Manual de Processo Penal [11 ed.] 9788544235614


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2022 PROCESSO PENAL RENATO
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APRESENTAÇÃO À 11a EDIÇÃO
PREFACIO
SUMÁRIO
r
1
NOÇÕES
INTRODUTÓRIAS
1. INTRODUÇÃO
2.1. Sistema inquisitório
2.2. Sistema acusatório
2.3. Sistema processual misto ou francês
3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENAL
3.1.1. Noções introdutórias
3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo)
3.1.3. Da regra de tratamento
3.1.4. (In)constitucionalidade da execução provisória da pena29
3.1.4.1. Desnecessidade do trânsito em julgado (STF - HC 126.292/ARE 964.246)
3.1.4.2. Necessidade do trânsito em julgado (STF - ADCs 43,44 e 54)
3.2. Princípio do contraditório
k
3.2.1. Contraditório para a prova e contraditório sobre a prova
3.3. Princípio da ampla defesa
3.3.1. Defesa técnica (processual ou específica)
3.3.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciável
3.3.1.2. Direito de escolha do defensor
3.3.1.3. Defesa técnica plena e efetiva
3.3.2. Autodefesa (material ou genérica)
3.3.2.I. Direito de audiência
3.3.2.2. Direito de presença
33.2.3. Capacidade postulatória autônoma do acusado
3.3.3. Ampla defesa no processo administrativo disciplinar e na execução penal
3.4. Princípio da publicidade
L
3.4.1. Divisão da publicidade: ampla e restrita
3.4.2. Sessão de julgamento na Justiça Militar e votação em sala secreta
3.5. Princípio da busca da verdade: superando o dogma da verdade real
3.5.1. Busca da verdade consensual no âmbito dos Juizados
3.6. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos
3.7. Princípio do juiz natural
3.8.1. Noções introdutórias
3.8.2. Titular do direito de não produzir prova contra si mesmo
3.8.3. Advertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo
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k
3.8.4. Desdobramentos do direito de não produzir prova contra si mesmo
3.8.8.0 direito de não produzir provas contra si mesmo e a prática de outros delitos
3.9. Princípio da proporcionalidade
3.9.1. Da adequação
3.9.2. Da necessidade
3.9.3. Da proporcionalidade em sentido estrito
4. LEI PROCESSUAL PENAL NO ESPAÇO
4.1. Tratados, convenções e regras de direito internacional
4.2. Prerrogativas constitucionais do Presidente da República e de outras autoridades
4.3. Processos da competência da Justiça Militar
4.4. Processos da competência do tribunal especial
4.5. Crimes de imprensa
4.6. Crimes eleitorais
4.7. Outras exceções
5. LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO
5.1. Lei n° 9.099/95 e seu caráter retroativo
5.2. Lei n° 9.271/96 e nova redação do art. 366: suspensão do processo e da prescrição
5.3. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e sua aplicabilidade imediata aos processos em andamento
5.5. Normas processuais heterotópicas
5.6. Vigência, validade, revogação, derrogação e ab-rogação da lei processual penal
6. INTERPRETAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL
6.1. Interpretação extensiva
6.2. Analogia
6.3. Distinção entre analogia e interpretação analógica
6.4. Aplicação supletiva e subsidiária do novo Código de Processo Civil ao processo penal
2
JUIZ DAS GARANTIAS
2. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
3.1. Da suspensão da eficácia sine die do art. 3°-A do CPP introduzido pela Lei n. 13.964/19
3.2.1. Da vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias na fase investigatória
4.1. Conceito
4.2. (In)constitucionalidade formal e material do juiz das garantias
4.5. A figura do juiz das garantias no direito comparado
4.6. Início da eficácia do juiz das garantias
4.9. Competências criminais do Juiz das Garantias
5. ABRANGÊNCIA DA COMPETÊNCIA DO JUIZ DAS GARANTIAS
5.1. Não abrangência das infrações de menor potencial ofensivo
5.2. (In)existência de juiz das garantias nos Tribunais
5.3. (In)existência de juiz das garantias no âmbito do Tribunal do Júri
5.4. (In)existência de juiz das garantias na Justiça Militar e na Justiça Eleitoral
5.6. (In)existência de juiz das garantias colegiado
5.7. (In)existência do Ministério Público das garantias
3
INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR
1. CONCEITO DE INQUÉRITO POLICIAL
2. NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO POLICIAL
3. FINALIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL
4. VALOR PROBATÓRIO DO INQUÉRITO POLICIAL
5. ATRIBUIÇÃO PARA A PRESIDÊNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL
5.1. Funções de polícia administrativa, judiciária e investigativa
5.2. Da atribuição em face da natureza da infração penal
5.3. Da atribuição em face do local da consumação da infração penal
5.4. Das atribuições das Polícias Legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal
5.5. Agências de Inteligência de Segurança Pública e de Estado
6.1. Procedimento escrito
6.2. Procedimento dispensável
6.3. Procedimento sigiloso
6.4. Procedimento inquisitório36
6.5. Procedimento discricionário
6.6. Procedimento oficial
6.7. Procedimento oficioso
6.8. Procedimento indisponível
6.9. Procedimento temporário
7. INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL
7.1. Verificação de procedência de informações (VPI)
7.2. Formas de instauração do inquérito policial
7.2.2. Crimes de ação penal pública condicionada e de ação penal de iniciativa privada
8.2. Notitia criminis inqualificada
9. DILIGÊNCIAS INVESTIGATÓRIAS
9.1. Preservação do local do crime
9.2. Apreensão de objetos
9.3. Colheita de outras provas
9.4. Oitiva do ofendido
9.5. Oitiva do indiciado
9.6. Reconhecimento de pessoas e coisas e acareações
9.7. Determinação de realização de exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias
9.8. Identificação do indiciado e juntada da folha de antecedentes criminais
9.9. Averiguação da vida pregressa do investigado
9.10. Reconstituição do fato delituoso
9.11. Acesso aos dados cadastrais de vítimas e de suspeitos
9.12. Requisição de informações acerca das estações rádio base (ERB's)
10.1. Conceito
10.2. Leis relativas à identificação criminal
10.3. Documentos atestadores da identificação civil
10.4. Hipóteses autorizadoras da identificação criminal
10.5. Identificação do perfil genético (Lei n° 12.654/12)
11. INCOMUNICABILIDADE DO INDICIADO PRESO
11.1. Regime disciplinar diferenciado
12.1. Conceito
12.2. Momento
12.3. Espécies
12.4. Pressupostos
12.5. Desindiciamento
12.6. Atribuição
12.7. Sujeito passivo
12.8. Afastamento do servidor público de suas funções como efeito automático do indicia- mento em crimes de lavagem de capitais
13. CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL
13.1. Prazo para a conclusão do inquérito policial
13.1.1. Quadro sinóptico do prazo para a conclusão do inquérito policial
13.2. Relatório da autoridade policial
13.3. Destinatário dos autos do inquérito policial
13.4. Providências a serem adotadas após a remessa dos autos do inquérito policial
14. ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL
14.1. Fundamentos do arquivamento
14.2.2. Fim do controle judicial sobre o arquivamento do inquérito policial
14.2.4. Instância de revisão ministerial para fins de homologação de arquivamentos
14.3. Procedimento do arquivamento na Justiça Eleitoral
14.5. (In) subsistência de coisa julgada na decisão de arquivamento
14.7. Recorribilidade contra a decisão de arquivamento
14.8. Arquivamento determinado por juiz absolutamente incompetente
k
14.9. Arquivamento implícito
14.10. Arquivamento indireto
15.TRANCAMENTO (OU ENCERRAMENTO ANÔMALO) DO INQUÉRITO POLICIAL
16. INVESTIGAÇÕES DIVERSAS
16.1. Comissões Parlamentares de Inquérito: inquéritos parlamentares
16.3. Inquérito Policial Militar
16.4. Investigação criminal pelo Ministério Público
16.5. Inquérito civil
16.6. Termo circunstanciado
16.7.1. Inquérito judicial
16.7.2. Revogada Lei das organizações criminosas
16.7.3. Infrações penais praticadas por magistrados
16.8. Investigação criminal defensiva
16.9. Investigação por detetive particular (Lei n. 13.432/17)
17.1. Conceito
17.2. Direito subjetivo do acusado ou discricionariedade do Ministério Público
17.3. Previsão normativa
17.4. Direito intertemporal
17.5. Requisitos para a celebração do acordo de não-persecução penal
17.6. Vedações à celebração do acordo de não persecução penal
17.7. Condições a serem impostas ao investigado
17.8. Controle jurisdicional
17.9. Descumprimento injustificado das obrigações assumidas pelo investigado
17.10. Cumprimento integral do acordo de não persecução penal
18. CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL
4
AÇÃO PENAL E
AÇÃO CIVIL EXDELICTO
1. DIREITO DE AÇÃO PENAL
2. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE AÇÃO PENAL
3. LIDE NO PROCESSO PENAL
4. CONDIÇÕES DA AÇÃO PENAL
4.1.1. À luz da teoria geral do processo
4.1.1.1. Possibilidade jurídica do pedido
4.1.1.2. Legitimidade para agir
4.1.1.2.1. Legitimidade ordinária e extraordinária no processo penal
4.1.1.3. Interesse de agir
4.1.1.3.1. Prescrição em perspectiva e ausência de interesse de agir
4.1.1.4. Justa Causa
4.1.1.4.1. Justa Causa duplicada
4.1.2. À luz de uma teoria específica do processo penal
4.2. Condições específicas da ação penal
4.3. Condições da ação e condições de prosseguibilidade (condição superveniente da ação)
4.4. Condições da ação, condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias
5. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES PENAIS
5.1. Classificação das ações penais condenatórias
6. PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E DA AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA
6.2. Princípio do ne bis in idem (inadmissibilidade da persecução penal múltipla)
6.3. Princípio da intranscendência
6.4. Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública
6.5. Princípio da oportunidade ou conveniência da ação penal de iniciativa privada
6.6. Princípio da indisponibilidade da ação penal pública
6.7. Princípio da disponibilidade da ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalíssima)
6.8. Princípio da (in) divisibilidade da ação penal pública
6.9. Princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada
6.10. Princípio da oficialidade
6.11. Princípio da autoritariedade
6.12. Princípio da oficiosidade
6.13. Quadro comparativo dos princípios da ação penal
7. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA
8. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA
8.1. Representação
8.1.1. Natureza jurídica da representação
8.1.2. Desnecessidade de formalismo
8.1.3. Destinatário da representação
8.1.4. Legitimidade para o oferecimento da representação
8.1.5. Prazo decadencial para o oferecimento da representação
8.1.6. Retratação da representação
8.1.6.1. Retratação da retratação da representação
8.1.6.2. Retratação da representação na Lei Maria da Penha
8.1.7. Eficácia objetiva da representação
8.1.8. Representação no processo penal militar
8.2. Requisição do Ministro da Justiça
8.2.1. Requisição no processo penal militar
9. AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA
9.1. Ação penal exclusivamente privada
9.2. Ação penal privada personalíssima
9.3. Ação penal privada subsidiária da pública
9.4. Extinção da punibilidade e ação penal de iniciativa privada
9.4.1. Decadência
9.4.2. Renúncia ao direito de queixa
9.4.3. Perdão do ofendido
9.4.5. Perempção
9.5. Ação penal privada no processo penal militar
10. AÇÃO PENAL POPULAR
11. AÇÃO PENAL ADESIVA
12. AÇÃO DE PREVENÇÃO PENAL
13. AÇÃO PENAL SECUNDÁRIA
14.1. Ação penal nos crimes contra a honra
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14.4. Ação penal nos crimes ambientais: pessoas jurídicas e dupla imputação
14.6. Ação penal nos crimes contra a dignidade sexual (Lei n° 13.718/18)
14.6.1. Redação original do art. 225 do CP (antes da Lei n. 12.015/09)
14.6.2. Redação do art. 225 do CP determinada pela Lei n. 12.015/09 (antes da Lei n. 13.718/18)
14.6.3. Redação do art. 225 do CP determinada pela Lei n. 13.718/18
14.6.5. Direito intertemporal
14.7. Ação penal no crime de invasão de dispositivo informático
15.1. Denúncia e queixa-crime
15.2. Requisitos da peça acusatória
15.2.1. Imputação criminal
15.2.1.1. Imputação patrimonial
15.2.2. Qualificação do acusado
15.2.3. Classificação do crime
15.2.4. Rol de testemunhas
15.2.5. Endereçamento da peça acusatória
15.2.6. Redação em vernáculo
15.2.7. Razões de convicção ou presunção da delinquência
15.2.8. Peça acusatória subscrita pelo Ministério Público ou pelo advogado do querelante
15.2.9. Procuração da queixa-crime e recolhimento de custas
15.3. Prazo para o oferecimento da peça acusatória
16.1. Denúncia genérica e crimes societários
16.1.1. Acusação geral e acusação genérica
16.2. Cumulação de imputações
16.3. Imputação implícita
16.4. Imputação alternativa
17. ADITAMENTO À DENÚNCIA
17.1.1. Quanto ao objeto do aditamento: próprio e impróprio
17.1.2. Quanto à voluntariedade do aditamento: espontâneo e provocado
17.2. Interrupção da prescrição
17.3. Procedimento do aditamento
17.4. Aditamento à queixa-crime
18.1. Noções introdutórias
18.2. Sistemas atinentes à relação entre a ação civil ex delicto e o processo penal
18.3. Efeitos civis da absolvição penal
18.3.1. Efeitos da absolvição penal no âmbito da ação de improbidade administrativa
18.4.1. Quantificação do montante a ser indenizado ao ofendido
18.4.2. Natureza do dano cuja indenização mínima pode ser fixada na sentença condenatória
5
COMPETÊNCIA CRIMINAL
1. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA
2. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
2.1. Lei processual que altera regras de competência
2.2. Convocação de Juizes de Io grau de jurisdição para substituição de Desembargadores
3. ESPÉCIES DE COMPETÊNCIA
4. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E RELATIVA
4.1. Quanto à natureza do interesse
4.2. Quanto à arguição da incompetência
4.3. Quanto ao reconhecimento da incompetência no juízo ad quem
4.4. Quanto às consequências da incompetência absoluta e relativa
4.5. Quanto à coisa julgada nos casos de incompetência absoluta e relativa
5. FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA CRIMINAL
6. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
7. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
1.1. Distinção entre a Justiça Militar da União e a Justiça Militar dos Estados
1.1.1. Quanto à competência criminal
1.1.3. Quanto ao acusado
1.1.4. Quanto ao órgão jurisdicional de Ia instância
1.1.5. Quanto ao órgão jurisdicional de 2a instância
1.1.6. Quadro comparativo entre a Justiça Militar da União e a Justiça Militar Estadual
1.2. Crime militar
1.2.1. Crime propriamente militar e crime impropriamente militar
1.2.2. Crime militar de tipificação direta e crime militar de tipificação indireta
1.2.3.1. Lei n. 13.491 /17 e o princípio do juiz natural
1.2.3.2. Lei n. 13.491/17 e o direito intertemporal
1.2.3.3. (In) constitucionalidade da Lei n. 13.491/17
1.5.1. Do conceito de militar para fins de aplicação da lei penal militar
1.5.2. Do inciso I do art. 9o do Código Penal Militar
I. 5.3. Do inciso II do art. 9o do Código Penal Militar
1.5.4. Do inciso III do art. 9o do CPM
1.5.6. Dos crimes militares praticados em tempo de guerra
2. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA ELEITORAL
3. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO
4.1. Considerações iniciais
4.2. Atribuições de polícia investigativa da Polícia Federal
4.3.1. Crimes políticos
4.3.2. Crimes contra a União
4.3.3. Crimes contra autarquias federais
4.3.4. Crimes contra empresas públicas federais
4.3.5. Crimes contra fundações públicas federais
4.3.6. Crimes contra entidades de fiscalização profissional
4.3.7. Crimes contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
4.3.10. Crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/03)
4.3.12. Crime praticado contra funcionário público federal
4.3.13. Crime praticado por funcionário público federal
4.3.14. Tribunal do Júri Federal
4.3.15. Crimes contra o meio ambiente
4.3.16. Crimes contra a fé pública
4.3.17. Juízo Federal da Execução Penal
4.3.19. Atos infracionais
4.3.20. Crimes previstos na Lei Antiterrorismo (Lei n° 13.260/16)
4.3.21. Crimes cometidos no estrangeiro
4.4.1. Tráfico internacional de drogas
4.6.1. Crimes contra a organização do trabalho
4.6.2. Crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira
4.10. Crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro (CF, Art. 109, X)
4.11. Disputa sobre direitos indígenas (CF, Art. 109, XI)
4.11.1. Genocídio contra índios
4.12. Conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual
5. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA ESTADUAL
6. JUSTIÇA POLÍTICA OU EXTRAORDINÁRIA
COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
1. CONCEITO
2. REGRAS BÁSICAS
2.1. Investigação e indiciamento de pessoas com foro por prerrogativa de função
2.3. Duplo grau de jurisdição
2.4.1. Regra da contemporaneidade
2.4.2. Regra da atualidade
2.4.3. Regra da atualidade limitada, restrita ou mista
2.5. Crime cometido após o exercício funcional
2.6. Dicotomia entre crime comum e crime de responsabilidade
2.7. Local da infração
2.8. Crime doloso contra a vida
2.9. Hipóteses de concurso de agentes
2.10. Constituições Estaduais e princípio da simetria
2.11. Exceção da verdade
2.12. Atribuições dos membros do Ministério Público perante os Tribunais Superiores
2.13. Procedimento originário dosTribunais
3. CASUÍSTICA
3.1.1. Supremo Tribunal Federal
3.1.2. Superior Tribunal de Justiça
3.1.3. Tribunal Superior Eleitoral
3.1.4. Superior Tribunal Militar
3.1.5. Tribunais Regionais Federais
3.1.6. Tribunais Regionais Eleitorais
3.1.7. Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal
3.1.8. Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo
3.1.9. Senado Federal
3.1.10. Tribunal Especial
3.1.11. Câmara Municipal
3.2. Quanto aos titulares de foro por prerrogativa de função
3.2.1. Presidente da República
3.2.2. Deputados federais e Senadores
3.2.3. Ministros de Estado
3.2.5. Governador de Estado
3.2.7. Membros do Ministério Público Estadual e Juizes Estaduais
3.2.8. Membros do Ministério Público da União
3.2.9. Deputados Estaduais
3.2.10. Prefeitos municipais
4. QUADRO SINÓPTICO DE COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
1. INTRODUÇÃO
2. COMPETÊNCIA TERRITORIAL PELO LUGAR DA CONSUMAÇÃO DA INFRAÇÃO
3.1. Quanto às espécies de infração penal
3.2. Quanto aos crimes em espécie
4. COMPETÊNCIA TERRITORIAL PELA RESIDÊNCIA OU DOMICÍLIO DO RÉU
COMPETÊNCIA DE JUÍZO
1. DETERMINAÇÃO DO JUÍZO COMPETENTE
2. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
3.1. Conceito legal de organizações criminosas
3.2. Formação do juízo colegiado em primeiro grau
4. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL
4.1. Execução da pena de multa
5. COMPETÊNCIA POR DISTRIBUIÇÃO
6. COMPETÊNCIA POR PREVENÇÃO694
CAPÍTULO VI MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA
1.1. Introdução
1.2. Conexão
1.3. Continência
1.4. Efeitos da conexão e da continência
1.5.1. Competência prevalente do Tribunal do Júri
1.5.2.1. Concurso entre a jurisdição comum e a especial
1.5.2.2. Concurso entre órgãos de jurisdição superior e inferior
1.5.2.3. Concurso entre a Justiça Federal e a Estadual
1.5.3. Jurisdições da mesma categoria
1.6. Separação de processos
1.6.1. Separação obrigatória dos processos
1.6.1.1. Concurso entre a jurisdição comum e a militar
1.6.1.2. Concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores
1.6.1.3. Doença mental superveniente à prática delituosa
1.6.1.6. Recusas peremptórias no júri
1.6.1.7. Suspensão do processo em relação ao colaborador
1.6.2. Separação facultativa de processos
1.6.2.1. Infrações praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes
1.6.2.2. Excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória
1.6.2.3. Motivo relevante pelo qual o juiz repute conveniente a separação
1.7. Perpetuação da competência nas hipóteses de conexão e continência
2. PRORROGAÇÃO DE COMPETÊNCIA
3. PERPETUAÇÃO DE COMPETÊNCIA
6
PROVAS
TEORIA GERAL DAS PROVAS
1. TERMINOLOGIA DA PROVA1
1.1. Acepções da palavra prova
1.2. Distinção entre prova e elementos informativos
1.3. Provas cautelares, não repetíveis e antecipadas
1.4. Destinatários da prova
1.5. Elemento de prova e resultado da prova
1.6. Finalidade da prova
1.7. Sujeitos da prova
1.8. Forma da prova
1.9. Fonte de prova, meios de prova e meios de obtenção de prova
1.9.1. Meios extraordinários de obtenção de prova (técnicas especiais de investigação)
1.10. Prova direta e prova indireta
1.11. Indício: prova indireta ou prova semiplena
1.12. Suspeita
1.13. Objeto da prova
1.14. Prova direta (positiva) e contrária (negativa); a contraprova
1.15. Prova emprestada
1.16. Prova nominada e prova inominada
1.17. Prova típica e prova atípica
1.18. Prova anômala e prova irritual
1.19. Critérios de decisão (standards probatórios)
2.1. Conceito
2.2. Ônus da prova perfeito e menos perfeito
2.3. Ônus da prova objetivo e subjetivo
2.4. Distribuição do ônus da prova no processo penal
2.4.1. Ônus da prova da acusação e da defesa
2.4.2. Ônus da prova exclusivo da acusação
2.5. Inversão do ônus da prova
2.5.1. Confisco alargado e (im) possibilidade de inversão do ônus da prova
3. INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ: A GESTÃO DA PROVA PELO MAGISTRADO
4. SISTEMAS DE AVALIAÇÃO DA PROVA
4.1. Sistema da íntima convicção do magistrado
4.2. Sistema da prova tarifada
4.3. Sistema do convencimento motivado (persuasão racional do juiz)
5.1. Limitações ao direito à prova
5.1.1. Provas ilícitas e ilegítimas
5.1.2. Tratamento da (in) admissibilidade das provas ilícitas e ilegítimas
5.2. Prova ilícita por derivação (teoria dos frutos da árvore envenenada)
5.3. Limitações à prova ilícita por derivação
5.3.1. Da teoria da fonte independente
5.3.2. Teoria da descoberta inevitável
5.3.3. Limitação da mancha purgada (vícios sanados ou tinta diluída)
5.3.4. Exceção da boa-fé
5.3.5. A teoria do risco
5.3.6. Limitação da destruição da mentira do imputado
5.3.7. Doutrina da visão aberta
5.3.7.I. Teoria do encontro fortuito de provas (serendipidade) e crime achado
5.3.8. Limitação da renúncia do interessado
5.3.9. A limitação da infração constitucional alheia
5.4. Inutilização da prova ilícita
5.4.1. Inutilização da prova ilícita no Tribunal do Júri
5.5. Descontaminação do julgado (ou desentranhamento do juiz)
6. PRINCÍPIOS RELATIVOS À PROVA PENAL
6.1. Princípio da proporcionalidade
6.1.1. Princípio da proporcionalidade e prova ilícita pro reo
6.1.2. Princípio da proporcionalidade e prova ilícita pro societate
6.2. Princípio da comunhão da prova
6.3. Princípio da autorresponsabilidade das partes
6.4. Princípio da oralidade
6.4.1. Princípio da identidade física do juiz
6.4.1.1. Magistrados instrutores e princípio da identidade física do juiz
6.5. Princípio da liberdade probatória
6.5.1. Liberdade probatória quanto ao momento da prova
6.5.2. Liberdade probatória quanto ao tema da prova
6.5.3. Liberdade probatória quanto aos meios de prova
6.6. Princípio do favor rei
MEIOS DE PROVA E MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA EM ESPECIE
1.1. Cadeia de custódia
1.1.1. Etapas do rastreamento do vestígio na cadeia de custódia
1.1.2. Coleta dos vestígios
1.1.3. Recipientes para acondicionamento de vestígios
1.1.4. Centrais de custódia
1.1.5. Destinação do material após a realização da perícia
1.2. Do exame de corpo de delito e das perícias em geral
1.2.1. Do Corpo de delito
1.2.2. Exame de corpo de delito e outras perícias
1.2.3. Laudo pericial
1.2.3.1. Momento para a juntada do laudo pericial
1.2.3.2. Sistemas de apreciação dos laudos periciais
1.2.3.3. Laudo pericial e contraditório
1.2.4. Obrigatoriedade do exame de corpo de delito: infrações transeuntes e não transeuntes
1.2.5. Exame de corpo de delito direto e indireto
1.2.5.1. Casuística
1.2.6. Ausência do exame de corpo de delito
1.2.7. Peritos: oficiais e não oficiais
1.2.7.1. Número de peritos
1.2.8. Assistente técnico196
1.2.9. Autópsia e exumação para exame cadavérico
1.2.10. Laudo pericial complementar no crime de lesões corporais
1.2.11. Exame pericial de local de crime
1.2.12. Perícias de laboratório
1.2.13. Exame pericial para avaliação do prejuízo causado pelo delito
1.2.14. Exame pericial nos casos de incêndio
1.2.15. Exame pericial para reconhecimento de escritos
1.2.16. Exame pericial dos instrumentos do crime
1.2.17. Exame pericial por meio de carta precatória
2.1. Conceito
2.2. Natureza jurídica
2.3. Momento para a realização do interrogatório
2.4. Condução coercitiva
2.5. Foro competente para a realização do interrogatório
2.6. Ausência do interrogatório
2.7.1. Ato personalíssimo
2.7.2. Ato contraditório
2.7.3. Ato assistido tecnicamente
2.7.5. Ato individual
2.7.6. Ato bifásico
2.7.7. Ato protegido pelo direito ao silêncio221
2.7.8. Liberdade de autodeterminação
2.7.9. Ato público
2.7.10. Ato realizável a qualquer momento, antes do trânsito em julgado
2.8. Local da realização do interrogatório
2.9. Nomeação de curador
2.10.1. Breve histórico da Lei n° 11.900/09: a Lei paulista n° 11.819/05
2.10.2. A entrada em vigor da Lei n° 11.900/09
2.10.3. Finalidades do uso da videoconferência
2.10.4. Intimação das partes da realização da videoconferência
2.10.6. Direito de entrevista prévia e reservada com o defensor
2.10.7. Da (in) constitucionalidade do interrogatório por videoconferência
3.1. Conceito
3.2. Classificação da confissão
3.3. Características da confissão
3.4. Valor probatório da confissão
3.5. Circunstância atenuante da confissão
4. DECLARAÇÕES DO OFENDIDO
5.1. Conceito de testemunha e sua natureza jurídica
5.2. Características da prova testemunhai
5.3.1. Dever de depor
5.3.2. Dever de comparecimento
5.3.3. Dever de prestar o compromisso de dizer a verdade
5.3.4. Dever de comunicar mudança de residência
5.4. Espécies de testemunhas
5.4.1. Testemunhas vulneráveis e depoimento sem dano (depoimento especial)
5.5.1. Apresentação do rol de testemunhas
5.5.2. Intimação das testemunhas
5.5.3. Substituição de testemunhas
5.5.4. Desistência da oitiva de testemunhas
5.5.5. Incomunicabilidade das testemunhas
5.5.6. Retirada do acusado da sala de audiência
5.5.7. Assunção do compromisso de dizer a verdade
5.5.8. Qualificação da testemunha
5.5.9. Contradita e arguição de parcialidade da testemunha
5.5.11. Inversão da ordem de oitiva das testemunhas
5.6. Direito ao confronto e produção de prova testemunhai incriminadora
5.6.1. Testemunhas anônimas e direito ao confronto
6.1. Conceito e natureza jurídica
6.2. Procedimento e consequências decorrentes da atipicidade procedimental
6.3. Reconhecimento fotográfico e fonográfico
7.1. Conceito e natureza jurídica
7.2. Procedimento probatório
7.3. Valor probatório
8.1. Conceito e espécies
8.2. Produção da prova documental
8.3. Tradução de documentos em língua estrangeira
8.4. Restituição de documentos
9. INDÍCIOS
10.1. Conceito e natureza jurídica
10.2. Iniciativa e decretação
10.3. Objeto
10.4.1. Busca domiciliar
10.4.1.1. Mandado de busca e apreensão
10.4.1.2. Execução da busca domiciliar
10.4.1.3. Descoberta de outros elementos probatórios e teoria do encontro fortuito de provas
10.4.2. Busca pessoal
10.4.2.1. Revista íntima em presídios
11.1.2. Direito intertemporal e Lei n° 9.296/96
11.1.3. Conceito de interceptação
11.1.4. Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais)
11.1.5. Comunicações telefônicas de qualquer natureza
11.1.5.1.1. Direito probatório de 1a geração: o caso Olmstead
11.1.5.1.2. Direito probatório de 2a geração: o caso Katz
11.1.5.1.3. Direito probatório de 3a geração: o caso Kyllo
11.1.6. Quebra do sigilo de dados telefônicos417
11.1.8. Requisitos para a interceptação telefônica
11.1.8.1. Ordem fundamentada da autoridade judiciária competente (teoria do juízo aparente)
11.1.8.1.1. Da fundamentação da decisão
11.1.8.2. Indícios razoáveis de autoria ou participação
11.1.8.3. Quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis
11.1.8.4. Infração penal punida com pena de reclusão (crime de catálogo)
11.1.8.5. Delimitação da situação objeto da investigação e do sujeito passivo da interceptação
11.1.9. Sigilo profissional do advogado
11.1.11. Procedimento
11.1.12. Decretação da interceptação telefônica de ofício pelo juiz
11.1.13. Segredo de justiça
11.1.14. Duração da interceptação
11.1.15. Execução da interceptação telefônica
11.1.16. Incidente de inutilização da gravação que não interessar à prova
11.1.17. Resolução n° 59 do Conselho Nacional de Justiça
11.1.18. Caso Escher e outros (Corte Interame- ricana de Direitos Humanos)
11.2.1. Noções introdutórias
11.2.2. Captação ambiental
11.2.3. (I)licitude da captação ambiental e (des) necessidade de prévia autorização judicial
11.2.4. Procedimento e requisitos para a captação ambiental
11.2.5. Local e forma de instalação dos meios eletrônicos de produção de provas
11.2.6. Prazo de duração da captação ambiental
12. QUEBRA DO SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS, FINANCEIROS E FISCAIS
13.1. Origem e conceito
13.2. Natureza jurídica da colaboração premiada
13.3. Distinção entre colaboração premiada e delação premiada (chamamento de corréu)
13.4. Ética e moral
13.5. Direito ao silêncio
13.6. Previsão normativa
13.6.1. Lei de proteção às testemunhas (Lei n° 9.807/99)
13.6.2. Nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13)
13.7. Voluntariedade e motivação da colaboração
13.8. Eficácia objetiva da colaboração premiada
13.9. Prêmios legais
13.9.1. (Im) possibilidade de sanções premiais extralegais
13.11. Valor probatório da colaboração premiada: regra da corroboração
13.12. Observância do contraditório e da ampla defesa
13.12.1. A implicação do acordo na ordem de manifestação dos acusados
13.13. Acordo de colaboração premiada
13.13.2. Conteúdo do acordo de colaboração premiada
13.13.3. Legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada
13.13.4. Retratação do acordo
13.13.5. Distinção entre retratação, rescisão e anulação do acordo de colaboração premiada
13.13.6. Intervenção do juiz
13.13.7. Momento para a celebração do acordo de colaboração premiada
13.13.8. Publicidade do acordo de colaboração premiada
14.1. Conceito e previsão legal
14.2. (Des) necessidade de prévia autorização judicial
14.3. Flagrante prorrogado, retardado ou diferido
14.4. Entrega vigiada
15.1. Conceito e previsão normativa
15.2. Atribuição para a infiltração: agentes de polícia
15.2.1. (Im)possibilidade de infiltração de particulares
15.3. Requisitos para a infiltração
15.4. Duração da infiltração
15.7. Responsabilidade criminal do agente infiltrado
15.8. Infiltração virtual
7
MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL
1. A TUTELA CAUTELAR NO PROCESSO PENAL
2. PRINCÍPIOS APLICÁVEIS ÀS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL
2.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade)
2.2.1. Da vedação da prisão cautelar exlege
2.3. Da proporcionalidade
5.1. Aplicação isolada ou cumulativa das medidas cautelares
5.3. Legitimidade para o requerimento de decretação de medida cautelar
5.4. Contraditório prévio à decretação das medidas cautelares
5.5. Descumprimento injustificado das obrigações inerentes às medidas cautelares
5.6. Revogabilidade e/ou substitutividade das medidas cautelares
5.7.1. Em favor da acusação
5.7.2. Em favor do acusado
5.8. Duração e extinção das medidas cautelares de natureza pessoal
5.9. Detração
1. CONCEITO DE PRISÃO E SEU FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL
2. ESPÉCIES DE PRISÃO
3.1.1. Prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel
3.1.2. Prisão do falido
3.2. Prisão administrativa
3.2.1. Prisão do estrangeiro para fins de extradição, expulsão e deportação
3.3.1. Da prisão militar em virtude de transgressão disciplinar
3.3.2. Da prisão militar em virtude de crime propriamente militar
6. MOMENTO DA PRISÃO
6.1. Inviolabilidade do domicílio
6.2. Conceito de dia
6.3. Cláusula de reserva de jurisdição
6.4. Momento da prisão e Código Eleitoral
7. IMUNIDADES PRISIONAIS
7.1. Presidente da República e Governadores de Estado
7.2. Imunidade diplomática
7.3. Senadores, deputados federais, estaduais ou distritais
7.4. Magistrados e membros do Ministério Público
7.5. Advogados
7.6. Menores de 18 anos
8. PRISÃO E EMPREGO DE FORÇA
8.1. Instrumentos de menor potencial ofensivo (ou não letais)
9. MANDADO DE PRISÃO
9.1. Cumprimento do mandado de prisão
9.2. Difusão vermelha (red notice)
9.2.1. Difusão vermelha a ser executada no exterior
9.2.2. Difusão vermelha a ser cumprida no Brasil
10. PRISÃO ESPECIAL E SEPARAÇÃO DE PRESOS PROVISÓRIOS
10.1. Prisão de índios
11. SALA DE ESTADO-MAIOR
1. DA OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DE DIREITO
2. DO RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DO PRESO
2.1. Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia (“Perp Walk").
2.2. Respeito à integridade física e moral do preso e uso de algemas
2.3. Caso Damião Ximenes Lopes
5. DO DIREITO AO SILÊNCIO (NEMO TENETUR SE DETEGERE)
6. DA ASSISTÊNCIA DE ADVOGADO AO PRESO
8. DO RELAXAMENTO DA PRISÃO ILEGAL
9.1. Conceito
9.2. Previsão normativa
9.3. Presidência da audiência de custódia
9.4. Prazo
9.5. Procedimento adequado
9.6. (Im) possibilidade de utilização da videoconferência
9.9. Liberdade provisória sem fiança nas hipóteses de descriminantes
9.10. Liberdade provisória proibida (CPP, art. 310, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19)
9.11. Consequências decorrentes da não realização da audiência de custódia
9.12. Tipificação do crime de abuso de autoridade (Lei n. 13.869/19)
DA PRISÃO EM
FLAGRANTE
1. CONCEITO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
2. FUNÇÕES DA PRISÃO EM FLAGRANTE
3. FASES DA PRISÃO EM FLAGRANTE
4. NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO
5. SUJEITO ATIVO DA PRISÃO EM FLAGRANTE
5.1. Flagrante facultativo
5.2. Flagrante obrigatório, compulsório ou coercitivo
6. SUJEITO PASSIVO DO FLAGRANTE
7. ESPÉCIES DE FLAGRANTE
7.1. Flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro
7.2. Flagrante impróprio, imperfeito, irreal ou quase-flagrante
7.3. Flagrante presumido, ficto ou assimilado
7.5. Flagrante esperado
7.5.1. Venda simulada de droga ou outros objetos ilícitos (v.g., armas de fogo)
7.6. Flagrante prorrogado, protelado, retardado ou diferido: ação controlada e entrega vigiada
7.7. Flagrante forjado, fabricado, maquinado ou urdido
8.1. Prisão em flagrante em crime permanente
8.2. Prisão em flagrante em crime habitual
8.4. Prisão em flagrante em crimes formais
8.5. Prisão em flagrante em crime continuado (flagrante fracionado)
9. FLAGRANTE E APRESENTAÇÃO ESPONTÂNEA DO AGENTE
10. LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO
10.1. Autoridade com atribuições para a lavratura do auto de prisão em flagrante
10.2. Condutor e testemunhas
10.3. Interrogatório do preso312
10.4. Fracionamento do auto de prisão em flagrante delito
10.5. Prazo para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito
10.7. Recolhimento à prisão
10.8. Remessa do auto à autoridade competente
10.9. Remessa do auto de prisão em flagrante delito à autoridade judiciária
10.11. Nota de culpa
11. CONVALIDAÇÀO JUDICIAL DA PRISÃO EM FLAGRANTE
11.1. Relaxamento da prisão em flagrante ilegal
11.2. Conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária)
DA PRISÃO PREVENTIVA
1. CONCEITO DE PRISÃO PREVENTIVA
3. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DURANTE O CURSO DO PROCESSO CRIMINAL
3.1. Concessão antecipada de benefícios prisionais ao preso cautelar
4. INICIATIVA PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA
4.2. Legitimidade para o requerimento de decretação da prisão preventiva
5. PRESSUPOSTOS345
5.2.1. Garantia da ordem pública
5.2.2. Garantia da ordem econômica
5.2.3. Garantia de aplicação da lei penal
5.2.3.1. Prisão de estrangeiros e garantia de aplicação da lei penal
5.2.4. Conveniência da instrução criminal
6. HIPÓTESES DE ADMISSIBILIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA
6.1. Crimes dolosos punidos com pena máxima superior a 4 (quatro) anos
7. PRISÃO PREVENTIVA E EXCLUDENTES DE ILI- CITUDE E DE CULPABILIDADE
8.1. Noções introdutórias
8.3. Natureza do prazo para o encerramento do processo e princípio da proporcionalidade
8.4. Hipóteses que autorizam o reconhecimento do excesso de prazo
8.5. Excesso de prazo provocado pela defesa
8.7. Excesso de prazo e aceleração do julgamento
8.8. Relaxamento da prisão por excesso de prazo e decretação de nova prisão
8.9. Excesso de prazo e efeito extensivo
8.10. Relaxamento da prisão preventiva e liberdade plena
8.11. Relaxamento da prisão e natureza da infração penal
8.12. Excesso de prazo e investigado ou acusado solto
9. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA
9.2. Fundamentação per relationem (ou aliunde)
10. REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA
11.2. Consequências decorrentes da inobservância do prazo nonagesimal
12. APRESENTAÇÃO ESPONTÂNEA DO ACUSADO
13. PRISÃO PREVENTIVA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR
DA PRISÃO TEMPORÁRIA
1. ORIGEM
2. CONCEITO DE PRISÃO TEMPORÁRIA
3. REQUISITOS
3.1. Da imprescindibilidade da prisão temporária para as investigações
4. PROCEDIMENTO
5. PRAZO
6. DIREITOS E GARANTIAS DO PRESO TEMPORÁRIO
DA PRISÃO DOMICILIAR
1.DA PRISÃO DOMICILIAR
1.1. Hipóteses de admissibilidade e ônus da prova
1.2. Fiscalização da prisão domiciliar
1.3. Saídas controladas
1.4. Utilização da prisão domiciliar como medida cautelar diversa da prisão preventiva
1.5. Detração
MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL
DIVERSAS DA PRISÃO
2. COMPARECIMENTO PERIÓDICO EM JUÍZO
3. PROIBIÇÃO DE ACESSO OU FREQUÊNCIA A DETERMINADOS LUGARES
4. PROIBIÇÃO DE MANTER CONTATO COM PESSOA DETERMINADA
5. PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DA COMARCA OU DO PAÍS
8. INTERNAÇÃO PROVISÓRIA
9. FIANÇA
10. MONITORAÇÃO ELETRÔNICA
11. CONDUÇÃO COERCITIVA
13. PODER GERAL DE CAUTELA NO PROCESSO PENAL
CAPÍTULO X DA LIBERDADE PROVISÓRIA
1. CONCEITO
3. ESPÉCIES DE LIBERDADE PROVISÓRIA
4. LIBERDADE PROVISÓRIA SEM FIANÇA
4.1. Revogada liberdade provisória sem fiança nas hipóteses em que o conduzido livrava-se solto
4.2. Liberdade provisória sem fiança nas hipóteses de descriminantes
4.4. Liberdade provisória sem fiança por motivo de pobreza
5.1. Conceito e natureza jurídica da fiança
5.2. Momento para a concessão da fiança
5.3. Concessão de fiança pela autoridade policial
5.4. Valor da fiança
5.5. Infrações inafiançáveis
5.6. Obrigações processuais
5.7.1. Quebramento da fiança
5.7.2. Fiança definitiva
5.7.3. Perda da fiança
5.7.4. Cassação da fiança
5.7.5. Reforço da fiança
5.7.6. Fiança sem efeito (inidoneidade da fiança)
5.7.7. Dispensa da fiança
5.7.8. Conversão da liberdade provisória com fiança em liberdade provisória sem fiança
5.7.9. Destinação da fiança
5.7.10. Execução da fiança
6. LIBERDADE PROVISÓRIA OBRIGATÓRIA
7. LIBERDADE PROVISÓRIA PROIBIDA
8. LIBERDADE PROVISÓRIA COM VINCULAÇÃO
9. LIBERDADE PROVISÓRIA SEM VINCULAÇÃO
11. LIBERDADE PROVISÓRIA E RECURSOS
12. LIBERDADE PROVISÓRIA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR
13. MENAGEM
8
QUESTÕES E PROCESSOS INCIDENTES
1. NOÇÕES GERAIS
2. QUESTÕES PREJUDICIAIS
2.1 Conceito e natureza jurídica
2.2. Características
2.3. Distinção entre questões prejudiciais e questões preliminares
2.4. Classificação das questões prejudiciais
2.4.1. Quanto à natureza
2.4.2. Quanto à competência
2.4.3. Quanto aos efeitos
2.4.4. Quanto ao grau de influência da questão prejudicial sobre a prejudicada
2.5. Sistemas de Solução
2.6.1. Pressupostos
2.6.2. Consequências
2.7.1. Pressupostos
2.7.2. Consequências
2.8. Recursos cabíveis
2.9. Decisão cível acerca da questão prejudicial heterogênea e sua influência no âmbito criminal
2.10. Princípio da suficiência da ação penal
3.1. Conceito
3.2. Exceções ou objeções
3.3.1. Quanto à natureza
3.3.2. Quanto aos efeitos
3.3.3. Quanto à forma de processamento
3.4. Natureza Jurídica
3.5. Exceção de suspeição, de impedimento ou de incompatibilidade
3.5.1. Procedimento da exceção de suspeição (impedimento e incompatibilidade)
3.5.1.1. Reconhecimento de ofício da suspeição
3.5.1.2. Oposição da exceção de suspeição
3.5.1.3. Apreciação da exceção de suspeição pelo juiz excepto
3.5.1.4. Julgamento da exceção de suspeição pelo Tribunal competente
3.5.1.5. Recursos cabíveis
3.5.2. Suspeição nos Tribunais de 2a instância e nos Tribunais Superiores
3.5.3. Suspeição do órgão do Ministério Público
3.5.4. Suspeição de serventuários, de funcionários da justiça, peritos e intérpretes
3.5.5. Suspeição dos jurados
3.5.6. Suspeição da autoridade policial
3.6. Exceção de incompetência
3.6.1. Do procedimento da exceção de incompetência
3.6.2. Arguição da incompetência antes do início do processo
3.6.3. Recursos cabíveis
3.7. Exceção de ilegitimidade
3.7.2. Procedimento da exceção de ilegitimidade de parte
3.7.3. Recursos cabíveis
3.8. Exceção de litispendência
3.8.1. Procedimento da exceção de litispendência
3.8.2. Recursos cabíveis
3.9.1. Conceito de coisa julgada
3.9.2. Coisa julgada formal e material
3.9.3. Coisa julgada e coisa soberanamente julgada
3.9.4.1. Limites objetivos
3.9.4.2. Limites subjetivos
3.9.5. Duplicidade de sentenças condenató- rias com trânsito em julgado
3.9.6. Procedimento da exceção de coisa julgada
4. CONFLITO DE COMPETÊNCIA
5. CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES NO ÂMBITO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
6. RESTITUIÇÃO DE COISAS APREENDIDAS
6.1. Apreensão
6.2. Vedações e restrições à restituição de coisas apreendidas
6.2.1. Destinação das coisas apreendidas não restituídas
6.3. Procedimento da restituição de coisas apreendidas
6.3.1. Recursos cabíveis
7.1. Noções introdutórias
7.1.1. Jurisdicionalidade
7.1.2. Pressupostos
7.1.3. Contraditório prévio
7.2. Sequestro
7.2.1. Procedimento
7.2.2. Defesa
7.2.3. Levantamento do sequestro
7.2.4. Destinação final do sequestro
7.3. Especialização e registro da hipoteca legal134
7.3.1. Momento
7.3.2. Pressupostos
7.3.3. Legitimidade
7.3.4. Procedimento
7.3.5. Defesa
7.3.6. Finalização
7.4. Arresto prévio (ou preventivo)
7.5. Arresto subsidiário de bens móveis
7.5.1. Inscrição de hipoteca legal e arresto nos crimes de lavagem de capitais
7.6.1. Conceito e finalidades
7.6.2. Momento adequado
7.6.3. Requisitos
7.6.4. Objeto da medida
7.6.5. Beneficiários da medida
7.7. Alienação antecipada
7.7.1. Momento
7.7.2. Pressupostos
7.7.3. Legitimidade
7.7.4. Procedimento
7.8. Ação civil de confisco
8.1. Noções gerais
8.2. Procedimento do incidente de falsidade
8.3. Recurso adequado
8.4. Suspensão do processo principal
8.5. Coisa julgada
9. INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL
9.1. Instauração do incidente
9.2. Procedimento
9.3. Conclusão do incidente de insanidade mental
9.3.1. Durante o processo judicial
9.3.2. Durante o curso do inquérito policial
9.3.3. Durante a execução penal
9
SUJEITOS DO PROCESSO
1. NOÇÕES GERAIS
2. JUIZ
2.1. Capacidade para ser juiz
2.2. Escolha dos juizes
2.3. Funções do juiz no processo penal
2.3.1. Funções de ordem jurisdicional
2.3.2. Funções de ordem administrativa
2.4. Garantias e vedações dos juizes
2.5. Imparcialidade do juiz8
2.5.1. Impedimento
2.5.2. Suspeição
2.5.3. Incompatibilidade
3. PARTES
4. MINISTÉRIO PÚBLICO
4.1. (Im)parcialidade do Ministério Público
4.2. Organização do Ministério Público
4.3. Princípios institucionais do Ministério Público
4.3.1. Princípio do Promotor Natural
4.4. Garantias e vedações
4.5. Impedimento e suspeição do órgão do Ministério Público
4.6. Promotor ad hoc
5. OFENDIDO
5.1. Ofendido como querelante
5.2. Ofendido como assistente da acusação
5.2.1. Natureza do interesse do assistente da acusação
5.2.2. Habilitação do ofendido como assistente da acusação
5.2.3. Atribuições do assistente
6. ACUSADO
6.1. Capacidade do acusado
6.1.1. Menores de 18 (dezoito) anos
6.1.2. Acusado inimputável
6.1.3. Pessoa jurídica
6.1.4. Animais, mortos e seres inanimados
6.1.5. Acusado certo e individualizado
6.1.6. Imunidade diplomática
6.2. Autodefesa e presença do acusado
6.3. Contumácia do acusado
6.4. Direitos do acusado
7. DEFENSOR97
7.1. Espécies de defensor
7.1.1. Defensoria Pública
7.2. Defesa técnica plena e efetiva
7.3. Abandono do processo pelo defensor
7.4. Impedimento do defensor
8. ASSISTENTE DA DEFESA
10
COMUNICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS
1. NOÇÕES GERAIS
2. CITAÇÃO
2.1. Efeitos da citação válida
2.2. Espécies de citação
3.1. Citação por mandado
3.2. Citação por carta precatória
3.3. Citação do militar
3.4. Citação de funcionário público
3.5. Citação de acusado preso
3.6. Citação de acusado no estrangeiro
3.7. Citação em legações estrangeiras
3.8. Citação mediante carta de ordem
4. CITAÇÃO POR EDITAL
4.1. Hipóteses que autorizam a citação por edital
4.2. Suspensão do processo e da prescrição (art. 366 do CPP)
4.2.1. Art. 366 do CPP e sua aplicação na Justiça Militar
4.2.2. Limitação temporal do prazo de suspensão da prescrição
4.2.3. Produção antecipada de provas urgentes
4.2.4. Prisão preventiva
4.2.5. Comparecimento do acusado
4.2.6. Aplicação do art. 366 do CPP na Lei de Lavagem de Capitais
5. CITAÇÃO POR HORA CERTA
6. INTIMAÇÃO, NOTIFICAÇÃO E CONTAGEM DE PRAZOS43
6.1. Início do prazo e início da contagem do prazo
6.2. Intimação e notificação do Ministério Público
6.3. Intimação e notificação dos Defensores Públicos
6.4. Prazo em dobro
6.6. Intimação e notificação do ofendido
6.7. Intimação e notificação por hora certa
6.8. Intimação e notificação por meios eletrônicos
6.10. Férias forenses
11
PROCESSO E PROCEDIMENTO
INTRODUÇÃO
1. NOÇÕES GERAIS
1.1. Procedimento e devido processo penal
1.2. Violação às regras procedimentais
2. CLASSIFICAÇÃO DO PROCEDIMENTO
2.1. Classificação do procedimento comum
4. ANTIGO PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO DOS CRIMES PUNIDOS COM RECLUSÃO
PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO
1. OFERECIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA
2. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE: REJEIÇÃO OU RECEBIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA
2.1. Momento do juízo de admissibilidade da peça acusatória12
3. REJEIÇÃO DA PEÇA ACUSATÓRIA
3.1.1. Inépcia da peça acusatória
3.1.2. Falta de pressuposto processual
3.1.3. Falta de condições para o exercício da ação penal
3.1.4. Falta de justa causa (suporte probatório mínimo) para o exercício da ação penal
3.2. Rejeição parcial da peça acusatória
3.3. Recurso cabível contra a rejeição da peça acusatória
4. RECEBIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA
4.1. (Des) necessidade de fundamentação do recebimento da peça acusatória
4.2. Consequências do recebimento da peça acusatória
4.3. Recurso cabível contra o recebimento da peça acusatória
5. CITAÇÃO DO ACUSADO
6. REAÇÃO DEFENSIVA À PEÇA ACUSATÓRIA
6.1. Extinta defesa prévia
6.2. Defesa preliminar
6.2.1. Procedimentos em que há previsão legal de defesa preliminar
6.2.2. Consequências decorrentes da inobservância da defesa preliminar
6.3. Resposta à acusação
7. REVELIA
8. POSSÍVEL OITIVA DA ACUSAÇÃO
9. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA
9.1. Julgamento antecipado da lide no processo penal
9.2. Causas de absolvição sumária no procedimento comum
9.3. Inimputável do art. 26, caput, do CP
9.4. Grau de convencimento necessário para a absolvição sumária
9.6. Coisa julgada
9.7. Recurso adequado
10. ACEITAÇÃO DA PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO
11. DESIGNAÇÃO DA AUDIÊNCIA
12. AUDIÊNCIA UNA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO
12.2. Indeferimento de provas ilícitas, irrelevantes, impertinentes ou protelatórias
12.3. Diligências
12.4. Mutatio libelli: eventual necessidade de aditamento
12.5. Alegações orais
12.5.1. Conteúdo das alegações orais
12.5.2. Ordem de apresentação das alegações orais (memoriais)
12.5.3. Substituição das alegações orais por memoriais
12.5.4. Não apresentação de alegações orais ou memoriais pelas partes
*12.6. Sentença
12.7. Registro da audiência
CAPÍTULO III PROCEDIMENTO COMUM SUMÁRIO
1. NOÇÕES GERAIS
1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO JÚRI
1.1. Plenitude de defesa
1.1.1. (In) constitucionalidade da tese de legítima defesa da honra (STF, ADPF 779)
1.2. Sigilo das votações
1.2.1. Sala especial
1.2.2. Incomunicabilidade dos jurados
1.2.3. Votação unânime
1.3. Soberania dos veredictos126
1.3.1. Cabimento de apelação contra decisões do Júri129
1.3.2. Cabimento de revisão criminal contra decisões do Júri
1.4. Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida
2. PROCEDIMENTO BIFÁSICO DO TRIBUNAL DO JÚRI
3. IUDICIUM ACCUSATIONIS (OU SUMÁRIO DA CULPA)
3.1. Alegações orais
4. IMPRONÚNCIA
4.1. Natureza jurídica e coisa julgada
4.2. Provas novas e oferecimento de outra peça acusatória
4.3. Infração conexa
4.4. Despronúncia
4.5. Recurso cabível
5. DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO
5.1. Nova capitulação legal
5.2. Procedimento a ser observado pelo juízo singular competente
5.3. Infração conexa
5.4. Situação do acusado preso
5.5. Recurso cabível
5.6. Conflito de competência
6. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA
6.1. Inimputável do art. 26, caput, do CP
6.2. Juízo de certeza
6.3. Infração conexa
6.4. Natureza jurídica e coisa julgada
6.5. Recurso cabível
6.5.1. Recurso de ofício
7. PRONÚNCIA
7.1. Pressupostos
7.2. Natureza jurídica
7.4. Fundamentação e eloquência acusatória
7.6. Conteúdo da pronúncia
7.7. Infrações conexas
7.8. Constatação do envolvimento de outras pessoas como coautores ou partícipes
7.9. Efeitos da pronúncia
7.10. Intimação da pronúncia
7.11. Recurso cabível
8. DESAFORAMENTO
8.1. Legitimidade para o requerimento de desaforamento
8.2. Momento para o desaforamento
8.3. Hipóteses que autorizam o desaforamento
8.4. Aceleração de julgamento
8.5. Crimes conexos e coautores
8.6. Comarca (ou subseção judiciária) para a qual o processo será desaforado
8.7. Efeito suspensivo
8.8. Recursos
8.9. Reaforamento
8.10. Competência para a execução provisória
9. PREPARAÇÃO DO PROCESSO PARA JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI
9.1. Ordenamento do processo
9.2. Ordem do julgamento
9.3. Habilitação do assistente do Ministério Público
10. ORGANIZAÇÃO DO JÚRI
10.1. Requisitos para ser jurado
10.2. Recusa injustificada
10.3. Direitos dos jurados
10.4. Escusa de consciência
11.1. Reunião periódica
11.2. Ausências
11.2.1. Ausência do órgão do Ministério Público
11.2.2. Ausência do advogado de defesa
11.2.3. Ausência do acusado solto
II. 2.4. Ausência do acusado preso
11.2.5. Ausência do advogado do assistente de acusação
11.2.6. Ausência do advogado do querelante
11.2.7. Ausência de testemunhas
11.2.8. Ausência do juiz presidente
11.3. Verificação da presença de, pelo menos, 15 jurados
11.3.1. Empréstimo de jurados
11.4.1. Dos jurados
11.4.2. Do juiz-presidente
11.4.3. Do órgão do Ministério Público
11.5. Composição do Conselho de Sentença
11.5.1. Recusas motivadas, imotivadas (ou peremptórias) e estouro de urna
11.5.2. Tomada do compromisso dos jurados
11.6. Instrução em plenário
11.6.1. Leitura de peças
11.6.2. Interrogatório do acusado
11.6.2.1. Uso de algemas
11.7. Debates
11.7.1. Réplica e tréplica
11.7.1.1. Inovação na tréplica
11.7.2. Exibição e leitura de documentos em plenário
11.7.3. Argumento de autoridade
11.7.4. Direito ao aparte
11.7.5. Sociedade indefesa
11.7.6. Acusado indefeso
11.8. Esclarecimentos aos jurados e possível dissolução do Conselho de Sentença
12. QUESITAÇÃO
12.1. Leitura dos quesitos
12.2. Votação
12.3. Ordem dos quesitos
12.4.1. Absolvição imprópria
12.4.2. Falso testemunho em plenário
12.4.3. Agravantes e atenuantes
13. DESCLASSIFICAÇÃO
13.1. Desclassificação e infração de menor potencial ofensivo
13.2. Desclassificação e crimes conexos
14. SENTENÇA
14.1. Sentença absolutória
14.2. Sentença condenatória
14.2.1.1. (In) constitucionalidade da execução provisória da pena no âmbito do Júri
14.3. Ata
14.4. Atribuições do juiz presidente
CAPÍTULO V PROCEDIMENTO COMUM SUMARÍSSIMO
1. CONSTITUIÇÃO FEDERAL E JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
2. COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
2.1. Conceito de infração de menor potencial ofensivo297
2.1.1. Princípio da insignificância e infração de médio potencial ofensivo
2.2. Excesso de acusação
2.3. Estatuto do Idoso
2.4. Acusados com foro por prerrogativa de função
2.5. Crimes eleitorais
2.6. Violência doméstica e familiar contra a mulher e aplicação da Lei n° 9.099/95
2.7. Aplicação da Lei n° 9.099/95 na Justiça Militar
2.8. Conexão e continência entre crime comum e infração penal de menor potencial ofensivo
2.9. Causas de modificação da competência dos Juizados
2.10. Natureza da competência dos Juizados: absoluta ou relativa
2.11. Competência territorial
2.11.1. Juizados Especiais Itinerantes
3. TERMO CIRCUNSTANCIADO
4. SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA NAS INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO
4.1. Afastamento do lar nos casos de violência doméstica
5. FASE PRELIMINAR DOS JUIZADOS
5.1. Composição dos danos civis
5.2. Oferecimento de representação
5.3. Transação penal
5.3.1. Pressupostos de admissibilidade da transação penal
5.3.2. Procedimento para o oferecimento da proposta de transação penal
5.3.3. Recusa injustificada de oferecimento da proposta de transação penal
5.3.4. Momento para o oferecimento da proposta de transação penal
5.3.5. Descumprimento injustificado da transação penal
5.3.6. Recurso
6.1. Oferecimento da peça acusatória
6.2. Defesa Preliminar
6.3. Rejeição ou recebimento da peça acusatória
6.4. Citação do acusado
6.5. Resposta à acusação
6.6. Possibilidade de absolvição sumária
6.7. Audiência de instrução e julgamento
7.1. Apelação nos Juizados
7.2. Embargos de declaração nos Juizados
7.3. Recurso Extraordinário
7.4. Recurso Especial
7.6. Mandado de segurança
7.7. Revisão criminal
8. REPRESENTAÇÃO NOS CRIMES DE LESÕES CORPORAIS LEVES E LESÕES CULPOSAS
9.1. Conceito e natureza jurídica
9.2. Requisitos de admissibilidade da suspensão condicional do processo
9.3. Suspensão condicional do processo em crimes de ação penal de iniciativa privada
9.4. Iniciativa da proposta de suspensão condicional do processo
9.5. Momento para a aceitação da proposta
9.5.1. Desclassificação e procedência parcial da pretensão punitiva
9.6. Aceitação da proposta
9.7. Recurso cabível contra a decisão homologatória da suspensão
9.8. Condições da suspensão condicional do processo
9.9. Revogação da suspensão condicional do processo
9.9.1. Revogação obrigatória
9.9.2. Revogação facultativa
9.10. Extinção da punibilidade
9.11. Suspensão condicional do processo em crimes ambientais
10. EXECUÇÃO NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
12
SENTENÇA PENAL
1. ATOS PROCESSUAIS DO JUIZ
2. CLASSIFICAÇÃO DOS PROVIMENTOS JUDICIAIS
2.1. Despachos de mero expediente
2.2. Decisões interlocutórias simples e mistas (não terminativas e terminativas)
2.3. Decisões definitivas
2.4. Sentença
2.5. Sentenças definitivas, decisões definitivas e com força de definitivas
2.6. Decisões executáveis, não executáveis e condicionais
2.7. Decisões subjetivamente simples, subjetivamente plúrimas e subjetivamente complexas
2.8. Decisões suicidas, vazias e autofágicas
3. ESTRUTURA E REQUISITOS DA SENTENÇA
3.1. Relatório
3.2. Fundamentação8
3.3. Dispositivo
3.4. Autenticação
4.1. Espécies de sentença absolutória
4.2. Presunção de inocência e regra probatória
4.3. Fundamentos
4.4.1. Efeito principal: colocação do acusado em liberdade
4.4.2. Efeitos secundários
5. SENTENÇA CONDENATÓRIA
5.1. Fixação da pena
5.1.1. Fixação da pena-base
5.1.2. Fixação da pena provisória
5.1.3. Fixação da pena definitiva
5.1.4. Fixação do regime penitenciário
5.1.5. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos
5.1.6. Fixação da pena de multa
5.3. Efeitos decorrentes da sentença penal condenatória
5.3.1. Efeitos penais
5.3.2. Efeitos extrapenais
5.3.2.I. Efeitos extrapenais obrigatórios
5.3.2.2. Efeitos extrapenais específicos
5.4. Pedido absolutório formulado pela acusação e (im) possibilidade de condenação
6. PUBLICAÇÃO DA SENTENÇA
6.1. Esgotamento da instância
6.2. Intimação da sentença
7. PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO ENTRE ACUSAÇÃO E SENTENÇA (OU DA CONGRUÊNCIA)
7.1.2. Emendatio libelli e (des) necessidade de oitiva das partes
7.1.3. Emendatio libelli nas diferentes espécies de ação penal
7.1.4. Emendatio libelli na 2a instância
7.2.2. Fato novo e fato diverso
7.2.4. Aditamento espontâneo (CPP, art. 384, caput) e provocado (CPP, art. 384, § Io)
7.2.5. Procedimento da mutatio libelli
7.2.6. Recurso cabível contra a rejeição do aditamento à peça acusatória
Mutatio libelli nas diferentes espécies de ação penal
7.2.9. Mutatio libelli na 2a instância
7.3. Quadro comparativo entre emendatio e mutatio libelli183
7.4.1. Possibilidade de oferecimento da proposta de transação penal
7.4.2. Possibilidade de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo
7.4.3. Mudança de competência
7.4.4. Mudança da espécie de ação penal
7.5. Emendatio e mutatio libelli no processo penal militar
13
NULIDADES
1. NOÇÕES GERAIS: TIPICIDADE PROCESSUAL E NULIDADE
2. ESPÉCIES DE IRREGULARIDADES
3. ESPÉCIES DE ATOS PROCESSUAIS
4. NULIDADE
4.1. Espécies de nulidades
4.1.1. Nulidade absoluta
4.1.1.1. Hipóteses de nulidades absolutas
4.1.2. Nulidade relativa
4.1.2.1. Hipóteses de nulidades relativas
4.1.2.2. Momento para a arguição das nulidades relativas
4.1.3. Anulabilidades
4.2.1. Na primeira instância
4.2.2. Na segunda instância
5.1. Princípio da tipicidade das formas
5.3. Princípio da instrumentalidade das formas
5.4. Princípio da eficácia dos atos processuais
5.5. Princípio da restrição processual à decretação da ineficácia
5.6. Princípio da causalidade (efeito expansivo)
5.7. Princípio da conservação dos atos processuais (confinamento da nulidade)
5.8. Princípio do interesse
5.9. Princípio da lealdade (ou da boa-fé)
5.10. Princípio da convalidação
6. NULIDADES EM ESPÉCIE
6.1. Incompetência
6.2. Suspeição
6.3. Suborno do juiz
6.4. Ilegitimidade de parte
6.5. Falta da denúncia, da queixa, da representação e da requisição do Ministro da Justiça
6.6. Ausência do exame de corpo de delito
6.8. Não intervenção do Ministério Público
6.10. Nulidades cominadas no procedimento bifásico do Tribunal do Júri
6.11. Falta da sentença
6.12. Falta do recurso de ofício, nos casos em que a lei o tenha estabelecido
6.15. Omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato
6.16. Nulidade decorrente da carência de fundamentação
7. NULIDADES NO INQUÉRITO POLICIAL
14
RECURSOS
CAPÍTULO I TEORIA GERAL DOS RECURSOS
1. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS
2. NATUREZA JURÍDICA DOS RECURSOS
2.1. Interposição de recursos com intuito manifestamente protelatório e litigância de má-fé
3.1. Duplo grau de jurisdição
3.1.1. Recolhimento à prisão para recorrer
3.1.2. Acusados com foro por prerrogativa de função
3.2. Princípio da taxatividade dos recursos
3.3. Princípio da unirrecorribilidade das decisões
3.4. Princípio da fungibilidade
3.5. Princípio da convolação
3.6. Princípio da voluntariedade dos recursos
3.6.1. Reexame necessário (recurso de ofício ou remessa necessária)36
3.7. Princípio da disponibilidade dos recursos
3.8. Princípio da non reformatio in pejus (efeito prodrômico da sentença)
3.8.1. Princípio da non reformatio in pejus direta e indireta
3.8.2. Non reformatio in pejus indireta e incompetência absoluta
3.8.3. Non reformatio in pejus indireta e soberania dos veredictos
3.10. Princípio da dialeticidade
3.10.1 Ausência de razões recursais da defesa e do Ministério Público
3.11. Princípio da complementariedade
3.12. Princípio da variabilidade
3.13. Princípio da colegialidade
4. PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL (JUÍZO DE PRELIBAÇÃO)
5. PRESSUPOSTOS OBJETIVOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL
5.1. Cabimento
5.2. Adequação
5.3. Tempestividade
5.3.1. Prazos recursais diversos
5.3.2. Interposição de recursos via fax
5.4. Inexistência de fato impeditivo
5.4.1. Renúncia ao direito de recorrer
5.4.2. Preclusão
5.4.3. Recolhimento à prisão para recorrer
5.5. Inexistência de fato extintivo (extinção anômala do recurso)
5.5.1. Desistência
5.5.2. Deserção
5.5.2.I. Deserção por falta de preparo
5.5.2.2. Deserção por fuga do acusado
5.6. Regularidade formal
6. PRESSUPOSTOS SUBJETIVOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL
6.1. Legitimidade recursal
6.1.1. Legitimação restrita e subsidiária do assistente da acusação
6.2. Interesse recursal
6.2.1 Classificação da sucumbência
6.2.2. Sentença absolutória e interesse recursal da defesa
6.2.3. Extinção da punibilidade e interesse recursal no julgamento do mérito
6.2.4. Divergência entre o interesse recursal do acusado e o de seu defensor
6.2.5. Sentença condenatória e/ou absolutória e interesse recursal do Ministério Público
7. EFEITOS DOS RECURSOS
7.1. Efeito obstativo
7.2. Efeito devolutivo
7.3. Efeito suspensivo
7.4. Efeito regressivo, iterativo ou diferido
7.5. Efeito extensivo
7.6. Efeito substitutivo
7.7. Efeito translativo
7.8. Efeito dilatório-procedimental
8. DIREITO INTERTEMPORAL E RECURSOS
9. CLASSIFICAÇÃO DOS RECURSOS
9.1. Quanto à obrigatoriedade
9.2. Quanto à fundamentação
9.3. Quanto à extensão da matéria impugnada
9.4. Quanto aos pressupostos de admissibilidade
9.5. Quanto ao objeto imediato do recurso
CAPÍTULO II RECURSOS CRIMINAIS EM ESPÉCIE
1. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO
1.1. Interpretação extensiva
1.2. Utilização residual do recurso em sentido estrito
1.3. Hipóteses de cabimento
1.3.1. Não recebimento da peça acusatória
1.3.2. Incompetência do juízo
1.3.3. Procedência das exceções, salvo a de suspeição
1.3.4. Pronúncia do acusado
1.3.6. Decisão que julgar quebrada a fiança ou perdido o seu valor
1.3.7. Decisão que decretar (ou não) a extinção da punibilidade
1.3.8. Decisão que conceder ou negar a ordem de habeas corpus
1.3.10. Decisão que conceder, negar ou revogar livramento condicional
1.3.12. Decisão que incluir jurado na lista geral ou desta o excluir
1.3.13. Decisão que denegar a apelação ou a julgar deserta
1.3.15. Decisão que decidir sobre a unificação de penas
1.3.16. Decisão que decidir o incidente de falsidade
1.3.17. Incidentes da execução da pena
1.3.18. Decisão que converter a multa em detenção ou prisão simples
1.4.1. Forma
1.4.2. Prazo
1.4.3. Processamento
1.4.4. Competência para o julgamento
1.5. Efeitos
2.1. Noções gerais
2.2.1. Apelação plena (ou ampla) e apelação parcial (restrita)
2.2.2. Apelação principal e apelação subsidiária (ou supletiva)
2.2.3. Apelação sumária e apelação ordinária
2.2.4. Apelação adesiva (ou incidental)
2.3. Hipóteses de cabimento
2.3.1. Sentença definitiva de condenação ou absolvição proferida por juiz singular
2.3.3. Decisões do Tribunal do Júri
2.4.1. Forma
2.4.2. Prazo
2.4.3. Processamento
2.4.4. Competência para o julgamento
2.5. Efeitos
3. PROTESTO POR NOVO JÚRI
3.1. Revogação pela Lei n° 11.689/08
3.2. Pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade recursal do revogado protesto por novo júri
4. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE
4.1. Hipóteses de cabimento
4.2. Prazo e interposição
4.3. Competência para seu julgamento
4.4. Efeitos
5. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
5.1. Hipóteses de cabimento
5.2. Prazo
5.3. Procedimento
5.4. Efeitos quanto aos demais prazos recursais
6. AGRAVO EM EXECUÇÃO
6.1. Hipóteses de cabimento
6.2. Procedimento
6.3. Prazo
6.4. Efeitos
7. CARTA TESTEMUNHÁVEL
7.1. Hipóteses de cabimento
7.2. Prazo
7.3. Procedimento
7.4. Efeitos
8. CORREIÇÃO PARCIAL
8.1. Hipóteses de cabimento
8.2. Natureza jurídica
8.3. Legitimidade
8.4. Prazo
15
AÇÕES AUTÔNOMAS
DE IMPUGNAÇÃO
1. NOÇÕES GERAIS
2. NATUREZA JURÍDICA
3.1. Necessidade da tutela: violência ou coação decorrente de ilegalidade ou abuso de poder
3.2.1. Hipóteses que autorizam o conhecimento do habeas corpus
3.2.2.1. Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário
4. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO
4.1. Cabimento do habeas corpus em relação a punições disciplinares militares
4.2. Estado de Sítio
4.3. Prisão administrativa
5.1. Distinção entre impetrante e paciente
5.1.1. Habeas corpus coletivo
5.2. Legitimação ampla e irrestrita
5.3. Pessoa jurídica
5.4. Ministério Público
5.5. Outras autoridades
6.1. Autoridade coatora (ou coator) e detentor
6.2. Ministério Público como autoridade coatora
6.3. Particular como coator
6.4. Outras autoridades
8. HIPÓTESES DE IMPETRAÇÃO DO HABEAS CORPUS
8.1. Ausência de justa causa
8.1.1. Falta de justa causa para a prisão
8.1.2. Falta de justa causa e trancamento de investigações preliminares
8.1.3. Falta de justa causa e trancamento do processo penal
8.2. Decurso do tempo de prisão previsto na lei
8.2.1. Excesso de prazo da prisão penal
8.2.2. Excesso de prazo da prisão temporária
8.2.3. Excesso de prazo da prisão preventiva
8.3. Coação ordenada por autoridade incompetente
8.4. Cessação do motivo que autorizou a coação
8.5. Não admissão de prestação de fiança
8.6. Processo manifestamente nulo
8.7. Extinção da punibilidade
9. COMPETÊNCIA
9.1. Competência do Supremo Tribunal Federal
9.2. Competência do Superior Tribunal de Justiça
9.3. Competência dos Tribunais Regionais Federais
9.4. Competência dos Tribunais de Justiça
9.5. Competência da Justiça Militar
9.6. Competência das Turmas Recursais
9.7. Competência da Justiça do Trabalho
9.8. Competência do juiz de Ia instância
10.1. Capacidade postulatória
10.2. Petição inicial
10.3. Dilação probatória
10.4. Medida liminar
10.5. Apresentação do preso e requisição de informações
10.6. Efeito extensivo da ordem de habeas corpus
10.7. Intervenção das partes
10.8. Recursos contra as decisões em habeas corpus
10.9. Coisa julgada
REVISÃO CRIMINAL
1. NOÇÕES GERAIS
2. CONCEITO
3. NATUREZA JURÍDICA
4. DISTINÇÃO ENTRE REVISÃO CRIMINAL E AÇÃO RESCISÓRIA
5. PEDIDOS: JUÍZO RESCINDENTE E JUÍZO RESCISÓRIO
6. CONDIÇÕES DA AÇÃO
6.1. Legitimidade ativa e passiva
6.2. Interesse de agir: coisa julgada
6.2.1. Desnecessidade de esgotamento das instâncias ordinárias (prequestionamento)
6.3.3. Extinção da punibilidade
6.3.4. Revisão criminal no âmbito do Júri e soberania dos veredictos
6.3.5. Juizados Especiais Criminais
6.3.6. Transação penal
7. HIPÓTESES DE CABIMENTO DA REVISÃO CRIMINAL
7.1. Contrariedade ao texto expresso da lei penal
7.2. Contrariedade à evidência dos autos
7.3. Decisão fundada em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos
7.4. Descoberta de novas provas em favor do condenado
7.5. Nulidade do processo
8.1. Capacidade postulatória
8.2. Desnecessidade de recolhimento à prisão
8.3 Inexistência de prazo decadencial
8.4. Competência
8.5. Procedimento
8.6. Efeito suspensivo
8.7. Ônus da prova
8.8. Non reformatio in pejus direta e indireta
8.9. Recursos
8.10. Indenização pelo erro judiciário154
8.11. Coisa julgada
CAPÍTULO III MANDADO DE SEGURANÇA
1. NOÇÕES GERAIS
2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
3. OBJETO DA TUTELA
4. PRAZO DECADENCIAL
5. LEGITIMAÇÃO ATIVA E PASSIVA
6. CABIMENTO
6.1. Hipóteses comuns de impetração do mandado de segurança no âmbito criminal
7.1. Petição inicial
7.2. Procedimento e julgamento do mandado de segurança
7.3. Competência
7.4. Medida liminar
7.5. Recursos
BIBLIOGRAFIA
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Manual de Processo Penal [11 ed.]
 9788544235614

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RENATO BRASILEIRO DE LIMA

revista atualizada ampliada

|Z| EDITORA

lyl ^zsPODIVM www.editorajuspodivm.com.br

Rua Canuto Saraiva, 131 - Mooca - CEP: 03113-010 - São Paulo - São Paulo Tel: (11) 3582.5757 • Contato: https://www.editorajuspodivm.com.br/sac Copyright: Edições JusPODIVM

Diagramação: Ana Paula Lopes Corrêa ([email protected])

Capa: Ana Caquetti

L732m

Lima, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima - 11. ed. rev., ampl. e atual. - São Paulo: Ed. JusPodivm, 2022. 1.648 p. Bibliografia. ISBN 978-85-442-3561-4. 1. Direito processual. 2. Direito processual penal. I. Título.

CDD 341.43 Todos os direitos desta edição reservados a Edições JusPODIVM. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e das Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

1

A Deus. Ao meu pai Mauro, pelo exemplo de luta e perseverança;

À minha mãe Graça, pelo carinho e pelo amor;

À minha querida esposa Vanessa: difícil acreditar que, enfim, consegui concluir “nosso” Manual de Processo Pe­ nal (vol. único). Digo “nosso” porque tenho a consciência de que jamais teria conseguido concluir a obra sem você. Durante esses anos de dedicação a este trabalho, você sempre esteve ao meu lado: quando desanimava, era você que me dava força e motivação para seguir adiante; quando precisava de alguém para discutir minhas re­ flexões e agonias acerca do processo penal, era você que estava sempre disposta a me ouvir. Pela paciência, pelo companheirismo, pelo carinho e pelo amor, Excelência mãe de 3, minha eterna gratidão! Aos meus filhos Laura, João Pedro e Matheus, com todo o meu amor.

À

r

APRESENTAÇÃO À 11a EDIÇÃO É chegado um momento muito especial para nós: a apresentação da 11a edição do nosso Manual de Processo Penal.

Pois é. Quem diria, há exatos 11 anos, que um projeto despretensioso de um Promotor da Justiça Mili­ tar da União que ministrava - e continua ministrando - aulas em cursos preparatórios pudesse chegar tão longe. Se chegou, uma coisa é certa. Isso se deve única e exclusivamente à generosidade de tantos alunos e leitores que confiaram no nosso trabalho. Essa acolhida, já verificada em algumas honrosas citações em julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, nos motiva assim a continuar na empreitada de fazer um livro que, tentando ser didático, consiga servir aos seus diferentes destinatários: graduandos, mestrandos, doutorandos, concursandos e operadores do Direito Processual Penal, tarefa reconhecidamente muito difícil.

O livro está devidamente atualizado com todos os vetos ao Pacote Anticrime que foram derrubados pelo Congresso Nacional. Chega a ser difícil de acreditar, mas, conquanto recebidos no dia 26 de dezem­ bro de 2019 pelo Congresso Nacional, este deliberou pela rejeição dos vetos tão somente em data de 19 de abril de 2021, ou seja, quase 15 (quinze) meses depois.1 Coincidência ou não, dos 24 vetos do Presidente da República, o Congresso Nacional procedeu à derrubada de 16, exatamente aqueles que versam sobre matéria criminal (v.g., alterações no Código Penal, Código de Processo Penal, Lei de Execução Penal e Lei de Interceptação Telefônica e Ambiental), optando-se, pois, por preservar os vetos à Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92). A incorporação desses novos dispositivos à Lei n. 13.964/19, e, por conse­ quência, ao nosso ordenamento jurídico, poderá ser objeto de análise pelo leitor nos seguintes tópicos: a) (Im)possibilidade de realização de audiência de custódia (ou de apresentação) por videoconferência (CPP, art. 3°-B, §1°); b) (Im)possibilidade de assistência jurídica pela Defensoria Pública em favor de servido­ res públicos vinculados aos órgãos de segurança pública diante da instauração de inquérito para fins de investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício funcional (CPP, art. 14-A, §§3°, 4o e 5o; CPPM, art. 16-A, §§3°, 4o e 5o); c) alterações da identificação do perfil genético no âmbito da Lei de Execução Penal (LEP, art. 9o-A, caput, e parágrafos); d) Reaquisição do bom comportamento para fins de progressão de regimes (LEP, art. 112, §7°); e) (Im)possibilidade de instalação de dispositivos de captação ambiental na casa do investigado (Lei n. 9.296/96, art. 8°-A, §2°); f) (Im)possibilidade de utiliza­ ção de gravação ambiental clandestina exclusivamente em favor da defesa (Lei n. 9.296/96, art. 8°-A, §4°). As novidades da presente edição não estão restritas, todavia, aos vetos presidenciais ao Pacote Anticri­ me derrubados pelo Congresso Nacional. Entre outras importantes alterações legislativas do ano de 2021, especial atenção deve ser dispensada às seguintes: i. Lei n. 14.132, de 31 de março de 2021: acrescenta o art. 147-A ao Código Penal, para prever o crime de perseguição (“stalking”); ii. Lei n. 14.133, de Io de abril de 2021: nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos; iii. Lei n. 14.155, de 27 de maio de 2021: torna mais graves os crimes de violação de dispositivo informático (CP, art. 154-A), furto (CP, art. 155) e estelionato (CP, art. 171), quando cometidos de forma eletrônica ou pela internet, além de estabelecer nova hipótese de competência territorial para o processo e julgamento de certas modalidades de estelio­ nato; iv. Lei n. 14.188, de 28 de julho de 2021: define o programa de cooperação “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”, altera o Código Penal para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino (CP, art. 129, §13) e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher (CP, art. 147-B); v. Lei n. 14.192, de 4 de agosto de 2021: estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; vi. Lei n. 14.197, de Io de setembro de 2021: revoga a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/83) e acrescenta 1. A publicação desses vetos derrubados pelo Congresso Nacional ocorreu em data de 30 de abril de 2021.

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

ao Código Penal os crimes contra o Estado Democrático de Direito (CP, arts. 359-1 a 359-T); vii. Lei n. 14.226, de 20 de outubro de 2021: dispõe sobre a criação do Tribunal Regional Federal da 6a Região, com sede em Belo Horizonte e jurisdição no Estado de Minas Gerais; viii. Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021: altera a Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92); ix. Lei n. 14.245, de 22 de novembro de 2021 (Lei Mariana Ferrer): altera o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei dos Juizados Especiais Criminais para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo; x. Lei n. 14.232, de 28 de outubro de 2021: institui a Política Nacional de Dados e Informações relacionadas à Violência contra as Mulheres (PNAINFO). Com o objetivo de manter a atualização jurisprudencial da obra, também foram acrescentados ao livro os julgados mais relevantes de 2021 do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Isso resultou no acréscimo de pelo menos 100 julgados, os quais se somam aos mais de 4.000 precedentes que já constavam do livro. Dentre os mais relevantes, especial atenção deve ser dispensada aos seguintes: 1. ADPF 779 (STF, Pleno): inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra no âmbito do Júri; 2. HC 193.726 AgR-AgR/PR (STF, Pleno): anulação dos diversos processos criminais instaurados em face do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva perante a 13a Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba no âmbito da “Operação Lava Jato”; 3. Inq. 4.781 Ref./DF (STF, Pleno): expedição de mandado de prisão em flagrante em face do Deputado Federal Daniel Silveira em virtude da suposta prática de crimes políticos e contra a honra; 4. RE 776.823/RS (STF, Pleno): desnecessidade do trânsito em julgado de sentença penal condenatória para fins de reconhecimento, no âmbito administrativo carcerário, de falta grave decorrente do cometimento de fato definido como crime doloso 5. RHC 131.263/GO (STJ, 3a Seção): impossibilidade de conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva, mesmo se decorrente de prisão em flagrante e mesmo se não tiver ocorrido audiência de custódia; 6. HC 610.201 (STJ, 3a Seção): irretroatividade da representação da vítima no crime de estelionato em relação aos processos cuja denúncia já tivesse sido oferecida à época da vigência do Pacote Anticrime; 7. HC 455.097 (STJ, 3a Seção): possibilidade de se considerar o tempo submetido à medida cautelar de recolhimento noturno, aos finais de semana e dias não úteis, supervisionados por monitoramento eletrônico, com o tempo de pena efetivamente cumprido, para detração da pena; 8. HC 641.877/DF (STJ, 5a Turma): possibilidade de utilização do WhatsApp para a citação de acusado em sede processual penal; 9. REsp 1.806.792/SP (STJ, 6a Turma): ilegalidade da quebra de sigilo telefônico mediante a habilitação de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado titular da linha; 10. HC 598.051 (STJ, 6a Turma): incumbência do Estado de comprovar a legalidade e a voluntariedade do consentimento do morador para ingresso na sua residência. Acrescentamos, ademais, novas súmulas aprovadas em 2021 pelo Superior Tribunal de Justiça (enunciados de n°s 643, 644 e 648). Por derradeiro, lembrando que a maior virtude que se pode ter é a gratidão, imprescindível pontuar nossos sinceros agradecimentos às pessoas que estiveram ao nosso lado durante a elaboração desta edição, em especial à minha família - minha querida esposa Vanessa, minha princesinha Laura e meus queridos filhos João Pedro e Matheus. Agradeço também a todos os alunos aos quais tive o prazer de dar aulas de processo penal e legislação criminal especial ao longo desses 20 anos de docência: sem a carinhosa cobrança de cada um de vocês, jamais teria conseguido concluir - e continuar atualizando - esta obra. E, princi­ palmente, agradecemos a Deus, por tantas oportunidades de vida e que, renovando a nossa fé, possibilite sermos instrumentos de Sua obra.

Ao leitor, esperamos propiciar uma agradável leitura, aguardando as eventuais críticas, sugestões e observações, que certamente surgirão ao longo da leitura do nosso Manual. Aliás, o livro é fruto da cola­ boração permanente dos leitores. Para revisões, vídeos, perguntas, respostas, sugestões e críticas, pedimos que utilizem nossas redes sociais, notadamente o instagram: @profrenatobrasileiro

Valinhos/SP, 19 de dezembro de 2021. RENATO BRASILEIRO DE LIMA

PREFACIO O presente livro corresponde ao Manual de Processo Penal (vol. único) do amigo e professor Renato Brasileiro de Lima, que a Editora Juspodivm traz a público.

Conheci o Renato Brasileiro de Lima como aluno no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Logo, suas qualidades se fizeram notar. As observações precisas, o domínio dos temas debatidos, a clareza de seus posicionamentos, o equilíbrio e a ponderação das posições adotadas chamaram-me a atenção. Com o tempo, soube que Renato Brasileiro de Lima havia sido Defensor Públi­ co e, depois, passara a integrar o Ministério Público Militar da União. Além disso, conjuntamente com a atividade forense, era, à época, um destacado professor de processo penal da Rede LFG.

Desde então, passei a acompanhar, com maior atenção e satisfação, a carreira de Renato Brasileiro de Lima, que já se mostra muito bem-sucedida. Suas monografias anteriores, uma sobre Competência Criminal e outra tratando da Prisão Cautelar, já à luz da Reforma de 2011, mostravam as qualidades doutrinárias do autor. Quando recebi e consultei os volumes I e II do Manual de Processo Penal, que, somados, deram origem ao presente livro, fiquei feliz por ter certeza do sucesso que a obra teria, por ser uma fonte importante de consulta tanto para estudiosos quanto para profissionais que trabalham com Direito Processual Penal. Por outro lado, fiquei curioso para saber como os dois volumes seriam condensados pelo autor em um único livro. Agora, a curiosidade se desfez e a expectativa, que já era elevada, foi satisfeita. O Manual de Processo Penal (vol. único) do Professor Renato Brasileiro de Lima reúne as mesmas qualidades das obras anteriores.

Assim como já acontecera nos volumes I e II, o Autor expõe, com profundidade e de forma sistemática, todos os temas pertinentes ao processo penal. Trata-se de estudo bem fundamentado, com minuciosa e detalhada divisão dos temas tratados. Quando o assunto é controvertido, há exposição das diversas posi­ ções, sem que o Autor se furte de indicar a corrente por ele seguida e os argumentos a justificar a posição adotada. Tudo isso, acompanhado de extensa e atualizadíssima jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, tem se mostrado uma útil metodologia seguida por Renato Brasileiro de Lima em suas obras.

Não há exagero em afirmar que a obra se tornará um referencial seguro tanto para o estudante quanto para o profissional do direito. São Paulo, 12 de dezembro de 2012.

GUSTAVO HENRIQUE RIGHIIVAHY BADARÓ Professor Associado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

SUMÁRIO TÍTULO 1 . NOÇÕES INTRODUTÓRIAS.....

43

1. Introdução..............................................................

43

2. Sistemas processuais penais..................................

44

2.1. Sistema inquisitório......................................

44

2.2. Sistema acusatório........................................

45

2.3. Sistema processual misto ou francês...........

46

3. Princípios fundamentais do processo penal........

47

3.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade).......................................................

47

3.1.1. Noções introdutórias..........................

3.3.2.3. Capacidade postulatória au­ tônoma do acusado............................

64

3.3.3. Ampla defesa no processo adminis­ trativo disciplinar e na execução penal........

64

3.4. Princípio da publicidade...............................

66

3.4.1. Divisão da publicidade: ampla e res­ trita

67

3.4.2. Sessão de julgamento na Justiça Mi­ litar e votação em sala secreta.......................

68

47

3.5. Princípio da busca da verdade: superando o dogma da verdade real.....................................

68

3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo)..................................................................

48

3.5.1. Busca da verdade consensual no âm­ bito dos Juizados............................................

69

3.1.3. Da regra de tratamento.......................

49

3.6. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos....................................

70

3.7. Princípio do juiz natural..............................

70

3.8. Princípio do nemo tenetur se detegere.......

70

3.8.1. Noções introdutórias..........................

70

3.8.2. Titular do direito de não produzir prova contra si mesmo..................................

70

3.8.3. Advertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo...................

71

3.8.4. Desdobramentos do direito de não produzir prova contra si mesmo...................

72

3.8.5. Exercício total ou parcial (horizon­ tal ou vertical) do direito de não produzir prova contra si mesmo..................................

77

3.8.6. Dever legal de interrupção imediata do interrogatório quando o imputado op­ tar pelo exercício do direito ao silêncio.......

78

3.8.7. Consequências decorrentes do exer­ cício do direito de não produzir prova con­ tra si mesmo...................................................

79

3.8.8. O direito de não produzir provas contra si mesmo e a prática de outros de­ litos..................................................................

80

3.9. Princípio da proporcionalidade...................

81

3.9.1. Da adequação.......................................

83

3.9.2. Da necessidade.....................................

83

3.1.4. (In)constitucionalidade da execução provisória da pena.........................................

50

3.1.4.1. Desnecessidade do trânsito em julgado (STF - HC 126.292/ ARE 964.246)......................................

50

3.1.4.2. Necessidade do trânsito em julgado (STF - ADC s 43, 44 e 54)....

52

3.1.4.3. (Des) necessidade do trânsi­ to em julgado para fins de execução da pena restritiva de direitos..............

55

3.1.4.4. (Des) necessidade do trân­ sito em julgado de sentença penal condenatória para fins de reconhe­ cimento, no âmbito administrativo carcerário, de falta grave decorren­ te do cometimento de fato definido como crime doloso.............................

56

3.2. Princípio do contraditório...........................

57

3.2.1. Contraditório para a prova e contra­ ditório sobre a prova.....................................

58

3.3. Princípio da ampla defesa............................

59

3.3.1. Defesa técnica (processual ou espe­ cífica) ...............................................................

59

3.3.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciável........................................

59

3.3.1.2. Direito de escolha do defensor...

61

3.3.1.3. Defesa técnica plena e efetiva....

61

3.9.3. Da proporcionalidade em sentido estrito...............................................................

83

3.3.2. Autodefesa (material ou genérica).....

62

4. Lei processual penal no espaço...........................

84

3.3.2.1. Direito de audiência...............

63

3.3.2.2. Direito de presença.................

63

4.1. Tratados, convenções e regras de direito internacional.........................................................

84

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

4.2. Prerrogativas constitucionais do Presiden­ te da República e de outras autoridades............

85

4.2. (In)constitucionalidade formal e material do juiz das garantias............................................ 109

4.3. Processos da competência da Justiça Mi­ litar ........................................................................

86

4.4. Processos da competência do tribunal es­ pecial.....................................................................

4.3. Distinção entre o juiz das garantias, juiza­ do de instrução e “centrais de inquérito” (v.g., DIPO/SP).............................................................. 111

87

4.5. Crimes de imprensa......................................

87

4.6. Crimes eleitorais...........................................

87

4.7. Outras exceções.............................................

87

5. Lei processual penal no tempo.............................

88

5.1. Lei n° 9.099/95 e seu caráter retroativo......

89

5.2. Lei n° 9.271/96 e nova redação do art. 366: suspensão do processo e da prescrição..............

90

5.3. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e sua aplicabi­ lidade imediata aos processos em andamento...

90

5.4. Lei n° 12.403/11 e o novo regramento quanto às medidas cautelares de natureza pessoal...................................................................

4.8. Da posição do juiz das garantias diante da investigação preliminar: atuação como garantidor e não como instrutor.................................. 122

91

5.5. Normas processuais heterotópicas..............

91

4.9. Competências criminais do Juiz das Ga­ rantias.................................................................... 123

5.6. Vigência, validade, revogação, derrogação e ab-rogação da lei processual penal..................

92

5. Abrangência da competência do juiz das garan­ tias ............................................................................... 133

6. Interpretação da lei processual penal...................

92

6.1. Interpretação extensiva................................

93

6.2. Analogia.........................................................

93

6.3. Distinção entre analogia e interpretação analógica...............................................................

5.2. (In)existência de juiz das garantias nos Tribunais................................................................ 133

94

6.4. Aplicação supletiva e subsidiária do novo Código de Processo Civil ao processo penal.....

5.3. (In)existência de juiz das garantias no âm­ bito do Tribunal do Júri...................................... 135

95

5.4. (In)existência de juiz das garantias na Jus­ tiça Militar e na Justiça Eleitoral......................... 136

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS...............

99

1. Suspensão cautelar da eficácia dos arts. 3o-A a 3°-F do CPP (STF, ADI 6.299 MC/DF, Rei. Min. Luiz Fux, j. 22/01/2020).............................................

5.5. (In)existência de juiz das garantias no con­ texto da violência doméstica e familiar contra a mulher................................................................. 138

99

2. Noções introdutórias.............................................

99

5.6. (In)existência de juiz das garantias colegiado...................................................................... 140

3. Estrutura acusatória do processo penal.............. 100 3.1. Da suspensão da eficácia sine die do art. 3o-A do CPP introduzido pela Lei n. 13.964/19.... 100

3.2. Gestão da prova pelo magistrado: a ve­ dação da iniciativa acusatória do juiz das ga­ rantias e da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento........................................ 101 3.2.1. Da vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias na fase investigatória.... 102

3.2.2. Da vedação da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento no curso do processo penal.......................................... 103

4. Juiz das Garantias.................................................. 108 4.1. Conceito......................................................... 108

4.4. Fundamento: a necessária preservação da imparcialidade do magistrado à luz da teoria da dissonância cognitiva.................................... 112 4.5. A figura do juiz das garantias no direito comparado ........................................................... 117

4.6. Início da eficácia do juiz das garantias ...... 119 4.7. Aplicação imediata da nova sistemática do Juiz das garantias às investigações e aos pro­ cessos em andamento por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19 .............................. 120

5.1. Não abrangência das infrações de menor potencial ofensivo................................................ 133

5.7. (In)existência do Ministério Público das garantias................................................................ 141

6. Cessação da competência do juiz das garantias com o recebimento da peça acusatória.................... 143

7. Recebimento da peça acusatória e apreciação das questões pendentes pelo juiz da instrução e julgamento.................................................................. 145 8. Desvinculação do juiz da instrução e julgamen­ to em relação às decisões proferidas pelo juiz das garantias e (des)necessidade de reexame das cau­ telares em curso.......................................................... 145 9. Não apensamento dos autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento................................................................... 146

SUMÁRIO

10. (Des)necessidade de exclusão física da inves­ tigação preliminar dos autos do futuro processo judicial......................................................................... 147

11. Impedimento para a atuação do juiz das ga­ rantias na fase de instrução e julgamento................ 151 12. (In)subsistência da prevenção como critério residual de fixação de competência diante da cria­ ção da figura do juiz das garantias........................... 152 13. Criação de um sistema de rodízio de magistra­ dos nas comarcas de vara única de modo a atender à sistemática do juiz das garantias........................... 155 14. Designação do juiz das garantias conforme as normas de Organização Judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal .................................. 155 15. Da vedação à exploração da imagem de pessoa submetida à prisão (“Perp walk”) como instru­ mento de se concretizar o respeito à integridade moral do preso............................................................ 156

6.8. Procedimento indisponível.......................... 176 6.9. Procedimento temporário............................ 176

7. instauração do inquérito policial......................... 177 7.1. Verificação de procedência de informa­ ções (VPI) ............................................................ 178 7.2. Formas de instauração do inquérito poli­ cial

178

7.2.1.1. (Im)possibilidade de instau­ ração de inquérito de ofício pela au­ toridade judiciária (“Inquérito das Fake News” - Inq. 4.781 do STF)...... 180

7.2.2. Crimes de ação penal pública con­ dicionada e de ação penal de iniciativa privada............................................................. 181

8. Notitia criminis...................................................... 182 8.1. Delatio criminis............................................ 182

8.2. Notitia criminis inqualificada..................... 182

157

9. Diligências investigatórias..................................... 183

1. Conceito de inquérito policial.............................. 157

9.1. Preservação do local do crime..................... 183

2. Natureza jurídica do inquérito policial................ 157

9.2. Apreensão de objetos.................................... 184

3. Finalidade do inquérito policial........................... 158

9.3. Colheita de outras provas............................ 184

4. Valor probatório do inquérito policial................. 158

9.4. Oitiva do ofendido........................................ 185

5. Atribuição para a presidência do inquérito po­ licial............................................................................. 159

9.5. Oitiva do indiciado....................................... 185

TÍTULO 3 . INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

5.1. Funções de polícia administrativa, judi­ ciária e investigativa............................................. 159

9.5.1. (Des)necessidade de presença de defensor por ocasião da realização do in­ terrogatório na fase investigatória................ 186

5.2. Da atribuição em face da natureza da in­ fração penal........................................................... 160

9.6. Reconhecimento de pessoas e coisas e acareações.............................................................. 188

5.3. Da atribuição em face do local da consu­ mação da infração penal..................................... 162

9.7. Determinação de realização de exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias....... 188

5.4. Das atribuições das Polícias Legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal .... 162

9.8. Identificação do indiciado e juntada da folha de antecedentes criminais.......................... 188

5.5. Agências de Inteligência de Segurança Pública e de Estado.............................................. 164

9.9. Averiguação da vida pregressa do investi­ gado....................................................................... 189

6. Características do inquérito policial..................... 166

9.10. Reconstituição do fato delituoso............... 189

6.1. Procedimento escrito.................................. 166

9.11. Acesso aos dados cadastrais de vítimas e de suspeitos........................................................... 190

6.2. Procedimento dispensável.......................... 166 6.3. Procedimento sigiloso................................. 167 6.4. Procedimento inquisitório.......................... 169 6.4.1. Assistência jurídica em favor de ser­ vidores vinculados aos órgãos de seguran­ ça pública (CF, art. 144) diante da instaura­ ção de inquérito para fins de investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício funcional................. 172 6.5. Procedimento discricionário....................... 174 6.6. Procedimento oficial.................................... 175 6.7. Procedimento oficioso................................. 175

9.12. Requisição de informações acerca das estações rádio base (ERBs)................................. 191 10. Identificação criminal......................................... 194

10.1. Conceito....................................................... 194 10.2. Leis relativas à identificação criminal....... 195 10.3. Documentos atestadores da identificação civil........................................................................ 196 10.4. Hipóteses autorizadoras da identificação criminal................................................................. 197

10.5. Identificação do perfil genético (Lei n° 12.654/12).............................................................. 198

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

11. Incomunicabilidade do indiciado preso............ 200 11.1. Regime disciplinar diferenciado................ 201

12. Indiciamento......................................................... 201

12.1. Conceito....................................................... 201 12.2. Momento...................................................... 201 12.3. Espécies........................................................ 201 12.4. Pressupostos................................................ 201 12.5. Desindiciamento......................................... 202 12.6. Atribuição.................................................... 202 12.7. Sujeito passivo............................................. 202 12.8. Afastamento do servidor público de suas funções como efeito automático do indicia­ mento em crimes de lavagem de capitais.......... 204

13. Conclusão do inquérito policial......................... 204 13.1. Prazo para a conclusão do inquérito po­ licial

204

14.7. Recorribilidade contra a decisão de ar­ quivamento ........................................................... 225 14.8. Arquivamento determinado por juiz ab­ solutamente incompetente................................... 226

14.9. Arquivamento implícito............................. 226

14.10. Arquivamento indireto............................ 227 15. Trancamento (ou encerramento anômalo) do inquérito policial........................................................ 227

15.1. (Im) possibilidade de arquivamento de ofício de investigações nos casos de compe­ tência originária dos Tribunais........................... 229

13.2. Relatório da autoridade policial................ 207

16.1. Comissões Parlamentares de Inquérito: inquéritos parlamentares.................................... 230

207

14. Arquivamento do inquérito policial................... 210 14.1. Fundamentos do arquivamento................. 211

14.2. Novo procedimento do arquivamento no âmbito da Justiça Estadual, da Justiça Federal e da Justiça Comum do Distrito Federal........... 212

14.2.1. Da suspensão da eficácia sine die do novo procedimento de arquivamento introduzido pela Lei n. 13.964/19................. 212

14.2.2. Fim do controle judicial sobre o arquivamento do inquérito policial.............. 212 14.2.3. (In)subsistência da aplicação do art. 28 do CPP pelo juiz nas hipóteses de divergência entre o magistrado e o órgão ministerial....................................................... 215

14.2.4. Instância de revisão ministerial para fins de homologação de arquivamen­ tos.................................................................... 216 14.2.5. Inconformismo da vítima com o arquivamento do inquérito policial e sub­ missão da matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial.................. 218

k

14.6. Desarquivamento, a partir da notícia de provas novas, e oferecimento de denúncia, na hipótese do surgimento de provas novas........... 224

16. Investigações diversas.......................................... 230

13.4. Providências a serem adotadas após a remessa dos autos do inquérito policial............. 209



14.5. (In) subsistência de coisa julgada na de­ cisão de arquivamento......................................... 221

13.1.1. Quadro sinóptico do prazo para a conclusão do inquérito policial..................... 206

13.3. Destinatário dos autos do inquérito po­ licial

?&

Procurador-Geral de Justiça ou do Procura­ dor-Geral da República....................................... 220

16.2. Conselho de Controle de atividades fi­ nanceiras (COAF) - Unidade de Inteligência Financeira (UIF)................................................... 233 16.3. Inquérito Policial Militar........................... 233

16.4. Investigação criminal pelo Ministério Público.................................................................. 234

16.5. Inquérito civil.............................................. 237

16.6. Termo circunstanciado............................... 237 16.7. Investigação pela autoridade judiciária.... 237 16.7.1. Inquérito judicial............................... 237

16.7.2. Revogada Lei das organizações cri­ minosas............................................................ 237 16.7.3. Infrações penais praticadas por ma­ gistrados.......................................................... 238

16.8. Investigação criminal defensiva................. 239 16.9. Investigação por detetive particular (Lei n. 13.432/17)......................................................... 240 17. Acordo de não-persecução penal....................... 241

17.1. Conceito....................................................... 241 17.2. Direito subjetivo do acusado ou discricionariedade do Ministério Público................... 243 17.3. Previsão normativa.................................... 244 17.4. Direito intertemporal................................. 245

14.3. Procedimento do arquivamento na Jus­ tiça Eleitoral......................................................... 219

17.5. Requisitos para a celebração do acordo de não-persecução penal..................................... 247

14.4. Procedimento do arquivamento nas hipóteses de atribuição originária do

17.6. Vedações à celebração do acordo de não persecução penal.................................................. 248

SUMÁRIO

17.7. Condições a serem impostas ao investi­ gado

6.3. Princípio da intranscendência..................... 282

250

17.8. Controle jurisdicional................................ 252

6.4. Princípio da obrigatoriedade da ação pe­ nal pública............................................................. 282

17.9. Descumprimento injustificado das obri­ gações assumidas pelo investigado.................... 253

6.5. Princípio da oportunidade ou conveniên­ cia da ação penal de iniciativa privada.............. 284

17.10. Cumprimento integral do acordo de não persecução penal.......................................... 254

6.6. Princípio da indisponibilidade da ação penal pública......................................................... 285

18. Controle externo da atividade policial............. 254

6.7. Princípio da disponibilidade da ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalís­ sima)....................................................................... 285

TÍTULO 4 . AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EXDELICTO..........................................................

257

1. Direito de ação penal............................................. 257

2. Características do direito de ação penal.............. 258 3. Lide no processo penal.......................................... 258 4. Condições da ação penal....................................... 258

4.1. Condições genéricas da ação penal............. 260

4.1.1. À luz da teoria geral do processo....... 260

4.1.1.1. Possibilidade jurídica do pe­ dido

261

4.1.1.2. Legitimidade para agir........... 263

4.1.1.2.1. Legitimidade or­ dinária e extraordinária no processo penal...................... 264

6.8. Princípio da (in) divisibilidade da ação penal pública......................................................... 286 6.9. Princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada............................................. 286

6.10. Princípio da oficialidade............................ 287 6.11. Princípio da autoritariedade...................... 288 6.12. Princípio da oficiosidade........................... 288

6.13. Quadro comparativo dos princípios da ação penal.............................................................. 288

7. Ação penal pública incondicionada..................... 289 8. Ação penal pública condicionada......................... 291 8.1. Representação................................................ 291

8.1.1. Natureza jurídica da representação.... 292

4.1.1.3. Interesse de agir..................... 265

8.1.2. Desnecessidade de formalismo.......... 292

4.1.1.3.1. Prescrição em perspectiva e ausência de interesse de agir..................... 266

8.1.3. Destinatário da representação............ 292

4.1.1.4. Justa Causa.............................. 268 4.1.1.4.1. Justa Causa du­ plicada

8.1.4. Legitimidade para o oferecimento da representação.................................................. 293 8.1.5. Prazo decadencial para o ofereci­ mento da representação................................ 295

269

8.1.6. Retratação da representação............... 296

4.1.2. À luz de uma teoria específica do processo penal................................................ 270

8.1.6.1. Retratação da retratação da representação....................................... 297

4.2. Condições específicas da ação penal........... 270

8.1.6.2. Retratação da representação na Lei Maria da Penha........................ 297

4.3. Condições da ação e condições de prosseguibilidade (condição superveniente da ação).... 272

8.1.7. Eficácia objetiva da representação..... 297

4.4. Condições da ação, condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias............... 272

8.1.8. Representação no processo penal militar.............................................................. 298

4.4.1. Decisão final do procedimento ad­ ministrativo nos crimes materiais contra a ordem tributária............................................. 273

8.2. Requisição do Ministro da Justiça............... 298

5. Classificação das ações penais.............................. 276 5.1. Classificação das ações penais condenatórias..................................................................... 277

6. Princípios da ação penal pública e da ação penal de iniciativa privada................................................... 279 6.1. Princípio do ne procedat iudex ex officio.... 279 6.2. Princípio do ne bis in idem (inadmissibi­ lidade da persecução penal múltipla)................. 279

8.2.1. Requisição no processo penal militar..... 299 9. Ação penal de iniciativa privada........................... 300 9.1. Ação penal exclusivamente privada............ 301 9.2. Ação penal privada personalíssima............. 301

9.3. Ação penal privada subsidiária da pública.... 301

9.4. Extinção da punibilidade e ação penal de iniciativa privada.................................................. 304

9.4.1. Decadência........................................... 304 9.4.2. Renúncia ao direito de queixa............ 306 15

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

9.4.3. Perdão do ofendido............................. 307

15.2.5. Endereçamento da peça acusatória.... 333

9.4.4. Quadro comparativo entre renúncia e perdão do ofendido.................................... 309

15.2.6. Redação em vernáculo....................... 333

9.4.5. Perempção............................................ 309 9.5. Ação penal privada no processo penal militar................................................................... 310 10. Ação penal popular.............................................. 310

11. Ação penal adesiva............................................... 311 12. Ação de prevenção penal.................................... 311

15.2.7. Razões de convicção ou presunção da delinquência.............................................. 333 15.2.8. Peça acusatória subscrita pelo Mi­ nistério Público ou pelo advogado do querelante.............................................................. 334 15.2.9. Procuração da queixa-crime e re­ colhimento de custas..................................... 334

13. Ação penal secundária........................................ 311

15.3. Prazo para o oferecimento da peça acu­ satória..................................................................... 336

14. Ação penal nas várias espécies de crimes.......... 312

16. Questões diversas................................................. 337

14.1. Ação penal nos crimes contra a honra..... 312

16.1. Denúncia genérica e crimes societários.... 337

14.1.1. Ação penal no crime imprescritível de injúria racial.............................................. 313

16.1.1. Acusação geral e acusação genérica.... 338

14.2. Ação penal nos crimes de trânsito de lesão corporal culposa, de embriaguez ao vo­ lante e de participação em competição não autorizada.............................................................. 314

16.2. Cumulação de imputações......................... 339 16.3. Imputação implícita.................................... 339 16.4. Imputação alternativa.................................. 339

17. Aditamento à denúncia....................................... 342

14.3. Ação penal nos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa com violência doméstica e familiar contra a mulher................ 315

17.1. Espécies de aditamento............................... 343

14.4. Ação penal nos crimes ambientais: pes­ soas jurídicas e dupla imputação....................... 316

17.1.2. Quanto à voluntariedade do adita­ mento: espontâneo e provocado................... 344

14.5. Ação penal nos crimes de estelionato: art. 171, §5°, do Código Penal, incluído pela Lein. 13.964/19.................................................... 317

17.2. Interrupção da prescrição.......................... 344

14.6. Ação penal nos crimes contra a dignida­ de sexual (Lei n° 13.718/18)............................... 319 14.6.1. Redação original do art. 225 do CP (antes da Lei n. 12.015/09)........................... 320 14.6.2. Redação do art. 225 do CP deter­ minada pela Lei n. 12.015/09 (antes da Lei n. 13.718/18)................................................... 321

14.6.3. Redação do art. 225 do CP deter­ minada pela Lei n. 13.718/18....................... 323

14.6.4. Quadro comparativo da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual ......... 323

17.1.1. Quanto ao objeto do aditamento: próprio e impróprio....................................... 343

17.3. Procedimento do aditamento.................... 345 17.4. Aditamento à queixa-crime........................ 345 18. Ação civil ex delicto.............................................. 346

18.1. Noções introdutórias.................................. 346 18.2. Sistemas atinentes à relação entre a ação civil ex delicto e o processo penal....................... 346 18.3. Efeitos civis da absolvição penal................ 348 18.3.1. Efeitos da absolvição penal no âm­ bito da ação de improbidade administrati­ va..................................................................... 352

14.6.5. Direito intertemporal........................ 324

18.4. Obrigação de indenizar o dano causado pelo delito como efeito genérico da sentença condenatória......................................................... 354

14.7. Ação penal no crime de invasão de dis­ positivo informático............................................ 326

18.4.1. Quantificação do montante a ser indenizado ao ofendido................................ 356

15. Peça acusatória..................................................... 327

18.4.2. Natureza do dano cuja indenização mínima pode ser fixada na sentença con­ denatória ......................................................... 358

15.1. Denúncia e queixa-crime........................... 327

15.2. Requisitos da peça acusatória.................... 327

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL.......

361

15.2.3. Classificação do crime...................... 332

CAPÍTULO I - PREMISSAS FUNDAMENTAIS E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS.................................................

361

15.2.4. Rol de testemunhas........................... 332

1. Jurisdição e competência..................................... 361

15.2.1. Imputação criminal........................... 327 15.2.1.1. Imputação patrimonial........ 330

15.2.2. Qualificação do acusado................... 331

SUMÁRIO

2. Princípio do juiz natural....................................... 362

2.1. Lei processual que altera regras de com­ petência.................................................................. 363 2.2. Convocação de Juizes de Io grau de juris­ dição para substituição de Desembargadores.... 364

3. Espécies de competência....................................... 366 4. Competência absoluta e relativa........................... 367

4.1. Quanto à natureza do interesse.................... 367

4.2. Quanto à arguição da incompetência......... 368 4.3. Quanto ao reconhecimento da incompe­ tência no juízo ad. quem...................................... 370

4.4. Quanto às consequências da incompetên­ cia absoluta e relativa........................................... 372

4.5. Quanto à coisa julgada nos casos de in­ competência absoluta e relativa.......................... 374 4.6. Quadro sinóptico dos regimes jurídicos das regras de incompetência absoluta e relativa......... 375

5. Fixação da competência criminal......................... 375 6. Competência internacional................................... 376 7.

Tribunal Penal Internacional.............................. 377

CAPÍTULO II - COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA..........................................................

1.2.3.1. Lei n. 13.491/17 e o princí­ pio do juiz natural............................... 393 1.2.3.2. Lei n. 13.491/17 e o direito intertemporal....................................... 393 1.2.3.3. (In) constitucionalidade da Lein. 13.491/17.................................... 395

1.3. (In) constitucionalidade e (in) convencionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de civis pela prática de crimes militares definidos em lei (ADPF 289)...................................................... 396 1.4. (In)constitucionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes cometidos por ou contra militares no exercício de atribuições subsidiá­ rias das Forças Armadas (ADI 5.032)................ 400

1.5. Dos crimes militares em tempo de paz........... 401 1.5.1. Do conceito de militar para fins de aplicação da lei penal militar......................... 401 1.5.2. Do inciso I do art. 9o do Código Pe­ nal Militar....................................................... 404

1.5.3. Do inciso II do art. 9o do Código Penal Militar................................................... 405 1.5.4. Do inciso III do art. 9o do CPM......... 415

380

1. Competência Criminal da Justiça Militar......... 380

1.5.5. Dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis............ 420

1.1. Distinção entre a Justiça Militar da União e a Justiça Militar dos Estados............................ 380

1.5.6. Dos crimes militares praticados em tempo de guerra............................................. 425

1.1.1. Quanto à competência criminal......... 381

2. Competência Criminal da Justiça Eleitoral......... 426

1.1.2. Quanto à competência para o pro­ cesso e julgamento de ações judiciais con­ tra atos disciplinares militares....................... 381

3. Competência Criminal da Justiça do Trabalho..... 429

1.1.3. Quanto ao acusado.............................. 382 1.1.4. Quanto ao órgão jurisdicional de Ia instância.......................................................... 384

1.1.5. Quanto ao órgão jurisdicional de 2a instância.......................................................... 386 1.1.6. Quadro comparativo entre a Justiça Militar da União e a Justiça Militar Esta­ dual .................................................................. 386

1.2. Crime militar................................................. 387 1.2.1. Crime propriamente militar e crime impropriamente militar................................. 387 1.2.2. Crime militar de tipificação direta e crime militar de tipificação indireta............. 389 1.2.3. Crimes militares extravagantes (cri­ mes militares por equiparação à legisla­ ção penal comum ou crimes militares por extensão): a nova competência da Justiça Militar (Lei n. 13.491/17).............................. 390

4. Competência Criminal da Justiça Federal........... 430

4.1. Considerações iniciais................................... 430

4.2. Atribuições de polícia investigativa da Polícia Federal...................................................... 431 4.3. Crimes políticos e infrações penais pra­ ticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades au­ tárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções penais e ressalvada a compe­ tência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral (CF, Art. 109, inciso IV)...................................... 432

4.3.1. Crimes políticos................................... 432 4.3.2. Crimes contra a União......................... 433

4.3.3. Crimes contra autarquias federais...... 434 4.3.4. Crimes contra empresas públicas federais............................................................. 434 4.3.5. Crimes contra fundações públicas federais............................................................. 436

4.3.6. Crimes contra entidades de fiscali-

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

4.3.7. Crimes contra a Ordem dos Advo­ gados do Brasil (OAB).................................. 437 4.3.8. Crimes contra sociedades de econo­ mia mista, concessionárias (ou permissionárias) de serviço público federal e entida­ des do “Sistema S”.......................................... 438

4.3.9. Bens, serviços ou interesse da União, das autarquias federais (fundações públi­ cas federais) e das empresas públicas fede­ rais.................................................................... 439

4.6.2.1. Varas especializadas para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e os delitos de lavagem de capitais............ 476 4.7. Habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangi­ mento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição (CF, Art. 109, VII)................................................ 478

4.3.10. Crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/03)............... 443

4.8. Mandados de segurança contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos Tribunais Federais (CF, Art. 109, VIII)............................................................... 479

4.3.11. Crimes contra a Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar da União e do Distrito Federal.............................................. 444

4.9. Crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar (CF, Art. 109, inciso IX).......................... 479

4.3.12. Crime praticado contra funcionário público federal................................................ 445

4.10. Crimes de ingresso ou permanência ir­ regular de estrangeiro (CF, Art. 109, X)............. 481

4.3.13. Crime praticado por funcionário público federal................................................ 447

4.11. Disputa sobre direitos indígenas (CF, Art. 109, XI).................................................................. 482

4.3.14. Tribunal do Júri Federal.................... 448

4.11.1. Genocídio contra índios.................... 483

4.3.15. Crimes contra o meio ambiente....... 448 4.3.16. Crimes contra a fé pública................ 452

4.12. Conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual............. 484

4.3.17. Juízo Federal da Execução Penal...... 456

5. Competência Criminal da Justiça Estadual......... 485

4.3.18. Contravenções penais........................ 458 4.3.19. Atos infracionais................................ 459 4.3.20. Crimes previstos na Lei Antiterrorismo (Lei n° 13.260/16)............................... 459

6. Justiça Política ou Extraordinária......................... 486 CAPÍTULO III - COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO...........................

489

1. Conceito.................................................................. 489

4.3.21. Crimes cometidos no estrangeiro.... 460

2. Regras básicas......................................................... 489

4.4. Crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente (CF, Art. 109, inciso V)........................................................ 461

2.1. Investigação e indiciamento de pessoas com foro porprerrogativa de função.................. 489

4.4.1. Tráfico internacional de drogas.......... 462 4.4.2. Rol exemplificativo de crimes de competência da Justiça Federal com fun­ damento no art. 109, inciso V, da Consti­ tuição Federal................................................. 466 4.5. Incidente de Deslocamento de Competên­ cia para a Justiça Federal (CF, Art. 109, V-A, c/c Art. 109, § 5o)................................................. 469

2.2. Arquivamento de inquérito nas hipóteses de atribuição originária do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral da Repú­ blica........................................................................ 490 2.3. Duplo grau de jurisdição............................ 490 2.4. (Des)necessidade de o crime ser cometido durante o exercício do cargo e relacionado às funções desempenhadas pelo agente e (im) possibilidade de prorrogação da competên­ cia do respectivo Tribunal quando cessado o exercício funcional............................................... 490

4.6. Crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira (CF, Art. 109, VI)................................. 471

2.4.1. Regra da contemporaneidade............. 490

4.6.1. Crimes contra a organização do tra­ balho................................................................ 471

2.5. Crime cometido após o exercício funcio­ nal.......................................................................... 496

4.6.2. Crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira.................. 473

2.6. Dicotomia entre crime comum e crime de responsabilidade................................................... 497

2.4.2. Regra da atualidade.............................. 492

2.4.3. Regra da atualidade limitada, restrita ou mista........................................................... 493

SUMÁRIO

2.8. Crime doloso contra a vida......................... 498

CAPÍTULO IV - COMPETÊNCIA TERRITORIAL.

2.9. Hipóteses de concurso de agentes............... 499

1. Introdução....

2.7. Local da infração.......................................... 498

2.10. Constituições Estaduais e princípio da simetria................................................................. 501

2.11. Exceção da verdade.................................... 503 2.12. Atribuições dos membros do Ministério Público perante os Tribunais Superiores........... 505 2.13. Procedimento originário dos Tribunais..... 505

3. Casuística................................................................ 506 3.1. Quanto à competência dos Tribunais......... 506

3.1.1. Supremo Tribunal Federal.................. 506 3.1.2. Superior Tribunal de Justiça............... 507

3.1.3. Tribunal Superior Eleitoral................. 508

2. Competência territorial pelo lugar da consu­ mação da infração

3. Casuística......... 3.1. Quanto às espécies de infração penal

3.2. Quanto aos crimes em espécie.......... 3.2.1. Competência territorial para o proces­ so e julgamento dos crimes de estelionato (Lei n. 14.155, de 27 de maio de 2021)........ 4. Competência territorial pela residência ou do­ micílio do réu...........................................................

5. Competência territorial na Justiça Federal, na Justiça Militar (da União e dos Estados) e na Jus­ tiça Eleitoral

3.1.4. Superior Tribunal Militar................... 509 3.1.5. Tribunais Regionais Federais.............. 509

CAPÍTULO V - COMPETÊNCIA DE JUÍZO

3.1.6. Tribunais Regionais Eleitorais............ 509

1. Determinação do juízo competente..............

3.1.7. Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal.............................................. 509

2. Juizado de Violência Doméstica e Familiar con­ tra a Mulher...............................................................

3.1.8. Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo.................................................... 510

3. Juízo colegiado em primeiro grau de jurisdição para o julgamento de crimes praticados por orga­ nizações criminosas...................................................

3.1.9. Senado Federal..................................... 510

3.1.10. Tribunal Especial............................... 510 3.1.11. Câmara Municipal............................. 510 3.2. Quanto aos titulares de foro por prerro­ gativa de função.................................................... 511 3.2.1. Presidente da República..................... 511

3.2.2. Deputados federais e Senadores......... 512 3.2.3. Ministros de Estado............................ 513

3.1. Conceito legal de organizações criminosas.

3.2. Formação do juízo colegiado em primeiro grau.......................................................................

3.3. Varas criminais colegiadas para o julga­ mento de crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição, do crime do art. 288-A do Códi­ go Penal, e das infrações penais conexas aos referidos delitos (Lei n. 12.694/12, art. 1°-A, incluído pela Lei n. 13.964/19).......................... . 547

3.2.4. Membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Minis­ tério Público................................................... 513

4. Competência do Juízo da Execução Penal......... . 547

3.2.5. Governador de Estado........................ 513

5. Competência por distribuição............................. . 551

3.2.6. Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e membros dos Tribunais Regionais Federais. 515

6. Competência por prevenção................................ . 552

3.2.7. Membros do Ministério Público Es­ tadual e Juizes Estaduais............................... 515

555

4.1. Execução da pena de multa........................ . 550

CAPÍTULO VI - MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA.....................................................

1. Conexão e continência......................................... . 555

3.2.8. Membros do Ministério Público da União............................................................... 516

1.1. Introdução.................................................... . 555

3.2.9. Deputados Estaduais........................... 517

1.3. Continência.................................................. . 558

1.2. Conexão........................................................ . 557

3.2.10. Prefeitos municipais.......................... 518

1.4. Efeitos da conexão e da continência.......... . 558

3.2.11. Vereadores.......................................... 519

1.5. Foro prevalente............................................. . 560

4. Quadro sinóptico de competência por prerro­ gativa de função

520 ■■■■Ml

1.5.1. Competência prevalente do Tribunal do Júri............................................................. . 560 19

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

1.5.2. Jurisdições distintas............................. 561

1.5.2.1. Concurso entre a jurisdição comum e a especial............................. 561

1.3. Provas cautelares, não repetíveis e anteci­ padas...................................................................... 572 1.4. Destinatários da prova................................. 573

1.5.2.2. Concurso entre órgãos de jurisdição superior e inferior............. 561

1.5. Elemento de prova e resultado da prova.... 573

1.5.2.3. Concurso entre a Justiça Fe­ deral e a Estadual................................ 561

1.7. Sujeitos da prova........................................... 574

1.5.3. Jurisdições da mesma categoria.......... 561 1.6. Separação de processos.............................. 562

1.6.1. Separação obrigatória dos processos.. 562

1.6.1.1. Concurso entre a jurisdição comum e a militar.............................. 562

1.6.1.2. Concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores........ 563 1.6.1.3. Doença mental superve­ niente à prática delituosa.................... 563

1.6.1.4. Citação por edital de um dos corréus, seguida de seu não-comparecimento e não-constituição de defensor................................................ 563

1.6.1.5. Antiga hipótese de ausência de intimação da pronúncia ou de não-comparecimento do acusado à sessão de julgamento do júri, em se tratando de crime inafiançável.......... 563 1.6.1.6. Recusas peremptórias no júri.... 564 1.6.1.7. Suspensão do processo em relação ao colaborador........................ 564

1.6.2. Separação facultativa de processos

564

1.6.2.1. Infrações praticadas em cir­ cunstâncias de tempo ou de lugar diferentes...............................................565

1.6. Finalidade da prova...................................... 574 1.8. Forma da prova............................................. 574 1.9. Fonte de prova, meios de prova e meios de obtenção de prova........................................... 574 1.9.1. Meios extraordinários de obtenção de prova (técnicas especiais de investiga­ ção)................................................................... 576

1.10. Prova direta e prova indireta...................... 576 1.11. Indício: prova indireta ou prova semiplena....................................................................... 576

1.12. Suspeita........................................................ 578 1.13. Objeto da prova........................................... 578 1.14. Prova direta (positiva) e contrária (ne­ gativa); a contraprova.......................................... 580

1.15. Prova emprestada........................................ 580 1.16. Prova nominada e prova inominada......... 583 1.17. Prova típica e prova atípica........................ 583

1.18. Prova anômala e prova irritual.................. 584 1.19. Critérios de decisão (standards probató­ rios)

585

2. Ônus da prova........................................................ 585 2.1. Conceito......................................................... 585 2.2. Ônus da prova perfeito e menos perfeito.... 586 2.3. Ônus da prova objetivo e subjetivo............. 586 2.4. Distribuição do ônus da prova no proces­ so penal.................................................................. 587

1.6.2.2. Excessivo número de acu­ sados e para não lhes prolongar a prisão provisória................................. 566

2.4.1. Ônus da prova da acusação e da de­ fesa ................................................................... 587

1.6.2.3. Motivo relevante pelo qual o juiz repute conveniente a separação...... 566

2.5. Inversão do ônus da prova........................... 590

1.7. Perpetuação da competência nas hipóteses de conexão e continência.................................... 566

2. Prorrogação de competência................................ 568 3. Perpetuação de competência................................ 568

TÍTULO 6 . PROVAS............................................

CAPÍTULO I - TEORIA GERAL DAS PROVAS....

571

2.4.2. Ônus da prova exclusivo da acusação 589

2.5.1. Confisco alargado e (im) possibili­ dade de inversão do ônus da prova.............. 590

3. Iniciativa probatória do juiz: a gestão da prova pelo magistrado.......................................................... 593 4. Sistemas de avaliação da prova............................. 593

4.1. Sistema da íntima convicção do magistra­ do

593

571

4.2. Sistema da prova tarifada............................. 594

1. Terminologia da prova........................................ 571

4.3. Sistema do convencimento motivado (per­ suasão racional do juiz)....................................... 595

1.1. Acepções da palavra prova.......................... 571 1.2. Distinção entre prova e elementos infor­ mativos................................................................... 572

5. Da prova ilegal........................................................ 596 5.1. Limitações ao direito à prova....................... 596

SUMÁRIO

5.1.1. Provas ilícitas e ilegítimas................... 597 5.1.2. Tratamento da (in) admissibilidade das provas ilícitas e ilegítimas....................... 599 5.2. Prova ilícita por derivação (teoria dos fru­ tos da árvore envenenada).................................. 600 5.3. Limitações à prova ilícita por derivação..... 602

6.5.3. Liberdade probatória quanto aos meios de prova............................................... 621 6.6. Princípio do favor rei................................. 622

CAPÍTULO II - MEIOS DE PROVA E MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA EM ESPÉCIE........

623

5.3.1. Da teoria da fonte independente........ 602

1. Do exame de corpo de delito, da cadeia de cus­ tódia e das perícias em geral...................................... 623

5.3.2. Teoria da descoberta inevitável.......... 604

1.1. Cadeia de custódia............................................ 623

5.3.3. Limitação da mancha purgada (ví­ cios sanados ou tinta diluída)...................... 605

1.1.1. Etapas do rastreamento do vestígio na cadeia de custódia.................................... 627

5.3.4. Exceção da boa-fé................................ 606

1.1.2. Coleta dos vestígios............................. 629

5.3.5. A teoria do risco.................................. 607

1.1.3. Recipientes para acondicionamento de vestígios...................................................... 630

5.3.6. Limitação da destruição da mentira do imputado................................................... 607

5.3.7. Doutrina da visão aberta..................... 607

1.1.4. Centrais de custódia............................. 630 1.1.5. Destinação do material após a reali­ zação da perícia.............................................. 631

5.3.7.1. Teoria do encontro fortuito de provas (serendipidade) e crime achado.................................................. 608

1.2. Do exame de corpo de delito e das perícias em geral................................................................. 631

5.3.8. Limitação da renúncia do interessado 609

1.2.1. DoCorpo dedelito................................ 631

5.3.9. A limitação da infração constitucio­ nal alheia......................................................... 610

1.2.2. Exame de corpo de delito e outras perícias............................................................. 632

5.3.10. A limitação da infração constitu­ cional por pessoas que não fazem parte do órgão policial.................................................. 610

1.2.3. Laudopericial........................................ 633

5.4. Inutilização da prova ilícita......................... 611

1.2.3.2. Sistemas de apreciação dos laudos periciais.................................... 634

5.4.1. Inutilização da prova ilícita no Tri­ bunal do Júri................................................... 613 5.5. Descontaminação do julgado (ou desentranhamento do juiz)........................................... 613 6. Princípios relativos à prova penal.......................... 614

6.1. Princípio da proporcionalidade................... 614

6.1.1. Princípio da proporcionalidade e prova ilícita pro reo....................................... 614 6.1.2. Princípio da proporcionalidade e prova ilícita pro societate.............................. 615

1.2.3.1. Momento para a juntada do laudo pericial....................................... 633

1.2.3.3. Laudo pericial e contraditório... 634 1.2.4. Obrigatoriedade do exame de corpo de delito: infrações transeuntes e não transeuntes.... 634

1.2.5. Exame de corpo de delito direto e indi­ reto

635

1.2.5.1. Casuística................................ 636 1.2.6. Ausência do exame de corpo de delito.... 638 1.2.7. Peritos: oficiais e não oficiais.................... 639

1.2.7.1. Número de peritos............................ 640

6.2. Princípio da comunhão da prova................ 617

1.2.8. Assistente técnico....................................... 641

6.3. Princípio da autorresponsabilidade das partes...................................................................... 617

1.2.9. Autópsia e exumação para exame cadavérico...................................................................... 642

6.4. Princípio da oralidade.................................. 617

1.2.10. Laudo pericial complementar no crime de lesões corporais................................................ 642

6.4.1. Princípio da identidade física do juiz... 618

6.4.1.1. Magistrados instrutores e princípio da identidade física do juiz.... 620

1.2.11. Exame pericial de local de crime............ 642

6.5. Princípio da liberdade probatória............... 620

1.2.13. Exame pericial para avaliação do pre­ juízo causado pelo delito..................................... 643

6.5.1. Liberdade probatória quanto ao mo­ mento da prova.............................................. 621 6.5.2. Liberdade probatória quanto ao tema da prova................................................. 621

1.2.12. Perícias de laboratório............................. 643

1.2.14. Exame pericial nos casos de incêndio.... 643

1.2.15. Exame pericial para reconhecimento de escritos.............................................................. 643

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

1.2.16. Exame pericial dos instrumentos do crime..................................................................... 643

3.4. Valor probatório da confissão...................... 659

1.2.17. Exame pericial por meio de carta pre­ catória................................................................... 643

4. Declarações do ofendido..................................... 660

2. Interrogatório judicial........................................... 643 2.1. Conceito......................................................... 643 2.2. Natureza jurídica........................................... 644 2.3. Momento para a realização do interroga­ tório....................................................................... 645 2.4. Condução coercitiva..................................... 647

3.5. Circunstância atenuante da confissão......... 660

4.1. Dever processual de tutela da integrida­ de física e psicológica da vítima (e das teste­ munhas) pelas partes e pelos demais sujeitos processuais (Lei Mariana Ferrer)........................ 661 5. Prova testemunhai................................................ 661

5.1. Conceito de testemunha e sua natureza jurídica................................................................... 661

2.5. Foro competente para a realização do in­ terrogatório........................................................... 647

5.2. Características da prova testemunhai......... 661

2.6. Ausência do interrogatório.......................... 647

5.3.1. Dever de depor..................................... 662

2.7. Características do interrogatório................. 647

5.3.2. Dever de comparecimento.................. 664

2.7.1. Ato personalíssimo.............................. 647

5.3.3. Dever de prestar o compromisso de dizer a verdade............................................... 666

2.7.2. Ato contraditório................................. 647 2.7.3. Ato assistido tecnicamente.................. 648 2.7.4. Ato oral................................................. 649 2.7.5. Ato individual...................................... 649

2.7.6. Ato bifásico........................................... 649

2.7.7. Ato protegido pelo direito ao silêncio.... 650

5.3. Deveres das testemunhas.............................. 662

5.3.4. Dever de comunicar mudança de residência........................................................ 667 5.4. Espécies de testemunhas............................... 667

5.4.1. Testemunhas vulneráveis e depoi­ mento sem dano (depoimento especial)...... 668

2.7.8. Liberdade de autodeterminação......... 651

5.5. Procedimento para a oitiva de testemu­ nhas....................................................................... 669

2.7.9. Ato público........................................... 652

5.5.1. Apresentação do rol de testemunhas.... 669

2.7.10. Ato realizável a qualquer momento, antes do trânsito em julgado........................ 652

5.5.2. Intimação das testemunhas................. 670

2.8. Local da realização do interrogatório......... 652

5.5.4. Desistência da oitiva de testemunhas.... 671

2.9. Nomeação de curador.................................. 653

5.5.5. Incomunicabilidade das testemunhas.... 671

2.10. Interrogatório por videoconferência......... 654

5.5.6. Retirada do acusado da sala de au­ diência............................................................. 672

2.10.1. Breve histórico da Lei n° 11.900/09: a Lei paulista n° 11.819/05............................ 654 2.10.2. A entrada em vigor da Lei n° 11.900/09......................................................... 654

5.5.3. Substituição de testemunhas............... 670

5.5.7. Assunção do compromisso de dizer a verdade......................................................... 672

5.5.8. Qualificação da testemunha................ 672

2.10.3. Finalidades do uso da videoconfe­ rência............................................................... 656

5.5.9. Contradita e arguição de parcialida­ de da testemunha........................................... 673

2.10.4. Intimação das partes da realização da videoconferência....................................... 656

5.5.10. Colheita do depoimento: exame di­ reto (direct-examination) e exame cruzado (cross-examination)........................................ 673

2.10.5. Direito de presença remota do acu­ sado aos demais atos da audiência una de instrução e julgamento.................................. 656

5.5.11. Inversão da ordem de oitiva das testemunhas.................................................... 675

2.10.6. Direito de entrevista prévia e reser­ vada com o defensor...................................... 657

5.6. Direito ao confronto e produção de prova testemunhai incriminadora................................ 676

2.10.7. Da (in) constitucionalidade do in­ terrogatório por videoconferência................ 657

5.6.1. Testemunhas anônimas e direito ao confronto......................................................... 677

3. Confissão................................................................. 658 3.1. Conceito......................................................... 658

5.6.2. Testemunhas ausentes e direito ao confronto......................................................... 679

3.2. Classificação da confissão............................ 658

6. Reconhecimento de pessoas e coisas.................... 680

3.3. Características da confissão........................ 659

6.1. Conceito e natureza jurídica........................ 680

SUMÁRIO

6.2. Procedimento e consequências decorren­ tes da atipicidade procedimental....................... 680

11.1.5.1.2. Direito probatório de 2a geração: o caso Katz............................ 712

6.3. Reconhecimento fotográfico e fonográfico.... 682

11.1.5.1.3. Direito probatório de 3a geração: o caso Kyllo........................... 712

7. Acareação................................................................ 682

8. Prova documental.................................................. 683

11.1.5.1.4. (Des) necessidade de autorização judicial prévia para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares apreendidos......................................... 713

8.1. Conceito e espécies....................................... 683

11.1.6. Quebra do sigilo de dados telefônicos.... 717

8.2. Produção da prova documental................... 685

11.1.7. Finalidade da interceptação telefônica: obtenção de elementos probatórios em investi­ gação criminal ou instrução processual penal..... 718

7.1. Conceito e natureza jurídica....................... 682

7.2. Procedimento probatório............................ 683

7.3. Valor probatório............................................ 683

8.3. Tradução de documentos em língua es­ trangeira ................................................................ 686 8.4. Restituição de documentos........................ 686

9. Indícios.................................................................... 686 10. Busca e apreensão................................................ 686

10.1. Conceito e natureza jurídica...................... 686 10.2. Iniciativa e decretação................................ 687

10.3. Objeto........................................................... 688 10.4. Espécies de busca........................................ 689 10.4.1. Busca domiciliar................................ 689

10.4.1.1. Mandado de busca e apreensão............................................. 699 10.4.1.2. Execução da busca domiciliar. 700

10.4.1.3. Descoberta de outros ele­ mentos probatórios e teoria do en­ contro fortuito de provas.................... 701 10.4.2. Busca pessoal..................................... 702

10.4.2.1. Revista íntima em presídios..... 703 11. Interceptação telefônica e captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos.... 705

11.1. Interceptação telefônica............................. 705 11.1.1. Sigilo da correspondência, das co­ municações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.............................. 705

11.1.2. Direito intertemporal e Lei n° 9.296/96...... 706 11.1.3. Conceito de interceptação....................... 707

11.1.8. Requisitos para a interceptação telefô­ nica

719

11.1.8.1. Ordem funda­ mentada da autoridade ju­ diciária competente (teoria do juízo aparente)................. 720 11.1.8.1.1. Da fundamenta­ ção da decisão....................... 722

11.1.8.2. Indícios razoáveis de auto­ ria ou participação............................... 722 11.1.8.3. Quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis......... 723

11.1.8.4. Infração penal punida com pena de reclusão (crime de catálogo).... 724 11.1.8.5. Delimitação da situação objeto da investigação e do sujeito passivo da interceptação..................... 725

11.1.9. Sigilo profissional do advogado.............. 726

11.1.10. Encontro fortuito de elementos pro­ batórios em relação a outros fatos delituosos (serendipidade)..................................................... 726 11.1.10.1. Encontro fortuito de diá­ logos mantidos com autoridade dotada de foro por prerrogativa de função e momento adequado para a remessa dos autos ao Tribunal com­ petente.................................................. 728

11.1.4. Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais)............................................................ 709

11.1.11. Procedimento......................................... 729

11.1.5. Comunicações telefônicas de qualquer natureza................................................................. 710

11.1.12. Decretação da interceptação telefôni­ ca de ofício pelo juiz............................................ 730

11.1.5.1. Gerações de provas (trilo­ gia Olmstead-Katz-Kyllo) e (des) necessidade de autorização judi­ cial para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares apreendidos.......................... 711

11.1.13. Segredo de justiça................................... 731

11.1.16. Incidente de inutilização da gravação que não interessar à prova.................................. 736

11.1.5.1.1. Direito probatório de Ia geração: o caso Olmstead................... 712

11.1.17. Resolução n° 59 do Conselho Nacio­ nal de Justiça......................................................... 736

11.1.14. Duração da interceptação...................... 731 11.1.15. Execução da interceptação telefônica.... 733

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11.1.18. Caso Escher e outros (Corte Interamericana de Direitos Humanos)........................ 737

13.9.1. (Im) possibilidade de sanções pre­ miais extralegais............................................. 771

11.2. Captação ambiental de sinais eletromag­ néticos, ópticos ou acústicos.............................. 737

13.10. Sobrestamento do prazo para ofereci­ mento da denúncia ou suspensão do processo, com a consequente suspensão da prescrição.... 772

11.2.1. Noções introdutórias......................... 737

11.2.2. Captação ambiental........................... 738

11.2.3. (I)licitude da captação ambiental e (des)necessidade de prévia autorização judicial............................................................. 739

11.2.4. Procedimento e requisitos para a captação ambiental........................................ 742

11.2.5. Local e forma de instalação dos meios eletrônicos de produção de provas.... 744 11.2.5.1. (Im) possibilidade de instalação do dispositivo de captação ambiental na casa do investigado........................................ 744 11.2.6. Prazo de duração da captação am­ biental.............................................................. 745 11.2.7. Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais) e (im) possibilidade de uti­ lização exclusivamente em favor da defesa quando demonstrada a integridade da gra­ vação................................................................ 746

13.11. Valor probatório da colaboração pre­ miada: regra da corroboração............................. 773 13.12. Observância do contraditório e da am­ pla defesa............................................................... 774 13.12.1. A implicação do acordo na ordem de manifestação dos acusados....................... 776

13.13. Acordo de colaboração premiada............ 777 13.13.1. Proposta para formalização de acordo de colaboração premiada (proffer session ou queenfor a day)............................. 777 13.13.2. Conteúdo do acordo de colabora­ ção premiada.................................................. 780

13.13.3. Legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada.................. 781 13.13.4. Retratação do acordo....................... 784

13.13.5. Distinção entre retratação, resci­ são e anulação do acordo de colaboração premiada......................................................... 784 13.13.6. Intervenção do juiz.......................... 785

11.2.8. Aplicação subsidiária à captação ambiental das regras atinentes à interceptação das comunicações telefônicas............. 750

13.13.7. Momento para a celebração do acordo de colaboração premiada.................. 789

12. Quebra do sigilo de dados bancários, finan­ ceiros e fiscais.............................................................. 750

13.13.8. Publicidade do acordo de colabo­ ração premiada............................................... 791

13. Colaboração premiada........................................ 755

14. Ação controlada................................................... 791

13.1. Origem e conceito...................................... 755

14.1. Conceito e previsão legal............................ 791

13.2. Natureza jurídica da colaboração pre­ miada..................................................................... 755

14.2. (Des) necessidade de prévia autorização judicial................................................................... 792

13.3. Distinção entre colaboração premiada e delação premiada (chamamento de corréu)...... 756

14.3. Flagrante prorrogado, retardado ou di­ ferido...................................................................... 794

13.4. Ética e moral................................................ 757

14.4. Entrega vigiada............................................ 795

13.5. Direito ao silêncio....................................... 757

15. Infiltração de agentes........................................... 796

13.6. Previsão normativa..................................... 759

15.1. Conceito e previsão normativa.................. 796

13.6.1. Lei de proteção às testemunhas (Lei n° 9.807/99)..................................................... 761

15.2. Atribuição para a infiltração: agentes de polícia..................................................................... 797

13.6.2. Nova Lei das Organizações Crimi­ nosas (Lei n° 12.850/13)................................ 762

15.2.1. (Im)possibilidade de infiltração de particulares..................................................... 798

13.7. Voluntariedade e motivação da colabo­ ração....................................................................... 764

15.3. Requisitos para a infiltração....................... 798

13.7.1. (Im) possibilidade de celebração de acordo de colaboração premiada com investigados (ou acusados) presos................ 764

15.5. Agente infiltrado, agente provocador (entrapment doctrine ou teoria da armadilha) e agente de inteligência........................................ 800

13.8. Eficácia objetiva da colaboração premia­ da

15.4. Duração da infiltração................................ 800

15.6. Sustação da operação.................................. 802 765

13.9. Prêmios legais.............................................. 766

15.7. Responsabilidade criminal do agente in­ filtrado................................................................... 802

SUMÁRIO

15.8. Infiltração virtual........................................ 803

2. Espécies de prisão.................................................. 835

16. Agente policial disfarçado.................................. 804

3. Prisão Extrapenal................................................... 835

TÍTULO 7 . MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL................................... CAPÍTULO I - DAS PREMISSAS FUNDAMENTAIS E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS.................................................

3.1. Prisão civil...................................................... 835

807

3.1.1. Prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel.................................... 835

3.1.2. Prisão do falido..................................... 837 3.2. Prisão administrativa.................................... 837

807

1. A tutela cautelar no processo penal...................... 807

1.1. Lei n° 12.403/11 e o fim da bipolaridade das medidas cautelares de natureza pessoal previstas no Código de Processo Penal.............. 808 2. Princípios aplicáveis às medidas cautelares de natureza pessoal.......................................................... 810 2.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade)....................................................... 810

2.2. Da jurisdicionalidade (princípio tácito ou implícito da individualização da prisão e não somente da pena)................................................. 810

3.2.1. Prisão do estrangeiro para fins de extradição, expulsão e deportação................ 838

3.3. Prisão militar................................................. 840 3.3.1. Da prisão militar em virtude de transgressão disciplinar................................. 840

3.3.2. Da prisão militar em virtude de cri­ me propriamente militar................................ 841 4. Prisão penal (carcer ad poenam)........................... 843

5. Prisão Cautelar (carcer ad custodiam).................. 843 6. Momento da prisão................................................ 845 6.1. Inviolabilidade do domicílio........................ 845

2.2.1. Da vedação da prisão cautelar ex lege..... 813

6.2. Conceito de dia............................................. 845

2.3. Da proporcionalidade.................................. 813

6.3. Cláusula de reserva de jurisdição................ 845

3. Pressupostos das medidas cautelares: fumus comissi delicti e periculum libertatis......................... 816

6.4. Momento da prisão e Código Eleitoral...... 845

4. Características das medidas cautelares................ 819 5. Procedimento para a aplicação das medidas cautelares de natureza pessoal.................................. 820 5.1. Aplicação isolada ou cumulativa das me­ didas cautelares..................................................... 820 5.2. Vedação à decretação de medidas caute­ lares pelo juiz de ofício na fase investigatória e na fase processual.............................................. 821 5.3. Legitimidade para o requerimento de de­ cretação de medida cautelar............................... 824

5.4. Contraditório prévio à decretação das medidas cautelares............................................... 826 5.5. Descumprimento injustificado das obri­ gações inerentes às medidas cautelares.............. 827

7. Imunidades prisionais........................................... 846 7.1. Presidente da República e Governadores de Estado............................................................... 846

7.2. Imunidade diplomática................................. 847

7.3. Senadores, deputados federais, estaduais ou distritais........................................................... 848

7.3.1. (Im) possibilidade de prisão em fla­ grante de parlamentares federais, estaduais ou distritais..................................................... 849 7.3.2. (Im) possibilidade de decretação da prisão preventiva (ou temporária) de parla­ mentares federais, estaduais ou distritais....... 851

7.4. Magistrados e membros do Ministério Público................................................................... 851 7.5. Advogados..................................................... 852

5.6. Revogabilidade e/ou substitutividade das medidas cautelares............................................... 829

7.6. Menores de 18 anos....................................... 853

5.7. Recursos cabíveis.......................................... 831

8. Prisão e emprego de força...................................... 853

5.7.1. Em favor da acusação......................... 831

8.1. Instrumentos de menor potencial ofensivo (ou não letais)....................................................... 854

5.7.2. Em favor do acusado........................... 832

5.8. Duração e extinção das medidas cautelares de natureza pessoal.............................................. 832 5.9. Detração......................................................... 833

9. Mandado de prisão................................................ 854 9.1. Cumprimento do mandado de prisão........ 856

9.2. Difusão vermelha (red notice)...................... 861

834

9.2.1. Difusão vermelha a ser executada no exterior............................................................ 861

1. Conceito de prisão e seu fundamento constitu­ cional............................................................................ 834

9.2.2. Difusão vermelha a ser cumprida no Brasil................................................................ 861

CAPÍTULO II - PRISÃO.......................................

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

10. Prisão Especial e separação de presos provi­ sórios........................................................................... 862

9.11. Consequências decorrentes da não rea­ lização da audiência de custódia......................... 889

10.1. Prisão de índios.......................................... 865

9.12. Tipificação do crime de abuso de auto­ ridade (Lei n. 13.869/19)..................................... 891

11. Sala de Estado-Maior......................................... 865 CAPÍTULO III - DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E CONVENCIONAIS ATINENTES À TUTELA DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO..................

CAPÍTULO IV - DA PRISÃO EM FLAGRANTE...........................................................

892

1. Conceito de prisão em flagrante........................... 892 867

2. Funções da prisão em flagrante............................ 892

1. Da observância dos direitos fundamentais no Estado de Direito........................................................ 867

3. Fases da prisão em flagrante.................................. 893

2. Do respeito à integridade física e moral do

4. Natureza jurídica da prisão em flagrante delito..... 894 5. Sujeito ativo da prisão em flagrante..................... 896

2.1. Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia (“Perp Walk”)........... 868

2.2. Respeito à integridade física e moral do preso e uso de algemas........................................ 871

5.1. Flagrante facultativo...................................... 896

5.2. Flagrante obrigatório, compulsório ou coercitivo............................................................... 896

6. Sujeito passivo do flagrante................................... 896

2.2.1. Vedação ao uso de algemas em mulhe­ res grávidas durante o parto e em mulheres durante a fase de puerpério imediato............. 872

7. Espécies de flagrante.............................................. 896

2.3. Caso Damião Ximenes Lopes...................... 872

7.2. Flagrante impróprio, imperfeito, irreal ou quase-flagrante..................................................... 897

3. Da comunicação imediata da prisão ao juiz competente e ao Ministério Público........................ 873 4. Da comunicação imediata da prisão à família do preso ou à pessoa por ele indicada...................... 874

7.1. Flagrante próprio, perfeito, real ou verda­ deiro....................................................................... 897

7.3. Flagrante presumido, ficto ou assimilado... 898

875

7.4. Flagrante preparado, provocado, crime de ensaio, delito de experiência ou delito putativo por obra do agente provocador........................... 899

6. Da assistência de advogado ao preso................... 875

7.5. Flagrante esperado........................................ 900

7. Do direito do preso à identificação dos respon­ sáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial......................................................................... 877

7.5.1. Venda simulada de droga ou outros objetos ilícitos (v.g., armas de fogo)............. 900

5. Do direito ao silêncio (nemo tenetur se detegere)

8. Do relaxamento da prisão ilegal.......................... 877 9. Audiência de custódia (ou de apresentação)....... 879 9.1. Conceito......................................................... 879

9.2. Previsão normativa....................................... 880 9.3. Presidência da audiência de custódia......... 881 9.4. Prazo............................................................... 882

9.5. Procedimento adequado.............................. 883 9.6. (Im) possibilidade de utilização da video­ conferência............................................................ 884 9.7. (Im) possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária) de ofício pelo juiz...................................................... 886

7.6. Flagrante prorrogado, protelado, retar­ dado ou diferido: ação controlada e entrega vigiada.................................................................... 902 7.7. Flagrante forjado, fabricado, maquinado ou urdido............................................................... 902

8. Prisão em flagrante nas várias espécies de cri­ mes .............................................................................. 902

8.1. Prisão em flagrante em crime permanente.... 902 8.2. Prisão em flagrante em crime habitual....... 903

8.3. Prisão em flagrante em crime de ação pe­ nal privada e em crime de ação penal pública condicionada......................................................... 903 8.4. Prisão em flagrante em crimes formais...... 904 8.5. Prisão em flagrante em crime continuado (flagrante fracionado).......................................... 904

9.8. (Im) possibilidade de conversão da au­ diência de custódia em audiência una de ins­ trução e julgamento............................................. 888

9. Flagrante e apresentação espontânea do agente..... 904

9.9. Liberdade provisória sem fiança nas hi­ póteses de descriminantes.................................. 889

10. Lavratura do auto de prisão em flagrante de­ lito

9.10. Liberdade provisória proibida (CPP, art. 310, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19)............ 889

905

10.1. Autoridade com atribuições para a lavra­ tura do auto de prisão em flagrante................... 906

SUMÁRIO

10.2. Condutor e testemunhas............................ 907

5.2.3. Garantia de aplicação da lei penal.....

10.3. Interrogatório do preso.............................. 907

5.2.3.1. Prisão de estrangeiros e garantia de aplicação da lei penal...............................

10.4. Fracionamento do auto de prisão em flagrante delito...................................................... 909 10.5. Prazo para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito............................................... 909

10.6. Relaxamento da prisão em flagrante pela autoridade policial (auto de prisão em flagran­ te negativo)............................................................ 909 10.7. Recolhimento à prisão............................... 910

10.8. Remessa do auto à autoridade compe­ tente

910

10.9. Remessa do auto de prisão em flagrante delito à autoridade judiciária.............................. 910 10.10. Remessa do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, se o autuado não infor­ mar o nome de seu advogado............................. 911

10.11. Nota de culpa............................................ 911 11. Convalidação judicial da prisão em flagrante.... 911

11.1. Relaxamento da prisão em flagrante ile­ gal

911

11.2. Conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária)................................. 912 11.3. Concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada (ou não) com as me­ didas cautelares diversas da prisão..................... 914 CAPÍTULO V - D A PRISÃO PREVENTIVA.....

916

1. Conceito de prisão preventiva.............................. 916 2. Decretação da prisão preventiva durante a fase preliminar de investigações....................................... 916

3. Decretação da prisão preventiva durante o cur­ so do processo criminal............................................. 917 3.1. Concessão antecipada de benefícios pri­ sionais ao preso cautelar...................................... 919

4. Iniciativa para a decretação da prisão preven­ tiva............................................................................... 919

4.1. (Im)possibilidade de decretação da prisão preventiva pelo juiz de ofício na fase investigatória e no curso do processo penal................. 919

5.2.4. Conveniência da instrução criminal... 5.2.5. Descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.........................................

6. Hipóteses de admissibilidade da prisão preven­ tiva ............................................................................... 6.1. Crimes dolosos punidos com pena máxi­ ma superior a 4 (quatro) anos............................. 6.2. Investigado ou acusado condenado por outro crime doloso em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no art. 64, inciso I, do Código Penal....................................

6.3. Quando o crime envolver violência do­ méstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das me­ didas protetivas de urgência............................... 6.4. Dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou não fornecimento de elementos suficientes para seu esclarecimento......................................

7. Prisão preventiva e excludentes de ilicitude e de culpabilidade.......................................................... 8. Duração da prisão preventiva e excesso de pra­ zo na formação da culpa........................................... 8.1. Noções introdutórias.................................... 8.2. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e novo prazo para a conclusão do processo quando o acu­ sado estiver preso................................................. 8.3. Natureza do prazo para o encerramento do processo e princípio da proporcionalidade .. 8.4. Hipóteses que autorizam o reconhecimen­ to do excesso de prazo......................................... 8.5. Excesso de prazo provocado pela defesa.... 8.6. Excesso de prazo após a pronúncia ou o encerramento da instrução criminal: mitiga­ ção das súmulas 21 e 52 do ST)..........................

8.7. Excesso de prazo e aceleração do julga­ mento .....................................................................

4.2. Legitimidade para o requerimento de de­ cretação da prisão preventiva............................. 919

8.8. Relaxamento da prisão por excesso de prazo e decretação de nova prisão......................

5. Pressupostos............................................................ 920

8.9. Excesso de prazo e efeito extensivo.............

5.1. Fumus comissi delicti.................................... 920

8.10. Relaxamento da prisão preventiva e li­ berdade plena........................................................

5.2. Perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado: princípio da atualidade (ou contemporaneidade) do periculum libertatis.......... 920

5.2.1. Garantia da ordem pública................. 922

5.2.2. Garantia da ordem econômica......... 925

8.11. Relaxamento da prisão e natureza da in­ fração penal...........................................................

8.12. Excesso de prazo e investigado ou acu­ sado solto...............................................................

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

9. Fundamentação da decisão que decreta a prisão preventiva.................................................................... 945

1.4. Utilização da prisão domiciliar como me­ dida cautelar diversa da prisão preventiva........ 979

9.1. Rol exemplificativo de decisões não-fundamentadas (CPP, art. 315, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19)................................................... 947

1.5. Detração......................................................... 979

9.2. Fundamentação per relationem (ou aliunde)........................................................................... 949

10. Revogação da prisão preventiva.......................... 950 11. Obrigatoriedade de revisão periódica da ne­ cessidade da manutenção da prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias............................................... 950

11.1. Juízo obrigado a revisar a necessidade de manutenção da prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias.................................................. 951

11.2. Consequências decorrentes da inobser­ vância do prazo nonagesimal............................. 952 12. Apresentação espontânea do acusado................ 953 13. Prisão preventiva no Código de Processo Penal Militar.......................................................................... 953

CAPÍTULO VI - DA PRISÃO TEMPORÁRIA.....

955

1. Origem..................................................................... 955

2. Conceito de prisão temporária............................. 956

3. Requisitos................................................................ 956 3.1. Da imprescindibilidade da prisão tempo­ rária para as investigações.................................. 957

3.2. Ausência de residência fixa e não forne­ cimento de elementos necessários ao esclare­ cimento da identidade do indiciado................... 958 3.3. Fundadas razões de autoria ou participa­ ção do indiciado nos crimes listados no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89 e no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90........................................... 959

4. Procedimento.......................................................... 964 5. Prazo........................................................................ 965

6. Direitos e garantias do preso temporário............ 966

CAPÍTULO IX - MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL DIVERSAS DA PRISÃO....................................................................

980

1. Da ampliação do rol de medidas cautelares de natureza pessoal previstas no Código de Processo Penal............................................................................ 980

2. Comparecimento periódico em juízo.................. 981 3. Proibição de acesso ou frequência a determi­ nados lugares............................................................... 982 4. Proibição de manter contato com pessoa deter­ minada......................................................................... 983 5. Proibição de ausentar-se da Comarca ou do País.... 984

6. Recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos............................... 985 7. Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira......... 986

8. Internação provisória............................................. 990 9. Fiança....................................................................... 992 10. Monitoração eletrônica....................................... 993 11. Condução coercitiva............................................ 995 12. Medidas cautelares de natureza pessoal diver­ sas da prisão previstas na legislação especial........ 998

13. Poder geral de cautela no processo penal.......... 1000 CAPÍTULO X - DA LIBERDADE PROVISÓRIA........................................................... 1003 1. Conceito.................................................................. 1003

2. Distinção entre relaxamento da prisão, liberda­ de provisória e revogação da prisão cautelar.......... 1005 2.1. Quadro comparativo entre relaxamento da prisão, revogação da prisão cautelar e li­ berdade provisória................................................ 1006

3. Espécies de liberdade provisória........................... 1007 CAPÍTULO VII - DAS PRISÕES DECORRENTES DE PRONÚNCIA E DE SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRÍVEL.... 966 1. Análise histórica das prisões decorrentes de pronúncia e de sentença condenatória recorrível.... 966

CAPÍTULO VIII - DA PRISÃO DOMICILIAR....

971

1. Da prisão domiciliar............................................ 971 1.1. Hipóteses de admissibilidade e ônus da prova...................................................................... 973

1.2. Fiscalização da prisão domiciliar................ 978 1.3. Saídas controladas......................................... 978

4. Liberdade provisória sem fiança........................... 1007

4.1. Revogada liberdade provisória sem fiança nas hipóteses em que o conduzido livrava-se solto........................................................................ 1007

4.2. Liberdade provisória sem fiança nas hi­ póteses de descriminantes................................... 1008 4.3. Revogada liberdade provisória sem fiança pela inexistência de hipótese que autorizasse a prisão preventiva (antiga redação do art. 310, parágrafo único)................................................... 1009 4.4. Liberdade provisória sem fiança por mo­ tivo de pobreza..................................................... 1011

SUMÁRIO

5. Liberdade provisória com fiança......................... 1011

2.4. Classificação das questões prejudiciais....... 1038

5.1. Conceito e natureza jurídica da fiança....... 1011

2.4.1. Quanto à natureza................................ 1038

5.2. Momento para a concessão da fiança........ 1012

2.4.2. Quanto à competência......................... 1039

5.3. Concessão de fiança pela autoridade po­ licial....................................................................... 1013

2.4.3. Quanto aos efeitos................................ 1040

5.4. Valor da fiança............................................... 1014

2.4.4. Quanto ao grau de influência da questão prejudicial sobre a prejudicada....... 1040

5.5. Infrações inafiançáveis.................................. 1014

2.5. Sistemas de Solução.......................................1040

5.6. Obrigações processuais................................. 1015

2.6. Questões prejudiciais devolutivas absolu­ tas (heterogêneas relativas ao estado civil das pessoas)...................................................................1041

5.7. Incidentes relativos à fiança......................... 1016 5.7.1. Quebramento da fiança....................... 1016 5.7.2. Fiança definitiva................................... 1017

2.6.1. Pressupostos.......................................... 1041

5.7.3. Perda da fiança...................................... 1017

2.6.2. Consequências...................................... 1042

5.7.4. Cassação da fiança................................ 1017

2.7. Questões prejudiciais devolutivas relativas (heterogêneas não relativas ao estado civil das pessoas)...................................................................1043

5.7.5. Reforço da fiança.................................. 1017 5.7.6. Fiança sem efeito (inidoneidade da fiança)..............................................................1018

5.7.7. Dispensa da fiança............................... 1018

5.7.8. Conversão da liberdade provisória com fiança em liberdade provisória sem fiança.................................................................1018

5.7.9. Destinação da fiança............................ 1019

2.7.1. Pressupostos.......................................... 1043 2.7.2. Consequências...................................... 1044 2.8. Recursos cabíveis........................................... 1045 2.9. Decisão cível acerca da questão prejudi­ cial heterogênea e sua influência no âmbito criminal.................................................................. 1045

5.7.10. Execução da fiança............................. 1019

2.10. Princípio dasuficiência da ação penal...... 1046

6. Liberdade provisória obrigatória.......................... 1020

3. Exceções.................................................................1046

7. Liberdade provisória proibida............................... 1020

3.1. Conceito.......................................................... 1046

7.1. Liberdade provisória proibida para agen­ tes reincidentes, integrantes de organizações criminosas armadas ou milícias, ou que por­ tem arma de fogo de uso restrito (CPP, art. 310, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19).............1027

3.2. Exceções ou objeções.................................... 1046

8. Liberdade provisória com vinculação.................. 1029

3.3. Classificação das exceções........................... 1047

3.3.1. Quanto à natureza............................... 1047 3.3.2. Quanto aos efeitos............................... 1047 3.3.3. Quanto à forma de processamento...1047

9. Liberdade provisória sem vinculação...................1029

3.4. Natureza Jurídica.......................................... 1048

10. Liberdade provisória e definição jurídica do fato delituoso pela autoridade policial ou pelo Ministério Público....................................................... 1030

3.5. Exceção de suspeição, de impedimento ou de incompatibilidade........................................... 1048

11. Liberdade provisória e recursos.......................... 1031

3.5.1. Procedimento da exceção de suspei­ ção (impedimento e incompatibilidade)..... 1048

12. Liberdade provisória no Código de Processo Penal Militar.................................................................1031

3.5.1.1. Reconhecimento de ofício da sus­ peição

13. Menagem................................................................1033

3.5.1.2. Oposição da exceção de suspeição... 1049

TÍTULO 8 • QUESTÕES E PROCESSOS INCIDENTES........................................................... 1035

1048

3.5.1.3. Apreciação da exceção de suspei­ ção pelo juiz excepto...................................... 1051

1. Noções gerais........................................................... 1035

3.5.1.4. Julgamento da exceção de suspei­ ção pelo Tribunal competente....................... 1051

2. Questões prejudiciais.............................................. 1035

3.5.1.5. Recursos cabíveis............................... 1052

2.1 Conceito e natureza jurídica......................... 1036

2.2. Características................................................ 1036

3.5.2. Suspeição nos Tribunais de 2a ins­ tância e nos Tribunais Superiores................ 1052

2.3. Distinção entre questões prejudiciais e questões preliminares........................................... 1037

3.5.3. Suspeição do órgão do Ministério Público............................................................ 1052

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

3.5.4. Suspeição de serventuários, de fun­ cionários da justiça, peritos e intérpretes.... 1053

7.1.2. Pressupostos.......................................... 1078

3.5.5. Suspeição dos jurados.......................... 1054

7.2. Sequestro......................................................... 1079

3.5.6. Suspeição da autoridade policial........ 1054

7.2.1. Procedimento........................................ 1082

3.6. Exceção de incompetência............................ 1055

7.2.2. Defesa..................................................... 1083

3.6.1. Do procedimento da exceção de in­ competência .................................................... 1055

7.2.3. Levantamento do sequestro.................1087

3.6.2. Arguição da incompetência antes do início do processo........................................... 1055

3.6.3. Recursos cabíveis.................................. 1056 3.7. Exceção de ilegitimidade.............................. 1056

3.7.1. Ilegitimidade ad causam e adprocessum................................................................... 1056

3.7.2. Procedimento da exceção de ilegiti­ midade de parte.............................................. 1057

7.1.3. Contraditório prévio............................ 1078

7.2.4. Destinação final do sequestro.............. 1088 7.2.4.1. Destinação de obras de arte ou de outros bens de relevante valor cultural a museus públicos.................. 1089

7.2.5. Sequestro de bens de pessoas indi­ ciadas por crimes de que resultar prejuízo para a Fazenda Pública................................... 1090

7.3. Especialização e registro da hipoteca legal.... 1091 7.3.1. Momento ............................................... 1093

3.7.3. Recursos cabíveis.................................. 1057

7.3.2. Pressupostos.......................................... 1093

3.8. Exceção de litispendência............................. 1057

7.3.3. Legitimidade.......................................... 1093

3.8.1. Procedimento da exceção de litis­ pendência........................................................ 1058

7.3.4. Procedimento........................................ 1095

3.8.2. Recursos cabíveis.................................. 1058

7.3.6. Finalização............................................. 1097

3.9. Exceção de coisa julgada............................... 1058

7.4. Arresto prévio (ou preventivo).................... 1097

3.9.1. Conceito de coisa julgada.................... 1058

7.5. Arresto subsidiário de bens móveis............ 1098

3.9.2. Coisa julgada formal e material...........1059

7.5.1. Inscrição de hipoteca legal e arresto nos crimes de lavagem de capitais.................1100

3.9.3. Coisa julgada e coisa soberanamente julgada............................................................. 1059

7.3.5. Defesa..................................................... 1096

3.9.4.1. Limites objetivos................................ 1060

7.6. Utilização de bens sequestrados, apreen­ didos ou sujeitos a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública......... 1101

3.9.4.2. Limites subjetivos.............................. 1061

7.6.1. Conceito e finalidades.......................... 1101

3.9.5. Duplicidade de sentenças condenatórias com trânsito em julgado..................... 1061

7.6.2. Momento adequado............................. 1102

3.9.6. Procedimento da exceção de coisa julgada............................................................. 1062

7.6.4. Objeto da medida................................. 1103

4. Conflito de competência........................................ 1062

7.7. Alienação antecipada.................................. 1104

5. Conflito de atribuições no âmbito do Ministério Público......................................................................... 1067

7.7.1. Momento ............................................... 1105

3.9.4. Limites da coisa julgada....................... 1060

6. Restituição de coisas apreendidas......................... 1070 6.1. Apreensão....................................................... 1070 6.2. Vedações e restrições à restituição de coi­ sas apreendidas......................................................1072

6.2.1. Destinação das coisas apreendidas não restituídas................................................. 1073 6.3. Procedimento da restituição de coisas apreendidas........................................................... 1074

7.6.3. Requisitos.............................................. 1103 7.6.5. Beneficiários da medida...................... 1103

7.7.2. Pressupostos

1105

7.7.3. Legitimidade......................................... 1105 7.7.4. Procedimento

1106

7.8. Ação civil de confisco................................. 1107

8. Incidente de falsidade

1108

8.1. Noções gerais................................................. 1108 8.2. Procedimento do incidente de falsidade

1110

8.3. Recurso adequado ........................................ 1112

6.3.1. Recursos cabíveis.................................. 1076

8.4. Suspensão do processo principal............... 1112

7. Medidas assecuratórias........................................... 1077

8.5. Coisa julgada..................................................1113

7.1. Noções introdutórias..................................... 1077

9. Incidente de insanidade mental.......................... 1113

7.1.1. Jurisdicionalidade................................. 1078

9.1. Instauração do incidente............................... 1114

SUMARIO

9.2. Procedimento................................................. 1115

6.1.6. Imunidade diplomática........................ 1161

9.3. Conclusão do incidente de insanidade mental.................................................................... 1117

6.2. Autodefesa e presença do acusado...............1161

9.3.1. Durante o processo judicial............... 1118

6.4. Direitos do acusado....................................... 1162

9.3.2. Durante o curso do inquérito policial 1122

7. Defensor...................................................................1163

9.3.3. Durante a execução penal.................. 1122

7.1. Espécies de defensor...................................... 1163

TÍTULO 9 • SUJEITOS DO PROCESSO.......... 1125

7.1.1. Defensoria Pública............................... 1165

1. Noções gerais...........................................................1125

7.2. Defesa técnica plena e efetiva....................... 1169

2. Juiz............................................................................ 1125

7.3. Abandono do processo pelo defensor..........1169

6.3. Contumácia do acusado............................... 1161

2.1. Capacidade para ser juiz............................... 1126

7.4. Impedimento do defensor............................ 1170

2.2. Escolha dos juizes.......................................... 1126

8. Assistente da defesa................................................ 1170

2.3. Funções do juiz no processo penal............. 1127 2.3.1. Funções de ordem jurisdicional......... 1128

TÍTULO 10 . COMUNICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS....................................................... 1173

2.3.2. Funções de ordem administrativa.....1129

1. Noções gerais........................................................... 1173

2.4. Garantias e vedações dos juizes................... 1129

2. Citação..................................................................... 1173

2.5. Imparcialidade do juiz.................................. 1130

2.1. Efeitos da citação válida................................ 1174

2.5.1. Impedimento......................................... 1130

2.2. Espécies de citação....................................... 1175

2.5.2. Suspeição............................................... 1133

3. Citação pessoal........................................................ 1176

2.5.3. Incompatibilidade................................. 1135

3.1. Citação por mandado.................................... 1176

3. Partes........................................................................ 1136

3.2. Citação por carta precatória......................... 1177

4. Ministério Público.................................................. 1137

3.3. Citação do militar.......................................... 1178

4.1. (Im)parcialidade do Ministério Público..... 1137 4.2. Organização do Ministério Público............ 1139 4.3. Princípios institucionais do Ministério Público................................................................... 1143

4.3.1. Princípio do Promotor Natural...........1144

4.4. Garantias e vedações..................................... 1148 4.5. Impedimento e suspeição do órgão do Ministério Público................................................ 1149

4.6. Promotor ad hoc............................................ 1150

5. Ofendido.................................................................. 1150 5.1. Ofendido como querelante........................... 1151 5.2. Ofendido como assistente da acusação...... 1151

5.2.1. Natureza do interesse do assistente da acusação...................................................... 1153

5.2.2. Habilitação do ofendido como assis­ tente da acusação............................................ 1154 5.2.3. Atribuições do assistente..................... 1157 6. Acusado....................................................................1158 6.1. Capacidade do acusado................................. 1159

3.4. Citação de funcionário público................... 1179 3.5. Citação de acusado preso............................. 1179

3.6. Citação de acusado no estrangeiro...............1180 3.7. Citação em legações estrangeiras.................1181 3.8. Citação mediante carta de ordem................ 1181 4. Citação por edital.................................................... 1181

4.1. Hipóteses que autorizam a citação por edital...................................................................... 1182 4.2. Suspensão do processo e da prescrição (art. 366 do CPP)................................................. 1184

4.2.1. Art. 366 do CPP e sua aplicação na Justiça Militar................................................. 1184

4.2.2. Limitação temporal do prazo de sus­ pensão da prescrição..................................... 1185 4.2.3. Produção antecipada de provas ur­ gentes................................................................1186

4.2.4. Prisão preventiva.................................. 1187 4.2.5. Comparecimento do acusado..............1188

6.1.1. Menores de 18 (dezoito) anos..............1159

4.2.6. Aplicação do art. 366 do CPP na Lei de Lavagem de Capitais.................................. 1188

6.1.2. Acusado inimputável........................... 1159

5. Citação por hora certa............................................ 1189

6.1.3. Pessoa jurídica...................................... 1159

6. Intimação, notificação e contagem de prazos..... 1191

6.1.4. Animais, mortos e seres inanimados....1160 6.1.5. Acusado certo e individualizado.........1160

6.1. Início do prazo e início da contagem do prazo...................................................................... 1191

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

6.2. Intimação e notificação do Ministério Pú­ blico........................................................................ 1193

6.3. Intimação e notificação dos Defensores Públicos................................................................. 1194

6.4. Prazo em dobro.............................................. 1194 6.5. Intimação e notificação do defensor dativo, do defensor constituído e dos advogados do querelante e do assistente............................... 1195

6.6. Intimação e notificação do ofendido.......... 1196 6.7. Intimação e notificação por hora certa...... 1196 6.8. Intimação e notificação por meios eletrô­ nicos...................................................................... 1196 6.9. (Des) necessidade de observância de prazo mínimo entre a publicação da pauta e o julga­ mento dos recursos e das ações autônomas de impugnação............................................................1197

3.1.4. Falta de justa causa (suporte pro­ batório mínimo) para o exercício da ação penal 1209 3.2. Rejeição parcial da peça acusatória............ 1209

3.3. Recurso cabível contra a rejeição da peça acusatória...............................................................1210

4. Recebimento da peça acusatória........................... 1211 4.1. (Des) necessidade de fundamentação do recebimento da peça acusatória.......................... 1211

4.2. Consequências do recebimento da peça acusatória...............................................................1212 4.3. Recurso cabível contra o recebimento da peça acusatória...................................................... 1213 5. Citação do acusado................................................. 1215

6. Reação defensiva à peça acusatória.......................1215 6.1. Extinta defesa prévia..................................... 1215

6.10. Férias forenses.............................................. 1198

6.2. Defesa preliminar........................................... 1216

TÍTULO 11 . PROCESSO E PROCEDIMENTO................................................. 1199

6.2.1. Procedimentos em que há previsão legal de defesa preliminar.............................. 1216

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO........................... 1199

6.2.2. Consequências decorrentes da ino­ bservância da defesa preliminar................... 1218

1. Noções gerais...........................................................1199 1.1. Procedimento e devido processo penal.......1200 1.2. Violação às regras procedimentais.............. 1200 2. Classificação do procedimento............................. 1201

2.1. Classificação do procedimento comum...... 1201 2.1.1. Concursos de crimes, qualificadoras, privilégios, causas de aumento e de dimi­ nuição de pena, agravantes e atenuantes..... 1203

3. Procedimento adequado no caso de conexão e/ ou continência envolvendo infrações penais sujei­ tas a ritos distintos..................................................... 1204 4. Antigo procedimento comum ordinário dos crimes punidos com reclusão................................... 1205

CAPÍTULO II - PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO............................................................ 1205 1. Oferecimento da peça acusatória.......................... 1205

2. Juízo de admissibilidade: rejeição ou recebi­ mento da peça acusatória........................................... 1206 2.1. Momento do juízo de admissibilidade da peça acusatória...................................................... 1206

6.2.3. Defesa preliminar e (des) necessi­ dade de apresentação concomitante de resposta à acusação........................................ 1219

6.3. Resposta à acusação...................................... 1221 6.4. Quadro comparativo entre a extinta de­ fesa prévia, a defesa preliminar e a resposta à acusação..................................................................1223

7. Revelia...................................................................... 1224 8. Possível oitiva da acusação.................................... 1225 9. Absolvição sumária................................................. 1226 9.1. Julgamento antecipado da lide no proces­ so penal...................................................................1226 9.2. Causas de absolvição sumária no proce­ dimento comum.................................................... 1227 9.3. Inimputável do art.26, caput, do CP............ 1227 9.4. Grau de convencimento necessário para a absolvição sumária............................................. 1227 9.5. Distinção entre a absolvição sumária do procedimento comum e a da Ia fase do pro­ cedimento do júri.................................................. 1228 9.6. Coisa julgada.................................................. 1228

3. Rejeição da peça acusatória................................... 1207

9.7. Recurso adequado......................................... 1228

3.1. Causas de rejeição.......................................... 1207

3.1.1. Inépcia da peça acusatória.................. 1207

10. Aceitação da proposta de suspensão condicio­ nal do processo........................................................... 1229

3.1.2. Falta de pressuposto processual......... 1208

11. Designação da audiência...................................... 1230

3.1.3. Falta de condições para o exercício da ação penal................................................... 1209

12. Audiência una de instrução ejulgamento......... 1231

12.1. Da instrução probatóriaem audiência....... 1231

SUMÁRIO

12.1.1. Dever processual de tutela da inte­ gridade física e psicológica da vítima (e das testemunhas) pelas partes e pelos demais sujeitos processuais (Lei Mariana Ferrer).... 1232

12.2. Indeferimento de provas ilícitas, irrele­ vantes, impertinentes ou protelatórias.............. 1235 12.3. Diligências...................................................1237 12.4. Mutatio libelli: eventual necessidade de aditamento.............................................................1238

12.5. Alegações orais............................................. 1238

12.5.1. Conteúdo das alegações orais........... 1239 12.5.2. Ordem de apresentação das alega­ ções orais (memoriais)................................... 1240

12.5.3. Substituição das alegações orais por memoriais........................................................1241

4.2. Provas novas e oferecimento de outra peça acusatória.............................................................. 1258

4.3. Infração conexa.............................................. 1258 4.4. Despronúncia................................................. 1258

4.5. Recurso cabível............................................... 1258 5. Desclassificação do delito..................................... 1259

5.1. Nova capitulação legal................................... 1260 5.2. Procedimento a ser observado pelo juízo singular competente.............................................. 1261

5.3. Infração conexa.............................................1261 5.4. Situação do acusado preso........................... 1262

5.5. Recurso cabível............................................. 1262 5.6. Conflito de competência.............................. 1263

6. Absolvição sumária................................................. 1264 6.1. Inimputável do art. 26,caput,do CP............1265

12.5.4. Não apresentação de alegações orais ou memoriais pelas partes.................... 1241

6.2. Juízo de certeza.............................................. 1266

12.6. Sentença........................................................1243

6.3. Infração conexa.............................................. 1266

12.7. Registro da audiência.................................. 1243

6.4. Natureza jurídica ecoisa julgada................... 1266

CAPÍTULO III - PROCEDIMENTO COMUM SUMÁRIO................................................................. 1243

6.5. Recurso cabível............................................... 1267

6.5.1. Recurso de ofício.................................. 1268

1. Noções gerais.......................................................... 1243

7. Pronúncia................................................................ 1268

2. Distinção entre o procedimento comum ordi­ nário e o procedimento comum sumário................ 1244

7.1. Pressupostos................................................... 1268

CAPÍTULO IV - PROCEDIMENTO ESPECIAL DO TRIBUNAL DO JÚRI.................. 1244

1. Princípios constitucionais do júri......................... 1244 1.1. Plenitude de defesa........................................ 1245 1.1.1. (In) constitucionalidade da tese de le­ gítima defesa da honra (STF, ADPF 779)...... 1246

1.2. Sigilo das votações......................................... 1248 1.2.1. Sala especial........................................... 1248 1.2.2. Incomunicabilidade dos jurados........ 1248

7.2. Natureza jurídica............................................ 1269

7.3. Regra probatória: in dubio pro societate (ou in dubio pro reo)............................................. 1269 7.4. Fundamentação e eloquência acusatória.... 1271

7.5. Emendatio e mutatio libelli.......................... 1272 7.6. Conteúdo da pronúncia................................ 1273 7.7. Infrações conexas........................................... 1274 7.8. Constatação do envolvimento de outras pessoas como coautores ou partícipes.............. 1275

7.9. Efeitos da pronúncia..................................... 1275

1.3. Soberania dos veredictos.............................. 1249

7.9.1. Decretação da prisão preventiva ou imposição de medidas cautelares diversas da prisão...........................................................1276

1.3.1. Cabimento de apelação contra deci­ sões do Júri.......................................................1250

7.11. Recurso cabível............................................ 1278

1.2.3. Votação unânime.................................. 1249

1.3.2. Cabimento de revisão criminal con­ tra decisões do Júri....................................... 1251

1.4. Competência para o julgamento dos cri­ mes dolosos contra a vida...................................1251

7.10. Intimação da pronúncia.............................. 1276 8. Desaforamento........................................................1278 8.1. Legitimidade para o requerimento de de­ saforamento............................................................1279

8.2. Momento para o desaforamento................. 1279

2. Procedimento bifásico do Tribunal do Júri......... 1253

8.3. Hipóteses que autorizam o desaforamento. 1279

3. ludicium accusationis (ou sumário da culpa).......1253

8.4. Aceleração de julgamento............................. 1280

3.1. Alegações orais............................................... 1256

8.5. Crimes conexos e coautores......................... 1281

4. Impronúncia............................................................1257

8.6. Comarca (ou subseção judiciária) para a qual o processo será desaforado.......................... 1281

4.1. Natureza jurídica e coisa julgada................. 1257

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

8.7. Efeito suspensivo............................................1281

11.7.1. Réplica e tréplica............................... 1302

8.8. Recursos......................................................... 1281

11.7.1.1. Inovação na tréplica........................1303

8.9. Reaforamento................................................ 1281

11.7.2. Exibição e leitura de documentos em plenário......................................................1304

8.10. Competência para a execução provisória.... 1282

9. Preparação do processo para julgamento pelo Tribunal do Júri.......................................................... 1282

11.7.3. Argumento de autoridade..................1305

9.1. Ordenamento do processo........................... 1283

11.7.5. Sociedade indefesa............................. 1306

9.2. Ordem do julgamento................................... 1283

11.7.6. Acusado indefeso................................ 1307

9.3. Habilitação do assistente do Ministério Público................................................................... 1284

11.8. Esclarecimentos aos jurados e possível dissolução do Conselho de Sentença...................1308

10. Organização do Júri..............................................1284

12. Quesitação............................................................. 1309

10.1. Requisitos para ser jurado.......................... 1284

12.1. Leitura dos quesitos..................................... 1310

10.2. Recusa injustificada..................................... 1286

12.2. Votação..........................................................1311

10.3. Direitos dos jurados.................................... 1287

12.3. Ordem dos quesitos..................................... 1312

10.4. Escusa de consciência................................. 1288

12.4. Questões diversas......................................... 1316

11. Sessão de julgamento............................................1288

12.4.1. Absolvição imprópria....................... 1316

11.1. Reunião periódica........................................ 1288

12.4.2. Falso testemunho em plenário..........1317

11.2. Ausências..................................................... 1288

12.4.3. Agravantes e atenuantes.................... 1317

11.2.1. Ausência do órgão do Ministério Público............................................................. 1288 11.2.2. Ausência do advogado de defesa...... 1289

12.4.4. Concurso de crimes e homicídio praticado por milícia privada ou por grupo de extermínio.................................................. 1318

11.2.3. Ausência do acusado solto................ 1290

13. Desclassificação.....................................................1319

11.2.4. Ausência do acusado preso............... 1290

13.1. Desclassificação e infração de menor potencial ofensivo................................................. 1320

11.2.5. Ausência do advogado do assistente de acusação..................................................... 1290

11.2.6. Ausência do advogado do querelante.................................................................. 1291 11.2.7. Ausência de testemunhas.................. 1291 11.2.8. Ausência do juiz presidente.............. 1292

11.3. Verificação da presença de, pelo menos, 15 jurados.............................................................. 1293 11.3.1. Empréstimo de jurados..................... 1293

11.4. Suspeição, impedimento e incompatibi­ lidade...................................................................... 1294 11.4.1. Dos jurados......................................... 1294 11.4.2. Do juiz-presidente.............................. 1295 11.4.3. Do órgão do Ministério Público...... 1295

11.5. Composição do Conselho de Sentença.... 1295 11.5.1. Recusas motivadas, imotivadas (ou peremptórias) e estouro de urna................... 1295 11.5.2. Tomada do compromisso dos jura­ dos

1297

11.6. Instrução em plenário................................. 1297

11.7.4. Direito ao aparte................................. 1306

13.2. Desclassificação e crimes conexos..............1321 14. Sentença................................................................. 1322

14.1. Sentença absolutória.................................... 1322 14.2. Sentença condenatória................................ 1322

14.2.1. Execução provisória no caso de con­ denação pelo Júri a uma pena igual ou su­ perior a 15 (quinze) anos de reclusão.............. 1323 14.2.1.1. (In) constitucionalidade da execução provisória da pena no âmbito do Júri...................................... 1324 14.2.1.2. Nova sistemática adotada pela Lei n. 13.964/19 para fins de execução provisória da pena no âm­ bito do Júri............................................1325

14.3. Ata................................................................. 1327

14.4. Atribuições do juiz presidente................... 1328 CAPÍTULO V - PROCEDIMENTO COMUM SUMARÍSSIMO....................................................... 1328

11.6.1. Leitura de peças.................................. 1298

1. Constituição Federal e Juizados Especiais Cri­ minais..........................................................................1328

11.6.2. Interrogatório do acusado................. 1299

2. Competência dos Juizados Especiais Criminais.... 1331

11.6.2.1. Uso de algemas................................ 1300 11.7. Debates......................................................... 1301

2.1. Conceito de infração de menor potencial ofensivo.................................................................. 1331

SUMÁRIO

2.1.1. Princípio da insignificância e infra­ ção de médio potencial ofensivo.................. 1332

6.7. Audiência de instrução e julgamento......... 1358

2.2. Excesso de acusação...................................... 1333

7. Sistema recursal no âmbito dos Juizados e jul­ gamento pelas turmas recursais................................ 1359

2.3. Estatuto do Idoso........................................... 1333

7.1. Apelação nos Juizados................................... 1360

2.4. Acusados com foro por prerrogativa de função.................................................................... 1334

7.2. Embargos de declaração nos Juizados........ 1360

2.5. Crimes eleitorais............................................ 1334 2.6. Violência doméstica e familiar contra a mulher e aplicação da Lei n° 9.099/95............... 1334

7.3. Recurso Extraordinário................................. 1361 7.4. Recurso Especial............................................ 1361 7.5. Habeas corpus................................................. 1361

2.7. Aplicação da Lei n° 9.099/95 na Justiça Militar.................................................................... 1335

7.6. Mandado de segurança................................. 1362

2.8. Conexão e continência entre crime co­ mum e infração penal de menor potencial ofensivo.................................................................. 1336

8. Representação nos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas................................................. 1362

2.9. Causas de modificação da competência dos Juizados.......................................................... 1337

2.10. Natureza da competência dos Juizados: absoluta ou relativa............................................... 1338 2.11. Competência territorial.............................. 1339

2.11.1. Juizados Especiais Itinerantes........... 1340

7.7. Revisão criminal............................................ 1362

9. Suspensão condicional do processo..................... 1363 9.1. Conceito e natureza jurídica........................ 1363 9.2. Requisitos de admissibilidade da suspen­ são condicional do processo................................ 1364 9.3. Suspensão condicional do processo em crimes de ação penal de iniciativa privada........ 1366

3. Termo Circunstanciado.......................................... 1340

9.4. Iniciativa da proposta de suspensão con­ dicional do processo............................................. 1366

4. Situação de flagrância nas infrações de menor potencial ofensivo.......................................................1342

9.5. Momento para a aceitação da proposta...... 1367

4.1. Afastamento do lar nos casos de violência doméstica............................................................. 1342

9.5.1. Desclassificação e procedência par­ cial da pretensão punitiva............................. 1367

5. Fase preliminar dos Juizados................................. 1343

9.6. Aceitação da proposta.................................. 1369

5.1. Composição dos danos civis........................ 1343

9.7. Recurso cabível contra a decisão homologatória da suspensão............................................1370

5.2. Oferecimento de representação................... 1344 5.3. Transação penal............................................. 1345

5.3.1. Pressupostos de admissibilidade da transação penal............................................... 1346 5.3.2. Procedimento para o oferecimento da proposta de transação penal................... 1348

9.8. Condições da suspensão condicional do processo................................................................ 1371

9.9. Revogação da suspensão condicional do processo................................................................. 1372 9.9.1. Revogação obrigatória......................... 1372 9.9.2. Revogação facultativa........................... 1373

5.3.3. Recusa injustificada de oferecimento da proposta de transação penal....................1349

9.10. Extinção da punibilidade............................ 1373

5.3.4. Momento para o oferecimento da proposta de transação penal......................... 1350

9.11. Suspensão condicional do processo em crimes ambientais.................................................. 1374

5.3.5. Descumprimento injustificado da transação penal................................................1351

10. Execução no âmbito dos Juizados Especiais Criminais..................................................................... 1375

5.3.6. Recurso..................................................1353

6. Análise do procedimento comum sumaríssimo.... 1353

TÍTULO 12 . SENTENÇA PENAL..................... 1377

6.1. Oferecimento da peça acusatória................ 1354

1. Atos processuais do juiz......................................... 1377

6.2. Defesa Preliminar.......................................... 1355

2. Classificação dos provimentos judiciais............... 1377

6.3. Rejeição ou recebimento da peça acusa­ tória........................................................................ 1356

2.1. Despachos de mero expediente................... 1377

6.4. Citação do acusado........................................ 1356

2.2. Decisões interlocutórias simples e mistas (não terminativas e terminativas)....................... 1378

6.5. Resposta à acusação....................................... 1357

2.3. Decisões definitivas

1378

6.6. Possibilidade de absolvição sumária........... 1357

2.4. Sentença

1379

1

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35

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

2.5. Sentenças definitivas, decisões definitivas e com força de definitivas.................................... 1379

5.4. Pedido absolutório formulado pela acu­ sação e (im) possibilidade de condenação........ 1416

2.6. Decisões executáveis, não executáveis e condicionais.......................................................... 1380

6. Publicação da sentença........................................... 1417

2.7. Decisões subjetivamente simples, subjetiva­ mente plúrimas e subjetivamente complexas........ 1380

6.2. Intimação da sentença................................... 1418

2.8. Decisões suicidas, vazias e autofágicas...... 1380

2.9. Decisões condenatórias, declaratórias, constitutivas (positivas e negativas), mandamentais e executivas.............................................1380

3. Estrutura e requisitos da sentença........................ 1381 3.1. Relatório......................................................... 1381 3.2. Fundamentação.............................................. 1382

3.2.1. Fundamentação per relationem (ou aliunde)............................................................ 1384

6.1. Esgotamento da instância............................. 1418

7. Princípio da correlação entre acusação e sen­ tença (ou da congruência)......................................... 1421 7.1. Emendatio libelli............................................. 1421

7.1.1. Momento procedimental adequado da emendatio libelli......................................... 1423 7.1.2. Emendatio libelli e (des) necessidade de oitiva das partes......................................... 1425 7.1.3. Emendatio libelli nas diferentes es­ pécies de ação penal....................................... 1426 7.1.4. Emendatio libelli na 2a instância..........1426

3.3. Dispositivo..................................................... 1385

7.2. Mutatio libelli..................................................1427

3.4. Autenticação...................................................1385

7.2.1. Surgimento de prova nos autos de elementares ou circunstâncias não conti­ das na peça acusatória.................................... 1428

4. Sentença absolutória...............................................1386 4.1. Espécies de sentença absolutória................. 1386 4.2. Presunção de inocência e regra probatória. 1387 4.3. Fundamentos..................................................1387

4.4.1. Efeito principal: colocação do acu­ sado em liberdade........................................... 1388

7.2.2. Fato novo e fato diverso....................... 1429

7.2.3. Necessidade de aditamento, inde­ pendentemente do quantum de pena cominado à imputação diversa......................... 1430

5. Sentença condenatória........................................... 1389

7.2.4. Aditamento espontâneo (CPP, art. 384, caput) e provocado (CPP, art. 384, § 1°)..................................................................... 1431

5.1. Fixação da pena.............................................. 1389

7.2.5. Procedimento da mutatio libelli.......... 1433

5.1.1. Fixação da pena-base........................... 1392

7.2.6. Recurso cabível contra a rejeição do aditamento à peça acusatória....................... 1434

4.4.2. Efeitos secundários............................... 1388

5.1.2. Fixação da pena provisória................. 1396 5.1.3. Fixação da pena definitiva.................. 1398 5.1.4. Fixação do regime penitenciário........ 1399 5.1.4.1. Detração na sentença condenatória para fins de determinação do regime ini­ cial de cumprimento da pena privativa de liberdade (Lei n° 12.736/12)......................... 1401

5.1.5. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.............. 1403

7.2.7. Mutatio libelli nas diferentes espécies de ação penal.................................................. 1434

7.2.8. Aditamento: imputação superve­ niente e possibilidade de condenação do acusado quanto à imputação originária...... 1435

7.2.9. Mutatio libelli na 2a instância...............1436 7.3. Quadro comparativo entre emendatio e mutatio libelli........................................................ 1437

5.1.6. Fixação da pena de multa.................... 1405

7.4. Disposições comuns à emendatio e muta­ tio libelli................................................................. 1438

5.2. Decretação (ou manutenção) da prisão preventiva ou das medidas cautelares diversas da prisão na sentença condenatória................... 1406

7.4.1. Possibilidade de oferecimento da proposta de transação penal.......................... 1438

5.3. Efeitos decorrentes da sentença penal con­ denatória................................................................ 1407

7.4.2. Possibilidade de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo.......................................................... 1439

5.3.1. Efeitos penais...................................... 1407

7.4.3. Mudança de competência................... 1440

5.3.2. Efeitos extrapenais................................ 1408

7.4.4. Mudança da espécie de ação penal.... 1441

5.3.2.1. Efeitos extrapenais obrigatórios.......1408

7.5. Emendatio e mutatio libelli no processo penal militar...........................................................1442

5.3.2.2. Efeitos extrapenais específicos..........1410

SUMÁRIO

TÍTULO 13 . NULIDADES.....

