopulação poderia acabar com os recursos, poluir o mundo sem remédio ou mesmo destruí-lo, crise da ética tradicional como bússola nas relações humanas.

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Com efeito, ao analisarmos C ongresso fu tu rológ ico quanto aos seus temas como os revela a sintaxe narrativa do romance, constataremos que as temáticas maiores são: 1) controle do comportamento individual por meio de drogas psicotrópicas — que aparece em todas as seqüências (em si ou nos seus efeitos alucinógenos) — associando-se à criação química de uma realidade virtual (aparece em posição central e explicativa na seqüência 8, a mais importante, onde o assunto é desenvolvido com grande detalhe); 2) violência — quase sempre na forma de terrorismo, insurreição, contra-insurreição, ou em formas mais individualizadas — , em todas as seqüências; 3) superpopulação e seus efeitos: seqüências 1, 2 e 8; com grande peso na última, que é a mais importante do livro; 4) transplantes e outras fonnas de alteração do corpo: seqüências 5, 6 e 8. Nesta última, que tive de resumir muito ao apresentar sua sintaxe narrativa, tal aspecto aparece nas páginas 103, 128 e 164-166; 5) na seqüência 8, aparecem, sem possibilidade de desenvolvimento maior, dois temas caros a Lem: o das transformações lingüísticosemânticas; e o dos robôs desobedientes ou “enfermos”. Proveniente de um país “periférico” — integrante, na época, da área soviética de influência — incapaz de controlar de todo o seu destino, marcado ao longo dos séculos por muitas desgraças e sucessivas perdas de independência e, além do mais, judeu num país onde é forte o anti-semitismo, à primeira vista parecería que Lem se destaca de uma realidade que julga desagradável para elaborar uma ficção inspirada por problemas e preocupações mais globais, mundiais: o que, pelo menos em parte, derivaria também de sua posição já exposta acerca da ficção científica como gênero que lida com a espécie humana globalmente. Em outro nível de análise, porém, uma obra como a de Lem só poderia vir da Europa Central eslava. A ficção científica de poloneses e tchecos é única em sua associação de um humor baseado no absurdo — humor negro de um tipo que ingleses' e norte-americanos tendem a considerar ingênuo e pouco sutil — com uma crença humanista, apesar

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de tudo, nas possibilidades do Homem. Num texto autobiográfico, Lem declarou, certa vez, que ainda não acreditava que a humanidade fosse eternamente um caso perdido, incurável, pelo que não se via como um reformador desesperançado do mundo (referia-se, em parte, às suas utopias, escritas na primeira fase de sua ficção científica e no início da segunda). No embate final da seqüência 8 entre Tichy e Symington, nota-se que Lem — representado por Tichy — não tem hesitações éticas: para ele o certo e o errado, no fim das contas e apesar de todas as confusões a respeito que o enredo anteriormente procurou embaralhar, são eviden­ tes. E trata-se de uma ética marcada pela posição da Europa Central como ponto de encontro das culturas e morais européias. Uma das razões de Lem ter podido manter-se fiel às suas posições foi, sem dúvida, não sofrer (pelo menos até anos recentes), como sofrem os escritores anglo-saxôes, as fortes pressões dos editores e do mercado no sentido do que seria ou não aceitável comercialmente. Pela mesma razão, os leitores anglo-saxôes, incluindo os críticos literários, não sabem muito bem como considerar os livros de Lem e de outros escritores da Europa Central, como reagir a eles. Ben Bova, romancista e ensaísta no domínio da ficção científica norte-americana, afirma com razão: Se bem que pretendam divertir-nos com histórias do futuro, as melhores narrativas de ficção científica de fato examinam face­ tas do mundo em que vivemos na atualidade. Tenho dito com freqüência que ninguém escreve realmente acerca do futuro. Os escritores usam molduras futuristas para projetar uma luz mais forte sobre os problemas e as oportunidades de hoje. (Bova 1993, p. 295) Isso cabe como uma luva no Congresso fu tu rológ ico de Lem. O livro, aliás, indica explicitamente que o mundo em que vivemos já tem muito a ver — em seus problemas, em seus processos de manipulação que usam tecnologias cada vez mais eficazes, na concomitante retração da vontade e da iniciativa das pessoas — com aquele que descreve, apenas ampliando catastrófica e progressivamente tais aspectos conforme avança o tempo da ficção, em hipotéticos anos finais do século XX (ele escrevia em 1971) e num hipotético século XXI. Para a explicitação textual do vínculo entre o presente — no caso, o presente de duas das

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personagens, projeção já exagerada dos problemas do fim da década de 1960 e do começo da seguinte — e o futuro, ver por exemplo as páginas 144 e 166: na primeira, os métodos de controle do comportamento do século XXI aparecem como simples aperfeiçoamento das “primeiras tentativas ainda hesitantes” deste século; na segunda, analogamente, a extensão do controle a todos os ramos da vida é vista como continuação lógica do que existe em relação a menos setores no século atual, quando a “civilização” já “não é deixada ao sabor de seu próprio poder evolutivo” (o autor implica que desde meados do século XX). O esclarecimento da estrutura implícita da obra é facilitado por apresentar-se sua parte principal — a seqüência 8 em nossa divisão do texto baseada na sintaxe narrativa — cortada em uma primeira parte de constatações e descrições (páginas 82 a 132) e outra, de explicação e conflito de opiniões (páginas 132 a 179). As premissas em que repousa o núcleo semântico do romance são: 1) o mundo contemporâneo vive problemas cada vez mais com­ plexos, de solução difícil ou mesmo que podem dar a impres­ são de ser insolúveis; 2) os poderes constituídos de todo tipo — sempre muito minori­ tários — dispõem de tecnologias e meios de manipulação da opinião e do comportamento cada vez mais aperfeiçoados; sua posição é sempre hipócrita, pois os que os exercem nunca se privam do melhor, ao passo que exigem sacrifícios aos demais e, em muitos casos, usam a máscara ideológica para camuflar o autoritarismo e a arbitrariedade presentes em seu modo de agir; 3) intelectuais honestos e de boa vontade deixam-se, o tempo todo, cooptar por tais poderes — mesmo se, ao mesmo tempo, perce­ bem contradições naquilo que assumem e passam a defender — , aceitando e divulgando as afirmações ideológicas de que os poderes em questão ajam pelo bem comum e de que inexistam alternativas às soluções drásticas e dolorosas que impõem, as quais sempre implicam engodo e manipulação da maioria das pessoas; 4) as pessoas comuns, em função do baixo grau a que uma longa manipulação reduziu sua percepção e sua consciência, de certo modo e ao menos parcialmente desejam ser manipuladas e ludibriadas pelas diversas for;nas que assume o poder social.

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É claro que as premissas em questão, em se tratando de um romance, são apresentadas no contexto do universo ficcional do livro, em especial na seqüência 8, mas, uma vez percebidas ali, retrospectivamente iluminam todas as seqüências em seus conteúdos principais. Se nos ativermos, então, à estratégica seqüência 8 — aquela relativa ao mundo do século XXI — , a primeira premissa aparece na forma de descrições e interpretações de uma realidade mundial catastró­ fica e aparentemente sem solução (por exemplo e sobretudo nas páginas 143 e 178). A segunda está corporificada numa personagem — Symington — , em sua boa vida (página 175), seus protestos de agir do único modo possível pelo bem geral e mesmo de ter-se tornado realidade por obra daquilo que representa o sonho de Jerenty Bentham de garantir-se a maior felicidade possível ao maior número de pessoas (páginas 120, 178), suas afirmações de que as massas devem necessariamente ser ludibriadas (página 177: “...ninguém pode ter suspeitas”) e acerca de não poderem permitir-se as rebeliões sem controle “que ameacem o statu squ o” (página 176). A terceira premissa é exemplificada pelo professor Trottelreiner, o qual, cooptado, reproduz a ideologia do poder constituído e seu discurso em nome da necessidade e do bem coletivo (páginas 143, 145, l6 l), mesmo se, ao mesmo tempo, tenha dúvidas a respeito, como se percebe numa resposta sua a uma pergunta de Tichy:

— Mas p o r q u ê Se é necessário que alguém saiba... — Necessário para o bem comum, para a sociedade, para toda a humanidade, mas não na óptica dos interesses especiais de certos políticos, de certas sociedades por acções, até de certos ministérios. (Lem 1986, p. l6l)

A quarta premissa aparece exemplificada num episódio que envol­ ve a personagem Aileen (página 129) e depois em tese (página 147). À base dessas quatro premissas, qual é o núcleo ideológico que pode ser considerado como estrutura intrínseca da obra, permitindo explicar a quase totalidade de seu texto e de suas temáticas? Trata-se do dilem a m oral envolvido na relação do poder (em qualquer das suas formas) com a sociedade, com as pessoas a ele submetidas. Tem o médico o direito de ocultar a verdade sobre o seu estado ao paciente, ou de

manipular-lhe o corpo sem seu consentimento — que, além do mais, para ser dado ou negado com real conhecimento de causa, implicaria acesso ao saber que o médico monopoliza e só divulga como lhe parece (página 145 em tese, seqüências 5 a 7 em exemplos)? Pode um governante manipular os governados sem lhes dar conhecimento cabal das situações — mesmo as mais difíceis e delicadas — em nome do que achar melhor para eles (ponto central das conversas de Tichy com Trottelreiner e com Symington, páginas 132-179)? É lícito que terroristas e revolucionários, em nome de ideais de liberdade, justiça e nacionalismo, matem pessoas inocentes ou as ponham em risco, aproveitando-se da facilidade com que se tem acesso a armas e outras tecnologias altamente avançadas no mundo atual? E que os governantes ajam de modo análogo na repressão a seus opositores (seqüência 1 sobretudo; também página 179 numa fala de Symington ameaçando Tichy)? Todo dilema tem pelo menos dois lados. Ambos estão repre­ sentados, com seus argumentos, no texto. Mas Lem parece falar com a voz de Tichy, quando este increpa Symington: — ( ...) Q u a n d o n ã o há p ão , d ê e m -lh e s ó p io para co m er! M as n ão c o m p re e n d o p o r q u e dá tanta im p o rtân cia à m inh a c o n v e r sã o (...). S e o s s e u s m é to d o s sã o e fic a z e s, para q u e serve toda esta co n v ersa e esta a rg u m en tação ? Se o s seu s m éto d o s fo rem b o n s. M as p a re ce q u e n ã o e stá m u ito c o n v e n c id o d e sua eficá cia , p o rq u e p refere re tó rica sim p ló ria e an tiq u ad a, d esp e rd iça n d o p alav ras co m ig o (...)! ( ...) Sim , eu sei q u e m e q u e r c o n v e n c e r e d e p o is lan ça r-m e n o e sq u e cim e n to , m as n ã o vai con seg u ir. P o rq u e eu d ig o: vá b u g ia r c o m sua m issão su b lim e e m ais a q u elas p u tas p en d u rad as n a p a re d e q u e lh e aliviam o fard o d e sua m issão salv ad ora. (...) (L em 1 9 8 6 , p p . 1 7 8 -1 7 9 )

Em suma: por meio de Tichy, Lem acha que é preciso responder um n ão inequívoco àquelas perguntas e crê — como já víramos ao listar as premissas do significado do livro — no tartufismo dos detentores do poder. A estrutura interna do Congresso fu tu rológ ico reflete, portanto, facetas da estrutura maior da ideologia do humanismo e da democracia, bem como dos direitos do indivíduo, como vêm sendo desenvolvidas, sobretudo em sua vertente européia, desde o século XVIII, numa relação de homologia estrutural, com ela, do universo ficcional.

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Pode-se supor que, três anos antes de publicar o romance exami­ nado, Lem tenha reagido com amargura — mas sem surpresa — à intervenção soviética em Praga. E que sua reação tenha sido similar à repressão, vários anos mais tarde, às greves do sindicato Solidariedade em Gdansk. Do mesmo modo como satirizou o lado norte-americano da guerra fria e dos segredos mantidos em nome da segurança nacional no romance M em órias a c h a d a s n u m a b a n h eira (1973).



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3. A SEMIÓTICA TEXTUAL E A BUSCA DO SENTIDO

Neste capítulo, após um resumo dos processos que conduziram ao surgimento de uma semiótica centrada no texto e não mais no signo, bem como uma breve exploração da própria noção de texto, expor-se-ão procedimentos técnico-metodológicos usados, no contexto dos estudos derivados da obra de Algirdas Julien Greimas, para evidenciar graficamen­ te a articulação de uma categoria semântica: o quadrado semiótico e o grupo de quatro de Klein. A seguir, ainda na parte inicial de cunho teórico-metodológico, o leitor achará uma síntese relativa aos conceitos e enfoques que se vinculam à noção semiótica das modalidades. Todo o resto do capítulo será dedicado à apresentação de numerosos exemplos que ilustrem, num contexto útil aos historiadores, como estes poderíam utilizar as idéias e os procedimentos anteriormente sumarizados.



Percursos da sem iótica: Do signo ao texto

É comum, ao tratar das origens da semiótica como disciplina, que se vá tão longe no tempo a ponto de invocar os estóicos da Antiguidade clássica. Pelo contrário, tomarei como marco inicial as idéias dos “pais fundadores” da semiótica contemporânea centrada no conceito de signo: Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo, e Ferdinand de Saussure (1857-1913), lingüista.

E is a q u i a d e f in iç ã o d a d is c ip lin a s e m ió tic a s e g u n d o P e i r c e :

A ló g ica , e m seu sen tid o g eral, é , c o m o c re io tê -lo d em o n stra d o , s o m e n te o u tro n o m e da sem ió tica ( sem eiotiké ), a d o u trin a q u a se n e ce ssá ria , o u form al, d o s sig n o s. A o d escre v e r a d o u trin a c o m o “q u a se n e c e ss á ria ”, o u fo rm al, q u e ro d izer q u e o b se rv a m o s o s ca ra cte re s d o s sig n o s e, a p artir d e tal o b se rv a ç ã o , p o r u m p ro c e ss o q u e n ã o o b je ta re i seja c h a m a d o d e A bstração, s o m o s le v a d o s a a s se v e ra çõ e s , e xtre m a m e n te falíveis, e n o fim d as c o n ta s em certo sen tid o d e sn e ce ssá ria s, relativ as a o q u e devem ser o s c a ra cte re s d e to d o s o s sig n o s u sad o s p o r u m a in te lig ê n cia “c ie n tífic a ”, isto é , p or um a in te lig ê n cia ca p a z d e a p re n d e r m ed ian te a e x p e r iê n c ia .(P e ir­ c e 1 9 7 4 , p. 2 1 )

Para o mesmo autor, o signo define-se assim: U m sig n o , o u representam en, é alg o q u e, para alg u ém , rep resen ta o u se re fe re a alg o em alg u m a s p e cto o u caráter. D irig e-se a a lg u ém , o u seja , cria na m en te d essa p e s so a u m sig n o eq u iv a len te, ou , talvez, um sig n o ainda m ais d esen v o lv id o . E sse sig n o cria d o é o q u e eu c h a m o d e in terpretan te d o prim eiro sig n o . O sig n o está n o lu g a r d e a lg o , d e seu objeto. E stá n o lug ar d e s s e o b je to , n ão em to d o s o s a sp e cto s, m as, sim , c o m re fe rê n cia u n ic a m e n te a um a e s p é c ie d e idéia q u e às v e z e s ch a m e i d e fu n d a m e n to d o repre­

sentam en. (P e irc e 1 974, p. 2 2 )

No sistema peirciano, a noção de signo só adquire sentido com base em outra, a de semiose: ... p o r sem iose entend o... um a a ç ã o ou influência q u e é, ou que im plica, a co o p era çã o de três sujeitos, o u seja, um signo, u m o b jeto e seu interpretante, relação tripartite q u e n ão p o d e d e m o d o algum resolver-se em a çõ e s entre p ares. Semeióis, n o g reg o d o im pério rom ano... designava a a ção d e p raticam ente todo signo; e m inha d efinição c o n fe re a qualqu er co isa q u e aja assim o n o m e d e “sig n o ”. (P eirce 1981, p. 180)

Na terminologia avançada por Peirce, o termo que despertou mais polêmica foi o de “interpretante”. Umberto Eco, por exemplo, define o interpretante como “sentido” ou “referência ao código”(Eco 1975, pp. 30,84-86).