.. 1443

6.11. Falta da sentença.......................................... 1469

1. Noções gerais: tipicidade processual e nulidade...... 1443

6.12. Falta do recurso de ofício, nos casos em que a lei o tenha estabelecido.............................. 1470

2. Espécies de irregularidades.................................... 1444

3. Espécies de atos processuais.................................. 1445 4. Nulidade.................................................................. 1446

4.1. Espécies de nulidades.................................... 1447 4.1.1. Nulidade absoluta................................. 1447

4.1.1.1. Hipóteses de nulidades absolutas.....1449 4.1.2. Nulidade relativa................................... 1449

4.1.2.1. Hipóteses de nulidades relativas......1450

4.1.2.2. Momento para a arguição das nu­ lidades relativas...............................................1450 4.1.3. Anulabilidades...................................... 1453

4.2. Reconhecimento das nulidades................... 1454

6.13. Falta de intimação, nas condições esta­ belecidas pela lei, para ciência das sentenças e despachos de que caiba recurso....................... 1471

6.14. Falta do quorum legal para o julgamento nos Tribunais Superiores e nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais............... 1471 6.15. Omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.................................... 1471 6.16. Nulidade decorrente da carência de fun­ damentação........................................................... 1472

7. Nulidades no inquérito policial.......................... 1472 TÍTULO 14 . RECURSOS.................................... 1475

4.2.1. Na primeira instância.......................... 1454

4.2.2. Na segunda instância........................... 1454 5. Princípios referentes às nulidades......................... 1455 5.1. Princípio da tipicidade das formas.............. 1455

5.2. Princípio do prejuízo..................................... 1455 5.3. Princípio da instrumentalidade das formas.... 1456

CAPÍTULO I - TEORIA GERAL DOS RECURSOS............................................................... 1475 1. Conceito e características....................................... 1475

2. Natureza jurídica dos recursos.............................. 1475 2.1. Interposição de recursos com intuito mani­ festamente protelatório e litigância de má-fé....... 1476

5.4. Princípio da eficácia dos atos processuais... 1457

3. Princípios................................................................ 1476

5.5. Princípio da restrição processual à decre­ tação da ineficácia................................................. 1458

3.1. Duplo grau de jurisdição.............................. 1476

5.6. Princípio da causalidade (efeito expansivo).... 1458 5.7. Princípio da conservação dos atos proces­ suais (confinamento da nulidade)...................... 1460 5.8. Princípio do interesse.................................... 1460

3.1.1. Recolhimento à prisão para recorrer.... 1478 3.1.2. Acusados com foro por prerrogativa de função.......................................................... 1481 3.2. Princípio da taxatividadedos recursos........ 1484

5.9. Princípio da lealdade (ou da boa-fé)........... 1461

3.3. Princípio da unirrecorribilidade das de­ cisões...................................................................... 1484

5.10. Princípio da convalidação.......................... 1461

3.4. Princípio da fungibilidade............................ 1485

6. Nulidades em espécie...........................................1463

3.5. Princípio da convolação................................ 1486

6.1. Incompetência................................................1463

3.6. Princípio da voluntariedade dos recursos...1487

6.2. Suspeição........................................................ 1463

6.3. Suborno do juiz.............................................. 1463

3.6.1. Reexame necessário (recurso de ofí­ cio ou remessa necessária)............................. 1487

6.4. Ilegitimidade de parte................................... 1464

3.7. Princípio da disponibilidade dos recursos..1489

6.5. Falta da denúncia, da queixa, da represen­ tação e da requisição do Ministro da justiça..... 1464

3.8. Princípio da non reformatio in pejus (efeito prodrômico da sentença)..................................... 1489

6.6. Ausência do exame de corpo de delito....... 1464

3.8.1. Princípio da non reformatio in pejus direta e indireta.............................................. 1492

6.7. Falta de nomeação de defensor ao acusado presente, que não o tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos.............................. 1465

6.8. Não intervenção do Ministério Público..... 1466

3.8.2. Non reformatio in pejus indireta e incompetência absoluta.................................. 1493 3.8.3. Non reformatio in pejus indireta e soberania dos veredictos................................ 1494

6.9. Ausência de citação (circundução), do interrogatório do acusado e de concessão dos prazos à acusação e à defesa................................ 1467

3.10. Princípio da dialeticidade........................... 1496

6.10. Nulidades cominadas no procedimento bifásico do Tribunal do Júri................................. 1468

3.10.1 Ausência de razões recursais da de­ fesa e do Ministério Público.......................... 1498

3.9. Princípio da reformatio in mellius................1495

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

3.11. Princípio da complementariedade........... 1498

7.4. Efeito regressivo, iterativo ou diferido......... 1521

3.12. Princípio da variabilidade......................... 1499

7.5. Efeito extensivo.............................................. 1521

3.13. Princípio da colegialidade......................... 1499

7.6. Efeito substitutivo.......................................... 1522

4. Pressupostos de admissibilidade recursal (juízo de prelibação).............................................................. 1500

7.7. Efeito translativo............................................ 1522

5. Pressupostos objetivos de admissibilidade re­ cursal............................................................................ 1502

8. Direito intertemporal e recursos........................... 1523

5.1. Cabimento.......................................................1502 5.2. Adequação......................................................1502 5.3. Tempestividade..............................................1503

5.3.1. Prazos recursais diversos..................... 1504 5.3.2. Interposição de recursos via fax..........1505 5.4. Inexistência de fato impeditivo.................... 1505

7.8. Efeito dilatório-procedimental..................... 1523

9. Classificação dos recursos...................................... 1525 9.1. Quanto à obrigatoriedade............................. 1525 9.2. Quanto à fundamentação............................. 1525

9.3. Quanto à extensão da matéria impugnada..... 1526 9.4. Quanto aos pressupostos de admissibili­ dade........................................................................ 1526 9.5. Quanto ao objeto imediato do recurso........1526

5.4.1. Renúncia ao direito de recorrer.......... 1505 5.4.2. Preclusão................................................1506

5.4.3. Recolhimento à prisão para recorrer...... 1506

CAPÍTULO II - RECURSOS CRIMINAIS EM ESPÉCIE................................................................... 1527

5.5. Inexistência de fato extintivo (extinção anômala do recurso).............................................1507

1. Recurso em sentido estrito.................................. 1527

5.5.1. Desistência.............................................1507 5.5.2. Deserção................................................1508

1.2. Utilização residual do recurso em sentido estrito..................................................................... 1528

5.5.2.1. Deserção por falta de preparo..........1508

1.3. Hipóteses de cabimento................................ 1528

5.5.2.2. Deserção por fuga do acusado........ 1509

1.1. Interpretação extensiva................................. 1527

1.3.1. Não recebimento da peça acusatória.... 1529

5.6. Regularidade formal...................................... 1509

1.3.2. Incompetência do juízo....................... 1529

6. Pressupostos subjetivos de admissibilidade re­ cursal............................................................................ 1510

1.3.3. Procedência das exceções, salvo a de suspeição......................................................... 1530

6.1. Legitimidade recursal.................................... 1510

1.3.4. Pronúncia do acusado.......................... 1530

6.1.1. Legitimação restrita e subsidiária do assistente da acusação.................................... 1512

6.2.1 Classificação da sucumbência............. 1515

1.3.5. Decisão que conceder, negar, arbi­ trar, cassar ou julgar inidônea a fiança, in­ deferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisó­ ria ou relaxar a prisão em flagrante..............1531

6.2.2. Sentença absolutória e interesse re­ cursal da defesa...............................................1515

1.3.6. Decisão que julgar quebrada a fiança ou perdido o seu valor................................... 1532

6.2.3. Extinção da punibilidade e interesse recursal no julgamento do mérito................ 1516

1.3.7. Decisão que decretar (ou não) a ex­ tinção da punibilidade.................................. 1533

6.2.4. Divergência entre o interesse recur­ sal do acusado e o de seu defensor............... 1516

1.3.8. Decisão que conceder ou negar a ordem de habeas corpus................................ 1534

6.2.5. Sentença condenatória e/ou abso­ lutória e interesse recursal do Ministério Público............................................................. 1516

1.3.9. Decisão que conceder, negar ou re­ vogar a suspensão condicional da pena ou a suspensão condicional do processo........... 1534

6.2. Interesse recursal............................................ 1514

7. Efeitos dos recursos.............................................. 1517 7.1. Efeito obstativo..............................................1517 7.2. Efeito devolutivo...........................................1517 7.3. Efeito suspensivo...........................................1520

7.3.1. Cabimento de mandado de seguran­ ça para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Públi­ co

1520

1.3.10. Decisão que conceder, negar ou revogar livramento condicional....................1535 1.3.11. Decisão que anular o processo da instrução criminal, no todo ou em parte, ou que reconhecer a ilicitude da prova e determinar seu desentranhamento.............. 1535 1.3.12. Decisão que incluir jurado na lista geral ou desta o excluir.................................1536

-

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SUMÁRIO

1.3.13. Decisão que denegar a apelação ou a julgar deserta................................................1536

2.4. Aspectos procedimentais daapelação......... 1556

1.3.14. Decisão que ordenar a suspensão do processo, seja em virtude de questão prejudicial, seja quando o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir defensor........................................................... 1537

2.4.2. Prazo....................................................... 1556

2.4.1. Forma..................................................... 1556 2.4.3. Processamento...................................... 1556 2.4.4. Competência para o julgamento........ 1557 2.5. Efeitos..............................................................1557

1.3.15. Decisão que decidir sobre a unifi­ cação de penas.................................................1537

3. Protesto por novo júri............................................ 1559

1.3.16. Decisão que decidir o incidente de falsidade........................................................... 1537

3.2. Pressupostos objetivos e subjetivos de ad­ missibilidade recursal do revogado protesto por novo júri..........................................................1559

1.3.17. Incidentes da execução da pena....... 1538

3.1. Revogação pela Lei n° 11.689/08................. 1559

1.3.18. Decisão que converter a multa em detenção ou prisão simples............................ 1538

4. Embargos infringentes e de nulidade................... 1562

1.3.19. Decisão que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A)................................... 1538

4.2. Prazo e interposição...................................... 1563

1.4. Aspectos procedimentais do recurso em sentido estrito....................................................... 1539 1.4.1. Forma.................................................... 1539 1.4.2. Prazo.......................................................1539

1.4.3. Processamento...................................... 1540 1.4.4. Competência para o julgamento........ 1540

1.5. Efeitos............................................................. 1541 2. Apelação................................................................ 1542 2.1. Noções gerais..................................................1542

2.2. Espécies.......................................................... 1542 2.2.1. Apelação plena (ou ampla) e apela­ ção parcial (restrita)........................................ 1542

2.2.2. Apelação principal e apelação sub­ sidiária (ou supletiva)..................................... 1543

4.1. Hipóteses de cabimento................................ 1562 4.3. Competência para seu julgamento.............. 1563

4.4. Efeitos............................................................. 1564 4.5. Possibilidade de interposição simultânea dos embargos infringentes e de nulidade e dos recursos extraordinários...................................... 1565 5. Embargos de Declaração........................................ 1566 5.1. Hipóteses de cabimento................................ 1566

5.2. Prazo............................................................... 1566 5.3. Procedimento................................................. 1566 5.4. Efeitos quanto aos demais prazos recursais 1567

6. Agravo em execução............................................... 1567 6.1. Hipóteses de cabimento................................ 1567 6.2. Procedimento................................................. 1568 6.3. Prazo............................................................... 1568 6.4. Efeitos..............................................................1568

2.2.3. Apelação sumária e apelação ordi­ nária................................................................. 1543

7. Carta testemunhável............................................... 1569

2.2.4. Apelação adesiva (ou incidental)........1544

7.2. Prazo................................................................1569

2.3. Hipóteses de cabimento................................ 1544

7.3. Procedimento................................................. 1570

2.3.1. Sentença definitiva de condenação ou absolvição proferida por juiz singular.....1545

7.4. Efeitos..............................................................1570

2.3.2. Decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz singu­ lar, nos casos em que não houver previsão legal de cabimento do recurso em sentido estrito............................................................... 1545

7.1. Hipóteses de cabimento................................ 1569

8. Correição parcial..................................................... 1570 8.1. Hipóteses de cabimento................................ 1571 8.2. Natureza jurídica............................................ 1572 8.3. Legitimidade................................................... 1572 8.4. Prazo............................................................... 1572

2.3.3. Decisões do Tribunal do Júri.............. 1546

2.3.3.1. (In) subsistência do cabimento de apelação interposta pela acusação com base no art. 593, III, alínea “d”, do CPP, diante de eventual absolvição do acusado com base no quesito absolutório genérico........................................ 1553

TÍTULO 15 • AÇÕES AUTÔNOMAS DE IMPUGNAÇÃO............................................

1573

CAPÍTULO I - HABEAS CORPUS

1573

1. Noções Gerais...............................

1573

2. Natureza jurídica..........................

1573 39

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

3. Interesse de agir na ação de habeas corpus..........1574 3.1. Necessidade da tutela: violência ou coação decorrente de ilegalidade ou abuso de poder ....1574

3.2. Adequação: tutela da liberdade de loco­ moção e a antiga doutrina brasileira do habeas corpus..................................................................... 1576 3.2.1. Hipóteses que autorizam o conheci­ mento do habeas corpus................................. 1576

3.2.2. Hipóteses em que não se autoriza o conhecimento do habeas corpus por falta de adequação...................................................1577 3.2.2.1. Habeas Corpus substitutivo de Re­ curso Ordinário...............................................1580

4. Possibilidade jurídica do pedido........................... 1582 4.1. Cabimento do habeas corpus em relação a punições disciplinares militares....................... 1582

8.4. Cessação do motivo que autorizou a coa­ ção

1594

8.5. Não admissão de prestação de fiança......... 1595 8.6. Processo manifestamente nulo.....................1597 8.7. Extinção da punibilidade.............................. 1598

9. Competência........................................................... 1599 9.1. Competência do Supremo Tribunal Fede­ ral

1600

9.2. Competência do Superior Tribunal de Justiça..................................................................... 1601 9.3. Competência dos Tribunais Regionais Fe­ derais...................................................................... 1602 9.4. Competência dos Tribunais de Justiça.........1602 9.5. Competência da Justiça Militar................... 1602 9.6. Competência das Turmas Recursais............1603

4.2. Estado de Sítio................................................1582

9.7. Competência da Justiça do Trabalho...........1604

4.3. Prisão administrativa.................................... 1583

9.8. Competência do juiz de Ia instância............1604

5. Legitimação ativa................................................... 1583 5.1. Distinção entre impetrante e paciente........ 1583

5.1.1. Habeas corpus coletivo....................... 1584 5.2. Legitimação ampla e irrestrita..................... 1585

5.3. Pessoa jurídica................................................1586 5.4. Ministério Público......................................... 1586 5.5. Outras autoridades........................................ 1587

6. Legitimação passiva................................................1588 6.1. Autoridade coatora (ou coator) e detentor....1588

6.2. Ministério Público como autoridade coa­ tora ......................................................................... 1588 6.3. Particular como coator.................................. 1588 6.4. Outras autoridades........................................ 1589 7. Espécies de habeas corpus: liberatório, preven­ tivo, profilático e trancativo...................................... 1589 8. Hipóteses de impetração do habeas corpus......... 1590 8.1. Ausência de justa causa................................ 1590

8.1.1. Falta de justa causa para a prisão....... 1591

9.9. Ministério Público como autoridade coa­ tora e competência para o julgamento do ha­ beas corpus........................................................... 1605

10. Procedimento...................................................... 1606 10.1. Capacidade postulatória............................. 1606 10.2. Petição inicial............................................... 1606 10.3. Dilação probatória....................................... 1607 10.4. Medida liminar............................................ 1607

10.4.1. Indeferimento de liminar por Re­ lator em Tribunal e impetração de novo habeas corpus................................................. 1608

10.5. Apresentação do preso e requisição de informações.......................................................... 1609 10.6. Efeito extensivo da ordem de habeas cor­ pus .......................................................................... 1609

10.7. Intervenção das partes................................ 1609 10.8. Recursos contra as decisões em habeas corpus..................................................................... 1610

10.9. Coisa julgada................................................ 1612

8.1.2. Falta de justa causa e trancamento de investigações preliminares........................ 1591

CAPÍTULO II - REVISÃO CRIMINAL.............. 1612

8.1.3. Falta de justa causa e trancamento do processo penal........................................... 1592

2. Conceito.................................................................. 1613

8.2. Decurso do tempo de prisão previsto na lei............................................................................ 1593

8.2.1. Excesso de prazo da prisão penal....... 1593 8.2.2. Excesso de prazo da prisão tempo­ rária

1. Noções gerais.......................................................... 1612

3. Natureza jurídica.....................................................1613 4. Distinção entre revisão criminal e ação resci­ sória.........................................

1614

5. Pedidos: juízo rescindente e juízo rescisório....... 1614

1594

6. Condições da ação.................................................1615

8.2.3. Excesso de prazo da prisão preven­ tiva.................................................................... 1594

6.1. Legitimidade ativa e passiva........................ 1615

6.2. Interesse de agir: coisa julgada..................... 1616

SUMARIO

6.2.1. Desnecessidade de esgotamento das instâncias ordinárias (prequestionamento)... 1616 6.3. Possibilidade jurídica do pedido: sentença condenatória ou absolutória imprópria, inclu­ sive após o cumprimento da pena e/ou morte do acusado............................................................ 1617

6.3.1. Vedação da revisão criminal pro societate no ordenamento pátrio e princípio do ne bis in idem processual.......................... 1617

6.3.2. Impossibilidade de utilização da revisão criminal para fins de modificação dos fundamentos de sentença absolutória própria............................................................. 1618

6.3.3. Extinção da punibilidade..................... 1618

8.3 Inexistência de prazo decadencial

1625

8.4. Competência................................................... 1626 8.5. Procedimento................................................. 1627 8.6. Efeito suspensivo............................................ 1628 8.7. Ônus da prova................................................ 1628 8.8. Non reformatioin pejus direta e indireta..... 1629 8.9. Recursos......................................................... 1630

8.10. Indenização pelo erro judiciário................ 1630

8.11. Coisa julgada................................................ 1631 CAPÍTULO III - MANDADO DE SEGURANÇA.......................................................... 1631

1. Noções gerais.......................................................... 1631

6.3.4. Revisão criminal no âmbito do Júri e soberania dos veredictos............................. 1618

2. Conceito e natureza jurídica.................................. 1632

6.3.5. Juizados Especiais Criminais.............. 1619

3. Objeto da tutela.......................................................1632

6.3.6. Transação penal.................................... 1619

4. Prazo decadencial....................................................1633

6.3.7. Impeachment........................................... 1620

5. Legitimação ativa e passiva.................................... 1633

7. Hipóteses de cabimento da revisão criminal.......1620

6. Cabimento............................................................... 1634

7.1. Contrariedade ao texto expresso da lei penal....................................................................... 1620

6.1. Hipóteses comuns de impetração do man­ dado de segurança no âmbito criminal.............. 1635

7.2. Contrariedade à evidência dos autos.......... 1622

7. Aspectos procedimentais....................................... 1636

7.3. Decisão fundada em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos..........1622

7.1. Petição inicial................................................. 1636

7.4. Descoberta de novas provas em favor do condenado............................................................. 1622 7.5. Nulidade do processo.................................... 1624

8. Aspectos procedimentais da revisão criminal..... 1625 8.1. Capacidade postulatória............................... 1625 8.2. Desnecessidade de recolhimento à prisão... 1625

7.2. Procedimento e julgamento do mandado de segurança..........

1636

7.3. Competência....

1637

7.4. Medida liminar

1638

7.5. Recursos.

1639

BIBLIOGRAFIA

1641

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TÍTULO

1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS 1. INTRODUÇÃO Quando o Estado, por intermédio do Poder Le­ gislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito de punir os infratores num plano abstrato, genérico e impessoal, e, para o par­ ticular, o dever de se abster de praticar a infração penal. A partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito de punir desce do plano abstrato e se transforma no ius puniendi in concreto. Surge, então, a pretensão punitiva, a ser com­ preendida como o poder do Estado de exigir de quem comete um delito a submissão à sanção pe­ nal. Através da pretensão punitiva, o Estado procura tornar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor do delito, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, o cumprimento dessa obrigação, que consiste em sofrer as consequências do crime e se concretiza no dever de abster-se ele de qualquer resistência contra os órgãos estatais a que cumpre executar a pena.

Todavia, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem um processo, não po­ dendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o infrator sujeitar-se à pena. Em outras palavras, essa pretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Esta­ do ser o titular do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção sem que haja um pro­ cesso regular, assegurando-se, assim, a aplicação da lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judicio). Aliás, até mes­ mo nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo, em que se admite a transação penal, com a imediata aplicação de penas restritivas de direitos ou multas, não se trata de imposição direta de pena. Uti­ liza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional

para a resolução da causa, sendo admitida a solu­ ção consensual em infrações de menor gravidade, mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se, assim, a vontade das partes e, principalmente, do autor do fato que pretende evitar os dissabores do processo e o risco da condenação.

É exatamente daí que sobressai a importância do processo penal, pois este funciona como o ins­ trumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso.

Mas o Estado não pode punir de qualquer ma­ neira. Com efeito, considerando-se que, da aplicação do direito penal pode resultar a privação da liberdade de locomoção do agente, entre outras penas, não se pode descurar do necessário e indispensável respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro cus­ taram para serem reconhecidos e que, em verdade, condicionam a legitimidade da atuação do próprio aparato estatal em um Estado Democrático de Direi­ to. Na medida em que a liberdade de locomoção do cidadão funciona como um dos dogmas do Estado de Direito, é intuitivo que a própria Constituição Federal estabeleça regras de observância obrigatória em um processo penal. É a boa (ou má) aplicação desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir a civilização da barbárie. De fato, como adverte Norberto Bobbio, a pro­ teção do cidadão no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Na dicção do autor, “a diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Es­ tado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

de direito, ou seja, em relações reguladas por nor­ mas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A consequência principal dessa transformação é que nas relações entre cida­ dãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”.1

É esse, pois, o grande dilema existencial do pro­ cesso penal: de um lado, o necessário e indispensá­ vel respeito aos direitos fundamentais; do outro, o atingimento de um sistema criminal mais operante e eficiente.2 É dentro dele que se buscará, ao longo da presente obra, um ponto de equilíbrio no estudo do processo penal, pois somente assim serão evitados os extremos do hipergarantismo e de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito Penal da Lei e da Ordem.

2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

2.1. Sistema inquisitório Adotado pelo Direito canônico a partir do sé­ culo XIII, o sistema inquisitório posteriormente se propagou por toda a Europa, sendo empregado in­ clusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Típi­ co dos sistemas ditatoriais, tem como característica principal o fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem-se concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acu­ sador, chamado de juiz inquisidor.

Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perden­ do a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Nesse sistema, não há falar em contraditório, o qual 1. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução de João Ferreira; revisão técnica Gilson César Cardoso. 4a ed. Brasília: Editora Uni­ versidade de Brasília, 1999, p. 96-97.

2. Na linha do ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, o vocá­ bulo eficiência aqui empregado "é usado de forma ampla, sendo afasta­ da, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número de condenações. Será eficiente o procedimento que, em tempo razoável, permita atingir um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal". (Sigilo no processo penal: eficiência e garan-

tismo. Coordenação Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 10).

nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Ademais, ge­ ralmente o acusado permanecia encarcerado pre­ ventivamente, sendo mantido incomunicável. No sistema inquisitório, não existe a obriga­ toriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para deter­ minar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusa­ ção ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse.

Trabalha-se com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade real, absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao ob­ jeto do processo, quer em relação aos meios e méto­ dos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso.

Em tal sistema, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direi­ tos. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito e sigiloso, mas essas formas não lhe eram essenciais. Pode se conceber o processo inquisi­ tivo com as formas orais e públicas.

Como se percebe, há uma nítida conexão en­ tre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A característica fundamental do processo inquisitório é a concentração de poderes nas mãos do juiz, aí chamado de inquisidor, à semelhança da reunião de poderes de administrar, legislar e julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo com o regime político do absolutismo. Em síntese, podemos afirmar que o sistema in­ quisitório é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o es­ clarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contradi­ tório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inqui­ sidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase investigatória, seja durante a instrução processual.3

Por essas características, fica evidente que o processo inquisitório é incompatível com os direitos e garantias individuais, violando os mais elementa­ res princípios processuais penais. Sem a presença de um julgador equidistante das partes, não há falar em imparcialidade, do que resulta evidente violação à Constituição Federal e à própria Convenção Ameri­ cana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8o, n° 1).

2.2. Sistema acusatório De maneira diversa, o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial.4 Historicamente, tem como suas caracte­ rísticas a oralidade e a publicidade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a regra era que o acusado permanecesse solto durante o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito e sigiloso.

Chama-se “acusatório” porque, à luz deste sistema, ninguém poderá ser chamado a juízo sem que haja uma acusação, por meio da qual o fato imputado seja narrado com todas as suas cir­ cunstâncias. Daí, aliás, o porquê da existência do próprio Ministério Público como titular da ação penal pública. Ora, se é natural que o acusado te­ nha uma tendência a negar sua culpa e sustentar sua inocência, se acaso não houvesse a presença de um órgão acusador, restaria ao julgador o papel de confrontar o acusado no processo, fulminando sua imparcialidade. Como corolário, tem-se que o processo penal se constitui de um actum trium personarum, integrado por sujeitos parciais e um imparcial - partes e juiz, respectivamente. Somente assim será possível preservar o juiz na condição de terceiro desinteressado em relação às partes, estando alheio aos interesses processuais.

Mas esta mera separação das funções de acusar e julgar não basta para a caracterização do sistema 3. Como observa GIACOMOLLI (O devido processo penal: abordagem conforme aCFeo Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 90), "verifica-se um 'donismo' processual sem precedentes, endo e extraprocessuais: o processo é meu, o promotor é meu, o estagiário é meu, o servidor é meu, o carro é meu, eu sou eu, eu e eu. Então, eu posso investigar, eu posso acusar, eu posso julgar, recorrer e executar a sanção. Nesse modelo, confundem-se as funções dos agentes do Estado-Julgador com os do Estado-Acusador e com os do Estado-lnvestigador."

acusatório, porquanto a imparcialidade do magis­ trado não estará resguardada enquanto o juiz não for estranho à atividade investigatória e instrutória. Com efeito, de nada adianta a existência de pessoas diversas no exercício das funções do magistrado e do órgão estatal de acusação se, na prática, há, por parte daquele, uma usurpação das atribuições deste, explícita ou implicitamente, a exemplo do que ocor­ re quando o magistrado requisita a instauração de um inquérito policial, dá início a um processo penal de ofício (processo judicialiforme), produz provas e decreta prisões cautelares sem requerimento das partes, etc. Portanto, quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, portanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberda­ des fundamentais. Diversamente do sistema in­ quisitório, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal.

Segundo Ferrajoli, são características do sis­ tema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a pu­ blicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a dispari­ dade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.5

O sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos domínios do direito germano. A partir do século XIII entra em declínio, passando a ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro. Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Minis­ tério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e,

4. Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 114.

5. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.

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conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome inicia­ tivas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória e na fase processual, atribuição esta que deve ficar a cargo das autorida­ des policiais, do Ministério Público e, no curso da instrução processual penal, das partes. É exatamente nesse sentido, aliás, o art. 3°-A do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19 (Pacote Anticrime), segundo o qual “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.6 Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitório do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo acusatório reflete a posição de igualdade dos su­ jeitos, cabendo exclusivamente às partes a produ­ ção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova. Em síntese, pode-se trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os dois sistemas: Sistema Inquisitório

Sistema Acusatório

Não há separação das fun­ ções de acusar, defender e julgar, que estão concentra­ das em uma única pessoa, que assume as vestes de um juiz inquisidor;

Separação das funções de acusar, defender e julgar. Por consequência, carac­ teriza-se pela presença de partes distintas (actum trium personarum), con­ trapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, sobrepondo-se a ambas um juiz, de manei­ ra equidistante e imparcial;

Como se admite o princípio da verdade real, o acusado não é sujeito de direitos, sendo tratado como mero objeto do processo, daí por que se admite inclusive a tortura como meio de se obter a verdade absoluta;

O princípio da verdade real é substituído pelo princípio da busca da verdade, de­ vendo a prova ser produ­ zida com fiel observância ao contraditório e à ampla defesa;

6.0 art. 3°-A do CPP será objeto de análise mais detalhada no próximo título - "Juiz das Garantias"-, para onde remetemos o leitor.

Sistema Inquisitório

Sistema Acusatório

Gestão da prova: o juiz in­ quisidor é dotado de ampla iniciativa acusatória e pro­ batória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de elementos in­ formativos e de provas, seja no curso das investigações, seja no curso da instrução processual;

Gestão da prova: recai precipuamente sobre as partes. Na fase investigatória, o juiz só deve intervir quando provocado, e desde que haja necessidade de intervenção judicial. Durante a instru­ ção processual, prevalece o entendimento de que o juiz tem certa iniciativa proba­ tória, podendo determinar a produção de provas de ofício, desde que o faça de maneira subsidiária;

A concentração de poderes nas mãos do juiz e a inicia­ tiva acusatória dela decor­ rente é incompatível com a garantia da imparcialidade (CADH, art. 8o, § 1°) e com o princípio do devido pro­ cesso legal.

A separação das funções e a iniciativa probatória resi­ dual restrita à fase judicial preserva a equidistância que o magistrado deve to­ mar quanto ao interesse das partes, sendo compatível com a garantia da impar­ cialidade e com o princípio do devido processo legal.

2.3. Sistema processual misto ou francês Após se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitório passa a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que ins­ tituiu o denominado sistema processual misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês. É chamado de sistema misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitório, destituída de publicida­ de e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defen­ de e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação.

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitório. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém,

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princí­ pio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório.

É bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que o Código de Processo Penal tem nítida inspiração no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida diante da nova ordem constitucional.

3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENAL O vocábulo princípio é dotado de uma imensa va­ riedade de significações. Sem nos olvidar da distinção feita pela doutrina entre princípios, normas, regras e postulados,7 trabalharemos com a noção de princípios como mandamentos nucleares de um sistema.

A Constituição Federal de 1988 elencou vários princípios processuais penais, porém, no contexto de funcionamento integrado e complementar das garantias processuais penais, não se pode perder de vista que os Tratados Internacionais de Direitos Hu­ manos firmados pelo Brasil também incluíram diver­ sas garantias ao modelo processual penal brasileiro. Nessa ordem, a Convenção Americana sobre Direi­ tos Humanos (CADH - Pacto de São José da Costa Rica), prevê diversos direitos relacionados à tutela da liberdade pessoal (Decreto 678/92, art. 7o), além de inúmeras garantias judiciais (Decreto 678/92, art. 8o).

Embora seja polêmica a discussão em torno do status normativo dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, a partir do julgamento do RE 466.343, tem prevalecido no Supremo Tribunal Fe­ deral a tese do status de supralegalidade da Conven­ ção Americana sobre Direitos Humanos. Não por outro motivo, a despeito do teor do art. 5o, LXVII, da Constituição Federal, que prevê, em tese, a pos­ sibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel, a Suprema Corte entendeu que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7°, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do art. 5°, LXVII, da Carta Magna. Logo, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, 7. Para ampla análise dessa distinção, sugerimos a leitura da obra de Robert Alexy: Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Vírgilio Afonso da Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.

restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.8 Em face da incorporação da Convenção Ameri­ cana sobre Direitos Humanos ao ordenamento pátrio, o Brasil assume, então, o dever de adotar medidas legislativas para dar efetividade aos direitos preconi­ zados na referida Convenção (art. 2°). Esta pode ser garantida em 3 (três) perspectivas:9 a) utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)1011 e das opiniões consultivas na in­ terpretação dos casos penais internos de cada país; b) controle difuso da convencionalidade, a ser exercido pelos magistrados em cada caso concreto, nos termos do art. 5o, §§ 2o e 3o, da CF; c) controle concentrado ou abstrato da convencionalidade, a ser realizado pela CIDH, em sua jurisdição contenciosa e consultiva, e pelos Tribunais, após a EC n° 45/04.

De se notar, portanto, que as decisões da CIDH gozam de eficácia vinculante, nos termos dos arts. 67, 68.1 e 68.2 da CADH. São dotadas de autoridade de coisa julgada formal e material, devendo, pois, ser cumpridas de forma eficaz e integral. Como observa Giacomolli,ll seus efeitos, todavia, não estão limita­ dos às partes, mas irradiam um efeito hermêutico a todos aqueles que aderiram ao sistema interamericano, com eficácia erga omnes e standard interpretativo da convencionalidade do ordenamento interno. Daí a importância da análise dos diversos cases da CIDH, já que suas decisões funcionam como importante fer­ ramenta hermenêutica do Pacto de São José da Costa Rica. Enfim, já não basta mais o conhecimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Também se impõe o conhecimento da jurisprudência da CIDH.

3.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade) 3.1.1. Noções introdutórias Em 1764, Cesare Beccaria, em sua célebre obra Dos delitos e das penas, já advertia que “um homem 8. STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 118 25/06/2009. 9. É nesse sentido a lição de Nereu José Giacomolli: O devido processo penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 30. 10. Composta por sete juizes, eleitos por um período de seis anos, permitida uma reeleição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) está situada em San José da Costa Rica. Existe desde 1978 como órgão jurisdicional internacional, vinculado à CADH, com competência consultiva automática (Convenção eTratados) e contenciosa (violação aos preceitos da Convenção) sobre os Estados que ratificaram a Convenção e que reconheceram a sua jurisdição contenciosa (facultativa). O Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa e obrigatória da CIDH por meio do Decreto-Legislativo n° 89, de 03 de dezembro de 1998.

11. Op. cit. p. 40.

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não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.12

Esse direito de não ser declarado culpado enquanto ainda há dúvida sobre se o cidadão é culpado ou inocente foi acolhido no art. 9o da De­ claração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A Declaração Universal de Direitos Hu­ manos, aprovada pela Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 11.1, dispõe: “Toda pessoa acusa­ da de delito tem direito a que se presuma sua ino­ cência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”. Dispositivos semelhantes são encon­ trados na Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 6.2), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92 - art. 8o, § 2o): “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. No ordenamento pátrio, até a entrada em vigor da Constituição de 1988, esse princípio so­ mente existia de forma implícita, como decorrên­ cia da cláusula do devido processo legal.13 Com a Constituição Federal de 1988, o princípio da pre­ sunção de não culpabilidade passou a constar ex­ pressamente do inciso LVII do art. 5o: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em síntese, pode ser definido como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da cre­ dibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório).

Comparando-se a forma como referido prin­ cípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir à presunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na verdade, que ninguém será considerado culpado. 12. BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 69. 13. Nesse sentido: STF, 1a Turma, HC 67.707/RS, Rei. Min. Celso de

Mello, DJ 14/08/1992.

Por conta dessa diversidade terminológica, o preceito inserido na Carta magna passou a ser denominado de presunção de não culpabilidade. Na jurisprudência brasileira, ora se faz referên­ cia ao princípio da presunção de inocência,14 ora ao princípio da presunção de não culpabilidade.15 Segundo Badaró, não há diferença entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, sen­ do inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as idéias - se é que isto é possível -, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.16

Do princípio da presunção de inocência (ou presunção de não culpabilidade) derivam duas regras fundamentais: a regra probatória (também conhecida como regra de juízo) e a regra de tra­ tamento, objeto de estudo nos próximos tópicos.17

3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo) Por força da regra probatória, a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acu­ sado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar sua inocência.18 Como consectários dessa regra, Antônio Magalhães Gomes Filho destaca: a) a incumbência do acusador de demonstrar a culpabi­ lidade do acusado (pertence-lhe com exclusividade o ônus dessa prova); b) a necessidade de comprovar a existência dos fatos imputados, não de demonstrar a inconsistência das desculpas do acusado; c) tal comprovação deve ser feita legalmente (conforme o devido processo legal); d) impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos (daí o seu direito ao silêncio).19 Essa regra probatória deve ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a deci­ são do processo. Na dicção de Badaró, cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência segundo a qual, para a imposição de uma sentença 14. Vide súmula n° 09 do STJ. E também: STF, 1aTurma, HC-ED91.150/ SP, Rei. Min. Menezes Direito, DJe 018 01°/02/2008. 15. A título de exemplo: STF, 1a Turma, AI-AgR 604.041/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 092 - 31/08/2007; STF, 2a Turma, HC 84.029/

SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 06/09/2007 p. 42. 16. BADARÓ, Gustavo Henrique, ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 283. 17. Por força do disposto no art. 8o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (n° 2), Luiz Flávio Gomes acrescenta uma terceira regra, qual seja, a regra de garantia, segundo a qual a única forma de se afastar a presunção de inocência do acusado seria comprovando-se legalmente sua culpabilidade (Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 442). A nosso ver, e com a devida vênia, tal regra já está inserida na regra probatória.

18. Para mais detalhes acerca da divisão do ônus da prova no processo penal, remetemos o leitor ao capítulo de provas.

19. "O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)", em Revista do Advogado, da AASP, n° 42, abril/94, p. 31.

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condenatória, é necessário provar, eliminando qual­ quer dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de certeza.20 Nesta acepção, presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo. Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em um juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo menos grave que o segundo. O in dubio pro reo não é, portanto, uma sim­ ples regra de apreciação das provas. Na verdade, deve ser utilizado no momento da valoração das provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o im­ putado, pois não tem ele a obrigação de provar que não praticou o delito. Enfim, não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se - para que se qualifique como ato reves­ tido de validade ético-jurídica - em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas ra­ zoáveis, sérias e fundadas que poderíam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet.21

O in dubio pro reo só incide até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Portanto, na revisão criminal, que pressupõe o trânsito em jul­ gado de sentença penal condenatória ou absolutória imprópria, não há falar em in dubio pro reo, mas sim em in dubio contra reum. O ônus da prova quanto às hipóteses que autorizam a revisão criminal (CPP, art. 621) recai única e exclusivamente sobre o pos­ tulante, razão pela qual, no caso de dúvida, deverá o Tribunal julgar improcedente o pedido revisional.

3.1.3. Da regra de tratamento A privação cautelar da liberdade, sempre qua­ lificada pela nota da excepcionalidade, somente se justifica em hipóteses estritas, ou seja, a regra é res­ ponder ao processo penal em liberdade, a exceção é estar preso.22 São manifestações claras desta re­ gra de tratamento a vedação de prisões processuais

automáticas ou obrigatórias e a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da sanção penal. Destarte, por força dessa regra, o Poder Público está impedido de agir e de se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusa­ do, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, enquanto não houver o fim do processo criminal.23 O princípio da presunção de inocência não proíbe, todavia, a prisão cautelar ditada por razões excepcionais e tendente a garantir a efetividade do processo, cujo permissivo decorre inclusive da pró­ pria Constituição (art. 5o, LXI), sendo possível se conciliar os dois dispositivos constitucionais desde que a medida cautelar não perca seu caráter ex­ cepcional, sua qualidade instrumental, e se mostre necessária à luz do caso concreto. Enfim, qualquer que seja a modalidade de prisão cautelar, não se pode admitir que a medida seja usada como meio de inconstitucional antecipação executória da própria sanção penal, pois tal instrumento de tutela caute­ lar penal somente se legitima se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do acusado.24

Há quem entenda que esse dever de tratamento atua em duas dimensões: a) interna ao processo: funciona como dever imposto, inicialmente, ao ma­ gistrado, no sentido de que o ônus da prova recai integralmente sobre a parte acusadora, devendo a dúvida favorecer o acusado. Ademais, as prisões cautelares devem ser utilizadas apenas em situações excepcionais, desde que comprovada a necessidade da medida extrema para resguardar a eficácia do processo; b) externa ao processo: o princípio da presunção de inocência e as garantias constitucio­ nais da imagem, dignidade e privacidade deman­ dam uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado, funcionando como limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial.25*

23. STF - HC 89.501/GO - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 16/03/2007 p. 43. 24. Nessa linha: STF - HC 90.753/RJ - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello-DJ 23/11/2007 p. 116.

20. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 285.

21. Nesse contexto: STF, 1a Turma, HC 73.338/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/1996. 22. "Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu" (FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito processual penal. 1o vol. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. p. 428.)

25. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade cons­ titucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 47/48. Es­ pecificamente em relação à dimensão externa ao processo, vem bem a calhar a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Huma­ nos no caso J. vs. Peru (2013), no qual o Peru foi responsabilizado por violação ao estado de inocência previsto no art. 8.2 do Pacto de São José da Costa Rica. Para a CIDH, os distintos pronunciamentos públicos das autoridades estatais, sobre a culpabilidade de J. violaram o estado

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Se o indivíduo deve ser tratado como se inocente fosse, pelo menos até a formação da coisa julgada, investigações e processos criminais em andamento, absolvições por insuficiência de provas, e prescri­ ções abstratas, retroativas e intercorrentes, etc., não podem ser considerados como ‘maus antecedentes’, nem tampouco valoradas negativamente a título de conduta social’ ou ‘personalidade’ do acusado, sob pena de patente violação à regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII). Os dados que podem ser valorados na aferição da culpabilidade devem derivar de envolvi­ mentos judiciais que levaram a condenações definiti­ vas do agente por infrações penais, sejam elas crimes - comuns, militares e políticos - ou contravenções, nada impedindo que, em havendo várias condena­ ções acobertadas pela coisa julgada, remeta-se aos antecedentes negativos e, em fase subsequente, à re­ incidência. Enfim, ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso hão de ser considerados neutros na defini­ ção dos antecedentes criminais.26 Daí, alias, os dizeres da súmula n. 444 do STJ (“É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”) e da Tese de Repercussão Ge­ ral fixada no tema n. 129 (“A existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena”).27

Ainda por força da regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência, eis o teor da Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 22: “Sem previsão constitucional adequa­ da e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a partici­ pação de candidato pelo simples fato de responder de inocência, princípio determinante que o Estado não condene, nem mesmo informalmente, emitindo juízo perante a sociedade e contribuin­ do para formar a opinião pública, enquanto não existir decisão judicial condenatória. Para a Corte, a apresentação da imagem da acusada para a imprensa, escrita e televisiva, ocorreu quando ela estava sob absoluto controle do Estado, além de as entrevistas posteriores também terem sido levadas a cabo sob conhecimento e controle do Estado, por meio de seus funcionários. A Corte acentuou não impedir o estado de inocência que as autoridades mantenham a sociedade informada sobre investigações criminais, mas requer que isso seja feito com a discrição e a contextualização necessárias, de tal modo a garantir o estado de inocência. Assim, fazer declarações públicas, sem os devidos cuidados, sobre processos penais, gera, na sociedade, a indevida crença sobre a culpabilidade do acusado. Nessa linha: GIACOMOLLI, Nereu José. 0 devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 135-137.

a inquérito ou ação penal”.28 Na visão da Corte, a simples existência de inquéritos ou processos penais em curso não autoriza a eliminação de candidatos em concursos públicos, o que pressupõe: (i) conde­ nação por órgão colegiado ou definitiva; e (ii) rela­ ção de incompatibilidade entre a natureza do crime em questão e as atribuições do cargo concretamente pretendido, a ser demonstrada de forma motivada por decisão da autoridade competente. A lei pode instituir requisitos mais rigorosos para determina­ dos cargos, em razão da relevância das atribuições envolvidas, como é o caso, por exemplo, das carrei­ ras da magistratura, das funções essenciais à justiça e da segurança pública (CF, art. 144), sendo vedada, em qualquer caso, a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade.

3.1.4. (In)constitucionalidade da execução pro­ visória da pena29 Como bem sabe o leitor, muito já se discutiu - e ainda se discute - acerca da necessidade de se aguardar (ou não) o trânsito em julgado de sen­ tença condenatória para o início da execução da pena. Entre fevereiro de 2016 e novembro de 2019, prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal, por força do HC 126.292, o entendimento de que não havia necessidade de se aguardar o trânsito em julgado, justificando-se, assim, a denominada execução pro­ visória da pena. Recentemente, porém, por ocasião do julgamento definitivo das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43/DF, 44/DF e 54/DF, houve uma mudança de orientação daquela Cor­ te. Por razões didáticas, vejamos os argumentos de ambas as correntes, separadamente.

3.1.4.1. Desnecessidade do trânsito em julgado (STF - HC 126.292/ARE 964.246) Pelo menos em regra, os recursos extraordiná­ rio e especial não são dotados de efeito suspensivo (CPP, art. 637, c/c arts. 995 e 1.029, § 5o, ambos do novo CPC). Por isso, prevaleceu, durante anos, o entendimento jurisprudencial segundo o qual era cabível a execução provisória de sentença penal condenatória recorrível, independentemente da 28. Paradigma: STF, Pleno, RE 560.900, Rei. Min. Roberto Barroso, j.

06.02.2020, DJe 17.08.2020. 29. Para mais detalhes acerca da possibilidade de execução provisó­ ria de decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclu­ são (CPP, art. 492,1, alínea "e", com redação dada pela Lei n. 13.964/19),

26. Nesse sentido: STJ, 6a Turma, RMS 29.273/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/09/2012; STF, Pleno, HC 94.620/MS, Rei. Min.

independentemente do julgamento sequer de uma eventual apelação pelos Tribunais de 2a instância, remetemos o leitor ao Título 11 (Processo e

Ricardo Lewandowski, j. 24/06/2015, DJe 236 23/11/2015.

Procedimento), mais precisamente ao Capítulo IV (Procedimento Especial do Tribunal do Júri), onde o tema é objeto de análise nos comentários

27. Paradigma: STF, Pleno, RE 591.054, Rei. Min. Marco Aurélio, j.

17.12.2014, DJe 26.02.2015.

à "sentença do Júri".

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• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

demonstração de qualquer hipótese que autorizasse a prisão preventiva do acusado. O fundamento legal para esse entendimento era o disposto no art. 637 do CPP. Nessa linha, o STJ editou a súmula n° 267 (“A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”). Portanto, mesmo que o acusado tivesse permanecido solto durante todo o processo, impunha-se o recolhimento à prisão como efeito automático de um acórdão condenatório proferido por órgão jurisdicional de segundo grau, ainda que a decisão condenatória não tivesse transitado em julgado em virtude da interposição dos recursos extraordinário e especial, e pouco, im­ portando, ademais, a ausência dos pressupostos que autorizavam sua prisão preventiva.30 Ocorre que, no julgamento do Habeas Corpus n° 84.078 no ano de 2009, o Plenário do Supremo, por maioria de votos (7 a 4), alterou sua orientação jurisprudencial até então dominante para concluir que a execução da pena só poderia ocorrer com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Logo, a despeito de os recursos extraordinários não serem dotados de efeito suspensivo, enquanto não houvesse o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não seria possível a execução da pena privativa de liberdade, ressalvada a hipótese de pri­ são cautelar do réu, cuja decretação, todavia, estaria condicionada à presença dos pressupostos do art. 312 do CPP.31 Todavia, no julgamento do HC 126.292 no dia 17 de fevereiro de 2016,32 e novamente por maioria de votos (7 a 4), o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu que seria possível a execução pro­ visória de acórdão penal condenatório proferido por Tribunal de segunda instância quando ali esgotada a jurisdição, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, e mesmo que ausentes os requisitos da prisão cautelar, sem que se pudesse objetar su­ posta violação ao princípio da presunção de inocên­ cia, já que seria possível fixar determinados limites para a referida garantia constitucional. Não se trata, portanto, de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, de verdadeira execução provisória da pena. Para justificar essa nova orientação foram apontados, à época, os seguintes fundamentos: 30. Nesse contexto: STF, 1a Turma, HC 91.675/PR, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 04/09/2007, Dje 157 06/12/2007. 31. HC 84.078, Rei. Min. Eros Grau. Informativo n° 534 do STF - Brasília, 2 a 6 de fevereiro de 2009. No mesmo sentido: STF, 2a Turma, HC 88.174/

SP, Rei. Min. Eros Grau, j. 12/12/1996, DJe 092 30/08/2007; STF, 2a Turma, HC 89.754/BA, Rei. Min. Celso de Mello, j. 13/02/2007, DJe 04 26/04/2007; STF, 2a Turma, HC 91.232/PE, Rei. Min. Eros Grau, j. 06/11/2007, DJe 157 06/12/2007; STJ - HC 122.191 /RJ — 5a Turma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima-Dje 18/05/2009. 32. STF, Pleno, HC 126.292/SP, Rei. Min.Teori Zavascki, j. 17/02/2016,

DJe 100 16/05/2016.

a) deve ser buscado o necessário equilíbrio entre o princípio da presunção de inocência e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade;

b) é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabi­ lidade criminal do acusado. É dizer, os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobra­ mentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutividade, já que não se prestam ao debate da matéria fática probatória.33* Noutras palavras, com o julgamento implementado pelos tribunais de apelação, ocorrería uma espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da cau­ sa. Por consequência, não seria razoável inverter a lógica do sistema, de maneira a transformar os tribunais de segundo grau em meros tribunais de passagem, e Cortes Superiores, que não têm compe­ tência constitucional para a plena análise do mérito, em instâncias finais de julgamentos penais; c) se houve, em segundo grau, um juízo de in­ criminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordiná­ ria, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faria sentido, portanto, negar efeito sus­ pensivo aos recursos extraordinários, como o faz o art. 637 do CPP; d) não se pode afirmar que, à exceção das prisões em flagrante, temporária, preventiva e de­ corrente de sentença condenatória transitada em julgado, todas as demais formas de prisão foram revogadas pelo art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei 12.403/2011, haja vista o critério temporal de solução de antinomias previsto no art. 2o, § Io, da Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Di­ reito Brasileiro). Se assim o fosse, a conclusão seria pela prevalência da regra que dispõe ser meramente devolutivo o efeito dos recursos ao Superior Tribu­ nal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), visto que os arts. 995 e 1.029, § 5o, do CPC têm vigência posterior à regra do art. 283 do CPP. Portanto, não há antinomia entre o que dispõe o art. 283 do CPP e a regra que confere eficácia imediata aos acórdãos proferidos por tribunais de apelação; 33. As matérias fáticas que levariam apenas a um reexame da prova estão excluídas dos recursos especial e extraordinário, nos termos da súmula n° 279 do STF ("Para simples reexame de prova não cabe re­ curso extraordinário") e da súmula n° 7 do STJ ("A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial").

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e) em nenhum país do mundo, depois de obser­ vado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema; f) a jurisprudência que assegurava a presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença condenatória vinha permitindo a indevida e sucessi­ va interposição de recursos da mais variada espécie, com indisfarçados propósitos protelatórios, visando, não raro, à configuração da prescrição da preten­ são punitiva ou executória, já que o último marco interruptivo do prazo prescricional antes do início do cumprimento da pena é a publicação da sentença ou do acórdão recorríveis (CP, art. 117, IV).34 Esse indevido incentivo à infindável interposição de re­ cursos protelatórios acabaria reforçando a própria seletividade do sistema, pois a Defensoria Pública não litiga dessa forma e as pessoas pobres não têm recursos financeiros para pagar recursos judiciais indefinidamente;

g) quanto a eventuais equívocos das instân­ cias ordinárias, não se pode esquecer que há ins­ trumentos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena, como, por exemplo, medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao recurso especial (art. 1.029, § 5o, do novo CPC) e o habeas corpus. Portanto, mesmo que exequível provisoriamente o acórdão condenatório recorrível, o acusado não es­ taria desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos. Isso seria possível, por exemplo, em situações nas quais estivesse carac­ terizada a verossimilhança das alegações deduzidas na impugnação extrema, de modo que se pudesse constatar a manifesta contrariedade do acórdão com a jurisprudência consolidada da Corte a quem se destina a impugnação. Posteriormente, o teor da decisão proferida no julgamento do HC 126.292 foi confirmado pelo Ple­ nário do STF, ao indeferir medida cautelar em duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs 43 e 44), permitindo, assim, a execução provisó­ ria da pena privativa de liberdade após a decisão 34. Como exemplo do uso abusivo do direito de recorrer com a nítida intenção de procrastinar o trânsito em julgado de sentença condenatória podemos citar o caso do ex-Senador L. E., condenado a 31 anos de reclu­ são pela prática dos crimes de peculato, estelionato, corrupção ativa, uso

condenatória de segundo grau e antes do trânsito em julgado, sob o argumento de que as decisões jurisdicionais não impugnáveis por recursos dota­ dos de efeito suspensivo seriam dotadas de eficácia imediata. Assim, após esgotadas as instâncias ordi­ nárias,35 a condenação criminal poderia proviso­ riamente surtir efeito imediato do encarceramento, uma vez que o acesso às instâncias extraordinárias se dá por meio de recursos que são ordinariamente dotados de efeito meramente devolutivo.36 Esse en­ tendimento foi, posteriormente, confirmado pelo Plenário Virtual do STF na análise do Recurso Ex­ traordinário com Agravo (ARE) 964.246,37*que teve repercussão geral reconhecida. Assim, a tese firmada pelo Tribunal passou a ser aplicada nos pro­ cessos em curso nas demais instâncias, pelo menos até o julgamento definitivo das ADCs 43, 44 e 54.

3.1.4.2. Necessidade do trânsito em julgado (STF - ADCs 43,44 e 54) Sempre nos posicionamos, mesmo antes do jul­ gamento definitivo das ADCs acima mencionadas, no sentido de que a execução provisória da pena estaria em desacordo com a Constituição Federal, que assegura a presunção de inocência (ou de não culpabilidade) até o trânsito em julgado de sentença condenatória (art. 5o, LVII), e com o art. 283 do CPP, que, mesmo após o advento do Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/19), só admite, no curso da investi­ gação ou do processo - é dizer, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória -, a decretação da prisão cautelar por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Não negamos que se deva buscar uma maior eficiência no sistema processual penal pátrio. Mas, a nosso juízo, essa busca não pode se sobrepor à 35. A execução da pena depois da prolação de acórdão em segundo grau de jurisdição e antes do trânsito em julgado da condenação não é automática, quando a decisão ainda é passível de integração pelo Tribunal de Justiça, sobretudo quando o juízo de primeiro grau conceder ao acu­ sado, na sentença condenatória, o direito de recorrer em liberdade. Por isso, em caso concreto no qual ainda não havia se dado o esgotamento da jurisdição do Tribunal de Justiça, em virtude da interposição de Em­ bargos de Declaração ainda não julgado, concluiu a 6a Turma do STJ (HC 366.907/PR, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 06/12/2016, DJe 16/12/2016) ser indevido, naquele momento, o início da execução provisória da pena. 36. STF, Pleno, ADC 43 MC/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016; STF, Pleno, ADC 44 MC/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016.

37. "(...) Em regime de repercussão geral, fica reafirmada a juris­ prudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal,

de documento falso e associação criminosa - os dois últimos delitos aca­ baram prescrevendo. Desde 2006, quando foi condenado pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região, o ex-Senador já havia interposto mais de 35 (trinta e cinco) recursos, obstando, assim, o trânsito em julgado. Com a mudança de orientação jurisprudencial do STF acerca do assunto, o

ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo

ex-Senador foi, enfim, recolhido à prisão, em data de 8 de março de 2016.

RG/SP, Rei. Min.Teori Zavascki, j. 10/11/2016, DJe 251 24/11/2016).

5o, inciso LVII, da Constituição Federal. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com o reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria". (STF, Pleno, ARE 964.246

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Constituição Federal, que demanda a formação de coisa julgada para que possa dar início à execução de uma prisão de natureza penal. E só se pode falar em trânsito em julgado quando a decisão se torna imutável, o que, como sabemos, é obstado pela interposição dos recursos extraordinários, ainda que desprovidos de efeito suspensivo. A presunção de inocência não se esvazia progressi­ vamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, pois só deixa de subsistir quando resultar configurado o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não há, portanto, margem exegética para que o art. 5o, inciso LVII, da Constituição Federal, seja interpretado no sen­ tido de se admitir a antecipação ficta do momento formativo da coisa julgada penal de modo a con­ cluirmos que o acusado é presumido inocente (ou não culpável) tão somente até o esgotamento da instância nos Tribunais de Apelação.

Por mais que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, n. 2)38 es­ tenda o princípio da presunção de inocência até a comprovação legal da culpa, o que ocorre com a prolação de acórdão condenatório no julgamento de um recurso - lembre-se que a mesma Conven­ ção Americana assegura o direito ao duplo grau de jurisdição (art. 8o, § 2o, “h”) -, não se pode perder de vista que a Constituição Federal é categórica ao afirmar que somente o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória poderá afastar o estado inicial de não culpabilidade de que todos gozam. Seu caráter mais amplo deve prevalecer, portanto, sobre o teor da Convenção Americana de Direitos Humanos, assegurando-se, assim, a máxima efeti­ vidade da garantia constitucional da presunção de inocência. De fato, a própria Convenção Americana prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentido de restringir ou limi­ tar a aplicação de normas mais amplas que existam no direito interno dos países signatários (art. 29, b). Em consequência, deverá sempre prevalecer a disposição mais favorável (princípio pro hominé). Não bastasse a Constituição Federal, é fato que a legislação infraconstitucional também não dá aco­ lhida à nova orientação dos Tribunais Superiores. Explica-se: apesar de o art. 637 do CPP autorizar a execução provisória de acórdão condenatório pelo fato de os recursos extraordinários não serem dotados de efeito suspensivo, este dispositivo foi 38. "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".

tacitamente revogado pela Lei n° 12.403/11, que conferiu nova redação ao art. 283 do CPP. O art. 283 do CPP, mesmo após a alteração promovida pelo Pacote Anticrime, é categórico ao estabelecer as hipóteses em que pode haver restri­ ção à liberdade de locomoção no processo penal: a) prisão em flagrante39 e prisão cautelar (leia-se, temporária e preventiva): são as únicas espécies de prisão cautelar passíveis de decretação no curso da investigação ou do processo; b) prisão penal (carcer ad poenam)'. a prisão penal só pode ser objeto de execução com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Há, portanto, um requisito de na­ tureza objetiva para o início do cumprimento da reprimenda penal, qual seja, a formação da coisa julgada, que é obstada pela interposição de todo e qualquer recurso, seja ele ordinário ou extraordi­ nário, seja ele dotado de efeito suspensivo ou não. Logo, o caráter “extraordinário” dos recursos es­ pecial e extraordinário, bem como o fato de serem recursos de fundamentação vinculada e limitados ao reexame de questões de direito não é um argu­ mento legítimo para sustentar a execução antecipa­ da da pena. Isso porque o caráter “extraordinário” desses recursos não afeta o conceito de trânsito em julgado expressamente estabelecido pelo art. 283 do CPP como marco final do processo para fins de execução da pena.

Por mais que as Leis 12.403/11 e 13.964/19, responsáveis pelas sucessivas mudanças da reda­ ção do art. 283 do CPP, não tenham feito qualquer referência ao art. 637 do CPP, é no mínimo estra­ nho admitirmos que um dispositivo legal autoriza a execução da pena tão somente com o trânsito em julgado de sentença condenatória, enquanto outro a autoriza pelo fato de não outorgar efeito suspensivo aos recursos extraordinários. É bem verdade que o art. 9o da LC 95/98, com redação dada pela LC n° 107/01, determina que a cláusula de revogação de lei nova deve enumerar, expressamente, as leis e disposições revogadas, o que não ocorreu na hipó­ tese sob comento. No entanto, a falta de técnica por parte do legislador - que, aliás, tem se tornado uma péssima rotina -, não pode justificar a convivência de normas jurídicas incompatíveis entre si, tratando do conceito de execução da pena de maneira con­ flitante. Por consequência, como se trata de norma posterior que tratou da matéria em sentido diverso, parece-nos que a nova redação do art. 283 do CPP 39. Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. Há quem entenda que se trata de medida pré-cautelar, e não uma espécie de prisão cautelar. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao Título 6, Capítulo IV, item 4.

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conferida pelas Leis 12.403/11 e 13.964/19 revogou tacitamente o art. 637 do CPP, nos termos do art. 2o, § Io, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Não se pode objetar que o novo CPC teria re­ vogado tacitamente o art. 283 do CPP, por prever expressamente que os recursos extraordinários não são dotados de efeito suspensivo (NCPC, arts. 995 e 1.029, § 5o). A uma porque o novo CPC só pode ser aplicado no âmbito processual penal de maneira subsidiária e supletiva, ou seja, quando restar evi­ denciada a existência de uma lacuna. Como não há qualquer omissão no âmbito do CPP, que prevê expressamente que a execução da pena pressupõe o trânsito em julgado (art. 283), não se pode admitir a revogação de seus dizeres por uma norma genérica prevista no novo CPC. Não bastasse isso, é fato que o art. 283 do CPP consiste em mera reprodução da cláusula pétrea do art. 5o, LVII, da Constituição Federal, cujo núcleo essencial jamais poderia sofrer qualquer restrição, quer por parte de uma lei ordi­ nária (Lei n° 13.105/15 - NCPC), quer pelo próprio Poder Constituinte.

Com base nesses argumentos, o Supremo Tri­ bunal Federal voltou a apreciar a matéria em no­ vembro de 2019. Porém, dessa vez, e novamente por maioria (6 a 5), julgou procedentes pedidos formu­ lados nas Ações Dedaratórias de Constitucionalidade 43/DF, 44/DF e 54 (Rei. Min. Marco Aurélio, j. 07/11/2019) para assentar a constitucionalidade do art. 283 do CPP, que condiciona o início do cum­ primento da pena ao trânsito em julgado do título condenatório. Como consequência, determinou a suspensão imediata de toda e qualquer execução provisória de pena cuja decisão a encerrá-la ain­ da não tivesse transitado em julgado. Desse modo, determinou a libertação daqueles que tenham sido presos, ante exame de apelação, reservando-se o re­ colhimento aos casos verdadeiramente enquadráveis no art. 312 do CPP, sem prejuízo, ademais, de implementação das cautelares diversas da prisão. Prevaleceu o voto do Min. Marco Aurélio (Relator), que foi acompanhado pelos ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli. Preponderou o entendimento no sentido de que, ao editar o art. 283 do CPP por meio da Lei 12.403/2011 - a decisão em questão foi profe­ rida antes da vigência da Lei n. 13.964/19 -, o Poder Legislativo teria se limitado a concretizar, no campo do processo, garantia explícita consti­ tucional, adequando-se à óptica então assentada pelo próprio STF no julgamento do HC 84.078,

julgado em 5 de fevereiro de 2009, segundo a qual “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”. Logo, não seria possível a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo que sim­ plesmente reproduz o texto da Constituição Fe­ deral. O princípio da não culpabilidade é garantia vinculada, pelo art. 5o, LVII, da CF, à preclusão, de modo que a constitucionalidade do art. 283 do CPP não comporta questionamentos. O preceito consiste em reprodução de cláusula pétrea cujo núcleo essencial nem mesmo o poder constituinte derivado estaria autorizado a restringir. Coloca-se, enfim, o trânsito em julgado como marco seguro para a severa limitação da liberdade, ante a possibilidade de reversão ou atenuação da con­ denação nas instâncias superiores. Não podemos negar que fortes razões de ín­ dole social, ética e cultural amparem seriamente a necessidade de que sejam buscados desenhos institucionais e mecanismos jurídico-processuais cada vez mais aptos a responder, com eficiência, à exigência civilizatória que é o combate à impuni­ dade, verdadeira desgraça que assola nosso país. No entanto, pelo menos do ponto de vista normativo-constitucional atualmente em vigor - cuja observância irrestrita também traduz em si mesma uma exigência civilizatória -, não há como afas­ tarmos a necessidade do trânsito em julgado para a execução de uma pena. Portanto, a nosso juízo, a solução para o caos do sistema punitivo brasi­ leiro deve passar por uma mudança constitucional ou legislativa - e não jurisprudencial, como feita pelo STF -, para que seja antecipado o momento do trânsito em julgado de acórdãos condenatórios proferidos pelos Tribunais de 2a instância, hipótese em que os recursos extraordinários obrigatoria­ mente teriam que ter sua natureza jurídica alterada para sucedâneos recursais externos.40

De todo modo, pelo menos enquanto não so­ brevêm essa mudança legislativa - se é que um dia virá caberá aos Tribunais maior rigor na verificação de eventuais excessos por parte da defesa no tocante ao exercício abusivo do direito de recorrer. Em outras palavras, quando restar evidenciado o intuito meramente protelatório dos recursos, apenas para impedir o exaurimento da prestação jurisdicional e o consequente início do 40. A expressão "sucedâneos recursais", introduzida por Frederico Marques (Instituições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, v. 4, p. 377 e segs.), ora é utilizada para identificar o conjunto de meios não recursais de impugnação, ora é utilizada em acepção estrita, para referir apenas aos meios de impugnação que nem são recurso nem são ação autônoma.

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cumprimento da pena, incumbe aos Tribunais de­ terminar o imediato início da execução mesmo antes do trânsito em julgado, haja vista o exercício irregular e abusivo do direito de defesa e do duplo grau de jurisdição e a consequente violação ao princípio da cooperação, previsto no art. 6o do novo CPC, ao qual também se sujeitam as partes, tudo isso sem prejuízo da fixação de multa por litigância de má-fé.41 Nessa linha, como já havia se pronunciado o Supremo em momento anterior ao HC 126.292, “a reiteração de embargos de decla­ ração, sem que se registre qualquer dos seus pres­ supostos, evidencia o intuito meramente protelatório. A interposição de embargos de declaração com finalidade meramente protelatória autoriza o imediato cumprimento da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da publicação do acórdão”.42 Daí a importância, aliás, da nova causa suspensiva da prescrição, introduzida pelo Pacote Anticrime no art. 116, inciso III, do Código Penal, segundo o qual antes de passar e julgado a sentença final, a prescrição não corre na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Supe­ riores, quando inadmissíveis. Com aplicação restri­ ta aos crimes cometidos após a vigência da Lei n. 13.964/19 (23 de janeiro de 2020), o legislador passa a “punir” o exercício abusivo do direito de recorrer com a suspensão da prescrição nas duas hipóteses aí citadas. A despeito da expressão dúbia constante do novo dispositivo - inadmissíveis -, queremos crer que se refere às hipóteses em que tais recursos não forem conhecidos, e não quando forem improvidos, sob pena de evidente violação ao direito de recorrer.

41. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao título atinente aos "Recursos", mais precisamente ao item 2 ("Natureza jurídica dos recursos"). 42. STF, 1a Turma, RMS 23.841 AgR-ED-ED/DF, Rei. Min. Eros Grau, j. 18/12/2006, DJ 16/02/2007. No sentido de que a utilização indevida das espécies recursais, consubstanciada na interposição de inúmeros

recursos contrários à jurisprudência como mero expediente protelatório, desvirtua o próprio postulado constitucional da ampla defesa: STF, 2aTurma, Al 759.450 ED/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 01/12/2009, DJe 237 17/12/2009; STF, Pleno, AO 1.046 ED/RR, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 28/11/2007, DJe 31 21/02/2008. Para o STJ, quando verificada a opo­ sição de recursos manifestamente protelatórios apenas para se evitar o exaurimento da prestação jurisdicional, tem sido admitida a baixa imediata dos autos, para o início da execução penal: STJ, 5a Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1,142.020/PB, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia

Filho, j. 07/10/2010, DJe 03/11/2010. E ainda: STJ, 5a Turma, EDcl nos

EDcl no AgRg no Ag 862.591/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/09/2009, DJe 05/10/2009.0 abuso do direito de recorrer no processo penal, com o escopo de obstar o trânsito em julgado da condenação e, por con­ sequência, de se alcançar a prescrição da pretensão punitiva, autoriza inclusive a determinação monocrática de baixa imediata dos autos por Ministro de Tribunal Superior, independentemente de publicação da decisão. Nessa linha: STF, Pleno, RE 839.163 QO/DF, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 05/11/2014.

3.1.4.3. (Des)necessidade do trânsito em jul­ gado para fins de execução da pena restritiva de direitos À época em que o Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimento acerca da possibilidade de execução provisória da pena privativa de liberdade, admitindo-a a partir do esgotamento dos recursos ordinários junto aos Tribunais de Apelação (HC 126.292/SP e ARE 964.246/SP), surgiu acirrada controvérsia acerca da (im) possibilidade de apli­ cação de idêntico raciocínio em relação às penas restritivas de direitos.

De um lado, parte da doutrina passou a ad­ mitir a execução provisória de penas restritivas de direitos, sobretudo nas hipóteses em que restasse comprovado o intuito meramente protelatório do acusado (ou de seu defensor) no exercício do direito recursal, buscando tão somente o retardamento do trânsito em julgado da condenação.

Em sentido diverso, todavia, era firme o en­ tendimento, sobretudo jurisprudencial, no sentido de que a execução das penas restritivas de direitos estaria condicionada ao trânsito em julgado da sen­ tença condenatória. Isso porque o art. 147 da LEP é explícito nesse sentido, senão vejamos: “Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restri­ tiva de direitos, o juiz de execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promover a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-las a particulares”. Logo, considerando-se que o Supremo Tribunal Federal havia admitido tão somente a execução provisória da pena priva­ tiva de liberdade no julgamento do HC 126.292/ SP e do ARE 964.246/SP, nada dispondo sobre as penas restritivas de direitos, revelar-se-ia indevida qualquer tipo de “interpretação conforme”, ou de “inconstitucionalidade por arrastamento”, para fins de se negar vigência ao texto expresso do art. 147 da LEP, até mesmo porque, ao tempo em que vigorava o entendimento de ser possível a execução provisória da pena (até 05/02/2009, com o julgamento do HC 84.078/MG), como a partir da decisão proferida nos precedentes acima citados, a Suprema Corte não a autorizava para as penas restritivas de direito. É exa­ tamente nesse sentido, aliás, o teor da súmula n. 643 do STJ (“A execução da pena restritiva de direitos depende do trânsito em julgado da condenação”).43

43. STJ, 3a Seção, j. 10.02.21, DJe 17.02.21. No mesmo contexto: STJ, 3a Seção, AgRg no HC 435.092/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 24.10.2018, DJe 26.11.2018; STJ, 3a Seção, Embargos de Divergência em REsp n. 1.619.087/SC, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 14.06.2017; STJ, 3a Seção, AgRg nos Embargos de Divergência em REsp n. 1.699.768/SP, Rei. Min.

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Toda essa controvérsia chega ao fim com a mudança da orientação jurisprudencial do Supremo Tribu­ nal Federal em relação à possibilidade de execução provisória da pena privativa de liberdade. De fato, a partir do momento em que a Suprema Corte julgou procedente os pedidos formulados nas ADCs 43,44 e 54 (Rei. Min. Marco Aurélio, j. 07.11.2019), para fins de declarar a constitucionalidade do art. 283 do CPP e condicionar o cumprimento da pena privati­ va de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória, tal qual preconizado pelo art. 5o, LVII, da Constituição Federal, seria ilógico não aplicar a mesma sistemática às penas restritivas de direitos, sob pena de patente violação não apenas à regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência, mas também ao próprio princípio da isonomia, porquanto dar-se-ia tratamento diverso ao condenado a depender da espécie de pena que lhe fosse aplicada.

3.1.4.4. (Des)necessidade do trânsito em julga­ do de sentença penal condenatória para fins de reconhecimento, no âmbito administrativo carcerário, de falta grave decorrente do cometimento de fato definido como crime doloso Nos exatos termos do art. 52, caput, Ia parte, da LEP, a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave. Como o dispositivo não faz qualquer ressalva, o ideal é concluir que este regramento é aplicável tanto para os condenados a pena privativa de liberdade quanto para aqueles subme­ tidos a penas restritivas de direitos. O dispositivo deixa evidente que somente o cometimento de cri­ me de natureza dolosa terá o condão de caracterizar falta grave. Por consequência, a prática de crime culposo não está abrangida pelo art. 52, caput, da LEP. De seu turno, o art. 118, I, da LEP, preceitua que a execução da pena privativa de liberdade fica­ rá sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado praticarfato definido como crime doloso ou falta grave. Há controvérsias acerca da necessidade do trânsito em julgado de sentença penal condenatória no processo penal instaurado para apuração desse crime doloso como condição sine qua non para o reconhecimento da falta grave (ou para fins de se determinar a regressão). De um lado, há quem en­ tenda que, por força do princípio da presunção de inocência e da regra de tratamento que dele deriva, Nefi Cordeiro, j. 13.03.2019; STJ, 3a Seção, AgRg no HC 435.092/SP, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 24.10.2018, DJe 26.11.2018.

não se admite o reconhecimento dessa falta grave, ou a regressão, sem o anterior trânsito em julgado da sentença condenatória no processo penal instau­ rado para apuração desse fato definido como crime doloso. Prevalece, todavia, o entendimento contrário. Ora, fosse exigido o trânsito em julgado, reduzir-se-ia a um nada a efetividade do processo de execução criminal, haja vista o lapso temporal demandado para a solução definitiva do processo criminal ins­ taurado para apuração do novo crime. Por isso, o ideal é concluir que a LEP não exige a condenação irrecorrível do indivíduo para fins de reconheci­ mento da falta grave, ou de modo a ser determinada a regressão de regimes. A prática de fato definido como crime doloso no curso da execução penal é suficiente, de per si, para a aplicação das respecti­ vas sanções disciplinares ao apenado. Com efeito, trata-se de medida de caráter administrativo que, se tiver de esperar um processo penal com trânsito em julgado para afirmar, em um contexto de cumpri­ mento de pena, que houve a prática da falta grave, o sentido do sistema disciplinar tornar-se-ia inócuo, mormente porque a punição disciplinar muitas ve­ zes afigurar-se-ia inexequível, já que possivelmente exaurido o procedimento executório.44

Não se pode, portanto, confundir a necessidade do trânsito em julgado da condenação criminal para se superar a presunção de não culpabilidade e dar início ao cumprimento da pena (STF, ADCs 43, 44 e 54), com a necessidade do trânsito em julgado de condenação criminal no juízo de conhecimento para fins de reconhecimento de falta grave no curso da execução penal. Diante da dinamicidade da fase executiva e da necessidade de se assegurar a ordem no estabelecimento prisional, a decisão do juízo da execução, proferida após apuração de falta grave efe­ tuada de modo válido, há de ser considerada apta a ensejar a imposição da respectiva sanção discipli­ nar, sem prejuízo, obviamente, do direito recursal do apenado. Por outro lado, inexiste óbice ao apro­ veitamento de sentença proferida no processo penal de conhecimento, após regular instrução criminal, com observância do contraditório e da ampla defesa, pelo juízo da execução penal para o reconhecimento de falta grave. Esse título, diversamente dos autos de prisão em flagrante, de inquérito policial ou das petições iniciais dos processos criminais, supre a 44. STJ, 3a Seção, REsp 1.336.561/RS, Rei. Min. Maria Thereza de As­ sis Moura, j. 25/09/2013, DJe 01/04/2014; STF, Ia Turma, HC 110.881/MT, Rei. Min. Rosa Weber, j. 20/11/2012, DJe 154 07/08/2013; STF, 2a Turma, HC 97.218/RS, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 12/05/2009, DJe 99 28/05/2009; STJ, 6a Turma, HC 192.813/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 17/05/2011, DJe 01/06/2011.

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exigência de instrução perante autoridade adminis­ trativa ou judicial no âmbito executivo, autorizando a consequente aplicação das sanções disciplinares pela autoridade judiciária competente para decidir questões relativas à execução penal. Corroborando esse entendimento, eis o teor da Súmula n. 526 do STJ: “O reconhecimento de falta grave decorrente do cometimento de fato definido como crime doloso no cumprimento da pena pres­ cinde do trânsito em julgado de sentença penal con­ denatória no processo penal instaurado para apu­ ração do fato”.45 Na mesma linha, confira-se a Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 758: “O reconhecimento de falta grave consistente na prá­ tica de fato definido como crime doloso no curso da execução penal dispensa o trânsito em julgado da condenação criminal no juízo do conhecimento, desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra com observância do devido processo legal, do con­ traditório e da ampla defesa, podendo a instrução em sede executiva ser suprida por sentença criminal condenatória que verse sobre a materialidade, a au­ toria e as circunstâncias do crime correspondente à falta grave”.46

3.2. Princípio do contraditório De acordo com o art. 5o, inciso LV, da Consti­ tuição Federal, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegu­ rados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Na clássica lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, sempre se compreendeu o princípio do contraditório como a ciência bilateral dos atos ou termos do processo e a possibilidade de contrariá-los.47 De acordo com esse conceito, o núcleo fun­ damental do contraditório estaria ligado à discussão dialética dos fatos da causa, devendo se assegurar a ambas as partes, e não somente à defesa, a oportuni­ dade de fiscalização recíproca dos atos praticados no curso do processo. Eis o motivo pelo qual se vale a doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubs­ tanciada pela expressão em latim audiatur et altera pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam dois, portanto, os elementos do contraditório: a) di­ reito à informação; b) direito de participação. O 45. Tese de Recurso Especial fixada no tema n. 655. Paradigma: STJ,

3a Seção, REsp 1.336.561 -RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 25.09.2013.

contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação a atos desfavoráveis.

Como se vê, o direito à informação funciona como consectário lógico do contraditório. Não se pode cogitar da existência de um processo penal eficaz e justo sem que a parte adversa seja cientifi­ cada da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária. Daí a importância dos meios de comunicação dos atos processuais: citação, intima­ ção e notificação. Não por outro motivo, de acordo com a súmula 707 do Supremo Tribunal Federal, “constitui nulidade a falta de intimação do denuncia­ do para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”. Também deriva do contraditório o direito à participação, aí compreendido como a possibilidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contra­ riedade à pretensão da parte contrária.

Pela concepção original do princípio do con­ traditório, entendia-se que, quanto à reação, bastava que a mesma fosse possibilitada, ou seja, tratava -se de reação possível. No entanto, a mudança de concepção sobre o princípio da isonomia, com a superação da mera igualdade formal e a busca de uma igualdade substancial, produziu a necessidade de se igualar os desiguais, repercutindo também no âmbito do princípio do contraditório. O contradi­ tório, assim, deixou de ser visto como uma mera possibilidade de participação de desiguais para se transformar em uma realidade. É o que se denomina contraditório efetivo e equilibrado. Na dicção de Badaró, houve, assim, uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Segundo o autor, “quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibili­ dade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em igualdade de condições. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador”.48

Notadamente no âmbito processual penal, não basta assegurar ao acusado apenas o direito à in­ formação e à reação em um plano formal, tal qual acontece no processo civil. Estando em discussão a liberdade de locomoção, ainda que o acusado não tenha interesse em oferecer reação à pretensão acusatória, o próprio ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade de assistência técnica de um de­ fensor. Nesse contexto, dispõe o art. 261 do CPP

46. Paradigma: STF, Pleno, RE 776.823/RS, Rei. Min. Edson Fachin, j. 04.12.2020.

47. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Editora Re­ vista dos Tribunais, 1973. p. 82.

48. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008. Tomo 1. p. 1-36.

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que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. E não se deve contentar com uma atuação meramente formal desse defensor. Basta perceber que, dentre as atri­ buições do juiz-presidente do júri, o CPP elenca a possibilidade de nomeação de defensor ao acusado quando considerá-lo indefeso (CPP, art. 497, V).49

Portanto, pode-se dizer que se, em um primeiro momento, o contraditório limitava-se ao direito à informação e à possibilidade de reação. A partir dos ensinamentos do italiano Elio Fazzalari, o contra­ ditório passou a ser analisado também no sentido de se assegurar o respeito à paridade de tratamento (par conditio ou paridade de armas).

Prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a observância do contradi­ tório só é obrigatória, no processo penal, na fase processual, e não na fase investigatória. Isso porque o dispositivo do art. 5o, LV, da Carta Magna, faz menção à observância do contraditório em processo judicial ou administrativo. Logo, considerando-se que o inquérito policial é tido como um procedi­ mento administrativo destinado à colheita de ele­ mentos de informação quanto à existência do crime e quanto à autoria ou participação, não há falar em observância do contraditório na fase preliminar de investigações.50 Por força do princípio ora em análise, a pa­ lavra prova só pode ser usada para se referir aos elementos de convicção produzidos, em regra, no curso do processo judicial, e, por conseguinte, com a necessária participação dialética das partes, sob o manto do contraditório e da ampla defesa. Essa estrutura dialética da produção da prova, que se ca­ racteriza pela possibilidade de indagar e de verificar os contrários, funciona como eficiente mecanismo para a busca da verdade. De fato, as opiniões con­ trapostas das partes adversas ampliam os limites da cognição do magistrado sobre os fatos relevantes para a decisão da demanda e diminuem a possibi­ lidade de erros.

A prova há de ser produzida não só com a par­ ticipação do acusador e do acusado, como também mediante a direta e constante supervisão do órgão 49. Com esse entendimento: TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 45. 50. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendi­ mento no sentido de que o inquérito policial é peça meramente infor­

mativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal. Nessa linha: STF, 2a Turma, HC 99.936/CE, Rei. Min. Ellen Gracie, DJe 232 10/12/2009.

Em sentido semelhante: STF, 2a Turma, HC 83.233/RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 19.03.2004.

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julgador. De fato, com a inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal, o juiz que presidir a instrução deverá proferir a sentença (CPP, art. 399, § 2o, com redação dada pela Lei n° 11.719/08). Nesse sentido, foi bastante incisiva a Lei n° 11.690/08, dando nova redação ao art. 155, caput, do CPP: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditó­ rio judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhi­ dos na investigação, ressalvadas as provas cautela­ res, não repetíveis e antecipadas”. Impõe-se, pois, a observância do contraditório ao longo de toda a persecutio criminis in iudicio, como verdadeira pe­ dra fundamental do processo penal, contribuindo para o acertamento do fato delituoso. Afinal, quanto maior a participação dialética das partes, maior é a probabilidade de aproximação dos fatos e do direito aplicável, contribuindo de maneira mais eficaz para a formação do convencimento do magistrado.51

3.2.1. Contraditório para a prova e contraditó­ rio sobre a prova O contraditório para a prova (ou contraditório real) demanda que as partes atuem na própria forma­ ção do elemento de prova, sendo indispensável que sua produção se dê na presença do órgão julgador e das partes. É o que acontece com a prova testemunhai colhida em juízo, onde não há qualquer razão cautelar a justificar a não intervenção das partes quando de sua produção, sendo obrigatória, pois, a observância do contraditório para a realização da prova. O contraditório sobre a prova, também conhe­ cido como contraditório diferido ou postergado, traduz-se no reconhecimento da atuação do contra­ ditório após a formação da prova. Em outras palavras, a observância do contraditório é feita posteriormente, dando-se oportunidade ao acusado e a seu defensor de, no curso do processo, contestar a providência cautelar, ou de combater a prova pericial feita no curso do inquérito. É o que acontece, por exemplo, com uma interceptação telefônica judicialmente au­ torizada no curso das investigações. Nessa hipótese, não faz sentido algum querer intimar previamente o investigado para acompanhar os atos investigatórios. Enquanto a interceptação estiver em curso, não há falar, portanto, em contraditório real. Porém, uma vez finda a diligência, e juntado aos autos o laudo de degravação e o resumo das operações realizadas 51. Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 34. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. ônus da prova no

processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 116.

TÍTULO 1

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(Lei n° 9.296/96, art. 6o), deles se dará vista à Defesa, a fim de que tenha ciência das informações obtidas através do referido procedimento investigatório, pre­ servando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa. Nesse caso, não há falar em violação à garantia da bilateralidade da audiência, porquanto o exercício do contraditório será apenas diferido para momento ulterior à decisão judicial.52

3.3. Princípio da ampla defesa De acordo com o art. 5o, LV, da Magna Carta, “aos litigantes, em processo judicial ou administra­ tivo, e aos acusados em geral são assegurados o con­ traditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Sob a ótica que privilegia o interesse do acusado, a ampla defesa pode ser vista como um direito; todavia, sob o enfoque publicístico, no qual prepondera o interesse geral de um processo justo, é vista como garantia. O direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório. A defesa garante o con­ traditório e por ele se manifesta. Afinal, o exercício da ampla defesa só é possível em virtude de um dos elementos que compõem o contraditório - o direito à informação. Além disso, a ampla defesa se exprime por intermédio de seu segundo elemen­ to: a reação. Apesar da influência recíproca entre o direito de defesa e o contraditório, os dois não se confundem. Com efeito, por força do princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posições antagônicas, uma delas obriga­ toriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório). Como se vê, a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, inti­ mamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa concluir que uma derive da outra.53 O contraditório deve ser aplicado em relação a ambas as partes, além da obrigatória observância pelo próprio magistrado. Logo, se o acusador não for comunicado em relação a determinado ato processual, ou se lhe for negado o direito de reagir à determinada prova ou alegação da defesa, conquanto não se possa falar em violação ao direito de defesa, certamente terá havido violação ao contraditório, pois este se manifesta em relação a

ambas as partes, ao passo que a defesa diz respeito apenas ao acusado.54 Quando a Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral a ampla defesa, entende-se que a proteção deve abranger o direito à defesa téc­ nica (processual ou específica) e à autodefesa (ma­ terial ou genérica), havendo entre elas relação de complementariedade. Há entendimento doutrinário no sentido de que também é possível subdividir a ampla defesa sob dois aspectos: a) positivo: realiza-se na efetiva utilização dos instrumentos, dos meios e modos de produção, certificação, esclarecimento ou confrontação de elementos de prova que digam com a materialidade da infração criminal e com a autoria; b) negativo: consiste na não produção de elementos probatórios de elevado risco ou poten­ cialidade danosa à defesa do réu.55

Por força da ampla defesa, admite-se que o acu­ sado seja formalmente tratado de maneira desigual em relação à acusação, delineando o viés material do princípio da igualdade. Por consequência, ao acu­ sado são outorgados diversos privilégios em detri­ mento da acusação, como a existência de recursos privativos da defesa, a proibição da reformatio in pejus, a regra do in dúbio pro reo, a previsão de revi­ são criminal exclusivamente pro reo, etc., privilégios estes que são reunidos no princípio do favor rei.56

3.3.1. Defesa técnica (processual ou específica) Defesa técnica é aquela exercida por profissio­ nal da advocacia, dotado de capacidade postulatória, seja ele advogado constituído, nomeado, ou defen­ sor público. Para ser ampla, como impõe a Cons­ tituição Federal, apresenta-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva, não sendo possível que alguém seja processado sem que possua defensor.

3.3.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciável A defesa técnica é indisponível e irrenunciá­ vel. Logo, mesmo que o acusado, desprovido de ca­ pacidade postulatória, queira ser processado sem defesa técnica, e ainda que seja revel, deve o juiz providenciar a nomeação de defensor. Exatamen­ te em virtude disso, dispõe o art. 261 do CPP que 54. Nessa linha: BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação

e sentença. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 37. 52. TUCCI.0p. cit. p. 162/163. 53. Com esse entendimento: FERNANDES, Antônio Scarance. Proces­ so penal constitucional. 6a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 253.

55. AZEVEDO, David Teixeira de. O interrogatório do réu e o direito ao silêncio. RT, São Paulo, v. 682, p. 285-298, ago. 1992. p. 290. 56. Para mais detalhes acerca do princípio do favor rei, consultar co­ mentários ao Título 6 ("Provas"), mais precisamente no Capítulo I ("Teoria geral das provas"), item 6.6. ("Princípio do favor rei").

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“nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. Não se admite, assim, processo penal sem que a defesa técnica seja exercida por profissional da advocacia. Caso o processo tenha curso sem a nomeação de defensor, seja porque o acusado não constituiu ad­ vogado, seja porque o juiz não lhe nomeou advo­ gado dativo ou defensor público, o processo estará eivado de nulidade absoluta, por afronta à garantia da ampla defesa (CPP, art. 564, III, “c”). Nessa li­ nha, segundo a súmula n° 708 do Supremo, “é nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”.57 Considerando que, a fim de se assegurar a pa­ ridade de armas, a presença de defensor técnico é obrigatória no processo penal, especial atenção deve ser dispensada à Convenção Americana sobre Di­ reitos Humanos. Isso porque, de acordo com o Pac­ to de São José da Costa Rica, toda pessoa acusada de delito tem direito de se defender pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha (CADH, art. 8, n° 2, “d”). Logicamente, se o acusa­ do é profissional da advocacia, poderá exercer sua própria defesa técnica. Todavia, não o sendo, sua defesa técnica deverá ser exercida por profissional da advocacia legalmente habilitado nos quadros da OAB.58 Para que o próprio acusado possa exercer sua defesa técnica, não basta que seja dotado de ca­ pacitação técnica. O acusado deve ser advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. Por isso, a despeito do evidente conhe­ cimento jurídico de que são dotados, se acusados criminalmente, juizes e/ou promotores não podem exercer sua defesa técnica. Nesse sentido, como já se pronunciou o Supremo, “nas ações penais ori­ ginárias, a defesa preliminar (L. 8.038/90, art. 4o), é atividade privativa dos advogados. Os membros do Ministério Público estão impedidos de exercer 57. No sentido da nulidade absoluta de sessão de julgamento de ape­ lação criminal realizada sem a presença de defensor constituído, porquan­ to, após a apresentação das razões de apelação, o advogado constituído teria renunciado aos poderes que lhe foram conferidos, sem que o juiz tivesse notificado o acusado para a constituição de novo defensor, como

demanda a súmula n° 708 do STF: STF, 2aTurma, HC 94.282/GO, Rei. Min.

Joaquim Barbosa, j. 03/03/2009, DJe 75 23/04/2009.

58. Nesse sentido: STF, 1a Turma, HC 102.019/PB, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 17/08/2010, DJe 200 21/10/2010. Ainda no sentido de que o exercício da autodefesa pelo acusado deve se dar de forma com­ plementar à defesa técnica, e não de forma exclusiva, salvo em hipóteses excepcionais, como no caso da impetração de habeas corpus: STJ, 5aTur­ ma, HC 100.810/PB, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 29/04/2009, DJe 25/05/2009.

advocacia, mesmo em causa própria. São atividades incompatíveis (L. 8.906/94, art. 28)”.59

Se a defesa técnica deve ser exercida por pro­ fissional da advocacia, é evidente que não é possível a nomeação de estagiários para patrocinar causas criminais, já que tal providência é proibida pelo Es­ tatuto da OAB, notadamente quando desacompa­ nhado de advogado (Lei n° 8.906/94, art. 3o, § 2o).60 Com raciocínio semelhante, também não se ad­ mite que a defesa técnica seja exercida por advogado suspenso por ato disciplinar da Ordem dos Advo­ gados do Brasil. Considerada a indispensabilidade do advogado para a administração da justiça (CF, art. 133) e a necessidade de o mesmo atender as qualificações profissionais que a lei estabelecer (CF, art. 5o, XIII), se os atos processuais foram praticados por advogado que não estava legalmente habilitado a tanto, deve se reputar violado o direito à defesa plena, efetiva e real, que a Constituição Federal as­ segura a todos os acusados.61

A presença de advogado é imprescindível no processo criminal, mesmo no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Da análise da Lei 9.099/95 é fácil perceber que a presença de defensor é obrigatória em todos os momentos, seja na audiência preliminar (art. 72), na análise da proposta da transação penal (art. 76, § 3o), no curso do procedimento comum sumaríssimo (art. 81), seja no momento da proposta de suspensão condicional do processo (art. 89, § Io). Nesse ponto, especial atenção deve ser dispensada ao art. 10 da Lei n° 10.259/01, que dispõe sobre os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal. De acordo com o referi­ do dispositivo, as partes poderão designar, por escrito, representantes para a causa, advogado ou não. No que se refere aos processos de natureza cível, o Supremo Tribunal Federal já firmou o entendimento de que a imprescindibilidade de advogado é relativa, podendo, portanto, ser afastada pela lei em relação aos juizados especiais. Contudo, quanto aos processos de natureza criminal, em homenagem ao princípio da ampla de­ fesa, é imperativo que o réu compareça ao processo devidamente acompanhado de profissional habilitado 59. STF, 2aTurma, HC 76.671/RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, j. 09/06/1998, DJ 10/08/2000. 60. STF, 1a Turma, HC 89.222/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/09/2007, DJe 206 30/10/2008.

61. STF, 2aTurma, HC 85.717/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 09/10/2007. Informativo n° 483 do STF. Reconhecendo a nulidade de processo em virtude da ausência de defesa técnica pelo fato de os atos terem sido praticados por advogado cuja inscrição estava suspensa na OAB: STF, 1aTurma, HC 110.271/ES, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 07/05/2013, DJe 124 27/06/2013. Em sentido diverso, entendendo não haver nulidade em processo criminal no qual a defesa técnica foi exercida por advogado licenciado da OAB: STF, Ia Turma, HC 99.457/RS, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 13/10/2009, DJe 100 02/06/2010.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

a oferecer-lhe defesa técnica de qualidade, ou seja, de advogado devidamente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil ou defensor público. Este o motivo pelo qual o Supremo, no julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, fez interpreta­ ção conforme para excluir do âmbito de incidência do art. 10 da Lei 10.259/2001 os feitos de competência dos juizados especiais criminais da Justiça Federal.62

3.3.1.2. Direito de escolha do defensor Em virtude da relação de confiança que neces­ sariamente se estabelece entre o acusado e quem o defende, entende-se que um dos desdobramentos da ampla defesa é o direito que o acusado tem de escolher seu próprio advogado. Logo, não sendo possível ao defensor constituído assumir ou pros­ seguir no patrocínio da causa penal, incumbe ao juiz ordenar a intimação do réu para que este, que­ rendo, escolha outro advogado. Antes de realizada essa intimação - ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado - não é lícito ao juiz nomear de­ fensor dativo sem expressa aquiescência do réu.63 Tem o acusado, portanto, o direito de escolher seu próprio defensor, não sendo possível que o juiz substitua seu advogado constituído por outro de sua nomeação. A nomeação de defensor pelo juiz só po­ derá ocorrer nas hipóteses de abandono do processo pelo advogado constituído e desde que o acusado permaneça inerte, após ser instado a constituir novo defensor. Assim, se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação (CPP, art. 263, caput).

Supondo, então, que o advogado constituído do acusado tenha deixado de apresentar memoriais (CPP, art. 403, § 3o), não poderá o juiz, de plano, nomear advogado dativo ou defensor público para oferecer a referida peça. Antes, deve intimar o acu­ sado para que constitua novo advogado. Permane­ cendo o acusado inerte, e considerando a imprescindibilidade da apresentação dos memoriais para o exercício da ampla defesa, aí sim deverá o juiz nomear advogado dativo ou defensor público. Nesse sentido, aliás, a súmula 707 do Supremo preconi­ za que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso

interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo” (nosso grifo).64

Caso o acusado não tenha condições de contra­ tar um advogado, poderá se socorrer da Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, à qual incumbe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5o, LXXIV, da Constituição Federal. Caso não haja Defensoria Pública na comarca, in­ cumbe ao juiz a nomeação de advogado dativo para patrocinar a defesa do acusado.65

3.3.1.3. Defesa técnica plena e efetiva Para que seja preservada a ampla defesa a que se refere a Constituição Federal, a defesa técnica, além de necessária e indeclinável, deve ser plena e efetiva. No curso do processo, é necessário que se perceba efetiva atividade defensiva do advogado no sentido de assistir seu cliente. Esse o motivo pelo qual a Lei n° 10.792/03 acrescentou o parágrafo único ao art. 261 do CPP, de modo a exigir que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, seja sempre exercida por manifestação fundamen­ tada. Com efeito, de que adianta a presença física de defensor que não arrola testemunhas, que não faz reperguntas, que não oferece memoriais, ou que os apresenta sucintamente, sem análise da prova, em articulado que poderia ser utilizado em relação a qualquer processo criminal? Na verdade, em tal hipótese, haveria um profissional da advocacia for­ malmente designado para defender o acusado, mas a sua atuação seria tão precária que seria como se o acusado tivesse sido processado sem defesa téc­ nica. Em casos como este, recai sobre o Ministério Público e sobre o juiz o dever de fiscalizar a atuação defensiva do advogado, evitando-se, assim, possível caracterização de nulidade absoluta do feito, por violação à ampla defesa. 64. Nesse sentido: STJ, 5a Turma, HC 162.785/AC, Rei. Min. Napoleâo

62. STF, Pleno, ADI 3.168/DF, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 08/06/2006, DJe 72 02/08/2007.

Nunes Maia Filho, j. 13/04/2010, DJe 03/05/2010. Na mesma linha, re­ conhecendo a nulidade absoluta do feito em virtude da ausência de intimação do acusado para constituir novo defensor diante de renúncia apresentada pelo advogado constituído: STJ, 5a Turma, HC 132.108/PA, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 16/12/2010, DJe 07/02/2011. De maneira oposta, em caso concreto no qual, diante da renúncia do advogado constituído, fora nomeada a Defensoria Pública para apresentação de defesa prelimi­ nar, não restando evidenciada nos autos a ciência do acusado quanto à renúncia em questão, a despeito do comparecimento e participação de um novo advogado constituído à audiência de instrução e julgamento, a 6a Turma do STJ afastou o reconhecimento de qualquer nulidade, eis que não restou demonstrado qualquer prejuízo. Ou seja, concluiu que se trata de nulidade relativa. A propósito, confira-se: STJ, 6a Turma, HC 552.165/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 04.08.2020.

63. A propósito: STF, Ia Turma, HC 67.755/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 26/06/1990, DJ 11 /09/1992.

65. Para mais detalhes acerca das espécies de defensor (v.g., constituí­ do, público, dativo, etc.), consultar título atinente aos sujeitos do processo.

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Nesse sentido, a súmula 523 do STF dispõe que, “no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu”. Assim, caso haja falha na atuação do defensor, com a causação de prejuízo ao acusado, o processo deve ser anulado. Em outras palavras, a defesa não pode ser meramente formal, devendo ser adequadamente exercida.

Para que essa defesa seja ampla e efetiva, deve-se deferir ao acusado e a seu defensor tempo há­ bil para sua preparação e exercício. Entre as várias garantias que o devido processo legal assegura está o direito de dispor de tempo e facilidades neces­ sárias para preparar a defesa. Há de se assegurar ao acusado e a seu defensor o tempo e os meios adequados para a preparação da defesa. Apesar de não haver dispositivo expresso no CPP acerca do assunto, cuida-se de previsão comum nas declara­ ções internacionais de direitos humanos. De fato, de acordo com o art. 8o, n° 2, alínea “c”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92), ao acusado se assegura a concessão do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa. No mesmo sentido, vide art. 14, n° 3, “b”, do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos.66 Como destaca Gustavo Henrique Badaró, “conferir ao réu o direito de defesa, sem oferecer-lhe tempo suficiente para sua preparação é esvaziar tal direito. Deve haver um tempo razoável entre a comunica­ ção do ato em relação ao qual deverá ser exercida a defesa e o prazo final para tal exercício. Defesa sem tempo suficiente é ausência de defesa, ou, no mínimo, defesa ineficiente”.67

Obrigatoriamente, deve o defensor atuar em benefício do acusado, sob pena de considerá-lo in­ defeso. Isso, no entanto, não significa dizer que o de­ fensor deverá sempre e invariavelmente pedir a ab­ solvição do acusado. A depender das circunstâncias do caso concreto, esse pedido absolutório não será uma alternativa viável e tecnicamente possível. Basta imaginar, por exemplo, processo penal em que o réu tenha confessado a prática delituosa após a colhei­ ta de farta prova testemunhai o incriminando. Em tal hipótese, pedir a absolvição seria absolutamente inócuo. Porém, visando à melhora da situação do acusado, incumbe ao defensor buscar o reconheci­ mento de eventual causa de diminuição de pena, 66. Para mais detalhes acerca da (im) possibilidade de conversão da audiência de custódia em audiência una de instrução e julgamento, con­ sultar comentários à audiência de custódia no título atinente às medidas cautelares de natureza pessoal.

67. BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 38.

circunstância atenuante ou algum benefício legal para o cumprimento da sanção penal (v.g., regime aberto, substituição por pena restritiva de direitos, concessão do sursis, etc.), além do reconhecimento de possíveis nulidades. É perfeitamente possível que um mesmo advo­ gado patrocine a defesa técnica de dois ou mais acu­ sados, desde que não haja teses colidentes. Havendo teses antagônicas, a defesa técnica não poderá ser exercida por um mesmo advogado, porquanto ha­ verá, invariavelmente, prejuízo a um dos acusados. Logo, se um dos acusados nega sua participação no crime, enquanto o outro o incrimina em suas decla­ rações, a defesa de ambos não pode ser promovida pelo mesmo advogado, sob pena de nulidade do feito.68

3.3.2. Autodefesa (material ou genérica) Autodefesa é aquela exercida pelo próprio acu­ sado, em momentos cruciais do processo. Diferen­ cia-se da defesa técnica porque, embora não possa ser desprezada pelo juiz, é disponível, já que não há como se compelir o acusado a exercer seu direito ao interrogatório nem tampouco a acompanhar os atos da instrução processual. De modo a se assegurar o exercício da auto­ defesa, o acusado deve ser citado pessoalmente, pelo menos em regra. Caso o acusado não seja en­ contrado, e somente depois de esgotadas todas as diligências no sentido de localizá-lo, será possível sua citação por edital, com o prazo de 15 (quinze) dias. Daí dispor a súmula n° 351 do Supremo Tri­ bunal Federal que “é nula a citação por edital de réu preso na mesma unidade da federação em que o juiz exerce a sua jurisdição”. Ora, se o acusado estava preso, é dever do Estado ter conhecimento de sua localização, a fim de citá-lo pessoalmente. Se a citação foi feita por edital, deve ser considerada nula. Com a reforma processual de 2008, também foi introduzida no processo penal a possibilidade de citação por hora certa, se acaso verificado que o réu se oculta para não ser citado (CPP, art. 362).

Eventual ofensa ao direito do acusado de exer­ cer sua própria defesa é causa de nulidade abso­ luta por violação à ampla defesa. Assim, quando presente, deve o acusado ser interrogado, sob pena de nulidade do feito (CPP, art. 564, III, e, segunda parte). Também se afigura necessária a intimação do acusado para os atos processuais, para que possa 68. Com esse entendimento: STF, 1a Turma, HC 69.716/RS, Rei. Min. limar Galvão, j. 13/10/1992, DJ 18/12/92. Na mesma linha: STJ, 6aTurma, RHC 22.034/ES, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 19/08/2010, Informativo n° 443 do STJ.

1 TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

acompanhá-los, intimação esta que só não precisa ser feita quando for decretada sua revelia (art. 367). Ademais, também deve ser intimado pessoalmente das decisões para que, querendo, possa exercer o seu direito de recorrer pessoalmente (CPP, art. 577).

A autodefesa se manifesta no processo penal de várias formas: a) direito de audiência; b) direito de presença; c) capacidade postulatória autônoma do acusado.

3.3.2.I. Direito de audiência O direito de audiência pode ser entendido como o direito que o acusado tem de apresentar ao juiz da causa a sua defesa, pessoalmente. Esse direito se materializa através do interrogatório, já que é este o momento processual adequado para que o acusado, em contato direto com o juiz natural, possa trazer ao magistrado sua versão a respeito da imputação constante da peça acusatória.

Daí o entendimento hoje majoritário em tor­ no da natureza jurídica do interrogatório: meio de defesa. É verdade que, durante muito tempo, o interrogatório foi considerado meio de prova. A própria posição topográfica que o interrogatório ocupa no CPP, dentro do Capítulo III (“Do inter­ rogatório do acusado”) do Título VII (“Da prova”) reforçava esse entendimento. Além disso, antes da Lei n° 11.719/08 e da Lei n° 11.689/08, o interro­ gatório era o primeiro ato da instrução processual penal. Atualmente, no entanto, como o acusado não é obrigado a responder a qualquer indagação feita pelo magistrado processante em virtude do direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII), não podendo sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em virtude do exercício dessa especial prerrogativa, entende-se que o interrogatório se qualifica como meio de defesa. O interrogatório está relacionado, assim, ao direito de audiência, desdobramento da autodefe­ sa. Com a entrada em vigor da Lei n° 10.792/03, e, posteriormente, em virtude da reforma processual de 2008, já não há mais dúvidas quanto a sua natu­ reza jurídica. A presença obrigatória de advogado ao referido ato, introduzida no art. 185, caput, do CPP, pela Lei n° 10.792/03, e sua colocação ao final da instrução processual pela reforma processual de 2008 (CPP, art. 400, caput), possibilitando que o acusado seja ouvido após a colheita de toda a prova oral, reforçam esse entendimento.69 69. Considerando o interrogatório como meio de defesa: STF, 2a Turma, HC 94.601/CE, Rei. Min. Celso de Mello, j. 04/08/2009, DJe 171 10/09/2009. E ainda: STF, 2aTurma, HC 94.016/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 16/09/2008, DJe 38 26/02/2009.

3.3.2.2. Direito de presença Por meio do direito de presença, assegura-se ao acusado a oportunidade de, ao lado de seu defensor, acompanhar os atos de instrução, auxiliando-o na realização da defesa. Daí a importância da obrigató­ ria intimação do defensor e do acusado para todos os atos processuais. Afinal, durante a instrução crimi­ nal, podem ser prestadas declarações cuja falsidade ou incorreção só o acusado consiga detectar. Nesse caso, o acusado deve poder relatar de imediato tais falsidades ou incorreções ao seu defensor técnico, a fim de que este último tenha tempo hábil para explorá-las, durante a colheita da prova.

Se o direito de presença é um desdobramento da autodefesa, a qual é disponível, conclui-se que o comparecimento do réu aos atos processuais, em princípio, é um direito, e não um dever, sem embar­ go da possibilidade de sua condução coercitiva, caso necessário, por exemplo, para audiência de reconhe­ cimento, ato este que não está protegido pelo direito à não autoincriminação. Nem mesmo ao interroga­ tório estará o acusado obrigado a comparecer, até mesmo porque a Constituição Federal lhe assegura o direito ao silêncio. De todo modo, caso o acusado não compareça à audiência, a presença do defensor será sempre necessária e obrigatória, seja ele cons­ tituído, público, dativo ou nomeado para o ato.70 Não se trata, todavia, de um direito de natureza absoluta. Dentre os direitos fundamentais que po­ dem colidir com o direito de presença, legitimando sua restrição, encontram-se os direitos das testemu­ nhas e das vítimas à vida, à segurança, à intimidade e à liberdade de declarar, os quais se revestem de inequívoco interesse público, e cuja proteção é in­ discutível dever do Estado. Portanto, na hipótese de efetiva prática de atos intimidatórios, subentende-se que houve uma renúncia tácita ao direito de presen­ ça pelo acusado, pela adoção de comportamento incompatível com o exercício regular de um direito. Daí dispor o art. 217 do CPP que, se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconfe­ rência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Nesse caso de retirada do acusado da sala de audiência, deve o juiz manter todos os corolários da ampla defesa, assegurando a presença do defensor técnico 70. Nessa linha: STJ, 6a Turma, RESP n° 346.677/RJ, rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 30/09/2002.

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na audiência, bem como um canal de comunicação livre e reservada deste com o acusado.71

11.900/09, é perfeitamente possível a utilização da videoconferência.

Ainda em relação ao direito de presença, mui­ to se discute quanto à necessidade de deslocamen­ to do acusado preso para acompanhar a oitiva de testemunhas de acusação em carta precatória em unidade da Federação diversa daquela na qual ele se encontra recolhido. Há precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o acusado, em­ bora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se pro­ duzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. Seriam irrelevantes, então, eventuais alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou incon­ veniência de proceder à remoção de acusados presos em outras unidades da federação, porquanto razões de mera conveniência administrativa não poderiam se sobrepor ao direito de presença do acusado.72 Em sentido contrário, todavia, em julgados mais recen­ tes, ambas as Turmas do Supremo têm entendido que a alegação de necessidade da presença do réu em audiências deprecadas, estando ele preso, con­ figura nulidade relativa, devendo-se comprovar a oportuna requisição e também a presença de efetivo prejuízo à defesa. A propósito, eis o teor da Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 240: “Inexiste nulidade pela ausência, em oitiva de testemunha por carta precatória, de réu preso que não manifestou expressamente intenção de participar da audiên­ cia”.73 Assim, caso o pedido seja indeferido motivadamente pelo magistrado, diante das peculiaridades do caso concreto, em especial diante da periculosidade do réu, e da ausência de efetivo prejuízo, não há falar em nulidade do feito.74 De mais a mais, ante o teor do art. 185, §8°, do CPP, incluído pela Lei n.

33.2.3. Capacidade postulatória autônoma do acusado

71. Considerando lícita a retirada dos acusados da sala de audiências, se as testemunhas de acusação demonstram temor e receio em depor na presença dos réus: STF, 1a Turma, HC 86.572/PE, Rei. Min. Carlos Britto, j. 06/12/2005, DJ 30/03/2007 p. 76. E também: STF, 1a Turma, HC 86.711/GO, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 04/03/2006, DJ 16/06/2006; STF, 2aTur­ ma, HC 73.879/SP, Rei. Min. Francisco Rezek,j. 10/06/1996, DJ 11/04/1997.

72. STF, 1a Turma, HC 94.216/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 113 18/06/2009. No mesmo contexto: STF, 2a Turma, HC 93.503/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 02/06/2009, DJe 148 06/08/2009; STF, 2a Turma, HC 86.634/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 23/02/2007. Independentemente da aquiescência do defensor, o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal: STF, 2a Turma, HC 111,728/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 19/02/2013, DJe 161 16/08/2013. 73. Paradigma: STF, Pleno, RE 602.543 QO-RG, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 19.11.2009, DJ 26.02.2010. 74. STF, 1a Turma, HC 100.382/PR, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 08/06/2010, DJe 164 02/09/2010. Com o mesmo entendimento: STF, 2a

Turma, HC 93.598/SP, Rei. Min. Eros Grau, j. 27/04/2010, DJe 91 20/05/2010.

Quanto ao terceiro desdobramento da autode­ fesa, entende-se que, em alguns momentos especí­ ficos do processo penal, defere-se ao acusado capa­ cidade postulatória autônoma, independentemente da presença de seu advogado. É por isso que, no processo penal, o acusado pode interpor recursos (CPP, art. 577, caput), impetrar habeas corpus (CPP, art. 654, caput), ajuizar revisão criminal (CPP, art. 623), assim como formular pedidos relativos à exe­ cução da pena (LEP, art. 195, caput). Em tais situações, mesmo não sendo profissio­ nal da advocacia, a Constituição Federal e a legis­ lação ordinária conferem ao acusado capacidade postulatória autônoma, possibilitando que ele dê o impulso inicial ao recurso, às ações autônomas de impugnação ou aos procedimentos incidentais relativos à execução. Uma vez dado o impulso inicial pelo acusado, pensamos que, em seguida, e de modo a lhe assegurar a mais ampla defesa, há de ser garan­ tida a assistência de defensor técnico, possibilitando, a título de exemplo, a apresentação das respectivas razões recursais, etc. Essas manifestações do acusado não violam o disposto no art. 133 da Constituição Federal, que prevê a advocacia como função essencial à adminis­ tração da justiça. Deve se entender que, no processo penal, essas manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado não prejudicam a defe­ sa, apenas criando uma possibilidade a mais de seu exercício.

3.3.3. Ampla defesa no processo administrati­ vo disciplinar e na execução penal Dispondo a Constituição Federal que, aos liti­ gantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela ine­ rentes (CF, art. 5o, inciso LV), dúvidas não restam quanto à plena aplicação do direito de defesa e do contraditório no âmbito do processo administrativo disciplinar. Questiona-se, todavia, se seria necessá­ ria a atuação de advogado no processo administrati­ vo disciplinar, tal qual se faz necessário em processo judicial (CPP, art. 261, caput). Acerca do assunto, o Superior Tribunal de Jus­ tiça editou, inicialmente, a Súmula n. 343, segundo a qual é obrigatória a assistência de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar,

1 TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

de forma a assegurar a garantia constitucional do contraditório. Ocorre que, após a edição do referido verbete sumular, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de que, em relação às punições disciplinares, o exercício da ampla defesa abrange: a) o direito de informação sobre o objeto do processo: obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elemen­ tos dele constantes; b) o direito de manifestação: assegura ao defendente a possibilidade de se mani­ festar oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos contidos no processo; c) o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar: exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo para contemplar as razões apresentadas. Todavia, concluiu a Supre­ ma Corte que não se faz necessária a presença de advogado no processo administrativo disciplinar.75 Exatamente em virtude dessa conclusão, foi firma­ do pelo Supremo Tribunal Federal o enunciado da Súmula Vinculante n° 5: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição” Diante da edição desse enunciado vinculante, a Ia Seção do STJ deliberou pelo cancelamento da súmula n. 343 em data de 3 de maio de 2021.

A Súmula Vinculante n° 5 não se aplica à exe­ cução penal. Primeiro, porque todos os precedentes utilizados para elaboração do aludido verbete su­ mular são originários de questões não penais, onde estavam em discussão procedimentos administra­ tivos de natureza previdenciária, fiscal, disciplinar-estatutário militar e tomada de contas especial. Se­ gundo, porque, na execução da pena está em jogo a liberdade do sentenciado, o qual se encontra em situação de extrema vulnerabilidade, revelando-se incompreensível que ele possa exercer uma ampla defesa sem o conhecimento técnico do ordenamento jurídico, não se podendo, portanto, equipará-lo ao indivíduo que responde a processo disciplinar na esfera cível-administrativa. Logo, na hipótese de o Juízo das Execuções decretar a regressão de regime de cumprimento de pena sem que o condenado seja assistido por defensor durante procedimento admi­ nistrativo disciplinar instaurado para apurar falta grave, há de se reconhecer a nulidade do feito, haja vista a violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa. A propósito, eis o teor da súmula n° 533 do STJ: “Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento

administrativo pelo diretor do estabelecimento pri­ sional, assegurado o direito de defesa, a ser realiza­ do por advogado constituído ou defensor público nomeado”.76 Sem embargo dos dizeres da súmula n. 533 do STJ, parte da doutrina sempre sustentou que a omissão na instauração do procedimento adminis­ trativo disciplinar poderia ser suprida pela poste­ rior realização de audiência judicial de oitiva do apenadopara justificativa da falta praticada, com a devida assistência de advogado, garantindo-se, assim, o exercício do contraditório e da ampla de­ fesa.77 Com efeito, em uma sistema de jurisdição una, o procedimento judicial conta com mais e maiores garantias que o procedimento administra­ tivo, razão pela qual o segundo pode ser revisto ju­ dicialmente, prevalecendo a decisão judicial sobre a administrativa. Por outro lado, em um sistema congestionado como o da Execução Penal, qual­ quer atividade redundante ou puramente formal significa desvio de recursos humanos da atividade principal do Juízo, inclusive e notadamente a de assegurar os benefícios legais para que ninguém permaneça no cárcere por período superior à con­ denação. Desse modo, a apuração de falta grave em procedimento judicial, com as garantias a ele inerentes, perante o juízo da Execução Penal, não só é compatível com os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5o, LIV e LV, da CF), como torna desnecessário o prévio procedimento admi­ nistrativo, o que atende, por igual, ao princípio da eficiência de que cuida o art. 37 da Constituição Federal. Com base nesses argumentos, o Plená­ rio do Supremo deu provimento ao RE 972.598/ RS (Rei. Min. Roberto Barroso, j. 04.05.2020, DJe 06.08.2020), com a fixação da seguinte tese: “A oi­ tiva do condenado pelo Juízo da Execução Penal, em audiência de justificação realizada na presença do defensor e do Ministério Público, afasta a ne­ cessidade de prévio Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD), assim como supre eventual au­ sência ou insuficiência de defesa técnica no PAD instaurado para apurar a prática de falta grave du­ rante o cumprimento da pena”.78 76. STF, 2a Turma, RE 398.269/RS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 15/12/2009, DJe 35 25/02/2010. E ainda: STJ, 3a Seção, REsp 1.378.557/ RS, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 23/10/2013, DJe 21/03/2014. Nesse sentido, basta atentar para as importantes modificações introduzidas pela Lei n° 12.313/10 na Lei de Execução Penal, que passou a prever a assistên­ cia jurídica ao preso dentro do presídio, além de outorgar importantes atribuições à Defensoria Pública.

77. É nesse sentido a lição de Norberto Avena: Execução penal esquematizado. 2a ed. São Paulo, Método, 2015, p. 83. 75. STF, Pleno, RE 434.059/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 07/05/2008,

DJe 172 11/09/2008.

78 Fundado nesta recente orientação do Supremo, o STJ também passou a proferir decisões no sentido de que a Súmula n. 533 do STJ deve

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No âmbito da execução penal, a ampla defesa deve ser observada inclusive em relação à transfe­ rência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima, pelo menos em regra. É nesse sentido, aliás, o disposto no art. 5o, §2°, da Lei n. 11.671/08, segundo o qual, ins­ truídos os autos do processo de transferência, serão ouvidos, no prazo de 5 (cinco) dias cada, quando não requerentes, a autoridade administrativa, o Mi­ nistério Público e a defesa, bem como o Departa­ mento Penitenciário Nacional - DEPEN, a quem é facultado indicar o estabelecimento penal federal mais adequado. Ocorre que há certas situações que exigem a remoção ou a manutenção imediata do custodiado no referido sistema. Basta imaginar, a título de exemplo, uma rebelião em um presídio, ou uma escalada da violência em determinada cida­ de (ou Estado) em virtude de ordens emanadas de indivíduos custodiados naquela localidade. Nessas hipóteses, a própria Lei n. 11.671/08 (art. 5o, §6°) dispõe que, havendo extrema necessidade, o juiz fe­ deral poderá autorizar a imediata transferência do preso, e, após a instrução dos autos, na forma do §2° acima mencionado, decidir pela manutenção ou revogação da medida adotada. Daí os dizeres da súmula n. 639 do STJ: “Não fere o contraditório e o devido processo decisão que, sem ouvida prévia da defesa, determine transferência ou permanên­ cia de custodiado em estabelecimento penitenciário federal”.79

3.4. Princípio da publicidade A garantia do acesso de todo e qualquer cida­ dão aos atos praticados no curso do processo revela uma clara postura democrática, e tem como objetivo precípuo assegurar a transparência da atividade ju­ risdicional, oportunizando sua fiscalização não só pelas partes, como por toda a comunidade. Basta ser relativizada, sobretudo em casos em que o reeducando praticar a falta grave fora do estabelecimento prisional e não for realizado o PAD, porém tiver sido efetuada audiência de justificação, garantindo ao sentenciado o direito ao contraditório e à ampla defesa, pois, dessa forma, a ausência de realização do PAD não causaria prejuízo à defesa do apenado. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, HC 577.233/PR, Rei. Min. Reynaldo Soares da

Fonseca, j. 18.08.2020. 79. Admitindo a transferência emergencial de custodiado para presí­ dios federais em hipóteses específicas, em que evidenciada a periculo-

sidade concreta decorrente de participação em organização criminosa, poder de mando, graduada hierarquia, o que possibilita a atuação em atos criminosos externos, assim como para fins de prevenção de eventos que venham a colocar em risco a segurança pública, a integridade física e a vida de autoridades, de internos e da população em geral, exigindo-se que, ato contínuo, seja garantida a intimação da defesa do custodia­ do para manifestação, suprindo-se a exigência legal para a manuten­ ção da medida: STJ, 6a Turma, HC 389.493/PR, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 18/04/2017, DJe 26/04/2017. No mesmo contexto: STJ, 5aTurma, AgRg no REsp 1.732.152/RN, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 17/05/2018, DJe 30/05/2018.

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lembrar que, em regra, os processos secretos são tí­ picos de estados autoritários.80 Traduz-se, portanto, numa exigência política de se afastar a desconfiança da população na administração da Justiça.81

Segundo Luigi Ferrajoli, cuida-se de garantia de segundo grau, ou garantia de garantia. Isso porque, segundo o autor, para que seja possível o controle da observância das garantias primárias da contestação da acusação, do ônus da prova e do contraditório com a defesa, é indispensável que o processo se desenvolva em público. Na dicção de Ferrajoli, a publicidade “assegura o controle tanto externo como interno da atividade judiciária. Com base nela os procedimentos de formulação de hi­ póteses e de averiguação da responsabilidade penal devem desenvolver-se à luz do sol, sob o controle da opinião pública e sobretudo do imputado e de seu defensor. Trata-se do requisito seguramente mais elementar e evidente do método acusatório”.82 De acordo com o art. 93, inciso IX, da Consti­ tuição Federal, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudi­ que o interesse público à informação. Por sua vez, dispõe o art. 5o, XXXIII, da CF, que todos têm di­ reito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Ademais, segundo o art. 5o, LX, da Carta Magna, a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. De modo semelhante, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos 80. Como aponta Celso Ribeiro Bastos, a publicidade é"uma decor­ rência do princípio democrático. Este não pode conviver com o sigilo, o segredo, o confinamento a quatro portas, a falta de divulgação, porque por este caminho, da sonegação de dados à coletividade, impede-se o exercício importante de um direito do cidadão em um Estado governado pelo povo, qual seja: o de controle. Não há dúvida, portanto, de que a publicidade dos atos, e especificamente dos atos jurisdicionais, atende ao

interesse das partes e ao interesse público. Protege o magistrado contra insinuações e maledicências; da mesma forma que protege as partes contra um possível arbítrio ou prepotência. E confere à coletividade, de um modo geral, a possibilidade de controle sobre atos que são praticados com a força própria do Estado". (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva, 1989. Vol. 2. p. 285). 81. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 68. 82. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 567.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

também prevê que “o processo penal deve ser pú­ blico, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça” (Dec. 678/92, art. 8o, § 5o). Mesmo antes da vigência da Constituição de 1988, o Código de Processo Penal já trazia dispositivo acer­ ca da publicidade. De acordo com o art. 792, caput, do CPP, as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escri­ vães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. Lado outro, de acordo com o art. 792, § Io, do CPP, se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escân­ dalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público determinar que o ato seja rea­ lizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes.

Funciona a publicidade, portanto, como pressu­ posto de validade não apenas dos atos processuais, mas também das próprias decisões que são tomadas pelo Poder Judiciário. Logo, são normas de direito processual aquelas que versam sobre a publicida­ de, cabendo à União legislar privativamente sobre o tema, ex vi do art. 22, inciso I, da Constituição Federal.83

3.4.1. Divisão da publicidade: ampla e restrita A publicidade é tida como ampla, plena, popu­ lar, absoluta, ou geral, quando os atos processuais são praticados perante as partes, e, ainda, aber­ tos a todo o público. Nesse caso, além das partes, qualquer cidadão do povo poderá acompanhar as audiências criminais de coleta de provas e/ou julga­ mentos em qualquer grau de jurisdição, assim como consultar os processos ou obter certidões. Como observa a doutrina, a publicidade do processo im­ plica os direitos de: a) assistência, pelo público em geral, à realização dos atos processuais; b) narração dos atos processuais, ou reprodução de seus termos, pelos meios de comunicação social; c) consulta dos autos e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer partes dele.84 83. Eis o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de dispositivos do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Distrito Federal eTerritórios, que previam que, nos casos de foro por prerrogativa de função, o julgamento seria realizado em sessão secreta: STF, Pleno, ADI 2.970/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 12/05/2006.

Segundo Luiz Flávio Gomes, a publicidade ex­ terna tem inúmeras justificativas: possibilita o con­ trole social da atividade jurisdicional, incrementa a confiança na Justiça no instante em que são co­ nhecidos os motivos da decisão, evita a prática de arbitrariedades, é um freio e uma garantia contra a tirania judicial, otimiza o direito à informação (seja no aspecto de informar, seja no de ser informado), assegura a independência judicial contra ingerências externas ou internas etc.85

Como se percebe pela própria dicção da Cons­ tituição Federal e do Código de Processo Penal, a regra é a publicidade ampla no processo penal, es­ tando ressalvadas as hipóteses em que se justifica a restrição da publicidade: defesa da intimidade, interesse social no sigilo e imprescindibilidade à segurança da sociedade e do Estado (CF, art. 5o, incisos XXXIII e LX, c/c art. 93, IX); escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem (CPP, art. 792, § Io).

Apesar de a regra ser a publicidade ampla, deve-se compreender que, como toda e qualquer garantia, esta não tem caráter absoluto, podendo ser objeto de restrição em situações em que o inte­ resse público à informação deva ceder em virtude de outro interesse de caráter preponderante no caso concreto. Daí se falar em publicidade restrita, ou interna, que se caracteriza quando houver alguma limitação à publicidade dos atos do processo. Nesse caso, alguns atos ou todos eles serão realizados so­ mente perante as pessoas diretamente interessadas no feito e seus respectivos procuradores, ou, ainda, somente perante estes. A publicidade restrita ou interna é impropriamente chamada de “segredo de justiça”.86

É o que acontece, v.g., com processos crimi­ nais relativos a crimes contra a dignidade sexual, nos quais a publicidade ampla poderia aumentar sobremaneira o sofrimento da vítima, causando-lhe desnecessária exposição e humilhação. Com o objetivo de se preservar a intimidade da vítima de tais delitos, que sempre despertam a curiosidade alheia, a própria Lei 12.015/09 passou a prever a obrigatoriedade de segredo de justiça nesses casos: “Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça” (CP, art. 85. Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribu­ nais, 2009. p. 454.

84. SILVA, Germano Marques. Curso de processo penal. 4a ed. Lisoba: Verbo, 2000. v. 1. p. 87 (Apud BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo.

86. Veja-se que a Constituição Federal autoriza a restrição à publicida­ de, mas desde que assegurada, no mínimo, a presença dos advogados (art. 93, IX). Logo, o art. 520 do CPP não foi recepcionado na parte em que, ao tratar da audiência de reconciliação no procedimento dos crimes contra

Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 322).

a honra, prevê que a ela estarão presentes apenas o juiz e as partes, sem a presença de seus advogados.

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234-B). Nesses processos que tramitam sob segredo de justiça em virtude da qualidade da vítima (v.g., criança), o nome completo do acusado e a tipificação legal do delito podem constar entre os dados básicos do processo disponibilizados pela internet, mesmo que os crimes apurados se relacionem, por exemplo, com pornografia infantil. Ora, a mera repulsa que um delito possa causar à sociedade não constitui, por si só, fundamento suficiente para autorizar a decretação de sigilo absoluto sobre os dados bási­ cos de um processo penal, sob pena de se ensejar a extensão de tal sigilo a toda e qualquer tipificação legal de delitos, com a consequente priorização do direito à intimidade do acusado em detrimento do princípio da publicidade dos atos processuais.87

Importante ressaltar que, nas hipóteses de sigilo judicial em que for decretado o segredo de justiça nos autos, somente a própria autoridade jurisdicional que o decretou poderá afastá-lo. Como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, comissões parlamentares de inquérito não tem poder jurídico de, mediante requisição, determinar a quebra de si­ gilo imposto a processo sujeito a segredo de justiça.88 Em se tratando de provas cautelares decretadas no curso do processo, também não se pode falar em publicidade às partes e a seus procuradores. Com efeito, supondo-se a necessidade da decretação de uma interceptação telefônica, ou da quebra dos sigi­ los bancário e fiscal para ulterior adoção de medidas cautelares patrimoniais, deve-se preservar o sigilo inclusive para o acusado e seu defensor, sob pena de se tornar inócua a medida em questão.89

Segundo Tucci, ainda é possível diferenciar a publicidade ativa da passiva, e publicidade imediata da mediata. De acordo com o autor, na publicidade ativa, determinados atos do processo são involun­ tariamente conhecidos do público; a publicidade passiva ocorre quando o público, por iniciativa pró­ pria, sponte sua, deles toma conhecimento. Por seu turno, a publicidade imediata se dá quando a cognição dos atos do processo está franqueada a todos os cidadãos; a publicidade mediata, quando deles só se toma conhecimento mediante certidão, cópia ou pelo mass media (imprensa, por exemplo).90 87. Nessa linha: STJ, 5aTurma, RMS 49.920/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares

da Fonseca, j. 02/08/2016, DJe 10/08/2016.

88. STF,Tribunal Pleno, MS 27.483/DF, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 192 09/10/2008.

89. Para mais detalhes acerca do assunto, vide item pertinente às provas cautelares.

90. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 177.

3.4.2. Sessão de julgamento na Justiça Militar e votação em sala secreta Segundo o art. 387 do Código de Processo Penal Militar, a instrução criminal será sempre pública, podendo, excepcionalmente, a juízo do Conselho de Justiça, ser secreta a sessão, desde que o exija o interesse da ordem e disciplina militares, ou à segurança nacional. De outro lado, o art. 434 do CPPM prevê que, concluídos os debates entre as partes durante a sessão de julgamento, e decidida qualquer questão de ordem levantada pelas partes, o Conselho de Justiça passará a deliberar em sessão secreta, podendo qualquer dos juizes militares pedir ao auditor esclarecimentos sobre questões de direito que se relacionem com o fato sujeito ao julgamento. Perceba-se que ambos os dispositivos do CPPM falam em sessão secreta, mas nada dizem acerca da necessária e obrigatória presença das partes e de seus advogados, ou somente destes. Esse o motivo pelo qual, analisando o dispositivo em questão, de­ cidiu o Supremo Tribunal Federal que, “embora o CPPM preveja a sessão secreta para o julgamento pelo Conselho de Justiça (art. 434), a nova Carta Po­ lítica isso proíbe, mas pode ser limitada a presença às próprias partes e a seus advogados, ou somen­ te a estes (art. 93, IX, da Constituição Federal)”.91 Portanto, a regra em relação aos julgamentos ocor­ ridos na Justiça Militar é a publicidade ampla. Em situações excepcionais, e somente quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem, po­ derá ser restringida a publicidade da deliberação dos Conselhos de Justiça, assegurada, todavia, a presença das próprias partes e de seus advogados, ou somente destes.92

3.5. Princípio da busca da verdade: superando o dogma da verdade real Durante anos e anos, prevaleceu o entendimen­ to de que, no âmbito cível, em que geralmente se discutem direitos disponíveis, vigorava o chama­ do princípio dispositivo, segundo o qual somente as partes levam ao processo o material probatório. Em consequência, ao magistrado se reservava uma postura passiva, não devendo influir na produção 91. STF, 2a Turma, RHC 67.494/RJ, Rei. Min. Aldir Passarinho, DJ 16/06/1989. De modo semelhante: "Convivência, reconhecida por esta

Corte, com a Constituição Federal (art. 93, IX), da norma do art. 434 do CPPM, que prevê sessão secreta para os julgamentos do Conselho de Jus­ tiça, desde que assegurada a presença das partes e de seus advogados". (STF, 1 aTurma, HC 69.968/PR, Rei. Min. limar Galvão, DJ 01 /07/1993). Com entendimento idêntico: STM, HC 1995.01.033137-9/RJ, Rei. Min. Carlos de Almeida Baptista, DJ 24/10/1995. 92. Na mesma linha: LOBÃO, Célio. Direito processual penal militar. São

Paulo: Editora Método, 2009. p. 465.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

de provas, matéria de atribuição exclusiva das par­ tes. Ao final do processo, caso tivesse dúvida acerca dos fatos, deveria julgar o litígio segundo a verdade formal. Somente quando a relação material fosse in­ disponível é que se admitia que o juiz determinasse a produção de provas ex officio. Daí se dizer que, no processo civil, vigorava o denominado princípio da verdade formal.

Em contraposição a esse sistema, no âmbito processual penal, estando em discussão a liberdade de locomoção do acusado, direito indisponível, o magistrado seria dotado de amplos poderes instrutórios, podendo determinar a produção de provas ex officio, sempre na busca da verdade material. Dizia-se então que, no processo penal, vigorava o princípio da verdade material, também conhecido como princípio da verdade substancial ou real. A descoberta da verdade, obtida a qualquer preço, era a premissa indispensável para a realização da pre­ tensão punitiva do Estado. Essa busca da verdade material era, assim, utilizada como justificativa para a prática de arbitrariedades e violações de direitos, transformando-se, assim, num valor mais precioso do que a própria proteção da liberdade individual. A crença de que a verdade podia ser alcançada pelo Estado tornou a sua perseguição o fim precípuo do processo criminal. Diante disso, em nome da ver­ dade, tudo era válido, restando justificados abusos e arbitrariedades por parte das autoridades responsá­ veis pela persecução penal, bem como a ampla ini­ ciativa probatória concedida ao juiz, o que acabava por comprometer sua imparcialidade.

Atualmente, essa dicotomia entre verdade for­ mal e material deixou de existir. Já não há mais es­ paço para a dicotomia entre verdade formal, típica do processo civil, e verdade material, própria do processo penal. No âmbito cível, mesmo nos casos de direi­ tos disponíveis, tem sido aceito que o magistrado possa, de ofício, determinar a produção de provas necessárias ao esclarecimento da verdade. Afinal, o processo deve ser considerado um meio efetivo de realização da justiça, quer seja o direito disponível, quer seja indisponível. A busca de um processo justo passa, inevitavelmente, pela previsão de meios efeti­ vos para que se atinja a maior aproximação possível da verdade. Prova disso, aliás, é o novo Código de Processo Civil, cujo art. 370 dispõe expressamen­ te que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao jul­ gamento do mérito. No âmbito processual penal, hodiernamente, admite-se que é impossível que se atinja uma verdade absoluta. A prova produzida em

juízo, por mais robusta e contundente que seja, é incapaz de dar ao magistrado um juízo de certeza absoluta. O que vai haver é uma aproximação, maior ou menor, da certeza dos fatos. Há de se buscar, por conseguinte, a maior exatidão possível na re­ constituição do fato controverso, mas jamais com a pretensão de que se possa atingir uma verdade real, mas sim uma aproximação da realidade, que tenda a refletir ao máximo a verdade. Enfim, a verdade absoluta, coincidente com os fatos ocorridos, é um ideal, porém inatingível.93 Em conclusão, é importante ressaltar que essa busca da verdade no processo penal está sujeita a algumas restrições. Com efeito, é a própria Cons­ tituição Federal que diz que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5o, LVI). O Código de Processo Penal também esta­ belece outras situações que funcionam como óbice à busca da verdade: impossibilidade de leitura de documentos ou exibição de objetos em plenário do júri, se não tiverem sido juntados aos autos com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte (CPP, art. 479), as limitações ao depoimento de testemunhas que têm ciência do fato em razão do exercício de profissão, ofício, função ou ministério (CPP, art. 207), o descabimento de revisão criminal contra sentença absolutória com trânsito em julgado (CPP, art. 621), ainda que sur­ jam novas provas contra o acusado. Outra exceção diz respeito às questões prejudiciais devolutivas ab­ solutas, ou seja, questões prejudiciais heterogêneas que versam sobre o estado civil das pessoas.

3.5.1. Busca da verdade consensual no âmbito dos Juizados A Lei n° 9.099/95 trouxe consigo quatro im­ portantes medidas despenalizadoras, que serão objeto de estudo no título atinente ao “processo e procedimento”: 1) Composição civil dos danos; 2) Transação penal; 3) Necessidade de representação para os crimes de lesão corporal leve e culposa; 4) Suspensão Condicional do Processo. Com a criação desses institutos despenalizadores, percebe-se que, no âmbito dos Juizados, a busca da verdade pro­ cessual cede espaço à prevalência da vontade con­ vergente das partes. Nos casos de transação penal ou de suspensão condicional do processo, não há necessidade de verificação judicial da veracidade dos fatos. O conflito penal é solucionado através 93. Nesse contexto: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 1987. Fundamentos do processo civil moderno. 2a ed. p. 449, n° 44.

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de um acordo de vontade, dando origem ao que a doutrina denomina de verdade consensuada.94

3.6. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos O princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos está previsto na Consti­ tuição Federal (art. 5o, LVI): “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Refe­ rido princípio será abordado com mais propriedade no capítulo pertinente às provas.

3.7. Princípio do juiz natural O princípio do juiz natural será objeto de análi­ se no Título 5 (“Competência criminal”), mais pre­ cisamente no Capítulo I (“Premissas fundamentais e aspectos introdutórios”), item 2 (“Princípio do juiz natural”).

3.8. Princípio do nemo teneturse detegere 3.8.1. Noções introdutórias De acordo com o art. 5o, inciso LXIII, da Constituição Federal, “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. O direito ao silêncio, previsto na Carta Magna como direito de permanecer calado, apresenta-se apenas como uma das várias decorrências do nemo tenetur se detegere, segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Além da Constituição Federal, o princípio do nemo te­ netur se detegere também se encontra previsto no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.3, “g”), e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8o, § 2o, “g”). Trata-se de uma modalidade de autodefesa passiva, que é exercida por meio da inatividade do indivíduo sobre quem recai ou pode recair uma im­ putação. Consiste, grosso modo, na proibição de uso de qualquer medida de coerção ou intimidação ao investigado (ou acusado) em processo de caráter sancionatório para obtenção de uma confissão ou para que colabore em atos que possam ocasionar sua condenação. Como anota Maria Elizabeth Quei­ jo, como direito fundamental, o princípio do nemo tenetur se detegere “objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra vio­ lências físicas e morais, empregadas para compelir 94. É nesse sentido a lição de Marco Antônio de Barros: A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2002.

p. 43.

o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibitivos de interrogatório, sugestões e dissimulações”.95

3.8.2. Titular do direito de não produzir prova contra si mesmo A forma como o direito de não se incriminar foi escrito e inserido em nosso texto constitucio­ nal e nos Tratados Internacionais acima referidos padece de deficiência, porquanto, em um primeiro momento, dá impressão de que teve como destina­ tário apenas a pessoa que se encontra na condição processual de preso, ou que figura como acusado da prática de determinado delito. Na doutrina, apressa­ damente, houve quem, mediante interpretação ex­ cessivamente literal do comando normativo, tivesse ânimo para defender que a garantia contemplada em nosso sistema tinha o condão de alcançar, apenas, aquela pessoa que se encontra aprisionada.

A doutrina mais aceita, contudo, é a de que o dispositivo constitucional em destaque se presta para proteger não apenas quem está preso, como também aquele que está solto, assim como qualquer pessoa a quem seja imputada a prática de um ilícito criminal (imputado). Pouco importa se o cidadão é suspeito, indiciado, acusado ou condenado, e se está preso ou em liberdade. Ele não pode ser obrigado a confessar o crime.96 Não é válido, por outro lado, arrolar alguém como testemunha e querer, em razão do dever de dizer a verdade aplicável à hipótese, forçá-la a res­ ponder sobre uma pergunta que importe, mesmo que indiretamente, em incriminação do depoente. De certo que a testemunha, diferentemente do acusado, tem o dever de falar a verdade, sob pena de responder pelo crime de falso testemunho (CP, art. 342), porém não está obrigada a responder so­ bre fato que possa, em tese, incriminá-la.97 Daí ter decidido o Supremo que não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como 95. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no pro­ cesso penal). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 55.

96. Nessa linha: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dosTribunais, 1997. p. 113. No mesmo sentido: STF, 1a Turma, HC 68.929/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 28/08/1992. Para André de Carvalho Ramos, até mesmo as pessoas jurídicas gozam desse direito: Limites ao poder de investigar e o privilégio contra a auto-incriminação à luz do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Limites constitucionais da investiga­ ção. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2009, p. 16.

97. Ofende o princípio da não-autoincriminação denúncia baseada unicamente em confissão feita por pessoa ouvida na "condição de teste­ munha", quando não lhe tenha sido feita a advertência quanto ao direito de permanecer calada: STF, 2a Turma, RHC 122.279/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 12/08/2014, DJe 213 29/10/2014.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la.98

É irrelevante, igualmente, que se trate de inqué­ rito policial ou administrativo, processo criminal ou cível ou de Comissão Parlamentar de Inquérito. Se houver possibilidade de autoincriminação, a pes­ soa pode fazer uso do princípio do nemo tenetur se detegere.

3.8.3. Advertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo Diante do teor expresso do art. 5o, LXIII, da CF, segundo o qual o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, não nos convence a tese de que não é necessária a adver­ tência quanto ao direito ao silêncio sob o argumento de que ninguém pode alegar o desconhecimento da lei. Com o objetivo de se evitar uma autoincrimi­ nação involuntária por força do desconhecimento da lei, deve, sim, haver prévia e formal advertência quanto ao direito ao silêncio, sob pena de se macular de ilicitude a prova então obtida.99 O acusado deve ser advertido, ademais, que o direito ao silêncio é uma garantia constitucional, de cujo exercício não lhe poderão advir consequências prejudiciais. Ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamen­ te a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas.100 Trata-se, o art. 5o, inciso LXIII, de mandamen­ to constitucional semelhante ao famoso “Aviso de Miranda” do direito norte-americano, em que o policial, no momento da prisão, tem de ler para o preso os seus direitos, sob pena de não ter validade o que por ele for dito. Os Miranda rights ou Mi­ randa warnings têm origem no famoso julgamento Miranda V. Arizona, verificado em 1966, em que a

Suprema Corte americana, por cinco votos contra quatro, firmou o entendimento de que nenhuma validade pode ser conferida às declarações feitas pela pessoa à polícia, a não ser que antes ela tenha sido claramente informada de: 1) que tem o direito de não responder; 2) que tudo o que disser pode vir a ser utilizado contra ele; 3) que tem o direito à assistência de defensor escolhido ou nomeado.101

Com o objetivo de melhor assegurar o respeito aos direitos fundamentais, notadamente o nemo te­ netur se detegere, tem-se tornado comum a entrega ao preso, no momento de sua prisão, de uma nota de ciência das garantias constitucionais, nos moldes preconizados pela Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89). Em seu art. 2o, § 6o, a referida lei preceitua que ‘'‘'efetuada a prisão, a autoridade policial informará o preso dos direitos previstos no art. 5o da Constituição Federal”. A entrega dessa nota de ciência das garantias constitucionais é medida ex­ tremamente salutar, pois comprova que o acusado foi cientificado de seus direitos constitucionais antes de responder às indagações formuladas. Tendo em vista que se considera ilícita a pro­ va colhida mediante violação a normas constitu­ cionais, notadamente aquelas que tutelam direitos fundamentais (CF, art. 5o, LVI, c/c art. 157, caput, do CPP), e como decorrência da necessidade de ad­ vertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo, não se pode considerar lícita, por­ tanto, gravação clandestina de conversa informal de policiais com o preso, em modalidade de “interro­ gatório” sub-reptício, quando, além de o capturado não dar seu assentimento à gravação ambiental, não for advertido do seu direito ao silêncio.102*Como 101. Em março de 1963, após ter sido identificado por uma teste­ munha, Ernesto Miranda foi preso em sua casa e conduzido à polícia

em Phoenix. Foi levado a uma sala de interrogatórios e interrogado por dois policiais. Duas horas depois, os policiais tinham em suas mãos uma confissão assinada por Miranda, na qual ele declarava que a confissão havia sido voluntária, sem ameaças ou promessas de imunidade e com completo conhecimento de seus direitos, inclusive ciente de que as de­ clarações seriam utilizadas contra ele. No entanto, os policiais admitiram

98. STF, Pleno, HC 73.035/DF, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 13/11/1996,

DJ 19/12/1996. Com entendimento semelhante: STF, Pleno, HC 79.812/ SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 08/11/2000, DJ 16/02/2001, p. 21; STF, 2a Turma, HC 106.876/RN, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/06/2011, DJe 125 30/06/2011). 99. Além de serem consideradas ilícitas as provas obtidas a partir de declarações do preso sem prévia e formal advertência quanto ao direito ao silêncio, também podem ser consideradas ilícitas as provas dela de­ rivadas (teoria dos frutos da árvore envenenada), nos exatos termos do art. 157, § 1°, do CPP.

que Miranda não havia sido alertado quanto ao direito de ter advogado

presente.

102. Nessa linha: STF, Ia Turma, HC 80.949/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14/12/2001; STJ, 6aTurma, HC 244.977/SC, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 25/09/2012. Na mesma linha, em caso concreto em que determinado indivíduo foi interrogado por Delegado de Polícia, durante o cumprimento de mandado de busca domiciliar, sem ser informado de seu direito ao silêncio, em flagrante violação ao princípio da não autoin­ criminação, a 2aTurma do STF (Rcl 33.711 /SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 11/06/2019)julgou procedente reclamação para declarara nulidade des­

100. Com esse entendimento: STF, 1a Turma, HC 78.708/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16/04/1999. Em sentido diverso, concluindo que o direito ao silêncio é regra jurídica que goza de presunção de conhe­ cimento por todos, daí por que a ausência de advertência quanto ao seu exercício não gera, por si só, uma nulidade processual a justificar a anulação de um processo penal: STF, 1aTurma, AP 611/MG, Rei. Min. Luiz

prova por suposta violação ao princípio que veda a autoincriminação. Afinal, tal princípio veda que o acusado ou investigado sejam coagidos tanto física ou moralmente a produzir prova contrária aos seus interesses:

Fux,j. 30.09.2014, DJ 10.12.2014.

STJ, Corte Especial, APn 644/BA, Rei. Min. Eliana Calmon, j. 30/11/2011.

sa "entrevista", bem como das provas dela derivadas.Todavia, se determi­ nado agente voluntariamente efetuar gravação ambiental documentando crime de corrupção ativa por ele praticado, não há falar em ilicitude da

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já se pronunciou a 2a Turma do STF,103 a Consti­ tuição Federal impõe ao Estado a obrigação de in­ formar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem, quando recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito. Dessa forma, qual­ quer suposta confissão firmada, no momento da abordagem, sem observação ao direito ao silêncio, é inteiramente imprestável para fins de condenação e, ainda, invalida as demais provas obtidas através de tal interrogatório. Impõe-se, pois, que qualquer pessoa em relação à qual recaiam suspeitas da prática de um ilícito penal seja formalmente advertida de seu direito ao silêncio, sob pena de ilicitude das declarações por ela firmadas. Deve constar expressamente do auto de prisão em flagrante, por conseguinte, a infor­ mação a respeito do direito ao silêncio conferido ao indiciado, “reputando-se como não formulada se dela não houver qualquer menção”.104

É firme, todavia, a jurisprudência do STJ no sentido de que a ausência de informação quanto ao direito ao silêncio constitui nulidade relativa, a qual depende da comprovação de efetivo prejuízo, daí por que não há por que se proceder à anulação do feito nas hipóteses em que o investigado (ou acu­ sado) negar a prática do delito, apresentando sua versão.105 Se o preso deve ser prévia e formalmente ad­ vertido quanto ao direito ao silêncio, sob pena de se reputar ilícita a prova que contra si produza, tam­ bém não podem ser consideradas válidas entrevistas concedidas por presos a imprensa, antes ou após a lavratura do flagrante, sem o conhecimento de seu direito constitucional. Com efeito, não raramente a conversa informal entre indiciados presos e repór­ teres, antes ou depois do interrogatório, é gravada sem o conhecimento daqueles, e, de igual modo, utilizada, judicialmente, em prejuízo da defesa. Ora, a ausência de advertência quanto ao direito ao si­ lêncio macula de ilicitude eventuais declarações por ele fornecidas que lhe sejam prejudiciais, porquanto 103. STF, 2a Turma, RHC 192.798 AgR/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 24.02.2021, DJe 02.03.2021. Ainda no sentido de que não se admite con­ denação baseada exclusivamente em declarações informais prestadas a policiais no momento da prisão em flagrante: STF, RHC 170.843 AgR/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 04.05.2021.

104. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. MORAIS, Maurício Zanóide de. Direito ao silêncio no interrogatório, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n° 6, abr.-jun., 1994. 105. Nesse contexto: STJ, 5a Tu rma, Ag Rg nos EDcl no REsp 1.868.466RO, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 25.08.2020. E ainda: STJ, 5a Turma, Aglnt no

1

® k

AREsp 917.470-SC, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 02.08.2016, DJe 10.08.2016; STJ, 6a Turma, HC 348.104-SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 05.04.2016, DJe 15.04.2016.

produzidas com violação ao preceito constitucio­ nal que assegura o direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII).106

Não foi essa, todavia, a orientação do Supremo Tribunal Federal. Em habeas corpus apreciado pela 2a Turma, em que se alegava a ilicitude da prova juntada aos autos, consistente em entrevista conce­ dida a jornal, na qual o acusado narrara o modus operandi de 2 homicídios a ele imputados, sem ter sido previamente advertido de seu direito ao silên­ cio, reputou-se que a Constituição teria conferido dignidade constitucional ao direito ao silêncio, dis­ pondo expressamente que o preso deve ser informa­ do pela autoridade policial ou judicial da faculdade de manter-se calado. Consignou-se que o dever de advertir os presos e os acusados em geral de seu di­ reito de permanecerem calados consubstanciar-se-ia em uma garantia processual penal que teria como destinatário precípuo o Poder Público. Concluiu-se, entretanto, não haver qualquer nulidade na juntada da prova, entrevista concedida espontaneamente a veículo de imprensa.107

De todo modo, queremos crer que deve se evi­ tar a concessão de entrevistas por presos à imprensa, salvo se, previamente advertido quanto ao direito ao silêncio, e devidamente orientado das consequências jurídicas de suas declarações, manifestar o cidadão de maneira voluntária seu interesse em apresentar sua versão acerca dos fatos, abrindo mão do direito de se calar.

3.8.4. Desdobramentos do direito de não pro­ duzir prova contra si mesmo Há uma tendência equivocada de se querer equiparar o princípio do nemo tenetur se detegere ao direito ao silêncio. Na verdade, assim como se trata de equívoco pensar que a garantia é destinada apenas a quem está encarcerado pelo fato de a dic­ ção constitucional conter o termo preso, também se mostra inadequado acreditar que o direito de per­ manecer calado somente confere à pessoa a garantia de que ela não pode ser obrigada a falar. O que o constituinte diz, quando ele assegura o direito de permanecer calado, é que a pessoa não pode ser obrigada a se incriminar ou, em outras palavras, que ela não pode ser obrigada a produzir prova contra si. Aliás, essa última forma de revelar o conteúdo do preceito constitucional soa mais feliz, uma vez 106. É nesse sentido a lição de Ana Lúcia Menezes Vieira: Op. cit. p. 240.

Nos mesmos moldes: QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. cit. p. 397. 107. STF, 2a Turma, HC 99.558/ES, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/12/2010.

1 TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

que consegue tornar mais clara a mensagem do constituinte.

Portanto, deve se compreender que o direito ao silêncio funciona apenas como uma das decor­ rências do princípio do nemo tenetur se detegere, do qual se extraem outros desdobramentos igualmente importantes. Em síntese, pode-se dizer que o direito de não produzir prova contra si mesmo, que tem lugar na fase investigatória e no curso da instrução processual, abrange:

a) o direito ao silêncio ou direito de ficar ca­ lado: corresponde ao direito de não responder às perguntas formuladas pela autoridade, funcionando como espécie de manifestação passiva da defesa. O exercício do direito ao silêncio não é sinônimo de confissão ficta ou de falta de defesa; cuida-se de direito do acusado (CF, art. 5o, LXIII), no exercício da autodefesa, podendo ser usado como estratégia defensiva;

b) direito de não ser constrangido a confessar a prática de ilícito penal: de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14, § 3o) e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8o, § 2o, “g”, e § 3o), o acusado não é obrigado a confessar a prática do delito. Portanto, por força do princípio do nemo tenetur se detegere, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de uma infração penal;108 c) inexigibilidade de dizer a verdade: alguns doutrinadores entendem que o acusado possui o direito de mentir, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio.109 A nosso ver, e com a devi­ da vênia, não se pode concordar com a assertiva de que o princípio do nemo tenetur se detegere assegure o direito à mentira. Em um Estado democrático de Direito, não se pode afirmar que o próprio Estado assegure aos cidadãos direito a um comportamento antiético e imoral, consubstanciado pela mentira. A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria um ato lícito, o que não é correto, na medida em que a própria Lei de Execuções Penais estabelece como falta grave a fuga do condenado (LEP, art. 50, inciso II). Na verdade, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade

não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada, porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado. Logo, como o dever de dizer a verdade não é dotado de coercibilidade, já que não há san­ ção contra a mentira no Brasil, quando o acusado inventa um álibi que não condiz com a verdade, simplesmente para criar uma dúvida na convicção do órgão julgador, conclui-se que essa mentira há de ser tolerada por força do nemo tenetur se dete­ gere. A esse respeito, concluiu o Supremo Tribunal Federal que, no direito ao silêncio, tutelado consti­ tucionalmente, inclui-se a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da in­ fração penal.110 Se essa mentira defensiva é tolerada, especial atenção deve ser dispensada às denomina­ das mentiras agressivas, quando o acusado imputa falsamente a terceiro inocente a prática do delito. Nessa hipótese, dando causa à instauração de inves­ tigação policial, processo judicial, inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de proces­ so judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade ad­ ministrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente, o agente responderá normalmente pelo delito de denunciação caluniosa (CP, art. 339, caput, com redação dada pela Lei n. 14.110/20), porque o direito de não produzir prova contra si mesmo esgota-se na proteção do réu, não servindo de suporte para que possa cometer outros delitos.111 Também é crime a conduta de acusar-se, perante a autoridade, de crime inexistente ou praticado por outrem (CP, art. 341, autoacusação falsa). Na mes­ ma linha, tem prevalecido o entendimento de que o direito ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade quanto à identidade pessoal. A propósito, eis o teor da Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 478: “O princípio constitucional da autode­ fesa (art. 5o, LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica da conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP)”.112 Com raciocínio semelhante, a 110. STF, 1a Turma, HC 68.929/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 28/08/1992.

111. Nesse sentido: BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 38.

109. GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: comentários à Convenção Ame­ ricana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo:

112. Paradigma: STF, Pleno, RE 640.139 RG/DF, Rei. Min. DiasToffoli, j. 22.09.2011, DJ 14.10.2011.Com entendimento semelhante: STF, 2aTur­ ma, HC 72.377/SP, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 30/06/1995 p. 271; STF, 1a Turma, RE 561.704, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 64 02/04/2009.0 STJ tinha entendimento em sentido contrário: STJ, 6a Turma, HC 97.857/

Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 106.

SP, Rei. Min. Og Fernandes, Dje 10/11/2008. Porém, acabou alterando

108. Nessa linha: STF, 1aTurma, HC 68.929/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 28/08/1992.

í 73

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súmula n° 522 do STJ preconiza que “a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa”;

d) direito de não praticar qualquer compor­ tamento ativo que possa incriminá-lo: por força do direito de não produzir prova contra si mesmo, doutrina e jurisprudência têm adotado o entendi­ mento de que não se pode exigir um comportamento ativo do acusado, caso desse facere possa resultar a autoincriminação. Assim, sempre que a produ­ ção da prova tiver como pressuposto uma ação por parte do acusado (v.g., acareação, reconstituição do crime, exame grafo técnico, etc.), será indispensável seu consentimento. Cuidando-se do exercício de um direito, tem predominado o entendimento de que não se admitem medidas coercitivas contra o acu­ sado para obrigá-lo a cooperar na produção de pro­ vas que dele demandem um comportamento ativo. Além disso, a recusa do acusado em se submeter a tais provas não configura o crime de desobediência nem o de desacato113, e dela não pode ser extraída nenhuma presunção de culpabilidade, pelo menos no processo penal. São incompatíveis, assim, com a Constituição Federal e com a Convenção America­ na sobre Direitos Humanos quaisquer dispositivos legais que possam, direta ou indiretamente, forçar o suspeito, indiciado, acusado, ou até mesmo a tes­ temunha, a produzir prova contra si mesmo. Não por outro motivo, em diversos julgados, assim tem se pronunciado o Supremo Tribunal Federal: d.l) o acusado não está obrigado a fornecer padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial de verificação de interlocutor;114 d.2) o acusado não está obrigado a fornecer material para exame grafotécnico: no exame para seu entendimento a partir da decisão proferida pelo Supremo no RE 640.139. Sinalizando essa mudança: STJ, 5a Turma, HC 151,866/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 01 /12/2011, DJe 13/12/2011. E ainda: STJ, 3a Seção, REsp 1,362.524/MG, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 23/10/2013.

113. Aos olhos da 3a Seção do STJ, não há incompatibilidade do crime de desacato (CP, art. 331) com as normativas internacionais previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). A despeito do que fora aduzido no julgamento do REsp 1.640.084/SP pela 5a Turma do STJ - no sentido de que o crime de desacato seria incompatível com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, por afrontar mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão - a 3a Seção concluiu que as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) não possuem força vinculante, mas tão somente 'poder de embaraço' ou 'mobilização da vergonha'. Logo, o crime de desacato não pode ter sua tipificação penal afastada sob qualquer viés, seja pela ausência de força vinculante às recomendações expedidas pela CIDH, seja pelo viés interpretativo. (STJ, 3a Seção, HC 379.269/MS, Rei. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j. 24/05/2017, DJe 30/06/2017). Na mesma linha: STF, 2a Turma,

HC 141,949/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 13/03/2018. 114. STF, 2a Turma, HC 83.096/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 12/12/2003 p. 89.

o reconhecimento de escritos, por comparação de letra, pode ser necessário que a pessoa a quem se atribui o escrito forneça material de seu punho subscritor para que sirva de parâmetro para a com­ paração. Nesse caso, como a realização do exame demanda um comportamento ativo do acusado, a tanto não se pode compeli-lo. Para exames periciais, é cabível apenas a sua intimação para que, querendo, oferte o material. Também não se admite que a au­ toridade policial determine ao indiciado a oferta de material gráfico, sob pena de desobediência.115 Caso a pessoa se recuse a fornecer material de seu punho subscritor, nada impede que a autoridade judiciária determine a apreensão de papéis e documentos que possam suprir o fornecimento do referido material. Afinal, conforme disposto no art. 174, II e III, do CPP, para a comparação de escritos, podem servir quaisquer documentos judicialmente reconhecidos como emanados do punho do investigado ou sobre cuja autenticidade não haja dúvida. Portanto, o fato de o acusado se recusar a fornecer o material não afasta a possibilidade de se obter documentos por ele subscritos;116 d.3) configura constrangimento ilegal a decre­ tação de prisão preventiva de indiciados diante da recusa destes em participarem de reconstituição do crime.117Afinal, cuidando-se de prova que depende da colaboração ativa do acusado, não se pode exi­ gir sua participação, sob pena de violação ao nemo tenetur se detegere.118

d.4) em relação às provas que demandam ape­ nas que o acusado tolere a sua realização, ou seja, aquelas que exijam uma cooperação meramente passiva, não se há falar em violação ao nemo te­ netur se detegere. O direito de não produzir prova contra si mesmo não persiste, portanto, quando o acusado for mero objeto de verificação. Assim, em se tratando de reconhecimento pessoal, ainda que o acusado não queira voluntariamente participar, admite-se sua execução coercitiva;119 d. 5) Para fins de comprovação da embriaguez ao volante, o meio de prova mais eficaz para aferição da dosagem etílica é o exame de sangue. Considerando-se que a extração de sangue é um método 115. STF, 1 aTurma, HC 77.135/SP, Rei. Min. limar Galvão, DJ 06/11/1998 p. 3.

116. STF, 2aTurma, HC 99.245/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, 06/09/2011. 117. STF, Tribunal Pleno, HC 64.354/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, j. 01/07/1987, DJ 14/08/1987. 118. STF, Ia Turma, HC 69.026/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 10/12/1991, DJ 04/09/1992.

119. Em sentido diverso: FI0RI, Ariane Trevisan. A prova e a intervenção corporal: sua valoração no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen

Juris, 2008. p. 94.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

muito invasivo, foi criado o bafômetro, aparelho de ar alveolar destinado a estabelecer o teor alcoólico no organismo do condutor do veículo automotor através do sopro do motorista no referido equipa­ mento.120 Mas será que o condutor do veículo está obrigado a soprar o bafômetro ou se sujeitar ao exame de sangue? Não estaria ele, assim o fazendo, produzindo prova contra si mesmo? A respeito do assunto, é dominante o entendimento de que a recu­ sa do condutor em submeter-se ao bafômetro ou a um exame de sangue não configura crime de deso­ bediência nem pode ser interpretada em seu desfa­ vor, pelo menos no âmbito criminal. Nessa linha, há precedentes do Supremo Tribunal Federal no sen­ tido de que não se pode presumir a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: afinal, a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração pe­ nal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegere),121 Por isso, os laboratórios desenvolveram uma nova espécie de bafômetro, que não exige o uso de bocal nem a participação ativa do usuário. Cuida-se do bafômetro (ou etilômetro) passivo, que é capaz de “absorver” do ar ambiente a presença de álcool, a uma distância de 20 a 30 centímetros. A utilização da referida espécie de bafômetro não pressupõe a prática de nenhum comportamento ativo por parte do suspeito de embriaguez ao volante. Na verdade, à semelhança do que ocorre num reconhecimento pessoal, o suspeito é mero objeto de verificação, pois dele não se exige nenhum facere. Logo, não há fa­ lar em violação ao direito à não produção de prova contra si mesmo. Na medida em que o suspeito é obrigado apenas a tolerar a realização do referido exame, exigindo-se cooperação meramente passiva, admite-se sua execução coercitiva caso o suspeito não queira participar de maneira voluntária;122 e) direito de não produzir nenhuma prova incriminadora invasiva: nesse ponto, é impor­ tante entender o que se entende por intervenções 120. A prova da materialidade do delito de embriaguez ao volante pode ser feita pelo bafômetro, capaz de constatar, tal qual o exame toxicológico de sangue, a concentração alcoólica de ar nos pulmões corres­ pondente à concentração sanguínea acima do limite legal: STJ, 6a Turma, HC 177.942/RS, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP, julgado em 22/02/2011. Na mesma linha: STF, 2aTurma, HC 110.905/ RS, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 05/06/2012. 121. STF, 1a Turma, HC 93.916/PA, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJe 117

corporais, assim como o conceito de provas invasivas e não invasivas. Intervenções corporais (investi­ gação corporal ou ingerência humana) são medidas de investigação que se realizam sobre o corpo das pessoas, sem a necessidade do consentimento des­ tas, e por meio da coação direta se for preciso, com a finalidade de descobrir circunstâncias fáticas que sejam importantes para o processo, em relação às condições físicas ou psíquicas do sujeito que sofre as intervenções, ou objetos escondidos com ele.123 São exemplos de intervenções corporais: exame de sangue, ginecológico, identificação dentária, endoscopia, exame do reto, entre outras tantas perícias como o exame de matérias fecais, de urina, de saliva, exames de DNA usando fios de cabelo, identifica­ ções datiloscópicas de impressões dos pés, unhas e palmar e também a radiografia. As intervenções corporais podem ser de duas espécies: 1) provas invasivas: são as intervenções corporais que pressupõem penetração no organis­ mo humano, por instrumentos ou substâncias, em cavidades naturais ou não, implicando na utilização (ou extração) de alguma parte dele ou na invasão física do corpo humano, tais como os exames de sangue, o exame ginecológico, a identificação den­ tária, a endoscopia (usada para localização de droga no corpo humano) e o exame do reto; 2) provas não invasivas: consistem numa inspeção ou verificação corporal. São aquelas em que não há penetração no corpo humano, nem implicam a extração de parte dele, como as perícias de exames de materiais fecais, os exames de DNA realizados a partir de fios de cabelo encontrados no chão, etc. As células bucais encontradas na saliva podem ser utilizadas para a realização de um exame de DNA. A forma de sua coleta é que vai determinar se é prova invasiva ou não invasiva. Caso as células se­ jam colhidas na cavidade bucal, haverá intervenção corporal invasiva. Agora, a saliva também pode ser colhida sem qualquer intervenção corporal, possi­ bilitando a realização do exame de DNA a partir de material encontrado no lixo, como chicletes, pontas de cigarro, latas de cerveja e refrigerantes, que con­ têm resquícios da saliva que podem ser examinados. A radiografia também pode ser considerada pro­ va não invasiva, sendo comum sua utilização para constatação de entorpecente no organismo, na for­ ma de pílulas ou cápsulas de drogas. Na verdade, mesmo que se considere o exame de raios-X uma

27/06/2008.

122. Para mais detalhes acerca da prova da materialidade da infração administrativa de embriaguez ao volante e do crime de embriaguez ao volante, notadamente em virtude das sucessivas redações do crime do art. 306 do CTB, remetemos o leitor ao nosso livro de Legislação Criminal Especial Comentada.

123.GONZALES-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales em el proceso penal. Madri: Colex, 1990. p. 290. Apud FIORI, Ariane Trevisan. A prova e a intervenção corporal: sua valoração no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2008. p. 106.

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prova invasiva, pensamos que, em casos extremos, como no exemplo da mula que transporta drogas em seu estômago e que, por isso, corre sério risco de morte a partir de determinado tempo em que está com a droga em seu corpo, é possível a realização de exame pericial mesmo contra a vontade do agente, por força do princípio da proporcionalidade, dan­ do-se preponderância à proteção da vida (CF, art. 5o, caput).124 Outro exemplo de prova não invasiva é a identificação dactiloscópica, das impressões dos pés, unhas e palmar, que podem ser utilizadas como parâmetro para comparação com aquelas encon­ tradas no local do crime ou no corpo da vítima.125

Havendo o consentimento do sujeito passivo da medida, após prévia advertência do direito de não produzir prova contra si mesmo, a interven­ ção corporal poderá ser realizada normalmente, seja a prova invasiva ou não invasiva. A Carta Magna não estabeleceu a reserva de jurisdição para a de­ terminação das intervenções corporais. Logo, não há necessidade de prévia autorização judicial para a realização dessas medidas, as quais podem ser de­ terminadas inclusive pela autoridade policial. Porém, mesmo com a anuência do cidadão, não se admite que o Estado submeta alguém a interven­ ções corporais que ofendam a dignidade da pessoa humana ou que coloquem em risco sua integrida­ de física ou psíquica além do que é razoavelmente tolerável. A propósito, dispõe o art. 15 do Código Civil que ‘ninguém pode ser constrangido a subme­ ter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica’. Exemplo de procedimento mais complexo que pode causar risco à saúde, o que 124. No sentido de que é plenamente válida a prova produzida me­ diante a submissão de agente a exame de raios "X", de modo a constatar

a ingestão de cápsulas de cocaína, já que não há qualquer violação ao princípio do nemo tenetur se detegere, haja vista que os exames de raios

X não exigem qualquer agir ou fazer por parte do investigado, tampouco

constituem procedimentos invasivos ou até mesmo degradantes que possam violar seus direitos fundamentais: STJ, 6a Turma, HC 149.146/SP, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 05/04/2011.

125. Essas provas não invasivas não se confundem com a busca pes­ soal. Naquelas, o objetivo precípuo é o exame do corpo; nesta, o objetivo é a localização de algo que se esteja ocultando junto ao corpo. A busca pessoal, que tem natureza preventiva, não pode ser considerada espécie de intervenção corporal porque compreende atuação externa sobre o corpo e sobre as roupas e objetos que o indivíduo traz consigo. Quanto às revistas feitas em presídios, caso realizadas de forma superficial, a fim de prevenir que visitantes levem armas ou objetos que possam colocar em risco a vida ou a saúde dos presos ou facilitar eventuais fugas, podem ser classificadas como revistas corporais e, assim, admitidas. No tocan­ te às revistas praticadas em cavidades ou orifícios do corpo humano,

comungamos do entendimento de Fiori (op. cit. p. 113), no sentido de que a busca por qualquer objeto de crime nestas regiões do corpo deva ser equiparada a uma intervenção corporal, por atingir a integridade física e a intimidade da pessoa constrangida a tal medida. Todavia, caso a pessoa se recuse a cooperar com a intervenção corporal, seu acesso ao estabelecimento prisional poderá ser obstado.

é denominado pela doutrina alemã de ingerência corporal, é a radiografia em mulheres grávidas. Na verdade, o problema quanto às provas in­ vasivas ou não invasivas diz respeito às hipóteses em que o suspeito se recusa a colaborar. No orde­ namento pátrio, não há uma regulamentação siste­ mática das intervenções corporais. Como vigora no processo penal brasileiro o princípio da liberdade probatória (CPP, art. 155, parágrafo único), segundo o qual quaisquer meios probatórios são admissíveis, mesmo que não expressamente previstos em lei, não se deve concluir por uma absoluta inadmissibilidade da utilização das intervenções corporais. Todavia, sua utilização deve se mostrar compatível com a Constituição Federal e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Portanto, caso o agente não concorde com a realização de uma intervenção corporal, deve-se distinguir o tratamento dispen­ sado às provas invasivas e às não invasivas à luz do direito de não produzir prova contra si mesmo.

Em se tratando de prova não invasiva (inspe­ ções ou verificações corporais), mesmo que o agente não concorde com a produção da prova, esta poderá ser realizada normalmente, desde que não implique colaboração ativa por parte do acusado. Além disso, caso as células corporais necessárias para realizar um exame pericial sejam encontradas no próprio lugar dos fatos (mostras de sangue, cabelos, pelos, etc.), no corpo ou vestes da vítima ou em outros objetos, poderão ser recolhidas normalmente, utili­ zando os meios normais de investigação preliminar (busca e/ou apreensão domiciliar ou pessoal). Por outro lado, cuidando-se de provas invasi­ vas, por conta do princípio do nemo tenetur se de­ tegere, a jurisprudência tem considerado que o sus­ peito, indiciado, preso ou acusado, não é obrigado a se autoincriminar, podendo validamente recusar-se a colaborar com a produção da prova, não podendo sofrer qualquer gravame em virtude dessa recusa. Em diversos julgados, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o acusado não está obrigado a se sujeitar a exame de DNA, mesmo no âmbito cível.126

Mas se o direito de não produzir prova contra si mesmo tem aplicação no âmbito extrapenal e no âmbito penal, daí não se pode concluir que a recusa em se submeter às provas invasivas seja tratada de modo semelhante no processo civil e no processo penal. De fato, há de se ficar atento à diferença do tratamento dispensado às consequências da recusa 126. STF, Tribunal Pleno, HC 71.373/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j.

10/11/1994, DJ 22/11/1996.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

do agente em produzir prova contra si mesmo, por­ quanto, no que toca exclusivamente ao processo pe­ nal, vigora o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII). Em outras palavras, se, no âmbito cível, tam­ bém é possível que o agente se recuse a produzir prova contra si mesmo, ali não vigora o princípio da presunção de inocência, daí por que a controvérsia pode ser resolvida com base na regra do ônus da prova, sendo que a recusa do réu em se submeter ao exame pode ser interpretada em seu prejuízo, no contexto do conjunto probatório. Nesse sentido, dispõe o art. 232 do Código Civil: A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame. Por sua vez, a súmu­ la n° 301 do STJ destaca que em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção iuris tantum de paternidade. Logo, apesar de o agente também não ser obriga­ do a se submeter à prova invasiva no âmbito cível, de sua recusa poderão ser extraídas consequências que lhe sejam desfavoráveis, tais como a presunção relativa de paternidade, em casos em que existam outras provas.127 De modo diverso, no processo penal, firmada a relevância do princípio da presunção de inocência, com a regra probatória que dele deriva, segundo a qual o ônus da prova recai exclusivamente sobre a parte acusadora, não se admite eventual inversão do ônus da prova em virtude de recusa do acusado em se submeter a uma prova invasiva. Assim, supon­ do um crime sexual em que vestígios de esperma tenham sido encontrados na vagina da vítima, da recusa do acusado em se submeter a um exame de DNA não se pode presumir sua culpabilidade, sob pena de violação aos princípios do nemo tenetur se detegere e da presunção de inocência.128 Como se vê, em se tratando de prova invasiva ou que exija um comportamento ativo, não é pos­ sível a produção forçada da prova contra a vontade do agente. Porém, se essa mesma prova tiver sido produzida, voluntária ou involuntariamente pelo acusado, nada impede que tais elementos sejam apreendidos pela autoridade policial. Em outras 127. Como têm se pronunciado os Tribunais, apesar da súmula 301 do STJ ter feito referência à presunção júris tantum de paternidade na hipótese de recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, os precedentes jurisprudenciais que sustentaram o entendimento sumulado definem que esta circunstância não desonera o autor de comprovar,

minimamente, por meio de provas indiciárias a existência de relaciona­ mento íntimo entre a mãe e o suposto pai. Nessa linha: STJ, 4aTurma, REsp 1,068.836/RJ, Rei. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, j. 18/03/2010, DJe 19/04/2010. 128. Nessa linha: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1997, p. 119.

palavras, quando se trata de material descartado pela pessoa investigada, é impertinente invocar o princípio do nemo tenetur se detegere. Nesse caso, é plenamente possível apreender o material descar­ tado, seja orgânico (produzido pelo próprio corpo, como saliva, suor, fios de cabelo), seja ele inorgânico (decorrentes do contato de objetos com o corpo, tais como copos ou garrafas sujas de saliva, etc.) Exem­ plificando, se não é possível retirar à força um fio de cabelo de um suspeito para realizar um exame de DNA, nada impede que um fio de cabelo desse indivíduo seja apreendido em um salão de beleza. Daí ter confirmado a Suprema Corte a lega­ lidade da determinação de coleta da placenta no procedimento médico do parto da cantora mexicana G. T., a fim de que fosse possível, posteriormente, a realização do exame de DNA, de modo a dirimir a dúvida quanto a quem era o pai da criança. Nessa situação, a intervenção médica era necessária e não houve a coleta à força da placenta, uma vez que esta é expelida do corpo humano como consequência natural do processo de parto.129 Situação semelhante ocorreu em caso envolvendo a descoberta do episó­ dio em que uma criança recém-nascida foi retirada do berçário da maternidade por uma mulher que passou a assumir perante todos ser a verdadeira mãe. Como a suposta mãe não aceitou submeter-se à coleta de material genético, esperou-se uma oportunidade para arrecadar uma ponta de cigar­ ro descartada pela “filha”, contendo partículas das glândulas salivares, o que permitiu, após a análise do DNA, ter-se a certeza de que ela, de fato, não era filha da investigada. Essa prova foi considera­ da válida, porquanto o que torna a prova ilícita é a coação por parte do Estado, obrigando o suspeito a produzir prova contra si mesmo. Como a prova foi produzida de maneira involuntária pela suposta filha, a prova então obtida foi considerada lícita.

3.8.5. Exercício total ou parcial (horizontal ou vertical) do direito de não produzir prova con­ tra si mesmo O direito que veda a autoincriminação pode ser exercido de maneira total, ou seja, quando o acusado se recusa a produzir qualquer prova contra si mesmo, negando-se, por exemplo, a participar da reconstituição do crime, a fornecer material de seu punho subscritor para um exame grafotécnico, e se­ quer comparecendo à audiência designada para seu interrogatório judicial, como também de maneira parcial, é dizer, a depender da estratégia defensiva, 129. STF, Tribunal Pleno, Rcl-QO 2.040/DF, Rei. Min. Néri da Silveira,

DJ 27/06/2003 p. 31.

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o acusado pode livremente optar por praticar certas condutas ativas para a produção de prova, negando-se, todavia, a praticar outras.

O direito ao silêncio (ou que veda a autoin­ criminação) parcial, por sua vez, subdivide-se em: a) silêncio parcial horizontal ou momentâneo: o agente se cala completamente em um dos interro­ gatórios, mas não em outro ou outros. Funciona, pois, como exercício regular do direito ao silêncio. O agente manifesta, portanto, sua vontade de não constituir meio de prova, in casu, o interrogatório, daí por que se entende que nenhuma consequência prejudicial poderá ser extraída em seu desfavor;130 b) silêncio parcial vertical: em um só depoimento, o agente responde a algumas indagações e outras ou deixa sem resposta nenhuma, ou responde lacunosa ou deficientemente. Não há silêncio parcial vertical na hipótese de o interrogando apenas negar sua culpa e nada mais responder, nem tampouco na hipótese em que responde a todas as perguntas sobre um dos fatos imputados e não as referentes a outros. Nesse caso, é dizer, em se tratando de si­ lêncio parcial vertical, parte da doutrina sustenta não haver nenhum óbice a sua valoração negativa, eis que o investigado (ou acusado) voluntariamente teria se convertido em meio de prova, daí por que submete seu depoimento parcial à livre valoração probatória em virtude do princípio da comunhão das provas.131

Firmada a premissa de que o acusado é titular do direito ao silêncio, e que tal direito pode ser exercido de maneira total ou parcial, é de rigor a conclusão no sentido que, da mesma forma que o acusado pode optar por não responder a nenhuma pergunta, per­ manecendo em silêncio total durante seu interroga­ tório, também pode optar por responder a todas as perguntas que lhe forem feitas pelos diversos agentes jurídicos (Juiz, Promotor de Justiça, advogado do as­ sistente da acusação, do querelante), ou apenas aos questionamentos formulados por seu defensor.132

130. HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Conteúdo e contornos do prin­ cípio contra a auto-incriminação. Campinas: Bookseller, 2005, p. 70-71.

131. É exatamente nesse sentido a lição de Pedro Jorge do Nascimento

Costa (Silêncio e mentida como prova: a proteção às organizações crimi­ nosas. In A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. Organizadores: Daniel de Resende Salgado; Ronaldo Pinheiro de Queiro. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 168).

132. Em sentido diverso, eis a lição de Hidejalma Muccio (op. cit. p. 896):"(...) Defendemos que a opção pelo direito de silêncio deve ser exercida para o todo, e não pergunta por pergunta. Ou o acusado faz

Nem se diga que, diante da assertiva inicial do acusado de que respondería apenas às perguntas de seu defensor, eventual prosseguimento do interroga­ tório teria o condão de tipificar o crime do art. 15, inciso I, da Lei n. 13.869/19 [“Art. 15. (...) Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem prossegue com o interrogatório: I - de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio”]. Ora, conquanto o tipo penal em questão não seja explícito ao afirmar se o direito ao silêncio aí citado estaria sendo exercido de maneira total ou parcial, até porque tal distinção é feita exclusivamente por parte da doutrina, é de todo evidente que sua tipificação está condicionada à forma pela qual o investigado (ou acusado) optou por exercer direito do qual é o titular exclusivo. Logo, se o interrogando informar que não pretende res­ ponder a nenhuma indagação (silêncio total), não se pode dar prosseguimento ao interrogatório, sob pena de subsunção da conduta, sob o ponto de vista objetivo, ao referido tipo penal incriminador. Porém, se o interrogando, ab initio, informar que pretende responder apenas às perguntas da defesa (silêncio parcial), a tipificação do delito estaria caracterizada apenas se a opção legítima por ele exercida não fosse respeitada, com o subsequente prosseguimento do ato no que tange às perguntas formuladas pela auto­ ridade judiciária, pelo órgão ministerial, etc. Daí por que, nesse caso, óbice nenhum haverá em relação ao prosseguimento do ato exclusivamente para fins de formulação dos questionamentos da defesa técnica.

Não se pode negar ao acusado, portanto, o direito ao interrogatório judicial, verdadeiro meio de defesa, pelo simples fato de ter ele optado por responder exclusivamente às perguntas formuladas por seu defensor, sob pena de flagrante nulidade da instrução probatória. Com base nesse entendimen­ to, aliás, em caso concreto em que o juiz indeferiu a realização do interrogatório do acusado, porque este teria dito, logo no início do ato, que respondería apenas às perguntas formuladas por seu advogado, o Min. Felix Fischer concedeu monocraticamente a ordem nos autos do HC 628.224/MG (STJ, j. 07.12.2020) para declarar a nulidade do feito, de­ terminando, como consequência, a realização de uma nova audiência de instrução e julgamento, assegurando-se ao acusado o direito de responder livremente apenas o que desejasse, salvo em relação a sua identificação.

que é objeto da imputação, ou opta por falar, quando não poderá recusar

3.8.6. Dever legal de interrupção imediata do interrogatório quando o imputado optar pelo exercício do direito ao silêncio

qualquer pergunta. Se o interrogatório também é meio de prova, não é razoável que se dê ao acusado o direito de escolher as perguntas que deseja e as que não deseja responder".

Muito se discute acerca do procedimento a ser adotado pela autoridade (policial ou judiciária)

opção por permanecer calado, quando não responderá acerca do fato

1 TÍTULO 1

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quando o imputado, logo no início de seu inter­ rogatório, informa que irá fazer uso do direito ao silêncio, ou que pretende responder exclusivamente às perguntas formuladas por seu defensor: impõe-se a imediata interrupção do ato? Ou é possível que a autoridade continue formulando suas perguntas, indagando do imputado os motivos que o levaram a optar pelo exercício do direito ao silêncio? Em sua redação original, o art. 191 do CPP, inserido no capítulo que trata do interrogatório do acusado, dispunha que deveríam ser consignadas as perguntas que o réu deixasse de responder e as razões que invocasse para não o fazer. O dispositi­ vo sempre foi alvo de críticas da doutrina, notadamente pelo fato de que o exercício de um direito não precisa ser justificado por seu titular. Maria Elizabeth Queijo,133 por exemplo, sustentava que a consignação das perguntas, em relação às quais o acusado exerceu o direito de calar, permitiría extrair elementos para valoração do silêncio do acusado, ainda que esses elementos não fossem declinados na fundamentação da decisão. De mais a mais, se o indivíduo está sendo compelido a declinar as razões que o levaram a se calar, está, em última análise, indiretamente respondendo às perguntas que lhe foram formuladas.

Não obstante a supressão dessa autorização le­ gal para o prosseguimento do interrogatório e con­ signação de todas as perguntas que fossem formu­ ladas ao interrogando pela Lei n. 10.792/03, que deu nova redação ao art. 191 do CPP (“Havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente”),134 a prática ainda é relativamente comum em interro­ gatórios policiais e judiciais. É dizer, a despeito de o interrogando ter optado por permanecer calado imediatamente após ser advertido quanto ao direito ao silêncio, o que deveria levar ao encerramento imediato do referido ato, a autoridade responsável pela condução do interrogatório continua fazendo suas perguntas, com o nítido propósito de cons­ tranger o indivíduo a ceder e responder aos ques­ tionamentos, constando, ao final de cada pergunta, que o imputado teria optado por exercer o direito ao silêncio.

É dentro desse contexto que deve ser compreen­ dida a nova figura delituosa introduzida pela nova

Lei de Abuso de Autoridade, cujo art. 15, parágrafo único, inciso I, criminaliza a conduta do agente pú­ blico que prossegue com o interrogatório de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio. De maneira contundente, o novo tipo penal esclarece que, uma vez feita a opção livre e voluntária pelo direito ao silêncio, seja em relação ao todo, seja de maneira seletiva, a exemplo do que ocorre quando responde apenas às perguntas formuladas por seu defensor, impõe-se a imediata interrupção do ato, sem a formulação de mais nenhum questionamen­ to.135 Toda e qualquer tentativa de dar continuidade ao ato poderá, doravante, tipificar a figura delituo­ sa em análise, desde que, logicamente, presente o elemento subjetivo especial do art. Io, §1°, da Lei n. 13.869/19 (“Finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”).

3.8.7. Consequências decorrentes do exercí­ cio do direito de não produzir prova contra si mesmo Se a Constituição Federal (art. 5o, LXIII) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, § 2o, “g”) asseguram ao sus­ peito, indiciado, acusado, ou condenado, esteja ele solto ou preso, o direito de não produzir prova con­ tra si mesmo, do exercício desse direito não pode advir nenhuma consequência que lhes seja preju­ dicial.136 Fosse possível a extração de alguma con­ sequência prejudicial ao acusado por conta de seu exercício, estar-se-ia negando a própria existência desse direito. Portanto, o exercício desse direito não pode ser utilizado como argumento a favor da acusação, não pode ser valorado na fundamentação de deci­ sões judiciais, nem tampouco ser utilizado como elemento para a formação da convicção do órgão julgador. Do uso desse direito não podem ser ex­ traídas presunções em desfavor do acusado, até mes­ mo porque milita, em seu benefício, o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII), de cuja

135. Com entendimento semelhante: GRECO, Rogério; CUNHA, Rogé­ rio Sanches. Abuso de autoridade: Lei 13.869/2019: comentada artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2019. P. 145.

134. A regra, contudo, ainda encontra previsão legal no Código de Processo Penal Militar, cujo art. 305, parágrafo único, dispõe que"consignar-se-ão as perguntas que o acusado deixar de responder e as razões

136. Segundo Maria Elizabeth Queijo,"a única consequência admissí­ vel do exercício do direito ao silêncio é que o acusado deixará de declinar elementos a seu favor, caso não responda a nenhuma das indagações formuladas. Ou seja, o acusado não fornecerá à autoridade interrogante a sua versão dos fatos e os elementos probatórios que possam dar suporte a ela. Sob tal aspecto, em alguns casos, o silêncio do acusado poderá pre­ judicar sua defesa, no todo, independentemente de qualquer valoração dele por parte do julgador. É o que ocorre nas situações que comportem

que invocar para não fazê-lo".

a indicação de um álibi, por exemplo", (op. cit. p. 221).

133. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 216.

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regra probatória deriva que o ônus da prova recai integralmente sobre a acusação.

da ilicitude do exercício regular de direito (direito de não produzir prova contra si mesmo)?

Da recusa em produzir prova contra si mesmo também não se pode extrair a tipificação do crime de desobediência (CP, art. 330). Afinal de contas, se o art. 330 do Código Penal tipifica a conduta de “desobedecer a ordem legal de funcionário públi­ co”, há de se concluir pela ilegalidade da ordem que determine que o acusado produza prova contra si mesmo. O exercício regular de um direito - de não produzir prova contra si mesmo - não pode carac­ terizar crime, nem produzir consequências desfa­ voráveis ao acusado. Sua recusa em submeter-se à determinada prova é legítima.

A nosso ver, caso haja a prática de nova in­ fração penal, de maneira autônoma e dissociada de qualquer exigência de colaboração por parte de autoridade, com o objetivo de encobrir delito ante­ riormente praticado, não há falar em incidência do nemo tenetur se detegere. Afinal, desse princípio não decorre a não punibilidade de crimes conexos pra­ ticados para encobrir a prática de outros. Não fosse assim, um crime de homicídio praticado contra a testemunha que presenciou o crime antecedente poderia ser considerado como exercício regular de direito. Portanto, em tais situações, como não há risco concreto de autoincriminação, mas mero te­ mor genérico de revelação de crime anteriormente praticado, não se pode admitir que o direito de não produzir prova contra si mesmo possa atenuar a responsabilidade criminal do agente. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou no habeas corpus impetrado em favor de A. N. e A. C. J, denunciados pelo homicídio triplamente qua­ lificado de Isabela Nardoni, e também por fraude processual, em decorrência da alteração do local do crime: “(...) O direito à não auto-incriminação não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, inovando o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, para, criando artificiosamente outra realidade, levar peritos ou o próprio Juiz a erro de avaliação relevante (...)”.138

O exercício do direito ao silêncio também não pode ser utilizado como fundamento para majora­ ção da pena do condenado, nem tampouco para dar suporte à eventual decretação de prisão cautelar, sob o argumento (equivocado) de que o acusado não colabora com a produção probatória. Nesse sentido, a Ia Turma do Supremo já decidiu que não constitui fundamento idôneo, por si só, à prisão preventiva, a consideração de que, interrogado, o acusado não haja demonstrado “interesse em colaborar com a Justiça”: ao indiciado não cabe o ônus de cooperar de qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar.137

3.8.8.0 direito de não produzir provas contra si mesmo e a prática de outros delitos Não se pode negar a importância e a relevância do direito de não produzir prova contra si mesmo. Porém, em virtude do princípio da convivência das liberdades, pelo qual não se permite que qualquer das liberdades seja exercida de modo danoso à or­ dem pública e às liberdades alheias, o direito à não autoincriminação não pode ser entendido em sen­ tido absoluto. Discute-se, assim, se seria possível reconhecer a incidência do nemo tenetur se detegere quando um segundo delito fosse praticado para encobrir o pri­ meiro. É o que ocorre, por exemplo, quando o agente, após praticar determinado delito, inova artificiosamente o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito com o objetivo de produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado (CP, art. 347, parágrafo único). Nesse caso, é possível que o agente responda pelos dois delitos em concurso material? Ou será que o segundo delito - fraude processual - está amparado pela excludente 137. STF, 1a Turma, HC 79.781/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 18/04/2000, DJ 09/06/2000.

Em sentido semelhante, no julgamento de Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida em que se discutia a constitucionali­ dade da criminalização da fuga de local de acidente constante do art. 305 do CTB (“Afastar-se o con­ dutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”),o Plenário do STF aprovou a seguinte tese: “A regra que prevê o crime do art. 305 do CTB é constitucional posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e as hipóteses de exclusão de tipicidade e de antijuridicidade”. À semelhança do que já fora decidido pelo Supremo no julgamento do RE 640.139, quan­ do se afirmou que o princípio constitucional da autoincriminação não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intuito de ocultar maus antecedentes, prevaleceu o entendimento de que não há direitos absolutos e que, no sistema de ponderação de valores, há de 138. STJ, 5a Turma, HC 137.206/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 01 /12/2009, DJe 01/02/2010.

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ser admitida certa mitigação, até mesmo do prin­ cípio da não autoincriminação. Na visão da Corte, a exigência de permanência no local do acidente e de identificação perante a autoridade de trânsito não obriga o condutor a assumir expressamente sua responsabilidade civil ou penal e tampouco enseja que seja aplicada contra ele qualquer pe­ nalidade caso assim não o proceda. Na verdade, a depender do caso concreto, a sua permanência no local pode até constituir um meio de autodefesa, na medida em que terá a oportunidade de esclarecer, de imediato, eventuais circunstâncias do acidente que lhe sejam favoráveis.139

da proporcionalidade - deve ser entendida, na abran­ gência de sua noção conceituai, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do poder público (procedural due process of law), mas, sobretudo, em sua dimensão material (substantive due process oflaw), que atua como decisivo obstáculo à edição de atos normati­ vos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due processo oflaw reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação ou de regulamentação que se revele opressiva ou des­ tituída do necessário coeficiente de razoabilidade”.141

3.9. Princípio da proporcionalidade

Em sede processual penal, o Poder Público não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. Daí a importância do princípio da proporcionalidade, que se qualifica, enquanto coefi­ ciente de aferição da razoabilidade dos atos estatais, como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.142

O princípio da proporcionalidade não está pre­ visto de maneira expressa na Constituição Federal. Porém, não há como negar sua sedes materiae na própria Carta Magna, estando inserido no aspec­ to material do princípio do devido processo legal (substantive due process oflaw) - “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art. 5o, LIV).

Com efeito, o exame da cláusula referente ao due process oflaw permite nela identificar alguns elemen­ tos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: a) direito ao processo (garan­ tia de acesso ao Poder Judiciário); b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; c) di­ reito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex postfacto; f) direito à igualdade entre as partes; g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; h) direito ao benefício da gratuidade; i) direito à observância do princípio do juiz natural; j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); 1) direito à prova; e m) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de in­ terrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes.140

Como observa o Min. Gilmar Mendes, “a cláu­ sula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5o, LIV, da Constituição, e que traduz um dos fundamentos dogmáticos do princípio 139. STF, Pleno, RE 971,959/RS, Rei. Min. Luiz Fux, j. 14/11/2018. É cons­ titucional o tipo penal que prevê o crime de fuga do local do acidente (CTB, art. 305): STF, Pleno, ADC 35/DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 09.10.2020.

140. Nesse sentido: STF, 2a Turma, HC 94.016/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 038 26/02/2009.

Essa é a razão pela qual a doutrina, após des­ tacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa - adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas cons­ titucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do due process oflaw.143

A fim de conferir segurança e consistência à aplicação do princípio da proporcionalidade, doutrina e jurisprudência conceberam pressu­ postos e requisitos a serem atendidos para que o 141. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 65.

142. Segundo Luís Roberto Barroso, há uma relação de fungibilidade entre o princípio da proporcionalidade e o da razoabilidade, cuja origem remonta à garantia do devido processo legal, principalmente na fase em que se atribui a essa garantia feição substancial. Ao discorrer sobre o

princípio da razoabilidade, o referido autor aponta os mesmos requisitos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, traba­ lhados pela doutrina e pela jurisprudência como requisitos do princípio da proporcionalidade em sentido amplo. (Interpretação e aplicação da Constituição. 4a ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 219).

143. Nesse sentido: STUMM, Raquel Denize. Princípio da Proporcio­ nalidade no Direito Constitucional Brasileiro, p. 159/170,1995, Livraria do

Advogado Editora; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos Humanos Fundamentais, p. 111/112, item n° 14, 1995, Saraiva; BONAVIDES, Pau­ lo. Curso de Direito Constitucional, p. 352/355, item n° 11, 4a ed., 1993, Malheiros.

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princípio pudesse ser aplicado de maneira coerente e legítima.144

devem ser socialmente relevantes para justificar a limitação a um direito fundamental.

O princípio da proporcionalidade tem como pressuposto formal o princípio da legalidade, e como pressuposto material o princípio da justifi­ cação teleológica.

Além dos pressupostos da legalidade e da jus­ tificação teleológica, o princípio da proporcionali­ dade também possui requisitos extrínsecos e intrín­ secos. Subdividem-se os primeiros nos requisitos da judicialidade e da motivação; os segundos, na adequação (ou idoneidade), necessidade e propor­ cionalidade em sentido estrito.

O princípio da legalidade processual, desdobra­ mento do princípio geral da legalidade (CF, art. 5o, incisos II e LIV), demanda tanto a regulamentação, por lei, dos direitos exercitáveis durante o proces­ so, como também a autorização e a regulamenta­ ção de qualquer intromissão na esfera dos direitos e liberdades dos cidadãos, efetuada por ocasião de um processo penal. Logo, por força do princípio da legalidade, todas as medidas restritivas de di­ reitos fundamentais deverão ser previstas por lei (nulla coactio sine lege), que deve ser escrita, estrita e prévia. Evita-se, assim, que o Estado realize atua­ ções arbitrárias, a pretexto de aplicar o princípio da proporcionalidade.

Afinal, como destaca Maurício Zanoide de Mo­ raes, “é norma basilar de um Estado Democrático de Direito que, no âmbito criminal (penal ou proces­ sual penal), somente poderá acontecer coerção da esfera de direitos individuais se houver lei anterior clara, estrita e escrita que a defina {nulla coertio sine lege). A legalidade, que deve obedecer a todos os di­ tames constitucionais de produção legislativa, con­ fere a um só tempo (i) a segurança jurídica a todos os cidadãos para conhecerem em quais hipóteses e com que intensidade os agentes persecutórios po­ dem agir e, também, (ii) a previsibilidade necessária para, de antemão, saber quando os agentes públicos agem dentro dos limites legais e se estão autorizados a restringir os direitos fundamentais”.145

Por seu turno, por força do princípio da justi­ ficação teleológica, busca-se a legitimação do uso da medida cautelar, a partir da demonstração das razões pelas quais a aplicação da medida tornou-se necessária em relação ao fim que se objetiva alcançar. Cabe aqui analisar se o fim almejado é constitucionalmente legítimo e se possui relevância social. Quanto à legitimidade constitucional, pode ser necessária a restrição de determinado direito fundamental não apenas para proteger outro direito fundamental, mas também bens constitucionalmen­ te tutelados. Em relação à relevância social, os fins

144. SERRANO, Nicolas Gonzales-Cuellar. Proporcionalidady derechos fundamentales en elprocesopenal. Madrid: Colex, 1990. Capítulo 5, item 1.

145. Sigilo no processo penal: eficiência e garantismo. Coordenação: Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida e Maurício Za­ noide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 33-34.

Por judicialidade compreende-se a exigência que as limitações aos direitos fundamentais somente possam ocorrer por decisão do órgão jurisdicional competente. A denominada cláusula de reserva de jurisdição garante ao Poder Judiciário não apenas dar a última palavra em matéria de restrição de di­ reitos fundamentais, como também assegurar sua manifestação já no primeiro momento em que a restrição se mostrar necessária.146

Quanto à motivação, há de se ter em mente que, em se tratando de decisões das quais resulte, de alguma forma, restrição a direitos fundamentais, será por meio da fundamentação da decisão judicial que se poderá aferir quais os motivos de fato e de direito levados em consideração pelo magistrado para a formação de seu convencimento, permitindo ao cidadão impugnar o ato se o entender inconsti­ tucional ou ilegal. Os requisitos intrínsecos, também denomi­ nados de subprincípios da proporcionalidade ou elementos de seu conteúdo, são a adequação (ou idoneidade), a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Esses três subprincípios da pro­ porcionalidade são bem sintetizados por Willis San­ tiago Guerra Filho: “Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim alme­ jado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens.”147*

146. A propósito da importância do Poder Judiciário como instrumen­ to concretizador das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados por tratados internacionais firmados pelo Brasil, oportuna é a lição do Min. Celso de Mello:"0 juiz, no plano de nossa organização institucional, representa o órgão estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitu­ cional de direitos e reconhecidas pelos atos e convenções internacionais fundados no direito das gentes. Assiste, desse modo, ao Magistrado, o dever de atuar como instrumento da Constituição - e garante de sua supremacia - na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade aos di­ reitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível

que se impõe aos magistrados". (STF, Tribunal Pleno, RE 466.343/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 03/12/2008, DJe 104 04/06/2009). 147. Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza, UFC - Imprensa Uni­ versitária, 1989. p. 75.

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3.9.1. Da adequação O primeiro requisito intrínseco ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo é o da adequa­ ção, também denominado de princípio da idoneida­ de ou da conformidade. Por força da adequação, a medida restritiva será considerada adequada quan­ do for apta a atingir o fim proposto. Não se deve permitir, portanto, o ataque a um direito fundamen­ tal se o meio adotado não se mostrar apropriado à consecução do resultado pretendido.

Essa adequação deve ser aferida num plano qua­ litativo, quantitativo e também em seu âmbito subje­ tivo de aplicação. A adequação qualitativa impõe que as medidas sejam qualitativamente aptas a alcançar o fim desejado, ou seja, idôneas por sua própria natu­ reza. Exemplificando, se o objetivo é evitar a fuga do acusado, não faz sentido querer proibi-lo de entrar em contato com certas pessoas, pois a medida adotada se­ ria qualitativamente inadequada. A adequação quanti­ tativa cuida da duração e da intensidade da medida em relação à finalidade pretendida. Supondo-se que uma prisão preventiva tenha sido decretada para assegurar a conveniência da instrução criminal, uma vez concluída a instrução processual, a medida deve ser revogada, a não ser que haja outro motivo legal que justifique a segregação do acusado. Por derradeiro, a adequação na determinação do âmbito subjetivo de aplicação diz respeito à individualização do sujeito passivo da medi­ da e à proibição de extensão indevida de sua aplicação. Afinal, a depender das circunstâncias do caso concreto, uma medida, em um mesmo processo, pode ser sub­ jetivamente adequada em relação a um dos acusados, mas não sê-lo em relação a outro. Por isso, no âmbito processual penal, para que sejam adotadas medidas restritivas, é necessário que haja indícios de autoria ou de participação na prática de determinada infra­ ção penal, sendo que, a depender da ingerência a ser realizada, exige-se maior grau de suspeita.148

Com base no subprincípio da adequação, há, portanto, uma relação de meio e fim, devendo se questionar se o meio escolhido contribui para a ob­ tenção do resultado pretendido.

3.9.2. Da necessidade O segundo requisito ou subprincípio da pro­ porcionalidade é o da necessidade ou da exigibi­ lidade, também conhecido como princípio da in­ tervenção mínima, da menor ingerência possível, da alternativa menos gravosa, da subsidiariedade,

da escolha do meio mais suave, ou da proibição de excesso.

Por força dele, entende-se que, dentre várias medidas restritivas de direitos fundamentais idôneas a atingir o fim proposto, deve o Poder Público es­ colher a menos gravosa, ou seja, aquela que menos interfira no direito de liberdade e que ainda seja capaz de proteger o interesse público para o qual foi instituída. Como aponta a doutrina, o princípio da ne­ cessidade é princípio constitucional porque deriva da proibição do excesso; é princípio comparativo porque induz o órgão da persecução penal à busca de medidas alternativas idôneas; tende à otimização da eficácia dos direitos fundamentais porque obriga a refutar as medidas que possam ser substituídas por outras menos gravosas, com o que se diminui a lesividade da intromissão na esfera dos direitos e liberdades do indivíduo.149

Assim, entre diversas opções idôneas a atingir determinado fim, deve o magistrado buscar aquela que produza menos restrições à obtenção do resulta­ do. Em outras palavras, deve o juiz se indagar acerca da existência de outra medida menos gravosa apta a lograr o mesmo objetivo. A título de exemplo, por conta do art. 2o, inciso II, da Lei n° 9.296/96, a interceptação de comunicações telefônicas só poderá ser deferida quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis, ou seja, se for possível comprovar-se o fato por meio de prova menos gravoso, não se justifica a violação à intimidade. Por outro lado, no caso de prisões cautelares, lembra Carnelutti que a medida “se assemelha a um daque­ les remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também podem ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela!”150

3.9.3. Da proporcionalidade em sentido estrito O terceiro subprincípio - proporcionalidade em sentido estrito - impõe um juízo de pondera­ ção entre o ônus imposto e o benefício trazido, a fim de se constatar se se justifica a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. De acordo com Canotilho, “uma lei restritiva, mesmo adequada e 149. SERRANO, Nicolas Gonzales-Cuellar. Proporcionalidady derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990. p. 189.

148. Nesse sentido: DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. Medidas substitutivas e alternativas à prisão cautelar. Op. cit. p. 67-68.

150. Lecciones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Santis Melendo. Buenos Aires: Editora Bosch, 1950, v. II, p. 75.

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necessária, pode ser inconstitucional, quando adote cargas coativas de direitos, liberdades e garantias desmedidas, desajustadas, excessivas ou despropor­ cionadas em relação aos resultados obtidos”.151

Entre os valores em conflito - o que demanda a adoção da medida restritiva e o que protege o di­ reito individual a ser violado - deve preponderar o de maior relevância. Há de se indagar, pois, se o gravame imposto ao titular do direito fundamental guarda relação de proporcionalidade com a impor­ tância do bem jurídico que se pretende tutelar. No âmbito processual penal, este juízo de ponderação opera-se entre o interesse individual e o interesse estatal. De um lado, o interesse do indivíduo na ma­ nutenção de seu ius libertatis, com o pleno gozo dos direitos fundamentais. Do outro, o interesse estatal nas medidas restritivas de direitos fundamentais está consubstanciado pelo interesse na persecução penal, objetivando-se a tutela dos bens jurídicos protegidos pelas normas penais.

4. LEI PROCESSUAL PENAL NO ESPAÇO Enquanto à lei penal aplica-se o princípio da territorialidade (CP, art. 5o) e da extraterritorialidade incondicionada e condicionada (CP, art. 7o), o Código de Processo Penal adota o princípio da territorialidade ou da lexfori. E isso por um motivo óbvio: a atividade jurisdicional é um dos aspectos da soberania nacional, logo, não pode ser exercida além das fronteiras do respectivo Estado.

Assim, mesmo que um ato processual tenha que ser praticado no exterior, v.g., citação, intima­ ção, interrogatório, oitiva de testemunha, etc., a lei processual penal a ser aplicada é a do país onde tais atos venham a ser realizados. Na mesma linha, apli­ ca-se a lei processual brasileira aos atos referentes às relações jurisdicionais com autoridades estrangeiras que devam ser praticados em nosso país, tais como os de cumprimento de carta rogatória (CPP, arts. 783 e seguintes), homologação de sentença estran­ geira (CPP, arts. 787 e seguintes), procedimento de extradição (Lei n° 13.445), etc. Na visão da doutrina, todavia, há situações em que a lei processual penal de um Estado pode ser aplicada fora de seus limites territoriais: a) aplicação da lei processual penal de um Estado em território nullius; b) quando houver autorização do Estado onde deva ser praticado o ato processual; c) em caso de guerra, em território ocupado. 151. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 4a ed. Coimbra: Almedina, 1989. p. 488.

Confirmando a adoção do princípio da terri­ torialidade, o art. Io do CPP dispõe que o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, pelo Código de Processo Penal, ressalvados: I - os trata­ dos, as convenções e regras de direito internacional; II - as prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade; III - os processos da compe­ tência da Justiça Militar; IV - os processos da com­ petência do tribunal especial; V - os processos por crimes de imprensa. Ademais, segundo o parágrafo único do art. Io, aplicar-se-á, entretanto, o CPP aos processos referidos nos incisos IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso.

Além do art. Io do CPP, especial atenção tam­ bém deve ser dispensada ao art. 5o, § 4o, da Consti­ tuição Federal, que prevê que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Tem-se aí mais uma hipótese de não aplicação da lei processual penal brasileira aos crimes praticados no país, nas restritas situações em que o Estado brasileiro re­ conhecer a necessidade do exercício da jurisdição penal internacional. Portanto, como se percebe, a regra é que todo e qualquer processo penal que surgir no território nacional deva ser solucionado consoante as regras do Código de Processo Penal (locus regit acturn). Há, todavia, exceções.

4.1. Tratados, convenções e regras de direito internacional Em matéria penal, deve-se adotar, em regra, o princípio da territorialidade, desenvolvendo-se na justiça pátria o processo e os respectivos incidentes, não se podendo olvidar, outrossim, de eventuais tra­ tados ou outras normas internacionais a que o país tenha aderido, nos termos dos arts. Io do CPP e 5o, caput, do CP. Tem-se, assim, que a competência in­ ternacional é regulada ou pelo direito internacional ou pelas regras internas de determinado país, tendo por fontes os costumes, os tratados normativos e outras regras de direito internacional. Portanto, não há ilegalidade na utilização, em processo penal em curso no Brasil, de informações compartilhadas por força de acordo internacional de cooperação em matéria penal e oriundas de quebra de sigilo bancário determinada por autoridade es­ trangeira, com respaldo no ordenamento jurídico de seu país, para a apuração de outros fatos criminosos

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lá ocorridos, ainda que não haja prévia decisão da justiça brasileira autorizando a quebra do sigilo.152 Aliás, considerando-se que cada país tem a inde­ pendência para estabelecer quais medidas investigativas se submetem à reserva de jurisdição, como modo de instituir uma cautela adicional à tutela da intimidade de seus cidadãos, revela-se inviável exigir-se uniformidade sobre o tema no regramento dos diversos Estados soberanos, sob pena de se inviabilizar a própria cooperação jurídica interna­ cional. Destarte, não viola a ordem pública brasilei­ ra o compartilhamento direto de dados bancários pelos órgãos investigativos mesmo que, no Estado de origem, sejam obtidos sem prévia autorização judicial, se a reserva de jurisdição não é exigida pela legislação local.153 A bem da preservação da soberania dos Estados requerentes e requerido, o ato de delegação, expressa ou tácita, da condução e direção de produção de prova oral a autoridade estrangeira, a fim de que esta proceda diretamente à inquirição da testemu­ nha ou do investigado, não encontra qualquer tipo de respaldo constitucional, legal ou jurisprudencial. Não por outro motivo, em caso concreto em que o Tribunal de Grande Instância de Paris (França) solicitou cooperação jurídica em matéria penal a fim de que fossem realizadas diversas diligências no Brasil, dentre elas a oitiva do investigado, a 6a Turma do STJ reconheceu a nulidade do referido ato, por­ quanto todas as perguntas foram formuladas direta e exclusivamente pela autoridade judiciária francesa que acompanhava o Membro do Ministério Público Federal nomeado para realizar as diligências. O ideal é concluir, portanto, que nada impede a presença de agentes públicos estrangeiros em audiências reali­ zadas no território nacional, conquanto não interfi­ ram, direta ou indiretamente, na direção do referido ato processual.154

Noutro giro, por força da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo Decreto Legislativo 103/1964, e promulgada pelo Decreto n° 56.435, de 08/06/1965, Chefes de governo estrangei­ ro ou de Estado estrangeiro, suas famílias e mem­ bros das comitivas, embaixadores e suas famílias, funcionários estrangeiros do corpo diplomático e suas famílias, assim como funcionários de organi­ zações internacionais em serviço (ONU, OEA, etc.) 152. Nessa linha: STJ, 5aTurma, HC 231.633/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 25/11/2014, DJe 3/12/2014.

gozam de imunidade diplomática, que consiste na prerrogativa de responder no seu país de origem pelo delito praticado no Brasil.

Como se percebe, por conta de tratados ou convenções que o Brasil haja firmado, ou mesmo em virtude de regras de Direito Internacional, a lei processual penal deixa de ser aplicada aos crimes praticados por tais agentes no território nacional, criando-se, assim, verdadeiro obstáculo processual à aplicação da lei processual penal brasileira. Destarte, tais pessoas não podem ser presas e nem julgadas pela autoridade do país onde exercem suas funções, seja qual for o crime praticado (CPP, art. Io, inciso I). Em caso de falecimento de um di­ plomata, os membros de sua família “continuarão no gozo dos privilégios e imunidades a que têm di­ reito, até a expiração de um prazo razoável que lhes permita deixar o território do Estado acreditado” (art. 39, § 3o, da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas). Admite-se renúncia expressa à garan­ tia da imunidade pelo Estado acreditante, ou seja, aquele que envia o Chefe de Estado ou representan­ te. Tal imunidade não é extensiva aos empregados particulares dos agentes diplomáticos.

Quanto ao cônsul, este só goza de imunidade em relação aos crimes funcionais (Convenção de Viena de 1963 sobre Relações Consulares - Decre­ to n° 61.078, de 26/07/1967). Esse o motivo pelo qual, ao apreciar habeas corpus referente a crime de pedofilia supostamente praticado pelo Cônsul de Israel no Rio de Janeiro, posicionou-se a Supre­ ma Corte pela inexistência de obstáculo à prisão preventiva, nos termos do art. 41 da Convenção de Viena, pois os fatos imputados ao paciente não guar­ davam pertinência com o desempenho das funções consulares.155

4.2. Prerrogativas constitucionais do Presiden­ te da República e de outras autoridades Refere-se a segunda ressalva do art. Io do CPP às prerrogativas constitucionais do Presidente da República e de outras autoridades, em relação aos crimes de responsabilidade. A denominada Justiça Política corresponde à atividade jurisdicional exercida por órgãos políticos, alheios ao Poder Judiciário, apresentando como ob­ jetivo precípuo o afastamento do agente público que comete crimes de responsabilidade de suas funções.

153. STJ, 5a Turma, AREsp 701.833/SP, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 04.05.2021.

154. STJ, 6a Turma, RHC 102.322/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz,j. 12/05/2020, DJe 22/05/2020.

155. STF, 1a Turma, HC 81.158/RJ, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 19/12/2002.

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A título de exemplo, de acordo com o art. 52, incisos I e II, da Constituição Federal, compete pri­ vativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, assim como os Minis­ tros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, bem como os Mi­ nistros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Na­ cional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade, observando-se, em relação ao Presidente da República e aos Ministros de Estado, a competência da Câmara dos Deputados para a ad­ missibilidade e a formalização da acusação (CF, art. 51,1; CF, art. 86; Lei n° 1.079/50, art. 20 e seguintes).

Por sua vez, compete a um Tribunal Especial, composto por cinco Deputados, escolhidos pela As­ sembléia, e cinco Desembargadores, sorteados pelo Presidente do Tribunal de Justiça, que também o presidirá (Lei n° 1.079/50, art. 78, § 3o), processar e julgar, nos crimes de responsabilidade, o Governa­ dor, o Vice-Governador, e os Secretários de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos com aque­ les, assim como o Procurador-Geral de Justiça e o Procurador-Geral do Estado. No caso de crimes de responsabilidade prati­ cados por Prefeitos Municipais (infrações político- administrativas), que são os tipificados no art. 4o do Decreto-lei n° 201/67, a competência para julga­ mento é da Câmara Municipal. O processo pressu­ põe que o Prefeito Municipal esteja no exercício do mandato, na medida em que a única sanção prevista é a cassação do mandato. Conquanto a Constituição Federal e a legislação ordinária acima referida (Lei n° 1.079/50 e Decre­ to-lei n° 201/67) se refiram à prática de crimes de responsabilidade, atribuindo ao Senado Federal, ao Tribunal Especial e à Câmara Municipal o exercício dessa atividade jurisdicional atípica, tecnicamente não há falar em crime, mas sim no julgamento de uma infração político-administrativa.156

Nesse cenário, é indispensável diferenciarmos crimes de responsabilidade em sentido amplo de crimes de responsabilidade em sentido estrito.

(CP, art. 327) funciona como elementar do delito. É o que ocorre com os crimes praticados por fun­ cionários públicos contra a administração pública (CP, arts. 312 a 326). Esses crimes de responsabili­ dade em sentido amplo estão inseridos naquilo que a Constituição Federal denomina de crimes comuns ou infrações penais comuns.

Por seu turno, crimes de responsabilidade em sentido estrito são aqueles que somente podem ser praticados por determinados agentes políticos. Prevalece o entendimento de que não têm nature­ za jurídica de infração penal, mas sim de infração político-administrativa, passível de sanções políti­ co-administrativas, aplicadas por órgãos jurisdicionais políticos (normalmente órgãos mistos, com­ postos por parlamentares ou por parlamentares e magistrados). Como desses crimes de responsabi­ lidade não decorre sanção criminal, não podem ser qualificados como infrações penais, figurando, pois, como infrações políticas da alçada do Direito Constitucional.157

4.3. Processos da competência da Justiça Militar Outra ressalva feita pelo art. Io do CPP diz respeito aos processos da competência da Justiça Militar. De acordo com o art. 124 da Constituição Federal, à Justiça Militar da União compete pro­ cessar e julgar os crimes militares definidos em lei. Lado outro, segundo o art. 125, § 4o, da Carta Magna, compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes milita­ res definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da pa­ tente dos oficiais e da graduação das praças.

A inaplicabilidade do Código de Processo Penal no âmbito da Justiça Militar justifica-se pelo fato de ser aplicável, na Justiça Castrense, o Código Penal Militar (Decreto-Lei n° 1.001/69) e o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei n° 1.002/69). Entretanto, é importante destacar que o próprio es­ tatuto processual penal militar prevê a possibilidade de os casos omissos serem supridos pela legislação

do Judiciário a competência para o julgamento de crimes de responsa­ bilidade (art. 105,1, a, por exemplo), não se estará exercendo outro tipo de jurisdição que não seja a de natureza política, diante da natureza

157. De acordo com o art. 2o da Lei n° 1.079/50, os crimes definidos nesta Lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até 5 (cinco) anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos proces­ sos contra o Presidente da República ou ministros de Estado, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador-Geral da República. Além disso, "a imposição da pena referida no artigo anterior (art. 2o) não exclui o processo e julgamento do acusado por crime co­ mum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal." (Lei

igualmente política das infrações" (op. cit. p. 188).

n° 1.079/50, art. 3o).

Crimes de responsabilidade em sentido amplo são aqueles cuja qualidade de funcionário público 156. Segundo Pacelli, "mesmo quando a Constituição atribui a órgãos

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de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar (CPPM, art. 3o, alínea “a”).

Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal.

4.6. Crimes eleitorais

4.4. Processos da competência do tribunal especial O art. Io, inciso IV, do CPP, faz menção aos processos da competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, n° 17). Os artigos citados referem-se à Constituição de 1937, sendo que esse tribunal especial a que faz menção o inciso IV é o antigo Tribunal de Segurança Nacional, que já não existe mais, visto que foi extinto pela Constituição de 1946. O art. 122, n° 17 da Carta de 1937 previa que “os crimes que atentarem contra a existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular serão submetidos a processo e julgamento perante tribunal especial, na forma que a lei instituir”.

Pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 14.197 em data de Io de dezembro de 2021, os cri­ mes contra a segurança nacional estavam previstos na revogada Lei n° 7.170/83. Apesar de o art. 30 do revogado diploma normativo dispor que tais crimes seriam da competência da Justiça Militar, referido dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, porquanto, segundo o seu art. 109, inciso IV, Ia parte, compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes políticos, com recurso ordinário para o Supremo (CF, art. 102, II, “b”).158

4.5. Crimes de imprensa Outra ressalva constante do art. Io do CPP diz respeito aos processos penais por crimes de im­ prensa. Referidos delitos estavam previstos na Lei n° 5.250/67. Dizemos que estavam previstos na Lei n° 5.250/67 porque, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 130, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67.159

Como decidiu a própria Suprema Corte, a não recepção da Lei de Imprensa não impede o curso regular dos processos fundamentados nos dispositi­ vos legais da referida lei, nem tampouco a instaura­ ção de novos processos, aplicando-se lhes, contudo, as normas da legislação comum, notadamente, o 158. Para mais detalhes acerca da competência para o processo e jul­ gamento dos novos crimes contra o Estado Democrático de Direito, remete­ mos o leitor ao título atinente à competência criminal, mais precisamente ao tópico referente à competência da Justiça Federal. 159. STF - ADPF n° 130/DF, Rei. Min. Carlos Britto, 30/04/2009.

Apesar de o art. Io do Código de Processo Pe­ nal não fazer expressa referência aos processos cri­ minais da competência da Justiça Eleitoral, isso se justifica pelo fato de, à época da elaboração do CPP, estar em vigor a Constituição de 1937, que não tra­ tava da Justiça Eleitoral, e muito menos dos crimes eleitorais, já que, vigia, então, um regime de exceção. Todavia, a Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 121 que Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juizes de direito e das juntas eleitorais. Destarte, embora editado como lei ordinária, o Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65) foi recepcionado pela Constituição Fe­ deral como Lei complementar, mas tão somente no que tange à organização judiciária e competência eleitoral, tal qual prevê a Carta Magna (CF, art. 121, caput). Portanto, no tocante à definição dos crimes eleitorais, as normas postas no Código Eleitoral mantêm o status de lei ordinária.160

4.7. Outras exceções O art. Io do CPP faz menção expressa apenas às ressalvas anteriormente trabalhadas. Todavia, face a existência de diversas leis especiais, editadas após a vigência do CPP (Io de janeiro de 1942), com pre­ visão expressa de procedimento distinto, conclui-se que, por força do princípio da especialidade, a tais infrações será aplicável a respectiva legislação, aplicando-se o Código de Processo Penal apenas subsidiariamente. Vários exemplos podem ser lembrados:

1) Os crimes da competência originária dos Tribunais possuem procedimento específico pre­ visto na Lei n° 8.038/90;

2) As infrações de menor potencial ofensivo, assim compreendidas as contravenções penais e cri­ mes cuja pena máxima não seja superior a 02 (dois) anos, cumulada ou não com multa, submetidos ou não a procedimento especial, devem ser processadas e julgadas pelos Juizados Especiais Criminais, pelo menos em regra, com procedimento regulamentado pela Lei n° 9.099/95; 3) Os crimes falimentares também possuem procedimento especial disciplinado na Lei n° 11.101/05 (arts. 183 a 188); 160. Para mais detalhes acerca da competência da Justiça Eleitoral, remetemos o leitor ao título atinente à Competência Criminal.

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4) O Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/03, art. 94) também possui dispositivos expressos acerca do procedimento a ser aplicado aos crimes ali previstos; 5) A Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06) também estabelece dispositivos processuais penais específicos quanto às hipóteses de violência domés­ tica e familiar contra a mulher;

6) A Lei de drogas (Lei n° 11.343/06) traz em seu bojo um capítulo inteiro dedicado ao procedi­ mento penal, prevendo expressamente a possibilida­ de de aplicação, subsidiária, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal (art. 48, caput).

5. LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO A legislação processual penal tem sofrido inú­ meras alterações nos últimos anos. Diante da suces­ são de leis no tempo, apresenta-se de vital impor­ tância o estudo do direito intertemporal.

No âmbito do Direito Penal, o tema não apre­ senta maiores controvérsias. Afinal, por força da Constituição Federal (art. 5o, XL), a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Logo, cui­ dando-se de norma penal mais gravosa, como, por exemplo, o art. 141, §2°, do CP, incluído pela Lei n. 13.964, de 2019,161 vige o princípio da irretroatividade. Da mesma forma que a lei penal mais grave não pode retroagir, é certo que a lei mais benéfica é dotada de extratividade: fala-se, assim, em ultratividade quando a lei, mesmo depois de ser revo­ gada, continua a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência; por sua vez, retroatividade seria a possibilidade conferida à lei penal de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anterior­ mente à sua entrada em vigor. Outrossim, é firme a jurisprudência no sentido de que não há falar em irretroatividade de interpretação jurisprudencial, uma vez que o ordenamento jurídico proíbe apenas a retroatividade da lei penal mais gravosa.162 Raciocínio distinto, porém, é aplicável ao pro­ cesso penal. De acordo com o art. 2o do CPP, que consagra o denominado princípio tempus regit actum, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Como se vê, por força do 161. CP: "Art. 141. (...) §2° Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computa­ dores, aplica-se em triplo a pena". Inicialmente, o dispositivo havia sido vetado pelo Presidente da República. O Congresso Nacional, porém, de­

liberou por rejeitar o veto. 162. Nessa linha: STF, 1a Turma, HC 161.452 AgR, Rei. Min. Luiz Fux, j. 06/03/2020, DJe 1°/4/2020; STJ, 5a Turma, AgRg nos EDcl no AREsp 1.361.814/RJ, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 19.05.2020; STJ, 5a Turma, Edcl nos EDcl no AgRg no AREsp 1.316.819-RS, Rei. Min. Reynaldo

Soares da Fonseca, j. 16.06.2020, DJe 25.06.2020.

art. 2o do CPP, incide no processo penal o princí­ pio da aplicabilidade imediata, no sentido de que a norma processual aplica-se tão logo entre em vigor, sem prejuízo da validade dos atos já praticados ante­ riormente. O fundamento da aplicação imediata da lei processual é que se presume seja ela mais perfeita do que a anterior, por atentar mais aos interesses da Justiça, salvaguardar melhor o direito das partes, garantir defesa mais ampla ao acusado, etc. Por­ tanto, ao contrário da lei penal, que leva em conta o momento da prática delituosa (tempus delicti), a aplicação imediata da lei processual leva em con­ sideração o momento da prática do ato processual (tempus regit actum). Do princípio tempus regit actum derivam dois efeitos: a) os atos processuais praticados sob a vi­ gência da lei anterior são considerados válidos; b) as normas processuais têm aplicação imediata, re­ gulando o desenrolar restante do processo.

Apesar de o art. 2o do CPP não estabelecer qualquer distinção entre as normas processuais, doutrina e jurisprudência têm trabalhado crescen­ temente com uma subdivisão dessas regras: a) normas genuinamente processuais: são aquelas que cuidam de procedimentos, atos pro­ cessuais, técnicas do processo. A elas se aplica o art. 2o do CPP;

b) normas processuais materiais (mistas ou híbridas): são aquelas que abrigam naturezas diver­ sas, de caráter penal e de caráter processual penal. Normas penais são aquelas que cuidam do crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da con­ denação e do direito de punir do Estado (v.g., cau­ sas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais são aquelas que versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Assim, se um dispositivo legal, embora inserido em lei processual, versa sobre regra penal, de direito material, a ele serão aplicáveis os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna. Não há consenso na doutrina acerca do conceito de normas proces­ suais materiais ou mistas. Uma primeira corrente sustenta que normas processuais materiais ou mistas são aquelas que, apesar de disciplinadas em diplo­ mas processuais penais, dispõem sobre o conteúdo da pretensão punitiva, tais como aquelas relativas ao direito de queixa, ao de representação, à prescrição e à decadência, ao perdão, à perempção, etc.163 Uma 163. Com esse entendimento: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 139. Para o autor, as regras vinculadas à prisão do réu

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segunda corrente, de caráter ampliativo, sustenta que normas processuais materiais são aquelas que estabe­ lecem condições de procedibilidade, meios de pro­ va, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que produzam reflexos no direito de liberda­ de do agente -, ou seja, todas as normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.164 Independentemente da corrente que se queira adotar, é certo que às normas processuais materiais se aplica o mesmo critério do direito penal, isto é, tratando-se de norma benéfica ao agente, mesmo depois de sua revogação, referida lei continuará a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência (ultratividade da lei processual penal mista mais benéfica); na hipótese de novatio legis in mellius, referida norma será dotada de caráter retroativo, a ela se conferindo o poder de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anteriormente a sua vigência.

São inúmeros os exemplos de normas proces­ suais materiais que têm se sucedido no tempo.165 Vejamos alguns deles.

5.1. Lei n° 9.099/95 e seu caráter retroativo De acordo com o art. 90 da Lei n° 9.099/95, as disposições da Lei dos Juizados Especiais Crimi­ nais não seriam aplicáveis aos processos penais cuja instrução já estivesse iniciada. Discutiu-se, à época, se seria possível que esse dispositivo restringisse a aplicação da referida lei aos processos penais cuja instrução já estivesse em curso.

Sem dúvida alguma, trata-se a Lei n° 9.099/95 de norma processual híbrida ou mista, porquanto reúne dispositivos de natureza genuinamente pro­ cessual e de natureza material. De fato, no tocante ao procedimento sumaríssimo ali previsto, fica evi­ dente que se aplica o art. 2o do CPP, já que se trata de norma genuinamente processual.

Não obstante, não se pode perder de vista que a Lei n° 9.099/95 também introduziu no ordenamento jurídico institutos despenalizadores que produzem

nítidos reflexos no exercício do jus puniendi, tais como a composição civil dos danos, a transação penal, a exigência de representação para os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa e a suspensão condicional do processo. A título de exemplo, basta pensar que o cumprimento das con­ dições fixadas na proposta de suspensão condicio­ nal do processo acarreta a extinção da punibilidade (Lei n° 9.099/95, art. 89, § 5o). Na mesma linha, a composição civil dos danos é causa de renúncia ao direito de queixa ou representação (Lei n° 9.099/95, art. 74, parágrafo único).

Diante dessa natureza mista da Lei n° 9.099/95, o Supremo Tribunal Federal acabou por concluir que as normas de direito penal nela inseridas que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem re­ troagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5o, XL, da Constituição federal. Assim, conferiu interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réu contidas na citada lei.166 Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode querer emprestar caráter retroativo ao art. 90-A da Lei n° 9.099/95. Explica-se: por força da Lei n° 9.839/99, foi inserido o art. 90-A à Lei n° 9.099/95, que passou a dispor: “As disposições da Lei dos Jui­ zados Especiais Criminais não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”.

Ao suprimir a aplicação dos institutos despe­ nalizadores da Lei dos Juizados no âmbito da Jus­ tiça Militar, fica evidente que a Lei n° 9.839/99 tem natureza processual material, ou seja, cuida-se de norma que, embora disciplinada em diploma pro­ cessual penal, produz reflexos no ius libertatis do agente, pois priva o agente do gozo de institutos des­ penalizadores como a composição civil dos danos, a transação penal, a representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa e a suspensão condicional do processo.

165. Para a análise da discussão em torno das Leis 12.015/09 e 12.033/09, que modificaram a espécie de ação penal nos crimes contra

Como consequência, o critério de direito intertemporal a ser aplicado não é o da aplicação ime­ diata da norma processual (tempus regit actum), constante do art. 2o do CPP, mas sim o critério da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Assim, como a lei tem natureza nitidamente gravosa, pois priva o autor de crime militar da incidência dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, há de se concluir que o art. 90-A só se aplica aos crimes

a dignidade sexual e injúria racial, respectivamente, remetemos o leitor ao capítulo referente à ação penal. No tocante à supressão das prisões decorrentes de pronúncia e de sentença condenatória recorrível, remete­ mos o leitor ao tópico pertinente, inserido no capítulo da prisão cautelar.

166. STF, Pleno, AD11.719-9, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 18/06/2007, DJe 72 02/08/2007.

também devem ser consideradas normas processuais penais materiais, uma vez que se referem à liberdade do indivíduo.

164. Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. As re­ formas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. Coordenação Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2008. p. 22.

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militares cometidos a partir do dia 28 de setembro de 1999, data da vigência da Lei n° 9.839/99.167

5.3. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e sua aplicabi­ lidade imediata aos processos em andamento

5.2. Lei n° 9.271/96 e nova redação do art. 366: suspensão do processo e da prescrição

Com a reforma processual de 2008, houve pro­ fundas alterações quanto ao procedimento do júri e quanto ao procedimento comum, produzidas pelas Leis 11.689/08 e 11.719/08, respectivamente. Essas leis novas, de caráter genuinamente processual, não foram aplicadas aos processos já concluídos, respei, tando-se, assim, os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior. De seu turno, é evidente que as leis novas foram aplicadas aos processos que se iniciaram após sua entrada em vigor. A discussão guarda relevância quanto aos processos que já esta­ vam em andamento quando do início da vigência da Lei n° 11.689/08 (09 de agosto de 2008) e 11.719/08 (22 de agosto de 2008): continuariam eles sendo regidos pela legislação pretérita, que vigorava no início do procedimento, ou passariam a ter o seu curso regido pelas novas leis? A fim de solucionar o problema, três sistemas distintos são apontados pela doutrina:169*

Outro exemplo interessante de norma pro­ cessual material diz respeito à Lei n° 9.271/96, que conferiu nova redação ao art. 366 do CPP. Em sua redação original, o art. 366 do CPP previa que o processo seguiria à revelia do acusado que, citado inicialmente ou intimado para qualquer ato do pro­ cesso, deixasse de comparecer sem motivo justifica­ do. Portanto, caso o acusado fosse citado por edital e não comparecesse, era possível que fosse conde­ nado à revelia, bastando que o juiz providenciasse a nomeação de defensor técnico. Com a entrada em vigor da Lei n° 9.271/96, o art. 366 do CPP passou a ter a seguinte redação: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produ­ ção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”.

Como a nova redação conferida ao art. 366 do CPP pela Lei n° 9.271/96 contempla regras de direi­ to processual (suspensão do processo) e de direito material (suspensão da prescrição), grande polêmica foi formada quanto à aplicação imediata da lei aos processos em andamento à época. Formaram-se, à época, três posições:

1) o art. 366 teria aplicação aos processos em curso à época, tanto no que se refere à suspensão do processo como à suspensão do prazo prescricional;

2) seria possível a aplicação imediata da norma processual referente à suspensão do processo, mas não haveria, em relação a fatos anteriores, a suspen­ são da prescrição; 3) não haveria aplicação imediata, só sendo atingidos pela nova lei os fatos cometidos após a sua vigência. No Supremo Tribunal Federal e no Superior Tri­ bunal de Justiça acabou prevalecendo a última posição, sob o argumento de que, por ser mais grave a norma que manda suspender a prescrição (novatio legis in pejus), não poderia retroagir, e, por isso, o artigo não poderia incidir sobre fatos anteriores.168 167. Com esse entendimento: STF, 1a Turma, HC 79.390/RJ, Rei. Min. limar Galvão, j. 19/10/1999, DJ 19/11/1999. E ainda: STJ - AgRg no HC 60.081/SP - 6a Turma - Rei. Min. Nilson Naves - DJe 26/05/2008. 168. STF, 1a Turma, HC 83.864/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.04.2004, DJ 21.05.2004.

a) Sistema da unidade processual: apesar de se desdobrar em uma série de atos distintos, o processo apresenta uma unidade. Portanto, somente pode ser regulamentado por uma única lei. Essa lei deve ser a lei antiga, já que, fosse possível a aplicação da lei nova, esta teria efeitos retroativos. Assim, por esse sistema, a lei antiga tem caráter ultrativo;

b) Sistema das fases processuais: por força desse sistema, cada fase processual pode ser regula­ da por uma lei diferente. Supondo, assim, a existên­ cia de sucessivas leis processuais no tempo, as fases postulatória, ordinatória, instrutória, decisória e re­ cursal poderiam ser disciplinadas por leis distintas; c) Sistema do isolamento dos atos processuais: a lei nova não atinge os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior, porém é aplicável aos atos processuais que ainda não foram praticados, pouco importando a fase processual em que o feito se encontrar. Como se percebe pela leitura do art. 2o do CPP, é esse o sistema adotado pelo ordenamento processual penal. Afinal de contas, de acordo com o art. 2o do CPP, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos reali­ zados sob a vigência da lei anterior”.

Considerando-se, então, que o sistema adotado pelo CPP é o do isolamento dos atos processuais, conclui-se que as leis do procedimento comum e do procedimento do júri não foram aplicadas aos atos 169. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 18a ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 98.

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processuais anteriormente realizados, regendo-se, por elas, todavia, os atos processuais que ainda não haviam sido praticados quando de sua vigência. Logo, ainda que o recebimento da denúncia tivesse ocorrido antes do advento das Leis 11.689 e 11.719, não há constrangimento ilegal na adoção dos ritos introduzidos por estes diplomas, tendo em vista que, no âmbito do direito processual penal, a aplicação da lei no tempo é regrada pelo princípio do efeito imediato, representado pelo brocardo tempus regit actum, conforme estabelece o art. 2o do CPP.170

5.4. Lei n° 12.403/11 e o novo regramento quanto às medidas cautelares de natureza pessoal

auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qual­ quer das hipóteses que autorizam a prisão preven­ tiva. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, e seu propósito de revitalizar a fiança, tal espécie de liberdade provisória sem fiança foi suprimida do Código de Processo Penal, já que a nova redação do art. 310, parágrafo único (atual § 1°), permite a concessão do benefício apenas quando verificada a presença de causas excludentes da ilicitude. Ora, se foi suprimida hipótese de liberdade provisória sem fiança, não restam dúvidas que se trata de novatio legis in pejus, logo, a norma anterior mais benéfica ao agente continuará a regular os fatos delituosos ocorridos durante a sua vigência, mesmo depois de sua revogação (ultratividade da lei processual penal mista mais benéfica). Portanto, em relação aos cri­ mes praticados até o dia 03 de julho de 2011, data anterior à entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, ainda que a persecução penal tenha início após esta data, o agente continuará a fazer jus à antiga liberdade provisória sem fiança quando verificada a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.

Vários dispositivos legais modificados pela Lei n° 12.403/11 repercutem diretamente no ius libertatis do agente, ora para beneficiar, ora para prejudicá-lo. Exemplificando, suponha-se que, em data de 04 de julho de 2011, data da vigência da Lei n° 12.403/11, determinado indivíduo estivesse preso preventivamente por conveniência da instru­ ção criminal pela prática de suposto crime de fur­ to simples, cuja pena é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, esta prisão preventiva tornou-se ilegal, pois desprovida de fundamento legal, já que a nova redação do art. 313, inciso I, do CPP, norma processual material de caráter benéfico, permite a decretação da prisão preventiva apenas em relação a crimes dolosos punidos com pena máxima supe­ rior a 4 (quatro) anos, ressalvadas as hipóteses de reincidente em crimes dolosos, casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, ado­ lescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, ou quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa e esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la. Impõe-se, pois, o reconhecimento da ilegalidade de tal prisão preventiva, o que, no en­ tanto, não impede a decretação de medida cautelar diversa da prisão, desde que presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, já que, em rela­ ção a estas, basta que à infração penal seja cominada pena privativa de liberdade (CPP, art. 283, § Io).

Como observa Norberto Avena, a heterotopia “consiste na intromissão ou superposição de con­ teúdos materiais no âmbito de incidência de uma norma de natureza processual, ou vice-versa, pro­ duzindo efeitos em aspectos relacionados à ultrativi­ dade, retroatividade ou aplicação imediata (tempus regit actum) da lei”.171

Lado outro, quando nos deparamos com uma mudança gravosa, o caminho será o inverso. É o que ocorreu com a nova redação então conferida ao parágrafo único (atual § Io), do art. 310 do CPP pela Lei n. 12.403/11. Antes das mudanças, referido dispositivo permitia a concessão de liberdade pro­ visória sem fiança quando o juiz verificasse, pelo

Tais normas não se confundem com as nor­ mas processuais materiais. Enquanto a heterotópica possui uma determinada natureza (material ou pro­ cessual), em que pese estar incorporada a diploma de caráter distinto, a norma processual mista ou híbrida apresenta dupla natureza, vale dizer, ma­ terial em uma determinada parte e processual em

170. Nesse sentido: STJ, 5a Turma, HC 123.492/MG, Rei. Min. Jorge Mussi,j. 17/09/2009, DJe 13/10/2009.

171. AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Método, 2010. p. 65.

5.5. Normas processuais heterotópicas Há determinadas regras que, não obstante pre­ vistas em diplomas processuais penais, possuem conteúdo material, devendo, pois, retroagir para be­ neficiar o acusado. Outras, no entanto, inseridas em leis materiais, são dotadas de conteúdo processual, a elas sendo aplicável o critério da aplicação imediata (tempus regit actum). É aí que surge o fenômeno denominado de heterotopia, ou seja, situação em que, apesar de o conteúdo da norma conferir-lhe uma determinada natureza, encontra-se ela prevista em diploma de natureza distinta.

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outra. Como exemplos de disposições heterotópicas, o referido autor cita o direito ao silêncio assegurado ao acusado em seu interrogatório, o qual, apesar de previsto no CPP (art. 186), possui caráter nitida­ mente assecuratório de direitos (material), assim como as normas gerais que trataram da competência da Justiça Federal, que, conquanto previstas no art. 109 da Carta Magna, que é um diploma material, são dotadas de natureza evidentemente processual.

5.6. Vigência, validade, revogação, derrogação e ab-rogação da lei processual penal A lei processual penal nasce como todas as demais leis, ou seja, deve ser proposta, discutida, votada e aprovada pelo Congresso Nacional. Após ser aprovada, a lei processual penal deve ser promul­ gada (ato legislativo pelo qual se atesta a existência de uma lei), sancionada pelo Presidente da Repú­ blica e publicada. A vigência da lei processual penal também se­ gue o mesmo regramento das demais leis, isto é, a lei entra em vigor na data de sua publicação ou no dia posterior à vacância, quando assim o estabelecer o legislador. Sobre o assunto, o art. 8o, caput, da Lei Complementar n° 95/98, com redação dada pela LC n° 107/2001, dispõe que a vigência da lei será indica­ da de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimen­ to, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão. Ademais, segundo o art. 8o, § Io, da LC n° 95/98, “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral”. Se a lei nada disser sobre sua vigência, entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação. Nessa hipótese, a vacatio legis (período próprio para o conhecimento do conteúdo de uma norma pela sociedade em geral, antes de entrar em vigor) será de 45 (quarenta e cinco) dias, nos exatos termos do art. Io da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n° 4.657/42, com redação dada pela Lei n° 12.376/10).

Uma vez em vigor, a lei processual penal vi­ gora formalmente até que seja revogada por outra. Assim, revogação significa a cessação da vigência formal da lei, ou seja, a norma processual penal deixa de integrar o ordenamento jurídico. Quanto a sua abrangência, a revogação compreende a ab-rogação (revogação total) e a derrogação (revogação parcial). Essa revogação pode ser expressa ou tácita. Será expressa quando a lei nova retirar a força da

lei precedente de modo categórico: é o que aconte­ ceu com a nova lei de identificação criminal (Lei n° 12.037/09), cujo art. 9o revogou expressamente a antiga lei de identificação (Lei n° 10.054/00). A revogação é tácita quando a lei nova se mostrar in­ compatível com a lei anterior. Exemplificando, foi o que aconteceu em face do advento do art. 5o do Código Civil, que fixou a maioridade a partir dos 18 (dezoito) anos completos, do que resultou a re­ vogação tácita dos dispositivos processuais penais que previam privilégios para o acusado maior de 18 (dezoito) e menor de 21 (vinte e um) anos. Por fim, não se pode confundir vigência com validade. Para que uma lei processual penal entre em vigor, basta que seja aprovada pelo Congresso Nacional, sancionada pelo Presidente da Repúbli­ ca e publicada no Diário Oficial: superado even­ tual período de vacatio legis, inicia-se sua vigência. Para que seja considerada válida, todavia, referida lei deve se mostrar compatível com a Constituição Federal e com as Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos.

6. INTERPRETAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL Interpretar é tentar buscar o efetivo alcance da norma, ou seja, descobrir o seu significado, o seu sentido, a sua exata extensão normativa. É procu­ rar descobrir aquilo que ela tem a nos dizer com a maior precisão possível. Toda lei necessita de in­ terpretação, ainda que seja clara. O in claris nonfit interpretativo é uma falácia, até mesmo porque para se concluir que a lei é clara já se faz necessária uma interpretação. Como se percebe, o que se procura com a inter­ pretação é o conteúdo da lei, a inteligência e a von­ tade da lei (mens legis), não a intenção do legislador (mens legislatoris), embora esta última constitua um dos critérios de interpretação, porquanto, uma vez em vigor, a lei passa a gozar de existência autônoma. Em princípio, a interpretação da lei processual penal está sujeita às mesmas regras de hermenêutica que disciplinam a interpretação das leis em geral. O que pretende o legislador com o art. 3o do CPP (“a lei processual penal admitirá interpretação extensi­ va e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”) é simplesmente demarcar a distinção entre o direito penal e o pro­ cesso penal: naquele, não se admite qualquer forma de ampliação hermenêutica dos preceitos incrimi­ nadores, muito menos o emprego da analogia em prejuízo do acusado (in malam partem); no processo penal, todavia, o art. 3o do CPP dispõe que é possível

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não apenas a interpretação extensiva e a aplicação analógica, mas também o suplemento dos princípios gerais de direito.

6.1. Interpretação extensiva Quanto ao resultado, a interpretação pode ser declaratória, restritiva, extensiva ou progressiva.

Na interpretação declaratória o intérprete não amplia nem restringe o alcance da norma, porquan­ to o significado ou sentido da lei corresponde exata­ mente à sua literalidade. Limita-se, pois, a declarar a vontade da lei. Interpretação restritiva é aquela em que o in­ térprete diminui, restringe o alcance da lei, uma vez que a norma disse mais do que efetivamente pretendia dizer.

De seu turno, na interpretação extensiva, ex­ pressamente admitida pelo art. 3o do CPP, a lei disse menos do que deveria dizer. Por consequên­ cia, para que se possa conhecer a exata amplitude da lei, o intérprete necessita ampliar o seu campo de incidência. É o que ocorre, a título de exemplo, com as hipóteses de cabimento do RESE previstas no art. 581 do CPP. Ignorando o fato de que o Có­ digo de Processo Penal sofreu diversas alterações nos últimos anos - interrogatório, provas, proce­ dimento comum, procedimento do júri e medidas cautelares de natureza pessoal -, sem que houvesse qualquer adequação das hipóteses de cabimento do RESE à nova sistemática processual penal, parte minoritária da doutrina ainda insiste em sustentar que a enumeração das hipóteses de cabimento do recurso em sentido estrito prevista no art. 581 é taxativa, não admitindo ampliação para contem­ plar outras hipóteses. Prevalece, no entanto, o entendimento no sentido da possibilidade de in­ terpretação extensiva das hipóteses de cabimento do recurso em sentido estrito. Na verdade, o que não se admite é a ampliação para casos em que a lei evidentemente quis excluir. Exemplificando, na hipótese de recebimento da peça acusatória, não se pode cogitar do cabimento do RESE, já que ficou clara a intenção do legislador de só admitir o re­ curso quando houver o não recebimento da inicial acusatória. Porém, como a lei prevê o cabimento de RESE contra a decisão que não receber a denúncia ou a queixa (CPP, art. 581,1), não há razão lógica para não se admitir o cabimento do recurso tam­ bém para a hipótese de rejeição do aditamento. Cuida-se, na verdade, de omissão involuntária do legislador, que pode ser suprida pela interpretação extensiva.

Por fim, considera-se interpretação progressi­ va (adaptativa ou evolutiva) como aquela que busca ajustar a lei às transformações sociais, jurídicas, científicas e até mesmo morais que se sucedem no tempo e que acabam por interferir na efetividade que buscou o legislador com a edição de determi­ nada norma processual penal. Vejamos um exem­ plo: com o advento da Constituição Federal, ou­ torgando ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput), e à Defensoria Pública a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (CF, art. 134), houve forte discussão quanto à recepção do art. 68 do CPP, já que, ao promover a ação civil ex delicto em favor de vítima pobre, o Ministério Público estaria agindo em nome próprio na defe­ sa de interesse alheio, de natureza patrimonial e, portanto, disponível. Chamado a se pronunciar a respeito do assunto, o Supremo entendeu que o dispositivo seria dotado de inconstitucionalidade progressiva (ou temporária), ou seja, de modo a viabilizar o direito à assistência jurídica e judiciá­ ria dos necessitados, assegurado pela Constituição Federal de 1988 (art. 5o, LXXIV), enquanto não houvesse a criação de Defensoria Pública na Co­ marca ou no Estado, subsistiría, temporariamente, a legitimidade do Ministério Público para a ação de ressarcimento e de execução prevista no art. 68 do CPP, sendo irrelevante o fato de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitu­ cionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento.172

6.2. Analogia A aplicação analógica a que se refere o art. 3o do CPP pode ser definida como uma forma de autointegração da norma, consistente em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição legal relativa a um caso semelhante. Afinal, onde impera a mesma razão, deve imperar o mesmo direito.

Não se trata, a analogia, de método de interpre­ tação, mas sim de integração. Em outras palavras, como ao juiz não é dado deixar de julgar determina­ da demanda sob o argumento de que não há norma expressa regulamentando-a - non liquet (arrt. 140 do novo CPC) -, há de fazer uso dos métodos de integração, dentre eles a analogia, com o objetivo 172. Para mais detalhes acerca da ação civil ex delicto, remetemos o leitor ao Título referente à ação penal.

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de suprir eventuais lacunas encontradas no orde­ namento jurídico. Diferencia-se a analogia da interpretação exten­ siva porque naquela o caso a ser solucionado não está compreendido na hipótese de incidência da regra a ser aplicada, daí por que se fala em aplica­ ção analógica, e não em interpretação analógica. A título de exemplo, como o Código de Processo Penal nada dispõe acerca da superveniência de lei proces­ sual alterando regras de competência, admite-se a aplicação subsidiária do novo Código de Processo Civil, que dispõe sobre a perpetuatio jurisdictionis em seu art. 43 (“Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta”).

Quando o art. 3o do CPP dispõe que a lei pro­ cessual penal admite o emprego da analogia, há de se ficar atento à verdadeira natureza da norma, ou seja, se se trata de norma genuinamente processual penal ou se, na verdade, estamos diante de norma processual mista dispondo sobre a pretensão puni­ tiva e produzindo reflexos no direito de liberdade do agente. Afinal, na hipótese de estarmos diante de norma processual mista versando sobre a pretensão punitiva, não se pode admitir o emprego da analo­ gia em prejuízo do acusado, sob pena de violação ao princípio da legalidade. Bom exemplo disso diz respeito à sucessão processual prevista no art. 31 do CPP. Segundo o referido dispositivo, no caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. Por força do disposto no art. 226, § 3o, da Constituição Federal (“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”), grande parte da doutrina insere no rol dos sucessores o companheiro.173 Logo, a ordem seria cônjuge (ou companheiro), ascendente, descendente ou irmão. A nosso ver, todavia, não se pode incluir o compa­ nheiro nesse rol, sob pena de indevida analogia in malam partem. A inclusão do companheiro ou da companheira nesse rol de sucessores produz reflexos no direito de punir do Estado, já que, quanto menos sucessores existirem, maior é a possibilidade de que o não exercício do direito de representação ou de

173. Admitindo que a companheira goza do mesmo status de cônjuge para o processo penal, podendo figurar como legítima representante da pessoa falecida: STJ, Corte Especial, APn 912/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 07/08/2019, DJe 22/08/2019.

queixa no prazo legal acarrete a extinção da punibi­ lidade pela decadência. Logo, se é firme o entendi­ mento jurisprudencial no sentido de que a agravante genérica inserta no art. 61, II, alínea “e”, do CP, incide tão somente em relação a “cônjuge”, aí não incluídos concubinos e companheiros,174 haveria de se aplicar ao art. 31 do CPP idêntico raciocínio. Portanto, cui­ dando-se de regra de direito material, não se pode querer incluir o companheiro, sob pena de indevida analogia in malam partem, malferindo o princípio da legalidade (CF, art. 5o, XXXIX).175

6.3. Distinção entre analogia e interpretação analógica Como o legislador não pode prever todas as si­ tuações que poderíam ocorrer na vida em sociedade e que seriam similares àquelas por ele já elencadas, a interpretação analógica permite, expressamente, a ampliação do alcance da norma. Atento ao princípio da legalidade, o legislador detalha as situações que pretende regular, estabelecendo fórmulas casuísticas, para, na sequência, por meio de uma fórmula genérica, permitir que tudo aquilo que a elas for semelhante também possa ser abrangido pelo mes­ mo dispositivo legal. Em síntese, a uma fórmula ca­ suística, que servirá de norte ao intérprete, segue-se uma fórmula genérica. A título de exemplo, ao inserir no art. 185, § 2o, do CPP a possibilidade de utilização da video­ conferência, a Lei n° 11.900/09 teve o cuidado de autorizar a realização do interrogatório por outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real. Como se percebe, atento aos avanços da tecnologia, o próprio dispositivo legal admite a utilização de outras modalidades de transmissão de sons e imagens em tempo real que porventura venham a surgir, desde que semelhantes à videocon­ ferência. Diversamente da analogia, que é método de integração, a interpretação analógica, como o próprio nome já sugere, funciona como método de interpretação. Logo, neste caso, apesar de não ser 174. Nessa linha: STJ, 5aTurma, AgRg no HC 570.436-DF, Rei. Min. Felix Fischer, j. 08.09.2020, DJe 14.09.2020. 175. Como se sabe, o Direito Penal é regido pelo princípio da legali­ dade, não havendo crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

prévia cominação legal, nos termos do art. 5o, XXXIX, da CF, e do art. 2o do CP. Por força desse postulado, não se admite analogia em matéria penal quando utilizada de modo a prejudicar o acusado. A título de exemplo, se o Código Penal prevê que o crime de dano será qualificado quando cometido contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa con­

cessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista (CP, art. 163, parágrafo único, III), não se pode considerar qualificado eventual crime de dano praticado em detrimento da Caixa Econômica Federal, es­ pécie de empresa pública federal, sob pena de indevida analogia in malam partem. Nessa linha: STJ, 5aTurma, RHC 57.544/SP, Rei. Min. Leopoldo de Arruda Raposo - Desembargador convocado do TJ/PE -, j. 06/08/2015, DJe 18/08/2015.

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explícita, a hipótese em que a norma será aplicada está prevista no seu âmbito de incidência, já que o próprio dispositivo legal faz referência à possibili­ dade de aplicação de seu regramento a casos seme­ lhantes aos por ele regulamentados.

6.4. Aplicação supletiva e subsidiária do novo Código de Processo Civil ao processo penal De acordo com o art. 15 do novo CPC, na au­ sência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.176 Interpretação literal do referido dispositivo pode nos levar à conclusão (equivocada) de que o novo Código de Processo Civil só pode ser aplicado supletiva e subsidiariamente aos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, ou seja, como o dis­ positivo não faz qualquer menção aos processos cri­ minais, ter-se-ia como inviável a aplicação residual do novo CPC aos processos de natureza criminal. No entanto, não há nenhuma razão lógica para se afastar a aplicação do novo CPC ao processo penal, até mesmo porque tal prática já era - e continua­ rá sendo - recorrente na vigência do antigo (e do novo) CPC. Exemplificativamente, como o Código de Processo Penal nada diz acerca do procedimento a ser utilizado para a produção da prova antecipada prevista no art. 225, há de se admitir a aplicação subsidiária dos arts. 381 a 383 do novo CPC. Por­ tanto, quando o art. 15 do novo CPC faz referência apenas aos processos eleitorais, trabalhistas ou admi­ nistrativos, deve-se concluir que houve uma omissão involuntária do legislador, a ser suprida pela inter­ pretação extensiva para fins de ser reconhecida a possibilidade de aplicação supletiva e subsidiária do novo diploma processual civil ao processo penal (comum e militar), desde que a interpretação dada à regra utilizada para suprir a omissão da lei proces­ sual penal se coadune com preceitos desse mesmo regramento processual penal.

Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil em 2016, há de se ter extrema cautela com a sua aplicação ao processo penal. Como se tra­ ta de diploma processual muito mais moderno que o nosso Código de Processo Penal, que entrou em vigor em Io de janeiro de 1942, não temos dúvidas em afirmar que haverá grande euforia e entusiasmo com a possibilidade de aplicação de seus institutos

ao processo penal brasileiro. No entanto, a aplicação do novo CPC ao processo penal só pode ocorrer de maneira subsidiária. O emprego da analogia permi­ tido pelo art. 3o do CPP pressupõe a inexistência de lei disciplinando matéria específica, constatando-se, pois, a lacuna involuntária da lei. Não é critério para a resolução de conflitos entre regras. Por ser a ana­ logia recurso de autointegração (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 4o), e não ins­ trumento de derrogação de texto ou de procedimento legal, o emprego da analogia só pode ser admitido quando a lei for omissa. Vejamos alguns exemplos: a) (Im)possibilidade de contagem de prazos processuais computando-se apenas os dias úteis: consoante disposto no art. 219 do novel diploma processual civil, na contagem de prazos processuais em dias, computar-se-ão somente os dias úteis. Sem dúvida alguma, se no âmbito processual civil a con­ tagem dos prazos processuais leva em consideração apenas os dias úteis, o ideal seria estender esse mes­ mo raciocínio ao processo penal, até mesmo para uniformizarmos a contagem de prazos processuais, independentemente da natureza do feito (cível, cri­ minal, trabalhista, eleitoral etc.). No entanto, o art. 798, caput, do CPP, é categórico ao afirmar que to­ dos os prazos serão contínuos e peremptórios, não se interrompendo por férias, domingo ou dia feriado. Logo, como a lei processual não foi omissa em re­ lação ao assunto, revela-se inviável a aplicação do art. 219 do novo CPC ao processo penal, até mesmo porque a analogia pressupõe a omissão do legislador, o que, in casu, não teria ocorrido. Pelo contrário. A lei processual penal é expressa no sentido de que os prazos processuais são contínuos e peremptórios, leia-se, são computados dias úteis e não úteis, com a ressalva de que, na hipótese de o prazo terminar em domingo ou feriado, considera-se prorrogado até o dia útil imediato (CPP, art. 798, § 3o).177 Esse raciocínio também é válido para os Juizados Espe­ ciais Criminais. É bem verdade que, por força da Lei n. 13.728/18, foi acrescentado à Lei n. 9.099/95 177. No sentido de que não se aplica ao processo penal a regra do art. 219 do novo CPC, porquanto há regra expressa em sentido diverso, leia-se, o art. 798 do CPP: STF, 2a Turma, HC 134.554 Rcon/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 123 14/06/2016. Na mesma linha: STJ, 3a Seção, AgRg na Rcl 30.714/PB, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 27/04/2016, DJe 04/05/2016. Para o Plenário do STF (Rcl 23.045 ED-AgR, Rei. Min. Edson Fachin, j. 09/05/2019), a contagem de prazos no contexto de reclamações cujo ato impugnado tiver sido produzido em processo ou procedimento de natureza penal também se submete ao art. 798 do CPP. É dizer, a forma de contagem de prazo na hipótese de reclamação deve observar a natu­ reza do processo ou procedimento em que se insere o ato reclamado. Se,

176. Etimologicamente, existe uma diferença entre aplicação suple­ tiva e aplicação subsidiária. A primeira se destina a suprir algo que não

existe em uma determinada legislação, enquanto a subsidiária serve de ajuda ou de subsídio para a interpretação de alguma norma ou mesmo um instituto.

por um lado, a opção de aplicação indistinta do art. 219 do CPC poderia permitira conveniente uniformização na forma de contagem de prazo em sede de reclamação, de outro, tal proceder acarretaria grave heterogenia no contexto dos procedimentos penais, pois a contagem dos demais prazos seguiría, de modo inafastável, os ditames do CPP.

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o art. 12-A, nos seguintes termos: “Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, para a prática de qualquer ato processual, inclusive para a interposição de recursos, computar-se-ão somente os dias úteis”. Todavia, não se pode perder de vista que o art. 12-A está inserido no Capítulo II da Lei n. 9.099/95, que versa sobre os Juizados Especiais Cíveis, e não no Capítulo III, atinente aos Juizados Especiais Criminais. De mais a mais, é fato que o novel dispositivo foi introduzido na Lei n. 9.099/95 porque havia quem entendesse que o art. 219 do novo CPC não era aplicável aos Juizados Cíveis. No âmbito criminal, como o art. 92 da Lei n. 9.099/95 manda aplicar aos Juizados Especiais Criminais, subsidiariamente, as disposições do Có­ digo de Processo Penal, e como este tem disposi­ tivo expresso (art. 798) em sentido contrário aos arts. 12-A da Lei n. 9.099/95 e 219 do CPC, não se pode admitir a contagem dos prazos levando-se em conta exclusivamente os dias úteis;

b) Suspensão do curso dos prazos processuais nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro: em razão da disposição específica do art. 798 do CPP, a suspensão dos prazos pro­ cessuais prevista no art. 220 do CPC não se aplica aos processos criminais, razão pela qual sua conta­ gem permanece ininterrupta, e, caso o termo final ocorra no período de recesso forense, o prazo será prorrogado para o primeiro dia útil subsequente ao seu término;178 c) Incidente de resolução de demandas repeti­ tivas: ante o silêncio do CPP em relação ao assunto, é perfeitamente possível a aplicação subsidiária ao processo penal do incidente de resolução de de­ mandas repetitivas (arts. 976 a 987 do novo CPC), que, doravante, poderá ser instaurado em qualquer Tribunal, inclusive nos Tribunais de Justiça dos Estados e nos Tribunais Regionais Federais. A ins­ tauração desse incidente é cabível quando houver, simultaneamente: a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Admitido o incidente, o relator determinará a suspensão dos processos pendentes que tramitam no Estado ou na Região, conforme o caso. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: a) a todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclu­ sive àqueles que tramitem nos juizados especiais do

178. Com esse entendimento: STJ, 5aTurma, AgRg no AREsp 1.682.537/ SC, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 04.08.2020.

respectivo Estado ou Região; b) aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que ve­ nham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo se houver a revisão da tese jurídica firmada no incidente. Como se percebe, a aplicação desse incidente ao processo penal vem ao encontro do princípio da celeridade e da garantia da razoável duração do processo, contribuindo para diminuir a carga de recursos pendentes de julgamento pelos Tribunais. Logo, desde que a controvérsia em di­ versos processos criminais não esteja relacionada à matéria de fato ou probatória, mas sim à questão de direito, esse incidente poderá ser suscitado com o objetivo de evitar decisões contraditórias entre os juízos subordinados àquele Tribunal, preservan­ do-se, assim, a isonomia e a segurança jurídica;179 d) (Im)possibilidade de fixação de astreintes em desfavor de terceiros: para a 3a Seção do STJ,180 é possível a fixação de astreintes em desfavor de terceiros, não participantes do processo, pela demora ou não cumprimento de ordem emanada do Juízo Criminal, podendo, para tanto, efetivar o bloqueio via Bacen-Jud ou proceder à inscrição em dívida ativa dos valores. Por isso, em recurso especial interposto pelo Facebook, considerou vá­ lida a aplicação de multa por descumprimento de ordem judicial proferida no curso de inquérito po­ licial que investigava a prática de crimes de pedofilia pela internet. Na visão do referido colegiado, há de se ter em mente que a lei processual penal não tratou, detalhadamente, de todos os poderes conferidos ao julgador no exercício da jurisdição. A multa cominatória surge, portanto, como uma alternativa à crise de inefetividade das decisões, um meio de se infiltrar na vontade humana até então intangível e, por coação psicológica, demover o particular de possível predisposição de descumprir determinada obrigação. Assim, quando não houver norma específica, diante da finalidade da multa cominatória, que é conferir efetividade à decisão judicial, imperioso concluir pela possibilidade de aplicação da medida em demandas penais. No pon­ to, poderia surgir a dúvida quanto à aplicabilidade das astreintes a terceiro não integrante da relação jurídico-processual. Entretanto, é curioso notar que, no processo penal, a irregularidade não se verifica quando imposta a multa coativa a terceiro. Haveria, sim, invalidade se ela incidisse sobre o 179. Admitindo o Incidente de Resolução de Demandas Repeti­ tivas (IRDR) no âmbito da Justiça Militar da União: STM, Petição n. 7000425-51.2019.7.00.0000, Rei. Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, j. 22/08/2019, DJ 05/09/2019.

180. STJ, 3a Seção, REsp 1.568.445/PR, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 24/06/2020, DJe 20/08/2020.

TÍTULO 1

• NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

acusado, pois ter-se-ia clara violação ao princípio do nemo tenetur se detegere. Na prática jurídica, não se verifica empecilho à aplicação ao terceiro e, na doutrina majoritária, também se entende que o ter­ ceiro pode perfeitamente figurar como destinatário da multa. Ademais, não é exagero lembrar, ainda, que o Marco Civil da Internet traz expressamente a possibilidade da aplicação de multa ao descumpridor de suas normas quanto à guarda e disponibilização de registros conteúdos. Por fim, vale observar, a propósito, a existência de dispositivos expressos, no próprio Código de Processo Penal, que estipulam multa ao terceiro que não colabora com a justiça criminal (arts. 219 e 436, § 2o). Re­ puta-se ilegal, todavia, a aplicação de astreintes, por descumprimento de decisão judicial de quebra de sigilo de dados, quando restar evidenciada a impos­ sibilidade técnica de se obedecer à determinação

do Juízo. Por isso, em outro caso concreto também apreciado pela 3a Seção do STJ, considerou-se in­ viável a aplicação de multa cominatória ao Whatsapp em virtude de descumprimento de ordem judicial de quebra de sigilo telemático pela moda­ lidade de desvio, porquanto teria restado compro­ vado ser tecnicamente impossível o cumprimento da determinação do juízo pela empresa, haja vista o emprego da criptografia de ponta a ponta, as­ sim compreendida a proteção dos dados nas duas extremidades do processo, tanto no polo do re­ metente quanto no outro polo do destinatário;181 e) Interposição de recursos com intuito ma­ nifestamente protelatório e fixação de multa por litigância de má-fé (CPC, arts. 79 a 81): para mais detalhes acerca do assunto, consultar comentários ao Título atinente aos Recursos.

181. STJ, 3a Seção, RMS 60.531/RO, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j.

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1 TÍTULO

2 JUIZ DAS GARANTIAS 1. SUSPENSÃO CAUTELAR DA EFICÁCIA DOS ARTS. 3°-A A 3°-F DO CPP (STF, ADI 6.299 MC/ DF, REL. MIN. LUIZ FUX, J. 22/01/2020) Na condição de Relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020), todas ajuizadas em face da Lei n. 13.964/19, o Min. Luiz Fux suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implan­ tação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3o-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3°-F), afir­ mando, ademais, que a concessão dessa medida cau­ telar não teria o condão de interferir nem suspender os inquéritos e processos então em andamento, nos termos do art. 11, §2°, da Lei n. 9.868/95. Sem embargo de a referida medida cautelar ter acarretado a suspensão da eficácia da integralidade dos dispositivos normativos abordados no presente Título do nosso Manual de Processo Penal, o qual, aliás, sequer existia na edição anterior da nossa obra, reputamos válido - e até mesmo honesto com o leitor - procedermos a uma análise minuciosa, detalhada e crítica de toda a sistemática pertinente à criação do juiz das garantias pela Lei n. 13.964/19, até mesmo porque sua constitucionalidade (formal e material) ainda será objeto de apreciação pelo Plenário do Supremo Tribu­ nal Federal, que poderá confirmar (ou não) a decisão proferida pelo Eminente Min. Luiz Fux.

2. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS Nosso Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941) entrou em vigor em pleno Estado-Novo, mais precisamente no dia Io de janeiro de 1942, tendo nítida inspiração no modelo fascista italiano que deu origem ao deno­ minado Código Rocco de 1930.1II,Daí, aliás, a opor­

tuna observação feita por Fauzi Hassan Choukr, no sentido de que “conhecemos uma história legisla­ tiva republicana sem que tenhamos um Código de Processo Penal integralmente nascido da atividade democrática parlamentar”.2

Desde então, sem embargo da abertura demo­ crática consumada no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a incorporação de inúmeros Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos ao nosso ordenamento jurídico, desta­ cando-se, dentre eles, o Pacto de São José da Costa Rica, nosso Código sofreu apenas alterações pon­ tuais, como, por exemplo, a mudança da sistemá­ tica atinente ao interrogatório (Lei n. 10.792/03), procedimento do júri (Lei n. 11.689/08), prova (Lei n. 11.690/08), procedimento comum (Lei n. 11.719/08), e, mais recentemente, a alteração de dispositivos do CPP relativos às medidas cautelares de natureza pessoal (Lei n. 12.403/11). A estrutura básica da legislação processual penal, porém, foi mantida, e ainda se encontra alicerçada em bases inquisitoriais oriundas do regime totalitário vigente durante a 2a Guerra Mundial. Prova disso, aliás, é a subsistência de dispositivos legais - de duvidosa constitucionalidade e convencionalidade - que au­ torizam o próprio juiz a requisitar a instauração de repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de

garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituo­ sa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contempori­ zar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum (...) No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal avisado favorecimento legal aos criminosos (...) É ampliada a noção de flagrante delito... A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade para ser um dever imposto ao juiz, adquire a sufi­

1. Prova disso, aliás, é a Exposição de Motivos do CPP, que, no seu n. II, salienta: "De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação

ciente elasticidade para tornar-se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal", (nosso grifo). 2. CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários con­ solidados e crítica jurisprudência!. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 2).

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um inquérito policial (CPP, art. 5o, II),3 a decretar de ofício a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes ou a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante, seja na fase investigatória, seja na fase processual (CPP, art. 156, incisos I e II, respectivamente), ou que auto­ rizam o próprio juiz a realizar pessoalmente uma busca domiciliar (CPP, art. 241). Era premente, portanto, a mudança da nossa legislação processual penal como um todo, para que sua estrutura fosse, enfim, adaptada à nova or­ dem constitucional e convencional, notadamente ao sistema acusatório (CF, art. 129, I) e à garantia da imparcialidade (CADH, art. 8o, n. 1). Afinal, não se pode mais compreender o processo penal como um mero instrumento necessário para o exercício da pretensão punitiva do Estado. Muito além disso, o processo penal há de ser compreendido como uma forma de tutela dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Para tanto, é dizer, “para que tenhamos um processo ético, limpo, sem surpresas, equilibra­ do, com regras definidas e conhecidas, e que valoriza o ser humano”,4 este deve ser concebido como um processo de partes, em que as atividades de acusar e julgar estejam efetivamente distribuídas a diferentes personagens, estruturado sobre um procedimento em contraditório, cabendo às partes desenvolver a atividade probatória com o objetivo de convencer um julgador imparcial, a quem é dado decidir de maneira subjetivamente desinteressada. É dentro desse contexto que surgem, então, os arts. 3o-A, 3°-B, 3°-C, 3°D, 3°-E e 3°-F, introduzidos no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19: o primeiro deles, após dispor que o processo penal terá estrutura acusatória, veda expressamente a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação; os demais passam a prever a figura do juiz das garantias, dora­ vante responsável pelo controle da investigação cri­ minal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, ficando impedido de mais adiante funcionar na instrução e julgamento do mesmo feito. Cuida-se, a Lei n. 13.964/19, do produto final do chamado “Pacote Anticrime”, projeto de lei apre­ sentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao 3. Recentemente, o Min. Dias DiasToffoli, na condição de Presidente

do Supremo Tribunal Federal, determinou, de ofício, com fundamento no art. 43 e seguintes do RISTF, a instauração de inquérito "para apurar a existência de notícias fraudulentas ("fake News"), denunciações calu­ niosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, difamandi e injuriandi, que estariam supostamente atingindo a honorabilidade e a segurança daquela Corte, de seus membros e familiares" (Portaria GP n. 69, de 14/03/2019 - Inq. 4.781), designando, para a condução do feito, o eminente Ministro Alexandre de Moraes.

4. GIACOMOLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considera­ ções críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 13.

Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2019, cujo propósito era o de atualizar a legislação criminal e o processo penal, sistematizando as mudanças em uma perspectiva mais rigorosa no enfrentamento à criminalidade, teoricamente em consonância com o anseio popular expressado nas eleições presiden­ ciais de 2018. No mês de março de 2019, a Câmara dos Deputados criou uma Comissão para apreciar o referido “Pacote”, que passou a trabalhar, em pa­ ralelo, com uma proposta alternativa, elaborada, no ano de 2018, por um grupo de juristas encabeçado pelo Ministro Alexandre de Moraes. Curiosamente, porém, a vedação explícita à iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (CPP, art. 3°-A) e a figura do juiz das garantias (CPP, arts. 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3°-F) não constavam de nenhum desses dois projetos. Na verdade, foram ali inseridos através de emenda, reproduzindo, em grande parte, o conteúdo referente à matéria que integrava o Projeto de Lei n. 8.045/2010 (Projeto de Lei do Senado n. 156/09), destinado à criação de um novo Código de Processo Penal, que até já fora aprovado pelo Senado Federal, mas que ainda aguarda apreciação por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Independentemente de como se deu a introdu­ ção desses artigos no Projeto que deu ensejo à Lei n. 13.964/19, fato é que a sua legítima aprovação pelo Poder Legislativo, referendada, indiretamente, pelo próprio Presidente da República, que poderia vetá-los, mas não o fez, representa, pelo menos enquanto não aprovado o Projeto de Lei que visa à criação de um novo Código de Processo Penal, a maior revolu­ ção já experimentada pela legislação processual penal pátria desde 1942, que poderá, enfim, se ver livre de uma estrutura marcantemente inquisitória que sempre a orientou. Passemos, pois, à análise dessa mudança de paradigma que os arts. 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3°-F, todos do CPP, deverão produzir no seio do nosso Código de Processo Penal.

3. ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL 3.1. Da suspensão da eficácia sine die do art. 3°-A do CPP introduzido pela Lei n. 13.964/19 A despeito de o art. 3°-A ter sido introduzido no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19 no capítulo denominado “Juiz das Garantias”, ao lado, portanto, dos arts. 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3oF, com eles não guarda nenhuma relação. Trata-se, na verdade, de uma mera ratificação da estrutura acusatória do nosso processo penal, em fiel obser­ vância ao art. 129, inciso I, da Constituição Fede­ ral, do que deriva a conclusão de que seria vedada

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

qualquer inciativa do juiz na fase de investigação, bem como a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Daí a nossa surpresa com a decisão proferida pelo Min. Luiz Fux por ocasião da apreciação da medida cautelar nos autos das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020). Apesar de o art. 3°-A do CPP não guardar nenhuma relação com o juiz das garantias, porquanto apenas enuncia postula­ dos básicos do sistema acusatório, foi colocado no “mesmo bolo” que os arts. 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3°-F do CPP para fins de suspensão de sua eficácia, senão vejamos: “(...) suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e seus consectários [arts. 3°-A, 3oB, 3°C, 3°-D, 3°-E, 3°-F, do Código de Processo Penal] (...)”.

Sem embargo da suspensão sine die da eficácia, ad referendum do Plenário, do art. 3°-A do CPP, que não guarda nenhuma relação direta com a figura do juiz das garantias, reputamos oportuno comentar todas as possíveis mudanças que a sua introdução pela Lei n. 13.964/19 será capaz de produzir no âmbito da nossa legislação processual penal como um todo, haja vista a possibilidade de o Plenário da Suprema Corte, tão logo pautada a decisão das diversas ADI’s ajuizadas contra o Pacote Anticrime, revogar a decisão monocrática do Min. Luiz Fux.

3.2. Gestão da prova pelo magistrado: a veda­ ção da iniciativa acusatória do juiz das garan­ tias e da iniciativa probatória do juiz da instru­ ção e julgamento Para a estruturação de um sistema verdadeiramente acusatório, não basta a separação das fun­ ções de acusar, defender e julgar. Para além disso, é de todo relevante que o juiz não seja o gestor da prova, cuja produção deve ficar a cargo das partes. Afinal, enquanto o juiz não se mantiver estranho à atividade investigatória e instrutória como um mero observador, tendo liberdade para produzir atos investigatórios e probatórios de ofício a qual­ quer momento da persecução penal, não há falar em um magistrado verdadeiramente imparcial, é dizer, um terceiro desinteressado em relação às partes. A chave para a compreensão dos sistemas acusatório e inquisitório recai, portanto, sobre a gestão da prova e sobre os princípios dispositivo (iniciativa proba­ tória exclusiva das partes) e inquisitivo (atividade probatória a caráter do magistrado), que lhes são, respectivamente, regentes.

Quando se fala, pois, em um sistema acusa­ tório, como aquele explicitamente adotado pela Constituição Federal (art. 129, inciso I), que

atribui à pessoa diversa da autoridade judiciária a titularidade da ação penal pública, há de se ter em mente que estamos falando de um modelo democrático, cujo núcleo (gestão da prova), vin­ culado ao seu princípio informador - dispositivo -, orientará uma atividade judicial imparcial, quer durante a fase investigatória, quer durante a fase judicial, respeitando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa, na busca limitada da verdade processual, jamais real.5 Não basta, pois, pensar o sistema acusatório baseado exclusivamente na separação inicial das atividades de acusar e julgar. Afinal, como observa Aury Lopes Jr.,6 de nada adianta uma separação inicial, com o oferecimen­ to de uma denúncia pelo Ministério Público, se, na sequência, ao longo de toda a marcha proce­ dimental, ao juiz for outorgado um papel ativo de protagonismo na busca pela prova ou até mesmo na prática de atos típicos da acusação. Noutro giro, quando se pensa em um sistema inquisitório, ter-se-á um modelo claramente auto­ ritário, cujo núcleo (gestão da prova), vinculado ao seu princípio informador (inquisitivo), orientará uma atividade claramente incompatível com a imparciali­ dade, colocando em segundo plano o contraditório e a ampla defesa, na busca ilimitada da verdade real.7 Assim, na busca dessa utópica verdade real, o impu­ tado deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser um mero objeto de investigação, ficando, assim, subme­ tido a um inquisidor que está autorizado a extrai-la a qualquer custo.8 O juiz, então, deixa de tutelar a presunção de inocência e passa a funcionar como um “buscador da verdade - o Google da verdade real”.9 Como observa Geraldo Prado,10 tal sistema é estrutu­ rado com vista à realização do direito penal material, 5. Nesse contexto: RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: re­ flexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2a ed. São Paulo: Tirant Io Blanch, 2019. p. 175. 6. Direito processual penal. 9a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 189.

7. A distinção entre verdade real e processual/formal é vista, por exem­ plo, na doutrina de Ferrajoli (Direito e razão: teoria do garantismopenal. 2a

ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2006. p. 51-52), que enfatiza a necessidade de superação da chamada verdade substancial (real ou absoluta), utópica e inalcançável, por uma verdade processual de caráter aproximativo, que não pretende ser declarada como a verdade, já que condicionada ao processo e às garantias da defesa.Trata-se, pois, de uma verdade controlada quanto ao método de aquisição e reduzida quanto ao conteúdo informativo em relação à hipotética verdade substancial, protegendo, assim, os cidadãos, de práticas autoritárias. 8. LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 180.

9. PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 13.

10. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucio­ nal das leis processuais penais. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 105.

r MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

em que a função do juiz se limita a concretizar o poder punir do Estado, como se o exercício do magis­ tério penal fosse uma questão de segurança pública. Enfim, ou a produção de provas é tarefa das partes e se está diante de um modelo acusatório (princípio dispositivo - juiz espectador), ou é do juiz (juiz ator/inquisidor), e se está então diante de modelo diverso, qual seja, o inquisitório. Não há, pois, espaço para um meio-termo.11 Resta, pois, ana­ lisarmos a (in) constitucionalidade dessa atuação ex officio do magistrado, seja ele o juiz das garantias, durante a investigação preliminar, seja ele o juiz da instrução e julgamento, no curso do processo judi­ cial, o que pressupõe um cotejo da nova sistemática introduzida no art. 3o-A do CPP com aquela cons­ tante do art. 156 do CPP, cujos incisos facultam ao juiz agir de ofício antes de iniciada a ação penal (inciso I) e no curso da instrução ou antes de pro­ ferir sentença (inciso II).

3.2.1. Da vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias na fase investigatória Inovando em relação à antiga redação do art. 156 do CPP, que só permitia a atuação probatória de ofício do juiz no curso do processo, a nova re­ dação dada ao art. 156, inciso I, do CPP, pela Lei n° 11.690/08, passou a prever que ao magistrado seria permitido, de ofício, mesmo antes do início da ação penal, determinar a produção antecipada de pro­ vas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Com a adoção do sistema acusatório pela Cons­ tituição Federal (art. 129, inciso I), restou consolidada a obrigatoriedade de separação das funções de acu­ sar, defender e julgar, fazendo com que o processo se caracterize como um verdadeiro actum trium personarum, sendo informado pelo contraditório. Esse sistema de divisão de funções no processo penal acusatório tem a mesma finalidade que o princípio da separação dos poderes do Estado: visa impedir a concentração de poder, evitando que seu uso se dege­ nere em abuso. Com essa separação de funções, alia­ da à oralidade e publicidade, características históricas do sistema acusatório, e com partes em igualdade de 11. Como observa Ricardo Gloeckner, o processo acusatório distingue-se do inquisitorial pela gestão da prova (possibilidade de intervenção judicial na instrução), daí por que "não há possibilidade de conciliação em

um meio-termo (...) Ou há poderes judiciais instrutórios ou é faculdade das partes a colheita das provas (...) Inquisitividade - poderes instrutórios

do juiz - somente pode ser pensada a partir do sistema inquisitório. Im­ possível um significante querer dizer uma mesma coisa e seu contrário (princípio da não-contradição). (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal: introdução principiológica à teoria do ato processual irregular. 2a ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 211-217).

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condições, objetiva-se a preservação da imparcialida­ de do magistrado, afastando-o da fase investigatória, a qual deve ter como protagonistas tão somente a autoridade policial e o Ministério Público.

É óbvio que o juiz das garantias não está im­ pedido de agir na fase investigatória. Mas essa atuação só pode ocorrer mediante prévia provo­ cação das partes. Exemplificando, vislumbrando a autoridade policial a necessidade de mandado de busca domiciliar, deve representar ao magistrado no sentido da expedição da ordem judicial (CPP, art. 3°-B, XI, “c”). De modo semelhante, surgin­ do a necessidade de uma prisão temporária para acautelar as investigações, deve o órgão Ministerial formular requerimento ao juiz competente (CPP, art. 3°-B, V). Na fase investigatória, portanto, deve o magistrado agir somente quando provocado, atuando como garante das regras do jogo. Afinal, como sintetiza a Exposição de Motivos do Código Modelo para Ibero-America, “o bom inquisidor mata ao bom juiz, ou ao contrário, o bom juiz des­ terra ao inquisidor”. O que não se deve lhe permitir, nessa fase pre­ liminar, é uma atuação de ofício. E isso porque, pelo simples fato de ser humano, não há como negar que, após realizar diligências de ofício na fase investiga­ tória, fique o juiz das garantias envolvido psicolo­ gicamente com a causa, colocando-se em posição propensa a decidir favoravelmente a ela, com grave prejuízo a sua imparcialidade. A partir do momento em que uma mesma pessoa concentra as funções de investigar e colher as provas, estará comprometido a priori com a tese da culpabilidade do acusado. Com efeito, se o magistrado tomou a iniciativa de determinar, de ofício, a realização de um ato investigatório, mesmo antes do início do processo penal, já indica, por si só, estar ele procurando uma confir­ mação para alguma hipótese sobre os fatos, é dizer, estar ele se deslocando daquela posição de impar­ cialidade decorrente da sua posição de terceiro para uma posição parcial, não mais alheia aos interesses da acusação ou da defesa.

Essa discussão quanto à atuação do magistrado de ofício na fase investigatória não é novidade no Brasil. Quando entrou em vigor a Lei n° 9.034/95, também conhecida como Lei das Organizações Cri­ minosas, o art. 3o previa que, na hipótese de quebra do sigilo de dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais, a diligência seria realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de jus­ tiça. O dispositivo conferia ao magistrado, assim, poderes para diligenciar pessoalmente na obtenção de elementos informativos pertinentes à persecução

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

penal de ilícitos decorrentes da atuação de orga­ nizações criminosas, com dispensa do auxílio da Polícia Judiciária e do Ministério Público, criando uma espécie de juiz inquisidor. O Supremo Tribunal Federal foi chamado a analisar a constitucionalidade do dispositivo, tendo concluído que o art. 3o seria parcialmente incons­ titucional. No tocante aos sigilos bancário e finan­ ceiro, entendeu a Suprema Corte que o art. 3o teria sido revogado pelo advento da Lei Complementar n° 105/01, que passou a regulamentar a matéria. Em relação aos dados fiscais e eleitorais, todavia, o Supremo reconheceu a inconstitucionalidade do art. 3o, por flagrante violação ao princípio da imparcia­ lidade e consequente violação ao devido processo legal.12

Em outro importante precedente (HC 94.641/ BA),13 a 2a Turma do Supremo concedeu, de ofício, habeas corpus impetrado em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria filha, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição, o processo desde o recebimento da denúncia. In casu, no curso de pro­ cedimento oficioso de investigação de paternidade promovido pela filha do paciente para averiguar a identidade do pai da criança que essa tivera, surgi­ ram indícios da prática delituosa supra, sendo tais relatos enviados ao Ministério Público. O parquet, no intuito de ser instaurada a devida ação penal, denunciara o paciente, vindo a inicial acusatória a ser recebida e processada pelo mesmo juiz daquela ação investigatória de paternidade. Entendeu-se que o juiz sentenciante teria atuado como se autorida­ de policial fosse, em virtude de, no procedimento preliminar de investigação de paternidade, em que apurados os fatos, ter ouvido testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a propositura da ação penal.

Ora, se o Supremo Tribunal Federal concluiu pela inconstitucionalidade do juiz inquisidor previs­ to no art. 3o da revogada Lei n° 9.034/95 (ADI n. 1.570), tendo, ademais, reconhecido a imparcialida­ de de magistrado que aturara de ofício como ver­ dadeira autoridade policial em procedimento preli­ minar de investigação de paternidade (HC 94.641/ BA), outra conclusão não há senão a de que o art. 156, inciso I, do CPP, é absolutamente incompatível 12. STF, Tribunal Pleno, ADI 1.570/DF, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ

22/10/2004. 13. Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 11 /11 /2008, DJe 43 05/03/2009.

com o nosso sistema acusatório e com a garantia da imparcialidade.14 Em um sistema acusatório, cuja característica bá­ sica é a separação das funções de acusar, defender e julgar, não se pode permitir que o magistrado atue de oficio na fase de investigação. Essa concentração de po­ deres nas mãos de uma única pessoa, o juiz inquisidor, além de violar a imparcialidade e o devido processo legal, é absolutamente incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito, assemelhando-se à reunião dos poderes de administrar, legislar e julgar em uma única pessoa, o ditador, nos regimes absolutistas. Trata-se, enfim, a figura do juiz-espectador em contra­ posição à figura inquisitória do juiz-protagonista, de verdadeiro “preço a ser pago para termos um sistema acusatório”.15 Portanto, a tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal deve recair sobre a Polícia Judiciária e sobre o Ministério Público, pre­ servando-se, assim, a imparcialidade do magistrado, que só deve intervir quando estritamente necessário, e desde que seja provocado nesse sentido.

Louvável, nesse sentido, o disposto na primei­ ra parte do art. 3°-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, que, após dispor que o processo penal terá estrutura acusatória, veda a iniciativa do juiz das garantias na fase de investigação. Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, inciso I, do CPP, nos exatos termos do art. 2o, §1°, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule intei­ ramente a matéria de que tratava a lei anterior”).16

3.2.2. Da vedação da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento no curso do pro­ cesso penal Sempre houve consenso na doutrina e na juris­ prudência quanto à vedação da iniciativa acusatória 14. Em sentido um pouco diverso, sustenta Grinover que, "para uma interpretação sistemática dessa disposição, cabe lembrar que, na redação dada ao art. 155, a Lei 11.690/2008 estabelece uma distinção entre o que é prova e aquilo que constitui elemento informativo da investigação. Ao dizer, assim, que o juiz pode determinar produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, a lei não contempla outra coisa senão a iniciativa judicial para a antecipação de atos tendentes à formação de provas - não de elementos de investigação -, diante do risco de desa­ parecimento ou deterioração das fontes de informação". (As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 124).

15. LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 9a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 190. 16. Em sentido relativamente diverso, eis o teor do Enunciado n. 5 da Procuradoria-Geral de Justiça e da Corregedoria-Geral do Ministério

Público de São Paulo: "O art. 3°-A do CPP não revogou os incisos I e II do art. 156 do mesmo diploma legal, salvo no caso do inciso I, no que tange à possibilidade de determinar, de ofício, a produção antecipada da prova

na fase de investigação".

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do magistrado em sede de investigação preliminar. Tal consenso jamais existiu, todavia, quando se fa­ lava desta mesma atuação ex officio do magistrado no curso do processo judicial (iniciativa probatória), tal qual previsto, aliás, no inciso II do art. 156 e em tantos outros dispositivos do Código de Processo Penal. De um lado, parte da doutrina admite que, de modo subsidiário, e exclusivamente durante a fase processual da persecução penal, possa o juiz deter­ minar a produção de provas que entender pertinen­ tes e razoáveis, a fim de dirimir dúvidas sobre pontos relevantes, seja por força do princípio da busca da verdade, seja pela adoção do sistema da persuasão racional do juiz (convencimento motivado). Nesse caso, é imperioso o respeito ao contraditório e à garantia de motivação das decisões judiciais. A fim de dirimir eventual dúvida que tenha nascido no momento de valoração da prova já produzida em juízo, esta atuação deve ocorrer de modo supletivo, subsidiário, complementar, nunca desencadeante da colheita da prova. Em síntese, não se pode permitir que o magistrado se substitua às partes no tocante à produção das provas. Essa iniciativa probatória residual do magistrado pode ser exercida em cri­ mes de ação penal pública e ação penal de inicia­ tiva privada. Ora, se o querelante pode dispor do direito de ação, isso não significa dizer que o juiz é obrigado a reconhecer eventual pretensão deduzida quando não convencido do direito pleiteado, sem poder, antes, averiguar a verdade dos fatos que lhes são postos, mesmo em se tratando de ação penal privada.17

Para tanto, deve o magistrado atuar de maneira imparcial. Se o escopo do juiz for o de buscar provas apenas para condenar o acusado, além da violação ao sistema acusatório, haverá evidente comprome­ timento psicológico com a causa, subtraindo do magistrado a necessária imparcialidade, uma das mais expressivas garantias inerentes ao devido pro­ cesso legal, prevista expressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, n° 1).

Admitida a produção de provas ex officio no curso do processo penal, deve o magistrado assegu­ rar que as partes possam participar da sua produção (contraditório para a prova), ou, caso isso não seja possível, garantir-lhes o direito de se manifestar so­ bre a prova produzida (contraditório sobre a prova).

17. Nesse contexto: BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da

prova: a questão da iniciativa instrutória do juiz em face do sistema acusa­ tório e da natureza da ação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 93.

Ademais, diante do resultado da prova cuja produ­ ção foi determinada de ofício pelo magistrado, deve se franquear às partes a possibilidade de produzir uma contraprova, de modo a infirmar o novo dado probatório acrescido ao processo. Além disso, de modo a preservar sua imparcialidade, impõe-se ao magistrado o dever de motivar sua decisão, expondo a necessidade e relevância da prova cuja realização foi por ele determinada ex officio.

Na visão dessa primeira corrente, essa atuação subsidiária do juiz na produção de provas não teria o condão de comprometer sua imparcialidade. Na verdade, como destaca a doutrina, “os poderes instrutórios do juiz não são incompatíveis com a im­ parcialidade do julgador. Ao determinar a produção de uma prova, o juiz não sabe, de antemão, o que dela resultará e, em consequência, a qual parte vai beneficiar. Por outro lado, se o juiz está na dúvida sobre um fato e sabe que a realização de uma prova poderia eliminar sua incerteza e não determina sua produção, aí sim estará sendo parcial, porque sabe que, ao final, sua abstenção irá beneficiar a parte contrária àquela a quem incumbirá o ônus daquela prova. Juiz ativo não é sinônimo de juiz parcial. É equivocado confundir neutralidade ou passividade com imparcialidade. Um juiz ativo não é parcial, mas apenas um juiz atento aos fins sociais do pro­ cesso, e que busca exercer sua função de forma a dar ao jurisdicionado a melhor prestação jurisdicional possível”.18

Também não há qualquer incompatibilidade entre o processo penal acusatório e um juiz dotado de iniciativa probatória, que lhe permita determinar a produção de provas que se façam necessárias para o esclarecimento da verdade. A essência do sistema acusatório repousa na separação das funções de acu­ sar, defender e julgar. Por mais que a ausência de poderes instrutórios do juiz seja uma característica histórica do processo acusatório, não se trata de uma característica essencial a ponto de desvirtuar o refe­ rido sistema. Consoante prevê a própria Exposição de Motivos do CPP, enquanto não estiver averigua­ da a matéria de acusação ou da defesa, e enquanto houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o 18. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. ônus da prova no processo penal. Op. cit. p. 83. Em sentido semelhante. Marco Antônio de Barros ad­

verte que"a imparcialidade do juiz não exclui seu poder-dever de buscar a verdade, sobretudo porque imparcialidade não se confunde com inércia e nem está limitada ao sabor de uma contrariedade ativa da partes, mas das garantias processuais de defesa. É perfeitamente possível compati­ bilizar a imparcialidade com a busca da verdade, bastando apenas que a função jurisdicional seja exercida com equilíbrio e em consonância com os ditames legais" (A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 122).

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non liquet. É por isso que se diz que no processo penal o juiz tem o dever de investigar a verdade; e a busca da verdade traduz um valor que legitima a atividade jurisdicional penal. Nessa linha, como observa Antônio Scarance Fernandes, “não se deve mesmo retirar do juiz o poder probatório, pois não há porque impedi-lo de, para seu convencimento, esclarecer alguns aspectos da prova produzida pelas partes ou a respeito de algum dado probatório vindo aos autos”.19

Essa atuação subsidiária do magistrado no to­ cante à produção de provas no curso do processo pode ser facilmente percebida a partir da leitura do art. 212 do CPP. De acordo com o caput do art. 212 do CPP, “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na re­ petição de outra já respondida”. O parágrafo único do art. 212 do CPP, por sua vez, prevê que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”. Da leitura do dispositivo em questão, cuja redação foi determinada pela Lei n° 11.690/08, percebe-se claramente que a produção probatória deve recair predominantemente sobre as partes, o que, no entanto, não significa dizer que o magistra­ do deva adotar um comportamento absolutamente inerte no curso do processo. Na busca de um pro­ cesso justo, pode o magistrado atuar de maneira subsidiária, complementando o quanto trazido aos autos pelas partes. Além do art. 156, inciso II, do CPP, há outros dispositivos que consagram poderes instrutórios do juiz no curso do processo penal. A título de exem­ plo, o art. 127 do CPP autoriza o juiz a decretar o sequestro em qualquer fase do processo ou mesmo antes de oferecida a denúncia ou queixa. Noutro giro, segundo o art. 196 do CPP, a todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes. Por sua vez, de acordo com o art. 209, caput, o juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras teste­ munhas, além das indicadas pelas partes. Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem (CPP, art. 209, § Io). Segundo o art. 234 do CPP, se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, indepen­ dentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível. De seu turno,

os arts. 241 e 242 do CPP, além de autorizarem a autoridade judiciária a realizar pessoalmente uma busca domiciliar, preveem expressamente a possi­ bilidade de a busca ser determinada de ofício pelo magistrado. Na mesma linha, por força do art. 366 do CPP, entende-se que cabe ao Juiz da causa decidir sobre a necessidade da produção antecipada da pro­ va testemunhai, podendo utilizar-se dessa faculda­ de quando a situação dos autos assim recomendar, especialmente por tratar-se de ato que decorre do poder geral de cautela do Magistrado.20 O art. 404 do CPP autoriza que o próprio juiz, independente­ mente de requerimento das partes, determine a rea­ lização de diligências consideradas imprescindíveis ao esclarecimento do fato delituoso. Esse entendimento, porém, sempre foi criticado por parte da doutrina nacional, que entendia que, independentemente do momento da persecução pe­ nal em que se encontrar o caso penal - investigação preliminar ou fase judicial -, não se pode admitir a atuação ex ojficio do magistrado, sob pena de vio­ lação ao sistema acusatório e, consequentemente, à imparcialidade do magistrado. Como ser humano que é, se o juiz da instrução e julgamento tomar uma decisão de ofício no tocante à produção de provas, seja em benefício da acusação, seja em favor da defesa, restará vinculado a esta decisão, e, mesmo que involuntariamente, buscará a sua manutenção, superestimando novas informações que possam confirmá-la, ao mesmo tempo em que tenderá a subestimar outras que a contrariem. Ao determinar a realização de uma prova, estará, pois, nas palavras de Giacomolli,21 “retirando a sua toga de terceiro e vestindo a da acusação, sepultando o in dubio pro reo e a prestação da tutela jurisdicional criminal efe­ tiva, com a observância do devido processo penal, pela contaminação da parcialidade”.

Com efeito, segundo Geraldo Prado, “a busca das provas da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por mais grave que possa parecer o delito, compromete a imparcialidade daquele que vai decidir (...)”, pois, “pelo menos do ponto de vista psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua inserção na mencionada atividade implicará certo grau de comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o julgador do ponto de

20. Nesse sentido: STF, Ia Turma, HC 93.157/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23/09/2008, DJe 216 13/11/2008.

19. FERNANDES, Antônio Scarance. Reação defensiva à imputação. Op. cit. p. 17.

21. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 285.

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equilíbrio que, como garantia das partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial”.22

formuladas pelas partes às testemunhas (CPP, art. 212, parágrafo único).23

Não há espaço, portanto, para a atribuição de poderes instrutórios ao juiz da instrução e julga­ mento no curso do processo penal, sem que se esteja colocando em risco a sua imparcialidade, haja vista esta possível e muito provável vinculação com as decisões ex officio que ele vier a proferir a respeito da prova. Quando assim o faz, o magistrado acaba por assumir sua parcialidade para a condução do feito, mesmo que no plano do inconsciente. Absolutamen­ te incompatíveis, portanto, tais poderes instrutórios do julgador à luz do princípio da imparcialidade.

Não se pode mais continuar a insistir, contra a Constituição, em manter um sistema inquisitório por­ que assim o preveem os incisos I e II do art. 156 do CPP, em permanente conflito com o modelo acusató­ rio extraído do art. 129,1, da Constituição Federal, e do próprio art. 3°-A do CPP, que, nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “reclama um devido processo legal e, assim, incompatível com aquele no qual o juiz é o senhor do processo, o senhor das pro­ vas e, sobretudo - como sempre se passou no Sistema Inquisitório - pode decidir antes (naturalmente racio­ cinando, por primário e em geral bem intencionado) e depois sair à cata da prova que justifique a decisão antes tomada”.24

É dentro desse contexto, leia-se, no sentido de que não existe investigador imparcial, que surge a nova redação do art. 3°-A do CPP, que dispõe que o processo penal terá estrutura acusatória, veda­ das a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acu­ sação. Conquanto o dispositivo não seja, quanto à fase processual, tão claro quanto o é em relação à investigação, uma interpretação sistemática da Lei n. 13.964/19 como um todo nos leva a crer que, do­ ravante, não mais será admitida qualquer iniciativa do magistrado, nem mesmo no curso do processo judicial. Não apenas por força da nova redação do art. 3°-A, in fine, do CPP, mas também pelo fato de o Pacote Anticrime ter vedado expressamente a possibilidade de decretação de qualquer medida cautelar pessoal de ofício pelo magistrado, seja du­ rante a fase investigatória - o que já era vedado antes (Lei n. 12.403/11) -, seja durante a fase processual (CPP, arts. 282, §§2° e 4o, e 311, todos com redação dada pela Lei n. 13.964/19). Ora, se o Código de Processo Penal veda expressamente a decretação ex officio de uma medida cautelar, inclusive no curso do processo penal, como justificar, então, a produ­ ção de provas ex officio nesta etapa da persecução penal? Enfim, se ao juiz da instrução e julgamento não é permitido se substituir à atuação probató­ ria do órgão da acusação, deverá recair, portanto, exclusivamente sobre a acusação, o ônus de com­ provar a imputação constante da peça acusatória, sem qualquer tipo de intervenção do juiz, a não ser para sanar dúvida pontual em algumas hipóteses, como, por exemplo, complementando as perguntas

Quando se confere ao juiz tamanho protagonismo no curso do processo penal, podendo buscar e produzir a prova que quiser, praticamente deso­ nerando as partes do seu ônus probandi (CPP, art. 156, caput), o magistrado põe em risco toda aquela ideia de alheamento aos interesses em jogo ineren­ te à imparcialidade que deve nortear sua atuação, tornando despicienda inclusive a própria existência do órgão acusatório, já que não é tão incomum que se utilize dessa iniciativa probatória supostamente em “favor da sociedade”. De mais a mais, enquanto se insistir na atribuição de poderes investigatórios ou instrutórios ao juiz das garantias ou da instrução e julgamento, respectivamente, estará mantida nas mãos do magistrado a gestão da prova, logo, pre­ servado todo o sistema inquisitório do Código de Processo Penal de 1941, em flagrante contradição com a Constituição Federal (art. 129, I) e com a própria redação do art. 3°-A do CPP. Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, inciso II, do CPP, bem como de todos os demais dis­ positivos constantes do Código de Processo Penal que atribuíam ao juiz da instrução e julgamento inicia­ tiva probatória no curso do processo penal. É bem

23. Com entendimento semelhante: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Car­ valho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 15.

condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente

24. Op. cit. p. 9. Como observa Aury Lopes Jr. (Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 164), "a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcio­ nado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um

comprometedora da imparcialidade do julgador".

gravíssimo erro".

22. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 199. Ainda segundo o autor (Op. cit. p. 137), "quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

verdade que o legislador podería ter sido mais direto e objetivo, revogando-os expressamente, de modo a privilegiar a técnica e a própria segurança jurídica. Mas tal omissão não impede que se produza uma interpretação sistemática, coerente com o próprio es­ pírito das mudanças produzidas pela Lei n. 13.964/19 e com o sistema acusatório, que sempre repudiou veementemente esta iniciativa probatória no curso do processo judicial. É tempo, pois, de deixarmos de acreditar, ingenuamente, que o magistrado não tem sua imparcialidade contaminada ao procurar se substituir às partes no tocante à produção de provas. Os Tribunais, todavia, mesmo após a entrada em vigor do Pacote Anticrime, continuam ofere­ cendo enorme resistência à adoção de um sistema verdadeiramente acusatório, tal qual preconizado pelo art. 3°-A do CPP. Prova disso, aliás, é o teor da decisão proferida pelo 6a Turma do STJ nos autos do HC 583.995/MG, in verbis: “(...) O Código de Processo Penal de 1941 adota um modelo no qual ao juiz é reservado o papel de apenas julgar, e não o de também investigar. (...) Continuam em vigor, porém, dispositivos do CPP, como o art. 5o, II (que permite ao juiz requisitar a instauração de inquéri­ to policial), o art. 10, §1° (que torna a autoridade judiciária a destinatária do inquérito policial), o art. 156,1 (que faculta ao juiz ordenar, de ofício, a produção antecipada de provas, mesmo durante o inquérito policial, por considerá-las urgentes e re­ levantes), bem como o art. 574, segunda parte (que determina ao juiz submeter sua decisão, mesmo sem recurso da parte, ao exame da jurisdição supe­ rior, nos casos ali indicados). Também se poderíam acrescer a esse rol de dispositivos outras situações de provável comprometimento psicológico do juiz, como o mecanismo de controle do arquivamento do inquérito policial positivado no art. 28 - do CPP - ainda em vigor, dada a suspensão, pelo STF, da vigência da nova redação dada a tal preceito pela Lei n 13.964/2019 - em decorrência do qual o juiz se substitui ao órgão de acusação no exame da suficiência de elementos informativos para dar iní­ cio a uma ação penal, ao ser autorizado a recusar a promoção de arquivamento das investigações. Em tal hipótese, não rara no quotidiano forense, re­ caem relevantes dúvidas sobre a imparcialidade do juiz que, após remeter os autos ao Procurador-Ge­ ral de Justiça, recebe-os de volta com uma denún­ cia ofertada contra o investigado cujo inquérito se recusou a arquivar, mesmo com o anterior pedido do membro do Ministério Público. Tais exemplos indicam que, mesmo em processo com estrutura acusatória, existem diversas situações nas quais se realizam atividades judiciais sem provocação do

titular da ação penal, ou mesmo em oposição à sua manifestação, o que valida a observaçã" de que “mais do que de sistema inquisitorial ou de sistema acusatório, com referência à legislação processual penal moderna, é mais usual falar de modelos com tendência acusatória ou de formato inquisitorial (DALIA, Andréa & FERRAIOLI, Marzia. Manuale di Diritto Processual Penale. 5a ed. Milão: 2003, p. 27). Em verdade, nossa praxe judiciária não tem acolhido dogmas ou princípios de maneira abso­ luta, pois as idiossincrasias de nosso país e do seu sistema de justiça criminal acabam por engendrar soluções sensíveis a argumentos de cunho prático. E não se há de identificar essa postura, necessa­ riamente, como algo negativo, pois cada país pre­ cisa construir um complexo normativo que, sem desconsiderar as experiências estrangeiras, seja funcional e adaptado às características de nossa realidade”.25 Ao fim e ao cabo, convém destacar que o art. 3°-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, deixou uma margem perigosa para a sobrevi­ vência do sistema inquisitório. Isso porque, ao vedar a iniciativa probatória do juiz no curso do processo penal, fez referência à impossibilidade de substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Ou seja, interpretando-se a contrario sensu o referido dispositivo, ter-se-ia como válida a iniciativa probatória do juiz no curso do pro­ cesso penal quando o fizesse em favor da defesa. Ora, por que motivo devemos admitir que o juiz da instrução e julgamento se substitua à atuação probatória da defesa, produzindo provas de ofício, se deriva do princípio da presunção de inocência a regra de julgamento segundo a qual, diante da dúvida, outra opção não há senão a absolvição do acusado em face do in dubio pro reo?. De mais a mais, tendo em conta o princípio da comunhão das provas, por força do qual a prova é comum, quem poderá garantir que tal prova não estaria sendo produzida ex officio pelo juiz da instrução e julgamento para prejudicar o acusado, e não o contrário? Há de se tomar cuidado, portanto, com a parte final do art. 3°-A do CPP, para que não entre em rota de colisão com a estrutura acusató­ ria delineada por todas as inovações introduzidas pela Lei n. 13.964/19.

25. STJ, 6a Turma, HC 583.995-MG, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 15.09.2020, DJe 07.10.2020. No sentido de que se admite a iniciativa probatória, de maneira residual, por parte do julgador - in casu, do art. 209 do CPP -, haja vista os princípios da busca da verdade real e do livre convencimento: STF, 1a Turma, RHC 154.680-PE, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05.10.2020, DJe 14.10.2020.

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4. JUIZ DAS GARANTIAS

4.1. Conceito Na dicção do art. 3°-B, caput, do Código de Pro­ cesso Penal, incluído pela Lei n. 13.964/19, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos di­ reitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal.

Cuida-se de verdadeira espécie de competência funcional por fase do processo,26 é dizer, a depen­ der da fase da persecução penal em que estivermos, a competência será de um ou de outro juiz: entre a instauração da investigação criminal e o recebimen­ to da denúncia (ou queixa), a competência será do juiz das garantias, que ficará impedido de funcionar no processo; após o recebimento da peça acusatória e, pelo menos em tese, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (ou absolutória), a competência será do juiz da instrução e julga­ mento. Objetiva-se, assim, minimizar ao máximo as chances de contaminação subjetiva do juiz da causa, potencializando, pois, a sua imparcialidade, seguindo na contramão da sistemática até então vi­ gente, quando a prática de qualquer ato decisório pelo juiz na fase investigatória tornava-o prevento para prosseguir no feito até o julgamento final (CPP, art. 75, parágrafo único, e art. 83).

Não se trata, o juiz das garantias, de função ju­ risdicional inédita no nosso ordenamento jurídico, porquanto sempre existiu, e sempre existirá, em um Estado Democrático de Direito, uma autoridade judi­ ciária competente para a tutela dos direitos e garantias fundamentais em qualquer fase da persecução penal, inclusive na investigação preliminar.27 Porém, pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, tal juiz também era livre para atuar como juiz da instru­ ção e julgamento daquela mesma demanda. Ou seja, o mesmo juiz que, por exemplo, durante o inquérito policial, decretava a interceptação telefônica, a bus­ ca domiciliar e a prisão preventiva do investigado, 26. Para mais detalhes acerca da competência funcional (conceito, es­ pécies, etc.), remetemos o leitor ao Título atinente à competência criminal.

27. Como observa Daniel Kessler de Oliveira (Op. cit. p. 191), pode-se dizer que "a expressão juiz das garantias constitui, por si só, uma redun­ dância em termos, uma vez que a figura do juiz, no âmbito processual penal, não pode ter outro sentido ou função que não seja a de garantir a estrita observância dos direitos fundamentais do acusado".

podería, mais adiante, atuar como juiz da instrução e julgamento daquele feito, visto que, aos olhos da reda­ ção então vigente do Código de Processo Penal, não haveria motivos para se questionar sua imparcialidade, já que tal hipótese não estava elencada dentre as cau­ sas de impedimento, suspeição e incompatibilidade dos arts. 252, 253 e 254 do CPP. Doravante, porém, o Código de Processo Penal passa a prever que este juiz das garantias que intervir na fase investigatória, delibe­ rando, por exemplo, ao menos quanto ao recebimento da denúncia (CPP, art. 3°-B, XIV), estará impedido de funcionar no processo (CPP, art. 3°-D). Opera-se, assim, a cisão funcional entre os momentos de inves­ tigação e julgamento da persecução penal.

A inovação introduzida pela Lei n. 13.964/19 guarda relação, portanto, com o reconhecimento explícito, por parte da legislação processual penal, do entendimento de que não há condições mínimas de imparcialidade num processo penal que auto­ riza que o mesmo julgador que interveio na fase investigatória tenha competência, mais adiante, para apreciar o mérito da imputação, condenando ou ab­ solvendo o acusado. Ou seja, diante de possíveis prejuízos causados à imparcialidade do magistrado decorrentes do contato que teve com os elementos informativos produzidos na investigação prelimi­ nar, e as tomadas de decisões que teve que fazer, decretando, por exemplo, medidas cautelares pes­ soais, o que se está a buscar com a nova figura do juiz das garantias é o seu afastamento definitivo da fase processual, preservando-se, assim, sua impar­ cialidade para o julgamento do feito sem quaisquer pré-julgamentos, para que possa, enfim, adentrar o julgamento do feito sem amarras que possam comprometer sua imparcialidade, deixando de ser, assim, um terceiro involuntariamente manipulado no processo.28 Trata-se, pois, de uma verdadeira espécie de blindagem da garantia da imparcialidade.29 Sua introdução no processo penal permite, então, que o juiz da instrução e julgamento, não menos garantidor dos direitos fundamentais do acu­ sado, entre no processo sem ter contra si o peso de 28. Expressão utilizada por Bernd Schünemann. Disponível em: http:// www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.

php?rcon_id=140 Acesso em: 13/01/2020 às 09:50.

29. MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal: da pre­ venção da competência ao juiz de garantias. 2a ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 193. Em sentido semelhante: MARRAF0N, Marco Aurélio. O juiz de garantias e a compreensão do processo à luz da Constituição: perspec­ tivas desde a virada hermenêutica no Direito Brasileiro. O novo Processo Penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castranho de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 145); MORAES, Maurício Zanoide de. Quem tem medo do "juiz das garantias"? Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 18, n. 213, edição especial

CPP, p. 21-23, ago./2010).

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

alguma decisão anterior por ele mesmo proferida a favor (ou contra) uma das partes. De fato, se há um magistrado com competência exclusiva para a fase investigatória da persecução penal - juiz das garan­ tias isso acaba por libertar o juiz da instrução e julgamento não apenas de um passivo da investiga­ ção, contaminado por elementos de informação que foram produzidos ao arrepio do contraditório e da ampla defesa, mas também de eventuais compro­ missos pessoais de sua parte com decisões por ele mesmo já tomadas naquele momento inicial (v.g., decretação de prisão preventiva, recebimento da denúncia, sequestro de bens, etc.).

democrático, capaz de realçar o papel das partes, mais consentâneo com os direitos e garantias fun­ damentais previstos na Constituição Federal e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, colocando o juiz numa posição de equidistância, preservando seu valor mais caro, a imparcialidade, princípio supremo do processo, fundante da própria estrutura dialética (actum trium personarurn), de­ corrente da adoção de um sistema verdadeiramente acusatório.

Como resultado imediato decorrente da in­ trodução da figura do juiz das garantias no âmbito processual penal, a regra será, doravante, a irrestrita separação entre a atividade jurisdicional exercida antes e depois do início do processo, funcionando o recebimento da peça acusatória como marco divisó­ rio entre essas duas fases da persecução penal. Ob­ jetiva-se, assim, evitar que o juiz da causa, compe­ tente para a instrução e julgamento do feito, venha a ser influenciado pelo conhecimento aprofundado dos elementos de informação produzidos na fase investigatória, ou que, mesmo antes da instrução probatória sob o crivo do contraditório judicial e da ampla defesa, já tenha aderido a uma das teses, seja da acusação ou da defesa, tornando, assim, até mes­ mo “dispensável o processo”,30 vez que sua decisão já estaria formada independentemente das provas produzidas pelas partes.31

A introdução da figura do juiz das garantias no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19 deverá provocar grande discussão quanto a sua (in) constitucionalidade formal e material. Vejamos, en­ tão, os principais questionamentos acerca da con­ trovérsia, que certamente deverá ser dirimida em breve pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento das diversas ADI’s já propostas em face da Lei n. 13.964/19 (ADI n. 6.298, ADI n. 6.299, ADI n. 6.300, ADI n. 6.305):

Enfim, não se trata, o juiz das garantias, de me­ canismo concebido com o objetivo de se criar um sistema processual em favor dos criminosos, como aqueles adeptos ao movimento da Lei e da Ordem têm apregoado, sem qualquer procedência, desde a publicação da Lei n. 13.964/19. O sistema acu­ satório e o juiz das garantias nunca foram e jamais serão sinônimos de impunidade. Representam, sim, um passo decisivo na direção de um processo penal 30. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucio­ nal das leis processuais penais. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 109.

31. Como observa Alexandre Morais da Rosa (Decisão Penal: a brico­ lagem de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 364-366), o magistrado deve considerar todos os significantes dotados de pretensão de validade produzidos no processo, sem controle totalmente racional e sem antecipar o julgamento, sob pena de recair numa atitude inquisitória, marcada pelo "primado das hipóteses sobre os fatos", situação típica do sistema processual inquisitório na qual apenas são considerados e relevados os significantes confirmadores da acusação, desprezando os demais. Nesses casos, forma-se, na lição de Cordero, um "quadro mental paranoico", onde praticamente não há espaço para a defesa, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão, que, na verdade, já

estaria tomada.

4.2. (In)constitucionalidade formal e material do juiz das garantias

a) inconstitucionalidade formal em face de ví­ cio de iniciativa relativo à competência legislativa do Poder Judiciário para alterar a organização e a divisão judiciária: de um lado, há quem entenda que a Lei n. 13.964/19 estaria contaminada por uma inconstitucionalidade formal por ofensa à compe­ tência dos Tribunais para a criação de órgãos do Poder Judiciário (CF, art. 96,1, “d”; e II, “b” e “d”, e art. 110), bem como à competência dos estados para organizarem sua própria justiça e à competência dos Tribunais de Justiça para iniciarem a lei de sua organização judiciária (CF, art. 125, §1°). Ao ajui­ zar a ADI n. 6.298, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juizes Fede­ rais do Brasil (AJUFE) aduziram que os arts. 3°-A a 3°-F do CPP, introduzidos pela Lei n. 13.964/19, por não versarem sobre “alteração de competência dos Juízos criminais existentes, mas de instituição de um novo juízo (o das Garantias) de forma ime­ diata, sem prever a efetiva criação e instituição por meio das leis de organização judiciária no âmbito da União e dos Estados, estão violando os disposi­ tivos da CF referidos”. Na mesma linha, por ocasião do deferimento da medida cautelar para suspender a eficácia sine die, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3°-A a 3°-F) na condição de relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, o Min. Luiz Fux asseverou que “a criação do juiz das ga­ rantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o

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funcionamento de qualquer unidade judiciária cri­ minal do país. Nesse ponto, os dispositivos questio­ nados têm natureza materialmente híbrida, sendo simultaneamente norma geral processual e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do art. 96 da Constituição”.32 Com a devida vênia, não se sustenta a alegação de que, ao instituir o juiz das garantias, a Lei n. 13.964/19 estaria violando o poder de auto-organização dos Tribunais e a sua prerro­ gativa de propor a alteração da organização e da divisão judiciárias. A propósito, vale rememorar a distinção entre normas de organização judiciária e normas de direito processual propriamente dito, nas palavras de José Frederico Marques: “(...) as leis de organização judiciária cuidam da administração da justiça e as leis de processo da atuação da justiça. (...) As leis processuais, portanto, regulamentam a ‘tutela jurisdicional’, enquanto que as de organização judiciária disciplinam a administração dos órgãos investidos da função jurisdicional”.33 Ora, firmada a premissa de que a norma de direito processual é aquela que afeta aspectos umbilicalmente ligados à tríade jurisdição, ação e processo, não há por que se afirmar que teria havido qualquer inconstitucionalidade nesse ponto, visto que os arts. 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, caput, 3°-E e 3°-F do CPP estão direta­ mente relacionados a questões atinentes ao próprio exercício da jurisdição no processo penal brasileiro. A matéria versada em tais dispositivos - criação de uma nova causa de impedimento e repartição de competências entre magistrados para as fases de investigação e de instrução processual penal (com­ petência funcional por fase da persecução penal) - insere-se, portanto, no âmbito da competência legislativa privativa da União prevista no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, porquanto versam sobre Direito Processual.34 Trata-se, na verdade, de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional no exercício de sua liberdade de conformação, que deliberou por instituir no sistema processual penal 32. De acordo com o Min. Fux, a necessidade de dois juizes para toda e qualquer persecução penal nas milhares de varas criminais do país poderá criar uma desorganização dos serviços judiciários em efeito cascata de

caráter exponencial, gerando risco de a operação da justiça criminal brasi­ leira entrar em colapso, sobretudo se levarmos em consideração questões práticas como a ausência de magistrados em diversas comarcas, o déficit de digitalização dos processos ou de conexão adequada de internet em vários Estados, as dificuldades de deslocamento de juizes e servidores entre comarcas que dispõem de apenas um magistrado, entre outras. 33. Organização judiciária e processo. Revista de Direito Processual Civil. Vol. 1. Ano 1. Jan. a Jun. de 1960. São Paulo: Saraiva, p. 20-21. 34. Conforme consignado pelo Min. Luiz Fux no julgamento da ADI n.

4.414 (STF, Pleno, Rei. Min. Luiz Fux, j. 31/05/2012, DJe 114 14/06/2013), a cisão funcional de competência não se insere na esfera legislativa dos estados-membros, sendo matéria de direito processual penal, de com­ petência privativa da União (art. 22,1, da CF/88). Em sentido semelhante: STF, Pleno, ADI 3.711, Rei. Min. Luiz Fux, j. 05/08/2015, DJe 24/08/2015.

brasileiro uma nova espécie de competência funcio­ nal por fase do processo, afastando o magistrado que interveio na fase investigatória - juiz das garantias - da possibilidade de mais adiante vir a julgar o mesmo caso penal. Ora, se a própria legislação pro­ cessual penal já prevê uma espécie de competência funcional por fase do processo no âmbito do Júri com dois magistrados diversos exclusivamente na fase judicial da persecução penal - juiz sumariante no iudicium accusationis e juiz-presidente no iudicium causae por que não se admitir semelhante divisão funcional, porém entre a fase investigatória e judicial do processo penal? Enfim, se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do art. 33 da Lei Maria da Penha,35 que determina expressamente que varas criminais poderão cumular as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher enquanto não estruturadas as respectivas varas especializadas, algo que, a nosso juízo, claramente representa matéria relacionada à auto-organização do Poder Judiciário, seria ilógico apontar a existência de tal vício no caso do juiz das garantias;36

b) inconstitucionalidade material em razão de violação à regra de autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário (CF, art. 99, caput), em razão da ausência de prévia dotação or­ çamentária para a implementação das alterações organizacionais acarretadas pela Lei (CF, art. 169, §1°), e em razão da violação do novo regime fiscal da União instituído pela Emenda Constitucional n. 95 (ADCT, arts. 104 e 113): ao suspender a eficá­ cia dos arts. 3°-A a 3°-F do CPP (ADI n. 6.299 MC/ DF, j. 22/01/2020), o Min. Luiz Fux concluiu que os dispositivos que instituíram o juiz das garantias violaram diretamente os arts. 169 e 99 da Consti­ tuição Federal, na medida em que o primeiro deles exige prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal, enquanto o segundo garante auto­ nomia orçamentária ao Judiciário. Nas palavras do Eminente Ministro, “é inegável que a implementação do juízo das garantias causa impacto orçamentário de grande monta ao Poder Judiciário, especialmente

35. Lei n. 11.340/06. "Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente".

36. No julgamento da ADC 19/DF (Pleno, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/02/2012, Dje 80 28/04/2014), o Supremo entendeu que o art. 33 da Lei n. 11.340/06 não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária.

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

com os deslocamentos funcionais de magistrados, os necessários incrementos dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia de informação correlatas, as reestruturações e as redistribuições de recurso humanos e materiais, entre outras possibilidades. Todas essas mudanças implicam despesas que não se encontram especificadas nas leis orçamentárias anuais da União e dos Estados”. A criação do juiz das garantias também violaria o Novo Regime Fiscal da União, instituído pela Emenda Constitucional n. 95/2016. O art. 113 do ato das Disposições Cons­ titucionais Transitórias, acrescentado pela referida Emenda, determina que “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”. Logo, como não há notícia de que a discussão legislativa por ocasião da tramitação do Projeto de Lei que deu origem ao juiz das garantias tenha observado esse requisito constitucional, também seria de rigor, por tal motivo, o reconhecimento de sua inconsti­ tucionalidade material. Pedindo vênia, mais uma vez, ao Min. Fux, somos levados a acreditar que a Lei n. 13.964/19 não criou nenhuma atividade nova dentro da estrutura do Poder Judiciário. Com efeito, o controle da legalidade da investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais cuja fran­ quia tenha sido reservada à autorização prévia do Judiciário sempre foram atividades realizadas pelos juizes criminais Brasil afora. O que será necessário, portanto, é apenas redistribuir o trabalho que an­ tes competia ao mesmo magistrado, seja através da especialização de varas, seja através da criação de núcleos de inquéritos. É dizer, haverá necessidade de uma mera adequação da estrutura judiciária já existente em todo o país para que as funções de juiz das garantias e juiz da instrução e julgamento não mais recaiam sobre a mesma pessoa, dando-se efetividade à norma de impedimento constante do caput do art. 3°-D do CPP. Não há, pois, criação de órgãos novos, competências novas. O que há é uma mera divisão funcional de competências criminais já existentes. Logo, não há falar em violação às regras constitucionais anteriormente citadas; c) inconstitucionalidade formal do art. 3°-D do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, em face de vício de iniciativa relativo à competência legislativa do Poder Judiciário para alterar a or­ ganização e a divisão judiciária: de acordo com o referido dispositivo, “nas comarcas em que funcio­ nar apenas um juiz, os tribunais criarão um siste­ ma de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo”. Como se pode notar, o dispositivo sob comento não dispõe propriamente

sobre processo penal, ingressando em questão de organização judiciária, vez que determina que se adote um sistema de rodízio de magistrados como mecanismo de efetivação do juiz das garantias. Ora, ao determinar a forma pela qual deverá ser imple­ mentado o juiz das garantias nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, é de todo evidente que o art. 3°-D, parágrafo único, do CPP, cria uma obri­ gação aos tribunais no que tange a sua forma de organização, violando, assim, o poder de auto-organização desses órgãos (CF, art. 96) e usurpando sua iniciativa para dispor sobre organização judiciária (CF, art. 125, §1°). Prova disso, aliás, é a própria redação do art. 3°-E do CPP, o qual, em fiel obser­ vância à Constituição Federal, dispõe que “o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”. Como se pode notar, diversamente do pa­ rágrafo único do art. 3°-D, o art. 3°-E, também do CPP, vem ao encontro da autonomia dos tribunais, respeitando, ademais, as peculiaridades de cada es­ tado da federação.

4.3. Distinção entre o juiz das garantias, juiza­ do de instrução e "centrais de inquérito" (v.g., DIPO/SP) Conquanto muitos insistam em realizar tal comparação, a figura do juiz das garantias, tal qual regulamentado pelos arts. 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3°-F do CPP, não se confunde com o cha­ mado Juizado de Instrução. Na verdade, o modelo brasileiro se assemelha muito mais ao Giudice per Le indagini preliminari do sistema italiano. Como observa Daniel Kessler Oliveira,37 tanto no modelo italiano como no brasileiro, “a atuação do juiz de garantias é ocasional, sem funções de instrução, limitada ao controle da legalidade e à garantia dos direitos fundamentais”. Como deixa bem claro o art. 3°-A do CPP, ao nosso juiz das garantias é ve­ dada qualquer iniciativa na fase de investigação, estando sua atuação limitada, portanto, a autorizar pedidos de medidas invasivas a direitos e garantias fundamentais que estejam subordinados à prévia autorização judicial, apartando-se, pois, por com­ pleto de um juiz investigador. É ele, portanto, o guardião das regras do jogo, e não o senhor da in­ vestigação preliminar.

37. Nessa linha: OLIVEIRA, Daniel Kessler. A atuação do julgador no processo penal constitucional: o juiz de garantias como um redutor de danos da fase de investigação preliminar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 166.

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Difere, pois, do denominado juizado de ins­ trução, adotado em diversos países, e que consis­ te, grosso modo, na existência de um julgador que representa a máxima autoridade, sendo respon­ sável pelo impulso e direção oficial. Na condição de responsável pelo desenvolvimento da instrução preliminar, este juiz instrutor assume um papel de protagonismo, detendo amplos poderes para realizar as investigações e diligências que reputar necessário para trazer aos autos elementos de informação que permitam ao titular da ação penal oferecer uma acu­ sação e a ele decidir, numa fase intermediária, sobre a admissão ou não da peça acusatória.38

fases do processo judicial (CPP, art. 3°-D). Não há, portanto, no âmbito do DIPO/TJSP, a separa­ ção integral entre o magistrado responsável pela fase pré-processual e o magistrado responsável pela instrução e julgamento, sendo inaplicável a mesma lógica referente ao juiz das garantias. Por conseguinte, revela-se inadequado denominar a figura criada pelo Poder Judiciário Paulista de juiz das garantias.

O juiz das garantias, introduzido pela Lei n. 13.964/19 no Código de Processo Penal, também não se confunde com as chamadas “Centrais de In­ quérito”,39 a exemplo do Departamento de Inquéri­ tos Policiais (DIPO), em funcionamento na capital paulista há décadas, o qual, concentra “todos os atos relativos aos inquéritos policiais e seus incidentes, bem como os pedidos de habeas corpus” (Provi­ mento n. 167/1984, art. 2o).

De modo a evitar que uma parte seja bene­ ficiada em detrimento da outra, ainda que in­ voluntariamente, o magistrado só pode atuar de maneira imparcial, conduzindo o processo como um terceiro desinteressado em relação às partes, comprometendo-se a apreciar na totalidade ambas as versões apresentadas sobre os fatos em apuração, proporcionando sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos. Este alheamento do julgador aos interesses em jogo funciona como princípio supremo do processo, marca do sistema processual acusatório, enfim, como verdadeira ga­ rantia fundamental orientada à concretização de um processo penal justo e ético. A imparcialidade requer do magistrado, portanto, uma postura de equidistância em relação às partes, a exigir que as­ suma uma posição para além dos interesses delas, o que, em tese, permitirá uma atuação jurisdicio­ nal objetiva, desapaixonada, na qual não deverá favorecer, seja por interesse ou simpatia, seja por ódio ou antipatia, a nenhuma das partes. Em outras palavras, é o desinteresse subjetivo no resultado do processo o que caracteriza o ser imparcial. Ser im­ parcial, nas palavras de Giacomolli, “não significa ignorar as pretensões das partes, suas perspectivas e expectativas, mas outorgar confiança e segurança de um julgamento na qualidade de terceiro e não de parte, bem como evitar que seja proferido um julgamento com dúvida razoável acerca da parcia­ lidade do julgador”.40

Ao contrário do magistrado integrante do DIPO/TJSP, o juiz das garantias estabelecido pela Lei n. 13.964/19: a) fica impedido de atuar nas demais fases da persecução penal; b) também é competente para decidir sobre o recebimento (ou não) da denúncia (ou queixa). Quanto à primeira distinção, convém destacar que a norma que ins­ tituiu o DIPO/TJSP no âmbito do Estado de São Paulo - Lei Complementar Estadual n. 2.208/2013 - não estabeleceu o impedimento do magistrado integrante desse órgão nas demais etapas da per­ secução penal. Logo, pelo menos em tese, é possí­ vel que o magistrado que atuou em determinado inquérito como membro do DIPO/TJSP venha a atuar também na fase processual da persecução penal, em hipóteses de promoção ou remoção. Em sentido diverso, o juiz das garantias criado pela Lei n. 13.964/19 fica impedido de atuar nas demais 38. OLIVEIRA, Daniel Kessler. Op. cit. p. 165. Na mesma linha: SÁ, Priscila

Placha. Juiz de garantias: breves considerações sobre o modelo proposto no Projeto de Lei do Senado 156/2009. O novo Processo Penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castranho de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 163. 39. Relatório do Conselho Nacional de Justiça acerca da estrutura e da localização das unidades judiciárias com competência criminal identificou 07 (sete) tribunais de justiça com centrais ou departamentos de inquéritos policiais, dentre os quais se inclui o do Estado de São Paulo: a) Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (capital + 22 no interior); b) Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (capital); c) Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (São Luís e Imperatriz); d) Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (capital); e) Tribunal de Justiça do Estado do Pará (capital); f) Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (capital); g) Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (capital).

4.4. Fundamento: a necessária preservação da imparcialidade do magistrado à luz da teoria da dissonância cognitiva

Por mais que a Constituição Federal não diga, expressamente, que toda pessoa acusada de um de­ lito tem direito de ser julgada por um juiz imparcial, como o faz, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n. 678/92, “Art. 8. 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devi­ das garantias e dentro de um prazo razoável, por um 40. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 280.

TÍTULO 2 - JUIZ DAS GARANTIAS

juiz ou tribunal competente, independente e impar­ cial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”), é inegável que a imparcialidade do magistrado é conditio sine quae non de qualquer juiz, funcionando, pois, como verdadeira garantia constitucional implícita decorrente do devido pro­ cesso legal. Afinal, não se pode conceber a ideia do processo como instrumento de heterocomposição de conflitos se o terceiro a julgá-lo, leia-se, o juiz, não for imparcial.41

Dada a relevância dessa verdadeira pedra de toque do direito processual penal, é correto afir­ mar que, evidenciada a atuação de um juiz acusador, logo, parcial, outra opção não haverá senão o reco­ nhecimento da nulidade do feito. Com base nesse raciocínio, a 2a Turma do STF reconheceu, nos au­ tos do HC 164.493/PR,42 a parcialidade do ex-Juiz Federal Sérgio Moro nos processos envolvendo o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, anulando, como consequência, todos os atos decisórios por ele praticados, inclusive na fase pré-processual. Para o referido órgão colegiado, 7 (sete) fatos denotariam a parcialidade do referido magistrado: “1. O primeiro fato indicador da parcialidade do magistrado consiste em decisão, de 4.3.2016, que ordenou a realização de uma espetaculosa condu­ ção coercitiva do então investigado, sem que fosse oportunizada previamente sua intimação pessoal para comparecimento em juízo, como exige o art. 260 do CPP. Foi com o intuito de impedir incidentes desse gênero que o Plenário do STF reconheceu a inconstitucionalidade do uso da condução coerci­ tiva como medida de instrução criminal forçada, ante o comprometimento dos preceitos constitu­ cionais do direito ao silêncio e da garantia de não autoincriminação;43

2. O segundo fato elucidativo da atuação en­ viesada do juiz consistiu em flagrante violação do direito constitucional à ampla defesa do paciente. O ex-juiz realizou a quebra de sigilos telefônicos do paciente, de seus familiares e até mesmo de seus advogados, com o intuito de monitorar e antecipar 41. A imparcialidade não se confunde com neutralidade, compreen­ dida como a ausência de valores, de ideologia, enfim, uma utópica abs­ tração subjetiva, um completo isolamento do ser em relação ao contexto social em que está inserido, algo inalcançável diante da essência do pró­ prio juiz, ser humano constituído por razão e emoção. 42. STF, 2a Turma, HC 164.493/PR, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 23.03.2021, DJe 04.06.2021. 43. STF, Pleno, ADPF 444, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14.6.2018, DJe 22.5.2019.

as estratégias defensivas. Tanto a interceptação do ramal-tronco do escritório de advocacia Teixeira, Martins & Advogados quanto a interceptação do telefone celular do advogado Roberto Teixeira per­ duraram por quase 30 (trinta dias), de 19.2.2016 a 16.3.2016. Durante esse período, foram ouvidas e gravadas todas as conversas havidas entre os 25 (vinte e cinco) advogados integrantes da sociedade, bem como entre o advogado Roberto Teixeira e o acusado; 3. O terceiro fato indicativo da parcialidade do juiz traduz-se na divulgação de conversas obti­ das em interceptações telefônicas do ex-Presidente com familiares e terceiros. Os vazamentos se de­ ram em 16.3.2016, momento de enorme tensão na sociedade brasileira, quando o acusado havia sido nomeado Ministro da Casa Civil da Presidência da República. Houve intensa discussão sobre tal ato e ampla efervescência social em crítica ao cenário político brasileiro. Em decisão de 31.3.2016, o Min. Teori Zavascki, nos autos da Reclamação 23.457, reconheceu que a decisão do ex-Juiz que ordenou os vazamentos violou a competência do STF, ante ao envolvimento de autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função, e ainda se revelou ilícita por envolver a divulgação de trechos diálogos cap­ tados após a determinação judicial de interrupção das interceptações telefônicas. O vazamento das in­ terceptações, além de reconhecidamente ilegal, foi manipuladamente seletivo;

4. O quarto fato indicativo da quebra de im­ parcialidade do magistrado aconteceu em 2018, quando o magistrado atuou para que não fosse dado cumprimento à ordem do Juiz do Tribunal Regional Federal da 4a Região Rogério Favreto, que concedera ordem de habeas corpus para determinar a liberdade do ex-Presidente Lula, de modo a possibilitar-lhe a participação no “processo democrático das eleições nacionais, seja nos atos internos partidários, seja na ações de pré-campanha”. Mesmo sem jurisdição sobre o caso e em período de férias, o ex-Juiz Sér­ gio Moro atuou intensamente para evitar o cum­ primento da ordem, a ponto de telefonar ao então Diretor-Geral da Polícia Federal Maurício Valeixo e sustentar o descumprimento da liminar, agindo como se membro do Ministério Público fosse, com o objetivo de manter a prisão de réu em caso em que já havia se manifestado como julgador; 5. O quinto fato indicativo da quebra de impar­ cialidade do magistrado coincide com a prolação da sentença na ação penal do chamado Caso Triplex. Ao proferir a sentença condenatória, o ex-Juiz Sér­ gio Moro fez constar claramente diversas expressões

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de sua percepção no sentido de uma pretensa atua­ ção abusiva da defesa do paciente. O próprio julga­ dor afirmou que, em sua percepção, a defesa teria atuado de modo agressivo, com comportamentos processuais inadequados, visando a ofender-lhe. Diante disso, alega que “em relação a essas medi­ das processuais questionáveis e ao comportamento processual inadequado, vale a regra prevista no art. 256 do CPP (a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la’)”;

6. O sexto fato indicador da violação do dever de independência da autoridade judiciária consiste na decisão tomada pelo magistrado, em Io. 10.2018, de ordenar o levantamento do sigilo e o translado de parte dos depoimentos prestados por Antônio Palocci Filho em acordo de colaboração premiada por ele firmado em outro processo criminal, refe­ rente ao Instituto Lula. Os termos do referido acor­ do foram juntados cerca de 3 (três) meses após a decisão judicial que o homologou, para coincidir com a véspera das eleições. Por fim, tanto a juntada do acordo aos autos quanto o levantamento do seu sigilo ocorreram por iniciativa do próprio juiz, isto é, sem qualquer provocação do órgão acusatório. A 2a Turma do STF reconheceu a ilegalidade tanto do levantamento do sigilo quanto do translado para os autos de ação penal de trechos de depoimento prestado por delator, em acordo de colaboração premiada;44

7. O último fato indicativo da perda de impar­ cialidade do magistrado consiste no fato de haver aceitado o cargo de Ministro da Justiça após a elei­ ção do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, que há muito despontava como principal adversário político do acusado. Sérgio Moro decidiu fazer parte do Governo que se elegeu em oposição ao partido cujo maior representante é Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-juiz foi diretamente beneficiado pela conde­ nação e prisão do paciente. A extrema perplexidade com a aceitação de cargo político no Governo que o ex-magistrado ajudou a eleger não passou des­ percebida pela comunidade acadêmica nacional e internacional”.

Superada a análise desse importante prece­ dente da 2a Turma do STF, convém destacar que a imparcialidade subdivide-se em subjetiva e ob­ jetiva: a primeira é examinada no íntimo da con­ vicção do magistrado, e visa evitar que o processo seja conduzido por alguém que já tenha formado 44. STF, 2a Turma, HC 163.943 AgR, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 10.9.2020.

uma convicção pessoal prévia acerca do objeto do julgamento, ou seja, pode ser traduzida na impossi­ bilidade de o magistrado aderir às razões de uma das partes antes do momento processual estabelecido;45 a segunda é aferida a partir da postura da entidade julgadora, que não deverá deixar qualquer espaço de dúvida de que conduz o processo sem preterir uma parte à outra, ou seja, não basta ser impar­ cial, sendo indispensável que o juiz aparente tal imparcialidade. É o que se denomina de teoria da aparência, pautada pelo adágio inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.46 Por força dela, havendo dúvida razoável e fundada acerca da parcialidade do julgador, justifica-se o seu afastamento, mesmo que, subjetivamente, possa não haver influência sobre a condução do processo ou do julgamento. Portanto, mais do que um julgamen­ to imparcial, há de se assegurar uma aparência de imparcialidade à atividade jurisdicional, já que a sua própria legitimidade depende, consoante leciona Ferrajoli, da confiança das partes e da sociedade na imparcialidade do magistrado, de modo que não se pode ter temor de que o julgamento esteja afeito a um juiz inimigo, ou, de qualquer modo, parcial.47 Enfim, como afirmado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos no Caso Piersack vs. Bélgica de 1982, há de ser verificado se o magistrado oferece garantias suficientes de exclusão de qualquer dúvida razoável sobre sua imparcialidade, devendo oferecer confiança e segurança acerca da imparcialidade.48

É dentro desse cenário que se questiona até que ponto o julgamento proferido pela mesma pessoa que atuou na investigação preliminar daquele caso 45. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed.

São Paulo: Atlas, 2016. p. 278.

46. No julgamento do HC 94.641 /BA (STF, 2aTurma, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 11/11/2008, DJe43 05/03/2009), em que o Supremo reconhe­ ceu, com fundamento no art. 252, incisos I e II, do CPP, o impedimento de magistrado que teria atuado como autoridade policial em procedimento preliminar de investigação de paternidade, o Ministro Cesar Peluso as­ sim se manifestou no seu voto:"(...) Caracteriza-se, portanto, hipótese exemplar de ruptura da situação de imparcialidade objetiva, cuja falta incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional.Tal qualidade, carente no caso, diz-se objetiva, porque não provém de ausência de vín­ culos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja, ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir".

47. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2a ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 535. 48. Nessa linha: GIACOMOLLI. Op. cit. p. 279.

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

penal, tendo contato, por exemplo, com os elemen­ tos informativos produzidos ao arrepio do contra­ ditório e da ampla defesa, produzindo provas de ofício, decretando medidas cautelares, teria (ou não) o condão de suscitar dúvidas acerca da sua indispen­ sável imparcialidade (aspecto objetivo). Se não se pode afirmar, categoricamente, que prejuízo não há, parece evidente que a atuação do magistrado na fase investigatória do processo é, no mínimo, capaz de gerar uma certa dúvida, razoável, no jurisdicionado, quanto à imparcialidade do magistrado.49

Firmada a distinção entre atos meramente ordinatórios de uma investigação criminal (v.g., pror­ rogação de prazos) e atos tipicamente investigatórios, em relação aos quais se exige do magistrado uma análise relativamente próxima em extensão e intensidade àquela atinente ao exame do mérito, não há como se afirmar categoricamente que a verifica­ ção da existência de prova da existência do crime e indício suficiente de autoria para se decretar uma prisão preventiva (CPP, art. 312), que a constatação da presença de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens para se decretar um sequestro (CPP, art. 126), ou, ainda, que o reconhecimento da existência de indícios razoáveis de autoria ou de participação em infração penal punida com pena de reclusão para decretar uma interceptação telefôni­ ca (Lei n. 9.296/96, art. 2o, I), não terão o condão de contaminar subjetivamente a imparcialidade do magistrado com os argumentos formulados pela autoridade policial ou pelo Ministério Público e com os elementos de informação que dão suporte às medidas cautelares por eles postuladas. Ora, se a própria função de garantidor dos di­ reitos fundamentais (CPP, art. 3°-B, caput) exercida pelo magistrado nessa fase investigatória lhe impõe o dever de proceder a uma minuciosa análise dos pressupostos e requisitos das medidas cautelares, o que o faz com base nos elementos informativos co­ lhidos unilateralmente pelos órgãos persecutórios, parece razoável supor que isso, por si só, já teria con­ tribuído para a formação de sua convicção acerca do caso penal, sobre a certeza da existência do crime e provável culpabilidade do acusado, perdendo, como 49. Oportunas, nesse momento, as palavras de Daniel Kessler de Oli­ veira (op. cit. p. 238), que observa que "ao afirmar que a imparcialidade de um julgador está posta em dúvida, não se está a afirmar que este é corrupto, improbo ou prevaricador em razão disto, mas apenas a ven­ tilar a possibilidade de que, em razão de determinadas circunstâncias, elementos subjetivos estranhos aos autos possam estar influenciando significativamente o seu julgamento, de modo a lhe retirar a essencial qualidade de terceiro imparcial".

consequência, a imparcialidade necessária para o escorreito exercício da atividade jurisdicional.50 Afinal, não são raras as hipóteses em que uma decisão proferida na fase investigatória, decretando, por exemplo, uma medida cautelar, apresenta uma ampla fundamentação e um juízo valorativo sobre circunstâncias do fato e do indivíduo, que denotam praticamente um convencimento pré-formado na mente do julgador. Teria este juiz, então, imparcia­ lidade suficiente para julgar o acusado, quiçá inclu­ sive para fins de absolvê-lo, hipótese em que estaria assumindo, em uma posição absolutamente descon­ fortável para qualquer ser humano, que sua deci­ são anterior (v.g., prisão preventiva) possa ter sido equivocada? Ora, não é tarefa fácil para nenhum ser humano reconhecer um erro, principalmente se deste resultar a aplicação de uma medida cautelar injusta, como, por exemplo, uma prisão preventiva, capaz, inclusive, de tipificar possível crime de abuso de autoridade (Lei n. 13.869/19, art. 9o, caput). Por consequência, é natural que este indivíduo se “fe­ che”, não se permitindo uma “abertura” para aceitar situações que possam representar uma ameaça de tensão psicológica consigo mesmo. Como o reco­ nhecimento deste equívoco irá lhe causar grande so­ frimento psíquico, voluntária ou involuntariamente ele se fecha para aceitar toda e qualquer versão em sentido contrário à decisão por ele já adotada.

Dentro desse contexto, muito se discute acer­ ca dos efeitos da teoria da dissonância cognitiva em relação ao magistrado que, de alguma forma, interveio na fase investigatória e que, mais adiante, seria chamado para o julgamento daquele mesmo feito. Cuida-se, a “Theory of Cognitive Dissonance” de Leon Festinger, de um estudo da psicologia acerca da cognição e do comportamento humano: está fundamentada na ideia de que seres racionais tendem a sempre buscar uma zona de conforto, um estado de coerência entre suas opiniões (decisões, atitudes), daí por que passam a desenvolver um 50. Ao suspender a eficácia dos arts. 3°-A a 3°-F do CPP (STF, ADI n. 6.299 MC/DF, j. 22/01/2020), o Min. Luiz Fux reputou questionável a presunção de que juizes que acompanham investigações tenham a ten­ dência de produzir vieses que prejudiquem o exercício imparcial da juris­ dição, especialmente na fase processual penal. Nas palavras do Eminente Ministro,"(...) A base das ciências comportamentais é o caráter empírico de seus argumentos. A existência de estudos empíricos que afirmam que seres humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios não autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à acusação. Mais ainda, também não se pode inferir, a partir desse dado científico ge­ ral, que a estratégia institucional mais eficiente para minimizar eventuais vieses cognitivos de juizes criminais seja repartir as funções entre o juiz das garantias e o juiz da instrução. Defensores desse argumento sequer ventilam eventuais efeitos colaterais que esse arranjo pode produzir, inclusive em prejuízo da defesa".

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processo voluntário ou involuntário, porém inevi­ tável, de modo a evitar um sentimento incômodo de dissonância cognitiva. Há, por assim dizer, uma ten­ dência natural do ser humano à estabilidade cogniti­ va, intolerante a incongruências, que são inevitáveis no caso de tomada de decisões e de conhecimento de novas informações que coloquem em xeque a primeira impressão. Nas palavras de Ritter, partindo-se “do princípio de que todos buscam um estado interior de conso­ nância (coerência) entre os conhecimentos que pos­ suem (cognições), a teoria da dissonância cognitiva explica, em suma, que a presença de dissonância (in­ coerência) entre cognições, inevitavelmente origina pressões (conforme sua magnitude) para sua redu­ ção e evitação do seu aumento, visando à retomada daquele estado harmonioso”.51 Como reflexos dessa dissonância, e objetivando retomar aquele estado de coerência entre suas cognições, o indivíduo passa a desenvolver diversos processos cognitivo-comportamentais reflexos. Afinal, tomada uma decisão, todos os aspectos positivos da opção preterida e todos os maus aspectos daquela adotada passarão a ser disso­ nantes com a opção do sujeito. Dentre esses proces­ sos, merecem destaque, dentre outros, os seguintes:52

a) desvalorização de elementos cognitivos dissonantes (efeito inércia ou perseverança): por meio desse processo, o indivíduo, voluntária ou in­ voluntariamente, desvaloriza o valor dos elementos cognitivos dissonantes, retomando, assim, a con­ sonância cognitiva. No exemplo daquele indivíduo que tem o hábito de fumar, este, ao tomar conhe­ cimento de estudos científicos que comprovam os efeitos nocivos da nicotina, procura desvalorizar o mérito da pesquisa sob o argumento de que seus dados seriam frágeis, ou que, na verdade, o cigarro por ele utilizado teria baixo teor de nicotina, etc;

b) busca involuntária por informações consonantes com a cognição pré-existente (ou busca seletiva de informações): ante a dissonância, e com o objetivo de retomar sua coerência cognitiva inte­ rior, o indivíduo tem a tendência de buscar novos conhecimentos que sejam consonantes com seus elementos cognitivos contrariados. É dizer, há um impulso de sua parte no sentido de procurar infor­ mações que preponderantemente confirmem suas hipóteses prévias. No exemplo daquele sujeito que 51. Op. cit. p. 112. Ainda segundo o autor, à luz de tal teoria,"crer que se tem razão (autoconvencer-se disso) é mais importante do que, de fato, a ter. Afinal, a preocupação está sempre voltada ao (re)estabelecimento da consonância cognitiva, justificando-se até mesmo a prática de ações estúpidas e aparentemente irracionais". 52. RITTER. Op. cit. p. 105-113.

queria comprar um veículo automotor, estando em dúvida entre dois modelos, uma vez feita a escolha, o comprador naturalmente passaria a se interessar por informações que explorassem as virtudes do carro que ele havia comprado, o que, em tese, teria o condão de reduzir a dissonância produzida pelos elementos cognitivos favoráveis ao outro veículo; c) evitação ativa do aumento de elementos cognitivos dissonantes: levando-se em conta que há uma pressão interna para fins de se eliminar (ou reduzir) a dissonância cognitiva, parece natural que, paralelamente a isso, surja um processo voluntário (ou involuntário) de evitação do seu aumento, con­ substanciado na fuga ativa de contato com elemen­ tos possivelmente dissonantes. Assim, valendo-se ainda do exemplo da compra do carro acima citado, tão logo feita a escolha, o indivíduo procuraria evi­ tar o contato com informações que demonstrassem que o veículo preterido era melhor do que aquele por ele comprado.

Compreendida a teoria da dissonância cogni­ tiva, discute-se, então, até que ponto a tomada de decisão por parte do juiz na fase investigatória da persecução penal, por exemplo, decretando medi­ das cautelares pessoais, reais ou probatórias (v.g., prisão preventiva, sequestro, interceptação telefô­ nica), teria (ou não) o condão de colocar em risco sua imparcialidade para o processo e julgamento daquele mesmo caso penal, diante dessa tendência involuntária do indivíduo de manutenção/confirmação de uma decisão por ele anteriormente toma­ da, a fim de se evitar a incidência de dissonância cognitiva.53 A questão foi abordada na pesquisa de Bernd Schünemann, publicada no Brasil na obra “Estudos de direito penal, direito processual e filosofia do direito”, coordenada por Luís Greco, sob o título “O juiz como terceiro manipulado no processo pe­ nal? Uma confirmação empírica dos efeitos perse­ verança e correspondência comportamental”.54 O 53. Nesse sentido: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 23, v. 117, p. 263-286, jan./fev. 2015. p. 275. Segundo o autor, dos 90 casos concretos

por ele analisados, em todos em que houve decreto de prisão preventiva houve também a confirmação de uma decisão condenatória ao final, do que conclui que a declaração de uma prisão processual acaba se transfor­ mando numa verdadeira resolução de mérito. Logo, ante a parcialidade dominante do curso processual nesse quadro de contaminação (in) cons­ ciente e precoce do julgador, sugere, dentre outras medidas, a vedação do julgamento de mérito pelo mesmo magistrado que já decretou uma prisão processual e introdução de mecanismos de disfluência processual, como a separação rígida do processo em fases.

54. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=140 . Acesso em: 13/01/2020 às 05:38.

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

jurista alemão pretende, em seu estudo, responder se o conhecimento do magistrado acerca da inves­ tigação preliminar não acaba impedindo o pro­ cessamento adequado das circunstâncias e provas do fato em apuração, eis que o mesmo acabaria ficando vinculado, ainda que involuntariamente, à rota traçada pelas agentes estatais responsáveis pela investigação.

A pesquisa tem como base a teoria da dis­ sonância cognitiva e dois processos cognitivo-comportamentais dela decorrentes, resultantes do rompimento do estado de equilíbrio cognitivo, que se traduzem na superestimação de hipóteses pré-concebidas, em detrimento de outras não leva­ das em consideração até então e/ou contraditórias a estas, o que o autor chama de efeito inércia ou perseverança, e a busca seletiva de informações que confirmem cognições prévias (redundantes), ou que as contrariem (dissonantes), mas que se­ jam facilmente refutadas, de modo que elas acabam tendo um efeito igualmente confirmador (princí­ pio da busca seletiva de informações).55 O autor questiona até que ponto o contato do magistrado com os autos de um procedimento investigatório seria (ou não) capaz de fixar, em sua psique, uma imagem unilateral e tendenciosa do caso penal, capaz de lhe fechar as portas para outras possibilidades, eis que, uma vez preso à tal versão, buscaria a todo custo comprová-la no processo, co­ locando em risco sua imparcialidade, ao que conclui (i) que é muito mais comum a superveniência de decisões condenatórias quando o juiz toma conhe­ cimento prévio dos autos da investigação preliminar, (ii) que o armazenamento correto de informações que contrariam o teor dos elementos investigatórios, produzidos, porém, em juízo é extremamente precário, e (iii) que as perguntas formuladas na au­ diência de instrução geralmente são feitas apenas para confirmar um conhecimento prévio, baseado no inquérito policial, e não para apreender novas informações.56

Todos esses estudos e pesquisas acerca da teoria da dissonância cognitiva demonstram, à evidência, 55. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasE-

dicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=140. Acesso em: 13/01/2020

às 06:20.

56. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=140. Acesso em: 13/01/2020 às 06:45. Nessa linha, como observa Ritter (op. cit. p. 138), "o contato do julgador com investigação preliminar, de caráter predominantemente incriminador, é um fator determinante para um juízo condenatório, evi­ denciando o apego judicial à imagem mental prévia do fato a ser julgado e o completo comprometimento do processo, que mero simulacro, no qual a presunção de inocência está de cabeça para baixo, competindo à

defesa a prova de que o fato narrado na denúncia não existiu".

que se não há certeza quanto à perda de parcialidade do magistrado, pelo menos se cria uma fundada suspeita acerca de possíveis prejuízos à garantia da imparcialidade em um processo penal que admite a atuação de ofício do juiz na fase investigatória e judicial da persecução penal, que permite que um mesmo magistrado intervenha na fase investigató­ ria, proferindo decisões que tangenciam o mérito da imputação, e, diante da prevenção, venha a atuar, depois, como julgador do mesmo caso penal, e que, permite, ademais, o livre contato do julgador com os autos do inquérito policial, cujos elementos infor­ mativos poderiam, até bem pouco tempo, ser utili­ zados de maneira subsidiária para fins de formação do convencimento do juiz (CPP, art. 155, caput, com redação dada pela Lei n. 11.690/08). Louváveis, portanto, no sentido de diminuir o viés inquisitório do nosso Código de Processo Penal e os riscos à imparcialidade e ao próprio sistema acusatório, as inovações introduzidas pela Lei n. 13.964/19, não apenas quanto à vedação da inicia­ tiva do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (CPP, art. 3°-A), mas também no tocante à introdução da figura do juiz das garantias, responsável, doravante, pelo controle da legalidade da investigação crimi­ nal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Judiciário (CPP, art. 3°-B, caput), o qual, todavia, ficará impedido de funcionar em ulterior processo judicial referente ao mesmo caso penal (CPP, art. 3°-D, caput), impedindo-se, ademais, o contato do juiz da instrução e julgamento com os atos investigatórios, salvo no que tange às provas irrepetíveis, antecipadas, e meios de obtenção de provas (CPP, art. 3°-C, §3°).

4.5. A figura do juiz das garantias no direito comparado Levando-se em consideração o aspecto objetivo da imparcialidade, pelo qual, diante das circunstân­ cias específicas de determinado caso concreto, de­ ve-se observar se o magistrado realmente apresenta condições de afastar quaisquer dúvidas razoáveis acerca da sua imparcialidade, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem questionado, desde a década de 1980, a (in) compatibilidade entre o exercício de funções de investigação - não necessariamente de mera supervisão, como ocorre no caso do juiz das garantias - e de julgamento por um mesmo magis­ trado, em um mesmo processo penal.

Paradigmático, nesse sentido, é o caso De Cubber vs. Bélgica, quando o TEDH se manifestou sobre a

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legitimidade de um julgamento proferido por uma Corte de Justiça composta por 3 juizes, um dos quais teria conduzido a investigação do caso por quase dois anos, não apenas decretando a prisão do suspeito, mas também o interrogando e indeferindo reque­ rimentos de liberdade e de trancamento da inves­ tigação. Na visão do TEDH, esse juiz investigador teria, na prática, o mesmo status de um oficial de investigação da polícia, cuja atuação é subordinada à supervisão do Ministério Público. Ante a constatação de que esse juiz investigador teria adquirido extenso conhecimento sobre os fatos delituosos, o Tribunal entendeu que isso permitiría crer, tanto ao acusado quanto à sociedade em geral, que o magistrado já teria formado sua convicção sobre a culpabilidade do acusado mesmo antes do julgamento, carecendo, pois, da necessária imparcialidade para julgar como terceiro desinteressado. Concluiu, assim, ter havido violação da imparcialidade no seu aspecto objetivo, vez que o sucessivo exercício das funções de juiz investigador e de magistrado julgador justificaria a dúvida acerca da perda da sua imparcialidade.57

Porém, ainda na década de 1980, ao apreciar o caso Hauschild vs. Dinamarca, a Corte Européia concluiu que o simples fato de o magistrado, em sistemas processuais penais em que a investigação e a acusação são funções exclusivas da polícia e do Ministério Público, ter proferido decisões na fase pré-processual, não justifica, por si só, o receio das partes quanto à perda de sua imparcialidade, o que deve ser analisado de acordo com o caso concre­ to. Para o TEDH, a atuação do magistrado na fase investigatória como mero supervisor da atividade levada a efeito pela Polícia e pelo Ministério Público, determinando, por exemplo, sobre requerimentos de prisões preventivas, é típica de um juiz indepen­ dente, e em hipótese alguma pode ser confundida com aqueles casos em que o juiz assume as vestes de um investigador, a exemplo do caso De Cubber vs. Bélgica. Na verdade, para que se possa considerar objetivamente justificada eventual dúvida sobre a imparcialidade do magistrado, é imprescindível ana­ lisar se, diante das circunstâncias do caso concreto, o magistrado efetivamente tomou decisões na fase investigatória que exigiam dele formar uma convic­ ção quase plena e definitiva sobre a culpabilidade do acusado, que possam, assim, ser comparadas às decisões de mérito. Sem embargo de o Tribunal Europeu de Direitos Humanos não ter reconhecido categoricamente que

57. MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal: da pre­ venção da competência ao juiz de garantias. 2a ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 127.

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a existência de um juiz das garantias é uma conditio sine qua non para que se possa falar em preservação da imparcialidade objetiva,58 diversos ordenamen­ tos jurídicos passaram a prever, nos últimos anos, a existência dessa figura, dando-o como impedido para atuar como juiz da causa em ulterior julgamento do mesmo feito. A título de exemplo, o Código de Processo Penal Português (1987) prevê um “juiz de instrução”, que atua, na prática, como um verdadeiro juiz das garantias, controlando a legalidade da inves­ tigação e sem iniciativa para a produção das provas.59 De acordo com o art. 40 do Código Português, esse juiz instrutor, à semelhança do nosso juiz das garan­ tias introduzido no CPP pela Lei n. 13.964/19, está impedido de julgar a ação penal. A Itália, por sua vez, segue modelo semelhante: a principal inovação im­ plementada pelo Código de Processo Penal italiano de 1989 foi a supressão da figura do juiz da instrução e a substituição pelo giudice per le indagini preliminari, que atua na fase preliminar do processo, ficando, em regra, impedido de atuar na fase processual (art. 34 do Código de Processo Penal italiano). No âmbito sul-americano, também é possível notar um movi­ mento de reformas processuais que acolhem, com algumas variações, a figura do juiz das garantias. A propósito, o Código de Processo Penal do Paraguai prevê um juiz de garantias, a quem compete reali­ zar um juízo acerca da justa causa para o início do processo penal ou do arquivamento da investigação, ficando, em regra, expressamente proibido de julgar o processo.60 Mudanças semelhantes também ocorre­ ram no Chile, na Colômbia e na Argentina.61 58. Nas palavras de Maya (op. cit. p. 197), se, num primeiro momento, firmou-se "um entendimento sólido a considerar fundada a suspeita de

parcialidade em razão de qualquer contato do magistrado com os ele­ mentos da investigação, posteriormente flexibilizaram essa compreensão

e passaram a afirmar que não é o contato em si que justifica a dúvida sobre a imparcialidade, mas o fato de ter o juiz proferido uma decisão semelhante à sentença meritória, na qual tenha formulado um juízo so­ bre a culpabilidade do imputado, o que só pode ser aferido diante de cada caso concreto". Na mesma linha, referindo-se ao Caso Hauschildt vs. Dinamarca, Giacomolli (op. cit. p. 289) observa que, a partir dessa decisão, o TEH passou a entender que "o simples fato de o julgador do mérito da causa ter proferido uma decisão sobre o caso, anteriormente, como o decreto de prisão, não basta para afastara imparcialidade (critério objetivo-abstrato), salvo quando a prisão é decretada de ofício. Contudo, no caso concreto (objetivo-concreto), firmou a imparcialidade, em face dos requisitos e do conteúdo da decisão". 59. SILVA, Larissa Marila Serrano da. A construção do juiz das garantias no Brasil: a superação da tradição inquisitório. Dissertação de Mestrado.

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.

60. Sobre a figura do juiz das garantias no Paraguai: DUARTE, Christian Bernal (Reforma dei Proceso Penal em Paraguay y el Juez Penal de Garan­

tias y sus funciones. O novo Processo Penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castranho de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 140).

61. Ao suspender a eficácia dos arts. 3°-A a 3°-F do CPP (ADI n. 6.299 MC/DF, j. 22/01/2020), o Min. Luiz Fux afirmou que há de se tomar

muito cuidado com o "mero uso retórico do Direito comparado, que

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

4.6. Início da eficácia do juiz das garantias Salta aos olhos o grau de alienação do Con­ gresso Nacional ao aprovar uma lei com tamanhas repercussões no âmbito processual penal - para uns, praticamente um novo Código de Processo Penal - e, quase que levianamente, dar a ela um singelo prazo de vacatio de apenas 30 (trinta) dias, consoante disposto no art. 20 da Lei n. 13.964/19 (“Esta Lei entra em vigor após decorridos 30 dias de sua publicação oficial”). Logo, considerando-se que a lei fora publicada no dia 24 de dezembro de 2019, ou seja, em pleno recesso forense, sua vigência ocorreria, então, no dia 23 de janeiro de 2020.62

Ora, leis processuais penais de menor impacto para o processo penal, como, por exemplo, a Lei n. 11.690/08, que alterou dispositivos do CPP relativos à produção da prova, e a Lei n. 12.403/11, que alte­ rou dispositivos do CPP relativos às medidas cautelares de natureza pessoal, tiveram prazo de vacatio legis de 60 (sessenta) dias, ou seja, o dobro do prazo fixado no art. 20 da Lei n. 13.964/19, que estabelece alterações muito mais profundas. Curiosamente, aliás, a despeito de estabelecer uma vacatio de 30 (trinta) dias para a sua entrada em vigor, o art. 3°-F do CPP, também introduzido pela Lei n. 13.964/19, fixa um prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que as autoridades disciplinem “o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação norma­ tiva aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa”. Ou seja, em relação a ponto específico muito mais simples que a efetivação do juiz das ga­ rantias, o legislador pátrio foi generoso na concessão de um prazo muito mais elástico e razoável.

Esta exequibilidade imediata de toda a sistemá­ tica constante do denominado “Projeto Anticrime”, inclusive do juiz das garantias, esbarraria, porém, em obstáculos concretos, como, por exemplo, a no­ tável ausência de estrutura do Poder Judiciário, a desconsidera particularidades dos arranjos institucionais e da cultura política de cada um dos países, divergências contextuais, dissidências doutrinárias e jurisprudenciais, entre outros pontos". É dizer, o simples

argumento do'sucesso'da implementação do juiz das garantias em ou­ tros países (v.g., Alemanha, Portugal e Itália) merece cautela, sob pena de se realizar um verdadeiro transplante acrítico de idéias e de instituições. Nas palavras do Eminente Ministro,"(...) não se pode olvidar que a mesma estrutura institucional transplantada de um país para outro pode gerar impactos totalmente diversos - inclusive efeitos colaterais negativos em outros países que não dispunham das mesmas características do país paradigma".

62. De se lembrar que a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral (Lei Complementar n. 95/98, art. 8o, § Io, incluído pela Lei Complementar n° 107/01).

falta de previsão orçamentária, o fato de que mui­ tas comarcas e subseções judiciárias contam com apenas um único juiz - isso quando tem -, a ne­ cessidade de criação de inúmeros cargos de juizes de direito para suprir a demanda necessária para implementar a nova sistemática de dois juizes para cada caso penal, um para a fase investigatória, e ou­ tro para a fase processual, etc. Evidente, portanto, a necessidade de concessão de prazo mais dilata­ do para que os Tribunais, a partir de diretrizes de política judiciária que eventualmente venha a ser fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça, possam, no exercício de sua autonomia e de acordo com suas peculiaridades locais, estruturar e implementar a figura do juiz das garantias, procedendo, assim, à alteração das diversas normas de organização judi­ ciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, como, aliás, determina o art. 3°-E do CPP, também introduzido pela Lei n. 13.964/19.

Com base nesses argumentos, o Min. Dias Toffoli concedeu medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade n. 6.298/DF para suspender a eficácia dos arts. 3°-B, 3°-C, 3°-D, caput, 3°-E e 3°-F do CPP, inseridos pela Lei n. 13.964/19, até a efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais, o que deverá ocorrer no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contados a partir da publicação da referida decisão. Na visão do Eminente Ministro, é forçoso reconhecer que o prazo de 30 (trinta) dias fixado no art. 20 da Lei n. 13.964/19 seria insuficiente para que os Tribu­ nais promovessem as adaptações necessárias para a implementação da figura do juiz das garantias. Impunha-se, portanto, a fixação de um regime de transição mais adequado e razoável, que viabili­ zasse, inclusive, sua adoção de forma progressiva e programada pelos Tribunais. Logo, a partir de uma interpretação sistemática do microssistema do juiz das garantias, o prazo de 180 (cento e oitenta) dias previsto no parágrafo único do art. 3°-F poderia ser aplicado como regra geral de transição para a sua eficácia, à exceção do art. 3°-A, que enuncia postulados básicos do sistema acusatório, devendo ter, portanto, eficácia na vacatio de 30 (trinta) dias. Ressaltou, ademais, que essa transição do sistema deveria ocorrer resguardando-se as situações ju­ rídicas já definidas à luz das normas processuais até então vigentes. Isso significa dizer que as ações penais que estivessem em curso no primeiro grau ao fim do prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias não seriam alcançadas pela novatio legis pro­ cessual, o que, em tese, teria o condão de preservar o princípio do juiz natural, a segurança jurídica e a própria confiança do cidadão no sistema de justiça.

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Menos de uma semana depois, porém, o Min. Luiz Fux (ADI 6.299 MC/DF, j. 22/01/2020), Relator prevento para o julgamento de todas as ADI’s até então ajuizadas contra a Lei n. 13.964/19 - ADI n. 6.298, ADI 6.299, ADI 6.300 e ADI 6.305 - revogou a decisão monocrática proferida pelo Min. Dias Toffoli e suspendeu sitie die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e seus consectários (arts. 3o-A, 3°-B, 3oC, 3°-D, 3°-E, 3°-F, do Código de Processo Penal).

4.7. Aplicação imediata da nova sistemática do Juiz das garantias às investigações e aos pro­ cessos em andamento por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19 Atento aos problemas concretos decorrentes de uma possível aplicação da nova sistemática do juiz das garantias aos processos em andamento, o Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, referente ao Projeto do novo Código de Processo Penal, trata ex­ pressamente da matéria nos seguintes termos: “Art. 748. O impedimento previsto no art. 16 - que versa sobre a prática de qualquer ato incluído na esfera de competência do juiz das garantias - não se aplicará: (...) II - aos processos em andamento no início da vigência deste Código”. Ou seja, dentro de um es­ paço lídimo de conformação normativa, os autores do Projeto do novo CPP optaram acertadamente por afastar a possibilidade de aplicação imediata do impedimento decorrente da atuação do juiz das garantias na fase investigatória aos processos em an­ damento por ocasião da entrada em vigor do novo CPP, cujo prazo de vacatio legis, aliás, seria de 6 (seis) meses. A Lei n. 13.964/19, todavia, a despeito de ter extraído do referido projeto toda a sistemática atinente à figura do juiz das garantias, não contem­ plou restrição semelhante. E pior: previu sua entrada em vigor após decorridos apenas 30 (trinta) dias de sua publicação oficial, ou seja, não fosse a decisão do Min. Fux suspendendo a eficácia dos arts. 3°-A a 3°-F do CPP, no dia 23 de janeiro de 2020. O silêncio da Lei n. 13.964/19 acerca dessa questão certamente deverá provocar questiona­ mentos acerca do procedimento a ser adotado em relação aos processos já em andamento. É dizer, na eventualidade de a eficácia dos arts. 3°-A a 3°F do CPP não ter sido suspensa em virtude da medida cautelar deferida pelo Min. Luiz Fux (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, j. 22/01/2020), ou seja, que ti­ vessem entrado em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, imagine-se a hipótese de um juiz que tivesse decretado, em momento anterior à entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, uma interceptação telefônica, 120

uma busca domiciliar, uma prisão temporária, du­ rante a investigação preliminar, ou até mesmo o recebimento da peça acusatória, e que, por ocasião da vigência da nova sistemática, tivesse em mãos o processo judicial pronto para proferir sentença. Será que esse magistrado poderia julgar o feito? Ou, reconhecendo a aplicação imediata do impedimento do art. 3°-D, caput, do CPP, deveria determinar a remessa dos autos a outro juiz, qual seja, ao juiz da instrução e julgamento? Mas esta mudança de competência não resultaria em violação ao princípio do juiz natural?

Por se tratar de uma nova espécie de competên­ cia funcional por fase da persecução penal - entre a instauração da investigação e o recebimento da peça acusatória, a competência será do juiz das ga­ rantias; a partir do recebimento da denúncia (ou da queixa), a competência será do juiz da instrução e julgamento -, poder-se-ia concluir, à primeira vis­ ta, que a Lei n. 13.964/19, nesse ponto, seria uma norma genuinamente processual, daí por que teria aplicação imediata aos processos em andamento, nos exatos termos do art. 2o do CPP, pelo menos se seguirmos a jurisprudência dominante acerca da matéria.63 Logo, por se tratar de lei processual que altera regras de competência, privando o juiz que praticou qualquer ato dentre aqueles previstos no art. 3°-B do CPP da competência para processar e julgar, na sequência, o mesmo caso penal, a Lei n. 13.491/17 deveria ter aplicação imediata aos processos em andamento, salvo se porventura já tivessem sido julgados, eis que, nesse caso, haveria de ser respei­ tada a validade dos atos realizados sob a vigência 63. É firme a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de que lei processual que altera competência absoluta deve ter aplicação

imediata aos processos em andamento, salvo se já houver sentença re­

lativa ao mérito, hipótese em que o processo deve seguir na jurisdição

em que ela foi prolatada, ressalvada a hipótese de supressão doTribunal que deveria julgar o recurso. Não haveria, in casu, qualquer violação ao princípio do juiz natural, dado que, na Constituição Federal, esse pri­ mado não tem o mesmo alcance daquele previsto em constituições de países estrangeiros, que exigem seja o julgamento realizado por juízo competente estabelecido em lei anterior aos fatos. Tanto é verdade que o inciso Llll do art. 5o da Carta Magna somente assegurou o processo e julgamento frente a autoridade competente, sem exigir deva o juízo ser pré-constituído ao delito a ser julgado. Nesse sentido, em relação à Lei n. 9.299/96, que, à época, retirou a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por

militares contra civis, ainda que em serviço: STF, 2a Turma, HC 76.510/SP, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 15/05/1998 p.44; STF, 1a Turma, HC 78.320/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 28/05/1999; STJ, 5a Turma, HC 20.158/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 06/10/2003 p. 289. Mais recentemente, a 3a Seção

do STJ (CC 161.898/MG, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 13/02/2019, DJe 20/02/2019) concluiu que é possível a aplicação imediata da Lei n. 13.491/17, que ampliou a competência da Justiça Militar para julgar cri­ mes previstos na legislação penal, aos fatos perpetrados antes do seu advento, mediante observância da legislação penal (seja ela militar ou comum) mais benéfica ao tempo do crime.

TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

da lei anterior, como, aliás, o prevê o art. 2o do CPP. Enfim, por estarmos diante de uma nova espécie de competência funcional, logo, de natureza absoluta, não se poderia admitir a perpetuação da compe­ tência. Afinal, como preceitua o art. 43 do novo CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal comum, “determina-se a competência no momen­ to do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta” (nosso grifo). Por consequên­ cia, ante a omissão da Lei n. 13.964/19 em prever dispositivo semelhante àquele constante do Projeto do novo CPP (Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, art. 748, II), outra conclusão não haveria, sob essa ótica, senão a de que os processos em andamento deveriam ser redistribuídos a outro juiz. Tal raciocínio, porém, poderia entrar em rota de colisão com o princípio do juiz natural, eis que, a pretexto de aperfeiçoar o sistema acusatório brasi­ leiro e salvaguardar a imparcialidade do magistrado, poder-se-ia visualizar uma tentativa dissimulada do legislador no sentido de alterar, de maneira artificiosa, o juiz natural para o julgamento de determinados casos. De fato, boa parte da doutrina nacional sus­ tenta que, por força do referido postulado, eventuais modificações da competência só devem ser aplica­ das aos casos futuros, jamais aos pretéritos. Logo, contextualizando a controvérsia ora em discussão, se o crime fora praticado pelo agente em momento anterior à vigência da Lei n. 13.964/19, a criação da figura do juiz das garantias, distanciando-o do julgamento do processo penal, não teria o condão de alterar sua competência, eis que, em matéria de competência penal, no lugar do cânone tempus regit actum, deve prevalecer exatamente a regra oposta: tempus criminis regit iudicem.64

Não bastasse isso, a aplicação imediata da nova sistemática do juiz das garantias às investigações e processos em andamento também viria de encontro ao próprio princípio tempus regit actum constante do art. 2o do CPP, segundo o qual a lei processual penal aplica-se desde logo, sem prejuízo da validade 64. Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 70. E ainda: BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 415-501. Como já decidido pelo STF no HC n. 110.237 (2a Turma, Rei. Min. Celso de Mello, DJe de 1 Acesso em:

12/12/2017.

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obstante previstas em diplomas processuais penais, possuem conteúdo material, devendo, pois, retroa­ gir para beneficiar o acusado. Outras, no entanto, inseridas em leis materiais, são dotadas de conteúdo processual, a elas sendo aplicável o critério da apli­ cação imediata (tempus regit actum). É aí que surge o fenômeno denominado de heterotopia, ou seja, situação em que, apesar de o conteúdo da norma conferir-lhe uma determinada natureza, encontra-se ela prevista em diploma de natureza distinta.104

Logo, como se trata de lei processual que altera regras de competência, a Lei n. 13.491/17 deve ter aplicação imediata aos processos em andamento, salvo se já houver sentença relativa ao mérito, hi­ pótese em que o processo deve seguir na jurisdição em que ela foi prolatada, ressalvada a hipótese de supressão do Tribunal que deveria julgar o recur­ so.105 Enfim, como se trata de norma processual que altera a competência em razão da matéria, não se pode admitir a perpetuação da competência. Afinal, como preceitua o art. 43 do novo CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal comum e mili­ tar, “determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a compe­ tência absoluta”. Por consequência, se o crime pra­ ticado por militar em serviço previsto na legislação penal, outrora considerado crime comum, estava em tramitação perante a Justiça Comum (Estadual ou Federal), a entrada em vigor da Lei n. 13.491/17 deverá provocar a imediata remessa do feito à Justiça Militar da União (ou dos Estados). A ressalva a esse deslocamento imediato da competência fica por conta dos feitos nos quais, à época da vigência da Lei n. 13.491/17 (16/10/2017), já havia sentença relativa ao mérito. Nesses casos, o processo deverá continuar tramitando na Justiça de origem, sob pena de violação à competência recursal. Exemplificando, se um crime previsto na Lei de Licitações cometido por militar das Forças Armadas em serviço já contava com sentença relativa ao mé­ rito proferida pela Ia instância da Justiça Federal no dia 16 de outubro de 2017, eventual apelação deve­ rá ser apreciada pelo respectivo Tribunal Regional Federal, jamais pelo Superior Tribunal Militar, sob 104. Com entendimento semelhante: FOUREAUX, Rodrigo. Lei

13.491/17 e a ampliação da competência da Justiça Militar. Disponível em: Acesso em: 12/12/2017.

105. Nesse contexto: STF, 1a Turma, HC 78.320/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, j. 02/02/1999, DJ 28/05/1999.

pena de se admitir que o órgão de 2a instância da Justiça Militar da União funcione como Tribunal de Apelação no âmbito da Justiça Federal. Noutro giro, no caso da Justiça Militar Estadual, a controvérsia só terá relevância naqueles Estados da Federação que são dotados de Tribunal de Justiça Militar - Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo -, vez que, em relação aos demais Estados, o juízo ad quem é o mesmo para a Justiça Comum Estadual e para a Justiça Militar Estadual, qual seja, o respectivo Tribunal de Justiça. Assim, se já houvesse sentença relativa ao mérito proferida pela Justiça Comum Es­ tadual de Minas Gerais, por exemplo, pela prática de crime de porte ilegal de arma de fogo por militar estadual em serviço, eventual apelação interposta contra a referida decisão deverá ser apreciada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e não pelo Tri­ bunal de Justiça Militar de Minas Gerais, sob pena de violação da competência funcional por grau de jurisdição. Esse deslocamento imediato da competência à Justiça Militar (da União ou dos Estados) haverá de ser feito sem prejuízo da observância do princípio da irretroatividade da lex gravior (ou ultratividade da lei penal mais benéfica) pelo Juiz de Direito do Juízo Militar Estadual ou pelos respectivos Con­ selhos de Justiça. Explica-se: a depender do caso concreto, o tratamento dispensado a determinado fato delituoso, se considerado crime comum, é mais benéfico sob o ponto de vista do direito material do que aquele que lhe é conferido se tratado como crime militar. Tome-se como exemplo o delito de abuso de autoridade então previsto na revogada Lei n. 4.898/65, cuja pena máxima cominada era de 6 (seis) meses (art. 6o, §3°, “b”). Antes da vigência da Lei n. 13.491/17, ainda que o referido delito fosse cometido por militar em serviço, ter-se-ia crime da competência da Justiça Comum (súmula n. 172 do STJ), porquanto referida conduta delituosa não era considerada crime militar pelo fato de não estar prevista no Código Penal Militar. Como crime co­ mum que era - na verdade, tratava-se de verdadeira infração de menor potencial ofensivo, já que a pena máxima cominada não era superior a dois anos -, o autor do delito faria jus a inúmeros benefícios, tais como a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 (v.g., transação penal, suspensão condicional do processo, etc.), substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos na eventualidade de uma condenação, etc. A partir do momento em que tal conduta foi transformada em crime militar, o tratamento dispensado pelo Direito Castrense material passou a ser bem mais gravoso. Primeiro, porque não se admite a aplicação da Lei

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

dos Juizados aos crimes militares (Lei n. 9.099/95, art. 90-A). Segundo, porque o Código Penal Militar não prevê a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

O que fazer, então, nessas hipóteses? Permitir que um crime militar continue sendo julgado na Justiça Comum? Não parece ser a melhor solu­ ção, sob pena de se admitir que uma mudança de competência em razão da matéria, logo, absoluta, não tenha aplicação imediata aos processos em an­ damento, o que viria de encontro ao princípio do juiz natural. Revela-se mais adequada, portanto, a aplicação imediata do novo regramento acerca da competência, com o consequente deslocamento dos feitos para a Justiça Militar, sem prejuízo da apli­ cação da lex mitior pelo Juiz de Direito do Juízo Militar (ou pelos Conselhos de Justiça). Assim, no exemplo acima narrado, o agente seria julgado pela Justiça Militar. Porém, faria jus a todos os benefícios do direito material acima descritos, respeitando-se, assim, o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.106

Esse deslocamento imediato dos processos em andamento em virtude de mudança de competência absoluta, porém com absoluto respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa pelo novo juízo competente, não é novidade no nosso ordenamento jurídico. Por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 9.299/96, os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares, ainda que em serviço, contra civis, foram deslocados da Justiça Militar para a Justiça Comum. À época, os Tribunais Superiores conferiram à mudança o mesmo regramento acima trabalhado, qual seja a aplicação imediata aos feitos em andamento, salvo se já houvesse sentença rela­ tiva ao mérito. Esse deslocamento da competência foi feito, todavia, com fiel observância ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Nos idos de 1995, eventual crime militar de homicídio doloso contra civil, ainda que qualificado, não era considerado hediondo, porquanto o art. 205, §2°, do CPM, não era - e ainda não é - etiquetado como tal pelo art. Io da Lei n. 8.072/90. O crime comum de homicídio qualificado, por sua vez, já era rotulado como hediondo desde o advento da Lei n. 8.930/94. Não obstante a superveniência desse tratamento pe­ nal mais gravoso, decorrente de o crime comum de 106. Nesse sentido, a 3a Seção do STJ (CC 161,898/MG, Rei. Min. Sebas­ tião Reis Júnior, j. 13/02/2019, DJe 20/02/2019) concluiu recentemente que é possível a aplicação imediata da Lei n. 13.491/17, que ampliou a competência da Justiça Militar e possui conteúdo híbrido (lei processual material) aos fatos perpetrados antes do seu advento, mediante obser­ vância da legislação penal (seja ela militar ou comum) mais benéfica ao tempo do crime.

homicídio qualificado se sujeitar aos ditames gravosos da Lei n. 8.072/90, esse fato jamais funcionou como óbice à aplicação imediata da Lei n. 9.299/96 para fins de se concluir pela manutenção da com­ petência da Justiça Militar para eventuais crimes de homicídio qualificado cometidos por militares contra civis antes da vigência da Lei n. 9.266/96. Determinou-se, na verdade, a imediata aplicação do referido diploma normativo, com o deslocamento da competência de todos os feitos à Justiça Comum, desde que observado, perante o Tribunal do Júri, o princípio da irretroatividade da lei penal mais gra­ vosa. Logo, se o homicídio qualificado fora praticado enquanto era crime militar, logo, não hediondo, a superveniência da Lei n. 9.266/96 acarretou o des­ locamento da competência para a Justiça Comum, mas ao agente não foram aplicados os ditames gravosos da Lei n. 8.072/90.

1.2.3.3. (In) constitucionalidade da Lei n. 13.491/17 Durante a tramitação do Projeto de Lei n. 5.768/16, que deu origem à Lei n. 13.491/17, foi apresentado pelo Relator (Dep. Júlio Lopes), no âm­ bito da Comissão de Constituição, Justiça e de Ci­ dadania, um voto de modo a acrescentar um art. 2o ao referido diploma normativo para que a mudança da competência em questão perdurasse exclusiva­ mente até o dia 31 de dezembro de 2016. Na dic­ ção do Relator, “em virtude da excepcionalidade da realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos no Rio de Janeiro, as alterações propostas pelo autor se fazem necessárias e meritórias e, para complementar a proposição, incluo na forma de um substitutivo uma cláusula de vigência até 31 de dezembro de 2016”. Por isso, quando aprovado pelo Congresso Nacional, a Lei n. 13.491/17 trazia, em seu bojo, o art. 2o, que tinha a seguinte redação: “Art. 2o. Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada”. O dispositivo, todavia, acabou sendo vetado pelo Presidente da República Michel Temer, que apresentou suas razões nos seguintes termos: “As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter tran­ sitório, sob pena de comprometer a segurança ju­ rídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma nor­ ma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se

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poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5o, inciso XXXVII, da Constituição”. Exsurge daí a grande controvérsia acerca da Lei n. 13.491/17: seria possível que o Presidente da República vetasse o art. 2o da Lei n. 13.491/17, transformando uma lei temporária em permanen­ te? À primeira vista, pode-se chegar à conclusão de que o veto apresentado pelo Presidente da República estaria em plena consonância com a Constituição Federal, notadamente com o art. 66, §2°, que prevê que o veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. Ora, como o art. 2o foi vetado em sua integralidade, e não de maneira parcial, ter-se-ia como válido o veto do Presidente da República. De mais a mais, o veto presidencial ao art. 2o do Projeto de Lei estaria plenamente justificado diante de sua manifesta in­ constitucionalidade, porquanto não se pode admitir uma mudança temporária de competência, sob pena de criação de um verdadeiro tribunal de exceção.

Com a devida vênia, por mais que tenha ha­ vido o veto integral de um artigo, não nos parece possível concluir pela constitucionalidade da Lei n. 13.491/17, sob pena de se admitir que o Presidente da República modifique, por completo, aquilo que fora aprovado pelo Congresso Nacional. Bem ou mal - já dissemos que andou muito mal -, fato é que o Projeto de Lei aprovado pelo Congresso pre­ via uma mudança temporária de competência. Ao vetar o art. 2o, o Presidente da República conferiu a essa mudança uma natureza definitiva, perma­ nente, desnaturando integralmente aquilo que fora aprovado pelo Poder Legislativo. Como observa Rodrigo Foureaux, “mutatis mutandis, é como se tivesse retirado o ‘não’ de um artigo de lei, o que muda completamente o sentido do texto”.107 Admi­ tir tamanha ingerência no processo legislativo por parte do Poder Executivo caracteriza, a nosso juízo, evidente violação ao princípio da separação dos po­ deres (CF, art. 2o). Há de ser reconhecida, portanto, a inconstitucionalidade formal da Lei n. 13.491/17. É nesse sentido, aliás, a lição do próprio Presi­ dente Michel Temer, senão vejamos: “Assim, o fun­ damento doutrinário que alicerça a concepção de que o veto parcial deve ter maior extensão suporta-se na ideia de que, vetando palavras ou conjunto de pala­ vras, o Chefe do Executivo pode desnaturar o pro­ jeto de lei, modificando o seu todo lógico, podendo, 107. Lei 13.491/17 e a ampliação da competência da Justiça Militar. Disponível em: Acesso em: 12/12/2017.

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ainda, com esse instrumento, legislar. Basta - como se disse - vetar advérbio negativo. Data vênia, não é bom esse fundamento, uma vez que: a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto, por in­ teiro, do artigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades; b) se isto ocorrer - tanto em razão do veto da palavra ou de artigo - o que se verifica é usurpação de competência pelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2o da CF (...)”. (TE­ MER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22a ed. Malheiros Editores, 2008, p. 143/144).

Não obstante a aparente inconstitucionalidade da Lei n. 13.491/17, do que derivaria a conclusão no sentido de que a competência da Justiça Militar não sofreu quaisquer alterações, parece-nos que, por um critério de lealdade com o leitor do nosso Manual, o ideal é comentar o tópico competência da Justiça Militar levando-se em consideração a validade do referido diploma normativo, até mesmo porque a matéria ainda não foi objeto de análise pelos Tri­ bunais Superiores.

1.3. (In) constitucionalidade e (in) convencionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de civis pela prática de crimes militares definidos em lei (ADPF 289) Ao contrário do que ocorre em relação à Jus­ tiça Militar Estadual, que só tem competência para julgar os militares dos Estados (CF, art. 125, §4°), o art. 124 da Constituição Federal não faz qualquer ressalva semelhante ao tratar da competência da Jus­ tiça Militar da União, daí por que se entende, pelo menos em tese, que esta teria competência para o processo e julgamento de militares e civis. Essa competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes militares praticados por civis, todavia, é objeto de grande controvérsia, que deverá ser dirimida em breve pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n° 289, ajuizada pelo Procurador-Geral da República em agosto de 2013 com o objetivo de dar interpretação conforme a Constituição ao art. 9o, incisos I e III, do Código Penal Militar, para que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e para que tais crimes sejam submetidos a julgamento pela Justiça Comum, Federal ou Estadual, nos mesmos moldes da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Palamara Iribarne vs. Chile.

Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm adotado uma

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interpretação bastante restritiva no que tange aos crimes militares cometidos por civis, somente en­ tendendo tratar-se de crime militar da competência da Justiça Militar da União em hipóteses excepcio­ nais, e desde que esteja presente o intuito de atingir, de qualquer modo, as Forças Armadas, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado.108 Nessa linha, na dic­ ção de Maria Lúcia Karam, “o reconhecimento da configuração de crime militar em conduta realizada por quem não tem a qualidade de militar da ativa exige que a afetação de bem jurídico de titularidade das Forças Armadas esteja colocado no âmbito da intenção do agente, assim só se manifestando em hipóteses de crimes dolosos”.109 A título de exemplo, em caso concreto relativo à imputação de crime militar de lesões corporais cul­ posas praticado por civil contra Oficial do Exército brasileiro, então exercendo a função de escolta de um comboio militar, a Suprema Corte concluiu pela competência da Justiça Comum, na medida em que a ação delituosa não teria afetado, ainda que poten­ cialmente, a integridade, a dignidade, o funciona­ mento e a respeitabilidade das instituições militares, que constituem, em essência, nos delitos castrenses, os bens jurídicos penalmente tutelados.110 Exatamente por conta dessa interpretação res­ tritiva quanto à competência da Justiça Militar da União para julgar civis é que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar no sentido de que o delito de dano culposo, previsto no art. 266 do Código Penal Militar, não pode ter como sujeito ativo um civil. Na visão do Supremo, à vista da excepcionalidade e estreiteza do foro mi­ litar no julgamento de civis, o crime de dano cul­ poso só pode ser encarado ratione personae, tendo militar como agente, pois a regra do art. 163 do

108. No sentido de que o crime que enseja a competência da Justiça Militar, praticado por civil contra militar na situação inscrita no art. 9o, III,

"c", do CPM, é aquele que é marcado pelo intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmo­ ralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado, daí por que mero delito de lesão culposa decorrente de acidente de trânsito deva ser julgado pela Justiça Comum: STF - CC 7.040/

RS - Tribunal Pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 22/11/1996. 109. Op. cit. p. 27.

110. STF - HC 81,963/RS - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello - Dj 28/10/2004. No sentido da competência da Justiça Comum (e não da Militar) para processar e julgar homicídio culposo imputado a civil (militar da reserva), ainda que ocorrido em local sob administração militar e com vítima militar da ativa: STF - HC 81.161/PE - Ia Turma - Rei. Min. Sydney Sanches-DJ 14/12/2001. Com raciocínio semelhante: STF, Ia Turma, HC 89.592/DF, Rei. Min. Carlos Britto, Dj 26/04/2007.

CP (aplicável aos civis em geral) só concebe o dano doloso.111

Na mesma linha, deliberou recentemente pela aprovação do enunciado da súmula vinculante n. 36, segundo a qual “compete à Justiça Federal Comum processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento fal­ so quando se tratar de falsificação de caderneta de inscrição e registro (CIR) ou de carteira de habili­ tação de amador (CHA), ainda que expedidas pela Marinha do Brasil”. A competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de civis também é objeto de questionamento à luz do art. 8o, item 1, da Con­ venção Americana sobre Direitos Humanos, que assegura a todo e qualquer acusado o direito de ser julgado por um juiz ou tribunal competente, inde­ pendente e imparcial. Um dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos geralmente citado para fundamentar tal conclusão é o caso Palamara Iribarne vs. Chile (2005), que diz respeito à responsabilidade internacional do Estado pela cen­ sura prévia imposta sobre a publicação de um livro, a apreensão de todo o material relacionado com ele, a detenção arbitrária do autor - à época dos fatos, oficial aposentado da Marinha do Chile - e a falta de um devido processo para apurar os fatos.