102

Passando a Ferdinand de Saussure, vejamos a sua definição de semiótica (ou, em seu vocabulário, semiologia): P o d e -s e c o n c e b e r u m a ciên cia q u e estude a vida dos signos n o seio

d a i>ida social. T al c iê n c ia faria p arte da p s ic o lo g ia so cial e , p o r co n se g u in te , da p sico lo g ia g eral. N ós a c h a m a rem o s d e s em io lo g ia (d o g re g o sem eion, “s ig n o ”). Ela n o s e n sin ará e m q u e c o n sis te m o s sig n o s e qu ais sã o as leis q u e o s g o v ern a m . C o m o ain d a n ão e x iste , n ã o é p o ssív el d izer o q u e será; m as tem d ireito à e x istê n cia , e seu lu g a r e stá d eterm in ad o d e a n tem ão . A lin g ü ística n ã o p assa d e u m a p arte d essa c iê n c ia

g eral. As le is q u e a s em io lo g ia

d e s c o b rir se rã o a p licáv eis à lin g ü ística; e será assim q u e a lin g ü ís­ tica se e n co n tra rá v in cu lad a a u m d o m ín io b e m d efin id o n o c o n ju n to d o s fato s h u m an o s. (S a u ssu re 1 9 6 7 , p. 6 0 )

A língua natural, sendo um sistema de signos, é por isso mesmo comparável a outros desses sistemas, mas ela constitui, segundo Saussure, o mais importante dentre eles. O signo, para Saussure, é binário em sua definição: trata-se de um conjunto que resulta da combinação indissolúvel de uma imagem acústica (sensorialmente considerada: a m a rca p síq u ic a de um som, mais do que o próprio som) — o sig n ifica n te— com um conceito — o significado. A relação entre significante e significado seria arb itrá ria: com isso, queria dizer que essa relação não é natural, e, sim, contingente, por repousar numa convenção, num hábito socialmente difundido. O que, para o autor, estabelecería os limites da semiótica igualmente, mesmo ao serem levados em conta sistemas de signos diferentes das línguas naturais, já que, para ele, tal disciplina teria como “principal objetivo” o estudo do “conjunto dos sistemas fundados na arbitrariedade do signo”. Em outras palavras, mesmo se a lingüística não passa de uma parte integrante da semiótica, ela é, ao mesmo tempo, “o modelo geral de qualquer semiologia” (idem, ibidem , pp. 127-13DA comparação entre ambos os conceitos de signo evidencia dife­ renças importantes: o de Peirce é inclissoluvelmente triádico (vimos que a relação ativa de três elementos “não pode de modo algum resolver-se em ações entre pares”); o de Saussure, indissoluvelmente binário. De certo modo, o que Peirce chama de signo corresponde ao significante de

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Saussure, ao passo que o signo de Saussure seria a união do signo e do interpretante de Peirce. Segundo Y.K. Lekomtsev, a inclusão que faz Saussure do que seria o interpretante de Peirce na própria definição de signo seria a explicação, no caso da lingüística pós-saussuriana, da visão estruturalista que assumiu: isto é, da noção de que as estruturas lingüísticas — ou semióticas — não são passíveis de observação direta, têm de ser descobertas analiticamente; o que implicaria, por contraste, perceber uma tendência mais empirista nas noções peircianas. A semiótica recebeu forte impulso, no contexto da lingüística derivada de Saussure, desde a década de 1920 (Círculo Lingüístico de Praga) e, desde os anos 40, com L. Hjelmslev e a Escola de Copenhague. Após 1960, a linha semiótica saussuriana ou pós-saussuriana dividiu-se em duas tendências, sem iótica d a c o m u n ic a çã o e sem iótica d a signifi­ cação-, desta última viria a destacar-se a sem an álise. Já naquela época estava patente a necessidade de ultrapassar os fundamentos exclusiva­ mente lingüísticos em semiótica, o que conduziu a uma revalorização da obra de Peirce e de seus continuadores, seja para dela aceitar influências, seja, pelo contrário, para basear novos desenvolvimentos numa polêmica com conceitos peircianos. Eliseo Verón e Umberto Eco exemplificam isso. A semiótica da comunicação, derivação direta dos princípios saussurianos, interessa-se com exclusividade pelos processos que manifestam uma intenção de comunicar alguma coisa a alguém; processos de “verda­ deira comunicação”. Seu objetivo central, como para Saussure, é o estudo das línguas naturais no quadro das formas variadas da comunicação humana. Os integrantes dessa corrente — Eric Buyssens, Luis Prieto (numa fase de sua atividade), Émile Benveniste, Cesare Segre — acham que a semiótica, para propiciar um conhecimento sólido, deve limitar-se aos signos produzidos com intenção de comunicação segundo um sistema difundido socialmente. A razão da opção seria que, em outras situações, não temos verdadeiros signos, mas sim, sintom as dos quais se pode tentar uma interpretação, sendo porém conveniente aceitar a sua intrínseca heterogeneidade, pois qualquer unidade que lhes tentássemos impor seria falaciosa. Roland Barthes expôs, em seus trabalhos concretos e também em textos teórico-metodológicos, uma semiótica de ênfase modificada: pre­ tendia descobrir a signilicação ou o sentido dos fenômenos abordados,

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incluindo em seu campo de atuação qualquer sistema de signos, mesmo quando não fosse possível mostrar a existência de uma intenção de comunicação formalizada de mensagens. Na medida em que estão institucionalizados como indícios sociais, são de possível análise semióti­ ca coisas tão variadas quanto os ritos, os gestos, os protocolos, as imagens, a moda, a culinária etc. A ampliação do campo da semiótica resultante é justificada por vincular-se a um processo que Barthes chama de sem a n tiz a çã o dos com portam en tos sociais: todo uso que se difunde na sociedade se converte -— em especial na sociedade contemporânea — em signo de tal uso, fenômeno designado pelo autor como fim ção-sig n o. A importância maior de Barthes foi talvez, além de substituir a ênfase na comunicação por uma insistência na significação, demonstrar que a ideologia está presente no interior de todo processo semiótico, coisa que iluminou mediante a valorização dos processos de c o n o ta çã o presentes nos atos concretos de comunicação. É verdade, entretanto, que a ampliação do campo de aplicação propiciada por Barthes não libertou ainda a semiótica de sua então já tradicional dependência diante da lingüística pós-saussuriana. O método de Barthes era uma transposição de conceitos e modos de proceder daquela lingüística. Ele o justificava afirmando que os fenômenos significantes não-verbais só podem ser apreendidos em sua significação quando esta é traduzida em palavras. A partir da década de 1960, ocorreu o desenvolvimento do que foi chamado de lingüística d o discu rso (ou textual)- O interesse dos lingiiistas pós-saussurianos até então estivera circunscrito à análise do enunciado, que se definia como uma série de frases emitidas entre duas pausas da comunicação; e, na prática, concentrara-se em unidades muito menores ainda. O novo objeto — o discurso tomado como enunciação que gera enunciados, os textos, onde aquela enunciação pode ser captada como processo de produção pelos traços que deixa no enuncia­ do — abriu necessariamente a lingüística ao social: Como estudar a produção e a circulação de mensagens integrais, bem como o sentido delas, sem levar em conta os quadros institucionais, as hierarquias e os grupos sociais, a situação política, as ideologias etc.; tudo isso, aliás, em processo de transformação no tempo e de variação no espaço? Ao mesmo tempo, em semiótica, a nova lingüística levou a uma crítica radical da noção de signo, cujas limitações já tinham sido há muilo

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percebidas (por exemplo por Hjelmslev), mas cujo império sobre os estudos semióticos se mantivera ainda assim. Julia Kristeva foi a primeira a propor um tipo de estudo semiótico adequado à nova situação dos estudos lingüísticos, a que deu o nome de semanálise. As práticas semióticas não são todas passíveis de tradução simbólica ou sígnica. Assim sendo, o objeto da semiótica é, na verdade, não o signo nem os códigos que reúnem os signos, mas, sim, o sistema de relações entre sujeito e objeto do discurso, no quadro dos discursos sociais. A semanálise aplica-se ao texto para a descoberta dos mecanis­ mos de produção do sentido, determinando como se geram os elemen­ tos que, articulando-se no sistema significante (a língua, no sentido semiótico do termo), criaram o sentido. A atividade social de diferencia­ ção, estratificação e confronto que se dá na língua — coisa já entrevista por Bakhtin — a autora chama de sig n ificân cia. Seu efeito é pôr à disposição do sujeito que fala uma cadeia significante, gramaticalmente estruturada e que permite a comunicação. A análise só será factível se o texto for visto no interior de dois quadros de referência: o sistema significante em que se produz; e o processo social no qual participa como discurso. Cada texto pode perturbar e transformar o sistema semiótico que regula o intercâmbio social e, ao mesmo tempo, refletir, no discurso, as forças sociais e suas relações na história. Ambos os planos de referência — língua e sociedade — , em sua expressão no discurso, podem transformar-se concomitantemente: é esse o caso ao mudar qualitativamente o social em forma drástica (nas revoluções, por exemplo); ou, nas práticas discursivas correntes, podem comportar-se com recíproca independência, isto é, o sistema significante pode alterar-se sem que a representação ideológica que veicula sofra qualquer repercussão de sua mudança, ou vice-versa. Note-se que foi esse ponto, no conjunto de idéias da autora, aquele retomado com êxito em seu método pelo antropólogo Marshall Sahlins. Ainda segundo Kristeva, a comunicação pode perceber-se em toda a problemática social, mas nem por isso constitui um objeto adequado. É preciso entendê-la como o produto de uma atividade prévia de produção do sentido na sociedade, em lugar de enfatizar a troca de significações entre indivíduos isolados. O caminho indicado por Kristeva podería levar a uma inde­ pendência maior da semiótica em relação à lingüística e à integração dos

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estudos semióticos no campo das ciências sociais. Não foi, no entanto, o que predominou. Assimilados os efeitos da crítica do signo como objeto privilegiado, muito semiotistas foram de novo buscar na lingüística o seu arsenal de conceitos e enfoques: só que, agora, associando Noam Chomsky a Ferdinand de Saussure. Deve notar-se que, embora os percursos que acabo de resumir possam dar à primeira vista a impressão de mover-se num plano teórico abstrato, a verdade é que, na crítica à noção de signo considerada crescentemente como ingênua, reducionista e atomística tiveram enorme importância certos problemas metodológicos e mesmo relativos a proce­ dimentos técnicos, surgidos no próprio processo de pesquisa concreta em semiótica. Tornou-se claro que os sistemas de que em algum momento se tentou o estudo semiótico não são todos necessariamente sígnicos: ao afirmá-lo, Kristeva estava simplesmente tirando conclusões teóricas de algo muito prático. Nem todos os sistemas significantes abordáveis semioticamente podem ser facilmente divisíveis em unidades; e, quando isso é possível, tais unidades não precisam ser signos. Ao deixar a lingüística centrada em unidades pequenas, que privilegiava a fonologia, da qual então se derivavam guias de estudo para o tratamento dos sistemas não-verbais, foi possível resolver melhor um problema que os especialistas — mesmo os de estrita observância saussuriana — sentiam há muito nas análises semióticas: a necessidade quase invariável de recortes cujas unidades não eram comparáveis ao fonema ou à palavra isolada, e, sim, à frase (ou a unidades ainda maiores, transfrásticas). O sem a (Buyssens, Prieto) era unidade semiótica análoga àquela que a lingüística chamava de enunciado: um signo isolado seria apenas parte de um sema. O m item a de Lévi-Strauss — unidade constitutiva dos mitos — era da ordem da frase ou de um grupo de frases. O b e h a v io re m a ou unidade do comportamento (Pike, Scheflen), também — coisa que Ferruccio Rossi-Landi então generalizou a todos os enun­ ciados não-verbais. A própria passagem da ênfase semiótica dos signos para os sistemas de significação caracterizou-se também por se perceber — retomando idéias de Mikhail Bakhtin — que é nos textos que os sistemas em questão se realizam e podem ser abordados. Assim, o centro das atenções passou para o discurso (enunciação) em sua relação com o texto (enunciado). A prática significante, agora vista como objeto privi­

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legiado, levava a substituir a anterior ênfase sistêmica derivada do estruturalismo lingüístico por outra, mais voltada para a relação entre processo e sistema.



O texto

Em semiótica, todo enunciado verbal ou não-verbal auto-suficien­ te, fechado, dotado de significação e função integrais não passíveis de divisão, pode considerar-se um texto. É possível, então, tratar como textos enunciados orais ou escritos em línguas naturais, mas também filmes, quadros, edifícios etc. Neste capítulo e no seguinte, entretanto, vamos interessar-nos por textos verbais. No capítulo 5, abordaremos filmes como textos. Considerando por enquanto, então, somente textos verbais, o primeiro critério que os define como textos é sua autonomia, que alguns autores chamaram de sua “clausura”. Assim, Iracem a, romance de José de Alencar, é um texto. Mas também o é o grito: /Socorro!/. Pois ambos, independentemente de suas dimensões respectivas, atendem ao critério de clausura ou autonomia. Outro elemento possível na definição de um texto é a chamada coerên cia textual, entendida — no caso, em especial, de textos que contenham várias frases — como aquilo que liga tais frases solidariamente e, desse modo, caracteriza-as como partes de um todo maior. Assim, será um texto qualquer passagem escrita ou falada, de qualquer extensão, que forme um todo coerente. Numa primeira aproximação, examinando a questão da coerência do ponto de vista do ouvinte ou leitor, ela depende do que alguns designam como com p etên cia textual. Sejam, por exemplo, as frases: /Ouviu-se um tiro. A ave caiu./. Não está expresso que a ave caiu p o rq u e um tiro a atingiu, derrubando-a, mas é sem dúvida o que espontaneamen­ te entenderá o ouvinte ou leitor, em virtude de sua capacidade ou competência de perceber as frases mencionadas como fragmentos inter­ ligados de algo maior e coerente, suprindo para tanto as conexões implícitas necessárias. À competência textual vem somar-se a competên­ cia intertextual. Um leitor, por exemplo, ao tratar de entender um texto

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que lê, levará em conta — nem sempre em forma deliberada e consciente — suas experiências anteriores de ouvinte e leitor de textos, confrontando aquele de que se ocupa no momento com outros, o que permitirá contextuá-lo, situá-lo e, por conseguinte, achar os limites dentro dos quais a sua coerência textual pode ser definida. Se olharmos não mais na direção do ouvinte ou leitor, mas na do próprio texto, intuitivamente seria possível afirmar que a coerência é uma propriedade semântica sua segundo a qual cada frase individual dele integrante tem seu significado na dependência do significado das demais frases. Um dos modos de verificar isso seria examinar tais frases na ordem em que foram enunciadas oralmente ou por escrito. Se o texto tiver coerência, o sentido da segunda frase deverá ter como contexto o da primeira; o da terceira, os da primeira e da segunda etc.; o da última frase será contextuado pelos sentidos de todas as que precedem. É possível ir mais longe na análise, porém. Por exemplo, conside­ rando a distinção entre as estruturas superficiais e profundas do texto. As primeiras seriam achadas buscando-se a gramática semiótica que permitiu ordenar em forma de discurso (enunciação de que o enunciado ou texto dependeu para sua geração) os conteúdos passíveis de manifestação e transformação. As estruturas profundas seriam aquelas de tipo lógico-semântico mais básico, compostas de ingredientes semânticos de tipo elementar cujo estatuto lógico e cujo caráter geral possam ser definidos. O anterior supõe considerar o texto como processo semiótico, ou melhor, como uma relação entre estrutura (sistema) e processo. Em razão da distinção entre estruturas sêmio-narrativas e estruturas discursivas strícto sensu, examinada no capítulo 1, Algirdas Greimas e Joseph Courtés propu­ seram um esquema relativo ao percurso gerativo de um texto, ao modo pelo qual o texto pode ser produzido na enunciação: ver o quadro 1. Por discu rsiv ização entendem os dois autores o processo em que, por meio das estruturas discursivas — menos profundas — , as estruturas sêmio-narrativas são postas em discurso pela enunciação. A actorializaç ã o é o processo que institui os atores no discurso, ao passo que a tem p oralização e a esp a cia liz a çã o constroem, nele, os objetos temporal e espacial (os efeitos de tempo e espaço). A semântica discursiva examina a geração dos elementos abstratos (por meio da tem atização) e concretos (por meio da fig u ra tiv iz a çã ó ) do discurso e, portanto, do texto resultante da enunciação empreendida.

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Quadro 1: Percurso gerativo textual segundo Greimas eCourtés PERCURSO NARRATIVO componente sintáxico Estruturas sêmionarrativas

componente semântico

nível profundo

SINTAXE FUNDAMENTAI

SEMÂNTICA FUNDAMENTAL

nível de superfície

SINTAXE NARRATIVA DE SUPERFÍCIE

SEMÂNTICA NARRATIVA SEMÂNTICA DISCURSIVA

SINTAXE DISCURSIVA

Estruturas discursivas

Discursivização Tematização actorialização^ / 1 temporalização | espacialização

Fonte: GREIMAS, Algirdas Julien e COURTÉS, Joseph. 1989, p. 209.

Figurativização

D icio n ário de semiótica.

São Paulo: Cultrix,

Com efeito, os atores, por exemplo, podem ser figurativos (Pedro, uma jovem, a cigarra e a formiga da fábula etc.) ou temáticos (o destino; ou o marido, no sentido genérico, digamos, de um código civil). Vê-se que o enfoque de Greimas e Courtés se move no nível de uma gramática semiótica e narrativa, o que o torna especialmente pertinente para consideração neste livro, dadas as opções que explicitei desde o início.



O quadrado sem iótico

Elaborado gradualmente por Algirdas Julien Greimas conforme ia avançando em seus estudos, o quadrado semiótico constitui-se em apresentação gráfica, visual, da articulação de uma categoria semântica, isto é, de um elemento de significação achado num discurso dado, do qual é a estrutura profunda, o núcleo do sentido. O ponto de partida do quadrado semiótico são dois termos geradores, si e S2 , que apresentam entre si uma relação de contrariedade

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(entenda-se: contrariedade constatada n o texto d e qu e se estiver tratando, não sempre ou em qualquer texto). A seguir, com base em cada termo gerador deriva-se o seu oposto, ou seja, o termo com que mantém uma relação de contradiloriedade: surgem assim -si e - S 2 , com os quais, pondo-os cada um em diagonal relativamente ao seu oposto, surge o quadrado semiótico. Se os termos geradores são chamados de contrários, os seus opostos serão os subcontrários. Si e S2 são contrários porque, no interior do texto examinado, a negação de um implica a afirmação do outro (ou, no mínimo, p o d e implicá-la) e vice-versa. Assim, -S2 implica si e -si implica S2 . Em outras palavras: existe uma relação de complementa­ ridade entre -S 2 e si ou entre -si e S2Formalizemos, então, o quadrado semiótico, examinando a sua nomenclatura:

--------- * representa uma relação de contradição ..........». representa uma relação de contrariedade recíproca ---------. representa uma relação de complementaridade si — S2 ; eixo dos contrários -S2 ----- si: eixo dos subcontrários s i ------si: esquema positivo S2 ------S2 : esquema negativo si —- -S2: dêixis positiva S2 -----si: dêixis negativa Observe-se que “positivo” e “negativo” são, em tal nomenclatura, convenções espaciais (posicionais), não implicando de forma alguma uma valoração: não se quer dizer, com base no esquema, que “positivo” seja “bom” e “negativo” seja “mau”, ou vice-versa. O quadrado semiótico admite dois percursos e som en te dois: de si a S2 passando por -si; e de S2 a si passando por -S2. Nos casos em que -S2 em relação a si ou -si em relação a S2 apareçam como condição necessária mas não suficiente — como uma

negação necessária para que se chegue à afirmação seguinte, mas não suficiente para garanti-la — , o que ocorre bastante amiúde, a relação de implicação ou complementaridade ficará enfraquecida na dêixis corres­ pondente. Isso acontece nas oposições que não sejam categoriais, e, sim, graduais (ver o capítulo 1 a esse respeito), já que as oposições graduais exigem considerar possíveis posições intermediárias. É assim que /não pobre/ pode ou não implicar /rico/, posto que se trata aqui de uma oposição gradual e há situações intermediárias. Vamos exemplificar o funcionamento, na análise textual, do qua­ drado semiótico com sua aplicação a um texto. Lá, n u m a d as g ra n d es caix as, d as q u ais havia cin q ü e n ta n o total, jazia o C o n d e so b re um m o n te d e terra re c e n te m e n te escav ad a! Estava m o rto o u a d o rm e cid o , eu n ã o pod ia d ecidir: p o is o s o lh o s e sta v a m a b e rto s e im ó v eis, m as sem o ar v id rad o d a m o rte; as b o c h e c h a s tin h am o ca lo r da vida a p e sa r d e toda a su a p alid ez; e o s lá b io s esta v a m v erm elh o s c o m o sem p re. Mas n ã o h av ia sin al d e m o v im e n to , n e m p u lso , n em re sp ira çã o , n e m o c o r a ç ã o p alp itava. In clin e i-m e s o b r e e le e ten tei a c h a r algu m sinal d e vid a, m as e m v ã o . E le n ã o p o d eria ter e sta d o ali d eitad o p o r m u ito te m p o , p o is o ch e iro d e terra ter-se-ia d isp e rsa d o em um as p o u c a s h o ras. A o la d o da c a ix a estava a tam p a d esta, q u e ap resen tav a fu ros aq u i e ali. Eu p e n s e i q u e e le p o d eria te r c o n sig o as ch av es, m as q u a n d o c o m e c e i a rev istá-lo vi o s o lh o s m o rto s e n eles, a p e s a r d e m o rto s e se m c o n s c iê n c ia d e m inh a p re s e n ç a , um tal o lh a r d e ó d io q u e eu fugi d a q u e le lugar.