No julgamento em questão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu, em síntese: “(...) que todos têm o direito de ser julgado por um tribunal competente, independente e imparcial. Em um Estado democrático de direito a jurisdição penal militar deve ter um alcance restritivo e excepcio­ nal e estar encaminhada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados com as funções que a lei atribuiu às forças militares. Portanto, só deve julgar militares pela prática de crimes ou faltas que, por sua própria natureza, atentem contra bens ju­ rídicos próprios da ordem militar. (...) Assim, para

111. STF - HC 67.579 / RJ - 2a Turma - Rei. Min. Francisco Rezek - DJ 19/04/1991. No sentido da incompetência da Justiça Militar da União para processar e julgar civil acusado pela suposta prática do crime de lesão corporal culposa (CPM, art. 210, caput), porquanto ausente intenção de atingir instituição militar: STF, HC 99.671/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 24/11/2009. Determinando a extinção de processo criminal instaurado contra civil pela prática de dano contra o patrimônio castrense, consis­ tente na colisão de veículo automotor com uma viatura militar, já que ausente intenção deliberada de ofensa a bens jurídicos tipicamente asso­ ciados à estruturação militar ou à função de natureza castrense: STF, HC 105.348/RS, Rei. Min. Ayres Britto, julgado em 19/10/2010. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar civis acusados de pichação de edifício residencial pertencente ao Exército Brasileiro (Lei n° 9.605/98, art. 65), porquanto ausente a vontade de se atentar contra as Forças Armadas, tampouco de impedir a continuidade de eventual operação militar ou atividade genuinamente castrense: STF, 2a Turma, HC 100.230/SP, Rei. Min. Ayres Britto, j. 17/08/2010, DJe 179 23/09/2010.

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respeitar o direito a um juiz natural não é suficiente que esteja estabelecido previamente por lei qual o tribunal conhecerá da causa e se lhe outorgue com­ petência. Nesse sentido, as normas penais militares devem estabelecer claramente e sem ambiguidade quem são os militares, únicos sujeitos ativos dos crimes militares (...) A jurisdição penal militar em Estados democráticos, em tempos de paz, tende a se reduzir e inclusive a desaparecer, por isso, se um Estado a conservar, esta deve ser mínima e inspi­ rada nos princípios e garantias que regem o direito penal moderno. (...) A Corte tem assinalado que a aplicação da justiça militar deve estar estritamente reservada a militares em serviço ativo, ao observar o caso Cesti Hurtado vs. Peru (...) A Corte considerou que Palamara Iribarne, por ser militar aposentado, não revestia a qualidade de militar necessária para ser sujeito ativo de tais delitos e, portanto, não se poderia aplicar referidas normas penais (...) A Corte concluiu que o Estado violou o art. 8.1 da Conven­ ção, em detrimento de Palamara Iribarne, por ter sido julgado por tribunais que não tinham com­ petência, e violou a obrigação geral de respeitar e garantir direitos e liberdades disposta no art. 1.1 da Convenção (...) A estrutura organizacional da justiça militar no chile, em tempo de paz, é composta por três instâncias integradas por juizes, fiscais (promo­ tores), auditores e secretários, que são militares em serviço ativo, pertencem a um escalão especial de justiça militar’ e mantêm a sua posição de subordi­ nação e dependência dentro da hierarquia militar. A jurisdição militar é exercida pelos Juízos insti­ tucionais, os fiscais, as Cortes Marciais e a Corte Suprema”. (...) A Corte considerou que a estrutura organizacional e composição dos tribunais militares descrita anteriormente supõem que, em geral, seus membros sejam militares em serviço ativo, estejam subordinados hierarquicamente aos superiores, ra­ zão por que a imparcialidade e independência do Tribunal eram questionáveis. (...)”.

Como se percebe, conquanto a CIDH tenha re­ conhecido a incompetência da Justiça Militar Chi­ lena para o processo e julgamento de civis no pre­ cedente acima citado, daí não se pode concluir que idêntico raciocínio há de ser válido para a realidade brasileira. É de rigor procedermos ao distinguishing. Em primeiro lugar, diversamente do que ocorre no Chile e em outros países da América do Sul (v.g. Peru), em que a jurisdição militar é um órgão ad­ ministrativo, a Justiça Militar da União no Brasil não está inserida no âmbito das Forças Armadas, mas sim dentro da estrutura do Poder Judiciário (CF, art. 92, VI e VII). Não se trata, pois, de um órgão de justiça administrativa ou uma instituição

militar. Em segundo lugar, sob a ótica do art. 124 da Constituição Federal, compete à Justiça Militar da União julgar os crimes militares definidos em lei, resguardando as Forças Armadas e, por conse­ quência, a soberania estatal, a lei e a ordem, pouco importando se o autor do delito é militar ou civil. Se é verdade que a Justiça Militar da União brasileira não é um órgão de justiça administrativa ou uma instituição militar, mas sim civil, eis que composta por órgãos do Poder Judiciário Nacional que não têm vinculação funcional com as Forças Armadas nem tampouco com o Poder Executivo, o que justifica a preservação de sua competência para o julgamento de civis pela prática de crimes milita­ res, também não é menos verdade que, sob a ótica do regramento normativo em vigor até o advento da Lei n. 13.774/18, esse julgamento estava afeto à competência de um Conselho de Justiça. É dizer, o civil que praticava um crime contra as Forças Ar­ madas (v.g., roubo de um fuzil) era julgado por um órgão colegiado formado pelo então denominado Juiz-Auditor e por mais 4 (quatro) militares da ati­ va, vinculados ao Poder Executivo, que exerciam a função judicante apenas temporariamente - no caso dos Conselhos Permanentes, por 3 (três) me­ ses -, o que, à evidência, maculava o princípio do juiz natural e as garantias da independência e da imparcialidade objetiva. Ora, se considerarmos que a justificativa para a existência dos Conselhos de Justiça, escabinatos consistente em um órgão híbrido, formado pela re­ união de um juiz togado civil e quatro militares da ativa, é a de que magistrado civil utiliza de seu co­ nhecimento jurídico e os militares de suas vivências de caserna, mormente com os valores éticos que são próprios da sociedade militar, especialmente a hierarquia e disciplina, bens jurídicos basilares protegidos pelo Direito Penal Militar, é no míni­ mo estranho sujeitar o civil a julgamento perante tais órgãos colegiados, já que este não está sujeito à hierarquia e à disciplina militares. Portanto, esses princípios não podem justificar que, em tempo de paz, civis possam ser julgados por um conselho majoritariamente militar.112 Enfim, não havia, sob a égide do regramento anterior à Lei n. 13.774/18, nenhuma justificativa convencional para se admitir que civis fossem jul­ gados por um Conselho de Justiça do qual faziam 112. É nesse sentido a lição de Luiz Octavio Rabelo Neto. Competência da Justiça Militar da União para julgamento de civis: compatibilidade cons­ titucional e com o sistema interamericano de proteção de direitos humanos. Disponível em: http// http://stm.jus.br/images/arquivos/publicacoes/ revistaJurisprudencia_2016.pdf Acesso em: 21/12/2018

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parte quatro militares da ativa, subordinados ao Poder Executivo, que, por atuarem apenas de ma­ neira temporária como juizes militares, não estavam protegidos pela inamovibilidade, permanecendo sujeitos, ademais, ao comando constante de seus superiores hierárquicos. Aliás, a própria CIDH, a partir do julgamento do Caso Castillo Petruzzi e ou­ tros vs. Peru, fixou o entendimento de que militares em serviço ativo não podem ser julgadores de réus acusados da prática de crimes praticados contra as próprias Forças Armadas de que são membros, por­ que isso prejudicaria a imparcialidade que deve ter o julgador, a ser objetivamente demonstrada, não deixando margem para qualquer dúvida ou des­ confiança do jurisdicionado ou da sociedade. Em sentido semelhante, no caso Usón Ramírez vs. Vene­ zuela (2009), a CIDH entendeu que a imparcialidade exige que o juiz se aproxime dos fatos carecendo, de maneira subjetiva, de todo pré-juízo e, da mesma forma, com garantias suficientes de índole objetiva que permitam banir toda dúvida que o jurisdicio­ nado ou comunidade podem ter sobre a ausência de imparcialidade. A imparcialidade do Tribunal im­ plica que seus integrantes não tenham um interesse direto, uma posição formada, uma preferência por alguma das partes e que não se estejam envolvidos na controvérsia. Portanto, em interpretação conforme a CF e a CADH, era crescente a corrente doutrinária que sustentava que o julgamento do acusado civil, pe­ rante a Justiça Militar da União, deveria ser rea­ lizado monocraticamente pelo então denominado Juiz-Auditor, o qual é um magistrado federal togado, concursado e civil, sem qualquer vinculação com as Forças Armadas, que é a instituição diretamente interessada na solução da causa por ter tido bens jurídicos eventualmente violados pela conduta do acusado. Essa tese acabou sendo acolhida pelo Ministro Gilmar Mendes ao proferir seu voto no HC 112.848, atualmente afetado ao Pleno do Supremo Tribunal Federal. Para o Ministro, era necessário se dar inter­ pretação conforme a Constituição sem redução de texto às antigas redações dos arts. 16 e 26 da Lei n. 8.457/92, de modo a concluir que o civil deveria ser julgado monocraticamente pelo juiz togado - ma­ gistrado federal, ingresso na carreira por concurso de provas e títulos - e não mais por um Conselho de Justiça. Na dicção do Ministro, conquanto não haja óbice ao julgamento de civis pela Justiça Militar da União, revela-se pertinente o argumento de que falta independência e imparcialidade aos Conselhos de Justiça.

É exatamente nesse cenário que se deve en­ tender a grande novidade introduzida pela Lei n. 13.774/18. De modo a preservar a competência da Justiça Militar da União para o processo e julga­ mento de crimes militares praticados por civis à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8o, n. 1), referido diploma normativo alterou a Lei de Organização Judiciária da Justiça Militar da União (Lei n. 8.457/92) de modo a atribuir compe­ tência monocrática ao Juiz Federal da Justiça militar para processar e julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9o do Código Penal Militar, e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo (art. 30, I-B).113 Prova disso, aliás, é a própria justificativa apresen­ tada pelo Superior Tribunal Militar para o Projeto de Lei que deu origem à Lei n. 13.774, senão veja­ mos: “(...) destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do julgamento de civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça, para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a JMU não julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e, consequente­ mente, não podem continuar tendo suas condutas julgadas por militares. Assim, passará a julgar os civis que cometerem crime militar”.

Ao fim e ao cabo, é de todo relevante destacar que essa condição de militar, ou de civil, para fins de fixação, respectivamente, da competência do Conselho de Justiça, ou do Juiz Federal da Justiça Federal (monocrática), deve ser analisada à época do delito (tempus delicti), pouco importando modi­ ficações posteriores, como, por exemplo, a exclusão das Forças Armadas. Por consequência, se, à época do cometimento do crime militar, o acusado era, por exemplo, Soldado do Exército Brasileiro, deverá ser julgado pelo respectivo Conselho Permanente, mesmo que, durante as investigações ou no curso do processo penal, perca tal condição em virtude de ter sido licenciado a bem da disciplina. Nesse sentido, aliás, por ocasião da análise de pioneiro incidente de resolução de demandas repetitivas perante o Superior Tribunal Militar, restou fixada a seguinte tese: “Compete aos Conselhos Especial e Permanente de Justiça o julgamento de civis que 113. Quanto às questões relacionadas ao direito intertemporal, são válidos aqui os mesmos comentários feitos em relação à Lei n. 13.491/17, para onde remetemos o leitor.

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praticaram crimes militares na condição de militares das Forças Armadas”.114

1.4. (In)constitucionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes cometidos por ou contra militares no exercício de atribuições subsidiá­ rias das Forças Armadas (ADI 5.032) Além da destinação à defesa da Pátria, à ga­ rantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, a Lei Com­ plementar n° 97/99 também outorga às Forças Ar­ madas o cumprimento de atribuições subsidiárias. Segundo o art. 15, § 7o, da Lei Complementar n° 97/99, com redação determinada pela LC n° 136/10, é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal: a) a atuação do militar nos casos de preparo das forças armadas, assim compreendidas as atividades permanentes de planejamento, organização e arti­ culação, instrução e adestramento, desenvolvimento de doutrina e pesquisas específicas, inteligência e estruturação das Forças Armadas, de sua logística e mobilização (LC 97/99, arts. 13 e 14);

b) o emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz (LC 97/99, art. 15);115 c) atribuições subsidiárias das Forças Armadas, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, de atuação, por meio de ações preventi­ vas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qual­ quer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, 114. STM, Petição n. 7000425-51.2019.7.00.0000, Rei. Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, j. 22/08/2019, DJ 05/09/2019. 115. De acordo com a Lei Complementar n° 97/99, compete ao Presi­ dente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por ini­ ciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. Essa atuação das Forças Armadas, que deve se dar de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, limitando-se às ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o

resultado das operações na garantia da lei e da ordem, ocorrerá de acor­ do com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública eda incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. Vale asseverar que os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal consideram-se esgotados quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indis­ poníveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

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executando, dentre outras, as ações de: I - patrulhamento; II - revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e III - prisões em flagrante delito (LC 97/99, art. 16-A);

d) como atribuições subsidiárias particulares da Marinha, a implementação e fiscalização do cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências especí­ ficas, assim como a cooperação com os órgãos fe­ derais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteli­ gência, de comunicações e de instrução (LC 97/99, art. 17, IV eV); e) como atribuição subsidiária do Exército, a cooperação com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comu­ nicações e de instrução (LC 97/99, art. 17-A, III);

f) como atribuições subsidiárias da Aeronáu­ tica, a cooperação com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de re­ percussão nacional e internacional, quanto ao uso do espaço aéreo e de áreas aeroportuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução, assim como a atuação, de manei­ ra contínua e permanente, por meio das ações de controle do espaço aéreo brasileiro, contra todos os tipos de tráfego aéreo ilícito, com ênfase nos en­ volvidos no tráfico de drogas, armas, munições e passageiros ilegais, agindo em operação combinada com organismos de fiscalização competentes, aos quais caberá a tarefa de agir após a aterragem das aeronaves envolvidas em tráfego aéreo ilícito, po­ dendo, na ausência destes, revistar pessoas, veícu­ los terrestres, embarcações e aeronaves, bem como efetuar prisões em flagrante delito (LC 97/99, art. 18, VI e VII); g) a atuação das Forças Armadas, como atri­ buição subsidiária geral, na cooperação com o de­ senvolvimento nacional e a defesa civil, na forma determinada pelo Presidente da República, aí incluí­ da a participação em campanhas institucionais de utilidade pública ou de interesse social (LC 97/99, art. 16);

h) a atuação das Forças Armadas, mediante requisição do Tribunal Superior Eleitoral, para ga­ rantir a votação e a apuração (Código Eleitoral, art. 23, XIV);

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Se todas essas atividades são consideradas atividade militar para os fins do art. 124 da Cons­ tituição Federal, eventual crime cometido por ou contra militar no exercício dessas funções será considerado crime militar para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, nos exatos termos do art. 9o, II, alínea “c”, e do art. 9o, inciso III, alínea “d”, ambos do Código Penal Militar, respectivamente. O tema, todavia, também é alvo de controvérsias. De fato, por meio da ADI 5.032, questiona-se a (in) constitucionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento dos crimes praticados por (ou contra) militares federais no exercício dessas atribuições subsidiárias das Forças Armadas - art. 15, §7°, da Lei Complementar n. 97/99.

Sem embargo de opiniões em sentido contrário, não nos parece razoável o argumento de que o fato de tais atribuições serem rotuladas como subsidiá­ rias tenha o condão de afastar a competência da Jus­ tiça Militar da União para o processo e julgamento dos crimes militares praticados nesses contextos. Em primeiro lugar, porque o art. 142 da Constitui­ ção Federal não faz qualquer distinção quanto às atribuições das Forças Armadas, dizendo expres­ samente que a Marinha, o Exército e a Aeronáuti­ ca destinam-se à defesa da Pátria, da garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem. Ora, se é constitucional o exercício de ativida­ des de garantia da lei e da ordem e das subsidiárias, previstas na LC 97/99, pelas Forças Armadas, parece não ser uma opção do legislador conferir à Justiça Militar a competência para o julgamento dos crimes cometidos no exercício de ações dessas naturezas, mas a positivação de uma consequência eviden­ temente natural do deferimento pelo constituinte originário de tais misteres à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. É dizer, ou o ilícito praticado no exercício de determinada função militar a afeta ne­ gativamente e pode, por isso, ser reprimido com o direito penal militar, logo, perante a Justiça Militar, ou bem as Forças Armadas nem sequer deveríam desenvolver a função na qual praticado o crime. Revela-se no mínimo incongruente a pretensão de se impugnar apenas a consequência processual do suposto problema - a competência da Justiça Militar -, deixando-se de lado, todavia, a sua evidente causa - a atividade militar no campo referido.

Quanto ao julgamento da ADI 5.032, o minis­ tro Marco Aurélio (relator) julgou improcedente o pedido, por considerar as atividades de garantia da lei e da ordem, embora subsidiárias, atividades de

natureza essencialmente militar, haja vista se des­ tinarem à proteção da soberania nacional, mesmo que em tempos de paz. A atuação das Forças Ar­ madas no combate à prática de ilícitos é verificada quando insuficiente a atividade das forças policiais, o que denota sua função de preservação da ordem jurídica e institucional do Estado. O ministro Ed­ son Fachin, por sua vez, julgou procedente o pe­ dido, pois a Constituição Federal teria optado por quadro normativo consoante com uma jurisdição restritiva em relação ao alcance da respectiva com­ petência jurisdicional, devendo apenas os crimes militares próprios serem alcançados pela jurisdição militar. Não caberia ao legislador ordinário ou ao intérprete ampliarem a competência da Justiça Mi­ litar. Em seguida, pediu vista o ministro Roberto Barroso.116

1.5. Dos crimes militares em tempo de paz

1.5.1. Do conceito de militar para fins de apli­ cação da lei penal militar Antes de ingressarmos na análise de cada um dos incisos e alíneas do art. 9o, importa definirmos o conceito de militar para fins de aplicação da lei penal militar.

Quando o art. 9o, inciso II, alínea “a” do CPM, usa o termo “militar em situação de atividade”, refe­ re-se ao militar da ativa,117 cujo conceito consta do Estatuto dos Militares. Segundo o art. 3o, § Io, alínea “a”, da Lei n° 6.880/80, compreende-se por militares da ativa: I) os de carreira; II) os incorporados às For­ ças Armadas para prestação de serviço militar ini­ cial, durante os prazos previstos na legislação de que trata do serviço militar, ou durante as prorrogações daqueles prazos; III) os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; IV) os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva;118 V) 116. STF, Pleno, ADI 5.032/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05/04/2018.

117. De acordo com o art. 6o do Estatuto dos Militares (Lei n° 6.880/80), são equivalentes as expressões 'na ativa', 'da ativa', 'em serviço ativo', 'em serviço na ativa', 'em serviço', 'em atividade' ou 'em atividade militar', conferidas aos militares no desempenho de cargo, comissão, encargo, incumbência ou missão, serviço ou atividade militar ou considerada de natureza militar, nas organizações militares das Forças Armadas, bem como na Presidência da República, na Vice-Presidência da República e nos demais órgãos quando previsto em lei, ou quando incorporados às Forças Armadas. O militar agregado também deve ser tratado como militar da ativa. De acordo com o art. 80 da Lei n° 6.880/80, agregação é a situação na qual o militar da ativa deixa de ocupar vaga na escala hierárquica de seu Corpo, Quadro, Arma ou Serviço, nela permanecendo sem número.

118. Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União para processar e julgar alunos regularmente matriculados na Escola de Espe­ cialistas da Aeronáutica, já que possuem a graduação de praças especiais, sendo, por isso, considerados militares em situação de atividade: STF, 2a Turma, RHC 80.122/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06/06/2000.

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em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mo­ bilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas. Como destaca a doutrina, “a condição de mili­ tar em situação de atividade, na ativa ou no serviço ativo, inicia-se com a incorporação e deixa de existir com a passagem do militar para a inatividade ou sua exclusão da instituição militar, pelos motivos expressos na lei. Dessa forma, continua no serviço ativo o militar legalmente dispensado do exercício das funções de seu cargo militar, da efetiva prestação do serviço militar, por exemplo, em férias, trânsito, dispensa concedida por superior, em licença, para tratamento da própria saúde ou de familiares, para contrair núpcias, por luto, etc. O militar recolhido ao leito, por motivo de doença, continua em situa­ ção de atividade, até que seja excluído do serviço ativo por incapacidade física”.119 Para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, “militar” é aquele definido pelo art. 22 do CPM: “É considerada militar, para efei­ to da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, gradua­ ção, ou sujeição à disciplina militar”. No que tange ao militar brasileiro em missão no estrangeiro (ex: integrante de força militar da ONU) que pratica um crime militar fora do território nacional, aplicar-se-á a lei penal militar brasileira,120 de acordo com o art. 7o do CPM. Lado outro, caso o delito praticado tenha natureza comum, o militar será julgado pela Justiça comum brasileira, nos termos do art. 7o, in­ ciso II, alínea “b”, do Código Penal.

Por outro lado, para a Justiça Militar dos Esta­ dos, militares são apenas os militares dos Estados, aí compreendidos policiais militares, policiais ro­ doviários estaduais e bombeiros militares estaduais.

De uma leitura precipitada do art. 22 do CPM, poder-se-ia concluir que os militares dos Estados não poderiam responder por crimes militares pre­ vistos no Código Penal Militar, na medida em que o referido artigo não os elencou na condição de militar. De fato, o art. 22 do Código Penal Militar não faz referência aos militares dos Estados, mas apenas às pessoas incorporadas às Forças Armadas, que são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica - as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares funcionam apenas como 119. LOBÃO, Célio. Direito penal militar. 2a ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 121.

120. Consoante dispõe o art. 91 do Código de Processo Penal Militar, os crimes militares cometidos fora do território nacional serão, de regra, processados em Auditoria da Capital da União, leia-se, perante a 11a Circunscrição Judiciária Militar.

forças auxiliares e reserva do Exército (CF, art. 144, § 6o, c/c o art. 4o, inciso II, alíneas “a” e “b”, da Lei n° 6.880/80). Não obstante, não se pode perder de vista que a própria Constituição Federal, em seu art. 42, dispõe que “os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições or­ ganizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e Terri­ tórios”. Logo, para fins de fixação da competência da Justiça Militar Estadual, extrai-se o conceito de militar do art. 42 da Constituição Federal.

Portanto, para fins de fixação da competência da Justiça Militar Estadual, somente são considera­ dos militares o policial militar, o policial rodoviário estadual e o bombeiro militar. Mutatis mutandis, da mesma forma que o integrante das Forças Ar­ madas é considerado civil perante a Justiça Militar Estadual, os militares dos Estados também são con­ siderados civis perante a Justiça Militar da União. Assim, tendo em conta que a Justiça Militar dos Estados só pode julgar os militares dos Esta­ dos, compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar soldado das Forças Armadas de folga que comete crime contra policial militar em serviço, ou contra as instituições militares estaduais, na medi­ da em que, perante a Justiça Militar dos Estados, o militar federal se coloca na mesma condição do civil. Nessa linha de raciocínio, ao apreciar conflito de competência relativo a crime de lesões corporais leves cometido por conscritos do Exército, de folga, contra policial militar, fora da área de administração militar, decidiu o Supremo Tribunal Federal tratar-se de crime comum, porquanto o art. 42 da Cons­ tituição Federal não autoriza o intérprete a concluir pela equiparação dos integrantes das Polícias Milita­ res Estaduais aos Componentes das Forças Armadas para fins de fixação da competência criminal.121 Por outro lado, na hipótese de crime militar cometido por Policial Militar contra membro das 121.STF - CC 7.051/SP -Tribunal Pleno - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 09/03/2001. Em caso concreto relativo à prática dos delitos de resistência, lesões leves e desacato por sargento do Exército (fora de serviço) contra soldados e cabos da Polícia Militar, também se concluiu pela competência da Justiça Comum Estadual. Em tal situação, não seria possível o julga­ mento pela Justiça Militar Estadual, na medida em que sua competência não se estende aos integrantes das Forças Armadas nem abrange os civis, ainda que a eles haja sido imputada a suposta prática de crimes militares

contra a própria Polícia Militar do Estado ou os agentes que a compõem: STF, 2aTurma, HC 83.003/RS, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 24/04/2008. Por sua vez, o STJ já concluiu que eventual crime de desacato praticado por oficial da reserva em desfavor de policial militar é da competência da Justiça comum (STJ - CC 50.786/MG - 3a Seção - Rei. Min. Laurita Vaz DJ 16/102/006 p. 289) e que roubo cometido por policial militar fora do exercício da função contra vítima qualificada como soldado do exército, que também não se encontrava no desempenho de seu ofício, deve ser julgado pela Justiça Comum (STJ - HC 40.241/SP - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 23/05/2005 p. 319).

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Forças Armadas, há de se reconhecer a competên­ cia da Justiça Militar estadual, mormente quando demonstrado que o acusado pretendia menospre­ zar a vítima, oficial das Forças Armadas, em razão da função por ela ocupada, humilhando-a diante de outros militares federais e estaduais.122 O militar federal que praticar crime militar con­ tra policial militar em serviço somente responderá perante a Justiça Militar da União caso esteja, por ocasião da prática delituosa, igualmente em serviço, exercendo atividade de natureza estritamente militar, consoante a destinação constitucional do art. 142.

Os militares na inatividade são considerados civis para fins de aplicação da lei penal militar, seja quando estiverem na condição de sujeito ativo, seja quando figurarem como sujeito passivo do crime militar. Por militar na inatividade compreende-se: a) os da reserva remunerada, quando pertençam à re­ serva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém, sujeitos, ainda, à prestação de ser­ viço na ativa, mediante convocação ou mobilização; b) os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, defi­ nitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União; c) os da reserva remunerada, e, excepcionalmente, os reformados, executando tarefa por tempo certo, se­ gundo regulamentação para cada Força Armada.123 Obviamente, os militares na inatividade (da reserva ou reformados) permanecem responsá­ veis criminalmente pelos crimes propriamente ou impropriamente militares que tenham praticado quando ainda eram militares da ativa, levando-se em conta a qualidade que possuíam quando do cometimento da conduta típica (tempus delicti). Esse o motivo pelo qual, em caso concreto relativo a ex-policial militar que havia requerido sua exoneração 04 (quatro) meses antes da instauração do inquérito policial militar, concluiu o STJ que a competência da Justiça Militar Estadual deve ser fixada em função da qualidade que o agente apresentava no momento do cometimento do fato, não podendo ser alterada posteriormente pela situação fática da exoneração, sob pena de o acusado querer se furtar voluntaria­ mente ao seu juízo natural.124 122. STF, 1a Turma, HC 105.844/RS, Rei. Min. Cármen Lúcia, j.

21 /06/2011, DJe 158 17/08/2011.

123. Na visão do STJ,"o delito de falso testemunho praticado por mi­ litar reformado, em processo da competência da Justiça Militar Estadual, não caracteriza crime contra as instituições militares, por estranho ao elenco do inciso III do artigo 9o do Código Penal Militar". (STJ - CC 55.432/ RS - 3a Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 21/08/2006 p. 232). 124. STJ - RHC 20.348/SC - 6a Turma - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura-Dje 01/09/2008.

Destarte, conclui-se que o militar na inativida­ de, como sujeito ativo ou passivo de infração penal militar, é considerado civil, exceto se convocado para o serviço ativo, ou caso o crime tenha sido cometido quando ainda estava na ativa. Logo, considerando que a Justiça Militar Estadual não tem competência para processar e julgar civis (aí incluído o militar reformado ou da reserva), eventual crime de injú­ ria praticado por policial militar reformado contra militares estaduais deve ser processado e julgado perante a Justiça Comum.125

Porém, é bom ressaltar que, apesar de serem considerados civis para fins de aplicação do art. 9o do CPM, seja em relação aos crimes por eles prati­ cados, seja em relação aos crimes contra eles prati­ cados, o militar da reserva, ou reformado, conserva as responsabilidades e prerrogativas do posto ou graduação, para o efeito da aplicação da lei penal militar, quando pratica ou contra ele é praticado crime militar (art. 13 do CPM). Explica-se: caso um militar da reserva pratique lesões corporais contra um militar reformado, esse crime terá natureza co­ mum, na medida em que ambos são considerados civis para fins de tipificação do crime militar (art. 9o do CPM). Todavia, caso esse militar da reserva pra­ tique esse mesmo delito contra um militar da ativa em um Quartel do Exército, ter-se-á crime militar de lesões corporais (art. 209, caput, c/c art. 9o, inciso III, alínea “b”, ambos do CPM), hipótese em que esse militar da reserva deverá receber tratamento compa­ tível com o posto que ocupava antes de entrar para a reserva, destacando-se, dentre as prerrogativas, o direito do oficial à prisão especial (art. 242, alínea “f ”, do CPPM) e o direito a ser processado e julgado por um Conselho Especial de Justiça, em razão do que dispõe o art. 13 do Código Penal Militar. Em síntese, podemos assim resumir quem é considerado, ou não, militar para efeitos de aplica­ ção da Lei Penal Castrense, pela Justiça Militar da União e pela Justiça Militar Estadual: a) Militar Federal: o militar regularmente in­ corporado às Forças Armadas é considerado mili­ tar para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União. Para esse fim, somente ele é considerado militar;

b) Militar federal na inatividade (na reserva ou reformado): considerado civil para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União, ressalvados os crimes cometidos antes de passar para a inatividade; 125. STJ, 6a Turma, HC 125.582/SP, Rei. Min. Celso Limongi - Desem­ bargador convocado doTJ/SP -, j. 27/04/2010, DJe 17/05/2010.

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c) Militar Estadual (integrante da Polícia Mi­ litar, da Polícia Rodoviária Estadual e do Corpo de Bombeiros Militares): para fins de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União, o militar é considerado civil. Daí por que, em caso concreto relativo à Sargento da Polícia Militar que disparou, culposamente, arma de fogo, causando lesões cor­ porais em Capitão do Exército Brasileiro, dentro de unidade militar federal, o STJ reconheceu ter havido a prática de crime impropriamente militar de lesão corporal, concluindo pela competência da Justiça Militar da União;126

d) Policial Militar, Policial Rodoviário Estadual ou bombeiro Militar na inatividade (reserva ou re­ formado): considerado civil para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União; e) Militar Estadual da ativa (integrante da Po­ lícia Militar, da Polícia Rodoviária Estadual e do Corpo de Bombeiros Militares): é considerado mi­ litar para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar estadual127;

f) Militar Estadual na inatividade (na reserva ou reformado): considerado civil. Dessa forma, não estão sujeitos à Justiça Militar estadual, ressalvados os crimes cometidos quando se encontravam no serviço ativo.

No que toca à definição de assemelhado, ao qual faz menção o art. 9o do CPM, seu conceito consta do art. 21 do CPM. Em que pese o Código Penal Militar ainda fazer referência a esse servidor público civil submetido à disciplina militar, essa fi­ gura já não existe no Direito brasileiro há mais de 60 (sessenta) anos, visto que o Decreto n° 23.203, de 18/06/47 (art. Io) revogou a alínea b do Decreto n° 23/42 (Regulamento Disciplinar do Exército), de modo a excluir o assemelhado da legislação militar 126. STJ, 3a Seção, CC 107.148/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis

Moura, julgado em 13/10/2010. 127. Sendo o militar das Forças Armadas considerado civil perante a Justiça Militar Estadual, eventual crime cometido por policiais militares em folga contra militares das Forças Armadas também em folga jamais poderá ser considerado crime militar, pois não se trata de crime cometido por militar da ativa contra militar da ativa, na medida em que sujeitos ativo e passivo pertencem a instituições militares diversas. Reiteramos o quanto foi dito: para que o crime seja considerado militar, deve ser cometido por policial militar contra policial militar (ainda que em folga), ou por integrante do Exército contra integrante do Exército (mesmo que fora do serviço). Por tal motivo, e com a devida vênia, somos levados a

crer que o STJ laborou em equívoco ao firmar a competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar crime de lesão corporal praticado por policiais militares em folga contra Soldado do Exército Brasileiro, igualmente de folga e à paisana no dia do crime (STJ - HC 94.277/RS 5a Turma - Rei. Min. Jorge Mussi - Dje 28/10/2008). Em outro julgado, também equivocado, rogata máxima vênia, o STJ entendeu que a Justiça Militar da União seria competente para processar e julgar policiais mili­ tares que teriam, em tese, cometido crime contra bombeiro militar: STJ, 3a Seção, CC 62.095/RJ, Rei. Min. Paulo Medina, DJ 02/04/2007 p. 231.

e, consequentemente, não o sujeitando mais à dis­ ciplina militar, mas sim ao seu respectivo Estatuto Funcional. Com a entrada em vigor da Lei n° 1.711, de 28 de outubro de 1952, a exclusão foi definitiva, ficando os civis sujeitos ao regime estatutário. Nessa linha, como adverte Célio Lobão, “médico, dentista, enfermeiro, veterinário, intendente, integram hoje os quadros das Forças Armadas como militares e não como assemelhados. Quanto a quaisquer outros funcionários e servidores dos Ministérios do Exér­ cito, da Marinha e da Aeronáutica, são servidores públicos civis da União (arts. 39 a 41 e 61, II, a e c, da Constituição), como os que integram os quadros de pessoal dos Ministérios civis. Assim era e, hoje, com muito mais razão, pois são funcionários civis do Ministério da Defesa”.128

1.5.2. Do inciso I do art. 9o do Código Penal Militar De acordo com o art. 9o, inciso I, do CPM, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes de que trata o Código Penal Militar, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, sal­ vo disposição especial. Há uma grande quantidade e variedade de crimes militares com fundamento nesse dispositivo. Por exemplo: motim (CPM, art. 149), conspiração (CPM, art. 152), desrespeito a su­ perior (CPM, art. 160), uso indevido de uniforme, distintivo ou insígnia militar por qualquer pessoa (CPM, art. 172), embriaguez em serviço (CPM, art. 202), dormir em serviço (CPM, art. 203), ingresso clandestino (CPM, art. 302), etc. Como o inciso em questão se refere a crimes militares que não estão previstos na lei penal comum, ou nela previstos de maneira diversa, para que seja feito o juízo de tipi­ cidade desses crimes militares, não se faz necessária qualquer menção ao art. 9o do Código Penal Militar. De se ver que todos os crimes propriamente militares estão aqui inseridos, pois, em se tratando de infrações específicas e funcionais do militar, só poderiam estar previstos no Código Penal Militar. Daí o motivo da cláusula final do inciso em questão: qualquer que seja o agente, salvo disposição especial. Refere-se essa cláusula final aos crimes propriamen­ te militares, na medida em que estes só podem ter o militar como sujeito ativo. Por outro lado, como deixa entrever o próprio dispositivo, esses crimes a que se refere o inciso I podem ser praticados por qualquer pessoa, tanto por civil quanto por militar. Nesse sentido, tanto se 128. Direito penal militar. 2a ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 105.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

encaixam nesse inciso I crimes propriamente mili­ tares como os de deserção, embriaguez em serviço, que só podem ser praticados por militar, quanto crimes cometidos por civis que não estão previstos na lei penal comum, tais como o de uso indevido de uniforme ou de ingresso clandestino.

I. 5.3. Do inciso II do art. 9o do Código Penal Militar Em sua redação original, o inciso II do art. 9o considerava crime militar, em tempo de paz, ape­ nas aqueles previstos no Código Penal Militar, em­ bora também o fossem com igual definição na lei penal comum. Com a entrada em vigor da Lei n. 13.491/17, objeto de análise dos comentários ini­ ciais a este Capítulo sobre a Competência da Jus­ tiça Militar, o inciso II do art. 9o do CPM passou a tratar como crimes militares não apenas aqueles previstos no CPM, mas também os previstos na le­ gislação penal. Enquanto o inciso III do art. 9o do Código Pe­ nal Militar versa sobre os crimes militares que po­ dem ser praticados por civis, militares da reserva, ou reformados, o inciso II do art. 9o do CPM tem como sujeito ativo exclusivamente o militar da ativa,

a) Do crime militar praticado por militar da ativa contra militar da ativa. Em relação ao crime militar do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM, questiona-se na doutrina e na jurisprudência se ambos os militares devem es­ tar em serviço para que o crime seja considerado militar.129 Sobre o assunto, há, fundamentalmente, 3 (três) correntes diversas.

Para a Ia corrente, tradicionalmente sustenta­ da pela doutrina, “é militar o delito cometido por militar contra militar (alín. a, inc. II), independen­ temente da circunstância do lugar do crime, da condição de serviço ou outra qualquer, podendo os sujeitos ativo e passivo pertencerem à mesma ou a Arma diversa. Assim também, no âmbito da Justiça Militar estadual, os sujeitos ativo e passivo podem ser só policiais militares, só bombeiros militares ou integrantes das duas corporações e, até mesmo, de corporações de unidades federativas diversas.”130* 129. Importante atentar para dois dispositivos da parte especial do Código Penal Militar que limitam a aplicação do art. 9o em relação aos crimes de violação de correspondência e de estelionato: a) segundo o disposto no art. 227, § 4o, do CPM, salvo o disposto no parágrafo anterior, qualquer dos crimes previstos neste artigo só é considerado militar no caso do art. 9o, n° II, letra "a"; b) o art. 251, § 2o, do CPM, dispõe: "Os crimes previstos nos n° I a V do parágrafo anterior são considerados militares

somente nos casos do art. 9o, n° II, letras 'a' e 'e'.

Esse militar da ativa pode ou não estar em ser­ viço ou em função de natureza militar. Logo, mesmo que esteja em férias, licença, em momento de lazer dentro ou fora de uma organização militar, mantém sua qualidade de militar da ativa, razão pela qual, caso venha a praticar um delito contra outro militar da ativa, estará caracterizado crime militar com base no art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM. Essa hipótese é também conhecida por inter milites. De fato, da própria comparação da alínea “a” com a alínea “c” (aqui, refere-se o CPM ao militar “em serviço”), ambas do inciso II do art. 9o, de­ preende-se que, para que o crime seja considerado militar com fundamento no dispositivo em análise, basta que ambos os militares sejam da ativa131 (em contraposição ao militar na inatividade, o qual é considerado civil), pouco importando se esse militar está de férias, licença, etc. Assim, tendo-se em conta que a competência é fixada com base em critérios objetivos, se um militar comete um delito contra outro militar, ainda que não tenha consciência da condição de militar da vítima, o crime continuará sendo militar, visto que preenchidos os requisitos do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM.132 Com base nesse dispositivo, ressaltamos, pouco importa o lo­ cal da infração: independentemente de se tratar de lugar sujeito ou não à administração militar, o crime será considerado militar.133 Bombeiros Militares, surge o problema relativo à competência da Justiça Militar para conhecer do delito cometido por um cônjuge ou companhei­

ro contra outro. Se a ocorrência diz respeito à vida em comum, permane­ cendo nos limites da relação conjugal ou de companheiros, sem reflexos

na disciplina e na hierarquia militar, permanecerá no âmbito da jurisdição comum.Tem pertinência com a matéria a decisão da Corte Suprema (HC

58.883), segundo a qual a administração militar não interfere na privaci­ dade do lar conjugal, máxime no relacionamento do casal".

131. Como já se pronunciou a 3a Seção do STJ, "militar em situação de atividade quer dizer'da ativa'e não'em serviço', em oposição a militar da reserva ou aposentado". (STJ - CC 85.607/SP - 3a Seção - Rei. Min. Og Fernandes - Dje 08/09/2008). 132. Para o Supremo,"crime praticado por militar, em situação de ativi­ dade, contra militar da mesma situação (homicídio de um cabo da Marinha

contra um cabo da mesma Força, ambos da ativa, na residência da vítima, fora de zona militar), mesmo não estando em serviço o militar acusado, é

crime militar, na forma do disposto no artigo 9., II,"a", do Cod. Penal Militar. Competência da Justiça Militar. C.F./67, art. 129; C.F./88, art. 124. A Justiça Militar não comporta a inclusão, na sua estrutura, de um júri, para o fim de julgar os crimes dolosos contra a vida". (STF - RE 122.706/RJ - Tribunal Pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 03/04/1992). No sentido da compe­ tência da Justiça Militar para julgar crime de dano cometido por militar da ativa contra outro militar na mesma situação, no interior de depósito naval, nos termos do art. 9o, II, "a", do Código Penal Militar: STF, 2a Turma,

HC86.867/PA, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 01/12/2006 p. 100. No sentido da competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes de desrespeito a superior e ameaça praticados por militar contra militar, ambos da ativa, mesmo durante o período de folga: Informativo n° 634 do STF, 2a Turma, HC 107.829/PB, Rei. Min. Ayres Britto, 02/08/2011.

133. Também comunga desse entendimento Denílson Feitoza (op. cit. p. 374), ao afirmar que o militar da ativa pode ser considerado no CPM

130. LOBÃO, Célio.Op. cit. p. 113. Ainda segundo o autor, "com a incor­

como sujeito ativo de um crime impropriamente militar, pelo simples fato

poração de mulheres às Forças Armadas, à Polícia Militar e ao Corpo de

de ser militar da ativa, mesmo não estando de serviço, nem atuando em

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Suponha-se, assim, que um militar do Exérci­ to, em concurso de agentes com um civil, resolva perpetrar um crime contra outro militar do Exér­ cito, sendo que nenhum deles estava em serviço e o fato não ocorreu em lugar sujeito à administração militar. Nesse caso, o militar deve ser processado perante a Justiça Militar da União, com fundamento no art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM. A com­ petência para julgar o civil, todavia, recai sobre a Justiça Comum Estadual, haja vista que, apesar de se vislumbrar uma continência por cumulação sub­ jetiva (CPPM, art. 100, alínea “a”), que determinaria a reunião dos processos, a conduta do civil não pode ser considerada crime militar, pois não se ajusta a nenhuma hipótese do art. 9o do CPM, já que a víti­ ma não estava em serviço e o crime fora cometido fora de lugar sujeito à administração militar. Daí por que se impõe a separação dos processos com fundamento no art. 102, “a”, do CPPM. No sentido de que crime cometido por militar da ativa contra militar da ativa é da competência da Justiça Militar, pouco importando se ambos estão em serviço, ou se o lugar está sujeito à administração militar, o Supremo Tribunal Federal já teve a opor­ tunidade de asseverar que “os alunos regularmente matriculados em órgão de formação de militares da ativa e da reserva - que possuem, nessa particular condição, a graduação de praças especiais - são consi­ derados militares em situação de atividade, podendo qualificar-se, em consequência, como sujeitos ativos de crime militar, submetendo-se, desse modo, quan­ do da prática de ilícitos castrenses, à jurisdição penal da Justiça Militar”.134

Seguindo uma rota diametralmente oposta, a 2a corrente, que encontra ressonância em diversos julgados da 3a Seção do STJ, trabalha com a tese de que, para fins de fixação o da competência da Justiça Militar, não basta que o crime seja cometido por militar da ativa contra militar da ativa, sendo razão da função, por exemplo, estando de licença-médica, de folga, de férias etc. É o caso do inciso II, alínea a, art. 9o do CPM (militar da ativa contra militar da ativa). Por exemplo: um militar, de folga, subtrai, para si, o dinheiro particular de seu colega também militar, de folga (crime im­

propriamente militar de furto simples - art. 240, caput, c/c art. 9o, II, a, do CPM); um militar, de folga, mata, intencionalmente, seu colega também militar, de folga (crime impropriamente militar de homicídio simples art. 205, caput, c/c art. 9o, II, a, do CPM). Com entendimento semelhante: ROSSETO, Enio Luiz. Código Penal Militar comentado. São Paulo: Editora

Revista dosTribunais, 2012. p. 109.

134. STF - RHC 80.122/SP - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 04/08/2000 p. 43. No sentido da competência da Justiça Militar para julgar crime militar doloso contra a vida praticado por militar em situação de atividade contra militar, na mesma situação, ainda que fora do recinto da administração militar, mesmo por razões estranhas ao serviço: STF - CC 7071/RJ - Tribunal Pleno - Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 01/08/2003 p. 103. E ainda: STF - CJ-MC 7021/RJ - Tribunal pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 10/08/1995 p. 45.

indispensável que o militar esteja em efetivo exer­ cício funcional. Considera-se, assim, “em situação de atividade”, constante do art. 9o, II, “a”, do CPM, e o termo “em serviço” como expressões sinônimas. Não por outro motivo, em caso concreto de ten­ tativa de homicídio em que autor e vítimas eram policiais militares, concluiu-se pela inexistência de crime militar, porquanto o crime fora cometido fora de situação de atividade e fora de área de ad­ ministração militar. Assim, na dicção do STJ, se o crime fora cometido fora do exercício do serviço, sem farda, e com motivação completamente alheia à função, a competência para processar e julgá-lo seria da Justiça Comum (Tribunal do Júri).135 Na mesma linha, sob o argumento de que o simples fato de o acusado e a vítima integrarem a Polícia Militar não teria o condão de atrair a competência da Justiça Castrense, a 5a Turma do STJ reconheceu a compe­ tência da Justiça Comum Estadual para processar e julgar suposto crime de latrocínio praticado por um policial militar contra outro, vez que o delito não guardou relação com as funções policiais por eles exercidas, mas sim com o trabalho de segurança de um estabelecimento comercial, que já havia sido exercido pelo acusado e, à época dos fatos, era de­ sempenhado pelo ofendido.136*Com base no mesmo 135. STJ - CC 91.267/SP - 3a Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 22/02/2008 p. 164. Em outro caso, relativo a homicídio cul­

poso praticado por policial militar da ativa contra policial militar da ativa

em churrasco fora das instalações castrenses, o STJ também concluiu pela competência da Justiça Comum. Na visão daquela Corte, quando o militar se encontra fora de situação de atividade, entendida como tal sua efetiva atuação funcional, ou seja, nas ocasiões em que age como civil, não há se estender a competência da justiça militar, visto que não há se lhe exigir o

mesmo padrão de conduta, de hierarquia e disciplina: STJ - HC 119.813/

PR - 6aTurma - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - Dje 02/02/2009. O Supremo Tribunal Federal também já decidiu que o art. 9o, II, "a", do Código Penal Militar não alcança quadro em que militar, em atividade nitidamente civil - participação em festa carnavalesca -, desacata militar em serviço, obstaculizando, mediante violência ou ameaça, ato a con­

substanciar dever funcional: STF - RHC 88.122/MG - 1a Turma - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 13/09/2007. Em sentido semelhante, em caso concreto

envolvendo dois militares no qual uma discussão de trânsito evoluiu para

uma lesão corporal grave, concluiu a 1a Turma do Supremo tratar-se de crime comum, já que o delito fora praticado em contexto no qual os envolvidos não conheciam a situação funcional de cada qual, já que não estavam uniformizados e dirigiam carros descaracterizados: STF, IaTurma, HC 99.541/RJ, Rei. Min. Luiz Fux, j. 10/05/2011, DJe 98 24/05/2011. Em caso concreto no qual um militar, que se encontrava de folga, praticou crime doloso contra a vida de outro militar ao sair de uma roda de samba em uma boate, concluiu o Supremo tratar-se de crime da competência do Tribunal do Júri: STF, 1a Turma, HC 110.286/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 14/02/2012, DJe 4 28/03/2012. Com entendimento semelhante: KARAM, Maria Lúcia. Op. cit. p. 24.

136. STJ, 5a Turma, AgRg no HC 580.803-RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 16.06.2020, DJe 24.06.2020. No julgamento do Conflito de Competên­ cia CC 162.399/MG (Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 27.02.2019, DJe 15.03.2019), a 3a Seção do STJ sufragou o entendimento segundo o qual a conduta criminosa do militar da ativa, fora do lugar e horário de serviço, sem ter se valido do cargo para cometimento do delito, permite caracterizar o agente, nesta hipótese, como civil, circunstância que afasta a aplicação do art. 9°, II, a, do Código Penal Militar e, por conseguinte, firma a competência da Justiça comum.

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entendimento, em caso concreto de homicídio en­ volvendo policiais militares de diferentes unidades da federação que estavam fora de serviço quando deram início a uma discussão no trânsito, a qual foi motivada por uma dúvida da vítima acerca da identificação do acusado como militar, concluiu a 3a Seção do STJ pela não subsunção dos fatos ao art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM, notadamente porque o autor do delito não teria agido como um policial militar em serviço, nem mesmo com o transcorrer dos fatos, daí por que determinou a remessa dos autos à Justiça Comum (Tribunal do Júri).137

Com a devida vênia, para fins de fixação da competência da Justiça Militar, não se pode con­ fundir o crime militar praticado por militar da ativa contra militar da ativa (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “a”), em que o Código exige nada além de que sujeitos ativo e passivo sejam militares em situação de atividade (art. 3o, § Io, alínea “a”, da Lei n° 6.880/80), independentemente de estarem ou não em serviço quando da prática do delito, com o crime militar praticado por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “c”), o qual, ao contrário do anterior, demanda que o militar pratique o delito no exercício funcional. Por fim, é possível observar ainda o surgimento de uma 3a corrente, aparentemente intermediária. Entre o reconhecimento do crime militar e, por­ tanto, da competência da Justiça especializada pela simples presença de dois militares da ativa nos polos ativo e passivo do crime e a exigência de que os militares estejam em serviço, propõe-se a fixa­ ção da competência na Justiça castrense, desde que cumulado com o critério subjetivo - militares da ativa - a vulneração de bem jurídico caro ao ser­ viço e ao meio militar (critério objetivo). Enfim, para fins de definição da competência da Justiça Militar, há de se considerar o critério subjetivo do militar em atividade, em serviço ou não, aliado ao critério objetivo, que reflete a vulneração de bem jurídico caro ao serviço e ao meio militar. Por isso, em caso concreto versando sobre fuga e resistência de policial militar flagrado em situação de violên­ cia doméstica contra a esposa, contextualizada com disparos de arma de fogo contra colegas e contra viatura da corporação, concluiu a 5a Turma do STJ recair sobre a Justiça Militar Estadual a competên­ cia para o processo e julgamento de suposto crime

de tentativa de homicídio, porquanto evidenciada a presença de ambos os critérios acima explicitados.138 Ainda em relação ao art. 9o, II, “a”, do Código Penal Militar, especial atenção deve ser dispensada às hipóteses envolvendo a subtração de folha de che­ que de militar da ativa praticada por outro militar da ativa em lugar sujeito à administração militar, com sua posterior utilização para obtenção de vantagem ilícita. Nesses casos de estelionato, tem-se entendido que, se o prejuízo for suportado pelo militar, a com­ petência será da Justiça Militar; todavia, nas hipóte­ ses em que a instituição bancária toma a iniciativa ou é compelida a repor a importância, ardilosamen­ te retirada pelo militar da ativa da conta corrente do lesado, também militar da ativa, sem que nenhum transtorno patrimonial seja causado ao correntista, fixar-se-á a competência da Justiça comum, pois a vítima seria a instituição financeira.139

b) Do crime militar cometido por militar da ati­ va contra civil em lugar sujeito à administração militar. De acordo com o art. 9o, inciso II, alínea “b”, do Código Penal Militar, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes previstos no CPM e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar em situação de atividade, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil.

Quanto ao sujeito passivo desse crime militar, preceitua o estatuto penal militar que o crime deve ser cometido contra militar da reserva, ou reforma­ do, ou civil. Reiteramos aqui o quanto já foi dito em relação aos militares na inatividade (militares da reserva ou reformados): são considerados civis para fins de aplicação da lei penal militar.

Como as alíneas “b”, “c” e “d” do inciso II do art. 9o do CPM referem-se ao militar da reserva, ou reformado, ou civil, como sujeitos passivos des­ se crime militar, sem explicitar se esse “civil” se­ ria pessoa física ou jurídica, a jurisprudência tem entendido que somente a pessoa física pode ser vítima desse crime militar, excluída, portanto, a pessoa jurídica. Logo, ainda que eventual crime de dano seja praticado por militar da ativa, em lugar

138. STJ, 5a Turma, HC 550.998/MG, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j.

23/06/2020, DJe 26/06/2020.

137. STJ, 3a Seção, CC 170.201/PI, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11.03.2020, DJe 17.03.2020.

139. Concluindo pela competência da Justiça Militar para julgar ação penal por delito de estelionato cometido por militar da ativa em dano de outro militar em igual situação, dentro de unidade militar: STF - HC 86.867/PA - 2a Turma - Rei. Min. Cezar Peluso - DJ 01/12/2006.

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sujeito à administração militar, contra o patrimônio de empresa pública, a competência será da Justiça Comum.140

Em síntese, são três os requisitos para fins de configuração do referido crime militar: a) sujeito ativo: militar da ativa; b) sujeito passivo: pessoa físi­ ca (civil); c) crime militar cometido em lugar sujeito à administração militar.141

Com o advento da Lei n. 13.491/17, é de todo irrelevante se esse delito praticado por militar da ativa contra civil em lugar sujeito à administração militar está ou não tipificado no Código Penal Mi­ litar. Afinal, a Justiça Militar teve sua competência ampliada para o julgamento de crimes previstos na legislação penal, aí incluída não apenas o Código Penal Comum, mas também os delitos previstos na legislação extravagante. Por lugar sujeito à administração militar com­ preende-se o espaço físico no qual as Forças Arma­ das, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares desenvolvem suas atividades profissionais, como quartéis, aeronaves e navios militares ou mercantes em serviço militar, fortalezas, estabele­ cimentos de ensino militar, campos de prova ou de treinamento. Abrange tanto o local pertencente ao patrimônio das instituições militares, como também aquele sob sua administração por disposição legal. Este local pode ser imóvel ou móvel (v.g., aeronave, embarcação). A vila militar, local destinado à moradia dos servidores das Forças Armadas, cujas unidades habitacionais são denominadas de próprios na­ cionais residenciais (PNR), é considerada lugar sujeito à administração militar, porém somente no tocante às áreas comuns. A residência do militar, mesmo que localizada em vila militar, não tem sido considerada como lugar sujeito à adminis­ tração militar, na medida em que a administração militar não interfere na privacidade do domicílio, não detendo o poder de penetrar no interior das 140. Com esse entendimento: STJ - REsp 705.514/DF -6aTurma - Rei. Paulo Medina - DJ 19/06/2006 p. 215. No sentido da competência da Jus­ tiça Comum para julgar ato lesivo praticado por militares contra pessoa jurídica de direito privado, ainda que integrada apenas por militares, na medida em que essa pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a integram, nem pode ser tomada como "patrimônio sob a

administração militar, ou a ordem administrativa militar": STF - HC 57.916/ RS - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 12/08/1980. 141. Firmando a competência da Justiça Militar para julgar crime de estelionato praticado por militar, utilizando-se do nome da instituição

militar, da sua função de militar da aeronáutica e na própria Seção de Aviação Civil, com base nas alíneas b e c do inciso II do artigo 9o do Código Penal Militar: STJ - CC 79.482/MG - 3a Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 17/09/2007 p. 207.

casas cedidas a oficiais e praças (PNR), salvo em caso de flagrante delito ou mediante circunstan­ ciada autorização judicial, por força do inciso XI do art. 5o da Constituição Federal. Portanto, caso um militar da ativa pratique um crime contra sua esposa dentro de um PNR, a competência será da Justiça Comum.142

É possível, no entanto, que esse crime pratica­ do no interior da residência em vila militar tenha sido cometido por militar da ativa contra militar da ativa, o que caracterizaria crime militar, não com fundamento na alínea “b”, mas sim com base na alínea “a” do inciso II do art. 9o do CPM.143 Nesse caso, caracterizada hipótese de violência doméstica de militar da ativa contra militar da ativa (Lei n. 11.340/06, arts. 5o e 7o), é perfeitamente possível a aplicação das medidas protetivas de urgência previs­ tas na Lei Maria da Penha pela Justiça Militar, haja vista a possibilidade de utilização do poder geral de cautela no processo penal (NCPC, art. 297, c/c art. 3° do CPPM).144 Se a residência do militar no interior de uma vila militar não é considerada “lugar sujeito à ad­ ministração militar”, idêntico raciocínio vem sendo feito pelos Tribunais Superiores em relação às ins­ talações de entidades privadas no interior de uma organização militar. Em caso concreto referente à prática de crime sexual praticado por militar da Marinha contra menor de catorze anos no interior de complexo naval onde o militar ministrava aulas de karatê para garotos, concluiu o Supremo tratar-se de crime de natureza comum: a uma, porque o fato teria ocorrido no exercício de atividade estranha à função militar; a duas, porque o local em que o crime fora cometido seria uma associação civil de direito privado - na visão da 2a Turma do STF, a simples circunstância de a Marinha haver dispo­ nibilizado instalações para a referida entidade não transformaria esta em “lugar sujeito à administração 142. Em caso concreto apreciado pelo Supremo, concluiu-se que, em­ bora o militar tenha matado sua mulher no interior da casa em que ambos

residiam, situada em zona sob a administração militar, a Justiça Comum seria competente para julgar o crime, porque a aludida administração não interfere na privacidade do lar conjugal, máxime no relacionamento do casal, do qual resultou o delito: STF, 1a Turma, HC 58.883/RJ, Rei. Min. Soares Munoz, DJ 09/10/1981. 143. Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União para o julgamento de suposto crime militar de ameaça praticado por um Sar­ gento do Exército contra sua mulher, também sargento, no interior de

uma unidade residencial militar, nos termos do art. 9o, II, alínea "a", do CPM: STF, 1a Turma, HC 125.836/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 03/03/2015. 144. Admitindo a utilização do poder geral de cautela (NCPC, art. 297) no processo penal comum: STF - HC 94.147/RJ - 2a Turma - Relatora Ministra Ellen Gracie - Dje-107 12/06/2008. E também: HC 86.758/PR - 1a Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - j. 02/05/2006 - DJ p. 22, 01/09/2006.

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militar”, sendo inviável equiparar-se clube social a organização militar.145 Outro fato que produz certa controvérsia diz respeito aos crimes de roubo/furto ocorridos em agências bancárias e/ou caixas eletrônicos situados no interior de organizações militares. Em primeiro lugar, é importante asseverar que, apesar de situados no interior de unidades militares, o espaço físico ocupado pelas instituições financeiras não está su­ jeito à administração militar. De mais a mais, mes­ mo que se entendesse que se trata de lugar sujeito à administração militar, foi visto anteriormente que o sujeito passivo do crime militar das alíneas “b”, “c” e “d” do inciso II do art. 9o do CPM somente pode ser pessoa física, excluída, portanto, a pessoa jurídica. Ora, tratando-se de crime contra o patrimônio de instituições financeiras, deve o crime ser considera­ do de natureza comum, de competência da Justiça Estadual, salvo se a instituição financeira for a Cai­ xa Econômica Federal, quando a competência será da Justiça Federal, por se tratar de empresa pública federal (CF, art. 109, inciso IV). A nosso ver, pouco importa que os agentes tenham ingressado por área militar, violando a segurança feita por militares, eis que, nesse caso, o ingresso clandestino teria se dado como crime-meio para a prática do delito-fim (cri­ me patrimonial), sendo por ele absorvido com base no princípio da consunção.

Por fim, ainda em relação ao lugar sujeito à administração militar, importante recordar que o Superior Tribunal Militar e as auditorias militares fazem parte da estrutura do Poder Judiciário, não estando sujeitos, portanto, à administração militar. Logo, eventual crime cometido por militar nas de­ pendências do Superior Tribunal Militar será con­ siderado crime comum.146 c) Do crime militar praticado por militar em ser­ viço, ou atuando em razão da função, em comis­ são de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra civil. Segundo o disposto no art. 9o, inciso II, alínea “c”, do Código Penal Militar, com redação dada pela 145. STF, 2a Turma, HC 95.471/MS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 15/05/2012.

Lei n. 13.491/17, considera-se crime militar, em tem­ po de paz, os crimes previstos no CPM e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comis­ são de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil.

Militar em serviço não se confunde com mili­ tar da ativa. Como exposto anteriormente, militar da ativa são os de carreira, os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço mili­ tar inicial, os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, desig­ nados ou mobilizados e os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva. Já o militar em serviço deve ser compreendido como aquele “que se encontra exercendo função do cargo militar, permanente ou temporário, decor­ rente de lei, decreto, regulamento, ato, portaria, instrução, ordem verbal ou escrita de autoridade militar competente”.147

Conclui-se, pois, a despeito do silêncio do art. 9o, inciso II, alínea “c”, que somente poderá estar em serviço ou atuando em razão da função o militar da ativa, já que o militar na inatividade não mais exerce qualquer função pertinente ao militar.

Para a configuração do crime militar com base na alínea em questão, é fundamental que o delito seja praticado enquanto o militar está em serviço ou atuando em razão da função, que lhe é atribuí­ da mediante escala. Deve existir o denominado nexo funcional, sob pena de configuração de crime comum. Logo, eventuais ilícitos penais praticados por militares que não estavam em serviço, não exe­ cutavam missão militar e que agiam por motivos pessoais, particulares, em local não sujeito à admi­ nistração militar, devem ser processados e julgados pela Justiça Comum.148

Firmada a premissa de que o reconhecimento da competência da Justiça Castrense pressupõe que o militar esteja em serviço, é de rigor concluir que o simples fato de o delito ter sido facilitado em virtude de sua condição de militar não autoriza o reconheci­ mento de crime militar. Por isso, se o militar estiver de folga e subtrair objetos do interior de uma cami­ nhonete apreendida que se encontrava no pátio de

146. Com esse entendimento: STJ - CC 52.174/DF - 3a Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 04/10/2007 p. 167. No sentido de que eventual crime de uso de artefato incendiário contra edifício sede da Justiça Militar da União deve ser processado e julgado perante a Justiça

Federal, e não perante a Justiça Militar da União, porquanto se trata de crime praticado em detrimento de órgão do Poder Judiciário da União, logo, que não integra o patrimônio militar nem está subordinado à ad­

147. Lobão, Célio. Op. cit. p. 120.

148. Nessa linha: STF, Pleno, CC 7.120/PA, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 19/12/2002 p. 71. Portanto, a prática de furto por policial militar em ser­ viço que se utiliza desta condição para adentrar a residência da vítima caracteriza crime militar, nos termos do art. 9o, II, do Código Penal Militar:

ministração castrense: STJ, 3a Seção, CC 137.378/RS, Rei. Min. Sebastião

STJ, 6a Turma, HC 113.384/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j.

Reis Júnior, j. 11/3/2015, DJe 14/4/2015.

31/05/2011,DJe 08/06/2011.

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uma delegacia de polícia, lugar que não está sujeito à administração militar, não há falar em crime da competência da Justiça Militar, pouco importando o fato de a conduta delitiva ter sido facilitada em razão da particular condição de policial militar.149

Todavia, se o militar estiver de folga, porém usando uma calça da farda da polícia militar, por­ tando arma de fogo e ameaçando transeuntes de prisão, é inquestionável que estaria se valendo do cargo público. A propósito, em caso concreto levado à apreciação da 6a Turma do STJ, envolvendo um policial militar de folga, embriagado e parcialmente fardado, que estaria se valendo do cargo para abor­ dar as vítimas em praça pública, afirmando ser po­ licial para indagar sobre secom usuários de droga, dizendo que iria prendê-los, bem como, na sequên­ cia, ter constrangido outra vítima com violência e ameaça, com a justificativa de que a estava prenden­ do por desacato, há de se reconhecer a competência da Justiça Militar nos exatos termos do art. 9o, inciso II, alínea “c”, do CPM.150

Ainda em relação à tipificação desse crime mi­ litar, há de ser dispensada especial atenção ao sujei­ to ativo do delito - se militar das Forças Armadas ou das Polícias Militares -, já que, a depender do militar em questão, a distinção das funções por ele exercidas é de fundamental importância para que se possa se saber se ele estava (ou não) em serviço, ou atuando em razão da função, no momento da prática delituosa. Quanto aos militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sabe-se que, à exceção de suas atribuições subsidiárias previstas na Lei Comple­ mentar n° 97/99, que já foram objeto de análise, e das hipóteses de garantia da lei e da ordem (v.g., ocupação do Complexo do Alemão no Rio de Janei­ ro pelo Exército Brasileiro), não recai sobre as For­ ças Armadas nenhuma atribuição de policiamento ostensivo. Assim, se, por exemplo, um crime for cometido por um Soldado do Exército contra um civil em plena Avenida Paulista, a conclusão ine­ vitável é de que se trata de crime comum, já que o militar em questão não tem funções de policiamento ostensivo. Logo, por ocasião do crime, não estava no exercício da função. Nessa linha, se determinado militar do Exército, após abandonar seu posto, vier a cometer determinado delito fora de lugar sujeito à administração militar, deverá ocorrer a separação de processos, cabendo à Justiça Militar da União o 149. STJ, 3a Seção, CC 115.597/MG, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze,

j. 14/03/2012. 150. STJ, 6a Turma, AgRg no RHC 121.084/RJ, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 09.06.2020

processo e julgamento do delito de abandono de posto (CPM, art. 195), enquanto a outra infração penal deverá ser julgada pela Justiça Comum, ainda que praticada com arma da corporação, haja vista a revogação da alínea “f” do inciso II do art. 9o pela Lei n° 9.299/96.151 Por outro lado, na hipótese de o sujeito ativo do delito ser um Policial Militar, não se pode perder de vista que à polícia militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, nos termos do art. 144, § 5o, da Constituição Federal. Portanto, se, no exercício dessa função de policia­ mento ostensivo, eventual delito vier a ser praticado pelo Policial Militar contra civil, ainda que fora de lugar sujeito à administração militar, há de se reco­ nhecer a existência de crime militar, nos termos do art. 9o, II, alínea “c”, do CPM. Destarte, não há falar em incompetência da Justiça Militar se, à época do crime, o sujeito ativo era soldado da Polícia Militar e, no momento da prática delituosa, se identificou como tal, fazendo uso de arma da corporação e, embora não estivesse fardado, estava acompanhado de outros militares devidamente fardados e em si­ tuação que denotava estarem todos em atividade.152 Na mesma linha, se, a despeito da licença prê­ mio em gozo, um Policial Militar arguir sua condi­ ção castrense para exigir, em razão da função, van­ tagem indevida, há de se reconhecer a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento do delito de concussão, nos termos do art. 9o, II, ‘ c”, do CPM. No mesmo contexto, se um policial militar, embora sem farda, se vale da sua condição castrense para exigir, em razão da função, vantagem indevida, comete o crime militar de concussão (CPM, art. 305, c/c art. 9o, II, “c”), daí por que a competência para o processo e julgamento também deve recair sobre a Justiça Militar.153

Por tais motivos, pensamos que laborou em equívoco a 2a Turma do Supremo ao apreciar o HC 109.150. O caso concreto referia-se à prática dos cri­ mes de extorsão mediante sequestro, com resultado morte, ocultação de cadáver e quadrilha armada, praticados por policiais militares que estavam em serviço, comprovado por escalas de trabalho. Estra­ nhamente, o Supremo concluiu que a competência seria da Justiça Comum, devido à não configuração 151. STF, 2a Turma, HC 91.658/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 21/05/2009.

152. STJ, 5a Turma, HC 80.461-MS, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 19.09.2009, DJe 21.09.2009.

153. STJ, 5aTurma, HC 146.769/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 25/11/2010, DJe 13/12/2010. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 115.356/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/10/2011, DJe 09/11/2011.

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de nenhuma das hipóteses do art. 9o, inciso II, do CPM, porquanto os delitos foram perpetrados: con­ tra civil; na rua; em horário de serviço, porém em atividade estranha as suas funções (extorsão me­ diante sequestro, com resultado morte); em situação distinta de período de manobras ou exercício; e, por fim, sem que afetasse o patrimônio sob a adminis­ tração militar, ou a ordem administrativa militar.154 Ora, considerando que à Polícia Militar cabe a polí­ cia ostensiva e a preservação da ordem pública, nos termos do art. 144, § 5o, da Constituição Federal, e tendo em conta que tais militares estavam em ser­ viço por ocasião da prática delituosa, não há como se afastar a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento dos crimes, sob pena de se negar vigência à alínea “c” do inciso II do art. 9o do CPM.

Superada essa análise pertinente ao sujeito ati­ vo, convém destacar que o crime militar do art. 9o, II, “b”, do CPM, não se confunde com aquele cons­ tante da alínea “c” do inciso II do art. 9o, também do CPM. Para a configuração daquele crime militar, basta que o mesmo seja cometido por militar da ativa contra civil em lugar sujeito à administração militar, pouco importando se o militar ao cometê-lo estava ou não em serviço. Assim, mesmo que um Soldado do Exército esteja em gozo de licença mé­ dica, caso o crime seja cometido em lugar sujeito à administração militar, estará caracterizado o crime militar da alínea “b” do inciso II do art. 9o do CPM. Já no crime militar da alínea “c” do inciso II do art. 9o, como o delito pode ser praticado ainda que fora de lugar sujeito à administração militar, é indispen­ sável analisar se o militar estava em serviço (ou não) quando da prática delituosa. Um caso concreto ocorrido no interior de São Paulo em que tivemos a oportunidade de atuar como Promotor da Justiça Militar da União bem demonstra a importância dessa distinção. Dois mi­ litares do Exército brasileiro, portando armamento militar, abordaram quatro civis, dentre eles uma mulher, dando início a uma revista pessoal. Durante a revista, um dos militares teria supostamente pra­ ticado atentado violento ao pudor contra uma das vítimas. Se referida conduta tivesse sido praticada em lugar sujeito à administração militar, ter-se-ia crime militar (CPM, art. 233, c/c art. 9o, II, “b”), pouco importando se os agentes estavam ou não em serviço quando da abordagem feita aos civis. Ocorre que o delito não foi praticado em lugar sujeito à

154. STF, 2a Turma, HC 109.150/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski,

20/09/2011.

administração militar, mas sim num determinado parque no qual Militares do Exército estavam acam­ pados para a realização de um exercício militar - o simples fato de um parque’ ser palco de exercício militar não o transforma em lugar sujeito à admi­ nistração militar. Restou comprovado, ademais, que a abordagem feita pelos militares não fazia parte do exercício militar, tendo sido executada quando estavam de folga, aproveitando-se do armamento militar, ou seja, os soldados não estavam em serviço, nem tampouco atuando em razão da função quando do cometimento do crime. Na verdade, os militares se aproveitaram de seu período de descanso para, usando armamento da corporação, praticar delitos em lugar não sujeito à administração militar, o que, por si só, não transforma a conduta em crime mi­ litar. Há de se lembrar, nesse sentido, que a alínea “f ” do art. 9o, inciso II, do Código Penal Militar, foi revogada pela Lei n° 9.299/96. Portanto, o simples fato de o delito ser praticado com armamento mili­ tar não transforma o ilícito em crime militar. Com base nesse raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que o delito sob análise não se enquadrava em nenhuma das hipóteses definidas no art. 9o do CPM, fixando a competência da Justiça Comum Estadual para o processo e julgamento do feito.155 De acordo com o dispositivo em análise (CPM, art. 9o, II, “c”), é fundamental que o crime militar seja praticado quando o militar está em serviço ou atuando em razão da função. Como a lei não exige que essa função seja militar, mesmo que o policial militar e o bombeiro militar estejam em serviço de policiamento ostensivo e de trânsito, ou no exercí­ cio de função policial civil, eventual crime por eles cometido será considerado crime militar. Encontra-se superado, portanto, o enunciado da súmula 297 do Supremo Tribunal Federal (“Oficiais e praças das milícias dos Estados, no exercício de função policial civil, não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a Justiça comum para julgar os crimes cometidos por ou contra eles”/ Como já se manifestou o próprio Supremo, “mesmo nas hipóteses em que entre as atividades do policial militar estejam aquelas pertinentes ao policiamento civil, os desvios de condutas decorrentes de suas atribuições específicas e associadas à atividade mi­ litar, que caracterizem crime, perpetradas contra civil ou a ordem administrativa castrense, consti­ tuem-se em crimes militares, ainda que ocorridos fora do lugar sujeito à administração militar (CPM, artigo 9o, II, “c” e “e”). Nesses casos a competência

155. Nessa trilha: STJ, 3a Seção, CC 100.545/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 01/07/2009.

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para processar e julgar o agente público é da Justiça Militar. Enunciado da Súmula/STF 297 há muito tempo superado”.156 Se o Código Penal Militar considera crime mi­ litar aquele praticado por militar em serviço contra civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, também não há falar em aplicação irrestrita da súmula n° 6 do STJ (“Compete à Justiça Co­ mum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais mi­ litares em situação de atividade”/ Tal súmula teve origem com a entrada em vigor da Lei n° 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), que se deu em 23 de janeiro de 1998. Aos olhos do Superior Tribunal de Justiça, diante da vigência do Código de Trânsito, caso a pretensão punitiva estivesse fundada em ale­ gada prática de homicídio culposo ou lesão corpo­ ral culposa na direção de veículos, não poderia ser reconhecida a configuração de crime militar, nem mesmo quando se tratasse de viatura militar, sendo o sujeito ativo militar da ativa em serviço.

Com a devida vênia, se a alínea “c” do inciso II do art. 9o do CPM preceitua que é crime militar aquele cometido por militar em serviço ou atuando em razão da função, ainda que fora de lugar sujeito à administração militar, contra civil, pouco importa que a vítima do acidente de trânsito envolvendo via­ tura de Polícia Militar em serviço seja civil: o crime será considerado militar. Se os delitos de homicídio culposo e lesão corporal culposa estão expressamen­ te previstos no CPM, hão de funcionar os arts. 206 e 210 do Estatuto Penal Militar, combinados com o art. 9o, inciso II, alínea “c”, também do CPM, como norma especial em relação ao Código de Trânsito Brasileiro.157 Aliás, em julgado posterior à edição da Súmula n° 6, o próprio Superior Tribunal de Justiça 156. STF, Pleno, HC 82.142/MS, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 12/09/2003. No sentido da competência da Justiça Militar Estadual para julgar crime militar praticado por policial militar, ainda que em função de policiamento civil, porquanto superada a súmula 297 do STF: STF - HC 69.571/PB - 1aTurma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 25/09/1992.0 STJ também tem precedentes no sentido de que o enunciado sumular n° 297 do STF encontra-se superado, pois vai contra a nova ordem cons­ titucional, especialmente em se considerando o disposto no art. 144, § 5o, da atual CF, que é claro ao atribuir às polícias militares, e não à civil, a função de policiamento ostensivo, existindo inclusive proposta para a reformulação do referido verbete sumular desde o ano de 1978, dada a Emenda Constitucional n° 7/77. Nessa linha: STJ, 5aTurma, HC 114.825/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 29/09/2009, DJe 09/11/2009. Situação diferente ocorrerá caso o militar encontre-se no exercício da função de delegado de polícia, tendo o Supremo decidido tratar-se de crime da competência da Justiça Comum, porquanto o policial militar teria se afastado do exercício do cargo para exercer função de natureza civil: STF - RE 92.793/SC - 1a

já se manifestou no sentido de que compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o delito decor­ rente de acidente de trânsito envolvendo viatura da Polícia Militar, quando o autor for policial militar, em serviço, e as vítimas forem civis e policiais mi­ litares, em situação de atividade.158

De todo modo, com o advento da Lei n. 13.491/17, a controvérsia em torno da súmula n. 6 do STJ parece ter chegado ao fim, porquanto a Justiça Militar passou a ter competência para o jul­ gamento dos crimes previstos na legislação penal, dentre eles exatamente aqueles previstos no Código de Trânsito Brasileiro, pouco importando se a vítima é civil ou militar.

Ainda em relação ao conceito de militar em serviço, Jorge César de Assis adverte que policiais militares, por terem o dever de agir, ao interferirem em ocorrência policial, na hipótese de flagrante de­ lito, mesmo utilizando arma particular, estariam na situação de terem-se colocado em serviço. Assim, se o policial militar, ao interferir em ocorrência policial cumprindo normas e deveres profissionais, envolve-se em alguma prática delituosa, esta será considerada de natureza militar, mesmo que o militar esteja de folga, em trajes civis e usando arma própria.159 De fato, segundo o art. 301 do Código de Processo Penal, têm os policiais militares o dever de prender quem quer que seja encontrado em situação de flagrante delito. O art. 144, inciso V, da Constituição Federal, preceitua que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através de diversos órgãos, dentre eles as polícias militares. Destarte, mesmo que o policial militar esteja fora do horário de servi­ ço e do exercício de suas funções, e em trajes civis, deverá responder perante a Justiça Militar Estadual por eventual crime militar que venha a praticar ao interferir numa ocorrência de caráter policial fora do estabelecimento militar, haja vista que tal delito terá sido praticado por militar atuando em razão da função (art. 9o, inciso II, alínea “c”, do CPM).160* 158. STJ, 3a Seção, CC 34.749/RS, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 18/11 /2002 p. 156. E também: STF, 1aTurma, RE 135.195/DF, Rei. Min. OctávioGallotti, DJ 13/09/1991. Ainda no sentido da competência da Justiça Militar para processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura militar e civil: STF, 2a Turma, RE 146.816/SP, Rei. Min. Nelson Jobim,

DJ 03/05/2002. 159. Op. cit. p. 40. A propósito do dever funcional de intervir para garantir a ordem pública, a Portaria CORREGPM-1/01/01 da PMESP deter­

Turma - Rei. Min. Cunha Peixoto - DJ 18/12/1981.

mina ser dever do policial militar"atuar onde estiver, mesmo não estando em serviço, para preservar a ordem pública ou prestar socorro".

157. Com entendimento semelhante: FEITOZA. Op. cit. p. 384. Na mes­ ma linha: ROSSETO, Enio Luiz. Código Penal militar comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 113.

160. Em caso concreto apreciado pelo Supremo, em que policiais Mi­ litares, cumprindo suas jornadas de trabalho, em viatura militar, intervie­ ram em incidente de rua e, ao o fazerem, cometeram crime, concluiu-se

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

A situação será diversa em se tratando de mili­ tares das Forças Armadas. E isso porque, em relação a eles, as funções de polícia judiciária e administra­ tiva estão restritas às infrações penais militares, não abrangendo as infrações penais comuns. Cuidan­ do-se de crime militar, seja ele praticado por civil ou por militar, o militar das Forças Armadas tem o dever de efetuar a prisão em flagrante, ex vi do art. 243 do CPPM. Todavia, em se tratando de crime comum, o integrante das Forças Armadas age como qualquer do povo (CPP, art. 301, caput), razão pela qual se cometer eventual delito quando da prisão em flagrante desse agente, esse ilícito não poderá ser considerado militar com fundamento na alínea “c” do inciso II do art. 9o, haja vista encontrar-se fora do exercício de suas funções.

d) Do crime militar praticado por militar durante o período de manobras ou exercício, contra civil. O art. 9o, inciso II, alínea “d”, do CPM, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, considera crime militar aquele previsto no Código Penal Militar e na legislação penal, quando praticado por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil.

Novamente, perceba-se que o Código Penal Mi­ litar refere-se ao militar da ativa que se encontra no exercício da função, seja durante o período de manobra, seja durante a realização de um exercício militar. Em ambas as hipóteses, e independentemen­ te de onde ocorrer o delito, havendo nexo funcional entre a prática delituosa e as funções desempenha­ das pelo agente, estará caracterizado o crime militar com base nessa alínea. Segundo a doutrina, “o conceito de formatura abrange os desfiles militares, os treinamentos para esses desfiles, etc. Manobra compreende qualquer movimentação da unidade militar, destinada ao treinamento, a ocupar posições durante estado de sítio, de defesa, perturbação de ordem pública, etc. Exercício é atividade destinada ao preparo físico do militar, ao treinamento militar da tropa, incluindo a utilização de aparelhamento bélico, etc.”161 pela competência da Justiça Militar, entendendo-se que o simples fato de a intervenção no incidente ter se dado em área territorial fora dos limites em que deviam exercer o policiamento não afastaria o caráter de "estarem em serviço". De fato, não se há de pretender que um policial veja uma ocorrência que mereça urgente intervenção nas proximidades de onde se encontre e não adote qualquer providência. Adotando-a há de considerar que assim procedeu em serviço: STF, 2a Turma, RHC 60.278/ SP, Rei. Min. Aldir Passarinho, DJ 15/04/1983.

161. LOBÃO, Célio. Op. Cit. p. 124.

e) Do crime militar cometido por militar da ativa contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.

Consoante dispõe o art. 9o, inciso II, alínea “e”, do CPM, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, considera-se crime militar, em tempo de paz, os cri­ mes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar em situação de atividade contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.

Como o Código Penal Militar refere-se ao patri­ mônio sob a administração militar, não é necessário que o bem pertença ao patrimônio militar, sendo su­ ficiente que esteja, legalmente, sob essa administra­ ção, como, v.g., veículos e máquinas de propriedade de pessoas físicas ou jurídicas cedidos ou locados para determinados fins.162 Com efeito, o dispositivo em questão alude a “patrimônio sob a administra­ ção militar” e não a patrimônio de que as entidades militares sejam titulares da propriedade pela singela razão de que elas não têm patrimônio próprio, que é do Estado, que o coloca sob a administração das entidades militares para que estas possam exercer as suas atribuições. Este o motivo pelo qual o STF manteve a competência da Justiça Militar para processar e julgar capelão militar denunciado pela suposta prática do crime de apropriação indébita (CPM, art. 248, caput, c/c art. 250) de valores reco­ lhidos de fiéis e não repassados à Cúria Militar. Em que pese a defesa sustentar a atipicidade da conduta, porquanto o acusado teria se apropriado de quan­ tias pertencentes à igreja, que não dizem respeito à Administração Militar, a Suprema Corte reiterou o entendimento de que o tipo penal em questão não exigiría que a coisa alheia móvel fosse de pro­ priedade da Administração Pública.163 Em sentido semelhante, a 3a Seção do STJ também entendeu que compete à Justiça Militar da União processar e julgar Coronel do Exército Brasileiro que, na qua­ lidade de Diretor de Hospital, teria se apropriado de montantes de dinheiro remetidos pelo Fundo de Saúde do Exército (FUSEx) para o pagamento de despesas médicas efetuadas pela instituição.164 162. Veja-se o exemplo dado por Denílson Feitoza (op. cit. p. 375):"um policial militar, em serviço, atendendo uma ocorrência policial, recebe e arrecada um veículo automotor que havia sido furtado. Tendo a detenção desse objeto particular em razão do cargo, no percurso para a delegacia de polícia o policial militar se apodera do dinheiro do lesado".

163. informativo n° 546 do STF: RHC 96.814/PA, Rei. Min. Eros Grau, 12/05/2009. 164. STJ - CC 48.014/RS - 3a Seção - DJ 08/06/05 p. 148.

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Para que o crime seja considerado militar, é in­ dispensável que o objeto esteja sob a administração militar. Portanto, se a coisa, originariamente militar, por qualquer meio, deixa de estar sob a administra­ ção militar, ou passa a pertencer a militares, como patrimônio individual, o crime, desde que tenha sido cometido fora da área sob a administração mi­ litar, será processado e julgado pela Justiça comum. A título de exemplo, em determinado caso concreto, foram subtraídas de um próprio nacional residencial (PNR) barras de metal utilizadas para armação de barracas de camping do Exército brasileiro. Ocorre que esse material tinha sido anteriormente descar­ regado e desafetado pelo Exército. Logo, tais objetos já não estavam mais sob a administração militar quando da prática do delito. Somando-se a isso o fato de o delito não ter sido praticado em lugar su­ jeito à administração militar, na medida em que o PNR não pode ser considerado como tal, chega-se à conclusão de que se trata de crime comum de furto.

do extinto Tribunal Federal de Recursos, “com­ pete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os crimes cometidos por policial militar, mediante uso de arma da corporação, mesmo que se encontre no exercício de policiamento civil”. De modo seme­ lhante, eis o teor da súmula 47 do STJ: “Compete à Justiça Militar processar e julgar crime cometi­ do por militar contra civil, com emprego de arma pertencente à corporação, mesmo não estando em serviço ”.

Por sua vez, por crimes militares contra a ordem administrativa militar compreendem-se as infrações que atingem a organização, a existência e a finali­ dade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar. A título de exem­ plo, ao apreciar o HC 110.233/AM, a Ia Turma do STF concluiu pela competência da Justiça Militar para processar e julgar crime de falsidade ideológi­ ca consubstanciado na conduta de militar que teria atestado, falsamente, a regularidade técnica para na­ vegação de embarcações civis, porquanto tal delito teria sido praticado em detrimento da fé pública militar. Deveria incidir, portanto, o art. 9o, II, alínea “e”, do CPM.165

Em data de 8 de agosto de 1996, entrou em vigor a Lei n° 9.299. A par de alterar a redação do art. 82 do Código de Processo Penal Militar, referida lei também revogou a alínea “f ” do art. 9o do inciso II do Código Penal Militar, tendo também acrescen­ tado um parágrafo único ao art. 9o.

f) Do revogado crime militar praticado por mili­ tar da ativa que, embora não estando em serviço, usasse arma da corporação para a prática de ato ilegal.

Quando da entrada em vigor do Código Penal Militar, a alínea “f” do inciso II do art. 9o do CPM possuía a seguinte redação: “por militar em situa­ ção de atividade ou assemelhado que, embora não estando em serviço, use armamento de proprieda­ de militar ou qualquer material bélico, sob guarda, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal”. O crime era considerado militar pelo simples fato de ser praticado por um militar com uma arma da corporação. Duas súmulas estavam relacionadas a esse crime militar. De acordo com a súmula 199 165. STF, Ia Turma, HC 110.233/AM, Rei. Min. Marco Aurélio, j.

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Tratava-se de hipótese que ensejava fundadas críticas à competência da Justiça Militar. Nada jus­ tificava, por exemplo, que fosse considerado militar um crime de estupro somente porque um policial militar, ao cometê-lo, tivesse usado arma da corpo­ ração para ameaçar a vítima. Nenhuma razão en­ contrava-se para configurar crime militar a conduta do militar das Forças Armadas que, em sua casa, fora do serviço, viesse a matar sua esposa com tiros de arma recebida de sua corporação.

Diante da revogação da alínea “f” do inciso II do art. 9o do CPM, crimes cometidos por militares que não estiverem em serviço com arma da corpora­ ção não são mais considerados crimes militares, sal­ vo, obviamente, se o militar da ativa se encontrar em uma das situações constantes do inciso II do art. 9o do CPM. Encontra-se superado, por conseguinte, o entendimento constante das súmulas anteriormente citadas (súmula 199 do extinto TFR e súmula 47 do STJ). Em julgado relacionado ao tema, pertinente à prática dos crimes de crimes de abandono de local de serviço e roubo circunstanciado pelo emprego de arma (CPM, artigos 195 e 242, § 2o, respectiva­ mente), pelo fato de o militar haver largado o posto para o qual escalado e, fardado, valendo-se de arma da corporação, roubar automóvel de civil, entendeu a Ia Turma do STF que a simples circunstância de o acusado estar em horário de serviço, na ocasião do cometimento do delito, não significaria que estivesse exercendo atividade militar. Aduziu-se que também não se poderia cogitar da competência da justiça militar em decorrência da utilização de armamento de propriedade militar (CPM, art. 9o, II, f), ante a revogação desse dispositivo pela Lei 9.299/96.166 166. STF - HC 90.729/SP - Ia Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 26/04/2007.

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1.5.4. Do inciso III do art. 9o do CPM O art. 9o, inciso III, do Código Penal Militar, versa sobre os crimes militares cometidos por militar da reserva, ou reformado, ou por civis. Como ex­ posto nos comentários introdutórios deste Capítulo acerca da Lei n. 13.491/17, esses crimes militares cometidos por civis abrangem não apenas aqueles previstos no CPM, mas também os previstos na le­ gislação penal. Como o inciso III do art. 9o do CPM tem como sujeito ativo tão somente o civil (reiteramos que, para fins de aplicação da lei penal militar, o militar da reserva ou reformado é considerado civil), forçoso é concluir que o dispositivo referido tem aplicação exclusiva na Justiça Militar da União, na medida em que, de acordo com a própria Constituição Federal, a Justiça Militar Estadual só tem competência para processar e julgar os militares dos Estados (CF, art. 125, § 4o). Logo, se um civil cometer um crime contra as instituições militares estaduais (v.g., furto de arma­ mento de um Policial Militar), deverá ser processado e julgado perante a Justiça Comum Estadual. Nessa linha, aliás, dispõe a súmula 53 do STJ que compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acu­ sado de prática de crime contra instituições militares estaduais. Portanto, diante da limitação constitucio­ nal imposta à Justiça Militar dos Estados, quando fizermos alusão ao civil como sujeito ativo de crime militar, estaremos nos referindo aos crimes militares cometidos por civis contra as Forças Armadas, os quais deverão ser processados e julgados pela Justiça Militar da União.167 Como exposto anteriormente, essa competên­ cia da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes militares praticados por civis é objeto de análise no julgamento da ADPF n. 289. De todo modo, como não há, pelo menos por ora, qualquer decisão do STF com eficácia erga omnes e efeito vinculante nesse sentido, é possível afirmar que, tendo como sujeito ativo o civil, serão consi­ derados delitos militares os crimes de que tratam os incisos I e II do art. 9o do CPM, desde que atendi­ das as circunstâncias do inciso III, valendo ressalvar que civis deverão ser julgados monocraticamente

167. Em relação à constitucionalidade de a Justiça Militar da União processar e julgar civis, o SupremoTribunal Federal editou a súmula 298 em 13 de dezembro de 1963:"0 legislador ordinário só pode sujeitar civis à Justiça Militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do País ou as instituições militares". Diante do teor do art. 125, § 4o, da CF, diriamos que somente a Justiça Militar da União pode processar e julgar civis. De mais a mais, quanto aos crimes contra a segurança externa do país, essa súmula está ultrapassada, na medida em que à Justiça Federal compete processar e julgar os crimes políticos, nos exatos termos do

art. 109, IV, da CF.

pelo Juiz Federal da Justiça Militar, nos termos do art. 30,1-B, da Lei n. 8.457/92, incluído pela Lei n. 13.774/18. a) Do crime militar praticado por civil contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar.

Nos exatos termos do art. 9o, inciso III, alínea “a”, do CPM, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as ins­ tituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, quando praticados contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem adminis­ trativa militar.168 Novamente, o CPM faz menção ao patrimônio sob a administração militar. Como dito acima, não é necessário que o bem pertença ao patrimônio mili­ tar, sendo suficiente que esteja, legalmente, sob essa administração. Com efeito, o dispositivo em questão alude a patrimônio sob a administração militar e não a patrimônio de que as entidades militares sejam ti­ tulares da propriedade, pela singela razão de que elas não têm patrimônio próprio, que é do Estado, que o coloca sob a administração das entidades militares para que estas possam exercer as suas atribuições. Por isso, v.g., o furto de material sob a administra­ ção militar federal é crime militar, apesar de esse material não ser de propriedade do ente militar de que foi subtraído, mas sim da União.169

Um dos exemplos mais comuns de crime prati­ cado por civil contra o patrimônio sob a administra­ ção militar das Forças Armadas é o de estelionato. O civil, objetivando continuar a usufruir do pagamen­ to de pensionista das Forças Armadas, mesmo após seu falecimento, induz ou mantém a administração militar em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, a fim de que o pagamento não seja cessado. Nesse caso, estará caracterizado

168. Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União com base no art. 9o, III, alínea "a", do CPM, para o processo e julgamento de crime de furto praticado por civil, ocorrido em lugar sujeito à administra­ ção militar, envolvendo res furtiva - uma pistola taurus 9mm - na posse de Soldado da Aeronáutica em serviço e sob administração das Forças Armadas: STJ, 3a Seção, CC 145.721/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 22/02/2018, DJe 02/03/2018. Reconhecendo a competência da Justiça Militar, na forma do art. 9o, III, alínea "a", do CPM, para conduzir inquérito policial no qual se averiguam condutas que têm, no mínimo, potencial para causar prejuízo à Administração Militar (e/ou a seu patrimônio), seja decorrente da percepção ilegal de proventos de reforma por invali­ dez permanente que se revelem incompatíveis com o exercício de outra atividade laborai civil, seja em virtude da apresentação de declaração falsa perante a Marinha do Brasil: STJ, 3a Seção, CC 167.101/DF, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 25/09/2019, DJe 02/10/2019.

169. STF - HC 79.792/PA - 1a Turma - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 03/03/2000.

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o crime militar de estelionato (art. 251, caput, c/c art. 9o, III, “a”, ambos do CPMJ, na medida em que o delito atenta contra o patrimônio sob a adminis­ tração militar.170 Nesse caso, revela-se indevida a incidência da causa de aumento de pena prevista no § 3o do mesmo dispositivo (“a pena é agravada, se o crime é cometido em detrimento da administração militar”).171172 De fato, em relação ao civil, só haverá crime de estelionato se a vítima for a administração militar - combinação do tipo da parte especial (art. 251, caput, do CPM) com o tipo indireto do art. 9o, inciso III, alínea “a”, do CPM. Logo, crime cometido em detrimento da administração militar é uma ele­ mentar do crime militar de estelionato praticado por civil, mostrando-se inviável a incidência da causa de aumento de pena, sob pena de verdadeiro bis in idem.m Ao contrário do que foi visto anteriormente quanto à interpretação restritiva dos Tribunais Su­ periores em torno da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar civis, nessa hipó­ tese de crimes militares praticados por civil contra o patrimônio sob a administração militar (CPM, art. 9o, III, “a”), tem prevalecido a regra de que a competência deve ser fixada com base em critérios objetivos, pouco importando o elemento subjetivo do agente. Logo, cometido crime militar por civil contra o patrimônio sob a administração militar das Forças Armadas, estará fixada a competência da Justiça Militar da União, pouco importando se o agente agiu dolosa ou culposamente.173 Daí o motivo pelo qual a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu habeas corpus impetrado em fa­ vor de denunciado pela suposta prática do crime 170. Nesse sentido: STF - HC 84.735/PR - Ia Turma - Rei. Min. Eros Grau - DJ 03/06/2005.

171. Apesar de o art. 251, § 3o, do CPM, não dispor acerca do quantum de agravação, dispõe o art. 73 do Código Penal Militar que "quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem mencionar o quantum, deve o juiz fixá-lo entre 1/5 (um quinto) e 1/3 (um terço), guardados os limites da pena cominada ao crime". 172. No sentido de que o § 3o do art. 251 do Código Penal Militar se aplica ao militar da ativa, embora não se aplique ao civil nem ao militar inativo (reformado/reserva), já que, quanto a estes, só há crime de este­ lionato militar se a vítima for a administração militar: STF - HC 85.167/ SP - 2a Turma - Rei. Min. Joaquim Barbosa - DJ 02/02/2007 p. 159. 173. Recentemente, porém, o Ministro Luiz Fux deferiu pedido de medida liminar em habeas corpus para suspender processo em andamen­ to na Justiça Militar da União pela prática do crime de estelionato, em virtude de suposta movimentação de conta corrente de pensionista do Exército após seu falecimento. Nas palavras do Relator, a jurisprudência do Supremo - inspirada na tendência mundial de restringir ou, sob viés radical, de suprimir a competência castrense para julgar civis em tempo de paz - vem evoluindo no sentido de sujeitar à competência da Justiça Militar somente os civis cujas condutas violem bens jurídicos tipicamente

associados à função castrense, tais como a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem: STF, Medida Liminar no HC 114.559, DJe 183 17/09/2012.

de receptação culposa (CPM, art. 255), consistente na aquisição de cabos e fios elétricos pertencentes a estabelecimento militar da União. Entendeu-se que, não obstante o delito haver sido praticado por civil, a Justiça Militar da União seria a competente para o processamento do feito, tendo em conta tratar-se de crime militar impróprio, uma vez que somente está tipificado no CPM e que o bem encontrava-se sob administração militar. Ressaltou-se, também, não influir na definição da competência o fato de o paciente ter agido com dolo ou culpa e não haver de se cogitar da competência da Justiça Penal Estadual para tal hipótese.174 Por sua vez, por crimes militares contra a ordem administrativa militar compreendem-se as infrações que atingem a organização, a existência e a finalida­ de das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar. Eis a razão pela qual, ao apreciar conflito de competência relativo a crime de falsificação de documento militar por civil, o qual foi utilizado perante órgão sujeito à administração militar, concluiu o STJ tratar-se de crime militar.175

b) Do crime militar praticado por civil em lugar sujeito à administração militar contra militar da ativa. Na dicção do art. 9o, inciso III, alínea “b”, do Código Penal Militar, “consideram-se crimes mili­ tares, em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, con­ tra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, quando cometidos em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo”.

Ao contrário do crime militar do art. 9o, III, “a”, do CPM, que demanda que a infração seja praticada contra o patrimônio sob a administração militar, pouco importando o local, a tipificação do crime militar do art. 9o, III, “b”, do CPM, exige que o crime seja praticado por civil contra militar da ativa em lu­ gar sujeito à administração militar, conceito este que foi objeto de análise nos comentários à alínea “b” do inciso II do art. 9o do CPM. Por isso, pensamos que 174. STF - HC 86.430/SP - 2a Turma - Rei. Min. Gilmar Mendes - DJ 16/12/2005.

175. STJ, 3a Seção, CC 37.893/RJ, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 16/08/2004 p. 131. No sentido da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar a falsificação de atestado médico praticado por funcionário civil de instituição militar com a finalidade de abonar faltas injustificadas ao serviço em organização militar do Exército, na medida

em que referido delito afeta a ordem administrativa militar: STJ - CC 31.735/RJ - 3a Seção - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 11/09/2002 p. 272.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

andou mal o STJ ao apreciar o Conflito de Compe­ tência n° 115.311/PA. O caso concreto referia-se a furto de bem móvel (aparelho de som) pertencente a militar praticado por civil nas dependências de local sob a administração do Exército Brasileiro. Concluiu o STJ que a competência seria da Justiça Comum, visto que o bem furtado não faria parte do patrimônio público sob administração militar, daí por que não estaria presente nenhuma das hipóteses previstas no art. 9o, I e III, do CPM.176 Ora, ao con­ trário da alínea “a” do inciso III do art. 9o, a alínea “b” não exige que o crime seja cometido contra o patrimônio sob a administração militar. Na verdade, exige-se apenas que o crime militar cometido por civil contra militar da ativa seja praticado em lugar sujeito à administração militar, exatamente o que aconteceu no caso concreto. O teor do art. 9o, III, “b”, do CPM, deve ser ana­ lisado com cautela. Apesar de a alínea referir-se ao crime militar praticado por civil, quando cometido em lugar sujeito à administração militar, contra fun­ cionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo, há de se ter em mente que tais funcionários não são con­ siderados militares, mas sim funcionários públicos federais. Logo, eventual crime contra eles cometido não será considerado crime militar. Será, sim, con­ siderado crime comum, de competência da Justiça Federal, haja vista tratar-se de crime praticado em detrimento de serviços ou interesses da União (CF, art. 109, inciso IV), nos exatos termos da súmula 147 do STJ (“Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário pú­ blico federal, quando relacionados com o exercício da função”).

Em caso concreto envolvendo o oferecimento de vantagem indevida por civil a servidor da Justi­ ça Militar da União com o intuito de que deixasse de praticar ato de ofício (citação), entendeu a 3a Seção do STJ que a competência seria da Justiça Militar. Na visão do STJ, para fins de caracteriza­ ção do crime militar previsto no art. 9o, III, “b”, do CPM, não haveria necessidade de o crime ser praticado em lugar sujeito à administração militar, desde que o crime fosse cometido por civil con­ tra funcionário da Justiça Militar no exercício de 176. STJ, 3a Seção, CC 115.311/PA, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/03/2011. Estranhamente, a 1a Turma do STF tam­ bém concluiu pela competência da Justiça Comum para processar e julgar ofensas difamatórias praticadas por civil contra odontólogo militar em lugar sujeito à administração militar, sob o argumento de que as ofensas ficaram restritas à esfera pessoal da vítima de modo a macular somente a honra subjetiva desta: STF, 1a Turma, HC 116.870/CE, Rei. Min. Rosa Weber, j. 22/10/2013.

função inerente ao seu cargo. Logo, concluiu o STJ que, como o fato delituoso fora praticado contra funcionário da Justiça Militar, analista judiciário que cumpria mandado de citação, estariam presen­ tes as hipóteses do art. 9o, III, “b”, do CPM, parte final, atraindo a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento do feito, nos termos do art. 124 da CF.177 Mais uma vez, somos leva­ dos a acreditar que a 3a Seção do STJ laborou em equívoco. É bem verdade que o art. 9o, III, “b”, do CPM, faz menção ao crime cometido por civil em lugar sujeito à administração militar contra fun­ cionário da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo. Porém, não se pode perder de vista que tal dispositivo há de ser lido à luz da Constituição Federal de 1988, que outorga à Justiça Federal a competência para o processo e julgamento de crimes cometidos em detrimento de bens, serviços ou interesses da União (CF, art. 109, IV). Ora, se se trata de crime de corrupção ativa praticado por civil em desfavor de analista judiciário, funcionário público federal integrante do Poder Judiciário da União, é evidente que o cri­ me atenta contra interesse da União, daí por que a competência para o processo e julgamento do feito recai sobre a Justiça Federal, e não sobre a Justiça Militar, como equivocadamente concluiu o STJ. O art. 82, inciso II, do Código de Processo Penal Militar, também deve ser interpretado com extrema cautela. De acordo com esse dispositivo, o foro militar seria especial, e, exceto nos crimes doloso contra a vida praticados contra civil, a ele estariam sujeitos, em tempo de paz, nos crimes funcionais contra a administração militar ou con­ tra a administração da Justiça Militar, os auditores, os membros do Ministério Público, os advogados de ofício e os funcionários da Justiça Militar.

Ora, diante da Constituição Federal de 1988, há de se concluir que tal dispositivo também não foi recepcionado. De fato, se os Juízes-Auditores a que se refere o dispositivo são considerados “Juizes da União”, na medida em que pertencem ao Poder Judiciário da União, não poderão ser julgados pe­ rante a Justiça Militar, mas sim perante o respectivo Tribunal Regional Federal, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, nos exatos termos do art. 108, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal. Por sua vez, os membros do Ministério Público Militar, in­ tegrantes que são do Ministério Público da União, deverão ser julgados: a) membros que atuam na Ia 177. STJ, 3a Seção, CC 88.600/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 14/09/2011, DJe 29/09/2011.

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instância - Promotores de Justiça Militar e Procura­ dores da Justiça Militar - devem ser julgados peran­ te o respectivo Tribunal Regional Federal, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, de acordo com o art. 108,1, alínea “a”, da Constituição Federal; b) membros que atuam perante o Superior Tribunal Militar - Subprocuradores-gerais e Procurador-Ge­ ral do Ministério Público Militar - serão julgados perante o Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, inciso I, alínea “a”, da Constituição Fe­ deral. O advogado de ofício a que se refere o art. 82, inciso II, do CPPM, já existia desde o antigo Código de Justiça Militar (Dec.-lei 925/1938), segundo o qual o Advogado de Ofício era nomeado mediante concurso público, incumbindo-lhe funcionar, obri­ gatoriamente, como defensor das praças, na Justiça Militar, embora não fosse vedada a constituição de advogado. Com a Constituição de 1988 (art. 134) e a edição da Lei Complementar n° 80/94 (art. 138), os advogados de ofício que fizeram a opção tive­ ram o cargo transformado em Defensor Público da União. Destarte, como os Defensores Públicos Federais não são dotados de foro por prerrogativa de função, sendo consideradosfuncionários públicos federais, deverão ser processados e julgados perante a Justiça Federal (CF, art. 109, inciso IV, c/c a súmula 147 do STJ).

Por conseguinte, inobstante os dizeres da alínea “b” do inciso III do art. 9o do CPM, tendo-se em mente que a figura do assemelhado já não existe mais, considerando-se, ademais, que crimes come­ tidos contra funcionários de Ministério Militar ou da Justiça Militar são de competência da Justiça Fe­ deral, pensamos que a alínea em questão pode ser sintetizada como o crime militar praticado por civil contra militar da ativa em lugar sujeito à adminis­ tração militar.

Em julgado relacionado ao crime militar em análise, concluiu o STJ que, em se tratando de crime de desacato praticado por civil em lugar sujeito à ad­ ministração militar e contra militar no regular exer­ cício de suas funções, impõe-se o reconhecimento da Justiça Castrense para processar e julgar o feito, nos exatos termos do art. 9o, III, “b”, do CPM.178 De se notar que se esse mesmo delito de desacato tivesse sido praticado contra um policial militar, em razão de sua função, no interior de um quartel da Polícia Militar, não seria crime militar, mas sim crime comum de desacato do art. 331 do CP, a ser processado e julgado perante a justiça comum, na 178. STJ - CC 32.135/RJ - 3a Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido DJ 04/08/2003 p. 220.

medida em que a Justiça Militar Estadual não tem competência para julgar civis (CF, art. 125, § 4o).

c) Do crime militar praticado por civil contra mi­ litar em formatura, ou durante o período de pron­ tidão, vigilância, observação, exploração, exercí­ cio, acampamento, acantonamento ou manobras.

De acordo com o art. 9o, inciso III, alínea “c”, do Código Penal Militar, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as insti­ tuições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, quando cometidos contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observa­ ção, exploração, exercício, acampamento, acantona­ mento ou manobras.179 Na lição de Ayrton Oliveira Pinto, “formatura é o deslocamento marcial, cadenciado ou não, de tropa militar, devidamente comandada. Período de prontidão é um estado de alerta, em que as tropas estão prontas para operações. Vigilância e observa­ ção, sob o ponto de vista jurídico, se confundem, traduzindo um estado de espreita, de constante observação. Exploração é o reconhecimento de um terreno, o seu balizamento para a passagem das tro­ pas. Acampamento é o estacionamento temporário das tropas, que se abrigam em barracas, diferenciando-se do acantonamento, que é o estacionamento das tropas, também em caráter temporário, mas aproveitando-se de instalações adrede existentes. O bivaque, que a lei não diz expressamente, mas que se compreende entre o acampamento e o acanto­ namento, é o estacionamento temporário de tropas com o aproveitamento das condições naturais do terreno, como abrigo, tais como árvores e outras cobertas”.180

Aqui, como adverte Célio Lobão, “os requisi­ tos a serem considerados são formatura, prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acam­ pamento, acantonamento ou manobra, dos quais o militar encontra-se participando, efetivamente, no momento do crime. Todos eles dizem respeito à pre­ paração da tropa, para cumprimento da destinação constitucional, e às atribuições legais, incluindo-se a prontidão que é uma situação de alerta, durante o 179. Nas palavras de Jorge Alberto Romeiro, "acantonamento é a área de alojamento da tropa em local construído. Difere do acampamento, que é o local de estacionamento da tropa, em barracas, no campo, e criou a expressão castrense usada para designar o direito penal militar. Do latim castrensis, derivado de castra, orum = acampamento. Vocábulo esse do qual se originaram, ainda, castrametação, arte bélica de escolher o local para o acampamento, e castro, castelo fortificado, para defesa

militar" (op. cit. p. 84). 180. Elementos de Direito Penal Militar. Apex, 1975. p. 57.

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estado de defesa, de sítio (arts. 136 e 137 da Cons­ tituição), ou em situações especiais de calamidade, sinistro de grandes proporções, comoção interna, visita de chefe de governo estrangeiro, etc.”.181 d) Do crime militar praticado por civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, con­ tra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação le­ gal superior. Quanto ao presente crime militar, assim como em relação aos demais crimes militares praticados por civis, tem havido séria controvérsia quanto ao conceito de “função de natureza militar”.182 Como exposto no item 1.4, tem prevalecido o entendimento jurisprudencial de que essa função de natureza militar a que se refere a alínea “d” do inciso III do art. 9o do CPM deve estar relacionada às atribuxções precípuas das Forças Armadas, cujos contornos estão bem delineados pelo art. 142 da Carta Magna. Assim, eventual crime praticado contra militar que se encontre no exercício de uma função subsidiária das Forças Armadas não seria considerado crime militar. Não por outro motivo, em caso concreto relativo a civis denunciados por crimes de resistência e desacato praticados contra militares no desempenho de funções de polícia na­ val, entendeu-se não haver crime militar, mas sim crime comum de competência da Justiça Federal (CF, art. 109, IV). Sendo o policiamento naval atri­ buição, não obstante privativa da Marinha de Guer­ ra, de caráter subsidiário, por força de lei, não seria possível, por sua índole, caracterizar essa atividade como função de natureza militar, na medida em que 181. Op. cit. p. 139.

182. Para parte da doutrina, "a funçào de natureza militar distingue-se de outro serviço do qual é incumbido o militar, serviço esse que não é próprio de integrante de organização militar, conquanto seja indis­ pensável ao funcionamento, à manutenção, à própria existência da cor­ poração castrense. Assim sendo, encontra-se em serviço o militar que realiza a limpeza, a manutenção do estabelecimento militar, a aquisição de gêneros alimentícios e de outros bens, preparo de refeições, recupe­ ração e manutenção dos meios de transporte militares, além de outras atribuições dessa espécie. A distinção entre função de natureza militar e serviço assume relevância porque somente a primeira ingressa como requisito suficiente para classificar, como militar, o delito praticado pelo civil contra militar, em conformidade com a alínea d, 1a parte, do inciso III, c/c o inciso II, 2a parte, tudo do art. 9o. Realmente, não é militar o delito cometido pelo civil contra militar em serviço que não se ajusta ao conceito de função de natureza militar, nem ao de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem. Nesse sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Federal que não considerou como função de natureza militar o serviço de policiamento de trânsito, executado por militares do Exército, próximo ao Palácio Duque de Caxias, no Rio, o que se aplica aos militares de outras armas nessa mesma função". (LOBÃO, Célio. Op. cit. p. 145).

seu exercício também pode ser cometido a servido­ res não militares da Marinha de Guerra.183 Com a devida vênia, quando a Constituição Fe­ deral e a legislação ordinária atribuem às Forças Ar­ madas suas atribuições, de modo algum diferenciam entre atribuições primárias e subsidiárias. Destarte, se o militar se encontra no exercício de função legal­ mente a ele atribuída - compreendendo-se função militar como o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar (Estatuto dos Militares - art. 23 da Lei n° 6.880/80) -, não conseguimos visualizar a razão desse crime não ser considerado militar. Perceba-se que a própria Constituição Federal, em seu art. 142, coloca em posição de igualdade as atribuições principais (defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais) e as secundárias (garantia da lei e da ordem).184 Registre-se que o próprio Supremo Tribunal Fe­ deral já teve a oportunidade de se manifestar nesse sentido, em julgado relativo ao naufrágio do Bateau Mouche no Rio de Janeiro. Versava o caso concreto acerca de corrupção ativa praticada por civil, com o fim de obter do sargento encarregado do policia­ mento naval a liberação da lancha que estaria con­ duzindo passageiros acima de sua capacidade. Ora, se considerássemos que esse militar estaria no exer­ cício de uma atribuição de caráter subsidiário da Marinha, a competência, na linha do entendimento anterior, deveria ser da Justiça Federal. No entanto, como se admitir que o recebimento de vantagem indevida por um Sargento da Marinha não atente contra as instituições militares, de modo a atrair a competência para a Justiça Militar da União? De modo acertado, a nosso ver, a Io Turma do Supremo Tribunal Federal concluiu tratar-se de crime militar de competência da Justiça Militar da União.185 No 183. STF - HC 68.928/PA - 2a Turma - Rei. Min. Néri da Silveira - DJ 19/12/1991. Assim, como a atividade de policiamento naval, desenvolvida por militar, por ser subsidiária, administrativa, não tem o condão de atrair a incidência do disposto na alínea "d"do inciso III do artigo 9o do Código Penal Militar. A competência da Justiça Militar pressupõe, na visão do Supremo, prática contra militar em função que lhe seja própria: STF - CC

7.030/SC -Tribunal Pleno - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 31/05/1996.

184. Segundo Lobão, a função de natureza militar é o conjunto de atribuições conferidas, por disposição legal ou por determinação de auto­ ridade competente, ao militar federal ou ao militar estadual, na condição de integrante de corporação militarizada. Essa atribuição, segundo o autor, não se restringe à atividade bélica contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e, por outro lado, defesa das instituições de­ mocráticas, mas também as denominadas atribuições subsidiárias, entre elas, o exercício da polícia naval, aérea e a de fronteira, a segurança de personalidades estrangeiras, atividades pertinentes à prestação do ser­ viço militar, além de outras, que podem ser exercidas, igualmente, por civis, (op. cit. p. 143).

185. STF - RE 121.124/RJ - 1a Turma - Rei. Min. Octavio Gallotti - DJ 08/06/1990). Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União para processar e julgar ação penal promovida contra civil que cometeu crime de desacato contra militar da Marinha do Brasil em atividade de

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mesmo contexto, em caso concreto em que um civil descumpriu ordem de soldado do exército em ser­ viço externo de policiamento de trânsito defronte a quartel, concluiu a Ia Turma do STF competir à Justiça Militar da União o processo e julgamento do delito de desobediência (CPM, art. 301), nos termos do art. 9o, III, alínea “d”, do Código Penal Militar.186

Ainda em relação à função de natureza mili­ tar, não se pode perder de vista que, além da destinação à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, a Lei Complementar n° 97/99 também outorga às Forças Armadas o cumprimen­ to de atribuições subsidiárias, cujo conhecimento é importante para fins de fixação da competência da Justiça Militar. Se as atividades listadas no art. 15, § 7o, da LC 97/99, com redação dada pela LC 136/10, são consideradas atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal, eventual crime co­ metido por civil contra militar no exercício de tais funções deveria ser considerado crime militar para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, nos exatos termos do art. 9o, III, alínea “d”, do Código Penal Militar. No entanto, parece caminhar em sentido diver­ so o entendimento dos Tribunais Superiores. Em caso concreto envolvendo civil que teria desacatado militar no contexto de atividade de policiamento ostensivo em virtude do processo de ocupação e pacificação de comunidades cariocas em ambiente estranho ao da Administração Castrense, concluiu a 2a Turma do STF recair sobre a Justiça Federal a competência para processar e julgar o feito. Sope­ sou-se que a mencionada atividade seria de índole eminentemente civil, porquanto envolvería típica natureza de segurança pública, a afastar o ilícito penal questionado da esfera da justiça castrense. Pontuou-se que instauraria - por se tratar de agente público da União - a competência da justiça federal comum (CF, art. 109, IV). Constatou-se que o Su­ premo, ao defrontar-se com situação assemelhada, não considerara a atividade de policiamento osten­ sivo função de natureza militar.187 patrulhamento naval, porquanto se trata de crime praticado contra mili­ tar no exercício de funções que lhe foram legalmente atribuídas, sendo de todo irrelevante qualquer indagação quanto à natureza primária ou subsidiária de tal função: STJ, 3a Seção, CC 130.996/PA, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 12/2/2014. 186. STF, Ia Turma, HC 115.671/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 13/08/2013. 187. STF, 2a Turma, HC 112.936/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, j. 05/02/2013, DJe 93 16/05/2013. De se lembrar que encontra-se em trâ­ mite no STF a ADI 5.032, que tem como objetivo precípuo a declaração da inconstitucionalidade do art. 15, § 7o, da LC 97/99, que inseriu na

1.5.5. Dos crimes dolosos contra a vida prati­ cados por militares contra civis a) Lei n. 9.299/96

Dentre outras alterações, a Lei n° 9.299/96 acrescentou um parágrafo único ao art. 9o do Có­ digo Penal Militar, segundo o qual “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”. Pela mesma lei foi acrescentado o § 2o ao art. 82 do CPPM, determinando que, quanto a tais crimes, a Justiça Militar deva encaminhar os au­ tos do inquérito policial militar à justiça comum.188 Parte minoritária da doutrina entende que o dispositivo seria dotado de flagrante inconstitucio­ nalidade, pelos seguintes motivos: a) a Constituição enuncia que compete à Justiça Militar Federal e es­ tadual julgar os crimes militares definidos em lei (art. 124 e 125, § 4o); b) os crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil, em local sob administração militar, ou em serviço, são crimes militares (art. 205, c/c o art. 9o, II); c) a lei ordinária não pode suprimir a competência da Justiça Militar para processar e julgar os delitos militares definidos em lei, inclusive os crimes dolosos contra a vida pra­ ticados por militar contra civil, nas circunstâncias expressas nas alíneas b a d do inciso II do art. 9o. Parece caminhar nessa direção o Superior Tribunal Militar, órgão de 2a instância no âmbito da Justiça Militar da União, que vem declarando incidenter tantum a inconstitucionalidade da Lei n° 9.299/96 no que tange à inserção do parágrafo único ao art. 9o do Código Penal Militar, para continuar consi­ derando como crime militar o delito de homicídio doloso praticado por militar das Forças Armadas em serviço contra civil.189

Em que pese tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça pacificaram a questão em torno da constitucio­ nalidade do referido dispositivo, deliberando pela manutenção da competência do Tribunal do júri para processar e julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis. Se o parágrafo único do art. 9o do CPM dispunha, à época, que os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos no exercício das atribuições subsidiárias das Forças Armadas. 188.0 § 2o do art. 82 do CPPM foi objeto da AD11.494/DF: o STF negou a liminar, porque o IPM não impede a instauração paralela de inquéri­ to policial pela Polícia Civil. Ocorre que esta ADI não teve seguimento, porquanto foi reconhecida a ilegitimidade da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil.

189. STM, RC n° 6.449-0/RJ, DJ 22/04/1998.

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competência da Justiça Comum, e tendo em conta que este parágrafo único fora inserido no artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz (art. 9o), é de se concluir que os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil foram implicitamente excluídos do rol dos crimes considerados como militares pelo CPM. Tal entendimento é corroborado pelo fato de o art. 82 do CPPM também ter sido modificado pela Lei n° 9.299/96, passando a excetuar do foro militar, que é especial, as pessoas a ele sujeitas quando se tratar de crime doloso contra a vida em que a vítima seja civil, e estabelecendo-se que nesses crimes a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum.190 À época, portanto, crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil, independentemen­ te de o militar estar ou não em serviço, deveríam ser invariavelmente processados e julgados perante o Tribunal do Júri. Em se tratando de militares dos Estados, a competência seria do Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Comum Estadual; cuidando-se de militares das Forças Armadas, de Tribunal do Júri Federal. Quanto à Justiça Militar estadual, tal com­ petência encontra acolhida na própria Constituição Federal, na medida em que o art. 125, § 4o, da Carta Magna, com redação dada pela Emenda Constitucio­ nal n° 45/04, ressalva expressamente a competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil. Como a competência, em regra, é fixada com base em critérios objetivos, independentemente da análise do elemento subjetivo do agente, nas hipó­ teses de aberratio ictus, deve ser levada em conside­ ração a pessoa sobre a qual recaiu a conduta, pouco importando quem seja a chamada “vítima virtual”. Como se sabe, no erro na execução, previsto no art. 73 do Código Penal, o agente quer atingir uma pes­ soa, porém, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, vem a atingir pessoa diversa. Nesse caso, para fins penais, responde como se tivesse atin­ gido a pessoa que pretendia ofender. Para fins de fixação da competência, todavia, importa a vítima real. Por conseguinte, se um militar da ativa, com animus necandi, efetua disparos de arma de fogo contra outro militar da ativa, porém acaba matan­ do um civil por erro na execução, deve responder perante o Tribunal do Júri, e não perante a Justiça Militar.191 190. Nesse sentido: STF - RE 260.404/MG - Tribunal Pleno - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 21/11/2003. Na mesma linha: STJ - HC 102.227/ES - 5a

Ao Tribunal do Júri compete apenas o processo e julgamento de crime doloso contra a vida prati­ cado por militar contra civil. Logo, na hipótese de troca de tiros entre policiais militares em serviço e foragido da Justiça que, após resistir à ordem de recaptura, for alvejado, deve ser reconhecida a com­ petência da Justiça Militar para processar e julgar eventual crime de lesão corporal, desde que eviden­ ciada a ausência de animus necandi por parte dos militares.192 Na visão da 3a Seção do STJ, havendo dúvidas sobre a existência do elemento subjetivo do crime de homicídio, deverá tramitar na Justiça Comum - e não na Justiça Militar - o processo que apure a su­ posta prática do crime cometido, em tempo de paz, por militar contra civil. Para se eliminar a eventual dúvida quanto ao elemento subjetivo da conduta, de modo a afirmar se o agente militar agiu com dolo ou culpa, é necessário o exame aprofundado de todo o conjunto probatório, a ser coletado durante a instrução criminal, observados o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Dessa for­ ma, o feito deve tramitar na Justiça Comum, pois, nessa situação, prevalece o princípio do in dubiopro societate, o que leva o julgamento para o Tribunal do Júri, caso seja admitida a acusação em eventual pronúncia. No entanto, se o juiz se convencer de que não houve crime doloso contra a vida, remeterá os autos à Justiça Militar, em conformidade com o disposto no art. 419 do CPP.193 A despeito das alterações produzidas pela Lei n° 9.299/96, não se pode concluir que, à época, a Justiça Militar não mais teria competência para processar e julgar crimes dolosos contra a vida. Subsistia a competência da Justiça Castrense para processar e julgar os seguintes crimes dolosos contra a vida:

1. Homicídio doloso cometido por militar da ativa contra militar da ativa (art. 205, caput, c/c art. 9o, inciso II, alínea “a”, ambos do CPM): por isso, em caso concreto relativo a homicídio doloso pratica­ do por policiais militares em situação de atividade contra militar de folga, concluiu a 3a Seção do STJ que o homicídio praticado contra o PM deveria ser julgado pela Justiça Militar Estadual, ao passo que o delito perpetrado contra a civil deveria ser processa­ do perante o Tribunal do Júri.194 Em sentido diverso, todavia, ao apreciar o Conflito de competência n° 91.267, a 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça 192. STJ, 3a Seção, CC 120.201/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 25/04/2012.

Turma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 19/12/2008.

193. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, CC 129.497/MG, Rei. Min. Ericson Maranho - Desembargador convocado doTJ/SP -, j. 08/10/2014.

191. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 27.368/SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 27/11/2000 p. 123.

194. STJ, 3a Seção, CC 96.330/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, jul­ gado em 22/04/2009.

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concluiu que crime doloso contra a vida cometido por militar fora do exercício do serviço, sem farda, e com motivação completamente alheia à função, contra outro militar, deve ser julgado pela Justiça Comum Estadual (Tribunal do Júri), porquanto tal conduta não se enquadra nas hipóteses do arti­ go 9o do CPM.195 Na mesma linha, ao julgar o CC 184.070, a 3a Seção do STJ concluiu que compete à Justiça Comum julgar crime de homicídio doloso em que a vítima e o réu, ambos policiais militares, estavam fora de serviço à época dos fatos, o primei­ ro de folga, e o segundo afastado, trabalhando em atividade de vigilância privada, sem farda e sem a utilização de arma da guarnição.196 Com a devida vênia, para fins de fixação da competência da Jus­ tiça Militar, não se pode confundir o crime militar praticado por militar da ativa contra militar da ativa (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “a”), em que o Código exige nada além de que sujeito ativo e passivo como militares em situação de atividade (art. 3o, § Io, alí­ nea “a”, da Lei n° 6.880/80), independentemente de estarem ou não em serviço quando da prática do delito, com o crime militar praticado por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “c”), o qual, ao contrário do anterior, demanda que o militar pratique o delito no exercício funcional. Portanto, se o crime de homicídio doloso foi cometido por militar da ativa (PM) contra outro militar da ativa (PM), pouco importa se o delito foi cometido fora do exercício do serviço e com motivação alheia à função: a competência será da Justiça Militar, ex vi do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM;

2. Homicídio doloso cometido por civil con­ tra militar das Forças Armadas em serviço (art. 205, caput, c/c art. 9o, inciso III, alíneas “b”, “c”, ou “d”): ao apreciar habeas corpus relativo a homicídio qualificado praticado por civil contra militar da For­ ça Aérea Brasileira, que se encontrava de sentinela em posto de vila militar, concluiu a Suprema Corte tratar-se de crime militar, haja vista ter sido prati­ cado por civil contra militar em função de nature­ za militar no desempenho de serviço de vigilância (CPM, art. 9o, inciso III, “d”), estando presentes 4 (quatro) elementos de conexão militar do fato: a) a condição funcional da vítima, militar da aeronáu­ tica; b) o exercício de atividade fundamentalmente militar pela vítima, serviço de vigilância; c) o local do crime, vila militar sujeita à administração militar 195. STJ - CC 91.267/SP - 3a Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 22/02/2008 p. 164. 196. STJ, 3a Seção, CC 184.070, j. 17.11.2021.

e d) o móvel do crime, roubo de arma da Força Aé­ rea Brasileira - FAB.197 Esse raciocínio só é válido quando o sujeito passivo for militar federal, pois, caso a vítima desse homicídio doloso praticado por civil seja um policial militar em serviço, a compe­ tência será do Tribunal do Júri, na medida em que a Justiça Militar Estadual não tem competência para processar e julgar civis (CF, art. 125, § 4o).

Se o militar da reserva ou reformado também é considerado civil para fins de aplicação da lei penal militar, dever-se-ia concluir que eventual crime de homicídio doloso praticado por militar da ativa em serviço contra esse militar em situação de inativi­ dade também deveria ser julgado por um Tribunal do Júri, em fiel observância ao quanto disposto no art. 9o, parágrafo único, do CPM. Estranhamente, todavia, concluiu a 5a Turma do STJ ser a Justiça Militar o juiz natural para o processo e julgamento de homicídio praticado por militar da ativa em ser­ viço contra militar reformado, nos termos do art. 9o, II, “c”, do CPM, pois o fato de a vítima do delito ser militar reformado, por si só, não teria o condão de afastar a competência da Justiça especializada. Na visão do STJ, ao dispor que são da competência da Justiça Comum os crimes nele previstos quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, o parágrafo único do art. 9o do CPM não teria excluí­ do da competência da Justiça Militar o julgamento dos ilícitos praticados nas circunstâncias especiais descritas nos incisos I, II e III do referido artigo.198 b) Desclassificação da imputação de homicídio doloso pelo Juiz Sumariante.

Como é cediço, ao final da primeira fase do procedimento bifásico do Tribunal do Júri, ao juiz sumariante é dado adotar uma das seguintes deci­ sões: pronúncia, impronúncia, absolvição sumária e desclassificação. Imaginando-se que um militar esteja sendo processado pela suposta prática de ho­ micídio doloso contra civil, caso o juiz sumariante conclua pela não-existência de crime doloso contra a vida, deve remeter os autos à auditoria militar. Questiona-se, todavia, se o juízo militar estaria vin­ culado à decisão proferida pelo juiz sumariante. Essa discussão foi levada ao Superior Tribunal de Justiça, o qual decidiu que a desclassificação para homicí­ dio culposo pelo juiz sumariante de modo algum 197. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de ser constitucional o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de militar em serviço pela justiça castrense, sem a submissão destes crimes ao Tri­ bunal do Júri, nos termos do o art. 9o, inc. III, "d", do Código Penal Militar:

STF, 1a Turma, HC 91.003/BA, Rei. Min. Cármen Lúcia, Dje 072 02/08/2007. 198. STJ, 5a Turma, HC 173.131 /RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 06/12/2012, DJe 15/02/2013.

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vincularia o juízo militar, que poderia suscitar con­ flito de competência para apreciação da questão.199

De todo modo, é importante frisar que essa desclassificação pelo juiz sumariante somente será possível quando o juiz sumariante estiver plenamen­ te convencido de que não se trata de crime dolo­ so contra a vida praticado por militar contra civil. Logo, se, ao final da Ia fase do procedimento do júri, subsistir dúvida em relação ao elemento subjetivo do agente (animus necandi), e, por consequência, indefinição quanto à competência para o processo e julgamento do feito - em se tratando de tentativa de homicídio doloso praticado por policial militar contra civil, competência da Justiça Comum; na hi­ pótese de lesão corporal, competência da Justiça Mi­ litar -, deve o processo tramitar no juízo comum por força do princípio in dúbio pro societate, porquanto o acusado somente pode ser subtraído de seu juiz natural mediante prova inequívoca. Assim, diante da ausência de prova inconteste e tranquila sobre a falta do animus necandiy há que declarar competente o juízo de direito do Tribunal do Júri.200

c) Desclassificação pelos jurados para crime não doloso contra a vida e competência para o julga­ mento do crime militar. O que acontece se os jurados, ao votarem, pro­ cederem à desclassificação da imputação de homicí­ dio doloso, concluindo, v.g., pela existência do crime de lesões corporais seguidas de morte praticado por militar em serviço contra civil? Nessa hipótese, não será possível a aplicação da regra do art. 492, § Io, Ia parte, do CPP, segundo a qual “se houver desclassifi­ cação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida”. De fato, somente os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil serão processados e julgados perante o Tribunal do Júri.

Se os jurados concluíram não se tratar de crime doloso contra a vida praticado por militar contra ci­ vil, depreende-se que tal crime deixa de ser conside­ rado crime comum, retornando à condição de crime militar, razão pela qual não pode ser julgado pelo Juiz-Presidente do Tribunal do Júri. Não se afigura possível a prorrogação da competência nessa hipó­ tese, pois se trata de competência absoluta em razão da matéria, logo, inderrogável. Portanto, se esse cri­ me de lesões corporais seguidas de morte tiver sido praticado por militar em serviço ou atuando em

199. STJ, 3a Seção, CC 35.294/SP, Rei. Min. Paulo Gallotti, DJ 18/04/2005 p.211.

200. STJ, 3a Seção, CC 113.020/RS, Rei. Min. Og Fernandes, j. 23/03/2011.

razão da função - crime militar nos exatos termos do art. 209, § 3o, in fine, c/c art. 9o, inciso II, “c”, ambos do CPM -, compete ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri determinar a remessa dos autos à Justiça Militar, a quem compete processar e julgar o referido crime militar.201

d) Tiro de abate e a competência da Justiça Militar da União para o seu julgamento (Lei n. 12.432/11).

De modo a coibir o tráfico de drogas na região amazônica, coube ao Ministério da Aeronáutica, atual Comando da Aeronáutica, a tarefa de desen­ volver o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), planejado e implantado com o propósito de estabelecer uma nova ordem na região, permitindo que voos clandestinos passassem a ser registrados, possibilitando a interceptação pelas aeronaves da Força Aérea. No entanto, diante da possibilidade de descumprimento das determinações estabeleci­ das pelas aeronaves militares, havia a necessidade de implementação legal de uma medida coercitiva. Daí por que foi criado o denominado tiro de abate (ou destruição). Com as modificações produzidas pela Lei n° 9.614/98, passou a constar do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) que a aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos: I - se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das au­ torizações para tal fim; II - se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional; III - para exame dos certificados e outros documentos indispensá­ veis; IV - para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21); V para averiguação de ilícito. Segundo o art. 303, § Io, do referido Código, a autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para com­ pelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado. Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autorida­ de por ele delegada (CBA, art. 303, § 2o). Por sua vez, segundo o art. 303, § 3o, a autoridade mencionada no § Io responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.

201. É essa a posição do Supremo: STF, Pleno, RHC 80.718/RS, Rei. Min.

limar Galvão, DJ 01°/08/2003 p. 106.

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Em 2004, foi editado o Decreto n° 5.144, regu­ lamentando os §§ Io, 2o e 3o do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, estabelecendo os proce­ dimentos a serem seguidos com relação às aerona­ ves suspeitas, levando em conta que estas podem representar ameaça à segurança pública. Para fins de aplicação da legislação que trata da medida de destruição, é considerada aeronave suspeita de tráfi­ co de substância entorpecentes e drogas afins aquela que: I - adentrar o território nacional, sem Plano de voo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilíci­ tas; ou II - omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não cumprir determinações destes mesmos ór­ gãos, se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de drogas ilícitas (Dec. 5.144/2004, art. 2o).

Especificamente quanto à competência para o processo e julgamento do tiro de abate, o parágrafo único do art. 9o do Código Penal Militar foi altera­ do pela Lei n° 12.432/11, e passou a ter a seguinte redação: “Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil se­ rão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei n° 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica”. e) Lei n. 13.491/17.

A competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por mi­ litares contra civis foi novamente alterada, desta vez pela Lei n. 13.491/17. O art. 9o, §1°, do CPM, passou a ter a seguinte redação: “Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri”. Mantém-se, grosso modo, a regra já trabalhada por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 9.299/96. A novidade fica por conta do art. 9o, §2°, do CPM, incluído pela Lei n. 13.491/17, que prevê a competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis se praticados em um dos contextos ali elencados. Importante perceber que o art. 9o, §2°, do CPM, incluído pela Lei n. 13.491/17, outorga essa competência para o processo e julgamento de cri­ mes dolosos contra a vida cometidos por milita­ res contra civis exclusivamente à Justiça Militar da União. E nem poderia ser diferente, sob pena de manifesta inconstitucionalidade. Afinal, ao tratar da competência da Justiça Militar Estadual, a própria

Constituição Federal já ressalva a competência do Júri quando a vítima for civil (art. 125, §4°). Por isso, o novel dispositivo do CPM faz referência apenas à Justiça Militar da União e aos militares das Forças Armadas. Aliás, mesmo que um crime doloso contra a vida de civil seja cometido em coautoria por um militar do Exército e outro da Polícia Militar em serviço - como, por exemplo, durante uma atuação conjunta da Força Nacional de Segurança -, a sepa­ ração dos feitos será de rigor. Aquele será julgado pela Justiça Militar da União; este, pelo Tribunal do Júri. A uma porque a Constituição Federal é explíci­ ta ao ressalvar a competência do júri em relação aos militares estaduais. A duas porque o art. 9o, §2°, do CPM, incluído pela Lei n. 13.491/17, é categórico ao conferir essa competência apenas em relação aos militares das Forças Armadas. A outorga dessa nova competência à Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por milita­ res das Forças Armadas contra civis não se revela incompatível com a competência constitucional do Júri. Por mais que a Constituição Federal atribua ao Tribunal do Júri a competência para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”), essa mesma Constituição também que dispõe que compete à Justiça Militar da União o julgamento dos crimes militares definidos em lei (art. 124, caput). Logo, por força do princí­ pio da especialidade, se a Lei n. 13.491/17 optou por outorgar essa competência à Justiça Castrense Federal, não há falar em inconstitucionalidade por tal motivo. De mais a mais, como exposto anterior­ mente, diversamente do que ocorre em relação à Justiça Militar Estadual (CF, art. 125, §4°), ao tratar da competência da Justiça Militar da União, a Cons­ tituição Federal não faz nenhuma ressalva quanto à competência do júri quando a vítima for civil.

A Lei n. 13.491/17 não instituiu um Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Militar da União. Na verdade, se o crime doloso contra a vida cometido por militar das Forças Armadas contra civil for co­ metido num dos contextos elencados nos incisos do §2° do art. 9o do CPM, tal delito continuará sendo julgado por um Conselho de Justiça (Permanente ou Especial). A nosso juízo, nada impede a criação de um Tribunal do Júri Militar. Porém, para tanto, há necessidade de alteração legislativa. Afinal de contas, é a própria Constituição Federal que reco­ nhece a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei (art. 5o, XXXVIII). Diversamente da Justiça Estadual (CPP, arts. 406 a 497) e da Justiça Federal (art. 4o do Dec. Lei n. 253/67), a organização do Júri no âmbito da Justiça Militar não foi objeto

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de organização pela Lei n. 13.491/17. Logo, não se pode concluir que a outorga de competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida tenha o condão de suprir tal lacuna. Vejamos, então, os contextos em que esses cri­ mes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis deverão ser julga­ dos pela Justiça Militar da União: I - cumprimento de atribuições que lhes fo­ rem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa: a título de exemplo, podemos citar a utilização das Forças Ar­ madas para atividades de defesa civil, como, por exemplo, distribuição de alimentos e remédios em alguma região que passou por calamidade pública (Decreto n. 895/93, art. 10, II, III e X); utilização das Forças Armadas em obras de construção civil (v.g., transposição do Rio São Francisco, duplicação da BR-101, etc.); II - crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis pra­ ticados no contexto de ação que envolva a segu­ rança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante: cuida-se de hipótese que pode ocorrer na rotina de serviço de qualquer instituição militar, como, por exemplo, a sentinela de um quartel da Aeronáutica que comete homicí­ dio doloso contra um civil que tentava ingressar na organização militar;

III- atividade de natureza militar, de opera­ ção de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformi­ dade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: a) Lei n. 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica): o denomina­ do tiro de abate já foi objeto de análise;

b) Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999: este diploma normativo, que foi objeto de análise nos comentários ao art. 9o, inciso II, alínea “c”, do CPM, versa sobre as normas gerais para a or­ ganização, o preparo e o emprego das Forças Arma­ das. Sem dúvida alguma, a hipótese mais comum de emprego das Forças Armadas prevista na LC 97/99 (art. 15, §§2°, 3o, 4o, 5o e 6o) é a garantia da lei e da ordem.202 Tome-se como exemplo a recente utilização 202. Caso antigo atinente a crime doloso contra a vida cometido por militar das Forças Armadas no exercício da garantia da lei e da ordem contra civil diz respeito ao episódio ocorrido no Rio de Janeiro nos idos de 2008, em que 11 (onze) militares do Exército teriam sido supostamente responsáveis pela entrega de 3 (três) moradores do Morro da Providên­ cia a traficantes de uma facção rival, do morro da Mineira, onde foram torturados e assassinados.

do Exército na comunidade da Rocinha, autorizada pelo Decreto de 28 de julho de 2017, cujo art. Io dis­ põe: “Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017”. A LC 97/99 (art. 16-A) também confere às Forças Armadas, como atribuições subsi­ diárias, a atuação, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, contra delitos transfronteiriços e ambientais, por meio de ações de patrulhamento, revista de pessoas, de veículos terrestres, de embar­ cações e de aeronaves, prisões em flagrante delito, etc. Nesses casos, na eventualidade de um militar das Forças Armadas cometer um crime doloso contra a vida de civil, a competência será da Justiça Militar Federal; c) Decreto-Lei n. 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar: na eventualidade de um militar das Forças Armadas estar no exercício de funções previstas no Código de Processo Penal Militar, como, por exemplo, no exercício de atribuições de polícia judiciária mili­ tar (v.g., cumprimento de um mandado de busca domiciliar), e cometer um crime doloso contra a vida de civil, tal fato deverá ser julgado pela Justiça Militar da União;

d) Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965 - Có­ digo Eleitoral: é extremamente comum o emprego das Forças Armadas para garantir a segurança do processo eleitoral. A propósito, o Código Eleitoral dispõe em seu art. 23, XIV, que compete, privativa­ mente, ao Tribunal Superior Eleitoral requisitar a força federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões ou das decisões dos Tribu­ nais Regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a apuração. A título de exemplo, o Decreto de 24 de julho de 2017 do Presidente da República autorizou o emprego das Forças Armadas para a garantia da votação e da apuração das eleições su­ plementares no Estado do Amazonas (art. Io). Por conseguinte, se um militar das Forças Armadas praticar um crime doloso contra a vida de civil no exercício dessas funções, deverá ser processado e julgado pela Justiça Militar da União.

1.5.6. Dos crimes militares praticados em tem­ po de guerra De acordo com o art. 10 do Código Penal Mi­ litar, consideram-se crimes militares, em tempo de guerra: I - os especialmente previstos neste Código para o tempo de guerra. Da análise da Parte Especial

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do estatuto penal castrense, percebe-se que o CPM é dividido em dois livros: a) Livro I - Dos crimes militares em tempo de paz; b) Livro II - Dos crimes militares em tempo de guerra. Nesse Livro II, temos os crimes previstos para o tempo de guerra, tais como os de traição, previsto no art. 355 (“Tomar o nacional armas contra o Brasil ou Estado aliado, ou prestar ser­ viço nas forças armadas de nação em guerra contra o Brasil”), ou o de covardia (CPM, art. 363. “Subtrair-se ou tentar subtrair-se o militar, por temor, em presen­ ça do inimigo, ao cumprimento do dever militar”); II - os crimes militares previstos para o tempo de paz; III - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum ou especial, quando praticados, qualquer que seja o agente: a) em território nacional, ou estrangei­ ro, militarmente ocupado; b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem comprometer a preparação, a eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a segurança externa do País ou podem expô-la a perigo; IV - os crimes de­ finidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território es­ trangeiro, militarmente ocupado.

2. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA ELEITORAL A Carta Magna não estabelece a competência da Justiça Eleitoral, remetendo o assunto à lei com­ plementar. Dispõe, nesse sentido, o art. 121, caput, da Constituição Federal, que lei complementar dis­ porá sobre a organização e competência dos tribu­ nais, dos juizes de direito e das juntas eleitorais.

Embora editado como lei ordinária, o Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65) foi recepcionado pela Constituição Federal como lei complementar, mas tão somente no que tange à organização judiciária e competência eleitorais, tal qual prevê a Carta Magna (CF, art. 121, caput). Portanto, no tocante à definição dos crimes eleitorais, as normas postas no Código Eleitoral mantêm o status de lei ordinária. A competência criminal da Justiça Eleitoral é fixada em razão da matéria, cabendo a ela o proces­ so e julgamento dos crimes eleitorais. Mas o que se deve entender por crimes eleitorais?

Como adverte a doutrina, somente são crimes eleitorais os previstos no Código Eleitoral (v.g., crimes contra a honra praticados durante a pro­ paganda eleitoral203* , denunciação caluniosa com 203. Os crimes contra a honra prescritos no Código Eleitoral exigem finalidade eleitoral para que restem configurados. Sendo o eventual crime

finalidade eleitoral204, etc.) e os que a lei, eventual e expressamente, defina como eleitorais.205 Todos eles referem-se a atentados ao processo eleitoral, que vai do alistamento do eleitor (ex: falsificação de título de eleitor para fins eleitorais - art. 348 do Código Eleitoral206) até a diplomação dos eleitos. Crime que não esteja no Código Eleitoral ou que não tenha a expressão definição legal como eleitoral, salvo o caso de conexão, jamais será de competência da Justiça Eleitoral.207 A motivação política ou mesmo eleitoral não é suficiente para definir a competência da Justiça Es­ pecial de que estamos tratando. Da mesma forma, a existência de campanha eleitoral é irrelevante, pois, de per si, não é suficiente para caracterizar os cri­ mes eleitorais à falta de tipificação legal no Código Eleitoral ou em leis eleitorais extravagantes. Assim, por exemplo, a prática de um homicídio, ainda que no período que antecede as eleições, e mesmo que por motivos político-eleitorais, será julgado pelo Júri comum, porquanto tal delito não é elencado como crime eleitoral.

Ao discorrer sobre a organização dos crimes eleitorais, Joel José Cândido apresenta a seguinte classificação: a) crimes contra a organização admi­ nistrativa da Justiça Eleitoral: arts. 305 e 306; arts. 310 e 311; art. 318 e 340 do CE; b) crimes contra os serviços da Justiça Eleitoral: arts. 289 a 293; art. 296; arts. 303 e 304; arts. 341 a 347 do CE; art. 11 da Lei n° 6.091/74; art. 45, §§ 9o e 11, art. 47, § 4o, art. 68, § 2o, art. 71, § 3o, art. 114, parágrafo único e art. 120, § 5o, todos do Código Eleitoral; c) crimes contra a fé pública eleitoral: arts. 313 a 316; arts. 348 a 354 do CE; art. 15 da Lei n° 6.996/82 e art. 174, contra a honra praticado fora do período de propaganda eleitoral, resta afastada a figura típica especial do Código Eleitoral e subsiste o tipo

penal previsto no Código Penal: STJ - CC 79.872/BA - 3a Seção - Rei. Min.

Arnaldo Esteves Lima - DJ 25/10/2007 p. 123. 204. Código Eleitoral: "Art. 326-A. Dar causa à instauração de inves­ tigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a al­ guém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral: Pena - reclusão, de 2 a 8 anos, e multa". (Incluído pela Lei n. 13.834/19).

205. GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 142. 206. STJ - CC 26.105/PA - 3a Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 27/08/2001 p. 221.

207. No escólio de José Frederico Marques (Elementos de Direito Pro­ cessual Penal. Vol. I, Campinas, Bookseller, 1997. p. 200), crime eleitoral é toda ação tendente a impedir a livre e genuína manifestação da vontade

popular nas eleições políticas. [...] Há os crimes eleitorais chamados es­ pecíficos ou puros, que somente podem ser praticados na esfera eleitoral e cuja existência depende do processo eleitoral, e os crimes eleitorais acidentais, que estão previstos, para além da legislação eleitoral, também na legislação comum (exemplo: os crimes contra a honra que, previstos também no Código Penal, são de competência da Justiça Eleitoral quando praticados na propaganda eleitoral ou visando fins eleitorais)".

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§ 3o, do Código Eleitoral; d) crimes contra a pro­ paganda eleitoral: arts. 322 a 337 do CE; e) crimes contra o sigilo e o exercício do voto: art. 295; arts. 297 a 302; arts. 307 a 309; art. 317; art. 339 do CE; art. 5o da Lei n° 7.021/82; art. 129, parágrafo único e art. 135, § 5o, do Código Eleitoral; f) crimes contra os partidos políticos: arts. 319 a 321; art. 338 do CE e art. 25 da LC 64/9O.208 A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material do crime. Sob o aspecto material, deve a conduta atentar contra a liberdade de exercício dos direitos políticos, vulnerando a regularidade do proces­ so eleitoral e a legitimidade da vontade popular. Ou seja, a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configura­ ção, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, à regularidade do processo eleitoral e à preser­ vação do modelo democrático. Exemplificando, ainda que conste do Código Eleitoral o crime de destruição de título eleitoral de terceiro (“Art. 339. Destruir, suprimir ou ocultar urna contendo vo­ tos, ou documentos relativos à eleição”), se restar evidenciado que a conduta fora perpetrada sem guardar qualquer vinculação com pleitos eleitorais, tendo, na verdade, o intuito exclusivo de impedir a identificação pessoal, não há falar em crime da competência da Justiça Eleitoral.209

Havendo infrações conexas de competência da Justiça Estadual, a Justiça Eleitoral exercerá força atrativa, nos exatos termos do dispositivo constante do art. 78, inciso IV, do CPP, c/c o art. 35, inciso II, do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65).210 Questiona-se se essa força atrativa da Justiça Eleitoral também seria extensiva aos crimes fede­ rais e militares. Apesar de haver julgado antigo da Suprema Corte afirmando a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes eleitorais e também as infrações conexas, ainda que de competência da Justiça Federal,211 somos levados a acreditar que, na medida em que a competência da Justiça Federal vem 208. Direito eleitoral brasileiro. 7a ed. Bauru: Edipro, 1998. 209. A propósito: STJ, 3a Seção, CC 127.101/RS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 11/2/2015, DJe 20/2/2015. 210. Reconhecendo a competência da Justiça Eleitoral para o processo e julgamento de crimes eleitorais e dos crimes a eles conexos - no caso

concreto, corrupção passiva e lavagem de capitais: STF, 2a Turma, Pet 7.319/DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 27/03/2018.

211. STF, Pleno, CC 7.033/SP, Rei. Min Sydney Sanches, DJ 29/11/1996.

preestabelecida na própria Constituição Federal, não pode ser colocada em segundo plano por força da conexão e da continência, normas de alteração da competência previstas na lei processual penal. Afinal, é a lei processual que deve ser interpretada por meio da constituição, e não o contrário. Há precedente do Superior Tribunal de Justiça corroborando essa posi­ ção: “A conexão e a continência entre crime eleitoral e crime da competência da Justiça Federal não im­ porta unidade de processo e julgamento”.212 Mutatis mutandis, a Justiça Eleitoral também não exercerá força atrativa em relação a eventuais crimes militares que estejam ligados a um crime eleitoral por força da conexão ou da continência, na medida em que a competência da Justiça Militar também foi ressalvada pela Constituição Federal.

Em recente julgado (Inq. 4.435 AgR-Quarto/ DF), todavia, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria, concluiu que, por força do princípio da especialidade, compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem cone­ xos, ainda que estes sejam da competência da Justiça Federal. É dizer, a Justiça especializada, nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral, e do art. 78, IV, do CPP, por prevalecer sobre as demais, alcança os delitos de competência da Justiça comum. De acor­ do com o Relator Min. Marco Aurélio, ao estipular a competência criminal da Justiça Federal em seu art. 109, inciso IV, a Constituição Federal ressalva, expressamente, os casos da competência da Justiça Eleitoral e, consoante o caput do art. 121, a defini­ ção da competência daquela Justiça especializada foi submetida à legislação complementar. A ressalva do art. 109, IV, e a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais afastam a competên­ cia da Justiça comum, federal ou estadual, e, ante a conexão, implicam a configuração da competência da Justiça Eleitoral em relação a todos os delitos. Ter-se-ia como inviável o desmembramento das investigações dos delitos comuns e eleitorais, por­ quanto a competência da Justiça comum, estadual ou federal, seria residual quanto à Justiça especia­ lizada - seja eleitoral ou militar -, estabelecida em razão da matéria, e não se revelaria passível de se 212. STJ, 3a Seção, CC 19.478/PR, Rei. Min. Fontes de Alencar, DJ 04/02/2002. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 107.913/MT, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 24/10/2012, DJe 31/10/2012; STJ, 3a Seção, CC 39.357/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 09/06/2004, DJ 02/08/2004 p. 297. Ainda no sentido de que, havendo conexão entre um crime eleitoral e outro de competência

da Justiça Federal, outra opção não restará, senão a tramitação separada dos processos, respeitando-se, assim, ambas as competências fixadas na Constituição Federal: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais - comentá­ rios à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 248.

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sobrepor à última.213 Seguindo esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça também tem decidido que a Justiça Eleitoral é competente para processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos. Logo, havendo o reconhecimento da incompetência absoluta da Justiça Federal para julgar o crime conexo, o processo penal deve ser remetido à Justiça Eleitoral, com a anulação apenas dos atos decisórios e sem prejuízo da sua ratificação pelo juízo competente.214

Aliás, aos olhos da 2a Turma do STF, a Justiça Eleitoral é competente para processar e julgar crime comum conexo com crime eleitoral, ainda que haja o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva do delito eleitoral. Isso porque, fixada a competência da Justiça Eleitoral por conexão ou continência, essa permanece para os demais feitos, mesmo quando não mais subsistirem processos de sua competên­ cia própria em razão de sentença absolutória ou de desclassificação da infração.215 Com a devida vênia à 2a Turma do STF, ainda que se queira admitir que a Justiça Eleitoral exerça força atrativa em relação a crimes conexos de competência da Justiça Federal - tese com a qual não concordamos -, fato é que a reunião dos processos perante a Justiça Especiali­ zada somente se revelaria correta se houvesse crime eleitoral capaz de justificar a existência desse simultaneus processus. Portanto, na eventualidade de o crime eleitoral deixar de existir (v.g., prescrição da pretensão punitiva abstrata), a competência para o processo e julgamento do crime comum passará de imediato às mãos da Justiça Comum (Estadual ou Federal). Nesse caso, não se pode aplicar a regra do art. 81 do CPP, que versa sobre a perpetuação de competência. Ora, se não há crime eleitoral, e se a competência da Justiça Eleitoral é definida taxativamente na Constituição Federal, não se pode querer ampliá-la com base em regra infraconstitucional (CPP, art. 81), quando não se tem qualquer crime capaz de justificar a reunião dos feitos. Raciocínio diverso ocorrería no caso de absolvição em relação ao crime eleitoral. Em tal hipótese, mesmo que a Justiça Eleitoral absolvesse o agente em relação à 213. STF, Pleno, Inq. 4.435 AgR-quarto/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 14/03/2019. Ausente imputação por crime eleitoral e não verificada pelas instâncias ordinárias, mesmo com a proximidade do encerramento da instrução processual, eventual finalidade eleitoral que autorize emendatio libelli, não se revela possível a remessa dos autos à Justiça especializada, para que analise a existência de conexão de delitos comuns aos delitos eleitorais. Nesse sentido, confira-se: STJ, 5a Turma, RHC 128.447/DF, Rei.

imputação de crime eleitoral, teria sua competência prorrogada para julgar o crime comum conexo (ou continente), pois, se houve absolvição, isso significa dizer que a Justiça Eleitoral afirmou sua competên­ cia, ainda que implicitamente, a qual aí sim seria extensiva aos crimes conexos, nos termos do art. 81 do CPP. Também se discute na doutrina a competência para processar e julgar crime de homicídio doloso conexo a crime eleitoral. Para Suzana de Camargo Gomes, “havendo conexão entre crimes eleitorais e crimes dolosos contra a vida, o julgamento de todos eles está afeto à Justiça Eleitoral, e não ao Tribunal do Júri. (...) Nesses casos, não há que se cogitar nem mesmo a hipótese da criação de um Tribunal do Júri de natureza eleitoral, posto que não previsto na lei que define a organização dessa instituição, nem tampouco na justiça eleitoral. É que não autoriza a lei a constituição de Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Eleitoral, não havendo, destarte, que se falar possa o juiz Eleitoral realizar a condução e presi­ dência do processo afeto ao tribunal popular, pois, se assim fosse, estaria sendo desrespeitado o art. 5o, XXXVIII, da CF, que determina tenha a instituição do júri a organização que a lei lhe conferir”.216

Uma segunda corrente (majoritária) sustenta que os crimes eleitorais devem ser julgados pela Justiça Eleitoral, respeitando-se a previsão consti­ tucional, o que, no entanto, não afeta a competên­ cia do Tribunal do Júri para julgar o crime doloso contra a vida, haja vista não ser este um crime ti­ picamente eleitoral. Como ambas as competências estão previstas na Constituição Federal - a da Justiça Eleitoral para o processo e julgamento dos crimes eleitorais e a do Tribunal do Júri para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”) - somente a separação dos processos será capaz de garantir o respeito à com­ petência estabelecida pela Constituição Federal para ambas as situações. De modo algum seria possível admitir-se que a conexão, norma de alteração de competência prevista na lei processual penal, pu­ desse afastar a competência constitucional do júri e da Justiça Eleitoral.217 Superada esta questão, convém ressaltar que, ao contrário da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar e da Justiça Estadual, a Justiça Elei­ toral não dispõe de um corpo próprio e permanente de magistrados, razão pela qual são utilizados os magistrados da Justiça Federal e da Justiça Estadual

Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 22.09.2020. 214. STJ, 5a Turma, HC 612.636/RS, Rei. Min. Jesuíno Rissato - Desem­ bargador convocado do TJDFT -, j. 05.10.2021.

215. STF, 2a Turma, RHC 177.243/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 29.6.2021.

216. Crimes eleitorais. São Paulo: RT, 1997. p. 59. 217. Comungam desse entendimento Guilherme de Souza Nucci (op. cit. p. 259) e Denílson Feitoza (op. cit. p. 347).

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(Lei n° 4.737/65, arts. 25 e 32, respectivamente), por períodos predeterminados. Logo, caso um crime seja cometido contra esse juiz de direito investido de jurisdição eleitoral, sobressai a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito, a não ser que se trate de um crime eleitoral (v.g., crime contra a honra durante a propaganda eleitoral). De fato, a competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo e julgamento dos crimes tipicamente eleitorais. O crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração, daí sobressaindo a competência da Justiça Federal para o julgamento do delito.218 Ademais, como não há um ramo do Ministério Público Eleitoral, os membros do Ministério Pú­ blico que atuam na Justiça Eleitoral são investidos temporariamente na função eleitoral por um deter­ minado período, sendo escolhidos entre membros do Ministério Público dos Estados que atuam na primeira instância e entre membros do Ministério Público Federal nas demais instâncias (Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunal Superior Eleitoral).

3. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO Até o advento da Emenda Constitucional n° 45/2004, a Justiça do Trabalho não tinha qualquer competência no âmbito criminal. Assim, caso uma prisão civil de depositário infiel fosse decretada por um juiz do trabalho, em execução de sentença trabalhista, eventual habeas corpus deveria ser pro­ cessado e julgado pelo respectivo Tribunal Regional Federal, nos termos do art. 108,1, “a”, da Constitui­ ção Federal.219

Com a EC n° 45/04, houve uma alteração do art. 114 da Constituição Federal, atribuindo à Jus­ tiça do Trabalho, dentre outras, a competência para processar e julgar os mandados de segurança, ha­ beas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição (art. 114, inciso IV). Destarte, a partir da entrada em vigor da EC n° 45/2004, se o ato questionado envolver matéria sujeita à jurisdição trabalhista, e figurando o juiz do trabalho como autoridade coatora, à própria Jus­ tiça do Trabalho {in casu, ao respectivo Tribunal 218. Nessa linha: STJ - CC 45.552/R0 - 3a Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJU 27/11/2006 p. 246.

Regional do Trabalho) caberá o julgamento do ha­ beas corpus. É bom lembrar que um juiz de direito também pode exercer competência trabalhista, ex vi do art. 112 da Constituição Federal. Logo, da mesma forma que o habeas corpus contra juiz do trabalho está afeto ao respectivo Tribunal Regional do Tra­ balho, a este Tribunal também caberá o julgamento do writ, se, e somente se, o ato questionado do juiz de direito estiver relacionado ao exercício de com­ petência da Justiça do Trabalho.

Importante perceber que nem todo habeas corpus em que figure como autoridade coatora um Juiz do Trabalho deverá ser processado e julgado pela Justiça do Trabalho. Suponha-se, por exem­ plo, que um juiz do trabalho seja o responsável pelo constrangimento à liberdade de locomoção de alguém, valendo-se tão somente de sua con­ dição genérica de autoridade pública, sem que o ato guarde qualquer relação com o exercício da jurisdição trabalhista. Ora, nessa hipótese, não há falar em competência da Justiça do Trabalho para julgar o writ, devendo este ser encaminhado ao respectivo Tribunal Regional Federal, a quem com­ pete processar e julgar, originariamente, os juizes do Trabalho da área de sua jurisdição, nos termos do art. 108, inciso I, “a”, da Constituição Federal. Não obstante a ampliação da competência da Justiça do Trabalho por meio da Emenda Consti­ tucional n° 45/04, inclusive atribuindo-lhe compe­ tência para processar e julgar habeas corpus quan­ do o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição, daí não se pode concluir que a Justiça do Trabalho teria competência criminal genérica para processar e julgar delitos, como, por exemplo, o crime de redução a condição análoga à de escravo (CP, art. 149).

Tal questão acabou sendo levada ao Supremo Tribunal Federal, na medida em que alguns juizes do Trabalho começaram a processar e julgar infrações penais praticadas contra a organização do trabalho, a partir do oferecimento de denúncias por Procura­ dores do Trabalho. No julgamento da ADI n. 3.684/ DF, a Suprema Corte concluiu que o disposto no art. 114, incisos I, IV e IX, da Constituição Federal, com redação dada pela EC n° 45/04, não atribuiu competência criminal genérica à Justiça do Trabalho para processar e julgar ações penais.220

Em sua fundamentação, entendeu-se que um elemento histórico, conquanto de valor exegético re­ lativo, poderia ser lembrado de modo a infirmar que a EC n° 45/04 tenha outorgado à Justiça do Trabalho

219. Com esse entendimento: STF, Pleno, CC 6.979/DF, Rei. Min. limar Galvão, DJ 26/02/1993.

220.. STF, Pleno, ADI n. 3.684/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 11.05.2020.

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competência ampla para julgamento de matéria cri­ minal: durante o trâmite da PEC n° 29/00, da qual se originou a EC n° 45/04, foi sugerida a inserção no art. 114 da Constituição Federal de regra tendente a cometer à Justiça do Trabalho competência para o julgamento de infrações penais praticadas contra a organização do trabalho ou contra a administra­ ção da própria Justiça do Trabalho. Rejeitada pelo constituinte derivado, essa proposta não foi inse­ rida na Constituição Federal. De mais a mais, ao prever a competência da Justiça do Trabalho para o processo e julgamento de ações oriundas da rela­ ção de trabalho, o art. 114,1, da Carta Magna, não compreende a outorga de jurisdição sobre matéria penal, mormente se considerarmos que, quando a legislação constitucional e infraconstitucional alu­ dem, na distribuição de competências, a ações, sem o qualificativo de penais ou criminais, a interpreta­ ção sempre excluiu de seu alcance teórico as ações que tenham caráter penal ou criminal.221

4. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA FEDERAL

4.1. Considerações iniciais Segundo o disposto no art. 106 da Carta Magna, são órgãos da Justiça Federal os Tribunais Regionais Federais e os Juizes Federais. Na verdade, a despei­ to do art. 106 da Constituição Federal, são órgãos da Justiça Comum Federal os Tribunais Regionais Federais, os Juizes Federais, o Tribunal do Júri Fe­ deral e, por força do parágrafo único do art. 98 da CF, também foram criados pela Lei n° 10.259/01 os Juizados Especiais Criminais. O Conselho da Justiça Federal não funciona como órgão da Justiça Federal. Como deixa entrever a própria Constituição Federal, funciona o Conselho junto ao Superior Tribunal de Justiça, cabendo-lhe exercer a supervisão administrativa e orçamentá­ ria da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, como órgão central do sistema e com poderes correicionais, cujas decisões terão caráter vinculante (CF, art. 105, parágrafo único, II). Para fins de divisão judiciária da competência territorial da Justiça Federal, o território brasileiro foi dividido, inicialmente, ou seja, antes da Lei n. 14.226/21, em cinco regiões, com um Tribunal Re­ gional Federal para cada uma delas. Cada uma des­ sas Regiões é integrada por várias Seções Judiciárias. 221. Com o mesmo entendimento do Supremo, o STJ também con­ cluiu que a EC n° 45/04 não atribuiu à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais, tais como as do delito previsto no art. 203 do CP, pois se estaria a violar o princípio do juiz natural: STJ, 3a Seção, CC 59.978/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, DJ 07/05/2007 p. 275.

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Cada Estado e o Distrito Federal correspondem a uma Seção Judiciária. Por seu turno, cada Seção Judiciária é subdividida em subseções judiciárias, correspondentes a parcelas do território de um Es­ tado da Federação. A subseção funciona como uma grande comarca, abrangendo vários municípios e até mesmo várias comarcas.

O Tribunal Regional Federal da Ia Região, cuja sede fica em Brasília, compreende o Distrito Federal, bem como os Estados de Goiás, Mato Gros­ so, Maranhão, Pará, Amazonas, Rondônia, Amapá, Roraima, Acre, Bahia, Piauí e Tocantins. Pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 14.226/21, também abrangia o Estado de Minas Gerais. O Tribunal Re­ gional Federal da 2a Região, com sede no Rio de Janeiro, abrange os Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. O Tribunal Regional Federal da 3a Região, cuja sede fica em São Paulo, abrange os Estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. O Tribunal Regional Federal da 4a Região, com sede em Porto Alegre, compreende os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Por fim, o Tribunal Regional Federal da 5a Região, com sede em Recife, abrange os Estados de Pernambuco, Ala­ goas, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe.

No dia 06 de junho de 2013, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 73, que acrescentou o §11 ao art. 27 do Ato das Disposições Constitu­ cionais Transitórias, com a seguinte redação: “São criados, ainda, os seguintes Tribunais Regionais Federais: o da 6a Região, com sede em Curitiba, Estado do Paraná, e jurisdição nos Estados do Pa­ raná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul; o da 7a Região, com sede em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, e jurisdição no Estado de Minas Gerais; o da 8a Região, com sede em Salvador, Es­ tado da Bahia, e jurisdição nos Estados da Bahia e Sergipe; e o da 9a Região, com sede em Manaus, Estado do Amazonas, e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima”. De acordo com o art. 2o da referida Emenda Constitucional, esses novos Tribunais Regionais Federais deveríam ser instalados no prazo de 6 (seis) meses, a contar da promulgação da referida Emenda. Não obstante, por força de decisão monocrática proferida pelo então Min. Joaquim Barbosa nos autos da ADI n° 5.017, foi deferida medida cautelar para suspender os efeitos da EC 73/2013.222

Ante a inércia do Supremo Tribunal Federal em proceder ao julgamento da referida ADI, o 222.0 feito encontra-se concluso ao relator desde o dia 07 de janeiro de 2015. Pesquisa em: 08.12.2021.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Congresso Nacional deliberou pela criação de um novo Tribunal Regional Federal, porém curiosamen­ te não mais por meio de modificação do Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias através de Emenda Constitucional, como foram criados, por exemplo, os 5 (cinco) primeiros TRF s (art. 27, §6° do ADCT), e, mais recentemente, outros 4 (quatro), conforme previsto no art. 27, §11, incluído pela EC n. 73/13, mas sim por meio de lei ordinária. De fato, por força do art. Io da Lei n. 14.226, com vigência em data de 3 de janeiro de 2022, foi criado o Tri­ bunal Regional Federal da 6a Região, com sede em Belo Horizonte e jurisdição no Estado de Minas Gerais. Referido Tribunal deverá ser composto de 18 (dezoito) membros. De acordo com o art. 2o, parágrafo único, da Lei n. 14.226/21, foram transfor­ mados 20 (vinte) cargos vagos de juiz federal subs­ tituto do quadro permanente da Justiça Federal da Ia Região em 18 (dezoito) cargos de juiz de tribunal regional federal vinculados ao TRF da 6a Região.

De acordo com o art. 108 da Carta Magna, compete aos Tribunais Regionais Federais: I processar e julgar, originariamente: a) os juizes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a compe­ tência da Justiça Eleitoral; b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juizes federais da região; c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juizes federais vinculados ao Tribunal; II - julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juizes federais e pelos juizes esta­ duais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.

A competência da Justiça Federal, que será de­ talhadamente estudada na sequência, consta do art. 109 da Carta Magna. As questões criminais estão especialmente previstas nos incisos IV, V, VI, VII, IX e X do art. 109. Por sua vez, os incisos VIII e XI referem-se tanto à matéria criminal quanto à cível. Explica-se: quando a Constituição Federal utiliza a expressão “causas”, refere-se à matéria cível (incisos I, II e III do art. 109); quando se vale da expressão “crimes”, obviamente, refere-se à matéria criminal (incisos IV, V, VI, IX e X do art. 109); quando a Magna Carta não faz qualquer referência a “causas”, “crimes” ou “matéria criminal”, significa estar se referindo tanto à matéria cível quanto à matéria criminal, tal qual ocorre no inciso VII (o mandado de segurança pode versar sobre matéria

cível ou criminal) e no inciso IX (disputa sobre di­ reitos indígenas). A exceção à regra fica por conta do inciso V-A, do art. 109, inserido pela Emenda Constitucional n° 45/04, que, apesar de ter utili­ zado a expressão “causas”, abrange tanto as cíveis quanto as criminais.

4.2. Atribuições de polícia investigativa da Po­ lícia Federal Antes de ingressarmos na análise propriamente dita da competência criminal da Justiça Federal, impende dissiparmos, desde já, erro bastante comum, qual seja, o de se acreditar que há uma relação de absoluta congruência entre as atribuições de polí­ cia investigativa da Polícia Federal e as hipóteses de competência criminal da Justiça Federal. Na verda­ de, as atribuições investigatórias da Polícia Federal são bem mais amplas que a competência criminal da Justiça Federal.

Ao tratar da Polícia Federal, a própria Consti­ tuição Federal (art. 144, § Io, inciso I) deixa expresso que, além da atribuição de apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas - o que, grosso modo, corresponde à competência da Justiça Federal -, deve também apurar outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacio­ nal e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei, além da prevenção e repressão ao tráfico ilí­ cito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho.223 Como se percebe, nem sempre os crimes in­ vestigados pela Polícia Federal serão processados e julgados pela Justiça Federal (v.g., roubo de cargas, tráfico interestadual de drogas, etc.). Nesse caso, independentemente da possibilidade de que esses delitos também sejam investigados pelos órgãos de segurança pública estaduais,224 se acaso a investiga­ ção tiver curso perante a Polícia Federal, uma vez 223. Como já se pronunciou o STJ,"(...) as atribuições da Polícia Fede­ ral e a competência da Justiça Federal, ambas previstas na Constituição da República (arts. 108, 109 e 144, § 1o), não se confundem, razão pela qual não há falar que a investigação que deu origem à ação penal foi realizada por autoridade absolutamente incompetente. As atribuições da Polícia Federal não se restringem a apurar infrações em detrimento de bens, serviços e interesses da União, sendo possível a apuração de infrações em prol da Justiça estadual". (STJ, 6a Turma, RHC 50.011 /PE, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 25/11/2014, DJe 16/12/2014). 224. Evidenciada a ocorrência de conexão entre delitos apurados em inquéritos policiais em trâmite nas polícias estadual e federal, é possível

a reunião dos procedimentos investigatórios, aplicando-se subsidiariamente os artigos 76, incisos II e III, e 79, ambos do Código de Processo Penal. Nessa linha: STJ - RHC 10.763/SP - 5a Turma - Rei. Min. Gilson

Dipp - DJ 27/08/2001 p.351.

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concluído o inquérito policial, deverão ser os autos remetidos à Justiça Estadual. De todo modo, como o inquérito policial fun­ ciona como um procedimento administrativo de ca­ ráter meramente informativo, ainda que elementos de informação quanto a crime de competência da Justiça Federal tenham sido colhidos em inquérito policial presidido pela Polícia Civil, ou que um cri­ me de competência da Justiça Estadual tenha sido investigado pela Polícia Federal em desacordo com a Lei n° 10.446/02, tal vício não terá o condão de macular o processo criminal a que o procedimento investigatório der origem.225

4.3. Crimes políticos e infrações penais pra­ ticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades au­ tárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções penais e ressalvada a compe­ tência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral (CF, Art. 109, inciso IV)

4.3.1. Crimes políticos Pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 14.197 em data de Io de dezembro de 2021, os cri­ mes políticos estavam previstos na revogada Lei de Segurança Nacional (Lei n° 7.170/83), caracterizan­ do-se pela lesão ou exposição a perigo de lesão: a) da integridade territorial e da soberania nacional; b) do regime representativo e democrático, da Federação e do Estado de Direito; c) da pessoa dos Chefes dos Poderes da União.226 Como alguns dos delitos pre­ vistos na revogada Lei de Segurança Nacional tam­ bém estavam previstos no Código Penal, no Código Penal Militar, ou na legislação especial, tal como o do art. 29 (“Matar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal”), era imprescindível, para a caracterização do crime político, a presença de motivação política e a lesão real ou potencial aos bens juridicamente tutelados. Por consequência, se não restasse evidenciada a motivação política ou a intenção de lesar ou expor a perigo de lesão tais bens jurídicos, não haveria crime político.227 Como a Constituição Federal de 1988 atribui à Justiça Fe­ deral a competência para processar e julgar os crimes 225. Com esse entendimento: STF - RHC 85.286/SP - 2a Turma - Rei. Min. Joaquim Barbosa - DJ 24/03/2006 p. 55).

226. Nessa linha: FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpre­ tação jurisprudencial. 2a ed. São Paulo: RT, 1987, p. 195.

políticos, sempre se entendeu que o art. 30, caput, da revogada Lei n° 7.170/83,228 que atribuía à Justiça Militar o status de juiz natural para o julgamento de tais delitos, não havia sido recepcionado pela Carta Magna.229 Eis que surge, então, a Lei n. 14.197/21, revo­ gando a Lei n. 7.170/83, ao mesmo tempo em que acrescentou à Parte Especial do Código Penal o Tí­ tulo XII, que, doravante, passa a prever os seguintes Crimes contra o Estado Democrático de Direito: i. Atentado à soberania (art. 359-1 do CP); ii. Atentado à integridade nacional (art. 359-J do CP); iii. Espio­ nagem (art. 359-k do CP); iv. Abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP); v. Golpe de Estado (art. 359-M do CP) vi. Interrup­ ção do processo eleitoral (art. 359-N do CP); vii. Violência política (art. 359-P do CP); e viii. Sabota­ gem (art. 359-R do CP).230 Passou a dispor, ademais, que não constitui crime previsto no referido Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reinvindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de pas­ seatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais (CP, art. 359-T, incluído pela Lei n. 14.197/21).

Com a entrada em vigor do novel diploma nor­ mativo, já se vislumbra acirrada controvérsia quanto à competência para o processo e julgamento desses novos crimes contra o Estado Democrático de Di­ reito, senão vejamos: a. Ia Corrente: partindo da premissa de que as novas figuras delituosas introduzidas no Códi­ go Penal não podem ser rotuladas como espécies de crimes políticos, mas sim como crimes comuns, a competência para o seu processo e julgamento não será exclusiva da Justiça Federal. Logicamente, havendo ofensa a bens, serviços ou interesses da União, a competência será da Justiça Federal, não por se tratar de crime político, mas sim com funda­ mento na segunda parte do art. 109, IV, da CF. É o que ocorre, por exemplo, com os crimes contra a soberania nacional (arts. 359-1 a 359-K do CP), 228. Revogada Lei n. 7.170/83:"Art. 30. Compete à Justiça Militar pro­ cessar e julgar os crimes previstos nesta Lei, com observância das normas estabelecidas no Código de Processo Penal Militar, no que não colidirem com disposição desta Lei, ressalvada a competência originária do Supre­ mo Tribunal Federal nos casos previstos na Constituição". 229. STJ, 3a Seção, CC 21,735/MS, DJ 15/06/1998, p. 10, Rei. Min. José

Dantas.

227. Nesse sentido: STF, Pleno, RC 1,472/MG, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 25/05/2016; STF, Pleno, RHC segundo 1.468/RJ, Rei. Min. Maurício Corrêa,

230. Foram vetados pelo Presidente da República outros 2 (dois) de­ litos: a. Comunicação enganosa em massa (CP, art. 359-0); b. atentado a direito de manifestação (CP, art. 359-S). Pelo menos até o fechamento

DJ 16/08/2000 p. 88.

desta edição, o Congresso Nacional ainda não havia apreciado tais vetos.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

com os crimes contra as instituições democráticas (arts. 359-L e 359-M) e com o crime de sabotagem (CP, art. 359-R) envolvendo estabelecimentos, ins­ talações ou serviços destinados à defesa nacional. A competência, porém, para o processo e julgamento dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral (CP, arts. 359-N a 359-0), por sua vez, deverá recair sobre a Justiça Eleitoral, pelo menos em regra. Se o crime do art. 359-N do CP atentar contra o exercício do manda­ to, será da Justiça Comum, Estadual ou Federal, a depender do caso concreto. Por outro lado, o crime de impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício do mandato de um parlamentar ou chefe do Executivo municipal ou estadual, deve ser julgado pela Justiça Estadual, ao passo que, na hipótese de o crime prejudicar um Deputado Federal (ou Senador) ou o Presidente da República, a competência será da Justiça Federal, pois patente o interesse da União;231

b. 2a Corrente (nossa posição): sem embargo do silêncio da Lei n. 14.197/21 acerca da competên­ cia para o processo e julgamento dos novos “crimes contra o Estado Democrático de Direito”, não há motivos para se afastar a sua natureza de crimes po­ líticos, razão pela qual deve ser preservada a com­ petência da Justiça Federal para o seu julgamento, nos termos do art. 109, IV, Ia parte, da Constituição Federal. A uma porque a Lei n. 14.197/21 revogou expressamente a Lei n. 7.170/83, diploma normativo que tipificava tais delitos, substituindo-a, do que se pode inferir que passou a tratar da mesma matéria, leia-se, dos denominados crimes políticos, por mais que tenha usado terminologia diversa (Crimes con­ tra o Estado Democrático de Direito). A duas por­ que, à semelhança dos crimes previstos na revogada Lei n. 7.170/83, as figuras delituosas introduzidas no Código Penal, em sua integralidade, são dirigidas, subjetiva e objetivamente, de modo a lesar ou expor a perigo de lesão a integridade territorial (crime de atentado à integridade nacional previsto no art. 359J do CP), a soberania nacional (crimes de atentado à soberania e de espionagem, previstos, respecti­ vamente, nos art. 359-1 e 359-K do CP), o regime representativo e democrático (crimes de interrupção do processo eleitoral e violência política, previstos, respectivamente, nos arts. 359-N e 359-P do CP), a Federação e o Estado de Direito (crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de estado, e sabotagem, previstos, respectivamente, nos

231. Nesse sentido: SILVARES, Ricardo; CUNHA, Rogério. Crimes contra o Estado Democrático de Direito: Lei n. 14.197, de 2 de setembro de 2021. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 182-183.

art. 359-L, 359-M e 359-R do CP). Logo, não há por que lhes retirar a natureza de crimes políticos, dentro da própria concepção doutrinária e jurisprudencial que sempre gravitou em torno desse conceito. A relevância dessa controvérsia não está restrita à definição da Justiça competente para o processo e julgamento das novas figuras delituosas. Revela-se igualmente relevante para fins de definição do recurso adequado e do tribunal competente para julgá-lo. Explica-se: firmada a premissa de que os novos crimes contra o Estado Democrático de Di­ reito não podem ser rotulados como crimes políticos (Ia corrente acima exposta), o recurso adequado contra eventual sentença condenatória (ou absolu­ tória) será a apelação, a ser julgada pelo respectivo Tribunal de 2a instância (TJ, TRF ou TRE, a depen­ der do caso concreto). Por outro lado, partindo da concepção de que os crimes políticos a que se refere a Constituição Federal correspondem, atualmente, aos novos crimes contra o Estado Democrático de Direito (2a corrente acima exposta), a competência para o processo e julgamento de tais delitos deverá recair sobre a Justiça Federal de Ia instância. Em tal hipótese, não caberá recurso de apelação contra eventual sentença absolutória ou condenatória. O recurso adequado, na verdade, será o Recurso Or­ dinário Constitucional (ROC), de competência do Supremo Tribunal Federal, que, nesse caso, funcio­ nará como segunda e última instância, verdadeiro Tribunal de Apelação, a teor do art. 102, inciso II, “b”, da Constituição Federal.232

4.3.2. Crimes contra a União Para fins de fixação de competência criminal da Justiça Federal, devemos compreender “União” apenas como os órgãos da administração pública federal direta, tais como ministérios, secretarias, conselhos, coordenadorias, inspetorias, departa­ mentos, etc. Portanto, não se pode confundir o termo “União” constante do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, enquanto administração fede­ ral direta, com as entidades da administração federal indireta ali enumeradas, quais sejam as autarquias federais (aqui também incluídas as fundações públi­ cas federais) e as empresas públicas federais. Logo, quando um crime for praticado em detrimento de órgão que integra a União, seja ele pertencente à estrutura do Poder Executivo, Legislativo e Judiciá­ rio, a competência será da Justiça Federal. Assim é que, ao apreciar conflito de competência relativo a

232. CF: "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) II - julgar, em recurso ordinário: (...) b) o crime político".

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processo criminal em que se apurava furto de bens operacionais, no caso dormentes de linha férrea, antes pertencentes à Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), concluiu o STJ tratar-se de crime da com­ petência da Justiça Federal, na medida em que a Lei n° 11.483/07 transferiu para a União os bens imóveis e para o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) os bens moveis e imóveis operacionais da extinta RFFSA.233 Para fins de fixação da competência da Justiça Federal com base no art. 109, IV, da Constituição Federal, essa lesão aos bens, serviços e interesses da União deve ser direta. Caso contrário, a competência será da Justiça Estadual. Portanto, compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - processar e julgar tentativa de estelionato consistente em tentar receber, mediante fraude, em agência do Banco do Brasil, va­ lores relativos a precatório federal creditado em favor de particular. Embora, no exemplo, se tenha busca­ do resgatar precatório federal, se não há prejuízo em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, a competência para processar e julgar a causa é da Justiça Estadual. O eventual prejuízo causado pelo delito praticado por quem visava resgatar precatório federal seria suportado pelo particular titular do cré­ dito. Ademais, ainda que a conduta delituosa tivesse se consumado, e o dano fosse suportado pelo Banco do Brasil, seria mantida a competência da Justiça Es­ tadual, por se tratar de sociedade de economia mista, a teor da Súmula 42 do STJ.234

4.3.3. Crimes contra autarquias federais Como exemplos de autarquias vinculadas à União Federal, podemos enumerar: o Instituto Na­ cional do Seguro Social (INSS); o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); a Co­ missão Nacional de Energia Nuclear; o Banco Cen­ tral do Brasil; a Comissão de Valores Mobiliários; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur­ sos Naturais Renováveis (IBAMA); o Departamento Nacional de Obras contra as Secas; o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), sucessor do DNER - Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, etc.

à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão à autarquia fe­ deral (súmula n° 107 do STJ). Logo, ausente lesão a bens, serviços ou interesses de autarquia federal, não há falar em crime da competência da Justiça Federal. Por isso, compete à Justiça Estadual o pro­ cesso e julgamento de crime de estelionato cometido mediante a contratação fraudulenta de empréstimo consignado em folha de pagamento de proventos do INSS.235

4.3.4. Crimes contra empresas públicas federais São exemplos de empresas públicas federais a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT); a FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos; a Casa da Moeda do Brasil; a Caixa Econômica Fede­ ral (CEF); o BNDES - Banco Nacional de Desenvol­ vimento Econômico e Social;236 o SERPRO - Serviço Federal de Processamento de Dados, etc.

Quanto à Caixa Econômica Federal como su­ jeito passivo de crimes patrimoniais, importa anali­ sarmos hipóteses de fraudes eletrônicas. Imagine-se um agente que se utilize de fraude via internet (v.g., TROJAN) para subtrair valores da conta corrente de titularidade de correntista da CEF. Nesse caso, de­ verá responder pelo crime de furto qualificado pela fraude cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático (CP, art. 155, § 4°-B, incluído pela Lei n. 14.155, de 27 de maio de 2021), que não se confunde com o delito de estelionato: naquele, a fraude é utilizada para burlar a vigilância da vítima, para lhe tirar a atenção; neste, a fraude objetiva obter consentimento da vítima, iludi-la para que entregue 235. STJ, CC 100.725/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 28/04/2010. Em caso concreto apreciado pelo STJ, em que sociedade empresária apresentou à Receita Federal falsas guias de DARF para comprovar o pagamento de receitas federais, tendo o acusado feito novo recolhimento dos tributos, entendeu-se que não teria havido qualquer lesão à Receita Federal que pudesse impor a competência da Justiça Federal, nos moldes da súmula 107 do STJ, daí por que foi fixada a competência da Justiça

Estadual: STJ, CC 110.529/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, jul­ gado em 09/06/2010.

A fim de que seja fixada a competência da Justi­ ça Federal, afigura-se indispensável que, da conduta delituosa, resulte prejuízo direto a bens, serviços ou interesse de autarquia federal. Não por outro motivo, de acordo com o entendimento pretoriano, compete

236. O fato de licitação estadual envolver recursos repassados ao Estado-Membro pelo BNDES por meio de empréstimo bancário (mútuo feneratício) não atrai a competência da Justiça Federal para processar e julgar crimes relacionados a suposto superfaturamento na licitação. Ora, se houve superfaturamento na licitação estadual, o prejuízo recairá sobre o erário estadual - e não o federal -, uma vez que, não obstante a fraude, o contrato de mútuo feneratício entre o Estado-Membro e o BNDES permanecerá válido, fazendo com que a empresa pública federal receba de volta, em qualquer circunstância, o valor emprestado ao ente federativo. Dessa maneira, o fato em análise não atrai a competência da

233. STJ, 3a Seção, CC 101,444/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 23/06/2010, DJe 30/06/2010.

Justiça Federal, incidindo, na hipótese, mutatis mutandis, a ratio essendi da Súmula 209 do STJ, segundo a qual "compete à justiça estadual pro­ cessar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada

234. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 133.187/DF, Rei. Min.

Ribeiro Dantas, j. 14/10/2015, DJe 22/10/2015.

ao patrimônio municipal". Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, RHC 42.595-MT, Rei. Min. Felix Fischer, j. 16/12/2014, DJe 2/2/2015.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

voluntariamente o bem. Quanto à competência cri­ minal, à primeira vista, poder-se-ia pensar em crime de competência da Justiça Estadual, na medida em que o sujeito passivo seria a pessoa física titular da conta corrente. Ocorre que, como a fraude foi usada para burlar o sistema de proteção e vigilância do banco sobre os valores mantidos sob sua guarda - os valores transferidos mediante dados digitais, ape­ sar de não tangíveis, não deixam de ser dinheiro -, quem suportará o prejuízo financeiro é a instituição bancária, que se vê obrigada a restituir ao titular da conta a quantia indevidamente levantada, figuran­ do o correntista como mero prejudicado.237 Logo, se essa instituição financeira é a Caixa Econômica Federal, não há dúvida quanto à competência da Justiça Federal. No tocante à competência territorial, como o delito de furto consuma-se no momento em que o bem é subtraído da vítima, ao sair da esfera de sua disponibilidade, a competência territorial da Justiça Federal será determinada em face do local onde mantida a conta corrente da qual foram sub­ traídos os valores, leia-se, lugar da conta corrente sacada.238

furto mediante fraude. Dessa forma, ao transferir para si os valores pertencentes à vítima, o agente não fraudou eletronicamente o sistema de segurança da Caixa Econômica Federal, mas apenas o sistema de segurança de instituição privada para a qual o nu­ merário foi transferido por livre vontade da vítima. Neste contexto, sem qualquer fraude ou violação de segurança direcionada à empresa pública federal, ficando o prejuízo adstrito à instituição privada e particulares, não há falar em competência da Justiça Federal à luz do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.239

Se, todavia, não houver qualquer tipo de fraude ou prejuízo em detrimento da Caixa Econômica Fe­ deral, há de se reconhecer a competência da Justiça Estadual, ainda que os valores desviados de insti­ tuição privada sejam oriundos do auxílio emercial pagos durante a pandaemia da covid-19. A título de exemplo, suponha-se que tenha ocorrido o in­ gresso lícito no referido programa e subsequente transferência lícita da conta da Caixa Econômica Federal para a conta de determinada instituição pri­ vada (v.g., Mercado Pago), ambas de titularidade da beneficiária do auxílio. Na sequência, teria havido transferência fraudulenta de valores entre contas da instituição privada de titularidade da vítima e do agente delituoso, ou seja, a vítima não foi indu­ zida a erro e tampouco entregou espontaneamente o numerário, de modo a indicar suposto crime de

No tocante à infração penal praticada em detrimento de agência da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o Superior Tribunal de Jus­ tiça tem fundamentado suas decisões na consta­ tação da exploração direta da atividade pelo ente da administração indireta federal - caso em que a competência seria da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal - ou se objeto de franquia, isto é, a exploração do serviço por particulares - quando então se verificaria a competência da Justiça Estadual.241 Em se tratando de crime praticado em detrimento de Agência de Correios Comunitária operada me­ diante convênio, prevalece o entendimento de que se trata de feito da competência da Justiça Federal, haja vista o interesse público no funcionamento do serviço postal por parte da empresa pública federal - EBCT.242

237. Sujeito passivo não se confunde com prejudicado. Embora, de regra, coincidam na mesma pessoa, as condições de sujeito passivo e prejudicado podem recair em pessoas distintas. Sujeito passivo é o titular do bem jurídico protegido, e, nesse caso, o lesado. Prejudicado é qualquer pessoa que, em razão do fato delituoso, sofre prejuízo ou dano mate­ rial ou moral. Essa distinção não é uma questão meramente acadêmica, despicienda de interesse prático, como pode parecer à primeira vista. Na verdade, o sujeito passivo, além do direito de representar contra o sujeito ativo, pode habilitar-se como assistente do Ministério Público no processso criminal em crimes de ação penal pública (CPP, art. 268) ou oferecer queixa-crime nos delitos de ação penal privada (CPP, art. 30), tendo, ademais, o direito à reparação ex delicto, ao passo que ao prejudicado resta tão somente a possibilidade de buscar a reparação do dano na esfera cível.

238. STJ, 3a Seção, CC 67.343/GO, Rei. Ministra Laurita Vaz, DJ 11/12/2007 p. 170.

Lado outro, quanto à competência para o pro­ cesso e julgamento de crime de roubo em casa lotérica, entende o Superior Tribunal de Justiça que a competência recai sobre a Justiça Estadual, na me­ dida em que a casa lotérica tem natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado permissionária de serviço público, o que não atrai a competência da Justiça Federal, em virtude da inexistência de infração penal praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, autarquias federais e empresas públicas federais.240

239. STJ, 3a Seção, CC 182.940/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 27.10.2021, Dje 03.11.2021. 240. Informativo n° 402 do STJ: 3a Seção, CC 100.740/PB, Rei. Min.

Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/08/2009.

241. STJ, 6a Turma, HC 39.200/SP, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 19/12/2005 p. 475. No sentido da competência da Justiça Estadual para processar roubo qualificado perpetrado em agência dos Correios, se

os valores subtraídos forem de exclusiva propriedade do Banco Postal (convênio entre o Bradesco e a EBCT), na medida em que o prejuízo é dirigido ao franqueado, sem que haja qualquer lesão a bens, serviços, ou interesses da União: STJ, HC 96.684/BA, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 05/08/2010.

242. STJ, 3a Seção, CC 122.596/SC, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 08/08/2012.

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Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime de esbulho possessório (CP, art. 161, § Io, II) de imóvel vinculado ao Programa Minha Casa Minha Vida. In casu, além da vítima do crime de esbulho possessório, ou seja, a possuidora direta e devedora fiduciária, a Caixa Econômica Federal, enquanto credora fiduciária e possuidora indireta, também possui legitimidade para, no âmbito cível, propor eventual ação de reintegração de posse do imóvel esbulhado. Essa legitimação ativa concor­ rente da empresa pública federal, embora seja na esfera civil, evidencia a existência do seu interesse jurídico na apuração do referido delito, o que, por sua vez, é suficiente para fixar a competência da Justiça Federal à luz do art. 109, IV, da CF.243 Compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - processar e julgar ação penal na qual se apurem infrações penais decorrentes da tentativa de abertura de conta corrente mediante a apresen­ tação de documento falso em agência do Banco do Brasil (BB) localizada nas dependências de agên­ cia da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT) que funcione como Banco Postal. Apesar de a EBCT ser uma empresa pública federal, ela presta serviços relativos ao Banco Postal, em todo o território nacional, como correspondente ban­ cário de instituições financeiras contratantes, às quais cabe a inteira responsabilidade pelos serviços prestados pela empresa contratada. Ora, se cabe à instituição financeira contratante dos serviços (no caso, o BB) a responsabilidade pelos serviços ban­ cários disponibilizados pela EBCT a seus clientes e usuários, eventual lesão decorrente da abertura de conta corrente por meio da utilização de docu­ mento falso atingiría o patrimônio e os serviços da instituição financeira contratante, e não os da EBCT. Tanto é assim que, caso a empreitada de­ lituosa tivesse tido êxito, os prejuízos decorrentes da abertura de conta corrente na agência do Banco Postal seriam suportados pela instituição finan­ ceira contratante. Desse modo, não há lesão apta a justificar a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação penal.244

4.3.5. Crimes contra fundações públicas federais Para fins de determinação de competência cri­ minal, conquanto o art. 109, inciso IV, da Constitui­ ção Federal, faça menção tão somente às autarquias federais e às empresas públicas federais, entende o 243. STJ, 3a Seção, CC 179.467/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 09.06.2021. 244. STJ, 3a Seção, CC 129.804/PB, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fon­ seca, j. 28/10/2015, DJe 6/11 /2015.

Supremo Tribunal Federal que as fundações públi­ cas federais são espécie do gênero autarquia federal, atraindo, portanto, a competência criminal da Justi­ ça Federal. Imaginando-se, assim, um crime come­ tido em detrimento de bem da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), ter-se-á fixada a competência da Justiça Federal, haja vista tratar-se de entidade de direito público mantida por recursos orçamentários oficiais da União e por ela instituída.245

4.3.6. Crimes contra entidades de fiscalização profissional Com relação aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, firmou-se, inicialmente, entendimento jurisprudencial pela fixação da com­ petência da Justiça Federal, uma vez que tais conse­ lhos teriam natureza autárquica federal.246 No entanto, com a entrada em vigor da Lei n° 9.649/98, essa natureza lhes foi retirada, estabele­ cendo o art. 58 da referida lei que tais conselhos passariam a ser dotados de personalidade jurídica de direito privado, salvo em relação à Ordem dos Advogados do Brasil (art. 58, § 9o). A partir daí, por­ tanto, se um crime fosse cometido em detrimento de uma dessas entidades de fiscalização profissional, a competência seria da Justiça Estadual; todavia, se o delito afetasse o serviço público federal delegado, a competência continuaria sendo da Justiça Federal, pois, como anota Roberto da Silva Oliveira, “muito embora a entidade tenha assumido feição privada, o serviço por ela prestado é público, havendo interesse direto da União, tanto que a referida lei manteve a competência da Justiça Federal para apreciar as controvérsias que envolvam os Conselhos de Fis­ calização de profissões regulamentadas, quando no exercício dos serviços a eles delegados (art. 58, § 8o, da Lei n° 9.649/98)”.247 Ocorre que, não obstante a alteração da per­ sonalidade jurídica dessas entidades pela Lei n° 9.649/98, os Tribunais Superiores continuaram entendendo que, especificamente na área cri­ minal, a Justiça Federal continuava competente para apreciar e julgar os crimes praticados em 245. STF, 2a Turma, RE 215.741/SE, Rei. Min. Maurício Corrêa, j. 30/03/1999, DJ 04/06/1999.

246. No sentido da competência da Justiça Federal para julgar o delito do art. 205 do Código Penal ("exercer atividade com infração de decisão administrativa"), por se tratar de crime, senão contra a organização do trabalho propriamente dita (art. 109, inc. VI, da C.F.), ao menos em detri­ mento de interesses de autarquia federal, como é o Conselho Regional de Medicina, que impusera ao acusado a proibição de exercer a profissão (CF, art. 109, IV): STF - Ia Turma - HC 74.826/SP - Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 29/08/1997 p. 216.

247. Competência criminal da Justiça Federal. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2002. p. 79.

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detrimento de Conselhos Regionais de Fiscaliza­ ção de Profissões.248 Pondo um fim à celeuma, o Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na ADI 1.717, reco­ nheceu a natureza autárquica federal dos conselhos de fiscalização profissional, suspendendo, assim, a execução e aplicabilidade do art. 58 da Lei n° 9.649/98, por entender que não seria possível, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5o, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais. Após a decisão do Pretório Excelso, o art. 59 da Lei n° 10.683/2003 revogou a Lei n° 9.649/98. Temos que hoje, então, eventual crime que afete diretamente bens, serviços ou interesse de Conselho de fiscalização profissional será de competência da Justiça Federal. A contrario sensu, se o crime não for praticado contra o conselho profissional, mas sim contra um profissional que o integre, a competência será da Justiça Estadual.249

4.3.7. Crimes contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) No julgamento da ADI 3026 (Rei. Min. Eros Grau, DJ 29/09/2006), o STF manifestou entendi­ mento segundo o qual a OAB não se sujeitaria aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta, não podendo ser considerada uma entida­ de da Administração Indireta da União. A Ordem, segundo o STF, seria um serviço público indepen­ dente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro, não estando incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como “autarquias especiais” para

248. Para o STJ, "a falsificação de autenticação mecânica em guias de recolhimento relativas à Anotação de Responsabilidade Técnica - ART, causa lesão a interesse do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetu­ ra e Agronomia - CREA. O CREA, como órgão fiscalizador do exercício profissional, possui a natureza jurídica de autarquia federal, nos termos da Lei n° 5194/66, sendo, portanto, da competência da Justiça Federal o julgamento da causa, ex vi do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal". (STJ - CC 43.623/PR - Rei. Ministra Laurita Vaz - DJ 11/10/2004 p. 233).

249. Como decidiu o STJ, na hipótese de médicos serem enganados e lesados utilizando-se de dados constantes de sítio eletrônico mantido pelo Conselho Regional de Medicina, o seu interesse na identificação e punição dos estelionatários seria genérico e reflexo. Logo, verificado que a autarquia federal não foi ludibriada nem sofreu prejuízos, pois enga­ nados foram os médicos que acreditaram nas promessas fraudulentas e lesadas foram essas mesmas pessoas, resta afastada a competência da Justiça Federal: STJ - CC 61.121 /SP - 3a Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJ 06/08/2007 p. 463. Na mesma linha: Informativo n° 402 do STJ, CC 101.020/PR, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em

12/08/2009.

pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas “agências”. Destarte, a Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional.250

Por se ocupar de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucional­ mente privilegiada, na medida em que são indis­ pensáveis à administração da Justiça, o Supremo Tribunal Federal afastou a sujeição da OAB ao regime das autarquias no tocante à vinculação à Administração, daí por que incabível a exigência de concurso público, sem, todavia, ter a Suprema Corte afastado prerrogativas e privilégios, dentre eles exatamente o da competência perante a Jus­ tiça Federal. Portanto, permanece inalterada a competência criminal da Justiça Federal para processar e julgar infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da Ordem dos Advogados do Brasil, sobretudo quando tal delito estiver relacio­ nado à finalidade da OAB de promover, com ex­ clusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (Lei n° 8.906/94, art. 44, inciso . 251 Exemplificando, cuidando-se de exercício II) habitual da advocacia em desacordo com deter­ minação oriunda da OAB, no desempenho de sua função institucional de fiscalizar a profissão de advogado, não se pode afastar a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito do art. 205 do CP.252

Se recai sobre a Justiça Federal a competência para o processo e julgamento do crime do art. 205 do Código Penal na hipótese em que o agente exer­ cer a advocacia com a inscrição na OAB suspensa, em razão de infração reconhecida pelos órgãos dis­ ciplinares competentes, raciocínio diverso se aplica ao inadimplemento de anuidade, hipótese em que restará configurada a contravenção penal do art. 47

250. Rei. Min. Eros Grau - DJ 29/09/2006.

251. Para o STJ, "verificado que o ilícito, em tese, foi praticado com a utilização de inscrição da Ordem dos Advogados do Brasil, cancelada por determinação do seu Conselho Federal, deve ser fixada a competên­ cia da Justiça Federal para a instrução e julgamento do feito". (STJ - CC 44.304/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 26/03/2007 p. 196). No sentido de que compete à Justiça Federal pro­ cessar delito de falsificação de carteira da OAB: STJ, CC 33.198/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 25.03.2002. Na mesma linha, porém no tocante à falsificação de carteira de estagiário da OAB: STJ, CC 10.998/MG, Rei. Min. Edson Vidigal, DJ 04/09/1995. 252. Nessa linha:TRF4, ACR 2003.72.04.008987-0, OitavaTurma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 14/01/2009.

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do Dec.-Lei n. 3.688/41,253 logo, da competência da Justiça Estadual, eis que, nesse caso, não há falar em verdadeira punição, mas mero ato administrativo de saneamento cadastral, que, por consequência, não se amolda ao conceito penal de decisão administrativa proibitiva do exercício da profissão.254

4.3.8. Crimes contra sociedades de economia mista, concessionárias (ou permissionárias) de serviço público federal e entidades do "Siste­ ma S". Interpretando-se a contrario sensu o art. 109, inciso IV, da Carta Magna, conclui-se que infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse de sociedade de economia mista não serão julgadas pela Justiça Federal. No plano fede­ ral, podemos citar como exemplos de sociedades de economia mista o Banco do Brasil S.A.; o Banco da Amazônia S.A, o Instituto de Resseguros do Brasil; a PETROBRAS - Petróleo Brasileiro S.A, etc. Por­ tanto, eventual crime cometido em detrimento de uma sociedade de economia mista deve ser julgado perante a Justiça Estadual, ainda que esta sociedade conte com a participação da União. Nesse contexto, eis o teor da Súmula n° 42 do STJ: “Compete à Jus­ tiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento”. Na mesma linha, dispõe a súmula 556 do STF: “É competente a justiça comum para julgar as causas em que é parte a sociedade de economia mista”. À evidência, se o de­ lito cometido contra a sociedade de economia mista estiver, de alguma forma, relacionado a serviços por concessão, autorização ou delegação da União ou se houver indícios de desvio das verbas federais por ela recebidas e sujeitas à prestação de contas perante o órgão federal, não há como se afastar a competência da Justiça Federal.255

ou empresas públicas.256 Assim, se um indivíduo, na cidade de São Paulo, resolver praticar um delito de dano contra um telefone público pertencente à concessionária de serviço público, não há falar em crime de competência da Justiça Federal, nem mes­ mo por suposta violação ao serviço de telecomuni­ cações (CF, art. 21, XI), uma vez que não se pode admitir que um delito de dano individualizado a um telefone público produza lesão a interesse direto e imediato da União. Ora, nas concessões de serviço público, os bens pertencem à própria empresa con­ cessionária, que explora o serviço em nome próprio, com seu patrimônio e por sua conta e risco. Por­ tanto, sem a demonstração de prejuízo em desfavor de bens ou interesses da União, não se justifica a competência da Justiça Federal.257 Compete igualmente à Justiça Estadual proces­ sar e julgar fatos envolvendo entidades integrantes do denominado “Sistema S”. As entidades do “Sis­ tema S” (Sesc, Senac, Sebrae) são pessoas jurídicas de direito privado dotadas de recursos próprios, de­ finitivamente incorporados aos seus patrimônios, ainda que com base em contribuições parafiscais pagas pelos contribuintes e a elas repassadas ime­ diatamente pela Receita Federal. Portanto, mesmo que esses recursos sejam fiscalizados pelo Tribunal de Contas da União, não se trata de recursos que integram os bens ou o patrimônio da União. Logo, considerando-se que, para fins de subsunção à regra prevista no art. 109, IV, da CF, o interesse da União precisa ser direto e específico, não sendo suficiente o interesse genérico da coletividade, há de se reco­ nhecer a competência da Justiça Estadual para o julgamento de tais delitos.258

Também são de competência da Justiça Esta­ dual crimes cometidos contra concessionárias ou permissionárias de serviço público federal, salvo, obviamente, se resultar lesão a bens, serviços, ou interesse da União, ou de suas entidades autárquicas

Por sua vez, em se tratando de crime de con­ cussão praticado por administrador ou médico de hospital privado credenciado ao SUS (Sistema Único de Saúde), prevalece o entendimento de que a competência seria da Justiça Estadual, haja vista a presença de interesse particular do médico em obter vantagem indevida, produzindo tão somente interesse reflexo por parte da União, o que, de per si, não atrai a competência da Justiça Federal.259

253. Dec.-Lei n. 3.688/41: "Art. 47. Exercer profissão ou atividade eco­ nômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício: Pena - prisão simples, de 15 (quinze)

256. STJ - RHC 19.202/SC - 5aTurma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 08/09/2008. STJ - CC 40.865/PB - 3a Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 19/04/2004 p. 152.

dias a 3 (três) meses, ou multa".

257. STJ - CC 37.751/DF - 3a Seção - Rei. Min. Paulo Medina - DJ 16/06/2003 p. 259.

254. Nesse contexto: STJ, 3a Seção, CC 165.781-MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14.10.2020, DJe 21.10.2020; STJ, 3a Seção, CC n. 164.097/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 11/03/2019.

255. STF, Ia Turma, RE 614.115 AgR/PA, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 16/09/2014.

258.STF, 2aTurma, Rcl 43.479/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10.08.2021.

259. STF - RE 429.171/RS - 1a Turma - Rei. Min. Carlos Britto - DJ 11/02/2005 p. 13. E ainda: STJ - CC 29.304/RS - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp-DJ 12/03/2001 p. 87.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

4.3.9. Bens, serviços ou interesse da União, das autarquias federais (fundações públicas fede­ rais) e das empresas públicas federais Analisados os conceitos de União, de autarquias federais e de empresas públicas federais, cabe agora discorrer sobre a pedra de toque da competência da Justiça Federal, composta pela trilogia de bens, serviços ou interesses, uma vez que é indispensável que o crime afete, diretamente, pelo menos um destes valores jurídicos. Oportuna, aliás, é a lição de Vladimir Souza Carvalho, segundo o qual “essa tricotomia é de significado simples, se definido por si só, dada a força com que cada termo encerra, embora, às vezes, se entrelacem, visto se confundi­ rem ou serem sinônimos uns dos outros. A infração, atingindo um desses requisitos, vulnera os outros, visto ser difícil delimitar a esfera do bem, do serviço e a do interesse, de forma que um não interfira na outra. O bem é serviço e se constitui em interesse. O serviço é bem e veste o traje do interesse. O interesse é bem e é serviço”.260 Por “bens” da União, de suas entidades autárqui­ cas, ou das empresas públicas, deve-se compreender o seu respectivo patrimônio, cuja identificação é possível por ser necessariamente objeto de registro e cadastramento particularizado perante a própria adminis­ tração. Especificamente em relação à União, não se pode perder de vista o quanto disposto no art. 20 da Constituição Federal, que elenca diversos bens a ela pertencentes. Somente para citar alguns exemplos do dia a dia da Justiça Federal: eventual subtração de com­ putadores incorporados ao patrimônio do Ministério da Justiça deve ser julgada pela Justiça Federal, haja vis­ ta a lesão a bem da União; se uma fraude for cometida em desfavor do Instituto Nacional do Seguro Social, gerando o pagamento indevido de benefício previdenciário, ter-se-á se crime de estelionato em detrimento de autarquia federal de competência da Justiça Fede­ ral; por fim, caso um delito de roubo seja praticado em detrimento de uma agência da Caixa Econômica Federal, a competência será da Justiça Federal, por se tratar de empresa pública federal.261 Atualmente, não há territórios federais, na me­ dida em que os de Roraima e do Amapá foram trans­ formados em Estados, ao passo que o de Fernando 260. Competência da Justiça Federal. 3a ed. Curitiba: Editora Juruá, 1998. p. 316.

261. No sentido da competência da Justiça Federal para julgar tentati­ va de efetuar saque, mediante documento falso, de conta de correntista da Caixa Econômica Federal, porquanto a instituição financeira federal teria que devolver, em razão do contrato de depósito, o numerário ao particular caso sofresse prejuízo indevido: STJ - CC 22.842/RJ - 3a Seção

- Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 26/03/2007 p. 192.

de Noronha foi extinto e incorporado ao Estado de Pernambuco (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, arts. 14 e 15). Se forem criados novos Territórios Federais, passarão eles a integrar a União (CF, art. 18, § 2o), daí por que os crimes contra eles praticados serão de competência da Justiça Federal. No entanto, os crimes de competência estadual que forem praticados nas áreas geográficas dos Territó­ rios Federais serão de competência da Justiça do Distrito Federal e Territórios, nos exatos termos do que dispõe o art. 33, caput, da Carta Magna, c/c a Lei n° 8.185/91 (Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal e Territórios). Evidentemente, esses bens são aqueles rela­ cionados institucionalmente às entidades públicas mencionadas na norma do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, razão pela qual não se pode concluir pela competência da Justiça Federal pelo simples fato do bem ser pertencente a um funcio­ nário público federal. Eis o motivo pelo qual o STJ concluiu pela competência da Justiça Estadual para julgar delitos praticados por membros do MST em uma fazenda particular de propriedade da família do então Presidente da República Fernando Hen­ rique Cardoso.262 É firme a jurisprudência no sentido de que suposto erro sobre a pessoa ou mesmo erro na execução do delito não têm o condão de alterar a competência para a prestação jurisdicional. Não por outro motivo, em caso concreto de dano contra a Polícia Federal, em que o autor do delito teria inci­ dido em erro quanto ao estabelecimento contra o qual o delito foi praticado, pois pensava dirigir sua conduta contra a Prefeitura do Município, já que estava transtornado em razão de ter sido demitido de uma autarquia municipal, concluiu a 5a Turma do STJ263 que o art. 20, §3°, do CP, que trata do erro sobre a pessoa, não pode ser invocado para alterar regras de competência definidas pela Constituição Federal, daí por que foi reconhecida a competência da Justiça Federal, haja vista a lesão ao patrimônio da União (CF, art. 109, IV). Ainda com base na leitura do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, decidiu o Superior Tri­ bunal de Justiça que compete à Justiça estadual pro­ cessar e julgar crimes de estelionato e falsificação de documento particular praticado em detrimento de consulado estrangeiro, sem prejuízo para a União, 262. STJ - CC 36.617/DF - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 22/04/2003 p. 195.

263. STJ, 5aTurma, AgRg no HC 560.391-DF, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 04.08.2020, DJe 10.08.2020. Com entendimento semelhante: STJ, 3a Seção, CC 27.368/SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 27.11.2000.

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autarquias federais ou empresas públicas federais. Com efeito, o consulado é apenas uma representação de Estado estrangeiro dentro do território nacional, não se podendo falar em prejuízo de bens, serviços ou interesse da União. Portanto, o fato de competir à União a manutenção de relações diplomáticas com Estados estrangeiros - do que derivam as relações consulares - não tem o condão de atrair a compe­ tência da Justiça Federal.264 De se ressaltar, todavia, que há decisão monocrática da Min. Cármen Lúcia (STF, RE 831.996/DF, j. 12.11.2015) reconhecendo a competência da Justiça Federal (CF, art. 109, IV) para o processo e julgamento de crimes perpetrados contra a liberdade de agente consular e contra o patrimônio de propriedade de consulado estrangei­ ro. Para a Relatora, a garantia da incolumidade dos Agentes e Agências Consulares, de responsabilidade da União Federal, é uma decorrência da Convenção de Viena sobre Relações Consulares (arts. 31, 40 e 59), aprovada pelo Decreto Federal n. 61.078. Embora organizado e mantido pela União (art. 21, XIII, da CF), o MPDFT não é órgão de tal ente federativo, pois compõe a estrutura orgânica do Dis­ trito Federal, que é equiparado aos estados mem­ bros. Por isso, eventual crime de peculato cometido contra o MPDFT deve ser processado e julgado pelo TJDFT, e não pela Justiça Federal.265

Quanto aos crimes praticados em detrimento de bens tombados, entende-se que se o bem sub­ traído pelo agente foi tombado pelo patrimônio histórico nacional, decorre inequívoco interesse da União, e a consequente competência da Justiça Federal. Portanto, considerando que o objetivo do tombamento é a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, cabendo ao Instituto do Patri­ mônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a sua manutenção e vigilância, conclui-se pela com­ petência da Justiça Federal.266 Por outro lado, se se trata de furto e receptação de bens tombados por 264. CC 45.650-SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/3/2007. Também compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - processar e julgar supostos crimes de violação de domicílio, de dano e de cárcere privado - este, em tese, praticado contra agente consular - co­ metidos por particulares no contexto de invasão a consulado estrangeiro: STJ, 3a Seção, AgRg no CC 133.092/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 23/4/2014.

265. STJ, 3a Seção, CC 122.369/DF, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada do TJ/PE -, j. 24/10/2012. 266. Nessa linha: STJ, 3a Seção, CC 106.413/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 14/10/2009, DJe 09/11/2009. E também: TRF1, ACR 2002.38.00.042489-7/MG - 4a Turma - Rei. Desembargador Federal Mário

César Ribeiro - DJ 13/11/2008.

estado-membro ou por município, não há falar em interesse da União.267

Em relação ao desvio de verbas públicas oriun­ das de convênios firmados pela União com os mu­ nicípios, entendem os Tribunais Superiores que se a verba já estiver incorporada ao patrimônio muni­ cipal, a competência será da Justiça Estadual, por­ quanto não haveria ofensa a interesse federal. Lado outro, se a verba ainda estiver sujeita à prestação de contas perante órgão federal, a competência será da Justiça Federal.268 O extinto Tribunal Federal de Recursos chegou a editar súmula a respeito do assunto, nos seguintes termos: “Compete à Justiça Comum Estadual pro­ cessar e julgar Prefeito Municipal acusado de desvio de verba recebida em razão de convênio firmado com a União Federal” (Súmula n° 133 do extinto TFR). O STJ também possui duas súmulas acerca do tema. A súmula de n° 208 preceitua que “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal. Por sua vez, de acordo com a súmula n° 209 do STJ, “compete à Justiça Esta­ dual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”. Por isso, o desvio de verbas oriundas do FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Ma­ gistério - deve ser processado e julgado pela Justiça Federal. Isso porque, segundo o art. 212, caput, da 267. STJ - CC 56.102/SP - 3a Seção - Relatora Ministra Laurita Vaz DJU 23/10/2006 p. 256. 268. Nessa linha: STF - RE 464.621/RN - 2aTurma - Rei. Min. Ellen Gracie - Dje-222 20/11/2008. Concluindo pela competência da Justiça Federal para o julgamento de agente público estadual acusado da prática do delito

previsto no artigo 89, da revogada Lei 8.666/93, por dispensa indevida de licitação, para construção de complexo prisional, mediante emprego de

verba oriunda de convênio entre a União e o Estado, cuja fiscalização com­ petia aoTCU, pela presença do interesse da União na realização do objeto do convênio: STJ - RHC 14.870/GO - 6a Turma - Rei. Min. Paulo Medina -

DJU 25/09/2006 p. 310. No sentido da competência da Justiça Federal para processar e julgar processo penal no qual se discute o desvio de recursos provenientes do Fundo de Manutenção e de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef): Informativo n° 649 do STF, 2a Turma, HC 100.772/GO, Rei. Min. Gilmar Mendes, 22/11/2011. Na medida em que o sistema de repasse de recursos constante do programa de resposta aos desastres e reconstrução (art. 51 da Lei n° 11.775/2008, revogado pela Lei n° 12.340/2010) deriva de termo de compromisso as­ sinado entre os entes federados e o Ministério da Integração Nacional, tendo como fim específico o de socorrer a população desabrigada devido a situações de calamidade pública, estando sujeito à verificação e fiscali­ zação do Governo Federal, tem-se como presente o interesse da União e a consequente competência da Justiça Federal para a apuração de possíveis crimes de peculato e receptação: STJ, 3a Seção, CC 114.566/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 13/12/2010. Ante o cumprimento integral do convênio firmado pela União, se o dinheiro remanescente não estiver mais sujeito a qualquer fiscalização pelo TCU, nem tampouco se destinar a custeio de serviço ou atividade de competência da União, recai sobre a Justiça Estadual a competência para o processo e julgamento do feito: STF, HC 89.523, Rei. Min. Carlos Britto, j. 25/11/2008.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Constituição Federal, cabe à União aplicar, anual­ mente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Este in­ teresse da União frente à sua missão constitucional na coordenação de ações relativas ao direito funda­ mental da educação acaba por atrair o controle a ser exercido pelo TCU (CF, art. 71) e, por consequência, fixar a competência da Justiça Federal para julgar a malversação de verbas decorrentes do FUNDEF, ainda que não haja complementação por parte da União.269 No mesmo contexto, compete à Justiça Federal processar e julgar as ações penais relativas a desvio de verbas originárias do Sistema Único de Saúde (SUS), independentemente de se tratar de valores repassados aos Estados ou Municípios por meio da modalidade de transferência “fundo a fundo” ou mediante realização de convênio. Isso porque há interesse da União na regularidade do repasse e na correta aplicação desses recursos, que, conforme o art. 33, § 4o, da Lei 8.080/1990, estão sujeitos à fis­ calização federal, por meio do Ministério da Saúde e de seu sistema de auditoria. De mais a mais, o fato de os Estados e Municípios terem autonomia para gerenciar a verba destinada ao SUS não elide a necessidade de prestação de contas ao TCU, tam­ pouco exclui o interesse da União na regularidade do repasse e na correta aplicação desses recursos.270 A expressão “serviços” está relacionada à fi­ nalidade da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, ou seja, ao serviço público prestado pela respectiva entidade federal. Quanto ao vocábulo “interesse”, a fim de justi­ ficar a competência da Justiça Federal, deve ele ser particular, específico, direto; caso contrário, em se tratando de interesse genérico, remoto, não imedia­ to, a competência será da Justiça Estadual.271 Justifica-se, assim, a competência da Justiça Fe­ deral para processar e julgar o delito de contrabando (CP, art. 334-A) e o crime de descaminho (CP, art. 334, caput), ainda que inexistentes indícios de transnacionalidade da conduta, já que ambos os delitos tutelam precipuamente interesse da União, que é a quem compete privativamente definir os produ­ tos de ingresso proibido no país, além de exercer a 269. STJ, 3a Seção, CC 119.305/SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu Desembargador convocado doTJ/RJ -, j. 08/02/2012, DJe 23/02/2012.

270. Nessa linha: STJ, 3a Seção, AgRg no CC 122.555/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, j. 14/08/2013, DJe 20/08/2013. 271. OLIVEIRA, Roberto da Silva. Op. cit. p. 70.

fiscalização aduaneira e de fronteira (CF, arts. 21, XXII e 22, VII). Por isso, em caso concreto envol­ vendo a prática do crime previsto no art. 334, §1°, IV, do Código Penal - no caso concreto, a venda em uma barraca de comércio informal de mercadoria estrangeira (cigarros), permitida pela ANVISA, de­ sacompanhada de nota fiscal e sem comprovação de pagamento de imposto de importação -, concluiu o STJ tratar-se de delito da competência da Justiça Federal, a despeito de não haver quaisquer indícios de que o acusado teria participado da importação da mercadoria e do não recolhimento deliberado dos tributos de importação, porquanto se trata, o descaminho, de delito que tutela prioritariamente interesses da União (ordem tributária).272

Na mesma linha, compete à justiça estadual o julgamento de ação penal em que se apure crime de esbulho possessório efetuado em terra de pro­ priedade do Incra na hipótese em que a conduta delitiva não tenha representado ameaça à titulari­ dade do imóvel e em que os únicos prejudicados tenham sido aqueles que tiveram suas residências invadidas.273

Reiteramos: a presença de interesse genérico ou indeterminado não atrai, de per si, a competência da Justiça Federal274. Por isso, ao apreciar caso concre­ to relacionado à sonegação de correspondência em portaria de condomínio residencial (CP, art. 151, § Io, inciso I), decidiu o STJ que, a despeito de envol­ ver o caso discussão sobre existir ou não dever por parte dos Correios, empresa pública, na entrega de correspondência no domicílio dos moradores ou na Portaria, fato é que não é apontado qualquer dano aos Correios, a indicar lesão a bens, serviços ou in­ teresses da União, mas tão somente aos particulares, afasta-se a competência da Justiça Federal.275 272. STJ, 3a Seção, CC 159.680/MG, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fon­ seca, j. 08/08/2018, DJe 20/08/2018. Em sentido semelhante, porém em relação ao crime de contrabando: STJ, 3a Seção, CC 160.748/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/09/2018, DJe 04/10/2018. Quanto aos crimes

em comento, não se pode perder de vista o teor da Súmula n° 238 do extinto Tribunal Federal de Recursos: "A saída de veículo furtado para o exterior não configura o crime de descaminho ou contrabando, com­ petindo à Justiça Comum Estadual o processo e julgamento dos delitos dela decorrentes".

273. STJ, 3a Seção, CC 121.150/PR, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada doTJ/PE, j. 04/02/2013, DJe 20/02/2013. 274. No sentido de que a ofensa indireta, genérica ou reflexa praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas federais, não atrai a competência da Jus­ tiça Federal com base no art. 109, IV, da CF/88: STJ, 3a Seção, CC 147.393/ RO, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 14/09/2016, DJe 20/09/2016; STJ, 5a Turma, RHC 066.784/RS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 21/06/2016, DJe 01/08/2016.

275. STJ - CC 95.877/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de

Assis Moura - Dje 20/02/2009.

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Do mesmo modo, o simples fato de o Minis­ tério da Saúde exercer as funções de órgão central do Sistema Nacional de Transplante (art. 4o do Dec. n° 2.268/1997) não significa dizer que o crime de remoção de tecidos e órgãos previsto no art. 14 da Lei n° 9.434/97 seja de competência da Justiça Federal.276

Na mesma linha, compete à Justiça Estadual e não à Justiça Federal - processar e julgar suposto crime de perigo de desastre ferroviário qualificado pelo resultado lesão corporal e morte (art. 260, IV, § 2o, c/c art. 263 do CP) ocorrido por ocasião de des­ carrilamento de trem em malha ferroviária da União, porquanto o bem jurídico tutelado pelo referido de­ lito é a incolumidade pública, consubstanciada na segurança dos meios de comunicação e transporte, protegendo-se, indiretamente, a vida e a integridade física das pessoas vítimas do desastre. Como o sujeito passivo do delito é a coletividade em geral e, de for­ ma indireta, as pessoas que, eventualmente, sofram lesões corporais ou morte, e não a União propria­ mente dita, não há falar em crime da competência da Justiça Federal.277

Também compete à Justiça Estadual proces­ sar e julgar a suposta prática de delito de falsida­ de ideológica praticado contra Junta Comercial. O art. 6o da Lei 8.934/1994 prescreve que as Juntas Comerciais se subordinam administrativamente ao governo da unidade federativa de sua jurisdi­ ção e, tecnicamente, ao Departamento Nacional de Registro do Comércio, órgão federal. Logo, se não houver ofensa direta a bens, serviços ou interesses da União, deve ser reconhecida a competência da Justiça Estadual.278

Alguns exemplos de “serviços” ou “interesses” da União, a fim de justificar a competência da Jus­ tiça Federal, podem ser extraídos a partir da análise de hipóteses de competências administrativas da União elencadas no art. 21 da Constituição Federal, tais como: a) emitir moeda: por força do art. 21, inciso VII, da CF, compete à Justiça Federal processar e julgar o delito de moeda falsa (CP, art. 289). Ora, se à Casa da Moeda do Brasil compete emitir moeda, não há como refutar que a falsificação de moeda acarrete lesão a interesse direto da União. Para a

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caracterização do crime de moeda falsa, é necessário que o papel moeda ou a moeda metálica adulterados tenham potencialidade de enganar o homem médio. A falsificação grosseira, facilmente perceptível e in­ capaz de iludir terceiros, não pode ser objeto mate­ rial do art. 289 do CP. Porém, pode ser que, no caso concreto, essa moeda grosseiramente falsificada seja idônea a enganar determinada pessoa, subsistindo, então, a possibilidade de responsabilização criminal pelo delito de estelionato, de competência da Justiça Estadual. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justi­ ça editou a súmula 73, segundo a qual a utilização de papel moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça Estadual.279 Quanto à moeda falsa estran­ geira, trata-se de crime praticado em detrimento do Banco Central do Brasil, autarquia federal que tem a atribuição de ser depositário das reservas oficiais de ouro e moeda estrangeira, atuando também para regular o funcionamento do mercado cambial. Logo, também nessa hipótese firmar-se-á a competência da Justiça Federal. b) manter o serviço postal e o correio aéreo nacional: face o disposto no inciso X do art. 21 da CF/88, os crimes contra o serviço postal, previstos na Lei n° 6.538/78, são de competência criminal federal, além de que são praticados em detrimen­ to de serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), que é empresa pública federal. Também é de competência federal se comprovado que o réu, valendo-se de suas funções de carteiro, apropriou-se indevidamente de bens e valores con­ fiados ao serviço postal, impondo-se a sanção do art. 312 do CP, que absorve a do delito previsto no art. 40 da Lei n° 6.538/78. c) explorar, diretamente ou mediante auto­ rização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações: em virtude do inciso XI do art. 21 da Constituição Federal, compete à Justiça Fede­ ral processar e julgar o delito de desenvolvimento clandestino de telecomunicações (estação de radio­ difusão clandestina), previsto no art. 183 da Lei n° 9.472/97 (Lei Geral das Telecomunicações), assim como o crime previsto no art. 70 do Código Bra­ sileiro de Telecomunicações (Lei n° 4.117/62).280 A 279. Segundo o STJ, "a boa qualidade do falso, grosseira apenas do ponto de vista estritamente técnico, assim atestada em laudo pericial, é capaz de tipificar, em tese, o crime de moeda falsa". (STJ - CC 79.889/

276. Informativo n° 400 do STJ. CC 103.599/MG, Rei. Min. Nilson Naves, julgado em 24/6/2009.

PE - 3a Seção - Rei. Ministra Jane Silva - Dje 04/08/2008).

277. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, RHC 50.054-SP, Rei. Min. Nefi Cor­ deiro, j. 4/11/2014.

280. De acordo com a súmula n. 606 do STJ,"não se aplica o princípio da insignificância a casos de transmissão clandestina de sinal de internet via radiofrequência, que caracteriza o fato típico previsto no art. 183 da Lei n.

278. STJ, 3a Seção, CC 130.516/SP, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 26/2/2014.

9.472/97". Em sentido diverso, a 1 aTurma do SupremoTribunal Federal tem precedente (HC 127.978/PB, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/10/2017, DJe 276

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

conduta de transmitir sinal de internet, via rádio, de forma clandestina, também configura, em tese, o delito previsto no art. 183 da Lei n° 9.472/1997 (desenvolvimento clandestino de atividade de tele­ comunicações), de competência da Justiça Federal, uma vez que se trata de serviço cuja exploração é atribuída à União, ainda que se reconheça possível prejuízo a ser suportado pela empresa de telefonia.281 Todavia, a simples utilização de linhas telefônicas clonadas não configura o delito de desenvolvimento clandestino de telecomunicações.282 No mesmo con­ texto, a conduta de clonar telefones celulares, qual seja, reprogramar um aparelho de telefonia celular com número de linha e ESN de outro aparelho, deve ser processada e julgada perante a Justiça Comum Estadual. Isso porque tal conduta não se subsume ao tipo penal do art. 183 da Lei n° 9.472/1997, uma vez que não há o desenvolvimento clandestino de ativi­ dades de telecomunicação, mas apenas a utilização de linha preexistente e pertencente a outro usuário, com a finalidade de obter vantagem patrimonial in­ devida, às custas dele e das concessionárias de tele­ fonia móvel que exploram legalmente o serviço, ten­ do a obrigação de ressarcir os clientes nas hipóteses da referida fraude, inexistindo quaisquer prejuízos em detrimento de bens, serviços ou interesses da União a ensejar a competência da Justiça Federal.283 Como a competência da Justiça Federal demanda a presença de interesse direto e imediato da União, in casu, ao serviço de telecomunicações, entendem os Tribunais que compete à Justiça Estadual processar e julgar ação penal relativa à eventual prática de ilícito consistente na recepção clandestina de sinal de TV a cabo, tendo em vista a ausência de ofensa direta a bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.284

30/11 /2017) no sentido de que a oferta de serviço de internet não é passível de ser enquadrada como atividade clandestina de telecomunicações à luz do art. 183 da Lei n. 9.472/97. Para mais detalhes acerca do assunto, remete­

mos o leitor ao nosso livro de Legislação Criminal Especial Comentada, onde fazemos um estudo detalhado do crime de desenvolvimento clandestino de telecomunicações previsto no art. 183 da Lei n. 9.472/97.

281. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, AgRg no CC 111.056/SP, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 25/08/2010. 282. STJ, 3a Seção, CC 50.638/MG, Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 30/04/2007 p. 280. 283. STJ, 3a Seção, CC 113.443/SP, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 28/9/2011.

284. STJ, 3a Seção, CC 34.690/PR, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 01/07/2002 p. 211. A propósito da ligação clandestina de sinal de TV a cabo, convém destacar que, em recente julgado, a 2a Turma do Supremo declarou a atipicidade dessa conduta. Entendeu-se que o objeto do referido crime não seria "energia". Logo, considerando a inadmissibilidade da analogia ín malam partem em Direito Penal, tal conduta não poderia ser tipificada como o crime do art. 155, § 3o, do CP: STF, 2a Turma, HC 97.261/RS, Rei. Min. Joaquim Barbosa, 12/04/2011.

Por outro lado, o simples fato do delito de inci­ tação ao crime (CP, art. 286) ou o de apologia ao cri­ me (CP, art. 287) ser praticado em programa de te­ levisão não atrai a competência da Justiça Federal.285

Ainda quanto a eventual interesse da União, entende o STJ que compete à Justiça Estadual Co­ mum julgar e processar suposto delito de intercep­ tação telefônica sem autorização judicial, pois não se evidencia ofensa a bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias, ou empresas públicas286.

4.3.10. Crimes previstos no Estatuto do Desar­ mamento (Lei n° 10.826/03) Quando da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/03), surgiu discus­ são na doutrina quanto à competência para pro­ cessar e julgar os delitos ali previstos. Isso porque a referida lei instituiu o Sistema Nacional de Armas (SINARM) no âmbito do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, com circunscrição em todo o território nacional (art. Io), ao qual, dentre outras atribuições, compete identificar as características e a propriedade de armas de fogo, mediante cadastro; cadastrar as armas de fogo produzidas, importadas e vendidas no país; cadastrar as autorizações de porte de arma de fogo e as renovações expedidas pela Po­ lícia Federal, etc. Além disso, segundo a referida lei, compete à Polícia Federal, com prévia autorização do SINARM, expedir o certificado de registro de arma de fogo, o qual autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa (art. 5o), assim como a autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido (art. 10). À primeira vista, poder-se-ia pensar que todos os delitos previstos no Estatuto do Desarmamento passariam a ser de competência da Justiça Federal, uma vez que afetariam interesses de órgãos per­ tencentes à estrutura da União. No entanto, o bem jurídico tutelado pelas citadas normas não é o re­ gular funcionamento ou atuação da Administração Pública Federal, mas sim a incolumidade pública, ou seja, a garantia e preservação do estado de seguran­ ça, integridade corporal, vida, saúde e patrimônio dos cidadãos indefinidamente considerados contra possíveis atos que os exponham a perigo. Logo, o simples fato de se tratar de porte de arma de fogo

285. STF, IaTurma, RE 166.943/PR, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 04/09/95.

286. STJ - CC 98.890/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de

Assis Moura - Dje 20/02/2009.

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não evidencia, por si só, a competência da Justiça Federal. Como o objeto jurídico protegido pela Lei n° 10.826/03 é a incolumidade de toda a sociedade, vítima em potencial do uso irregular das armas de fogo, não havendo qualquer violação direta aos in­ teresses da União, a despeito de ser o SINARM um ente federal, há de se concluir, pela competência da Justiça Estadual para julgar, em regra, os crimes previstos na Lei n° 10.826/03.287 Destarte, tem-se que, em regra, a competência para processar e julgar os delitos previstos no Es­ tatuto do Desarmamento será da Justiça Estadual, ainda que a arma de fogo seja de uso privativo ou restrito, pois, nesse caso, não se vislumbra nenhum interesse da União, capaz de despertar a competên­ cia da Justiça Federal, salvo na hipótese do tráfico internacional de armas (Lei n° 10.826/03, art. 18), hipótese em que a competência será da Justiça Fede­ ral, nos exatos termos do art. 109, V, da Constituição Federal, haja vista tratar-se de crime previsto em tratado ou convenção internacional, caracterizado pela internacionalidade territorial do resultado re­ lativamente à conduta delituosa.288

4.3.11. Crimes contra a Justiça Federal, do Tra­ balho, Eleitoral, Militar da União e do Distrito Federal A Justiça Federal, a Justiça do Trabalho, a Jus­ tiça Eleitoral e a Justiça Militar da União não são pessoas jurídicas, mas sim integrantes da pessoa jurídica de direito público interno que é a União, como partes do Poder Judiciário da União. Portan­ to, eventual delito contra elas praticado é cometi­ do, em última análise, em detrimento do serviço jurisdicional da União, justificando a competência da Justiça Federal com base no art. 109, inciso IV, da CF/88.289 Assim, eventual comportamento delituoso de quem usa documento falso, em qualquer processo 287. STJ - HC 57.348/RJ - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 01/08/2006 p. 502.

288. No sentido da competência da Justiça Estadual para processar e julgar o crime de depósito e venda de munições, ainda que de uso pri­ vativo ou restrito:TRF4, ACR 2004.71.10.002861-3, SétimaTurma, Relator Néfi Cordeiro, D.E. 10/09/2008. Em sentido semelhante: STJ, 3a Seção, CC 44.129/RJ, Rei. Min. Paulo Medina, DJ 3/11/04; STJ, 5a Turma, HC 79.264/ PR, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 03/11/2008.

289. No sentido de que crime de uso de artefato incendiário contra edifício sede da Justiça Militar da União deve ser processado e julgado perante a Justiça Federal, e não perante a Justiça Militar da União, por­ quanto se trata de crime praticado em detrimento de órgão do Poder Judiciário da União, logo, que não integra o patrimônio militar nem está subordinado à administração castrense: STJ, 3a Seção, CC 137.378/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/3/2015, DJe 14/4/2015.

judiciário federal, faz surgir situação de potenciali­ dade danosa, apta a comprometer a integridade, a segurança, confiabilidade, a regularidade e a legiti­ midade de um dos serviços essenciais prestados pela União Federal, qual seja o serviço de administração da Justiça, justificando, pois, a competência da Jus­ tiça Federal.290 Nessa ordem, ao apreciar conflito de com­ petência relacionado a crime comum praticado contra juiz eleitoral, concluiu o STJ que, como a competência criminal da Justiça Eleitoral se res­ tringe ao processo e julgamento dos crimes tipica­ mente eleitorais, eventual crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração, atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal.291 Quanto aos crimes contra a Justiça do Trabalho, diz a súmula 200 do extinto Tribunal Federal de Recursos que compete à Justiça Federal processar e julgar o crime de falsificação ou de uso de documento perante a Justiça do Trabalho. No mesmo sentido é o teor da súmula n° 165 do STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho cometido no processo trabalhista. Quanto a esta úl­ tima súmula, ousaríamos fazer um pequeno acrés­ cimo: Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho cometido perante a Justiça Federal/do Trabalho/Eleitoral/Militar da União.292.

Com base nesse entendimento, em caso con­ creto pertinente ao crime de patrocínio infiel (CP, art. 355) em reclamatória trabalhista, concluiu o Supremo que o delito deveria ser julgado perante a Justiça Federal, haja vista que o bem jurídico tute­ lado pelo referido dispositivo seria a Administração da Justiça, in casu, uma Justiça “da União”.293 Do mesmo modo, ameaça de morte proferida em au­ diência na Justiça do Trabalho/Eleitoral/Militar da União, guardando estreita relação com a causa em discussão, sugere a capitulação do delito de coação 290. STF - RHC 79.331/RJ - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 29/10/1999. No sentido de que o uso de cartões de ponto ideologica­ mente falsos nos autos de reclamação trabalhista deve ser processado e julgado pela Justiça Federal: STJ, RHC 23.500/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 05/05/2011. 291. STJ - CC 45.552/RO - 3a Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJU 27/11/2006 p. 246. 292. No sentido da competência da Justiça Federal para processar e julgar crime de falso testemunho praticado em detrimento da adminis­ tração da Justiça Eleitoral, na medida em que a circunstância de ocorrer o falso depoimento em processo eleitoral não estabelece vínculo de

conexão para atrair a competência da Justiça Eleitoral: STJ - CC 35.885/ SE - 3a Seção - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 09/12/2002 p. 282. 293. STF, 2a Turma, RE 328.168/SP, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 14/06/2002 p. 159.

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no curso do processo (CP, art. 344), com a conse­ quente competência da Justiça Federal.294 Noutro giro, compete à Justiça do Distrito Fe­ deral julgar o crime de falso testemunho pratica­ do em processos sob sua jurisdição. Ao desenhar a partição de competências do Poder Judiciário da União, a Constituição da República dividiu-o em cinco ramos: 1) Justiça Comum Federal; 2) Justiça Eleitoral; 3) Justiça do Trabalho; 4) Justiça Militar; e 5) Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Excetuada a Justiça do Trabalho, todos os demais ramos do Poder Judiciário da União têm jurisdição penal. Ocorre que, em 1992, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça proferiu acórdão no qual firmou a competência da Justiça Federal para julgar crime de falso testemunho praticado contra a administração da Justiça Eleitoral (CC 2.437/SP, Rei. Ministro José Dantas, DJ 06/04/1992). Pela juris­ prudência do STJ, portanto, no caso de depoimento falso constatado em causa no âmbito do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, é da Justiça Federal a competência para processar e julgar tal delito. Entretanto, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, ao contrário da Justiça Trabalhista, detém atribuições criminais (como também as Justiças Eleitoral e a Militar). Todavia, diferentemente de todos outros braços do Poder Ju­ diciário da União, o TJDFT possui natureza híbri­ da, pois sua competência jurisdicional corresponde à dos Tribunais estaduais (ou seja, não se trata de Justiça especializada). Por isso, o Superior Tribu­ nal de Justiça proferiu julgados nos quais consignou que outros crimes (diversos do falso testemunho) cometidos contra o MPDFT ou o TJDFT não são processados e julgados na Justiça Comum Federal. Em conclusão, a índole sui generis da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, distinta por sua atribuição jurisdicional equivalente à dos Tribunais estaduais, impede o reconhecimento de interesse direto da União na causa.295

4.3.12. Crime praticado contra funcionário pú­ blico federal Em regra, crime praticado contra funcionário público federal, em razão do exercício de sua fun­ ção, afeta o serviço público federal, atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal. La­ mentável exemplo a ser lembrado é exatamente o do homicídio de três auditores fiscais do Ministério 294. STJ - CC 33.265/RJ - 3a Seção - Rei. Min. Paulo Gallotti - DJ 14/04/2003 p. 177.

295. STJ, 3a Seção, CC 166.732-DF, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14.10.2020, DJe 21.10.2020.

do Trabalho, além do motorista que os conduzia, na cidade de Unaí, noroeste de Minas Gerais, hipótese em que restou firmada a competência do Tribunal do Júri Federal, regulado pelo Decreto-lei 253/1967. Acerca do tema, o extinto Tribunal Federal de Recursos chegou a editar a súmula n° 98, segundo a qual compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra servidor público federal, no exercício de suas funções com estas relacionados. Com redação quase idêntica é a súmula n° 147 do STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função.

Da leitura das duas súmulas, conclui-se que a condição da vítima de funcionário público federal na ativa, por si só, não desloca a competência para a Justiça Federal, sendo indispensável que haja re­ lação entre a infração penal e as funções exercidas pelo funcionário público federal (propter ojficium), a fim de que seja atraída a competência da Justiça Federal. Por isso, eventual crime de roubo praticado contra carteiro da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos no exercício de sua função atrai a compe­ tência da Justiça Federal, pouco importando que os bens subtraídos pertençam a particulares.296

Caracterizado o interesse direto da União, a competência da Justiça Federal será firmada não ape­ nas quando a vítima do crime for funcionário públi­ co federal. Com efeito, em caso concreto referente a homicídio praticado por quadrilha com o intuito de impedir investigações desenvolvidas pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão do Ministério da Justiça, entendeu o STJ que a infração penal teria maculado serviços e interesses da União, razão pela qual concluiu-se pela fixação da competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito.297 Nos termos da súmula n° 147 do STJ, também recai sobre a Justiça Federal a competência para processar e julgar crime de latrocínio no qual te­ nha havido troca de tiros com policiais rodoviários federais que, embora não estivessem em serviço de patrulhamento ostensivo, foram obrigados a agir (CP, art. 13, § 2o, “a”) para reprimir assalto a institui­ ção bancária privada. Ora, por mais que os policiais rodoviários federais não estivessem em serviço de patrulhamento ostensivo, possuem, como agentes policiais, o dever legal de prender em flagrante 296. STJ, 6a Turma, HC 8.856/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 23/08/1999 p. 151. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 210.416/SP, Rei. Min. Jorge

Mussi, j. 06/12/2011, DJe 19/12/2011.

297. STJ, 6aTurma, HC 57.189/DF, Rei. Min. Og Fernandes, j. 16/12/2010.

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quem estiver praticando crime, nos termos do art. 301 do CPP. Logo, se os policiais tinham a obrigação de agir para reprimir a prática criminosa, conclui-se que agiram no exercício de suas funções, o que, de per si, atrai a competência da Justiça Federal.298

Obviamente, se o crime for praticado con­ tra funcionário público federal quando este já es­ tiver aposentado, a competência será da Justiça Estadual.299

Se o servidor público for estadual, mas se en­ contrar no exercício de função pública federal dele­ gada, a competência para processar e julgar o delito será da Justiça Federal. Por isso, eventual delito de desacato cometido contra juiz estadual investido da jurisdição eleitoral deve ser processado e julgado pela Justiça Federal, na medida em que atenta contra interesse da União.300 A ofensa a honra de dirigente sindical não se traduz em interesse da União de modo a justificar a competência da Justiça Federal, haja vista não ser ele considerado funcionário público.301

Por sua vez, em caso concreto relacionado a crime de desobediência de ordem judicial emanada de Juiz Estadual de reintegração de posse suposta­ mente praticado por funcionário público federal do INCRA, decidiu a 3a Seção do STJ tratar-se de crime de competência da Justiça Federal, na medida em que o agente se valeu de sua condição de servidor do INCRA para dar credibilidade às suas ações, uti­ lizando-se de sua função de Gerente Operacional do referido Órgão Estatal na Região, restando patente que a União tem interesse na causa, pois exige de seus servidores que obedeçam a estrita legalidade no exercício de suas funções.302

Apesar de o Poder Judiciário do Distrito Fede­ ral ser mantido pela União, eventual crime come­ tido contra servidores públicos ou magistrados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios são de competência da Justiça Comum do Distrito Federal, e não da Justiça Federal.303 Na mesma linha, a competência para processar e julgar crimes pra­ ticados contra a honra de Promotor de Justiça do 298. Nesse sentido: STJ, 5aTurma, HC 309.914/RS, Rei. Min. Jorge Mussi,

j. 7/4/2015, DJe 15/4/2015.

299. STJ - CC 88.262/SE - 3a Seção - Dje 17/10/2008. 300. STJ - HC 18.078/RJ -6aTurma - Rei. Min. Hamilton Carvalhido6a

Turma - DJ 24/06/2002 p. 345.

301. STJ - CC 46.461/SP - 3a Seção - Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa -DJ 05/10/2005 p. 160.

302. STJ - CC 97.679/RO - 3a Seção - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho-Dje 19/12/2008. 303. STJ - CC 29.229/DF - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 23/10/2000 p. 105.

Distrito Federal no exercício de suas funções é da Justiça comum do DF, não sendo aplicável a súmula n° 147 do STJ.304 Como a competência é sempre fixada com base em critérios objetivos, independentemente da aná­ lise do elemento subjetivo do agente, nas hipóteses de aberratio ictus, deve ser levada em consideração a pessoa sobre a qual recaiu a conduta, independen­ temente da chamada “vítima virtual”. Como se sabe, no erro na execução, previsto no art. 73 do Código Penal, o agente quer atingir uma pessoa, porém, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, vem a atingir pessoa diversa. Nesse caso, para fins penais, responde como se tivesse atingido a pessoa que pre­ tendia ofender. Sendo assim, se o agente quer matar um funcionário público federal, contudo, mata uma outra pessoa por erro na execução, deve responder perante um Tribunal do Júri na Justiça Estadual. Agora, se queria matar alguém e acaba produzindo a morte de um funcionário público federal {aber­ ratio ictus), deve responder pelo delito perante um Tribunal do Júri Federal.305 Tal questão chegou a ser enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, porém em uma hipótese em que um militar queria matar outro militar - aí o crime seria de competência da Justiça Militar -, porém, por erro na execução, veio a atingir um civil. Restou fixada a competência da Justiça Comum.306 Perceba-se que o art. 109, IV, da Constituição Federal, traz ressalva expressa à competência da Jus­ tiça Militar. Daí por que, em caso concreto ocorrido em lugar sujeito à administração militar, em que militar do Exército da ativa imputou falsamente fato definido como crime a funcionário público federal, concluiu o STJ tratar-se de crime de competência da Justiça Militar da União.307 304. STJ, 3a Seção, CC 119.484/DF, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 25/04/2012. 305. Roberto Luis Luchi Demo (Competência penal originária: uma perspectiva jurisprudência! crítica. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 162) e Fernando de Almeida Pedroso (Competência penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 28) posicionam-se em sentido diverso.

306. "Ainda que tenha ocorrido a aberratio ictus, o militar, na inten­ ção de cometer o crime contra colega da corporação, outro militar, na verdade, acabou praticando-o contra uma vítima civil, tal fato não afasta a competência do juízo comum. Conflito conhecido, declarando-se a competência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o suscitado". (STJ - CC 27.368/SP - 3a Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 27/11/2000 p. 123). 307. STJ, 3a Seção, CC 106.623/DF, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 28/10/2009.

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4.3.13. Crime praticado por funcionário públi­ co federal

viatura oficial da DPF, praticam crimes contra pes­ soas alheias à Administração Pública.311

Crime praticado por funcionário público fe­ deral quando relacionado com o exercício da fun­ ção também deve ser processado e julgado pela Justiça Federal. A respeito do assunto, eis o teor da súmula n° 254 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os delitos praticados por funcionário público federal, no exercício de suas funções e com estas relacionados”.308

Da mesma forma que esse crime praticado por funcionário público da União é da competência da Justiça Federal, caso o crime seja cometido por fun­ cionário de empresa pública federal ou de autarquia federal, presente o nexo funcional, estará justificada a competência da Justiça Federal. Com base nesse entendimento, decidiu a 3a Seção do STJ que compe­ te à Justiça Federal processar e julgar crime no qual empregado da Caixa Econômica Federal, em tese, teria, no exercício de suas funções, discriminado pessoa idosa que aguardava atendimento bancário, conduta que se subsume ao delito previsto no art. 96 da Lei n° 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).312

Perceba-se que o simples fato de o delito ser praticado por funcionário público federal não atrai a competência da Justiça Federal, sendo indispensável analisar se o crime guarda relação com as funções desempenhadas pelo agente. Assim, por exemplo, caso um funcionário público federal pratique um delito de estelionato fora de suas atribuições fun­ cionais e sem prejuízo a bem, serviço ou interesse da União, deverá o crime ser julgado pela Justiça Estadual.309

Por outro lado, evidenciado o nexo funcional do crime praticado pelo funcionário público federal, ter-se-á crime de competência da Justiça Federal. Nessa linha, decidiu a 2a Turma do Supremo Tri­ bunal Federal que o Júri Federal é competente para julgar Patrulheiro da Polícia Rodoviária Federal que comete homicídio no desempenho de suas funções. Nesse caso o interesse da Administração Pública Federal é evidenciado pelo exercício da atividade estatal no momento do crime.310 Aliás, em caso concreto apreciado pelo STJ, entendeu-se que ofende diretamente interesse da União Federal, atraindo a competência da Justiça Federal (art. 109, IV da CF), a conduta de Policiais Federais que, mesmo fora do exercício funcional, mas vestindo a farda, portando o distintivo da corporação, as identidades e as armas e no uso de 308. No sentido da competência da Justiça Federal para julgar crime cometido por engenheiros florestais credenciados pelo IBAMA, no exer­ cício de função pública, considerados funcionários públicos por equipa­ ração (CP, art. 327, § 1o): STJ - HC 47.364/SC - 6a Turma - Rei. Min. Hélio

De acordo com a 2a Turma do Supremo Tribu­ nal Federal, compete à Justiça do Distrito Federal e Territórios, e não à Justiça Federal, processar e julgar delitos in officio de falsidade ideológica e corrupção passiva supostamente praticados por oficial de justiça do Tribunal de Justiça do Distri­ to Federal e Territórios, no desempenho de suas funções. Afastou a Suprema Corte o argumento de que, como o Poder Judiciário do DF seria mantido pela União, a competência seria da Justiça Fede­ ral, asseverando-se que o Poder Judiciário distrital deve ter o mesmo tratamento da Justiça local.313 O crime de tráfico de influência previsto no art. 332 do Código Penal será de competência da Justiça Federal sempre que o funcionário público objeto da suposta influência qualificar-se como federal, mes­ mo que não haja prejuízo imediato à União, uma vez que o bem jurídico tutelado é o prestígio da Administração Pública.314

No mesmo contexto, não compete à Justiça Fe­ deral o julgamento de crime de estelionato praticado por réu que se atribui falsa condição de servidor público federal se, no caso, nenhum bem da União foi atingido, não se prestando ao deslocamento da competência a afetação de prestígio, honradez ou bom nome da Administração.315 A mera condição de servidor público federal não basta para atrair a competência da Justiça Fe­ deral, na medida em que o interesse da União há de

Quaglia Barbosa - DJ 04/09/2006 p. 331. 309. TRF4, ACR 96.04.03231-3, Segunda Turma, Relator Edgard An­ tônio Lippmann Júnior, DJ 18/12/1996. Nos mesmos moldes: STF - HC 92.346/SP - 2a Turma - Rei. Min. Eros Grau - Dje 031 21/02/2008. Não obstante, a 5aTurma do STJ concluiu recentemente que compete à Justiça Federal o julgamento de delitos cometidos por policiais federais que estejam fora do exercício de suas funções, mas utilizem farda, distintivo, identidade, arma e viatura da corporação: Informativo n° 457 do STJ, 5a Turma, REsp 1.102.270/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado

em 23/11/2010. 310. STF, 2a Turma, HC 79.044/RJ Rei. Min. Nelson Jobim - DJ 30/06/2000 p. 40.

311. STJ, 5aTurma, REsp 1.102.270/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 23/11/2010, DJe 06/12/2010.

312. Informativo n° 398 do STJ - CC 97.995/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 10/6/2009. 313. HC 93.019. Rei. Min. Celso de Mello. Informativo n° 531 do STF. 314. STF - HC 80.877/PA - 2a Turma - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 16/11/2001 p. 7.

315. TRF4, HC 90.04.20828-3, Segunda Turma, Relator Osvaldo Moacir Alvarez, DJ 31/12/1990.

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sobressair das funções institucionais, não da pessoa do acusado. Por isso, em caso concreto envolvendo suposto crime de homicídio qualificado praticado por policial rodoviário federal, por ele cometido quando se encontrava em deslocamento no trajeto de sua residência para o local de trabalho, concluiu a Ia Turma do STF pela fixação da competência da Justiça Estadual. O acusado pleiteava o desloca­ mento da competência para a Justiça Federal sob o argumento de ser considerado em efetivo serviço o servidor que se encontra em deslocamento no tra­ jeto de sua residência para o local de trabalho, sus­ tentando, ademais, que tinha o dever de proceder ao flagrante das vítimas, ante a constatação da suposta prática dos crimes de embriaguez ao volante e desa­ cato. Para o Colegiado, o fato em análise não teria vinculação com o ofício de policial rodoviário fede­ ral. Apesar da constatação de embriaguez da vítima ao volante, a suspeita veio a ocorrer somente após iniciada a interpelação pelo paciente, não haven­ do que se falar em dever de ofício ou em flagrante obrigatório. Além disso, a circunstância de receber, em decorrência da condição de policial rodoviário federal, verba a título de auxílio-transporte mostrar-se-ia neutra, considerada a competência da Justiça Federal. Embora tenham sido cometidas infrações penais no deslocamento até o local de trabalho, estas não guardariam qualquer vinculação com o exer­ cício das funções de policial rodoviário federal.316

4.3.14. Tribunal do Júri Federal O Tribunal do Júri não é um órgão jurisdicional exclusivo da Justiça Estadual, funcionando também na Justiça Federal. O Tribunal do Júri que funciona na Justiça Federal está disciplinado no Dec. Lei n° 253, de 28 de fevereiro de 1967. Segundo seu art. 4o, “nos crimes de competência da Justiça Federal, que devem ser julgados pelo tribunal do júri, observar-se-á o disposto na legislação processual, cabendo a sua presidência ao juiz a que competir o proces­ samento da respectiva ação penal”. De acordo com a jurisprudência, esse dispo­ sitivo foi recepcionado pela Constituição Vigente, mesmo porque, quando faz menção à competência da Justiça Federal, emprega o termo crime, generi­ camente falando, portanto, não podem ficar de fora os crimes dolosos contra a vida.

Como um crime doloso contra a vida pode ser praticado em detrimento de um bem, serviço ou interesse da União, de suas autarquias ou empresas 316. STF, Ia Turma, HC 157.012/MS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 10/12/2019.

públicas federais (v.g., crime de homicídio doloso praticado contra funcionário público federal em razão das funções), assim como a bordo de navios ou aeronaves (CF, art. 109, inciso IX), ou, ainda, em conexão com outro crime de competência da Justiça Federal (Súmula 122 do STJ),317 fixar-se-á, nessas hipóteses, a competência de um Tribunal do Júri Federal para processar e julgar tais delitos. À evidência, em relação a crime doloso contra vida praticado contra funcionário público federal, a questão está pacificada na jurisprudência desde a edição da súmula 98 do TFR e da súmula 147 do STJ. Como visto anteriormente, para a fixação da competência da Justiça Federal, afigura-se indispen­ sável o nexo entre o crime doloso contra a vida do funcionário público federal e o exercício da função pública.318 Pelos mesmos fundamentos, segundo entendi­ mento do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos demais Tribunais Regionais Federais, também compete ao Júri Federal o julga­ mento dos crimes dolosos contra a vida praticados pelos funcionários públicos federais no exercício da função - Súmula 254 do TFR.319

4.3.15. Crimes contra o meio ambiente Segundo o art. Io da Lei n° 5.197/67, “os ani­ mais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são pro­ priedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”. A partir da leitura desse dispositivo, e a despeito da Consti­ tuição Federal não dispor que a fauna silvestre seja propriedade da União, consolidou-se o “entendi­ mento de que o vocábulo Estado se encontrava no sentido de pessoa jurídica de direito internacional, e não no de estado-membro, razão pela qual se referia 317. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de crime de roubo armado contra agência dos correios, crime de competência da Justiça Federal, conexo a tentativa de homicídio contra policiais militares: STJ, 3a Seção, CC 165.117/RS, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 23/10/2019, DJe 30/10/2019. 318. Para oTRF da 4a Região, é irrelevante a circunstância de não estar a vítima em serviço no momento do fato, porquanto evidenciado nos au­ tos que o crime foi relacionado ao exercício da função pública, motivado por vingança dos réus contra o policial federal em face da prisão em fla­ grante por ele efetuada anteriormente:TRF4, EIRSE 2005.71.00.027062-5, Segunda Seção, Relator Élcio Pinheiro de Castro, DJ 23/08/2006. 319. No sentido da competência do Júri Federal para julgar Patrulheiro da Polícia Rodoviária Federal que comete homicídio no desempenho de suas funções: STF, 2aTurma, HC 79.044/RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 30/06/2000 p. 40. Em sentido semelhante: STJ - CC 19.140/RJ - 3a Seção - Rei. Min. Fernando Gonçalves - DJ 03/08/1998 p. 74.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

ao Estado brasileiro, e, por conseguinte, a fauna sil­ vestre seria propriedade da União.”320 Firmou-se, assim, entendimento jurisprudencial no sentido de que a competência para processar e julgar crimes ambientais contra a fauna silvestre seria da Justiça Federal, sendo, então, editada a sú­ mula n° 91 do STJ: “Compete à Justiça Federal pro­ cessar e julgar os crimes praticados contra a fauna”. À época, as infrações penais relativas à fauna ictiológica (pesca) somente permaneceram perante a Justiça Estadual por se tratar de contravenção penal.

Não obstante o teor do art. Io da Lei n° 5.197/67, fato é que a própria Constituição Federal estabelece a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para preservar as florestas, a fauna e a flora (CF/88, art. 23, inciso . VII) Dispõe também a Carta Magna que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra­ do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público - veja-se que não há qualquer distinção quanto ao ente federado, União, Estados, Distrito Federal e Municípios - e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CF/88, art. 225, caput), incumbindo ao Poder Pú­ blico proteger a fauna e a flora, sendo vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológi­ ca, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (CF/88, art. 225, § Io, inciso VII). Por outro lado, a nova Lei Ambiental (Lei n° 9.605/98) não reproduziu o disposto no art. Io da Lei n° 5.197/67, sendo que o proposto no parágrafo único do art. 26 da Lei n° 9.605/98, que passaria a prever a competência privativa da Justiça Federal, foi vetado e o veto mantido. Disso decorreu a alteração do antigo enten­ dimento jurisprudencial, resultando inclusive no cancelamento da súmula n° 91 do STJ em 08 de novembro de 2000. Portanto, em sendo a prote­ ção ao meio ambiente matéria de competência comum da União, dos Estados e dos Municípios, e inexistindo, quanto aos crimes ambientais, dis­ positivo constitucional ou legal expresso sobre qual a Justiça competente para o seu julgamento, tem-se que, em regra, o processo e o julgamento dos crimes ambientais é de competência da Justiça Co­ mum Estadual, salvo se praticados em detrimento de bens, serviços e interesse da União, ou de suas autarquias e empresas públicas.321*

Essa tendência dos Tribunais Superiores de restringir a competência da Justiça Federal para o julgamento de crimes ambientais pode ser aferida a partir de julgados segundo os quais a circunstância de o IBAMA, no desempenho de suas atribuições de preservação, conservação, fiscalização e contro­ le dos recursos naturais renováveis, haver sido o responsável pela apuração da infração ambiental, não determina, por si só, a competência da Justiça Federal para processar e julgar a respectiva ação penal. Assim, o fato de o IBAMA ser responsável pela fiscalização de áreas e pela expedição de au­ torização de desmatamento não indica, por si só, que exista interesse direto da Autarquia, se o crime é cometido em terra particular e, principalmente, fora de Unidade de Conservação da Natureza (Lei n° 9.985/00).322 Recentemente, todavia, ao apreciar caso con­ creto pertinente à apreensão em cativeiro de animais da fauna exótica (um babuíno e sete tigres-de-bengala) sem nenhuma marcação ou comprovação de origem, em desacordo com instrução normativa do IBAMA, autarquia federal responsável pela autoriza­ ção de ingresso e posse de animais exóticos no país, decidiu a 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça que uma vez que o ingresso de espécimes exóticas no País está condicionado à autorização do IBAMA, firma-se a competência da Justiça Federal, haja vista a existência de interesse de autarquia federal.323 Daí a importância de se saber o local em que esse crime ambiental foi praticado, eis que, se co­ metido no interior de bens da União, ou de suas entidades autárquicas ou fundacionais, a compe­ tência será da Justiça Federal. Na verdade, como ressalta Roberto Luis Luchi Demo, em relação aos crimes contra a fauna, “ao contrário do que se po­ deria deduzir num primeiro momento, não são os animais o sujeito passivo dos delitos faunísticos, muito embora sejam eles que suportam a violência física ou psíquica. Os animais jamais serão sujeitos de delitos. Figuram sempre no âmbito do Direito Penal como objeto material da conduta criminosa. parte de Parque Nacional, administrativo pelo IBAMA, responsável por sua manutenção e preservação, estará configurado interesse da União, atraindo a competência para a Justiça Federal. Assim, mesmo que o processo já estivesse em andamento perante a Justiça Estadual, como houve uma alteração da competência em razão da matéria, não é possível a aplicação da regra da perpetuação de competência do art. 87 do CPC (art. 43 do novo CPC). Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 88.013/SC, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ

10/03/2008 p. 1.

320. PACHECO, Denílson Feitoza. Op. cit. p. 399.

322. STJ - REsp 480.411/TO - 5a Turma - Rei. Min. José Arnaldo da

321. Se, à época do crime, o local onde o delito teria sido praticado pertencia a determinado município, tem-se que a competência será da

Fonseca - Publicação: DJ 13/10/2003 p. 416.

Justiça Comum Estadual. Se, posteriormente, esse local passa a fazer

17/10/2008.

323. STJ - CC 96.853/RS - 3a Seção - Rei. Min. Og Fernandes - DJe

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Sujeito passivo é o proprietário (no sentido laico da palavra) do território onde se encontra o animal mesmo». 374 Vejamos, então, alguns exemplos de crimes ambientais, apontando-se a competência criminal para julgá-los: a. Crimes ambientais e contra a vida decor­ rentes do rompimento da barragem em Brumadinho/MG: para além dos diversos crimes ambien­ tais cometidos, o rompimento da referida barragem também acarretou a trágica morte de 270 (duzentas e setenta) pessoas. Para a 6a Turma do STJ, teria havido, in casu, ofensa a bem e interesse direto e específico de órgão regulador federal e da União: as Declarações de Estabilidade da Barragem, apresen­ tadas ao antigo DNPM (autarquia federal), seriam ideologicamente falsas; os acusados teriam omitido informações essenciais à fiscalização da segurança da barragem, ao não fazê-las constar do SIGBM, sistema de dados acessado pela Agência Nacional de Mineração - ANM; e danos a sítios arqueológi­ cos, bem da União (art. 20, X, da CF), dados como atingidos pelo rompimento da barragem. Por tais motivos, reconheceu a competência da Justiça Fe­ deral para o julgamento do feito;324 325 b. Extração ilegal de recursos minerais (subs­ tâncias minerais ou minérios): atualmente previsto no art. 55 da Lei n° 9.605/98, trata-se de crime de competência da Justiça Federal, ainda que perpe­ trado em propriedade particular, pois os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens da União, nos termos do art. 20, IX, da Constituição Federal, constituindo propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento (CF/88, art. 176, caput)-,326

c. Pesca do camarão no período de defeso no mar territorial: cuida-se de crime da competência da Justiça Federal, já que o mar territorial é bem da União, nos termos do art. 20, inciso VI, da Consti­ tuição Federal;327 d. Crime ambiental de destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente (Lei n° 9.605/98, art. 38, caput): se cometido no in­ terior de unidade de conservação da União é crime de competência da Justiça Federal;328

e. Crime ambiental cometido em propriedade particular no entorno de unidade de conservação: o fato, por si só, não atrai a competência da Justi­ ça Federal, já que tais áreas não se enquadram na definição de Unidade de Conservação, nos exatos termos dispostos na Lei n° 9.985/00, a qual regula­ menta o art. 225, § Io, I, II, III e IV da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza;329 f. Crime de pesca proibida praticado em rio que faz a divisa entre dois estados: competência da Justiça Federal, eis que, segundo o art. 20, inciso III, da Constituição Federal, são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.330 Por esse motivo, o Supremo fixou a competência da Justiça Federal para processar e julgar ação penal em que se apura crime ambiental praticado em rio que atravessa o Estado de Alagoas. Asseverou-se pouco 327. TRF4, RSE 2007.72.00.013252-5, Sétima Turma, Relator Gerson

Luiz Rocha, D.E. 21/01/2009.

328. Informativo n° 398 do STJ, 3a Seção, CC 80.905/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 10/6/2009. Ainda segundo o STJ, cuidando-se de

324. Competência penal originária (uma perspectiva jurisprudencial

possível venda de animais silvestres, caçados em Reserva Particular de

crítica). São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 154.

Patrimônio Natural - declarada área de interesse público, segundo a Lei

325. STJ, 6a Turma, RHC 151.405/MG, Rei. Min. Olindo Menezes - De­ sembargador convocado doTRF 1a Região-,j. 19.10.2021.

n° 9.985/00 - evidencia-se situação excepcional indicativa da existên­ cia de interesse da União, a ensejar a competência da Justiça Federal: STJ - CC 35.476/PB - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 07/10/2002 p. 170. No mesmo contexto, se o crime contra o meio ambiente (v.g., pesca sem autorização mediante petrechos proibidos) for praticado em área adjacente à unidade de conservação federal, vislumbra-se prejuízo à União, autarquia ou empresa pública federais a ponto de determinar a competência da Justiça Federal para seu processo e julgamento. STJ, 3a Seção, CC 115.282/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 08/06/2011.

326. No sentido da competência da Justiça Federal para processar e julgar suposto crime de extração de cascalho, bem da União, sem auto­ rização do órgão ambiental em área particular (fazenda): STJ, 3a Seção, CC 116.447/MT, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 25/05/2011. Com raciocínio semelhante, porém relativo a infrações penais contra a

ordem econômica, os crimes do art. 2o, caput, e do art. 2o, § 1o, da Lei n° 8.176/91, também são de competência da Justiça Federal:"constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou ex­ plorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo";"incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transpor­ tar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo". Para o Supremo, o art. 2o da Lei 8.176/91 e o art. 55 da Lei 9.605/98 tutelam bens jurídicos distintos, porquanto o primeiro tem por objetivo resguardar o patrimônio da União e o segundo o meio ambiente. Portanto, o art. 55 da Lei n° 9.605/98 não revogou o art. 2o da Lei n° 8.176/91: STF, HC 89.878/ SP, Rei. Min. Eros Grau, julgado em 20/04/2010.

329. TRF4, ACR 2005.71.00.022340-4, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 14/01/2009. 330. No sentido da competência da Justiça Federal para julgar atos de pesca amadorista a menos de 1500 metros da jusante da Usina Hidrelétri­ ca Lucas Nogueira Garcez, local proibido durante o período da piracema, utilizando-se de uma tarrafa de nylon de uso proibido para pesca ama­ dora, na medida em que referida usina está localizada no município de Salto Grande/SP, no Rio Paranapanema, que corre em território paulista e paranaense:TRF3, ACR 2002.61.25.001404-8, Rei. Desembargador Federal Cotrim Guimarães, DJ 12/03/2009.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

importar que se tivesse chegado ao comprometi­ mento de açude, córregos e riachos locais, devendo prevalecer a circunstância de o dano apontado haver ocorrido em rio - o qual banha dois Estados - mem­ bros - que, pelo teor do inciso III do art. 20 da CF, consubstancia bem da União;331 g. Manutenção em cativeiro de espécies em extinção: cuida-se de crime de competência da Justiça Federal. A teor do disposto no art. 54 da Lei 9.985/2000, cabe ao IBAMA, autarquia federal, autorizar a captura de exemplares de espécies amea­ çadas de extinção destinada a programas de criação em cativeiro ou formação de coleções científicas. Assim, compete à Justiça Federal, dado o manifesto interesse do IBAMA, o processamento e julgamento de ação penal cujo objeto é a suposta prática de crime ambiental que envolve animais em perigo de extinção;332

h. Realização de obras ou serviços potencial­ mente poluidores sem licença ou autorização do órgão ambiental competente perpetrado em terras particulares (art. 60 da Lei n. 9.605/98): trata-se de delito da competência da Justiça Estadual, por­ quanto ausente qualquer interesse direto da União ou de suas autarquias federais;333 i. Crimes ambientais relacionados com or­ ganismos geneticamente modificados (transgênicos): cuida-se de crime da competência da Justi­ ça Federal. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) - Órgão diretamente ligado à Presidência da República, destinado a assessorar o governo na elaboração e implementação da Po­ lítica Nacional de Biossegurança - é a responsável pela autorização do plantio, por exemplo, de soja transgênica em território nacional. Portanto, diante do interesse da União no controle e regulamenta­ ção do manejo de sementes de soja transgênica, no caso de liberação, no meio ambiente, de organismo geneticamente modificado (sementes de soja trans­ gênica) em desacordo com as normas estabelecidas pelo Órgão competente, estará caracterizada a hi­ pótese do art. 109, IV, da Carta Magna, justificando a competência da Justiça Federal para o feito;334

j. Crime ambiental referente ao parcelamento irregular de solo urbano (“grilagem”) em terras da União: trata-se de delito da competência da Justiça 331. STF - RE 454.740/AL, Rei. Min. Marco Aurélio, 28/04/2009.

Federal, eis que evidente prévio esbulho sobre bem da União.335

k. Crime ambiental de caráter transnacional que envolva animais silvestres, ameaçados de extinção e espécimes exóticas ou protegidas por compromissos internacionais assumidos pelo Brasil: a transnacionalidade do crime ambiental de exportação de animais silvestres atinge interesse direto, específico e imediato da União, voltado à garantia da segurança ambiental no plano interna­ cional, em atuação conjunta com a comunidade das nações. Portanto, o envio clandestino de animais silvestres ao exterior reclama interesse direto da União no controle de entrada e saída de animais do território nacional, bem como na observância dos compromissos do Estado brasileiro com a co­ munidade internacional, para a garantia conjunta de concretização do que estabelecido nos acordos internacionais de proteção do direito fundamental à segurança ambiental. Assim, a natureza transnacional do delito ambiental de exportação de animais silvestres atrai a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, IV, da CF/1988. Daí os dizeres da Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 648: “Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime ambiental de caráter transnacional que en­ volva animais silvestres, ameaçados de extinção e espécimes exóticas ou protegidas por compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”;336 l. Crimes ambientais contra o patrimônio na­ cional: não há como se confundir bem da União com patrimônio nacional. De acordo com o art. 225, § 4, da Constituição Federal, a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pan­ tanal Mato-grossense e a Zona Costeira fazem parte do patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. A locução patrimônio nacional revela proclamação de defesa de interesses do Brasil diante de eventuais ingerências estrangei­ ras, concitando todos à defesa dos ecossistemas cita­ dos no mencionado artigo, até porque há casos em que o particular será dono de parcelas de trechos contidos nesses ecossistemas, como também dentro deles foram criados parques nacionais e municipais. Portanto, patrimônio nacional não se confunde com os bens pertencentes à União. Logo, embora a Mata

332. STJ - CC 37.137/MG - 3a Seção - Rei. Min. Felix Fischer - DJ

14/04/2003 p. 178). 333. STJ - CC 28.279/MG - 3a Seção - Rei. Min. Felix Fischer - DJ

05/06/2000 p. 114. 334. STJ - CC 41.301/RS - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 17/05/2004 p. 104.

335. Informativo n° 150 do STJ: CC 35.744/DF, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 9/10/2002. No mesmo sentido: STF - HC 84.103/DF -Tribunal Pleno - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 06/08/2004 p. 20. 336. Paradigma: STF, Pleno, RE 835.558/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 09/02/2017.

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Atlântica integre o patrimônio nacional, não se en­ quadra na definição de bem da União. Portanto, eventual crime ambiental de desmatamento da flo­ resta nativa da Mata Atlântica deve ser processado e julgado pela Justiça Estadual;337 m. Crimes ambientais diversos: ainda segun­ do o entendimento jurisprudencial, há situações específicas que justificam a competência da Justiça Federal. A título de exemplo, podemos citar os se­ guintes: delito envolvendo espécies ameaçadas de extinção, em termos oficiais; conduta envolvendo ato de contrabando de animais silvestres, peles e couros de anfíbios ou répteis para o exterior; in­ trodução ilegal de espécie exótica no país; pesca predatória no mar territorial; crime contra a fauna perpetrado em parques nacionais, reservas ecológi­ cas ou áreas sujeitas ao domínio eminente da Nação; além da conduta que ultrapassa os limites de um único estado ou as fronteiras do país.338

4.3.16. Crimes contra a fé pública O Título X da Parte Especial do Código Penal contempla os crimes contra a fé pública, bem jurí­ dico este que deve ser entendido como “a confiança que a própria ordem de relações sociais e sua atua­ ção prática determinam entre os indivíduos, ou en­ tre a Administração Pública e os cidadãos, relativa­ mente à emissão e circulação monetária, aos meios simbólicos de autenticação pública, aos documentos ou à identidade e qualificação das pessoas.”339 A fim de se determinar a Justiça competente para processar e julgar crimes contra a fé pública, e sem embargo de algumas decisões em sentido contrário, acreditamos que 04 (quatro) premissas básicas podem ser estabelecidas:

1) Em se tratando de crime de falsificação, em qualquer uma de suas modalidades, a competência será determinada pelo ente responsável pela con­ fecção do documento: se determinado documento é emitido por um órgão, é intuitivo que este órgão passa a ter interesse na preservação da autenticidade e veracidade desse documento. Partindo-se, assim, de um exemplo bem simples, o crime de moeda falsa é julgado pela Justiça Federal, na medida em que compete à União emitir moeda, nos moldes do 337. STF, Ia Turma, RE 349.189/TO, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 14/11/2002 p. 34. Na mesma linha: STJ, AgRg no CC 93.083/PE, Rei. Min. Nilson Naves, julgado em 27/8/2008; STJ, 3a Seção, CC 99.294/R0, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/8/2009.

338. Informativo n° 135 do STJ: CC 34.689/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 22/05/2002.

339. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Vol. 4: parte especial, arts. 289 a 359-H. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 58.

art. 20, VII, da Constituição Federal. Outros exem­ plos podem ser encontrados na jurisprudência: a) falsidade material e ideológica de documentos fede­ rais - certidão de dados da receita federal e guia de recolhimento do ITR/DARF - deve ser processada e julgada na Justiça Federal, mormente se a falsidade visar à obtenção de financiamento em instituição financeira, que é crime federal (Lei n° 7.492/86, arts. 19 e 26);340 b) falsificação de certidão negativa de débito do INSS deve ser processada e julgada perante a Justiça Federal, eis que se o crime de falsum atinge a presunção de veracidade dos atos da Administração, sua fé pública e sua credibilidade, a competência deve ser fixada sob a perspectiva do sujeito passivo do referido delito;341 c) o emprego mendaz do brasão da República, dístico da Admi­ nistração Federal, implica a afetação de interesse da União, consistente na correta identificação de seus agentes, justificando a competência da Justiça Fe­ deral;342 d) a falsificação e utilização de selos postais e de sinais de autenticação, caracterizam, em tese, crime contra o serviço postal, previsto no artigo 36, da Lei n° 6.538/78, e contra a fé pública, previsto no artigo 296, do Código Penal, de competência da Justiça Federal, haja vista que tais ilícitos acabam por atingir serviços e interesses de empresa pública federal (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - EBCT);343 e) como o cadastro de pessoas físicas (CPF) é documento expedido pela Secretaria da Receita Federal, órgão do Ministério da Fazenda, pertencente à estrutura da União, compete à Justi­ ça Federal processar e julgar o delito, sob pena de configuração de nulidade absoluta;344 f) no crime de adulteração de sinal identificador de veículo me­ diante substituição de placa original por outra falsa, o fato de o veículo ter sido flagrado por fiscalização da Polícia Rodoviária Federal em barreira policial não altera a natureza do crime, que se consuma com 340. Nesse sentido: STF, 2aTurma, RE 411.690/PR, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 03/09/2004 p. 35.

341. Com esse entendimento: STF, 2a Turma, HC 85.773/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 27/04/2007 p. 105. Com raciocínio diverso, há jul­ gados do STJ no sentido de que o fato de o documento público ter sido expedido por órgão federal, por si só, não atrai a competência da Justiça Federal para processar e julgar eventual crime de falsificação. Para tanto, mister que haja lesão a bem, serviço ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, nos termos do art. 109, IV, da Constituição Federal. Nessa linha: STJ, 3a Seção, AgRg no CC 141.899/ RO, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 09.09.2015, DJe 16.09.2015; STJ, 3a Seção, CC 143.616/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 28.02.2018,

DJe 09.03.2018.

342. STJ - CC 85.097/MS - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - Dje 20/02/2009.

343. TRF1, HC 2002.01.00.040358-0/TO, 3a Turma, Rei. Desembargador Federal Plauto Ribeiro, DJ 25/04/2003 p. 79.

344. STJ, 5a Turma, HC 44.701/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 19/12/2005 p. 452.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

a mera falsidade, ou seja, com a lesão direta à fé pública do órgão que registrou o veículo, no caso, o Detran estadual de sua procedência. Assim, como não há lesão direta a bens, interesses ou serviços da União ou de suas autarquias, trata-se de crime de competência da Justiça Estadual;345 g) a falsificação de documentos em detrimento do Serviço Regional de Aviação Civil (Serac) deve ser processada e julga­ da perante a Justiça Federal, já que o Serac integra a Administração Direta da União;346 h) compete à Justiça Federal julgar ação penal relativa a crime de falsificação de certidão negativa de débito emitida pelo INSS, apresentada perante órgão da adminis­ tração pública municipal, pouco importando o fato de o documento alterado ter sido utilizado junto à Administração Pública municipal, haja vista tratar-se de serviço prestado por autarquia federal;347 i) se determinado militar, a fim de obter um empréstimo perante instituição bancária, apresentar documentos falsos supostamente emitidos por sua Organização Militar, versando sobre a margem consignável dos militares tomadores de empréstimo, inclusive com a falsificação da assinatura do oficial superior, há de se concluir pela existência de crime militar, eis que o fato delituoso diz respeito à condição de militar, utilizando-se de instalações e meios pertencentes à Organização Militar, com objetivo de outros milita­ res apresentarem informações falsas supostamente fornecidas pela Administração Militar.348 Uma ressalva importante em relação a esta pri­ meira regra deve ser feita em relação à falsificação de carteira de habilitação para conduzir embarcação aquática de esporte ou recreio - categoria arrais- amador. Acerca do assunto, há precedente antigo do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, como esse documento é expedido pela Marinha do Brasil, órgão integrante das Forças Armadas, ofende o interesse e o serviço prestado pela administração militar, justificando a competência da Justiça Militar

da União.349 Por sua vez, o Supremo Tribunal Fede­ ral, por meio de uma interpretação mais restritiva, manifestou-se no sentido de que a competência seria da Justiça Comum Federal. A uma, porque a falsificação de carteira de habilitação de arrais amador não se adequaria à regra linear prevista no inciso I do mencionado art. 9o do CPM, haja vista a existência de disciplina na lei penal comum, bem como a correspondência de tipologia entre o art. 311, do CPM e o art. 297, do CP. A duas, porque, relativamente à alínea a do inciso III do art. 9o, do CPM, a menção a “ordem administrativa militar” não alcançaria o serviço de fiscalização presente no caso.350 Resultado das decisões do Supremo acerca do assunto, o STJ acabou por mudar sua orientação jurisprudencial. Para a 3a Seção do STJ, apesar de a carteira de habilitação de arrais amador ter sido emitida pela Marinha do Brasil, órgão integrante das Forças Armadas, tratava-se de delito de falso cometido por sujeito ativo civil que apresentara documentos quando instado para tanto no ato de fiscalização naval. Assim, como a atribuição para a execução de polícia marítima é da competência da União e exercida pela Polícia Federal (CF, art. 21, XXII), à Justiça Federal caberia o julgamento do feito.351 Com o objetivo de evitar novos questiona­ mentos, o Supremo deliberou, enfim, pela aprovação do enunciado de súmula vinculante acerca do tema. A propósito, eis o teor da Súmula vinculante n° 36: “Compete à Justiça Federal comum processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento falso quando se tratar de fal­ sificação da Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) ou de Carteira de Habilitação de Amador (CHA), ainda que expedidas pela Marinha do Brasil”.

2) Em se tratando de crime de uso de do­ cumento falso (CP, art. 304), por terceiro que não tenha sido responsável pela falsificação do

349. STJ, 3a Seção, CC 41,960/SP, Rei. Min. Paulo Medina, DJ 27/11/2007 p. 290.

345. STJ - CC 100.414/RS - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - Dje 07/05/2009. 346. Nessa linha: STF, 2a Turma, HC 107.146/RS, Rei. Min. Gilmar Men­ des, 07/06/2011.

347. Informativo n° 541 do STF: RE 446.938, Rei. Min. Marco Aurélio, 07/04/2009. 348. STF - HC 91.860/RS - 2a Turma - Rei. Ministra Ellen Gracie - Dje 152 14/08/2008. Nesse contexto, como já ressaltou o Superior Tribunal Militar, "para a conduta preencher o tipo do art. 311 do CPM, é necessário que a Administração Militar seja titular do bem público lesado, quer na condição de sujeito passivo principal, o que ocorre quando o documento é expedido por uma de suas agências, quer na de sujeito passivo se­ cundário, quando o documento expedido por qualquer órgão público é falsificado para lesar órgão ou órgãos da mesma Administração Militar." (Recurso criminal n° 2001.01.006811-8/RS, Rei. Min. José Júlio Pedrosa,

DJ 27/09/2001).

350. STF, 1a Turma, HC 90.451/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, Dje 187

02/10/2008. Na mesma linha: Informativo n° 538 do STF: HC 96.083, Rei. Min. Ellen Gracie, 10.03.2009. E ainda: STF, 2a Turma, HC 109.544 MC/BA, Rei. Min. Celso de Mello, j. 09/08/2011, DJe 167 30/08/2011; STF, 1aTurma, HC 104.837/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 28/09/2010, DJe 200 21/10/2010. Estranhamente, porém, em caso concreto em que determina­ do agente pretendia obter averbação em cadastro naval de habilitações específicas de aquaviário - mediante a apresentação de certificados falsos de cursos por ele não realizados -, para obter ascensão de categoria, a fim de pilotar embarcações maiores, concluiu a 1a Turma do STF que o feito seria da competência da Justiça Militar, porquanto ocorrera a utilização de documento falso visando lesionar de forma direta a própria lisura dos

cadastros sob a Administração Castrense, já que referida averbação é de atribuição exclusiva da Marinha: STF, Ia Turma, HC 113.477/CE, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 11/09/2012, DJe 195 03/10/2012.

351. STJ, 3a Seção, CC 108.134/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 24/11/2010.

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documento, irrelevante é a sua natureza (federal ou estadual), pois a competência deve ser deter­ minada em virtude da pessoa física ou jurídica prejudicada pelo uso: a qualificação do órgão ex­ pedidor do documento público é irrelevante para determinar a competência do Juízo no crime de uso de documento falso, pois o critério a ser utilizado nesse caso deve ser definido em razão da pessoa física ou jurídica ao qual o documento foi apresenta­ do, porquanto são estes que efetivamente sofrem os prejuízos em seus bens ou serviços. É nesse sentido o teor da súmula n° 546 do STJ: “A competência para processar e julgar o crime de uso de documen­ to falso é firmada em razão da entidade ou órgão ao qual foi apresentado o documento público, não importando a qualificação do órgão expedidor”. Perceba-se que, nesse caso, o uso deve ser per­ petrado por terceiro que não tenha sido o respon­ sável pela falsificação do documento, na medida em que, segundo entendimento majoritário, aquele que falsifica e posteriormente usa o documento respon­ de apenas pelo crime de falsificação, figurando o uso como mero exaurimento da conduta anterior. Logo, se determinado agente falsificou e usou o documen­ to, a regra a ser aplicada é a primeira, no sentido de se definir a competência a partir do órgão res­ ponsável pela emissão do documento. No entanto, se acaso o agente tiver cometido apenas o delito de uso de documento falso (v.g., alguém que adquire um documento falso), a competência criminal de­ verá ser determinada em virtude da pessoa física ou jurídica prejudicada pelo uso. Alguns exemplos podem ser encontrados na jurisprudência: a) o deli­ to de falsa identidade com utilização de documento de expedição exclusiva do Ministério do Exército não tem o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal se o uso de tal documento se deu perante autoridades estaduais, não havendo, in casu, lesão aos serviços da União, seus bens ou interes­ ses;352 b) crime praticado por despachante adua­ neiro que apresenta à Receita Federal guias falsas de recolhimento de ICMS relativas a mercadorias importadas deve ser processado pela Justiça Federal, porque tal ação atenta contra serviços e interesses da União;353 c) se uma carteira nacional de habili­ tação for utilizada para tentar burlar a fiscalização realizada por agentes da Polícia Rodoviária Federal, que possuem atribuição de patrulhamento ostensivo das rodovias federais, resta caracterizado o prejuí­ zo a serviço da União, justificando-se a fixação da 352. STJ - CC 4.632/RS - 3a Seção - DJ 28/06/1993. 353. TRF4, RSE 2001.71.03.000304-8, Sétima Turma, Relator Vladimir Passos de Freitas, DJ 02/04/2003.

competência da Justiça Federal, consoante o dispos­ to no art. 109, inciso IV, da Carta da República;354 d) uso de certidão negativa de débito de tributo federal em certame licitatório promovido por sociedade de economia mista estadual deve ser julgado pela Jus­ tiça Estadual;355 e) no caso de instrução de reque­ rimento de visto em passaporte com documentos falsos (contracheque, extrato bancário e declaração de imposto de renda), como a utilização dos docu­ mentos falsificados ocorre em detrimento de seção consular de embaixada, que é apenas representação de Estado estrangeiro dentro do território nacional, não se pode falar em prejuízo de bens, serviços ou interesse da União, devendo fixar-se a competência da Justiça estadual.356 3) Em caso de uso de documento falso pelo próprio autor da falsificação, configurado está um só delito, a saber, o de falsificação, eis que, nessa hipótese, o uso é considerado mero exaurimento da falsificação anterior, constituindo postfactum impunível pelo princípio da consunção, devendo a competência ser determinada pela natureza do documento, independentemente da pessoa físi­ ca ou jurídica prejudicada pelo seu uso: o uso de papéis falsificados, quando praticado pelo próprio autor da falsificação, configura postfactum não pu­ nível, mero exaurimento do “crimen falsi”, respon­ dendo o falsário, em tal hipótese, pelos delitos de falsifidade material (CP, arts. 297 e 298) ou falsidade ideológica (CP, art. 299). Exemplificando, no caso de falsificação de certificado de conclusão de curso de primeiro grau de estabelecimento particular de ensino, é irrelevante o fato de o documento falsifi­ cado haver sido ulteriormente utilizado, pelo pró­ prio autor da falsificação, perante repartição pública federal, pois, tratando-se de postfactum impunível, não há como afirmar-se caracterizada a competên­ cia penal da Justiça Federal, eis que inexistente, em tal hipótese, fato delituoso a reprimir.357

4) Em se tratando de crimes de falsificação ou de uso de documento falso cometidos como 354. STJ - CC 99.105/RS - 3a Seção - Rei. Min. Jorge Mussi - Dje 27/02/2009. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para pro­ cessar e julgar crime de uso de Certificado de Registro e Licenciamento

de Veículo (CRLV) falso apresentado à Polícia Rodoviária Federal, órgão da União, já que praticado em detrimento do serviço de patrulhamento os­ tensivo das rodovias federais, previsto no art. 20, II, do CTB: STJ, 3a Seção, CC 124.498/ES, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada do TJ/PE -, j. 12/12/2012, DJe 01/02/2013. 355. STJ - HC 29.056/ES - 5a Turma - Rei. Ministra Laurita Vaz - DJ 21/06/2004 p. 233.

356. Informativo n° 400 do STJ: CC 104.334/DF, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 24/6/2009.

357. STF - HC 84.533/MG - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 30/06/2006.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

meio para a prática de um crime-fim, sendo por este absorvidos, a competência será determinada pelo sujeito passivo do crime-fim: segundo preceitua a súmula n° 17 do STJ, quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido. Ora, se o crime àefalsum vem a ser absorvido pelo delito-fim de estelionato em virtude do princípio da consunção, a natureza do documento falsificado será irrelevante para fins de determinação de competência.358 A competência será determinada, pois, a partir do sujeito passi­ vo do crime-fim. Daí por que, em caso concreto relativo à falsificação de documento público uti­ lizado como meio para a consumação de delito de estelionato, entendeu o STJ que o simples fato do órgão expedidor das certidões falsificadas ser federal não teria o condão de atrair a competência da Justiça Federal, porquanto ausente prejuízo à União.359 Portanto, o simples fato do órgão expe­ didor do documento falsificado (v.g., CPF) ser federal não atrai a competência da Justiça Federal, se aludido registro for utilizado na abertura de contas em bancos privados, não havendo prejuízo à União.360 Com raciocínio semelhante, em caso concreto relativo à investigação de empresas de locação de veículos sediadas em São Paulo que registravam seus automóveis no Estado do Para­ ná com a finalidade de reduzir o valor do IPVA devido, como a falsidade ideológica teria sido pra­ ticada como crime-meio para a prática de crime contra a ordem tributária (Lei n° 8.137/90, art. Io), concluiu-se pela competência da Justiça Co­ mum Estadual de São Paulo, eis que o prejuízo decorrente da conduta delituosa fora suportado pelo Estado de São Paulo, sede da empresa pro­ prietária do veículo e, por conseguinte, local em que deveria ter sido recolhido o IPVA.361

Situação diferente ocorrerá caso o acusado se veja denunciado pela prática do crime de falsifica­ ção de documento público (v.g., um CPF), e pelo delito conexo de estelionato praticado contra par­ ticular, deixando de se aplicar, a princípio, o princí­ pio da consunção, por se entender que a falsificação 358. Segundo Luiz Flávio Gomes, "em virtude do princípio da con­ sunção ou da absorção devemos operar a seguinte regra geral: o fato de maior entidade consome ou absorve o de menor graduação (lexconsumens derrogat lex consumptae). A segunda regra válida é a seguinte: o crime-fim absorve o crime-meio". (Direito penal:parte geral. Vol. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 80).

359. STJ - CC 101,389/ES - 3a Seção - Rei. Min. Jorge Mussi - Dje 27/02/2009.

perpetrada ainda teria potencialidade lesiva, razão pela qual não poderia ser absorvida pelo crime-fim de estelionato. Nesse exemplo, teríamos um crime de competência da Justiça Federal - falsificação de CPF (CP, art. 297, caput) - e outro delito de compe­ tência da Justiça Estadual (CP, art. 171, caput). Deve, aí, prevalecer a competência da Justiça Federal para julgar ambos os delitos, tal qual dispõe a súmula 122 do STJ (“compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de com­ petência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”). Mas, e se, ao final do processo, entendesse o juiz federal que o delito de estelionato, de competên­ cia da Justiça Estadual, teria o condão de absorver o delito de falsificação, de competência da Justiça Federal, com fundamento na súmula n° 17 do STJ (princípio da consunção)? Permanecería ele (o juiz federal) competente para processar e julgar o delito de estelionato? Ou deveria remeter os autos à Justi­ ça Estadual? Há precedente do STJ no sentido de que, nesse caso, deve ser aplicada a regra do art. 81 do CPP, segundo a qual “verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará compe­ tente em relação aos demais processos”. Assim, na dicção da 6a Turma do STJ, eventual consunção de crime de falsificação de documento público (in casu, carteira de identificação de advogado) pelo crime de estelionato não afastaria, no momento da prolação da sentença, a competência da Justiça Fe­ deral para o julgamento do feito, nos termos do art. 81 do CPP.362 A nosso ver, com a devida vênia, se o Juiz Federal concluiu que o delito de estelionato, de competência da Justiça Estadual, absorveu o crime de falsificação, que justificava até então a compe­ tência da Justiça Federal, não há falar em aplicação da regra do art. 81 do CPP, sob pena de evidente violação ao princípio do juiz natural. Ora, a partir do momento em que desapareceu o crime conexo que justificava a competência da Justiça Federal, estamos diante de incompetência absoluta do juiz federal para apreciar o mérito da causa, não sendo possível a aplicação da perpetuação da competên­ cia, pois, se subsiste apenas o crime de estelionato da competência da Justiça Estadual, somente o juiz de direito poderá julgá-lo. Assim, se a competên­ cia da Justiça Federal é definida taxativamente na

360. STJ - REsp 993.153/MG - 5a Turma - Rei. Min. Jorge Mussi - Dje 15/09/2008. 361. Informativo n° 388 do STJ: 3a Seção, CC 102.866/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 25/3/2009.

362. STJ - RHC 18.329/PA - 6a Turma - Rei. Min. Paulo Medina - DJ 03/09/2007 p. 222.

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Constituição Federal (numerus clausus), não se pode estendê-la com base em norma infraconstitucional (CPP, art. 81), sobretudo se não houver nenhum crime de competência da Justiça Federal.

Ainda em relação à competência para processar e julgar crimes contra a fé pública, algumas súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do extinto Tribu­ nal Federal de Recursos devem ser analisadas com certa cautela. Vejamo-las: a) Súmula n° 31 do extinto TFR: “Compete à Justiça Estadual o processo e julgamento de crime de falsificação ou uso de certificado de conclusão de curso de Io e 2o graus, desde que não se refira a estabelecimento federal de ensino ou a falsidade não seja de assinatura de funcionário federal”;

b) Súmula n° 104 do STJ: “Compete à Justi­ ça Estadual o processo e julgamento dos crimes de falsificação e uso de documento falso relativo a es­ tabelecimento particular de ensino”. c) Súmula n° 62 do STJ: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsa anota­ ção na Carteira de Trabalho e Previdência Social, atribuído à empresa privada”. À época em que a sú­ mula foi editada (26/11/92), entendia-se que, pelo menos em regra, eventual falsidade no tocante à anotação na Carteira de Trabalho e Previdência So­ cial não teria o condão de causar prejuízo à União nem tampouco a suas autarquias federais, daí por que a competência era da Justiça Estadual. Ocorre que, por força da Lei n° 9.983/00, foram introdu­ zidos no Código Penal os crimes de falsificação de documentos destinados à Previdência Social (art. 297, §§ 3o e 4o, do Código Penal). Destarte, com a criação desses tipos penais, verificando-se que a falsa anotação foi feita para produzir efeito perante a Previdência Social (v.g., para se conseguir o pa­ gamento de um benefício previdenciário), há de se concluir pela competência da Justiça Federal; caso a falsa anotação não seja destinada a fazer prova perante a Previdência Social, a competência perma­ nece na Justiça Estadual (v.g., falsa anotação apenas para comprovação de prévia experiência de modo a se obter um emprego). Veja-se que a própria 3a Se­ ção do STJ, alterando o posicionamento consolidado na súmula n° 62, passou a entender que o agente que omite dados na Carteira de Trabalho e Previdên­ cia Social, atentando contra interesse da Autarquia Previdenciária, estará incurso nas mesmas sanções do crime de falsificação de documento público, nos termos do § 4o do art. 297 do Código Penal, sendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito, consoante o art. 109, inciso IV, da

Constituição Federal.363 Considerando, portanto, que o crime do art. 297, § 4o, do Código Penal, tem como principal sujeito passivo o Instituto Nacional do Seguro Social, porquanto a ausência de anotação de informações relativas ao vínculo empregatício na CTPS afeta diretamente a arrecadação de tributos, na medida em que a contribuição previdenciária é calculada com base no valor do salário pago ao empregado, não se pode concordar com decisões do STJ que ainda insistem em firmar a competência da Justiça Estadual para o processo e julgamento do referido delito, com base no preceito ultrapassado da súmula n° 62 do STJ.364

4.3.17. Juízo Federal da Execução Penal O art. 3o da Lei n° 8.072/90 impõe à União o dever de manter estabelecimentos penais de segu­ rança máxima destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou incolumidade pública. A despeito do caráter cogente desse dispositivo legal, a verdade é que, durante anos e anos, a União quedou-se inerte em relação à criação desses presídios federais. Essa desídia da União foi agravada com o advento da Lei n° 10.792/03, que deu nova redação ao art. 86, § Io, da LEP, o qual passou a dispor que a União Federal poderá construir estabelecimento penal em local distante da condenação para recolher os condena­ dos, quando a medida se justificar no interesse da segurança pública ou do próprio condenado. Enfim, no ano de 2006, a partir da reestrutura­ ção do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN -, foi criado o Sistema Penitenciário Federal, com a finalidade de ser o gestor e fiscalizador das Penitenciárias Federais. Surgiram, então, os primei­ ros presídios federais de segurança máxima, todos atualmente em funcionamento nas seguintes cida­ des: a) Porto Velho/RO; b) Mossoró/RN; c) Campo Grande/MS; d) Catanduvas/PR; e) Brasília/DF. Com a criação dos presídios federais, tornou-se cada vez mais comum a transferência de presos condenados pela Justiça Estadual para tais estabelecimentos, 363. STJ - CC 58.443/MG - 3a Seção - Rei. Ministra Laurita Vaz - Dje

26/03/2008. No mesmo sentido: TRF4, ACR 2001.71.01.001604-9, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 07/01/2009. 364. STJ, 3a Seção, CC 96.365/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 26/05/2010. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 98.791, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 13/05/2009, DJe 03/08/2009. Modificando seu entendimento anterior acerca do assunto, a 3a Seção do STJ reconheceu, em recente julgado, a competência da Justiça Federal para processar e julgar o crime caracte­ rizado pela omissão de anotação de vínculo empregatício na CTPS (art. 297, § 4°, do CP): STJ, 3a Seção, CC 135.200/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 22/10/2014, DJe 02/02/2015.

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o que provocou, inicialmente, certa controvérsia quanto à competência do juízo da execução.

Como deixa entrever a súmula n° 192 do STJ (Compete ao Juízo das Execuções Penais do Estado a execução das penas impostas a sentenciados pela Jus­ tiça Federal, Militar ou Eleitoral, quando recolhidos a estabelecimentos sujeitos à administração estadual), prevalece o entendimento de que a competência do Juízo da Execução é determinada em virtude da natureza do estabelecimento prisional em que o preso se encontra recolhido. Quando essa súmula foi elaborada pelo STJ, atribuindo ao Juízo das Exe­ cuções Penais do Estado a competência para dirimir os incidentes da execução, a realidade era uma só: diante da absoluta inércia da União em proceder à construção de presídios federais, o ônus da execução sempre recaía sobre os Estados, que se viam obriga­ dos a recolher em seus estabelecimentos prisionais presos condenados pela Justiça Federal, Eleitoral e Militar da União. Hoje, todavia, essa inércia da União em construir presídios vem sendo superada gradativamente. Considerando, então, a possibili­ dade de um preso condenado pela Justiça Estadual estar recolhido em um presídio federal, ou vice-ver­ sa, interessa, para fins de fixação da competência, a natureza do estabelecimento penitenciário em que se encontra o condenado: se estadual, o juízo das execuções será estadual; se federal, o juízo das exe­ cuções será federal.

Aliás, mesmo antes da entrada em vigor do Pa­ cote Anticrime, já era exatamente nesse sentido o teor da Lei n° 11.671/08, que dispõe sobre a trans­ ferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima. De acordo com seu art. 2o, caput, a atividade jurisdicional de execução penal nos estabelecimentos penais fede­ rais será desenvolvida pelo juízo federal da seção ou subseção judiciária em que estiver localizado o estabelecimento penal federal de segurança máxima ao qual for recolhido o preso. Eis que surge, então, o Pacote Anticrime, e acrescenta um parágrafo único ao art. 2o da Lei n. 11.671/08: “O juízo federal de execução penal será competente para as ações de natureza penal que te­ nham por objeto fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal”. A leitura do referi­ do dispositivo faz referência a duas competências diversas, senão vejamos: a) fatos ou incidentes relacionados à execu­ ção da pena: de nada adianta outorgar ao juízo federal da seção (ou subseção judiciária) em que estiver localizado o estabelecimento penal federal

de segurança máxima competência para deliberar sobre a inclusão de indivíduos nesses presídios se a eles não for igualmente outorgada competência para o julgamento dos subsequentes incidentes da execu­ ção penal, como, por exemplo, soma ou unificação de penas, progressão ou regressão de regimes, etc. Aliás, mesmo antes da entrada em vigor do Pacote Anticrime, a jurisprudência do STJ já tinha prece­ dentes nesse sentido. De fato, ao apreciar o Conflito de Competência n° 90.702/PR, relativo à execução penal de apenados que foram transferidos para a penitenciária federal de Catanduvas/PR por razões de segurança pública devido à periculosidade de suas condutas, manifestou-se a 3a Seção do STJ pela competência do juízo federal para apreciar as ques­ tões referentes à execução da pena no período de per­ manência dos presos custodiados no estabelecimento federal.365 De modo a evitar quaisquer controvérsias em relação à matéria, a Lei n. 13.964/19 simples­ mente positivou esse entendimento jurisprudencial; b) infrações penais ocorridas no estabeleci­ mento penal federal: com as mudanças promovidas pelo Pacote Anticrime, o juízo federal da execução penal também passa a ter competência para o pro­ cesso e julgamento de infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal. Conquanto o dis­ positivo legal faça uso do termo infração penal, que abrange crimes e contravenções, é correto afirmar que o crime-anão não pode ser julgado pela Justiça Federal de primeira instância, nos exatos termos do art. 109, IV, da Constituição Federal.366 Logo, na eventualidade de contravenção penal ocorrida no interior de presídio federal (v.g. jogo do bicho), a competência para o processo de conhecimento será da Justiça Estadual. Noutro giro, interessante notar que o dispositivo em questão não faz qualquer dis­ tinção em relação ao autor do delito. Logo, desde que praticado no interior do presídio federal, é de 365. STJ, 3a Seção, CC 90.702/PR, Rei. Min. Og Fernandes, DJe 13/05/2009. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 110.576/AM, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 9/6/2010. A interpretação atribuída pela Terceira

Seção do STJ ao verbete da Súmula n. 192 é a de que se transfere ao Juízo do local onde se cumpre a pena não apenas a fiscalização da execução da reprimenda, mas, também, os incidentes relacionados, dentre os quais se destacam os pedidos de progressão de regime e de livramento con­ dicional. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, AgRg no CC n. 164.523/PR, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 13/5/2019; STJ, 3a Seção, CC n. 163.091/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, DJe de 25/3/2019. No sentido de que a Resolução n° 502/2006 do Conselho da Justiça Federal é cons­ titucional, ao permitir o cumprimento de pena imposta por decisão da Justiça estadual em estabelecimento federal sob competência do juízo de Execução Criminal da Justiça Federal: STJ, HC 116.301/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 10/11 /2009. 366. Constituição Federal: "Art. 109. Aos juizes federais compete pro­ cessar e julgar: (...) IV - os crimes políticos e as infrações penais pratica­ das em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; (...)".

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todo irrelevante que o crime em questão tenha sido cometido por - ou contra - um preso, pois em am­ bas as hipóteses não se pode negar a existência de interesse direto e imediato da União, capaz, pois, de justificar a fixação da competência da Justiça Federal com fundamento no art. 109, IV, da Carta Magna. Exemplificando, se um crime de homicídio for praticado por um preso contra outro, o interesse da União estará evidenciado não apenas no dever que recai sobre ela de tutelar a integridade física (e a vida) de todas as pessoas que ali encontram-se custodiadas, mas também na obrigação de zelar pela segurança interna (e externa) dos presídios fede­ rais.367 Por outro lado, ainda que o crime em questão tenha sido cometido contra um preso por alguém que não esteja ali custodiado, como, por exemplo, por um integrante da Polícia Penal Federal (v.g., abuso de autoridade), também não se pode afastar a competência da Justiça Federal. Afinal, como dis­ põe a súmula n. 254 do extinto Tribunal Federal de Recursos, “compete à Justiça Federal processar e julgar os delitos praticados por funcionário público federal, no exercício de suas funções e com estas relacionados”.

É de todo relevante destacar que o novel pará­ grafo único do art. 2o da Lei n. 11.671/08, incluído pelo Pacote Anticrime, restringe a competência do juízo federal da execução penal às ações de natureza penal. Nada dispõe acerca dos processos de natureza cível, em sentido diverso da redação original cons­ tante do Projeto de Lei n. 882/2019 apresentado ao Congresso Nacional: “Art. 2o. (...) Parágrafo único. O juízo federal de execução penal será competen­ te para as ações de natureza cível ou penal que te­ nham por objeto fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal”, (nosso grifo) Logicamente, se acaso presente uma das hipóteses constantes do art. 109 da Constituição Federal, a exemplo de uma ação indenizatória proposta pelos familiares de preso executado no interior de um pre­ sídio federal, a competência será da Justiça Federal, eis que se trata de causa em que a União figurará na condição de ré (CF, art. 109, I). Isso, todavia, 367. Como destaca Ludmila de Paula Castro Silva (Projeto de Lei "Anticrime'^ as medidas para alterar o regime jurídico dos estabelecimentos penais federais. In Projeto de Lei Anticrime. Coordenadores: Antônio Hen­ rique Graciano Suxberger; Renee do Ó Souza; Rogério Sanches Cunha. Salvador: Editora Juspdovim, 2019. p. 62), o dispositivo em questão - art. 2o, parágrafo único, da Lei n. 11.671/08, incluído pelo Pacote Anticrime -"apresenta uma presunção de que os fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal afetam bens e interesses da União, até mesmo por macular a segurança máxima que justifica a própria existência desta espécie de presídio".

não terá o condão de atrair a competência do feito para o juízo federal da execução penal, devendo a demanda tramitar perante o Juízo Federal cível da seção (ou subseção) judiciária em que estiver loca­ lizado o estabelecimento penal federal de segurança máxima em questão. Em conclusão, quanto ao juízo competente para a execução da pena de multa advinda de sentença condenatória proferida por Juízo Federal, imposta cumulativamente com pena privativa de liberdade cumprida em estabelecimento prisional estadual, há de se aplicar a mesma lógica constante da súmula n. 192 do STJ. Não se revela possível, portanto, cindir comxecução penal para coexistir uma execução pe­ nal exclusivamente da pena privativa de liberdade, perante o juízo estadual, e uma execução da pena de multa, promovida pelo Ministério Público Fe­ deral perante o Juízo Federal da Execução. Logo, a execução da pena de deve seguir perante o Juízo Estadual no caso de haver cumprimento de pena privativa de liberdade em presídio estadual aplicada cumulativamente com a multa. Além de a multa ter natureza de sanção penal, sendo racional a existên­ cia de execução penal una, os valores recolhidos, quer por sentença condenatória proferida por Juízo Estadual ou por sentença condenatória proferida por Juízo Federal, têm o mesmo destino: o Fundo Penitenciário Nacional, nos termos do art. 2o, inciso V, da Lei Complementar n° 79/1994. Os montantes depositados no referido Fundo são repassados a outros entes federativos, conforme regras estabele­ cidas na Lei Complementar que o criou. Destarte, os valores referentes à multa penal imputada por Juízo Federal não têm destinação específica para estabelecimento prisional federal ou programas de inserção social exclusivamente administrados pela União, razão penal qual não se identifica especial interesse da União na execução da multa penal por ela imposta.368 4.3.18. Contravenções penais

Como se percebe pela leitura do art. 109, in­ ciso IV, da Constituição Federal, há uma regra de exclusão expressa da competência da Justiça Federal para processar e julgar contravenções pe­ nais. Por isso, dispõe a súmula n° 38 do STJ que compete à Justiça Estadual Comum, na vigência da Constituição de 1988, o processo por contravenção penal, ainda cpue praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas. 368. Nesse contexto: STJ, 3a Seção, CC 168.815-PR, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 10.06.2020, DJe 16.06.2020.

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Desse modo, mesmo que haja conexão entre um crime federal (v.g., contrabando) e uma con­ travenção penal (v.g., exploração de jogos de azar), prevalece a regra constitucional, indicando a neces­ sidade do desmembramento do processo.369 Nessa hipótese, não há falar em aplicação da súmula 122 do STJ, haja vista que o próprio precei­ to sumular ressalva sua aplicação a crimes conexos (“Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”. Logo, todas as contravenções penais previstas no Decreto-Lei n° 3.688/41, ainda que em prejuízo de bens, serviços e interesses federais, são de compe­ tência da Justiça Estadual. Por esse motivo, concluiu o STJ que compete à Justiça Estadual o processo e julgamento de contravenção penal referente ao exer­ cício ilegal da atividade profissional no caso de um corretor de imóveis que teve sua inscrição cancelada pelo Creci por impontualidade do pagamento das anuidades.370

Isso, no entanto, não significa dizer que a Jus­ tiça Federal jamais poderá julgar contravenções penais. Deveras, nos casos de foro por prerroga­ tiva de função, é perfeitamente possível que uma contravenção penal seja julgada por um Tribunal Regional Federal. Pense-se, por exemplo, em uma contravenção penal praticada por um Juiz Fede­ ral de São Paulo. Nesse caso, caberá ao Tribunal Regional Federal da 3a Região o processo e julga­ mento do feito, nos termos do art. 108, I, “a”, da Carta Magna. Por fim, cumpre ressaltar que, mesmo que de­ terminada conduta passe a ser considerada crime em virtude de lei penal posterior mais grave, se, ao tempo da ação ou omissão, a conduta era conside­ rada mera contravenção penal, subsiste a compe­ tência da Justiça estadual para processar e julgar o feito. Esse exemplo de novatio legis in pejus ocorreu quando da entrada em vigor da Lei Ambiental (Lei n° 9.605/98), que transformou certas condutas até então tipificadas como contravenções penais em crimes.371 369. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, CC 120.406/RJ, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira, j. 12/12/2012, DJe 01/02/2013. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 20.454/RO, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 14/02/2000 p. 18. 370. STJ, 3a Seção, CC 104.924/MG, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 24/3/2010. Na mesma linha: STJ, 3a Seção, CC 39.369/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 22/09/2003 p. 258. 371. Como se pronunciou o STJ, tendo os fatos ocorrido na vigência da Lei 4.771/65 (Código Florestal), que os tipificava como contravenção penal, e, portanto, de competência da Justiça Comum Estadual, não pode a lei posterior, Lei 9.605/98, mais grave, que os eleva à figura de crime,

4.3.19. Atos infracionais Também estão fora da competência da Justiça Federal os atos infracionais (“Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contra­ venção penal” - Art. 103, caput, da Lei n° 8.069/90), praticados por menores inimputáveis, mesmo que em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, suas entidades autárquicas ou empresas pú­ blicas. Sujeita-se o menor inimputável à jurisdição do Juiz da Infância e da Juventude, no âmbito da Justiça Comum Estadual.372

4.3.20. Crimes previstos na Lei Antiterrorismo (Lei n° 13.260/16) Com o objetivo de fixar a competência da Justi­ ça Federal para o processo e julgamento dos crimes previstos na Lei Antiterrorismo, o art. 11 da Lei n° 13.260/16 dispõe expressamente que as infrações penais ali previstas são praticadas contra o interesse da União, o que, em tese, teria o condão de fixar a competência da Justiça Federal com base no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal. Resta saber, todavia, se uma simples lei ordinária poderia livre­ mente fixar interesses da União de modo a ampliar a competência da Justiça Federal.

Com a devida vênia, se a própria Constitui­ ção delimitou a competência da Justiça Federal nos incisos do art. 109, não nos parece cabível que o legislador infraconstitucional a ampliasse por meio de simples leis ordinárias, salvo nas hipóteses em que o próprio constituinte outorga ao legislador ordinário tal atribuição. É o que ocorre, por exem­ plo, com os crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, em relação aos quais a Constituição Federal outorga a competência à Justiça Federal nos casos determinados por lei (CF, art. 109, VI, infine). É dizer, a própria Constituição Federal autoriza que a lei determine a competência em relação a tais delitos. No entanto, tal autorização não consta do inciso IV do art. 109 da Constituição, o que significa dizer que, nesse caso, somente uma alteração constitucional teria o condão de ampliar a competência da Justiça Federal.

Por tais motivos, somos levados a acreditar que o art. 11 da Lei n° 13.260/16 é manifestamente inconstitucional, pelo menos no tocante à fixação da competência da Justiça Federal. São diversos os argumentos para fundamentar tal conclusão: retroagir no sentido de remeter a competência para a sua apreciação para a Justiça Federal: STJ - CC 29.588/PB - 3a Seção - Rei. Min. Edson Vidigal

-DJ 02/10/2000 p. 138.

372. TRF4, RSE 2004.71.01.002112-5, Oitava Turma, Relator Luiz Fer­ nando Wowk Penteado, DJ 15/12/2004.

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a) o bem jurídico tutelado pelo crime de terro­ rismo - paz pública - não é um interesse exclusivo da União. Pertence a todos os entes da Federação - União, Estados-membros, Distrito Federal e Mu­ nicípios - e à sociedade como um todo;

b) ainda que se queira objetar que há um in­ teresse da União em relação à prática dos crimes previstos na Lei n° 13.260/16, é de todo evidente que tal interesse não é direto, imediato, mas sim in­ direto, mediato, o que, por si só, segundo reiterada jurisprudência dos Tribunais Superiores, não tem o condão de atrair a competência da Justiça Federal; c) mesmo que se queira argumentar que a Re­ pública Federativa do Brasil se rege nas suas rela­ ções internacionais por diversos princípios, dentre eles o repúdio ao terrorismo (CF, art. 4o, VIII), daí não se pode extrair um permissivo constitucional para a fixação da competência da Justiça Federal, porque tais princípios são mandamentos dirigidos à República Federativa do Brasil, que abrange não apenas a União, mas também os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

d) o simples fato de o crime de terrorismo es­ tar previsto em tratado ou convenção internacional não tem o condão de fixar a competência da Justiça Federal com base no art. 109, V, da Constituição Federal. Isso porque, para além de tal pressuposto, o referido dispositivo constitucional também exige, para fins de fixação da competência da Justiça Fe­ deral, que o início da execução de tal delito tenha se dado no País, e o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. Logo, ausente essa internacionalidade territorial do resul­ tado relativamente à conduta delituosa, revela-se indevida a fixação da competência da Justiça Federal com base no inciso V do art. 109 da Constituição Federal, pouco importando o fato de se tratar de cri­ me previsto em tratado ou convenção internacional; e) se a competência da Justiça Federal é fixa­ da pela própria Constituição Federal (art. 109), e se os interesses da União também estão previstos expressamente na Carta Magna (v.g., arts. 20 e 21), somente uma Emenda Constitucional teria o con­ dão de ampliar tal competência e/ou tais interesses. É o que ocorreu, por exemplo, com o incidente de deslocamento de competência, que foi expressamen­ te acrescentado ao rol do art. 109 (V-A e § 5o) pela Emenda Constitucional n° 45/04. Logo, não se pode admitir que uma simples lei ordinária outorgue no­ vos interesses à União de modo a ampliar a compe­ tência da Justiça Federal, sob pena de evidente burla à necessidade de Emenda Constitucional. 460

4.3.21. Crimes cometidos no estrangeiro Nas hipóteses de crimes praticados por brasilei­ ro (ou estrangeiro) no exterior, e desde que o delito tenha sido cometido inteiramente fora do território nacional, sem que a conduta ou o resultado tenham ocorrido no Brasil, aos quais seja aplicável a lei pe­ nal brasileira com base nas regras de extraterritorialidade constantes do art. 7o do CP, é dominante o entendimento doutrinário no sentido de que a competência deverá ser da Justiça Comum Estadual, haja vista a inexistência de qualquer hipótese ca­ paz de atrair a competência da Justiça Federal (CF, art. 109).373 Afinal, para que a competência seja da Justiça Federal, dentre tantas hipóteses possíveis, imprescindível se faz que o crime seja cometido em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas, ou quando o crime, previsto em tratado ou convenção interna­ cional, tenha se iniciado no território nacional, e terminado fora, ou vice-versa, nos termos do art. 109, incisos IV e V, da Constituição Federal.374 Não por outro motivo, em caso concreto apre­ ciado pelo STJ, relativo a policiais civis brasileiros residentes na cidade de Santana do Livramento/ RS que foram mortos na cidade de Rivera no Uru­ guai (os crimes foram perpetrados por brasileiro juntamente com corréus uruguaios), concluiu-se pela competência de uma das varas do Júri de São Paulo/SP. A uma porque seria aplicável a extraterritorialidade prevista no art. 7o, II, “b”, e § 2o, “a”, do CP, na medida em que o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. A duas porque, nos termos do art. 88 do CPP, sendo a cidade de Ribeirão Preto/SP o último domicílio do indiciado, é patente a competência do juízo da capital do Estado de São Paulo. Afastou-se, corretamente, a competência da Justiça Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no art. 109 da CF/1988, principalmente porque todo o iter criminis dos homicídios ocor­ rera no estrangeiro.375 373. Nessa linha: GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral. Vol. 2. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2007. p. 114.

374. Reconhecendo a competência da Justiça Estadual, in casu, de Tribunal do Júri estadual, para o processo e julgamento de crime de ho­ micídio doloso praticado por cidadão brasileiro nato contra cidadão pa­ raguaio cometido no Paraguai, porquanto tal delito não teria o condão de ofender bens, serviços ou interesses da União: STF, 1aTurma, RE 1.175.638 AgR/PR, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 02/04/2019. Na mesma linha, ainda

que tenha havido a prática de atos preparatórios no território nacional: STF, 1a Turma, HC 105.461/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 29/03/2016, DJe 160 01/08/2016. 375. STJ, 3a Seção, CC 104.342/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 12/08/2009. No sentido de que crime de tortura praticado integralmente em território

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Especial atenção, todavia, deve ser dispensada ao crime praticado no exterior cujo processo penal tenha sido transferido para a jurisdição brasileira, por negativa de extradição. Em caso concreto re­ ferente à participação de brasileiros em suposto esquema de falsificação de documentos públicos portugueses no território lusitano, a fim de poste­ rior uso para ingressar no Canadá e nos EUA, cuja extradição foi negada por se tratar de agente de nacionalidade brasileira (CF, art. 5o, LI), mas cujo processo criminal foi transferido para a jurisdição brasileira em virtude do Decreto n. 1.325/1994, que incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro o Tratado de Extradição entre o Governo da Repúbli­ ca Federativa do Brasil e o Governo da República Portuguesa, concluiu a 3a Seção do STJ tratar-se de feito da competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, IV, da Constituição Federal. Isso por­ que incumbe à União, segundo dispõem os arts. 21, I, e 84, VII e VIII, da Carta da República, manter relações com estados estrangeiros e cumprir os tratados firmados, fixando-se a sua responsabili­ dade na persecutio criminis nas hipóteses de crimes praticados por brasileiros no exterior, na qual haja incidência da norma interna, no caso, o Direito Penal interno e não seja possível a extradição. No plano interno, em decorrência da repercussão das relações da União com estados estrangeiros e o cumprimento dos tratados internacionais firma­ dos, a cooperação passiva, a teor dos arts. 105 e 109, X, da CF/88, impõe a execução de rogatórias pela Justiça Federal após a chancela por esta Corte Superior.376 Em outro julgado recente, a 3a Seção também reconheceu a competência da Justiça Fe­ deral com base no art. 109, IV, da Constituição Federal, para processar e julgar crime de homicídio qualificado ocorrido em Portugal, em tese pratica­ do em coautoria por dois brasileiros contra vítima de nacionalidade brasileira. Prevaleceu o entendi­ mento de que o interesse da União decorrería de suas atribuições de representar o Brasil em todas estrangeiro contra brasileiros não se subsume, em regra, a nenhuma das hipóteses de competência da Justiça Federal previstas no art 109 da CF, recaindo sobre a Justiça Comum Estadual, portanto, a competência para o processo e julgamento do feito: STJ, 3a Seção, CC 107.397/DF, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 24/9/2014. 376. STJ, 3a Seção, CC 154.656/MG, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 25/04/2018, DJe 03/05/2018. Em sentido semelhante: STJ, 3a Seção, CC

167.770/ES, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 05.12.2019.No sentido de que compete à Justiça Federal o julgamento da ação penal que versa sobre crime praticado no exterior por brasileiro que reingressa em território nacional, o qual tenha sido transferido para a jurisdição brasileira, pela impossibilidade de extradição, aplicável, assim, o art. 109, IV, da CF: STJ, 5a Turma, RHC 110.733/RJ, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j.

18.08.2020, DJe 24.08.2020.

as questões envolvendo relações internacionais e cooperação jurídica internacional (CF, arts. 21,1 e 84, VII).377

4.4. Crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorri­ do no estrangeiro, ou reciprocamente (CF, Art. 109, inciso V) Da leitura do inciso V do art. 109, conclui-se que o simples fato de o delito estar previsto em trata­ do ou convenção internacional assinado pelo Brasil, com a devida ratificação por meio de decreto legisla­ tivo do Congresso Nacional e decreto do Presidente da República, não enseja, por si só, a competência da Justiça Federal. Para além disso, é imprescindível que se trate de delito à distância, ou seja, que se faça presente a internacionalidade territorial do resulta­ do relativamente à conduta delituosa, com o início da sua execução no país, e o resultado ocorrendo ou devendo ter ocorrido no estrangeiro, ou recipro­ camente.378 Logo, a despeito de se tratar de crime previsto em tratado ou convenção internacional, compete à justiça estadual processar e julgar crime de incitação à discriminação cometido via internet, quando praticado contra pessoas determinadas e que não tenha ultrapassado as fronteiras territoriais brasileiras.379 Somente a título de exemplo, conquanto o Bra­ sil seja signatário da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,380 daí não se pode inferir que todo e qualquer crime previsto na Lei que define os crimes de tortura (Lei n° 9.455/97) sejam de competência da Justiça Federal, haja vista a ausência do segundo pressuposto do art. 109, inciso V, in fine, da Consti­ tuição Federal: “iniciada a execução no país, o resul­ tado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”. Assim, eventual crime de tortura será julgado e processado perante a Justiça Estadual, 377. STJ, 3a Seção, CC 174.686/ES, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 09.12.2020, DJe 14.12.2020. 378. Como exemplos de convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, citamos: a) Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcio­ nários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997, aprovada pelo Decreto legislativo n° 125, de 14 de junho de 2000, e promulgada pelo Decreto n° 3.678, de 30 de novembro de 2000, que passou a vigorar, para o Brasil, em 23 de outubro de 2000; b) Convenção Interamericana contra a Corrupção, adotada em Caracas, em 29 de março de 1996, aprovada pelo Decreto Legislativo n° 152, de 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto n° 4.410, de 7 de outubro de 2002, entrando em vigor, para o Brasil, em 24 de agosto de 2002.

379. STF, 1a Turma, HC 121.283/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 29/04/2014, DJe 91 13/05/2014.

380. Decreto n° 40, de 15 de fevereiro de 1991

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salvo se, obviamente, presente uma das hipóteses do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, como, por exemplo, um crime de tortura praticado por funcio­ nário público federal - interesse da União - compe­ tência da Justiça Federal. Aliás, ainda que eventual delito de tortura tenha sido praticado por policiais militares, porém no interior de delegacia da Polícia Federal, subsiste a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito. O crime de tortura é comum, mas se firma a competência de acordo com o lugar em que for cometido. Logo, se o suspeito fora, em tese, torturado em uma Delegacia da Polícia Fe­ deral, cabe à Justiça Federal o julgamento do feito.381 Na mesma linha, também não se pode acredi­ tar que o simples fato de a execução de um delito iniciar-se no país e se consumar no estrangeiro, ou reciprocamente, seja, por si só, suficiente para fins de fixação da competência da Justiça Federal. Para tanto, este delito também deve estar previsto em Tratado ou Convenção Internacional. Por isso, pa­ rece-nos que andou mal o STJ ao apreciar o CC n° 119.594/PR, referente a acusado que foi flagrado quando trazia consigo anabolizantes do Paraguai sem o devido registro da ANVISA. Nesse caso, con­ cluiu a 3a Seção do STJ que o crime previsto no art. 273, § 1°-B, I, do CP, devia ser processado e julgado pela Justiça Federal, eis que a internacionalidade da conduta criminosa acarretaria lesão a bens, serviços ou interesses da União.382

A internacionalidade da conduta criminosa não acarreta, de per si, lesão a bens, serviços ou in­ teresses da União. Tanto é verdade que a própria Constituição Federal, em seu art. 109, V, faz menção à necessidade de que a essa internacionalidade ter­ ritorial da conduta delituosa se acresça a previsão em Tratado ou Convenção Internacional. De mais a mais, fosse a mera internacionalidade da condu­ ta suficiente para fins de fixação da competência da Justiça Federal, todo e qualquer crime contra a honra praticado pela internet em páginas eletrônicas internacionais teria que ser julgado pela Justiça Fe­ deral, entendimento este que vem sendo rechaçado pelo próprio STJ.383 Ainda em relação a esses crimes previstos em tratados ou convenções internacionais dos quais o 381. STJ, 3a Seção, CC 102.714/GO, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 26/05/2010, DJe 10/06/2010. 382. STJ, 3a Seção, CC 119.594/PR, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira

Brasil seja signatário (v.g., crimes de guarda de moe­ da falsa, de tráfico internacional de entorpecentes, contra as populações indígenas, de tráfico de mulhe­ res, de envio ilegal e tráfico de menores, de tortura, de pornografia infantil e pedofilia e corrupção ativa e tráfico de influência nas transações comerciais in­ ternacionais), convém lembrar que, mesmo que tais delitos sejam cometidos integralmente no exterior, ficarão sujeitos à lei penal brasileira. Tem-se, nesse caso, hipótese de extraterritorialidade condiciona­ da da lei penal brasileira, na medida em que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a repri­ mir tais delitos (CP, art. 7o, II, “a”). Nesses casos, a aplicação da lei penal brasileira estará condicionada ao implemento das condições constantes do § 2o do art. 7° do CP. Vejamos, então, alguns exemplos de crimes que serão submetidos a julgamento perante a Justiça Fe­ deral com fundamento no art. 109, V, da Constitui­ ção Federal.384

4.4.1. Tráfico internacional de drogas A Convenção das Nações Unidas contra o Trá­ fico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas foi concluída em Viena em 20 de dezembro de 1988, entrando em vigor internacional em 11 de novembro de 1990. O Brasil ratificou a Convenção em 26 de junho de 1991 (Aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n° 162, de 14 de junho de 1991, e promulgada pelo Decreto n° 154, de 26 de junho de 1991).

Cuidando-se de crime previsto em tratado ou convenção internacional, conclui-se que, presente a internacionalidade territorial do resultado rela­ tivamente à conduta delituosa, o crime de tráfico internacional de drogas deve ser processado e jul­ gado pela Justiça Federal. Não por outro motivo, ainda sob a égide da Constituição anterior, o Su­ premo Tribunal Federal editou a súmula 522, nos seguintes termos: “Salvo ocorrência de tráfico para o 384. Com base no art. 109, V, da Constituição Federal, há preceden­ te do STJ reconhecendo a competência da Justiça Federal até mesmo para o processo e julgamento de violência doméstica e familiar contra a mulher. No caso concreto, um crime de ameaça contra a mulher teria sido cometido por meio de rede social de grande alcance, iniciando-se no estrangeiro, mas cujo resultado teria ocorrido no Brasil (crime à dis­ tância). De acordo com a 3a Seção daquela Corte, embora as convenções internacionais firmadas pelo Brasil não tipifiquem ameaças à mulher, a

- Desembargadora convocada doTJ/PE,j. 12/09/2012.

Lei Maria da Penha, que prevê medidas protetivas, veio concretizar o dever assumido pelo Estado Brasileiro de proteção à mulher. Assim, é

383. No sentido da competência da Justiça Estadual para processar e julgar crime de injúria praticado por meio da internet em páginas ele­ trônicas internacionais (v.g., Orkut eTwitter): STJ, 3a Seção, CC 121.431/ SE, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 11/04/2012.

evidente a internacionalidade das ameaças que tiveram início nos EUA, por meio de rede social de grande alcance, o que resulta na competência da Justiça Federal. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, CC 150.712/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 10/10/2018, DJe 19/10/2018.

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exterior, compete à Justiça dos Estados o processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes.”385

Especial atenção deve ser dispensada ao art. 70, caput, da Lei n° 11.343/06, segundo o qual o processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 da Lei de drogas (tráfico de drogas, tráfico de maquinários, associação para o tráfico, associação para financiamento de tráfico, financia­ mento de tráfico e colaboração como informante do tráfico), se caracterizado ilícito transnacional, são da competência da Justiça Federal. Tem-se aí tratamento diverso da lei anterior, que exigia a traficância internacional, hipótese na qual era necessária a comprovação do envolvimen­ to de agentes de mais de um país. De acordo com a lei de drogas, essa transnacionalidade deve ser compreendida como a violação à soberania de dois países, caracterizada pela circunstância objetiva de estender-se o fato - na sua prática ou em função dos resultados reais ou pretendidos - a mais de um país, independentemente da cooperação de agentes situados em territórios nacionais diversos.

Em que pese o teor do art. 70 da Lei n° 11.343/06, referindo-se a esse requisito da transnacionalidade, acreditamos que a competência da Justiça Federal deva ser estabelecida pela Constituição Federal, e não pela Lei n° 11.343/06. Logo, para que o crime de trá­ fico de drogas seja processado e julgado pela Justi­ ça Federal, basta a satisfação dos dois pressupostos constantes do art. 109, V, da Constituição Federal: a) previsão criminal em tratado ou convenção interna­ cional; b) internacionalidade territorial do resultado relativamente à conduta delituosa. O crime de tráfico internacional de drogas pressupõe o intuito de transferência da droga en­ volvendo mais de um país, dispensando, para sua caracterização, a efetiva ocorrência do resulta­ do. Essa transnacionalidade não está circunscrita às condutas de importar e exportar, aplicando-se também às demais condutas, tais como transportar, trazer consigo, etc. Portanto, responde pelo delito de tráfico internacional de drogas perante a Justi­ ça Federal o agente que, oriundo da Argentina, for flagrado no aeroporto do Galeão, durante proce­ dimento de embarque em voo internacional para a Espanha, transportando cápsulas de cocaína em seu estômago.386

385. Com conteúdo semelhante, eis o teor da Súmula n° 54 do extinto Tribunal Federal de Recursos: "Compete à Justiça Estadual de primeira instância processar e julgar crimes de tráfico internacional, quando pra­ ticado o delito em comarca que não seja sede de Vara do Juízo Federal". 386. Nessa linha: TRF3, ACR 2007.61.19.003051-0, 2a Turma, Rei. De­ sembargador Federal Cotrim Guimarães, DJF 05/03/2009 p. 433.

A própria Lei de drogas, em seu art. 40, inciso I, aponta circunstâncias indiciárias que devem ser observadas para a caracterização do ilícito trans­ nacional, tais como a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circuns­ tâncias do fato delituoso.

Não se pode acreditar que o simples fato de a cocaína ter sido provavelmente adquirida na Bolí­ via atraia a competência da Justiça Federal, pois, se assim fosse considerado, toda a apreensão da droga no país configuraria tráfico internacional, eis que o Brasil não produz tal entorpecente.387

Na mesma linha, a prisão de determinada pes­ soa em localidade próxima à fronteira do Brasil com outro país ou o fato de a droga ter sido adquirida de um estrangeiro não autorizam concluir, prima facie, pela internacionalidade do tráfico. Antes, é neces­ sário identificar se os agentes estão envolvidos com atos de importação e transporte transnacional ou se seriam meros revendedores que já teriam adquirido a droga na cidade brasileira.388

Para que possa falar em tráfico internacional de drogas, é indispensável que a droga apreendida no Brasil também seja considerada ilícita no país de origem (ou de destino). Do contrário, ter-se-á mero tráfico interno, de competência da Justiça Estadual. Daí o motivo pelo qual decidiu o STJ que a impor­ tação de cloreto de etila da Argentina não é crime de competência da Justiça Federal, pois lá não há a proibição de uso dessa substância.389 Mas e se esse tráfico internacional de drogas for cometido por militares da Força Aérea Brasilei­ ra a bordo de aeronaves militares? A quem compe­ te processar e julgar o delito? À Justiça Federal ou à Justiça Militar da União? À primeira vista, pela lei­ tura dos incisos IV e IX do art. 109 da Constituição Federal, poder-se-ia concluir pela competência da Justiça Militar, eis que a Constituição Federal, ao se referir à competência da Justiça Federal nos dois incisos, ressalva expressamente a competência da Justiça Militar. Todavia, para o Supremo Tribunal

387. STJ - HC 66.292/MT - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 19/03/2007 p. 374.

388. STJ - CC 26.094/RS - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - Publicação: DJ 21/08/2000 p. 91.

389. De acordo com o STJ, "sendo o lança-perfume de fabricação Ar­ gentina - onde não há proibição de uso - e não constando o "cloreto de etila"das listas anexas da Convenção firmada entre o Brasil e a Argentina - não se configura a internacionalidade do delito, mas, tão-somente, a violação à ordem jurídica interna brasileira. Caracterizado, em tese, apenas o tráfico interno de entorpecentes, sem qualquer cumulação de crimes, eis que não foi apreendido nenhum outro tipo de mercadoria com o indiciado, sobressai a competência da Justiça Estadual para o processo e julgamento do feito". (STJ - CC 34.767/PR - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 23/09/2002 p. 221).

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Federal, como a ressalva constitucional da com­ petência da Jurisdição Especializada Militar - in­ cisos IV e IX - não se faz presente no inciso V do artigo 109 da Constituição Federal, e cuidando-se de crime previsto em tratado ou convenção inter­ nacional, presente a internacionalidade territorial do resultado relativamente à conduta delituosa, concluiu-se pela competência da Justiça Comum Federal.390

Noutro giro, compete à Justiça Estadual o pe­ dido de habeas corpus preventivo para viabilizar, para fins medicinais, o cultivo, uso, porte e produ­ ção artesanal da Cannabis (maconha), bem como o porte em outra unidade da federação, quando não demonstrada a internacionalidade da conduta. Ora, se os impetrantes objetivam ordem de salvo con­ duto, impedindo possível constrangimento de au­ toridades estaduais (v.g., Delegado Geral da Polícia Civil, Comandante Geral da Polícia Militar), para que possam cultivar artesanalmente a planta Canabis Sativa L, bem como usá-la e portá-la dentro do território nacional com fins terapêuticos, sem qualquer intento de obter uma ordem judicial de modo a viabilizar uma conduta transnacional (v.g., importação da Cannabis), é de rigor a conclusão no sentido de que não há nada que justifique a fixação da competência da Justiça Federal. Afinal, é firme a jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto à necessidade de demonstração de internacionalidade da conduta do agente para reconhecimento da com­ petência da Justiça Federal, sendo certo, ademais, que eventual tráfico interestadual não tem o condão de deslocar a competência para tal juízo.391 a. Desclassificação de tráfico internacional de drogas e perpetuação da competência.

O que ocorre se o juiz federal, ao final do pro­ cesso, entender que a transnacionalidade não está comprovada, tratando-se, pois, de crime de tráfi­ co interno de drogas, da competência da Justiça Estadual? Uma primeira corrente sustenta ser possível a aplicação da regra do art. 81 do CPP (perpetuatio jurisdictionis). Assim, mesmo que o juiz federal ve­ nha a entender ao final do processo que o delito é de tráfico interno de drogas, esse magistrado terá sua competência prorrogada, sendo inviável a alegação 390. STF - CC 7.087/PE - Tribunal Pleno - Rei. Min. Marco Aurélio Publicação: DJ 31/08/2001.

391. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, CC 171.206/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 10/06/2020, DJe 16/06/2020.

de nulidade absoluta do processo por violação ao princípio do juiz natural.392 Em sentido diverso, há doutrinadores que en­ tendem que, a partir do momento em que o juiz federal reconhece que não se trata de tráfico inter­ nacional, mas sim de tráfico doméstico, está se de­ clarando absolutamente incompetente para apreciar o mérito da causa, não sendo possível a aplicação da regra da perpetuatio jurisdicionis do art. 81 do CPP, pois, se é crime de competência estadual, somente um juiz de direito poderá julgá-lo.393 A nosso juízo, razão assiste à segunda corren­ te. Deveras, se a competência da Justiça Federal é definida taxativamente na Constituição Federal (numerus clausus), não é possível a extensão de sua competência com base em norma infraconstitucional (art. 81 do CPP), sobretudo se nenhum crime é originariamente de competência federal.394 Nesse contexto, como já se pronunciou o STF, embora a norma do art. 81, caput, do CPP, tenha como objetivo privilegiar a celeridade, a economia e a efetividade processuais, não tem aptidão para modificar competência absoluta constitucionalmen­ te estabelecida, como é a da Justiça Federal. Logo, se o juiz federal concluir pela desclassificação da infração que justificava a competência da Justiça Federal (v.g., de contrabando para receptação), deve determinar a remessa dos autos à Justiça Estadual, mesmo que o faça após a conclusão da instrução (CPP, art. 383, § 2o), porquanto, nessa hipótese, a prorrogação da competência seria incompatível com o princípio do juiz natural.395

Situação diferente ocorrerá na hipótese de co­ nexão entre o tráfico internacional de drogas, crime de competência da Justiça Federal, pelo qual o acu­ sado seja absolvido, e um crime qualquer de compe­ tência da Justiça Estadual, v.g., roubo. A princípio, prevalecerá a competência da Justiça Federal, nos termos da súmula 122 do STJ. Nesta hipótese, mes­ mo que o juiz federal absolva o agente em relação à imputação de tráfico internacional de drogas, terá 392. Parece ser essa a posição que prevalece no âmbito dos Tribu­ nais Regionais Federais: TRF4, ACR2003.71.01.001380-0, Sétima Turma, Relatora Maria de Fátima Freitas Labarrère, DJ 03/03/2004. No mesmo sentido: TRF1, ACR 2007.37.00.001091 -9/MA, 4a Seção, Rei. Desembar­ gador Federal Mário César Ribeiro, DJ 07/08/2008.

393. Nesse sentido: THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. p. 316. Essa segunda corrente tem prevalecido nos Tribunais Su­ periores: STJ - HC 37.581/PR - 6aTurma - Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa - DJ 19/12/2005 p. 474; STF - HC 74.479/RS - 2a Turma - Rei. Min. Carlos Velloso-DJ 28/02/1997. 394. PACHECO, Denílson Feitoza. Op. cit. p. 414.

395. STF, 2a Turma, HC 113.845/SP, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 20/08/2013.

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sua competência prorrogada para julgar o delito co­ nexo, pois, se houve absolvição, isso significa dizer que a Justiça Federal afirmou sua competência, a qual será extensiva aos crimes conexos - vide regra do art. 81 do CPP.396

b. Delegação de competência federal.

Atenta à realidade então em vigor na Justiça Federal quando da promulgação da Constituição Federal, à época presente somente nas capitais bra­ sileiras, a Constituição Federal - art. 109, § 3o, em sua redação original397 - determinava que seriam processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as cau­ sas em que fossem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não fosse sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderia permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. Valendo-se desse permissivo constitucional vi­ gente à época, a antiga lei de drogas (Lei n° 6.368/76) dispunha em seu art. 27 que “o processo e o julga­ mento do crime de tráfico com o exterior caberão à justiça estadual com interveniência do Ministério Público respectivo, se o lugar em que tiver sido pra­ ticado for município que não seja sede de vara da Justiça Federal, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos”. Por isso, o extinto Tribunal Federal de Recursos editou a Súmula 54: “Compete à Justiça Estadual de primeira instância processar e julgar crimes de tráfico internacional de entorpecentes, quando praticado o delito em comarca que não seja sede de vara do juízo federal”. Assim, se um delito de tráfico internacional de drogas fosse praticado em um município que não era sede de subseção judiciária da Justiça Federal, o juiz estadual exerce­ ría competência federal delegada, devendo eventual recurso ser encaminhado ao respectivo Tribunal Re­ gional Federal. Nessa hipótese, caso houvesse um conflito de competência entre esse juiz estadual no exercício de competência federal delegada e um juiz federal da mesma região, caberia ao Tribunal Regio­ nal Federal decidi-lo, e não ao Superior Tribunal de Justiça, nos exatos termos da súmula n° 3 do STJ: “Compete ao TRF dirimir conflito de competência

verificado, na respectiva Região, entre Juiz Federal e Juiz Estadual investido de jurisdição federal”. Em relação à competência do Juiz Federal cuja circunscrição judiciária abrangesse a comarca, essa competência federal delegada ao juiz estadual pelo fato de não existir vara da Justiça Federal no mu­ nicípio era considerada hipótese de competência territorial, e não em razão da matéria, como cos­ tuma ser a divisão de competência entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual. Assim, se se tratava de competência territorial, e, portanto, relativa, even­ tual nulidade deveria ser arguida oportunamente, sob pena de preclusão.398 Com a entrada em vigor da nova Lei de Drogas no dia 8 de outubro de 2006, e a revogação da Lei n° 6.368/76 (art. 75 da Lei n° 11.343/06), esta matéria foi sensivelmente alterada, na medida em que o pa­ rágrafo único do art. 70 da Lei n° 11.343/06 passou a dispor que os crimes praticados nos municípios que não sejam sede de vara federal serão processados e julgados na vara federal da circunscrição respectiva. Portanto, por força do novel dispositivo, eventual delito de tráfico de drogas praticado, por exemplo, no município de Mundo Novo, localizado no su­ doeste do estado do Mato Grosso do Sul, e que não é dotado de vara da Justiça Federal, deverá ser proces­ sado e julgado junto à Vara Federal de Naviraí/MS, de acordo com o Provimento n° 256, de 21/01/2005, do Tribunal Regional Federal da 3a Região.

396. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, HC 72.496/SC, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/03/2007, DJ 14/05/2007 p. 354.

Surge a indagação acerca dos inquéritos e pro­ cessos em curso perante as varas estaduais quando da entrada em vigor da nova lei de drogas. Deveríam permanecer nas varas estaduais, ou ser remetidos imediatamente à subseção judiciária federal com­ petente? Conquanto o Código de Processo Penal seja silente acerca do tema, impõe-se a aplicação subsidiária da regra do art. 43 do novo CPC com fundamento no art. 3o do CPP. Ora, com a revoga­ ção da antiga regra do art. 27 da Lei n° 6.368/76 pelo art. 75 da Lei n° 11.343/06, e a consequente alteração da competência em razão da matéria (leia-se, abso­ luta), a justiça estadual passou a ser absolutamen­ te incompetente para processar e julgar os delitos de tráfico internacional de drogas, razão pela qual todos os processos em andamento devem ter sido remetidos à subseção judiciária federal respectiva, haja vista o princípio da aplicação imediata das nor­ mas genuinamente processuais previsto no art. 2o do CPP (tempus regit actum).

397. Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 103/2019, o art. 109, §3°, da Constituição Federal, passou a ter a seguinte redação: "§3°. Lei poderá autorizar que as causas de competência da Justiça Fe­ deral em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal".

veda Pertence - DJ 29/04/2005 p. 30.

398. Nesse sentido: STF - HC 85.059/MS - 1a Turma - Rei. Min. Sepúl­

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4.4.2. Rol exemplificativo de crimes de com­ petência da Justiça Federal com fundamento no art. 109, inciso V, da Constituição Federal Outros delitos além do tráfico internacional de drogas justificam a fixação da competência da Justiça Federal com base no art. 109, inciso V, da Constituição Federal. Vejamos alguns exemplos: a) Tráfico internacional de arma de fogo: como o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra a fabricação e o tráfico ilícitos de armas de fogo, munições, explosivos e outros ma­ teriais correlatos,399 como o delito do art. 18 da Lei n° 10.826/03 caracteriza-se pela internacionalidade territorial do resultado relativamente à conduta de­ lituosa, conclui-se que ambos os requisitos do art. 109, inciso V, da Constituição Federal estão preen­ chidos, justificando-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito em questão;

b) Tráfico internacional de pessoas: quanto à previsão do crime do art. 149-A do CP (incluí­ do pela Lei n° 13.344/16) em tratado ou conven­ ção internacional, cumpre asseverar que, no dia 21 de março de 1950, foi concluída, em Lake Success, Nova Iorque, a Convenção das Nações Unidas, des­ tinada à repressão do tráfico de pessoas e do lenocínio, assinada pelo Brasil em outubro de 1951, sendo posteriormente aprovada pelo Decreto Legislativo n° 6, de 11 de junho de 1958, e promulgada pelo Decreto n° 46.981, de 8 de outubro de 1959. Tam­ bém o protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do trá­ fico de pessoas, em especial mulheres e crianças, foi aprovado no Brasil por meio do Decreto Legis­ lativo n° 231/2003 e promulgado pelo Decreto n° 5.017/2004, entrando em vigor no dia 28 de feve­ reiro de 2004. Especificamente em relação a mu­ lheres e crianças, o Brasil ratificou o Protocolo de Emenda da Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e da Convenção para a Re­ pressão do Tráfico de Mulheres Maiores, aprovado pelo Decreto Legislativo 7/1950, de Io de fevereiro de 1950, e promulgado pelo Decreto 37.176, de 15 de abril de 1955. Logo, tratando-se de crime previsto em tratado ou convenção internacional, e presen­ te o requisito da internacionalidade territorial do resultado em relação à conduta delituosa, há de se

concluir pela competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito em questão;400

c) Transferência ilegal de criança ou ado­ lescente para o exterior: como o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança,401 tra­ tando-se, o delito do art. 239 da Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) de delito que se caracteriza pela internacionalidade territorial do resultado relativamente à conduta delituosa, con­ clui-se que ambos os requisitos do art. 109, inciso V, da Constituição Federal estão preenchidos, jus­ tificando-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar o crime em questão;402

d) Pornografia infantil e pedofilia por meio da internet: como o Brasil subscreveu a Convenção sobre os Direitos da Criança,403 assim como o pro­ tocolo referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil,404 desde que satisfei­ ta a condição do art. 109, inciso V, ou seja, quando, iniciada a execução no Brasil, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamen­ te, o crime do art. 241-A405 da Lei n° 8.069/90 deve ser processado e julgado perante a Justiça Federal. É nesse sentido, aliás, a Tese de Repercussão Ge­ ral fixada no tema n. 393: “Compete à Justiça Fe­ deral processar e julgar os crimes consistentes em disponibilizar ou adquirir material pornográfico, acessível transnacionalmente, envolvendo criança ou adolescente, quando praticados por meio da rede mundial de computadores (arts. 241, 241-A e 241-B 400. No sentido da competência da Justiça Federal para julgar o delito de tráfico de mulheres, atualmente previsto no art. 149-A do CP (incluído pela Lei n° 13.344/16): STJ, 3a Seção, CC 47.634/PR, Rei. Min. Paulo Medina,

DJ 27/08/2007, p. 188. 401. Promulgada pelo Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990, e aprovada pelo Decreto Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990.0 Brasil também é signatário da Convenção Interamericana sobre Tráfico

Internacional de Menores, assinada na Cidade do México em 18 de março de 1994 - aprovada pelo Decreto Legislativo n° 105, de 30 de outubro de 1996, e promulgada pelo Decreto n° 2.740, de 20 de agosto de 1998.

402. Nessa linha: STF, Ia Turma, HC 121,472/PE, Rei. Min. DiasToffoli, j. 19/08/2014.

403. Aprovada pelo Decreto legislativo n° 28, de 14/09/1990, e pro­ mulgada pelo Decreto n° 99.710, de 21/11/90. 404. Aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legis­ lativo n° 230, de 29 de maio de 2003, o texto do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, adotado em Nova Iorque em 25 de maio de 2000. Promulgado pelo Decreto n° 5007, de 8 de março de 2004. 405. Na visão da 6a Turma do STJ (REsp 1.543.267/SC, Rei. Min. Maria

399. Decreto n° 3.229, de 29 de outubro de 1999. Promulga a Con­

Thereza de Assis Moura, j. 03/12/2015, DJe 16/02/2016), fotografar cena

venção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas

de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos, concluída

e armazenar fotografia de criança ou adolescente em poses nitidamente sensuais, com enfoque em seus órgãos genitais, ainda que cobertos por

em Washington, em 14 de novembro de 1997. Decreto Legislativo n° 58, de 18 de agosto de 1999.

peças de roupas, e incontroversa finalidade sexual e libidinosa, adequam-se, respectivamente, aos tipos do art. 240 e 241-B do ECA.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

da Lei n. 8.069-199O)”.406 Para que a competência da Justiça Federal seja fixada com base no art. 109, V, da Constituição Federal, deve ficar demonstrado que o início da execução ocorreu no Brasil e que a consumação da infração tenha ou devesse ter ocor­ rido no exterior, ou vice-versa. Tal assertiva não se modifica nas hipóteses em que a Internet é utilizada como meio para o cometimento de crimes: a prova (ou, pelo menos, indícios suficientes de prova) da execução do delito no Brasil e da sua possível consu­ mação no exterior, ou vice-versa, mantém-se como pressuposto para que o feito seja processado e julga­ do pela Justiça Federal. Não se pode, portanto, pre­ sumir que a simples utilização do meio virtual para a prática de delitos extrapole, por si só, os limites do território nacional. Logo, na hipótese do crime tipificado no art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, se não restar evidenciando que o aces­ so ao material de pornografia infantil, disponibiliza­ do por período determinado na Internet, deu-se (ou deveria ter ocorrido) além das fronteiras nacionais, não há falar em competência da Justiça Federal.407 A Constituição Federal (art. 109, V) é clara ao exigir que o resultado desse crime previsto em tratado ou convenção internacional, cuja execução teve início no País, tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. Destarte, a constatação dessa internacionalidade do delito demanda apenas que a publicação do material pornográfico seja feita em ambiência virtual de sítios de amplo e fácil acesso a qualquer sujeito, em qualquer parte do planeta, que esteja conectado à internet, independentemente da ocorrência efetiva de acesso no estrangeiro. Supondo-se, assim, que uma pessoa residente no estado de Minas Gerais tenha encaminhado um e-mail com imagens pedófilo-pornográficas para outra pessoa domiciliada no estado de São Paulo, não há falar em crime de competência da Justiça Federal, porquanto não preenchido o segundo requisito do art. 109, V, da Carta Magna. Porém, se ficar evidenciado que determinado cidadão, residente no Brasil, é o res­ ponsável pela criação de uma página na rede mun­ dial de computadores, onde tais imagens são divul­ gadas, pouco importando se tais imagens foram (ou não) acessadas por alguém em outro país, tem-se crime de competência da Justiça Federal, na medida em que comprovada a internacionalidade territorial 406. Paradigma: STF, Pleno, RE 628.624/MG, Rei. Min. Edson Fachin, j. 29.10.2015, DJ 06.04.2016.

407. TRF4, RSE 2008.72.01.003498-0, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Tadaaqui Hirose, D.E. 25/02/2009.

do resultado em relação à conduta delituosa.408 A competência também será da Justiça Federal nos casos em que o compartilhamento das fotos conten­ do o material pedopornográfico for feito através do programa P2P (Peer-to-Peer), o qual tem como uma das principais características o fato de que todos os arquivos existentes na pasta compartilhada do computador membro ficam visíveis para os demais componentes da rede. Ora, se os arquivos ficam dis­ poníveis a usuários indefinidos e ilimitados, inclusi­ ve no estrangeiro, bastando que instalem o aludido programa em seus dispositivos eletrônicos, para que tenham acesso ao conteúdo pornográfico, dúvida não há quanto à internacionalidade potencial da conduta delituosa, justificando-se, assim, a fixação da competência da Justiça Federal, pouco impor­ tando que não haja evidências de que houve algum acesso no estrangeiro.409 Por outro lado, quanto à competência territorial para processar e julgar o delito de publicação de pornografia envolvendo crianças ou adolescentes através da internet, têm entendido os tribunais que a consumação do ilícito se dá no local de onde emanaram as imagens pedófilo-pornográficas (ou seja, o local do lançamento das fotos na internet), pouco importando a localização do provedor de acesso à rede mundial de computa­ dores.410 Noutro giro, em caso concreto envolvendo a prática de crimes de difamação e falsa identidade, cometidos contra menor impúbere e consistentes na divulgação, no Orkut, de perfil da menor como

408. STJ, 3a Seção, CC 57.411 /RJ, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJe

30/06/2008. No mesmo sentido: STF, Ia Turma, HC 86.289/G0, Rei. Min.

Ricardo Lewandowski, DJ 20/10/2006 p. 62; STJ, 3a Seção, CC 120.999/CE, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada doTJ/ PE, j. 24/10/2012; STJ, 3a Seção, CC 130.134/TO, Rei. Min. Marilza Maynard

- Desembargadora convocada do TJ-SE -, j. 9/10/2013. Reconhecendo

a competência da Justiça Estadual para processor e julgar acusado da prática de conduta criminosa consistente na captação e armazenamen­ to, em computadores de escolas municipais, de vídeos pornográficos

oriundos da internet, envolvendo crianças e adolescentes, porquanto não evidenciada a presença de indícios do caráter transnacional do delito: STJ, 3a Seção, CC 103.011 /PR, Rei. Min. Assusete Magalhães, j. 13/03/2013, DJe 22/03/2013. Em caso concreto no qual o crime de compartilhamento de material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (ECA, art. 241 -A) fora praticado por meio de troca de informações privadas, como nas conversas via whatsapp ou por meio de chat na rede social facebook, concluiu a 3a Seção do STJ tratar-se de feito da competência da Justiça Estadual: STJ, 3a Seção, CC 150.564/MG, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 26/04/2017, DJe 02/05/2017.

409. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 173.960-MS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14.10.2020, DJe 21.10.2020. 410. Nessa linha: STJ - CC 29.886/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 01/02/2008 p. 427. No mesmo sentido: STJ, CC 66.981-RJ, 3a Seção, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 16/2/2009. Configurada dúvida quanto ao local do cometimento da infração e em relação ao responsável pela divulgação das imagens contendo porno­

grafia infantil, a competência deve ser determinada pela prevenção do juízo em que as investigações tiveram início (art. 72, § 2o, do CPP): STJ, 3a Seção, CC 130.134/TO, Rei. Min. Marilza Maynard - Desembargadora convocada do TJ-SE -, j. 9/10/2013.

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garota de programa, com anúncio de preços e con­ tato, o STJ também reconheceu a competência da Justiça Federal. Isso porque o Orkut era um sítio de relacionamento internacional, sendo possível que qualquer pessoa dele integrante acessasse os dados constantes da página em qualquer local do mundo, circunstância esta que seria suficiente para a caracterização da transnacionalidade necessária à determinação da competência da Justiça Federal. Ademais, o Brasil é signatário da Convenção In­ ternacional Sobre os Direitos da Criança, a qual, em seu art. 16, prevê a proteção à honra e à repu­ tação da criança.411 Nesse caso, a competência da Justiça Federal só foi reconhecida por se tratar de crime previsto em Tratado ou Convenção Interna­ cional. Por isso, se o crime praticado pela internet em páginas eletrônicas internacionais (v.g., Orkut e Twitter) não estiver previsto em Tratado ou con­ venção internacional que o Brasil se comprometeu a combater (v.g., racismo, xenofobia, pornografia infantil), deve ser afastada a competência da Justiça Federal, visto que o fato delituoso não se subsume em nenhuma das hipóteses do art. 109, IV e V, da CF.412 Raciocínio semelhante deve ser aplicado aos delitos informáticos recentemente introduzidos no CP pela Lei n° 12.737/12, com vigência a partir de 02 de abril de 2013. Pelo menos em regra, o novel crime de invasão de dispositivo informático (CP, art. 154-A) deve ser processado e julgado pela Justiça Estadual, salvo se cometido em detrimento de bens, serviços ou interesses da “União, suas autarquias ou empresas públicas;

e) racismo por meio de sítio virtual de amplo acesso (Lei n. 7.716/89, art. 20, §2°): em caso con­ creto envolvendo a divulgação pela rede social “Facebook”, na página “Hitler Depressão - A Todo Gás”, de conteúdo discriminatório contra todo o povo judeu e não contra pessoa individualmente consi­ derada, a 3a Seção do STJ deliberou pela fixação da competência da Justiça Federal. A uma porque se trata de crime previsto em tratado ou convenção in­ ternacional, in casu pela “Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimi­ nação Racial”, promulgada pela Assembléia das Na­ ções Unidas e ratificada pelo Brasil em 27.03.1968. A duas porque presente a internacionalidade territo­ rial do resultado relativamente à conduta delituosa. Com efeito, a mera potencialidade de o material

disponibilizado na internet ser acessado no exterior é o quanto basta para fixação da competência da Justiça Federal, mesmo que o conteúdo não tenha sido efetivamente visualizado fora do território na­ cional. Afinal, como decidido pelo STF em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral reconheci­ da413 referente ao crime de pornografia infantil, mas cujo raciocínio também se aplica a outros delitos, “(...) a extração da potencial internacionalidade do resultado advém do nível de abrangência próprio de sítios virtuais de amplo acesso, bem como da reconhecida dispersão mundial preconizada no art. 2o, I, da Lei n. 12.965/14, que instituiu o Marco Civil da Internet no Brasil”;414 f) Compartilhamento de sinal de TV por assinatura, via satélite ou cabo (card sharing): compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes de violação de direito autoral e contra a lei de software decorrentes do compartilhamento ilícito de sinal de TV por assinatura, via satélite ou cabo, por meio de serviços de card sharing. A conduta assinalada consiste no compartilhamento ilícito de sinal de TV, por meio de um cartão no qual são armazenadas chaves criptografadas que carregam, de forma cifrada, o conteúdo audiovi­ sual. Tais cartões são inseridos em equipamentos que viabilizam a captação do sinal, via cabo ou satélite, e sua adequada decodificação, conhecidos como AZBox, Duosat, AzAmérica, entre outros. Geralmente, a quebra das chaves criptográficas é feita por fornecedores situados na Ásia e Leste Europeu, que enviam, via internet, a pessoas que as distribuem, também via internet, aos usuários dos decodificadores ilegais, assim permitindo que o sinal de TV seja irregularmente captado. Nesse sentido, de acordo com o art. 109, V, da Consti­ tuição Federal, a competência da jurisdição federal se dá pela presença concomitante da transnacio­ nalidade do delito e da assunção de compromisso internacional de repressão, constante de tratados ou convenções internacionais. A previsão norma­ tiva internacional, na hipótese, é a Convenção de Berna, integrada ao ordenamento jurídico nacional através do Decreto n. 75.699/1975, e reiterada na Organização Mundial do Comércio - OMC por acordos como o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) - Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (AADPIC), incorpo­ rado pelo Decreto n. 1.355/1994, com a previsão

411. STJ, 3a Seção, CC 112.616, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 13/04/2011, DJe 01/08/2011. 412. No sentido da competência da Justiça Estadual para processar e

julgar crime de injúria praticado contra adulto por meio da internet: STJ,

3a Seção, CC 121.431/SE, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 11/04/2012.

413. STF, Pleno, RE 628.624, Rei. Min. Edson Fachin, DJe 06.04.2016.

414. STJ, 3a Seção, CC 163.420/PR, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 13.05.2020, DJe 01.06.2020.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

dos princípios de proteção ao direito dos criadores. O outro requisito constitucional, de tratar-se de crime à distância, com parcela do crime no Brasil e outra parcela do iter criminis fora do país, é cons­ tatado pela inicial prova da atuação transnacional dos agentes, por meio da internet. Nesse contexto, tem-se por evidenciados os requisitos da previsão das condutas criminosas em tratado ou convenção internacional e do caráter de internacionalidade dos delitos objeto de investigação, constatando-se, à luz do normativo constitucional, a competên­ cia da jurisdição federal para o processamento do feito.415

4.5. Incidente de Deslocamento de Competên­ cia para a Justiça Federal (CF, Art. 109, V-A, c/c Art. 109, §5°) A Emenda Constitucional n° 45/04 não fixou a competência exclusiva da Justiça Federal para o processo e julgamento de crimes contra os direitos humanos. Pelo contrário, reafirmou a regra da com­ petência da Justiça Estadual, ficando a competência federal condicionada ao preenchimento dos requi­ sitos constantes do § 5o do art. 109 da CF. Segundo este dispositivo, nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja par­ te, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.416

A partir do momento em que o Brasil subscre­ veu a Convenção Americana sobre Direitos Huma­ nos (Decreto n° 678/92), assim como reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direi­ tos Humanos (Decreto Legislativo n° 89/98) para 415. Nesse contexto: STJ, 3a Seção, CC 150.629/SP, Rei. Min. Nefi Cor­ deiro, j. 22/02/2018, DJe 28/02/2018. 416. Segundo FEITOZA (op. cit. p. 456/457), "a mesma lógica que faz com que um crime seja levado de um juiz de direito estadual para um juiz federal também se aplica a um juiz eleitoral ou a um conselho de Justiça Militar. Poderiamos contra argumentar que as competências das Justiças Militares e Eleitorais estão expressamente previstas na Constituição da República, mas, então, talvez tivéssemos que admitir que o princípio da prevalência dos direitos humanos, o princípio da unidade da jurisdição e o princípio federativo servem apenas como retórica para desprestigiar as Justiças Estaduais, por meio do que se poderia fazer antes a propaganda internacional do governo do momento do que garantir a efetividade dos direitos humanos ou proteger a República Federativa do Brasil. Assim, diante dos termos abrangentes do inciso V-A c/c § 5o do art. 109 da CR, pensamos que é defensável que ocorra não apenas o deslocamento da competência de um juiz de direito estadual para um juiz federal, mas também de um juiz-auditor (ou juiz de direito do juízo militar) ou de um conselho de justiça militar, estaduais ou federais, bem como de um juiz eleitoral, para um juiz federal".

julgamento de violações de direitos humanos ocor­ ridas em nosso país que tenham ficado impunes, a União passou a ficar sujeita à responsabilização internacional pelas violações de direitos humanos, sem que dispusesse de instrumento jurídico idôneo ao cumprimento dos compromissos pactuados no âmbito internacional. É daí que surge a importância do incidente de deslocamento da competência. A criação desse incidente de deslocamento provocou e continua a provocar muita polêmica, dando ensejo, inclusive, à propositura de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal contra o art. Io da Emenda Cons­ titucional n° 45/2004, na parte que inseriu o inciso V-A e o § 5o ao art. 109 da Constituição Federal, sendo uma proposta pela Associação dos Magis­ trados Brasileiros (ADI 3.486), e a outra pela Asso­ ciação Nacional dos Magistrados Estaduais (ADI 3.493). Em ambas, argumenta-se que os critérios são demasiadamente vagos para se definir o que seria uma grave violação aos direitos humanos, do que decorrería violação ao princípio do juiz natural, em virtude de uma flexibilidade insustentável. Além disso, a definição da competência ficaria relegada a mero juízo discricionário do Procurador-Geral da República, o qual teria autonomia para deliberar sobre a propositura (ou não) do incidente de des­ locamento da competência.417*

A federalização dos crimes contra os direitos humanos apresenta dois pressupostos:

a) a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos;

b) demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas ins­ tituições, em proceder à devida persecução penal.

Diversamente do que se dá no art. 109, inciso V, da Carta Magna, o art. 109, V-A, não impõe a 417. Segundo Leonardo José Carneiro da Cunha (op. cit. p. 93), "esse deslocamento de competência é manifestamente inconstitucional. Cria­

do por emenda constitucional, não deve ser aceito, por violar cláusulas pétreas da Constituição. Em primeiro lugar, ofende o princípio federa­ tivo, dando a entender que haveria uma ascendência de importância da Justiça Federal ante a Justiça Estadual. Sabe-se, contudo, que não há hierarquia nem nível de importância distinto entre a Justiça Federal e a Estadual. O que há é repartição de competências; a uma compete alguns casos, cabendo os demais à outra. Ademais, o referido desloca­ mento ofende a garantia do juiz natural. Isso porque, não se pode admitir mais de um juiz natural para a mesma hipótese. Em outras palavras, não se permite a outorga de competência absoluta a mais de um juízo ou tribunal, de sorte que não se admite que determinado caso deva ser, a um só tempo, processado e julgado por mais de um juízo ou tribunal".

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internacionalização da conduta para que se opere o deslocamento da competência para a Justiça Federal. De acordo com o § 5o do art. 109 da Consti­ tuição Federal, a legitimidade para a propositura do incidente de deslocamento da competência é do Procurador-Geral da República, sendo a competên­ cia para apreciar e julgá-lo da 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça, composta pela 5a e 6a Turmas, conforme Resolução n° 6, de 06/12/2005, da Presi­ dência do STJ.

Em pioneiro julgado sobre o tema, relacionado ao homicídio doloso da irmã Dorothy Stang no mu­ nicípio de Anapu, no Estado do Pará, após refutar preliminar de violação ao princípio do Juiz natural e à autonomia da federação, o Superior Tribunal de Justiça concluiu pelo indeferimento do desloca­ mento da competência para a Justiça Federal, por entender que, a despeito de se tratar de crime prati­ cado com grave violação aos direitos humanos, não teria restado evidenciada a negligência ou inércia do Estado-membro em proceder à persecução penal dos autores do delito.418

No segundo incidente de deslocamento da competência apreciado pelo STJ (IDC 2/DF), a 3a Seção determinou o deslocamento do processo penal para a Justiça Federal da Paraíba. Referia-se o caso concreto ao homicídio de advogado e ve­ reador conhecido defensor dos direitos humanos. O vereador foi assassinado em 24/1/2009, depois de sofrer diversas ameaças e atentados por motivo torpe (vingança), supostamente em decorrência de sua atuação de enfrentamento e denúncias contra os grupos de extermínio. As ações desses grupos de­ nunciados pelo vereador resultaram em cerca de du­ zentos homicídios com características de execução sumária e com suposta participação de particulares e autoridades estaduais, tendo, inclusive, assassina­ do testemunhas envolvidas. Ressaltou o STJ que a instauração de comissão parlamentar de inquérito na Câmara dos Deputados (CPI) para investigar a atuação desses grupos de extermínio deu-se em 2005. Entretanto, desde 2002, já haviam sido feitas, na jurisdição internacional na OEA, recomenda­ ções para que fossem adotadas medidas cautelares destinadas à proteção integral de diversas pessoas envolvidas, entre elas o vereador, medidas as quais ou deixaram de ser cumpridas ou não foram efetiva­ das. Diversamente do caso irmã Dorothy Stang, con­ cluiu o STJ que, além da existência de grave violação de direitos humanos, também ficou demonstrada 418. STJ, 3a Seção, IDC 1/PA, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ _

470

10/10/2005 p. 217.

a incapacidade das instâncias e autoridades locais de oferecer respostas efetivas como levantar provas, combater, reprimir ou punir as ações desses grupos de extermínio.419 Esse deslocamento da competência para a Justiça Federal pode ocorrer inclusive durante o curso das investigações. No julgamento do IDC n° 5, diante da dificuldade do Estado de Pernambuco de reprimir e apurar crime praticado com grave violação de direitos humanos, em descumprimento a obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, o pedido foi julgado procedente para que fosse deter­ minada a imediata transferência do inquérito poli­ cial para a Polícia Federal, sob o acompanhamento e controle do Ministério Público Federal, e sob a jurisdição, no que depender de sua intervenção, da Justiça Federal, Seção Judiciária de Pernambuco. O caso concreto versa sobre a morte do Promotor de Justiça Estadual Thiago Faria Soares, com indica­ tivos de que o assassinato provavelmente resultou da ação de grupos de extermínio que atuam no interior do Estado de Pernambuco (como tantos outros que ocorreram na região conhecida como “Triângulo da Pistolagem”, situada no agreste per­ nambucano), bem como ao certo e notório conflito institucional que se instalou entre os órgãos envol­ vidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime noticiado. Daí por que foi deferido o deslocamento da com­ petência para a Justiça Federal, com o consequente deslocamento das atribuições investigatórias para a Polícia Federal.420

Em sentido semelhante, diante da inércia es­ tatal para investigar, julgar e punir casos que, em sua maioria, envolviam policiais militares e siste­ máticas violações aos direitos humanos cometidas por eles durante a atuação em operações repressivas no estado, além de suas participações em grupos de extermínio, o STJ também julgou procedente o pedido formulado no IDC 3 para deslocar para a competência da Justiça Federal dois inquéritos po­ liciais e um procedimento inquisitivo envolvendo policiais militares que cometeram graves violações aos direitos humanos em Goiás.421 419. STJ, 3a Seção, IDC 2/DF, Rei. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/10/2010. 420. STJ, 3a Seção, IDC 5/PE, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 13/08/2014, Dje 01/09/2014.

421. STJ, 3a Seção, IDC 3/GO, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 10/12/2014.

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4.6. Crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o siste­ ma financeiro e a ordem econômico-financeira (CF, Art. 109, VI) 4.6.1. Crimes contra a organização do trabalho De acordo com o art. 109, inciso VI, da Consti­ tuição Federal, compete aos juizes federais processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira.

Fazendo a interpretação da Constituição Federal, os Tribunais Superiores têm entendido que compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes perpetrados contra a organização do trabalho, quando violados di­ reitos dos trabalhadores considerados coletivamente. A infringência dos direitos individuais de trabalhado­ res, sem que configurada lesão ao sistema de órgãos e instituições destinadas a preservar a coletividade trabalhista, afasta a competência da Justiça Federal. Nesse sentido, aliás, é o teor da súmula n° 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos traba­ lhadores considerados coletivamente”.

A justificativa para esse entendimento jurisprudencial está no fato de não haver coincidência ter­ minológica entre “os crimes contra a organização do trabalho” a que se refere a Constituição Federal e os “crimes contra a organização do trabalho” previstos no Título IV da Parte Especial do Código Penal, no qual estão inseridos os crimes de atentado contra a liberdade do trabalho (CP, art. 197), atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta (CP, art. 198), atentado contra a liberdade de associação (CP, art. 199), paralisação de traba­ lho, seguida de violência ou perturbação da ordem (CP, art. 200), paralisação de trabalho de interesse coletivo (CP, art. 201), invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola (CP, art. 202), frus­ tração de direito assegurado por lei trabalhista (CP, art. 203), frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho (CP, art. 204), exercício de atividade com infração de decisão administrativa (CP, art. 205), aliciamento para o fim de emigração (CP, art. 206), aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional (CP, art. 207).

Em outras palavras, quando o art. 109, VI, da Constituição Federal, se refere a crimes contra a organização do trabalho, está a tratar dos que, tí­ pica e essencialmente, dizem respeito a relações de trabalho, e não aos que, eventualmente, possam ter

relações circunstanciais com o trabalho, haja vista que apenas no primeiro caso se justificaria a com­ petência da Justiça Federal, perante o interesse da União no resguardo da específica ordem jurídica concernente ao trabalho. O sentido do termo na Constituição diz respeito à proteção dos direitos e deveres dos trabalhadores em coletividade, como força de trabalho, não podendo ser confundido com aquele adotado pelo Código Penal, que concebe um mero crime contra o patrimônio de um empregado como crime contra a organização do trabalho.

Quanto ao crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, dentro do Capítulo VI (‘Dos crimes contra a liberdade individual’) do Título I (‘Dos crimes contra a pessoa’) da Parte Especial do Código Penal, cuja tipificação não depende exclusivamente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, já que há outras formas de se cometer o delito, como, por exemplo, submeter o sujeito passivo a condições de trabalho degradantes, desumanas, prevalecia, inicialmente, o entendimento de que, como o referido delito não configura crime contra a organização do trabalho ou dos direitos dos trabalhadores considerados coletivamente, mas sim crime contra a liberdade pessoal, ter-se-ia crime de competência da Justiça Estadual, e não da Justiça Federal. Posteriormente, todavia, esse posicionamento foi modificado pelo Supremo Tribunal Federal, que passou a entender que quaisquer condutas que vio­ lem não só o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, enquadram-se na cate­ goria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticados no contexto de relações de trabalho. Assim, pelo influxo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, informador de todo o sistema jurídico-constitucional, a prática do crime de redução à condição análoga à de escravo caracterizar-se-ia como crime contra a organização do trabalho, fixando-se, assim, a competência da Justiça Federal para processar e julgá-lo, nos exatos termos do art. 109, inciso VI, da Constituição Federal.422

Em sentido semelhante, porém condicionando a competência da Justiça Federal à hipótese do cri­ me de redução à condição análoga à de escravo ser

422. STF, Pleno, RE 398.041/PA, Rei. Min. Joaquim Barbosa, Dje 241 18/12/2008. Em sentido semelhante: STF, 2a Turma, RE 541.627/PA, Rei. Ministra Ellen Gracie, Dje 222 20/11/2008; STF, Pleno, RE 459.510/MT, Rei. Min. DiasToffoli,j. 26/11/2015. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 127.937/GO, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 28/5/2014.

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cometido em detrimento de um determinado grupo de trabalhadores, assim também tem se manifestado o Superior Tribunal de Justiça.423 Destarte, quanto à competência criminal para processar e julgar crimes contra a organi­ zação do trabalho, este tem sido o entendimento jurisprudencial: a) supressão de direitos trabalhistas individual­ mente considerados (CP, art. 203): havendo a impu­ tação do crime previsto no art. 203 do Código Penal em detrimento de alguns empregados, impõe-se a competência da Justiça estadual;424

b) aliciamento de trabalhadores de uma unida­ de da Federação para outra (CP, art. 207): de acordo com o art. 109, V-A, VI, da Constituição Federal, c/c art. 10, VII, da Lei n° 5.060/66, compete à Justiça Fe­ deral processar e julgar o delito do art. 207 do CP;425 c) falsidade ideológica praticada por advogados e supressão de direito individual dos trabalhado­ res: não há falar em ofensa a direito coletivo se a conduta praticada pelos advogados atenta contra direito individual dos trabalhadores envolvidos nas reclamatórias simuladas, o que atrai a competência da justiça estadual para processar e julgar a causa. Como os delitos praticados não tiveram por objeto a organização geral do trabalho ou direitos coletivos dos trabalhadores, firma-se a competência da Justiça Estadual;426

d) ações lesivas a direitos trabalhistas indi­ viduais, tal como atentado contra a liberdade de trabalho de uma funcionária de estabelecimento comercial que, após ter comunicado ao emprega­ dor seu estado de gravidez, teria sido submetida a cumprir seu horário de trabalho de forma constran­ gedora, não configura crime contra a organização

423. Informativo n° 383 do STJ: CC 95.707/TO, Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 11/02/2009. De modo similar:"(...) o número de cento e oitenta pessoas reduzidas à condição análoga a de escravo é suficiente à caracterização do delito contra a organização do trabalho, cujo julgamento compete à Justiça Federal (CB, art. 109, inc. VI)". (STF - HC 91.959/TO - 2a Turma - Rei. Min. Eros Grau - Dje 031 21/02/2008). Na mesma linha: STJ - CC 62.156/MG - 3a Seção - Rei. Mi­ nistra Laurita Vaz - DJ 06/08/2007 p. 464 424. STJ - AgRg no CC 62.750/SP - 3a Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 05/05/2008. Na mesma linha: STJ - CC 47.966/MG - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 26/03/2007 p. 197. E ainda: STJ - CC 34.254/SP - 3a Seção - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 30/09/2002 p. 154.

do trabalho susceptível de fixar a competência da Justiça Federal;427 e) supressão de direitos dos trabalhadores de uma mesma empresa: “a despeito do significativo número de trabalhadores eventualmente lesionados em seus direitos trabalhistas, todos pertencentes a uma mesma empresa, não se verifica ofensa a órgãos ou instituições responsáveis por zelar pelo direito dos trabalhadores, nem a organização geral do tra­ balho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente. In casu, as condutas delituosas (arts. 203 e 207, do CP), objeto de investigação criminal, atentaram contra direito individual daqueles traba­ lhadores envolvidos, o que atrai a competência da Justiça Estadual para processar e julgar a causa;”428

f) paralisação de trabalho, seguida de violên­ cia ou perturbação da ordem (CP, art. 200): se os delitos investigados caracterizam possível lesão a direito individual, não atentando contra a Organi­ zação Geral do Trabalho, nem violando os direitos dos trabalhadores, considerados como um todo, a competência para o seu processo e julgamento é da justiça estadual. Hipótese em que membros do Sindicato da Categoria dos Motoristas teriam, mediante violência e grave ameaça, compelido motoristas e cobradores de empresa de transporte a paralisarem suas atividades;”429

g) A fraude em homologação de rescisão con­ tratual, por se caracterizar como lesão a direito individual e não como crime contra a organiza­ ção do trabalho, já que não envolve violação aos direitos dos trabalhadores como um todo, enseja o processo e julgamento pela justiça comum;430

h) Movimento paredista, articulado por sindi­ calistas, com reação de seguranças da empresa, não configura fato próprio da competência da Justiça Federal;431 i) Interrupção de eleição para diretoria de sin­ dicato: inexistência de lesão a categoria considera­ da coletivamente. Tratando-se de interrupção dos trabalhos para eleição da nova diretoria do sindi­ cato em questão, não se vislumbra lesão a categoria como um todo, ou seja, considerada coletivamente, para que se pense em crime contra a organização 427. STJ - CC 21.920/SP - 3a Seção - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 18/12/1998. 428. STJ - CC 34.424/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Laurita Vaz - DJ 16/06/2003 p. 258.

429. STJ - CC 38.035/BA - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 19/05/2003 p. 122.

425. STJ - RHC 18.242/RJ - 6a Turma - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 25/06/2007 p. 299. Com raciocínio semelhante: TRF1, RCCR 2007.43.00.001489-5/TO, 4a Turma, Rei. Desembargador Federal ítalo Fioravanti Sabo Mendes, DJ 15/07/2008).

430. STJ - CC 21.165/BA - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 17/02/1999 p. 115.

426. STJ - RHC 12.411 /SC - 5a Turma - Rei. Min. José Arnaldo da Fon­ seca - DJ 25/02/2004 p. 188.

431. STJ - CC 20.905/SC - 3a Seção - Rei. Min. Felix Fischer - DJ 05/10/1998 p. 14.

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do trabalho, havendo apenas violação a direito in­ dividual de liberdade sindical;432

j) A Emenda Constitucional n° 45/2004 não atribuiu à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais. Aplicável a regra do art. 109, inciso IV, da CF, está firmada a compe­ tência da Justiça Federal para processar e julgar o crime de estelionato praticado mediante utilização de documentos falsos, ainda que sejam eles perti­ nentes à relação de trabalho;”433 k) lesão corporal decorrente de acidente de trabalho, por si só, não confere à Justiça Federal a competência para o processamento e julgamento de ação penal;434 l) O crime de sabotagem industrial previsto no art. 202 do CP deve ser julgado pela Justiça estadual se atingir apenas bens particulares sem repercussão no interesse da coletividade.435

4.6.2. Crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira De acordo com o art. 109, VI, infine, da Consti­ tuição Federal, os crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira são da competên­ cia da Justiça Federal nos casos determinados por lei. Vê-se, pois, que o simples fato de se tratar de crime contra o sistema financeiro ou contra a ordem econômico-financeira não atrai a competência da Justiça Federal, devendo antes se verificar se assim o dispõe a lei. Caso a lei não disponha que a competência será da Justiça Federal, a competência será da Justiça Estadual, salvo se houver lesão a bens, serviços ou interesse da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas, quando, então, a competência da Justiça Federal será fixada para ações penais por crimes contra o sistema financeiro e contra a ordem econômico-financeira, porém não mais com funda­ mento no inciso VI do art. 109, mas sim com base no inciso IV do art. 109 da Constituição Federal.

Importa, pois, analisarmos as leis que dispõem sobre os crimes contra o sistema financeiro e a or­ dem econômico-financeira, a fim de se saber se há (ou não) previsão legal quanto à competência da Justiça Federal. 432. STJ - CC 20.473/MA - 3a Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fon­

seca - DJ 11/05/1998 p. 5.

433. TRF4, ACR 2004.72.11.002490-4, Oitava Turma, Relator Paulo

Afonso Brum Vaz, D.E. 24/09/2008. 434. STF - RE 588.332/SP - 2a Turma - Rei. Min. Ellen Gracie - DJe

075 23/04/2009. 435. STJ, 3a Seção, CC 123.714/MS, Rei. Min. Marilza Maynard - Desembargadora convocada doTJ/SE -, j. 24/10/2012.

Em relação aos crimes contra a economia po­ pular previstos na Lei n° 1.521/51, diante do silêncio da lei, subentende-se que os crimes são de compe­ tência da Justiça Estadual. Sobre o assunto, a súmula n° 498 do Supremo Tribunal Federal preceitua que compete à Justiça dos Estados, em ambas as instân­ cias, o processo e o julgamento dos crimes contra a economia popular.

A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordena­ mento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliá­ rio pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os cri­ mes tipificados nos arts. 7o, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/197. Logo, recai sobre a Justiça Estadual a competência para o processo e julgamen­ to de eventual ilícito referente à atuação de trader de criptomoeda (bitcoiri) que oferecia rentabilidade fixa aos investidores.436

Considerando-se, todavia, a possibilidade de a negociação de criptomoeda ser utilizada como meio para a prática de eventual crime de evasão de divisas (Lei n. 7.492/86, art. 22), se acaso o agente adquirir a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país, é de rigor a conclusão de que, em tal hipótese, ter-se-ia como fixada a competên­ cia da Justiça Federal, seja por força do art. 26 da Lei n. 7.492/86, seja por conta d‘ súmula n. 122 do S’J. Idêntico raciocínio, é dizer, no sen ido da com­ petência d’ Justiça Federal, é válido na hipótese de oferta pública de contrato de investimento coletivo em criptomoedas sem prévio registro de emissão na autoridade competente. Explica-se: nesse caso, incidem as disposições contidas na Lei n. 7.492/86 (arts. 4o, 5o, 7o, II, e 16), notadamente porque tal espécie de contrato consubstancia valor mobiliário, nos termos do art. 2o, IX, da Lei n. 6.385/1976.437 A captação de recursos decorrente de ‘pirâmi­ de financeira’ também não se enquadra no conceito de atividade financeira, para fins da incidência da 436. STJ, 3a Seção, CC 161.123-SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 28.11.2018, DJe 05.12.2018. Ausentes elementos que revelem ter havido evasão de divisas ou lavagem de dinheiro em detrimento de interesses da União, compete à Justiça Estadual processar e julgar crimes relacionados a pirâmide financeira em investimento de grupo em criptomoeda: STJ, 3a Seção, CC 170.392/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 10/06/2020, DJe 16/06/2020.

437. A propósito: STJ, 6a Turma, HC 530.563/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 05/03/2020, DJe 12/03/2020.

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Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito pre­ visto no art. 2o, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular). Logo, recai sobre a Justiça Es­ tadual a competência para o processo e julgamento de tais delitos, nos exatos moldes da súmula n. 498 do STF.438

Na mesma linha que os crimes contra a eco­ nomia popular, como a Lei que dispõe sobre o Sistema Financeiro Nacional (Lei n° 4.595/64) não atribui a competência à Justiça Federal, prevalece o entendimento de que os crimes nela previstos são de competência da Justiça Estadual. É o que ocorre com o crime de concessão de empréstimos vedados, previsto no art. 34, I, da Lei n° 4.595/64: embora atente contra o Sistema Financeiro Nacional, nem se encasa na regra do art. 109, IV, nem se ajusta ao cânon do art. 109, VI, ambos da Carta Magna, seja por não ferir objetivamente bens, serviços ou interesses da União, seja por não haver expressa definição da competência da Justiça Federal.439

Por outro lado, em relação à Lei que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n° 7.492/86), a competência será da Justiça Federal, pois assim dispõe seu art. 26. Portanto, cuidando-se de crime contra o Sistema Financeiro Nacional previsto na Lei n° 7.492/86, a competência será da Justiça Federal. Eventual alegação de que o prejuízo decorrente do delito fora suportado exclusivamen­ te por instituição financeira privada não afasta tal competência, na medida em que há interesse da União na segurança e na confiabilidade do sistema financeiro nacional.440 Para que se possa falar em crime contra o siste­ ma financeiro nacional, é importante atentar-se para o conceito de instituição financeira constante do art. Io da Lei n° 7.492/86. De se ver que administradora de consórcio é equiparável à instituição financeira, a teor do art. Io, parágrafo único, I, da Lei n° 7.942/86, e, portanto, os crimes praticados pelos responsáveis por empresas administradoras de consórcio contra o Sistema Financeiro Nacional também são de compe­ tência da Justiça Federal.

Quanto à pessoa física, só há falar em crime contra o sistema financeiro nacional se por ela fo­ rem realizadas algumas das atividades definidas como típicas de instituição financeira (captação, 438. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, CC 146.153/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 17/5/2016. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 170.392-SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik,j. 10.06.2020, DJe 16.06.2020.

439. STJ - RHC 3.550/SP - 6a Turma - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 20/02/1995. 440. STF - HC 93.733/RJ - 1a Turma - Rei. Min. Carlos Britto - Dje 064 - 02/04/2009.

intermediação ou aplicação de recursos financei­ ros de terceiros), nos termos do art. Io da Lei n° 7.492/86. Se, no entanto, restar provado que a pessoa física utilizava capital próprio para efetuar emprésti­ mos a juros exorbitantes, estará caracterizado o cri­ me de usura, previsto no art. 4o da Lei n° 1.521/51, de competência da Justiça Estadual.441 Por outro lado, compete à Justiça Federal pro­ cessar e julgar a conduta daquele que, por meio de pessoa jurídica instituída para a prestação de ser­ viço de factoring, realize, sem autorização legal, a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, sob a promessa de que estes receberíam, em contrapartida, rendimentos superiores aos aplicados no mercado, seja pelo fato de tal conduta se subsumir ao tipo do art. 16 da Lei 7.492/1986, seja pelo fato de o delito ter sido praticado por meio de pessoa jurídica criada para a realização de atividade de factoring, operando como verdadeira instituição financeira.442

Como se percebe, é de fundamental impor­ tância verificar se a infração penal praticada pode ser considerada crime contra o sistema financeiro nacional, já que, nesse caso, a competência será da Justiça Federal. Cuidando-se, porém, de um crime patrimonial qualquer, sem lesão a bens, serviços ou interesses da União, autarquias federais ou empre­ sas públicas federais, a competência será da Justiça Estadual. Com base nesse raciocínio, em caso concreto pertinente à utilização de documentos falsos para se contrair empréstimos na modalidade CDC no Banco do Brasil, apesar de a denúncia imputar ao agente o delito do art. 19 da Lei n° 7.492/86, entendeu o STJ que o delito praticado seria o de estelionato (CP, art. 171), e, portanto, de competência da Justiça Estadual. De acordo com a 3a Seção do STJ, o crime do art. 19 da Lei n° 7.492/86 exige a utilização de fraude para obter financiamento de instituição financeira, o que difere da obtenção de empréstimo. Isso porque os financiamentos são operações realizadas com destinação específica, em que, para a obtenção de crédito, existe alguma concessão por parte do Estado como incentivo, assim há vinculação entre a concessão do 441. Nessa linha: TRF4, ACR 2000.70.03.004989-3, Oitava Turma, Relator Élcio Pinheiro de Castro, D.E. 08/10/2008. No sentido da competência da

Justiça Estadual para processar e julgar supostos delitos praticados por operações de empréstimo, utilizando cartão de crédito com simulação de compra, lesando vítima e outros clientes, na medida em que são crimes contra a economia popular, não consubstanciando operações financeiras: STJ - CC 32.092/SP - 3a Seção - Rei. Min. Vicente Leal - Publicação: DJ 08/04/2002 p. 128. 442. STJ, 3a Seção, CC 115.338/PR, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 26/06/2013, DJe 13/08/2013.