Fonte: STOKER, Bram. Dracula. Anotado por Raymond McNally e Radu Florescu. Nova York: Mayflower Books, 1979, p. 78. O romance foi publicado pela primeira vez em 1897.

A oposição entre /vida/ e /morte/ é privativa (ver o capítulo 1) e ao mesmo tempo categorial: /não-morto/ implica /vivo/ e /não-vivo/ implica /morto/. No entanto, no texto vemos que o vampirismo, em literatura, baseia-se num paradoxo: a atenuação da oposição entre vida e morte; o vampiro é um “não-morto” ( u n dead) sem estar “vivo” de verdade. O resultado é a ambigüidade: o narrador “não podia decidir” se o Conde estava morto ou adormecido. Essa impressão de ambigüidade é reforçada pela convenção, freqüente no gênero do horror literário, de fazer irromper o sobrenatural no cotidiano sem que este último seja por tal razão abandonado ou negado: o resultado ambíguo disso decorrente rege esta passagem, mas também, de fato, todo o romance.

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Veja-se, abaixo, o quadrado semiótico que proponho para aná­ lise do texto. No quadrado em questão, /Drácula vivo/ e /Drácula morto/ são os termos geradores si e S2 , em relação de contrariedade; deles derivam seus opostos (elem entos contraditórios, postos em diagonal): /Drácula não-vivo/ e /Drácula não-morto/, correspondentes a -si e -S 2 , o primeiro implicando /Drácula morto/, uma implicação perfeitamente natural segundo as regras correntes; e o segundo impli­ cando /Drácula vivo/, uma implicação de todo antinatural no mundo de todos os dias. Os percursos no quadrado vão de /Drácula vivo/ a /Drácula não-vivo/ e daí a /Drácula morto/; ou de /Drácula morto/ a /Drácula não-morto/ para desembocar em /Drácula vivo/. O texto mantém a ambiguidade ao não escolher entre tais percursos. Drácula vivo

(Si) - (estava) "adormecido" - "os lábios estavam vermelhos como sempre" - "os olhos estavam abertos" - "as bochechas tinham o calor da vida"

Drácula não-morto l-Sz) - (olhos) "sem o ar vidrado da morte" - "neles (nos olhos), apesar de mortos... um tal olhar de ódio..."

Drácula morto

M - "...numa das grandes caixas (...) jazia o Conde (. ..)!" - "Estava morto..." - "olhos mortos... e sem consciência de minha presença" - "palidez"

Drácula não-vivo

l-Si) - "não havia sinal de movimento, nem pulso, nem respiração, nem o coração palpitava." - "tentei achar algum sinal de vida, mas em vão."

Em certos casos é possível, ao se trabalhar com o quadrado semiótico, introduzir m etaterm os, isto é, termos que liguem entre si as diferentes situações. Os metatermos que realizam a conjunção dos con­ trários são chamados de term os m ed iad ores; os que juntam subcontrários são os term os neutros-, também são possíveis metatermos unindo as duas situações de cada dêixis.

No primeiro exemplo, abaixo, os metatermos são “redenção” e “perdição” -vida eterna Si A

morte eterna — S2 A

redenção

perdição

justificação -S2

pecado



-S i

O segundo exemplo procede também da teologia cristã: pecado venial conjunção com a criatura S2

conjunção

pecado mortal

santidade

separação de Deus -Si

separação da criatura -S2

O “pecado venial” aparece, aqui, como termo mediador; “santida­ de” e “pecado mortal” são metatermos. Mais um exemplo: moral

imoral

-S2

-Si

I____________________________I amoral

“Amoral” é, nesse caso, um termo neutro (“amoral” é o que não é nem “moral” nem “imoral”).

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Passaremos agora a outro assunto: o investimento afetivo ou emocional que pode ocorrer no relativo a uma ou a ambas as dêixis do quadrado semiótico, chamado de investim ento tím ico (do grego thymós). Se acontecer, a dêixis assim afetada ver-se-á valorizada em forma positiva ( eu fórica) ou negativa ( disfórica); a ausência de conotação tímica confi­ gura atitude neutra ( a fó rica ). Posta no quadrado semiótico, a categoria tím ica aparece assim:

-S2

-Si

I_______________________________ I aforia

Um caso especial a ser considerado é quando, entre os termos si e a relação for de contraditoriedade em lugar de ser contrária. Teríamos, então, o que se pode chamar de categoria bin ária stricto sensu: aquela em que a negação de seus termos geradores produzir implicações tautológicas nas dêixis, em lugar das habituais relações de implicação complementar. Em outras palavras, teremos -S 2 = si e -si = S 2 . Vejamos um texto como exemplo. Trata-se de passagem de um discurso de Himmler, ministro do Interior do Terceiro Reich e chefe das SS, pronunciado diante dos comandantes SS na Polônia ocupada, em 4 de outubro de 1943S 2,

A reg ra a b solu ta d o SS d ev e ser e ste p rin cíp io e sse n c ia l: n ó s d e v e m o s se r h o n e sto s, leais e b o n s cam arad as para c o m to d o s o s m e m b ro s d e n o ssa p ró p ria raça — e p ara c o m m ais n in g u ém . O q u e a c o n te c e a u m ru sso o u a u m tc h e c o n ã o m e in teressa em a b s o lu to . O q u e as ou tras n a ç õ e s n o s p o ssa m o fe re c e r c o m o b o m s a n g u e d e n o ssa p ró p ria e s p é c ie , n ó s o to m a rem o s se fo r p re ciso a p o d e ra n d o -n o s d e seu s filh os e cria n d o -o s c o n o s c o . Q u e n a ç õ e s in teiras seja m p ró sp e ra s o u m orram d e fo m e , isso só m e in teressa na m ed id a em q u e d elas te n h a m o s n e c e ss id a d e c o m o e scra v o s: d e o u tro m o d o , n ã o têm in te re sse algu m para m im . S e d ez mil m u lh e re s ru ssas to m b a rem d e e sg o ta m e n to cav a n d o um a trin ch ei­ ra a n tita n q u es, o q u e m e in teressa é q u e a trin ch eira an titan q u es

p ara a A le m a n h a seja c o n clu íd a . N ós, o s a le m ã e s, q u e so m o s o ú n ico p o v o d o m u n d o q u e é b o m para o s an im ais, n ó s s e re m o s b o n s ta m b é m para e sse s an im ais hu m an o s.

Fonte: BONNOl JRF, P. et alii. pasta 5, ficha número 35.

Documents d'histoire vivante.

7 pastas. Paris: Éditions Sociales, 1962.

Veja-se, abaixo, a interpretação, num quadrado semiótico, do sentido essencial do texto. Os “alemães” (“nós") e “os outros” (no discurso representados em sinédoque: “russo”, “tcheco”, “mulheres russas”, “nações inteiras”) estão em relação não de contrariedade, mas de contraditoriedade. Nas dêixis não traçamos desta vez, por tal razão, flechas indicativas de implicação, e, sim, o sinal de igualdade que indica identidade (tautologia). O investimento tírnico valoriza positivamente a dêixis da esquerda, negativamente a da direita. Os “arianos” que estiverem incluí­ dos em “outras nações" aparecem como “não-outros” em nossa análise: o texto vê tal inclusão em nações nâo-arianas como um erro a ser reparado (quando diz do sangue ariano concernido: “nós o tomaremos”).

Nós (= os alemães) Si

- "nossa própria raça" - "nossa própria espécie'

nos possam oferecer como bom sangue de nossa própria espécie..."



Os outros S2 - "escravos" - "animais humanos" - "outras nações"

Não-nós -S2 - "russo", "tcheco", "mulheres russas", "nações inteiras"

O grupo d e Klein

Temos aqui um modelo matemático cujo uso passou da psicologia à semiótica. Consiste num conjunto dotado de uma lei interna tal que organiza os elementos 1 (neutro), a, b e ab segundo o esquema seguinte:

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a = o oposto de 1; b = o inverso de 1; ab = ao mesmo tempo o oposto e o inverso de 1; 1 = elemento neutro (nem a nem b).

Se o elemento 1 (neutro) for designado por x, então teremos: a = -x; b = 1 X;

ab = -1 x

Ou seja, construindo o gráfico do grupo de Klein (ou “grupo de quatro de Klein”): 1 |x|

f ---------------------------------- »•

a (-x|

D |l| X

de um julgamento individual. O século XVIII foi um divisor de águas, levando a um divórcio social e cultural entre a devoção popular e a polêmica erudita. A estatística ocupa um lugar relativamente reduzido no livro de Gaby e Michel Vovelle. O mesmo se pode dizer do artigo consagrado em 1973 por Maurice Agulhon às representações alegóricas da República na França do século passado. Nesses mesmos anos, entretanto, o aperfeiçoa­ mento dos computadores e sua crescente utilização por historiadores já estavam assentando novas possibilidades, pelo estabelecimento informá­ tico de fic h ã r io s d e imagens, que podiam ser objeto de uma análise quantitativa mais sofisticada, aplicada a séries maciças. Essa tendência metodológica, bem como as temáticas que a utilizam, confirmaram-se depois, até diminuir na voga atual dos estudos culturais, decididamente antagonística à quantificação. O que não quer dizer, claro, que a última palavra tenha sido dita a respeito, já que as modas vêm e vão. O computador continua a ser muito utilizado, mesmo hoje, para o estabele­ cimento de bancos de dados sistemáticos de imagens agrupadas por categorias, e isso também por historiadores. Se passarmos, agora, à preocupação com as imagens como possí­ vel objeto de história, muitos foram os caminhos que ela trilhou — no fundo, porém, insuficientemente até a atualidade. A história da arte foi, e nas suas tendências dominantes ainda é, disciplina metodologicamente reacionária, marcada por uma forte carga de empirismo e positivismo, pelo desejo de fechar a arte sobre si mesma, muitas vezes por concepções organicistas de nascimento, expansão, apogeu e decadência. Desde fins do século passado, no entanto, a escola austríaca, a partir de Alois Riegl e Franz Wickoff, reagiu contra alguns desses traços, em especial no tocante à noção de decadência artística. A polêmica entabulou-se a propósito do Baixo Império Romano. A arte da Antiguida­ de tardia, habitualmente considerada uma degenerescência da arte grecoromana, foi resgatada como possuidora de uma sensibilidade estilística viva e inovadora, nascida de valores novos e servindo de ponto de partida para novos desenvolvimentos. Mas Riegl acreditava na noção de vontade ou intencionalidade artística (Kunstwollen), opondo-se a qualquer inter­ pretação que buscasse ver nas obras de arte um reflexo de realidades de outros tipos: sociais, econômicas, ideológicas etc.

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No nosso século surgiu uma interessante sociologia da arte que, de diversos modos, tentou correlacionar as artes plásticas (entre outras) com seu contexto social. As respostas sobre como estabelecer tal correlação variaram. Alguns viram a imaginação artística enraizada na vida social, mas de forma a surgir como uma extrapolação que, para além das experiências reais, formulasse antecipadamente experiências novas, como numa aposta sobre aspectos futuros da existência. Outras muitas soluções foram propostas. Parece-me, no entanto, que os debates a respeito não desembocaram com freqüência em metodologias claramente indicadas. Tal é o caso, creio, da sociologia da arte de Pierre Francastel, tal como foi proposta na década de 1960, a qual continha indicações cie método amplas demais e muito vagas, como também ocorre com formu­ lações mais recentes do mesmo autor, voltadas agora de preferência para problemas derivados de uma psicologia da percepção historicamente considerada. Em ambos os casos, alguém que quisesse apoiar-se nessas indicações de Francastel para empreender pesquisas concretas teria, antes, de construir uma metodologia operacional para abordar cada uma das direções ou problemáticas que aponta. O mesmo, por certo, se pode dizer do marxismo no tocante à relação entre arte e vida social. Indicações teorizantes abundam em G. Plekhanov, G. Lukács, E. Fischer, W. Benjamin, entre muitos outros. Mas, se uma metodologia não pode existir sem fundamento teórico, também é verdade que este último não garante por si mesmo o surgimento de métodos aplicáveis que possam orientar pesquisas. A tentativa talvez mais ambiciosa de fundar no marxismo — em versão derivada de Althusser — uma metodologia para a história da arte, a de Nicos Hadjinicolaou, faz críticas pertinentes à disciplina tal como existia então, mas decepciona terrivelmente ao formular propostas concretas e especí­ ficas de método. Flouve tentativas no sentido de uma renovação metodológica por meio de uma aproximação à teoria do inconsciente. Desde as próprias tentativas de Freud nesse sentido (que não foram numerosas especifica­ mente quanto às artes plásticas), há uma ambigüidade persistente: buscase explicar psicanaliticamente a gênese da obra de arte, ou o sentido (e o efeito) da própria obra? Outro problema, que aliás é o de toda a história de base psicológica até agora, consiste no caráter indireto da explicação e da comprovação psico-históricas.

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Por sua grande influência sobre historiadores fora da área mesma da história da arte, merecem menção especial Panofsky e -— talvez em menor medida, embora seu influxo sobre alguns semiotistas (Umberto Eco, por exemplo) tenha sido considerável — Gombrich. Erwin Panofsky (1892-1968) concebeu o projeto de uma disciplina, a iconologia, cuja finalidade seria atingir o sentido objetivo imanente das obras de arte. Sob forte influência da filosofia das formas simbólicas de Krnst Cassirer, sua teoria parte da definição do espaço pictórico, não como forma a p riori da percepção nem como convenção arbitrária, mas, sim, como espaço de representação articulado de modo específico, o qual expressa na sua totalidade as formas simbólicas de uma sociedade. Partindo da crítica do formalismo, do psicologismo e do empirismo antiteorizante, a iconologia de Panofsky tem a pretensão de ultrapassar a superfície fenomênica da obra para atingir as estruturas ocultas do sentido, percebendo, assim, as ligações profundas da arte com a cultura e com a ideologia sociais. Esse projeto ambicioso foi muito limitado por duas circunstâncias. Em primeiro lugar, pela crença em que a verificação da interpretação que se propusesse das artes plásticas deveria passar necessariamente pelo seu confronto com os textos de época, o que no fim das contas prejudicava o projeto da iconologia como disciplina voltada para as estruturas específicas das imagens (uma teoria do significante icônico). Em segundo lugar, porque os trabalhos de Panofsky ativeram-se preferencialmente a uma única tradição artística, a do Ociden­ te cristão (há uma exceção, seu texto sobre a arte egípcia antiga, mas é decepcionante). Isto impediu um aprofundamento e uma universalização efetivos de seus métodos de leitura e interpretação. Seus discípulos não resolveram tais problemas, antes os agravaram. É preciso reconhecer, porém, os aspectos positivos dessa tentativa de tratamento coerente e teorizado dos objetos produzidos pelas artes visuais. Um membro proeminente da Escola de Viena, discípulo de Schlosser, E.H. Gombrich, posteriormente instalado em Londres, embora afas­ tando-se do enfoque psicanalítico, acha que o historiador da arte, como o psicanalista, são decifradores de sonhos. Mas um deles interroga o objeto, o outro, o sujeito. E, para Gombrich, a arte responde esteticamente a um problema também estético, não psicológico. Criticando a tendência contextualizadora em história da arte, estuda o processo de criação pondo a ênfase no ser humano individual: o que lhe interessa é saber o que de

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lato acontece quando alguém realiza uma imagem. Na prática, seus escritos parecem buscar um equilíbrio entre o formalismo e as formas culturais, usando apesar de tudo elementos de psicologia da arte. Umberto Eco apóia-se em Gombrich em sua crítica da concepção peirciana da iconicidade, com o fito de estabelecer o ca rá ter co n v en cion al dos códigos imitativos, usando abundantemente exemplos tirados da obra do mencio­ nado historiador da arte.