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crédito e o patrimônio da União. Também se exige a comprovação da aplicação desses recursos, por exem­ plo: os financiamentos de parques industriais, má­ quinas e equipamentos, bens de consumo duráveis, rurais e imobiliários. Destarte, se não houve crime contra o sistema financeiro nacional, nem tampou­ co lesão ao patrimônio da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, em situações em que o agente obtenha empréstimos na modalidade de crédito direto ao consumidor (CDC), haverá lesão exclusivamente à instituição financeira, justificando-se, nesse caso, a competência da Justiça Estadual, na medida em que o crime fora cometido contra socie­ dade de economia mista.443

Especificamente em relação à apresentação de documentos falsos para obtenção de recursos finan­ ceiros junto à instituição bancária em contrato de arrendamento mercantil na modalidade de leasing financeiro de veículo, entende-se que o fato de o leasing financeiro não constituir financiamento não afasta, por si só, a configuração do delito previsto no art. 19 da Lei n° 7.492/1986. Isso porque, ao fazer um leasing financeiro, obtém-se, invariavelmente, um financiamento, e o referido tipo penal refere-se exatamente à obtenção de financiamento mediante fraude, sem exigir que isso ocorra num contrato de financiamento propriamente dito. Embora o leasing financeiro não seja um financiamento propriamente dito, ele constitui o núcleo ou elemento preponde­ rante dessa modalidade de arrendamento mercantil. Logo, se se trata de crime contra o Sistema Finan­ ceiro Nacional previsto na Lei n° 7.492/86, há de se reconhecer a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito, nos termos do art. 26, caput, da referida lei.444 A Lei n° 8.137/90, que dispõe sobre crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, silencia quanto à competência da Justiça Federal. Portanto, para que os delitos ali previstos sejam processados e julgados pela Justiça Federal, não o serão por se caracterizarem como crimes contra a ordem econômico-financeira refe­ ridos no art. 109, VI, mas por outra razão, como no caso de serem praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades

autárquicas ou empresas públicas (art. 109, IV, CF), o que, aliás, pode ocorrer, geralmente, com quais­ quer crimes comuns. Assim, quanto aos crimes contra a ordem tri­ butária previstos nos arts. Io a 3o da Lei n° 8.137/90, a competência somente será da Justiça Federal se houver a supressão ou redução de tributos federais; tratando-se de tributos de natureza estadual ou mu­ nicipal, a competência será da Justiça Estadual.445 A título de exemplo, compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - o julgamento de ação penal em que se apure a possível prática de sonegação de imposto sobre serviço de qualquer natureza (ISSQN) por representantes de pessoa jurídica privada, ainda que esta mantenha vínculo com entidade da administração indireta federal. Afinal, no caso de ISSQN, resulta prejuízo apenas para os Municípios ou para o Distrito Federal, e não para a União.446 Em relação ao crime de formação de cartel, pre­ visto no art. 4o da Lei n° 8.137/90, o Superior Tribu­ nal de Justiça entende que, como a Lei 8.137/90 não contém dispositivo expresso fixando a competência da Justiça Federal, compete, em regra, à Justiça Es­ tadual o julgamento dessa espécie de delito. Isso, no entanto, não afasta a competência da Justiça Federal, desde que se verifique ofensa a bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas (CF, art. 109, IV), ou que, pela magnitude da atuação do grupo econômico ou pelo tipo de ati­ vidade desenvolvida, o ilícito tenha a propensão de abranger vários Estados da Federação, prejudicar se­ tor econômico estratégico para a economia nacional ou o fornecimento de serviços essenciais, de onde se evidenciaria interesse supra regional a apontar para a necessidade de interferência da União.447

A Lei n° 8.176/91, que prevê o delito de venda de combustível adulterado (art. Io, inciso I), não dispõe que este crime será de competência da Jus­ tiça Federal. Logo, cuida-se de infração penal da competência da Justiça Estadual, pouco importando, nesse caso, o fato de a Agência Nacional de Petróleo exercer o controle, a fiscalização e a regulação da atividade de distribuição e revenda de derivados de petróleo e álcool, haja vista tratar-se de interesse genérico, reflexo e não-imediato, o que, por si só,

443. STJ, 3a Seção, CC 107.100/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em

26/05/2010. 444. STJ, 3a Seção, CC 114.322/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/03/2011. No sentido de que compete à Justiça Federal julgar crime consistente na conduta de adquirir um veículo me­ diante fraude em contrato de leasing, sob o argumento de que o leasing financeiro, embora não seja um financiamento, constitui o núcleo ou ele­ mento preponderante dessa modalidade de arrendamento mercantil: STJ, 3a Seção, CC 111.477/SP, Rei. Min. Celso Limongi, julgado em 08/09/2010.

445. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade cons­ titucional. Vol. I. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 424.

446. Nesse contexto: STJ, 3a Seção, CC 114.274/DF, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 12/06/2013. 447. STJ - HC 117.169/SP - 5aTurma - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho - Dje 16/03/2009. Com raciocínio semelhante: STJ - HC 32.292/RS - 5a Turma - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 03/05/2004 p. 196.

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não atrai a competência da Justiça Federal com base no inciso IV do art. 109 da Carta Magna.448 Quanto aos crimes de lavagem de capitais, te­ mos que, em regra, são da competência da Justiça Estadual.449 A própria lei de lavagem de capitais (Lei n° 9.613/98) confirma esse raciocínio, ao dispor em seu art. 2o, inciso III, que a competência será da Justiça Federal somente nas seguintes hipóteses: a) quando praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas en­ tidades autárquicas ou empresas públicas; b) quando a infração penal antecedente for de competência da Justiça Federal.

Como se pode notar, a competência será da Justiça Federal em grande parte dos casos, eis que o delito de lavagem geralmente também envolve a prática de crime contra o Sistema Financeiro Na­ cional (v.g., evasão de divisas, previsto no art. 22 da Lei n° 7.492/86).450 O que não se pode fazer, porém, é generalizar, afirmando-se, então, que todos os cri­ mes de lavagem de capitais devem ser processados e julgados pela Justiça Federal e que, em hipótese alguma, a Justiça Estadual teria competência para julgar crimes de lavagem. O delito de lavagem de dinheiro não é, por si só, afeto à Justiça Federal, se não sobressai a existência de infração penal antece­ dente de competência da Justiça Federal e se não se vislumbra, em princípio, qualquer lesão ao sistema financeiro nacional, à ordem econômico-financeira, a bens, serviços ou interesses da União, de suas Au­ tarquias ou Empresas Públicas. Em síntese, pode-se afirmar que a competência para o crime de lavagem de dinheiro é definida diante do caso concreto e em 448. STF - RE 454.737/SP - Tribunal Pleno - Rei. Min. Cezar Peluso -

DJe 222-20/11/2008.

449. Daí concluir José Paulo Baltazar Júnior que a competência para

julgar o crime de lavagem pode ser da competência da Justiça Estadual

quando não houver prejuízo para a União, quando o crime antecedente for da sua competência e quando a lavagem for interna e não se valer de instituição financeira, mas de outros meios (in Crimes Federais: contra a administração pública, a previdência social, a ordem tributária, o sistema financeiro nacional, as telecomunicações e as licitações, estelionato, moeda falsa, abuso de autoridade, tráfico transnacional de drogas, lavagem de dinheiro. 2a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007. p. 433). 450. Como já decidiu o STJ, "a competência deve ser verificada pelos

fatos até o momento tidos como delituosos, relacionados à existência,

em tese, de grandes quantias no exterior, pertencentes a brasileiros do­ miciliados no país, sem declaração à Receita Federal do Brasil, que podem configurar, em tese, delito contra a Ordem Econômica e/ou contra o Sis­ tema Financeiro Nacional, seja pela eventual caracterização de evasão fiscal e/ou lavagem de dinheiro - o que depende da devida instrução processual. Estando em jogo, em princípio, a própria Ordem Econômica Nacional, resta atraída, em um primeiro momento, a Justiça Federal para a apuração das condutas. Sempre que a lavagem ocorrer em instituição bancária situada no estrangeiro, a competência será da Justiça Federal."

(STJ - CC n° 32.861/SP - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - Julgamento: 10/10/2001 - Publicação: DJ 19/11/2001 p. 231).

função da infração penal antecedente. Se a infração anterior for de competência da Justiça Federal, ca­ berá a esta o julgamento do processo relacionado ao crime acessório.451 A previsão da alínea “b” do inciso III do art. 2o da Lei n° 9.613/98, no sentido de dispor que a competência será da Justiça Federal se a infração penal antecedente for de competência da Justiça Fe­ deral, é de todo irrelevante. Afinal, de acordo com a súmula n° 122 do STJ, “compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”.452

4.6.2.1. Varas especializadas para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e os delitos de lavagem de capitais Com o objetivo de otimizar a persecução pe­ nal em relação aos delitos de lavagem de capitais, diversas varas no âmbito da Justiça Federal foram especializadas no combate a crimes contra o siste­ ma econômico-financeiro. Assim, foi editada pelo Conselho da Justiça Federal a Resolução n° 314, em 12 de maio de 2003, segundo a qual os Tri­ bunais Regionais Federais deveríam especializar, no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da Reso­ lução, varas federais criminais com competência exclusiva ou concorrente para processar e julgar crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Na sequência, foi editado, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3a Região, o Provimento n° 238, de 27 de agosto de 2004, segundo o qual as 2a e 6a Varas Criminais da Ia Subseção Judiciária de São Paulo, da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, foram especializadas com competência exclusiva para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores (art. 2o). Essas varas criminais especializadas, de acordo com o art. 3o, § Io, do Provimento n° 238, passaram a ser consideradas juízo criminal especializado em razão da matéria, tendo, à época, competência jurisdicio­ nal em toda a área territorial da Seção Judiciária do Estado de São Paulo. Ainda segundo o citado 451. STJ - RHC 11.918/SP - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - Julga­ mento: 13/08/2002 - Publicação: DJ 16/09/2002 p. 202. 452. Assim, mesmo sendo o crime antecedente de tráfico nacional de entorpecentes, se este, por regras de competência (conexão com crime de falsidade de passaporte) foi julgado pelo juízo federal, é de se reco­ nhecer a competência deste juízo também para o julgamento do crime de lavagem de dinheiro, nos termos do art. 2o, inciso III, alínea 'b', da Lei 9.613/98: STJ - CC 97.636/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de

Assis Moura - Dje 07/05/2009.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Provimento (art. 5o), às Varas Especializadas fo­ ram redistribuídos todos os feitos em andamento à época relativos aos crimes contra o sistema finan­ ceiro nacional e de lavagem de capitais, na Seção Judiciária do Estado de São Paulo, excetuados os que estivessem com a fase instrutória encerrada, observando-se as cautelas de sigilo, a ampla defesa e o devido processo legal.

Com essa especialização de varas federais para o processo e julgamento de crimes contra o sistema financeiro ou de lavagem de capitais pelos diversos Tribunais Regionais Federais,453 surgiu intensa dis­ cussão nos Tribunais quanto à (in) compatibilidade dessas varas especializadas com o princípio do juiz natural, bem como em torno da possibilidade de remessa dos processos em andamento a essas varas especializadas. A nosso ver, não há falar em violação ao princí­ pio do juiz natural. Como observa Antônio Scarance Fernandes, “a proibição de tribunais de exceção não significa impedimento à criação de justiça especia­ lizada ou de vara especializada, pois não há, nestas hipóteses, criação de órgãos para julgar, de maneira excepcional, determinadas pessoas ou matérias, mas simples atribuição a órgãos inseridos na estrutura judiciária fixada na Constituição de competência para o julgamento de matérias específicas, com o objetivo de melhor atuar a norma substancial”.454 Como se pode ver, não se pode confundir juízos de exceção ou ex post factum com juízos especializa­ dos, os quais são divisões da função jurisdicional, inseridas no quadro geral do Poder Judiciário para colaborar na administração da justiça. No caso espe­ cífico da Justiça Federal, há inclusive lei autorizando a especialização de varas. De fato, de acordo com o art. 12 da Lei n° 5.010/66, nas Seções Judiciárias em que houver mais de uma Vara, poderá o Conselho da Justiça Federal fixar-lhes sede em cidade diversa da Capital, especializar Varas e atribuir competência por natureza defeitos a determinados Juizes. Não há falar, pois, em violação ao princípio do juiz natu­ ral, já que a própria Constituição Federal assegura ao Poder Judiciário autonomia administrativa e fi­ nanceira, podendo proceder a sua auto-organização administrativa (CF, art. 96). Dependesse o Poder Judiciário de lei para especializar suas Varas, ha­ veria patente limitação em seu poder de auto-or­ ganização, subordinando-o ao Poder Legislativo, o 453. Para a relação completa das varas especializadas: SANCTIS, Fausto Martin. Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática. Campinas/SP: Millennium Editora, 2008. p. 17. 454. Processo Penal Constitucional. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tri­ bunais, 2000. p. 127.

que violaria o princípio da separação de poder em detrimento de uma prestação jurisdicional efetiva e eficiente. É verdade que o Conselho da Justiça Federal, ao editar a Resolução n° 314/2003 exorbitou de sua competência ao definir atribuições de órgãos judiciais, na medida em que, de acordo com o art. 105, parágrafo único, II, da Constituição Federal, ao Conselho compete, tão somente, a supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal de primeiro e segundo grau. No entanto, apesar da inconstitucionalidade da Resolução n° 314/2003 do Conselho da Justiça Federal, tal vício não tem o condão de macular as resoluções e provimentos expedidos pelos Tribunais Regionais Federais, que encontram seu fundamento de validade no art. 12 da Lei n° 5.010/66. Não se pode, pois, querer tachar tais provimentos de inconstitucionais ou ilegais, estando preservado o princípio do juiz natural, na medida em que há uma regra pré-estabelecida para se determinar o juízo competente. De mais a mais, especializar varas e atribuir competência por natureza de feitos não é matéria alcançada pela reserva de lei em sentido estrito, po­ rém apenas pelo princípio da legalidade constante do art. 5o, II, da Constituição Federal. Em outras palavras, se há matérias que não podem ser regula­ das senão por lei em sentido estrito (v.g., não haverá crime ou pena, nem tributo), em outras situações, é perfeitamente possível que essa norma seja tanto legal quanto regulamentar ou regimental. Quando os Tribunais expedem provimentos e resoluções especializando varas, não o fazem no exercício da função legislativa, mas no desempenho de função normativa. O exercício da função regulamentar e da função regimental não decorrem de delegação de função legislativa; não envolvem, pois, derrogação do princípio da divisão dos poderes, estando inse­ rido no poder de auto-organização dos Tribunais.455 Quanto aos inquéritos e processos que já esta­ vam em andamento quando da especialização das varas federais, acabou prevalecendo nos Tribunais o entendimento segundo o qual seria possível a aplicação subsidiária da regra do art. 43 do novo CPC. Com a 455. Com esse entendimento: STF, Ia Turma, HC 85.060/PR, Rei. Min. Eros Grau, DJe 030 12/02/2009. E ainda: STF, Pleno, HC 88.660/CE, Rei. Min. Cármen Lúcia, julgado em 15/05/2008. Na dicção do Supremo, "o Poder Judiciário tem competência para dispor sobre especialização de varas, porque é matéria que se insere no âmbito da organização judiciária dos Tribunais. O tema referente à organização judiciária não se encontra restrito ao campo de incidência exclusiva da lei, eis que depende da integração dos critérios preestabelecidos na Constituição, nas leis e nos regimentos internos dos tribunais". (STF, 2a Turma, HC 91.024/RN, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 05/08/2008, DJe 157 21/08/2008).

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criação de vara especializada no combate à lavagem de capitais na seção judiciária, se o provimento nada dispuser em sentido contrário, à vara especializada de­ verão ser redistribuídos todos os processos em curso, tornando-se o juiz de vara federal diversa absoluta­ mente incompetente para processar e julgar os delitos em questão, pois a competência da Vara Especializada foi fixada em razão da matéria, portanto, de caráter ab­ soluto. Nesta hipótese, de criação de vara especializada, não se pode falar em perpetuação da competência, já que houve uma alteração da competência em razão da matéria. Ou seja, prevista esta exceção, excepciona-se a regra de que o processo deve findar perante o juiz em que se iniciou. Não há que se falar em violação ao princípio do juiz natural.456

4.7. Habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição (CF, Art. 109, VII) Na medida em que o art. 109, VII, da Consti­ tuição Federal, ressalva da competência dos juizes federais os atos que estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição, é importante não perder de vista o art. 108,1, “a” e “d”, da CF, segundo o qual compete aos Tribunais Regionais Federais processar e julgar os juizes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a com­ petência da Justiça Eleitoral, bem como os habeas corpus quando a autoridade coatora for juiz federal.

Logo, em se tratando da competência para o julgamento de habeas corpus na Justiça Federal, o dispositivo do art. 109, inciso VII, da Constituição Federal, deve ser lido em conjunto com as alíneas “a” e “d” do inciso I do art. 108. Assim é que, v.g., tratando-se de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção praticado por um delegado da Polícia Federal, como referida autoridade não está sujeita à competência do Tribunal Regional Federal, eventual habeas corpus contra ele impetrado deve ser apre­ ciado por um juiz federal pertencente à respectiva seção judiciária. Por sua vez, caso esse delegado da Polícia Fe­ deral tenha instaurado um inquérito policial a par­ tir de uma requisição de Procurador da República, 456. TRF3 - RSE n° 2003.61.18.000542-1 - Rei. Juíza Ramza Tartuce DJU 03/07/2007 p. 497. E ainda: STJ - CC 57.838/MS - 3a Seção - Relatora Ministra Laurita Vaz - Julgamento: 26/04/2006 - Publicação: 15/05/2006 p. 157; STJ - REsp 628.673/SC - 5a Turma - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJU 14/03/2005 p. 411.

tem-se que a autoridade coatora, para fins de im­ petração de habeas corpus, será o órgão do Parquet Federal. Nessa hipótese, questiona-se: a quem com­ pete o julgamento de habeas corpus contra membro do Ministério Público? Tem prevalecido o entendimento de que o habeas corpus deve ser processado e julgado pelo Tribunal no qual o membro do Ministério Público tem foro por prerrogativa de função. Isso porque, do julgamento do writ pode resultar o reconhe­ cimento da prática de um crime, razão pela qual somente o respectivo Tribunal poderia dizer se essa autoridade praticou ou não a infração penal. Destarte, se a autoridade coatora é um Procurador da República, ao respectivo Tribunal Regional Fe­ deral caberá o julgamento do habeas corpus (CF, art. 108,1, “a”). Caso a autoridade coatora seja um Procurador Regional da República, sobre o Supe­ rior Tribunal de Justiça recairá a competência (CF, art. 105,1, “a”).457 Quanto ao processo e julgamento de habeas corpus contra ato de Promotor de Justiça do MPDFT ou de órgão do Ministério Público Militar perante o respectivo Tribunal Regional Federal, pensamos que a questão deve ser analisada caso a caso. Explica-se: como é sabido, os Tribunais têm admitido o habeas corpus como instrumento com o trancamento de inquéritos policiais e/ou processos penais em hipóteses excepcionais, desde que carac­ terizada manifesta ausência de justa causa, atipici­ dade formal ou material da conduta, ou quando já extinta a punibilidade.

Pois bem. Imagine-se o seguinte exemplo: um Promotor de Justiça do Ministério Público Militar com atuação em Brasília requisita à autoridade judi­ ciária militar a instauração de um inquérito policial militar para apurar o crime de porte de drogas em lugar sujeito à administração militar (CPM, art. 290). Valendo-se do raciocínio da jurisprudência acima ci­ tada, esse writ deveria ser imediatamente encaminha­ do ao TRF da Ia Região, pelo simples fato de que esse órgão do MPM atuante em Ia instância é membro do Ministério Público da União. Ora, se porventura o TRF da Ia Região determinasse o trancamento do inquérito policial militar, estaria, diretamente, inva­ dindo esfera de competência que não lhe pertence, subtraindo da Justiça Militar competência que lhe é própria. Em outras palavras, a Justiça Federal estaria apreciando a existência de um crime militar, violando 457. STF - RE 315.010/DF - 2a Turma - Rei. Min. Néri da Silveira - DJ 31/05/2002).

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

o disposto no art. 124 da Constituição Federal. Por­ tanto, queremos crer que, nas hipóteses de manifesto constrangimento ilegal e/ou abuso de autoridade por parte do órgão do Ministério Público do Distrito Fe­ deral e Territórios ou do Ministério Público Militar, a competência para apreciar o writ deve recair sobre o Tribunal Regional Federal. Todavia, se do conheci­ mento desse habeas corpus puder resultar a invasão de competência que seja própria da Justiça do Distrito Federal ou da Justiça Militar da União, pensamos que o remédio heroico deva ser apreciado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios ou pelo Superior Tribunal Militar, respectivamente.

4.8. Mandados de segurança contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos Tribunais Federais (CF, Art. 109, VIII) Nos mesmos moldes que o art. 109, VII, da Constituição Federal, o dispositivo ora em análi­ se deve ser interpretado em conjunto com o art. 108, I, “c”, da Magna Carta. Logo, em se tratando de mandado de segurança contra ato de juiz federal ou do próprio Tribunal, ao Tribunal Regional Fede­ ral caberá o seu processo e julgamento. A contrario sensu, cuidando-se de autoridade federal que não esteja sujeita diretamente à jurisdição do Tribunal Regional Federal, recairá sobre os juizes federais a competência para o processo e julgamento do man­ dado de segurança.

Da leitura do art. 5o, LXIX, da Carta Magna, depreende-se que a abrangência do mandado de segurança é determinada por exclusão, somente sendo cabível sua impetração quando o direito não for amparado por habeas corpus ou habeas data. Logo, no âmbito criminal, sua utilização se dá de maneira subsidiária, pois, havendo constrangi­ mento à liberdade de locomoção, o habeas corpus prevalece sobre o mandado de segurança. Como exemplos de mandados de segurança no âmbito criminal cuja competência recai sobre um juiz fe­ deral, podemos citar: a) para o advogado ter vista dos autos de inquérito policial, que lhe é nega­ da por um delegado federal; b) para o advogado acompanhar seu cliente em diligência em inquérito policial em curso perante a Polícia Federal; c) para obter restituição de coisas apreendidas pela autori­ dade policial federal, etc.458 Em relação à negativa 458. Segundo o art. 61 da Lei n° 5.010/66, "na Seção em que houver Varas da Justiça Federal especializadas em matéria criminal, a estas caberá o processo e julgamento dos mandados de segurança e de quaisquer ações ou incidentes relativos a apreensão de mercadorias entradas ou saídas irregularmente do país ficando o juiz prevento para o procedimen­ to penal do crime de contrabando ou descaminho". Para a jurisprudência,

de acesso do advogado aos autos do inquérito po­ licial, diante da elaboração da súmula vinculante n° 14 pelo Supremo Tribunal Federal, também é possível se cogitar do ajuizamento de reclamação perante a Suprema Corte, de modo a se assegurar a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões (CF, art. 102,1, “1”, c/c art. 988, IV, do novo CPC). O mandado de segurança individual tem seu procedimento regulamentado pela Lei n° 12.016, de 7 de agosto de 2009. Segundo o art. 2o da referida Lei, considerar-se-á federal a autoridade coatora se as consequências de ordem patrimonial do ato con­ tra o qual se requer o mandado houverem de ser su­ portadas pela União ou entidade por ela controlada.

4.9. Crimes cometidos a bordo de navios ou ae­ ronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar (CF, Art. 109, inciso IX) De acordo com o art. 109, inciso IX, da Cons­ tituição Federal, compete aos juizes federais proces­ sar e julgar os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar.

Antes de se ingressar na análise propriamente do inciso IX do art. 109 da Carta Magna, importa analisar o princípio da territorialidade da lei penal brasileira. Esse princípio foi adotado como regra geral pelo Código Penal, a teor do disposto em seu art. 5o, caput, segundo o qual se aplica a lei brasilei­ ra, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no terri­ tório nacional. Por sua vez, de acordo com os § Io do art. 5o do CP, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves bra­ sileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercan­ tes ou de propriedade privada, que se achem, res­ pectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. Também se aplica a lei brasileira aos crimes cometidos a bordo de aeronaves ou embar­ cações estrangeiras de propriedade privada, achan­ do-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil (CP, art. 5o, § 2o).

essa competência excepcional do art. 61 da Lei n° 5.010/66, que atribui ao Juízo Federal Criminal competência para processar e julgar mandados de segurança e outras ações relacionadas com apreensão de mercadorias encontradas irregularmente no país, deve ser interpretada de maneira restritiva, somente sendo aplicável quando houver fato típico objeto de inquérito policial ou ação penal instaurados.

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Conquanto o art. 11 da Lei n° 2.180/54 defina embarcação mercante como toda construção utiliza­ da como meio de transporte por água, e destinada à indústria de navegação, quaisquer que sejam as suas características e lugar de tráfego, prevalece na jurisprudência que o termo “navio”, constante do art. 109, IX, da Carta Magna, abrange somente as embarcações aptas para a navegação em alto-mar. Estão excluídas do referido conceito, portanto, em­ barcações de pequeno porte ou de pequeno calado, tais como lanchas de recreio, botes com motor de popa, jet-skis, etc. Logo, compete à Justiça Estadual o processo e julgamento de feito que visa à apuração de delito cometido em lancha, tida como embar­ cação de pequeno porte que não é abrangida pela regra do art. 109, IX, da CF.459 Para os fins do art. 109, inciso IX, a Constituição Federal exige que o crime seja cometido a bordo de navio, o que significa que o delito deve ser pratica­ do no interior da embarcação. Na verdade, a norma visa abranger as hipóteses em que tripulantes e pas­ sageiros, pelo potencial marítimo do navio, possam ser deslocadas para águas territoriais internacionais. Portanto, imaginando-se exemplo em que uma ví­ tima, que estava sendo transportada por pequena embarcação, venha a se acidentar quando tentava embarcar em navio fundeado subindo a escada, como não houve o implemento desde potencial de desloca­ mento internacional, a competência será da Justiça Estadual.460 Portanto, é necessário que a embarcação se encontre em situação de deslocamento internacio­ nal ou em situação de potencial deslocamento. Por isso, em caso concreto referente a homicídio culpo­ so ocorrido durante operação de carregamento de veículos para navio de bandeira italiana, estando a embarcação ancorada para carregamento, o qual era feito por pessoas estranhas à embarcação - estiva­ dores (entre eles, a vítima) -, e não por passageiros ou funcionários do navio, concluiu-se que a conduta culposa cometida em solo antes do início da opera­ ção de reembarque deveria ser processada e julgada perante a Justiça Comum Estadual.461

e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodi­ nâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas”. Segundo Nádia de Araújo, “não pode ser consi­ derada aeronave o paraquedas, que tem por finalida­ de amortecer uma queda utilizando-se da resistência do ar, nem hovercraft, já que ele não circula no espaço aéreo deslocando-se através de um colchão de ar, por ele próprio produzido. Quanto aos planadores, são considerados aeronaves, mesmo porque a definição não exige que estas possuam motor, apenas que te­ nham aptidão para sustentar-se e circular no espaço, e que sejam manobráveis. São também aeronaves o helicóptero e os hidroaviões. Ainda com respeito ao Space Shuttle Columbia, acreditamos tratar-se de uma aeronave que acumula, além das característi­ cas básicas desta, a qualidade de efetuar, no espa­ ço epiatmosférico, a atividade executada por naves espaciais.”462 Conquanto a Convenção de Tóquio, promul­ gada pelo Decreto n° 479/69, estabeleça que um crime praticado a bordo de uma aeronave sobre qualquer território estrangeiro, por exemplo, o território brasileiro, somente seria da jurisdi­ ção brasileira se a infração produzisse efeitos no território brasileiro, se a infração tivesse sido cometida por ou contra um nacional do Brasil ou se a pessoa tivesse residência permanente no Brasil, tal dispositivo não pode prevalecer sobre o disposto no art. 109, inciso IX, da Constituição Federal, segundo o qual compete à Justiça Fede­ ral processar e julgar qualquer crime cometido a bordo de navio ou aeronave, independentemente da posição dos sujeitos ativo e passivo, ressalvada a competência da Justiça Militar.

460. STJ - CC 43.404/SP - 3a Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJ 02/03/2005 p. 184).

Analisando conflito positivo de competência entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual relati­ vo ao acidente aéreo envolvendo o jato executivo legacy com o Boeing 737-800 da Gol Transportes Aéreos, que resultou na queda dessa última em solo no Estado do Mato Grosso, decidiu o Superior Tri­ bunal de Justiça que a competência seria da Justiça Federal. Ponderou a Min. Relatora Maria Thereza de Assis Moura que, qualquer que seja o resul­ tado final das investigações, no tocante à prática de qualquer ilícito penal, seja doloso ou culposo, haverá a competência da Justiça Federal (art. 109, IV e IX, da CF/1988). Anotou que o tipo penal pro­ visoriamente capitulado seria o do art. 261 do CP (crime de atentado à segurança do transporte aé­ reo), que busca tutelar bem cuja exploração (direta ou mediante autorização, concessão ou permissão)

461. STJ, 3a Seção, CC 116.011/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 23/11/2011. No mesmo contexto: STJ, 3a Seção, CC 118.503/PR, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 22/4/2015, DJe 28/4/2015.

462. Apud CARVALHO, Competência da Justiça Federal, 2008. p. 457.

Quanto à noção de aeronave, o art. 106, caput, da Lei n° 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáu­ tica) assim a define: “Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se 459. STJ - CC 24.249/ES, Rei. Min. GILSON DIPP, Terceira Seção, DJ 17/4/2000, p. 41.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

é da União (art. 21, XII, c, da CF/1988), o que impõe a competência da Justiça Federal (art. 109, IV, da CF/1988), também obrigatória no caso de admitir-se a prática de crime a bordo de aeronave (art. 109, IX, da CF/1988).463 Ainda em relação à competência da Justiça Federal para processar e julgar crime cometido a bordo de aeronave, vale ressaltar que pouco importa se a aeronave se encontra em ar ou em terra e, ainda, quem seja o sujeito passivo do delito. Portanto, o fato de encontrar-se a aeronave em terra não afasta a competência da Justiça Federal se comprovado que a prática criminosa ocorreu no seu interior. Imaginando-se, então, crime de roubo ocorrido no interior de avião pousado, consistente na subtração de numerário pertencente ao Banco do Brasil e sob a guarda de empresa transportadora de valores, ter-se-á crime de competência da Justiça Federal, na medida em que o delito terá sido cometido a bordo de aeronave.464

Quanto ao delito de tráfico de drogas, caso esse seja praticado a bordo de navio ou aeronave, ter-se-á crime de competência da Justiça Federal com fundamento no art. 109, inciso IX, da Constituição Federal, independentemente da internacionalida­ de territorial do resultado relativamente à conduta delituosa, tal qual exige o inciso V do art. 109 da Carta Magna. Entretanto, para que a competência seja da Jus­ tiça Federal, é imprescindível que o flagrante ocor­ ra a bordo da aeronave. Assim, v.g., se um agente transportando cocaína a bordo de voo de Cuiabá/ MT para São Paulo for obrigado a desembarcar em Brasília antes de seguir viagem para o destino final, sendo preso em flagrante quando estava no saguão do aeroporto, ter-se-á crime de tráfico doméstico, a ser julgado pela Justiça Estadual, pouco importando que o transporte, que antecedera a prisão, tenha sido feito por meio de avião465.

Compete à Justiça Estadual o julgamento de crimes ocorridos a bordo de balões de ar quente tripulados. Explica-se: os aeróstatos (balões e dirigí­ veis) não são manobráveis, mas apenas controlados

463. STJ, 3a Seção, CC 72.283/MT, Rei. Min. Maria Thereza de Assis

Moura, DJU 05/02/2007 p. 199. 464. STF, 1a Turma, RHC 86.998/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJe 004 26/04/2007. No mesmo sentido: STJ, 5a Turma, HC 40.913/SP, Rei. Min.

em voo, já que são guiados pela corrente de ar. De outro lado, sua sustentação não ocorre por reações aerodinâmicas, mas por impulsão estática, decor­ rente do aquecimento do ar ao seu redor, tornan­ do-o menos denso, o que os faz subir e alçar voo. Logo, não podem ser tratados como aeronave à luz do art. 106 do Código Brasileiro de Aeronáutica.466

Por fim, se se tratar de crime militar a bordo de navios ou aeronaves, a competência será da Justiça Militar, por força da ressalva constitucional do fim do inciso IX do art. 109 da Constituição Federal.

4.10. Crimes de ingresso ou permanência irre­ gular de estrangeiro (CF, Art. 109, X) Para fins criminais, interessa-nos a primeira parte do inciso X do art. 109 da Constituição Fe­ deral, referente à competência criminal da Justiça Federal para processar e julgar os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro. Tal dis­ positivo é interpretado no sentido de que compete aos juizes federais o processo e julgamento de todo e qualquer crime, previsto na legislação comum ou especial, cometido pelo estrangeiro com o intuito de regularizar o seu ingresso e permanência no Brasil. Inicialmente, cabe ressaltar que o simples fato de um delito ter sido praticado por um estrangeiro não atrai a competência da Justiça Federal. Com efeito, a condição de estrangeiro, para fins de fi­ xação de competência criminal, só tem relevância quando se trata de crime relacionado ao ingresso ou permanência irregular no país.467 É importante notar que a entrada no território nacional sem estar autorizado configura mera in­ fração administrativa punida com deportação, tal qual dispõe o art. 109, inciso I, da Lei n. 13.445/17 (Lei de Migração). Da mesma forma, permanecer em território nacional depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória também constitui infração administrativa, punida com pena de multa, por dia de excesso e deportação, caso o infrator não saia do País ou não regularize a situação migratória no prazo fixado (Lei n° 13.445/17, art. 109, II).

O art. 338 do Código Penal, por sua vez, dispõe que a conduta de reingressar no território nacional o estrangeiro que dele foi expulso será punida com pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, sem prejuízo de nova expulsão após o cumprimento da pena. Por sua vez, versa o art. 309 do CP acerca do

Arnaldo Esteves Lima, DJ 15/08/2005 p. 338; STJ, 5a Turma, HC 108.478/ SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado doTJ/ RJ, julgado em 22/02/2011.

465. De acordo com o Supremo, "o fato de a droga haver sido trans­ portada por via aérea não ocasiona, por si só, a competência da Justiça Federal. Prevalece, sob tal ângulo, o local em que apreendida". (STF - RE 463.500/DF -1a Turma - Rei. Min. Marco Aurélio - Dje 092 - 21 /05/2008).

466. Nessa linha: STJ, 3a Seção, CC 143.400/SP, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 24/04/2019, DJe 15/05/2019. 467. STJ, 3a Seção, CC 33.624/PE, Rei. Min. Laurita Vaz, DJ 05/05/2003

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crime de fraude de lei sobre estrangeiro, caracterizando-se pela conduta de usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional, nome que não é o seu (caput do art. 309 do CP). O pa­ rágrafo único do art. 309 do CP dispõe acerca da conduta de atribuir a estrangeiro falsa qualidade para promover-lhe a entrada em território nacional. Lado outro, o art. 310 do CP prevê como crime as condutas de prestar-se a figurar como proprietário ou possuidor de ação, título ou valor pertencente a estrangeiro, nos casos em que a este é vedada por lei a propriedade ou a posse de tais bens, condutas estas que podem ser praticadas com a finalidade precípua de garantir a permanência irregular do estrangeiro no território nacional.

4.11. Disputa sobre direitos indígenas (CF, Art. 109, XI) Segundo o disposto no art. 109, inciso XI, da Constituição Federal, compete à Justiça Federal processar e julgar a disputa sobre direitos indíge­ nas. Nos exatos termos do art. 3o da Lei n° 6.001/73 (Estatuto do índio), índio ou silvícola é todo in­ divíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional (inciso I), e co­ munidade indígena ou grupo tribal é um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em con­ tato intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados (inciso II).

Acerca da competência criminal, pacificou-se a jurisprudência no sentido de que crimes cometidos por ou contra índios são, em regra, da competência da Justiça Estadual, salvo se o delito envolver a dis­ puta sobre direitos indígenas. Nesse sentido, aliás, dispõe a súmula n° 140 do STJ que compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima. Portanto, se um crime de homicídio for cometido por um ín­ dio, motivado por desentendimento momentâneo, não guardando qualquer pertinência com direitos indígenas, será de todo irrelevante o fato de o deli­ to ter ocorrido no interior de reserva indígena - a competência será da Justiça Estadual.468 468. STF - HC 81.827/MT - 2a Turma - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 23/08/2002. A 2a Turma do Supremo seguiu esse mesmo raciocínio ao reconhecer a competência da Justiça Comum do Distrito Federal para processar e julgar o caso"Galdino": STF, 2a Turma, HC 75.404/DF, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 27/04/2001. No mesmo sentido: STF - HC 79.530/PA - Ia Turma - Rei. Min. limar Galvão - Publicação: DJ 25/02/2000.

Nessas circunstâncias, não se pode querer atri­ buir a competência à Justiça Federal pelo simples fato de recair sobre a FUNAI a tutela sobre os índios, nem tampouco pelo fato de o art. 37 da LC 75/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público da União) atribuir ao MPF a defesa de direitos e inte­ resses dos índios e das populações indígenas, nem tampouco pelo fato de caber à FUNAI a tutela sobre os índios.

Se, no entanto, o delito cometido por ou contra índio envolver a disputa sobre direitos indígenas, ter-se-á crime de competência da Justiça Federal. Por “direitos indígenas” deve se atentar para o dis­ posto no art. 231, caput, da Carta Magna, segundo o qual são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicional­ mente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. As­ sim, se o chefe de uma tribo indígena for vítima de um crime doloso contra a vida, estando a infração relacionada à disputa sobre terras ocupadas pelos índios, estará fixada a competência do Tribunal do Júri Federal para o processo e julgamento do feito.469

Em relação aos crimes cometidos em detri­ mento de terras indígenas, não há como se afastar a competência da Justiça Federal. A uma porque são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (CF, art. 20, inciso XI). A duas porque tal delito envolve direitos indígenas, haja vista os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam (CF, art. 231, caput). Des­ tarte, seja com fundamento no inciso IV do art. 109 da Constituição Federal, seja com base no inciso XI do art. 109, crimes envolvendo terras indígenas de­ verão ser processados e julgados pela Justiça Federal. Por isso, crime contra o meio ambiente praticado no interior de reserva indígena deve ser julgado pela Justiça Federal. Este o motivo pelo qual, em caso concreto atinente a crimes de homicídios praticados por índios cuja motivação teria sido a disputa pela posse de ter­ ras entre índios e produtores rurais locais, concluiu 469. STJ - HC 77.280/RS - 5a Turma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima

- Dje 09/03/2009. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar processo penal referente aos crimes de calúnia e difa­ mação praticados no contexto de disputa pela posição de cacique em comunidade indígena: STJ, 3a Seção, CC 123.016/TO, Rei. Min. Marco Au­ rélio Bellizze, j. 26/06/2013. No sentido de que a competência da Justiça Federal em relação aos direitos indígenas não se restringe às hipóteses de disputa de terras, eis que os direitos contemplados no art. 231 da Consti­ tuição da República são muito mais extensos: STF, 2aTurma, RHC 117.097/ RJ, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 10/12/2013, DJe 22 31/01/2014.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

o Superior Tribunal de Justiça pela competência da Justiça Federal.470

Não obstante ser esse o entendimento consoli­ dado dos Tribunais Superiores, ao apreciar o RMS 30.675/AM, a 5a Turma do STJ concluiu - estranha­ mente, a nosso ver - que, mesmo em se tratando de índio integrado à sociedade, haveria a necessi­ dade de intervenção da FUNAI, o que, consequen­ temente, acarretaria a fixação da competência da Justiça Federal. O caso concreto referia-se à prática de crime de tráfico de drogas por acusado perten­ cente à etnia Kokama. Nas instâncias ordinárias, a intervenção da FUNAI foi indeferida pelo fato de o acusado ter sido considerado integrado à socie­ dade, já que possuía documentos comuns aos não índios (CPF, RG, título de eleitor etc.). No entanto, sob o argumento de que o normativo da Convenção OIT n° 169 adota, como critério de identificação, a autoidentificação, sendo indígena quem se sente, comporta-se ou afirma-se como tal, de acordo com os costumes, organizações, usos, língua, crenças e tradições indígenas da comunidade a que pertença, seria obrigatória a intervenção da FUNAI, daí por que o processo devia ter tramitado perante a Justiça Federal.471

A nosso juízo, laborou em equívoco a 5a Turma do STJ, porquanto ausente interesse da FUNAI no caso concreto. Com efeito, por força do art. 4o da Lei n° 6.001/73, classifica-se o índio em: a) Isolados: quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de con­ tatos eventuais com elementos de comunhão nacio­ nal; b) Em vias de integração: quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional; c) Integrados: quando incor­ porados à comunhão nacional e reconhecidos no 470. STJ - HC 65.898/MS - 5a Turma - Rei. Min. Laurita Vaz - DJ 14/05/2007 p. 343. Com raciocínio semelhante: STJ - CC 31.134/BA - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 25/03/2002 p. 172. Em caso concreto pertinente à tentativa de homicídio contra um advogado, crime do qual seria mentor um silvícola, cuja motivação seria a penhora de um micro-ônibus pertencente à associação indígena para saldar dívidas, concluiu a 3a Seção do STJ tratar-se de crime da competência da Justiça Federal, já que, interpretando-se em conjunto o art. 3o da Lei n° 6.001/1973 e o art. 231 da CF/1988, não há como negar que, no caso, a motivação para o crime extrapolou o interesse privado (individual). Isso porque, sendo vedada a implantação de garimpos particulares em reservas indígenas, criou-se uma maneira indireta de fazer a extração dos bens minerais escondidos

em seu subsolo. Convenceu-se a comunidade indígena daquela região acerca da necessidade de aquisição de bens materiais modernos, saben­ do-se que jamais seus membros teriam como quitar as dívidas contraídas:

pleno exercício dos direitos civis, ainda que con­ servem usos, costumes e tradições características da sua cultura.

Compete à União, através da FUNAI (órgão fede­ ral de assistência aos silvícolas), dentre outras, prestar assistência aos índios ainda não integrados à comunhão nacional (art. 2o, Lei 6001/73), garantindo a ele a igual­ dade de armas na disputa travada no processo penal. A sua intervenção, portanto, só se justifica quando o índio necessitar da tutela, e isso se dá apenas quan­ do não totalmente integrado (art. 7o, da Lei 6001/73). Quando se trata de índio integrado (com registro civil, inclusive), cessa toda e qualquer restrição à capacidade (art. 10 da Lei 6001/73), mas nunca sua condição de índio. Dentro desse espírito, sentir-se, comportar-se ou afirmar-se índio, de acordo com os costumes, or­ ganizações, usos, língua, crenças e tradições indígenas da comunidade a que pertença, não impede que seja etiquetado como capaz e, como tal, dispensar a tutela do órgão de assistência federal (repise-se: índio, inte­ grado ou não, continua índio).

Ora, no caso concreto apreciado pelo STJ, o acusado, índio, claramente integrado, possuindo registro civil, comercializou, fora da sua comunida­ de, drogas. Logo, não há falar em tutela da FUNAI, muito menos em fixação da competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito. De­ via ter sido mantida, pois, a competência da Justiça Estadual.

4.11.1. Genocídio contra índios O crime de genocídio está previsto na Lei n° 2.889/56. Da leitura do art. Io da Lei n° 2.889/56 depreende-se que o bem jurídico tutelado pelo ge­ nocídio é a existência de grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não se trata, pois, de crime do­ loso contra a vida. Conclui-se, também, que referido delito pode ser praticado por meio de homicídios, lesões corporais, maus-tratos, esterilização forçada, aborto e sequestro ou cárcere privado. Inicialmente, cumpre analisar a competência de Justiça para processar e julgar o delito de genocídio: Justiça Estadual ou Justiça Federal?

É bem verdade que o delito de genocídio está previsto em tratado ou convenção internacional - o Decreto n° 30.822, de 6 de maio de 1952, promul­ gou a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, concluída em Paris, em 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas.472 No entanto,

STJ, 3a Seção, CC 99.406/RO, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 13/10/2010.

471. STJ, 5aTurma, RMS 30.675/AM, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 22/11 /2011, DJe 01/12/2001.

472. Aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n° 2, de 11 de abril de 1951.

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como visto anteriormente, de acordo com o art. 109, inciso V, da Constituição Federal, o simples fato de o delito estar previsto em tratado ou convenção in­ ternacional assinada pelo Brasil não enseja, por si só, a competência da Justiça Federal. Para além disso, é imprescindível que o delito se revista do caráter de internacionalidade, ou seja, que reste caracterizada a internacionalidade territorial do resultado rela­ tivamente à conduta delituosa. Ora, como o delito de genocídio, pelo menos em regra, não preenche esse segundo pressuposto, tem-se que o crime de genocídio é da competência da Justiça Estadual. Como se trata de crime que envolve grave vio­ lação aos direitos humanos, afigura-se possível o incidente de deslocamento da competência para a Justiça Federal (CF, art. 109, inciso V-A, c/c art. 109, § 5o), o qual, todavia, fica condicionado à de­ monstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligên­ cia, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em pro­ ceder à devida persecução penal. Assim, imaginan­ do-se um massacre baseado em intuito genocida, e confirmada a negligência do Estado-membro em proceder à persecução penal, estará o Procurador-Geral da República autorizado a propor perante o Superior Tribunal de Justiça o incidente de deslo­ camento da competência pleiteando a remessa do feito à Justiça Federal.

Em que pese o fato de o delito de genocídio ser, em tese, da competência da Justiça Estadual, caso esse genocídio seja praticado contra índios, não há como se afastar a competência da Justiça Federal. Isso porque, como o delito teria o condão de atingir potencialmente a própria existência de uma deter­ minada etnia indígena, inegável tratar-se de crime praticado contra índios envolvendo a disputa sobre direitos indígenas, afastando-se, assim, a aplicação da súmula n° 140 do STJ. Mas ainda deve ser analisado se esse delito de genocídio contra índios deve ser julgado por um juiz singular federal ou por um tribunal do júri federal. Como visto anteriormente, como o delito de genocídio não é crime doloso contra a vida, eventual delito de genocídio contra índios deve ser proces­ sado e julgado, pelo menos em regra, perante um juiz singular federal. Assim, v.g., se determinado in­ divíduo, fazendo-se se passar por cientista, e agin­ do com intuito genocida, entregar pílulas anticon­ cepcionais a índias, dizendo tratar-se de remédios contra a gripe, deverá responder pelo delito do art.

Io, alínea “d”, da Lei n° 2.889/56, perante um juiz singular federal.

Todavia, esse mesmo delito de genocídio con­ tra índios pode ser praticado mediante morte de membros do grupo. Nesse caso, se o agente resolver matar vários índios, em circunstâncias semelhantes de tempo e de lugar, e com o mesmo modus operandi, deverá responder pelos diversos homicídios (em continuidade delitiva) e pelo crime de genocídio, em concurso formal impróprio, não sendo possível a aplicação do princípio da consunção. Nesse caso, como os crimes dolosos contra a vida de índios en­ volvem a disputa sobre direitos indígenas, a série de continuidade delitiva dos homicídios deverá ser processada e julgada perante um Tribunal do Júri Federal, que exercerá força atrativa em relação ao crime conexo de genocídio, tal qual dispõe o art. 78, inciso I, do Código de Processo Penal.473

4.12. Conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual Havendo conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, prevalece a competência da Justiça Federal. Isso porque a competência da Justiça Federal vem prevista na própria Constituição Federal, impedindo que seja afastada em prol da Justiça Estadual por força de uma regra prevista na lei processual penal. É exa­ tamente esse o conteúdo da súmula n° 122 do STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência fe­ deral e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal. Na mesma linha, o extinto Tribunal Federal de Recursos che­ gou a elaborar a súmula n° 52, in verbis: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unifica­ do dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do CPP. Não por outro motivo, em caso concreto referente a acusado de crimes de pedofilia e porno­ grafia infantil de caráter transnacional - crime de competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, V, da Constituição Federal -, praticados em conexão com estupro e atentado violento ao pudor cometidos contra menores no Brasil, concluiu a 2a Turma do STF que todas as infrações penais deve­ ríam ser julgadas pela Justiça Federal, haja vista a conexão probatória entre elas.474 473. Com esse entendimento: STF, Pleno, RE 351.487/RR, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 10/11/2006.

474. STF, 2a Turma, HC 114.689/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13/08/2013. À evidência, não havendo conexão entre o crime federal e o crime estadual, não se justifica o simultaneus processus perante a Justiça

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Por isso, havendo conexão entre um crime fe­ deral e um crime estadual, prevalece a competência da Justiça Federal, mesmo em se tratando de crimes dolosos contra a vida. Assim, se um crime federal, sujeito ou não ao Tribunal do Júri, for conexo a um crime doloso contra a vida de competência da Justi­ ça Estadual, ambos deverão ser julgados por um Tri­ bunal do Júri Federal. Desse modo, observar-se-ão a competência da Justiça Federal e a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida.475

Ressalte-se, todavia, que a própria Constituição Federal, em seu art. 109, inciso IV, afasta da compe­ tência da Justiça Federal o processo e julgamento de contravenções penais. Logo, ainda que haja conexão entre um crime “federal” e uma contravenção penal, esta última deverá ser processada e julgada perante a Justiça Estadual, consoante dispõe a súmula 38 do STJ.476 Só há falar em aplicação da súmula 122 do STJ, com a consequente reunião dos processos perante a Justiça Federal, na hipótese de haver crime federal que justifique sua atuação. Portanto, na eventuali­ dade de a imputação que justificava a competência da Justiça Federal deixar de existir, a competência passará às mãos da Justiça Estadual. Nesse caso, não se pode aplicar a regra do art. 81 do CPP, que ver­ sa sobre a perpetuação de competência. Afinal, se não há crime federal, e se a competência da Justiça Federal é definida taxativamente na Constituição Federal, não se pode querer ampliá-la com base em regra infraconstitucional (CPP, art. 81), quando não se tem qualquer crime que justifique a reunião dos processos. A título de exemplo, suponha-se que seja oferecida denúncia perante a Justiça Federal em face de um agente quanto à suposta prática do crime de descaminho (CP, art. 334), crime de competên­ cia da Justiça Federal, e contra outros dois corréus pela suposta prática do crime de receptação (CP, Federal: STJ, 3a Seção, CC 101,306/PR, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Dje 20/02/2009. 475. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de crime de roubo armado contra agência dos correios conexo a tentativa de homicídio contra policiais militares, o qual, não fosse a conexão com aquele crime federal, deveria ser julgado pela Justiça

Comum Estadual: STJ, 3a Seção, CC 165.117/RS, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 23/10/2019, DJe 30/10/2019. Para o STJ, compete à Justiça Estadual processual e julgar crime de porte ilegal de arma de fogo praticado, em uma mesma circunstância, com crime de contrabando - de competência da Justiça Federal -, já que a mera ocorrência dos referidos delitos no mesmo contexto não enseja o reconhecimento da conexão e consequen­ te reunião dos processos na Justiça Federal: STJ, 3a Seção, CC 120.630/ PR, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada doTJ/PE-,j. 24/10/2012. 476. STJ, 3a Seção, AgRg no CC 118.914/SC, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 29/02/2012, DJe 07/03/2012.

art. 180). Caso ocorra a extinção da punibilidade em relação ao primeiro acusado (v.g., pela morte), impõe-se a imediata remessa dos autos à Justiça Es­ tadual, sendo inviável a aplicação da regra da perpe­ tuação de competência. Ora, as normas de conexão, de índole meramente legal, não podem se sobrepor aos regramentos constitucionais de determinação da competência da Justiça Federal. Logo, nesta hi­ pótese de conexão entre os crimes de descaminho e de receptação, em que o primeiro atraiu a com­ petência da Justiça Federal para processar e julgar os delitos, não mais existindo atração para a Justiça Federal processar e julgar o feito devido à extinção da punibilidade pela morte do agente, desaparece o interesse da União, deslocando-se a competência para a Justiça estadual.477

Ainda em relação a este exemplo, resultado di­ verso ocorrerá no caso de absolvição em relação ao crime de descaminho. Nesse caso, mesmo que o juiz federal absolva o agente em relação à imputação de descaminho, terá sua competência prorrogada para julgar o delito conexo, pois, se houve absolvição, isso significa dizer que a Justiça Federal afirmou sua competência, a qual será extensiva aos crimes cone­ xos, nos termos do art. 81 do CPP. Na mesma linha, se o crime de competência da Justiça Federal estiver suspenso em virtude, por exemplo, do parcelamento do débito tributário, subsiste a competência desta Justiça para o processo e julgamento da infração conexa, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 81 do CPP. Ora, se, no mais - absolvição ou desclassificação do crime - subsiste a competência, não há razão para o menos - suspensão do processo - modificar a competência atraída pela conexão.478

5. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA ESTADUAL Funcionam como órgãos da Justiça Estadual o Tribunal de Justiça, os Tribunais do Júri, os Juizes de Direito, os Juizados Especiais e as Turmas Recursais dos Juizados. Até bem pouco tempo atrás, alguns Estados como Minas Gerais, São Paulo e Paraná, eram dotados de Tribunais de Alçada. Com a Emen­ da Constitucional n° 45/04 (art. 4o), esses Tribunais foram extintos. A competência da Justiça Estadual é residual ou subsidiária, ou seja, as infrações penais que não per­ tençam à esfera de competência da Justiça Militar (da União ou dos Estados), da Justiça Eleitoral, ou 477. Nesse sentido: STJ, 3a Seção, CC 110.998/MS, Rei. Min. Maria The­ reza de Assis Moura, julgado em 26/05/2010. 478. STJ, 3a Seção, CC 121.022/AC, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 10/10/2012.

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da Justiça Federal, deverão ser processadas e julga­ das perante a Justiça Estadual. Exemplificando, imagine-se um crime de roubo praticado no centro da cidade de São Paulo. Tal crime não é da competência das demais Justiças, nem tampouco do Tribunal do Júri. Some-se a isso o fato de o autor do delito não ser titular de foro por prerrogativa de função. Che­ gamos, pois, à conclusão de que o agente deve ser julgado pela Justiça Estadual, in casu, por uma das Varas Centrais da Comarca de São Paulo.

Conquanto a Constituição Federal e a legislação ordinária acima referida (Lei n° 1.079/50 e Decre­ to-lei n° 201/67) se refiram à prática de crimes de responsabilidade, atribuindo ao Senado Federal, ao Tribunal Especial e à Câmara Municipal o exercício dessa atividade jurisdicional atípica, tecnicamen­ te não há falar em crime, mas sim no julgamento de uma infração político-administrativa. 479 Nesse cenário, é indispensável diferenciarmos crimes de responsabilidade em sentido amplo de crimes de responsabilidade em sentido estrito.

6. JUSTIÇA POLÍTICA OU EXTRAORDINÁRIA

Crimes de responsabilidade em sentido amplo são aqueles cuja qualidade de funcionário público (CP, art. 327) funciona como elementar do delito. É o que ocorre com os crimes praticados por fun­ cionários públicos contra a administração pública (CP, arts. 312 a 326). Esses crimes de responsabili­ dade em sentido amplo estão inseridos naquilo que a Constituição Federal denomina de crimes comuns ou infrações penais comuns.

Corresponde à atividade jurisdicional exercida por órgãos políticos, alheios ao Poder Judiciário, apresentando como objetivo precípuo o afastamento do agente público que comete crimes de responsa­ bilidade de suas funções. De acordo com o art. 52, incisos I e II, da Constituição Federal, compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de res­ ponsabilidade, assim como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, bem como os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacio­ nal de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabi­ lidade, observando-se, em relação ao Presidente da República e aos Ministros de Estado, a competência da Câmara dos Deputados para a admissibilidade e a formalização da acusação (CF, art. 51,1; CF, art. 86; Lei n° 1.079/50, art. 20 e seguintes).

Por sua vez, compete a um Tribunal Especial, composto por cinco Deputados, escolhidos pela As­ sembléia, e cinco Desembargadores, sorteados pelo Presidente do Tribunal de Justiça, que também o presidirá (Lei n° 1.079/50, art. 78, § 3o), processar e julgar, nos crimes de responsabilidade, o Governa­ dor, o Vice-Governador, e os Secretários de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos com aque­ les, assim como o Procurador-Geral de Justiça e o Procurador-Geral do Estado.

No caso de crimes de responsabilidade prati­ cados por Prefeitos Municipais (infrações político-administrativas), que são os tipificados no art. 4o do Decreto-lei n° 201/67, a competência para julga­ mento é da Câmara Municipal. O processo pressu­ põe que o Prefeito Municipal esteja no exercício do mandato, na medida em que a única sanção prevista é a cassação do mandato.

Por seu turno, crimes de responsabilidade em sentido estrito são aqueles que somente determi­ nados agentes políticos podem praticar. Prevalece o entendimento de que não têm natureza jurídica de infração penal, mas sim de infração político-administrativa, passível de sanções político-administrativas, aplicadas por órgãos jurisdicionais políticos (normalmente órgãos mistos, compostos por parlamentares ou por parlamentares e magistra­ dos). Como desses crimes de responsabilidade não decorre sanção criminal, não podem ser qualifica­ dos como infrações penais, figurando, pois, como infrações políticas da alçada do Direito Constitu­ cional.480*De acordo com a súmula vinculante n. 46, “a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de pro­ cesso e julgamento são da competência legislativa privativa da União”.

A Lei n° 1.070/50 estabelece os crimes de res­ ponsabilidade em sentido estrito (no sentido uti­ lizado pela Constituição Federal), que podem ser 479. Segundo Pacelli,"mesmo quando a Constituição atribui a órgãos do Judiciário a competência para o julgamento de crimes de responsa­ bilidade (art. 105,1, a, por exemplo), não se estará exercendo outro tipo de jurisdição que não seja a de natureza política, diante da natureza igualmente política das infrações" (op. cit. p. 188). 480. De acordo com o art. 2o da Lei n° 1.079/50, os crimes definidos

nesta Lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até 5 (cinco) anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos proces­

sos contra o Presidente da República ou ministros de Estado, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador-Geral da República. Além disso, "a imposição da pena referida no artigo anterior (art. 2o) não exclui o processo e julgamento do acusado por crime co­ mum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal" (Lei n° 1.079/50, art. 3°).

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

praticados pelo Presidente da República (art. 4o da Lei n° 1.079/50, c/c art. 85 da CF), Ministros de Estado (art. 13 da Lei n° 1.079/50 c/c art. 50, § 2o, da CF), Ministros do Supremo Tribunal Federal (Lei n° 1.079/50, art. 39), Procurador-Geral da República (Lei n° 1.079/50, arts. 40 e 41), Advogado-Geral da União (Lei n° 1.079/50, art. 40-A, parágrafo único, I), Governadores e seus Secretários de Estado, Go­ vernador e os Secretários do Distrito Federal (quan­ to ao DF, por remissão do art. Io da Lei n° 7.106/83). Como se percebe pela leitura da Lei n° 1.079/50, ao contrário do que se dá com os Ministros do Supre­ mo Tribunal Federal, com o Procurador-Geral da República e com o Advogado-Geral da União, não há, por ora, previsão legal de crimes de responsa­ bilidade que podem ser praticados pelos membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Na­ cional do Ministério Público. É incompatível com a Constituição Federal ato normativo estadual que amplie as atribuições de fis­ calização do Legislativo local e o rol de autoridades submetidas à solicitação de informações. O art. 50, caput e § 2o, da Constituição Federal traduz norma de observância obrigatória pelos estados-membros, que, por imposição do princípio da simetria (CF, art. 25), não podem ampliar o rol de autoridades sujeitas à fiscalização direta pelo Poder Legislati­ vo e à sanção por crime de responsabilidade. Além disso, como exposto anteriormente, compete priva­ tivamente à União (CF, art. 22,1) legislar sobre cri­ me de responsabilidade (Enunciado 46 da Súmula Vinculante).481

Referida lei estabelece que qualquer cidadão, em todas as infrações político-administrativas nela delimitadas, possui legitimidade ativa para o oferecimento de denúncia, a ser encaminhada posteriormente aos órgãos da jurisdição política com competência para o julgamento do feito (Lei n° 1.079/50, arts. 14, 41 e 75). Como esses crimes de responsabilidade não têm natureza jurídica de infração penal, essa denúncia a que se refere a lei deve ser compreendida como uma notitia criminis (comunicação da ocorrência de um ilícito), na medida em que a proposição acusatória depende de órgão fracionário do Poder Legislativo (vide art. 23, § Io, da Lei n° 1.079/50).

Quanto aos Prefeitos Municipais, os crimes de responsabilidade em sentido estrito estão previs­ tos no art. 4o do Decreto-lei n° 201/67. Embora o Decreto-lei n° 201/67 refira-se a crimes de respon­ sabilidade em seu art. Io, tem-se aí, na verdade,

verdadeiros crimes comuns, da competência do Tribunal de Justiça. Por isso, a extinção do man­ dato do prefeito não impede a instauração de processo em relação aos crimes comuns, tal qual estabelece a súmula n. 703 do STF (“A extinção do mandato do prefeito não impede a instauração de processo pela prática dos crimes previstos no art. Io do Dec.-lei 201/1967”).482 De modo semelhante ao que se dá na Lei n° 1.079/50, o Decreto-lei n° 201/67 (art. 5o, I) auto­ riza qualquer eleitor a propor ação de cassação do Prefeito, a partir de denúncia que deve ser encami­ nhada à Câmara de Vereadores, à qual compete o processo e julgamento de Prefeitos pela prática das infrações político-administrativas previstas no art. 4o do referido Decreto-lei.

Não foi esta, todavia, a posição do Supremo Tribunal Federal, que recusou a legitimidade popu­ lar para a denúncia contra Ministro de Estado, sob o argumento de cuidar-se de questão de natureza penal (e não político-administrativa), determinando a remessa dos autos ao Procurador-Geral da Repú­ blica, de acordo com o art. 129,1, da Constituição Federal. Em caso concreto apreciado pelo Supremo, entendeu-se que o processo de impeachment dos Ministros de Estado, por crimes de responsabilidade autônomos, não conexos com infrações da mesma natureza do Presidente da República, ostenta ca­ ráter jurisdicional, devendo ser julgado pelo STF, prevalecendo a natureza criminal desses processos, cuja apuração judicial está sujeita à ação penal pú­ blica de atribuição exclusiva do Ministério Público Federal.483* Por fim, quanto à possibilidade de responsa­ bilização de agentes políticos regidos por normas especiais de responsabilidade pela prática de atos 482. Para o Supremo, "os crimes denominados de responsabilidade,

tipificados no art. 10 do D.L. 201, de 1967, são crimes comuns, que deverão

ser julgados pelo Poder Judiciário, independentemente do pronuncia­ mento da Câmara dos Vereadores (art. 1.), são de ação pública e punidos

com pena de reclusão e de detenção (art. 1., par. 1.) e o processo e o comum, do C.P.P., com pequenas modificações (art.2.). No art. 4o, o D.L. 201, de 1967, cuida das infrações político-administrativas dos prefeitos,

sujeitos ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato. Essas infrações e que podem, na tradição do direito brasileiro, ser denominadas de crimes de responsabilidade. A ação penal contra prefeito municipal, por crime tipificado no art. 1. do D.L. 201, de 1967, pode ser instaurada mesmo após a extinção do mandato". (STF, Pleno, HC 70.671/PI, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 19/05/1995). Apesar de se tratar, o crime do art. 1o do Dec.-Lei n° 201/1967, de delito próprio, somente podendo ser praticado por prefeito, a jurisprudência admite a participação na referida prática delituosa, nos termos do art. 30 do CP. A propósito: STF, 2a Turma, Inq. 3.634/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 02/06/2015, DJe 119 19/06/2015. 483. STF, Pet 1.954/DF, Tribunal Pleno, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 01/08/2003. De modo semelhante: Informativo n° 281 do STF: Rei. Min.

481. STF, Pleno, ADI 5.289/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 7.06.2021.

Maurício Corrêa, 11.9.2002.(PET-1656)(PET-1954).

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de improbidade administrativa (Lei n° 8.429/92), sempre se entendeu que seria possível a cumulação dos dois regimes de responsabilidade. Todavia, em decisão do Supremo Tribunal Federal em que qua­ tro votos foram proferidos por Ministros que não mais fazem parte da Corte, concluiu-se que, como os atos de improbidade administrativa são tipifi­ cados como crime de responsabilidade na Lei n° 1.079/50, delito de caráter político-administrativo, e na medida em que o sistema constitucional bra­ sileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos, tem-se que a Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4o (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102,1, “c”, (disciplinado pela Lei n° 1.079/1950). Se a competência para proces­ sar e julgar a ação de improbidade pudesse abran­ ger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102,1, “c”, da Constituição. Logo, os Minis­ tros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, “c”; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa, sendo incompetente o juízo de primeira instância para processar e jul­ gar ação civil de improbidade administrativa ajui­ zada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal.484 A despeito da decisão do Supremo no sentido de que a Constituição Federal não admite concor­ rência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para Ministros de Estado, tem-se entendido que não há qualquer antinomia entre o DL n° 201/1967 (crimes de responsabilidade), que conduz o prefeito ou vereador a um julgamento político, e a Lei n° 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), que os submete a julgamento pela via judicial pela prática dos mesmos fatos.

Se é verdade que o Supremo, ao julgar a re­ clamação n° 2.138, afastou a aplicação da Lei n° 8.429/92 a Ministro de Estado, ali ficou claro que apenas as poucas autoridades com foro de prer­ rogativa de função para o processo e julgamento por crime de responsabilidade, elencadas na Carta Magna (arts. 52, I e II; 96, III; 102,1, c; 105,1, a, e 108,1, a, todos da CF/1988), não estariam sujeitas 484. STF - Rcl 2.138/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Gilmar Mendes - Dje 070 17/04/2008.

a julgamento também na Justiça cível comum pela prática da improbidade administrativa. Portanto, o julgamento, por esses atos de improbidade, das autoridades excluídas da hipótese acima descrita, tal qual o prefeito, continua sujeito ao juiz cível de primeira instância.485

Aliás, em Recurso Especial recentemente apre­ ciado pelo STJ, relativo à ex-Governadora do Rio Grande do Sul, entendeu-se que é perfeitamente possível a aplicação da Lei n° 8.429/92 aos agentes políticos. Todavia, o STJ entendeu que juízo de pri­ meiro grau não tem competência para julgar ação de improbidade administrativa contra Governador de Estado. Na visão daquela Corte, não seria admissível que norma infraconstitucional atribuísse a juiz de primeiro grau o julgamento de ação de improbidade administrativa, com possível aplicação de pena de perda de cargo, contra Governador de Estado, que também tem assegurado foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns (perante o STJ), quanto em crimes de responsabilidade (perante a respectiva Assembléia Legislativa). Reconheceu-se, assim, a competência implícita complementar do STJ para referido feito.486* Recentemente, porém, o Pleno do Supremo Tri­ bunal Federal concluiu que os agentes políticos, com exceção do Presidente da República, encontram-se sujeitos a duplo regime sancionatório, de modo que se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa quanto à responsabi­ lização político-administrativa por crimes de respon­ sabilidade. Reconheceu, ademais, que o foro especial por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal em relação às infrações penais comuns não é extensível às ações de improbidade administrativa. Em relação ao duplo regime sancionatório, a Corte concluiu que não há qualquer impedimento à con­ corrência de esferas de responsabilização distintas. As­ sim, carece de fundamento constitucional a tentativa de imunizar os agentes políticos das sanções relativas à ação de improbidade administrativa a pretexto de que essas seriam absorvidas pelo crime de responsa­ bilidade. Em realidade, a única exceção ao referido 485. STJ, 2a Turma, REsp 1.034.511/CE, Rei. Min. Eliana Calmon, j. 01°/09/2009, DJe 22/09/2009. O próprio Supremo, em caso concreto relativo a Deputado Federal, manifestou-se no sentido de que as con­ dutas descritas na Lei n° 8.429/1992, quando imputadas a autoridades detentoras de prerrogativa de foro, não se convertem em crimes de res­

ponsabilidade: STF, Pleno, Pet 3.923 QO/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 13/06/2007, DJe 182 25/09/08. 486. REsp 1.216.168/RS, Rei. Min. Humberto Martins, julgado em 17/11/2010. No mesmo sentido: STJ, 2a Turma, AgRg na MC 16.383/DF, Rei. Ministra Eliana Calmon, julgado em 23.2.2010, DJe 4.3.2010. E tam­ bém: STJ, 1aTurma, EDcl no REsp 716.991/SP, Rei. Min. Luiz Fux, julgado em 18.5.2010, DJe 23.6.2010.

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regime sancionatório em matéria de improbidade se refere aos atos praticados pelo Presidente da República, conforme previsão expressa do art. 85, V, da CF. Já no concernente à extensão do foro especial, o Tribunal afirmou que o foro privilegiado é destinado a abarcar apenas as ações penais. A suposta gravidade das san­ ções previstas no art. 37, § 4o, da CF, não reveste a ação de improbidade administrativa de natureza penal. O foro especial por prerrogativa de função submete-se a regime de direito estrito, já que representa exceção aos princípios estruturantes da igualdade e da Repú­ blica. Não comporta, portanto, ampliação a hipóteses não expressamente previstas no texto constitucional. Isso especialmente porque, na hipótese, não há lacuna constitucional, mas legítima opção do poder consti­ tuinte originário em não instituir foro privilegiado para o processo e o julgamento de agentes políticos pela prática de atos de improbidade na esfera civil. Ade­ mais, a fixação de competência para julgar a ação de improbidade no primeiro grau de jurisdição, além de constituir fórmula republicana, é atenta às capacidades institucionais dos diferentes graus de jurisdição para a instrução processual.487

CAPÍTULO III

COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO 1. CONCEITO Em face da relevância das funções desempenhadas por certos agentes, a Constituição Federal, as Consti­ tuições Estaduais e a legislação infraconstitucional lhes confere o direito de serem julgados por Tribunais. Cuida-se da denominada competência ratione funcionae. Essa jurisdição especial assegurada a certas fun­ ções públicas tem como matriz o interesse maior da sociedade de que aqueles que ocupam certos cargos possam exercê-los em sua plenitude, com alto grau de autonomia e independência, a partir da convicção de que seus atos, se eventualmente questionados, serão julgados de forma imparcial por um Tribunal. Como se percebe, a competência por prerrogativa de função é estabelecida não em virtude da pessoa que exerce determinada função, mas sim como instrumento que visa resguardar a função exercida pelo agente. Daí o motivo pelo qual

preferimos utilizar a expressão ratione funcionae em detrimento de ratione personae. Como dizia o Ministro Victor Nunes Leal, pre­ sume o legislador que os Tribunais de maior catego­ ria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acu­ sado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do Tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado.488 Essa excepcionalidade do foro por prerrogativa de função em face de preceitos sensíveis da Cons­ tituição Federal, como o da isonomia e o do juiz natural, possui uma razão de ser própria, especí­ fica, justificável, que transmuda sua conotação de privilégio, no sentido pejorativo da palavra, para prerrogativa essencial ao bom exercício da função. Por tal motivo, em uma Constituição Federal que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, as hipóteses de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de certa forma conferem, devem ser interpretadas restritivamente.

Como esse foro por prerrogativa de função é estabelecido em decorrência das funções desem­ penhadas pelo agente, e não em razão da pessoa, predomina na doutrina o entendimento de que não há qualquer ofensa ao princípio da isonomia.489

2. REGRAS BÁSICAS Antes de ingressarmos no estudo da casuística da competência por prerrogativa de função, pensa­ mos ser imprescindível a análise de algumas regras básicas pertinentes ao tema. Vejamo-las:

2.1. Investigação e indiciamento de pessoas com foro por prerrogativa de função Em Questão de Ordem suscitada no Inq. 2.411, o Plenário do Supremo Tribunal Federal 488. STF, Rcl. 473, Rei. Min. Victor Nunes Leal. Aud. de publicação de

06/06/62. 489. Em sentido diverso, sustenta Marcelo Semer que "o foro privilegia­ do para julgamentos criminais de autoridades é outra desigualdade que ainda permanece. Reproduzimos, com pequenas variações, a regra antiga de que fidalgos de grandes estados e poder somente seriam presos por mandados especiais do Rei. É um típico caso em que se outorga maior

valor à noção de autoridade do que ao princípio de isonomia, com a diferença de que hoje a igualdade é um dos pilares da Constituição [...] Competência processual não se deve medir por uma ótica militar ou por estrato social. Autoridades que cometem crimes devem ser julgadas

como quaisquer pessoas, pois deixam de se revestir do cargo quando pra­ ticam atos irregulares. (...) O foro privilegiado, tal qual a prisão especial, é herança de uma legislação elitista, que muito se compatibilizou com regimes baseados na força e no prestígio da autoridade" (A síndrome dos

487. STF, Pleno, Pet 3.240 AgR/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 10/05/2018.

desiguais. Boletim da Associação dos Juizes para a Democracia, ano 6, n° 29, jul.-set.2002. p. 11-12, Apud NUCCI, op. cit. p. 264).

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passou a entender que, tratando-se de investigado titular de foro por prerrogativa de função, a auto­ ridade policial não pode proceder ao indiciamento sem prévia autorização do Ministro-Relator, sendo que esta autorização também é necessária para a própria instauração do inquérito originário.490

2.2. Arquivamento de inquérito nas hipóteses de atribuição originária do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral da República No Título 2, referente à investigação preliminar, fizemos ampla e detida análise do procedimento de arquivamento de inquérito nas hipóteses de atri­ buição do Procurador-Geral de Justiça ou do Pro­ curador-Geral da República. Para evitarmos repe­ tições desnecessárias, remetemos o leitor ao tópico pertinente.

2.3. Duplo grau de jurisdição Acusados com foro por prerrogativa de função não têm direito ao duplo grau de jurisdição, aí en­ tendido como a possibilidade de reexame integral da sentença de primeiro grau a ser confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária.491

2.4. (Des)necessidade de o crime ser cometido durante o exercício do cargo e relacionado às funções desempenhadas pelo agente e (im) possibilidade de prorrogação da competên­ cia do respectivo Tribunal quando cessado o exercício funcional Sempre houve - e certamente continuará a existir - grande polêmica acerca da correta inter­ pretação a ser feita acerca das diversas regras cons­ titucionais de competência por prerrogativa de fun­ ção, seja no que tange à necessidade (ou não) de o crime guardar relação com as funções exercidas pelo agente, seja em relação à possibilidade (ou não) de prorrogação da competência do respectivo Tribunal nas hipóteses em que o agente deixar de exercer o cargo (mandato ou função). Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal alterou, por mais de uma vez, seu entendimento acerca da matéria. Ao apro­ var a Lei n. 10.628/02, posteriormente declarada in­ constitucional pelo STF (ADI 2.797), o Congresso Nacional também contribuiu para o acirramento

490. Para mais detalhes acerca do assunto, inclusive em relação à di­

do debate. Vejamos, então, didaticamente, a evolu­ ção constitucional, legal e jurisprudencial acerca da controvérsia, hoje relativamente sedimentada, desde que o Plenário do STF julgou a Questão de Ordem na Ação Penal n. 937.

2.4.1. Regra da contemporaneidade Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal en­ tendia que, na eventualidade o crime ser cometido durante o exercício funcional e estar relacionado às funções desempenhadas pelo agente, subsistiría a competência originária dos Tribunais, mesmo que cessasse o exercício da função. Era nesse sentido, aliás, o teor da súmula n° 394 do STF: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam inicia­ dos após a cessação daquele exercício”. Tinha-se aí o que a doutrina denomina de regra da contem­ poraneidade: a competência por prerrogativa de função deveria ser preservada caso a infração penal tivesse sido cometida à época e em razão do exer­ cício funcional.

Ocorre que, em julgamento ocorrido em 25 de agosto de 1999 relativo a ex-deputado federal, deli­ berou a Suprema Corte pelo cancelamento da referi­ da súmula. Acabou prevalecendo o entendimento de que, como a Constituição não é explícita em atribuir a prerrogativa de foro às autoridades e mandatá­ rios, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato, e considerando que as normas que versam sobre o assunto não devem ser interpretadas ampliativamente, não se pode permitir que a prerrogativa de foro continuasse a incidir em relação àqueles que deixaram de exercer cargos ou mandatos. Também foi rejeitada a proposta do Min. Sepúlveda Pertence para a edição de nova súmula, a dizer que cometido o crime no exercício do cargo ou a pretexto de exercê-lo, prevalece a competência por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício funcional. Enfim, o Supremo abandonou a ideia de contemporaneidade e passou a adotar a regra da atualidade, objeto de análise no próximo tópico.492 Atento ao cancelamento da súmula 394 do STF, o legislador ordinário editou a Lei n° 10.628, de 24 de dezembro de 2002, a qual alterou a redação do art. 84 do CPP, cujos § Io e 2o passaram a dis­ por, respectivamente: “A competência especial por

vergência de entendimento do STJ, remetemos o leitor ao Título referente

à investigação preliminar, onde o assunto foi estudado no tópico relativo ao indiciamento. 491. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao Título atinente aos Recursos.

492. STF, Pleno, Inq. 687 QO/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 09/11/2001.

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prerrogativa de função, relativa a atos administra­ tivos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”; “A ação de improbida­ de, de que trata a Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o”.493494

Fica evidente que a intenção do legislador or­ dinário, ao acrescentar o § Io ao art. 84 do CPP, foi exatamente a de ressuscitar a súmula n° 394 do STF, possibilitando que, em relação aos crimes fun­ cionais, mantivesse o agente o direito ao foro por prerrogativa de função mesmo após a cessação do exercício funcional. Atente-se para o fato de que, nos termos do art. 84, § Io, do CPP, com redação dada pela Lei n° 10.628/02, a competência especial por prerrogativa de função somente subsistiría após o término definitivo do exercício do cargo, relati­ vamente a atos administrativos do agente, ou seja, às infrações penais praticadas durante e em razão do exercício efetivo do cargo, como no caso de li­ citações fraudulentas, obras superfaturadas, enri­ quecimento ilícito etc., e não a crimes que, embora praticados durante o exercício do cargo, não guar­ dassem qualquer relação com a função (ex: tentativa de homicídio). De mais a mais, e de olho sobretudo nas sanções previstas na Lei de Improbidade Ad­ ministrativa (Lei n° 8.429/92, art. 12, com redação dada pela Lei n. 14.230/21), ampliou o legislador ordinário as hipóteses de competência por prer­ rogativa de função, estendendo-as à ação civil de improbidade administrativa, de natureza civil. Dizemos que houve uma ampliação das hipó­ teses de competência originária, porquanto o foro por prerrogativa sempre esteve restrito aos proces­ sos criminais. A competência por prerrogativa de função sempre esteve circunscrita às ações penais 493. Como assinala Hugo Nigro Mazzilli, "revogada a súmula 394, o Presidente da República, os parlamentares se sentiram como na história do rei que fica nu ... Antes protegidos por uma regra de foro por prerro­ gativa de função, que concentrava o poder de investigá-los e processá-los nas mãos do Procurador-Geral da República e dos altos tribunais (cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, podendo o Procurador-Geral ser reconduzido indefinidamente), de uma hora para outra essas autoridades passaram a tornar-se, de forma inédita, meros cidadãos comuns... Que acinte! O foro especial por prerro­ gativa de função deixaria de existir, só porque tinham deixado de existir as funções... Então, por que não buscar por novas vias jurisprudenciais ou até por alteração legislativa aquilo que o STF lhes tinha dado por meio da Súmula 394, e depois, infelizmente, negado quando revogada a referida súmula?" (O foro por prerrogativa de função e a Lei W.628/2002. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, jan° 2003. Disponível em: www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm. Apud NUCCI, op. cit. p. 273).

em que as pessoas referenciadas nas Constituições Federal e Estadual figuravam como acusadas. Jamais teve o condão de abranger ações populares, ações civis públicas, ações cautelares, ações ordinárias, ações declaratórias e outras ações de natureza cí­ vel ajuizadas contra essas autoridades, ressalvada a hipótese do mandado de segurança, que possui previsão constitucional expressa (v.g., mandado de segurança contra ato do Presidente da República é da competência do Supremo Tribunal Federal, ex vi do art. 102, II, “d”, da CF). O Supremo Tribunal Federal, que jamais ad­ mitiu que o Congresso Nacional pudesse alterar suas competências originárias por legislação ordi­ nária,494 foi chamado a apreciar o tema mais uma vez. No julgamento da ADI 2.797, concluiu que não poderia o legislador ordinário pretender impor, como objetivo imediato da Lei n° 10.628/02, inter­ pretação autêntica da Constituição, usurpando com­ petência do Supremo Tribunal Federal. Na dicção da Suprema Corte, “admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Consti­ tuição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição - como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua su­ premacia -, só constituiría o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordiná­ rio, ao contrário, submetido aos seus ditames”. Por tais motivos, foi declarada a inconstitucionalidade da Lei n° 10.628/02, que acrescentou os §§ Io e 2o ao art. 84 do CPP.495

Posteriormente, em embargos declaratórios opostos contra a decisão proferida na ADI 2.797, o Plenário do Supremo concluiu que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos §§ Io e 2o do art. 84 do CPP, inseridos pelo art. Io da Lei 10.628/2002, teriam eficácia a partir de 15.9.2005. Na espécie, alegava-se que a norma declarada in­ constitucional teria vigido por três anos - com alterações nas regras de competência especial por prerrogativa de função quanto às ações de impro­ bidade, inquéritos e ações penais - a exigir fossem modulados os efeitos do julgado. Destacou-se a ne­ cessidade de se preservar a validade dos atos pro­ cessuais praticados no curso das mencionadas ações 494. De acordo com o próprio Supremo, "seu complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional, não comporta a possibilidade de extensão, que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102,1, da Carta Política" (STF - Pet. 1.026-4 - Rei. Min. Celso de Melo - 31/05/1995).

495. STF, Pleno, ADI 2.797/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j.

15/09/2005, DJ 19/12/2006.

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e inquéritos contra ex-ocupantes de cargos públi­ cos e de mandatos eletivos julgados no período de 24.12.2002, data de vigência da Lei 10.628/2002, até a data da declaração de sua inconstitucionalidade, 15.9.2005. Pontuou-se que inúmeras ações foram julgadas com fundamento na Lei 10.628/2002 e, por segurança jurídica, necessário adotar-se a modula­ ção, assegurada a eficácia ex nunc, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99. Asseverou-se, todavia, que os processos ainda em tramitação não teriam sua competência deslocada.496

2.4.2. Regra da atualidade De acordo com a regra da atualidade, adotada pelo Supremo Tribunal Federal entre o cancelamen­ to da súmula n. 394 e a decisão proferida na AP 937 QO/RJ, que será objeto de análise na sequência, caso o agente tivesse cometido um delito antes do exercício da função (ou da diplomação), a compe­ tência seria automaticamente alterada a partir do momento em que o acusado ingressasse no exercício da função (ou fosse diplomado), ainda que o crime não estivesse relacionado às funções por ele desem­ penhadas. Por força dessa regra, o agente faria jus ao foro por prerrogativa de função enquanto estivesse exercendo a função. Cessada a função, cessaria o direito.497

Isso não significa dizer que os atos processuais praticados antes da diplomação/investidura seriam considerados inválidos, haja vista o princípio tempus regit actum, previsto no art. 2o do CPP. A validade dos atos antecedentes à alteração da competência, por força da intercorrente diplomação do acusado (ou assunção da função), deve ser aferida segundo o estado de coisas anterior ao fato determinante do seu deslocamento. De fato, enquanto o agente não era diplomado deputado federal, a competência era do juiz de Ia instância, razão pela qual os atos processuais já praticados são plenamente válidos. Como o tempo rege o ato {tempus regit actum), no momento anterior os atos estavam sendo pratica­ dos pelo juiz natural, sendo inviável que a posterior ocorrência de uma causa modificadora da compe­ tência tenha efeitos retroativos. À época, ou seja, quando ainda em vigor peran­ te a regra da atualidade, entendeu-se que a compe­ tência do STF deveria ser observada inclusive para o julgamento de eventual apelação se acaso um indivíduo desprovido de foro por prerrogativa de

função já tivesse sido condenado em Ia instância, e apelado antes de ulterior diplomação como Depu­ tado Federal.498 Cessado o exercício funcional, finda-se o di­ reito ao foro por prerrogativa de função (regra da atualidade). Portanto, valendo-se do exemplo an­ teriormente citado, se o deputado federal não fosse reeleito, cessava automaticamente o direito ao foro por prerrogativa de função, devendo a Suprema Corte proceder à remessa dos autos à primeira ins­ tância. No entanto, caso o julgamento já tivesse tido início perante a Suprema Corte, eventual término do mandato eletivo ou até mesmo a renúncia do parlamentar não teria o condão de deslocar a com­ petência para outra instância.499 Mas o que fazer se ficasse evidenciado que a cessação do exercício funcional teria se dado em virtude de um ato voluntário do próprio acusado, com o nítido propósito de se subtrair ao julgamento pelo respectivo Tribunal, numa verdadeira tentati­ va de fuga de foro, como já ocorreu, por exemplo, quando determinado acusado renunciou ao man­ dato às vésperas do julgamento? A nosso juízo, não se pode admitir que um suposto direito subjetivo à renúncia seja usado de maneira abusiva pelo acu­ sado como instrumento para se furtar ao juiz na­ tural. Se se admite que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, o ideal é concluir que a fraude processual perpetrada pelo agente não pode ser pre­ miada com o deslocamento da competência para o juiz de origem. Era de rigor, portanto, a preservação da competência do respectivo Tribunal, até mesmo de modo a se evitar que um critério discricionário do próprio acusado (renúncia ao mandato) funcio­ nasse como o fator determinante para a fixação da competência deste ou daquele órgão jurisdicional, o que, em última análise, representaria patente vio­ lação ao princípio do juiz natural.

Pelo menos enquanto a regra da atualidade ainda era adotada pelo Supremo Tribunal Federal, a Corte sempre divergiu acerca do assunto, como denotam os seguintes julgados: a) AP 333/PB: referia-se o caso concreto a um deputado federal acusado de tentativa de homicídio doloso que renunciou ao mandato de parlamentar 5 (cinco) dias antes de seu julgamento, tendo a maioria do Pleno entendido que a renúncia teria o condão de afastar a competência do Supremo para o julgamento 498. Nessa linha: STF, Pleno, AP 428-T0, Rei. Min. Marco Aurélio, j.

496. STF, Pleno, ADI 2.797 ED/DF, Rei. Min. Ayres Britto, j. 17/05/2012. 497. Com esse entendimento: MORAES, Alexandre de. Direito consti­ tucional. 24a ed. São Paulo: Atlas, 2009. P. 554/555.

12.06.2008.

499. Nesse sentido: STF, Pleno, Inq. 2.295/MG, Rei. Min. Menezes Di­ reito, Dje 104 04/06/2009.

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do feito, sob pena de o Tribunal se transformar em verdadeiro órgão de exceção, na medida em que não mais haveria ação penal dirigida contra detentor de mandato eletivo, e sim contra cidadão comum;500

b) AP 396/RO: em caso concreto julgado em outubro de 2010, a despeito da renúncia do Depu­ tado Federal, o Pleno julgou procedente pedido formulado em ação penal para condená-lo à pena de 13 anos, 4 meses e 10 dias de reclusão. No caso concreto, o pleito de renúncia foi formulado em 27/10/2010, e publicado no Diário da Câmara no dia seguinte, data para a qual havia sido pautado o julgamento do processo. Concluiu-se que os mo­ tivos e fins da renúncia demonstrariam o intento do parlamentar de se subtrair ao julgamento pelo Supremo, em inaceitável fraude processual, que frustraria as regras constitucionais e não apenas as de competência. Destacou-se, desse modo, que os fins dessa renúncia - às vésperas da apreciação do feito e após a tramitação do processo por mais de 14 anos - não se incluiriam entre aqueles aptos a impedir o prosseguimento do julgamento, configu­ rando, ao revés, abuso de direito ao qual o sistema constitucional vigente não daria guarida;501 c) AP 536: diversamente da AP 396/RO, enten­ deu a Corte que, no caso sob comento, o processo já estaria instruído e pronto para ser julgado. Ademais, afastou eventual perigo de prescrição da pena em abstrato. Assim, adotou entendimento no sentido de que a perda do mandato, por qualquer razão, importaria em declínio da competência do STF;502

d) AP 606 QO/MG: em outro importante pre­ cedente acerca da controvérsia, a Ia Turma do Su­ premo concluiu que, nas ações penais originárias do STF, eventual renúncia de parlamentar ao cargo eletivo - após o final da instrução criminal - não geraria o efeito de cessar a competência do Supremo para julgar o processo. Com base nessa orientação, a Ia Turma do Supremo resolveu questão de ordem para declinar de suas atribuições em favor do juízo de Io grau, para julgamento de ação penal em que o acusado, ex-Senador da República, renunciara ao mandato antes daquela fase processual.503 500. STF - AP 333/PB - Tribunal Pleno - Rei. Min. Joaquim Barbosa Dje 065 10/04/2008. 501. STF, Pleno, AP 396/RO, Rei. Min. Cármen Lúcia, julgado em 28/10/10.

502. STF, Pleno, AP 536 QO/MG, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 27/03/2014. 503. STF, 1a Turma, AP 606 QO/MG, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 12/07/2014, DJe 181 17/09/2014.

2.4.3. Regra da atualidade limitada, restrita ou mista A adoção da regra da atualidade pelo Supremo Tribunal Federal desde o cancelamento da súmula 394, associada à declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 10.628/02 no julgamento da ADI 2.797, trouxeram como consequência inexorável um acú­ mulo avassalador de processos perante os Tribunais, notadamente perante o STF, haja vista a quantidade de autoridades sujeitas a sua competência originária (v.g., Deputados Federais, Senadores, etc.). De fato, dada a extensão que vinha se dando à interpretação das hipóteses de foro por prerrogativa de função, a abarcar fatos ocorridos antes mesmo de o indivíduo ser investido no cargo e que sequer estivessem rela­ cionados ao exercício funcional, outorgava-se, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal uma compe­ tência para a qual certamente não está vocacionado, afastando-o de sua missão primordial de guardião da Constituição Federal e do equacionamento das grandes questões nacionais. Havia a necessidade, ademais, de se estabelecer um limite temporal para fins de possível prorrogação (ou não) da compe­ tência do Tribunal competente de modo a pôr fim às hipóteses acima mencionadas de fuga de foro. Enfim, era necessário repensar a interpretação da Constituição acerca das hipóteses de foro por prer­ rogativa de função de modo a se buscar um mínimo de efetividade do sistema penal. Atento a tais premissas, no julgamento de uma Questão de Ordem na Ação Penal 937, o Plenário do Supremo alterou mais uma vez seu entendimento acerca da matéria e fixou as seguintes teses: I - o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; II - após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de ale­ gações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. Na visão do Rei. Min. Roberto Barroso, de modo a assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel consti­ tucional de garantir o livre exercício das funções - e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade -, é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. Viola o princípio da igualdade proteger, com foro de prer­ rogativa, o agente público por atos praticados sem relação com a função para a qual se quer resguardar sua independência, o que constitui a atribuição de um privilégio. Em conclusão, o Supremo registrou

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que essa nova linha interpretativa deveria ser apli­ cada imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões pro­ feridas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado no Inq 687 QO/SP (DJU de 25.8.1999).504 Como se pode notar, se, inicialmente, o Supre­ mo Tribunal Federal adotava a regra da contemporaneidade (cancelada Súmula n. 394), e, na sequên­ cia, o princípio da atualidade, é possível dizer que, desde o julgamento da questão de ordem na Ação Penal 937, passou a adotar uma regra mista, híbrida ou mista, pois, de fato, já não basta mais que o cri­ me seja cometido durante e em razão do exercício funcional (regra da contemporaneidade).505 Para além disso, também é indispensável que o agente ainda esteja no exercício do cargo, mandato ou função (regra da atualidade), a significar, portanto, que a cessação do exercício funcional, qualquer que seja o motivo (v.g., renúncia506, aposentadoria)507 acarretará a perda do foro por prerrogativa de função. Há, pois, uma fusão entre as duas regras anteriores, daí por que a doutrina, ao se referir ao novo entendimento do Supremo, opta por usar a terminologia de “atua­ lidade limitada ou restrita”.508

Levando-se em consideração as duas teses fixa­ das pelo Plenário do STF no julgamento da questão de ordem na Ação Penal 937, é possível extrairmos algumas conclusões: a) a nova orientação da Suprema Corte é vá­ lida não apenas para os feitos de competência do Supremo Tribunal Federal, mas também para aque­ les de competência das demais cortes dotadas de competência originária (v.g., Superior Tribunal de Justiça, Tribunais de Justiça dos Estados, Tribunais Regionais Federais, etc.);509* 504. STF, Pleno, AP 937 QO/RJ, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 03/05/2018, DJe 265 10/12/2018. 505. Com base nesse entendimento, a 1a Turma do ST determinou a remessa à Justiça Estadual de 1a instância de inquérito que apurava su­ postos crimes de corrupção passiva praticados por Senador da República,

porém não relacionados ao exercício funcional: STF, 1a Turma, Inq. 4.624 AgR, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 08/10/2019.

506. No sentido de que eventual renúncia do agente ao cargo de Prefeito Municipal por ele exercido deverá ter como consequência a perda do direito ao foro por prerrogativa de função: STJ, 5a Turma, AgRg no HC 341.829/PR, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 04.08.2020, DJe 10.08.2020. 507. A propósito, eis o teor da Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 453:"O foro especial por prerrogativa de função não se estende a magistrados aposentados". (Paradigma: STF, Pleno, RE 549.560/CE, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22.03.2012, DJ 30.05.2014). 508. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Novo curso de Di­ reito Processual Penal. 15a ed. Salvador: Juspodvim, 2020. p. 457.

509. A partir do julgamento da Ação Penal 937 pelo Pleno do Supre­ mo, o Superior Tribunal de Justiça também passou a entender que as hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ restringem-se

b) o novo entendimento da Suprema Corte deverá ser aplicado, doravante, a todo e qualquer agente dotado de foro por prerrogativa de função, seja ele Deputado Federal510 ou Promotor de Justi­ ça, seja ele Senador da República ou Magistrado, sob pena de se estabelecer uma nova e ainda mais odiosa violação ao princípio da isonomia, porém desta feita restrita àqueles que têm direito de serem julgados originariamente pelos Tribunais. Afinal, onde impera a mesma razão, há de prevalecer a mes­ ma regra de direito. A propósito, em caso concreto envolvendo suposto crime praticado por indivíduo que, à época dos fatos, era Governador de Estado, sendo, depois, eleito Senador da República - Ques­ tão de Ordem no Inq. 4.703 -,511 a Ia Turma do STF reconheceu que a ratio decidendi do precedente fir­ mado pela Questão de Ordem na AP 937 aplica-se a toda e qualquer autoridade que possua prerrogativa de foro, pois “a discussão acerca da possibilidade de modificação da orientação jurisprudencial foi conduzida objetivamente pelo Plenário em consi­ deração aos parâmetros gerais da sobredita moda­ lidade de competência especial, isto é, sem qualquer valoração especial da condição de parlamentar do réu da AP 937”. Corroborando esse entendimen­ to, a Corte Especial do STJ também decidiu que o novo entendimento do STF deveria ser aplicável a Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais.512 Por isso, com a devida vênia, pensamos que laborou em equívoco a Corte Espe­ cial do Superior Tribunal de Justiça ao proceder ao julgamento de Questão de ordem na Ação Penal n. 703/GO.513*In casu, a despeito do explícito reco­ nhecimento de que um crime ambiental praticado por um Desembargador não guardava nenhuma relação com o cargo, deliberou-se pela prorrogação da competência daquela Corte pelo fato de a pres­ crição ser iminente. Ora, por mais louvável que seja a preocupação do STJ com a iminência da prescri­ ção e consequente extinção da punibilidade, não se trata de argumento capaz de sobrepor ao princípio àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função. Nesse contexto: STJ, Corte Especial, AgRg na APn 866/ DF, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20/06/2018, DJe 03/08/2018.

510. Determinando a remessa dos autos à 1a instância em caso con­ creto envolvendo parlamentar federal não reeleito cuja conduta delituosa não guardava relação com o exercício funcional: STF, Pleno, Embargos de Declaração no Inquérito 4.418/DF, Rei. Min. Rosa Weber, j. 28.04.2020. 511. STF, Ia Turma, Inq. 4.703 QO/DF, Rei. Min. Luiz Fux, j. 12.06.2018, DJ 01.10.2018. 512. STJ, QP na APn 857/DF, Rei. Min. João Otávio de Noronha, j.

20.06.2018, DJe 28.02.2019; STJ, Corte Especial, AgRg na APn 866/DF, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.06.2018, DJe 03.08.2018.

513. STJ, Corte Especial, QO na APn 703/GO, Rei. Min. Benedito Gon­ çalves, j. 01 /08/2018, DJe 09/08/2018.

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do juiz natural para fins de justificar a prorrogação da competência daquela Corte. Em outro julgado (QO na APn 878/DF),514 o STJ também reconhe­ ceu sua competência para o processo e julgamento de Desembargador acusado da prática de crime de lesão corporal, nos termos do art. 105,1, da CF, apesar de o crime não ter qualquer relação com o cargo, não sendo aplicável, in casu, o precedente do Supremo no julgamento da QO na AP 937. Na visão daquela Corte, em se tratando de acusado e de julgador, ambos membros da magistratura nacio­ nal, a prerrogativa de foro também se justifica na necessidade de se conferir ao julgador as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial. Caso um desembargador, acusado da prática de qualquer crime (com ou sem relação com o cargo de Desembargador), viesse a ser julgado por juiz de primeiro grau vinculado ao Tribunal ao qual ambos pertencem, criar-se-ia, em alguma medida, um embaraço ao juiz de carreira. Isso porque, consoante a disciplina jurídica aplicá­ vel, os Tribunais locais (por meio de seus desem­ bargadores) promovem sua própria gestão (art. 96, I, “a”, e art. 99 da Constituição) e correicionam as atividades dos juizes de primeiro grau de jurisdição (art. 96,1, “b”), além de deliberarem sobre o vitaliciamento e efetuarem a movimentação dos juizes na carreira, por antiguidade ou merecimento (art. 93, II e III) e, até, autorizarem ou não o juiz a residir fora da comarca (art. 93, VII) e mesmo a fruição de licença, férias ou outros afastamentos (art. 96,1, “f”). Neste contexto, é de se questionar se resultaria em credibilidade ou, eventualmente, em descrédito à justiça criminal a sentença penal prolatada por juiz de primeiro grau que estivesse a apreciar se o desembargador que integra seu tribunal há de ser considerado culpado ou não culpado pela infração a ele imputada. Seguindo a mesma linha de enten­ dimento, a 3a Seção do STJ também concluiu que compete aos Tribunais de Justiça Estaduais proces­ sar e julgar os delitos comuns praticados por Pro­ motores de Justiça, ainda que não relacionados com o cargo. Considerando que a prerrogativa de fogo da Magistratura e Ministério Público encontra-se descrita no mesmo dispositivo constitucional (CF, art. 96, III), seria desarrazoado conferir-lhes trata­ mento diferenciado. Mais uma vez, prevaleceu o en­ tendimento de que o precedente firmado pelo STF no julgamento da QO na AP 937/RJ teria limitado o foro por prerrogativa de função às hipóteses de crimes praticados no exercício da função ou em 514. STJ, Corte Especial, QO na APn 878/DF, Rei. Min. Benedito Gon­ çalves, j. 21/11/2018, DJe 19/12/2018.

razão dela apenas em relação àquelas autoridades que ocupam cargo eletivo, e não em relação a ma­ gistrados e membros do Ministério Público. Logo, pelo menos enquanto o Supremo Tribunal Federal não se pronuncia de maneira definitiva acerca do assunto - houve o reconhecimento de Repercussão Geral no RE 1.331.044 -, deve ser mantida, em re­ lação aos membros do Ministério Público, a mesma lógica que vem sendo aplicada pelo STJ em relação aos magistrados;515

c) na visão do Supremo Tribunal Federal, não havendo solução de descontinuidade entre os man­ datos exercidos pela autoridade dotada de foro por prerrogativa de função, em virtude de sua reeleição para o mandato imediatamente subsequente ao an­ terior, ainda que para mandatos cruzados,516 deverá ser preservada a competência do respectivo Tribunal para processar e julgar os crimes por ele cometidos durante o exercício do primeiro mandato, em obe­ diência ao requisito da atualidade da função. Por isso, em caso concreto referente a supostos crimes praticados por um Prefeito Municipal durante o exercício do primeiro mandato eletivo e relacio­ nados às funções por ele desempenhadas, que foi reeleito para o mandato imediatamente subsequente ao anterior, concluiu a Ia Turma do STF que seria de rigor o reconhecimento da competência do res­ pectivo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 29, X, da Constituição Federal, porquanto não teria havido uma solução de descontinuidade entre os mandatos de Prefeito por ele exercidos.517 De se ressaltar que 515. STJ, 3a Seção, CC 177.100-CE, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j.

08.09.2021, Dje 10.09.2021. Com entendimento semelhante: STJ, 5a Tur­ ma, AgRg no HC 647.437/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j.

25.05.2021, DJe 01.06.2021. 516. Subsiste a competência por prerrogativa de função nos casos de

mandatos cruzados, ou seja, quando um Deputado Federal é eleito para

o Senado Federal, ou vice-versa, como declarou a 2aTurma do STF no Inq. 4.342 ED-PR (Rei. Min. Edson Fachin, j. 25.10.2019, DJe 262 29.11.2019). 517. STF, 1a Turma, RE 1.240.599 AgR/CE, Rei. Min. Alexandre de Mo­

raes, j. 08.06.2020, DJe 09.11.2020. Em outro importante precedente, o Pleno do STF concluiu que, na eventualidade de os crimes praticados por um parlamentar federal terem sido praticados em mandato ante­ rior, impõe-se a preservação da competência daquela Corte se a atual diplomação decorrer de sucessivas e ininterruptas eleições. A propósito, confira-se: STF, Pleno, Inq. 4.435 AgR-quarto/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 14/03/2019. De se ressaltar, todavia, que a Corte Especial do STJ tem precedente em sentido contrário, a saber: QO na APn 874/DF, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 15/05/2019, DJe 03/06/2019. Em caso concreto atinente a crimes supostamente praticados durante mandato anterior de governador, que, no entanto, teria voltado a ocupar o mesmo cargo por força de nova eleição, concluiu-se que como o foro por prerrogativa de

função exige contemporaneidade e pertinência temática entre os fatos em apuração e o exercício da função pública, o término de um determina­ do mandato acarretaria, por si só, a cessação do foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado naquele intervalo. Por consequência, na eventualidade de a imputação versar sobre conduta relacionada às funções, porém praticadas durante mandato anterior e já findo, não se revelaria possível falar em foro por prerrogativa de função, ainda que o denunciado voltasse a ocupar, por força de nova eleição, o mesmo

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esse entendimento só é válido quando os mandatos em questão forem exercidos de maneira contínua. Não por outro motivo, em caso concreto atinente ao processo e julgamento de Prefeito que supostamente teria praticado os fatos imputados em mandato an­ terior e, após o interregno de 4 anos, fora eleito para um novo mandato de prefeito, a Ia Turma do STF deliberou pela fixação da competência do juiz de Ia instância, sob o argumento de que, após o término do primeiro mandato, no qual supostamente pra­ ticados os delitos apurados, o processo deveria ter sido encaminhado para a primeira instância, sendo inviável, portanto, a prorrogação do foro pelo fato de o denunciado ter assumido novo mandato de prefeito.518 De todo modo, esse novo entendimento firmado pelo STF só pode ser aplicado quando os sucessivos mandatos exercidos pela autoridade em questão tiverem o condão de determinar a fixação da competência originária perante o mesmo Tribunal, a exemplo do que ocorre se um Deputado Federal for reeleito, ou eleito para o Senado Federal (“mandatos cruzados”), já que, em ambas as hipóteses, a com­ petência seria do Supremo Tribunal Federal. Por isso, causou enorme estranheza a decisão proferida pela 5a Turma do STJ no julgamento dos EDcl no AgRg no RHC 135.2O6-RJ,519 quando reconheceu a existência de “mandatos cruzados” em caso con­ creto versando sobre acusado que exercera o cargo de deputado estadual - o que atrai a competência originária do respectivo TJ - e, na sequência, o de Senador da República - competência originária do STF -, razão pela qual declarou a nulidade de todas as decisões proferidas pelo Juiz de Io grau;

d) o novo entendimento acerca da preser­ vação da competência após o final da instrução processual deve ser aplicado mesmo para o julga­ mento de acusados da prática de crime cometido fora do período de exercício do cargo ou que não seja relacionado às funções desempenhadas.520*Por cargo. Ou seja, a sucessão de mandatos decorrente da reeleição para um mesmo cargo, ainda que de forma consecutiva, não seria suficiente para

a manutenção do foro por prerrogativa de função. Enfim, o foro por prer­ rogativa de função deve observar os critérios de concomitância temporal e da pertinência temática entre a prática do fato e o exercício do cargo.

518. STF, 1aTurma, RE 1.185.838/SP, Rei. Min. Rosa Weber,j. 14/05/2019. Em outro caso concreto, atinente a Prefeito Municipal que não foi reelei­ to, vindo a ocupar o cargo novamente após lapso temporal de 4 anos, a 1a Turma do STF (RE 1.288.052 AgR, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 20.10.2020, DJe 27.10.2020) também concluiu pela imediata remessa dos autos à primeira instância, eis que os delitos a ele imputados não foram cometidos durante o exercício do atual cargo e não estariam relacionados às funções agora desempenhadas. 519. STJ, 5a Turma, EDcl no AgRg no RHC 135.206/RJ, Relator para Acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 09.11.2021, DJe 17.11.2021.

520. STF, Pleno, AP 937 QO/RJ, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 03/05/2018. Referindo-se ao critério do fim da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, como

isso, em caso concreto em tramitação no Supre­ mo Tribunal Federal em que a instrução criminal estava concluída desde setembro de 2016, quando ofertadas, aliás, as alegações finais por ambas as partes, deliberou-se pela prorrogação da com­ petência daquela Corte.521 Aliás, não por outro motivo, por ocasião do julgamento de um agravo regimental interposto em face de decisão que des­ locou o processo para a primeira instância, a fim de que o acusado fosse julgado por delito por ele cometido quando exercia cargo público estadual em momento anterior ao início do exercício do mandato de parlamentar federal, concluiu a Ia Tur­ ma que, sem embargo do teor da decisão proferida na Ação Penal n. 937, como a instrução processual já estava concluída, inclusive com a apresentação das alegações finais pela acusação e pela defesa, deveria ser mantida a competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para o julgamento, ainda que referentemente a crimes não relacionados ao cargo ou função desempenhada.522

2.5. Crime cometido após o exercício funcional Se a competência por prerrogativa de função justifica-se como meio para garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerceu, caso o agente cometa determinada in­ fração penal após o exercício das funções, não faz jus ao foro por prerrogativa de função. Com base nesse raciocínio, o Supremo editou o enunciado da súmula n. 451, que dispõe que a competência es­ pecial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional. Destarte, firmada a premissa de que o reconhecimento da competência por prerrogativa de função pressupõe que o delito tenha sido pra­ ticado durante e em razão do exercício do cargo público, é de rigor a conclusão no sentido de que eventual crime de denunciação caluniosa praticado por Procurador da República que, à época, já havia se aposentado, deverá ser processado e julgado na Ia instância, pouco importando que, alguns anos depois, ocorra reversão da aposentadoria, com seu retorno à condição de membro do Ministério Públi­ co Federal, circunstância esta que, in casu, não terá marco temporal adequado para a prorrogação da competência dosTri­ bunais para o julgamento das ações penais originárias, visto constituir referência temporal objetiva, privilegiando, ainda, o princípio da identi­ dade física do juiz, ao valorizar o contato do magistrado julgador com as

provas produzidas na ação penal: STJ, Corte Especial, AgRg na APn 866/ DF, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20/06/2018, DJe 03/08/2018. 521. STF, Pleno, AgRg na AP 928-AP, Rei. Min. DiasToffoli, j. 16.09.2020. 522. STF, 1 aTurma, AP 962/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 16/10/2018.

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o condão de deslocar a competência do feito para o respectivo Tribunal Regional Federal.523

2.6. Dicotomia entre crime comum e crime de responsabilidade Em sede de competência por prerrogativa de função, é importante perceber que a Constituição Federal adota uma dicotomia entre crimes comuns e crimes de responsabilidade. Assim, para fins de foro por prerrogativa de função, a expressão crimes comuns abrange todas as infrações penais que não constituam crimes de responsabilidade, sujeitos que estão estes à denominada Jurisdição política. Por isso, quando o art. 102,1, “b”, da Magna Carta, es­ tabelece que ao Supremo compete o processo e jul­ gamento dos membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns, tem-se que o parlamentar deve ser processado perante a Suprema Corte em relação a qualquer infração penal, quer se trate de crime eleitoral, crime doloso contra a vida, crime militar, quer se trate de uma simples contravenção penal. Nas demais hipóteses, as exceções, quando estiverem presentes, constarão expressamente da norma constitucional específica. É o que acontece, por exemplo, com Promotores de Justiça e Juizes de Direito (CF, art. 96, III), em que a Carta Magna expressamente ressalva a competência da Justiça Eleitoral. Em virtude da aplicação da regra da si­ metria, tais crimes eleitorais deverão ser julgados pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral. De fato, quanto às competências por prerrogativa de função dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados (e do Distrito Federal), elas incluem os crimes comuns, os crimes militares e as contravenções penais, mas não os crimes eleitorais, pois estes foram expressamente ressalvados para a Justiça Eleitoral (CF, art. 96, III, e art. 108,1, “a”).

A partir da leitura da Constituição, é possível perceber que as hipóteses de foro por prerrogativa de função atribuídas ao Supremo Tribunal Fede­ ral e ao Superior Tribunal de Justiça não contem­ plam nenhuma exceção, do que se pode concluir que, em relação a tais Tribunais, a regra de fixação de competência é estrita, não comportando exce­ ções, salvo em relação aos denominados crimes de responsabilidade.

Em relação ao processo e julgamento de autori­ dades submetidas a julgamento perante o Tribunal de Justiça pela prática de crime comum, tanto o Supremo

Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça entendem que eventual crime eleitoral deva ser julga­ do pelo Tribunal Regional Eleitoral, distinguindo-se o crime eleitoral do crime comum. Essa orientação seria aplicável, por exemplo, ao Prefeito municipal, ao Secretário de estado, ao Juiz de Direito e ao Promotor de Justiça que cometem crime eleitoral. Em relação aos Juizes Estaduais e Promotores de Justiça, não prevalece a orientação de que o cometimento de crime federal ou militar desloca a competência para o Tribunal Regional Federal ou Superior Tribunal Militar, como se entende quanto aos Prefeitos Municipais e Deputados Estaduais. Isso porque, no art. 96, inciso III, que atribui ao Tribunal de Justiça a competência para julgar Juiz de Direito e Promotor de Justiça Estadual, só foi feita ressalva quanto à Justiça Eleitoral, e essa norma, por ser especial, sobrepuja à regra geral de compe­ tência em razão da matéria da Justiça Federal. Se, nessa hipótese, houver acusação formulada contra um Promotor e contra outros coautores, deve haver a separação dos processos: o Promotor de Justiça será julgado pelo Tribunal de Justiça, ao passo que os coautores deverão ser julgados pela Justiça Fede­ ral, preponderando a regra constitucional que fixa a competência desta Justiça em razão da matéria sobre normas de lei ordinária que determinam a reunião de processos por força da conexão ou continência.

Não foi essa, todavia, a posição adotada pela Suprema Corte. Em caso concreto apreciado pelo Plenário do Supremo, envolvendo vários acusados, dentre eles Juiz de Direito, serventuários da Justiça, servidores de autarquia federal e advogados, concluiu-se pela validade de denúncia oferecida perante o Tribunal de Justiça contra todos e por todos os crimes, federais e estaduais, em face dos princípios da conexão e continência, tendo em vista a jurisdi­ ção de maior graduação (CPP, art. 78, III), dada a presença, entre os acusados, de um Juiz de Direito.524 Com a devida vênia, queremos discordar do entendimento firmado pela Suprema Corte, pelo menos no que toca ao julgamento dos demais agen­ tes perante o Tribunal de Justiça. Quanto ao Juiz de Direito, andou bem a Suprema Corte ao firmar a competência do Tribunal de Justiça, mesmo em se tratando de crime perpetrado contra interesse de autarquia federal, o que, em tese, atrairía a com­ petência da Justiça Federal (CF, art. 109, IV). De fato, como a Constituição Federal ressalvou única e exclusivamente a competência da Justiça Eleitoral quando previu a competência do TJ para julgamento

523. STJ, 3a Seção, CC 168.620/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14.10.2020, DJe 21.10.2020.

524. STF, HC 68.846/RJ, Rei. Min. limar Galvão, DJ 09/06/1995.

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de Juizes e Promotores Estaduais (art. 96, III), for­ çoso é concluir que crimes federais e militares pra­ ticados por tais agentes devem ser processados e julgados perante o respectivo Tribunal de Justiça. No que toca aos demais agentes, todavia, pen­ samos ser impossível a existência de um simultaneus processus perante o Tribunal de Justiça, sob pena de malferirmos a competência da Justiça Federal previs­ ta expressamente na Constituição Federal, a qual é tida como de natureza absoluta (CF, art. 109, IV). Na medida em que a conexão e a continência funcionam como critérios de alteração da competência, só po­ dem incidir sobre hipóteses de competência relativa. Relembre-se que a competência absoluta não pode ser modificada, ou seja, é inderrogável. Nessa linha, a própria 2a Turma do STF já teve a oportunidade de asseverar que “as regras de conexão são aplicáveis a causas que, em princípio, seriam examinadas em separado e que, verificada a conexão entre os feitos, deve-se recorrer aos critérios de modificação ou pror­ rogação das competências já conferidas. Asseverou-se que, se incabíveis as regras modificativas da compe­ tência, as atribuições jurisdicionais originárias devem ser mantidas, visto que competência absoluta não se modifica ou prorroga. Nesse sentido, afirmou-se que a conexão só altera competência relativa, pois torna competente para o caso concreto juiz que não o seria sem ela”.525 Ora, se a conexão e a continência só têm o condão de alterar espécie de competência relativa, como podemos admitir que venham a restringir a competência da Justiça Federal para julgar os demais agentes, à exceção do Juiz de Direito? Como podemos admitir que uma norma constitucional (art. 109, IV) seja interpretada a partir de norma infraconstitucional? Quid iures7.

2.7. Local da infração Segundo o disposto no art. 70 do CPP, a com­ petência territorial é determinada pelo local da con­ sumação do delito; em se tratando de tentativa, pelo local da prática do último ato de execução. Tratan­ do-se de competência por prerrogativa de função, todavia, pouco importa o local onde o crime foi co­ metido, recaindo a competência sobre o Tribunal ao qual se encontrar vinculada a respectiva autoridade. Se o agente faz jus a foro por prerrogativa de fun­ ção, será julgado pelo respectivo tribunal, mesmo que o local do crime não esteja dentro dos limites territoriais de sua competência.

Pode-se concluir, então, que a competência penal por prerrogativa de função exclui a regra da competência pelo lugar da infração. Exemplificando, se um membro do Ministério Público do Paraná praticar um crime patrimonial na cidade de Ma­ naus/AM, será julgado perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.526

2.8. Crime doloso contra a vida Surge a indagação acerca da competência para o processo e julgamento de crime doloso contra a vida praticado por agente que faz jus a foro por prerrogativa de função. Se a própria Constituição Federal determina que compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”), o que deve prevalecer: a com­ petência do Júri ou a competência por prerrogativa de função? A resposta a esse questionamento deve partir da análise do status da fonte do foro por prerrogativa de função. Em outras palavras, se a competência por prerrogativa de função estiver prevista na pró­ pria Constituição Federal, deve prevalecer sobre a competência constitucional do Tribunal do Júri, em face do princípio da especialidade, pelo menos em regra. Se, por exemplo, um promotor de justiça (CF, art. 96, III) cometer um crime doloso contra a vida de um preso durante uma audiência de custódia, o julgamento ficará a cargo do respectivo Tribunal de Justiça, porque a competência originária deste tribunal está prevista na Carta Magna, com uma única ressalva - crimes eleitorais. A competência do Júri, embora prevista na Lei Maior, não pode sobre­ pujar-se à competência originária estabelecida no mesmo texto. Quando, no entanto, o foro especial for estabelecido somente na Constituição Estadual, em lei processual ou em lei de organização judiciá­ ria, o autor do crime doloso contra a vida deverá ser julgado pelo Tribunal do Júri, cuja competência é es­ tabelecida na Constituição Federal, e, por esta razão, não pode ser limitada por norma de grau inferior. Destarte, caso um secretário de Estado, que geral­ mente tem foro por prerrogativa de função previsto nas Constituições Estaduais (v.g., art. 74, inciso I, da Constituição do Estado de São Paulo), cometa um crime doloso contra a vida, será julgado pelo Tribu­ nal do Júri, e não pelo Tribunal de Justiça. Portanto, apesar de ser possível que Constituições Estaduais

526. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, HC 97.152/RJ, Rei. Min. Hamil­ ton Carvalhido, Dje 20/10/2008. No sentido de que o Prefeito deve ser processado e julgado perante o Tribunal de Justiça do Estado em que localizado o município por ele administrado, pouco importando o fato de 525. STF, 2a Turma, HC 95.291 /RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, Dje 232

04/12/2008.

o delito ter sido cometido em outro estado da Federação: STJ, 3a Seção, CC 120.848/PE, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14/03/2012.

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instituam foro especial por prerrogativa de função (CF, art. 125, § Io), não podem elas excluir a com­ petência constitucional do Tribunal do Júri para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”), a não ser em rela­ ção aos agentes políticos correspondentes àqueles que a Constituição Federal outorga tal privilégio. Por isso, em caso concreto relativo a Procurador do Estado da Paraíba que fora condenado por crime de homicídio perante o Tribunal de Justiça Estadual em virtude de foro por prerrogativa de função (art. 136, XII, da Constituição do Estado da Paraíba), concluiu o Supremo pela anulação do processo ab initio, determinando a remessa dos autos à comarca de origem, para fins de julgamento perante o Tri­ bunal do Júri.527

Supremo para que fosse analisada a sua competência para a supervisão das investigações sobre pessoa que ostenta foro por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal. Aos olhos do Min. Barroso, como até o momento não havia qualquer elemento que revelasse relação de causalidade entre o crime doloso contra a vida e o exercício do cargo, e, con­ siderando-se, ademais, a nova orientação firmada na Questão de Ordem na Ação Penal n. 937, não haveria motivo para se reconhecer a competência originária do Supremo, daí por que reconheceu a competência do Juízo da 3a Vara Criminal da Co­ marca de Niterói/RJ para dar prosseguimento às investigações.

Em síntese, é possível afirmar o seguinte:

Suponha-se que um deputado federal pratique um delito patrimonial em concurso de agentes com um particular, que não faz jus a foro por prerro­ gativa de função. Nessa hipótese, em virtude da continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, inciso I), e do consequente simultaneus processus, ambos poderão ser processados e julgados perante o Supremo Tribunal Federal. Acerca do tema, dispõe a súmula n° 704 do STF que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do pro­ cesso do correu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

a) se o foro especial estiver previsto em lei or­ dinária, em lei de organização judiciária, ou exclu­ sivamente na Constituição Estadual, prevalecerá a competência constitucional do júri. Acerca do tema, aliás, eis o teor da súmula vinculante n° 45: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição es­ tadual”. Referida súmula vinculante corresponde integralmente ao teor da súmula n° 721 do STF.;

b) se a competência especial por prerrogati­ va de função estiver estabelecida na Constituição Federal, prevalecerá sobre a competência constitu­ cional do júri, em razão do princípio da especiali­ dade. Porém, compatibilizando esse raciocínio com a nova orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de Questão de Ordem na Ação Penal n. 937 (regra da atualidade limitada ou restrita)), justifica-se a competência originária do respectivo Tribunal desta autoridade dotada de foro por prerrogativa de função previsto na Consti­ tuição Federal tão somente se o crime doloso contra a vida em questão tiver sido por ela praticado du­ rante o exercício do cargo e em razão de suas fun­ ções. Recentemente, o tema foi levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal (Inq. 4.789/RJ, Rei. Min. Luís Roberto Barroso, j. l°/08/2019): o caso concreto versava sobre inquérito instaurado para apurar a prática de homicídio doloso contra o pastor Anderson do Carmo na cidade de Niterói. Ante a constatação do possível envolvimento da Deputada Federal Flordelis no crime investigado, o Parquet Estadual requereu a remessa de cópia dos autos ao 527. STF, Pleno, HC n° 78.168/PB, Rei. Min. Néri da Silveira, DJ 29/08/2003.

2.9. Hipóteses de concurso de agentes

Como deixa entrever a própria leitura da sú­ mula n° 704 do STF, essa unidade de processos não é obrigatória, podendo o Relator determinar a separação dos processos caso visualize a presença de motivo relevante que a recomende (CPP, art. 80). Deveras, no exemplo acima citado envolvendo um deputado federal e um coautor sem foro por prerrogativa de função, é recomendável a existên­ cia de um simultaneus processus a fim de se obter uma melhor visão do panorama probatório. Toda­ via, a depender do caso concreto (v.g., imagine-se um exemplo com dezenas de acusados, ou com a iminência de prescrição em relação a determinado fato delituoso), essa separação poderá se mostrar extremamente conveniente, a fim de se garantir a celeridade e a razoável duração do processo (CF, art. 5o, LXXVIII), além de tornar exequível a pró­ pria instrução criminal, viabilizando a persecutio criminis in iudicio. Na verdade, o desmembramento de inquéritos ou de processos penais de competência originária dos Tribunais deve funcionar como a regra geral, admitida exceção apenas nos casos em que os fatos relevantes estejam de tal forma relacionados que o

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julgamento em separado possa causar prejuízo re­ levante à prestação jurisdicional.528

art. 77, inciso I) - possa prevalecer sobre preceitos constitucionais.

Em caso concreto apreciado pelo STJ, cuja de­ núncia fora oferecida em 229 laudas em face de 16 acusados, que contava, à época, com 25 volumes e 553 apensos, entendeu-se que seria recomendável a separação dos processos, com fundamento no art. 80 do CPP. Daí por que foi mantida a competência daquela Corte para o julgamento de 3 (três) desem­ bargadores federais, por força do art. 105,1, “a”, da Constituição Federal, extraindo-se cópia dos autos para que os demais acusados fossem julgados em uma das varas criminais da Seção Judiciária do Esta­ do de São Paulo. Ponderou-se que o fato de todos os acusados já terem apresentado resposta preliminar nos termos do art. 4o da Lei n° 8.038/90 não seria óbice para o desmembramento do feito, na medida em que o art. 80 do CPP não delimita em que fase (extraprocessual ou processual) tal medida pode ser adotada.529

Em síntese, podemos afirmar que, em caso de concurso de agentes em crime doloso contra a vida, o privilégio de foro ostentado por um dos acusados não atrai a competência do respectivo Tribunal para o julgamento do outro envolvido, que deve ser jul­ gado pelo Tribunal do Júri, seu juiz natural. A nor­ ma constitucional de competência do júri (art. 5o, XXXVIII, “d”), que só pode ser excluída por outra da mesma natureza e hierarquia, afasta a incidência da norma legal que determina a unidade de processo e julgamento em razão da continência (CPP, art. 77,1).531

Compete ao Tribunal de maior graduação - e não ao juiz de Ia instância - a competência para decidir quanto à conveniência de desmembramen­ to de procedimento de investigação ou persecução penal, quando houver pluralidade de investigados e um deles tiver prerrogativa de foro perante deter­ minado Tribunal.530

De outro lado, se o delito praticado em concur­ so de agentes por titular de foro por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal e coautor que não o possua tiver sido um crime doloso contra a vida, será inevitável a separação dos processos, na medida em que ambas as competências - do Supre­ mo para o julgamento de deputados federais e do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes do­ losos contra a vida - estão previstas na Constituição Federal, sendo inadmissível que uma norma prevista no Código de Processo Penal - continência (CPP, 528. Nessa linha: STF, Pleno, Inq. 3.515 AgR/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 13/02/2014). 529. STJ - Denun. na APn 549/SP - Corte Especial - Rei. Min. Felix Fischer - DJe 28/05/2009. Em caso concreto em que apenas um entre os

nove acusados tinha foro por prerrogativa de função - in casu, um Go­ vernador de Estado (CF, art. 105, l,"a") -, concluiu o STJ que várias razões idôneas estariam a justificar o desmembramento do processo, entre as quais o número excessivo de acusados que não possuíam foro por prer­ rogativa de função naquele Tribunal, a complexidade dos fatos apurados, bem assim a necessidade de tramitação mais célere do processo em razão da potencial ocorrência de prescrição. Ademais, asseverou-se que o fato de se imputar a prática do crime de formação de quadrilha a detentores de foro por prerrogativa de função não impede o desmembramento: STJ, Corte Especial, QO na APn 425/ES, Rei. Min.Teori Albino Zavascki, julgada em 18/05/2011.

530. Com esse entendimento: STF, 2a Turma, AP 878 QO/PR, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 10/06/2014, DJe 213 29/10/2014.

De fato, a prevalência da prerrogativa de foro no processo, tal como sustentada por alguns com base nos arts. 76, 77 e 78 do CPP, não procede, uma vez que dispositivos da Constituição não podem ser interpretados a partir das regras infraconstitucionais sobre prevenção do processo penal, quando, ao contrário, é a Constituição que deve servir para esclarecer a legislação ordinária. Em síntese, por­ tanto, podemos afirmar que a súmula n° 704 não se refere ao específico confronto entre o foro por prerrogativa de função e o Tribunal do Júri, mas apenas aos demais delitos que não tenham relação com os crimes dolosos contra a vida. Mas, e se ambos os acusados pela prática de crime comum tiverem foro por prerrogativa de fun­ ção previsto na Constituição Federal (v.g., Promotor de Justiça perante o TJ, e Desembargador perante o STJ)?

Novamente, devemos nos ater ao fato de que ambas as competências estão previstas na Constitui­ ção Federal: a do Tribunal de Justiça para processar e julgar Promotor de Justiça (CF, art. 96, inciso III); a do Superior Tribunal de Justiça para o julgamento de desembargadores (CF, art. 105,1, “a”). Se assim o é, não se pode admitir que a norma constitucional do art. 96, III, seja colocada em segundo plano em virtude de normas processuais penais - continên­ cia por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, inciso I) -, prevalecendo a jurisdição de maior graduação nos casos de conexão ou continência (CPP, art. 78, . III) Ora, a continência e a conexão não podem al­ terar uma competência fixada na Constituição, de 531. Nessa linha: STF, Pleno, HC 69.325/G0, Rei. Min. Néri da Silveira, j. 17/06/1992, DJ 04/12/92; STJ, Corte Especial, Rcl. 2.125/CE, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, Dje 05/02/2009. Ainda no sentido da separação dos processos, preservando-se a competência do júri em relação àqueles acusados que não têm foro por prerrogativa de função: STJ, 5a Turma,

REsp738.338/PR, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 21/11/2005 p. 292. Em sentido diverso, contrariando o entendimento jurisprudencial majoritário: STF, 2a Turma, HC 83.583/PE, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 07/05/2004.

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natureza absoluta. Deveras, quando tratarmos de conexão e continência, será visto que ambas fun­ cionam como critérios de modificação de compe­ tência relativa, jamais podendo alterar hipótese de competência absoluta, na medida em que esta é im­ prorrogável. De mais a mais, o argumento de ordem prática no sentido de se evitar, mediante a reunião de ações penais em um simultaneus processus, de­ cisões conflitantes, não se sobrepõe à competência funcional estabelecida em norma de envergadura maior. Visualizamos, pois, no exemplo dado, obriga­ tória separação dos processos a fim de que cada um seja processado e julgado perante seu juiz natural: o Promotor de Justiça deve ser julgado perante o res­ pectivo Tribunal de justiça; o Desembargador deve ser julgado perante o Superior Tribunal de Justiça, pois, somente assim, serão respeitadas as compe­ tências fixadas na Constituição Federal. Afinal, a continência, porque disciplina mediante norma de índole instrumental comum, não pode conduzir à reunião dos processos perante o órgão de maior gra­ duação (CPP, art. 77,1, c/c art. 78, III): a atuação de órgãos diversos, com duplicidade de julgamentos, decorre do próprio texto constitucional (CF, art. 96, III, c/c art. 105, I, “a”), daí por que não pode ser suprimida com base em preceito de natureza estritamente legal.532 Impõe-se, a nosso juízo, e com a devida vênia, uma releitura da súmula 704 do STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prer­ rogativa de função de um dos denunciados, salvo em se tratando de crime doloso contra a vida, e excetuada também a hipótese de corréu que seja titular de foro por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal perante tribunal diverso”. Em que pese nosso entendimento, é bom res­ saltar que o Supremo Tribunal Federal, apreciando caso concreto de crime praticado em coautoria por Promotor de Justiça e Desembargador, concluiu que deveria prevalecer a competência do Superior Tri­ bunal de Justiça para o julgamento de ambos, por se tratar de órgão de maior graduação em relação ao Tribunal de Justiça.533* 532. Denilson Feitoza comunga do mesmo entendimento: op. cit. p. 358. Na mesma linha: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo

Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais - comentá­ rios à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 259-260. 533. STF, 2a Turma, HC 91.437/PI, Rei. Min. Cezar Peluso, Dje 126 18/10/2007. O STJ também tem precedentes no mesmo sentido: STJ, Corte Especial, AgRg na APn 527/MT, Rei. Min. Teori Albino Zavascki, j.

2.10. Constituições Estaduais e princípio da simetria De acordo com o art. 125, caput, da Consti­ tuição Federal, os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Cons­ tituição. Assim, de acordo com a Constituição do Estado de São Paulo, compete ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo processar e julgar, nas infrações penais comuns, o Vice-Governador, os secretários de Estado, os deputados estaduais, o procurador-geral de Justiça, o procurador-geral do Estado, o defensor público geral e os prefeitos mu­ nicipais; nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os juizes do Tribunal de Justiça Militar, os juizes de direito e os juízes-auditores da Justiça Militar, os membros do Ministério Público, exceto o procurador-geral de Justiça, o delegado ge­ ral da Polícia Civil e o comandante-geral da Polícia Militar (art. 74,1 e II).

Quanto às autoridades locais que têm foro por prerrogativa de função previsto expressamente na Constituição Federal, como, por exemplo, Governa­ dores, Prefeitos municipais, Juizes de direito, Pro­ motores de justiça, etc. (CF, arts. 105,1, “a, 29, X, e 96, III, respectivamente), dúvidas não há quanto à constitucionalidade desses dispositivos. O problema diz respeito à existência (ou não) de limitação ma­ terial ao poder constituinte estadual no que tange à possibilidade de outorgar foro por prerrogativa de função a outros agentes, criando-se, por conse­ guinte, exceções às regras da garantia da isonomia e do juiz natural.

De acordo com o princípio da simetria ou do paralelismo, previsto no art. 125, caput, da Consti­ tuição Federal (“observados os princípios estabele­ cidos nesta Constituição”), e considerando que os Estados não podem legislar sobre matéria penal, ou mesmo processual, reservada à competência pri­ vativa da União (CF, art. 22, I), as Constituições Estaduais só podem atribuir aos seus agentes po­ líticos as mesmas prerrogativas que a Constitui­ ção Federal concede às autoridades que lhes sejam correspondentes, ressalvando-se apenas os crimes que não estejam submetidos à jurisdição do Esta­ do. Em outras palavras, o art. 125 da Constituição 08/09/2008. Eugênio Pacelli de Oliveira também comunga desse enten­ dimento. Após dar como exemplo um crime praticado em concurso por um deputado federal e por um Governador de Estado, conclui que "como ambos os Tribunais detêm jurisdição nacional e um deles está situado no plano superior da hierarquia jurisdicional, deverá prevalecer a com­ petência do Supremo Tribunal Federal, da mesma maneira que ocorrería se os autores do fato fossem um deputado federal e uma pessoa sem qualquer prerrogativa de função. Aplica-se, portanto, o disposto no art. 78, III, do CPP". (Op. cit. p. 207).

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Federal não outorgou às Constituições Estaduais uma carta em branco para assegurar o privilégio a quem bem entenderem, conferindo ao Tribunal de Justiça competências que não encontrem paralelo na Carta Política. Acerca da limitação material ao poder constituinte estadual, é importante considerar que a Constituição Federal sempre ressalvou que as Constituições Estaduais deveriam necessariamente observar as balizas definidas pela primeira, e assim dispôs expressamente no art. 25 da Constituição Federal e no art. 11 do ADCT.

Por força do princípio da simetria, portanto, as hipóteses de foro diferenciado são as exaustivamente definidas pela Constituição Federal, ficando ao alvedrio do constituinte estadual tão somente a sua apli­ cação nos casos de correlação entre os cargos públicos federais assim contemplados e seu correspondente no Estado. Assim, se a Constituição Federal outorga foro por prerrogativa de função ao Vice-Presidente da República e a Ministros de Estado (CF, art. 102, I, “b” e “c”), apresentar-se-á simétrica a Constituição Estadual que atribua prerrogativa de foro ao Vice-Governador e a Secretário de Estado perante o Tribunal de Justiça.534 Poderiamos até admitir a previsão de foro por prerrogativa de função ao Procurador-Geral do Estado, quando este detivesse a condição de Secre­ tário de Estado, na medida em que a Constituição Fe­ deral também outorga ao Advogado-Geral da União, como Ministro de Estado, foro por prerrogativa de função perante a Suprema Corte.

Fora dessas hipóteses, todavia, haverá clara ex­ trapolação dos limites traçados pela Constituição Federal, com o estabelecimento de cláusula de ex­ ceção aos princípios da isonomia e do juiz natural que, por sua própria natureza, exigem expressa auto­ rização e previsão na Carta Federal, hoje inexistente. Embora os Estados-membros tenham o poder de organizar a sua Justiça (CF, art. 125, caput), devem observar os princípios contidos na Constituição Federal. Logo, como a Constituição Federal não con­ templou os advogados da União, os defensores pú­ blicos da União e os delegados de polícia federal com a previsão de foro por prerrogativa de função, não haverá paralelismo com a Constituição Federal a outorga de foro por prerrogativa de função perante o Tribunal de Justiça pelas Constituições Estaduais a Procuradores do Estado, Procuradores da Assem­ bléia Legislativa, Defensores Públicos e Delegados da Polícia Civil. 534. STF, Pleno, HC 65.132/DF, Rei. Min. Octávio Gallotti, DJ 04/09/1987.

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Não foi esta, todavia, a orientação do Supre­ mo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADI n. 2.587/GO. Deixando de lado o princípio da simetria, e dando maior relevo ao fato de a função ser (ou não) essencial ao Estado Democrático de Direito, o Supremo declarou a constitucionalidade da criação, na Constituição do Estado de Goiás, de foro por prerrogativa de função a Procuradores de Estado e da Assembléia Legislativa e aos Defenso­ res Públicos, rejeitando-a, porém, em relação aos delegados de polícia. Prevaleceu a tese de que as funções de Procuradores de Estado, Procuradores da Assembléia Legislativa e de Defensores Públicos seriam essenciais ao Estado Democrático de Direito, ao contrário do que se daria com os delegados de polícia, que, por força do art. 144, § 6o, da Consti­ tuição Federal, são subordinados, hierarquizados administrativamente aos Governadores de Estados e do Distrito Federal. E uma vez que são agentes subordinados, não fariam jus a foro por prerrogativa de função.535 Recentemente, porém, no julgamento da ADI 2.553/MA, o Plenário do Supremo julgou proceden­ te pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade do art. 81, IV, da Consti­ tuição do Estado do Maranhão, acrescentado pela Emenda Constitucional 34/2001, que incluía, entre as autoridades com foro criminal originário perante o tribunal de justiça, os procuradores de Estado, os procuradores da assembléia legislativa, os defensores públicos e os delegados de polícia. Prevaleceu o en­ tendimento de que não seria viável, in casu, a apli­ cação do princípio da simetria. Interpretação que conferisse às constituições estaduais a possibilidade de definir foro, considerando o princípio federativo e com esteio no art. 125, § Io, da CF, permitiría aos Estados dispor, livremente, sobre essas prerrogati­ vas, o que seria equivalente a assinar um cheque em branco. Por fim, esclareceu que o vice-governador, os secretários de Estado e o comandante dos milita­ res estaduais, por determinação expressa do art. 28 da CF, também possuem prerrogativa de foro, inde­ pendentemente de a constituição estadual fixá-la ou 535. STF, Pleno, ADI 2.587/GO, Rei. Min. Carlos Britto, DJ 06/11/2006. O STJ tem adotado entendimento semelhante. Em habeas corpus apre­ ciado pela 6aTurma, concluiu ser possível a fixação da competência deTJ para processar e julgar originariamente procurador de Estado nos crimes comuns e de responsabilidade, tal como o fez o art. 161, IV, d, da Cons­ tituição do Estado do Rio de Janeiro: STJ, 6a Turma, HC 86.001/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, j. 28/6/2011. Em relação aos delegados de Polícia, o STJ já entendeu que"é inconstitucional o dispositivo da Carta Estadual que atribui competência, em sede processual, privativa da União, para julgamento de Delegado de Polícia. Entre os alcançados pelo foro privi­ legiado, na Constituição Federal e na lei processual, não se encontram os delegados de polícia." (STJ - RHC 74/RJ - 6a Turma - Rei. Min. José Cândido de Carvalho Filho - DJ 16/10/1989).

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

não.536 Com base no mesmo raciocínio, por ocasião do julgamento da ADI n. 5.591/SP,537 o Supremo Tribunal Federal também declarou a inconstitucio­ nalidade da expressão “o Delegado-Geral da Polícia Civil” contida no inciso II do art. 74 da Constituição do Estado de São Paulo. Revela-se inconstitucional, portanto, norma de Constituição Estadual que es­ tende o foro por prerrogativa de função a autorida­ des não contempladas pela Constituição Federal de forma expressa ou por simetria.538 Superada tal questão, cumpre registrar que, quando o foro por prerrogativa de função estiver estabelecido nas Constituições Estaduais e leis de organização judiciária, somente será considerado válido perante as autoridades judiciárias locais, não podendo ser invocado no caso de cometimento de crimes eleitorais, militares ou contra bens, interesses e serviços da União. Destarte, se, por exemplo, um deputado estadual cometer um “crime federal”, ao invés de ser julgado pelo Tribunal de Justiça, sê-lo-á pelo Tribunal Regional Federal.539 Também se revela incompatível com a Consti­ tuição Federal norma de Constituição estadual que disponha sobre nova hipótese de foro por prerro­ gativa de função, em especial relativo a ações des­ tinadas a processar e julgar atos de improbidade administrativa. O regramento referente ao foro por prerrogativa de função encontra-se plenamen­ te disciplinado na CF, inclusive, para os âmbitos 536. STF, Pleno, ADI 2.553/MA, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 15/05/2019, DJe 17.08.2020.

537. STF, Pleno, ADI 5591/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 20.03.2021. 538. Com base nesse entendimento, o Plenário do STF julgou proce­ dentes pedidos formulados em ações diretas para declarar, com efeitos ex nunc, a inconstitucionalidade da expressão "e da Defensoria Pública", constante do art. 161,1, a, da Constituição do Estado do Pará; das expres­

sões"© Defensor Público-Geral"e"e da Defensoria Pública", constante do

art. 87, IV, a e b, da Constituição do Estado de Rondônia; da expressão "Procuradoria Geral do Estado e da Defensoria Pública", constante do art. 72,1, a, da Constituição do Estado do Amazonas; e das expressões "bem como os Procuradores de Estado e os Defensores Públicos", constante do art. 133, IX, a, da Constituição do Estado de Alagoas. (STF, ADI's 6.501 /PA, 6.508/RO, 6.515/AM, 6.516/AL, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 20.08.2021). 539. Nas palavras do STJ, "embora a Constituição do Estado da Bahia determine ser do Tribunal de Justiça a competência para processar e julgar, originariamente, os Deputados Estaduais, tendo em vista o con­ tido no art. 109, VI, da Constituição Federal, e observado o princípio da simetria, na hipótese de crime praticado contra interesse da União, a competência passa a ser do Tribunal Regional Federal. A necessidade de prévia licença da Assembléia Legislativa foi abolida pela Emenda Consti­ tucional n° 35/2001, de aplicação imediata, independendo a instauração da ação penal de autorização da Casa Legislativa, sendo irrelevante a

circunstância de o delito atribuído ao paciente ter sido cometido antes da modificação constitucional". (STJ, 6aTurma, HC 56.597/BA, Rei. Min. Paulo Gallotti, DJ 29/10/2007 p. 317). No sentido da competência do Tribunal Regional Federal para julgar Secretário de Saúde de Estado em feito em

que se apura eventual irregularidade no repasse de verbas pela União à unidade federativa por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja fiscalização estaria afeta ao Tribunal de Contas da União: STF, RHC 98.564/DF, Rei. Min. Eros Grau, julgado em 15/09/2009.

estadual e municipal, não comportando qualquer tipo de ampliação. Em outros termos, considera-se que a disciplina sobre a prerrogativa de foro encontra-se exaurida no âmbito da CF, não havendo espaço para o exercício da autonomia dos estados nessa esfera. Além disso, o constituinte derivado de­ corrente deve observar mínima equivalência com o modelo federal existente - seja se atendo ao que está previsto na CF, seja legislando por simetria. Cabe lembrar que em nenhum momento a CF cogita de foro por prerrogativa de função para o julgamento de autoridades processadas por ato de improbidade administrativa, sendo este um claro limite à compe­ tência dos estados para disporem sobre o tema em suas constituições. Ademais, conforme precedente do STF acerca do assunto - Pet 3240-Agr/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, Dje de 22.8.2018 -, não é possível extrair da Constituição de 1988 a possibi­ lidade de instituir foro por prerrogativa de função para os processos de natureza cível, notadamente os de improbidade administrativa. Com base nesse entendimento, o Plenário do STF julgou procedente o pedido formulado em ação direta de inconstitu­ cionalidade em face de alteração da Constituição do Estado do Espírito Santo (art. 109,1, “h”, com reda­ ção dada pela EC 85/12), que passou a prever que as autoridades julgadas pelo Tribunal de Justiça nos processos criminais também fossem julgadas pela mesma Corte em ações das quais pudesse resultar a suspensão ou perda dos direitos políticos, a perda de função pública ou de mandato eletivo.540 Registre-se, por fim, que as leis orgânicas dos Municípios não podem estabelecer foro privilegia­ do para as autoridades no Tribunal de Justiça, na medida em que os municípios não possuem com­ petência para legislar sobre organização judiciária nem direito processual.

2.11. Exceção da verdade De acordo com o art. 85 do CPP, “nos processos por crimes contra a honra, em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, àquele ou a estes caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade.” A justificativa para a regra em questão é clara: movida ação penal privada por crime de calúnia por querelante dotado de foro por prerrogativa de fun­ ção, o processo deverá correr perante juiz de Ia ins­ tância. Ocorre que, oposta exceção da verdade pelo querelado (CP, art. 138, § 3o), ou seja, propondo-se 540. STF, Pleno, ADI 4.870/ES, Rei. Min. DiasToffoli, j. 14.12.2020.

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o acusado a demonstrar a verdade do fato que im­ putou ao querelante, tem-se que, do julgamento da exceção da verdade, poderá resultar o reconheci­ mento da prática de crime, razão pela qual seu jul­ gamento deve ficar a cargo do Tribunal competente de acordo com o foro por prerrogativa de função.541 Exemplificando, à luz do referido dispositivo legal, caso um Promotor de Justiça oferecesse uma quei­ xa-crime em face de um indivíduo pela prática do crime de calúnia, seria possível que o querelado in­ gressasse com uma exceção da verdade,542 de modo a provar a veracidade do fato delituoso imputado ao Promotor. Como esse membro do Parquet é dotado de foro por prerrogativa de função, ao respectivo Tribunal de Justiça caberia o julgamento da exceptio veritatis. Assim, se determinada pessoa tem foro por prerrogativa de função, somente o respectivo Tri­ bunal poderia apreciar, ainda que incidentalmente, se tal pessoa cometeu (ou não) o crime aludido na exceção da verdade. Quando o Supremo Tribunal Federal ainda adotava a regra da contemporaneidade - cancelada súmula n. 394 do STF -, enten­ dia-se que idêntico raciocínio deveria ser aplicado à exceção da verdade. É daí que surge o enuncia­ do da súmula n. 396 do STF (“Para a ação penal por ofensa à honra, sendo admissível a exceção da verdade quanto ao desempenho da função pública, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que já tenha cessado o exercício funcional”). Essa lógica, porém, deve ser compatibi­ lizada com a nova orientação firmada pelo Supremo por ocasião do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal n. 937 (regra da atualidade limitada ou restrita), a significar que o julgamento dessa exceção da verdade pelo respectivo Tribunal só se justifica se o crime em questão tiver sido praticado pela au­ toridade ao tempo do exercício do cargo e em razão das funções, e desde que ainda não tenha havido a cessação do exercício funcional. Caso contrário, ao magistrado de Ia instância caberá não apenas o juízo de admissibilidade e a instrução probatória 541. No sentido da competência do SuperiorTribunal de Justiça para o julgamento da exceção da verdade quando o excepto é autoridade com foro privilegiado sujeito à sua jurisdição: STJ - ExVerd 42/ES - Corte Especial - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 03/09/2007 p. 109. 542. Na jurisprudência, prevalece o entendimento de que a exceção da verdade deve ser apresentada na primeira oportunidade que a defesa tiver para se manifestar nos autos após o início do processo penal. Logo, no âmbito do procedimento comum, por ocasião da apresentação da resposta à acusação (CPP, art. 396-A). Nas demandas que seguem o rito dos processos de competência originária dos Tribunais, é tempestiva a exceção da verdade apresentada no prazo do art. 8o da Lei n° 8.038/90, ainda que o acusado já tenha apresentado defesa preliminar (Lei n° 8.038/90, art. 4o). Nesse sentido: STJ, 5a Turma, HC 202.548/MG, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 24/11/2015, DJe 1 °/12/2015.

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da exceção da verdade, mas também o julgamento dessa verdadeira ação declaratória incidental.

Firmada essa premissa, é importante perceber que, nessa hipótese do art. 85 do CPP, ao Tribunal caberá tão somente o julgamento da exceção da ver­ dade. Ou seja, o juízo de admissibilidade da exce­ ção da verdade deve ser feita na instância ordinária, onde também irá ser promovida a instrução proba­ tória pertinente, cabendo ao Tribunal respectivo, tão somente, o respectivo julgamento. Desse modo, o reconhecimento da inadmissibilidade da exceção da verdade durante o seu processamento não caracte­ riza usurpação de competência do órgão responsá­ vel por apreciar o mérito do incidente, sobretudo porque eventual desacerto no processamento da exceção da verdade pelo juízo de origem poderá ser impugnado pelas vias recursais ordinárias.543 Como a competência por prerrogativa de fun­ ção limita-se à seara criminal, prevalece o entendi­ mento de que o art. 85 somente se aplica à exceção da verdade oposta em relação ao crime de calúnia, crime que tem como elementares a falsa imputa­ ção de fato definido como crime. É de se lembrar que também cabe exceção da verdade no crime de difamação (CP, art. 139, parágrafo único), quando o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções. Entretanto, como a difama­ ção versa sobre imputação de fato que não constitui infração penal, não se admite, em regra, a aplicação do art. 85 do CPP. Porém, uma importante ressalva deve ser feita: na medida em que o crime de calúnia diz respeito única e exclusivamente à falsa imputação de crime, eventual imputação de contravenção penal irá caracterizar o delito de difamação. Imaginando-se que a vítima dessa difamação seja funcionário público titular de foro por prerrogativa de função, e que tal delito guarde relação com o exercício de suas fun­ ções, é possível, então, que o julgamento da exceptio veritatis nessa hipótese fique a cargo do respectivo Tribunal, aplicando-se a regra do art. 85 do CPP, pois, aí, ter-se-ia espécie de infração penal. No entanto, tem prevalecido o entendimento de que o art. 85 do CPP tem aplicação restrita ao crime de calúnia, no qual se destaca, como elemento essencial do tipo, a imputação de fato determinado revestido de caráter delituoso. Cuidando-se de difamação, a exceção da verdade deve ser processada e julgada pelo próprio juiz de Ia instância, ainda que o exceto disponha de foro por prerrogativa de função.544 543. Com esse entendimento: STJ, Corte Especial, Rcl 7.391/MT, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 19/06/2013, DJe 01/07/2013.

544. Com esse entendimento: STF, Pleno, AP 305 QO-QO/DF, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 10/09/1993.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Do julgamento da exceção da verdade pelo Tri­ bunal poderá resultar: 1) rejeição do pedido: caso o Tribunal conclua que não restou provada a veraci­ dade da imputação feita pelo querelado, a exceção retorna à comarca de origem, a fim de que o juízo de primeiro grau dê continuidade ao julgamento da queixa-crime; 2) acolhimento do pedido: se o Tri­ bunal concluir que a imputação é verdadeira, deve o juízo de primeiro grau absolver o querelado em virtude da atipicidade de sua conduta (CPP, art. 386, , III) eis que afastada uma elementar do crime de calúnia, qual seja a falsidade da imputação. Diante do reconhecimento, em tese, da prática de fato de­ finido como crime pelo querelante titular de foro por prerrogativa de função, deve o Desembargador ou Ministro Relator encaminhar cópia dos autos da exceção ao Ministério Público (CPP, art. 40), a fim de que seja investigada a prática do crime, se ne­ cessários maiores elementos de convicção, ou desde já oferecida denúncia com base nos elementos já apurados na exceção da verdade. No que tange ao pedido de explicações previsto no art. 144 do Código Penal,545 caso o suposto autor da calúnia, difamação ou injúria possua foro por prerrogativa de função, essa providência de caráter cautelar também deve tramitar perante o respectivo Tribunal.546

2.12. Atribuições dos membros do Ministério Público perante os Tribunais Superiores De acordo com o art. 29, inciso V, da Lei n° 8.625/93, além de outras atribuições previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica do MP, e em outras leis, compete ao Procurador-Geral de Justiça ajuizar ação penal de competência originária dos Tribunais, nela oficiando. No entanto, tem-se como válida denúncia oferecida por Procu­ rador de Justiça mediante designação do Procura­ dor-Geral, nos termos do art. 10, IX, “g”, da Lei n° 8.625/93, sendo dispensável a ratificação expressa da denúncia por este.547*

Lado outro, cabe ao Procurador-Geral da Re­ pública ajuizar ações penais originárias no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça (LC 75/93, art. 46, parágrafo único, III, c/c art. 48, inciso II). Essas atribuições podem ser delegadas a um membro do Ministério Público Federal que seja titular do cargo de Subprocurador-Geral da Repú­ blica, ex vi do art. 47, § Io, c/c art. 48, parágrafo único, ambos da Lei Complementar n° 75/93.548 Por sua vez, compete ao Procurador-Geral da Justiça Militar exercer as funções atribuídas ao Ministério Público Militar junto ao Superior Tri­ bunal Militar, destacando-se dentre suas atribui­ ções a de oferecer denúncia contra Oficiais-Generais das Forças Armadas (LC 75/93, art. 123).

No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a propositura da ação penal pública fica a cargo de um Procurador Regional da República, enquanto que, junto aos Tribunais Regionais Eleitorais, o dominus litis será o Procurador Regional Eleitoral.

2.13. Procedimento originário dosTribunais O procedimento a ser observado para o julga­ mento de acusados que façam jus a foro por prer­ rogativa de função encontra-se regulamentado pela Lei n° 8.038/90 (arts. Io a 12), a qual dispõe sobre normas procedimentais para os processos perante o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Por força do art. Io da Lei n° 8.658/93, as normas dos arts. Io a 12 da Lei n° 8.038/90 são aplicáveis às ações penais de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, e dos Tribunais Regionais Federais.

545. O pedido de explicações constitui típica providência de ordem cautelar, destinada a aparelhar ação penal principal tendente a senten­ ça penal condenatória. O interessado, ao formulá-lo, invoca, em juízo, tutela cautelar penal, visando a que se esclareçam situações revestidas

Dentre suas peculiaridades, estabelece o art. 4o que, apresentada a denúncia ou a queixa ao Tribu­ nal, far-se-á a notificação do acusado para ofere­ cer resposta no prazo de 15 (quinze) dias. Tem-se aí a denominada defesa preliminar, oportunida­ de que é dada ao acusado de se manifestar antes do recebimento da peça acusatória pelo Tribunal, evitando-se a instauração de lides temerárias. Por sua vez, de acordo com o art. 6o, a seguir, o rela­ tor pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa,

de equivocidade, ambiguidade ou dubiedade, a fim de que se viabilize o exercício futuro de ação penal condenatória. A notificação prevista no Código Penal (art. 144) traduz mera faculdade processual sujeita à discrição do ofendido. E só se justifica na hipótese de ofensas equívocas.

de ratificação expressa da peça acusatória: STF, HC 69.906, 2a Turma, Rei.

546. No sentido da competência do Supremo para processar pedido

de explicações em juízo, deduzido com base no art. 144 do CPP em face

de deputado federal: STF, Pleno, Pet 4.444 AgR/DF, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 241 18/12/2008. 547. No sentido da validade de denúncia oferecida por Procurador de Justiça mediante designação do Procurador-Geral, nos processos de

competência originária dosTribunais de Justiça: STF, 1a Turma, HC 76.851/

RS, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 24/03/2000. Quanto à desnecessidade Min. Paulo Brossard, DJ 16/04/1993. 548.Concluindo pela possibilidade de o Procurador-Geral da Repúbli­ ca delegar a competência de que trata o art. 48, II, da Lei Complementar n° 75, de 1993, a Subprocurador-Geral pré-designado para atuar perante o SuperiorTribunal de Justiça, sem que haja qualquer ofensa ao princípio do promotor natural: STF, 1aTurma, HC 84.468/ES, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 047 28/06/2007.

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ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas. A nosso juízo, não se afigura possível a aplica­ ção do novo procedimento comum trazido pela Lei n° 11.719/08 aos ritos de competência originária dos Tribunais, mormente diante do que dispõe o art. 394, § 4o, do CPP: “As disposições dos arts. 395 a 398 do Código aplicam-se a todos os proce­ dimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código”. Nesse contexto, em caso concreto apreciado pela Corte Especial do STJ, concluiu-se que, em se tratando de ação penal ori­ ginária submetida ao procedimento especial da Lei n° 8.038/1990, não há necessidade de se assegurar ao acusado citado para a apresentação da defesa prévia prevista no art. 8o da Lei n° 8.038/1990 o direito de se manifestar nos moldes preconizados no art. 396-A do CPP, com posterior deliberação acerca de absolvição sumária prevista no art. 397 do CPP. Isso porque as regras dos arts. 395 a 397 do CPP já se encontram implícitas no procedimen­ to previsto na Lei n° 8.038/1990, já que, após o oferecimento da denúncia e a notificação do acu­ sado para resposta preliminar (art. 4o), o relator pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas (art. 6o). Assim, à defesa não será causado nenhum prejuízo, visto que o referido art. 6o impõe ao órgão colegiado o enfrentamento de todas as teses defensivas que possam culminar na improcedência da acusação (igual ao julgamento antecipado da lide; art. 397 do CPP) ou na rejeição da denúncia (art. 395 do CPP).549

Finda a instrução, serão intimadas a acusação e a defesa para, sucessivamente, apresentarem, no prazo de 15 dias, alegações escritas. Na sequência, o Tribunal procederá ao julgamento, observan­ do-se o seguinte: I - a acusação e a defesa terão, sucessivamente, nessa ordem, prazo de uma hora para sustentação oral, assegurado ao assistente um quarto do tempo da acusação; II - encerrados os 549. STJ, Corte Especial, AgRg na APN 697/RJ, Rei. Min. Teori Albino Zavascki,j. 03/10/2012.Também há precedente do Plenário do Supremo no sentido de que tanto a absolvição sumária do art. 397 do CPP quanto o art. 4o da Lei n° 8.038/90, em termos teleológicos, ostentam finalidades assemelhadas, possibilitando que o acusado se livre da persecução penal, razão pela qual não se justifica a superposição de procedimentos - co­ mum e especial - visando a finalidades idênticas: STF, Pleno, AP 630 AgR/ MG, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 15/12/2011, DJe 059,21/03/2012. No sentido de que não se revela possível mesclar o procedimento origi­ nário dosTribunais com o rito comum ordinário, que prevê o recebimento da denúncia e subsequente citação do acusado para apresentar a respos­ ta à acusação (CPP, arts. 396 e 396-A), sob pena de restar caracterizado hibridismo procedimental incompatível com o princípio da reserva legal: STF, 2a Turma, HC 116.653/RJ, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 18/02/2014.

debates, o Tribunal passará a proferir o julgamento, podendo o Presidente limitar a presença no recinto às partes e seus advogados, ou somente a estes, se o interesse público exigir. Para a Ia Turma do STF, desde que apresentadas as alegações escritas, a au­ sência de defensor, devidamente intimado, à sessão de julgamento, e, por consequência, a ausência de sustentação oral, não implicam, por si sós, nulidade processual.550

3. CASUÍSTICA Em relação à competência dos Tribunais e aos titulares de foro por prerrogativa de função, a com­ petência ratione funcionae está assim distribuída:

3.1. Quanto à competência dos Tribunais 3.1.1. Supremo Tribunal Federal De acordo com o art. 102, inciso I, da Carta Magna, compete ao Supremo processar e julgar originariamente: [...] b) nas infrações penais co­ muns (aí abrangidos crimes eleitorais, contraven­ ções penais, crimes militares, etc.), o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República. Nesse caso, compete ao Supremo Tribunal Federal “a condu­ ção do inquérito policial em que figuram como indiciados autoridades com foro especial nesta Corte, não cabendo ao juízo de primeira instân­ cia a decisão sobre a necessidade de se promover o desmembramento”.551 Lado outro, de acordo com o art. 102,1, “c”, da Magna Carta, compete ao Supremo Tribunal Fe­ deral processar e julgar originariamente, nas infra­ ções penais comuns (aí abrangidos crimes eleitorais, contravenções penais, crimes militares, etc.) e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, salvo se o crime de responsabilidade for conexo ao do Presidente ou Vice, caso em que a competência será do Senado Federal, os membros 550. STF, 1a Turma, HC 165.534/RJ, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 03/09/2019. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a sustentação oral prevista no art. 12, I e II, da Lei n. 8.038/90, não é ato essencial à defesa, mas sim mera faculdade da parte. Logo, eventual ausência do defensor à sessão de julgamento não terá o condão de macular o referido ato processual. Nesse sentido, confira-se: STF, 2a Turma, HC 140.495/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 07/06/2017; STF, 1aTurma, RHC 119.194/SC, Rei. Min. Roberto Barroso, DJe 29/09/2014; STF, 2a Turma, RHC 118.660/DF, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJe 27/02/2014; STF, Ia Turma, RHC 85.510/MG, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 26/08/2005. E ainda: STF, 1 aTurma, RHC 187.927 ED-SP, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 08.09.2020, DJe 05.10.2020. 551. STF - Rcl 4.025/AgR - Tribunal Pleno - Rei. Min. Gilmar Mendes - DJ 09/03/2007.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de ca­ ráter permanente.

patente constrangimento ilegal à liberdade de loco­ moção, será cabível habeas corpus perante o Supre­ mo Tribunal Federal.554

Por sua vez, consoante dispõe o art. 102, I, “d”, da Constituição Federal, compete ao Supremo processar e julgar o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas “b” e “c” do inciso I do art. 102 da CF.552 O habeas corpus também será da competência da Suprema Corte quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância (CF, art. 102,1, “i”).

Por fim, quanto ao habeas corpus contra de­ cisão de turma recursal, há de se ficar atento ao teor da Súmula n° 690 do STF, cujo enunciado é o seguinte: “compete originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas corpus contra decisão de turma recursal de juizados es­ peciais criminais”.

Por uma interpretação gramatical que pode ser feita a partir da alínea “i” do inciso I do art. 102 da CF, somente seria cabível habeas corpus para o Supremo quando o constrangimento à liberdade de locomoção emanasse de decisão de um Tribunal Su­ perior (ex.: STJ). Logo, contra decisão monocrática de relator de Tribunal Superior que indefere medida liminar em habeas corpus não seria cabível novo writ para o Supremo, na medida em que o Relator, de per si, não poderia ser equiparado ao Tribunal Superior. Assim, somente quando a Turma à qual pertence o Relator decidisse o mérito do habeas corpus é que seria cabível a impetração de novo writ perante o Supremo. Nessa linha, dispõe a súmula n° 691 do STF que não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribu­ nal superior, indefere a liminar.553

Em que pese o teor da súmula n° 691 do STF, o próprio Supremo tem relativizado sua aplicação, entendendo que, diante de uma decisão monocrá­ tica teratológica de Relator de Tribunal Superior (v.g., desprovida de fundamentação), caracterizando 552. De acordo com o Supremo, "sendo certo que a Constituição só abriu exceção ao princípio da hierarquia em matéria de competência para o julgamento de 'habeas corpus' no tocante a esta Corte e apenas quando 'se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância', essa exceção só diz respeito aos crimes objeto de ação penal originária processada perante este Supremo Tribunal Federal, pois, somente nesse caso, em decorrência da prerrogativa de foro das pessoas referidas nas

letras'b'e'c'do inciso I do artigo 102 da Carta Magna - o que abarca, evi­ dentemente, os corréus sujeitos a essa jurisdição por força de conexão -, é que se terá a hipótese de crime sujeito à jurisdição desta Corte em uma única instância. - No caso, tratando-se de'habeas corpus'contra decisão concessiva de extradição, que é processo sujeito à jurisdição única desta Corte, mas que não tem por objeto crime sujeito à jurisdição dela em uma única instância, não é ele cabível. Questão de ordem que se julga no sentido de não se conhecer do presente 'habeas corpus)" (STF - HC 76.628 QO/DF -Tribunal Pleno - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 12/06/1998).

553. Nesse sentido: STF, IaTurma, HC 167.146/PE, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 18.08.2020, DJe 223 08.09.2020.

O enunciado constante dessa súmula está supe­ rado, conforme reiterada jurisprudência da própria Suprema Corte. Hoje, entende-se que habeas corpus contra decisão de turma recursal deve ser aprecia­ do pelo Tribunal de Justiça, no âmbito da Justiça Estadual, ou pelo Tribunal Regional Federal, em se tratando de Turma Recursal de Juizados Especiais Federais.555

3.1.2. Superior Tribunal de Justiça Compete ao Superior Tribunal de Justiça pro­ cessar e julgar, originariamente (CF, art. 105,1, “a”): nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabili­ dade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal,556 os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os membros do Ministério Público da União que oficiem perante Tribunais. Atente-se, mais uma vez, para a expressão cri­ mes comuns, que abrange todos aqueles que não se­ jam de responsabilidade, inclusive as contravenções penais. Deveras, se ao Superior Tribunal de Justiça compete o julgamento de um Governador pela prá­ tica de um homicídio, não faria sentido não pudesse julgá-lo por uma contravenção penal.557 554. Nessa linha: STF, 1a Turma, HC 87.468/SP, Rei. Min. Cezar Peluso,

j. 29/06/2006, DJ 15/09/2006; STF, 2a Turma, HC-AgR 88.777/SP, Rei. Min. Eros Grau, j. 08/08/2006, DJ 08/09/2006. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 86.429/ SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 01/10/2007. 555. Com ese entendimento: STF, 1a Turma, HC 86.009 QO/DF, Rei. Min. Carlos Britto, Dje 004 26/04/2007. 556. Como anota Mirabete (op. cit. p. 177), apesar de a Constituição Federal dispor sobre a competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar crime de responsabilidade de desembargadores e membros dosTribunais, não há na legislação brasileira a previsão desses ilícitos com referência a tais autoridades judiciárias. Assim, a representa­ ção para processá-los por tais delitos deve ser arquivada.

557. Como já decidiu o Supremo, "a expressão crime comum, na lin­ guagem constitucional, é usada em contraposição aos impropriamente chamados crimes de responsabilidade, cuja sanção é política, e abrange, por conseguinte, todo e qualquer delito, entre outros, os crimes eleito­ rais. [...] Competência originária do Superior Tribunal de Justiça para

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Em relação aos membros do Ministério Públi­ co da União, interpretando-se a contrario sensu o disposto no art. 102, I, “b”, da CF, segundo o qual compete ao Supremo Tribunal Federal o processo e julgamento do Procurador-Geral da República pela prática de infração penal comum, e o preceito do art. 108, I, “a”, da CF, que estabelece que compete aos Tribunais Regionais Federais o processo e jul­ gamento dos membros do Ministério Público da União pela prática de crimes comuns e de respon­ sabilidade, ressalvada a competência da Justiça Elei­ toral, conclui-se que todos os demais integrantes do Ministério Público da União que atuam perante os Tribunais - seja esse Tribunal o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, um Tribunal Regional Federal ou até mesmo um Tribunal Superior - deverão ser julgados pelo Superior Tribunal de Justiça nos cri­ mes comuns e nos de responsabilidade.

Os membros do Ministério Público da União que atuam perante Tribunais são: Procuradores Regionais da República, Procuradores Regionais do Trabalho e Procuradores de Justiça do Distrito Federal, que oficiam, respectivamente, perante os Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e perante o Tribunal de Justiça do Dis­ trito Federal; os Subprocuradores-Gerais da Repú­ blica, os Subprocuradores-Gerais da Justiça Militar, o Procurador-Geral da Justiça Militar, os Subpro­ curadores-Gerais do Trabalho e o Procurador-Ge­ ral da Justiça do Trabalho, que oficiam perante os Tribunais Superiores. Se a Constituição Federal estabelece que ao Superior Tribunal de Justiça compete o processo e julgamento dos membros do Ministério Público da União que oficiam perante Tribunais, depreende-se que aos respectivos Tribunais de Justiça caberá o julgamento dos Procuradores de Justiça, integrantes do Ministério Público dos Estados que atuam na 2a instância, na linha do que dispõe o art. 96, III, da Magna Carta. De acordo com o art. 105,1, “c”, da Constitui­ ção Federal, também compete ao Superior Tribunal de Justiça os habeas corpus, quando o coator ou paciente for Governador de Estado e do Distrito Federal, Desembargadores dos Tribunais de Jus­ tiça dos Estados e do Distrito Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os processar e julgar Governador de Estado acusado da pratica de crime comum, Constituição, art. 105, I, 'a'." (STF - CC 6.971/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Paulo Brossard - DJ 21/02/1992).

membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público que oficiem perante tribunais, ou quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição (TJs e TRF’S),558 Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a com­ petência da Justiça Eleitoral.

3.1.3. Tribunal Superior Eleitoral De acordo com o art. 22, inciso I, “d”, do Códi­ go Eleitoral (Lei n° 4.737/65), compete ao Tribunal Superior Eleitoral processar e julgar os crimes elei­ torais e os comuns que lhe forem conexos come­ tidos pelos seus próprios juizes e pelos juizes dos Tribunais Regionais.

Não obstante o teor do Código Eleitoral, prevalece o entendimento de que esse dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Isso porque, segundo o art. 102, I, “c”, da Carta Magna, compete ao Supremo Tribunal Fe­ deral processar e julgar os membros dos Tribunais Superiores. Por sua vez, quanto à competência para processar e julgar os membros dos Tribunais Regionais Eleitorais, em quaisquer infrações, nos termos do art. 105, I, “a”, da Constituição Fede­ ral, foi deslocada do Tribunal Superior Eleitoral para o Superior Tribunal de Justiça. Assim, como assevera Fernando da Costa Tourinho Filho, “o Tribunal Superior Eleitoral perdeu sua competên­ cia funcional vertical originária ratione personae vel muneris”.559

Em relação aos recursos cabíveis de decisões proferidas pelo Tribunal Regional Eleitoral e pelo Tribunal Superior Eleitoral, vale atentar para o disposto nos §§ 3o e 4o do art. 121 da Constitui­ ção Federal. O § 3o do art. 121 consagra a regra da irrecorribilidade das decisões do Tribunal Su­ perior Eleitoral, abrindo exceção apenas para as que contrariem a Constituição Federal e para as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança. Por sua vez, aquelas que ofenderem a 558. Antes da Emenda Constitucional n° 22, de 18 de março de 1999, eram da competência do Supremo Tribunal Federal o processo e jul­

gamento das ações de habeas corpus, em que se investia contra ação ou omissão de órgão colegiado de Tribunal, ainda que este não tivesse a qualificação de superior. Diante das alterações trazidas pela referida Emenda, a Suprema Corte não mais possui competência para processar e julgar habeas corpus dirigidos contra atos colegiados dos Tribunais Regionais Federais ou dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal. Restou unificada a competência do Superior Tribunal de Justi­ ça para processar e julgar o habeas corpus direcionado contra ato ou decisão proveniente dos TRF's ou TJ's, independentemente de tratar-se de atos únicos ou de atos colegiados, inclusive com a possibilidade de

interposição de recurso ordinário constitucional dirigido ao STF, desde que a decisão seja denegatória (CF, art. 102, II, "a"). 559. Processo penal. Vol. 2. 31a ed. São Paulo: Saraiva, 2009.148.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Constituição são impugnáveis mediante recurso extraordinário e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança comportam recurso ordinário, sendo ambos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal. Quanto ao inciso I do § 4o do art. 121 da Magna Carta, quando a decisão de Tribunal Regional Eleitoral afrontar a Constitui­ ção Federal, o recurso será dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral. Somente após seu julgamento é que a constitucionalidade poderá ser questionada perante a Suprema Corte.

3.1.4. Superior Tribunal Militar De acordo com o art. 6o, inciso I, “a”, da Lei n° 8.457/92, compete ao Superior Tribunal Militar pro­ cessar e julgar originariamente os oficiais-generais das Forças Armadas, nos crimes militares definidos em lei.

3.1.5. Tribunais Regionais Federais Compete aos Tribunais Regionais Federais pro­ cessar e julgar originariamente os juizes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Pú­ blico da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (CF, art. 108,1, “a”).

Como a Constituição Federal limitou-se a afas­ tar a competência dos Tribunais Regionais Federais tão somente no que toca aos crimes eleitorais, hipó­ tese em que a competência será do Tribunal Regio­ nal Eleitoral, conclui-se que a competência para o julgamento de eventuais crimes militares praticados por magistrados integrantes do Poder Judiciário da União e membros do Ministério Público da União também recai sobre o respectivo Tribunal Regional Federal. Como o art. 108, I, “a”, da Magna Carta, excepcionou dos crimes comuns de competência dos Tribunais Regionais Federais apenas os crimes eleitorais, silenciando acerca dos crimes militares, devemos interpretar esse silêncio eloquente no sen­ tido de ser mantida a competência do respectivo Tribunal Regional Federal para o julgamento dos crimes militares praticados pelos referidos agentes.

Também compete aos Tribunais Regionais Fe­ derais o julgamento de prefeitos e de outras autori­ dades estaduais com foro por prerrogativa de fun­ ção previsto nas Constituições Estaduais, quando cometerem crimes da esfera federal.

3.1.6. Tribunais Regionais Eleitorais Cabe aos Tribunais Regionais Eleitorais o pro­ cesso e julgamento dos crimes eleitorais praticados

por juizes e promotores eleitorais, assim como Pre­ feitos, Deputados Estaduais e outras autoridades com foro por prerrogativa de função previsto nas Constituições Estaduais. Também compete aos Tri­ bunais Regionais Eleitorais o processo e julgamento de habeas corpus, em matéria eleitoral, contra ato de autoridade que responda perante os Tribunais de Justiça por crime de responsabilidade e, em grau de recurso, os denegados ou concedidos pelos juizes eleitorais.

3.1.7. Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal Consoante dispõe a Constituição Federal, juizes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, assim como os membros do Ministério Público dos Esta­ dos, deverão ser processados e julgados perante o respectivo Tribunal de Justiça pela prática de crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a compe­ tência da Justiça Eleitoral (CF, art. 96, III). De modo semelhante ao que foi dito anteriormente, como a Constituição Federal limitou-se a afastar a compe­ tência do Tribunal de Justiça tão somente no que toca aos crimes eleitorais, tem-se que a competência para processar e julgar juizes de direito e membros do Parquet Estadual pela prática de crimes militares é do respectivo Tribunal de Justiça.

Atente-se: enquanto membros do Ministério Público do Distrito Federal que atuam na primeira instância são processados e julgados perante o Tri­ bunal Regional Federal, por serem integrantes do Ministério Público da União (CF, art. 108, I, “a”), juizes do Distrito Federal são processados e julgados perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (CF, art. 96, III).560 Em relação a crimes comuns, prefeitos também têm foro por prerrogativa de função perante o Tri­ bunal de Justiça (CF, art. 29, X), salvo em relação a crimes federais e eleitorais, hipótese em que a com­ petência recai sobre o Tribunal Regional Federal e o Tribunal Regional Eleitoral, respectivamente.561 A propósito, dispõe o enunciado da súmula 702 do Supremo que a competência do Tribunal de Jus­ tiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de 560. No sentido da competência do Tribunal Regional Federal da 1a Região para processar e julgar habeas corpus contra ato de membro do Ministério Público do Distrito Federal: STF, 1a Turma, RE 467.923/DF, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 04/08/2006.

561. Ao contrário de juizes e promotores, que são julgados pelo Ór­ gão Especial do Tribunal de Justiça, Prefeitos são julgados pelas Câmaras

Criminais. Súmula 702 do STF: "A competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça Comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau".

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competência da Justiça Comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau.

Impõe-se, ainda, a análise das constituições lo­ cais, sobretudo diante da norma constante do art. 125, § Io, da Carta Magna, segundo a qual a com­ petência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. Relembre-se aqui o quanto foi dito acerca do princípio da simetria ou do paralelismo com a Constituição Federal (CF, art. 125, caput): as Constituições Estaduais só po­ dem atribuir aos seus agentes políticos as mesmas prerrogativas que a Constituição Federal concede às autoridades que lhes sejam correspondentes. Assim, se a Constituição Federal outorga foro por prerro­ gativa de função a Ministros de Estado, apresentar-se-á simétrica a Constituição Estadual que atribua prerrogativa de foro a Secretário de Estado perante o Tribunal de Justiça.562 No entanto, não haverá paralelismo com a Constituição Federal a outorga de foro por prerro­ gativa de função perante o Tribunal de Justiça pelas Constituições Estaduais a vereador,563 Delegados de Polícia, Comandante Geral da Polícia Militar, Pro­ curadores do Estado e da Assembléia Legislativa e Defensores Públicos. Como já se pronunciou o STJ, “é inconstitucional o dispositivo da Carta Estadual que atribui competência, em sede processual, pri­ vativa da União, para julgamento de Delegado de Polícia. Entre os alcançados pelo foro privilegiado, na Constituição Federal e na lei processual, não se encontram os delegados de polícia”.564

Não tem sido essa, todavia, a orientação do Su­ premo Tribunal Federal. Deixando de lado o prin­ cípio da simetria, e dando maior relevo ao fato de a função ser (ou não) essencial ao Estado Democráti­ co de Direito, no julgamento da ADI n° 2.587/GO, o STF declarou a constitucionalidade da criação, na Constituição do Estado de Goiás, de foro por 562. STF - HC 65.132/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Octávio Gallotti -DJ 04/09/1987.

563. Há precedente antigo do STF no sentido de que não pode preva­ lecer a norma constitucional estadual que atribui foro especial por prerro­ gativa de função a vereador para ser processado pelo Tribunal de Justiça,

prerrogativa de função a Procuradores de Estado e da Assembléia Legislativa e aos Defensores Públi­ cos, rejeitando-a, porém, em relação aos delegados de polícia.565 O argumento utilizado pela Suprema Corte para afastar o foro por prerrogativa de função para os delegados de polícia teria sido o § 6o do art. 144 da Magna Carta, que estabelece que tais agentes são subordinados, hierarquizados administrativa­ mente aos Governadores de Estados e do Distrito Federal. E uma vez que são agentes subordinados, não fariam jus a foro por prerrogativa de função.

3.1.8. Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo Compete ao TJM/SP o processo e julgamento do Chefe da Casa Militar e do Comandante Geral da Polícia Militar, em relação à prática de crimes militares.

3.1.9. Senado Federal Cabe ao Senado julgar os crimes de responsabi­ lidade do Presidente e Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado e os Comandan­ tes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, assim como os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República, o Advogado-Geral da União e os membros do Conse­ lho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público nos crimes de responsabilidade (CF, art. 52, incisos I e II).

3.1.10. Tribunal Especial Este Tribunal Especial, composto por cinco Deputados, escolhidos pela Assembléia, e cinco Desembargadores, sorteados pelo Presidente do Tribunal de Justiça, que também o presidirá (Lei n° 1.079/50, art. 78, § 3o), tem competência para processar e julgar, nos crimes de responsabilidade, o Governador, o Vice-Governador, e os Secretários de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, assim como o Procurador-Geral de Justiça e o Procurador-Geral do Estado.

na medida em que tal matéria não se enquadra no art. 125, § Io, da Carta

Magna, sobretudo se considerarmos que a regra do art. 29, X, da Constitui­ ção Federal, não compreende o vereador: STF - RHC 80.477/PI - 2a Turma - Rei. Min. Néri da Silveira - DJ 04/05/2001. Mais recentemente, porém, a 2aTurma do STF concluiu que não afronta a Constituição Federal a norma de Constituição estadual que atribui competência originária ao Tribunal de Justiça para processar e julgar vereador; STF, 2a Turma, RE 464.935/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 03/06/2008, DJe 117 26/06/2008.

564. STJ, 6a Turma, RHC 74/RJ, Rei. Min. José Cândido de Carvalho Filho, DJ 16/10/1989. ! 510

3.1.11. Câmara Municipal Compete à Câmara Municipal o processo e julgamento de Prefeitos Municipais pela prática de crimes de responsabilidade (Dec.-lei 201/67, art. 4o). 565. STF, Pleno, ADI 2.587/GO, Rei. Min. Carlos Britto, DJ 06/11/2006.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

3.2. Quanto aos titulares de foro por prerroga­ tiva de função No que diz respeito às autoridades com foro por prerrogativa de função, podemos apresentar o seguinte quadro:

3.2.1. Presidente da República Nos crimes de responsabilidade, será julgado pelo Senado Federal (CF, art. 52,1). São considera­ dos crimes de responsabilidade todos os atos aten­ tatórios à CF, especialmente os praticados contra a existência da União, o livre exercício do Poder Legislativo, Judiciário e Ministério Público, o exer­ cício dos direitos políticos, individuais e sociais, a segurança interna do país, a probidade na admi­ nistração, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e decisões judiciais (CF, art. 85, I a VII - rol meramente exemplificativo). Essas infrações estão reguladas pela Lei n° 1.079/50, haja vista a indis­ pensável previsão legal acerca do tema por se tratar de matéria penal. Como estabelece a súmula 722 do Supremo Tribunal Federal, são de competência legislativa da União a definição dos crimes de respon­ sabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento. A súmula vinculante n. 46 tem redação semelhante. O processo de impeachment divide-se em duas fases: juízo de admissibilidade e julgamento. A primeira tem início perante a Câmara dos Depu­ tados, mediante acusação de qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos, que somente será admitida por dois terços dos votos, em uma úni­ ca sessão, assegurado o contraditório ao acusado. Remetidos os autos ao Senado, caso este venha a instaurar o processo, o presidente ficará automa­ ticamente suspenso de suas funções (CF, art. 86, § Io, II), pelo prazo máximo de 180 dias, tempo em que o processo já deveria estar encerrado (CF, art. 86, § 2o). O presidente do STF assumirá a pre­ sidência dos trabalhos, submetendo a denúncia à votação, exigindo-se dois terços dos votos para a condenação, a qual limitar-se-á à perda do cargo com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais san­ ções judiciais cabíveis (CF, art. 52, parágrafo único, segunda parte). De acordo com o art. 15 da Lei n° 1.079/50, a denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo (v.g., pela renúncia). Ressalte-se, todavia, que a renún­ cia apresentada antes da sessão de julgamento não paralisa o processo, uma vez que a sanção não se limita à perda do mandato.

Nos crimes comuns, aí abrangidos os crimes eleitorais, o processo também se desenvolve em duas fases. Admitida a acusação pela Câmara dos Deputados, por dois terços dos votos, o presidente será julgado pelo STF (CF, art. 102,1, b). Esse juízo político de admissibilidade exercido pela Câmara dos Deputados (CF, art. 86, caput) precede a análise jurídica pelo STF para conhecer e julgar qualquer questão ou matéria defensiva suscitada pelo de­ nunciado. Assim, somente após a autorização da Câmara dos Deputados é que o STF determinará, nos termos do art. 4o da Lei 8.038/1990, a notifi­ cação do denunciado para, no prazo de 15 dias, apresentar sua resposta à acusação.566 Recebida a denúncia ou queixa, pelo plenário do STF, o pre­ sidente ficará suspenso de suas funções (CF, art. 86, § Io, I), pelo prazo máximo de 180 dias, tempo em que o processo já deveria estar encerrado (CF, art. 86, § 2o). Enquanto não sobrevier decisão con­ denatória, o presidente não estará sujeito à prisão (CF, art. 86, § 3°). Essa imunidade formal do Presidente e do Vi­ ce-Presidente da República e de Ministros de Estado prevista no art. 51,1, e no art. 86, caput, da Consti­ tuição Federal, não é extensível a codenunciados que não se encontram investidos em tais funções. Não por outro motivo, diante da negativa de autorização por parte da Câmara dos Deputados para instaura­ ção de processo penal em face do então Presidente da República M. T. e de Ministros de Estado, o Ple­ nário do STF reputou válido o desmembramento dos autos em relação a diversos investigados não detentores de foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal, determinando-se a re­ messa dos autos ao competente juízo de primeira instância.567

Por fim, quanto aos crimes não-funcionais do Presidente da República, cuja persecução penal fica sobrestada até o término do mandato por força do art. 86, § 4o, da Constituição Federal, quando en­ tão poderão ser ajuizadas as ações penais por in­ frações cometidas antes do exercício do mandato ou durante o seu exercício, mas que não guardem vinculação com as suas funções, a competência não segue as regras especiais da prerrogativa de função. Isso porque, como visto antes, cessado o exercício funcional, não há mais falar em foro por prerroga­ tiva de função.

566. STF, Pleno, Inq. 4.483 QO/DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 21/09/2017.

567. STF, Pleno, Inq. 4.483 AgR-segundo/DF, Inq. 4.327 AgR-segundo/ DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 19/12/2017.

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Quanto ao tema, o Supremo já teve a oportu­ nidade de asseverar que o art. 86, § 4o, da Carta Magna, não confere ao Presidente da República imunidade penal, mas sim imunidade temporária à persecução penal. Logo, não se pode concluir que o Presidente é irresponsável por crimes não funcionais praticados no curso do mandato, mas apenas que, por tais crimes, não poderá ser res­ ponsabilizado, enquanto não cessar a investidura na presidência.568

Essa cláusula de imunidade processual tem­ porária do Presidente da República (CF, art. 86, § 4o) não é extensiva a Governadores de Estado, nem tampouco a Prefeitos Municipais. Também não se admite a aplicação analógica do art. 86, § 4o, da Constituição Federal, ao Presidente da Câmara dos Deputados, já que referida imunidade se des­ tina expressamente ao Chefe do Poder Executivo da União. Desse modo, não estaria autorizado, por sua natureza restritiva, qualquer interpretação que ampliasse a incidência a outras autoridades, notadamente do Poder Legislativo. Com base nesse raciocí­ nio, o Plenário do STF deliberou pelo recebimento de denúncia contra o então Presidente da Câmara E. C. pela suposta prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.569

3.2.2. Deputados federais e Senadores Nos crimes comuns (inclusive eleitorais),570 deve o processo ter curso regular perante o Su­ premo Tribunal Federal (CF, art. 102,1, b, c/c art. 53, § Io), desde que o andamento da ação não seja sustado pelo voto da maioria dos membros da casa respectiva (art. 53, § 3o, com redação dada pela EC n° 35/01). A súmula n. 398 do STF (“O Supremo Tribunal Federal não é competente para processar e julgar, originariamente, deputado ou senador acu­ sado de crime”) está ultrapassada, portanto, à luz da Constituição Federal. Relembre-se que, a partir da Emenda Constitucional n° 35/01, não mais é ne­ cessária autorização do Congresso Nacional para o recebimento de peça acusatória contra parlamenta­ res. O que pode ocorrer, na verdade, e desde que já tenha havido o recebimento da peça acusatória em relação à prática de crime comum cometido após a diplomação, é a suspensão do processo e do curso

do prazo prescricional, por decisão da respectiva Casa por voto da maioria de seus membros (CF, art. 53, § 3o e 50).571 Em se tratando de crimes de responsabilidade, o parlamentar será processado e julgado pela res­ pectiva casa legislativa.

Inicialmente, prevalecia o entendimento de que, mesmo que o parlamentar estivesse licenciado, sub­ sistiría a competência por prerrogativa de função.572 Hoje, todavia, prevalece o entendimento de que esta competência está relacionada diretamente ao exercí­ cio do cargo, razão pela qual se o parlamentar estiver licenciado não faz jus ao foro por prerrogativa de função, mesmo que se encontre no exercício de outra função para a qual não haja a previsão de foro por prerrogativa de função.

Quanto a suplente de Senador ou de Deputado Federal, entende o Supremo que, embora juntamen­ te com cada Senador sejam eleitos dois suplentes, a posse no cargo, que constitui ato formal indis­ pensável para o gozo das prerrogativas ligadas à função legislativa, dá-se apenas com relação àquele que efetivamente o exerce, em caráter interino ou permanente. Por isso, a atração da competência do Supremo, de natureza intuitufuncionae, ocorre, des­ de a diplomação, unicamente em relação ao titular eleito para exercer o cargo, havendo, por isso, de se fazer uma interpretação restritiva do art. 53, § Io, da CF, porquanto dirigido apenas a Senadores e Deputados Federais, aos quais o texto confere, ex­ cepcionalmente, certas prerrogativas, em prol do exercício livre e desembaraçado do mandato. Por­ tanto, a prerrogativa de foro estende-se ao suplente apenas durante o período em que este permane­ cer no efetivo exercício da atividade parlamentar. Com o retorno do deputado ou do senador titular às funções normais, haverá a perda, pelo suplente, do direito de ser investigado, processado e julgado no Supremo Tribunal Federal.573

571.0 Supremo concluiu que a Emenda Constitucional n° 35/01, que aboliu a exigência de licença prévia para a instauração ou continuidade da persecução penal, devia ter aplicabilidade imediata aos casos pen­ dentes de julgamento, por se tratar de norma genuinamente processual:

STF, Pleno, Inq. 1.344/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 01/08/2003. 568. STF - HC 83.154/SP - Tribunal Pleno - Rei. Min. Sepúlveda Per­

tence - DJ 21/11/2003.

569. STF, Pleno, Inq. 3.983/DF, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 03/03/2016, DJe 95 11/05/2016.

570. No sentido da competência do Supremo para processar e julgar membros do Congresso Nacional por crimes comuns, os quais alcançam os crimes eleitorais: STF, Pleno, Inq. 1.872/DF, Rei. Min. Ricardo Lewan­ dowski, DJ 20/04/2007.

572. No sentido de preservação da competência por prerrogati­ va de função, ainda que o deputado federal estivesse licenciado à época do fato delituoso para exercer cargo de Secretário de Estado: STF, Pleno, Inq. 777 QO/TO, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 01/10/1993. No mesmo sentido: STF, Pleno, Inq. 925 QO/GO, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 15/08/1997.

573. Nesse sentido: STF, Pleno, Inq. 2.421 AgR/MS, Rei. Min. Menezes Direito, Dje 060 03/04/2008. E também: STF, Pleno, Inq. 2.453 AgR/MS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, Dje 047 28/06/2007.

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3.2.3. Ministros de Estado Em relação a crime comum, Ministros de Es­ tado são processados e julgados perante o Supre­ mo Tribunal Federal, ao qual também compete o julgamento de crimes de responsabilidade, salvo se conexos aos do presidente, caso em que a compe­ tência será do Senado Federal. Quanto ao Advogado-Geral da União, vale lem­ brar que foi a Medida Provisória n° 2.049-20, de 29 de junho de 2000, que transformou o mencionado cargo de natureza especial em cargo de Ministro de Estado. Apesar de o art. 62, § Io, I, “b”, da Carta Magna, vedar a edição de medida provisória so­ bre matéria relativa ao direito processual penal (in casu, competência por prerrogativa de função), isso não impediu que o Supremo concluísse pelo reco­ nhecimento de sua competência para o processo e julgamento de queixa-crime oferecida contra o Advogado-Geral da União. Restaram vencidos, no referido julgamento, os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello que, considerando a decisão na Petição 2.084-DF, proferida em 8.8.2000, no sentido de que o Advogado-Geral da União, por não ser ministro de Estado, não dispunha de prerrogativa de foro penal perante o STF, entendiam casuística a nova edição da MP 2.049-22 e declaravam a incons­ titucionalidade formal da mesma na parte em que incluiu o Advogado-Geral da União como ministro de Estado pela falta de urgência necessária à edição da Medida Provisória (expressão “e o Advogado-Ge­ ral da União”, contida no parágrafo único do art. 13 e do art. 24-B da Lei n° 9.649/98).574

Mutatis mutandis, aplica-se o mesmo raciocínio ao Presidente do Banco Central do Brasil, que pas­ sou a ter status de Ministro de Estado por força da medida provisória n° 207, de 13 de agosto de 2004, posteriormente convertida na Lei n° 11.036/04.575 Se o acusado, todavia, não foi nomeado presidente do Banco Central, embora tenha sido sabatinado e aprovado pelo Senado Federal, apenas tendo res­ pondido em diversas oportunidades pela Presidên­ cia do Banco Central, não goza ele de foro por prer­ rogativa de função previsto na Lei n° 11.036/04.576

574. STF, Pleno, Inq. 1.660 QO/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06/06/2003. 575. A ação direta de inconstitucionalidade proposta contra a Me­ dida Provisória n° 207, de 13 de agosto de 2004 (convertida na Lei n° 11.036/2004), que alterou disposições das Leis n° 10.683/03 e Lei n° 9.650/98, para equiparar o cargo de natureza especial de Presidente do Banco Central ao cargo de Ministro de Estado foi julgada improceden­ te pelo Supremo: STF, Pleno, ADI 3.289/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 03/02/2006.

576. Com esse entendimento: STF, Pleno, HC 88.673/RJ, Rei. Min. Me­ nezes Direito, Dje 047 13/03/2008.

3.2.4. Membros do Conselho Nacional de Jus­ tiça e do Conselho Nacional do Ministério Público Apesar da Emenda Constitucional n° 45/04 ter estabelecido que compete ao Senado Federal pro­ cessar e julgar os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público nos crimes de responsabilidade (CF, art. 52, , nada dispôs acerca da competência para julgáII) -los pela prática de crimes comuns. Destarte, como as hipóteses de foro por prerro­ gativa de função devem ser interpretadas de maneira restritiva, ressalvados os integrantes dos Conselhos que tenham foro por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal (v.g., Juiz Estadual perante o respectivo Tribunal de Justiça; Desembargador de Tribunal de Justiça perante o STJ), os demais inte­ grantes que não o tenham - advogados indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e cidadãos de notável saber jurídico e reputa­ ção ilibada, indicados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal - deverão ser processados e julgados na Ia instância.