A q u estão da iconicidade

Considerando-se os pais da semiótica contemporânea — Peirce e Saussure — , o primeiro foi quem influiu decisivamente nas discussões acerca do enfoque semiótico da imagem: sua noção de signo icôn ico é, com efeito, o ponto de partida, seja que nela se busque apoio, seja, pelo contrário, que sua crítica origine as posições que se defendam. Peirce define o ícone, em uma de suas classificações dos signos, como aquele signo cuja base é “uma qualidade que ele possui” como coisa, a qual “torna-o apto a ser” um signo. Em outras palavras, um signo é icônico quando representa “seu objeto principalmente por similarida­ de, independentemente de seu modo de ser”. Assim, “qualquer coisa” pode ser um ícone de algo, “na medida em que é semelhante a esse algo e usado como signo dele” (Pierce 1975, pp. 116, 101). Na classificação aludida dos signos, o ícone (que guarda com o objeto uma relação de semelhança, portanto “natural”) opõe-se ao índice (relação de contigüidacle) e ao símbolo (relação que depende da convenção social). Veremos que, desde a década de 1960, a noção peirciana de signo icônico é objeto de forte ataque com o fito de mostrar o caráter convencional também dos elem entos que garantem a semiose dos objetos icônicos. É pois justo salientar que Peirce, mesmo se sem dúvida afirmasse a relação de similaridade com o objeto, também era claro ao sublinhar que “qualquer imagem material, como uma pintura, por exemplo, é amplamente convencional em seu modo de repre­ sentação” (Peirce 1975, pp. 116). O ícone seria, então, um signo que, na relação signo/objeto, indica uma qualidade ou propriedade, designando um objeto ao reproduzi-lo

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ou imitá-lo, pelo fato de possuir certas características (uma ao menos) em comum com o objeto em questão. Seriam ícones quadros, desenhos, fotografias; mas também modelos, esquemas, metáforas etc. Os signos icônicos teriam percepção imediata, seriam imediatamente comunicati­ vos. Outrossim, sua qualidade de ícones permanecería mesmo no caso em que seu objeto não tivesse existência empírica: é o caso, por exemplo, da representação pictórica de um unicórnio. A relação do ícone com aquilo que representa nunca é completa, e, sim, parcial. Ele coincide com seu objeto numa série finita de traços, o que quer dizer que todo ícone tem aspectos icônicos e não-icônicos. E o ícone sempre aparece composto de ícones parciais menores: assim, ao se representar pictoricamente um rosto, o ícone maior do rosto completo comporta ícones menores das diversas partes (boca, olhos, nariz etc.). Desde a década de 1960, Peirce e seu continuador Charles W. Morris estiveram sob forte ataque no concernente ao iconismo. Isto se deu num processo em tudo paralelo àquele que conduziu, primeiro, da semiótica sígnica da comunicação à semiótica da significação e, em seguida, à crítica radical da própria noção de signo — coisa de que falamos na parte inicial do capítulo 3- No que teve a ver mais especifica­ mente com a questão das imagens, a crítica ao iconismo se deu no duplo sentido de demonstrar o caráter convencional dos signos icônicos e de afirmar que cada imagem deve ser encarada como um texto. Tomemos como exemplo Umberto Eco (como já disse, neste ponto fortemente apoiado em Gombrich, em especial no tocante às exemplificações tomadas da história da arte). A posição desse autor foi primeiro intransigente; em seguida, em virtude de certas críticas sofridas, passou à postura que ele mesmo chamou de “mais cautelosa”. No momento inicial de sua crítica ao iconismo, então, Eco foi taxativo: ...os signos icônicos não possuem as propriedades do objeto representado, mas, sim, reproduzem algumas condições da per­ cepção comum, baseando-se em códigos perceptivos normais e selecionando os estímulos que, com exclusão de outros, permitem construir uma estrutura perceptiva que, fundada em códigos da experiência adquirida, tenha o mesmo “significado” que aquele da experiência real denotada pelo signo icônico. (Eco 1975, p. 222)

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A noção mesma de um signo motivado e não arbitrário, isto é, um signo que não dependesse da convenção representativa e, sim, adquirisse sentido pela própria coisa representada, com a qual teria semelhança natural ou da qual reproduziría alguns aspectos, seria ingênua, calcada nas aparências, em lugar de resultar da análise. Tal análise, como a empreende Eco, leva-o a afirmar que representar iconicamente um objeto significa transcrever, por meio de artifícios gráficos, as propriedades culturais — convenções sociais, portanto — que lhe são atribuídas. Uma cultura, ao definir seus objetos visuais, remete a códigos d e recon h ecim en ­ to que indicam traços pertinentes caracterizadores do conteúdo. Um código d e rep resen tação icô n ica estabelece quais os artifícios gráficos correspondentes aos traços do conteúdo, ou, com maior exatidão, aos elementos considerados pertinentes, os quais são fixados (selecionados) pelos códigos de reconhecimento. Existem, portanto, blocos de unidades expressivas que remetem não ao que se vê, mas, sim, ao que se sabe, ao que se aprendeu a ver. Um esquema gráfico reproduz as propriedades relacionais de um esquema mental. Os traços pertinentes do conteúdo fixados pelo código são de ordem óptica (codificação de experiências anteriores de percepção), on tológica (propriedades perceptíveis cultural­ mente selecionadas) e p u ra m en te co n v en cio n a l (convenções iconográficas difundidas). Em escritos da década de 1970, Eco suavizou sua crítica a Peirce e Morris em um sentido pelo menos, ao mostrar que “certos tipos de signos são culturalmente codificados” sem ser, por tal razão, “totalmente arbitrá­ rios”: com isto, a categoria de convencionalidade se torna mais flexível. O motivo da nuance foram críticas "que o levaram a ver que o resultado lógico de uma posição taxativa a respeito da codificação arbitrária dos signos da representação icônica seria conceber tais signos como analisáveis em unidades pertinentes e sujeitos a uma múltipla articulação, como no caso dos signos verbais, o que não parece ser verdadeiro ou pelo menos, na época, não dava a impressão de ser factível metodologicamente. O mais importante talvez seja, nesta posição modificada, a ênfase em que o abandono do iconismo e, portanto, dos signos icônicos desemboca em descartar a própria noção de signo como central à semiótica, em favor da noção de semiose: já não se trataria de discutir os tipos de signos, e, sim, os “modos de produzir funções sígnicas” (Eco 1980, pp. 169-190).

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Em nosso fim de século, suspenso entre o ceticismo niilista e o pansemiotismo, a posição de Eco tendeu a predominar. Os semiotistas, em qualquer exemplo de uma relação semiótica que pareça envolver o mundo exterior ao texto, falarão de uma ilusão referencial, definindo-a como conjunto de procedimentos que resultem na produção de um efeito ou ilusão de realidade, segundo dois elementos condicionantes: a con­ cepção do que é a “realidade” (aliás, cultural e historicamente variável); e uma ideologia realista que é partilhada pelos produtores e usuários das representações pretensamente realistas. Assim, a ilusão referencial existi­ da na dependência, não de um processo de denotação, e, sim, de um sistema de conotações sociais subjacentes aos processos de semiose que estiverem agindo no exemplo de que se tratar no momento (Courtés 1991, pp. 40, 43, 55, 169, 258, 271). A imagem visual é, então, encarada como um todo fechado de significação: um texto suscetível de análise. Na chamada sem iótica p la n a r contemporânea, a imagem define-se como um texto-ocorrência em que a iconicidade não passa de um juízo, uma conotação veridictória cultu­ ralmente determinada. A designação “planar” se deve a que a semiótica em questão estuda significantes bidimensionais contidos num plano: foto, imagem cinematográfica ou televisiva, cartaz, história em quadrinhos, pintura, planta urbana ou arquitetônica etc. Em oposição a um iconismo à maneira de Peirce, isto é, baseado na analogia ou na similitude, interessa-se em estabelecer categorias visuais específicas no nível da expressão, previamente à procura de suas relações com o nível do conteúdo. Também pesquisa as coerções que o caráter bidimensional impõe à manifestação das significações. Interessa-se na busca de formas semióticas mínimas: relações, unidades, sememas.



Análise sem iótica de filmes

O interesse pelos filmes da parte dos historiadores já não é novo. Lembrei a inclusão de capítulos a respeito da fotografia e do cinema em importante manual francês de metodologia da história em 1961. Recordei, também, um relevante texto metodológico de Marc Ferro, derivado de

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suas experiências concretas de pesquisa. O texto de Ferro fica a meio caminho entre o cinema visto como fonte e como objeto:

Partir da imagem, das imagens. Não procurar somente, nelas, ilustrações, confirmações ou desmentidos de um outro saber, o da tradição escrita. Considerar as imagens tais quais são, mesmo se for preciso apelar para outros saberes para melhor abordá-las. (Ferro 1974, p. 240) O autor esperava, com efeito, entender tanto a realidade figurada cinematograficamente quanto a própria obra. No entanto, predomina no seu texto a preocupação com o uso da fonte cinematográfica para revelar, decodificando os filtros ideológicos, um “conteúdo latente”, uma realida­ de social externa de que o filme seria a imagem. Ferro não inclui a semiótica entre seus instrumentos de análise. O filme é por ele observado como “um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são só cinematográficas” (Ferro 1974, p. 246): tratar-seia, em suma, de um testemunho. O trabalho do historiador nem sempre se apóia na totalidade das obras: pode usar seqüências ou imagens destacadas, compor séries e conjuntos. E deve integrar o filme ao mundo social, ao contexto em que surge — o que implica a pertinência do confronto da obra cinematográfica com elementos não-cinematográficos: o autor, a produção, o público, o regime político e suas formas de censura... A proposta metodológica de Ferro nada tem a ver com a semiótica, portanto. O mesmo se pode dizer de outros enfoques, dentro e fora da história, incluindo alguns que não negam o caráter “sígnico” do objeto fílmico. É o caso, por exemplo, de Pierre Francastel. O cinema é, para este, uma arte plástica baseada, como as outras, em convenções sociais:

Esteja a superfície plástica coberta, quer com imagens sucessivas, quer com imagens fixas, o que nela aparece nunca é o real. Mesmo apesar dos múltiplos ângulos que, apesar de tudo, aparecem limitados, apesar da sua mobilidade e da possibilidade de fazer infinitas repeti­ ções, a câmara monocular é um sistema de registro tão artificial como os outros. Os objetos fílmicos não são nem mais nem menos

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verdadeiros do que os objetos desenhados. Uns e outros são signos, na plena acepção do termo, isto é, organização de linhas, cuja finalidade é uma fragmentação alusiva da superfície. (Francastel 1987, p. 167) Os modos de estudo indicados por Francastel trilham, porém, caminhos estranhos à semiótica. Ele se interessa pelo cinema visto por meio da função do imaginário, fenômeno intelectual vinculado a outro, de base, que é o da fisiologia e da psicologia da percepção: a imagem fílmica, como as outras imagens, resulta de uma forma de atividade mental construtiva. Se bem que certos campos de estudos históricos — o das figura­ ções presentes na cerâmica grega antiga, por exemplo — tenham incor­ porado modos semióticos de trabalhar, tal não ocorre de ordinário quanto às pesquisas de historiadores que tomem o cinema como fonte ou como objeto. O que não quer dizer que não haja uma semiótica do cinema. Ela existe, há várias décadas, quase sempre numa linha deutero-saussuriana, em obras de autores como Christian Metz ou V.V. Ivanov. Exemplificare­ mos com o primeiro, que foi provavelmente o mais importante semiotista do cinema nessa linha, sem dúvida o mais influente. Metz distingue quatro maneiras de estudar o cinema: a crítica de cinema, a história do cinema, a teoria do cinema (Eisenstein, Bela Balazs, André Bazin) e o que chama d e film olog ia, ou seja, o estudo científico e “externo” do cinema feito por psicólogos, sociólogos, pedagogos etc., entre os quais ressalta G. Cohen-Séat e E. Morin. Em sua opinião, chegara o momento, nesses estudos, de efetuar uma aproximação com a lingüística e a semiótica (para ele, semiologia), tarefa a que se dedicou nos anos 60 e 70 sobretudo. Os escritos de Metz até certo ponto parecem parado­ xais. Isto porque ele, vivendo a crise da semiótica da comunicação e a crise da própria noção de signo, viu claro em muitos aspectos: o caráter radicalmente narrativo do cinema; o papel primordial, nele, do “discurso à base de imagens” como veículo específico que o advento dos filmes inaugura historicamente; o fato de que as pesquisas semióticas (semiológicas em seu vocabulário) invariavelmente conduziam a unidades da ordem da frase ou do conjunto de frases, e não da palavra ou de unidades ainda menores. Entretanto, não se libertou da posição deutero-saussuria­ na de que partiu o suficiente para tirar todas as conseqüências dessa sua clareza analítica.

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Tem-se a impressão de que esbarrou numa constatação para ele central: o cinema seria uma “linguagem sem língua”. Seu discurso à base de imagens não conhece a dupla articulação típica das línguas naturais. O p la n o , considerado como unidade menor de um filme, é uma espécie de equivalente de uma frase completa: assim, se mostra um homem a caminhar numa calçada, equivale à frase “eis aqui um homem que caminha numa calçada”; e não a “homem”, “caminhar” ou “calçada” tomados isoladamente. E a seq ü ên cia cinematográfica, ao integrar vários planos, é de ordem ainda superior. Outrossim, tudo isso se deveria entender como “mensagem rica com código pobre”, como fenômenos da ordem da f a l a e não da língua, para usar o vocabulário de Saussure. Dizemos ter a impressão de que o autor em pauta esbarrou em conside­ rações assim porque, se na época se entrevia uma lingüística do discurso que poderia ser mais adequada como ponto de referência para a semiótica do cinema, ela ainda não aparecera com suficiente clareza no tocante a possibilidades metodológicas palpáveis. Uma das soluções oferecidas por Metz para as análises concretas consiste em formalizações prévias ou parciais, talvez as únicas possíveis, dizia, na etapa em que se encontrava a semiótica do cinema. Tais formalizações proviríam, para começar, da taxonomia das matérias de expressão que intervém no filme (imagens fotográficas ou eletrônicas móveis e múltiplas, menções escritas que apareçam na tela, palavras gravadas, sons musicais gravados, ruídos gravados), com atenção ao que o meio estudado tem de comum com outros ou de específico, o que permitiría esclarecer os traços pertin en tes d a m atéria do significante fílmico. Em seguida, já que não é possível distinguir nos filmes unidades discretas comuns ou obrigatórias nem elementos de “gramaticalidade”, a saída metodológica para avançar nas formalizações poderia ser esta:

É preciso trabalhar em modelos parciais, e mesmo duplamente parciais: parciais em relação a dois eixos. Parciais, em primeiro lugar, porque cada um deles se refere a certa classe de filmes (e não ao “cinema”), a certo campo de aceitabilidade para cuja definição podemos inicialmente basear-nos na existência histórica dos gêneros fortes-, faroeste clássico, “filme negro” norte-americano dos anos 1940-1950 etc. (Metz 1974, p. 45)

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O meu próprio ponto de partida não está em Metz, porém. Baseio-me, para começar, em Emilio Garroni. Este, como Metz, percebe a complexidade da mensagem cinematográfica: além dos textos semioticamente explícitos que a integram, há ainda outros, implícitos mas intrinsecamente indispensáveis ao cinema como meio expressivo e comu­ nicativo (roteiro, montagem, movimentação de câmeras). Também rejeita a assimilação do cinema a uma “língua”, bem como ser possível uma semiótica homogênea do filme. Sua proposta se concentra nas relações existentes, no filme, entre imagem e palavra, em termos de uma semiótica heterogênea ou conotativa, referindo-se às considerações a respeito de L. Hjelmslev. A semiótica conotativa é aquela em que o plano da expressão é uma semiótica completa e o plano do conteúdo, um “conotador” — entenda-se, um conjunto de convenções e restrições. Um exemplo é o da poesia encarada de tal maneira: o plano da expressão é a semiótica da língua natural; o plano do conteúdo são convenções (variáveis conforme a época) e restrições métricas, formais, estilísticas. No caso do cinema, entretanto, ambos os planos são semióticas completas pelo menos poten­ cialmente, motivo pelo qual são previsíveis três possibilidades, assim definidas por Garroni:

Verificam-se, dentro de tal hipótese, ao menos dois, ou antes três (como veremos), interessantes subcasos ou especificações de um modelo heterogêneo: primeiro que tudo (isto é, para os primeiros dois casos) como plano da expressão pode funcionar o próprio processo enquanto referível a um modelo lingüístico e como plano do conteúdo o próprio processo enquanto referível a um modelo perceptivo-figurativo, ou vice-versa. (...) Ora, no primeiro subcaso, a linguagem verbal tem uma função distintiva em relação à imagem: a linguagem tem pois o papel de semiose-guia e a imagem o papel de conotador. (...) No segundo subcaso, a imagem tem uma função distintiva em relação à linguagem verbal: a imagem tem pois o papel de semiose-guia e a linguagem o papel de conotador. (...) Mais interessante para nós um possível terceiro subcaso: o de um modelo formal heterogêneo em que não se possa estabelecer propriamente nem um plano da expressão nem um plano do conteúdo, enquanto especificáveis respectivamente num mode­ lo lingüístico e num modelo figurativo-perceptivo (ou, em suma, palavra e imagem), ou vice-versa, sendo os dois planos

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especificáveis simultaneamente, segundo uma fusão de “indiferen­ ça” e não de “equivocidade” (...) em palavra e imagem. (Garroni 1980, pp. 364-367) Observe-se que as três possibilidades ou os três subcasos que especifica Garroni tanto podem aplicar-se a tipos de filmes, ou a filmes' completos, quanto, talvez com maior freqüência, a partes ou aspectos de filmes. Assim, no primeiro subcaso seriam paradigmáticos o teatro filma­ do, as aulas filmadas, os documentários; no segundo, os filmes publicitá­ rios, os de propaganda política, os pornográficos; no terceiro, os “filmes de arte”: ou, como se disse, em cada caso, incluir-se-iam passagens ou aspectos de diferentes filmes analisados. Com base nessas indicações de Garroni, em cursos de graduação e pós-graduação ministrados na Universidade Federal Fluminense nos anos 90 acerca do tema “A ficção científica, imaginário do século XX”, foi minha intenção analisar em forma integrada o cinema, a literatura e as histórias em quadrinhos de ficção científica, com ênfase na produção norte-americana dos anos 50. De saída, no concernente ao cinema, numa análise histórica era preciso enfrentar problemas como o da historicidade das convenções, espécie de “contrato tácito”, culturalmente difundido e variável no tempo, entre quem produz o filme e quem o vê, sem o qual não se cumpriríam as significações na dependência de certos padrões: “estado da arte” (tecnologias e limitações delas envolvidas em cada época), visões de mundo, ideologias. Por exemplo: Qual a diferença entre como vemos hoje em dia os filmes da década de 1950 ■ — como os entendemos e decodificamos — e como os viam as pessoas da época de sua estréia (incluindo eu mesmo, já que foi na década de 1950 que comecei a ver filmes de ficção científica, pelo qual posso tentar comparar minha visão de então com a de agora)? Tais pessoas estavam marcadas, entre outras coisas, pelo fato de aceitarem perfeitamente que em certas circunstâncias o cenário fosse um telão pintado. Pessoalmente, a primei­ ra vez que tal coisa se me tornou evidente em forma chocante, destoante, foi ao assistir em 1964 ao filme de Hitchcock M arnie: Confissões d e u m a ladra, quando, diante de um telão pintado representando um porto, em lugar de registrar mentalmente “isto é um porto”, registrei com desagrado “isto é um telão pintado” — ao contrário do que acontecia comigo mesmo e com outros na década anterior. Aquelas pessoas estavam marcadas, ainda, pelas ideologias e visões de mundo — nas. suas