E nem se diga que a competência para o pro­ cesso e julgamento de crimes comuns praticados por todo e qualquer membro do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Públi­ co teria sido inserida no art. 102,1, “r”, da Constitui­ ção Federal, que atribuiu ao Supremo competência para julgar as ações contra os Conselhos. Ora, o que a Emenda Constitucional inseriu na competên­ cia originária do Supremo Tribunal foram as ações contra os respectivos colegiados, e não aquelas em que se questione a responsabilidade pessoal de um ou mais dos conselheiros.577

3.2.5. Governador de Estado No tocante aos crimes comuns (assim incluídos os crimes eleitorais) praticados por Governadores de Estado, a competência será do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105,1, a). Para o Plenário do Supremo, é vedado às unida­ des federativas instituírem normas que condicionem a instauração de ação penal contra o governador por crime comum à prévia autorização da casa le­ gislativa, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça dispor fundamentadamente sobre a aplicação de medidas cautelares penais, inclusive o afastamen­ to do cargo. Na verdade, o simples recebimento de uma denúncia pelo STJ não pode importar em

577. Nessa linha: STF, Pleno, Pet 3.674 QO/DF, DJ 19/12/2006.

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afastamento automático do governador. Esse afas­ tamento somente pode ocorrer se o STJ entender que há elementos a justificá-lo. Com esse entendi­ mento, o Plenário do STF julgou procedentes pe­ didos formulados em ações diretas para declarar a inconstitucionalidade de dispositivos e expressões contidas em normas das Constituições dos Estados da Bahia e do Rio Grande do Sul e da Lei Orgâni­ ca do Distrito Federal. A constituição estadual não pode condicionar a instauração de processo judi­ cial por crime comum contra governador à licença prévia da assembléia legislativa. A República, que inclui a ideia de responsabilidade dos governantes, é princípio constitucional de observância obriga­ tória, de modo que a exceção prevista no art. 51,1, da CF é norma de reprodução proibida pelos Estados-Membros. Além disso, a previsão do estabe­ lecimento de condição de procedibilidade para o exercício da jurisdição penal pelo STJ consiste em norma processual, matéria de competência privativa da União (CF, art. 22, I), portanto impossível de ser prevista pelas Constituições estaduais. Ademais, tendo em vista que as constituições estaduais não podem estabelecer a chamada “licença prévia”, tam­ bém não podem autorizar o afastamento automático do governador de suas funções quando recebida a denúncia ou a queixa-crime pelo STJ.578 No caso de crime eleitoral praticado por go­ vernador, decidiu a Suprema Corte que a compe­ tência é do Superior Tribunal de Justiça e não do Tribunal Superior Eleitoral. Na visão do Supremo, os Governadores de Estado, que dispõem de prer­ rogativa de foro ratione muneris perante o Superior Tribunal de Justiça, estão sujeitos a processo penal condenatório, ainda que as infrações penais a eles imputadas sejam estranhas ao exercício das funções governamentais, sendo que a locução constitucional “crimes comuns”, abrange todas as infrações penais, inclusive as de caráter eleitoral, e, até mesmo, as de natureza meramente contravencional.579 Nos crimes de responsabilidade, o órgão com­ petente costuma ser definido pela Constituição Es­ tadual. Em São Paulo, por exemplo, a competência é de um órgão colegiado formado por desembargado­ res, deputados estaduais e presidido pelo Presidente 578. STF, Pleno, ADI 4.777/BA, ADI 4.674/RS, ADI 4.362/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 09/08/2017. Na mesma linha, porém em relação à Constituição do Estado de Minas Gerais: STF, Pleno, ADI 5.540/MG, Rei. Min. Edson Fachin, j. 03/05/2017. Com entendimento semelhante, con­ tudo em relação às Constituições dos Estados do Acre, de Mato Grosso

do TJ. Em Minas Gerais, por sua vez, o Governador do Estado será submetido a processo e julgamen­ to perante a Assembléia Legislativa, se admitida a acusação por dois terços de seus membros (art. 91, § 3o).580 De acordo com o art. 78, § 3o, da Lei n° 1.079/50, “nos Estados onde as Constituições não determinarem o processo nos crimes de responsa­ bilidade dos Governadores, aplicar-se-á o disposto nesta Lei, devendo, porém, o julgamento ser profe­ rido por um tribunal composto de 5 membros do Legislativo e 5 desembargadores, sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça, que terá di­ reito de voto no caso de desempate”. Sempre preva­ leceu o entendimento de que o art. 78, § 3o, da Lei n° 1.079/50, funcionaria como norma subsidiária, ou seja, seu preceito somente seria aplicável se as Constituições Estaduais não tratassem da compe­ tência para o processo e julgamento de governa­ dores e seus secretários pela prática de crimes de responsabilidade. Ocorre que, ao apreciar a ADI n° 1.628, ajuizada em face da Constituição do Estado de Santa Catarina, assim se posicionou o Supremo Tribunal Federal: “A expressão “e julgar”, que cons­ ta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do § Io do artigo 73 da Constituição catarinense consubs­ tanciam normas processuais a serem observadas no julgamento da prática de crimes de responsa­ bilidade. Matéria cuja competência legislativa é da União. Precedentes. Lei federal n° 1.079/50, que disciplina o processamento dos crimes de respon­ sabilidade. Recebimento, pela Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a um Tribunal Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes. Inconstitucionalidade formal dos pre­ ceitos que dispõem sobre processo e julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de compe­ tência legislativa da União. A CF/88 elevou o prazo de inabilitação de 5 (cinco) para 8 (oito) anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2o da Lei n° 1.079 revogado, no que contraria a Constituição do Brasil. A Constituição não cuidou da matéria no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei n° 1.079 permanece hígido — o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não foi alterado. O Estado-membro carece de com­ petência legislativa para majorar o prazo de cinco anos - - artigos 22, inciso I, e parágrafo único do

e do Piauí: STF, Pleno, ADI 4.764/AC, ADI 4.797/MT, ADI 4.798/PI, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 04/05/2017.

579. STF - HC 80.511/MG - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello DJ 14/09/2001. No mismo sentido: STJ, Corte Especial, Rp 15/SP, DJ 16/03/1992.

580. Os crimes de responsabilidade do Governador do Distrito Federal são objeto da Lei n° 7.106, de 28 de junho de 1983, ao passo que os dos Governadores Estaduais constam da Lei n° 1.079, de 10 de abril de 1950.

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artigo 85, da CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União”.581

o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento.583

Na mesma linha, por força de medida cautelar concedida na ADI n° 2.220, encontra-se suspensa a parte final do art. 49 da Constituição do Estado de São Paulo, a qual possuía a seguinte redação: “Admitida a acusação contra o Governador, por dois terços da Assembléia Legislativa, será ele sub­ metido a julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça, nas infrações penais comuns, ou, nos crimes de responsabilidade, perante Tribunal Es­ pecial”. O § Io do art. 49 da Constituição do Es­ tado de São Paulo, que estabelece ser o Tribunal Especial composto por sete Deputados Estaduais e sete Desembargadores sorteados pelo Presidente do Tribunal de Justiça também foi suspenso pela medida cautelar concedida pelo STF na ADI 2.220. Consta da ementa do julgamento: “Inscreve-se na competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e a disciplina do res­ pectivo processo e julgamento. Precedentes do Su­ premo Tribunal Federal: ADIMC 1.620, ADIMC 2.060 e ADIMC 2.235”.582

É permitido a qualquer cidadão denunciar o governador perante a Assembléia Legislativa por crime de responsabilidade (Lei n° 1.079/50, art. 75), valendo ressaltar que não será recebida a denúncia depois que o governador, por qualquer motivo, hou­ ver deixado definitivamente o cargo. Apresentada a denúncia e julgada objeto de deliberação, se a As­ sembléia Legislativa, por maioria absoluta, decretar a procedência da acusação, será o governador ime­ diatamente suspenso de suas funções. Procedente a acusação, limitar-se-á a condenação à perda do cargo, com inabilitação, até 5 (cinco) anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da Justiça Comum.

Destarte, como o Supremo entende que a de­ finição dos crimes de responsabilidade e o estabe­ lecimento de normas de processo e julgamento é da competência da União Federal, em virtude dos arts. 85, parágrafo único e 22, I, da Constituição Federal, suspendendo as normas estaduais que dispõem sobre a matéria, tem-se que permane­ ce em vigor a Lei n° 1.079/50. Logo, ao afastar a previsão expressa da própria Lei n° 1.079/50 que determina a competência desse Tribunal Espe­ cial somente “nos Estados, onde as Constituições não determinarem o processo nos crimes de res­ ponsabilidade”, concluiu o STF que, ainda que as Constituições Estaduais disponham em sentido diverso, caberá a um Tribunal Especial composto de cinco membros do Legislativo e de cinco de­ sembargadores sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça local o processo e julgamento de governadores de Estado pela prática de crimes de responsabilidade. Pondo um fim ao tema, o Supremo Tribu­ nal Federal editou a Súmula 722, cujo enuncia­ do dispõe que são da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e 581. STF, Pleno, ADI 1.628/SC, Rei. Min. Eros Grau, DJ 24/11/2006.

582. STF - ADI 2.220 MC/SP - Pleno - Rei. Min. Octávio Gallotti - DJ 07/12/2000.

Em regra, o vice-governador tem foro por prerrogativa de função previsto nas Constitui­ ções Estaduais, competindo ao Tribunal de Jus­ tiça processar e julgá-lo pela prática de crime comum (v.g., Constituição do Estado de Minas Gerais, art. 106, I, “a”). Daí ter concluído o STJ que a prerrogativa de foro do Superior Tribunal de Justiça para, originariamente, processar e julgar nos crimes comuns os Governadores de Estado não se estende aos Vice-Governadores ainda que a prática delituosa tenha ocorrido quando, por motivo de viagem do titular do cargo, estivesse o Vice-Governador em exercício interino das fun­ ções de Governador.584

3.2.6. Desembargadores dos Tribunais de Justi­ ça dos Estados e do Distrito Federal e membros dos Tribunais Regionais Federais Pela prática de crimes comuns e de responsabi­ lidade, são julgados originariamente pelo Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105,1, a).

3.2.7. Membros do Ministério Público Estadual e Juizes Estaduais Membros do Ministério Público Estadual (Pro­ motores de Justiça e Procuradores de Justiça) e Jui­ zes estaduais (aí incluídos os membros dos Tribu­ nais de Justiça Militar em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, bem como os Juizes de Direito do Juízo Militar) são julgados pelo Tribunal de Jus­ tiça ao qual estão vinculados, independentemente 583. No sentido da inconstitucionalidade de norma de Constituição Estadual que disponha sobre o processamento e julgamento de Gover­ nador e Vice-governador nos casos de crime de responsabilidade: STF, Pleno, ADI 4.811/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 13.12.2021.

584. STJ - Rcl. 980/AP - Corte Especial - Rei. Min. Cesar Asfor Rocha - DJ 07/04/2003 p. 208.

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da natureza da infração penal (crimefederal, militar, doloso contra a vida, ou até mesmo contravenções penais), ou o local de sua prática, ressalvados apenas os crimes eleitorais, quando o julgamento caberá ao Tribunal Regional Eleitoral.585 Logicamente, essa competência por prerroga­ tiva de função deve ser observada nos processos por crimes comuns praticados por, e não contra tais agentes.586

Na medida em que a competência para o pro­ cesso e julgamento de membros do Ministério Pú­ blico Estadual está prevista na Constituição Federal (art. 96, III), ressalvada apenas a competência da Justiça Eleitoral, se Juizes estaduais e Promotores de Justiça, nas funções eleitorais, cometerem crimes eleitorais, deverão ser julgados pelo Tribunal Regio­ nal Eleitoral, ficando alterado, pois, o dispositivo do art. 29,1, “d”, do Código Eleitoral, que prevê a competência do Tribunal Regional Eleitoral única e exclusivamente para o julgamento dos crimes elei­ torais cometidos pelos juizes eleitorais. Diversamente do que ocorre com Prefeitos Municipais, como o art. 96, inciso III, da Carta Magna, ressalvou única e exclusivamente os crimes eleitorais, não se pode querer sujeitar tais agentes a julgamento perante um Tribunal Regional Federal pela prática de um crime federal, quando a própria Constituição Federal não ressalvou essa exceção. Por se tratar de norma especial, este dispositivo deve se sobrepujar à regra geral da competência em razão da matéria da Justiça Federal (CF, art. 109). Por isso, na hipótese de crime federal praticado em concurso de agentes por Promotor de Justiça e um particular sem foro por prerrogativa de função, parece-nos que aquele deve ser processado perante seu respectivo Tribunal de Justiça, ao passo que o corréu deve ser julgado perante a Justiça Federal, preponderando a regra constitucional que fixa a competência desta Justiça em razão da matéria sobre normas de lei ordinária que determinam a reunião de processos por força da conexão ou continência.587 585. No sentido da competência do Tribunal de Justiça para o julga­ mento de crime praticado por Promotor de Justiça, no exercício do cargo, ainda que ocorrido antes do advento da nova Carta: STF - HC 71.654/ MG - 1a Turma - Rei. Min. limar Galvão - DJ 30/08/1996. 586. Nessa linha: STJ, 5a Turma, HC 14.755/MG, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 13/08/2001 p. 183. 587. Antônio Scarance Fernandes comunga de entendimento se­

melhante: Processo penal constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 165. Há, todavia, precendente antigo do Supremo no sentido da competência doTribunal de Justiça para julgar Juiz de Direito e demais coautores pela prática de crimes federais e estaduais: STF - HC 68.935/RJ - Pleno - Rei. Min. limar Galvão - DJ 25/10/1991.

Juizes de Io grau, quando convocados para os Tribunais de Justiça para exercer a função de de­ sembargador, não possuem a prerrogativa de foro previsto pelo art. 105, inciso I, “a”, da Constituição Federal. Em outras palavras, a prerrogativa de foro é inerente ao cargo, e não a eventual exercício da função em substituição, uma vez que o convocado mantém sua investidura no cargo de origem, ou seja, juiz de Io grau. Logo, ainda que convocados, devem ser processados e julgados perante o respectivo Tri­ bunal de Justiça, salvo em se tratando de crimes eleitorais.588 Se ao juiz de direito acusado pela prática de um crime tiver sido aplicada, em processo administrati­ vo, a pena disciplinar de aposentadoria compulsória com proventos proporcionais ao tempo de serviço (LOMAN, art. 42, inciso V), perde-se o direito ao foro por prerrogativa de função.589

Aos olhos do Plenário do Supremo, o foro es­ pecial por prerrogativa de função também não se estende a Promotores e Juizes que se aposentam voluntariamente em cargos cujos ocupantes osten­ tam tal prerrogativa. A uma, porque a competência ratione funcionae tem por objetivo o resguardo da função pública. A duas, porque, no exercício do ofí­ cio judicial, goza o magistrado da prerrogativa de foro especial, garantia que está voltada não à pes­ soa do juiz, mas aos jurisdicionados. Por fim, não havendo mais o exercício da função judicante, não há de perdurar o foro especial, haja vista que o res­ guardo dos jurisdicionados, nesse caso, não é mais necessário. Nesse caso, não há falar em parcialidade do magistrado de Ia instância para o julgamento do feito, porquanto a lei processual prevê o uso de exceções capazes de afastar essa situação.590

3.2.8. Membros do Ministério Público da União De acordo com o art. 108, inciso I, “a”, da Carta Magna, compete ao respectivo Tribunal Regional Federal o processo e julgamento dos membros do Ministério Público da União que atuam na primeira instância, seja pela prática de crime comum, seja pela prática de crime de responsabilidade, ressal­ vada a competência da Justiça Eleitoral.

Os membros do Ministério Público da União que oficiam na primeira instância são: a) 588. STJ - AgRg na Rp 368/BA - Corte Especial - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 15/05/2008.

589. Uma vez implementada a aposentadoria do agente público, descabe cogitar de prerrogativa de foro: STF, 1a Turma, HC 89.677/ES, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 147 22/11/2007. 590. STF, Pleno, RE 549.560/CE, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/03/2012.

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Procuradores da República (MPF), junto ao juízo federal; b) Promotores e Procuradores da Justiça Militar da União (MPM), junto aos Juízes-Auditores e Conselhos Permanentes e Especiais da Justi­ ça Militar da União; c) Procuradores do Trabalho (MPT), junto ao juízo do trabalho; d) Promotores de Justiça do Distrito Federal (MPDFT), junto ao juízo de direito do Distrito Federal. Logo, eventual crime comum (aí incluídos crimes militares e con­ travenções penais) e de responsabilidade praticado por membros do Ministério Público da União será processado e julgado perante o respectivo Tribu­ nal Regional Federal, ressalvada a competência do Tribunal Regional Eleitoral para o julgamento de crimes eleitorais. Na eventualidade de um membro do Ministério Público da União que atua na primeira instância passar a atuar no âmbito de outro Tribunal Regional Federal, a competência deve ser determinada com base naquele TRF perante o qual atuava por oca­ sião da prática do delito. Ora, consoante dispõe o art. 108,1, “a”, da Constituição Federal, compete aos TRF s processar e julgar, originariamente, os juizes federais da área de sua jurisdição. Logo, idêntico tra­ tamento deve ser conferido aos membros do MPU, tendo em vista que o vocábulo “jurisdição” do texto constitucional também deve ser entendido como “atribuição”.591 Se compete ao Tribunal Regional Federal o processo e julgamento de membros do Ministério Público da União que atuam na primeira instân­ cia, e se o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios integra o MPU, eventual habeas corpus contra ato de membro do MPDFT deve ser proces­ sado e julgado perante o Tribunal Regional Federal da Ia Região, haja vista a possibilidade de resultar do julgamento do writ o reconhecimento da prática de um delito por esse agente (v.g., abuso de auto­ ridade). Esse raciocínio ganha reforço em virtude de simetria com o tratamento dado à competência do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, “d”) e do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, I, “c”) para julgar habeas corpus, quando a coação é exercida por autoridades sujeitas à jurisdição desses tribunais.592* 591. STF, 2a Turma, Pet 7.063/DF, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j.

1°/08/2017.

592. STF, 2a Turma, RE 315.010/DF, Rei. Min. Néri da Silveira, DJ 31/05/2002. No sentido da competência do Tribunal Regional Federal para processar e julgar habeas corpus impetrado em face da instauração de inquérito policial a partir de requisição formulada por Procurador da República: STF, 2a Turma, RE 377.356/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 227 27/11/2008. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao capítulo pertinente à Justiça Federal (Habeas corpus, em matéria criminal

de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade

Com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a incompetência do STM para determinar o trancamento de inquérito policial militar instaurado por requisição do Ministério Público Militar. Considerou-se que, em matéria de competência para o habeas corpus, o sistema da Constituição - com a única exceção daquele em que o coator seja Ministro de Estado (CF, art. 105,1, c e 102,1, e) - seria o de conferi-lo originariamente ao tribunal a que caiba julgar os crimes da autoridade que a impetração situe como coator ou paciente. Assim, se o IPM fora instaurado por requisição de membro do Ministério Público Militar, este deve­ ria figurar como autoridade coatora, cabendo ao respectivo Tribunal Regional Federal o processo e julgamento de eventual habeas corpus impetrado contra a instauração do inquérito.593 Por sua vez, ao Superior Tribunal de Justiça compete o processo e julgamento dos membros do Ministério Público da União que oficiem perante Tribunais (CF, art. 105,1, “a”). Os membros do Mi­ nistério Público da União que atuam perante Tri­ bunais são: Procuradores Regionais da República, Procuradores Regionais do Trabalho e Procuradores de Justiça do Distrito Federal, que oficiam, respec­ tivamente, perante os Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e perante o Tribu­ nal de Justiça do Distrito Federal; os Subprocuradores-Gerais da República, os Subprocuradores-Gerais da Justiça Militar, o Procurador-Geral da Justiça Militar, os Subprocuradores-Gerais do Trabalho e o Procurador-Geral da Justiça do Trabalho, que oficiam perante os Tribunais Superiores.

Quanto ao Procurador-Geral da República, é processado e julgado pelos crimes comuns (aí in­ cluídos crimes eleitorais, militares e contravenções penais) perante o STF (CF, art. 102,1, “a”), ao pas­ so que o julgamento de crimes de responsabilidade compete ao Senado Federal (CF, art. 52, II).

3.2.9. Deputados Estaduais De acordo com o art. 27, § Io, da Constituição Federal, será de quatro anos o mandado dos Depu­ tados Estaduais, aplicando-se lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licen­ ça, impedimento e incorporação às Forças Armadas. Desse dispositivo resulta intensa controvérsia dou­ trinária: estaria o foro por prerrogativa de função cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição), tópico onde este assunto foi discutido com mais profundidade.

593. STF, RMS 27.872/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, julgado em 02/03/2010.

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de deputados estaduais previsto na Constituição Federal? Ou será que tal prerrogativa está prevista exclusivamente nas Constituições Estaduais? Para uma primeira corrente, “a competência dos Tribunais de Justiça para o julgamento dos cri­ mes comuns praticados pelos deputados estaduais decorre do disposto no art. 27, § Io, da CF, que prevê igual tratamento aos referidos parlamentares no que respeita à inviolabilidade e imunidades, e do contido na norma geral do art. 25, que explicita o princípio constitucional federativo”.594 Com a devida vênia, preferimos nos filiar à se­ gunda corrente. E isso porque, a nosso ver, foro por prerrogativa de função não pode ser considerado uma espécie de inviolabilidade, nem tampouco de imunidade. Logo, se deputados estaduais têm foro por prerrogativa de função, o têm por força das Constituições Estaduais, que, a partir do princípio da simetria, asseguram a seus parlamentares referida prerrogativa. De fato, todas as Constituições Esta­ duais preveem foro por prerrogativa de função para deputados estaduais perante o respectivo Tribunal de Justiça. Assim o fazem, entre tantas outras, a Constituição dos estados de Minas Gerais (art. 106, I, “a”) e de São Paulo (art. 74,1). Como dito acima, diante da Emenda Constitucional n° 35/01, também não é mais exigível licença para o processo e julga­ mento de deputados estaduais, independentemente do juízo perante o qual esteja tramitando o proces­ so. Por deliberação da Casa Legislativa, é possível a suspensão do processo e do curso da prescrição, tal qual dispõe a Constituição Federal em relação aos parlamentares federais (art. 53, §§ 3o e 5o).

É pacífico que o Tribunal de Justiça não pode julgar os parlamentares nos crimes não submetidos à Justiça Comum Estadual, como, por exemplo, os pra­ ticados contra bens, serviços ou interesse da União, delitos eleitorais e crimes militares federais, hipótese em que o julgamento caberá, por simetria, ao Tribu­ nal Regional Federal, ao Tribunal Regional Eleitoral e ao Superior Tribunal Militar, respectivamente.595 Mas e se o delito praticado pelo Deputado Es­ tadual for um crime doloso contra a vida? Como visto anteriormente, há quem entenda que o foro por prerrogativa de função de deputados estaduais está previsto na própria Constituição Federal (CF, art. 27, § Io). Ademais, por paralelismo constitucio­ nal, tendo a Carta Magna previsto foro especial para 594. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Op. cit. p. 195.

595. No sentido da competência de Tribunal Regional Federal para processar e julgar deputado estadual acusado da prática de crimes contra o sistema financeiro nacional previstos na Lei n° 7.492/86: STJ, 6a Turma, HC 14.131/PR, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 04/12/2000 p. 111.

os membros do Congresso Nacional, os Estados, ao repetirem em suas Constituições garantia idêntica para os seus parlamentares, estariam apenas refle­ tindo em seus textos o dispositivo da Constituição Federal. Estaria, assim, o foro por prerrogativa de função previsto para Deputados Estaduais em per­ feita sincronia com a Carta Magna. Logo, se o foro perante o Tribunal de Justiça previsto para Deputados Estaduais também consta da Constituição Federal, deve prevalecer sobre a competência constitucional do Tribunal do Júri pelo princípio da especialidade.596 Em sentido contrário, outra corrente sustenta que, na medida em que o foro por prerrogativa de função de deputados estaduais somente está previsto nas Constituições locais, deve prevalecer a compe­ tência do Júri sobre a do Tribunal de Justiça. Per­ ceba-se que a Constituição Federal manda aplicar a deputados estaduais apenas as regras previstas na Carta Magna sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licen­ ça, impedimentos e incorporações às Forças Arma­ das (CF, art. TI§ 1°), silenciando quanto a eventual foro por prerrogativa de função. Logo, não pode uma competência por prerrogativa de função prevista ex­ clusivamente em Constituição local prevalecer sobre a competência constitucional do Júri para processar e julgar crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”), tal qual dispõe a súmula n° 721 do STF. Tem prevalecido nos Tribunais Superiores o en­ tendimento de que o foro por prerrogativa de função de Deputados Estaduais está previsto na Constitui­ ção Federal. Logo, deve prevalecer a competência do Tribunal de Justiça para processar e julgá-los pela prática de crimes dolosos contra a vida. Nesse sen­ tido, em caso concreto apreciado pela 5a Turma do STJ envolvendo vários acusados, concluiu-se pelo desmembramento do processo, devendo ser fixada a competência do Tribunal de Justiça para processar o deputado estadual, cabendo ao Tribunal do Júri o julgamento dos demais coautores.597

3.2.10. Prefeitos municipais Compete ao Tribunal de Justiça do respecti­ vo Estado o julgamento de prefeitos municipais, 596. Entre outros, é essa a posição de Aury Lopes Jr (op. cit. p. 440). 597. STJ, 5a Turma, REsp 738.338/PR, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 21/11/2005 p. 292. Há um precedente do Supremo, porém com julga­ mento ocorrido em 18/03/81, no sentido da competência doTribunal de Justiça para processar ejulgar deputado estadual acusado de crime dolo­ so contra a vida, por força do princípio da simetria: STF, Pleno, HC 58.410/ RJ, Rei. Min. Moreira Alves, j. 18/03/1981. No sentido da competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar deputado estadual acusado da prática de crime doloso contra a vida: STJ, 3a Seção, CC 105.227-TO, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/11/2010.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

independentemente de prévio pronunciamento da Câmara dos Vereadores (CF, art. 29, X), quando se tratar de crimes comuns, assim considerados aqueles tipificados no art. Io do Decreto-lei n° 201/67.598 Aliás, vale lembrar que, de acordo com a Sú­ mula n. 703 do STF, a extinção do mandato do Prefeito não impede a instauração de processo pela prática dos crimes previstos no art. Io do Dec.-lei n° 201/67. Por sua vez, segundo o disposto na sú­ mula n. 164 do STJ, o prefeito municipal, após a extinção do mandato, continua sujeito a processo por crime previsto no art. Io do Dec.-lei n° 201, de 27 de fevereiro de 1967.

Como a Constituição Federal dispõe que Pre­ feitos Municipais devem ser julgados pelo Tribunal de Justiça, silenciando quanto ao órgão jurisdicional (v.g., se pelo órgão especial ou por uma turma), a jurisprudência entende que o julgamento pode ser feito por órgão fracionário, a teor do Regimento Interno do Tribunal.599

Na medida em que a Constituição Federal, em seu art. 29, inciso X, limitou-se a dizer julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça, sem es­ pecificar quais os crimes a serem submetidos a esse órgão, entende-se que, na hipótese de crime prati­ cado contra bens, serviços ou interesse da União, competente será o Tribunal Regional Federal, e não o TJ. Pela mesma razão, tratando-se de crime eleitoral, a competência será do Tribunal Regional Eleitoral; em caso de crime militar federal, a com­ petência será do STM. Nesse diapasão, conforme dispõe a súmula 702 do STF, a competência do Tri­ bunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça Comum Estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo Tribunal de segundo grau.600

598. Nesse sentido: STF, Pleno, HC 70.671/PI, Rei. Min. Carlos Velloso,

DJ 19/05/1995. 599. Como já se pronunciou o Supremo, "cabe, exclusivamente, ao Regimento Interno do Tribunal de Justiça atribuir competência ao Pleno, ou ao Órgão Especial, ou a órgão fracionário, para processar e julgar Prefeitos Municipais (CF, art. 29, X, e art. 96, l,"a"). A Resolução n° 15, de 12.06.91, do Plenário do Tribunal de Justiça goiano, que vigora como Emenda Regimental, atribui competência originária às Câmaras Criminais Isoladas para o julgamento de Prefeitos Municipais, ressalvados os crimes dolosos contra a vida, cuja competência é do Pleno. Improcedência da alegação de incompetência da Primeira Câmara Criminal, para julgar Prefeito Municipal. "Habeas-corpus" conhecido, mas indeferido". (STF HC 73.232/GO - 2a Turma - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 03/05/1996).

600. A propósito: "Crimes comuns praticados por prefeito municipal: competência originaria do Tribunal de Justiça para o julgamento. Eficácia plena e aplicabilidade imediata da norma inscrita no art. 29, VIII, da Cons­ tituição Federal. Crimes eleitorais praticados por prefeito: competência originaria doTribunal Regional Eleitoral. HC 59.503, Relator Ministro Néri da Silveira, 2.Turma. Crimes federais - C.F., art. 109, IV: competência origi­ naria doTribunal Regional Federal. HC 68.967-PR, Plenário; HC 69.649-DF,

Plenário. Crimes do artigo 1. do D.L. 201/67: crimes comuns. Denuncia

Seguindo esse raciocínio, o STJ editou a súmula n° 208: “Compete à Justiça Federal (leia-se: ao res­ pectivo Tribunal Regional Federal) processar e jul­ gar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal”. Por sua vez, segundo a súmula n° 209 do STJ, “Compete à Justiça Estadual (leia-se: ao respectivo Tribunal de Justiça) processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”. Em se tratando de crime doloso contra a vida, a jurisprudência tem afastado a competência do Tribu­ nal do Júri, prevalecendo a competência do Tribunal de Justiça, em virtude do princípio da especialidade.

Por sua vez, quanto ao crime militar contra as instituições militares estaduais, temos que subsiste a competência do Tribunal de Justiça, ainda que exista Tribunal de Justiça Militar no respectivo Estado, na medida em que, por força de mandamento consti­ tucional (CF, art. 125, § 4o), à Justiça Militar dos Estados, compete única e exclusivamente o processo e julgamento dos militares dos Estados. Ocorrida a prescrição da pretensão punitiva de crime comum de responsabilidade de prefeito muni­ cipal, não podem ser aplicadas as penas de perda de cargo e de inabilitação para o exercício de cargo ou função pública previstas no § 2o do art. Io do Decre­ to-lei 201/1967. Isso porque as sanções previstas no referido dispositivo têm caráter acessório, razão pela qual a extinção da pretensão punitiva com relação à aplicação da pena privativa de liberdade impede a aplicação da pena acessória.601

No caso de crimes de responsabilidade pratica­ dos por Prefeitos Municipais (infrações político-ad­ ministrativas), que são os tipificados no art. 4o do De­ creto-lei n° 201/67, a competência para julgamento é da Câmara Municipal. O processo pressupõe que o Prefeito Municipal esteja no exercício do mandato, na medida em que a única sanção prevista é a cas­ sação do mandato. Encontra-se superado, portanto, o enunciado da súmula 301 do Supremo Tribunal Federal, que previa como condição para a ação penal o afastamento do prefeito do cargo por impeachment, ou à cessação do exercício por outro motivo. 3.2.11. Vereadores

Apesar de serem dotados de inviolabilidade por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município (CF, apresentada após a extinção do mandato do prefeito: a ação penal deve prosseguir. Reformulação da jurisprudência do SupremoTribunal Federal. HC 70.671 -PI, Min. Carlos Velloso, Plenário, 13.04.94. Constitucionalidade do D.L. 201, de 1967: HC 70.671-PI e HC 69.850-RS". (STF - RE 149.544/ MA - 2a Turma - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 30/06/1995).

601. STJ, 5aTurma, AgRg no REsp 1.381,728/SC, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze,j. 17/12/2013.

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art. 29, inciso VIII), vereadores não são dotados de foro por prerrogativa de função. Ocorre que algumas Constituições Estaduais passaram a prever que vereadores seriam dotados de foro por prerro­ gativa de função (v.g., Constituição do Estado do Rio de Janeiro).

Não obstante, como visto acima (Constituições Estaduais e princípio da simetria), essa previsão de foro por prerrogativa de função para vereadores configura inequívoca violação ao princípio da si­ metria, sendo inviável que Constituições Estaduais outorguem foro por prerrogativa de função a ve­ readores. Não por outro motivo, em julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, foi declarada a suspensão da eficácia do art. 349 da Carta Política Fluminense, que estendia a vereadores do Estado do Rio de Janeiro as prerrogativas processuais de Deputado Estadual previstas no art. 102, § Io, da mesma carta.602 Seguindo o mesmo raciocínio, o Supremo con­ cluiu pela competência do Tribunal do júri para o processo e julgamento de crime doloso contra a vida praticado por vereador: não poderia prevalecer so­ bre a competência constitucional do júri (art. 5o, XXXVIII, “d”) norma constitucional estadual que atribuía foro especial por prerrogativa de função a vereador para ser processado perante o Tribunal de Justiça, não só por tal matéria não ser enquadrável no art. 125, § Io, da Carta Magna, mas também pelo fato de a regra do art. 29, X, da Constituição Federal, não compreender o vereador.603

4. QUADRO SINÓPTICO DE COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO Função Presidente da República

Espécie de infração

Órgão jurisdicional competente

crime comum*

STF (CF, art. 102,1, “b”)

Função

Espécie de infração

Órgão jurisdicional competente

Presidente da República

crime de res­ ponsabilidade

Senado Fede­ ral (CF, art. 52,1)

crime comum

STF (CF, art. 102,1, “b”)

crime de res­ ponsabilidade

Senado Fede­ ral (CF, art. 52,1)

crime comum

STF (CF, art. 102,1, “b”)

crime de res­ ponsabilidade

respecti­ va Casa Legislativa

crime comum

STF (CF, art. 102,1, “b”)

crime de res­ ponsabilidade

Senado Fede­ ral (CF, art. 52, II)

crime comum

STF (CF, art. 102,1, “b”)

crime de res­ ponsabilidade

Senado Fede­ ral (CF, art. 52, II)

crime comum

Depende do cargo de origem.

crime de res­ ponsabilidade

Senado Fede­ ral (CF, art. 52, II)

crime comum

STF (CF, art. 102,1, “c”)

crime de res­ ponsabilidade

STF (CF, art. 102,1, “c”)

crime de res­ ponsabilidade conexo com o Presidente da República

Senado Fede­ ral (CF, art. 52,1)

crime comum

STF (CF, art. 102,1, “b”)

crime de res­ ponsabilidade

Senado Fede­ ral (CF, art. 52, II)

Vice-Presidente

Deputados Federais e Senadores

Ministros do STF

Procurador-Geral da República

Membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do MP

Ministros de Estado e Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica

602. STF, Pleno, ADI 558 MC/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 16/08/1991, DJ 26/03/1993. 603. STF, 2a Turma, RHC 80.477/PI, Rei. Min. Néri da Silveira, DJ 04/05/2001. Em sentido diverso, a 5a Turma do STJ entendeu que Cons­ tituição Estadual pode atribuir competência ao respectivo Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, vereador, por ser agente político, ocupante de cargo eletivo, integrante do Legislativo municipal, o qual encontra simetria com os cargos de deputados estaduais, federais

e senadores: STJ, 5a Turma, HC 40.388/RJ, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/10/2005 p. 401. Mais recentemente, a 2a Turma do STF também concluiu que não afronta a Constituição Federal a norma de Constituição estadual que atribui competência originária ao Tribunal de Justiça para

processar e julgar vereador; STF, 2a Turma, RE 464.935/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 03/06/2008, DJe 117 26/06/2008.

Advogado-Geral da União

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Função Membros dos Tribunais Superiores (STJ/ TSE/STM/TST), do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente

Espécie de infração

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

Órgão jurisdicional competente

STF (CF, art. 102,1, “c”)

crime comum

STJ (CF, art. 105,1, “a”)

crime de res­ ponsabilidade

Tribunal Especial (Lei n° 1.079/50, art. 78)

Vice-Governador de Estado

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

Depende da Constituição Estadual (em regra, TJ)

Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do DF

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

STJ (CF, art. 105,1, “a”)

Governador de Estado

Desembargadores Federais (membros dos TRF’s), membros dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

Membros dos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

Membros do Ministério Público da União que oficiam perante tribunais

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

STJ (CF, art. 105,1, “a”)

Espécie de infração

Órgão jurisdicional competente

crime comum

Depende da Constituição Estadual (em regra, TJ)

crime de res­ ponsabilidade

Assembléia Legislativa do Estado

crime federal

Tribunal Re­ gional Federal

crime eleitoral

Tribunal Re­ gional Eleitoral

Juizes Federais, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

TRF (CF, art. 108,1, “a”)

crime eleitoral

TRE

Membros do Ministério Público da União (MPM/MPT/ MPDFT/MPF) que atuam na Ia instância

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

TRF (CF, art. 108,1, “a”)

crime eleitoral

TRE

Juizes Estaduais e do Distrito Federal (inclusive Juizes de Direito do Juízo Militar e membros dos Tribunais de Justiça Militar)

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

TJ (CF, art. 96, III)

crime eleitoral

TRE

crime comum

TJ (CF, art. 96, III)

crime de res­ ponsabilidade

Poder Legisla­ tivo Estadual ou Distrital (CF, art. 128, §4°)

crime de res­ ponsabilidade conexo com Governador de Estado

Tribunal Especial

crime eleitoral

Tribunal Re­ gional Eleitoral

Função

Deputados estaduais

STJ (CF, art. 105,1, “a”) ProcuradorGeral de Justiça

STJ (CF, art. 105,1, “a”)

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Função Membros do Ministério Público Estadual (Promotores e Procuradores de Justiça)

Prefeitos

Espécie de infração

Órgão jurisdicional competente

crime comum/ crime de res­ ponsabilidade

TJ (CF, art. 96, UI)

crime eleitoral

TRE

crime comum

TJ (CF, art. 29, X)

crime de res­ ponsabilidade

Câmara de Vereadores (CF, art. 31)

crime federal

TRF

crime eleitoral

TRE

*. Como visto no item “dicotomia entre crime comum e crime de responsabilidade”, a expressão crime comum abrange o crime eleitoral, o crime doloso contra a vida, o crime militar e até mesmo as contravenções penais.

CAPÍTULO IV

COMPETÊNCIA TERRITORIAL 1. INTRODUÇÃO Uma vez estabelecida a competência de Justi­ ça, ou seja, se se trata de crime de competência da Justiça Militar (da União ou dos Estados), Eleito­ ral, Federal ou Estadual, verificando-se, ademais, se o acusado tem (ou não) foro por prerrogativa de função, torna-se importante estabelecermos em qual juízo eleitoral, militar, federal (Seção/Subseção Judiciária) ou estadual (comarca) deverá tramitar o processo, fixando-se, então, a competência territo­ rial, também conhecida como competência de foro. Esta, como deixa claro o art. 69, incisos I e II, do CPP, poderá ser determinada pelo lugar da infração ou pelo domicílio ou residência do réu.

Antes de ingressarmos na análise da compe­ tência ratione loci, vale lembrar que, ao contrário da competência ratione materiae, ratione personae, e das hipóteses de competência funcional, a compe­ tência de foro é espécie de competência relativa, do que derivam importantes consequências. Competência relativa é aquela estabelecida atendendo a um interesse preponderante das par­ tes. Essa competência pode, portanto, ser modifi­ cada (prorrogável), seja por meio da conexão ou

da continência, seja pela vontade das partes, por meio da não-interposição da respectiva exceção de incompetência, ou até mesmo pelo seu não-reconhecimento de ofício pelo juiz. Ademais, diversa­ mente da incompetência absoluta, a incompetência relativa deve ser arguida no momento oportuno, sob pena de preclusão. Esse momento oportuno, para a acusação, é antes do oferecimento da peça acusa­ tória, e, para a defesa, quando do oferecimento da resposta à acusação (CPP, art. 396-A, com redação dada pela Lei n° 11.719/08). Por fim, não se pode olvidar que tanto a incompetência absoluta quanto a relativa podem ser reconhecidas de ofício pelo juiz (CPP, art. 109).604

2. COMPETÊNCIA TERRITORIAL PELO LUGAR DA CONSUMAÇÃO DA INFRAÇÃO Segundo o disposto no art. 70, caput, do Códi­ go de Processo Penal, a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a in­ fração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. A justificativa para a tramitação do processo no local onde se consumou a infração penal é a de que o agente deve ser processado (e, eventualmen­ te, condenado) no lugar onde perturbou a ordem jurídica e se fizeram sentir os efeitos de sua infra­ ção penal, com vistas a tranquilizar o meio social alarmado. Outra importante justificativa reside na maior facilidade de se colher provas no local em que o crime se consumou.

Assim, a título de exemplo, caso um agente pra­ tique um delito de furto na cidade de São Paulo, sendo preso em flagrante em virtude de perseguição quando já se encontrava no município de Guarulhos (CPP, art. 302, III), a competência territorial para processar e julgar o referido delito será da comarca de São Paulo, levando-se em conta que nesta cidade se consumou o delito de furto (locus delicti commissi). Nesse caso, não se pode confundir a atribuição para a lavratura do auto de prisão em flagrante com a competência para processar e julgar o feito. Isso porque, segundo o art. 290, caput, do CPP, o auto de prisão em flagrante deve ser lavrado pela autoridade do local em que se der a captura, o que, no entanto, não altera a competência do juízo da comarca de São Paulo para processar e julgar o crime de furto (CPP, art. 70, caput, Ia parte). 604. No sentido de que a inobservância da competência ratione loci implica nulidade relativa, que deve ser arguida oportunamente, sob pena

de preclusão: STF, Ia Turma, HC 83.563/MS, Rei. Min. Carlos Britto, DJ

19/12/2003.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Não se pode confundir o disposto no art. 70 do CPP, que fixa a competência territorial pelo lugar da consumação da infração penal, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução, com o preceito constante do art. 6o do Código Penal, que adota a teoria da ubiquidade, considerando praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. Enquanto o dispositivo do art. 70 do CPP tem como destinatário os crimes praticados, integralmente, dentro do território brasileiro, o art. 6o do CP funciona como uma regra para a aplicação da norma penal no espaço, ou seja, quando o crime atingir mais de uma nação. Destarte, aplicar-se-á a teoria da ubiquidade ao delito que tenha tido início em um país estrangeiro, findando-se em território nacional, ou vice-versa. Preserva-se, assim, a sobe­ rania brasileira para processar e julgar o referido delito, desde que uma parte da infração penal te­ nha tocado o território nacional. A propósito, em caso concreto apreciado pelo STJ, versando sobre sequestro ocorrido no aeroporto de Tupã/SP, com posterior traslado da vítima por meio de aeronave para o Paraguai, onde foi morta, considerou o STJ que, no caso, tendo o iter criminis se iniciado no território nacional, pois foi no aeroporto de Tupã que o ofendido perdeu sua liberdade, mostrava-se indiscutível a competência da Justiça Comum Esta­ dual e aplicação da lei brasileira ao caso, tendo em conta o princípio da territorialidade e a teoria da ubiquidade consagrados na lei penal.605

Quando se tratar de tentativa, o foro compe­ tente será determinado pelo local em que tiver sido praticado o último ato executório, como dispõe o art. 70, caput, infine, do CPP. Usando o exemplo dado por Heráclito Antônio Mossi, se “A”, na cidade de Ribeirão Preto, desfecha um tiro em “B”, atingindo-o em um dos braços, e a vítima, ao fugir do local, é perseguida pelo autor do disparo e alcançada na cidade de Sertãozinho, onde lhe é desfechado novo tiro que atinge noutro braço, onde em seguida popu­ lares arrebatam a arma de “A”, impossibilitando as­ sim que mate “B”, o foro competente para a solução do caso concreto será o da comarca de Sertãozinho, vez que aí foi realizado o último ato de execução.606 Tem-se, pois, que a infração penal deve ser pro­ cessada e julgada no lugar em que se consumou a in­ fração penal. Mas quando se tem por consumado o crime? De acordo com o art. 14, inciso I, do Código 605. STJ, 5a Turma, HC 41.892/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 02/06/2005, DJ 22/08/2005 p. 319.

606. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1997. v. 1. p. 436.

Penal, quando estão reunidos todos os elementos da definição legal do crime. Essa regra, aparente­ mente simples, acaba-se tornando complexa em determinadas situações, razão pela qual pensamos ser oportuna a análise das diversas espécies de cri­ mes, apontando quando se dará sua consumação, e a respectiva fixação da competência territorial.

3. CASUÍSTICA 3.1. Quanto às espécies de infração penal Há de se ficar atento à espécie de crime para fins de fixação da competência territorial. Vejamos alguns exemplos:

a) Crimes de mera conduta: em relação a esses delitos, o tipo penal não prevê qualquer resultado naturalístico. O tipo penal consiste, basicamente, na narrativa de algum comportamento que se queira proibir ou impor, não fazendo menção à produção de qualquer resultado material. Como exemplos, podemos citar os crimes de violação de domicílio (CP, art. 150) e ato obsceno (CP, art. 233). Tais cri­ mes consumam-se com a simples prática da con­ duta, sendo o local da conduta, portanto, o foro competente para processar e julgar o delito;

b) Crimes formais: essas infrações penais pre­ veem um resultado naturalístico, que, no entanto, não precisa ocorrer para que se verifique a consu­ mação do delito, razão pela qual também são co­ nhecidas como crimes de consumação antecipada ou delitos de resultado cortado. Em relação a tais delitos, o legislador antecipa a punição, não exigin­ do a produção de qualquer resultado naturalístico, que, se ocorrer, configurará mero exaurimento da conduta antecedente, a exemplo do que ocorre com o crime de extorsão previsto no art. 158 do CP. Imagine-se o seguinte exemplo: determinado indivíduo, recolhido a um presídio em Bangu/RJ, efetua liga­ ções para alguém que está em Santos/SP, exigindo o pagamento de vantagem indevida, sob pena de cau­ sar mal a um ente querido, operando-se a entrega da quantia a um comparsa na cidade de Florianópolis/ SC. Nesse exemplo, não se pode confundir o local da conduta (Bangu/RJ), nem tampouco o local de seu exaurimento (importante lembrar que o exau­ rimento consiste numa ocorrência típica posterior à consumação do delito) - Florianópolis/SC -, onde se deu a obtenção da vantagem ilícita, com o local da consumação do crime de extorsão - Santos/SP -, o qual deverá determinar o foro competente para processar e julgar o delito;607 607. Nessa linha: STF, ACO 889/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, 11.9.2008. No sentido de que crime de extorsão na modalidade de comunicação

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c) Crimes materiais: são aqueles cuja consuma­ ção depende da produção naturalística de um deter­ minado resultado, expressamente previsto pelo tipo penal, tal como se dá com os crimes de homicídio, infanticídio, etc. Como esses crimes consumam-se com a produção do resultado, o foro competente é o do local do resultado. A título de exemplo, como o crime material de peculato-desvio (CP, art. 312, caput, segunda parte) consuma-se quando o funcio­ nário público efetivamente desvia o dinheiro, valor ou outro bem móvel, figurando o local da obten­ ção da vantagem como mero exaurimento do delito, compete ao foro do local onde efetivamente ocorrer o desvio de verba pública - e não ao do lugar para o qual os valores foram destinados - o processamento e julgamento da ação penal;608

d) Crimes qualificados pelo resultado: ocor­ rem quando o agente atua com dolo na conduta e dolo quanto ao resultado qualificador, ou dolo na conduta e culpa no que diz respeito ao resultado qualificador (crime preterdoloso), a exemplo do que ocorre com o crime de lesão corporal qualificada pelo resultado aborto (CP, art. 129, § 2o, V). Em relação a tais delitos, firma-se a competência pelo local da produção do resultado qualificador; e) Crimes permanentes: são aqueles cuja con­ sumação se prolonga no tempo. Ora, se o crime per­ manente tem sua consumação perpetuando-se no tempo, pode-se dizer que sua consumação ocorre enquanto durar a permanência, fixando-se daí a competência territorial para processar e julgar o referido delito. Caso esse crime permanente seja praticado em duas ou mais comarcas, a competência será determinada pela prevenção, consoante dispõe o art. 71 do CPP;

f) Infrações em continuidade delitiva: diz-se continuada a infração quando o agente, median­ te mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras seme­ lhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro (CP, art. 71, caput). A tí­ tulo de exemplo, suponha-se que Tício, em data de por telefone de falso sequestro com exigência de resgate por meio de depósito bancário deve ser processado e julgado no local em que ocorre o constrangimento para que se faça ou se deixe de fazer alguma coisa: STJ, 3a Seção, CC 115.006/RJ, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/3/2011. Em outro julgado acerca de crime formal, porém relacionado à extorsão praticada por mensagens eletrônicas enviadas pela internet, concluiu o STJ pela fixação da competência a partir do lugar do recebimento das mensagens eletrônicas, pois neste local teria se dado o constrangimento da vítima: STJ - CC 40.569/SP - 3a Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 05/04/2004 p. 201. 608. Nesse contexto: STJ, 3a Seção, CC 119.819/DF, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 14/08/2013, DJe 20/08/2013.

10 de janeiro de 2008, pratique um crime de roubo contra um taxista na cidade de Bicas/MG. Cinco dias depois, o agente, valendo-se do mesmo modus operandi, pratica novo crime de roubo contra taxis­ ta, porém o faz na cidade de Matias Barbosa/MG. Dois dias mais tarde, outro crime de roubo, também contra um motorista de táxi, mas desta feita em Juiz de Fora/MG. Questiona-se: onde deverá tramitar o processo? Por força do art. 71 do CPP, a competên­ cia será firmada pela prevenção. Caso a regra do art. 71 do CPP não seja observada, e, a despeito do caráter continuado da infração, sejam oferecidas 3 (três) peças acusatórias (uma em cada comarca), deve o juízo prevento (aquele que se antecipou aos demais na prática de algum ato decisório, ainda que em momento anterior ao oferecimento da denúncia ou queixa) avocar os processos que corram perante os outros juizes, salvo se já estiverem com sentença definitiva (CPP, art. 82), hipótese em que caberá ao juízo das execuções a unificação das penas; g) Crimes plurilocais (princípio do esboço do resultado): são as infrações penais em que a ação e o resultado ocorrem em lugares distintos, porém ambos dentro do território nacional. De modo al­ gum se confundem com os crimes à distância, ou de espaço máximo. Aqueles ocorrem dentro do territó­ rio nacional, porém em lugares distintos; estes, em dois Estados soberanos. O exemplo mais comum de crime plurilocal é o do homicídio doloso, em que o agente efetua disparos contra a vítima em uma comarca “A”, sendo esta levada de ambulância ao pronto-socorro do hospital da comarca “B” em bus­ ca de melhores recursos médicos, onde falece logo em seguida. A análise desses crimes plurilocais so­ mente tem pertinência aos crimes materiais, ou seja, aqueles em que pode haver nítida dissociação entre a ação (ou omissão) e o resultado. Dito de outra for­ ma, não faria sentido chamar de plurilocal a infra­ ção penal de mera atividade (crimes formais ou de mera conduta), já que o resultado se dá justamente no instante da prática da ação ou omissão. Deveras, se a produção do resultado naturalístico descrito no tipo não for indispensável à configuração do crime, exatamente o que se dá em relação aos crimes for­ mais e de mera conduta, o delito estará consumado com a simples conduta, mesmo que o resultado (no crime formal) ocorra em outro lugar. No caso de crimes plurilocais, atentando-se para a regra do art. 70 do CPP, a competência deveria ser determinada pelo lugar em que se produziu o resultado morte (consumação do crime de homicídio) - comarca “B”. No entanto, a despeito da regra inscrita no art. 70 do CPP, e em verdadeira hermenêutica contra legem, tem prevalecido na jurisprudência o entendimento

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de que, nesses casos de crimes plurilocais, a com­ petência ratione loci deve ser determinada não pelo local em que ocorreu o resultado morte, mas sim pelo local em que a conduta foi praticada. É o que Fernando de Almeida Pedroso denomina de princí­ pio do esboço do resultado.609 E isso por dois mo­ tivos básicos. A uma porque o desenvolvimento do processo perante o local da conduta atende ao prin­ cípio da busca da verdade, otimizando a produção de provas, mormente se levarmos em consideração que testemunhas não são obrigadas a se deslocar a outra comarca para que sejam ouvidas.610 A duas por questões de política criminal: a punição do au­ tor da infração penal no lugar onde ela se realizou preserva uma das funções e finalidades da pena, que é o seu caráter intimidatório geral, ou seja, pune-se o criminoso para sinalizar à sociedade o mal que pode advir da prática do delito.611 É dominante o entendimento no sentido de que o foro competente para o processo e julgamento de crimes plurilocais de homicídio é aquele em que mais efetivamente puderem ser produzidas as provas que ajudem no acertamento do fato delituoso, pouco importando se se trata de crime doloso ou culposo.612 Não por outro motivo, em caso concreto de crime plurilocal de homicídio culposo imputado a médico, no qual o atendimento teria ocorrido em um município e a vítima falecera em outro, a Ia Turma do Supremo concluiu ser possível excepcionar a regra do art. 70 do CPP para se firmar a competência territorial com base no lugar dos atos executórios;613 h) Crimes à distância ou de espaço máximo: são as infrações penais em que ação e omissão ocor­ rem no território nacional, e o resultado no estran­ geiro, ou vice-versa. Pela regra do art. 6o do Código 609. Op. cit. p. 54.

610. No sentido de que o local dos atos executórios pode ser utili­ zado, em situações excepcionais, para fins de fixação da competência territorial em razão da necessidade de se dar eficiência à produção das

provas, deixando-se de lado a regra constante do art. 70 do CPP: STJ, 5a Turma, AgRg no HC531.810/PR, Rei. Min. Joel llan Paciornik,j. 05.05.2020.

611. Nesse contexto: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5a ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2008. p. 250. 612. Em caso concreto relativo a homicídio culposo, a 3a do STJ con­ cluiu que a jurisprudência desta Corteja firmou entendimento no sentido de que a competência para o conhecimento e julgamento do crime de homicídio, em regra, é determinada pelo lugar em que se consumou a infração, ou seja, pelo lugar onde ocorreu a morte da vítima, sendo esta passível de modificação na hipótese em que outro seja o local que melhor sirva para a formação da verdade real: STJ - CC 34.557/PE - 3a Seção Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 10/02/2003 p. 169. Na mesma linha: STJ - 5a Turma - RHC 793/SP - Rei. Min. Edson Vidigal - DJ 05/11/1990. No sentido da competência do local onde a conduta foi executada, e não o da comarca onde foi produzido o resultado: STJ, 5a Turma, REsp 122.927/RJ, Rei. Min. Edson Vidigal, DJ 08/09/1997 p. 42.543. E ainda: STJ, 6a Turma, HC 196.458/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 06/12/2011.

613. STF, 1aTurma, RHC 116.200/RJ, Rei. Min. DiasToffoli,j. 13/08/2013.

Penal (teoria da ubiquidade), é indispensável que os atos executórios (ação ou omissão) sejam prati­ cados no território nacional, ou que pelo menos o resultado ocorra no território nacional. A título de exemplo, imagine-se que Tício, na cidade de Pacaraima, localizada em Roraima, efetue disparos de arma de fogo contra Mévio; este, gravemente ferido, é levado para a cidade vizinha de Santa Helena de Uairén, localizada em território venezuelano, onde se dá o óbito. Perceba-se que a simples prática de atos preparatórios no território nacional, dando-se a execução do crime e a produção de seu resultado em território estrangeiro, não autoriza a incidência da lei penal brasileira, que demanda a prática de atos executórios ou a ocorrência do resultado no território nacional. Portanto, a prática de meros atos preparatórios afasta a incidência da lei penal brasi­ leira, salvo se restar caracterizada uma das hipóteses de extraterritorialidade da lei penal brasileira (CP, art. 7o, incisos I e II).614 Já foi visto anteriormente que, pela regra do art. 6o do CP, a lei penal brasi­ leira é aplicável ao crime cometido no todo ou em parte no território nacional, ou ao que nele tenha produzido ou devia produzir seu resultado. Mas, nessas circunstâncias, qual seria o foro competente para o processo e julgamento do crime? De acordo com o art. 70, § Io, do CPP, se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no Brasil, o último ato de execução. Logo, no exemplo dado, a competência será do juízo responsável pela cidade de Pacaraima/RR. Imaginando que o exemplo seja o inverso, ou seja, que os disparos tenham sido efetuados na cidade venezuelana, operando-se o resultado morte em território nacional, aplicar-se-á raciocínio se­ melhante, porém com fundamento no art. 70, § 2o, do CPP, segundo o qual quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional, será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado. Por fim, segundo o art. 70, § 3o, quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção; i) Crimes cometidos no estrangeiro:615 a regra é a aplicação da lei penal brasileira, sem prejuízo 614. Com entendimento semelhante: PEDROSO, Fernando de Almeida. Op. cit. p. 68.

615. Para mais detalhes acerca da "Justiça" competente para o proces­ so e julgamento de crimes cometidos integralmente fora do território

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de convenções, tratados e regras de direito inter­ nacional, ao crime cometido no território nacional (CP, art. 5o, caput). Contudo, não se pode perder de vista que o art. 7° do Código Penal lista uma série de crimes que ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro. Diversamente do que se dá com os crimes à distância, em que pelo menos uma parte do crime deve ter tocado o território nacional, os crimes cometidos no estran­ geiro têm sua ação (ou omissão) e resultado produ­ zidos integralmente no estrangeiro. Mesmo assim, por força do art. 7o do Código Penal, sujeitam-se à lei penal brasileira. Nesse caso, indaga-se: a quem pertence a competência ratione loci? A resposta à indagação consta do art. 88 do CPP: “no processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.616 Outrossim, em se tratando de crime da alçada militar federal cometido fora do território nacional (ex: crime militar cometido por Militar do Exército atuando na Força de Paz no Haiti), o processo e julgamento ficarão afetos à 11a Circunscrição Judiciária Militar, localizada em Brasília/DF, em face do disposto no art. 91 do CPPM; j) Infrações cometidas a bordo de embar­ cações ou aeronaves: antes de se analisar a com­ petência territorial para processar e julgar essas infrações, afigura-se indispensável analisar se esse crime está (ou não) sujeito à lei penal brasileira. Para tanto, devemo-nos socorrer do Código Penal, o qual considera como extensão do território na­ cional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasi­ leiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respec­ tivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar (CP, art. 5o, § Io). Além disso, também se aplica a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de pro­ priedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo cor­ respondente, e estas em porto ou mar territorial no Brasil (CP, art. 5o, § 2o). Exemplificando, caso um crime qualquer seja cometido a bordo de uma em­ barcação estrangeira de propriedade privada no mar nacional, remetemos o leitor ao Capítulo II do presente Título, mais pre­ cisamente ao item 4.3.21. ("Crimes cometidos no estrangeiro"). 616. Reconhecendo a competência do juízo da cidade de São Paulo

para o processo e julgamento de crime praticado no estrangeiro por brasileiro que havia residido em Ribeirão Preto, nos termos do art. 88 do CPP: STF, 1aTurma, HC 105.461/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 29/03/2016.

territorial brasileiro, ainda que por um estrangeiro, tem-se que será aplicável a lei penal brasileira.617 Mas, nessas circunstâncias, questiona-se: qual será o juízo competente? A resposta do art. 89 do CPP: “os crimes cometidos em qualquer embarcação nas águas territoriais da República, ou nos rios e lagos fronteiriços, bem como a bordo de embarcações na­ cionais, em alto-mar, serão processados e julgados pela justiça do primeiro porto brasileiro em que tocar a embarcação, após o crime, ou, quando se afastar do país, pela do último em que houver toca­ do”.618 Na mesma linha, dispõe o art. 90 do CPP que “os crimes praticados a bordo de aeronave nacional, dentro do espaço aéreo correspondente ao território brasileiro, ou ao alto-mar, ou a bordo de aeronave estrangeira, dentro do espaço aéreo correspondente ao território nacional, serão processados e julgados pela justiça da comarca em cujo território se veri­ ficar o pouso após o crime, ou pela da comarca de onde houver partido a aeronave”. Subsidiariamente, caso não seja possível determinar-se a competência com base nos critérios previstos nos arts. 89 e 90 do CPP, fixar-se-á a competência com base na preven­ ção (CPP, art. 91). Ex: suponha-se que um avião que tenha cruzado o território nacional, sem pousar em qualquer localidade, venha a cair no mar territorial brasileiro. Como não é possível se estabelecer o local da partida, nem tampouco o do pouso, o primeiro magistrado que praticar algum ato com conteúdo decisório acerca do fato delituoso estará prevento para o julgamento do processo. Registre-se, por fim, que crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves são de competência da Justiça Federal, ressalvada a competência da Justiça Militar (CF, art. 109, inciso IX);619 617. Como adverte Tourinho Filho (op. cit. p. 188), "na hipótese de ocorrer um crime a bordo de um navio que esteja singrando os nossos

mares, sem tocar em qualquer dos nossos portos após o crime, somente será aplicada a lei penal brasileira se a infração apresentar reflexo no terri­ tório pátrio. Logo depois doTratado de Montego Bay, foi promulgada a Lei n° 8.617/93, cujo art. 3o reconhece o direito de passagem inocente no mar territorial brasileiro. E considera-se inocente a passagem desde que a

infração não seja prejudicial à paz, à boa ordem ou à segurança do Brasil".

618. Se o crime ocorrer em território nacional, o dispositivo legal a ser aplicado será o do art. 89 do CPP; caso contrário, aplicar-se-á a regra do art. 88 do CPP. Na dicção deTourinho Filho (op. cit. p. 201),"se a infração ocorrer em alto-mar ou em espaço aéreo a ele correspondente, e a embar­ cação ou aeronave for estrangeira, para a determinação da competência da Justiça brasileira (se for o caso) a regra invocável será a traçada no art. 88 do CPP. Exemplo: em alto-mar um tripulante norte-americano, em navio mercante norte-americano, comete um crime contra brasileiro. Ora, em rigor, o crime foi cometido em território norte-americano, já que a embarcação ostentando a bandeira dos Estados Unidos estava em alto-mar. Sendo assim, parece-nos inaplicável a regra do art. 89; aplicável será a do art. 88. Se a embarcação fosse brasileira, sim, aplicar-se-ia o art. 89".

619. Para o conceito de navio e aeronave, vide item Competência da Justiça Federal.

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k) Infrações cometidas na divisa de duas ou mais comarcas: supondo-se que um crime seja co­ metido na divisa das comarcas de Vespasiano/MG e Lagoa Santa/MG, não se sabendo, com certeza, em que comarca o delito foi cometido, firmar-se-á a competência pela prevenção, nos exatos termos do art. 70, § 3o, do CPP. Se, porventura, dois processos forem instaurados perante as varas de Vespasiano e Lagoa Santa (um em cada comarca) em relação à mesma imputação, é evidente que um deles deve ser imediatamente trancado, haja vista o princípio do ne bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser processado duas vezes pela mesma imputação. Desse modo, estabelecido o juízo competente pela prevenção, deve ser oposta exceção de litispendência perante o outro juízo (CPP, art. 110), objetivando o trancamento do respectivo processo. Ressalte-se que a prevenção também funciona como critério de fixação de competência quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, tal qual preceitua o § 3o do art. 70 do CPP; l) Crimes previstos na Lei de Imprensa (ADPF n° 130): segundo o disposto no art. 12 da Lei n° 5.250/67, aqueles que, através dos meios de infor­ mação e divulgação, praticassem abusos no exercí­ cio da liberdade de manifestação do pensamento e informação ficariam sujeitos às penas da referida lei e responderíam pelos prejuízos que causassem, sendo considerados meios de informação e divul­ gação os jornais e outras publicações periódicas, os serviços de radiodifusão e os serviços noticiosos. Para fins de fixação da competência territorial em relação aos crimes de imprensa, dispunha o art. 42 da Lei n° 5.250/67 que lugar do delito será aquele em que for impresso o jornal ou periódico, e o local do estúdio do permissionário ou concessionário do ser­ viço de radiodifusão, bem como o da administração principal da agência noticiosa. Em que pese o teor dos dispositivos da Lei de Imprensa, não se pode perder de vista que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 130, julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não-recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.25O/67.620 Como decidiu a própria Suprema Corte, a não-recepção da Lei de Imprensa não impede o curso regular dos processos fundamentados nos dispositivos legais da referida lei, nem tampouco a instauração de novos processos, aplicando-se lhes, contudo, as normas da legislação comum, notadamente, o Código Civil, o

Código Penal, o Código de Processo Civil e o Có­ digo de Processo Penal. Logo, queremos crer que, a despeito da decisão proferida na ADPF n° 130, continue válido o raciocínio constante do art. 42 da não-recepcionada lei de imprensa para fins de deter­ minação da competência territorial. De fato, cuidan­ do-se de periódico de circulação nacional, a opção pelo local de impressão do jornal é a melhor forma de se concentrar a competência para o julgamento de eventuais crimes, atendendo-se ao disposto no art. 70 do CPP. Há de se ter em mente que alguns veículos de comunicação apresentam circulação na­ cional, sendo que os efeitos de um possível crime aí veiculado se propaga por todo o território nacional. Assim, de modo a se fixar a competência territorial, temos que o delito (agora previsto no Código Penal) se consuma no local em que for impresso o jornal ou periódico, no local do estúdio do permissioná­ rio ou concessionário do serviço de radiodifusão, bem como no da administração principal da agência noticiosa. Destarte, na hipótese de crime contra a honra praticado por meio de publicação impressa de periódico, deve-se fixar a competência do Juízo onde ocorreu a impressão, tendo em vista ser o pri­ meiro local onde as matérias produzidas chegaram ao conhecimento de outrem, nos moldes do art. 70 do Código de Processo Penal. Em relação a even­ tuais crimes contra a honra praticados por meio de reportagens veiculadas pela internet, a competência será do Juízo do local onde foi concluída a ação delituosa, ou seja, onde se encontrava o responsável pela veiculação e divulgação de tais notícias;621

m) Crimes falimentares: de acordo com o art. 183 da Lei n° 11.101/05, compete ao juiz criminal da jurisdição onde tiver sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos na referida lei; n) Atos infracionais: na esteira do disposto no art. 147, § Io, da Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Crian­ ça e do Adolescente), nos casos de ato infracional, será competente a autoridade do lugar da ação ou omissão, observadas as regras de conexão, conti­ nência e prevenção; o) crimes contra a honra pela internet: é do­ minante a jurisprudência no sentido de que tais crimes são formais, consumando-se, pois, no exato momento da disponibilização do conteúdo ofensivo no espaço virtual, por força da imediata potenciali­ dade de visualização por terceiros. É dizer, a simples 621. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 106.625/DF, Rei. Min.

620. STF - ADPF n° 130/DF, Rei. Min. Carlos Britto, 30/04/2009.

Arnaldo Esteves lima, j. 12/05/2010, DJe 25/05/2010.

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divulgação do conteúdo supostamente ofensivo na internet já é suficiente para delimitação da compe­ tência, sendo aquela do lugar em que as informações são alimentadas nas redes sociais, irrelevante, pois, o local do provedor, bem como o domicílio da vítima.622

3.2. Quanto aos crimes em espécie Outrossim, vejamos o entendimento jurisprudencial acerca da competência territorial em relação a alguns crimes específicos: a) apropriação indébita: consuma-se o delito previsto no art. 168 do CP no local em que se dá a inversão da posse, independentemente do local onde o bem for encontrado. No entanto, devido à dificuldade de se comprovar o exato momento da apropriação - imagine-se a hipótese de um repre­ sentante comercial que viaja por todo o interior de um estado da federação vendendo produtos - os tribunais têm entendido que, quando não for pos­ sível estabelecer com precisão o local da inversão da posse, o foro competente será o do local onde o elemento subjetivo da apropriação indébita (animus rem sibi habendi) puder ser aquilatado por ele­ mentos objetivos, tais como o lugar da prestação de contas (ou qualquer outro ato a partir do qual o agente externe sua vontade de não restituir o bem que estava em sua posse ou detenção, transforman­ do-as em propriedade);623

b) furto qualificado pela fraude eletrônica por meio da internet-, o delito de furto mediante fraude cometido por meio de dispositivo eletrôni­ co ou informático previsto no art. 155, § 4°-B, do CP, incluído pela Lei n. 14.155, de 27 de maio de 2021, não se confunde com os delitos de estelio­ nato, tipificados no art. 171 do CP. A distinção se faz primordialmente com a análise do elemento co­ mum da fraude que, no furto, é utilizada pelo agen­ te com o fim de burlar a vigilância da vítima que, desatenta, tem seu bem subtraído, sem que se aper­ ceba; no estelionato, a fraude é usada como meio de obter o consentimento da vítima que, iludida, 622. Nessa linha: STJ, 3a Seção, CC 173.458/SC, Rei. Min. João Otávio de Noronha, j. 25.11.2020, DJe 27.11.2020. 623. Em caso concreto apreciado pelo STJ, fixou-se a competência do juízo da comarca em que o acusado entregou o veículo objeto da apro­ priação ao credor, momento em que transformou a posse em proprieda­ de, já que ex-ternou sua vontade em não restituir o bem que estava em sua posse em razão de empréstimo: Precedentes citados: CC 57.125-MT,

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entrega voluntariamente o bem ao agente. Assim, se determinado agente obtiver, para si, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, após induzir alguém em erro, mediante fraude, o delito caracterizado é o de estelionato. No entanto, se a fraude for utilizada para burlar a vigilância exercida pela vítima sobre a res, que tem a coisa subtraída, o delito é o de furto qualificado pela fraude. O exemplo mais comum desse crime pela internet tem ocorrido em situações em que o agente se vale de fraude eletrônica para a retirada de dinheiro de conta bancária, após obter fraudulentamente a senha do cliente. A fraude, nesse caso, é usada para burlar o sistema de proteção e de vigilância do Banco sobre os valores mantidos sob sua guarda. Por isso, tem-se como configurado o crime de furto qualificado, do qual a instituição financeira é a vítima, e o correntista mero prejudi­ cado. A consumação desse crime de furto ocorre no momento em que o bem é subtraído da vítima, saindo de sua esfera de disponibilidade. Portanto, o desapossamento que gera o prejuízo, embora se efetive em sistema digital de dados, ocorre na conta corrente da agência do correntista prejudicado, e não no local onde está o autor do delito;624 c) pedofilia por meio da internet: consuma-se o delito de pedofilia por meio da internet (Lei n° 8.069/90, art. 241-A, com redação dada pela Lei n° 11.829/08) no momento da publicação das imagens, ou seja, aquele em que ocorre o lançamento na in­ ternet das fotografias de pornografia infantil, pouco importando, para fins de fixação da competência, o local em que se encontra sediado o provedor de aces­ so ao ambiente virtual.625 Ainda em relação a crimes cometidos pela internet, porém no tocante ao crime de calúnia decorrente de carta divulgada em blog, via internet, entende-se que o foro para o processo e julgamento da ação é o do lugar do ato delituoso, ou seja, de onde partir a publicação do texto, no caso, o foro do local onde estiver hospedado o servidor;626

d) falso testemunho cometido em carta pre­ catória: a competência é do foro deprecado. De fato, o crime de falso testemunho consuma-se com o encerramento do depoimento prestado pela tes­ temunha, quando a mesma profere afirmação falsa, nega ou cala a verdade, razão pela qual, para a sua apuração, sobressai a competência do Juízo do local

DJ 7/8/2006; CC 16.389-SP; DJ 21/10/1996; CC 1.646-MG, DJ 3/6/1991, e CC 355-PE, DJ 25/9/1989. (STJ - CC 102.103/PR - Rei. Min. MariaThereza de Assis Moura, julgado em 12/08/09). No sentido da competência do local onde deveria ser realizada a prestação de contas para processar e julgar

624. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 67.343/G0, Rei. Min. Laurita Vaz, DJ 11 /12/2007 p. 170. E também: STJ, 3a Seção, CC 72.738-RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 8/8/2007.

crime de apropriação indébita praticado por representante comercial que recebia os valores referentes à venda de mercadorias da empresa repre­

625. STJ, 3a Seção, CC 66.981/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, Dje 05/03/2009.

sentada, sem, no entanto, repassá-los a esta: STJ, 3a Seção, CC 89.067/MG, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ22/02/2008 p. 162.

626. STJ, 3a Seção, CC 97.201 /RJ, Rei. Min. Celso Limongi - Desembar­ gador convocado do TJ/SP -, julgado em 13/04/2011.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

onde foi prestado o depoimento, sendo irrelevante o fato de ter sido realizado por intermédio de carta precatória;627 e) uso de documento falso: o foro competen­ te é determinado pelo local em que o documen­ to foi apresentado. Se o uso do documento falso for cometido pelo próprio autor da falsificação, caracterizado estará um só delito, qual seja o de falsificação, na medida em que o uso é conside­ rado mero exaurimento para o autor do falsum, fixando-se a competência, então, pelo lugar onde a falsificação se consumou, independentemente do local do uso.628 Todavia, caso não seja conhe­ cido o lugar da falsificação, fixa-se a competência pelo local de uso do documento falso.629 Quanto ao juízo federal competente para processar e julgar o delito de uso de passaporte falso, dispõe a súmu­ la n° 200 do STJ que “o juízo federal competente para processar e julgar acusado de crime de uso de passaporte falso é o do lugar onde o delito se con­ sumou”. Destarte, mesmo que a falsidade do pas­ saporte seja constatada por agentes da imigração em um outro país, com posterior deportação do agente para o Brasil, a competência do juízo federal será determinada não pelo local em que o agente desembarcar, mas sim em virtude do local em que o passaporte tiver sido apresentado para embarque. Afinal, no embarque, é imperativa a apresentação do passaporte, consumando-se nesse ato o delito de uso de documento falso, ainda que a verificação da falsidade somente ocorra no estrangeiro e haja posterior deportação e reingresso do nacional.630 Não se pode confundir o delito de uso de passapor­ te falso com o delito de falsificação de documen­ to público, previsto no art. 297 do Código Penal. Nesse caso, a competência será fixada em razão do local onde se efetuou a falsificação.631 Ainda em relação ao crime de uso de passaporte falso, caso o agente seja preso em território nacional ao fazer uso de passaporte estrangeiro falso, tendo em conta 627. STJ, 3a Seção, CC 30.309/PR, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 11 /03/2002, p. 163.

que o delito é praticado em detrimento do serviço prestado na fronteira, em que a União, por meio da Polícia Federal, fiscaliza o controle de ingresso e saída de estrangeiros do país, há de se concluir pela competência da Justiça Federal do local em que o documento foi utilizado;632 f) contrabando ou descaminho: de acordo com a súmula n° 151 do STJ, “a competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens”. Exempli­ ficando, se um agente é surpreendido por policiais federais na cidade de São Paulo, com mercadoria que adentrou o país pela cidade de Foz do Iguaçu, Paraná, a competência da Justiça Federal será deter­ minada não pelo local da entrada do produto, mas sim pelo local da apreensão dos objetos;633

g) exposição à venda de mercadoria em con­ dições impróprias ao consumo: como o núcleo da ação delituosa prevista no art. 7o, IX, da Lei n° 8.137/90, inicia-se e se encerra com a exposição do produto à venda, a competência deve ser determi­ nada em virtude do local em que estiver situada a empresa responsável pela comercialização dos bens ou produtos impróprios para o consumo (local onde o produto foi exposto à venda), e não a partir do foro em que fica a responsável pelo respectivo pro­ cesso de produção e embalagem;634

h) tráfico internacional de droga remetida do exterior pela via postal: quando se trata de tráfico de drogas na modalidade “importar”, consuma-se o delito no instante em que a droga toca o território nacional, entrada essa consubstanciada na apreensão da droga, pelo menos em regra. Nesse caso, revela-se desnecessário que a correspondência chegue ao des­ tinatário final, por configurar mero exaurimento da conduta. Por conseguinte, na hipótese em que drogas enviadas via postal do exterior forem apreendidas na alfândega, caberá ao juízo federal do local da apreen­ são da substância processar e julgar o crime de tráfico internacional de drogas, ainda que a correspondência seja endereçada à pessoa não identificada residente em outra localidade. A propósito, eis o teor da súmula

628. Na visão do STJ,"é de se reconhecer a ocorrência de consunção, quando o uso do documento falso constitui exaurimento do crime de

falsidade ideológica. O uso de documento falso pelo próprio autor da falsificação configura um só crime, qual seja o de falsificação, devendo a competência ser definida pelo lugar onde este delito se consumou". (STJ - CC 31.571/MG - 3a Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 18/02/2002 p. 233).

629. No sentido de que, desconhecendo-se o lugar da falsificação, deve ser fixada a competência pelo local de uso do documento falso: STJ, 6a Turma, HC 22.519/MS, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 17/02/2003 p. 375.

630. Nessa linha: STJ, 3a Seção, CC 46.728/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 26/09/2005 p. 172. 631. STJ, 3a Seção, CC 90.084/MG, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho,

DJ 14/11/2007 p. 402.

632. STJ, 3a Seção, CC 110.436/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 26/05/2010. 633. Responderá apenas pelo crime de descaminho (CP, art. 334), e não por este em concurso com o de falsidade ideológica (CP, art. 299), o agente que, com o fim exclusivo de iludir o pagamento de tributo devido pela entrada de mercadoria no território nacional, alterar a verdade sobre o preço desta, até mesmo porque o falsum terá servido apenas como meio para alcançar o fim pretendido, sendo absorvido pelo descaminho em virtude do princípio da consunção. A propósito: STJ, 5a Turma, RHC 31.321 /PR, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 16/05/2013, DJe 24/05/2013.

634. STJ, 3a Seção, CC 107.764/BA, Rei. Min. Maria Thereza de Assis

Moura, julgado em 26/05/2010.

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n° 528 do STJ: “Compete ao juízo federal do local da apreensão da droga remetida do exterior pela via pos­ tal processar e julgar o crime de tráfico internacional”. Todavia, na hipótese de importação da droga via correio cumulada com o conhecimento do destinatá­ rio por meio do endereço aposto na correspondência, a Súmula n. 528 do STJ deve ser flexibilizada para se fixar a competência do Juízo do local de destino da droga, em favor da facilitação da fase investigativa, da busca da verdade e da razoável duração do pro­ cesso. Na visão do próprio STJ, enquanto a distância do local do destino da droga dificulta sobremaneira as investigações da autoria delitiva, a proximidade com o local da apreensão da droga tem se revelado um facilitador da colheita de provas no tocante à materialidade delitiva, sobretudo porque geralmente os autores do crime possuem alguma ligação com o endereço aposto na correspondência. A fixação da competência no local de destino da droga, quando houver postagem do exterior para o Brasil com o conhecimento do endereço designado para a en­ trega, proporcionará eficiência da colheita de pro­ vas relativamente à autoria e, consequentemente, também viabilizará o exercício da defesa de forma mais ampla.635

3.2.1. Competência territorial para o processo e julgamento dos crimes de estelionato (Lei n. 14.155, de 27 de maio de 2021) Ao longo dos anos, sempre houve enorme con­ trovérsia jurisprudencial em relação à competência territorial para o processo e julgamento do crime de estelionato, sobretudo quando praticado por meio do depósito de cheque falsificado (CP, art. 171, caput) ou quando houvesse fraude no pagamento por meio de cheque (CP, art. 171, §2°, VI).

Na hipótese de estelionato praticado por meio de cheque falso, o juízo de tipicidade deve ser feito à luz do art. 171, caput, do CP (“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”). Por consequência, sempre se entendeu, à luz do art. 70, caput, do CPP, que o foro competente seria de­ terminado a partir do local da obtenção da vantagem ilícita. Assim, por exemplo, caso o agente emitisse um cheque falso na cidade de Niterói/RJ de modo a adquirir um telefone celular, a competência territorial seria daquela Comarca, pois ali teria se dado a ob­ tenção da vantagem ilícita. A propósito, eis o teor da 635. 1. STJ, 3a Seção, CC 177.882/PR, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 26.05.2021.

súmula n. 48 do STJ (“Compete ao Juízo do local da obtenção da vantagem ilícita processar e julgar crime de estelionato cometido mediante falsificação de che­ que”). Quando se está diante de estelionato cometido por meio de cheques adulterados ou falsificados, a obtenção da vantagem ilícita ocorre no momento em que o cheque é sacado, pois é nesse momento que o dinheiro sai efetivamente da disponibilidade da en­ tidade financeira sacada para, em seguida, entrar na esfera de disposição do estelionatário. Em tais casos, entende-se que o local da obtenção da vantagem ilí­ cita é aquele em que se situa a agência bancária onde foi sacado o cheque adulterado, seja dizer, onde a vítima possui conta bancária.636

O mesmo raciocínio, todavia, não era válido para a figura equiparada de estelionato prevista no art. 171, §2°, inciso VI, do Código penal, que versa sobre o de­ lito de fraude no pagamento por meio de cheque, in verbis: “Art. 171. (...) §2° Nas mesmas penas incorre quem: (...) VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o paga­ mento”. Nesse caso, a consumação do delito ocorrería no local da recusa do pagamento, leia-se, onde situada a agência bancária que não quis pagar o cheque. A título de exemplo, se o agente emitisse um cheque na cidade de Niterói/RJ a fim de adquirir um telefone ce­ lular, mas possuísse conta em agência bancária situada na cidade do Rio de Janeiro, a competência territorial seria da comarca do Rio de Janeiro. Afinal de contas, é na agência bancária em que o agente possui conta corrente que se dá a recusa do pagamento pela institui­ ção financeira. Daí os dizeres das súmulas 521 do STF (“O foro competente para o processo e julgamento dos crimes de estelionato, sob a modalidade da emissão dolosa de cheque sem provisão de fúndos, é o do local onde se deu a recusa do pagamento pelo sacado”) e 244 do STJ (“Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos”).

A controvérsia em torno da competência ter­ ritorial para o processo e julgamento dos crimes de estelionato não estava restrita, todavia, apenas às duas hipóteses acima mencionadas. De fato, sempre hou­ ve polêmica nos Tribunais Superiores em relação à competência territorial para o julgamento do crime de estelionato envolvendo transferência de valores ou depósitos bancários. Inicialmente, a jurisprudên­ cia do STJ orientava que, nos casos em que a vítima houvesse sido induzida a erro a efetuar depósito ou transferência bancária para conta de terceiro, o local 636. STJ, 3a Seção, AgRg no CC 171.632/SC, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 16.06.2020; STJ, 3a Seção, CC 171,455/MG, Rei. Min. Joel

llan Paciornik, j. 09.12.2020, DJe 14.12.2020.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

da consumação do crime de estelionato seria o da agência bancária onde efetivada a transferência ou o depósito. Em precedentes mais recentes, todavia, a 3a Seção modificou tal orientação, estabelecendo diferenciação entre a hipótese em que o estelionato se dá mediante falsificação ou adulteração de che­ que (consumação no banco sacado, onde a vítima mantém a conta bancária), do caso no qual o crime ocorre mediante depósito ou transferência bancária (consumação na agência beneficiária do depósito ou da transferência bancária). Ocorre que há pre­ cedente subsequente (CC n. 166.009/SP, julgado em 28/8/2019) que restaurou a orientação inicial, no sentido de que o prejuízo, na hipótese de transfe­ rência bancária, seria o do local da agência bancária da vítima. Em razão da oscilação do entendimento jurisprudencial da própria 3a Seção, a matéria foi novamente apreciada pelo colegiado. Prevaleceu o entendimento de que a melhor solução jurídica se­ ria aqueL que estabelece distinção entre a hipótese de estelií nato mediante depósito de cheque clonado ou adulterado (competência do Juízo do local onde a vítima mantém conta bancária), daquela na qual a vítima é induzida a efetivar depósito ou transferência bancária em prol do beneficiário da fraude (com­ petência do Juízo onde situada a agência bancária beneficiária do depósito ou transferência). Assim, se o crime só se consuma com a efetiva obtenção da van­ tagem indevida pelo agente ativo, é certo que só há falar em consumação, nas hipóteses de transferência e depósito, quando o valor efetivamente ingressasse na conta bancária do beneficiário da fraude.637

É dentro desse contexto, leia-se, no sentido de pôr fim à toda essa controvérsia em torno da com­ petência territorial para o processo e julgamento dos crimes de estelionato, o que, de certa forma, dificul­ tava sobremaneira a persecução penal em relação a tais delitos,638 que surge o art. 70, §4°, do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 14.155, com vigência em data de 28 de maio de 2021: “§4° Nos crimes previstos no art. 171 do Código Penal, quando 637. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 169.053/DF, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/12/2019, DJe 19/12/2019.

638. A propósito, eis a justificativa apresentada por ocasião da apre­ sentação do Projeto que deu origem à Lei n. 14.155/21:"(...) De acordo com o Projeto do ilustre colega, a análise da competência por parte dos

tribunais, notadamente o SuperiorTribunal de Justiça, vem ocasionando um sério óbice à efetiva apuração criminal de tais fatos. Isso porque parte da jurisprudência, assentada na interpretação literal do art. 70 do CPP, vem se firmando no sentido de que a competência deve ser fixada pelo local do proveito, ou seja, da obtenção da vantagem ilícita, seja quando se trata de fraude praticada mediante a emissão de cheques ou mesmo nos casos de transferência em dinheiro. Estamos de acordo com o Senador que defende que a atual orientação jurisprudencial acaba por estabelecer o império da impunidade em relação a essas fraudes, com grave prejuízo à administração da justiça e à sociedade em geral (...)".

praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou me­ diante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção”. Da leitura do novel dispositivo já podemos extrair algumas importantes conclusões: a. Competência definida pelo local do domicí­ lio da vítima: pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 14.155/21, o Código de Processo Penal previa, subsidiariamente, a possibilidade de fixação da com­ petência territorial apenas com base no domicílio do acusado, seja quando não conhecido o lugar da in­ fração (CPP, art. 72), seja nos casos de exclusiva ação penal privada, quando o querelante poderia preferir o foro de domicílio do acusado, ainda quando conhe­ cido o lugar da infração (CPP, art. 73). Doravante, o art. 70, §4°, do CPP, passa a admitir que o domicílio da vítima, e não o do acusado, também seja utilizado para fins de fixação da competência territorial, desde que preenchidos os requisitos ali mencionados; b. Crimes previstos no art. 171 do Código Penal sujeitos ao novo regramento: de se notar que o novel dispositivo se refere, inicialmente, aos “crimes previstos no art. 171 do Código Penal”. A utilização da locução “crimes” no plural denota que o legislador faz menção não apenas à figura prevista no caput do art. 171 do CP, mas também àquelas equiparadas previstas em seu §2°, como, por exemplo, a fraude no pagamento por meio de cheque. Prova disso, aliás, é que o próprio art. 70, §4°, do CPP, incluído pela Lei n. 14.155/21, menciona, na sequência, os crimes previstos no art. 171 do CP, quando praticados mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado, condutas que tipificam, em tese, exatamente a figura equiparada do art. 171, §2°, VI, do Código Penal. Isso, todavia, não autoriza a conclusão no sentido de que todo e qualquer crime de estelionato estaria sujeito ao novo regramento. Afinal, o art. 70, §4°, do CPP, é expresso no sentido de afirmar que essa nova sistemática de fixação da competência territorial com base no domicílio da vítima terá sua aplicação restrita aos crimes previstos no art. 171 do Código Penal quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores. Por con­ sequência, na eventualidade de qualquer modalidade do crime de estelionato ser praticada de maneira diver­ sa, a competência territorial continuará sendo fixada com base na regra geral, leia-se, com base no local da consumação do delito, ou, no caso de tentativa, pelo

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lugar em que for praticado o último ato de execução (CPP, art. 70, caput);

c. (Im) possibilidade de aplicação do novo regramento a outros crimes patrimoniais: refe­ rindo-se o art. 70, §4°, do CPP, expressa e exclusi­ vamente aos crimes previstos no art. 171 do Código Penal, conquanto praticados nas circunstâncias ali relatadas, não nos revela possível sua interpreta­ ção extensiva de modo a abranger outros crimes patrimoniais, ainda que eventualmente praticados, por exemplo, de forma eletrônica ou pela internet (v.g., furto qualificado pela fraude cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático pre­ visto no art. 155, §4°-B, do CP, incluído pela Lei n. 14.155/21). Afinal, disposições derrogatórias da regra geral devem ser interpretadas restritivamente. Por consequência, subsiste, como regra geral, para outros delitos que não os de estelionato, o coman­ do normativo constante do art. 70, caput, do CPP, fixando-se a competência territorial com base no local da consumação do delito, ainda que diverso daquele em que domiciliada a vítima; d. Overruling das súmulas 521 do STF e 244 do STJ: como exposto anteriormente, ambos os enuncia­ dos, elaborados em momento anterior à entrada em vigor da Lei n. 14.155/21, trabalhavam com a premis­ sa de que o crime de fraude no pagamento por meio de cheque (CP, art. 171, §2°, VI) consuma-se no local onde tiver ocorrido a recusa do pagamento, daí por que seria este o foro competente para o processo e julgamento do referido delito à luz do art. 70, caput, do CPP. Esse raciocínio, todavia, já não é mais válido. Com efeito, considerando-se que o art. 70, §4°, do CPP, é explícito ao se referir à fixação da competên­ cia territorial com base no domicílio da vítima em relação aos crimes de estelionato praticados mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado, é de rigor a conclusão no sentido de que tais súmulas perderam seu fundamento legal de validade. Dora­ vante, portanto, na hipótese de alguém emitir um cheque sem fundos na cidade de Campinas/SP a fim de comprar um veículo automotor de vítima que ali reside, a competência territorial será determinada com base no domicílio da vítima - in casu, na comar­ ca de Campinas/SP -, pouco importando, pois, o fato de a conta corrente do autor do delito encontrar-se situada em agência bancária localizada em cidade diversa (v.g., São Paulo);

e. (In) subsistência da súmula n. 48 do STJ: sem embargo da nova regra de competência ter­ ritorial fixada pelo art. 70, §4°, do CPP, não nos parece ter havido qualquer alteração do fundamento

normativo que deu ensejo à aprovação da súmu­ la n. 48 do STJ. Explica-se: ao fazer referência aos diversos crimes do art. 171 do Código Penal que estarão sujeitos ao novo regramento, o art. 70, §4°, do CPP, não dispôs, pelo menos expressamente, acerca do crime de estelionato cometido mediante falsificação de cheque. Faz menção apenas àqueles praticados mediante depósito, emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sa­ cado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores. Por consequência, por se tratar de norma que excepciona a regra geral de fixação da competência territorial - art. 70, caput, do CPP -, revela-se indevida qualquer espécie de interpretação extensiva para abranger outras mo­ dalidades de cometimento do crime de estelionato. Afinal, como nos ensina a hermenêutica, a exceção confirma a regra nos casos não excetuados.639 Logo, na eventualidade de o crime de estelionato ser prati­ cado mediante falsificação de cheque (CP, art. 171, caput), subsiste a competência territorial do local da obtenção da vantagem ilícita, nos exatos termos da súmula n. 48 do STJ, pouco importando que a vítima tenha domicílio em localidade diversa; f. (Im) possibilidade de alteração da com­ petência territorial dos processos criminais em andamento à época da entrada em vigor da Lei n. 14.155/21: com a entrada em vigor do novel diplo­ ma normativo, certamente surgirão controvérsias acerca da (im) possibilidade de alteração da compe­ tência territorial em relação àqueles processos que já estivessem em andamento à época de sua vigência. Quanto à controvérsia, é sabido que, uma vez ini­ ciado o processo penal perante determinado juízo, deverá nele prosseguir até o seu encerramento pelo menos em regra. No entanto, ao longo do curso do processo, várias alterações podem ocorrer, hipótese em que se questiona se a competência será mantida ou não. Conquanto não haja dispositivo legal ex­ presso no CPP acerca da perpetuatio jurisdictionis, tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de aplicação subsidiária do disposto no art. 43 do CPC: “Determina-se a competência no momento do registro ou distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta”. Ora, considerando-se que o art. 70, §4°, do CPP, não suprimiu órgão judiciá­ rio, tendo provocado tão somente uma mudança de competência territorial, espécie de competência 639. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 191.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

relativa, e não absoluta,640 é de rigor a conclusão no sentido de que a alteração em questão não será passível de aplicação em relação aos processos cri­ minais de estelionato já em andamento à época da entrada em vigor da Lei n. 14.155/21; g. (Im) possibilidade de aplicação imediata do novo regramento, inclusive em relação aos cri­ mes de estelionato praticados antes da vigência da Lei n. 14.155/21, conquanto ainda não iniciado o processo penal: nos crimes de estelionato, quando praticados mediante depósito, por emissão de che­ ques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou por meio da transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, em razão da superveniência da Lei n. 14.155/2021, ainda que os fatos tenham sido anteriores à nova Lei. Como a nova lei é norma processual, deve ser aplicada de imediato (CPP, art. 2o), ainda que os fatos tenham sido anteriores à nova lei;641

h. pluralidade de vítimas: em sua parte final, o art. 70, §4°, do CPP, incluído pela Lei n. 14.155/21, é expresso ao afirmar que, no caso de pluralidade de vítimas, a competência deverá ser determinada com base na prevenção. De nossa parte, queremos crer que o dispositivo em questão disse menos do que se pretendia dizer. E isso por dois motivos. Primeiro porque se todas as vítimas residem em uma úni­ ca comarca, dúvida não há quanto à possibilidade de fixação da competência territorial com base no mesmo critério - domicílio da vítima -, hipótese em que o juiz natural deverá ser determinado com base na distribuição, se acaso houver mais de um juiz igualmente competente na mesma comarca (CPP, art. 75, caput). Segundo porque, na eventualidade de as vítimas residirem em localidades diversas, a prevenção deverá ser utilizada como critério resi­ dual de fixação da competência territorial, com a ressalva de que, para fins de se determinar qual juiz teria se antecedido aos demais igualmente compe­ tentes na prática de algum ato decisório, ainda que anterior ao início do processo, hão de ser levados em consideração apenas aqueles com competência so­ bre os diversos domicílios dessas vítimas (CPP, art. 70, §4°, primeira parte), e não aqueles dotados de competência em relação ao local em que o delito se consumou (CPP, art. 70, caput). Ora, se a mens legis da Lei n. 14.155/21 foi a de conferir maior eficiência 640. No sentido de que a competência territorial possui natureza re­ lativa, e não absoluta: STJ 5a Turma, AgRg no HC 600.902/PR, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 09.03.2021, DJe 15.03.2021; STJ, 5aTurma, RHC 77.692/BA, Rei. Min. Felix Fischer, j. 10.10.2017, DJe 18.10.2017. 641. STJ, 3a Seção, CC 180.832/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 25.08.2021.

na persecução penal de determinadas modalidades de estelionato, deslocando a competência territorial para o domicílio da vítima, parece não haver dúvida no sentido de que, na hipótese de pluralidade de vítimas residentes em comarcas diversas, não há por que se afastar a regra em apreço. Porém, os “dois ou mais juízos igualmente competentes” para fins de fixação do magistrado prevento (CPP, art. 83) serão aqueles dotados de competência sobre essas comarcas em que as vítimas residem, e não aqueles com competência sobre o local em que os delitos eventualmente se consumaram.

4. COMPETÊNCIA TERRITORIAL PELA RESI­ DÊNCIA OU DOMICÍLIO DO RÉU Subsidiariamente, caso não seja possível de­ terminar o lugar da infração, a competência será firmada pelo domicílio ou residência do réu (CPP, art. 72, caput) - forum domicilii. Tem-se aí o deno­ minado foro supletivo ou foro subsidiário. Talvez o melhor exemplo de crime em que não seja pos­ sível estabelecer-se com precisão o exato local da consumação da infração penal seja a hipótese de um crime patrimonial cometido no interior de um ônibus durante uma viagem interestadual. Supon­ do-se que as investigações tenham obtido êxito na identificação do autor do crime, sendo inviável a descoberta do local em que se consumou a infração penal, deve o processo tramitar no foro do domicílio ou residência do réu.

De acordo com o art. 70 do Código Civil, o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela esta­ belece a sua residência com ânimo definitivo. Per­ cebe-se, pois, que domicílio e residência não são expressões sinônimas, apesar de o art. 72 do CPP parecer usá-las como se fossem. De fato, enquan­ to o domicílio caracteriza-se pelo ânimo de fixar residência, esta é a morada, a habitação, que pode ser transitória ou definitiva. A justificativa para a utilização das duas expressões no CPP é trazida por Tourinho Filho: “o legislador, tendo em vista a dis­ tinção que, no cível, se estabelece entre domicílio e residência, procurou, no campo processual penal, solucionar o problema da competência de maneira mais simples: tanto no domicílio como na residência poderá tramitar a causa penal”.642

Ainda segundo o Código Civil, se a pessoa na­ tural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer de­ las (art. 71). Também é domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar 642. Op. cit. Vol. 2. p. 121.

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onde esta é exercida, sendo que se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles consti­ tuirá domicílio para as relações que lhe correspon­ derem (CC, art. 72). Por fim, tem-se por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada (CC, art. 73). Nos termos do art. 72, § Io, do CPP, caso o réu tenha mais de uma residência, a competência firmar-se-á pela prevenção. Apesar do silêncio da lei, prevalece que o mesmo raciocínio será aplicável ao réu que possua vários domicílios, ou na hipótese de vários corréus com domicílio e residências diferentes.

Por sua vez, se o réu não tiver residência certa ou for ignorado o seu paradeiro, será competente o juiz que primeiro tomar conhecimento do fato (CPP, art. 72, § 2o). Aqui, todavia, como observa a doutrina, “como a noção de domicílio e residência são de Direito Civil, e como a Lei de Introdução ao Código Civil é posterior ao CPP, pensamos que, na hipótese de o réu não possuir residência certa, em vez de se aplicar o disposto no § 2o do art. 72, isto é, deverá ser processado no seu domicílio, e, nos ter­ mos do § 8o do art. 7o da LICC, considera-se, nesse caso, domicílio o lugar onde a pessoa se encontre”.643

De todo modo, reiteramos: essa regra do art. 72 de aplicação subsidiária do foro do domicílio ou residência do réu somente será possível quando não for conhecido o lugar da consumação da infração penal (locus commissi delicti). Considerando que o fato de a vítima ter resi­ dência fora do Brasil não é fator de determinação da competência jurisdicional, compete à Justiça Estadual, e não à Justiça Federal, processar e julgar eventual crime de estelionato cometido por parti­ cular contra particular, ainda que a vítima resida no estrangeiro, na hipótese em que, além de os atos de execução do suposto crime terem ocorrido no Brasil, não haja qualquer lesão a bens, serviços ou interesses da União.644 Por fim, nos casos de exclusiva ação privada, leia-se, nos casos de ação penal exclusivamente pri­ vada ou ação penal privada personalíssima, o quere­ lante poderá preferir o foro de domicílio ou da resi­ dência do réu, ainda quando conhecido o lugar da infração (CPP, art. 73). É o chamado foro de eleição no processo penal, na medida em que o querelante pode optar pelo foro do domicílio ou da residência do réu, mesmo sendo conhecido o lugar onde foi cometida a infração penal. Pela própria dicção do 643. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit. p. 122.

644. STJ, 3a Seção, CC 125.237/SP, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 04/02/2013, DJe 14/02/2013.

art. 73 do CPP, depreende-se que esse dispositivo não se aplica à ação penal privada subsidiária da pública, nem tampouco à ação penal pública incon­ dicionada ou condicionada.

5. COMPETÊNCIA TERRITORIAL NA JUSTIÇA FEDERAL, NA JUSTIÇA MILITAR (DA UNIÃO E DOS ESTADOS) E NA JUSTIÇA ELEITORAL O fato de a competência do foro da consuma­ ção do crime estar prevista no Código de Processo Penal pode dar uma ideia equivocada de que ele é adotado tão somente para as infrações de compe­ tência da Justiça Estadual, o que não é verdade. Essa competência territorial também se aplica no âmbito da Justiça Federal, da Justiça Militar da União e dos Estados, assim como da Justiça Eleitoral.

No que tange à Justiça Federal, conquanto este­ ja esta passando por um processo de interiorização, a verdade é que não há juizes federais em todas as comarcas. No entanto, o fato de não existir vara fe­ deral no município não significa dizer que o “cri­ me federal” ali praticado não esteja sujeito à Justiça Federal. Será, sim, julgado pela Justiça Federal, de­ vendo se analisar o regimento interno do respectivo Tribunal Regional Federal, assim como seus provi­ mentos, a fim de se saber à qual Subseção Judiciá­ ria está vinculada o referido município. Perceba-se que, enquanto se utiliza a expressão comarca no âmbito da Justiça Estadual, deve se usar a expressão ‘seção judiciária ou ‘subseção judiciária no âmbito da Justiça Federal. Exemplificando, caso um crime de competência da Justiça Federal (ex: moeda falsa) seja praticado na cidade de Dracena/SP, esse delito será processado e julgado perante a 12a Subseção Judiciária do Estado de São Paulo, localizada na ci­ dade de Presidente Prudente/SP, consoante dispõe o Provimento n° 217 do Tribunal Regional Federal da 3a Região, cuja competência abrange os Estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. Por sua vez, se esse mesmo “crime federal” for praticado no muni­ cípio de Iretama/PR, deve ser processado e julgado perante a Vara Federal de Campo Mourão/PR, nos exatos termos da Resolução n° 31/2000 do Tribunal Regional Federal da 4a Região, que abrange os Esta­ dos do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

No âmbito da Justiça Militar da União, a Lei de Organização Judiciária Militar (Lei n° 8.457/92) dividiu o território nacional em 12 Circunscrições Judiciárias Militares. Cada Circunscrição Judiciá­ ria Militar conta com uma Auditoria Militar, com exceção da Ia, 2a, 3a e 11a, que tem mais de uma Auditoria: a) Ia CJM - quatro Auditorias, todas se­ diadas na cidade do Rio de Janeiro, com jurisdição

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

nos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo; b) 2a CJM - duas Auditorias sediadas na capital de São Paulo, com jurisdição em todo o Estado de São Paulo; c) 3a CJM - três Auditorias, com sede em Porto Alegre (Ia Auditoria), Bagé (2a Auditoria) e Santa Maria (3a Auditoria); d) 4a CJM - uma Auditoria sediada em Juiz de Fora, com jurisdição em todo o Estado de Minas Gerais; e) 5a CJM uma Auditoria, sediada em Curitiba, com juris­ dição nos Estados do Paraná e de Santa Catarina; f) 6a CJM - uma Auditoria, sediada em Salvador, com jurisdição nos Estados da Bahia e Sergipe; g) 7a CJM - uma Auditoria, com sede em Recife, e jurisdição nos Estados de Pernambuco, Rio Gran­ de do Norte, Paraíba e Alagoas; h) 8a CJM - uma Auditoria, sediada em Belém, com jurisdição nos Estados do Pará, Maranhão e Amapá; i) 9a CJM - uma Auditoria, com sede em Campo Grande, e jurisdição nos Estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso; j) 10a CJM - uma Auditoria, sediada em Fortaleza, com jurisdição nos Estados do Ceará e Piauí; k) 1 Ia CJM - duas Auditorias, sediadas em Brasília, com Jurisdição no Distrito Federal, Goiás e Tocantins, com a ressalva de que uma das Au­ ditorias ainda não foi instalada; 1) 12a CJM - uma Auditoria, com sede em Manaus, e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia.

Por sua vez, no âmbito da Justiça Militar dos Estados, cada unidade federativa constitui uma Circunscrição Judiciária Militar estadual, com um Juízo Militar funcionando na Capital do Estado, exceto São Paulo, que conta com 4 (quatro) auditorias, Minas Gerais (3 Auditorias) e Rio Grande do Sul (4 Auditorias).

No que toca à Justiça Eleitoral, cumpre lem­ brar que, nos exatos termos do art. 32 do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65), cabe a jurisdição de cada uma das zonas eleitorais a um juiz de direito (juiz estadual) em efetivo exercício e, na falta deste, ao seu substituto legal, sendo que, onde houver mais de uma vara, o Tribunal Regional Eleitoral designará aquela à qual incumbe o serviço eleitoral.

CAPÍTULO V

com anterioridade lógica sobre a competência de juízo, dispondo a súmula n° 206 do STJ que a exis­ tência de vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial resultante das leis de processo.

Inicialmente, essa competência é fixada a par­ tir do fundamento jurídico - material da demanda (penal, cível, trabalhista, etc.). Desse modo, restará estabelecida a competência dos juízos criminais caso estejamos diante do exercício de pretensão acusató­ ria pelo Ministério Público ou pelo ofendido.

Essa competência pode ainda ser firmada pela natureza da infração penal imputada, haja vista a possibilidade de especialização de varas para o processo e julgamento de determinadas infrações penais (v.g., varas especializadas para o processo e julgamento de crimes de lavagem de capitais, tráfico de drogas, acidentes de trânsito, etc.). De fato, se­ gundo o art. 74 do CPP, a competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri. Portanto, cabe à lei de organização judiciária (federal ou estadual) determinar a competência de juízo, podendo estabelecer diversos critérios para tal divisão, tais como: a) a qualidade da pena principal (reclusão, detenção, multa); b) o elemento subjetivo (dolo/culpa); c) a natureza da infração penal; d) o bem jurídico protegido (vida, integridade corporal, patrimônio, etc.). A título de exemplo, é constitucional lei estadual que confere poderes ao Conselho da Magistratura para atribuir aos juizados da infância e juventude competência para processar e julgar crimes de natu­ reza sexual praticados contra criança e adolescente, nos exatos limites da atribuição que a Constituição Federal confere aos tribunais. Nesse caso, não há falar em violação aos princípios constitucionais da legalidade, do juiz natural e do devido processo le­ gal, visto que a leitura interpretativa do art. 96,1, a, da CF, admite a alteração da competência dos órgãos do Poder Judiciário por deliberação dos tribunais, sobretudo se considerarmos que a especialização de varas consiste em alteração de competência ter­ ritorial em razão da matéria, e não em alteração de competência material, regida pelo art. 22 da CF.645

COMPETÊNCIA DE JUÍZO 1. DETERMINAÇÃO DO JUÍZO COMPETENTE Uma vez fixada a competência territorial, cum­ pre estabelecermos a competência de juízo. Relem­ bre-se que a competência territorial é determinada

645. STF, 2a Turma, HC 113.018/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 29/10/2013. No contexto de que lei estadual, de iniciativa do tribunal de justiça, pode estabelecer a competência do juízo da infância e da juventude para processar e julgar ação penal decorrente da prática de crime praticado por maior de 18 (dezoito) anos que tenha como vítima criança ou adolescente (v.g., estupro de vulnerável): STJ, 5a Turma, HC 219.218/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 17/09/2013, DJe 25/09/2013. E ainda: STF, 1a Turma, HC 113.102/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 18/12/2012, DJe

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Importa, pois, quanto à competência de juízo, fazermos uma análise específica da competência do tribunal do júri, dos juizados especiais criminais,646 do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher, do juízo colegiado em primeiro grau de jurisdição para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas e do juízo das execu­ ções penais.

2. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FA­ MILIAR CONTRA A MULHER Em data de 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei n° 11.340/06, referente à violência doméstica e familiar contra a mulher. Esta lei ficou conhecida como Lei Maria da Penha em virtude da grave violência de que foi vítima Maria da Penha Maia Fernandes: em 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, a farmacêutica Maria da Penha, en­ quanto dormia, foi atingida por disparo de espingar­ da desferido por seu então marido. Por força desse disparo, que atingiu a vítima em sua coluna, Maria da Penha ficou paraplégica. Porém, as agressões não cessaram. Uma semana depois, a vítima sofreu nova agressão do marido, tendo recebido uma des­ carga elétrica enquanto se banhava. O agressor foi denunciado em 28 de setembro de 1984. Devido a sucessivos recursos e apelos, sua prisão ocorreu somente em setembro de 2002. Por conta da lentidão do processo, e por en­ volver grave violação aos direitos humanos, o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que publicou o Relatório n° 54/2001, no sentido de que a ineficácia judicial, a impunidade e a impossibilidade de a vítima obter uma repara­ ção mostra a falta de cumprimento do compromisso assumido pelo Brasil de reagir adequadamente ante a violência doméstica”. Cinco anos depois da publi­ cação do referido relatório, entrou em vigor a Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), com o objetivo de coibir e reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

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e Familiar contra a Mulher. Apesar de o legislador ter chamado esse órgão jurisdicional de Juizado, de modo algum deve ser o mesmo confundido com os Juizados Especiais Criminais, na medida em que às infrações penais praticadas com violência domésti­ ca e familiar contra a mulher - aí incluídos crimes e contravenções penais -, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n° 9.099/95 (Lei n° 11.340/06, art. 41).647 Na verdade, de modo a se evitar qualquer confusão, melhor teria andado o le­ gislador se tivesse usado a expressão Vara, ao invés de Juizado. Caracterizada hipótese de violência domésti­ ca e familiar contra a mulher, a competência deste Juizado abrange crimes e contravenções penais. Por isso, em caso concreto relativo a agente que desfe­ riu socos e tapas no rosto da vítima, porém sem deixar lesões, caracterizando, portanto, a conduta do art. 21 da Lei de Contravenções Penais (vias de fato), a 3a Seção do STJ afastou a competência do Juizado Especial, por entender ser inaplicável a Lei n° 9.099/1995 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda que se trate de con­ travenção penal.648

O Juizado de Violência Doméstica e Fami­ liar contra a Mulher funciona, em regra, perante a Justiça Estadual. Presente os pressupostos do art. 109, § 5o, da Constituição Federal (crime praticado com grave violação aos direitos humanos + risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, em virtude da inércia do Estado-membro em proceder à persecução penal), afigura-se possível o incidente de deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, a ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça mediante provocação do Procurador-Geral da República.

De modo a se evitar que a lentidão do caso Maria da Penha voltasse a se repetir, houve a preo­ cupação do legislador da Lei n° 11.340/06 em criar um órgão especializado para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Daí o motivo pelo qual o art. 14 da Lei Maria da Penha determi­ nou a criação dos Juizados de Violência Doméstica

Ao contrário do Tribunal do Júri, que tem sua competência voltada para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, a violência domés­ tica normatizada pela Lei Maria da Penha não guar­ da correspondência com qualquer delito específico tipificado no Código Penal e na Legislação Especial. Na verdade, desde que praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, in­ frações penais diversas poderão ser julgadas pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra

31 15/02/2013; STJ, 6a Turma, HC 238.110/RS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz,j. 26/8/2014.

647. No sentido da constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Pe­ nha: STF, Pleno, ADI 4.424 e ADC 19, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/02/2012.

646. Para mais detalhes quanto à competência doTribunal do Júri e dos Juizados Especiais Criminais, remetemos o leitor ao Título referente ao

648. STJ, 3a Seção, CC 104.020/MG, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/8/2009. No mesmo sentido: STJ, 5a Turma, HC

Processo e Procedimento, onde o assunto será detalhadamente estudado.

158.615/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 15/02/2011, DJe 08/04/2011.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

a Mulher. Evidentemente, se a infração penal prati­ cada no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher referir-se a crime doloso contra a vida, a competência para o processo e julgamento do feito será do Tribunal do Júri, e não do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.649

Para a caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher, não é necessário que a violência seja perpetrada por pessoas de sexos distintos. O agressor tanto pode ser um homem (união heterossexual) como outra mulher (união homoafetiva)650. A propósito, basta atentar para o quanto disposto no art. 5o, parágrafo único, da Lei n° 11.340/06, que prevê que as relações pessoais que autorizam o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher independem de orienta­ ção sexual. Assim, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros de identidade feminina estão ao abrigo da Lei Maria da Penha, quando a violência for per­ petrada entre pessoas que possuem relação afetiva no âmbito da unidade doméstica ou familiar.651 É perfeitamente possível o reconhecimento da violência doméstica nas relações de parentesco. A Lei Maria da Penha pode ser aplicada entre irmãos ou entre ascendentes e descendentes. Por isso, em caso concreto em que a violência foi perpetrada con­ tra cunhada do acusado, que vivia há mais de um ano com o casal sob o mesmo teto, concluiu o STJ ser possível a incidência da Lei Maria da Penha, nos termos do art. 5o, II, da Lei n° 11.340/06.652

No entanto, para a configuração da violência doméstica e familiar contra a mulher, é indispensá­ vel que a vítima esteja em situação de hipossuficiência física ou econômica, em condição de vulnerabi­ lidade, enfim, que a infração penal tenha como mo­ tivação a opressão à mulher. Nesse contexto, como já se pronunciou o STJ, “delito contra honra, envol­ vendo irmãs, não configura hipótese de incidência da Lei n° 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica. 649. STJ, 5a Turma, HC 145.184/DF, Rei. Min. Laurita Vaz, julgado em 03/03/2011.

650. No sentido de que o sujeito ativo da violência doméstica e familiar pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da con­

vivência, com ou sem coabitação: STJ, 5aTurma, HC 277.561/AL, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 06/11/2014, DJe 13/11/2014; STJ, 6a Turma, HC 181.246/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 20/08/2013, DJe 06/09/2013.

(...) No caso, havendo apenas desavenças e ofensas entre irmãs, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize si­ tuação de relação íntima que possa causar violência doméstica ou familiar contra a mulher”.653

Lado outro, especificamente em relação ao sujeito passivo da violência doméstica e familiar, há uma exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Por isso, estão protegidas pela Lei Maria da Penha não apenas esposas, companheiras, amantes, namoradas ou ex-namoradas, como também filhas e netas do agressor, sua mãe, sogra, avó,654 ou qual­ quer outra parente do sexo feminino com a qual haja uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto.655 O fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para proces­ sar e julgar o delito. Isso porque a situação de vul­ nerabilidade e de hipossuficiência da mulher, envol­ vida em relacionamento íntimo de afeto, revela-se ipsofacto, sendo irrelevante a sua condição pessoal para a aplicação da Lei Maria da Penha. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da mulher é pressu­ posto de validade da referida lei, por isso o Estado deve oferecer proteção especial para reequilibrar a desproporcionalidade existente. Vale ressaltar que, em nenhum momento, o legislador condicionou esse tratamento diferenciado à demonstração des­ se pressuposto - presunção de hipossuficiência da mulher -, que, aliás, é ínsito à condição da mulher na sociedade hodierna. Desse modo, as denúncias de agressões, em razão do gênero, que porventura ocorram neste contexto, devem ser processadas e julgadas pelos Juizados de Violência Doméstica e 653. STJ, 3a Seção, CC 88.027/MG, Rei. Min. Og Fernandes, DJe 18/12/2008. Em sentido semelhante, em caso concreto em que agressões

mútuas foram cometidas entre namorados, motivadas pelos ciúmes da namorada, concluiu o STJ não estar presente hipótese de incidência da Lei

n° 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade: STJ, 3a Seção,

CC 96.533/MG, Rei. Min. Og Fernandes, j. 05/12/2008, DJe 05/02/2009.

654. Reconhecendo a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Pe­ nha a delito praticado por neto contra a avó, porquanto reconhecida a existência de situação de vulnerabilidade decorrente de vínculo fami­ liar: STJ, 5a Turma, AgRg no AREsp 1,626.825/GO, Rei. Min. Felix Fischer, j. 05/05/2020, DJe 13/05/2020.

655. No sentido de que as disposições específicas da Lei Maria da Penha estão voltadas exclusivamente à proteção da mulher: STJ, 5a Turma, RHC 27.622/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 07/08/2012, DJe 23/08/2012. Na mesma linha: STJ, 3a Seção, CC 88.027/MG, Rei. Min. Og Fernandes, DJe

18/12/2008. Afastando a aplicação da Lei n° 11.340/06 à violência perpe­ trada entre dois irmãos do sexo masculino: STJ, 6aTurma, HC 212.767/DF, Rei. Min. Vasco Delia Giustina - Desembargador convocado do TJ/RS -,

651. De se lembrar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar: STF, Pleno, ADI 4.277 e ADPF 132, Rei. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011.

j. 13/09/2011, DJe 09/11/2011. Há decisão isolada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais admitindo a aplicação da Lei Maria da Penha a favor de

652. STJ, 5aTurma, HC 172.634/DF, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 06/03/2012, DJe 19/03/2012.

homem vítima de violência doméstica: TJMG, ACrim. 1.0672.07.249317-0, j. 06/11/2007, Rei. Des. Judimar Biber.

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Familiar contra a Mulher, nos termos do art. 14 da Lei 11.340/2006.656 A idade da vítima é de todo irrelevante para se afastar a aplicação da Lei Maria da Penha. A Lei n. 11.340/2006 nada mais objetiva do que proteger vítimas, contra quem os abusos aconteceram no am­ biente doméstico e decorreram da distorção sobre a relação familiar decorrente do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do fator essencial de ela ser mulher (de qualquer idade), ele­ mentos suficientes para atrair a competência da vara especializada em violência doméstica. A prevalecer o entendimento contrário, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica - segmento especial e prioritariamente protegido pela Constituição da República (art. 227) - passariam a ter um âmbito de proteção menos efetivo do que mulheres adultas. E, mesmo em relação a estas, cumpre enfatizar que não se poderia jamais cogitar de retorno a um tempo em que muitos professavam que somente as mulheres frágeis física ou emocionalmente encontravam gua­ rida nas normas protetivas da Lei Maria da Penha. Ademais, a ideia de vulnerabilidade da vítima que passou a compor o nome do delito do art. 217-A do Código Penal tem o escopo de afastar relativizações da violência sexual contra vítimas nessas condições, entre elas as de idade inferior a 14 anos de idade, não se exigindo igual conceito para fins de atração do complexo normativo da Lei Maria da Penha.657

Na hipótese de uma mesma agressão ser per­ petrada contra vítimas de sexos diversos (v.g., pai que agride simultaneamente um filho e uma filha), estará sujeita à Lei Maria da Penha apenas a violên­ cia perpetrada contra a criança do sexo feminino. No entanto, ante a conexão probatória entre os dois delitos, é perfeitamente possível a reunião dos feitos perante o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, nos termos do art. 60, parágrafo único, da Lei n° 9.099/95. Nesse caso, os institutos despenalizadores da Lei dos Juizados (v.g., transa­ ção penal, suspensão condicional do processo) só poderão ser aplicados em relação à infração de me­ nor potencial ofensivo cometida contra o filho, vez que não se admite a aplicação da Lei n° 9.099/95 aos crimes e contravenções praticados com violên­ cia doméstica e familiar contra a mulher (Lei n° 11.340/06, art. 41). 656. STJ, 5aTurma, REsp 1.416.580/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 1°/4/2014, DJe 15/04/2014.

657. Nesse contexto: STJ, 6aTurma, RHC 121.813/RJ, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 20.10.2020, DJe 28.10.2020.

Vinculada a competência cível658 e criminal des­ se Juizado à matéria violência doméstica e familiar contra a mulher, importa analisar em que consiste essa espécie de violência. Para tanto, é necessária a conjugação dos arts. 5o e 7o da Lei Maria da Penha. Configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer das ações elencadas no art. 7° (vio­ lência física, psicológica, sexual patrimonial ou mo­ ral) praticada contra a mulher em razão de vínculo de natureza familiar ou afetiva:659 I) no âmbito da unidade doméstica: deve ser compreendida como o espaço de convívio perma­ nente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. Evidente­ mente, a mulher agredida no âmbito da unidade doméstica deve fazer parte da relação familiar. Aos olhos da doutrina, a agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, integrantes dessa aliança (insere-se, na hipótese, a agressão do patrão em face da empregada);660

II) no âmbito da família: compreendida como a unidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. A violên­ cia praticada no âmbito da família engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, paren­ tesco (em linha reta e por afinidade), ou por von­ tade expressa (adoção). Em virtude da expressão “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados”, é necessário buscar na lei civil a definição dos vínculos de parentesco (CC, arts. 1.591,1.592 e 1.593). Segundo a doutrina, essa expressão legal alcança igualmente a filiação 658. Além de estabelecer a prioridade de tramitação dos procedimen­ tos judiciais em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar (CPC, art. 1.048, III), a Lei n. 13.894/19 também alterou a Lei Maria da Penha para preverá competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável nos casos de violência. A propósito, confira-se:"Art. 14-A. A ofendida tem a opção de propor a ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. §1° Exclui-se da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a pretensão relacionada à partilha de bens. §2° Iniciada a situação de violência domés­ tica e familiar após o ajuizamento da ação de divórcio ou de dissolução de união estável, a ação terá preferência no juízo onde estiver".

659. Há diversos precedentes dos Tribunais Superiores afastando a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos delitos pra­ ticados no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher. A propósito, confira-se: STF, 2a Turma, RHC 133.043/MT, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 10/05/2016. É nesse sentido, aliás, o teor da súmula n. 589 do STJ: "É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas".

660. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Op. cit. p. 30.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

socioafetiva, uma vez que o estado de filho afetivo faz com que as pessoas se sintam aparentadas.661 Evidentemente, nem todo crime envolvendo relação entre parentes pode dar ensejo à aplicação da Lei Maria da Penha. Logo, é do juizado especial cri­ minal - e não do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher - a competência para processar e julgar ação penal referente a suposto crime de ameaça (art. 147 do CP) praticado por nora contra sua sogra na hipótese em que não este­ jam presentes os requisitos cumulativos de relação íntima de afeto, motivação de gênero e situação de vulnerabilidade.662

III) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação: acerca do namoro como relação íntima de afeto, o STJ tem entendido que a aplicabilidade da legisla­ ção deve ser analisada em face do caso concreto. Não se p )de ampliar o termo - relação íntima de afeto - p ’ra abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico. Todavia, verificando-se nexo de causalidade entre uma conduta criminosa e a relação de intimidade existente entre agressor e ví­ tima, que estaria sendo ameaçada de morte após romper namoro de quase dois anos, deve se aplicar a Lei n° 11.340/2006.663 Ao se referir a qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação, o art. 5o, III, da Lei Maria da Penha, deixa bem claro que não há necessidade de coabitação entre agressor e vítima. A propósito, eis o teor da súmula n. 600 do STJ: ‘Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no art. 5o da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), não se exige a coabitação en­ tre autor e vítima”. Por isso, em caso concreto no qual o irmão foi ao apartamento da sua irmã, com vontade livre e consciente, fazendo várias ameaças 661. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a

mulher. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, p. 48. 662. STJ, 5a Turma, HC 175.816/RS, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j.

20/06/2013, DJe 28/06/2013.

663. STJ, 3a Seção, CC 100.654/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, Dje 13/05/2009. Com entendimento semelhante: STJ, 6a Turma, HC 92.875/RS, Rei. Min. Jane Silva - Desembargadora convocada doTJ/MG -, j. 0/10/2008. Em caso concreto no qual o agressor convivera com a ofendida por vinte e quatro anos, ainda que apenas como namorados, o STJ também reco­ nheceu a incidência do art. 5o, III, da Lei Maria da Penha: STJ, 3a Seção, CC 103.813/MG, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 24/06/2009. No sentido de que a agressão cometida por ex-namorado também autoriza a aplicação da Lei Maria da Penha: STJ, 5a Turma, HC 181.217/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 20/10/2011, DJe 04/11/2011. No sentido de que ligações transitórias e passageiras não autorizam a aplicação da Lei Maria da Penha: STJ, 3a Seção, CC 95.057/MG, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 29/10/2008. E ainda: STJ, 3a Seção, CC 91,980/MG, Rel. Min. Nilson Naves, Dje 05/02/2009.

de causar-lhe mal injusto e grave, além de ter pro­ vocado danos materiais em seu carro, causando-lhe sofrimento psicológico e dano moral e patrimonial, no intuito de força-la a abrir mão do controle da pensão que a mãe de ambos recebe, concluiu o STJ tratar-se de feito da competência do Juizado de Vio­ lência Doméstica e Familiar contra a Mulher.664 Portanto, caracterizada hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, mesmo que a infração penal praticada seja considerada de me­ nor potencial ofensivo, fixar-se-á a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.665 Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decor­ rentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, assegurado o direito de preferên­ cia, e observadas as previsões do Título IV da Lei n° 11.340/06, subsidiada pela legislação processual pertinente (Lei n° 11.340/06, art. 33). Aliás, mesmo em se tratando de medida protetiva de manutenção de vínculo trabalhista, por até seis meses, em razão de afastamento do trabalho de ofendida decorrente de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340/06, art. 9o, §2°, II), o STJ tem reconhe­ cido a competência dessa vara especializada, e não da Justiça do Trabalho, uma vez que o motivo do afastamento não advém de relação de trabalho, mas de situação emergencial que visa garantir a integri­ dade física, psicológica e patrimonial da mulher.666* Esse art. 33 da Lei n° 11.340/06 não ofende os artigos 96,1, a, e 125, § Io, ambos da CF, porquanto a Lei Maria da Penha não implica obrigação, mas mera faculdade de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme disposto nos artigos 14, caput, e 29, do mesmo di­ ploma. Aliás, a elaboração de sugestão, mediante lei federal, para criação de órgãos jurisdicionais espe­ cializados no âmbito estadual, não é algo inédito. Nesse sentido, basta ver os exemplos dos arts. 145 do ECA e 70 do Estatuto do Idoso. Considerando-se 664. STJ, 5a Turma, REsp 1,239.850/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 16/02/2012. A hipótese de briga entre irmãos - que ameaçaram a vítima de morte - amolda-se àqueles objetos de proteção da Lei n° 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). In casu, caracterizada a relação íntima de afeto fami­ liar entre os agressores e a vítima, inexiste a exigência de coabitação ao tempo do crime, para a configuração da violência doméstica contra a mu­ lher: STJ, 6a Turma, HC 184.990/RS, Rel. Min.Og Fernandes, j. 12/06/2012.

665. STJ, 3a Seção, CC 102.832/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 22/04/2009. 666. STJ, 6a Turma, REsp 1.757.775/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 20/08/2019, DJe 02/09/2019.

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que compete à União a disciplina do direito proces­ sual, nos termos do art. 22,1, da CF, é plenamente possível que ela crie normas que visam influenciar a atuação dos órgãos jurisdicionais locais. O art. 33 da Lei Maria da Penha não teria criado varas judi­ ciais, não teria definido limites de comarcas e não teria estabelecido o número de magistrados a serem alocados nos Juizados de Violência Doméstica e Fa­ miliar. Apenas facultara a criação desses juizados e atribuira ao juízo da vara criminal a competência cumulativa de ações cíveis e criminais envolvendo violência doméstica contra a mulher, haja vista a necessidade de conferir tratamento uniforme, es­ pecializado e célere, em todo território nacional, às causas sobre a matéria.667

Em virtude das inegáveis dificuldades finan­ ceiras e administrativas suportadas pelo Poder Ju­ diciário, e a consequente carência de espaço físico e de pessoal para a estruturação desses Juizados de Violência Doméstica, alguns Estados da Federação têm ampliado a competência dos Juizados Especiais Criminais para também abranger o processo de cau­ sas relativas à violência doméstica e familiar contra a mulher. A título de exemplo, confira-se o teor da Re­ solução n° 07, de 13 de outubro de 2006, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios: “Art. Io. Ampliar a competência dos Juizados Especiais Criminais e dos Juizados Especiais de Competên­ cia Geral, com exceção da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília e das regiões administrativas do Núcleo Bandeirante e Guará, para abranger o processo, o julgamento e a execução das causas de­ correntes de prática de violência doméstica e fami­ liar contra a mulher, de que trata a Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006”. O fato de ter sido ampliada a competência dos Juizados Especiais Criminais para também abran­ ger o processo e julgamento das causas relativas à violência doméstica e familiar contra a mulher não significa dizer que a estas infrações penais seria aplicável a Lei n° 9.099/95. Na verdade, há de se distinguir a atuação do Juiz dos Juizados quando em discussão infrações de menor potencial ofensivo e quando em análise a violência doméstica e familiar contra a mulher.

mesma resolução acima citada estabelece em seu art. 2o que “os procedimentos de que cuida a Lei n° 9.099, de 1995, não se confundem com aque­ les fixados pela Lei n° 11.340, de 2006, devendo ser aplicados, separadamente, observados os seus respectivos ritos”. Portanto, conclui-se que, ainda que os Juizados Especiais Criminais e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mu­ lher funcionem em um mesmo local, quiçá com a atuação de um mesmo magistrado, não se afigura possível a aplicação da Lei n° 9.099/95 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, em fiel observância ao quanto disposto no art. 41 da Lei Maria da Penha.668 Quanto ao juízo ad quem para processar e julgar recursos ou habeas corpus interpostos contra decisões dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar con­ tra a Mulher, não se pode querer atribuir tal compe­ tência às Turmas Recursais. Isso porque às Turmas Recursais, compostas por juizes de 1° grau (CF, art. 98, inciso I), compete o processo e julgamento de recursos interpostos contra a decisão dos Juizados Especiais Criminais em relação às infrações de menor potencial ofensivo. Ora, como dito acima, os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não são e nem podem ser considerados infrações de menor potencial ofensivo, razão pela qual eventual recurso contra decisão do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher deve ser apreciado pelo respectivo Tribunal de Justiça.669

3. JUÍZO COLEGIADO EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO PARA O JULGAMENTO DE CRIMES PRATICADOS POR ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS 3.1. Conceito legal de organizações criminosas A despeito da profusão de referências legislati­ vas ao termo organizações criminosas, sempre houve controvérsia acerca da existência desse conceito le­ gal no ordenamento pátrio. Conquanto a revogada Lei 9.034/95 definisse e regulasse meios de prova e procedimentos investigatórios referentes a ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo (art. Io, caput), não havia, no bojo da referida lei, uma definição legal de organizações criminosas. Por isso, referido diploma normativo

Na verdade, essa ampliação da competência dos Juizados Especiais Criminais assemelha-se a uma comarca de vara única, em que um único juiz ora atua como juiz de direito, como juiz su­ mariante na primeira fase do júri, ora como juiz do juizado especial criminal, etc. Veja-se que a

668. A propósito: STJ, 3a Seção, CC 97.456/DF, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Dje 20/02/2009.

667. STF, Pleno, ADC 19/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/02/2012.

669. No sentido da competência doTJ, e não da Turma Recursal, para decidir as questões relativas à violência doméstica contra a mulher: STJ, 3a Seção, CC 110.530/RJ, Rei. Min.Og Fernandes, julgado em 26/05/2010.

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sempre teve aplicação restrita às quadrilhas (CP, an­ tiga redação do art. 288) e às associações criminosas (v.g., Lei n° 11.343/06, art. 35; Lei n° 2.889/56, art. 2°). Diante da inércia do legislador brasileiro em conceituar organizações criminosas, era crescente o entendimento no sentido de que, enquanto a lei brasileira não fornecesse um conceito legal, seria possível a aplicação do conceito dado pela Conven­ ção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n° 5.015/2004, cujo art. 2o dispõe: “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando con­ certadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves enunciadas na presente Con­ venção, com a intenção de obter, direta ou indireta­ mente, um benefício econômico ou outro benefício material”.670

Não olvidamos a importância do Direito Inter­ nacional dos Direitos Humanos, que pode ser usa­ do em determinadas situações para suprir lacunas existentes no ordenamento jurídico. Aliás, foi exata­ mente isso o que ocorreu por ocasião do julgamento do HC 70.389/SP. Neste caso, o Supremo Tribunal Federal discutiu a legalidade da norma constante do revogado art. 233 do Estatuto da Criança e do Ado­ lescente, que estabelecia como crime a prática de tortura contra criança e adolescente. A controvérsia foi instaurada em virtude de a norma em questão consagrar um tipo penal aberto - submeter crian­ ça ou adolescente sob sua autoridade, guarda, ou vigilância a tortura -, passível de complementação no que se refere à definição dos diversos meios de execução do delito de tortura. Aos olhos da Suprema Corte, os instrumentos internacionais de direitos humanos - em particular, a Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), a Con­ venção contra a Tortura, adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), a Convenção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena (1985) e a Convenção Americana sobre Direitos Huma­ nos (Pacto de São José da Costa Rica), formada no âmbito da OEA (1969) - permitiríam a integração 670. A Recomendação n° 3/2006 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sugeria a adoção do conceito de "crime organizado" estabelecido na Convenção de Palermo. O próprio STJ tinha precedentes nesse senti­ do: STJ, 5a Turma, HC 77.771/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 30/05/2008, DJe 22/09/2008; STJ, 6a Turma, HC 138.058/RJ, Rei. Min. Haroldo Rodrigues - Desembargador convocado doTJ/CE -, j. 22/03/2011, DJe 23/05/2011. E ainda: TRF-4.a Reg., ACR 2000.71.00.018143-6, 7.a Turma, rei. Maria de Fátima Freitas Labarrère, DE 13.06.2007.

da norma penal em aberto, a partir do reforço do universo conceituai relativo ao termo ‘tortura.671

Esse raciocínio, todavia, não podia ser empre­ gado em relação ao conceito legal de “organizações criminosas”, vez que esta expressão não podia ser interpretada como um mero elemento normativo a ser valorado pelo julgador. Isso porque, diver­ samente do revogado art. 233 da Lei n° 8.069/90, não se trata de um mero componente de um tipo completo, mas da própria arquitetura típica: não há verbo indicador da conduta, não há sujeito ativo ou passivo, não há menção a meios instrumentais ou modos de execução, não há referência a nenhuma circunstância que gire em torno do comportamento proibido. Ou seja, há, na verdade, um vazio legis­ lativo, que não podia ser suprido por um juízo de valor do órgão julgador. Admitir-se, então, que um tratado interna­ cional pudesse definir o conceito de “organizações criminosas” importaria, a nosso ver,672 em evidente violação ao princípio da legalidade, notadamente em sua garantia da lex populi. Com efeito, admitir que tratados internacionais possam definir crimes ou penas significa tolerar que o Presidente da Re­ pública possa, mesmo que de forma indireta, de­ sempenhar o papel de regulador do direito penal incriminador. Fosse isso possível, esvaziar-se-ia o princípio da reserva legal, que, em sua garantia da lex populi, exige obrigatoriamente a participação dos representantes do povo na elaboração e aprovação do texto que cria ou amplia o ius puniendi do Estado brasileiro.

À época em que a Lei de Lavagem de Capitais ainda trazia um rol taxativo de crimes antecedentes, dentre os quais constava o crime praticado por orga­ nização criminosa (revogado inciso VII do art. Io da Lei n° 9.613/98) - lembre-se que a Lei n° 12.683/12 passou a prever que qualquer infração penal po­ derá figurar como antecedente -, a discussão em torno do conceito legal de organizações criminosas acabou sendo enfrentada pelo próprio Supremo Tri­ bunal Federal. Em caso concreto em que dois indi­ víduos foram denunciados pelo crime de lavagem de capitais, descrevendo a denúncia a existência de 671. STF, Pleno, HC 70.389/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 23/06/1994, DJ 10/08/2001. No mesmo contexto: Piovesan, Flávia. A incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro, in Piovesan, Flávia, E Gomes, Luiz flávio (org.),

O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito bra­ sileiro. São Paulo: Ed. RT, 2000. p. 176.

672. Em obra publicada no ano de 2009, já havíamos nos posicionado nesse sentido ao tecer comentários acerca da Lei de Lavagem de Capitais: Legislação criminal Especial. Coleção Ciências Criminais. V. 6. Coordenação: Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 551.

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organização criminosa que se valeria de estrutura de entidade religiosa e de empresas vinculadas para ar­ recadar vultosos valores, ludibriando fiéis mediante fraudes, desviando numerários oferecidos para fi­ nalidades ligadas à Igreja, da qual aqueles seriam dirigentes, em proveito próprio e de terceiros, con­ siderou a Ia Turma do Supremo que a conduta seria atípica, haja vista a inexistência de conceito legal de organizações criminosas à época. Concluiu o Supre­ mo que referido conceito não poderia ser extraído da Convenção de Palermo (Decreto n° 5.015/2004), sob pena de violação à premissa de não existir crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5o, XXXIX).673

Face a decisão do Supremo, o Congresso Na­ cional se viu obrigado a legislar sobre o assunto, daí emergindo a Lei n° 12.694/12, que trata da formação do juízo colegiado para o julgamento de crimes pra­ ticados por organizações criminosas. Com vigência em 23 de outubro de 2012, seu art. 2o passou a con­ ceituar organizações criminosas no seguinte sentido: “Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela di­ visão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional”.

Por mais que, ao conceituar organizações cri­ minosas, o art. 2o da Lei n° 12.694/12 fizesse uso da expressão “para os efeitos desta Lei”, o conceito aí inserido era válido não apenas para a formação do órgão colegiado para o julgamento dos crimes por elas praticados, mas também para outras hipóteses, tais como, por exemplo, a aplicação dos procedi­ mentos investigatórios e meios de prova regulamen­ tados pela revogada Lei n° 9.034/95. Ora, uma mera interpretação gramatical de parte do art. 2o da Lei n° 12.694/12 - para os efeitos desta Lei - não podia conduzir ao absurdo de se admitir que haveria um conceito de organizações criminosas para a forma­ ção do órgão colegiado, mas que este conceito não pudesse ser utilizado para a aplicação da revogada Lei n° 9.034/95, ou que teríamos conceitos distintos de organizações criminosas no ordenamento pátrio. O conceito legal de organização criminosa intro­ duzido pelo art. 2o da Lei n° 12.694/12 teve uma curta vida útil. Isso porque a Lei n° 12.850/13, que define 673. STF, 1aTurma, HC 96.007/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 12/06/2012. Com entendimento semelhante: STF, Pleno, ADI 4.414/AL, Rei. Min. Luiz Fux, j. 31 /05/2012; STF, 1a Turma, HC 108.715/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/09/2013.

organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção de prova, infrações pe­ nais correlatas e o procedimento criminal, introduziu novo conceito de organizações criminosas no art. Io, § Io, nos seguintes termos: “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

Diante do novo conceito de organizações cri­ minosas introduzido pela Lei n° 12.850/13, surgem alguns questionamentos: haveria, doravante, 2 (dois) conceitos distintos de organizações criminosas, um para a formação do juízo colegiado, consoante dis­ posto no art. 2o da Lei n° 12.694/12, e outro para fins de aplicação dos procedimentos investigatórios constantes da Lei n° 12.850/13? Ou devemos traba­ lhar com um conceito único de organizações crimi­ nosas no ordenamento pátrio? Respondido afirma­ tivamente este último questionamento, teria havido, então, a revogação integral da Lei n° 12.694/12, ou será que subsiste a possibilidade de formação do juízo colegiado, aplicando-se, todavia, a nova defi­ nição de organizações criminosas constante do art. Io, § Io, da Lei n° 12.850/13? Parte minoritária da doutrina sustenta que há dois conceitos distintos de organizações criminosas no ordenamento pátrio: um para fins de formação do juízo colegiado, nos termos do disposto no art. 2o da Lei n° 12.694/12; outro para fins de aplicação das técnicas especiais de investigação regulamentadas pela nova Lei das Organizações Criminosas, cuja definição consta do art. Io, § Io, da Lei n° 12.850/13. Não podemos concordar com tal entendi­ mento. Por mais que a Lei n° 12.850/13 não faça qualquer referência à revogação parcial da Lei n° 12.694/12, especificamente no tocante ao conceito de organizações criminosas, é no mínimo estranho aceitarmos a superposição de conceitos distintos para definir tema de tamanha relevância para o Direito Penal e Processual Penal. É bem verdade que o art. 9o da LC 95/98, com redação dada pela LC n° 107/01, determina que a cláusula de revo­ gação de lei nova deve enumerar, expressamente, as leis e disposições revogadas, o que não ocorreu na hipótese sob comento, já que o art. 26 da Lei n° 12.850/13 revogou expressamente apenas a Lei n° 9.034/95, sem fazer qualquer referência ao concei­ to de organização criminosa constante do art. 2o da Lei n° 12.694/12. No entanto, a falta de técnica

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por parte do legislador - que, aliás, tem se tornado uma rotina -, não pode justificar a convivência de normas jurídicas incompatíveis entre si, tratando do conceito de organizações criminosas de manei­ ra conflitante. Por consequência, como se trata de norma posterior que tratou da matéria em sentido diverso, parece-nos que o novel conceito de orga­ nização criminosa constante do art. Io, § Io, da Lei n° 12.850/13, revogou tacitamente o art. 2o da Lei n° 12.694/12, nos termos do art. 2o, § Io, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.674

Se, de um lado, sustentamos que o conceito de organização criminosa deve ser unificado em tor­ no da definição constante do art. Io, § Io, da Lei n° 12.850/13, daí não se pode concluir que a Lei n° 12.694/12 teria sido integralmente revogada. Ora, por mais que tenha havido a revogação tácita do art. 2o da Lei n° 12.694/12 pela Lei n° 12.850/13, os demais dispositivos constantes desta Lei permanecem com plena vigência. Afinal, o objeto desses dois diplomas normativos é distinto: enquanto a Lei n° 12.694/12 dispõe sobre a formação do juízo colegiado para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, a Lei n° 12.850/13 define o crime de organização criminosa, infrações penais correlatas, regulamentando a investigação criminal e meios de obtenção de prova. Subsiste, pois, a possibilidade de formação do juízo colegiado para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, tal qual disposto no art. Io da Lei n° 12.694/12. Porém, para fins de conceituação de organizações crimino­ sas, há de ser utilizada a definição constante do art. Io, § Io, da Lei n° 12.850/13, que revogou tacitamente o disposto no art. 2o da Lei n° 12.694/12.

3.2. Formação do juízo colegiado em primeiro grau O II Pacto Republicano de Estado, assinado em 2009, estabeleceu como diretriz a criação de cole­ giado para julgamento em Io grau de crimes per­ petrados por organizações criminosas, para trazer garantias adicionais aos magistrados, em razão da periculosidade das organizações e de seus membros. Some-se a isso a morte de quatro juizes nos últimos tempos - Leopoldino Marques do Amaral, Antônio José Machado Dias, Alexandre Martins de Castro Filho e Patrícia Acioli. Tem-se aí o pano de fundo 674. Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização da 17aedi­ ção do curso de processo penal em virtude da Lei n° 12.850/13. Disponível em: http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao-comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-12-85013-2/. Acesso em 05/11/2013. E ainda: BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César.

Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 38.

que deu origem à Lei n° 12.694/12, que passou a dispor sobre a formação de um juízo colegiado em primeiro grau de jurisdição formado por 3 (três) juizes para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas. No plano federal, trata-se de novidade no pro­ cesso penal brasileiro. De fato, a despeito de as Turmas Recursais dos Juizados Especiais também serem formadas por 3 (três) juizes em exercício no primeiro grau de jurisdição, este órgão funciona como segundo grau de jurisdição, ou seja, como juízo ad quem em relação às decisões proferidas pela Ia instância dos Juizados Especiais Criminais no processo e julgamento das infrações de menor potencial ofensivo. Em sentido diverso, os juízos colegiados para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas atuarão no primeiro grau de jurisdição, cabendo ao respectivo Tribunal de Justiça (ou Tribunal Regional Federal) o julga­ mento de eventuais recursos.

Dissemos que se trata de novidade no processo penal brasileiro no plano federal porquanto, mesmo antes do advento da Lei n° 12.694/12, alguns estados da federação já haviam manifestado certa preocu­ pação em relação ao assunto. A título de exemplo, por meio da Lei n° 6.806/2007, o Estado de Alagoas criou a 17a Vara Criminal da Capital, atribuindo-lhe competência exclusiva para processar e julgar deli­ tos praticados por organizações criminosas dentro do território alagoano. A constitucionalidade dessa Lei Estadual foi objeto de discussão na ADI 4.414. Por tratar de matéria relacionada à organização ju­ diciária, concluiu o Supremo ser válida a criação, pelos estados-membros, de varas especializadas em razão da matéria, haja vista o quanto disposto no art. 74 do CPP, c/c art. 125 da Constituição Federal, desde que respeitadas as competências previstas na própria Carta Magna (v.g., Tribunal do Júri), sem que se possa arguir eventual afronta aos princípios do juiz natural, da vedação à criação de tribunais de exceção e da legalidade. Por maioria, o Plená­ rio do Supremo deu-lhe interpretação conforme a Constituição para excluir exegese que não se resuma ao disposto no art. Io da revogada Lei 9.034/95, ou seja, a vara especializada teria competência apenas para o processo e julgamento dos delitos decor­ rentes de ações praticadas por quadrilha ou bando (CPP, antiga redação do art. 288), ou organizações ou associações criminosas (Lei n° 11.343/06, art. 35; Lei n° 2.889/56, art. 2o). Ressalvou-se também que, na medida em que a lei estadual definiría o conceito de organização criminosa em termos de tipificação, ela extrapolaria seus limites, visto que esse conceito, apesar da Convenção de Palermo,

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poderia ser estabelecido apenas por lei federal, já que convenções internacionais não se qualificam como fontes formais de direito penal, para o qual vigora o princípio da reserva legal.

Especificamente em relação ao art. 2o da Lei n° 6.806/2007, segundo o qual esta Vara Especializada teria titularidade coletiva, sendo composta por 5 (cinco) Juizes de Direito, o Supremo concluiu ser possível que lei estadual instituísse órgão jurisdi­ cional colegiado em Io grau, nos mesmos moldes do que já ocorre, por exemplo, com o Tribunal do Júri, Junta Eleitoral e Turma Recursal. A composição de órgão jurisdicional inserir-se-ia na competência legislativa concorrente para versar sobre procedi­ mentos em matéria processual (CF, art. 24, XI). Assim, quando a norma criasse órgão jurisdicional colegiado, isso significaria que determinados atos processuais seriam praticados mediante a chancela de mais de um magistrado, questão meramente pro­ cedimental. Avaliou-se que a lei estadual teria atua­ do em face de omissão de lei federal, relativamente ao dever de preservar a independência do juiz na persecução penal de crimes a envolver organizações criminosas. Observou-se que o capítulo do CPP re­ ferente à figura do magistrado não seria suficien­ te para cumprir, em sua inteireza, o mandamento constitucional do juiz natural (CF, art. 5o, XXXVII e LIII), porque as organizações criminosas repre­ sentariam empecilho à independência judicial, na forma de ameaças e outros tipos de molestamentos voltados a obstaculizar e desmoralizar a justiça.675

O juízo colegiado criado pela Lei n° 12.694/12 não se confunde com a polêmica figura do juiz sem rosto (ou juiz secreto): enquanto este se caracteriza pelo fato de não ter seu nome divulgado, por não ter seu rosto conhecido, por ter sua formação técnica ignorada, naquele, o nome e a assinatura de cada um dos 3 (três) magistrados que fazem parte do órgão deverá constar de todas as decisões por ele profe­ ridas, com a única ressalva de que só não devem ser divulgadas eventuais divergências entre eles.676

Consoante dispõe o art. Io da Lei n° 12.694/12, em processos ou procedimentos que tenham por ob­ jeto crimes praticados por organizações criminosas,

o juiz poderá decidir pela formação de colegiado para a prática de qualquer ato processual, especial­ mente: I - decretação de prisão ou de medidas assecuratórias; II - concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão; III - sentença; IV - pro­ gressão ou regressão de regime de cumprimento de pena; V - concessão de liberdade condicional;677 VI - transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima; e VII - inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado. A utilização do advérbio especialmente no art. Io da Lei n° 12.694/12 deixa entrever que se trata de rol meramente exemplificativo. Na verdade, a ideia da formação do colegiado é que, uma vez formado, pas­ sará a ter competência para toda e qualquer decisão relativa àquela persecução penal.

Perceba-se que o art. Io da Lei n° 12.694/12 faz menção à formação do colegiado para a prática de qualquer ato processual. Na mesma linha, o § 3o do art. Io dispõe que a competência do colegiado limita-se ao ato para o qual foi convocado. Por isso, há quem entenda que a instauração do colegiado deva ser feita para a prática de cada ato específico, vez que sua competência é excepcional e se limita à prática de determinado ato. Logo, não seria possível a convocação para todo o processo ou para apenas uma fase dele, razão pela qual deve haver tantas instaurações quantos forem os atos em que estejam presentes as razões que as justifiquem.678 Sem embargo desse raciocínio, preferimos en­ tender que é plenamente possível - e até recomen­ dável - a formação do colegiado para o acompa­ nhamento de toda a persecução penal em relação a determinado crime praticado por organização cri­ minosa. A uma porque a instauração de colegiados diversos para a prática de cada ato processual é cla­ ramente incompatível com o princípio da celeridade, o que, evidentemente, contraria um dos objetivos da própria Lei n° 12.694/12, qual seja, o de viabilizar uma prestação jurisdicional mais justa e eficaz para os crimes praticados por organizações criminosas. Em segundo lugar, fosse necessária a convocação do colegiado para cada ato processual, ter-se-ia eviden­ te prejuízo à busca da verdade, escopo fundamental do processo penal. Afinal, para cada novo juiz que

675. STF, Pleno, ADI 4.414/AL, Rel. Min. Luiz Fux, j. 31/05/2012.

676. A Corte Interamericana de Direitos Humanos eliminou o juiz sem

677. A nosso juízo, houve certa impropriedade terminológica do legis­ lador ao fazer uso da expressão "liberdade condicional", transparecendo

rosto peruano em 1999 e em 2000 (respectivamente nos casos Cantoral Benavides e Castillo Petruzzi), porque ofensivo ao direito de defesa, que

evidente confusão entre dois institutos completamente distintos: liber­

tem direito a juiz imparcial. A Corte Suprema Colombiana aboliu essa

dade provisória e livramento condicional. Como a própria lei se refere à

excrescência no ano de 2000. Nessa linha: PIZA, Lia Verônica de Toledo; VILARES, Fernanda Regina. Crime organizado no Peru. Crime organizado: aspectos processuais. Coordenação: FERNANDES, Antônio Scarance; AL­ MEIDA, José Raul Gavião de; ZANOIDE DE MORAES, Maurício. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2009. p. 258.

liberdade provisória no inciso II do art. 1o, o inciso V do art. Io deve ser

interpretado como livramento condicional.

678. É nesse sentido a opinião de Vicente Greco Filho: Considerações processuais da lei de julgamento de crimes envolvendo organização crimi­ nosa. Boletim do IBCCRIM: Ano 20, n° 239, Outubro/2012, p. 3.

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passasse a fazer parte do colegiado, seria necessária a reabertura da instrução, de modo a permitir que este magistrado tomasse conhecimento dos elementos informativos e probatórios constantes dos autos do processo. Por fim, a necessidade de instauração de colegiados diversos para cada ato processual iria de encontro ao princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, § 2o), porquanto, especialmente nas causas a envolver crime organizado, esta limitação temporal da atividade do julgador inviabilizaria que ele fosse o mesmo perante o qual produzidas as provas e conduzidos os debates, obstaculizando, ademais, o princípio da oralidade, expressamente adotado pela Lei n° 11.719/08.

Nada diz a Lei n° 12.694/12 acerca do momento para a formação deste órgão colegiado. Todavia, se atentarmos para o fato de que, dentre os incisos do art. Io, há menção expressa a decisões típicas do pro­ cesso de conhecimento (v.g., concessão de liberdade provisória ou revogação da prisão) e da execução penal (v.g., concessão de livramento condicional), forçoso é concluir que a instauração do juízo cole­ giado em primeiro grau de jurisdição pode ocor­ rer em ambas as fases. Especificamente em relação ao processo de conhecimento, parece-nos que sua instauração pode se dar a qualquer momento, seja durante as investigações, seja durante o curso do processo judicial, mas desde que antes do início da instrução. Explica-se: fosse o colegiado instaurado tão somente após a produção integral da prova em juízo, se acaso 02 (dois) juizes que não participaram da instrução fossem obrigados a proferir sentença em relação a feito do qual não participaram da ins­ trução, ter-se-ia evidente violação ao princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, § 2o). Cuida-se, a formação do colegiado, de incidente processual em que o juiz declina da sua competência singular e atribui competência a um órgão colegiado em primeiro grau. Quanto à sua natureza jurídica, pode-se dizer que se trata de espécie de competên­ cia funcional por objeto do juízo. A convocação e atuação do colegiado deverá atender aos seguintes requisitos e formalidades:

1) Investigação criminal ou processo penal dotado de elementos de informação ou de pro­ vas que demonstrem que o crime objeto da per­ secução penal fora praticado no contexto de uma organização criminosa: a formação deste órgão co­ legiado está condicionada à existência de indícios de que se trata de crime praticado por organização criminosa, cujo conceito consta, doravante, do art. 1°, § Io, da Lei n° 12.850/13. Logo, não se admite a formação do juízo colegiado para o julgamento

de crimes praticados por meras associações crimi­ nosas (CPP, art. 288, com redação dada pela Lei n° 12.850/13); 2) Decisão do juiz de primeiro grau determi­ nando a formação do órgão colegiado: não se trata de ato discricionário do juiz, porquanto a própria lei estabelece os requisitos necessários para sua for­ mação. Nos termos do art. 93, IX, da Constituição Federal, esta decisão deve ser devidamente funda­ mentada, sob pena de nulidade absoluta, cabendo ao juiz indicar os indícios que o levam a acreditar que se trata de crime praticado por organização cri­ minosa, além da indicação dos motivos e das cir­ cunstâncias que acarretam risco à sua integridade física (Lei n° 12.694/12, art. 1°, § 1°). Apesar de a Lei fazer menção apenas ao risco à integridade física do juiz, é evidente que eventuais ameaças a sua família, verdadeira extensão de sua personalidade para fins funcionais, também autoriza a formação do órgão colegiado. Esta decisão de formação do juízo cole­ giado é feita com base nos elementos probatórios até então existentes, aplicando-se a cláusula rebus sic stantibus. Logo, se acaso um fato superveniente demonstrar que não se tratava de crime praticado por organização criminosa, isso não significa dizer que a anterior decisão judicial de formação do co­ legiado seja inválida. Quando a decisão judicial de formação do órgão colegiado for proferida no cur­ so de investigação ou processo judicial para fins de adoção de medida cautelar (v.g., prisão temporária, preventiva, sequestro de bens), pensamos que deve ser preservado seu sigilo, até mesmo como forma de se resguardar a eficácia da medida de urgência. Porém, em momento posterior, esta decisão deve ser juntada aos autos, até mesmo para que possa ser questionada pelas partes, resguardando-se, assim, a ampla defesa, o devido processo legal. A despeito de não haver previsão legal de recurso adequado para a impugnação dessa decisão, é perfeitamente pos­ sível a utilização dos remédios heroicos do habeas corpus e do mandado de segurança, pela defesa e pela acusação, porquanto todo acusado tem direito a ser processado e julgado pela autoridade judiciária competente (princípio do juiz natural). Certamente, haverá questionamentos acerca da constitucionali­ dade da formação desse órgão colegiado, em virtu­ de de possível violação ao princípio do juiz natural (CF, art. 5o, XXXVII e LIII). Considerando que re­ ferido postulado assegura não só a imparcialidade do julgador, evitando designações com finalidades obscuras em prejuízo do acusado, como também o direito, a qualquer pessoa, a processo e julgamento pelo mesmo órgão, e um reforço à independência do magistrado, é de todo evidente que a formação desse

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órgão colegiado vem ao encontro do juiz natural. Isso porque sua formação visa preservar a própria segurança do magistrado, que deve se sentir prote­ gido contra ameaças perpetradas por organizações criminosas para que possa exercer sua função ju­ risdicional de maneira imparcial e independente;

3) Escolha dos outros 02 (dois) juizes que irão integrar o órgão colegiado por sorteio eletrôni­ co dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição (Lei n° 12.694/12, art. Io, § 2o): ao contrário da Lei Alagoa­ na anteriormente citada, que previa que a nomeação de magistrado para integrar o órgão colegiado seria feita por meio de simples indicação e nomeação, de forma política, pelo Presidente do Tribunal, com aprovação do Pleno, sendo, neste ponto, declara­ da inconstitucional no julgamento da ADI 4.414, o critério de escolha adotado pela Lei n° 12.694/12 está em plena consonância com o princípio do juiz natural, porquanto se revela objetivo, apriorístico e impessoal, impedindo qualquer discricionariedade na formação do colegiado. A nosso ver, o sorteio eletrônico preserva o princípio do juiz natural, vez que impede a escolha post factum dos juizes que irão compor o órgão colegiado, afastando-se, assim, o perigo de prejudiciais condicionamentos de pro­ cessos por meio de designação hierárquica dos ma­ gistrados competentes para apreciá-los. A forma de realização desse sorteio eletrônico e a comunicação aos juizes convocados deverá ser feita nos termos da regulamentação dos Tribunais (Lei n° 12.694/12, art. Io, § 7o); 4) Comunicação aos órgãos correicionais: tão logo determinada a formação do órgão cole­ giado, deve se dar ciência ao órgão correicional (Lei n° 12.694/12, art. Io, § Io). Esta comunicação não tem natureza processual. Cuida-se, na verdade, de providência salutar que visa evitar abusos nas ins­ taurações de órgãos colegiados. Por isso, como o órgão correicional não exerce atribuições de nature­ za processual, não tem competência para reformar, cassar ou anular a decisão do juiz que determinou a formação do órgão colegiado, o que não impede, todavia, a instauração de procedimento correicio­ nal para apurar eventuais excessos. Uma vez co­ municado acerca da formação do órgão colegiado, poderá o respectivo Tribunal adotar medidas para reforçar a segurança dos magistrados e dos prédios da Justiça. De fato, consoante consta da própria Lei n° 12.694/12 (art. 3o), os Tribunais poderão adotar medidas de controle de acesso, com identificação, aos seus prédios, instalação de câmeras de vigilância e de aparelhos detectores de metais, aos quais se devem submeter todos que queiram ter acesso aos

seus prédios. Na mesma linha, mediante autorização específica e fundamentada das respectivas corregedorias e com a devida comunicação aos órgãos de trânsito competentes, os veículos utilizados por membros do Poder Judiciário e do Ministério Públi­ co que exerçam competência ou atribuição criminal poderão temporariamente ter placas especiais, de forma a impedir a identificação de seus usuários específicos (Lei n° 9.503/97, art. 115, § 7o, com re­ dação dada pela Lei n° 12.694/12). Ademais, para além da concessão de porte de arma aos servidores dos quadros do Poder Judiciário e do Ministério Público que efetivamente estejam no exercício de funções de segurança (Lei n° 10.826/03, art. 6o, XI, com redação dada pela Lei n° 12.694/12), também é possível que, diante de situação de risco, decorren­ te do exercício da função, sejam adotadas medidas de proteção pessoal às autoridades judiciais ou aos membros do Ministério Público e seus familiares (Lei n° 12.694/12, art. 9o);

5) Possíveis reuniões sigilosas do colegiado e decisões fundamentadas sem qualquer referência a voto divergente de qualquer membro: consoante disposto no art. Io, § 4o, da Lei n° 12.694/12, as reu­ niões do órgão colegiado poderão ser sigilosas sem­ pre que houver risco de que a publicidade resulte em prejuízo à eficácia da decisão judicial. Na hipótese de o colegiado ser formado por juizes domiciliados em cidades diversas, as reuniões poderão ser fei­ tas pela via eletrônica. De seu turno, o art. Io, § 6o, dispõe que as decisões do colegiado, devidamente fundamentadas e firmadas, sem exceção, por todos os seus integrantes, serão publicadas sem qualquer referência a voto divergente de qualquer membro. Assentada a constitucionalidade da formação de um órgão colegiado para o processo e julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, conclui-se que, até mesmo como forma de se preservar a independência de cada um dos julgadores, não deve haver menção a voto divergente de qualquer um de seus integrantes. Afinal, fosse obrigatória a menção individualizada a cada um dos votos, esvaziar-se-ia o próprio escopo da criação de um órgão colegiado. Como não deve haver referência a votos divergentes, o conteúdo da decisão tomada no colegiado não pode ser imputado a um único juiz. Isso torna difusa a responsabilidade de seus membros, o que acaba por mitigar alguns riscos inerentes ao processo e julgamento de crimes praticados por organizações criminosas. Esta reunião sigilosa e a impossibilidade de se fazer referência a voto divergente assemelha-se, um pouco, à própria garantia constitucional do sigilo das votações do Júri (CF, art. 5o, XXXVIII, “b”): como os jurados são cidadãos leigos, pessoas

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comuns do povo, que não gozam das mesmas ga­ rantias constitucionais da magistratura, susceptíveis a intimidações caso fossem obrigados a proferir seu voto na presença do acusado e de populares, o que acabaria por afetar a necessária e imprescindível imparcialidade do julgamento, a eles se confere a possibilidade de proferir seu voto em segredo. De maneira semelhante, as decisões do órgão colegiado também poderão ser adotadas em reuniões sigilo­ sas, sempre que houver risco de que a publicidade resulte em prejuízo à eficácia da decisão judicial, as­ segurada, porém, a presença do órgão do Ministério Público e do defensor. A diferença, porém, é que, no caso do órgão colegiado para o julgamento de organizações criminosas, as decisões tomadas pelo juízo colegiado serão devidamente fundamentadas e subscritas por todos os Magistrados, observan­ do-se, assim, o quanto disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Por isso, cuida-se, o art. Io, §§ 4o e 6 ', da Lei n° 12.694/12, de restrição legal à publicidade justificada pelo interesse público de assegura; a tranquilidade dos magistrados no mo­ mento da votação. Evidente, pois, a compatibilidade da reunião sigilosa do colegiado com o princípio da publicidade (CF, art. 93, IX, c/c art. 5o, LX), ainda mais se considerarmos que a colheita de provas, os debates e a leitura da sentença, devidamente funda­ mentada, serão feitos publicamente.

3.3. Varas criminais colegiadas para o julga­ mento de crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição, do crime do art. 288-A do Código Penal, e das infrações penais conexas aos refe­ ridos delitos (Lei n. 12.694/12, art. 1 °-A, incluí­ do pela Lei n. 13.964/19) Por força do Pacote Anticrime, foi acrescen­ tado à Lei n. 12.694/12 o art. 1°-A, que passou a prever a possibilidade de os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais instalarem, nas co­ marcas sedes de Circunscrição ou Seção Judiciária, mediante resolução, Varas Criminais Colegiadas com competência para o processo e julgamento de crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição, do crime do art. 288-A do Código Penal (constituição de milícia privada), e das infrações penais conexas aos crimes anteriormente citados. A despeito da introdução desse art. Io-A, o legislador não regula­ mentou como deverá se dar o funcionamento des­ sas varas colegiadas. Por consequência, parece-nos perfeitamente possível a aplicação, por analogia, da mesma sistemática prevista nos parágrafos do art. Io da Lei n. 12.694/12 (v.g., composição com 3 juizes,

reuniões sigilosas, decisões sem qualquer referência a votos divergentes, etc.). Ante o teor do art. Io-A, §2°, da Lei n. 12.694/12 (“§2° Ao receber, segundo as regras normais de dis­ tribuição, processos ou procedimentos que tenham por objeto os crimes mencionados no caput deste ar­ tigo, o juiz deverá declinar da competência e remeter os autos, em qualquer fase em que se encontrem, à Vara Criminal Colegiada de sua Circunscrição ou Seção Judiciária”), é bem provável que surjam ques­ tionamentos acerca da subsistência do art. Io, caput, do mesmo diploma normativo.

Com efeito, se o Pacote Anticrime passou a pre­ ver que o juiz do processo - a título de exemplo, juízo da comarca de Valinhos/SP - deverá declinar da sua competência e remeter os autos à vara crimi­ nal colegiada de sua circunscrição - a Comarca de Valinhos faz parte da Circunscrição de Campinas ou Seção Judiciária (Lei n. 12.694/12, art. 1°-A, §2°), não mais se justificaria que o juiz originariamente competente decidisse, com base no art. Io, caput, da Lei n. 12.694/12, pela formação de um colegia­ do, hipótese em que o feito continuaria tramitan­ do na mesma comarca (ou Subseção Judiciária). À primeira vista, fica a impressão, então, de que o art. Io-A teria produzido a revogação tácita do art. Io, ambos da Lei n. 12.694/12. Mas tal conclusão só nos parece correta nas hipóteses em que a vara criminal colegiada tiver sido, de fato, instalada na respectiva Circunscrição ou Seção Judiciária. Logo, enquanto os Tribunais não se desincumbirem desse mister, subsiste a validade do art. Io, caput, da Lei n. 12.694/12. Daí, aliás, o motivo de não ter ocorrido a revogação expressa deste último dispositivo nor­ mativo, que subsiste válido, pelo menos enquanto não implantada as varas criminais colegiadas a que se refere o art. Io-A da Lei n. 12.694/12. De mais a mais, como o art. Io-A, inciso I, da Lei n. 12.694/12, restringe sua aplicação aos crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição, também não se pode descartar a subsistência do art. Io, caput, do mesmo diploma normativo, em relação àquelas organizações crimi­ nosas desprovidas de armas, por mais improvável que tal hipótese se apresente no cenário atual do País.

4. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL Nos exatos termos do art. 2o da Lei de Execução Penal, a jurisdição penal dos juizes ou tribunais da justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade

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da Lei n° 7.210/84 e do Código de Processo Penal, igualmente se aplicando a LEP ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quan­ do recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária.

Uma primeira questão a ser abordada no tocan­ te à competência do juízo da execução penal refere-se às condenações impostas pelas Justiças da União, aí abrangidas a Justiça Federal, a Justiça Militar da União e a Justiça Eleitoral.

Como já foi visto ao tratarmos da competên­ cia da Justiça Federal (item pertinente à execução penal), a súmula n° 192 do STJ (“Compete ao Juí­ zo das Execuções Penais do Estado a execução das penas impostas a sentenciados pela Justiça Federal, Militar ou Eleitoral, quando recolhidos a estabele­ cimentos sujeitos à administração estadual”) deixa entrever que, para fins de fixação da competência do juízo da execução, interessa aferir a natureza do estabelecimento penitenciário em que se encontra o condenado: se estadual, o juízo das execuções será estadual; se federal, o juízo das execuções será fe­ deral; se militar, o juízo das execuções será militar. A justificativa para adoção desse entendimento nos é trazida por Alberto Silva Franco: “a natureza e a sede do estabelecimento penitenciário em que o sentenciado cumpre a reprimenda determinam a competência do juiz para, no exercício da atividade jurisdicional, dirimir os incidentes da execução da pena, pois outro entendimento levaria a uma inad­ missível dualidade jurisdicional em um mesmo pre­ sídio, criando, às vezes, inconciliáveis situações em relação a presos numa mesma situação, num mesmo estabelecimento penal, apenas e tão-somente por­ que suas condenações foram decretadas por justiças diferentes”.679

Aliás, é exatamente nesse sentido o teor da Lei n° 11.671/08, que dispõe sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima. Segundo a referida lei (art. 2o), a atividade jurisdicional de execução penal nos estabelecimentos penais federais será desenvolvida pelo juízo federal da seção ou sub­ seção judiciária em que estiver localizado o esta­ belecimento penal federal de segurança máxima ao qual for recolhido o preso. Ademais, consoante disposto no art. 2o, parágrafo único, do referido diploma normativo, incluído pela Lei n. 13.964/19, o juízo federal de execução penal será competente para as ações de natureza penal que tenham por

objeto fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabele­ cimento penal federal. Por sua vez, o art. 4o, caput, e seus §§ Io e 2o estabelecem 3 (três) premissas fundamentais: a) a admissão do preso, condena­ do ou provisório, dependerá de decisão prévia e fundamentada do juízo federal competente, após receber os autos de transferência enviados pelo juí­ zo responsável pela execução penal ou pela prisão provisória; b) a execução penal da pena privativa de liberdade, no período em que durar a transfe­ rência, ficará a cargo do juízo federal competente; c) apenas a fiscalização da prisão provisória será deprecada, mediante carta precatória, pelo juízo de origem ao juízo federal competente, mantendo aquele juízo a competência para o processo e para os respectivos incidentes.680

Não por outro motivo, ao apreciar o Conflito de Competência n° 90.702/PR, relativo à execução penal de apenados que foram transferidos para a penitenciária federal de Catanduvas/PR por razões de segurança pública, devido à periculosidade de suas condutas, manifestou-se a 3a Seção do STJ pela competência do juízo federal para apreciar as ques­ tões referentes à execução da pena no período de permanência dos presos custodiados no estabeleci­ mento federal.681 Esse raciocínio é válido não apenas para o cum­ primento de pena privativa de liberdade, mas tam­ bém quando se tratar de medida de segurança. Por consequência, compete à Justiça Estadual a execução de medida de segurança imposta a militar licencia­ do. Isso porque a execução dessa medida se dará em estabelecimento estadual, ante a inexistência de estabelecimentos penais federais próprios para essa finalidade. Inafastável, portanto, o enunciado da Súmula 192 do STJ.682

Perceba-se que a Justiça Militar também terá competência para funcionar como juízo da execução

680. Desde que fundamentada em fatos caracterizadores de situação emergencial (v.g., rebeliões ocorridas em determinado período, com a morte de vários detentos; julgamento, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Brasil e do estado-membro em que localizada a penitenciária na qual inicialmente recluso o preso; interdição do presídio; periculosidade do paciente), a transferência de preso para presídio federal de segurança máxima sem a sua prévia oitiva não configura ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa, da individualização da pena e da dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 5o, §§ 2o e 6o, da Lei n° 11.671/2008, sobretudo se considerarmos que não há direito subjetivo do condenado de cumprir a pena em penitenciária específica. Nesse sentido: STF, 1a Turma, HC 115.539/RO, Rel. Min. Luiz Fux,j. 03/09/2013.

681. Nessa linha: STJ, 3a Seção, CC 90.702/PR, Rel. Min. Og Fernandes, Dje 13/05/2009. 679. Crimes hediondos. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1991. p. 115.

682. STJ, 3a Seção, CC 149.442/RJ, Rel. Min. Joel llan Paciornki, j. 09/05/2018, DJe 17/05/2018.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

na hipótese em que o acusado tiver sido condenado pela Justiça Castrense e estiver cumprindo pena em estabelecimento a ela subordinado.683 Nesse caso, os incidentes da execução penal não são decididos por um Conselho de Justiça, mas monocraticamente pelo Juiz Federal da Justiça Militar (no âmbito da Justiça Militar da União) ou pelo juiz de direito do juízo militar (no âmbito da Justiça Militar dos Es­ tados), ex vi dos arts. 588 e 590 do CPPM.

Quanto à competência territorial do juízo das execuções, preceitua o art. 65 da LEP que “a execução penal competirá ao juiz indicado na lei local de organização judiciária e, na sua ausên­ cia, ao da sentença”. Em regra, por conseguinte, tem-se que o processo de execução do condenado deve ser conduzido pelo magistrado responsável pela Vara de Execuções Criminais do local onde está ocorrendo o cumprimento da pena. Excep­ cionalmente, se o sentenciado estiver cumprindo pena na mesma comarca do juiz prolator da deci­ são que o condenou, e desde que nesse lugar não haja Vara privativa de execução penal, recairá a competência sobre o juiz da sentença (LEP, art. 65, parte final). Nas hipóteses de mudança de local de cum­ primento de pena, os autos da execução penal de­ vem seguir o condenado, cabendo ao magistrado do local onde estiver cumprindo pena promover a execução, ressalvada a hipótese em que houver uma transferência provisória do condenado para outra comarca (v.g., para acompanhar a instrução de um processo), hipótese em que não há necessidade de deslocamento da competência territorial.684

No âmbito do STJ, também tem prevalecido o entendimento de que compete ao Juízo da Vara das Execuções Penais da comarca onde se situa o estabelecimento penitenciário onde o condenado cumpre pena decidir sobre os incidentes de execu­ ção, mesmo sendo esta imposta por Juízo de outro Estado.685 Corroborando esse raciocínio segundo o qual o juízo da execução é determinado com base no 683. STJ, 3a Seção, CC 19.119/RS, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 12/08/97. Relembre-se que o militar só pode ser recolhido a estabeleci­ mento prisional comum após sua exclusão da Força Pública (Lei n° 6.880, art. 73, parágrafo único, "c"). Nessa linha, vide: STF, 2a Turma, HC 72.785, Rei. Min. Néri da Silveira, DJ 08/03/1996. Portanto, compete à Justiça Comum a execução da pena imposta pela Justiça Castrense quanto à prática de crime militar, quando o condenado for excluído da Corpora­ ção Militar: STJ, 3a Seção, CC 109.355/RJ, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 27/04/2011, DJe 30/05/2011. 684. Nessa esteira: NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 277-278.

685. Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 33.186/AM, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 04/02/2002 p. 285. Na mesma linha: STJ, 3a Seção, CC

25.986/AC, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 18/10/1999.

local do cumprimento da pena, vale destacar que a Lei n° 11.671/08, que dispõe sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais fede­ rais de segurança máxima, preceitua em seu art. 6o que, admitida a transferência do preso condenado, o juízo de origem deverá encaminhar ao juízo federal os autos da execução penal. Outro ponto que merece ser analisado diz res­ peito à competência do juiz da execução penal para a aplicação da lei penal mais benéfica, atendendo-se ao princípio da retroatividade da lei penal mais be­ néfica, previsto no art. 5o, XL, da Carta Magna, e no art. 2o, parágrafo único, do Código Penal. Quanto ao assunto, dispõe o art. 66, inciso I, da LEP, competir ao juiz da execução aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o conde­ nado, pouco importando se a condenação anterior foi firmada pelo juízo de Io grau ou por qualquer Tribunal. O Supremo Tribunal Federal, anterior­ mente à vigência da Lei n° 7.210/84, por intermédio da súmula n° 611, já havia entendido que transita­ da em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna. O mesmo se diga em relação à anistia e ao indulto.

Conquanto, à primeira vista, pareça não haver maiores discussões acerca da competência para apli­ cação da lex mitior após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, deve se entender que compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benéfica apenas quando tal aplicação impor­ tar em mero cálculo matemático. A contrario sensu, toda vez que o juiz da Vara de Execuções, de modo a aplicar a lex mitior, tiver de, necessariamente, aden­ trar no mérito da ação penal de conhecimento, já não possuirá competência para tanto, sendo neces­ sário o ajuizamento de revisão criminal.686 Perceba-se que a competência para aplicação da norma penal mais benéfica somente recai sobre o juízo das execuções nas hipóteses em que já houve 686. Com essa posição: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 5a ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p. 125. O autor cita um exemplo: "supo­ nhamos que a nova lei penal tenha criado uma causa geral de diminui­ ção de pena por considerar a idade do agente ao tempo da ação ou da omissão. O juiz, para aplicar a referida redução, bastará conferir o documento de identidade existente nos autos. Se o agente se adequar às novas disposições, fará jus à redução. O cálculo, neste caso, é meramente matemático, objetivo. Agora, tomando de empréstimo o exemplo de Alberto Silva Franco, se o juiz tiver de avaliar a participação do agente para poder chegar à conclusão de que fora de menor importância, deverá, obrigatoriamente, reavaliar o mérito da ação penal. Em casos como tais, a competência não mais será do juiz das execuções, mas a aplicação da lei benéfica ficará a cargo do tribunal competente para a apreciação do recurso, via revisão criminal, pois que entendimento contrário conduziría a transformar o juiz da execução penal num'superjuiz'com competência até para invadir a área privativa da Segunda instância, alterando qualifi­ cações jurídicas definitivamente estatuídas".

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o trânsito em julgado da sentença condenatória. Por isso, se o processo ainda estiver em andamento no primeiro grau de jurisdição, caberá ao próprio juiz do processo de conhecimento a aplicação da lex mitior. Lado outro, se o processo estiver em grau recursal, caberá ao respectivo Tribunal a aplicação da norma penal mais favorável, pouco importando se se trata de julgamento de recurso exclusivo da acusação, sob pena de flagrante desrespeito à norma constitucional do art. 5o, XL, sendo desnecessária a devolução dos autos à primeira instância. Sobre o assunto, a Súmula 88 das Mesas de Processo Pe­ nal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo dispõe: “Antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, compete ao Tribunal de 2o grau, na pendência de recurso, aplicar a lei mais benéfica, não ocorrendo na hipótese supressão de um grau de jurisdição, por existirem outros meios de impugnação aberto às partes”.

Por outro lado, tem sido admitida pelos Tribu­ nais a concessão de progressão de regimes ao preso cautelar, enquanto aguarda o julgamento de recurso interposto pela defesa, e desde que tenha se opera­ do o trânsito em julgado da sentença condenatória para o Ministério Público, pelo menos em relação à pena (princípio da non reformatio in pejus - CPP, art. 617). Prova disso é o teor da súmula n° 716 do STF: “Admite-se a progressão de regime de cumpri­ mento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”. Nesse caso, a quem compete a concessão do benefício: ao juízo da condenação ou ao juízo da execução?

Uma primeira corrente entende que a compe­ tência para decidir sobre progressão de regime de cumprimento de pena em relação aos presos pro­ visórios, ou seja, no período que medeia entre a publicação da sentença condenatória e o seu trânsito em julgado, é do Juiz da condenação.687 Prevalece, todavia, o entendimento de que a competência é do Juízo da Execução Penal.688 A propósito, eis o teor do art. 8o da Resolução n° 113 do CNJ: “Tratando-se de 687. STJ, 6a Turma, HC 7.955/MT, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ

17/02/1999 p. 167. 688. STF, Ia Turma, RHC 92.872/MG, Rei. Min. Cármen Lúcia, Dje 26 14/02/2008. Ainda no sentido da competência do juízo da execução para processar e julgar pedido de progressão de regime feito por preso cau­ telar: STJ, 5a Turma, HC 89.711/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, DJe 09/06/2008. Uma vez tendo o réu que cumprir pena, mesmo provisória, imposta pela

Justiça Federal, em estabelecimento prisional sujeito à administração

réu preso por sentença condenatória recorrível, será expedida guia de recolhimento provisória da pena privativa de liberdade, ainda que pendente recurso sem efeito suspensivo, devendo, nesse caso, o juízo da execução definir o agendamento dos benefícios cabíveis”.

4.1. Execução da pena de multa Na redação original do Código Penal, o inadimplemento da pena de multa acarretava a sua conversão em pena privativa de liberdade, na pro­ porção de um dia de detenção para cada dia-multa. Eis que surge, então, a Lei n. 9.268/96, e põe fim à conversão da pena de multa em detenção. À épo­ ca, era nesse sentido o teor do art. 51, caput, do Código Penal: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se lhe as normas da legislação re­ lativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”. Portanto, uma vez operado o trânsito em julgado da sentença condenatória, e desde que não houvesse depósito a título de fiança em valor suficiente para a condenação, competia ao juízo da execução penal proceder à intimação do condenado para que efetuasse o pagamento da pena de multa no prazo de 10 (dez) dias (CP, art. 50). Em caso de inadimplência, sempre houve con­ trovérsias acerca da legitimidade e da competência para a sua execução:

a) Legitimidade da Fazenda Pública e com­ petência do Juízo das Execuções Fiscais: na visão do STJ,689 essa atribuição seria da Fazenda Pública (Federal ou Estadual), que deveria ser comunicada a fim de que inscrevesse a multa em dívida ativa, seguindo-se a execução fiscal no juízo de execuções fiscais, e não perante o juízo das execuções crimi­ nais. Diante da redação do art. 51 do CP conferida pela Lei n. 9.268/96, aquela Corte entendia que o art. 164 da LEP (“Extraída certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que valerá como título executivo judicial, o Ministério Público requererá, em autos apartados, a citação do conde­ nado para, no prazo de 10 (dez) dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora”) havia sido revogado, afastando-se, pois, do Ministério Público a legitimidade para promover a execução de pena de multa imposta em decorrência de processo cri­ minal, tratando-se de atribuição da Procuradoria da

estadual, é da competência da Vara das Execuções Penais do Estado o processamento e julgamento dos incidentes da execução. A competência da Justiça Comum Estadual, nesse caso, é ordinária - originária e recursal

689.STJ, 5a Turma, REsp 459.750/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, DJ 15/09/2003

-, não sendo caso de delegação de competência federal: STJ, 5a Turma,

p. 351. No mesmo sentido: STJ, 6a Turma, AgRg no REsp 1,027.204/MG, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJe 18/08/2008.

HC 89.711/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 20/05/2008, DJe 09/06/2008.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Fazenda Pública, havendo juízo especializado para a cobrança da dívida, que não o da Vara de Execuções Penais. Era exatamente nesse sentido, aliás, o teor da Súmula n. 521 do STJ: “A legitimidade para a execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública”;

a redação antiga (dada pela Lei n. 9.268/96) e a nova (conferida pela Lei n. 13.964/19), denota-se que, do­ ravante, a execução da pena de multa deverá ser promovida exclusivamente pelo Ministério Público, e tão somente perante o Juízo da Execução Penal.

b) Legitimidade precípua do Ministério Pú­ blico e competência inicial do Juízo das Execuções Penais: em decisão proferida na apreciação da ADI n. 3.150 (STF, Pleno, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 13/12/2018), em julgamento conjunto com a 12a Questão de Ordem apresentada na Ação Penal n. 470, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que, por ter natureza de sanção penal, o Ministério Pú­ blico seria o principal legitimado para executar a co­ brança das multas pecuniárias fixadas em sentenças penais condenatórias perante o Juízo das Execuções Penais, limitando-se a atribuição da Fazenda Pública para executar essas multas perante a vara de execu­ ção fiscal tão somente nos casos de inércia ministe­ rial. Na dicção do Relator - Min. Roberto Barroso -, o fato de a redação então vigente do art. 51 do CP ter transformado a multa em dívida de valor não retiraria a atribuição do Parquet para efetuar sua cobrança, já que se trata de espécie de sanção penal prevista na Constituição Federal (artigo 5o, inciso XLVI, alínea “c“), do que se conclui que sua natu­ reza jurídica jamais poderia ser alterada por uma lei ordinária. Ressaltou, ademais, que o art. 164 da LEP reconhece a atribuição do Ministério Público para executar a dívida. Se a condenação criminal é um título executivo judicial, seria incongruente sua inscrição em dívida ativa, que é um título executivo extrajudicial. Enfim, concluiu que, caso não fosse proposta pelo órgão ministerial a execução da multa no prazo de 90 dias após o trânsito em julgado da sentença, aí sim o juízo da vara criminal deveria comunicar ao órgão competente da Fazenda Pública para efetuar a cobrança na vara de execução fiscal com base na Lei n. 6.830/80;

Caso haja na comarca dois ou mais juizes igual­ mente competentes, deverá a competência ser deter­ minada por meio da distribuição, tal qual dispõe o art. 75 do CPP, o qual preceitua que a precedência da distribuição fixará a competência quando, na mes­ ma circunscrição judiciária, houver mais de um juiz igualmente competente.

c) Legitimidade exclusiva do Ministério Pú­ blico e competência única do Juízo das Execuções Penais: eis que surge, então, o Pacote Anticrime, sepultando de vez toda a controvérsia em torno da legitimidade e competência para a execução da pena de multa. Isso porque, consoante disposto na nova redação conferida ao caput do art. 51 do Código Pe­ nal, “transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Públi­ ca, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”. Do simples cotejo entre

5. COMPETÊNCIA POR DISTRIBUIÇÃO

Consiste a distribuição, portanto, em um cri­ tério de fixação de competência entre juizes igual­ mente competentes pertencentes a uma mesma comarca ou circunscrição judiciária. Para que seja preservado o princípio do juiz natural, impedindo que se possa escolher de antemão o juiz, deve ser feita de maneira aleatória e imediata, observando-se rigorosa igualdade (art. 285 do novo CPC). Aliás, dispõe a Constituição Federal, em seu art. 93, XV, que “a distribuição de processos será imediata, em todos os graus de jurisdição”. Exemplificando, caso determinada comarca conte com uma vara especializada (ex: drogas, trân­ sito, etc.), eventual delito relacionado à matéria de sua especialização praticado nos limites territoriais da comarca deve ali ser processado e julgado. Se, todavia, essa comarca não contar com nenhuma vara especializada, e desde que nenhum juízo es­ teja prevento para processar e julgar a demanda, proceder-se-á à distribuição, a qual terá o condão de firmar o juiz competente para o julgamento do feito. Vê-se que, uma vez fixada a competência territorial, seja pelo lugar da infração, seja pelo domicílio do réu, funciona a distribuição como critério de fixação concreta da competência do juízo perante o qual tramitará o respectivo processo. Ademais, por ra­ zões óbvias, a distribuição somente será necessária quando houver na mesma comarca ou circunscrição judiciária mais de um juízo com igual competência para o processo.

É possível que ocorra uma distribuição por dependência, ou seja, que um juízo encontre-se prevento para processar e julgar determinado feito, havendo o oferecimento de denúncia em relação a crime conexo àquele. Nesse caso, o processo seguirá diretamente para o juízo prevalente sem necessidade de novo sorteio, hipótese em que deverá ocorrer ulterior compensação entre os juizes.

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Além da distribuição por dependência, em que se dá atribuição do feito a juiz que tenha prevenido a competência, dada a relação desse feito com outro já distribuído, Mirabete cita outras ocorrências próprias da distribuição, tais como: a) a compensação - corre­ ção de erro ou falta, atribuindo-se um novo feito ao prejudicado, a pedido dele ou ex officio; b) baixa na distribuição - cancelamento de distribuição anterior, para efeito de redistribuição a juiz que venha a ser tido como competente.690

Prevalece na jurisprudência o entendimento de que eventual inobservância da competência por distribuição é causa de mera nulidade relativa, razão pela qual deve ser arguida no momento oportuno, sob pena de preclusão, oportunidade em que a parte deverá comprovar o prejuízo.691 Não se procede à distribuição nas seguintes hipóteses:

a) em virtude da matéria, pela natureza da in­ fração, se for crime de competência do júri popu­ lar, o processo não poderá ser distribuído normal­ mente entre os juizes do local, pois o julgamento fica afeto a um órgão jurisdicional especial (CPP, art. 74, § Io); b) em razão da conexão ou continência, as in­ frações devem ser apuradas em processo já afeto à autoridade judiciária prevalente (CPP, arts. 76 a 78); c) em razão da prevenção, deva a ação penal ser submetida à apreciação de autoridade judiciária, que já tenha, de algum modo, tomado conhecimento do caso (CPP, art. 83);

É comum que, antes da conclusão do inquérito policial, venha o magistrado a praticar atos juris­ dicionais. Por tal razão, dispõe o art. 75, parágrafo único, do CPP, que a distribuição realizada para o efeito da concessão de fiança ou da decretação de prisão preventiva ou de qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa prevenirá a da ação penal.

Nessa hipótese, em que o magistrado praticou um ato jurisdicional, evidentemente com prévia distribuição, o inquérito não será novamente dis­ tribuído, devendo sim ser enviado àquele juiz que praticou referidos atos jurisdicionais. Na verdade, o dispositivo é mal redigido, porque o que ele preten­ de dizer é que a distribuição para aquelas medidas

dispensará a distribuição da ação penal e prevenirá o juízo.692 Por fim, quando já definida a competência pela distribuição, tem-se entendido ser possível que re­ solução de Tribunal determinando a criação de va­ ras tenha o condão de estabelecer a redistribuição de processos anteriormente distribuídos. Na visão dos Tribunais Superiores, a redistribuição de feitos decorrente da criação de varas com idênticas com­ petências com a finalidade de igualar os acervos dos juízos e dentro da estrita norma legal, não viola o princípio do juiz natural, na medida em que a re­ ferida garantia constitucional permite posteriores alterações de competência. O próprio Supremo, aliás, já se manifestou no sentido de que inexiste violação ao princípio do juiz natural, quando ocorre redistribuição de feitos em virtude de mudança na organização judiciária, visto que o art. 96, “a”, da Constituição Federal, assegura aos tribunais o direi­ to de dispor sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais.693

6. COMPETÊNCIA POR PREVENÇÃO694 A competência também pode ser fixada pela prevenção, tal qual estabelece o art. 69, inciso VI, do CPP. A palavra prevenção deriva de prevenire, que significa vir antes, chegar antes, antecipar, signifi­ cando em direito conhecimento anterior. A compe­ tência por prevenção ocorre quando, concorrendo dois ou mais juizes igualmente competentes ou com competência cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato ou na determi­ nação de alguma medida, mesmo antes de oferecida a denúncia ou queixa (CPP, art. 83).695 692. Nessa linha: TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo penal. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 1. p. 111 -112. 693. Nessa linha: STJ, HC 102.193/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado

em 02/02/2010. 694. Para mais detalhes acerca da (in) subsistência da prevenção como critério residual de fixação de competência diante da criação da figura do juiz das garantias, remetemos o leitor ao Título 2 do nosso Manual.

695. Como concluiu o STJ,"embora o procedimento tenha se originado por meio de medida cautelar (interceptação telefônica), deferida pelo Juízo

ção efetiva do prejuízo: STJ, 6a Turma, RHC 11.570/MG, Rel. Min. Hamilton

Federal, se as investigações lograram comprovar tão-somente a prática, em tese, do delito de rufianismo, irrelevante a alegação de existência de dependência com ação penal versando acerca de tráfico de pessoas, porquanto não se verifica que as provas produzidas tenham relação com o processo principal em curso na Justiça Federal. Inocorre o instituto da prevenção previsto no art. 83 do Código de Processo Penal porquanto inexistem dois juízos igualmente competentes. Em que pese a decretação da interceptação telefônica ter se dado pelo Juízo Federal, óbice não se verifica para que a apuração do suposto crime ali revelado ocorra perante a Justiça Estadual por ser a competente para o exame do feito, sob pena de afronta ao princípio do juiz natural. 3. Conflito conhecido para determinar competente o suscitado, Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos e Polícia Judiciária de São Paulo/SP". (STJ - CC 87.589/SP - 3a Seção - Rel.

Carvalhido, DJ 24/06/2002 p. 342.

Min. Og Fernandes - Dje 24/04/2009).

690. Processo penal. 18a ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 167.

691. No sentido de que a inobservância do art. 75 do CPP consubstan­ cia nulidade relativa, exigindo, por isso, alegação oportuna e demonstra­

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Cuida-se de hipótese de fixação de competência cuja inobservância tem o condão de produzir mera nulidade relativa. Como preceitua a súmula 706 do STF, é relativa a nulidade decorrente da inobservân­ cia da competência por prevenção.696

Enquanto no cível, o simples registro ou a mera distribuição da petição inicial já têm o condão de tornar prevento o juízo (art. 59 do novo CPC) -, no âmbito criminal, qualquer ato do processo praticado pelo magistrado que contenha certa carga decisória, ainda que anterior ao oferecimento da peça acusató­ ria, já é suficiente para prevenir a jurisdição. A fim de que essa diligência anterior à denúncia fixe a competência por prevenção, duas condições devem estar presentes:

a) existência de prévia distribuição: o art. 83 do CPP deve ser compreendido em conjunto com o art. 75, parágrafo único, ou seja, só se pode cogitar de prevenção da competência quando a decisão, que a determinaria, tenha sido precedida de distribuição, por isso que não previnem a competência decisões de juiz de plantão, nem as facultadas, em caso de urgência, a qualquer dos juizes criminais do foro;697

b) deve a medida ou diligência apresentar o mesmo caráter cautelar ou contra cautelar (a fiança é exemplo de contracautela) encontrado nas hipó­ teses exemplificadas na regra contida no parágrafo único do art. 75 do CPP. Vejamos alguns exemplos de diligências que previnem o juízo: b.l) concessão de fiança (arts. 321 a 350); b.2) conversão da prisão em flagrante em preventiva ou temporária (CPP, art. 310, II); b.3) decretação de prisão preventiva (arts. 311 a 316 do CPP) ou de prisão temporária (Lei n° 7.960/89);698 b.4) pedidos de medidas assecuratórias dos arts. 125 a 144 do CPP; b.5) pedidos de provas, como expedição de mandado de busca e apreensão, interceptação telefônica ou quebra de sigilo bancário;699 b.6) manifestação do juízo acerca da regularidade da prisão em flagrante delito,

quando comunicado nos termos do art. 5o, inciso LXII, da Carta Magna.700

Parte da doutrina entende que não repercute na fixação da competência a distribuição de procedi­ mentos que, visando diligência anterior à propositura da ação penal, constituem medidas preparatórias cuja relação com a eventual ação futura se dá unicamente pelo fato de serem necessárias para atender requisito indispensável ao legítimo exercício do direito de ação penal. Como exemplo de medida preparatória, Maria Lúcia Karam cita a busca e apreensão para realização de laudo pericial, prevista nas regras dos arts. 525 a 528 do CPP, a qual, visando tão somente à realização do laudo, deve se limitar ao material necessário para o exame pericial, tendo natureza diferente da que se regula nos arts. 240 a 250 do Código de Processo Penal, esta sim medida de caráter cautelar.701702

Outro exemplo de medida preparatória é o pe­ dido de explicações previsto no art. 144 do Código Penal, destinado tão somente a fornecer elementos para eventual e futura propositura de ação penal condenatória, fazendo-se o pedido de explicações necessário nos casos em que expressões ambíguas permitam apenas que delas se infiram possíveis ofensas a serem esclarecidas, por não terem sufi­ ciente clareza para, por si, indicarem a atipicidade de eventuais crimes contra a honra. Da mesma forma que o inquérito policial, tais medidas preparatórias visam apenas a fornecer elementos para que o titular da ação forme sua convicção sobre a existência ou não da infração penal, de forma a poder ele decidir sobre a propositura ou não daquela ação. Como a atividade exercida pelo juiz no procedimento des­ sas medidas preparatórias não constitui atividade propriamente jurisdicional, tendo, sim, um caráter meramente administrativo, forçoso é concluir que a simples distribuição de tais procedimentos não acar­ retará a fixação da competência por prevenção.702 Como aponta Karam, “a simples relação entre a medida preparatória e ação penal, consistente no fato de ser tal medida necessária para atender requi­ sito indispensável ao legítimo exercício do direito de ação penal condenatória, nenhuma repercussão

696. Com esse entendimento: STF, Ia Turma, HC 81.134/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, Dje 096 05/09/2007. 697. Nessa linha: STF, Pleno, HC 69.599/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Per­

tence, DJ 27/08/1993. 698. No sentido de que a decisão que decreta a prisão temporária, bem como a que determina a quebra do sigilo das comunicações tele­ fônicas, na fase inquisitorial, são causas de fixação da competência por prevenção: STJ, 6a Turma, HC 18.120/SC, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 24/03/2003 p. 286.

699. Quanto à interceptação telefônica: STJ - HC 13.624/RJ - 5aTurma - Rei. Min. Felix Fischer - DJ 05/02/2001 p. 120. Em relação à quebra do sigilo bancário: STF - HC 80.717/SP -Tribunal Pleno - Rei. Ministra Ellen Gracie - DJ 05/03/2004.

700. Como já decidiu o STJ, "mesmo antes do oferecimento da denún­ cia o Juiz torna-se prevento para a análise e julgamento do processo se teve a oportunidade de se manifestar, na fase do inquérito policial, sobre a regularidade da prisão em flagrante delito". (STJ - HC 108.528/PE - 6a Turma - Relatora Ministra Jane Silva - Dje 15/09/08).

701. Op. cit. p. 151. 702. Em sentido contrário, Mirabete (Código de Processo Penal Interpre­ tado. 11a ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 324) cita como exemplos de atos que fixam a competência pela prevenção o pedido de explicações em juízo nos crimes contra a honra previsto no art. 144 do CP, assim como o pedido de busca e apreensão nos crimes contra a propriedade imaterial.

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deve ter sobre a competência, não havendo razão para tornar prevento juízo que nada decidiu sobre qualquer aspecto da causa só então efetivamente trazida a seu conhecimento, ao contrário do que ocorre em medidas de caráter cautelar que antece­ dem à ação principal, onde a prevenção se justifica por nelas haver ato jurisdicional que, implicando pronunciamento sobre a probabilidade de existência do mesmo direito a ser alegado na ação principal, antecipa o conhecimento (ainda que superficial) do mérito a ser decidido na discussão da causa trazida na ação principal”.7O3

Assim, não tornam o juízo prevento: a) habeas corpus em primeiro grau (v.g., quan­ do um habeas corpus é impetrado contra ato de um delegado), por se tratar de matéria especificamente constitucional;

b) quando o juiz remete cópia dos autos ao MP (art. 40 do CPP); c) atos do juiz de plantão não tornam o juízo prevento - após o fim do plantão, o processo deve ser objeto de distribuição;703 704

d) a simples antecedência de distribuição de in­ quérito policial, ou mesmo de ação penal ainda não despachada, também não gera a prevenção do juízo, por não conterem nenhuma atuação jurisdicional.