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modalidades contraditórias — da época da Guerra Fria em seu auge inicial. Mesmo em 1950 e nos anos subseqüentes, porém, haveria univocidade nas decodificações ao serem lançados os filmes? A resposta deve ser, evidentemente, negativa. Ao pretender, com os alunos, enfrentar questões assim, logo percebemos que, apesar de válidas e interessantes, as indicações de Emilio Garroni, num plano metodológico mais prático e imediato, ligado a técnicas concretas de análise, deixavam sem solução problemas diversos que apareciam ao se tentar “ler”, com base nelas, os filmes selecionados para estudo. Como distinguir no interior desses filmes unidades mínimas analisáveis segundo as relações imagem/língua propostas pelo autor italiano? Tratava-se, também, de buscar um tipo de leitura e de análise que, numa perspectiva tanto transdisciplinar quanto intertextual, permi­ tissem realizar outras operações, necessárias ao trabalho com nossas hipóteses: a correlação histórica do filme com sua época; e a correlação do filme com a literatura e a história em quadrinhos de ficção científica, prestando atenção especial ao que ocorria quando um romance era filmado, quando um filme era apresentado posteriormente na forma de fotonovela ou história em quadrinhos etc. Fizemos certas escolhas, querendo resolver os problemas ainda pendentes de método. Em primeiro lugar, decidimos trabalhar prioritaria­ mente com os asp ectos n arrativos dos filmes, por ser a narratividade comum ao cinema, à literatura e à história em quadrinhos. Em segundo lugar, tratamos de adaptar ao cinema processos técnico-metodológicos concebidos para aplicação a textos escritos, e que foram explicados no capítulo 2 e no.capítulo 4 deste manual. Ou seja, “cortamos” os filmes a analisar em unidades que explicitassem sua sintaxe narrativa, de acordo, segundo os casos, com o método de Claude Bremond ou o de Tzvetan Todorov (descartando, porém, as complicações julgadas desnecêssárias do método das “estruturas narrativas de superfície” como o expõe Joseph Courtés); e procedemos ao estudo dos filmes assim divididos de acordo com o método da leitura isotópica (capítulo 4). Os exemplos que se apresentarão a seguir mostram em detalhe como se procedeu de fato. É óbvio que, em se tratando de filmes e em se baseando nas idéias de Garroni, em cada proposição narrativa a atenção se concentrava na seguinte indagação: Em que medida são as imagens, as falas, ou o conjunto imagens/falas, aquilo que permite detectar, em cada caso, as categorias isotópicas (sememas repetitivos, reiterados) manifestadas se­

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g u n d o o s n ív e is s e m â n t i c o s a x i o l ó g i c o , t e m á t i c o e fig u r a tiv o ? V e r - s e - á , t a m b é m , q u e a le itu r a f e it a p r iv ile g io u e m c a d a c a s o a lg u m d e s s e s n ív e is , e m lu g a r d e n e c e s s a r i a m e n t e s e m p r e c o n s i d e r á - lo s t o d o s .

Exemplo 1: W estw orld, de Michael Crichton (1973)



FICHA TÉCNICA: Título: W estivorld (em português: Westworld, O nde ninguém tem alm a) Ano: 1973 Estúdio: Metro Goldwyn Mayer Duração: aproximadamente lh29min Direção e roteiro: Michael Crichton (1942- ) Produção: Paul N. Lazarus III Cinematografia: Gene Polito Edição: David Bretherton Música. Fred Karlin Efeitos especiais: Brent Sellstrom Personagens e intérpretes principais: O robô-pistoleiro: Yul Brynner Peter Martin, um hóspede em Westworld: Richard Benjamin John Blane, outro hóspede em Westworld, amigo do anterior: James Brolin Um hóspede no Mundo Medieval: Norman Bartold Chefe dos técnicos de Delos: Alan Oppenheimer Outro hóspede em Westworld: Dick van Patten.

Neste filme, Crichton realiza a junção de três gêneros: ficção científica, suspense ( thriller) e faroeste. O texto explícito é uma aventura de ficção científica passada num centro de lazer supostamente de um futuro próximo ao da data do filme, como se vê pelas roupas usadas pelos hóspedes antes da chegada a Delos, o centro em questão, e pelo preço do mencionado resort, mil dólares diários (não custaria menos, se existisse, em 1973, já que se trata de uma combinação de hotel com pensão completa e lazer altamente sofisticado). Em Delos, a diversão é provida por robôs de forma humana e animal, com opção entre três situações pseudo-históricas: Mundo Romano, Mundo Medieval e Mundo do Oeste. Tais robôs se rebelam e escapam ao controle. Os hóspedes e também os técnicos de Delos morrem, com uma única exceção: a da personagem interpretada por Richard Benjamin. E n c o n t r a m o s v á r io s s u b t e x t o s s u b ja c e n t e s a o

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d e l e s é t e m a c o m u m a q u a s e t o d a s a s o b r a s d e C r ic h t o n c o m o r o m a n c is t a : a

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m a n ip u la d a

por

pessoas ou instituições aéticas ou antiéticas, é um perigo e não uma bênção. Isso se explicita no filme do modo seguinte: depois de seis semanas de falhas num dos complexos de Delos, depois em outro, quando começam a generalizar-se os sinais de mau funcionamento, os técnicos e administradores decidem manter os programas em curso, somente barrando de momento a vinda de novos hóspedes; decide-se, depois, que nem mesmo essa precaução será tomada. Outra temática cara a Crichton e que aparece em subtexto em W estworld, a qual o autor só explicitaria em 1990, graças à teoria do caos, no romance Ju ra ssic p a r k (O p a rq u e d os din ossau ros), é a noção de que os sistemas excessivamente complexos são instáveis e tendencialmente incontroláveis. Esta idéia é transmitida em primeiro lugar no filme pelas imagens (em especial nas seqüências que fazem a transição do primeiro para o segundo dia durante oito minutos, mas também em todas as que sublinham quão complexo é Delos: inúmeros monitores de TV são especialmente “eloqüentes" a tal respeito, com seu acompanhamento de ruídos eletrônicos); em segundo lugar, pelas falas dos técnicos e dos hóspedes, devidamente “decodificadas” pelos espectadores predispostos pela “linguagem” do diretor e por experiências anteriores. Terceiro subtexto: é perigoso ceder a desejos e fantasias. Ora, a televisão, o cinema e a publicidade nos im põem desejos e fantasias, modelando o nosso mundo (o que não dá na TV não existe — ou não é importante). Os três “mundos” de Delos são pseudo-históricos: consti­ tuem as visões do Oeste, da Idade Média e de Roma m ad e in H ollyw ood; as únicas, por isso mesmo, que o público em geral reconhece, espera e aprecia. A roupa do robô-pistoleiro é a mesma que o ator, Brynner, usou no faroeste tornado clássico The m ag n ificen t seven (Sete h om en s e um destino), de 1960. E todo o filme está repleto de alusões ao cinema e à televisão, a começar pelas entrevistas publicitárias do início, passando pelo fundo musical, que contém música country funcionando como pseudo-música-do-velho-Oeste e música pseudo-renascentista funcio­ nando como música pseudomedieval. Quarto subtexto: Até quando o Homem poderá controlar máquinas cada vez mais perfeitas? Um robô perfeito demais não terá o d ireito (ou até o dever) de superar uma humanidade que se deixa manipular, desumanizar, mediocrizar crescentemente — da qual bons exemplares são apresentados em Westworld? Uma pessoa que g osta de ter a ilusão de

221

m a ta r e v e r s a n g r a r u m a o u t r a — o s r o b ô s s ã o p e r f e i t o s , a i lu s ã o t a m b é m o é — não

m erece

s a n g r a r e m o r r e r p o r s u a v e z ? R e v e la n d o e s t e s u b t e x t o

e s t á o u t r o , e s t e u m c l á s s i c o : o m it o d e P r o m e t e u , d a r e v o lt a d a c r ia tu r a c o n t r a s e u c r ia d o r , d e A d ã o c o n t r a J e o v á . O c o n t e x t o h i s t ó r ic o d e

W estworld p õ e

o f ilm e e m p l e n o a u g e d e

u m a f a s e “d is f ó r i c a ” d a h is tó r ia d o s E s t a d o s U n id o s : a e r a d e R ic h a r d N ix o n

(1969-1974).

Em

1972,

d e p o is d o s p i o r e s b o m b a r d e i o s d o V ie t n ã

d o N o r te p e l a a v ia ç ã o , o s n o r t e - a m e r ic a n o s p o r f im s e r e tir a m , d e r r o t a d o s n o c o n ju n t o d a I n d o c h i n a . I s t o o c o r r e e m m e i o a f o r t e m o v i m e n t o d e o p i n i ã o c o n t r a a g u e r r a , c o n d u z id a p e l o E x e c u t i v o d e m o d o c la r a m e n t e i n c o n s t i t u c io n a l: m a s o C o n g r e s s o , s e c r it ic a , n ã o c o r t a o s r e c u r s o s . O e s c â n d a lo

d e W a te r g a te

(1973-1974)

t e r m in a r á d e d e s tr u ir o

m it o d a

p r e s id ê n c i a , já a b a l a d o p e l a a r b it r a r ie d a d e d e N ix o n , q u e c r ia in s t i t u i ç õ e s p a r a le la s c o m h o m e n s s e u s e c o n t o r n a o C o n g r e s s o ; a n t e s d a q u e d a d e N ix o n , o v ic e - p r e s id e n t e S . A g n e w , q u e s e m o s t r a v a “p u r o e d u r o ”, c a i p o r c o r r u p ç ã o ir r e f u t a v e l m e n t e p r o v a d a . E p is ó d io s c o m o o d o V i e t n ã , a d e r r u b a d a d e A lle n d e n o C h ile e W a t e r g a t e m o s t r a m a c a r a r e a l e s in is tr a d e ó r g ã o s c o m o a C IA e o F B I . O m o v i m e n t o e c o l ó g i c o i n i c i a d o n o s a n o s

60 c h e g a 1973 v ê

a o a u g e , c o m s e u p e s s i m i s m o a n t i c i e n t íf i c o e a n t i t e c n o l ó g i c o . E o i n íc io d a m a is g r a v e c r is e —

v e r d a d e ir a d e p r e s s ã o —

da

e c o n o m i a d o s E s t a d o s U n id o s d e s d e a S e g u n d a G u e r r a M u n d ia l, e m v ir tu d e d o p r im e ir o c h o q u e d o p e t r ó l e o .

O contexto específico do cinema de ficção científica aparece marcado, na época, pela virada efetuada por 2 0 0 1 : A o d isséia d o esp aço (1968), de Stanley Kubrick, filme com o qual o gênero deixou de ser considerado veículo para adolescentes: o público-alvo seria doravante o adulto. Isto, conjugado com o pessimismo pós-1968 (ano nos Estados Unidos, como na França e na Alemanha, marcado por grandes revoltas estudantis), talvez tenha contribuído para a voga dos “filmes-catástrofe” do tipo de Terrem oto, In fern o n a torre, A eroporto etc.; dos filmes do tipo “a natureza ofendida se vinga” (P ro fecia , F ase IV); e, sobretudo, para a volta dos filmes de crítica social e distopia futura, pouco freqüentes depois dos então já antigos M etrópolis e Tbings to com e. Com efeito, em 1973, além de W estworld, surgiram também L a ra n ja m ecâ n ica , de Kubrick, e No m u n do d e 2 0 2 0 (Soylent g reen ), de Richard Fleischer. Essa tendência fora pioneiramente anunciada na França por A lp h av ille (1965), de Godard, e na Inglaterra por F a h ren h eit 451 (1966), dirigido pelo

222

francês François Truffaut. Nos Estados Unidos, fora inaugurada sobretu­ do por TH X 1 1 3 8 (1969), dirigido por George Lucas. Abordando o que é claramente o presente (.A lphavillé) ou um futuro muito próximo, esse cinema parece dizer que já é tarde: a desumanização pela máquina, pelos meios de comunicação de massa e pela publicidade já aconteceu. -Pessimismo que se manterá até que uma nova onda traga os extraterres­ tres, agora como seres benéficos ( C ontatos im ed iatos d o terceiro grau , 1977), ou o espaço como escapismo e lazer infanto-juvenis ( G uerra n as estrelas, 1977). Antes da discussão da sintaxe narrativa de W estworld, algumas observações acerca do uso da música no filme. Trata-se de um emprego muito sofisticado e eficaz tanto da trilha sonora quanto dos eventuais silêncios introduzidos na mesma. Convém distinguir: 1)

música “referencial”, composta por Fred Karlin na forma de aparentes citações ou paráfrases voluntárias de músicas típicas:

1.1)

música ambiental, quando da viagem no catamarã;

1.2)

música country, que remete à trilha sonora dos filmes de faroeste, um dos meios de sublinhar o caráter falso, conven­ cional ou ilusório (hollywoodiano) do Mundo do Oeste;

1.3)

música pseudomedieval (de fato, derivada de formas renas­ centistas simplificadas): cumpre funções análogas quanto ao Mundo Medieval, igualmente hollywoodiano;

1.4) citação erudita (na parte final do filme): o tema do D ies irae, provavelmente tomado de compositores como Sergei Rachmaninoff e não diretamente à melodia litúrgica sobre poema latino medieval. 2) Música original (no sentido de não pretender realizar citações ou paráfrases) de Fred Karlin, às vezes, no final sobretudo, misturada a efeitos eletrônicos: cumpre as funções habituais da música de filme, com eficiência. O compositor sabe quando interrompê-la (ou, mais raramente, quando passá-la para o primeiro plano) em proveito da narrativa. A sutileza da trilha sonora se vê em alguns detalhes, de que darei um exemplo: o mundo subterrâneo dos técnicos não é habitualmente musica­ do; por fim o é, ao entrarem eles em pânico, constatando que

223

vão morrer asfixiados, e então a intromissão da música eviden­ cia que foram arrastados à ação, deixaram de ser espectadores privilegiados e onipotentes. A sintaxe narrativa de W estworld é complexa. Há, em primeiro lugar, um prólogo de 8min e 15s: entrevistas que definem Delos (até 2min48s); créditos iniciais (até 3m inlls); viagem em direção a Delos num h ov ercraft ou catamarã que voa baixo sobre um terreno desértico e a bordo do qual se projetam filmes sobre Delos, viagem essa que serve de ocasião para apresentar aos espectadores quatro dos futuros hóspedes do centro de lazer (até 7min26s); desembarque e visão dos primeiros robôs (até 8min50s). Passado o prólogo, o filme se desenvolve durante cerca de 80 minutos que representam três dias (o primeiro, mais a transição ao segundo, até 34min5s; o segundo, até 54minl0s; o terceiro até 86min40s), alternando episódios de três diferentes linhas narrativas: 1) a primeira é o enredo principal, referido a W estworld, tendo como focos centrais dois amigos, hóspedes no Mundo do Oeste, e o robô-pistoleiro: esta linha depois se desloca para o Mundo Romano, o subterrâneo dos técnicos de Delos e, por fim, o Mundo Medieval; 2) a segunda linha narrativa conta as aventuras de um hóspede no Mundo Medieval até a sua morte, ocorrida aos 58min48s do filme, quando se interrompe (sendo retomada em outro contexto quando o hóspede proveniente do Mundo do Oeste chega ao Mundo Medieval); 3) a terceira linha narrativa refere-se aos técnicos de Delos, que de seu espaço subterrâneo (saindo à superfície só à noite ou em circunstâncias especiais) dirigem o centro de lazer: extingue-se quando o protagonista, Peter Martin, contempla os técnicos já mortos, sufocados em sua sala, cerca de lh e 13min após o início do filme. As seqüências, ou partes de seqüências, de uma mesma linha narrativa podem encadear-se, alternando com seqüências ou partes de seqüências das demais linhas, pelo que este é um filme em que a montagem cumpre um papel da maior importância. A linha narrativa principal (os dois amigos e o robô-pistoleiro) é o enredo propriamente dito. A linha narrativa subsidiária do Mundo Medie­ val, além de — com fla sh es menos freqüentes ou importantes do Mundo Romano — mostrar, em conjunto com a primeira, a complexidade-e a variedade de Delos, exerce duas funções principais:

224

1) como ali o controle falha primeiro em forma grave, isso prepara o público para a terceira intervenção do robô-pistoleiro: os espectadores sabem que dessa vez a coisa será distinta; 2) o aspecto desagradável e antipático que assume a personagem do hóspede do castelo abre cami­ nho a uma das indagações implícitas do filme: Não será legítima a rebelião dos robôs-escravos contra criadores-senhores tão medíocres? Quanto à linha narrativa dos técnicos de Delos, sua função central é transmitir um subtexto valorizado no filme: a tecnologia, fora de controle e em mãos pouco éticas, não é promessa e, sim, ameaça. Ou seja, a “leitura” do enredo principal é mediada e controlada pelas outras duas linhas narra­ tivas. A dos técnicos, em especial, provê os elementos cruciais de interpretação (grades ou chaves de decodificação). A linha principal desemboca nas outras duas: quando do encontro do protagonista com um técnico ao fugir do robô-pistoleiro (que então mata o técnico em questão), quando Martin contempla os técnicos já mortos em sua sala subterrânea, e quando chega à sala do castelo medieval onde se acham o hóspede morto e dois robôs (a rainha e o cavaleiro negro), sentados imóveis, tendo terminado sua carga de energia. É perfeitamente possível destrinchar as três linhas narrativas de W estworld segundo os métodos expostos nos capítulos 2 e 4. Isto, entretanto, talvez seja menos útil ou funcional do que em outros casos, em virtude da montagem do filme, feita da alternância de elementos das diferentes linhas. Assim, indicarei somente, para cada uma, o que seria uma espécie de “superseqüência narrativa”, entendendo-se que esta poderia ser cortada em diversas seqüências menores.



Linha narrativa 1

S itu ação in icia l:

O M u n d o d o O e ste fu n cio n a n o rm a lm e n te e é d esfru tad o p o r d o is a m ig o s e m variadas circu n stâ n cia s (b e m c o m o p o r u m terceiro h ó s p e d e q u e s e to rn a x e rife ).

P ertu rbação U m e p isó d io em q u e u m d o s a m ig o s é m ord id o p o r u m a ca sca v el d a situ a çã o m e c â n ic a e o u tro, m ais g rave, e m q u e , em seu te rc eiro e n co n tro in icia l: c o m o s d o is am ig o s, o ro b ô -p isto le iro m ata u m d ele s (Jo h n B la n e ) a ssin a la m a p assag em a u m a situ a çã o distinta, m arcad a p ela revolta d o s ro b ô s e p ela p erd a d e c o n tro le p e lo s té cn ic o s.

D esequilíbrio, M a n ife sta-se n o s d iv ersos e p isó d io s d a fug a e d e p o is n o en fren tacrise: m e n to e n tre o h ó s p e d e P e te r M artin e o ro b ô -p isto le iro .

225

In terv en ção n a crise:

A situ a ção m ud a q u a n d o M artin a taca o ro b ô -p isto le iro c o m á cid o e p o ste rio rm e n te lh e ateia fo g o , te n d o u tilizad o alg u m as d e su as lim ita çõ e s (in stru íd o q u e fora a re s p e ito p o r u m té c n ic o q u e e n co n tra ra a o fugir).

N ovo eq u ilíb rio:



M artin v ito rio so, ú n ico so b rev iv en te.

Linha narrativa 2

S itu açao in icia l:

T u d o fu n cio n a n o rm a lm e n te n o M un do M ed ieval, o n d e u m h ó s p e d e s e d iv erte e m v ariad as circu n stân cias.

P ertu rbação O fato d e falhar a se d u çã o da r o b ô D a p h n e p e lo h ó s p e d e e m ais d a situ a çã o tard e o d esafio real q u e lh e d irig e o ca v aleiro n eg ro (o u tro ro b ô ) in icia l: assin a lam a p a ssa g e m à n o v a situ ação , ta m b ém n e ste c a so d e rev olta d o s ro b ô s e p erd a d e co n tro le p e lo s té cn ico s.

D esequilíbrio, O h ó s p e d e e o ca v aleiro n e g ro se b a te m e m d u elo d ian te da rain h a crise. (ta m b é m ela um ro b ô ), e v ai fica n d o cla ro q u e a luta é p ara valer. In terv en ção n a crise:

O ca v a leiro n eg ro m ata o h ó s p e d e .

N ovo eq u ilíb rio:

V itória d o s ro b ô s (c u ja carga, p o ré m , a c a b a ).



Linha narrativa 3

S itu ação in icia l:

D e lo s fu n cio n a, a o q u e p a re c e , n o rm a lm e n te , s o b co n tro le d e seu s té cn ic o s, c u jo d o m ín io é e x te n s iv o a o catam arã terrestre q u e c o n d u z o s h ó s p e d e s a o cen tro d e la z e r e s e m an ifesta e m d iversas o p o rtu n id ad es.

P ertu rb ação Na tra n sição d o p rim eiro p ara o s eg u n d o dia, m e n cio n a m -s e d a situ a çã o irregu larid ad es q u e v êm a c o n te c e n d o ; e a o o co r re r o e p isó d io d as in icia l: prim eiras “in fra çõ es” d o s ro b ô s (a c a sc a v e l q u e m o rd e u m h ó s p e d e n o M un do d o O e ste , a ro b ô D a p h n e q u e s e re cu sa a s e r sed u zid a p o r o u tro n o M u n d o M ed iev al), o s té c n ic o s s ã o in c a p a z e s d e e x p lica r o q u e há.

D esequilíbrio, A partir da m o rte d o h ó s p e d e n o M u n d o M ed iev al p o r u m ro b ô , o crise: ca v a le iro n eg ro , o sistem a já n ã o re s p o n d e e a p erd a d e co n tro le p o r p arte d o s té c n ic o s é total.

226

In terv en ção n a crise:

In c a p a z e s d e sa ir d e su a s a la s u b te rrâ n e a h e r m e tic a m e n te fe c h a d a, c u jo c o n tr o le a u to m á tic o já n ã o r e s p o n d e , o s té c n ic o s m o r­ re m a s fix ia d o s ; u m té c n ic o q u e e sta v a a o a r liv re é m o rto p e lo r o b ô -p is to le ir o .

N ovo eq u ilíb rio:

O h ó s p e d e M artin c o n te m p la o s té c n ic o s já m o rto s em su a sala su b te rrâ n ea .

Pode ser notado, comparando-se a primeira e a segunda linhas, que elas são simetricamente opostas. Na primeira, temos um exemplo de encaminhamento narrativo relativamente usual: o que pode ser chamado de a d au gu sta p e r an g u sta ou, talvez melhor, “o Homem se enobrece na adversidade”. Os dois principais hóspedes de Westworld que o filme acompanha em algum detalhe, Martin e Blane, são paradigmáticos de uma classe média próspera e medíocre. O segundo morre; mas Martin, uma vez confrontado com a necessidade de defender a própria vida, assume uma estatura muito mais respeitável; termina sendo o único sobrevivente, derrotando e destruindo o mais aperfeiçoado dos robôs de Delos. Já no caso do hóspede do castelo medieval, sua mediocridade e patente antipatia não se desmentem em momento algum: ele morre e os robôs (o cavaleiro negro e a rainha) triunfam, mas só para imobilizarem-se ao terminar a sua carga de reserva. Também derrotados e mortos saem os técnicos, servidores de um poder arrogante e amoral. Sofisticado em outros aspectos, Crichton é bastante tradicional em suas atitudes éticas e nos juízos pragmáticos que introduz em suas obras: nelas, os “bons” costumam ser recompensados e os “maus”, castigados, por mais que ele embaralhe consideravelmente, às vezes, a questão. Afirmei que, no caso de W estworld, a sintaxe narrativa à maneira de Todorov ou de Bremond talvez não fosse a melhor forma de recortar o filme para análise, em virtude do aspecto que assume em função de uma montagem que — até bem avançado o relato — alterna sistematica­ mente seqüências (ou mesmo fragmentos de seqüências, podendo estas ficar cortadas em duas ou mais partes por esse motivo), compartimentando ao máximo as parcelas da narração. Assim sendo, parece mais útil um recorte que fique perto da montagem e se ocupe de unidades correspon­ dentes a proposições narrativas — ou, em outros momentos, a grupos delas que manifestem alguma unidade. Assim é que vou, a seguir, detalhar a sintaxe narrativa do filme em exame. Convencionemos que I representa a primeira linha narrativa (a dos amigos e cio robô-pistoleiro em Westworld), II, a segunda (a do hóspede

227

no castelo medieval às voltas com a rainha e o robô-cavaleiro negro) e III, a terceira (a dos técnicos de Delos). Tais convenções serão usadas no corpo do filme, uma vez terminado o que chamamos de prólogo. As indicações de tempo podem não estar de todo exatas: tendo visto o filme em diversos aparelhos de videocassete, verifiquei discrepâncias relativamente pequenas nas leituras do tempo transcorrido, o que mostra haver alguma margem de erro. Em todo caso, trata-se de diferença que se mede em segundos. Prólogo a) até 2min40s: como um filme publicitário para TV. Um locutor entrevista pessoas que acabam de passar alguns dias em Delos e comentam suas experiências. Serve para apresentar Delos e suas três partes, e para mostrar que o parque de diversões dos robôs se destina unicamente a indivíduos de alto poder aquisi­ tivo. Não há música, só um fundo de vozes confusas, já que as entrevistas têm lugar numa passagem (provavelmente aquela que conduz ao catamarã que leva e traz os hóspedes de Delos). Neste ponto, reina a palavra, embora as imagens transmitam mensagem de outro tipo (conotando adscrição a certo grupo social das pessoas entrevistadas); b) até 3m in lls: créditos iniciais (letras verdes sobre fundo negro). Em off, as vozes dos programadores e um acorde musical sustentado, que se funde depois no ruído dos motores do catamarã terrestre que se dirige a Delos sobre uma paisagem desértica, o que faz a transição a c; c) até 7min26s: alternam-se imagens do interior da cabina de passageiros do catamarã, da cabina dos pilotos, também dos técnicos que, em Delos, controlam o vôo baixo do aparelho de transporte. Na cabina, futuros hóspedes de Delos e comissárias de bordo. De início, a música é como a de ambiente num lugar público. Conversa entre dois amigos: Blane, que já esteve em Westworld e para lá se dirige de novo, e Martin, que vai pela primeira vez. Isto e, a seguir, um filme informativo sobre Delos mostrado na TV do catamarã servem para apresentar as perso­ nagens dos amigos e, com menos proeminência, outros três hóspedes do parque de diversões — um casal e um homem de óculos — que se dirigem aos três mundos de Delos. O marido

228

demonstra algum mal-estar em relação a sua esposa estar indo em direção às delícias decadentes do Mundo Romano, no momento em que o filme informativo as menciona. Os prepa­ rativos técnicos para a chegada fazem a transição a d; d) até 8min50s: os passageiros, já em Delos, descem em elevado­ res até um nível subterrâneo onde tomam carros, diferentes segundo o destino. Aparecem os primeiros robôs (e se percebe retrospectivamente que uma das comissárias de bordo do catamarã era de fato um robô), o que é sublinhado por palavras, mas sobretudo pelas imagens, destinadas a dar uma impressão de high tech e alta organização. Primeiro dia (e transição ao segundo) 1) até 9min46s (I): chegada dos três hóspedes a Westworld. Escolha de roupas, botas, armas; trocam-se. Música country em alto volume. Não se fala. 2) até lOminós (III): na sala (subterrânea) de programação e acompanhamento. Vozes, ruídos, vozes gravadas ou interfonadas. Numerosos monitores de TV para controle. Sem música. A transição a 3 é feita ao aparecer num monitor a diligência chegando a Westworld, que é uma reprodução de pequena cidade de um Velho Oeste cinematográfico. 3) até llm in 2s (I): a diligência chega à cidade. Apresentação de partes desta. Sem palavras; música country. Transição a 4 ao mostrar-se tabuleta onde se lê “Hotel”. 4) até 13minls (I): os dois amigos se instalam no hotel. O velho que os levou ao quarto e lhes dá informações é o primeiro robô mostrado em detalhe (ilustrando algo que antes fora dito de passagem: os técnicos de Delos ainda não aperfeiçoaram as mãos, motivo pelo qual é possível por elas distinguir quem é robô e quem não é). Uma conversa dos dois amigos serve para duas finalidades: 1) uma retrospecção: aprende-se que Martin é um advogado de Chicago que se divorciou há seis meses e tem filhos dos quais gosta; 2) mostrar que, ao contrário de Blanc, Martin ainda não entrou no espírito de Delos: reclama da falta de conforto do hotel, que custa tão caro, ao que o outro responde que é um autêntico hotel do Velho Oeste. Em outro

229

quarto, um terceiro hóspede (o de óculos) ensaia o saque de sua arma e termina dando um tiro no espelho (mostrando que os revólveres parecem verdadeiros). Num caso, então, as pala­ vras são o mais importante, no outro, só há imagens. 5) até 13min25s (I): os dois amigos caminham na rua, cruzando com pessoas; ruídos de cavalos passando, depois o som de um piano ao longe, fazendo a transição a 6. 6) até 18min8s (I): os dois amigos entram no bar, ao som do piano. Em conversa nota-se que é impossível saber quais dos presen­ tes são robôs e quais não são, é que isso não importa. No balcão, Blane pede uísque e Martin, vodca martini on the rocks (mostrando de novo que ainda não entrou no espírito da coisa. Toma por fim um uísque muito forte). Ocorre o primeiro episódio com o robô-pistoleiro: este esbarra em Martin ao dirigir-se ao balcão para pedir uísque e faz comentários desairosos sobre o hóspede, em clara provocação. Martin hesita, mas o amigo o incita a atirar no robô. Antes de começar o tiroteio, as “pessoas” (algumas das quais, supõe-se, robôs) se escondem. Cessa o som do piano (o pianista se retirou) e começa uma música indicadora de tensão e que sublinha também o caráter mecânico do robô, a qual cessa ao começarem os tiros. Esta cena com o pistoleiro-robô se caracteriza por um bom equilí­ brio palavra/imagem/som. Passado o duelo, Martin está impres­ sionado com o realismo do mesmo e começa a entrar no espírito da coisa (curto diálogo com Blane). 7) até 18min53s (I): os dois amigos de novo no quarto do hotel, com a música de piano ao fundo. A função da cena (diálogo e imagem) é mostrar que os revólveres têm sensores que impe­ dem que funcionem contra corpos quentes, humanos: só o fazem quando detectam robôs, que são máquinas (frios). 89 até 19min5s (III): os programadores são mostrados (sem músi­ ca) no controle das operações. Como sempre ocorre nas cenas do subterrâneo dos técnicos quando programando, as imagens dos monitores com suas luzes e os ruídos eletrônicos chamam mais a atenção do que as palavras. 9) até 19min50s (II): banquete no castelo do Mundo Medieval. Não há palavras, só imagens, risos, música pseudomedieval. Apare-

cem a robô que depois se descobrirá chamar-se Daphne, um rei de aspecto caricato e a rainha: o hóspede que no catamarã se percebera destinado ao Mundo Medieval, agora vestido a caráter, olha-a e ri; vê-se que a deseja. 10) até 20min20s (I): jantar dos dois amigos no hotel com a “dona” do mesmo (que o detalhe das mãos revela ser um robô, como também devem ser alguns dos outros comensais). O caráter robótico da mulher é sublinhado tanto em imagem como em palavras (de Blane). O hóspede de óculos menciona Carrie, a dona do «ü/oon-prostíbulo de Westworld, o que faz a transição a 11. 11) até 26m inl3s (I): os dois amigos no sa/oon-prostíbulo de Carrie, que lhes oferece os serviços de duas prostitutas (de fato robôs). Martin é mostrado no quarto e depois na cama com uma delas. Quando já abraçados, despidos, a robô abre os olhos até então fechados, mostrando seu caráter mecânico, sublinhado também por um acorde especial. Em seguida, os amigos comentam, eufóricos, a experiência: Martin, que de início assume um ar blasé, por fim manifesta seu entusiasmo por Westworld. Este episódio efetua uma espécie de síntese eufórica (com a única exceção da abertura súbita dos olhos da robô-prostituta), logo antes da introdução de elementos dissonantes de peso; tal síntese reúne os diversos elementos típicos de Westworld: música country e tiro­ teios ao mesmo tempo na trilha sonora (estão assaltando o banco) — um resumo sonoro do Mundo do Oeste — e, naturalmente, robôs. O diálogo dos amigos após se entreterem com as robôs explicita, em fala de Blane, que a máquina é serva do homem. De novo, como na cena do bar com o robô-pistoleiro, este episódio equilibra muito bem imagem/palavra/som (ruído e música). 12) até 34min5s (III e I): longa série de episódios em torno dos técnicos, que também faz a transição para o segundo dia: . a) na calada da noite, os técnicos, as máquinas e os veículos recolhem nas ruas e praças de Westworld os “cadáveres” e outros resíduos das atividades do dia. A música sublinha o mistério daquele pseudomundo em seu aspecto invisível, noturno, e serve de recheio sonoro, já que não há palavras. Os amigos são mostrados dormindo no hotel. Uma esteira rolante transporta os robôs para o subsolo dos técnicos, o que faz a transição a b;

b) oficina subterrânea de avaliação e conserto dos robôs: à mostra os circuitos internos dos robôs e a complexa maquinaria usada para exames, ajustes e consertos. Continuação da música ante­ rior, mais ruídos mecânicos ou eletrônicos. Aparece o chefe dos técnicos: depois de mais de três minutos sem palavras, ocorre um diálogo técnico sobre consertos. Ao ser informado o chefe de que um robô apresenta mau funcionamento central e comentar “mais um?”, isto faz a transição a c; c) os técnicos conversam à volta de uma mesa, numa reunião. Aqui reinam as palavras, com alguma ilustração de monitores, para informar que: 1) há seis semanas começaram problemas, avarias que, partindo de um, chegaram a abarcar os três setores de Delos; 2) muitos dos robôs computadorizados foram plane­ jados e desenhados por computador: os técnicos nem mesmo os conhecem em detalhe; e são quase tão complexos quanto seres vivos, pelo que acha o técnico-chefe que não se trata de máquinas como quaisquer outras; d) aparecem visões rápidas das três seções de Delos, com músicas específicas “do amanhecer”; e) preparação e execução dos programas para reiniciar o funcio­ namento de Delos, em suas três partes, no segundo dia que o filme mostra. Pássaros cantam, canto de galo. Para indicar rotina, Ouve-se um dos técnicos encomendando pelo interfone o seu café da manhã. Segundo dia 13) até 36min43s (I): os amigos e o outro hóspede pela manhã em Westworld. O hóspede de óculos surpreende-se ao despertar ao lado de uma bela robô loura. Martin toma banho de banheira e canta, Blane faz a barba. Batem à porta: quando Blane abre, entra o robô-pistoleiro, a arma na mão, e o ameaça. Martin, saído do banho, ouve atrás da porta as palavras dos dois: na cena que desde então se desenvolve em câmera lenta, abre a porta com o pé, o revólver na mão, fazendo gritar uma mulher-robô que o increpara por sua “indecência” ao circular , seminu pelo hotel. Martin-atira e, sempre em câmera lenta, o robô cai pela janela sobre a marquise e depois na rua, onde

curiosos se juntam. O ruído de vidro quebrado se junta ao grito da mulher com efeitos de eco e com acordes que sublinham o caráter mecânico do robô-pistoleiro. O episódio termina com um curto diálogo eufórico (no espírito dos filmes de faroeste) dos dois amigos. Nesta cena, predominam as imagens e os sons sobre as palavras. 14) até 40min52s (I): Martin está “preso” na cadeia de Westworld pela “morte” do pistoleiro. O. xerife-robô discute com Blane (que se retira) e então com o próprio Martin, depois “dorme”. Na rua, Blane prepara a fuga do amigo mandando uma robôíndia levar-lhe o café da manhã com uma bomba escondida na bandeja e conseguindo cavalos-robôs para ambos. O xerife inspeciona a bandeja perfunctoriamente, mas deixa-a passar: a índia indica com os olhos a Martin o sentido da coisa. Explosão e fuga se seguem. A música cou n try — desta vez com forte tom burlesco — cessa com a explosão, quando logo começa outra, indicativa da fuga a cavalo. O xerife-robô tenta pará-los e é “morto” por Blane com sanha. A montagem faz esta cena se fundir cotn a seguinte. Na parte central do episódio, são as imagens que contam, em conjunto com a música. 15) até 4lmin28s (I): eufóricos, os dois amigos, numa pedreira do deserto próximo, comentam que agora são fugitivos da lei. A música acompanha a transição a esta cena e então cessa. 1 6 ) até 42min4s (III): os programadores aparecem ajustando e mudando a programação dos robôs para satisfação dos desejos e fantasias dos hóspedes (por exemplo, programan­ do “infidelidade” na rainha do Mundo Medieval). A transição à próxima cena é feita ao aparecerem a rainha e suas damas num monitor. O caráter rotineiro da coisa é acentuado por um dos técnicos estar reclamando de problemas com a lavagem de sua roupa. 17) até 43minl0s (II): a rainha despede as suas damas para ter um encontro furtivo com o hóspede, que sai de trás de uma cortina. Ela lhe avisa que o cavaleiro negro (na verdade um robô) será seu futuro contrincante num duelo e o instrui sobre o ponto fraco do cavaleiro em questão. No início da cena há música pseudomedieval.

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18) até 43minl7s (III): os programadores tomam nota dos ajustes a fazer no programa (confirmado) do duelo futuro. A rainha e o hóspede aparecem num monitor. 19) até 43min50s (II): despedindo-se da rainha, o hóspede sai sorrateiramente do quarto da mesma e ri, contente, antes de afastar-se. Música pseudomedieval. Este auge eufórico é equi­ valente ao de Martin no final do episódio de número 11 acima e sublinha o aspecto fortemente antipático do hóspede do Mundo Medieval. O auge em questão não envolve palavras. 20) até 44min9s (III): os técnicos ficam sabendo que o programa de ar condicionado falhou num setor. Autoriza-se que o hóspede de óculos de Westworld se torne xerife. 21) até 44min49s (I): instalação do hóspede em questão como xerife, em cena de rua burlesca. Sem música: palavras, ruídos de rua, acentua-se o caráter g a ú ch e do novo xerife quando não consegue de início abrir uma porta. 22) até 45minl2s (II): o hóspede do Mundo Medieval dá um encontrão na criada-robô Daphne. A música pseudomedieval se interrompe quando esbarram. 23) até 46minl3s (I): os dois amigos na pedreira, com os cavalos. Uma cascavel-robô se esgueira e morde Blane— o que, é claro, não estava programada para fazer. Ela é morta a tiros e Blane se enfurece com o incidente. Imagens suplementadas por comentários aposteriori. 24) até 48min36s (III): a) o chefe dos técnicos manda recolher a cascavel “morta” para exame; b) dois técnicos, num veículo, executam na pedreira (de onde os amigos já se retiraram) a ordem de recolher o robô; acompa­ nhamento musical sublinha tensão; c) o exame da cascavel não mostra falha alguma, mas os circuitos lógicos não funcionam (a cascavel aparece aberta, com sua maquinaria à mostra); d) técnicos e administradores de Delos discutem: embora alguém avente a hipótese de Delos ser momentaneamente fechado, decide-se que, pelo contrário, os programas atuais serão conti­ nuados; no entanto, alegando-se excesso de lotação, por en­ quanto não virão outros hóspedes.

25) até 49minl8s (II): banquete no castelo. Episódio sem palavras. Está presente o robô-cavaleiro negro, cujo aspecto é ameaça­ dor. O hóspede, de longe, sorri-lhe, sem ter resposta, e parece assustado. Música pseudomedieval. 26) até 49min23s (III): os programadores decidem começar um programa de briga no saloon de Carrie. 27) até 52min8s (I): briga no saloon , acompanhada de música country de caráter burlesco (como a própria cena), com muito poucas palavras. Os amigos, que antes jogavam cartas, se envolvem na briga, como também o novo xerife; a própria Carrie participa. Os hóspedes e Carrie bebem no decorrer da luta. Cena cômica baseada nas imagens e na música, com palavras referenciais (raras). 28) até 52min42s (III): abre-se a cabeça do robô-pistoleiro na sala de consertos. Um técnico explica que está aproveitando a oportunidade para instalar no robô um sensor de visão infra­ vermelha e para aumentar a sensitividade da audição do mesmo. Imagens, depois palavras explicando imagens. 29) até 53minl9s (II): o hóspede do castelo tenta seduzir a robô Daphne, que mandou chamar, e é esbofeteado: um grau a mais na escalada da revolta dos robôs. 30) até 54minlOs (III): a) a imagem da cena anterior num monitor: o que ocorreu é interpretado como mau funcionamento da robô Daphne: o técnico-chefe se surpreende com o fato de ter ela “recusado” a sedução; b) Daphne é aberta e examinada na sala de consertos: como no caso da cascavel, não há problemas aparentes, mas não estava obedecendo ao programa; c) o técnico-chefe anuncia que a decisão final foi de não limitar de forma alguma o funcionamento de Delos, apesar das falhas crescen­ tes: nem mesmo se interromperá a vinda de novos hóspedes. Terceiro dia 31) até 54min29s (II): a) amanhece no castelo: este é visto de fora ao som de trombetas;

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b) o hóspede se veste para o duelo previsto com o cavaleiro negro e decide ir tomar o café da manhã. Não há música. 32) até 55min7s (I): os amigos no saloon , devastado pela briga da véspera. Martin acorda, de ressaca. Não há música. 33) até 55minl5s (III): os técnicos constatam um problema de som num setor. 34) até 56m in lls (II): o hóspede se dirige ao salão de banquetes. Quando vai começar a comer, é abordado pelo robô-cavaleiro negro, pronto para o combate, que o desafia; chega a robô-rainha, saudada pelo cavaleiro negro, e estaca na escadaria. Sem música. O hóspede tenta não levar a sério a situação, mas, ao não conseguir, aceita, assustado, o duelo inevitável. 35) até 56min20s (EI): os técnicos, que acompanham num monitor o desenrolar do programa, “soltam” o robô-cavaleiro negro para o duelo. 36) até 56min39s (II): duelo do hóspede e do robô diante da rainha. Sem música. 37) até 56min49s (III): um técnico comendo enquanto acompanha o duelo no monitor de TV, sublinhando que a situação ainda lhe parece normal. Em transição ao ponto seguinte, o duelo é mostrado no monitor. 38) até 56min52s (II): continuação do duelo, que parece para valer. Sem música. 39) até 57min23s (I): no saloon , Blane acorda também. Os dois amigos queixam-se da ressaca e se aprestam a sair. Sem música. 40) até 57min51s (II): continua o duelo. Sem música. 4 1 ) até 57min53s (III): um técnico se preocupa pelo controle insuficiente sobre o robô. Mais uma transição no monitor de TV. 42) até 58min25s (II): continua o duelo e o cavaleiro negro fere o hóspede no braço na escadaria, aos pés da rainha. Sem música. 43) até 58min27s (III): o chefe dos técnicos, assustado, manda interromper o programa, mas o sistema não obedece. 44) até 58min33s (II): o robô-cavaleiro negro mata o hóspede com sua espada aos pés da rainha. Sem música. Aqui se interrompe a segunda linha narrativa, que será retomada ao chegar Martin ao Mundo Medieval.

I

45) até 58min38s (III): os circuitos não respondem. O chefe dos técnicos manda cortar a energia dos robôs. 46) até 59m inlls (I): os dois amigos na rua, reclamando do frio e indo para o hotel. Os robô-pistoleiro prepara-se a abordá-los. 47) até 59minl6s (III): os circuitos continuam sem responder. O chefe dos técnicos manda cortar tudo. 48) até lh2min (I e passageiramente III): a) terceira intervenção do pistoleiro, que os amigos não levam a sério; sua reação lembra a do hóspede do castelo quando tentou convencer o cavaleiro negro a adiar o duelo para deixá-lo comer. Blane diz a Martin que desta vez ele baleará o pistoleiro, a quem diz que pode sacar primeiro. O pistoleiro o faz e atira: Blane cai e anuncia a um incrédulo Martin que foi baleado para valer, depois volta a cair e, sangrando pela boca, morre. Em close, nesta passagem e nas seguintes, enfatiza-se a diferença perceptível nos olhos do robô-pistoleiro. Volta a música, sublinhando tensão e o caráter mecânico do pistoleiro (bem como sua visão, a partir de acorde análogo ao que se ouviu quando a robô-prostituta abriu subitamente os olhos em 11). O pistoleiro ordena a Martin que saque a arma. Despertan­ do por fim para o que de fato está acontecendo, Martin foge a pé e depois a cavalo, perseguido pelo pistoleiro, que faz uso de suas novas visão e audição. Música “de perseguição”. b) numa breve cena intercalada na anterior, os técnicos constatam que já não têm controle algum. 49) até Ih2min5s (III): embora os técnicos tenham desligado a energia principal, os robôs estão gastando a energia de reserva que têm: explica-se que alguns podem durar assim uma hora, outros até 12. Em transição, um monitor de TV mostra uma cena de massacre no Mundo Romano. 50) até Ih2m inl9s: única cena específica do Mundo Romano: escravos e gladiadores robôs massacram os hóspedes, incluindo a esposa do hóspede do castelo medieval. 51) até Ih2min27s (III): os técnicos verificam que já não podem controlar a energia nem usá-la: os relés estão congelados.

2.37

52) até Ih3min9s (I): o pistoleiro, a cavalo, persegue no deserto Martin, também a cavalo. Música reflete perseguição. Continua a ser acentuada a nova visão do pistoleiro. 53) até Ih3m inl8s (III): os técnicos descobrem que não podem sair da sala de controle, cuja porta é automática, e vão morrer sufocados. 54) até Ih6min30s (I): a) continuação da perseguição a cavalo de Martin pelo robô-pistoleiro, com acompanhamento musical; b) Martin se escondeu, mas o perseguidor o localiza pelo som de sua respiração (ressaltado na trilha sonora). Cessa a música; c) o pistoleiro atira repetidamente, desta vez com uma carabina, mas erra. Martin volta a fugir e retoma seu cavalo; no processo, perde sua arma. Volta a música “de perseguição”. Em todo o episódio, não se fala. 55) até Ih6min55s (III): os técnicos constatam que a temperatura sobe, o oxigênio está acabando e eles continuam presos. Pânico. Um acorde sustentado, sublinhando a tensão, introduz pela primeira vez a música nas cenas do subterrâneo dos técnicos. 56) até Ihl7m in22s (I; encontro da linha narrativa I com a III): a) de novo a perseguição no deserto, com sua música característica; b) Martin encontra um técnico que, apavorado, primeiro pensa ser ele um robô e pede que mostre as mãos. Constatando ser um humano, conta-lhe que o sistema está totalmente em pane. Informa-lhe acerca de ser o robô que o persegue dos- mais aperfeiçoados — “uma bela máquina” — e que não desistirá da caça. Embora Martin possa usar alguns truques — atacá-lo com ácido, usar circunstâncias em que um excesso de luz o ofusque — , o técnico opina que não tem chance contra o pistoleiro. Martin, porém, neste ponto abandonando o pâni­ co e decidindo tomar o destino nas mãos, declara enfatica­ mente que tem chance. Ele então se vai e o pistoleiro, aproximando-se, mata o técnico; c) continua a perseguição, acompanhada de música de ritmo e volume variáveis. Saindo dos limites de Westworld, Martin entra

com seu cavalo num riacho; a água impede agora que o robô possa seguir, graças à sua visão infravermelha, os traços deixa­ dos antes pela pata do cavalo no chão; d) Martin chega, a cavalo, ao Mundo Romano, semeado de cadá­ veres (entre eles o da mulher do catamarã). Entra por um poço no subterrâneo dos técnicos. A música acompanhada de ruídos eletrônicos depois se interrompe, substituída por ruídos de passos, com eco, nos vastos corredores. e) Martin descobre a sala onde os técnicos já morreram sufocados; num monitor de TV aparece o pistoleiro-robô, numa transição. Volta a música, sugerindo o caráter mecânico do robô e agora com as primeiras sugestões do D ies irae, 0 acompanhado dessa música, o pistoleiro caminha pelo Mundo Romano, de novo acompanhando em infravermelho o rastro (agora dos sapatos) de Martin. Acha o poço. Cessa a música; g) na sala de conserto dos robôs, Martin se apodera de ácido; andando pelos corredores (efeito de passos: som e eco), o pistoleiro por sua vez entra na sala, onde Martin está numa mesa, deitado, fingindo ser um dos robôs desativados. O pistoleiro passa por ele, mas depois se volta: momento em que Martin lhe lança o ácido à cara. Paralisado, soltando fumaça, o robô interrompe momentaneamente a perseguição e Martin se retira. 57) até Ih22min23s (I; encontro da linha I com a II): a) Martin, esbaforido, nos corredores outra vez. Pára para descan­ sar, mas então ouve os passos do robô. Este chega perto, atira, erra: e então o piscar de uma luz vermelha no revólver mostra o fim da carga do mesmo, que o pistoleiro joga fora. Martin foge. A música salienta o caráter mecânico do robô, mesclada a sugestões do D ies irae, b) Martin entra no salão de banquetes do castelo medieval, onde está o corpo do hóspede. Os robôs cavaleiro negro e rainha estão sentados em tronos, imóveis, sem carga; c) chega o robô-pistoleiro: Martin se esconde atrás dos tronos e, em seguida, as luzes das tochas ofuscam a visão do robô, que pára, atônito. A música se interrompe, só se ouve o crepitar das tochas. Ao fazer Martin um barulho involuntário, o robô, que se

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preparava a retirar-se, localiza-o e precipita-se: Martin o incen­ deia com uma das tochas. Ao precipitar-se o robô, a música é retomada com um acorde brusco; continua, a seguir, descrevendo o robô em chamas, de novo com sugestões do tema do Dies irae. Martin se retira. Só se ouve, novamente, o crepitar das chamas. 58) até Ih26min40s (linha I na linha III): a) numa masmorra subterrânea, uma mulher pede socorro, atada por correntes. Martin a desata, pensando ser ela humana. Vai buscar água, a qual, ingerida contra a vontade da mulher, que protesta fracamente, provoca-lhe um curto-circuito com faguIhas (pois tratava-se de mais um robô: o último, aparentemente, ainda com carga além do pistoleiro). Não há música, só o crepitar das tochas, depois ruídos eletrônicos ao ocorrer a pane; b) o pistoleiro reaparece, queimado, assustando Martin: retomada a música para sublinhar o efeito de susto. Mas o robô logo cai, tenta reerguer-se e entra em curto-circuito acompanhado de fagulhas e ruídos eletrônicos. Ele já não tem rosto. c) após observar os últimos estertores do robô, Martin, numa espécie de Epílogo, vai até uns degraus e senta-se. Ele é o único sobrevivente em Delos. Ecoa-lhe na mente a recordação da propaganda do parque de diversões tal como ouvida no final da parte a do Prólogo. Com esta volta cíclica ao início, termina o filme, quando o rosto de Martin em close escurece até desaparecer. 59) até Ih28min20s: créditos finais com acompanhamento musical. À base da sintaxe narrativa exposta anteriormente, vários tipos de análises são possíveis. Agora me interessa a leitura isotópica. Vou levá-la a cabo não para estabelecer todos os tipos de categorias isotópicas nos três níveis semânticos, mas concentrando-me em um desses níveis, o axiológico, por meio do par euforia/disforia. Afirmei, ao começar, que o filme em exame reúne três gêneros: ficção científica, suspense ( thriller) e faroeste. Acho que a estrutura narrativa básica que apresenta é a de um filme de suspense. Este tem a característica de um desvelamento, de algo que se revela aos poucos, por p istas que vão sendo expostas. Em W estworld, isso ocorre por meio do que chamarei de ch av es ex p lícitas d e leitura-, informações que orientam a decodificação que o espectador vai fazendo do que vê. Cada elemento

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novo, uma vez introduzido, modifica a percepção do que já se viu e sobretudo do que ainda falta ver. Um exemplo do primeiro caso é o seguinte: quando, no ponto 16 da sintaxe narrativa como a estabelece­ mos, fica claro que os robôs não têm uma programação por assim dizer embutida, fixa, mas, sim, vão tendo a programação modificada passo a passo para adaptar suas respostas aos desejos e às fantasias dos hóspedes a seu respeito, e que para que isso seja possível tudo o que acontece em Delos é seguido pelos técnicos nos monitores de TV, tal esclarecimento lança luz nova, retrospectivamente, sobre a cena de Martin com uma robô-prostituta na cama do saloon -bordel de Carrie (no episódio 11); ou seja, percebe-se que a cópula e todos os seus preliminares foram acompanhados detalhadamente pelos técnicos programadores, num voyeurismo profissional. Vou concentrar-me, no entanto, na outra possi­ bilidade, isto é, em como as chaves explícitas de leitura influenciam a decodificaçâo dos episódios a elas posteriores. Vejo como mais importan­ tes — embora reforçadas às vezes e ampliadas por outras de que não falarei — as seguintes, às quais em cada caso será atribuído um mais ou um menos conforme abram perspectivas eufóricas ou disfóricas p a r a os hóspedes, levando-se em conta a relação imagem/palavra segundo as hipóteses de Emilio Garroni: 1 (+):

os primeiros 8min50s do filme: o Prólogo, como o chamei, cumpre a função de prenunciar divertimento aos hóspedes, através da realização de suas fantasias na parte escolhida de Delos. Em a as palavras são a semiose-guia e as imagens (expressão, entusiasmo dos ex-hóspedes), o conotador; em c o diálogo dos futuros hóspedes (os dois amigos) é que passa a mensagem e em seguida o conjunto imagem/palavra de um filme-documentário sobre Delos, enquanto as aeromoças, os pilotos e os técnicos controladores do vôo transmitem imagens de conforto, segurança e controle; d continua o anterior com a sensação de altos graus de organização e uma tecnologia refinada: a palavra aqui é só um conotador.

2 (+):

em nosso número 7 da sintaxe narrativa, após o primeiro enfrentamento de Martin com o robô-pistoleiro, são semioseguia sucessivamente a palavra, a imagem e de novo a palavra, ao mostrar-se que os revólveres de Delos não atiram conlra seres humanos por causa de um sensor que detecta o calor típico dos seres vivos.

2 -1 1

3 (-):

a primeira chave de leitura com conotação disfórica é dada pela conferência dos técnicos, em palavras, sendo a imagem deles e eventualmente de monitores só um conotador, de 30min50s a 34min8s: os espectadores ficam sabendo das disfunções ocorridas nas últimas semanas, que muito do que existe em Delos é potencialmente perigoso para os hóspedes, que apesar do perigo não se cogita de interrom­ per os programas; quando muito, decide-se não aceitar novos hóspedes de momento (possibilidade que será afas­ tada depois, aos 54 minutos de filme aproximadamente, mesmo tendo àquela altura piorado consideravelmente a situação). Número 12c.

4 (-):

entre 52min8s e 52min42s, um técnico informa que está melhorando exponencialmente a visão e a audição do robôpistoleiro. Os espectadores, então, quando o voltarem a ver abordando os dois amigos na rua, no terceiro dia, com olhos que parecem diferentes e depois da morte do hóspede do castelo do Mundo Medieval às mãos de outro robô (o cavaleiro negro), naquele episódio e sobretudo na longa perseguição a Martin que se segue, interpretarão o que vêem à luz da informação recebida antes. Nesta terceira chave de leitura, as palavras são a semiose-guia, já que as imagens, por si, não permitem entender o que está sendo feito ao robô-pistoleiro pelo técnico. Número 28.

5 (- e +):

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quando, durante sua fuga do pistoleiro, Martin encontra um técnico que lhe dá informações e opiniões, estas funcionam ao mesmo tempo como chaves de leitura eufórica e disfórica. Por um lado, fica sabendo de pontos fracos do robô; por outro, ser ele um dos mais avançados de Delos. A seguir, contra a opinião do técnico, quando Martin afirma enfatica­ mente que terá uma chance de sobreviver à caça que lhe move o robô, a chave de leitura é também eufórica. Nas informações do técnico, as palavras são a semiose-guia; na afirmação heróica de Martin, é o conjunto imagem/palavra (ou seja, o que Martin diz, mas também o tom de voz, a expressão etc.) que dá ao público a chave de leitura para o que resta do filme. O episódio situa-se entre Ih7min7s e Ih8min34s e está em 56b.

»

Ao falar das chaves de leitura, referi-me a momentos do filme em que nada de fato está acontecendo, no sentido forte da palavra. Vejamos agora, em 20 episódios ou momentos tomados como exemplos, a questão da euforização/disforização — sempre do ponto de vista dos hóspedes — na ação mesma da narrativa fílmica:

)

1 (+):

primeiro enfrentamento com o robô-pistoleiro, entre 15minl0s e 18min8s, no interior do ponto 6 da sintaxe narrativa. Neste episódio do duelo no bar, palavras e imagens são necessárias no mesmo nível, considerando-o integralmente; dá-se, porém, a alternância de momentos em que, seja à imagem, seja a palavra, passa ao proscênio. Assim, por exemplo, o robô começa por esbarrar em Martin, só depois desafiando-o com insultos. O momento mais forte, porém, ou seja, aquele em que Martin atira no pistoleiro e o “mata”, fazendo-o sangrar, depende só de imagem e som; quando se fala a respeito, é um comentário a posteriori que reforça e confirma a impressão já recebida em forma principalmente visual. Se encarado com os olhos de Martin, o episódio tem elementos disfóricos e eufó­ ricos, mas afinal de contas o que acontece é exatamente o que os hóspedes vieram buscar em Westworld e o próprio Martin no final dá um fecho eufórico ao conjunto.

2 (+):

entre 19min5s e 19min50s, no primeiro banquete do castelo medieval, temos um exemplo de Delos funcionando plena­ mente no sentido do prazer do hóspede que o filme focaliza; mostra-se isso com imagens, risos e outros sons, mas sem palavras. A semiótica básica aqui reside na relação imagem/música/ruídos e na imagem como semiose-guia. Ponto 9-

3 (-):

de 25min a 25min5s, temos um curto, mas significativo, detalhe disfórico introduzido num conjunto (nosso 11) eufóri­ co: o momento em que a robô-prostituta abre de repente os olhos, na cama com Martin (que não pode ver), com um acorde de acompanhamento que indica “visão mecânica” (já ocorrera em 6, quando se tratava do robô-pistoleiro). Em tal instante, a robô-prostituta está sendo revelada cabalmente como robô — o que, entre outras coisas, significa estar Martin

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fazendo sexo com uma máquina, um objeto sem vida. A imagem é semiose-guia, conotada pela música; não há palavras.

244

4 (+):

imediatamente após o detalhe anterior, sempre no interior do ponto 11, temos o que pode ser chamado de “auge eufórico” dos amigos em Westworld, entre 25min5s e 26minl3s: apesar de um bom equilíbrio entre imagem e palavra, aqui esta última é o mais importante (não só o que se diz, também o tom de voz com que se diz).

5 (+):

temos aqui o ponto 13, entre 34min5s e 3ómin43s, episódio marcado principalmente pelo segundo enfrentamento entre Martin e o robô-pistoleiro: para o hóspede, totalmente eufórico, pois já entrou em forma cabal no jogo de Westworld. Visto desse ângulo, investe-se aqui central­ mente na imagem e nos ruídos, como é mostrado pela câmera lenta, pelo grito feminino com efeitos de eco e o exagero do som do vidro quebrado ao cair o robô baleado da janela, além da música. O fecho é em palavras, mas o que fica de impacto é o anterior.

6 (+):

entre 37min58s e 40min52s, no interior do ponto 14, o episódio da fuga da prisão é cômico e, do ponto de vista dos dois amigos, eufórico. A imagem reina soberana, conotada pela música e umas poucas palavras, bem como pelo ruído da explosão, dos tiros que “matam” o robô-xerife, do barulho da cavalgada etc.

7 (+):

outro momento em que a imagem, com acompanhamento musical, é que passa a mensagem — nesse caso sem palavras — é aquele do número 19, após a despedida entre a rainha e o hóspede: este sai do quarto, pára por um momento e ri, num auge eufórico que espelha o de 11, mas tem, p a r a o p ú blico, uma conotação disfórica em virtude do caráter forte­ mente antipático do hóspede do castelo, mesmo sendo osten­ sivamente eufórico.

8 (+):

mais um episódio ao mesmo tempo eufórico e burlesco é o 21: neste ponto a imagem, semiose-guia, d esm en te as pala­ vras heróicas e pretensiosas do novo xerife de Westworld, e o fato de os ouvintes, na rua, parecerem aceitá-las. Assim,

do ponto de vista do hóspede de óculos o momento é eufórico; na visão do próprio filme é sobretudo cômico. Entre 43m inl0s e 43min50s. 9 (-):

entre 45minl2s e 46minl3s, número 23, no episódio da cascavel que morde Blane, a imagem é semiose-guia de início, as palavras a seguir. Uma das funções deste episódio — em conjunto, sobretudo, com um detalhe anterior: o da sanha exagerada com que Blane “mata” o xerife em 14 — é de, até certo ponto, preparar os espectadores para a futura morte desse hóspede. Visto no conjunto, desde an tes da cascavel, o episódio manifesta uma passagem de + para - quanto à euforia/disforia.

10 (+ ): (passando a -) no segundo banquete do castelo, episódio sem palavras, a euforia do hóspede cede lugar à disforia diante do cavaleiro negro que parece desafiador. Imagem, música e sons somente, nesse número 25. De 48min36s a 49minl8s. 11 (+):

de novo, um episódio eufórico e ao mesmo tempo burlesco, o da briga no saloon. As palavras são, no conjunto, muito pouco importantes, reinando a imagem conotada pela música, pelos ruídos e pelo pouco que se diz. Número 27. De 49min23s a 52min8s.

12 (-):

falha, no castelo, a sedução da robô Daphne pelo hóspede, que leva uma bofetada. A mensagem, aqui, depende igualmente da imagem e do que se diz. Número 29, entre 52min42s e 53minl9s. Estamos atribuindo + e - segundo, sempre, a visão dos hóspedes: do ponto de vista dos espectadores, o episódio é eufórico e a bofetada, aplaudida, sendo o hóspede tão antipático.

13 (-):

no número 42, o hóspede do castelo é ferido no braço durante sua esgrima com o cavaleiro negro: de 57min53s a 58min25s. A imagem domina. A montagem é, nesta parte do filme, muito “nervosa”, cortando cada cena em fatias curtas.

14 (-):

número 44: continuação do anterior, com as mesmas caracte­ rísticas de linguagem cinematográfica. O duelo chega ao que, nessa altura, os espectadores já esperam, ou seja, a morte do hóspede pelo robô-cavaleiro negro. De 58min27s a 58min33s.

15 (-):

no interior do número 48, a morte de Blane pelo pistoleiro, em episódio iniciado aos 59minl6s. A imagem é aqui semio­ se-guia na maior parte do episódio, mas há pontos em que as

245

palavras de Blane moribundo e a ordem do pistoleiro a Martin para que saque a arma passam ao proscênio. 16 (-):

parte da perseguição de Martin a cavalo pelo robô-pistoleiro, já fora da cidade, número 54, entre Ih3m inl8s e Ih6min30s. Aqui, não há palavras: a semiose-guia é a imagem, enfatizando sobretudo a visão aperfeiçoada do robô e, momentaneamente, o ruído da respiração de Martin, para sublinhar sua audição que também foi melhorada em 28. A música é conotador, nas partes em que ocorre.

17 (+):

passagem no interior de 56 em que, no interior de um conjunto ainda disfórico, entre lh9min e Ihl0min30s, temos um elemento eufórico que alivia momentaneamente a tensão: saindo dos limites de Westworld, Martin, ao entrar com o cavalo num riacho, anula por algum tempo uma das vantagens do robô, a de seguir no chão as marcas das patas do cavalo do hóspede em virtude do sensor infravermelho de que foi dotado em 28. A imagem continua a dominar, conotada por ruídos e música. Neste ponto temos, então, uma transição — passageira — de disforia para euforia.

18 (-):

ainda no interior de 56, a euforia cede de novo à disforia, entre Ihl3m inl3s e Ihl4m inl6s: no Mundo Romano, o robô recupera sua vantagem e, agora a pé, segue as pegadas de Martin até o poço pelo qual este desceu para o subterrâneo dos técnicos. Imagem conotada pela música, não havendo palavras.

19 (+):

sempre dentro de 56, o episódio do ataque ao robô com ácido, entre Ihl4m in l6s e Ihl7m in22s, realiza mais uma reviravolta, da disforia para a euforia. Tudo continua a depender das imagens conotadas por música e ruídos, pois não se fala. O único instante em que a palavra importa — desta vez escrita — é o da leitura dos rótulos nos vidros de ácido.

20 (+):

agora no número 57, temos a virada decisiva para a euforia: aproveitando o efeito das tochas sobre a visão do robô — e apesar dos momentos disfóricos em que uma respiração ruidosa de alívio e depois um outro luído o traem — , Martin ateia fogo ao pistoleiro. Como nos exemplos precedentes, temos imagens conotadas por música e ruídos, sem palavras.

246

No conjunto, então, a análise em termos da leitura isotópica concentrada no par axiológico euforia/disforia mostra um uso eficiente da linguagem cinematográfica, com a particularidade de que a música e os ruídos às vezes exigem uma atenção não prevista nas hipóteses de Garroni. Tais hipóteses, por outro lado, cumprem-se em todas as moda­ lidades por ele imaginadas. Nas seqüências finais de perseguição/enfrentamento entre o robô-pistoleiro e Martin é a imagem, como é comum no cinema, o mais importante, o que também vimos acontecer em vários outros pontos do filme; há, mesmo, diversas ocasiões em que as falas estão ausentes: na parte final do filme, isto ocorre durante cerca de 18 minutos. Existem momentos numerosos em que a palavra domina. Constatamos ainda exemplos — mais raros — de equilíbrio entre as semioses da imagem e da palavra. Dentre as grades explícitas de leitura que o filme oferece e tratei de explicitar, de longe a mais importante é a última, manifestada no encontro por Martin de um técnico enquanto foge, mesmo porque serve para mudar favoravelmente e num sentido heróico a imagem do protago­ nista junto aos espectadores, justificando que se torne o único sobrevi­ vente em Delos. Parece-me injusta a apreciação de Pauline Kael no sentido de que W estworld se caracterize pelo ar estreito de um filme feito para TV, decorrente de um orçamento limitado: o que me chama a atenção é, pelo contrário, o muito que se fez com tal orçamento. Muito mais do que em nosso outro exemplo, como veremos. E no entanto, curiosamente, predominam os críticos que concedem uma pontuação maior a A m áqu i­ n a d o tem po do que a W estworld. Se pensarmos no modo como se organiza no filme todo a eufo­ ria/disforia tendo em mente, ao mesmo tempo, o recorte em superseqüências das três linhas narrativas feito segundo o método de Todorov, constatar-se-á o seguinte: a situação inicial, eufórica, ao surgir pela primeira vez a sua perturbação, disfórica, não desaparece ainda, ou seja, os dois elementos da seqüência narrativa alternam-se por algum tempo. É assim que, após o episódio da serpente que morde Blane, os amigos ainda conhecem um outro auge eufórico na briga no saloon , por exemplo; e os técnicos mantêm a ilusão de estar no controle até o momento já tardio em que se lhes torna impossível duvidar de que o contrário é que esteja acontecendo (lembremo-nos do programador que come tranqüilamente enquanto observa no monitor as etapas iniciais do

247

duelo entre o robô-cavaleiro negro e o hóspede do castelo). Em seguida, instala-se longamente a disforia: em caráter definitivo no tocante às linhas narrativas 2 e 3, mas em caráter reversível na linha 1, no que diz respeito a Martin (já que Blane morre). A axiologia é nível estratégico do filme também de outro ângulo. Vimos que W estworld é altamente referencial: trata-se de uma reflexão da cultura de massa (nos seus aspectos hollywoodianos e televisivos) sobre si mesma. A crítica mais insistentemente dirigida a essa cultura e seus veículos vai no sentido de promoverem uma desumanização, uma des­ truição dos valores supostamente mais importantes para os seres huma­ nos, por meio da incitação ao consumo, ao sexo e à violência. Ora, Delos é um paraíso consumista para pessoas ricas, e a diversão que oferece centra-se sem dúvida no sexo e na violência (com alguns adendos como bebedeiras em Westworld e banquetes no Mundo Medieval — de fato, outros apelos a apetites que a moral habitual disforiza). O filme tem pouco a dizer sobre as mulheres em Delos; e o pouco que diz não agradaria às feministas: dois momentos do prólogo (a entrevista com a ex-hóspede do Mundo Romano, e a explicação dos prazeres decadentes do mesmo no filme mostrado no catamarã enquanto fica evidente que uma dada mulher se dirige a essa parte do parque de diversões, o que seu marido vê com alguma inquietude) dão a entender que é pura e simplesmente o sexo com robôs que elas buscam lá. No caso dos homens, não há qualquer dúvida de que o Mundo do Oeste e o Mundo Medieval sejam paraísos machistas cujos prazeres têm a ver com violência e sexo. No primeiro, a violência é acessível na forma de brigas de bar, tiroteios onde robôs são “mortos”, a possibilidade de tornar-se xerife (isto é, de aplicar a violência legal); o sexo é garantido pelas robôs-prostitutas do saloon de Carrie. No Mundo Medieval, a violência aparece nas brigas de espada e na masmorra das torturas, em que são também os robôs que satisfazem o desejo dos hóspedes de provocar sangue e sofrimento; e ali há igualmente encantadoras robôs sexualmente disponíveis. Os auges eufóricos em ambos os mundos têm a ver seja com violência, seja com sexo. Para fazer passar sua moral tradicional, o filme age sobretudo no nível das personagens. Entre os humanos, com a única exceção de Martin, as pessoas são desconhecidas de todo em seus antecedentes, o que dificulta qualquer identificação maior com elas, e mostradas cheias de torpezas: o chefe dos técnicos e os poderes que ele representa são

248

arrogantes e no final das contas aéticos, por mais que da boca para fora manifestem preocupação com os hóspedes; Blane apresenta aspectos desagradáveis de personalidade que são sublinhados em diversas ocasiões (em especial quando “mata” o robô-xerife); o hóspede no castelo medie­ val é extremamente antipático; o hóspede de óculos de Westworld é simpático, mas é um bobalhão incompetente que vê em Delos uma forma de viver fantasias de poder e eficiência (como amante, como xerife). Martin, por outro lado, é-nos apresentado como pessoa, se bem que sem muitos detalhes: sabemos que gosta dos filhos, por exemplo, e que tem solidariedade humana (trata de salvar a mulher presa na masmorra, no final do filme, provavelmente achando tratar-se de uma vítima dos robôs e não — como então descobre — uma robô). E ele resiste durante algum tempo aos prazeres perversos de Westworld. Cede a eles por fim, razão de ser punido com a longa perseguição pelo robô-pistoleiro. Entretanto, durante tal perseguição reassume sua humanidade e uma posição herói­ ca: pode, então, ser redimido. E o final do filme é quando lembra, com revulsâo, a publicidade que o levou a Delos. Não é impossível ao espectador simpatizar com ele, sobretudo após sua “virada” heróica em 56b, ou identificar-se com ele. Do lado dos robôs, o pistoleiro, tal como Martin, está numa categoria única, especial. Os outros robôs intervém na narrativa com alguma importância uma única vez cada um, seja no sentido previsto nas programações, seja quando se revoltam: assim acontece com a prostituta que sobe ao quarto com Martin, a cascavel que morde Blane, o cavaleiro negro mostrado num único duelo etc. O pistoleiro, no entanto, intervém três vezes em desafio aos dois amigos. Depois de baleado, consertam-no para que aja novamente. Ele é ao mesmo tempo descartável e indestrutí­ vel, crescentemente tecnificado e poderoso, além de insistente em sua presença: uma boa metáfora para a própria cultura de massa de que é um ícone. Se existisse algo como Delos, não pode haver muita dúvida de que os pistoleiros locais seriam tirados, no aspecto e nas roupas, de filmes marcantes do gênero faroeste. Ao definir a ficção científica, Jacques Goimard chega ao seguinte: “...a ficção científica é um gênero que comporta um deslocamento da verossimilhança e cumpre uma função mítica” (Goimard 1976, p. 20). O deslocamento de verossimilhança é próprio do fantástico, de a

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