Superada tal questão, convém destacar que a prevenção também atua como critério subsidiá­ rio de fixação de competência, ora fixando o foro competente, ora fixando o juízo competente. Assim, quando não se consegue determinar a competência de um órgão jurisdicional específico, valendo-se dos demais critérios, a prevenção será utilizada como critério de fixação de competência. Daí se dizer que a prevenção atua como norma de encerramento, a fim de que sejam evitados vazios de competência, porque nenhuma infração pode ficar sem juiz com­ petente para julgá-la.705

Vejamos algumas hipóteses de aplicação subsi­ diária da prevenção: 1) Crimes ocorridos na divisa de duas ou mais jurisdições, sendo o limite entre elas incerto ou, ain­ da que seja certo, não se saiba precisar exatamente o sítio do delito ou, também, quando a infração atin­ giu mais de uma jurisdição (art. 70, § 3o);

2) Crimes continuados ou permanentes, cuja execução se prolonga no tempo, podem atingir o

território de mais de uma jurisdição (art. 71). Tan­ to o crime continuado quanto o crime permanente podem se desenvolver em lugares diferentes, sendo possível que o agente ultrapasse os limites territo­ riais de uma comarca, atingindo a esfera de com­ petência de outros magistrados. Nesse caso, como a execução abrangeu o território de várias comarcas, qualquer uma delas seria, em tese, competente para apurar a infração penal, firmando-se a competência pela regra da prevenção.706 3) Quando o réu não possui domicílio certo ou tiver mais de uma residência (art. 72, § Io) ou mesmo quando não for conhecido seu paradeiro (art. 72, § 2o), não tendo sido a competência firmada pelo lugar da infração (art. 72, caput);707

4) Havendo mais de um juiz competente, no concurso de jurisdições, sem possibilidade de apli­ cação dos critérios desempatadores do art. 78, II, “a” e “b” (art. 78, II, “c”); 5) Tendo a infração penal ocorrido a bordo de navios e aeronaves, em águas territoriais, no espaço aéreo correspondente ao território brasileiro, em rios e lagos fronteiriços ou em alto mar, não sendo possível determinar o local de embarque ou chegada imediatamente anteriores ou posteriores à ocorrên­ cia do crime (CPP, art. 91);

6) Consoante disposto no art. 70, §4°, do CPP, incluído pela Lei n. 14.155, de 27 de maio de 2021, nos crimes previstos no art. 171 do Código Penal, quando praticados mediante depósito, median­ te emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção. A utilização da prevenção como critério resi­ dual de fixação de competência não está restrita à fase investigatória. Com efeito, induzem à fixação 706. Em caso concreto apreciado pelo STJ, relativo a crime de receptação, praticado na modalidade de conduzir ou transportar o bem subtraído

do seu proprietário, no caso, um caminhão, adquirindo assim a qualidade de permanente, e o de quadrilha (que já detém essa característica), pra­ ticados em mais de um Estado da Federação, concluiu-se que, havendo Magistrados de igual jurisdição e não sendo possível escolher pela gra­ vidade do crime ou pelo número de infrações, a competência devia ser fixada pela prevenção: STJ, 3a Seção, CC 88.617/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/03/2008 p. 1. No âmbito do Supremo, também já se entendeu que o crime continuado não se amolda às hipóteses de prorrogação de competência, seja pela conexão (CPP, art. 76), seja pela continência (CPP, art. 77), ocorrendo, isto sim, distribuição por prevenção: STF, HC 89.573, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJE 04 26/04/2007.

703. Op. cit. p. 154.

704. STF, Pleno, HC 69.599/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27/08/1993. 705. Nessa linha: GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 136.

707. Havendo dúvidas quanto ao local da consumação de delito de ho­ micídio, a competência para o processamento e julgamento do feito deve seguir a regra subsidiária da prevenção, nos termos do art. 83 do CPP. Nesse sentido: STJ, HC 184.063/MG, Rei. Min. Celso Limongi, j. 07/12/2010.

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da competência pela prevenção tanto as decisões proferidas por magistrados na fase investigatória, decretando, por exemplo, medidas cautelares pes­ soais ou reais, como também aquelas proferidas durante a instrução processual, por ocasião do jul­ gamento de habeas corpus ou de outros remédios jurídicos por parte dos Tribunais. Com efeito, no âmbito dos Tribunais, a prevenção, pelo menos em regra, torna o órgão colegiado (v.g., Câmara, Tur­ ma) ou o magistrado relator do primeiro recurso, ação penal ou medida processual à esta relativa, competente para o julgamento de todas as ques­ tões processuais subsequentes que guardem relação com o mesmo feito, inclusive aqueles atinentes à execução penal. Assim, não é de todo incomum que determinada Câmara Criminal julgue desde o primeiro habeas corpus, impetrado, por exemplo, contra a prisão temporária do então investigado, passando pelo julgamento da apelação interposta contra a sentença condenatória, chegando até a de­ cisão sobre eventuais agravos interpostos contra as decisões proferidas pelo juízo da execução penal.

No que tange à fixação da competência por prevenção nos órgãos colegiados dos Tribunais Superiores, tem prevalecido na Suprema Corte a orientação de que a decisão monocrática do Rela­ tor em recurso não enseja a prevenção da Turma que integra, se a este colegiado o recurso não tiver sido submetido. Há de ser observada, assim, a nor­ ma contida no art. 69 do RISTF, segundo a qual o conhecimento do mandado de segurança, do habeas corpus e do recurso civil ou criminal torna preventa a competência do Relator, para todos os recursos pos­ teriores, tanto na ação quanto na execução, referentes ao mesmo processo. Somente na impossibilidade de aplicação dessa norma regimental (v.g., nos casos de declaração de suspeição ou impedimento do re­ lator, aposentadoria, saída do Tribunal), passa-se à incidência do art. 10 do RISTF (prevenção da Tur­ ma). Portanto, se um ministro do Supremo Tribu­ nal Federal estiver prevento, eventual mudança de Turma por parte desse ministro não terá o condão de afastar dele o julgamento de fatos delituosos para os quais esteja prevento. Essa prevenção do Relator no âmbito do Supremo somente é possível devido à inexistência de turmas temáticas no âmbito do STF, o que, se existisse, alteraria a ordem de sucessão das regras de distribuição por prevenção.708

De acordo com o art. 71 do RISTJ, com redação dada pela Emenda Regimental n. 24, de 2016, a distribui­ ção da ação, do recurso ou do incidente torna pre­ venta a competência do relator para todos os feitos posteriores referentes ao mesmo processo ou a pro­ cesso conexo, inclusive na fase de cumprimento de decisão; a distribuição do inquérito e da sindicância, bem como a realizada para efeito de concessão de fiança ou de decretação de prisão preventiva ou de qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa, prevenirá a da ação penal. Logo, caso um Ministro do STJ mude da 5a para a 6a Turma (ambas integrantes da 3a Seção, que tem competência penal), mantém-se prevento para os demais processos. No entanto, se a mudança ocorrer para uma Seção que não seja dota­ da de competência criminal, a exemplo da Ia Seção, que tem competência tributária, aplicar-se-á, subsidiariamente, a prevenção da Turma à qual pertencia o referido Ministro, devendo seus processos ser redis­ tribuídos ao Ministro que vier a ocupar sua cadeira.

CAPÍTULO VI

MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA 1. CONEXÃO E CONTINÊNCIA 1.1. Introdução Em determinadas circunstâncias, em virtude da íntima ligação entre dois ou mais fatos delituosos, ou entre duas ou mais pessoas que praticaram um mesmo crime, apresenta-se conveniente a reunião de todos eles em um só processo, com julgamento único (simultaneus processus). Além de possibilitar a existência de um processo único, contribuindo para a celeridade e economia processual, a conexão e a continência permitem que o órgão jurisdicio­ nal tenha uma perfeita visão do quadro probató­ rio, evitando-se, ademais, a existência de decisões contraditórias.709

708. Nessa linha: STF, Pleno, HC 84.263 AgR-QO/SP, Rei. Min. Ellen Gra­ cie, Dje 082 16/08/2007. Em sentido semelhante: Nessa linha: STF, Pleno,

709. Como adverte Pimenta Bueno, citado por Eduardo Espínola Filho, embora os crimes sejam diversos, desde que sejam eles conexos entre si, haverá uma espécie de unidade estreita que não deve ser rompida. Em suas palavras,"todos os meios de acusação, defesa e convicção estão em completa dependência. Separar será dificultar os esclarecimentos, enfraquecer as provas, e correr o risco de ter afinal sentenças dissonantes ou contraditórias. Sem o exame conjunto, e pelo contrário com investiga­ ções separadas, sem filiar todas as relações dos fatos, como reconhecer a verdade em sua integridade, ou como reproduzir tudo isso em cada processo?" (in Código de Processo Penal Brasileiro anotado, v. 2. 3a ed. Rio

HC 85.904 AgR/SP, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 17/03/2006.

de Janeiro: Borsoi, 1955. P. 135).

O Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça tem norma semelhante à do art. 69 do RISTF.

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Exemplificando, suponha-se que um crime de receptação de veículo automotor tenha sido prati­ cado na cidade de Niterói/RJ. Atento ao disposto no art. 70 do CPP, temos que a competência seria do juízo da Comarca da referida cidade. No entanto, se acaso restar demonstrado que o objeto da recepta­ ção tenha sido roubado na cidade do Rio de Janeiro, forçoso será reconhecer a existência de conexão pro­ batória entre os dois processos, na medida em que a prova do crime de roubo influi decisivamente na prova do delito de receptação (CPP, art. 76, inciso . III) Nesse caso, o Juízo da cidade do Rio de Janeiro exercerá força atrativa, pois ao delito de roubo é co­ minada pena mais grave (CPP, art. 78, inciso II, “a”).

Não obstante dispor o art. 69, inciso V, do CPP, que a competência jurisdicional será determi­ nada pela conexão ou continência, tem-se que, em regra, tanto a conexão quanto a continência não são critérios que fixam a competência. Funcionam, sim, como critérios que alteram a competência. Eventualmente, no entanto, podem ser utilizadas para fixação inicial da competência, desde que já se saiba antecipadamente que um processo está ligado a outro previamente distribuído.710

Vejamos o seguinte exemplo: em uma comarca com duas varas criminais (“A” e “B”), o Ministério Público oferece denúncia perante a Vara “A” em face de um indivíduo por ter praticado um saque con­ tra um estabelecimento comercial. Posteriormente, em razão de inquérito policial diverso, distribuído à vara “B”, o Promotor de Justiça delibera pelo ofe­ recimento de denúncia em face de outro acusado, também pela prática de um crime patrimonial co­ metido no mesmo lugar e na mesma hora que o delito anterior. Ora, nessa hipótese, ao oferecer a segunda peça acusatória, deve o Parquet requerer a remessa do feito à vara “A”, haja vista a existência de conexão intersubjetiva por simultaneidade (CPP, art. 76, inciso I, Ia parte). Nesse caso concreto, terá funcionado a conexão como critério de fixação da competência. Na medida em que a conexão e a continência funcionam como critérios de alteração da compe­ tência, só poderão incidir sobre hipóteses de compe­ tência relativa. A propósito, consoante disposto no art. 54 do novo CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal (CPP, art. 3o), “a competência relativa

poderá modificar-se pela conexão ou pela continên­ cia, observado o disposto nesta Seção”. Relembre-se que a competência absoluta não pode ser modifica­ da, ou seja, é inderrogável. Exemplificando, como a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral prevista na Constituição Federal é estabelecida em razão da matéria, espécie de competência absolu­ ta, ainda que haja conexão entre crimes militares e eleitorais, não será possível a reunião dos feitos em um simultaneus processus, impondo-se a separação dos feitos.

Não se admite, pois, que a conexão e a con­ tinência, regras de alteração da competência pre­ vistas na legislação ordinária, possam produzir a alteração de regras de competência absoluta, que têm origem em norma constitucional, com a fina­ lidade precípua de proteção do interesse público na correta e adequada distribuição de Justiça. Como é o interesse público que determina a criação dessa regra de competência, essa espécie de competência é indisponível às partes e se impõe com força cogente ao juiz. Logo, não admite modificações, cuidando-se de uma competência improrrogável, imodificável.711 Em síntese: as regras de conexão são aplicáveis a causas que, em princípio, seriam examinadas em separado e que, verificada a conexão entre os fei­ tos, deve-se recorrer aos critérios de modificação ou prorrogação das competências. Se incabíveis as regras modificativas da competência, as atribuições jurisdicionais originárias devem ser mantidas, por­ quanto a competência absoluta não se modifica ou prorroga. Logo, só se admite que a conexão possa alterar competências de natureza relativa, tornando competente para o caso concreto juiz que não o seria sem ela.712

De acordo com a jurisprudência, eventual violação às regras que determinam a reunião dos processos por conexão ou continência dará ense­ jo tão somente a uma nulidade relativa, cujo re­ conhecimento fica condicionado à arguição em momento oportuno, sob pena de preclusão, além da necessária comprovação de prejuízo. Assim, a título de ilustração, caso haja conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e Estadual, preceitua a súmula n° 122 do STJ que deve prevalecer 711. Nessa linha, como destaca Maria Lúcia Karam, "quando em con­ fronto com regra constitucional sobre competência, a conexidade de

710. No sentido do texto, Vicente Greco Filho afirma que "é costu­ me dizer que a conexão e a continência modificam a competência. Essa afirmação, porém, somente é válida no que concerne à competência em abstrato, ou seja, no caminho que se desenvolve antes da fixação definitiva, em concreto. O desaforamento, sim, modifica a competência em concreto, depois de definida. A conexão e a continência atuam antes dessa definição", (op. cit. p. 160).

causas deixa de ser fator determinante da competência, não podendo levar à reunião das ações. Aqui, a atuação de órgãos jurisdicionais diver­ sos, em diferentes processos, irá decorrer de imposição do próprio texto constitucional, a necessariamente resultar na consideração isolada das causas", (op. cit. p. 97).

712. Com esse raciocínio: STF, 2aTurma, HC 95.291/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, Dje 232 04/12/2008.

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a competência da Justiça Federal. Não obstante, caso o crime estadual seja processado e julgado perante a Justiça Estadual, e o crime federal perante a Justiça Federal, ambos os processos serão con­ siderados válidos, efetuando-se a soma das penas quando da execução da pena.713

Da leitura dos arts. 76 e 77 do CPP, se de­ preende que a lei processual penal trata apenas das hipóteses de unidade de processos, deixando de fazer qualquer menção ao inquérito policial. Logo, ainda que haja conexão e continência entre infrações penais, nada impede que inquéritos poli­ ciais instaurados por autoridades policiais distintas possam prosseguir normalmente, sem necessidade de reunião das investigações. Obviamente, caso a reunião dos procedimentos investigatórios em um só seja útil ao esclarecimento dos fatos, pensamos ser possível a unificação dos procedimentos inves­ tigatórios mediante autorização judicial, ouvido previamente o órgão do Ministério Público.714

1.2. Conexão A conexão pode ser compreendida como o nexo, a dependência recíproca que dois ou mais fatos delituosos guardam entre si, recomendando a reunião de todos eles em um mesmo processo penal, perante o mesmo órgão jurisdicional, a fim de que este tenha uma perfeita visão do quadro probatório. Funciona, pois, como o liame que se estabelece entre dois ou mais fatos que, desse modo, se tor­ nam ligados por algum motivo, oportunizando sua reunião no mesmo processo, de modo a permitir que os fatos sejam julgados por um só magistrado, com base no mesmo substrato probatório, evitando o surgimento de decisões contraditórias. Portanto, a conexão provoca a reunião de ações penais num mesmo processo, funcionando como causa de mo­ dificação da competência relativa mediante a pror­ rogação de competência.

São espécies de conexão, segundo o rol taxativo do art. 76 do CPP: a) conexão intersubjetiva: envolve vários cri­ mes e várias pessoas obrigatoriamente. Logo, se várias pessoas praticarem um único delito, não ha­ verá conexão, mas sim continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, inciso I). Em se tratando de conexão intersubjetiva, pouco importa se as várias 713. No sentido de ser relativa a nulidade decorrente da incompetên­ cia de juízo, por conexão ou continência: STF, 2a Turma, HC 74.470/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 28/02/1997. No mesmo prisma: STF, 2a Turma, HC 96453/MS, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 216 13/11/2008.

714. Com esse entendimento:TRF4, CC 2002.04.01.054445-5, Rel.VIadimir Freitas, 4a Seção, DJU 07/05/03.

pessoas estão reunidas em coautoria ou se os delitos são praticados por reciprocidade. São subespécies de conexão intersubjetiva: a.l) conexão intersubjetiva por simultaneidade (conexão subjetivo-objetiva ou conexão in­ tersubjetiva ocasional: duas ou mais infrações são praticadas ao mesmo tempo, por diversas pessoas ocasionalmente reunidas (sem intenção de reunião), aproveitando-se das mesmas circunstâncias de tem­ po e de local (CPP, art. 76, I, Ia parte). O melhor exemplo talvez seja o de diversos torcedores depre­ dando um estádio, ou o de um saque simultâneo a um supermercado, cometido por várias pessoas que nem se conhecem;

a.2) conexão intersubjetiva por concurso (ou concursal): ocorre quando duas ou mais infrações tiverem sido cometidas por várias pessoas em con­ curso, ainda que em tempo e local diversos (CPP, art. 76, I, 2a parte). Nessa hipótese de conexão, é indiferente se as infrações foram praticadas em tem­ pos diferentes. A título exemplificativo, suponha-se a existência de três indivíduos que tenham praticado quatro crimes de roubo no intervalo de dois meses. Haverá conexão intersubjetiva por concurso entre os 04 (quatro) crimes de roubo praticados pelos agentes, devendo todos eles responder pelos crimes em um único processo, salvo existência de causa impeditiva (v.g., um dos roubos ser crime militar); a.3) conexão intersubjetiva por reciprocida­ de: ocorre quando duas ou mais infrações tiverem sido cometidas por diversas pessoas umas contra as outras (CPP, art. 76,1, parte final). Por exemplo, dois grupos rivais combinam entre si uma briga em determinado ponto da cidade, hipótese em que os diversos crimes de lesões corporais estarão vincu­ lados em razão da conexão intersubjetiva por reci­ procidade. Como a conexão intersubjetiva demanda a presença de duas ou mais infrações vinculadas, não se pode citar o delito de rixa como um de seus exemplos, pois aí haverá crime único.

b) conexão objetiva, lógica ou material ou teleológica: quando um crime ocorre para facilitar a execução do outro (conexão objetiva teleológica) - ex: mata o segurança para facilitar o sequestro da vítima -, ou um para ocultar o outro, ou um para garantir a impunidade ou vantagem do outro (co­ nexão objetiva consequencial) - ex: estupra a vítima e, um mês depois, mata a única testemunha do fato, de modo a eliminar as provas do crime (CPP, art. 76, inciso II). Como o inciso II menciona expressamen­ te “se, no mesmo caso, houverem sido praticadas”, há doutrinadores que entendem que, também nesta hipótese de conexão, exige-se a presença de várias

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pessoas. Mesmo caso significaria a existência de vá­ rias pessoas, tal qual o exige o inciso I do art. 76 do CPP. Preferimos fazer uma interpretação extensiva desse dispositivo, no sentido de que no mesmo caso significa ocorrendo duas ou mais infrações penais, e não necessariamente várias pessoas.

c) conexão instrumental, probatória ou pro­ cessual: quando a prova de um crime influencia na existência do outro (CPP, art. 76, III). Note-se que, para a existência de conexão probatória, não há qualquer exigência de relação de tempo e espaço entre os dois delitos. Basta que a prova de um cri­ me tenha capacidade para influir na prova de outro delito. O exemplo sempre citado pela doutrina é a prova do crime de furto auxiliando na prova do delito de receptação; ou do delito de destruição de cadáver em que o de cujus foi vítima de homicídio, afigurando-se necessário a prova da ocorrência da morte da vítima, ou seja, de que foi destruído um cadáver. Outro exemplo bem atual é o da prova da infração antecedente auxiliando na prova do delito de lavagem de capitais.

1.3. Continência Configura-se a continência quando uma deman­ da, em face de seus elementos (partes, pedido e causa de pedir), estiver contida em outra.715 Cuida-se, pois, de “um vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas, ou entre dois ou mais fatos delitivos, de forma aná­ loga a continente e conteúdo, de tal modo que um fato delitivo contém as duas ou mais pessoas, ou uma conduta humana contém dois ou mais fatos delitivos, tendo como consequência jurídica, salvo causa im­ peditiva a reunião das duas ou mais pessoas, ou dos dois ou mais fatos delitivos, em um único processo penal, perante o mesmo órgão jurisdicional”.716

Vejamos as espécies de continência: a) Continência por cumulação subjetiva ou continência subjetiva: prevista no art. 77, inciso I, do CPP, ocorre quando duas ou mais pessoas são acusadas pela mesma infração penal - é o que ocorre no concurso eventual de pessoas (art. 29 do CP) e no concurso necessário de pessoas (crimes plurissubjetivos). Atente-se para a diferença entre a conexão intersubjetiva e a continência subjetiva:

715. CPC, art. 104: Dá-se a continência entre duas ou mais ações sem­ pre que há identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras. Dispositivo semelhante a este consta do art. 56 do novo CPC. Segundo Pacelli, "não há na con­ tinência processual penal, com efeito, nenhuma relação de continente para conteúdo e tampouco identidade de partes, remanescendo apenas, do paradigma do processo civil (art. 104, CPC), a identidade de causa de pedir." (op. cit. p. 255).

716. FEITOZA, Denílson. Op. cit. p. 343.

na conexão, são vários crimes e várias pessoas; na continência, são várias pessoas e um único crime. Como exemplo de continência por cumulação sub­ jetiva, imagine-se um crime de homicídio praticado por dois agentes;717

b) Continência por cumulação objetiva: prevista no art. 77, inciso II, do CPP, ocorre nas hipóteses de concurso formal de crimes (CP, art. 70), aberratio ictus ou erro na execução (CP, art. 73, segunda parte), e aberratio delicti ou resultado diverso do pretendido (CP, art. 74, segunda parte). O concurso formal consiste na prática de uma única ação ou omissão pelo agente, provocando a realiza­ ção de dois ou mais crimes. O art. 73, segunda parte, do CP determina a aplicação da regra do concurso formal quando o agente, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, além de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa. De sua par­ te, o art. 74, segunda parte, do CP, também prevê a aplicação do concurso formal, quando o agente, por erro na execução, atinge não somente o resultado desejado, mas ainda outro, além de sua expectativa inicial (ex: visando atingir uma vitrine de uma loja com uma pedra, o agente acaba também acertando um vendedor do estabelecimento comercial). Perce­ ba-se que, nas hipóteses de crime continuado, a com­ petência não será determinada pela conexão, nem tampouco pela continência, mas sim pela prevenção, nos exatos termos do art. 71 do CPP.718

1.4. Efeitos da conexão e da continência Trabalhados os conceitos e espécies de cone­ xão e de continência, importa analisar seus efeitos jurídicos:

1) processo e julgamento único (simultaneus processus): dispõe o art. 79 do CPP que a conexão

e a continência importarão unidade de processo e julgamento, salvo no concurso entre a jurisdição comum e a militar, ou no concurso entre a jurisdi­ ção comum e a do juízo de menores. Essa modifi­ cação de competência não viola a garantia do juiz natural: Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do correu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados

717. Ensina HélioTornaghi (apud NUCCI, op. cit. p. 290) que, havendo vários fatos, mas a prática de um só delito (como ocorre nos casos de crime continuado, crime progressivo, crime plurissubsistente), temos a hipótese de crime único; existindo vários fatos, embora detecte-se o cometimento de inúmeros delitos, desde que haja, entre eles, elementos em comum, temos a conexão; havendo fato único, porém com a prática de vários crimes, aponta-se para a continência. 718. Para mais detalhes, vide acima item relativo à competência por prevenção.

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(Súmula 704 do STF). O fato de a conexão e a con­ tinência acarretarem a unidade de processo e julga­ mento não significa, todavia, que haverá uma única peça acusatória. É dizer, o eventual oferecimento de duas denúncias em relação a fatos diversos, por si só, não afasta o cenário de conexão e/ou continência. Afinal, aplica-se à ação penal pública o princípio da divisibilidade, facultando-se ao órgão acusató­ rio, nos limites da razoabilidade, a apresentação dos fatos delitivos da melhor forma que entender cabível, inclusive facilitando a prestação jurisdicio­ nal. Ter-se-ia, portanto, um processo único, porém com duas ou mais denúncias oferecidas pelo órgão ministerial.719 Por outro lado, caso haja conexão e continência entre crimes de ação penal pública e privada, estabelecer-se-á litisconsórcio ativo entre o Ministério Público e o titular do jus querelandi. 2) força atrativa (fórum attractionis ou vis attractiva): o juízo competente vai trazer para si o processo e julgamento único. Tem-se aí uma hipó­ tese de prorrogação de competência, tornando-se competente o juízo que, em abstrato, não o seria, caso se levasse em consideração o lugar da infra­ ção, o domicílio do réu, a natureza da infração e a distribuição. Seu efeito é a sujeição dos acusados ou dos diversos fatos delituosos a um só juízo, a fim de serem julgados por uma única sentença, sem que disso resulte qualquer alteração da natureza das infrações penais cometidas.

Em relação à avocatória, dispõe o art. 82 do CPP: “se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante outros juizes, salvo se já esti­ verem com sentença definitiva. Neste caso, a uni­ dade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação de penas”. Se o juiz prevalente avocar o processo em curso perante o outro juiz e este se recusar a entregar os autos do processo, estará caracterizado um conflito positivo de competência, na medida em que ambos os juizes se consideram competentes (CPP, art. 114, inciso II).

Se um dos processos já foi sentenciado, não mais haverá razão para a reunião dos processos, na medida em que o objetivo maior da conexão/conti­ nência - simultaneus processus como fator de produ­ ção probatória mais eficaz e de se evitar julgamentos conflituosos - não mais será passível de ser atingido. Nessa linha, dispõe a súmula n° 235 do STJ que a conexão não determina a reunião dos processos, se

719. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, AgRg no RHC 126.071/PE, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 06.10.2020, DJe 15.10.2020.

um deles já foi julgado. Quando a súmula diz “já foi julgado”, de modo algum se refere à decisão com trânsito em julgado. Na verdade, quando o art. 82 do CPP diz sentença definitiva, refere-se à decisão de mérito recorrível que comporta apelação, e não à sentença com trânsito em julgado.720 Perceba-se que o próprio Código de Processo Penal, em outro passo, utiliza-se da expressão sentença definitiva sem que esta pressuponha o trânsito em julgado, dando demonstrativo de que seu uso se refere à sentença que ainda é recorrível. É o que se nota no art. 593, I, do CPP, que preceitua caber apelação (logo, ine­ xistente ainda o trânsito em julgado) das sentenças definitivas de condenação ou absolvição. Caso já haja sentença definitiva, a unidade dos processos somente se dará posteriormente para o efeito de soma (concurso material e formal impróprio) ou de unificação de penas (concurso formal próprio e crime continuado).721 Essa soma ou unificação das penas do condenado ficará a cargo do juiz da execução penal, assim como preceitua o art. 66, III, “a”, da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84). A competência para soma ou unificação de penas in­ fligidas por juízos de Estados diversos é do juízo de execução criminal do Estado em que está recolhido o condenado.

Como importante efeito da conexão e da con­ tinência, também não se pode olvidar que, de acor­ do com o art. 117, § Io, do Código Penal, excetua­ dos os casos dos incisos V e VI do referido artigo (início ou continuação do cumprimento da pena e reincidência, respectivamente), a interrupção da prescrição produz efeitos relativamente a todos os autores do crime. Nos crimes conexos, que sejam objeto de mesmo processo, estende-se aos demais a interrupção relativa a qualquer deles. Se é verdade que a conexão e a continência im­ portam unidade de processo e julgamento (CPP, art. 79, caput), também não é menos verdade que, au­ sente qualquer espécie de conexão (ou continência), revelar-se-á inviável que determinado juízo exerça força atrativa em relação a processos que, em abs­ trato, não seriam de sua competência, sob pena de evidente violação ao princípio do juiz natural. Pro­ va disso, aliás, é a anulação dos diversos processos criminais instaurados em face do ex-Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva perante a 13a

720. No sentido de que a expressão sentença definitiva contida no

art. 82 do CPP não exige que tenha ela transitado em julgado, mas, simplesmente, que tenha sido lavrada, independentemente de pender julgamento de recurso interposto: STF, 2a Turma, HC 74.470/RJ, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 28/02/1997.

721. Nessa linha: STJ, HC 94.904/MG, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 23/4/2009.

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Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba no âmbito da “Operação Lava Jato”. Para o Supremo Tribunal Federal, a competência do referido juízo estaria restrita exclusivamente aos crimes praticados de forma direta em detrimento apenas da Petrobras S/A.722 Logo, se as condutas atribuídas ao ex-Presidente não guardavam relação direta com contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petro­ bras S/A, não haveria qualquer espécie conexão (ou continência) capaz de justificar, no caso concreto, a modificação da competência jurisdicional. É bem verdade que, à luz da teoria do juízo aparente, a superveniência de circunstâncias fáticas aptas a al­ terar a competência da autoridade judicial, até então desconhecidas, teria o condão de autorizar a preser­ vação dos atos praticados por juízo aparentemente competente em razão do quadro fático subjacente no momento em que requerida a prestação jurisdi­ cional. No caso concreto, todavia, mesmo à época do ajuizamento da denúncia, datada de 14.9.2016, já era do conhecimento do Ministério Público Federal, bem como do Juízo da 13a Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, que os fatos denunciados não diziam respeito a delitos praticados direta e exclu­ sivamente em detrimento da Petrobras S/A, sendo certo que o primeiro precedente a reduzir a com­ petência daquele juízo foi proferido em 23.9.2015 (Inq 4.130 QO), motivo pelo qual a “teoria do juí­ zo aparente” não seria aplicável à hipótese. Por tais motivos, com fundamento no art. 567 do CPP, o Pleno do Supremo Tribunal Federal deliberou pela confirmação da decisão do Min. Edson Fachin que havia anulado todos os atos decisórios praticados nos processos criminais instaurados contra o ex-Presidente perante a 13a Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, determinando sua remessa à Justiça Federal do Distrito Federal.723 722. Nesse sentido: STF, Inq 4.130 QO/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 3.2.2016; STF, Inq 4.327 AgR- Segundo/DF, Rel. Min. Edson Fa­ chin, DJe de 5.3.2018; STF, Inq 4.483 AgR-Segundo/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 5.3.2018; STF, Pet 7.790 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 23.11.2018; STF, Pet 7.792 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 23.11.2018; STF, Inq 3.989 AgR-Terceiro/DF, DJe de 4.10.2018; STF, Pet 8.144 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 1.8.2019; STF, Pet 6.780 AgR-Quarto-ED/DF, Rel. Min. DiasToffoli, DJe de 20.6.2018; STF, Pet 6.664 AgR-AgR/DF, Rel. Min. DiasToffoli, DJe de 4.12.2018; STF, Pet 6.820 AgR-ED/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 26.3.2018; STF, Inq 4.435 AgR-Quarto/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 21.8.2019; STF, Inq 4.428 QO/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 12.8.2018; STF, Pet 7.832 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 28.3.2019; STF, Pet 8.054 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 27.9.2019; STF, Pet 8.090 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 11.12.2020. 723. STF, Pleno, HC 193.726 AgR-AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 14.4.2021; STF, Pleno, HC 193.726 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 22.4.2021.

1.5. Foro prevalente 1.5.1. Competência prevalente do Tribunal do Júri Cuidando-se de conexão e continência entre crime comum e crime da competência do júri, quem exercerá força atrativa é o júri, de acordo com o art. 78, inciso I, do CPP. Ex: estupro e homicídio come­ tidos em conexão. Ambos os delitos serão julgados pelo tribunal do júri, pouco importando se ambos os crimes foram cometidos na mesma comarca ou no mesmo Estado da Federação. No entanto, se o crime conexo for militar, de­ verá ocorrer a separação de processos, na medida em que ambas as competências estão previstas na Constituição Federal - a do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida, e a da Justiça Militar para o julgamento dos crimes mi­ litares (CPP, art. 79, inciso I; CPPM, art. 102, “a”). Imagine-se a hipótese de determinado agente inva­ dir um quartel das Forças Armadas, e de lá subtrair uma arma de fogo, posteriormente utilizada para o cometimento do homicídio de um desafeto. Nessa hipótese, caberá à Justiça Militar o julgamento do crime patrimonial (lembre-se: a Justiça Militar da União, ao contrário da Justiça Militar dos Estados, tem competência para processar e julgar civis), ao passo que ao Tribunal do Júri caberá o julgamento do crime de homicídio.

Ao ampliar a competência do Tribunal do júri para processar e julgar as infrações penais conexas e originárias da continência, a lei processual penal não malfere a Constituição Federal, pois esta, na verdade, estabelece uma competência mínima do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”), o que, todavia, não impede que lei ordinária possa ampliar sua competência. Se, porventura, essa infração conexa a um crime doloso contra a vida for descoberta após a prolação da pronúncia, pensamos ser possível a apli­ cação analógica do disposto no art. 421, § Io, do CPP, segundo o qual, ainda que preclusa a decisão de pronúncia, havendo circunstância superveniente que altere a classificação do crime, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Ministério Público. Nessas circunstâncias, poderá o Parquet aditar a denún­ cia, oportunizando-se a oitiva da defesa, para que, afinal, possa o juiz prolatar nova decisão de pro­ núncia, desta feita acolhendo as infrações conexas ou continentes.

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1.5.2. Jurisdições distintas 1.5.2.1. Concurso entre a jurisdição comum e a especial No concurso entre a jurisdição comum e a es­ pecial (ressalvada a Justiça Militar - CPP, art. 79, inciso I), prevalece a especial (CPP, art. 78, inciso . IV) Logo, caso um crime eleitoral seja conexo a um crime comum de competência da Justiça Estadual, prevalece a competência da Justiça Eleitoral para julgar ambos os delitos.724

1.5.2.2. Concurso entre órgãos de jurisdição superior e inferior No concurso de jurisdições de diversas catego­ rias, predomina a de maior graduação (CPP, art. 78, inciso III). Exemplificando, se um crime de furto for praticado em concurso de agentes por um prefeito municipal, cuja competência originária é do Tribu­ nal de Justiça, e por um cidadão que não seja titular de foro por prerrogativa de função, cujo juiz natural seria um juiz de direito, prevalece a competência do Tribunal de Justiça para julgar ambos em virtude da continência por cumulação subjetiva. Nesse sentido, aliás, dispõe a súmula 704 do STF que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. Conquanto esse simultaneus processus perante o Tribunal de Justiça esteja justificado pela continên­ cia, vale ressaltar que não se trata de regra cogente, obrigatória, na medida em que é possível que o re­ lator do processo repute conveniente a separação dos processos, fazendo-o por intermédio da regra do art. 80 do CPP.

1.5.2.3. Concurso entre a Justiça Federal e a Estadual Havendo conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, prevalece a competência da Justiça Federal. É exatamente nes­ se sentido o conteúdo da súmula n° 122 do STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal

e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal.725

1.5.3. Jurisdições da mesma categoria Apesar de o art. 78, inciso II, do CPP, fazer menção ao “concurso de jurisdições da mesma ca­ tegoria”, dando uma ideia de que existiríam duas ou mais jurisdições, cumpre lembrar que a jurisdição, como função estatal de aplicação do direito objetivo ao caso concreto, é una (princípio da unidade da jurisdição). Por conseguinte, apesar de ser tecni­ camente errado falar-se em “jurisdições”, quando a lei assim o faz visa à diferenciação entre as diversas justiças (comum, especial; federal, estadual) ou entre juizes de primeiro grau e tribunais.

Especificamente no tocante à expressão jurisdição da mesma categoria constante do art. 78, inciso II, do CPP, refere-se a lei processual aos magistrados com competência para julgar o mesmo tipo de infrações pe­ nais (ex.: entre Juizes de Direito, entre Juizes Federais). Entre esses juizes, pode haver um conflito quanto ao juízo prevalente, aplicando-se, então, as regras enume­ radas no referido inciso. Utilizando o clássico exemplo da conexão probatória entre um crime de furto e outro de receptação, delitos estes que foram investigados em delegacias diversas, e distribuídos a juízos diversos, ainda que numa mesma comarca, devemo-nos perquirir acerca do juízo que exercerá força atrativa. Vejamos, pois, as regras a serem aplicadas: a) força atrativa do juízo da comarca em que tiver sido praticado o delito mais grave: face o dis­ posto no art. 78, II, “a”, do CPP, havendo conexão probatória entre um crime de roubo, praticado na Comarca “A”, e um delito de receptação, cometido na comarca “B”, deve preponderar o juízo da comarca “A”. Perceba-se que, mesmo que quatro delitos de receptação tenham sido cometidos na comarca “B”, ainda assim prevalece a competência do Juízo da Comarca “A”, pois o delito de roubo ali praticado possui pena mais grave.726 Considera-se a pena mais grave a privativa de liberdade, depois as privativas e restritivas de direitos e, por fim, as penas pecuniá­ rias. Entre as penas privativas de liberdade, a mais grave é a reclusão, seguida da detenção e da prisão simples. Em cada uma delas, a maior gravidade será 725. Para mais detalhes acerca do assunto, vide tópico pertinente à competência da Justiça Federal. 726. Como já decidiu o STJ, "a pena cominada para o crime de fal­

724. Para mais detalhes acerca da força atrativa da Justiça Eleitoral em relação a crimes da competência da Justiça Comum Estadual, Federal, Militar, e inclusive dolosos contra a vida, em virtude da conexão e da continência, remetemos o leitor aos comentários ao item 2 ("Competência Criminal da Justiça Eleitoral") do Capítulo II ("Competência em razão da matéria") do presente Título ("Competência Criminal").

sificação de documento público é mais grave do que a prevista para o

estelionato e para a falsificação de documento particular. Logo, deve pre­ ponderar o local da consumação do crime de falsificação de documento público, por aplicação da regra do artigo 78, II, a do Código de Processo Penal." (STJ - CC 86.419/GO - 3a Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 27/09/2007 p. 223)

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determinada pela duração ou quantidade. Conside­ ram-se sempre as penas como cominadas abstrata­ mente para os crimes que são objeto de conexão e continência. Ademais, havendo um crime com pena de reclusão de 1 a 6 anos e outro de reclusão de 2 a 4 anos, a infração com pena mais grave é aquela em que a pena máxima cominada é a mais alta, e não a que possui maior pena mínima. O legislador permitiu cominar sanção mais alta a determinado delito porque previu hipóteses em que a conduta ocorre sob particularidades de maior reprovabilidade, razão pela qual essa deve, em abstrato, ser entendida como a mais grave. Se as penas máximas cominadas forem iguais, deve prevalecer, para atrair a competência, a infração de maior pena mínima;727 b) força atrativa do juízo do local do maior número de infrações, se as penas forem de igual gravidade: suponha que quatro crimes de furto simples tenham sido cometidos na comarca “A”, enquanto o processo relativo à receptação dos ob­ jetos furtados esteja tramitando junto à Comarca “B”. Nesse caso, como a pena do furto simples é idêntica à da receptação simples, o juízo compe­ tente será determinado com base no local onde foi praticado o maior número de infrações (leia-se: na comarca “A”), haja vista que aí foi produzida maior perturbação à comunidade; c) se a gravidade do delito for igual e o núme­ ro igual, a competência firma-se pela prevenção: caso nenhum dos dois critérios anteriores - gravi­ dade do delito e maior número de infrações - seja suficiente para se estabelecer o juízo prevalente, firmar-se-á a competência com base na prevenção, a qual geralmente funciona como critério subsidiário de fixação de competência. Não se pode confundir a fixação da competência pela prevenção do art. 75 do CPP, que trata de varas com idêntica competên­ cia (v.g., varas criminais comuns de determinada comarca), com a situação do art. 78, II, “c”, do CPP, que trata de definição do critério de atração em ha­ vendo conexão de infrações penais originariamente tramitando perante varas distintas.

1.6. Separação de processos A conexão e a continência têm como finalidade garantir a união dos processos de forma a propiciar ao julgador uma melhor visão do quadro proba­ tório, permitindo-lhe entregar a melhor prestação 727. Com esse entendimento: STJ, 5aTurma, HC 190.756/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 23/10/2012. Em sentido contrário, entendendo que infração mais grave é aquela com a pena mínima mais elevada: MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18a ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 171. E ainda:

LOPES JUNIOR. Aury. Op. cit. p. 451.

jurisdicional e evitando-se, com isso, a existência de decisões conflituosas. Não por outro motivo, um dos efeitos da conexão e da continência é exata­ mente a unidade de processo e julgamento perante o juízo prevalente (CPP, art. 79, caput). Ocorre que essa junção nem sempre será cogente, prevendo a própria lei hipóteses em que deverá se dar a separa­ ção dos processos, ora de maneira obrigatória, ora de maneira facultativa.

Nada diz a lei acerca do momento-limite para a separação dos processos. Diante do silêncio da lei, impõe-se o emprego da analogia (CPP, art. 3o). Assim, se a reunião dos processos por força da co­ nexão e da continência é possível até a prolação de sentença recorrível (CPP, art. 82, c/c a súmula n° 235 do STJ), mutatis mutandis, a separação de processos também pode ocorrer enquanto o magistrado com força atrativa não proferir decisão recorrível. Vejamos, então, as hipóteses de separação obri­ gatória e facultativa de processos.

1.6.1. Separação obrigatória dos processos Como já foi dito, tanto a conexão quanto a con­ tinência têm como finalidade precípua evitar-se de­ cisões contraditórias, colaborando para a formação de um quadro probatório mais coeso. Ocorre que, em algumas situações, não haverá conveniência para a existência de um processo e julgamento único. Vejamos, então, cada uma dessas hipóteses.

1.6.1.1. Concurso entre a jurisdição comum e a militar Como já foi visto anteriormente, havendo co­ nexão e/ou continência entre um crime militar de competência da Justiça Militar e um crime comum de competência da Justiça Comum, impõe-se a separação dos processos, nos exatos termos do art. 79, inciso I, do CPP, e do art. 102, “a”, do CPPM. Exemplificando, se um policial civil e um policial militar, ambos em serviço, praticarem, em concurso de pessoas, lesão corporal de natureza grave contra um civil, impõe-se a separação dos processos. O policial civil será julgado pelo crime comum (CP, art. 129, § Io) perante a justiça comum, ao passo que o policial militar será julgado pelo crime militar de lesão grave (CPM, art. 209, § Io, c/c art. 9o, II, “c”) perante a Justiça Militar Estadual. Relembre-se que, como civil que é, o Policial Civil não pode ser julgado pela Justiça Militar, ex vi do art. 125, § 4o, da Constituição Federal.

Nesse sentido, dispõe a súmula n° 90 do STJ: Compete à Justiça Estadual Militar processar e jul­ gar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo

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àquele. Seu conteúdo assemelha-se ao da súmula n° 30 do extinto Tribunal Federal de Recursos: Conexos os crimes praticados por policial militar e por civil, ou acusados estes como coautores pela mesma infração, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o policial militar pelo crime militar (CPM, art. 9o) e à Justiça Comum, o civil.

1.6.1.2. Concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores No concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores, impõe-se a separação dos proces­ sos (CPP, art. 79, inciso II). Assim, caso um fato cri­ minoso seja praticado por um maior e um menor de 18 (dezoito) anos em coautoria, ao juízo da infância e da Juventude caberá o julgamento do menor, enquan­ to que o maior deverá ser processado perante a Justiça comum. Perceba-se que não é a inimputabilidade a causa exclusiva para a separação dos processos, visto que, no caso do doente mental, também considerado inimputável nos termos do art. 26, caput, do CP, o julgamento é afeto ao juiz criminal comum. Assim, como adverte Nucci, embora ao imputável seja apli­ cada pena e ao inimputável, medida de segurança, há um só foro competente para ambos.728

1.6.1.3. Doença mental superveniente à prática delituosa Se sobrevier doença mental a um dos acusa­ dos, em qualquer caso cessará a unidade de processo (CPP, art. 79, § Io), ficando suspenso o processo quanto ao enfermo. Quando um dos acusados passa a sofrer de doença mental após a prática do delito, deve se dar a separação dos processos. Nesse caso, e verificando o juiz que a doença mental sobreveio à infração, o processo penal ficará suspenso em relação ao en­ fermo, salvo quanto às diligências que possam ser prejudicadas pelo adiamento, cabendo ao magis­ trado providenciar a nomeação de curador (CPP, art. 152). Essa suspensão atende aos princípios da ampla defesa e do contraditório (CF, art. 5o, LV), e deve perdurar até que o acusado se recupere e possa acompanhar o processo. Vale ressaltar que, como a lei silencia acerca do assunto, sendo inviável a aplicação da analogia em prejuízo do réu diante do silêncio legal, tem-se que a prescrição não fica sus­ pensa durante o período de suspensão do processo.

Não se pode confundir essa hipótese - doença mental após a prática do crime - com a situação em 728. Manual de processo penal e execução penal. 5a ed. rev., atual, e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 301.

que o agente pratica a infração penal já acometido de doença mental que o prive, de maneira absoluta, da capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento (CP, art. 26, caput). Nessas circunstâncias, o processo não ficará suspenso, cabendo a instauração do incidente de insanidade mental ao corréu portador da doença mental, prosseguindo-se o processo em seus ulteriores termos para que, ao final, reconhecida sua inim­ putabilidade, seja-lhe aplicada medida de segurança.

1.6.1.4. Citação por edital de um dos corréus, seguida de seu não-comparecimento e não-constituição de defensor Por força do art. 366 do CPP, se acaso um pro­ cesso criminal for instaurado contra vários acusados, sendo um deles citado por edital, daí resultando seu não comparecimento e não constituição de defen­ sor, deverá o processo ficar suspenso tão somente em relação a sua pessoa. Para aqueles acusados que foram citados pessoalmente, deixando de apresentar resposta à acusação, o processo seguirá normalmente, devendo o juiz nomear-lhe defensor dativo (CPP, art. 396-A, § 2o, com redação dada pela Lei n° 11.719/08). Por outro lado, àquele que foi citado por hora certa que não comparecer, também deverá o juiz providen­ ciar-lhe a nomeação de dativo (CPP, art. 362, pará­ grafo único), dando-se prosseguimento ao processo.

1.6.1.5. Antiga hipótese de ausência de intima­ ção da pronúncia ou de não-comparecimento do acusado à sessão de julgamento do júri, em se tratando de crime inafiançável Antes da reforma processual de 2008, dizia o Código de Processo Penal que, no processo do júri, quando um dos acusados não fosse intimado da pronúncia (revogados arts. 413c/c414do CPP) ou deixasse de comparecer à sessão de julgamento, em se tratando de crime inafiançável (revogado art. 451, § Io, do CPP), seu julgamento não poderia ser rea­ lizado. Daí dispor o art. 79, § 2o, do CPP, que a uni­ dade do processo não importará a do julgamento, se houver corréu foragido que não possa ser julgado à revelia, ou ocorrer a hipótese do art. 461. Tinha-se, então, que o processo ficaria paralisado em relação ao corréu até que fosse encontrado e preso. Em re­ gra, sua prisão era decretada com fundamento na garantia de aplicação da lei penal. Tal hipótese dava ensejo à separação de processos, na medida em que somente poderiam ser julgados aqueles que tivessem sido intimados ou que estivessem presentes à sessão designada.

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Com a Lei n° 11.689/08, que alterou o proce­ dimento do júri, essa hipótese de separação obriga­ tória de processos deixou de existir. E isso porque, segundo o disposto na nova redação do art. 420, parágrafo único, do CPP, será intimado por edital o acusado solto que não for encontrado, pouco impor­ tando se o crime pelo qual ele é acusado seja afiançável ou inafiançável. Por sua vez, dispõe o caput do art. 457 que o julgamento não será adiado pelo não comparecimento do acusado solto que tiver sido regularmente intimado. Percebe-se, portanto, que a lei processual penal deixou de prever a suspensão do processo caso o acusado pela prática de crime inafiançável não seja encontrado para ser intimado pessoalmente da decisão de pronúncia, ou caso não compareça à sessão de julgamento.

1.6.1.6. Recusas peremptórias no júri No âmbito do Tribunal do Júri, o exercício das recusas peremptórias (sem motivação) no proce­ dimento de seleção dos jurados que irão compor o Conselho de Sentença pode acarretar a separação dos processos.729

1.6.1.7. Suspensão do processo em relação ao colaborador Consoante disposto no art. 4o, § 3o, da nova Lei das Organizações Criminosas, o prazo para ofe­ recimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional. Supondo, assim, a existência de um processo penal instaurado em desfavor de mais de um acusado, na hipótese de um deles resolver colaborar com os órgãos respon­ sáveis pela persecução penal, fornecendo informa­ ções úteis para a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa, revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da orga­ nização criminosa, a prevenção de infrações penais, a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais, ou a localização de eventual vítima com a sua integridade física preser­ vada, o prazo para o oferecimento da denúncia ou o próprio processo criminal poderão ser suspensos por até 6 (seis) meses, exclusivamente em relação ao colaborador. Por consequência, de modo a se evitar o prolongamento indevido do processo em relação aos demais acusados, notadamente quando um deles 729. Optamos por tratar das recusas peremptórias no Título referente ao Processo e Procedimento, no capítulo atinente ao Procedimento Especial do Tribunal do Júri, para onde remetemos o leitor.

estiver preso, o que viria de encontro à garantia da razoável duração do processo, surge aí mais uma hipótese de separação obrigatória dos processos.

1.6.2. Separação facultativa de processos De acordo com o art. 80 do CPP, será faculta­ tiva a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação. Por força do art. 80 do CPP, ainda que os pro­ cessos já estejam reunidos em virtude da conexão e/ ou da continência, é possível que o juiz determine a separação dos feitos. Este dispositivo diferencia-se, portanto, dos incisos I e II do art. 79 do CPP, que trata de hipóteses que, desde o início, devem tra­ mitar separadamente, em que pese haver entre eles conexão e/ou continência. Assim, ocorrendo uma das hipóteses do art. 79 do CPP (v.g., conexão entre crime militar e crime comum), por mais que haja conexão e/ou continência entre os crimes, não será possível a formação de um simultaneus processus e, consequentemente, não haverá a modificação da competência segundo os critérios originariamente previstos. Por outro lado, na hipótese do art. 80 do CPP, uma vez formado o processo único em virtude da conexão e/ou continência, o juiz poderá, facul­ tativamente, separar os processos. Outra controvérsia produzida pelo art. 80 do CPP é definir se este dispositivo legal prevê uma simples hipótese de separação de processo e de julgamento, mantendo o mesmo juiz a competência já prorrogada em virtude da conexão ou continência, ou se, em sen­ tido diverso, a competência prorrogada será alterada mais uma vez, com a consequente devolução de um dos feitos ao juízo originariamente competente.

Parte da doutrina entende que, na hipótese de separação facultativa dos processos (CPP, art. 80), não há necessidade de se determinar o retorno de um dos processos ao juiz que teve sua esfera de competência originária reduzida em virtude do re­ conhecimento da conexão ou continência. Logo, o juiz que exerceu a força atrativa manterá sua com­ petência para os feitos em relação aos quais hou­ ve o reconhecimento da conexão ou continência, apesar de tais processos passarem a ser julgados separadamente, já que o art. 80 do CPP refere-se apenas à separação do julgamento, sem que haja necessidade de nova mudança da competência. Isso significa dizer que, haja ou não a separação facultativa dos processos com fundamento no art.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

80 do CPP, subsiste a competência do juiz que an­ teriormente teve sua competência prorrogada para julgar os dois feitos.730

A nosso juízo, uma vez desfeita a conexão em razão da separação facultativa, não há motivo algum para ser mantida a prorrogação da competência. Logo, aquele feito que inicialmente não era da competência do juízo prevalente deverá retornar ao juiz que era originariamente competente para julgá-lo, caso não tivesse havido o reconhecimento da conexão. Con­ sequentemente, com a disjunção processual, haverá nova alteração da competência que fora anteriormente prorrogada, perdendo o juiz até então competente exa­ tamente aquela parcela de competência que adquiriu em virtude da conexão ou continência. O art. 80 do CPP não estabelece até quando é possível a separação dos processos. Porém, se a re­ união dos feitos por conta da conexão ou da conti­ nência pode ocorrer enquanto não houver decisão recorrível (CPP, art. 82), mutatis mutandis, conclui-se que é possível que o magistrado determine o des­ membramento dos feitos até o momento da sentença, ressalvando-se, obviamente, a renovação da instrução processual perante o novo juízo em relação ao feito de sua competência, em virtude da adoção do princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, § 2o).

Há quem entenda que esse caráter facultativo de separação dos processos previsto no art. 80 do CPP é flagrantemente inconstitucional. Nessa linha, como observa Badaró, “a previsão de que o juiz possa dis­ solver a unidade processual quando por outro moti­ vo relevante, o juiz reputar conveniente a separação’ é totalmente aberta, sem qualquer referência segura dos casos em que haverá separação. Também por tal motivo, é de se concluir pela violação da garantia do juiz natural, enquanto norma formal, a exigir que as hipóteses de fixação ou modificação de competência sejam definidas com base em precisos e rigorosos cri­ térios objetivos fixados em lei, não deixando margem a atuações discricionárias”.731 Prevalece, todavia, o en­ tendimento de que o art. 80 do CPP não é incompatível com o princípio do juiz natural.732* 730. No sentido de que, na hipótese de desmembramento dos feitos, a competência para o julgamento do feito desmembrado, conexo com o anterior, continua sendo do Juízo que apreciou o processo principal: STJ, 3a Seção, CC 107.116/RJ, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 10/03/2010, DJe 19/03/2010. Na mesma linha: STJ, 5aTurma, HC 103.741 / SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 23/09/2008, DJe 03/11/2008. 731. BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais - comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2012. p. 248-249.

732. No sentido de que não é dado ao Tribunal substituir o juízo de conveniência que é assegurado pelo art. 80 do CPP ao magistrado para determinar a separação dos processos: STF, 2a Turma, HC 88.867/RS, Rei.

Como o art. 80 do CPP está inserido no Código de Processo Penal no Capítulo que versa sobre a competência por conexão ou continência, prevalece o entendimento de que essa separação facultativa dos processos pode ser aplicada tanto nos casos em que os feitos a serem separados já seriam da compe­ tência do mesmo juízo em que tramitavam em con­ junto, seguindo as regras originárias de definição da competência, quanto nos casos em que determinado juízo teve sua competência prorrogada por força do reconhecimento da conexão e/ou continência para julgar outro feito que, originariamente, não seria de sua competência.733

Vejamos, então, quais são as hipóteses que au­ torizam a separação facultativa dos processos.

1.6.2.1. Infrações praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes Essa primeira hipótese de separação facultativa dos processos deve ser analisada à luz das espécies de conexão/continência.

Ora, se essa hipótese de separação demanda que as infrações tenham sido praticadas em circuns­ tâncias de tempo ou de lugar diferentes, forçoso é concluir não ser possível sua aplicação no caso de conexão intersubjetiva por simultaneidade, na me­ dida em que esta espécie de conexão prevista na primeira parte do inciso I do art. 76 traz como pres­ suposto que as duas ou mais infrações tenham sido praticadas ao mesmo tempo, por diversas pessoas ocasionalmente reunidas (sem intenção de reunião), aproveitando-se das mesmas circunstâncias de tem­ po e de local. Situação semelhante ocorrerá no caso de conexão intersubjetiva por reciprocidade (CPP, art. 76,1, parte final), na medida em que esta exige a prática de infrações por pessoas que agem umas contra as outras, pressupondo-se que estejam no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Min. Eros Grau,j. 25/05/2007, DJe 14/06/2007. Na mesma linha, segundo

o STJ, "a teor do art. 80 do CPP, a junção de ações penais deve atender a um juízo de conveniência no tocante à otimização do tramite processual" (STJ, 5a Turma, RHC 20.428/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 19/04/2007, DJ 04/06/2007). Referindo-se à separação dos processos com fundamento no art. 80 do CPP como ato discricionário do juiz, que deve examinar as circunstâncias de cada caso: STJ, Corte Especial, AgRg na Ap 540/MT, Rei. Min. Francisco Falcão, j. 01/04/2009.

733. Há precedente isolado da 1a Turma do STF em sentido contrário: "A regra do art. 80 do CPP só pode ser aplicada em relação aos proces­ sos submetidos à jurisdição de um mesmo juízo. Em outras palavras, a separação dos processos ou a sua não reunião, com fundamento no dispositivo legal suscitado, pressupõe que todos eles estejam afetos ao mesmo juízo competente. Com efeito, se apenas o juiz competente para julgar os vários delitos conexos pode determinar o seu processamento em

autos apartados, interpretação em sentido diverso que se faz do art. 80 do CPP pressupõe que os crimes em apreciação, nos autos correspondentes, esteja, igualmente, sob a competência do mesmo juízo". (STF, 1 aTurma, HC 91,895/SP, Rei. Min. Menezes Direito, j. 01/04/2008, DJe 147 07/08/2008).

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De maneira diversa, em se tratando de cone­ xão intersubjetiva por concurso (CPP, art. 76,1, 2a parte), conexão objetiva (CPP, art. 76, inciso II) ou conexão probatória (CPP, art. 76, inciso III), pen­ samos ser possível a separação dos processos com base no art. 80, Ia parte, do CPP, pois, em relação a essas três hipóteses de conexão, não se faz necessário que as infrações tenham sido cometidas em lugares e momentos idênticos.

Nos casos de continência, por sua vez, con­ quanto seja possível a separação dos processos, parte da doutrina se posiciona contrariamente, haja vista a possibilidade de decisões contraditórias em relação a um mesmo fato.734

1.6.2.2. Excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória A hipótese de separação facultativa do art. 80, 2a parte, do CPP, aplica-se a todos os casos de cone­ xão e continência. Traz em si dois requisitos: a) ex­ cessivo número de acusados; b) não prolongamento da prisão provisória de um dos acusados. A título de exemplo, suponha-se que um dos acusados esteja preso preventivamente, tendo o advogado de defesa de um outro réu pleiteado a realização de exame pericial que somente seria in­ teressante a sua defesa. Nesse caso, e considerada a complexidade do exame pericial, é fácil perceber que o acusado preso teria o curso do processo pre­ judicado pela realização de prova que não lhe traria qualquer benefício. Sendo assim, caberia ao magis­ trado determinar a separação dos processos, prosse­ guindo-se em relação ao julgamento do corréu cuja instrução processual já estivesse finda.

1.6.2.3. Motivo relevante pelo qual o juiz repu­ te conveniente a separação Como o legislador não pode prever todas as situações em que a separação dos feitos seja ne­ cessária, a parte final do art. 80 do CPP possibilita que o juiz, por qualquer motivo relevante, determi­ ne a separação dos processos. Podemos citar, como exemplos de motivos relevantes a ensejar a separa­ ção dos processos, o excessivo número de acusados soltos prejudicando o andamento do processo, ou quando o simultaneus processus possa dar causa à extinção da punibilidade de um dos acusados pela prescrição.735 734. É nesse sentido a posição de Nucci: op. cit. p. 303. 735. Em caso concreto atinente a crimes de peculato, lavagem de dinheiro e quadrilha (hoje substituída pela associação criminosa), supos­ tamente cometidos por membros da Assembléia Legislativa do Estado do Mato Grosso, no desvio de recursos públicos para pagamento de bens

1.7. Perpetuação da competência nas hipóte­ ses de conexão e continência A existência de um simultaneus processus por conta da conexão ou da continência não impede que o magistrado do juízo prevalente, ao julgar o feito, conclua pela incompetência do juízo que exerceu a força atrativa, quer porque houve absolvição em relação à infração que atraiu a competência, quer porque ocorreu a desclassificação para outra, que não era originariamente de sua competência. Nesse caso, indaga-se: continuará este juízo competente em relação aos demais processos? A resposta à indagação consta do caput do art. 81 do CPP: verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória (acrescentamos, por interpretação extensiva, também a decisão declara­ tória extintiva da punibilidade) ou que desclassifi­ que a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos. Exemplificando, havendo cone­ xão probatória entre um crime de roubo praticado na comarca “A”, e um crime de receptação qualifi­ cada cometido na comarca “B”, prevalece a compe­ tência do juízo da comarca “A”, pois ali foi praticado o delito mais grave (CPP, art. 78, II, “a”). Caso, ao final do processo, o juiz desclassifique o delito de roubo para furto simples, cuja pena é menor que a do delito de receptação qualificada, ainda assim continuará competente para o fato desclassificado e para o outro delito, ex vi do art. 81, caput, do CPP.

Essa perpetuação da competência atende ao princípio da economia processual e da própria ce­ leridade, na medida em que toda a prova já fora co­ lhida perante este juízo. Ademais, não se pode per­ der de vista que, diante da inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal (CPP, art. 399, § 2o - “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”), eventual remessa do processo ao outro juízo traria como consequência inevitável a renovação da instrução processual, causando in­ devido retrocesso na marcha procedimental.

No âmbito do júri, há de se ficar atento às se­ guintes hipóteses: e serviços inexistentes provenientes de empresas fictícias (mais de 100 ações foram ajuizadas para apurar esses fatos delituosos), entendeu-se

que haveria motivo relevante recomendando a separação dos proces­ sos: STJ, Corte Especial, AgRg na APn 534/MT, Rel. Min. Luiz Fux, Dje 20/04/2009. Ainda em relação à possibilidade de separação dos processos com base em motivo relevante: STJ - RHC 18.522/MG - 5a Turma - Rel. Ministra Laurita Vaz - DJ 06/08/2007 p. 538.

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1) desclassificação na primeira fase do proce­ dimento bifásico do Júri: de acordo com o art. 419 do CPP, com redação dada pela Lei n° 11.689/08, quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da inexistência de crime doloso contra a vida, e não for competente para o seu julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja, ficando o acu­ sado preso à disposição deste outro juízo. Quanto à infração conexa, preceitua o parágrafo único do art. 81 do CPP que se o juiz vier a desclassificar a infração ou impronunciar ou absolver sumariamen­ te o acusado, de maneira que exclua a competência do júri, remeterá o processo ao juízo competente. Em síntese, excepcionando-se a regra da perpetuatio jurisdictionis constante do art. 81, caput, do CPP, ao juiz sumariante não caberá o processo e julgamento do crime conexo quando impronunciar, absolver sumariamente ou desclassificar a infração da sua competência, devendo remeter as infrações conexas ou continentes ao juízo competente.

2) desclassificação na segunda fase do proce­ dimento escalonado do júri: caso a desclassifica­ ção seja operada pelo Conselho de Sentença quan­ do do julgamento em plenário, seja ela própria ou imprópria, ao Juiz-Presidente caberá o julgamento da infração desclassificada e também das infrações conexas (CPP, art. 492, §§ Io e 2o). Exemplificando, se ao acusado tiverem sido imputadas as condutas de homicídio doloso e estupro consumado, con­ cluindo os jurados, todavia, pela desclassificação da imputação de homicídio doloso para lesão corporal seguida de morte, ao juiz-presidente caberá não só o julgamento desse delito, como também da infração conexa de estupro. Como vimos no tópico relativo à competência da Justiça Militar, uma importante ressalva se faz necessária nesse momento: se os ju­ rados, ao votarem, procederem à desclassificação da imputação de homicídio doloso, concluindo, v.g., pela existência do crime de lesões corporais seguidas de morte praticado por militar contra civil, não será possível a aplicação da regra do art. 492, § Io, Ia par­ te, do CPP, pois, na medida em que os jurados con­ cluíram não se tratar de crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil, depreende-se que tal crime deixa de ser considerado crime comum, retornando à condição de crime militar, razão pela qual não pode ser julgado pelo Juiz-Presidente do Tribunal do Júri. Portanto, se esse crime de lesões corporais seguidas de morte tiver sido praticado por militar em serviço ou atuando em razão em razão da função - crime militar nos exatos termos do art. 209, § 3o, in fine, c/c art. 9o, inciso II, “c”, ambos do CPM -, compete ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri determinar a remessa dos autos à Justiça Militar,

a quem compete processar e julgar o referido crime militar;736

3) absolvição pelo Conselho de Sentença em relação ao crime doloso contra a vida: se os jura­ dos deliberaram pela absolvição em relação à in­ fração principal (crime doloso contra a vida), v.g., respondendo afirmativamente ao quesito “o jurado absolve o acusado?”, significa que, implicitamente, reconheceram sua competência para processar e julgar o feito. Logo, também aos jurados caberá o julgamento das demais infrações penais conexas e continentes, aplicando-se a regra geral do art. 81, caput, do CPP.

Por fim, quanto à perpetuação da competência no caso de conexão e continência entre crimes de competência da Justiça Federal e Estadual, repeti­ mos aqui o quanto foi visto ao tratarmos da com­ petência da Justiça Federal. Valendo-se do exemplo ali citado em que um juiz federal, ao final do processo, entenda que a internacionalidade do tráfico de drogas não esteja comprovada, tratando-se, pois, de crime de tráfico interno de drogas, da competência da Justiça Esta­ dual, foi dito que uma primeira corrente sustenta ser possível a aplicação da regra do art. 81 do CPP. As­ sim, mesmo que o juiz federal viesse a entender ao final do processo que o delito seria de tráfico interno de drogas, esse magistrado teria sua competência prorrogada, sendo inviável a alegação de nulidade absoluta do processo por violação ao princípio do juiz natural.

Tem prevalecido, todavia, a posição segundo a qual, a partir do momento em que o juiz federal reconhece que não se trata de crime de tráfico in­ ternacional, está reconhecendo sua incompetência absoluta, sendo inviável a perpetuação da compe­ tência, porquanto, se se trata de crime da compe­ tência da Justiça Estadual, cessou sua competência para o processo e julgamento do feito. Não por outro motivo, em caso concreto apreciado pelo STJ, em face da superveniência da extinção da punibilidade em face do crime que justificava a competência da Justiça Federal, concluiu-se que os crimes conexos deveríam ser julgados pela Justiça Estadual, na me­ dida em que não subsistiría qualquer interesse da União.737 736. Com esse entendimento: STF, Pleno, RHC 80.718/RS, Rei. Min. limar Galvão, DJ 01°/08/2003 p. 106.

737. STJ, HC 108.350/RJ, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julga­ do em 4/8/2009. Na mesma trilha: STJ, 6a Turma, HC 37.581/PR, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 19/12/2005 p. 474; STF, 2a Turma, HC 74.479/ RS, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 28/02/1997.

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Situação diferente ocorrerá na hipótese de cone­ xão entre o tráfico internacional de drogas, crime de competência da Justiça Federal, pelo qual o acusado seja absolvido, e um crime qualquer de competência da Justiça Estadual, v.g., roubo. A princípio, e em virtude do teor da súmula 122, prevalecerá a com­ petência da Justiça Federal, nos termos da súmula 122 do STJ: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de com­ petência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”. Nessa hipótese, mesmo que o juiz federal absolva o agente em relação à imputação de tráfico internacional de drogas, terá sua competência prorrogada para julgar o delito conexo, pois, se houve absolvição, significa dizer que a Justiça Federal afirmou sua competência, a qual será extensiva aos crimes conexos - vide regra do art. 81 do CPP.

2. PRORROGAÇÃO DE COMPETÊNCIA Prorrogar significa aumentar a extensão da competência de um órgão jurisdicional de modo a alcançar causas que, abstratamente, não seriam de sua competência, mas que, por algum motivo, passaram a ser concretamente.738

Se a competência absoluta é aquela fixada com base no interesse público, tem-se que não pode ser modificada, ou seja, a competência absoluta é im­ prorrogável, inderrogável. Logo, só é possível haver prorrogação de competência quando a competência possuir natureza relativa. Didaticamente, a prorrogação da competência pode assim ser classificada:

1) legal ou necessária: sua ocorrência não de­ pende da iniciativa das partes. A título de exemplo, é o que se dá nos casos de conexão e continência (CPP, arts. 76 e 77); 2) voluntária: quando depende da iniciativa das partes. Esta, por sua vez, subdivide-se em: 2.1) expressa: quando há requerimento da parte. É o que se dá quando o desaforamento é requerido pelo réu, pelo Ministério Público ou pelo querelante (CPP, art. 427, caput); 2.2) tácita: ocorre diante do silêncio das partes. Exemplificando, quando a incompetên­ cia relativa não é arguida no momento oportuno - resposta à acusação (CPP, art. 396-A) -, dá-se a preclusão para a parte. Segundo o art. 81 do CPP, verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz

738. FEITOZA, Denílson. Op. Cit. p. 329.

ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em rela­ ção aos demais processos. Logo, verificada a reunião de processos por conexão ou continência, o juiz ou tribunal continuará competente em relação às demais infrações penais atraídas, ainda que no processo da sua competência própria venha a: 1) absolver o acusa­ do daquela que promoveu a atração; 2) desclassificar a infração que promoveu a atração para outra que não se inclua na sua competência; 3) por interpre­ tação extensiva, declarar a extinção da punibilidade em relação à infração que promoveu a atração (por exemplo, em razão da morte do corréu).739 Exemplificando, caso haja conexão probatória entre um roubo simples praticado na comarca “A” e um crime de receptação qualificada cometido na comarca “B”, prevalece a competência do juízo da comarca “A”, na medida em que a pena cominada para o delito de roubo simples é mais grave (CPP, art. 78, II, “a”). Caso, ao final do processo, conclua o magistrado pela desclassificação de roubo para furto simples, ainda assim continuará competente para o fato desclassificado e para a receptação, nos exatos termos do art. 81, caput, do CPP. Por sua vez, segundo o art. 74, § 2o, do CPP, se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclas­ sificação para infração da competência de outro, a este será remetido o processo, salvo se mais gradua­ da for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada. Segundo Pacelli, a ressalva constante da parte final desse dispositivo não encontra mais aplicação, pois atualmente a di­ ferença de graduação, para fins de competência, é unicamente de instância: “isso porque a competên­ cia dos tribunais, que seriam mais graduados que os juizes de primeira instância, é originária, em razão de prerrogativa de função. Por isso, quando determi­ nado tribunal recusa a sua competência e remete os autos ao juiz de primeiro grau, ele, na realidade, não está desclassificando a infração, mas simplesmente declinando de sua competência por não reconhecer, por exemplo, a apontada prerrogativa de função”.740

3. PERPETUAÇÃO DE COMPETÊNCIA Uma vez iniciado o processo penal perante de­ terminado juízo, deve nele prosseguir até o seu tér­ mino. No entanto, ao longo do curso do processo,

739. Acerca da aplicação do art. 81 do CPP nos casos de conexão e continência entre crimes de competência da Justiça Federal e Estadual, vide acima item relativo à "Perpetuação da competência nas hipóteses de conexão e continência". 740. Op. cit. p. 260.

TÍTULO 5 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

várias alterações podem ocorrer, hipótese em que se questiona se a competência será mantida ou não. Conquanto não haja dispositivo legal expresso no Có­ digo de Processo Penal acerca do assunto, tem preva­ lecido na jurisprudência a possibilidade de aplicação subsidiária do disposto no art. 43 do novo CPC: “Determina-se a competência no momento do registro ou distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocor­ ridas posteriormente, salvo quando suprimirem ór­ gão judiciário ou alterarem a competência absoluta”. Vê-se, pois, que são irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito, salvo em duas hipóteses: a) quando ocorrer a extinção do órgão judiciá­ rio, tal como ocorreu com os Tribunais de Alçada (Emenda Constitucional n° 45/04, art. 4o);

b) quando a competência for alterada em razão da matéria: vide exemplo da Lei n° 9.299/96, que transformou em crime comum o crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil, ainda que co­ metido em serviço (CPM, art. 9o, parágrafo único).741

Mas e no caso de alteração da competência territorial por regra de organização judiciária pos­ terior? Exemplificando, imagine-se que o acusado esteja sendo processado na comarca “A”, na qual está inserido o município “B”, por crime praticado neste município. Futuramente, no entanto, o município “B” é transformado em comarca autônoma. Deverá se dar a perpetuação da competência perante a comarca “A”? Ou o processo deve ser remetido à novel comarca?

741. De acordo com Pacelli,"não há qualquer inconveniente aprioriou, mais ainda, qualquer ilegalidade - na alteração excepcional da regra da perpetuatio jurisdictionis, sobretudo quando se tratar de criação de varas especializadas em determinadas matérias, no âmbito do mesmo juiz natural, desde que respeitado, agora, o princípio da identidade física do juiz (art. 399, § 2o, CPP), com modificação, então, da ordem legal anterior." (op. cit. p. 247). Nessa linha, quanto à especialização de varas federais para o processo e julgamento dos crimes de lavagem de capitais, o Supremo concluiu que "o provimento apontado como inconstitucional especializou vara federal já criada, nos exatos limites da atribuição que a Carta Magna confere aos Tribunais. A remessa para vara especializada fundada em conexão não viola o princípio do juiz natural". (STF, 1a Turma, HC 91.253/ MS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 142 13/11/2007).

Diante do silêncio da lei processual penal, em regra, tais casos têm sido resolvidos pelas próprias leis de organização judiciária: logo, criada a co­ marca, ou novo juízo, a própria lei irá definir se serão (ou não) a ela remetidos os processos rela­ tivos aos crimes ali cometidos. Nas hipóteses em que a lei de organização judiciária silenciar acerca do procedimento a ser adotado, tem prevalecido a aplicação subsidiária da regra constante art. 43 do novo CPC, com a consequente manutenção do processo na comarca de origem. Tal se dá porque a competência territorial é prorrogável e relativa, o que não ocorre com a competência em razão da matéria.742 A aplicação subsidiária do princípio da per­ petuatio jurisdictionis no processo penal pode incidir inclusive em relação aos crimes dolosos contra a vida, porém somente na fase anterior ao julgamento pelo júri. De fato, na medida em que a própria existência do Júri está ligada ao objeti­ vo de se preservar o julgamento do réu pelos seus pares, caso haja a criação de foro no lugar em que foi perpetrado o crime doloso contra a vida, é nesse foro que deverá se dar o julgamento em plenário. Portanto, no âmbito do Tribunal do Júri, podemos afirmar que o princípio da perpetua­ tio jurisdictionis somente é aplicável à Ia fase do procedimento bifásico (iudicium accusationis).743

742. No sentido da possibilidade de aplicação subsidiária da regra da perpetuatio jurisdictionis do art. 87 do CPC (art. 43 do no-vo CPC) ao processo penal, com fundamento no art. 3o do CPP: STF, 2a Turma, RHC 83.008/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 27/06/2003. E também: STF, Ple­ no, RHC 83.181/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 22/10/2004.

743. STF, 1a Turma, HC 89.849/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ

16/02/2007.

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TÍTULO

6 PROVAS

CAPÍTULO I

TEORIA GERAL DAS PROVAS 1. TERMINOLOGIA DA PROVA1 Em sentido amplo, provar significa demonstrar a veracidade de um enunciado sobre um fato tido por ocorrido no mundo real. Em sentido estrito, a palavra prova tem vários significados. Por isso, inicialmente, é importante firmarmos algumas pre­ missas terminológicas.

1.1. Acepções da palavra prova A palavra prova tem a mesma origem etimológica de probo (do latim, probatio eprobus), e traduz as idéias de verificação, inspeção, exame, aprovação ou confirmação. Dela deriva o verbo provar, que significa verificar, examinar, reconhecer por expe­ riência, estando relacionada com o vasto campo de operações do intelecto na busca e comunicação do conhecimento verdadeiro. Na verdade, há três acep­ ções da palavra prova: 1) Prova como atividade probatória: consis­ te no conjunto de atividades de verificação e de­ monstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para o julgamento.2* Nesse sentido, identifica-se o conceito de prova com a produção dos meios e atos praticados no processo visando ao convencimento do juiz sobre a 1. Este tópico introdutório é feito com base nas lições do Prof. Antônio Magalhães Gomes Filho: Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. Coord.: Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanóide de Moraes.

São Paulo: DPJ Editora, 2005. 2. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. III. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 43.

veracidade (ou não) de uma alegação sobre um fato que interesse à solução da causa. Sob esse prisma, pode se dizer que há, para as partes, um direito à prova (right to evidence, em inglês), que funciona como desdobramento natural do direito de ação, não se reduzindo ao direito de propor ou ver pro­ duzidos os meios de prova, mas, efetivamente, na possibilidade de influir no convencimento do juiz. Com efeito, de nada adianta o Estado assegurar à parte o direito de ação, legitimando a propositura da demanda, sem o correspondente reconhecimento do direito de provar, ou seja, do direito de se uti­ lizar dos meios de prova necessários a comprovar, perante o órgão julgador, as alegações feitas ao longo do processo. Há de se assegurar às partes, portanto, todos os recursos para o oferecimento da matéria probatória, sob pena de cerceamento de defesa ou de acusação. Conquanto constitucionalmente asse­ gurado, esse direito à prova, por estar inserido nas garantias da ação e da defesa e do contraditório, não é absoluto. Em um Estado Democrático de Direito, o processo penal é regido pelo respeito aos direitos fundamentais e plantado sob a égide de princípios éticos que não admitem a produção de provas me­ diante agressão a regras de proteção. A legitimação do exercício da função jurisdicional está condicio­ nada, portanto, à validade da prova produzida em juízo, em fiel observância aos princípios do devido processo legal e da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5o, LIV e LVI); 2) Prova como resultado: caracteriza-se pela formação da convicção do órgão julgador no curso do processo quanto à existência (ou não) de de­ terminada situação fática. Por mais que não seja possível se atingir uma verdade irrefutável acerca dos acontecimentos ocorridos no passado, é possível

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atingir um conhecimento processualmente verda­ deiro acerca dos fatos controversos inseridos no processo sempre que, por meio da atividade proba­ tória desenvolvida, sejam obtidos elementos capazes de autorizar um determinado grau de certeza acerca da ocorrência daqueles mesmos fatos; 3) Prova como meio: são os instrumentos idô­ neos à formação da convicção do órgão julgador acerca da existência (ou não) de determinada situa­ ção fática, cujo conceito será trabalhado com mais detalhes logo abaixo.

1.2. Distinção entre prova e elementos informativos Com as alterações produzidas pela Lei n° 11.690/08, passou a constar expressamente do art. 155 do CPP a distinção entre prova e elementos in­ formativos. O tema já foi objeto de análise no Título atinente à Investigação Preliminar, mais precisamen­ te nos itens 3 (“Finalidade do Inquérito Policial) e 4 (“Valor probatório do inquérito policial”), para onde remetemos o leitor.

1.3. Provas cautelares, não repetíveis e antecipadas A interpretação a contrario sensu do art. 155 do CPP deixa entrever que é possível que o juiz forme sua convicção exclusivamente com base em 3 (três) espécies de provas, ainda que produzidas na fase investigatória:

a) Provas cautelares: são aquelas em que há um risco de desaparecimento do objeto da prova em razão do decurso do tempo, em relação às quais o contraditório será diferido.3 Podem ser produzidas no curso da fase investigatória ou durante a fase judicial, sendo que, em regra, dependem de autori­ zação judicial. É o que acontece, por exemplo, com uma interceptação telefônica. Tal medida investiga­ tória, que tem no elemento da surpresa verdadeiro pressuposto de sua eficácia, depende de prévia au­ torização judicial, sendo que o investigado só terá conhecimento de sua realização após a conclusão das diligências. Quando estamos diante de medidas cautelares inaudita altera parte, a parte contrária só poderá contraditá-la depois de sua concretização, o que é denominado pela doutrina de contraditório diferido, postergado ou adiado; 3.0 contraditório diferido (ou sobre a prova) pode ser compreendi­ do como o reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova. Não se confunde com o contraditório real (ou para a prova), que demanda que as partes atuem na própria formação do elemento

de prova, sendo indispensável que sua produção ocorra na presença do órgão julgador e das partes.

b) Prova não repetível: é aquela que, uma vez produzida, não tem como ser novamente coleta­ da ou produzida, em virtude do desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte probatória. Po­ dem ser produzidas na fase investigatória e em juízo, sendo que, em regra, não dependem de autorização judicial. Exemplificando, suponha-se que alguém te­ nha sido vítima de lesões corporais de natureza leve. O exame pericial levado a efeito imediatamente após a prática do delito dificilmente poderá ser realizado novamente, já que os vestígios deixados pela infra­ ção penal irão desaparecer. Ante o perigo de que haja dispersão dos elementos probatórios em relação aos fatos transeuntes, sua produção independe de prévia autorização judicial, podendo ser determi­ nada pela própria autoridade policial imediatamen­ te após tomar conhecimento da prática delituosa. Como dispõe o art. 6o, inciso VII, do CPP, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá, dentre outras diligências, determinar que se proceda a exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias. Perceba-se que, nos mesmos moldes do que ocorre com as provas cautelares, o contraditório também será diferido em relação às provas não repetíveis. Para que possam ser utilizadas no curso do processo, imperiosa será a observância do contraditório sobre a prova, permi­ tindo que as partes possam discutir sua admissibi­ lidade, regularidade e idoneidade. Não há, todavia, necessidade de realizá-las novamente no curso do processo penal, até mesmo porque provavelmente isso não seria possível.4 Bom exemplo disso, aliás, é o quanto previsto no art. 159, § 5o, inciso I, do CPP, que permite às partes, durante o curso do processo judicial, requerer a oitiva dos peritos para esclare­ cimento da prova ou para responderem a quesitos; c) provas antecipadas: são aquelas produzidas com a observância do contraditório real, perante a autoridade judicial, em momento processual distin­ to daquele legalmente previsto, ou até mesmo antes do início do processo, em virtude de situação de urgência e relevância. Tais provas podem ser pro­ duzidas na fase investigatória e em juízo, sendo in­ dispensável prévia autorização judicial. É o caso do denominado depoimento ad perpetuam rei memoriam, previsto no art. 225 do CPP. Supondo-se que 4. No sentido de que perícias e documentos produzidos na fase inquisitorial são revestidos de eficácia probatória sem a necessidade de serem repetidos no curso da ação penal por se sujeitarem ao contraditório diferido: STJ, 5a Turma, AgRg no AREsp 1.032.853/SP, Rei. Min. Jorge Mussi,

j. 27/02/2018, DJe 07/03/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no AREsp 521.131/ RS, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 08/02/2018, DJe 21/02/2018; STJ, 5aTurma, HC 413.104/PA, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 08/02/2018, DJe 15/02/2018; STJ, 5aTurma, AgRg no AREsp 312.502/DF, Rei. Min. Felix Fischer, j. 13/06/2017, DJe 01/08/2017.

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determinada testemunha presencial do delito esteja hospitalizada, em grave estado de saúde, afigura-se possível a colheita antecipada de seu depoimento, o que será feito com a presença do juiz, e com a par­ ticipação das partes sob contraditório. Caso ainda não haja uma pessoa formalmente apontada como suspeita da prática do delito, deve o magistrado di­ ligenciar para que a defesa técnica seja patrocinada por um advogado dativo. Nesse caso, o depoimento ficará integrado aos autos com o mesmo valor legal que teria caso fosse prestado no curso da instrução. Outro exemplo de prova antecipada é aquele cons­ tante do art. 366 do CPP, em que, determinada a suspensão do processo e da prescrição em relação ao acusado que, citado por edital, não tenha compa­ recido nem constituído defensor, poderá ser deter­ minada pelo juiz a produção antecipada de provas urgentes, nos termos do art. 225 do CPP. Nesse caso, para que se imponha a antecipação da prova urgen­ te, deve a acusação justificá-la de maneira satisfató­ ria (v.g., ofendido com idade avançada). Isso porque, na visão dos Tribunais Superiores, a inquirição de testemunha, por si só, não pode ser considerada prova urgente, e a mera referência aos limites da memória humana não é suficiente para determinar a medida excepcional.5 Sobre o assunto, dispõe a súmula n° 455 do STJ que “a decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. A Lei n. 13.431, de 4 de abril de 2017, com vigência um ano depois de sua publicação oficial, também dispõe que o depoimento especial, assim compreendido o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária, deverá ser realizado uma única vez, sempre que possível, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado (art. 11, caput). Aliás, consoante disposto em seu art. 11, §1°, o depoimento especial deverá seguir o rito cautelar de antecipação de prova: I - quando a criança ou adolescente tiver menos de 7 (sete) anos; II - em caso de violência sexual. O Código de Processo Pe­ nal silencia acerca do procedimento a ser adotado 5. De acordo com a jurisprudência, a produção antecipada das provas, conforme o art. 366 do CPP, exige concreta demonstração da urgência e da necessidade da medida. Não é motivo hábil para justificá-la a simples

assertiva de que as testemunhas, no futuro, possam vir a mudar de ende­ reço, dificultando a colheita de provas, e que elas poderão perder a me­ mória dos fatos. Nesse sentido: Informativo n°416 do STJ - RHC 21.173/ DF, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2009. Na mesma linha: STF, 1a Turma, HC 96.325/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJe 157 20/08/2009; STJ, 6a Turma, HC 122.936/PB, Rei. Min. Nilson Naves, DJe 15/06/2009.

no caso de colheita dessa prova antecipada. Não obstante, com fundamento no art. 3o do CPP, que­ remos crer ser possível a aplicação subsidiária do novo Código de Processo Civil, que trata de maneira expressa da matéria nos arts. 381 a 383.

1.4. Destinatários da prova Destinatários da prova são todos aqueles que devem formar sua convicção. De modo geral, tem-se como destinatário o órgão jurisdicional (juiz ou tribunal) sobre o qual recai a competência para o processo e julgamento do delito.

Parte da doutrina sustenta que o Ministério Pú­ blico também pode ser destinatário da prova. A de­ pender do referencial adotado, sustentam, é possível dizer que o órgão ministerial, detendo a titularidade da ação penal pública, também é destinatário da prova, na medida em que, na fase pré-processual, as provas têm como finalidade o convencimento do órgão ministerial (formação de sua opinio delicti).6 Com a devida vênia, como visto anteriormente, na fase investigatória, não se pode usar a expressão ‘prova, salvo no caso de provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Objetiva o inquérito policial a produção de elementos de informação. Por isso, preferimos dizer que o órgão do Ministério Público é o destinatário desses elementos, e não da prova, cuja produção se dá, em regra, somente em juízo, quando a decisão acerca da prática de determinado fato delituoso compete única e exclusivamente ao juiz natural.

1.5. Elemento de prova e resultado da prova Elementos de prova (evidence, em inglês) são todos os dados objetivos que confirmam ou negam uma asserção a respeito de um fato que interessa à decisão da causa. Deve ser empregado no plural elementos de prova ou elementos probatórios -, pois o convencimento judicial, em princípio, resulta de mais de um, ou seja, de uma pluralidade de informa­ ções. Funcionam, assim, como elementos de prova a declaração de uma testemunha sobre determinado fato, a opinião emitida por perito sobre a matéria de sua especialidade, o conteúdo de um documento juntado aos autos, etc. Sob outro prisma, a palavra prova pode ser vista como a conclusão que se extrai da análise dos elementos de prova constantes do processo: é o re­ sultado da prova (proof, em inglês), obtido não ape­ nas pelo somatório dos elementos de prova, como 6. FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6a ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2009. p. 689.

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também por meio de uma atividade intelectual do magistrado, que permite estabelecer se a afirmação ou negação do fato é verdadeira, ou não.

Como aponta Gomes Filho, essa distinção entre elemento de prova e resultado de prova é de suma relevância prática no processo penal brasileiro. Na dicção do autor, nos casos em que a lei admite a ape­ lação contra decisões do júri quando “for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos” (art. 593, III, d) ou quando autoriza a revi­ são criminal diante da contrariedade “à evidência dos autos”, o sentido dessas expressões só pode ser o resultado da prova, não sendo viável entender-se que a existência de um só elemento poderia afastar o conhecimento da impugnação.7

1.6. Finalidade da prova A finalidade da prova é a formação da con­ vicção do órgão julgador. Na verdade, por meio da atividade probatória desenvolvida ao longo do pro­ cesso, objetiva-se a reconstrução dos fatos investiga­ dos na fase extraprocessual, buscando a maior coin­ cidência possível com a realidade histórica. Verdade seja dita, jamais será possível se atingir com absoluta precisão a verdade histórica dos fatos em questão. Daí se dizer que a busca é da verdade processual, ou seja, daquela verdade que pode ser atingida atra­ vés da atividade probatória desenvolvida durante o processo. Essa verdade processual pode (ou não) corresponder à realidade histórica, sendo certo que é com base nela que o juiz deve proferir sua decisão.

1.7. Sujeitos da prova Sujeitos da prova são as pessoas ou coisas de quem ou de onde deriva a prova, podendo ser pes­ soal ou real. A prova pessoal consiste numa afirma­ ção de conhecimento ou na certificação de fato ou fatos do processo. A prova real equivale à atestação que advém da própria coisa constitutiva da prova (o ferimento; o projétil balístico da arma utilizada na prática de um delito). Como observa Adalberto Camargo Aranha, “to­ dos os fatos deixam vestígios, que podem ser reais, ou morais. Os primeiros ligam-se à realidade incons­ ciente das coisas, enquanto os segundos resultam de impressões conscientes do espírito. A coisa atesta, inconscientemente e sem influência do espírito hu­ mano, vestígios do fato probando; é a prova real que, em última análise, consiste na atestação inconsciente feita por uma coisa na qual ficou impresso um si­ nal. As perícias, as vistorias e todas as modificações 7. Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. Coord.: Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanóide de Moraes. São Paulo: DPJ Editora, 2005. p. 308.

corpóreas constituem prova real. O homem testemu­ nha, mediante uma afirmação pessoal e consciente, um fato por ele conhecido por ciência própria ou por meio de terceiros; é a prova pessoal. É a revela­ ção consciente feita por uma pessoa das impressões mnemônicas de um fato. A prova real é a atestação inconsciente feita por uma coisa”.8

1.8. Forma da prova Quanto à forma da prova, ou seja, a maneira pela qual a prova se apresenta em juízo, a prova pode ser documental, material ou testemunhai.

Documento, do latim documentum, de docere (mostrar, indicar, instruir) é o papel escrito que traz em si a declaração da existência (ou não) de um ato ou de um fato (v.g., escritos públicos ou particulares, cartas, livros comerciais, fiscais, etc.). A prova ma­ terial é aquela que resulta da verificação existencial de determinado fato, que demonstra a sua mate­ rialização, tal como ocorre com o corpo de delito, instrumentos do crime, etc. Por fim, testemunhai é a prova que consiste na manifestação pessoal oral. A prova testemunhai é espécie do gênero prova oral, que é mais abrangente, já que inclui os esclareci­ mentos de perito e assistente técnico, bem como eventuais declarações da vítima.

1.9. Fonte de prova, meios de prova e meios de obtenção de prova A expressão fonte de prova é utilizada para desig­ nar as pessoas ou coisas das quais se consegue a pro­ va, daí resultando a classificação em fontes pessoais (ofendido, peritos, acusado, testemunhas) e fontes reais (documentos, em sentido amplo). Cometido o fato delituoso, tudo aquilo que possa servir para esclarecer alguém acerca da existência desse fato pode ser conceituada como fonte de prova. Derivam do fato delituoso em si, independentemente da existên­ cia do processo, ou seja, são anteriores a ele, sendo que sua introdução no feito se dá através dos meios de prova. Exemplificando, suponha-se que determinado crime tenha sido praticado dentro de uma sala de aula. Todas as pessoas que presenciaram o cometimento do delito serão consideradas fontes de prova. Essas pessoas poderão ser levadas à apreciação do juiz, o que se dará pela sua introdução no processo pelos meios de prova, in casu, pela prova testemunhai.

Por sua vez, meios de prova são os instrumen­ tos através dos quais as fontes de prova são intro­ duzidas no processo. Dizem respeito, portanto, a 8. ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006. p. 25.

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uma atividade endoprocessual que se desenvolve perante o juiz, com o conhecimento e a participação das partes, cujo objetivo precípuo é a fixação de da­ dos probatórios no processo. Enquanto as fontes de prova são anteriores ao processo e extraprocessuais, os meios de prova somente existem no processo. Como aduz Badaró, “a testemunha de um fato é a fonte de prova, enquanto suas declarações em juízo são o meio de prova. O documento é uma fonte de prova, a sua incorporação ao processo é o meio de prova. O livro contábil é a fonte de prova, enquanto a perícia contábil é o meio de prova”.9

Os meios de prova podem ser lícitos ou ilícitos. Somente os primeiros podem ser admitidos pelo ma­ gistrado, dispondo o art. 157 do CPP que são inad­ missíveis as provas ilícitas, assim entendidas as obti­ das em violação a normas constitucionais ou legais, devendo ser desentranhadas dos autos do processo.10 Como destaca Nucci, os meios ilícitos abrangem não somente os que forem expressamente proibidos por lei, mas também os imorais, antiéticos, atentatórios à dignidade e à liberdade da pessoa humana e aos bons costumes, bem como os contrários aos princí­ pios gerais de direito.11 Por fim, os meios de investigação da prova (ou de obtenção da prova) referem-se a certos procedi­ mentos (em regra, extraprocessuais) regulados por lei, com o objetivo de conseguir provas materiais, e que podem ser realizados por outros funcionários que não o juiz (v.g., policiais). No Código de Processo Penal, apesar de inserida entre os meios de prova, a busca pessoal ou domiciliar deve ser compreendida como meio de investigação, haja vista que seu objeti­ vo não é a obtenção de elementos de prova, mas sim de fontes materiais de prova. Exemplificando, se de uma busca domiciliar determinada pelo juiz resul­ tar a apreensão de determinado documento, este sim funcionará como meio de prova, uma vez juntado aos autos do processo. Outros exemplos de meios de investigação são as interceptações telefônicas, regu­ ladas pela Lei n° 9.296/96, bem como a infiltração de agentes, prevista tanto na Lei n° 11.343/06 (art. 53, inciso I), quanto na Lei n° 12.850/13 (arts. 10 a 14). Pelo menos em regra, devem ser produzidos sem prévia comunicação à parte contrária, funcionando a surpresa como importante traço peculiar, sem a qual seria inviável a obtenção das fontes de prova. Nesse ponto, diferenciam-se dos meios de prova, na medida em que, em relação a estes, é de rigor a observância ao 9. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. ônus da prova no processo

penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 166. 10. Para mais detalhes acerca da inadmissibilidade das provas ilícitas,

vide abaixo tópico pertinente ao assunto.

11. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 389/390.

contraditório, que pressupõe tanto o conhecimento acerca da produção de determinada prova, quanto a efetiva participação na sua realização. Essa distinção entre meios de prova e meios de obtenção de prova também é importante quando se aponta as consequências de eventuais irregularidades ocorridas quando do momento de sua produção. De­ veras, eventual vício quanto aos meios de prova terá como consequência a nulidade da prova produzida, haja vista referir-se a uma atividade endoprocessual. Lado outro, verificando-se qualquer ilegalidade no tocante à produção de determinado meio de obten­ ção de prova, a consequência será o reconhecimento de sua inadmissibilidade no processo, diante da vio­ lação de regras relacionadas à sua obtenção (CF, art. 5o, LVI), com o consequente desentranhamento dos autos do processo (CPP, art. 157, caput).

Em síntese, podemos trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os meios de obtenção de prova e os meios de prova: Meios de obtenção de prova

Meios de prova

- Em regra, são executa­ dos na fase preliminar de investigações, o que não afasta a possibilidade de execução durante o curso do processo, de modo a permitir a descoberta de fontes de prova diversas das que serviram para a formação da opinio delicti;

- Em regra, são realiza­ dos na fase processual da persecução penal; ex­ cepcionalmente, na fase investigatória, observado o contraditório, ainda que diferido (ex: provas antecipadas);

- são atividades extraprocessuais;

- são atividades endoprocessuais;

- são executados, em re­ gra, por policiais aos quais seja outorgada a atribuição de investigação de infra­ ções penais, geralmente com prévia autorização e concomitante fiscalização judiciais;

- consistem em atividades desenvolvidas perante o juiz competente, valendo lembrar que o juiz que presidir a instrução deve­ rá, pelo menos em regra, julgar o feito (CPP, art. 399, § 2o);

- são praticados com fun­ damento na surpresa, com desconhecimento do(s) investigado(s);

- são produzidos sob o crivo do contraditório, com prévio conhecimento e participação das partes;

- se praticados em desconformidade com o modelo típico, há de ser reconhecida sua ilicitude, com o consequente desen­ tranhamento dos autos do processo.

- se praticados em desconformidade com o modelo típico, são sancionados, em regra, com a nulidade absoluta ou relativa.

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1.9.1. Meios extraordinários de obtenção de prova (técnicas especiais de investigação) Com base no grau de restrição aos direitos e garantias do investigado, a doutrina costuma clas­ sificar os meios de obtenção de prova em ordinários e extraordinários. Meios ordinários de obtenção de prova são aqueles previstos não só para investigação de deli­ tos graves, como também para infrações de menor gravidade, cuja forma de execução é diferenciada, por ser escondida sob o manto protetor da invio­ labilidade de bens jurídicos individuais.12 A título de exemplo, podemos citar uma busca domiciliar. Meios extraordinários de obtenção de prova (ou técnicas especiais de investigação) são as ferra­ mentas sigilosas postas à disposição da Polícia, dos órgãos de inteligência e do Ministério Público para a apuração e a persecução de crimes graves, que exi­ gem o emprego de estratégias investigativas distintas das tradicionais, que se baseiam normalmente em prova documental ou testemunhai. Em sede pro­ cessual penal, foram utilizados inicialmente para a persecução penal do tráfico de drogas, sendo que, atualmente, também são usados para a investigação de crimes praticados por organizações criminosas. São identificados, em regra, pela presença de dois elementos: o sigilo e a dissimulação. Por meio deles, são coletadas informações, indícios ou provas de um crime sem o conhecimento do investigado, de modo a proporcionar aos órgãos estatais o fator surpresa. Nesse caso, o contraditório será exercido apenas de maneira diferida. Nesse grupo de técnicas sigilosas estão incluídas a interceptação das comunicações telefônicas, a ação controlada, etc. Dentre as técnicas de dissimulação, a infiltração policial costuma ser utilizada com o objetivo de induzir a erro o inves­ tigado, a fim de que seja levado a acreditar que não se relaciona com um policial (Lei n. 11.343/06, art. 2o, V; Lei n. 12.850/13, arts. 10 a 14; Lei n. 8.069/90, art. 190-A, incluído pela Lei n. 13.441/17). Evidentemente, como algumas técnicas espe­ ciais de investigação são intrusivas, no sentido de que exploram as esferas da intimidade e da vida privada, sua utilização somente pode ocorrer se a medida investigativa for legal - algumas dependem, inclusive, de prévia autorização judicial -, se o seu

emprego se prestar a um fim legítimo e se a téc­ nica for necessária para alcançar a prova a que se destina.13

1.10. Prova direta e prova indireta Prova direta é aquela que permite conhecer o fato por meio de uma única operação inferencial. Nessa linha, se a testemunha diz que presenciou o exato momento em que o acusado desferiu disparos de arma de fogo contra a vítima, é possível concluir, com um único raciocínio, que o acusado é o autor das lesões produzidas no ofendido. Por sua vez, a prova é considerada indireta quando, para alcançar uma conclusão acerca do fato a provar, o juiz se vê obrigado a realizar pelo menos duas operações inferenciais. Em um primeiro mo­ mento, a partir da prova indireta produzida, chega à conclusão sobre a ocorrência de um fato, que ainda não é o fato a ser provado. Conhecido esse fato, por meio de um segundo procedimento inferencial, chega ao fato a ser provado. Exemplificando, suponha-se que a testemunha diga que não presenciou os disparos de arma de fogo. Esclarece, no entanto, que presenciou a saída do acusado do local em que os disparos foram efetuados, imediatamente após ouvir o estampido dos tiros, escondendo a arma de fogo sob suas vestes, sujas de sangue. A partir dessa prova indireta, será possível ao órgão julgador con­ cluir que o acusado foi (ou não) o autor das lesões produzidas no corpo da vítima.

Outro exemplo de prova indireta diz respeito ao álibi. Etimologicamente, a palavra álibi signifi­ ca a “defesa que o réu apresenta quando pretende provar que não poderia ter cometido o crime por, p. ex, encontrar-se em local diverso daquele em que o crime de que o acusam foi praticado”.14 Supondo, então, que o suspeito consiga comprovar que estava em outro local no exato momento em que o crime foi praticado, conclui-se não ter sido ele o executor do crime.

1.11. Indício: prova indireta ou prova semiplena A palavra indício é usada no Código de Proces­ so Penal em dois sentidos, ora como prova indireta, ora como prova semiplena.

No sentido de prova indireta, a palavra indício deve ser compreendida como uma das espécies do gênero prova, ao lado da prova direta, funcionando

12. Nessa linha: ARANTES FILHO, Márcio Geraldo Britto. A interceptação de comunicação entre pessoas presentes. Coordenação: Gustavo Henrique Badaró e Petrônio Calmo. Brasília/DF: Gazeta Jurídica, 2013. p. 70. Ainda segundo o autor, outra dicotomia dos meios de obtenção de prova é a que os divide em preventivos e repressivos: os primeiros são aqueles cuja

13. Nesse sentido: ARAS, Vladimir. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Organizadora: Carla Veríssimo de Carli. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 411.

execução se admite em atividade de prevenção; os repressivos inserem-se em atividade de repressão à prática de fatos delituosos.

14. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009. p. 95.

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como um dado objetivo que serve para confirmar ou negar uma asserção a respeito de um fato que interessa à decisão judicial. É exatamente nesse sen­ tido que a palavra indício é utilizada no art. 239 do CPP. Partindo-se de um fato base comprovado, chega-se, por meio de um raciocínio dedutivo, a um fato consequência que se quer provar. Na dic­ ção de Maria Thereza Rocha de Assis Moura, “in­ dício é todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido, devidamente provado, suscetível de conduzir ao conhecimento de um fato desconheci­ do, a ele relacionado, por meio de um raciocínio indutivo-dedutivo ”.15 Se o indício é o fato provado que permite, me­ diante inferência, concluir pela ocorrência de outro fato, é certo dizer que, apesar de o CPP dispor sobre o indício como prova indireta entre os meios de prova (art. 239), o indício não é um meio de prova, mas apenas o resultado probatório de um meio de prova. Na verdade, como observa a doutrina, “o que pode ser provado é o fato indicativo (p. ex.: uma testemunha que viu o acusado com uma faca suja de sangue e a vítima esfaqueada aos seus pés). O in­ dício é o fato certo que está na base da inferência da presunção. Em outras palavras, o indício é o ponto de partida da presunção. Ou, visto pelo outro lado, a presunção é um juízo fundado sobre um indício”.16 Muito se discute acerca da possibilidade de se condenar alguém com base única e exclusivamente em indícios. A nosso juízo, com a incorporação ao processo penal do sistema da persuasão racional do juiz (CPP, art. 155, caput, e CF/88, art. 93, IX), e a consequente exclusão de qualquer regra de prova tarifada, permite-se que tanto a prova direta como a prova indireta sejam em igual medida válidas e eficazes para a formação da convicção do magis­ trado. Obviamente, não se pode admitir que um indício isolado e frágil possa fundamentar um de­ creto condenatório. De modo algum. Para tanto, a prova indiciária está sujeita às seguintes condições:

a) os indícios devem ser plurais (somente ex­ cepcionalmente um único indício será suficiente, desde que esteja revestido de um potencial incri­ minador singular);

b) devem estar estreitamente relacionados entre si; c) devem ser concomitantes, ou seja, univocamente incriminadores - não valem as meras 15. A prova por indícios no processo penal. Reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. 16. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. Rio de Janeiro: Cam­ pus, Elsevier, 2012. p. 336.

conjecturas ou suspeitas, pois não é possível cons­ truir certezas sobre simples probabilidades; d) existência de razões dedutivas - entre os in­ dícios provados e os fatos que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as regras do critério humano. Nessa linha, como o Código de Processo Penal Militar estabelece em seu art. 383, para que o indício constitua prova, é necessário que a circunstância ou fato indicante tenha relação de causalidade, próxima ou remota, com a circunstância ou fato indicado, e que a circunstância ou fato coincida com a prova re­ sultante de outro ou outros indícios, ou com as provas diretas colhidas no processo.17

A propósito, forte na premissa de que o prin­ cípio processual penal do favor rei não ilide a pos­ sibilidade de utilização de presunções hominis ou facti, pelo juiz, para decidir sobre a procedência do ius puniendi, máxime porque o Código de Processo Penal prevê expressamente a prova indiciária, a Ia Turma do STF concluiu que o julgador pode, através de um fato devidamente provado que não consti­ tui elemento do tipo penal, mediante raciocínio engendrado com supedâneo nas suas experiências empíricas, concluir pela ocorrência de circunstância relevante para a qualificação penal da conduta, so­ bretudo em se tratando da criminalidade dedicada ao tráfico de drogas, que se organiza em sistema altamente complexo, motivo pelo qual a exigência de prova direta da dedicação a esse tipo de atividade, além de violar o sistema do livre convencimento motivado (CF, art. 93, IX, e art. 155 do CPP), prati­ camente impossibilitaria a efetividade da repressão a essa espécie delitiva.18 Apesar de grande parte da doutrina referir-se aos indícios apenas com o significado de prova indi­ reta, nos termos do art. 239 do CPP, a palavra indício também é usada no ordenamento processual penal pátrio com o significado de uma prova semiplena, ou seja, no sentido de um elemento de prova mais tênue, com menor valor persuasivo. É com esse sig­ nificado que a palavra indício é utilizada nos arts. 126, 312 e 413, caput, todos do CPP. Nesta acepção, 17. No sentido do texto: "Os indícios, dado ao livre convencimento do Juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. Entretanto, seu uso requer cautela e exige que o nexo com o fato a ser provado seja lógico e próximo". (STF, HC 70.344/RJ, 2.aT„ rei. Min. Paulo Brossard, publicado em 22.10.1993). Ainda no sentido da possibilidade de condenação com base em indícios, desde que coerentes e uníssonos: STJ, Corte Especial, APn 224/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves,

j. 01/10/2008, DJe 23/10/2008.

18. STF, 1aTurma, HC 103.118/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 20.03.2012, DJe 16.04.2012. Na mesma linha: STF, 1a Turma, HC 96.062, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 06.10.2009, DJe 213 12.11.2009.

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a expressão “indício” refere-se a uma cognição ver­ tical (quanto à profundidade) não exauriente, ou seja, uma cognição sumária, não profunda, em sen­ tido oposto à necessária completude da cognição, no plano vertical, para a prolação de uma sentença condenatória.19

Especificamente em relação aos arts. 312 e 413, caput, do CPP, na medida em que o legislador se refere à prova da existência do crime e ao conven­ cimento da materialidade do fato, respectivamente, percebe-se que, no tocante à materialidade do delito, exige-se um juízo de certeza quando da decretação da prisão preventiva ou da pronúncia. No tocante à autoria, todavia, exige o Código de Processo Penal apenas a presença de indícios suficientes de autoria. Em outras palavras, em relação à autoria ou parti­ cipação, não se exige que o juiz tenha certeza, bas­ tando que conste dos autos elementos informativos ou de prova que permitam afirmar, no momento da decisão, a existência de indício suficiente, isto é, a probabilidade de autoria. Portanto, para fins de prisão preventiva ou de pronúncia, ainda que não seja exigido um juízo de certeza quanto à autoria, é necessária a presença de, no mínimo, algum ele­ mento de prova, ainda que indireto ou de menor aptidão persuasiva, que possa autorizar pelo menos um juízo de probabilidade acerca da autoria ou da participação do agente no fato delituoso. Apesar de não se exigir certeza, exige-se certa probabilidade, não se contentando a lei com a mera possibilidade.

1.12. Suspeita Trabalhado o conceito de indício como prova indireta ou como prova semiplena, deve-se destacar que seu conceito não se confunde com uma sim­ ples suspeita. Enquanto o indício é sempre um dado objetivo, em qualquer de suas acepções, a suspeita ou desconfiança não passa de um estado anímico, um fenômeno subjetivo, que pode até servir para desencadear as investigações, mas que de modo algum se apresenta idôneo para fundamentar a convicção da entidade decidente. Nas palavras de Gomes Filho, enquanto o indício é constituído por um fato demonstrado que autoriza a indução sobre outro fato ou, pelo menos, constitui um elemento de menor valor, a suspeita é pura intuição, que pode 19. Nessa linha: MENDONÇA, Andrey Borges de. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Organizadora: Carla Veríssimo de Carli. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 502. Referindo-se à pronúncia (CPP, art. 413), o próprio Supremo já teve a oportunidade de asseverar que a expressão "indícios de autoria" não têm o sentido de prova indiciária -

gerar desconfiança, dúvida, mas também conduzir a engano.20 A expressão fundada suspeita é encontrada no Código de Processo Penal nos arts. 240, § 2o,e art. 244. Interpretando-se os referidos dispositivos, de­ preende-se que não basta uma simples convicção subjetiva para que se proceda à busca pessoal em alguém. Para além disso, é necessário que haja al­ gum dado objetivo que possa ampará-la.

Nesse prisma, concluiu o Supremo Tribunal Federal que a “fundada suspeita”, prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros uni­ camente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Assim, a ausência de elementos dessa natureza, como no caso, alegação de que trajava, o paciente, um ‘blusão’ suscetível de esconder uma arma, referenda conduta arbitrária ofensiva a direitos e garantias individuais e carac­ teriza abuso de poder.21

1.13. Objeto da prova Costuma-se dizer que o objeto da prova são os fatos que interessam à solução de uma controvérsia submetida à apreciação judicial. A nosso ver, contu­ do, o objeto da prova não são os fatos, pois jamais será possível se atingir a reconstrução integral do que efetivamente ocorreu. Na verdade, o objeto da prova é a verdade ou falsidade de uma afirmação sobre um fato que interessa à solução do processo. São as asserções feitas pelas partes que interessam à solução de controvérsia submetida à apreciação judicial.22

Especificamente no âmbito do processo penal, tem-se que a atividade probatória recai, basicamen­ te, sobre a veracidade (ou não) da narrativa cons­ tante da peça acusatória, buscando-se demonstrar que a imputação de um fato delituoso atribuído a determinada pessoa é verdadeira (ou não).

Mas o que deve ser objeto de prova no curso do processo?23 Vejamos: 20. Op. cit. p. 311. 21. STF, 1a Turma, HC 81.305/GO, Rel. Min. limar Galvão, DJ 22/02/2002

p. 35. 22. Portanto, ao longo do presente trabalho, sempre que houver refe­ rência à "prova da verdade de um fato", deve o leitor compreender como uma forma abreviada de se dizer "prova da verdade de uma afirmação sobre um fato que interesse à solução da causa".

23. José Frederico Marques diferencia objeto da prova de objeto in concreto da prova. Segundo o autor, objeto da prova é a coisa, fato, acon­

que pode bastar à condenação - mas, sim, de elementos bastantes a fundar suspeita contra o denunciado: STF, Ia Turma, HC 83.542/PE, Rel.

tecimento, ou circunstância que deva ser demonstrado no processo. Já o objeto in concreto da prova corresponde aos fatos relevantes para a decisão do litígio. [Elementos de direito processual penal. Vol. II. Campinas: Editora Bookseller, 1997. p. 254). Hélio Tornaghi, por sua vez, diferencia

Min. Sepúlveda Pertence, j. 09/03/2004, DJ 26/03/2004.

objeto da prova em abstrato de objeto da prova em concreto. Para o

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1) Imputação constante da peça acusatória sem dúvida alguma, constitui objeto da prova (thema probandum) a imputação formulada na peça acusatória. Assim, se o órgão ministerial atribui a alguém a prática de determinado fato tipificado pelo Direito Penal, impõe-se a comprovação do come­ timento do referido delito, sob pena de absolvição do agente;24

2) Costumes - o direito consuetudinário tam­ bém deve ser provado (ex.: se o Parquet atribui ao acusado a prática de crime de furto durante repou­ so noturno, deverá comprovar a veracidade de tal assertiva);

3) Regulamentos e portarias - também deve ser comprovada a existência de regulamentos e portarias, salvo se a portaria em questão funcionar como complemento de norma penal em branco, pois, nesse caso, presume-se que o juiz a conheça. É o que acontece com a Portaria n° 344 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que dispõe sobre as substâncias entorpecentes, cujo conteúdo não precisa ser comprovado; 4) Direito estrangeiro, estadual e municipal presume-se que o juiz conheça o direito estadual e municipal do local onde exerce jurisdição. Destarte, só se apresenta necessária a comprovação do direito estadual e municipal referente à localidade diversa daquela do exercício jurisdicional. Nesse sentido, o novo Código de Processo Civil dispõe que a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o juiz determinar (art. 376). 5) Fatos não contestados ou incontroversos - também devem ser objeto de prova. Nesse pon­ to, não se pode confundir o processo penal com o processo civil. De acordo com o art. 374, II e III, do novo CPC, não dependem de prova os fatos afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária ou aqueles admitidos, no processo, como incontroversos. Além disso, referindo-se à revelia, dispõe o CPC que, se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (NCPC, art. 344). No âmbito processual penal, por força do princípio da presunção de inocência, mesmo que o acusado venha a confessar a prática do delito, subsiste o ônus da acusação de compro­ var a imputação constante da peça acusatória. Nes­ sa linha, segundo o art. 197 do CPP, “o valor da autor,"uma coisa é saber qual é o objeto da prova, em cada caso concreto. Outra, indagar que coisas são objeto de prova, abstratamente considera­ da". (Curso de processo penal. 6a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1989. p. 278.

24. Para mais detalhes acerca do ônus da prova, vide abaixo tópico pertinente ao assunto.

confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe com­ patibilidade ou concordância”. Ademais, mesmo que seja decretada a revelia do acusado com fundamento no art. 367 do CPP, não há falar em confissão ficta ou presumida no processo penal, com a consequente presunção da veracidade dos fatos narrados na peça acusatória. Mesmo na hipótese de acusado revel, ainda assim deverá o órgão ministerial desincumbir-se a contento de seu ônus probatório, sob pena de o pedido condenatório ser julgado improcedente pelo julgador. Se, de um lado, devem ser provadas a impu­ tação constante da peça acusatória, os costumes, regulamentos e portarias, o direito internacional, estadual e municipal, e os fatos não contestados ou incontroversos, há afirmações acerca de fatos que independem de prova. Vejamos, então, o que não será objeto da prova:

i) Fatos notórios - são aqueles de conhecimen­ to público geral. São os fatos cujo conhecimento está inserido na cultura normal e própria de determina­ da esfera social no tempo em que ocorrer a decisão, como as datas históricas, os fatos políticos ou so­ ciais de conhecimento público, ou seja, o fato que pertença ao patrimônio estável de conhecimento do cidadão de cultura média numa sociedade his­ toricamente determinada. Exemplificando, não é necessário provar que o Aeroporto de Congonhas fica na cidade de São Paulo, nem tampouco que o dia 15 de novembro é feriado nacional no Brasil. No âmbito processual civil, há dispositivo expresso acerca do assunto (NCPC, art. 374,1). Com base no art. 3o do CPP, nada impede a aplicação do princípio notorium non eget probationem no processo penal; ii) Fatos axiomáticos ou intuitivos - são os fatos evidentes, as verdades axiomáticas do mundo do conhecimento. Exemplificando, não é necessário provar que o fogo queima, nem tampouco que a cocaína causa dependência; iii) Fatos inúteis ou irrelevantes - são aqueles que não interessam à decisão da causa, sejam eles verdadeiros ou falsos;

iv) Presunções legais - presunção é a afir­ mação feita pela lei de que um fato é existente ou verdadeiro, independentemente de prova. Assim, provado o fato que serve de base à presunção, considera-se provado o fato probando objeto da presunção. Como exemplo, comprovando-se que o acusado é menor de 18 (dezoito) anos, presume-se que seja inimputável. Logo, a inimputabilidade do

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menor de 18 (dezoito) anos não precisa ser prova­ da pela acusação ou pela defesa. A presunção pode ser de duas espécies: absoluta ou relativa. Presunções absolutas ou iuris et de iure são aquelas que não admitem prova em contrário. É o que acontece com os menores de 18 (dezoito) anos no Brasil, em que, por força do critério biológico adotado pela Constituição Federal (art. 228) e pelo Código Penal (art. 27), presume-se de maneira absoluta sua inimputabilidade. Presunções relativas ou iuris tantum são aquelas que admitem prova em sentido contrário. Nesse caso, o que ocorre é uma altera­ ção na distribuição do ônus da prova: a presunção dispensa a parte por ela beneficiada do ônus da prova de uma alegação fática que, normalmente, lhe incumbiria (o fato presumido) e atribui à outra parte o encargo de provar o fato contrário. É o que ocorre, por exemplo, com o maior de 18 (dezoi­ to) anos, cuja imputabilidade é presumida, porém pode ser afastada a partir do momento em que laudo de insanidade mental apontar que o acusado não possuía, à época do fato, a capacidade de en­ tender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, em virtude de doença mental ou desenvolvimento mental incom­ pleto ou retardado.

1.14. Prova direta (positiva) e contrária (nega­ tiva); a contraprova Segundo Gomes Filho,25 diz-se positiva (ou di­ reta) a prova que objetiva demonstrar a existência do fato, ou, mais corretamente, confirmar a asser­ ção sobre o fato principal; negativa (ou contrária) será a prova que se destina a negar tal asserção, de­ monstrando que o fato não ocorreu. Ainda segundo o autor, é preciso observar que também há prova negativa na situação em que a demonstração da inexistência do fato se faz pela prova da existência de um fato diverso, incompatível com o fato princi­ pal afirmado. Fala-se, então, em prova negativa (ou contrária) indireta. É o caso do álibi, que consiste exatamente na prova de não ocorrência do fato im­ putado, mediante a demonstração positiva de uma circunstância inconciliável com tal fato, ou seja, a presença do acusado em outro lugar.

Esse conceito de prova contrária, outrossim, não se confunde com o de contraprova. Por con­ traprova entende-se qualquer prova apresentada por uma das partes, com o objetivo de refutar os elementos apresentados pelo adversário, com o pro­ pósito de influir no convencimento do juiz. 25. Op. cit. p. 313.

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Bom exemplo de contraprova da defesa diz respeito à figura do assistente técnico, recente­ mente introduzida no processo penal. Com a Lei n° 11.690/08, é facultado às partes a indicação de assistente técnico, sendo que este poderá apresentar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência. Ora, a nomeação de as­ sistente técnico, quando vista pelo lado da defesa, tem evidente natureza de contraprova, na medida em que seu objetivo principal será o de refutar os elementos apresentados pelo perito oficial, de modo a auxiliar o acusado. O direito à contraprova também está assegura­ do no dispositivo do art. 479 do CPP, que impede a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à ou­ tra parte. Perceba-se que a finalidade do dispositivo é dar ciência prévia à parte contrária de eventual juntada de documento aos autos do processo, pos­ sibilitando a apresentação de contraprova.

1.15. Prova emprestada Prova emprestada consiste na utilização em um processo de prova que foi produzida em outro, sen­ do que esse transporte da prova é feito por meio de certidão extraída daquele. Assim, se a testemunha “Mévio” foi ouvida no processo “X”, cópia de seu depoimento será extraída e juntada ao processo “Y”. Embora seja trazida ao segundo processo pela forma documentada, a prova emprestada tem o mesmo valor da prova originalmente produzida. Ou seja, apesar de sempre ter a forma documental, o valor probante da prova emprestada “é o da sua essência, e esta será sempre a originária, consoante foi produzida no processo primitivo”.26 Assim, no exemplo citado acima, conquanto o depoimento de “Mévio” seja trazido ao segundo processo por meio de uma certidão extraída do processo original, seu valor probatório será o de prova testemunhai. De acordo com a doutrina majoritária,27 a uti­ lização da prova emprestada só é possível se aquele contra quem ela for utilizada tiver participado do 26. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades no processo penal. 11a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 117. 27. Há posição minoritária que sustenta que, além da produção da prova em contraditório, também se impõe o respeito ao princípio do juiz natural (CF, art. 5o, inciso Llll). Na dicção de Grinover (op. cit. p. 118),"para o transporte puro e simples de uma prova, de um processo para outro, seria necessário que o contraditório no processo originário tivesse sido instituído perante o mesmo juiz, que também seja o juiz da segunda causa (entendendo-se, com o termo'juiz', não a pessoa física investida na função, mas o órgão jurisdicional constitucionalmente competente)".

TÍTULO 6 • PROVAS

processo onde essa prova foi produzida, observando-se, assim, os princípios do contraditório e da ampla defesa. Só se pode considerar como prova emprestada, portanto, aquela que foi produzida, no primeiro processo, perante aquele que terá que se sujeitar a seus efeitos no segundo, com a possibili­ dade de ter contado, naquele, com todos os meios possíveis de contrariá-la.28 Nesse contexto, consoan­ te disposto no art. 372 do novo CPC, admite-se a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, ob­ servado o contraditório. O dispositivo deixa entrever, a nosso juízo, que o contraditório deverá ser obser­ vado em ambos os processos em relação à mesma pessoa para que se possa atribuir o título de prova emprestada. A propósito, eis o teor da súmula n. 591 do STJ: “É permitida a prova emprestada no processo administrativo disciplinar, desde que de­ vidamente autorizada pelo juízo competente e res­ peitados o contraditório e a ampla defesa”.29 Logo, se a prova foi produzida em processo no qual o acu­ sado não teve participação, não há falar em prova emprestada, e sim em mera prova documental ou compartilhamento de prova.30

Na jurisprudência, todavia, sobretudo no âmbi­ to do STJ, prevalece o entendimento que se admite a utilização da prova emprestada mesmo em relação a processos com partes distintas. Nesse sentido, em julgamento referente ao processo civil, cuja conclu­ são, porém, também é usada em sede processual penal, assim já se pronunciou a Corte Especial do STJ: “(...) em vista das reconhecidas vantagens da prova emprestada no processo civil, é recomendável que essa seja utilizada sempre que possível, desde que se mantenha hígida a garantia do contraditório. No entanto, a prova emprestada não pode se res­ tringir a processos em que figurem partes idênticas, 28. STF, Ia Turma, HC 95.186/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26/05/2009, DJe 108 10/06/2009. No sentido de que é possível a utiliza­ ção de prova emprestada no processo penal, desde que ambas as partes

dela tenham ciência e que sobre ela seja possibilitado o exercício do

contraditório: STJ, 6aTurma, HC 91.781/SP, Rei. Min. Jane Silva, Desembargadora convocada doTJ/MG, j. 27/03/2008, DJe 05/05/2008. Em sentido diverso, concluindo pela admissibilidade, uma vez observado o devido contraditório, de prova emprestada proveniente de ação penal da qual não participaram as partes do feito para o qual a prova seria trasladada: STJ, 6a Turma, AgRg no REsp 1.471.625/SC, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 02/06/2015, DJe 10/06/2015.

29. Reconhecendo a possibilidade de uma comissão processante de processo administrativo disciplinar ter acesso, mediante expressa auto­ rização do juízo criminal, à gravação telefônica feita em sede processual penal, nos termos da súmula n. 591 do STJ: STJ, Ia Seção, MS 25.131 /DF, Rei. Min. Herman Benjamin, j. 27.11.2019, DJe 08.05.2020. 30. Seja na prova emprestada, seja no compartilhamento de prova, é fundamental que seja assegurado às partes o respeito ao contraditório, ainda que exercido de modo distinto a depender do modo com que a prova ingressa no processo.

sob pena de se reduzir excessivamente sua aplica­ bilidade, sem qualquer justificativa razoável para tanto. Independentemente de haver identidade de partes, o contraditório é o requisito primordial para o aproveitamento da prova emprestada, de maneira que, assegurado às partes o contraditório sobre a prova, isto é, o direito de se insurgir contra a prova e de refutá-la adequadamente, afigura-se válido o empréstimo”.31 Como prevalece o entendimento de que o apro­ veitamento da prova emprestada está condicionado à participação, no primeiro processo, daquele contra quem se pretende fazer valer a prova, não se pode falar em prova emprestada de elementos informa­ tivos produzidos no curso do inquérito policial, eis que, como dito acima, tais elementos não são produzidos sob o crivo do contraditório. Porém, no caso de provas não repetíveis, como ocorre na gran­ de maioria dos exames periciais, é perfeitamente possível falar-se em prova emprestada, já que, em relação a elas, o contraditório será respeitado, porém de maneira diferida. Prova disso, aliás, é que o art. 372 do novo CPC refere-se expressamente à prova produzida em outro processo, do que se conclui ser inviável o empréstimo de elementos de informação produzidos em outro pro­ cedimento investigatório, até mesmo porque o con­ traditório e a ampla defesa não são de observância obrigatória nessa fase preliminar de investigações.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido da validade de prova pericial produzida em inquérito distinto como prova emprestada, in verbis: “Prova emprestada e garantia do contraditó­ rio. A garantia constitucional do contraditório - ao lado, quando for o caso, do princípio do juiz natural - é o obstáculo mais frequentemente oponível à ad­ missão e à valoração da prova emprestada de outro processo, no qual, pelo menos, não tenha sido parte aquele contra quem se pretenda fazê-la valer; por isso mesmo, no entanto, a circunstância de provir a prova de procedimento a que estranho a parte contra a qual se pretende utilizá-la só tem relevo, se se cuida de prova que - não fora o seu traslado para o processo - nele se devesse produzir no cur­ so da instrução contraditória, com a presença e a intervenção das partes. Não é a hipótese dos autos: aqui o que se tomou de empréstimo ao processo a 31. STJ, Corte Especial, EREsp 617.428-SP, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 04.06.2014, DJe 17.06.2014. No sentido da possibilidade de utilização do conteúdo de depoimento obtido em ação penal diversa como prova emprestada, desde que respeitado o contraditório e a ampla defesa: STJ, 5a Turma, AgRg no HC 407.500-AL, Rei. Min. Felix Fischer, j. 26.06.2018, DJe 02.08.2018; STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1,823.694-SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 28.04.2020, DJe 04.05.2020.

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que respondeu corre da recorrente, foi o laudo de materialidade do tóxico apreendido, que, de regra, não se faz em juízo e à veracidade do qual nada se opõe”.32

Ainda em relação à prova emprestada, discu­ te-se acerca das consequências em relação ao se­ gundo processo no caso de o processo em que a prova emprestada foi produzida originariamente ser declarado nulo. Segundo a doutrina,33 há duas possibilidades: a) caso tenha sido declarada a nulidade ou reco­ nhecida a ilicitude da prova, não se pode admitir sua utilização, pois irremediavelmente contami­ nada pelo vício originário;34 b) caso o feito tenha sido anulado por questão não atinente à prova, será admissível a utilização da prova emprestada, desde que não se relacione diretamente com a nulidade. Assim, se anulado o processo por questões relativas às alegações orais apresentadas em audiência, não haverá qualquer contaminação da prova. Todavia, se o processo tiver sido anulado a partir da citação, por força de incompetência constitucional ou não intimação do defensor, diante do princípio da cau­ salidade em sede de nulidades (CPP, art. 573, § Io), não será possível a utilização da prova emprestada. Em relação à prova emprestada no âmbito do Tribunal do júri, entende o STJ que a validade da prova deve ser aferida pelos jurados.35 Em sentido diverso, Guilherme Madeira Dezem sustenta que a admissibilidade ou não das provas é matéria relativa ao juiz togado e não aos jurados. Segundo o autor, “o juiz togado deve remeter ao julgamento em ple­ nário a causa já preparada e sem qualquer mácula probatória ou de nulidade. Não pode o magistrado 32. STF, Ia Turma, RE 328.138, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 17/10/2003. Em sentido semelhante: STF, 1a Turma, HC 78.749, Rel. Min.

Sepúlveda Pertence, DJ 25/06/1999. 33. DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, pro­

vas típicas e atípicas. Campinas/SP: Millennium Editora, 2008. p. 111/112. 34. Em sentido diverso, assim já se manifestou a 5a Turma do STJ: "Hi­ pótese em que a denúncia se baseou em peças informativas provenientes de transcrições captadas em escutas telefônicas, integrantes de processo criminal da Justiça Estadual, no qual referidas provas foram consideradas ilícitas. Condenação com base em farto conteúdo probatório dos autos, incluídas as interceptações telefônicas. Medida realizada, em princípio, nos moldes determinados na Lei 9.296/96. Eventual declinação de com­ petência que não tem o condão de invalidar a prova até então colhida. Precedentes. Independentemente de se tratar de utilização de prova emprestada, as mesmas foram reputadas legítimas na presente ação penal, adicionado ao fato de que outros elementos de convicção foram utilizados para a formação do juízo condenatório, afastando a alegação de nulidade. Precedentes. Inviabilidade de análise da ilegalidade das demais provas, em função do que foi produzido e a sua relação com a denúncia e com a condenação, em face do incabível exame do conjunto fático pro­ batório que se faria necessário, inviável na via eleita. Ordem denegada". (STJ, 5aTurma, HC 66.873/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 29/06/2007 p. 674).

35. STJ, 6a Turma, RHC 13.664/RJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 09/05/2005 p. 475.

abdicar de sua tarefa de admissibilidade da prova tarefa, aliás, que lhe é irrenunciável”.36

Quanto ao valor probatório da prova empresta­ da, já foi dito que ela tem o mesmo valor da prova originalmente produzida. Todavia, a jurisprudência entende que, não obstante seu valor precário, ela é admissível no processo penal, desde que não cons­ titua o único elemento de convicção a respaldar o convencimento do julgador.37

Uma última e importante questão atinente à prova emprestada deve ser analisada, qual seja, a possibilidade de se utilizar elementos probatórios colhidos em interceptação telefônica em processos administrativos e/ou cíveis. Como se sabe, ao tratar da possibilidade de interceptações telefônicas, preceitua a Constituição Federal que sua decretação somente será possível para fins de investigação cri­ minal ou instrução processual penal (art. 5o, inciso XII). Logo, à primeira vista, poder-se-ia pensar que jamais seria possível a utilização de elementos pro­ batórios colhidos em uma interceptação telefônica em um processo administrativo e/ou de natureza cível. Não é essa, no entanto, a posição que tem pre­ valecido nos Tribunais. De acordo com o entendimento pretoriano, desde que a interceptação tenha sido regulamente autorizada pelo juízo criminal para apurar crimes punidos com reclusão, e observado o contraditó­ rio em relação àquele perante o qual a prova foi produzida, admite-se que os elementos produzidos sejam transportados ao processo disciplinar relativo à mesma pessoa a título de prova emprestada.3839

Na visão da Suprema Corte, “dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas, judi­ cialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, bem como documentos colhidos na mesma investigação, podem ser usados em procedimen­ to administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram co­ lhidos, ou contra outros servidores cujos supos­ tos ilícitos teriam despontado à colheita dessas provas». 39 36. DEZEM, Guilherme Madeira. Op. cit. p. 112. 37. STJ, 5a Turma, HC 94.624/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 26/05/2009, DJe 22/06/2009.

38. Na mesma linha: STJ, 6aTurma, RMS 16.429/SC, Rel. Min. Maria The­ reza de Assis Moura, DJe 23/06/2008. Admitindo o empréstimo de provas provenientes de interceptações telefônicas autorizadas judicialmente para processo administrativo disciplinar: STF, 1a Turma, RMS 28.774/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 09/08/2016. 39. STF, Tribunal Pleno, Pet 3.683 QO/MG, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 035 19/02/2009. No sentido da possibilidade de compartilhamento para fins de instruir procedimento administrativo disciplinar de elementos

TÍTULO 6 • PROVAS

Com a devida vênia, importante ressalva deve ser feita quanto ao julgado em questão. Apesar de o Supremo ter considerado como prova emprestada o aproveitamento dos dados obtidos em intercep­ tação telefônica contra outros agentes, cujos ilícitos administrativos despontaram em virtude da colheita dessa prova, queremos crer que, em relação a eles, tais elementos não podem ser considerados a título de prova emprestada, haja vista que, aos olhos da doutrina, só se pode considerar como tal a prova produzida em relação àquele que tenha participado em contraditório da admissibilidade e colheita no processo originário, mesmo que o contraditório seja diferido, como ocorre nas interceptações telefôni­ cas. Logo, se não foi observado o contraditório em relação aos outros acusados, não há falar em prova emprestada. Isso, no entanto, não impede a utili­ zação desses elementos informativos colhidos na interceptação telefônica como notitia criminis acerca de eventuais ilícitos administrativos praticados pelos demais agentes.

1.16. Prova nominada e prova inominada Tem-se como prova nominada aquela que se encontra prevista em lei, com ou sem procedimento probatório previsto. Ou seja, existe a previsão do nomen juris desse meio de prova, seja no próprio Código de Processo Penal, seja na legislação extra­ vagante. É o que acontece com a reconstituição do fato delituoso, prevista expressamente no art. 7o do CPP. Apesar do referido meio de prova estar previsto expressamente no Código de Processo Penal, razão pela qual é considerada espécie de prova nominada, como não há procedimento previsto em lei para sua realização, trata-se de prova atípica. Como desdobramento do princípio da busca da verdade, além dos meios de prova especificados na lei (nominados), também se admite a utilização de todos aqueles meios de prova que, embora não previstos no ordenamento jurídico (inominados), sejam lícitos e moralmente legítimos. informativos de uma investigação criminal, ou de provas colhidas no bojo

de instrução processual penal, desde que obtidos mediante interceptação telefônica devidamente autorizada por juiz competente: STF, Inq. 2.725 QO/SP, Rei. Min. Carlos Britto, j. 25/06/2008. Admitindo a utilização de prova emprestada obtida em processo penal em curso no âmbito de processo administrativo: STJ, MS 14.405/DF, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 26/05/2010. Admitindo, a título de prova em­ prestada, o compartilhamento de delação premiada entre o Ministério Público Federal e o Estadual, que requerera o acesso a esses elementos para fins de apuração de eventual prática de ato de improbidade admi­ nistrativa por parte de agente público, conquanto autorizado pelo juízo responsável pela homologação do acordo: STF, 2a Turma, Pet 7.065/DF,

Rei. Min. Edson Fachin,j. 30/10/2018.

1.17. Prova típica e prova atípica De acordo com a doutrina, há duas posições acerca do conceito de provas atípicas: a) posição restritiva: a ideia da atipicidade probatória é vista de maneira intimamente ligada à ausência de pre­ visão legal da fonte de prova que se quer utilizada no processo. Assim, a atipicidade probatória guar­ da estreita ligação com a ausência de previsão le­ gal da fonte de prova, confundindo-se os conceitos de prova atípica e de prova inominada; b) posição ampliativa: uma prova é atípica em duas situações: b.l) quando ela estiver prevista no ordenamento, mas não haja procedimento probatório; b.2) quando nem ela nem seu procedimento probatório estive­ rem previstos em lei.40

Conquanto não seja comum, é possível que o ordenamento jurídico preveja apenas o meio de prova, sem disciplinar o respectivo procedimento probatório - é o que acontece, por exemplo, com a reconstituição dos fatos (CPP, art. 7o), hipótese de prova nominada, pois está prevista em lei, mas cujo procedimento probatório não está disciplinado por lei, sendo, por isso, espécie de prova atípica. Em outros casos, não há a previsão nem do meio de prova, nem do procedimento probatório. Em ambos os casos, tem-se situação de prova atípica, de acordo com a posição ampliativa. A produção da prova atípica deve se dar de maneira subsidiária, ou seja, somente deve ser ad­ mitida a utilização de meio de prova atípico quando não houver meio de prova típico capaz de atingir o resultado que se pretende. Também não se admite o uso da prova atípica quando houver alguma res­ trição quanto à prova de tal fato pela lei civil (CPP, art. 155, parágrafo único), nem tampouco quando houver alguma limitação quanto às regras de proi­ bição da prova. O Código de Processo Penal não disciplinou expressamente a admissibilidade das provas atípi­ cas. O fundamento legal para sustentar sua admis­ sibilidade consta do art. 369 do novo CPC, subsi­ diariamente aplicável ao processo penal (CPP, art. 3o). Assim, em se tratando de prova atípica, deve ser observada, por analogia, a disciplina normativa de uma prova típica. Em síntese, quanto ao proce­ dimento a ser observado quando da produção da prova atípica, tem-se que:

a) a prova, como regra, deve ser praticada em juízo, sob o crivo do contraditório. Somente se 40. DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, pro­ vas típicas e atípicas. Campinas/SP: Millennium Editora, 2008. p. 143/151.

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admite sua produção fora dele quando a natureza do meio de prova o exigir;

b) somente se admite a produção da prova atí­ pica no inquérito policial quando houver cautelaridade a justificar tal medida ou quando a própria lei indicar essa possibilidade;

c) a vontade pode atuar no meio de prova quan­ do for elemento diretamente a ele ligado. Em outras palavras, se a vontade for integrante do ato a ser praticado, deve ser ela ausente de quaisquer dos ví­ cios do consentimento para que possa ser admitido como válido tal meio de prova;

d) somente se afasta a parte da produção da prova quando houver cautelaridade a justificar esta medida ou, então, quando a ciência da parte for contrária à medida. Nesta situação, não haverá, naturalmente, a incidência da regra de discussão com as partes do modelo probatório a ser seguido. 1.18. Prova anômala e prova irritual Prova anômala é aquela utilizada para fins diversos daqueles que lhe são próprios, com ca­ racterísticas de outra prova nominada. Em outras palavras, existe meio de prova legalmente previsto para a colheita da prova. Todavia, deixa-se de lado esse meio de prova nominado, valendo-se de outro meio de prova. Exemplificando, suponha-se que, ao invés de o magistrado determinar a expedição de carta precatória para a oitiva de testemunha que mora em outra comarca, determine que o oficial de justiça entre em contato com a mesma por telefone, indagando-lhe acerca dos fatos. Depois, o oficial de justiça certifica a diligência nos autos, descrevendo detalhadamente a conversa, querendo o magistrado considerar a referida certidão com o valor de prova testemunhai.

Ora, se se trata de testemunha, seu conheci­ mento acerca dos fatos deve vir aos autos por meio de um depoimento prestado em juízo, e não através de outro meio de prova. Referida certidão pode até servir para comprovar que houve uma ligação efe­ tuada para alguém. Mas jamais será possível querer emprestar ao referido ato o mesmo valor da prova testemunhai, sob pena de violação a diversos prin­ cípios constitucionais, notadamente os da ampla defesa e do contraditório.

Essa prática, por mais esdrúxula que possa pa­ recer, tem sido muito utilizada no dia a dia de fóruns criminais, principalmente no tocante à prova teste­ munhai da defesa, situação em que magistrados têm solicitado à defesa que substitua a oitiva da testemu­ nha por uma declaração por ela firmada.

Como asseveram Badaró e Gomes Filho, “tal forma de agir viola a própria natureza da prova testemunhai, que é uma prova oral e contraditória por excelência. Diante de uma simples documen­ tação de uma declaração não haverá possibilidade de reperguntas. Em suma, há um total desrespeito ao procedimento típico para a produção da prova testemunhai, pelo que tem se manifestado a doutri­ na pela nulidade de tal ‘documento’ que substitui a prova testemunhai, havendo julgados, inclusive, que determinam seu desentranhamento”.41

Por sua vez, tem-se como prova irritual a prova típica colhida sem a observância do modelo pre­ visto em lei. Como essa prova irritual é produzida sem obediência ao modelo legal previsto em lei, trata-se de prova ilegítima, passível de declaração de nulidade.

A prova irritual não se confunde com a prova anômala. Como aponta Dezem, a prova anômala é produzida segundo o modelo legal. Seu problema consiste em que o modelo legal utilizado não é o adequado para o caso, não é o que o caso requer. Já a prova irritual não é produzida segundo o modelo legal. Em verdade, utiliza-se o meio adequado, mas sem a observância dos elementos típicos previstos em lei. Ou seja, na prova anômala segue-se o pro­ cedimento previsto em lei, mas não o procedimento previsto para aquele meio de prova. Na prova irri­ tual segue-se o procedimento previsto para o meio de prova, mas sem a observância do modelo previsto em lei.42

Como dito acima, o fato de uma prova ser pro­ duzida sem a observância do modelo previsto em lei acarreta o reconhecimento de sua ilegitimidade, a qual, por sua vez, pode produzir a nulidade da prova. Nessa linha, em caso concreto apreciado pelo STJ, relativo a suposto crime sexual praticado contra menor de 14 (quatorze) anos, apesar do depoimento da ofendida não ter sido produzido de forma oral, o que, em tese, contraria o disposto no art. 204 do CPP, não foi reconhecida qualquer nulidade. Na vi­ são daquela Corte, mesmo não se realizando o de­ poimento oralmente, não houve ofensa do disposto no art. 204 do CPP. Isso porque a vítima lavrou a declaração em audiência diante do magistrado, do representante do MP e da advogada de defesa, não trazendo documento previamente escrito. Ressal­ tou-se que, não tendo a vítima coragem para narrar 41. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. BADARÓ, Gustavo Henrique

Righi Ivahy. Prova e sucedâneos da prova no processo penal brasileiro, in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 65, 2007.

42. DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas. Campinas/SP: Millenium Editora, 2008. p. 155.

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os fatos na sala de audiência, a ela se oportunizou a lavratura do texto, na presença das autoridades acima descritas, bem como na presença de sua mãe, que em nada interferiu. Assinalou-se que, em face da sua situação peculiar (menor que sofreu abusos sexuais), justificava-se a eleição de tal meio para tomar suas declarações. De toda sorte, a defesa também não se insurgiu contra a prova apresenta­ da em audiência. Observou-se que o CPP acolheu o princípio pas de nullité sans grief, daí se conclui que somente há de se declarar a nulidade do feito quando resultar prejuízo devidamente demonstra­ do pela parte interessada e, na espécie, entendeu-se não haver qualquer prejuízo ou constrangimento ao exercício de defesa do acusado”.43

1.19. Critérios de decisão (standards probatórios) Qual é o grau de convencimento que se exi­ ge do magistrado, em sede processual penal, para conceder uma medida cautelar, para receber uma denúncia, ou para condenar alguém pela prática de um fato delituoso? É isso o que se denomina de critérios de decisão, standards probatórios ou mode­ los de constatação, que podem ser compreendidos como o grau ou nível de prova exigido em um caso específico, como “indícios suficientes” ou “além de dúvida razoável”.44

Conquanto não seja possível quantificar, mate­ maticamente, os diversos graus de probabilidade que caracterizam esses distintos modelos de constatação, daí não se pode desprezar a importância do estudo do tema, notadamente no âmbito do processo penal. Com efeito, levando-se em conta a regra probatória decorrente do princípio da presunção de inocência e o status de inocente do acusado, é de rigor a obser­ vância desses standards, até mesmo para se permitir certo controle sobre o raciocínio judicial no terreno da prova e dos fatos. Em outras palavras, em razão do influxo do direito material em jogo e da regra probatória do in dubio pro reo, não se pode negar que o processo penal adota um standard de prova bastante elevado para a desconstituição do estado de inocência do acusado. Esse grau de convencimento necessário para a prolação de uma sentença condenatória, baseado em provas além de qualquer dúvida razoável, não é o mesmo standard necessário, todavia, para outras decisões ao longo da persecução penal. É dizer, os

standards probatórios podem variar de acordo com as diferentes decisões que são proferidas pelo magis­ trado ao longo do processo. A título de exemplo, ofe­ recida uma denúncia anônima perante o Ministério Público, não se admite, de imediato, a instauração de um inquérito policial. Antes, incumbe verificar a procedência das informações. Para a decretação de uma medida cautelar, como, por exemplo, a prisão preventiva, o art. 312 do CPP impõe a presença de prova da materialidade (juízo de certeza) e indícios de autoria (juízo de probabilidade). Oferecida a peça acusatória, incumbe ao magistrado aferir se há justa causa para o processo penal (CPP, art. 395, III). A pronúncia, por sua vez, demanda não apenas o con­ vencimento quanto à materialidade, mas também a presença de indícios suficientes de autoria (CPP, art. 413). Por fim, para que alguém seja condenado, é necessário um juízo de certeza acerca da autoria e da materialidade além de qualquer dúvida razoável.45

2. ÔNUS DA PROVA 2.1. Conceito Os ônus representam um imperativo do pró­ prio interesse, estando situados no campo da li­ berdade. Ainda que haja seu descumprimento, não haverá qualquer ilicitude, pois o cumprimento do ônus interessa ao próprio sujeito onerado. A títu­ lo de exemplo, é exatamente o que acontece com a possibilidade de se recorrer contra uma decisão adversa. Diante de uma situação de sucumbência, a parte não se vê obrigada a recorrer, na medida em que o recurso tem como característica fundamental a voluntariedade.46 A parte, a despeito de não estar obrigada a recorrer, tem consciência de que, não o fazendo, suportará as consequências desfavoráveis da decisão emergente. Daí se dizer que, quanto à sua interposição, os recursos configuram um ônus processual.

Diferencia-se o ônus, portanto, das obrigações e dos deveres. As obrigações devem ser compreen­ didas como imperativos do interesse do credor, 45. Dúvida razoável é uma dúvida baseada na razão e no senso co­ mum. É uma dúvida que uma pessoa razoável possui após cuidadosamen­ te sopesar todas as provas. É uma dúvida que leva uma pessoa razoável a

hesitar em tomar uma decisão. Não é uma mera especulação ou suspeita. Não é uma desculpa para evitar o cumprimento de um dever desagra­ dável. Enfim, não é compaixão. 46. Importante ressaltar que o denominado recurso de ofício, cabível contra decisão que concedera reabilitação (CPP, art. 746), contra sentença que concede habeas corpus (CPP, art. 574, I) ou contra absolvição de

acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando for determinado o arquivamento dos autos

43. STJ, HC 148.215/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, j. 20/04/2010. 44. É nesse sentido a lição de Gustavo Henrique Badaró. Processo penal.

3a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2015. p. 432.

do respectivo inquérito policial (Lei n° 1.521/51, art. 7o), não tem natureza jurídica de recurso, pois lhe falta o pressuposto básico da voluntariedade, funcionando, na verdade, como condição de eficácia da decisão.

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gerando uma posição jurídica negativa para o de­ vedor, em virtude da qual o credor, titular do direito subjetivo, pode demandar-lhe o adimplemento da obrigação. O indivíduo que não cumpre uma obri­ gação pratica um ato ilícito, por isso é possível a imposição de uma sanção para o adimplemento da prestação não cumprida, sujeitando-o à execução forçada.

Os deveres, por sua vez, funcionam como um imperativo perante uma coletividade ou perante toda a sociedade. Também se trata de uma posição jurídica passiva, que acarreta uma desvantagem para aquele em relação a quem foi instituído o dever. O dever pressupõe a existência de um sujeito ativo a quem interessa o seu cumprimento pelo sujeito passivo. O descumprimento de um dever gera uma sanção com natureza de coação moral ou de intimi­ dação. A título de exemplo de sanção que deriva do descumprimento de um dever processual, diz o art. 219 do CPP que o juiz poderá aplicar à testemunha faltosa a multa prevista no art. 453, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência, e condená-la ao pagamento das custas da diligência.

Em síntese, enquanto o inadimplemento de uma obrigação ou de um dever gera uma situação de ilicitude e traz como consequência a possibilida­ de de uma sanção, o descumprimento de um ônus configura um ato lícito e não é sancionado. Transportando-se o conceito de ônus para o âmbito da prova, pode-se dizer que ônus da pro­ va é o encargo que as partes têm de provar, pelos meios legal e moralmente admissíveis, a veracida­ de das afirmações por elas formuladas ao longo do processo, resultando de sua inação uma situação de desvantagem perante o direito.

2.2. Ônus da prova perfeito e menos perfeito Tendo como critério a consequência que de­ corre do não cumprimento do ônus, a doutrina o subdivide em ônus em perfeito e menos perfeito. O ônus é perfeito quando o prejuízo, que é o resultado de seu descumprimento, ocorre necessá­ ria e inevitavelmente. Um ônus é tido como menos perfeito quando os prejuízos que derivam de seu descumprimento se produzem de acordo com a ava­ liação judicial. Com base nessa classificação, não se pode falar em ônus completamente imperfeito, na medida em que, quando não resultar qualquer prejuízo da inação para o omitente, não haverá ônus algum.

Cândido Rangel Dinamarco apresenta classifi­ cação semelhante, diferenciando os ônus em abso­ lutos e relativos. Segundo o autor, ônus absolutos

são aqueles cujo descumprimento conduz fatal e invariavelmente à consequência desfavorável, ou priva inexoravelmente o sujeito de uma situação de vantagem. São relativos aqueles que somente tornam improvável a vantagem ou provável o prejuízo. O descumprimento de um ônus relativo fará com que o seu titular corra o risco de ser prejudicado, mas é possível que o risco não se consume, caso a conduta seja praticada por outra pessoa.47

2.3. Ônus da prova objetivo e subjetivo No aspecto objetivo, o ônus da prova funciona como uma regra de julgamento a ser aplicada pelo juiz quando permanecer em dúvida no momento do julgamento. Como o juiz não está autorizado a pro­ nunciar um non liquet,48 se ao final do processo re­ sultar um estado de incerteza acerca de determinada afirmação feita por uma das partes, há necessidade de regras disciplinando em que sentido deverá ser proferida a decisão. Ou seja, é possível que, mesmo após a produção de toda a prova, seja por atividade das partes, seja em virtude da iniciativa probatória do juiz no curso do processo, ainda resulte uma situação de dúvida insuperável no momento decisório. Nesse caso, há necessidade de um critério de julgamento a ser estabelecido pelo próprio legisla­ dor - ônus da prova objetivo -, determinando ao juiz como julgar quando estiver em dúvida sobre fato relevante, no momento de proferir sua decisão. Em suma, funciona o ônus objetivo como uma regra de julgamento destinada ao juiz acerca do con­ teúdo da sentença que deve proferir, caso não tenha sido comprovada a verdade de uma afirmação feita no curso do processo. Trata-se de uma regra prá­ tica dirigida ao juiz para a solução da demanda na hipótese de ausência ou insuficiência de prova de algum fato.

Em seu aspecto subjetivo, o ônus da prova deve ser compreendido como o encargo que recai sobre as partes de buscar as fontes de prova capazes de comprovar as afirmações por elas feitas ao longo do processo, introduzindo-as no processo através dos meios de prova legalmente admissíveis. Ao contrá­ rio do ônus da prova objetivo, cujo destinatário é o juiz, o ônus subjetivo é voltado para as partes, a fim de que se saiba qual delas deve suportar o risco da prova frustrada. Sob esse aspecto subjetivo, as 47. A instrumentalidade do processo. 4a ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 202. 48. A expressão"non liquet" é usual na ciência do processo, para signifi­ car o que hoje não mais existe: o poder de o juiz não julgar, por não saber como decidir. A propósito, consoante disposto no art. 140 do novo CPC, o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

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disposições sobre o ônus da prova funcionam, por­ tanto, como regras de conduta das partes.

se beneficiou com tal prova, quer por iniciativa da parte contrária, quer pela própria iniciativa proba­ tória do juiz.

Nessa linha, como aponta a doutrina, “o ônus da prova funciona como um estímulo para as partes, visando à produção das provas que possam levar ao conhecimento do juiz a verdade sobre os fatos. Em função dessa distribuição dos riscos sobre a não comprovação de um fato, em que se fundamente a pretensão ou a defesa, é que as regras sobre ônus da prova funcionam como uma pressão psicológica para as partes, tendo o efeito de motivá-las a par­ ticipar ativamente a fornecer a prova dos fatos que pretende ver reconhecidos no processo. As partes são estimuladas a provar suas alegações, ante o risco da prova frustrada”.49

Não obstante, daí não se pode concluir que não exista mais um ônus subjetivo da prova no siste­ ma processual penal. Na verdade, tal regra conti­ nua existindo, na medida em que as partes já têm consciência de que, caso não produzam as provas do quanto foi por elas afirmado, e desde que tal omissão não tenha sido suprida pela produção de ofício da prova, o juiz, ao julgar o caso concreto, se persistir a dúvida, aplicará as regras de julgamento sobre o ônus da prova. Daí ser possível concluir que o ônus subjetivo da prova é, no máximo, um ônus menos perfeito ou atenuado.

No âmbito processual penal, o ônus da prova subjetivo é atenuado por força da regra da comu­ nhão da prova e dos poderes instrutórios do juiz.

2.4. Distribuição do ônus da prova no processo penal

Quanto ao princípio da comunhão dos meios de prova (ou regra da aquisição da prova), é sabi­ do que, depois de produzida, a prova não pertence à parte que a introduziu no processo. Ao final do processo, deve o magistrado valorar todo o material probatório constante dos autos, pouco importando quem produziu a prova. Destarte, caso um fato es­ teja provado, é de todo irrelevante saber quem levou para os autos o meio de prova que formou a convic­ ção do órgão julgador. Caso a testemunha arrolada na denúncia apresente em juízo um depoimento que favoreça a defesa do acusado, nada impede ao defensor valer-se de tal prova como fundamento de seus argumentos.

Por sua vez, é sabido que o magistrado tem cer­ ta iniciativa probatória no curso do processo penal. Assim, ainda que a parte deixe de produzir a prova acerca de uma afirmação relevante para a solução da controvérsia, é possível que a demanda seja julgada em seu favor, porque a prova foi produzida de ofício pelo magistrado (CPP, art. 156, II). Em virtude da regra da aquisição da prova e da iniciativa probatória que é dada ao juiz no curso do processo criminal, é certo que o ônus da prova, em seu aspecto subjetivo, perdeu grande importância. De fato, mesmo que uma das partes tenha deixa­ do de produzir prova acerca de uma afirmação de seu interesse, isso não implicará, obrigatoriamen­ te, numa consequência que lhe seja desfavorável. Afinal, o juiz poderá formar seu convencimento a partir de todas as provas constantes do processo, quer tenham sido elas produzidas pela parte que 49. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. ônus da prova no proces­ so penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 182.

Com base na primeira parte do art. 156 do CPP, cuja redação não foi alterada pela Lei n° 11.690/08, a prova da alegação incumbirá a quem afizer. Diante dessa regra, discute-se qual é o ônus da prova da acusação e da defesa no processo penal. Acerca de tal questionamento, é possível apontarmos a existên­ cia de duas correntes: uma primeira (majoritária), que trabalha com uma efetiva distribuição do ônus da prova entre a acusação e a defesa no processo penal, e uma segunda, que aponta que, no processo penal, o ônus da prova é exclusivo da acusação.

2.4.1. Ônus da prova da acusação e da defesa A partir do critério do Código de Processo Civil, segundo o qual cabe ao autor provar o fato constitutivo do seu direito (NCPC, art. 373, inciso I), e diante do quanto disposto no CPP (“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer...”), uma primeira corrente entende que incumbe à acu­ sação provar: 1) A existência do fato típico; 2) A autoria ou participação; 3) A relação de causalidade; 4) O elemento subjetivo do agente: dolo ou culpa.

De acordo com essa primeira corrente, incum­ be à acusação tão somente a prova da existência do fato típico, não sendo objeto de prova acusatória a ilicitude e a culpabilidade. O fato típico constitui ex­ pressão provisória da ilicitude e o injusto penal (fato típico e ilícito) é indício da culpabilidade respectiva. Comprovada a existência do fato típico, portanto, haveria uma presunção de que o fato também seria ilícito e culpável, cabendo ao acusado infirmar tal presunção. Em relação ao elemento subjetivo, vale ressaltar que há doutrinadores que sustentam que o dolo é presumido, razão pela qual à acusação incumbiría

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tão somente o ônus probatório quanto à culpa. Com relação ao dolo, sendo ele presumido a partir da prova dos demais elementos que compõem o tipo penal, incumbiria ao acusado provar que não agira dolosamente. Entre outros, é essa a posição de Mirabete, segundo o qual deve a acusação “comprovar a forma de inobservância da cautela devida no cri­ me culposo: imprudência, negligência ou imperícia; bem como o dolo que, no mais das vezes, é presumi­ do diante da experiência de que os atos praticados pelo homem são conscientes e voluntários, cabendo ao réu demonstrar o contrário”.50

Com a devida vênia, com tal posição não po­ demos concordar. Em um Estado que consagra o princípio da presunção de inocência, não se pode admitir que o dolo seja presumido, sob pena de inequívoca violação à regra do in dubio pro reo. De modo algum estamos afirmando que está dispen­ sada a prova do elemento subjetivo, sob pena de se permitir verdadeira espécie de responsabilidade penal objetiva. Na verdade, também recai sobre a acusação o ônus da prova quanto ao dolo, devendo sua comprovação ser feita a partir dos elementos objetivos do caso concreto. Pensando, assim, em um crime de tentativa de homicídio, em que ao réu seja imputada a conduta de ter efetuado 7 (sete) disparos na direção da ca­ beça da vítima, sem, contudo, produzir o resultado morte, é óbvio que, havendo confissão do acusado quanto à sua verdadeira intenção - animus necandi teríamos prova direta do elemento subjetivo, fa­ cilitando sobremaneira o trabalho da acusação. No entanto, dificilmente o acusado irá confessar sua verdadeira intenção. Mesmo assim, não se pode di­ zer que o dolo será presumido. Na verdade, diante da negativa do acusado em admitir sua real inten­ ção, deverá o dolo ser inferido de dados externos e objetivos, que comprovem a real intenção do agen­ te. No exemplo dado, as circunstâncias objetivas do caso concreto, tais como o local de eventual lesão, a natureza da arma, a distância entre agente e vítima e a quantidade de disparos efetuados, funcionarão como indicativos veementes da presença do animus necandi, autorizando conclusão afirmativa quanto à presença do dolo de matar.

De outro lado, valendo-se do quanto disposto no Código de Processo Civil, que dispõe que incum­ be ao réu o ônus da prova quanto à existência de fato 50. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18a ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 258. Na mesma linha: ARANHA, Adalberto José Q.T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 11.

impeditivo,51 modificativo52 ou extintivo53 do direito do autor (NCPC, art. 373, II, do novo CPC), à defesa no processo penal compete o ônus da prova quanto às excludentes da ilicitude, da culpabilidade,54 ou acerca da presença de causa extintiva da punibi­ lidade.55 Assim, se o réu alegar, por exemplo, que se encontrava sob coação moral irresistível, caberá a ele o ônus da prova. De modo semelhante, se o acusado alegar que houve renúncia tácita ao direi­ to de queixa, caberá a ele o ônus da prova quanto à referida causa extintiva da punibilidade (CP, art. 107, inciso V). Nos mesmos moldes, se o acusado apontar a existência de um álibi, caberá a ele fazer prova de sua alegação. Se o ônus da prova da acusação recai sobre o fato típico, autoria ou participação, nexo causai e elemento subjetivo, incumbindo à defesa a prova acerca da presença de uma causa excludente da ili­ citude, da culpabilidade ou de uma causa extintiva da punibilidade, questiona-se acerca do grau de con­ vencimento que acusação e defesa devem produzir na convicção do magistrado. Do lado do ônus da prova da acusação, dúvidas não restam quanto à necessidade de um juízo de certeza por parte do magistrado. Afinal, em virtude da regra probatória que deriva do princípio da pre­ sunção de inocência, tem-se que somente é possível um decreto condenatório quando o magistrado es­ tiver convencido da prática do delito por parte do acusado. No que toca à defesa, todavia, sempre se dis­ cutiu se seria necessário que a defesa produzisse no magistrado um juízo de certeza, ou se bastaria produzir uma dúvida razoável. Apesar de a primeira parte do art. 156 do CPP não ter sido alterada com a entrada em vigor da Lei n° 11.690/08 (“a prova 51. De acordo com Badaró (op. cit. p. 248), os fatos impeditivos são aqueles cuja ausência é necessária para a eficácia jurídica dos fatos cons­ titutivos e cujo concurso impede a produção de seus efeitos. Os fatos impeditivos quando comprovados impedem que o fato constitutivo produza o efeito que lhe é normal ou próprio, que constitui a sua razão de ser. O ônus da prova para os fatos impeditivos é do réu.

52. Como exemplos de fatos modificativos do direito de punir, cuja prova também incumbiria ao acusado, Badaró cita, como exemplo, a comutação de pena ou a remição (op. cit. p. 260).

53. Ainda segundo Badaró (op. cit. p. 247), fatos modificativos ou extintivos são fatos que operam em um momento posterior à constituição da relação jurídica, tendo a força de modificara eficácia jurídica já produzida por essa relação ou determinar a sua extinção. O ônus da prova dos fatos modificativos e extintivos incumbe ao réu.

54. As excludentes da ilicitude e da culpabilidade devem ser con­ sideradas fatos impeditivos, pois são capazes de obstar a eficá-cia do direito de punir estatal. 55. Fatos extintivos do direito de punir devem ser compreendidos como aqueles que fazem cessar a eficácia da pretensão punitiva do Es­ tado, como as causas extintivas da punibilidade previstas no art. 107 do CP (v.g., morte do acusado, anistia, graça, indulto, prescrição, etc.).

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da alegação incumbirá a quem a fizer ...”), há de se dispensar especial atenção à nova redação do art. 386, inciso VI, do CPP, o qual autoriza uma senten­ ça absolutória na seguinte hipótese: “(...) existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § Io do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência” (nosso grifo).

Ora, se a fundada dúvida acerca de uma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade autoriza um decreto absolutório, pode-se concluir que não se exige da defesa uma prova cabal acerca de tais teses, bastando que produza um estado de dúvida para que o acusado possa ser absolvido.

Em suma, enquanto o Ministério Público e o querelante têm o ônus de provar os fatos delituosos além de qualquer dúvida razoável, produzindo no magistrado um juízo de certeza em relação ao fato delituoso imputado ao acusado, à defesa é suficiente gerar apenas uma fundada dúvida sobre causas excludentes da ilicitude, causas excludentes da culpa­ bilidade, causas extintivas da punibilidade ou acerca de eventual álibi. Há, inegavelmente, uma distinção em relação ao quantum de prova necessário para cumprir o ônus da prova: para a acusação, exige-se prova além de qualquer dúvida razoável; para a de­ fesa, basta criar um estado de dúvida.

2.4.2. Ônus da prova exclusivo da acusação Uma segunda corrente - minoritária, porém, a nosso ver, mais acertada - sustenta que, diante do princípio do in dubio pro reo, que é a regra de julgamento que vigora no campo penal, o acusado jamais poderá ser prejudicado pela dúvida sobre um fato relevante para a decisão do processo, pelo menos nos casos de ação penal condenatória. Em um processo penal em que vigora a presunção de inocência, o ônus probatório é atribuído, com ex­ clusividade, ao acusador.56 Segundo essa corrente, havendo, por exemplo, alegação da defesa acerca da presença de uma causa excludente da ilicitude, caberá à acusação demons­ trar que a conduta do agente é típica, ilícita e culpável. E nem se objete que seria impossível à acusação provar a inocorrência das excludentes da ilicitude porque correspondería à prova de um fato negativo. Na verdade, o que não é possível é provar alegações de fatos indeterminados, sejam eles positivos ou ne­ gativos. Agora, se o fato negativo for determinado, é 56. Com esse entendimento: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A presunção de inocência e o ônus da prova em processo penal. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 23/3, São Paulo: Editora Revista

dosTribunais, nov. 1994.

perfeitamente possível comprovar sua inocorrência através da prova de fatos positivos contrários ou com ele incompatíveis. Destarte, a fim de provar que o acusado não agiu em legítima defesa, bastará ao órgão do Ministério Público comprovar que não houve qualquer agressão por parte da vítima, que a agressão não foi injusta, que a agressão injusta não era atual ou iminente, ou, ainda, que o acusado se utilizou dos meios de defesa de forma imoderada. Isso não significa dizer, no entanto, que a acu­ sação sempre deverá comprovar a inocorrência de causas excludentes da ilicitude ou da culpabilidade. Caso não tenha sido alegada qualquer excludente pela defesa, não tendo surgido dúvida fundada sobre sua ocorrência, torna-se desnecessária a prova de que o fato não fora praticado sob o manto de uma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade.

Quanto às causas de extinção da punibilidade, há de se distinguir aquelas que somente operam antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (v.g., decadência, perempção, renún­ cia ao direito de queixa ou perdão do ofendido, re­ tratação), daquelas que só podem ocorrer depois do trânsito em julgado, como o indulto e a graça. Existem também aquelas que podem ocorrer antes ou depois do trânsito em julgado, como a morte do agente, a anistia e a prescrição. Em todos esses casos, deve-se ter em mente que o in dubio pro reo somente será aplicável enquanto ainda não houver o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por fim, quanto ao ônus da prova em relação ao álibi do acusado, por se tratar de uma forma de se negar indiretamente a participação no delito, com a afirmação de que se encontrava em outro lugar, no momento em que o crime foi cometido, também tem plena aplicação o in dubio pro reo. Em outras palavras, se o acusado conseguir produzir uma dú­ vida razoável de que estava em local diverso, quando da prática delitiva, recai sobre a parte acusatória o ônus de dissipar qualquer dúvida acerca do álibi, comprovando a presença do acusado no local do delito. Há alguns poucos precedentes jurisprudenciais nesse sentido: “A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação penal recai por inteiro, e com exclusividade, sobre o Mi­ nistério Público. Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio estado de liberdade que se reco­ nhece às pessoas em geral. Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal,

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sob a égide da garantia constitucional do contradi­ tório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório. (...) Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado”.57

2.5. Inversão do ônus da prova Como já foi dito, diante da regra de julgamento do in dubio pro reo, tem-se que o ônus da prova recai precipuamente sobre o Ministério Público ou sobre o querelante. A inversão do ônus da prova significa­ ria, portanto, adotar a regra contrária: in dubio pro societate ou in dubio contra reum. Diante da hie­ rarquia constitucional do princípio da presunção de inocência, forçoso é concluir que nenhuma lei poderá, então, inverter o ônus da prova com relação à condenação penal, sob pena de ser considerada inconstitucional.

No entanto, se não se afigura possível a inver­ são do ônus da prova quanto ao fato constitutivo do direito de punir do Estado, parte da doutrina entende ser cabível uma inversão do ônus da prova quanto aos efeitos secundários da condenação pe­ nal que tenham natureza de sanção civil visando à reparação do dano. Exemplo comumente citado pela doutrina acer­ ca do assunto diz respeito à possibilidade de o juiz decretar medidas assecuratória de bens, diretos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instru­ mento, produto ou proveito dos crimes de lavagem de capitais ou das infrações penais antecedentes. Para a decretação de tais medidas, impõe a lei a presença de indícios suficientes (Lei n° 9.613/98, art. 4o, caput, com redação determinada pela Lei n° 12.683/12/ Por outro lado, a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores somente será pos­ sível quando comprovada a licitude de sua origem (Lei n° 9.613/98, art. 4o, § 2o). Essa autorização para a inversão do ônus da prova vem expressamente prevista pela Convenção de Viena de 1988, que remete a cada parte (país) a sua consideração. No art. 5o, n° 7, prevê: “Cada uma das partes considerará a possibilidade de inverter o ônus da prova com respeito à origem ilícita do suposto produto ou bens sujeitos a confisco, na me­ dida em que isto seja compatível com os princípios de seu direito interno e com a natureza dos seus procedimentos judiciais e outros procedimentos”. 57. STF, 1 aTurma, HC 73.338/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/1996.

Nesse sentido, além do Brasil, também Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Suíça e Mé­ xico, entre outros, estipularam em suas legislações a inversão do ônus da prova. Tem-se, no dispositivo do art. 4o, § 2o, da Lei 9.613/98, uma inversão do ônus da prova somente para as medidas coercitivas patrimoniais relativas a direitos ou valores apreendidos ou sequestrados e, assim mesmo, não para permiti-las, mas sim para que o acusado obtenha sua liberação. Para Ada Pellegrini Grinover, essa inversão do ônus da prova “se­ ria representada, portanto, por uma carga mais leve para a acusação do que para a defesa, no sentido de que, para o sequestro, bastarão indícios veementes, enquanto para a liberação será necessária a com­ provação da licitude, entendida como exigência de prova plena”.58

A nosso juízo, o preceito em questão merece interpretação conforme, sob pena de evidente vio­ lação ao princípio da presunção de inocência, por estabelecer indevida inversão do ônus da prova. Assim, deve ser entendido como relacionado ao pedido de restituição durante o curso do proces­ so. Se esse pedido de liberação for formulado antes da decisão, recai sobre o réu, corréu, partícipe ou terceiro de boa-fé o ônus de comprovar a licitude da origem dos bens, mediante a oposição dos em­ bargos previstos no art. 130, I e II, do CPP. Já no momento da prolação da sentença condenatória, o ônus quanto à demonstração da ilicitude da origem dos bens volta a recair sobre o Ministério Público, que deverá comprovar a existência de prova de que os bens, direitos ou valores são objeto do delito de lavagem de capitais.

2.5.1. Confisco alargado e (im) possibilidade de inversão do ônus da prova Enquanto o caput do art. 91-A do CP, incluído pela Lei n. 13.964/19, dispõe que poderá ser decre­ tada a perda dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito, mais adiante o §2° do mesmo dispositivo legal deter­ mina que “o condenado poderá demonstrar a inexis­ tência da incompatibilidade ou procedência lícita do 58. A legislação brasileira em face do crime organizado. Revista Brasi­ leira de Ciências Criminais 20/64, RT, São Paulo, out.-dez. 1997. Em sentido contrário, Badaró assevera que "embora não haja óbice constitucional para tal'inversão', a referida lei não instituiu qualquer inversão do ônus da prova. O que se previu foi a mera possibilidade de concessão de medida cautelar - sequestro ou apreensão - baseada no fumus boni iuris -'indícios suficientes'. Por outro lado, para a revogação da medida cautelar, com a liberação dos bens apreendidos, será necessário mais do que apenas afastar a fumaça do bom direito. O legislador exige a 'comprovação da licitude dos bens apreendidos" /BADARÓ. ônus da prova, op. cit. p. 370).

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patrimônio”. Ante a aparente contradição entre os dois preceitos, certamente haverá questionamentos acerca do ônus da prova. É dizer: a quem compete comprovar essa incompatibilidade? À acusação ou à defesa?

De um lado, certamente haverá quem entenda que o art. 91-A, §2°, do Código Penal, estabelece verdadeira inversão do ônus da prova. A previsão normativa em apreço guardaria semelhança com dispositivos legais já previstos no ordenamento ju­ rídico, quer na Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, art. 4o, §2°), quer na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/06, art. 63-B), que preveem que o juiz deter­ minará a liberação total ou parcial de bens, direitos e valores, objeto de medidas assecuratórias, quando comprovada a licitude de sua origem pelo acusado. É nesse sentido, aliás, a lição de Cleber Masson: “Re­ serva-se ao condenado, entretanto, a possibilidade de demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio (CP, art. 91A, §2°). Em síntese, opera-se a inversão do ônus da prova quando o condenado possui patrimônio incompatível com seus rendimentos lícitos. O Esta­ do não precisa provar a origem ilícita dos bens do condenado. Cabe a ele demonstrar a procedência legítima do seu acervo patrimonial. Exemplificativamente, será dele a tarefa de provar que ganhou na loteria, que recebeu vultosa herança de um parente distante, que contraiu matrimônio com pessoa rica etc.”59

De nossa parte, reputamos inviável qualquer inversão do ônus da prova quanto à incompatibi­ lidade da evolução patrimonial do condenado, sob pena de evidente violação à regra probatória que deriva do princípio constitucional da presunção de inocência (in dubio pro reo).60 Impõe-se, pois, uma interpretação conforme do art. 91-A, §2°, do Código 59. Op. cit. Vol. 1. p. 718.

60. Na lição de Juarez Cirino dos Santos, "a perda para o Estado do produto ou de qualquer proveito do crime, prevista no art. 91, II, b, do Código Penal, é legítima pela relação causai provada entre crime e lucro, demonstrada pela autoria e materialidade do fato punível. Mas a hipótese de perda da diferença entre (a) o patrimônio total do condenado e (b) o patrimônio demonstrado, pelo condenado, como produto de rendimen­ tos lícitos ou fontes legítimas, é fundado em presunção legal, porque in­ verte o ônus da prova, rompendo um princípio fundamental do processo penal: a prova dos fatos imputados pertence à acusação, incumbindo à defesa apenas criar uma dúvida razoável, obrigando à decisão segundo o princípio da presunção de inocência, expresso na máxima in dubiopro reo. Nessas condições, o anteprojeto introduz uma legalidade penal em conflito com a legitimidade jurídica da medida, em contradição com o princípio da presunção de inocência e seu corolário do in dubio pro reo, subvertendo a lógica da própria economia de mercado, segundo a qual

se presume a licitude do patrimônio privado dos cidadãos, até prova em contrário produzida pelos órgãos do Estado, especialmente através do Ministério Público". (Reflexões sobre confisco alargado. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2015/12/Reflex%C3%B5es-sobre-

-Confisco-Alargado.pdf. Acesso em: 10/04/2020 às 06:15.

Penal, incluído pelo Pacote Anticrime, para que se possa concluir que não é o acusado que tem que comprovar a compatibilidade do seu patrimônio real com seu rendimento declarado. Pelo contrário. É da acusação o ônus de comprovar o incremento patrimonial significativo do acusado e a incompa­ tibilidade com as suas fontes de renda, não sendo suficiente, portanto, a mera condenação por infra­ ção à qual a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão.

Logo, quando o art. 91-A, §2°, do CP, dispõe que o condenado poderá demonstrar a inexistên­ cia da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio, deve ser daí extraída a ideia de que, desejando, à defesa se assegura a faculdade, e não o ônus, de comprovar que seu patrimônio encontra respaldo na renda lícita por ele auferida. Destarte, na eventualidade de o órgão ministerial não se desincumbir a contento do ônus que é seu - e não da defesa - de demonstrar a existência de patrimônio real incongruente com rendimentos legítimos, a dú­ vida há de ser interpretada em favor do acusado, pouco importando que este venha a ser condenado naquele processo, eis que não se pode confundir a imputação criminal com a imputação patrimonial. Nesse ponto, melhor teria andado o Congresso Na­ cional se tivesse aprovado a redação então constan­ te do PL 4.850/2016, in verbis: “Art. 91-A. (...) §4° O condenado terá a oportunidade de demonstrar a inexistência da incompatibilidade apontada pelo Ministério Público, ou que, embora ela exista, os ativos têm origem lícita” (nosso grifo). O argumento de que essa inversão do ônus da prova já estaria prevista na Lei de Lavagem de Capitais (art. 4o, §2°) e na Lei de Drogas (art. 63B) também não nos convence. Isso por uma razão muito simples: em ambos os diplomas normativos, o que a lei prevê é liberação de medidas assecurató­ rias diante da comprovação da licitude da origem dos bens pelo acusado. Nesse caso, como estamos tratando de cautelares patrimoniais decretadas no curso da persecução penal, e não de um efeito es­ pecífico da condenação, como ocorre no caso do confisco alargado, não há qualquer problema em relação à inversão do ônus da prova, representado por uma carga mais leve para a acusação do que para a defesa, no sentido de que a decretação da medida estaria condicionada à presença de indícios suficientes, formando um juízo de probabilidade, ao passo que, para a liberação, haveria a necessidade de comprovação da sua origem lícita, entendida como exigência de prova plena, formando um juízo de certeza. Em tais hipóteses, como exposto anterior­ mente, a doutrina não costuma visualizar qualquer

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violação à presunção de inocência, desde que os dis­ positivos sejam interpretados no seguinte sentido: se o pedido de restituição for formulado antes da sentença condenatória, recai sobre o acusado o ônus de comprovar a licitude da origem dos bens; se, no entanto, o for por ocasião da sentença condenatória, o ônus da prova quanto à demonstração da ilicitude da origem dos bens volta a recair sobre o Ministério Público, que deverá comprovar a origem espúria dos bens sequestrados, sob pena de consequente deso­ neração dos bens constritos.61 Essa impossibilidade de se adotar a inversão do ônus da prova por oca­ sião da sentença condenatória é bem destacada pela própria Exposição de Motivos do Poder Executivo referente ao texto original da Lei n° 9.613/98 (EM 692/MJ/1996), que, em seu item 66 adverte: “o pro­ jeto inverte o ônus da prova relativamente à licitude de bens, direitos ou valores que tenham sido objeto da busca e apreensão ou do sequestro (art. 4o). Essa inversão encontra-se prevista na Convenção de Vie­ na (art. 5o, n° 7) e foi objeto de previsão no direito argentino (art. 25, Lei 23.737/1989)”. Mais adiante, no item 67, consta: “Observe-se que essa inversão do ônus da prova circunscreve-se à apreensão ou ao sequestro dos bens, direitos ou valores. Não se estende ela ao perdimento dos mesmos, que somente se dará com a condenação (art. 7o, I). Na medida em que fosse exigida, para só a apreensão ou o se­ questro, a prova da origem ilícita dos bens, direitos ou valores, estariam inviabilizadas as providências, em face da virtual impossibilidade, nessa fase, de tal prova”. Ora, firmada a premissa de que o con­ fisco alargado é decretado pelo juiz por ocasião da sentença condenatória, e não durante o curso da investigação (ou do processo penal) como espécie de medida cautelar, não há como se pretender a aplicação desses dispositivos legais para se admitir uma possível inversão do ônus da prova, sob pena de patente violação à regra probatória que deriva do princípio da presunção de inocência. Enfim, à semelhança do que ocorre em um ação civil por improbidade administrativa em virtude da prática do ilícito constante do art. 9o, VII, da Lei n. 8.429/92, com redação dada pela Lei n. 14.230/21 (“adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, de cargo, de emprego ou de função 61. A propósito, confira-se: "O sequestro previsto no art. 4o da Lei 9.613/98 requer apenas indícios suficientes da origem ilícita dos bens, estabelecendo em seu § 2o a justa inversão do ônus da prova para que ocorra sua liberação, sem ofender o direito de propriedade e os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência, porquanto não há perda do domínio, que só ocorrerá após o trânsito em julgado de eventual decreto condenatório. (...)". (TRF-4.a Reg„ ACR 2004.71.00.029403-0,8.aT„ rei. Élcio Pinheiro de Castro, DJ 25.05.2005).

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pública, e em razão deles, bens de qualquer natu­ reza, decorrentes dos atos descritos no caput deste artigo, cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público, assegura­ da a demonstração pelo agente da licitude da origem dessa evolução”), há de recair sobre o autor o ônus da prova quanto ao fato constitutivo do seu direito (CPC, art. 373, I), sob pena de experimentar uma situação de desvantagem perante o direito, in casu, a improcedência do pedido por ele formulado.62 Nes­ se sentido, confira-se: “(...) A jurisprudência deste Superior Tribunal é no sentido de que em matéria de enriquecimento ilícito, cabe à Administração comprovar o incremento patrimonial significativo e incompatível com as fontes de renda do servidor. Por outro lado, é do servidor acusado o ônus de demonstrar a licitude da evolução patrimonial cons­ tatada pela administração, sob pena de configuração de improbidade administrativa por enriquecimento ilícito”63

Destarte, ainda que se queira emprestar natu­ reza de sanção civil ao confisco alargado, se se trata de efeito específico da condenação resultante de um processo penal - e não de uma ação civil de confis­ co (ou perda civil de bens),64 onde, em tese, seria possível que a lei criasse uma hipótese de inversão do ônus da prova no que toca à expropriação, se acaso vigorasse um sistema de separação total entre a perda de bens, a ser decidida, exclusivamente, nas vias cíveis, e a punição pelo delito, julgada na seara penal -, não se pode interpretar o art. 91-A, §2°, do CP, incluído pela Lei n. 13.964/19, para fins de se admitir suposta inversão do ônus da prova quanto à (in) compatibilidade patrimonial do condenado, sob pena de manifesta violação à garantia consti­ tucional da presunção de inocência e consequente inconstitucionalidade. 62. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que a improbidade administrativa consistente em o servidor público amealhar patrimônio a descoberto independe da prova de relação direta entre aquilo que é ilici­ tamente feito pelo servidor no desempenho do cargo e seu patrimônio a descoberto. Espécie de improbidade em que basta que o patrimônio a descoberto tenha sido amealhado em época em que o servidor exercia cargo público. Nesse sentido: STJ, 1a Seção, MS 20.765/DF, Rei. Min. Be­ nedito Gonçalves, DJe 14/02/2017; STJ, Ia Seção, MS 18.460/DF, Rei. Min.

Mauro Campbell Marques, DJe 02/04/2014; STJ, 1a Seção, MS 21,084/DF, Rei. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 1 Acesso em 15.12.2020.

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o ingresso por agentes estatais, ainda que levado a efeito sem a presença de justa causa, do outro, também não se pode exigir um stantard probatório semelhante àquele necessário à expedição de um mandado de busca domiciliar para a constatação de uma das hipóteses de flagrante delito previstas no art. 302 do CPP, sob pena de se tornar letra morta a parte final do inciso XI do art. 5o da Constitui­ ção Federal, violando-se, ademais, o próprio prin­ cípio da proporcionalidade sob a ótica da vedação da proteção deficiente, porquanto o Estado estaria sendo coarctado na sua função de tutela de direitos fundamentais de proteção, como, por exemplo, a segurança pública.348

Dentro desse contexto de se exigir que o stan­ dard probatório guarde moderação e compatibilida­ de com as circunstâncias que tangenciam uma prisão em flagrante, a própria 6a Turma do STJ concluiu, em recente julgado, ser lícita a entrada de policiais, sem autorização judicial e sem o consentimento do hóspede, em quarto de hotel não utilizado como mo­ rada permanente, porquanto realizadas, previamen­ te à prisão em flagrante, diligências investigativas para apurar a veracidade da informação recebida no sentido de que realmente acontecia a traficância de drogas naquele local, demonstrando-se, assim, que estava presente o elemento “fundadas razões” a autorizar o ingresso policial forçado. Na visão do referido colegiado, embora o quarto de hotel regu­ larmente ocupado seja, juridicamente, qualificado como “casa” para fins de tutela constitucional da inviolabilidade domiciliar (art. 5o, XI), a exigên­ cia, em termos de de standard probatório, para que policiais ingressem em um quarto de hotel sem mandado judicial não pode ser igual às fundadas razões exigidas para o ingresso em uma residência propriamente dita, a não ser que se trate (o quarto 348. Como destacam Américo Bedê Jr. e Gustavo Senna,"(...) é fun­ damental que o direito e o processo penal tenham maior efetividade no enfrentamento da criminalidade moderna. E isso não representa em hipótese alguma um discurso autoritário, arbitrário, como tende a en­ tender certa parcela da doutrina, que, de forma generalizada, tacha de 'neonazistas', de retrógrados, de defensores do movimento da 'lei e da ordem', do direito penal do inimigo, de antidemocráticos, de filhotes da ditadura etc. todos aqueles que advogam a restrição de algumas garan­ tias processuais em casos limites de criminalidade grave, e isso quando é de conhecimento notório que os direitos e garantias fundamentais não são absolutos. (...) Essa postura preconceituosa e antidemocrática de certa parcela da doutrina revela um comportamento típico de quem foi acometido, pode-se dizer, pela 'síndrome de Alice', pois mais parece viver em um 'mundo de fantasia', com um 'direito penal da fantasia', onde não existem homens que - de forma paradoxal - são movidos por ver­ dadeiro descaso para com a vida humana; um mundo no qual não exis­ tem terroristas, nem organizações criminosas nacionais e internacionais a comprometer as estruturas dos próprios Estados e, por conseguinte, o bem estar da coletividade e a sobrevivência humana". (Princípios do processo penal - entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: RT, 2009, p. 26-28).

de hotel) de um local de moradia permanente do suspeito. Isso porque é diferente invadir uma casa habitada permanentemente pelo suspeito e até por várias pessoas (crianças e idosos, inclusive) e um quarto de hotel que é aparentemente utilizado não como uma morada permanente, mas para outros fins, inclusive o comércio de drogas.349 iv. Consentimento do morador. Também se depreende do art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal, que o consentimento do morador autoriza que se ingresse em casa alheia, seja durante o dia, seja durante a noite. Resta saber, então, quem detém legitimidade para dar ou negar esse consentimento. A Constituição Federal não fala em proprietário, locatário ou possuidor, mas sim em morador, compreendendo todos aqueles que habi­ tam a casa. Logo, tendo em conta que o ingresso em domicílio para fins de investigação criminal devassa a intimidade e retira o sossego de todas as pessoas que habitam o local, não apenas a pessoa suspeita pode negar o consentimento, como também qual­ quer um dos moradores que ali se encontram.350

Para validar o ingresso de agentes estatais no interior da casa e subsequente busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, o consentimento do morador precisa ser voluntário e livre de qual­ quer tipo de constrangimento ou coação. Na visão dos Tribunais Superiores, a prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingres­ so na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita, pelo menos em regra, com declaração assinada pela pessoa que au­ torizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, se possível, nada impede que a operação seja regis­ trada em áudio-vídeo e preservada tal prova en­ quanto durar o processo. A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabili­ zação penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência. 349. STJ, 6a Turma, HC 659.527/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 19.10.2021, Dje 25.10.2021. 350. Discorrendo sobre o jusprohibendido empregado doméstico que reside na casa, Walter Nunes da Silva Júnior conclui que o empregado, residente no local, tem o direito de negar o ingresso no espaço territorial definido para a sua privacidade, sendo pertinente a oposição contra ou­ tros moradores da casa, e, até mesmo, contra o patrão. Segundo o referido autor, "o patrão que entra na casa do caseiro ou quarto do empregado para verificar, por exemplo, se ele furtou algum objeto, afronta o preceito constitucional que assegura a inviolabilidade do domicílio, não tendo validade eventuais provas obtidas sob essa forma", (op. cit. p. 654/655).

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Com base nesse raciocínio, em paradigmática decisão da 6a Turma do STJ,351 restou fixado o prazo de 1 (um) ano para se permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências neces­ sárias para a adaptação a essas diretrizes, de modo a evitar situações de ilicitude, que, entre outros efei­ tos, poderiam implicar responsabilidade adminis­ trativa, civil e/ou penal do agente estatal, à luz da legislação vigente (art. 22 da Lei 13.869/2019), sem prejuízo do eventual reconhecimento, no exame de casos a serem julgados, da ilegalidade de diligências pretéritas. Ocorre que, no julgamento de Recurso Extraordinário interposto em face do referido acór­ dão, o Min. Alexandre de Moraes concedeu parcial provimento para anulá-lo na parte em que enten­ deu pela necessidade de documentação e registro audiovisual das diligências policiais, determinando a implementação de medidas aos órgãos de seguran­ ça pública de todas as unidades da federação.352 Na visão do eminente Ministro, no ponto em questão, a 6a Turma do STJ teria desrespeitado os requisi­ tos constitucionais previstos no inciso XI do art. 5o da CF, restringindo as exceções à inviolabilidade domiciliar, como também, inovando em matéria constitucional, criou uma nova exigência - gravação audiovisual da anuência de entrada no local - para a plena efetividade dessa garantia individual, em contrariedade ao quanto decidido pelo Supremo no Tema n. 280 de Repercussão Geral. De mais a mais, ao impor uma específica e determinada obrigação à Administração Pública, não prevista no referido dispositivo constitucional, a 6a Turma do STJ não teria observado os preceitos básicos definidos no art. 2o da CF, que consagram a independência e a harmonia entre os poderes. Outrossim, no caso de mandado de busca domiciliar em sede de empresa, reputa-se válida eventual autorização expressa para a busca dada por pessoa que age como sua representante. Aos olhos da 5a Turma do STJ, embora a teoria da aparência tenha encontrado maior amplitude de aplicação jurisprudencial na seara civil, processual civil e no Código de Defesa do Consumidor, nada há que impeça sua aplicação também na seara pe­ nal. Contudo, para sua aplicação, há de reforçar a necessidade de conjugação da boa-fé com o erro escusável e alguns requisitos essenciais. Segundo a doutrina, são seus requisitos objetivos essenciais: a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora

uma situação de direito; b) situação de fato que as­ sim possa ser considerada segundo a ordem geral e normal das coisas; c) e que, nas mesmas condi­ ções acima, apresente o titular aparente como se fora titular legítimo, ou o direito como se realmente existisse. São seus requisitos subjetivos essenciais: a) a incidência em erro de quem, de boa-fé, a men­ cionada situação de fato como situação de direito considera; b) a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu. Assim, à luz da teoria da aparência, reputa-se válida a autorização de ingresso da autoridade policial no estabelecimento dada por pessoa que, embora tenha deixado de ser sócia formal da empresa, continua assinando documentos, possui a chave do escritório e apresenta-se como responsável perante as autori­ dades policiais.353

10.4.1.1. Mandado de busca e apreensão A expedição de mandado de busca domiciliar está condicionada à presença de fundadas razões, sendo indispensável a presença de elementos infor­ mativos apontando que uma das coisas ou pessoas citadas no art. 240, § Io, do CPP, encontra-se no interior da casa sujeita à diligência. De acordo com o art. 243 do CPP, o mandado de busca deverá:

I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem: man­ dados de busca domiciliar não podem se revestir de conteúdo genérico, nem podem se mostrar omissos quanto à indicação, o mais precisamente possível, do local objeto dessa medida extraordinária, tal qual dispõe o art. 243 do CPP.354 Por isso, em caso con­ creto envolvendo o cumprimento de mandado de busca que teria como alvo o endereço profissional de investigado localizado no 28° andar de deter­ minado edifício, a 2a Turma do Supremo concluiu ser ilegal a apreensão de equipamentos de infor­ mática no endereço de instituição financeira loca­ lizada no 3o andar do mesmo edifício, porquanto não havia mandado judicial para este endereço. Por 353. STJ, 5a Turma, RMS 57.740/PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fon­ seca, j. 23.03.2021. 354. A propósito, em caso concreto versando sobre a apuração de crimes praticados em comunidades de favelas, concluiu a 6a Turma do

STJ (AgRg no HC 435.934/RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 05/11 /2019, DJe 20/11/2019) ser nula a decisão que havia decretado a medida de

busca e apreensão coletiva, genérica e indiscriminada para a entrada da

polícia em qualquer residência. Isso porque a ausência de individualiza351. STJ, 6a Turma, HC 598.051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j.

02.03.2021.

352. STF, RE 1,342.077/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 02.12.2021.

ção das medidas de apreensão estaria em rota de colisão com diversos dispositivos legais, dentre eles os arts. 240, 242, 244, 245, 248 e 249 do

CPP, além do art. 5o, XI, da CF.

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consequência, por se tratar de apreensão realizada no domicílio de alguém sem autorização judicial fundamentada, revelar-se-ia ilegítima, e o material eventualmente apreendido configuraria prova ilici­ tamente obtida;355 II - mencionar o motivo e os fins da diligên­ cia: dada a impossibilidade de indicação, ex ante, de todos os bens passíveis de apreensão no local da busca, é mister conferir-se certa discricionariedade, no momento da diligência, à autoridade policial.356 Com efeito, o art. 243 do CPP disciplina os requi­ sitos do mandado de busca e apreensão, dentre os quais não se encontra o detalhamento do que pode ou não ser arrecadado.357 Portanto, revela-se sufi­ ciente, para fins de delimitação da busca e apreen­ são, a determinação de que devem ser apreendidos os materiais que possam guardar relação estrita com os fatos sob investigação.358 Não por outro moti­ vo, em caso concreto versando sobre investigação que fora deflagrada em virtude da adulteração de prontuários médicos, concluiu a 6a Turma do STJ não haver exigência legal de que o mandado de busca e apreensão detalhe o tipo de documento a ser apreendido, ainda que de natureza sigilosa. Ora, embora os prontuários possam conter dados sigilo­ sos, teriam sido obtidos a partir da imprescindível autorização judicial prévia, razão pela qual não há falar em prova ilícita;359

III - ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir: para além dis­ so, se houver ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca (CPP, art. 243, § Io).

10.4.1.2. Execução da busca domiciliar Segundo o art. 241 do CPP, “quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pes­ soalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado”. Nessa hipótese, segundo o art. 245, § Io, do CPP, devem a autoridade policial ou judiciária declarar previamente sua qualidade e o objeto da diligência. 355. Nesse contexto: STF, 2a Turma, HC 106.566/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 16/12/2014. 356. STF, 1aTurma, Pet 5.173/DF, Rei. Min. Dias toffoli, DJe 18.11.2014. 357. STJ, 5a Turma, HC 524.581/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, DJe 13.02.2020. 358. STJ, 6a Turma, HC 537.017/RS, Rei. Min. Nefi Cordeiro, DJe

03.02.2020. 359. STJ, 6a Turma, RHC 141.737/PR, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 27.04.2021. No sentido de que o art. 240 do CPP, ao tratar da busca e apreensão, apresenta um rol exemplificativo dos casos em que a medida pode ser determinada, no qual se encontra a hipótese de arrecadação de objetos necessários à prova da infração ou à defesa do réu, não havendo qualquer ressalva de que não possam dizer respeito à intimidade ou à vida privada do indivíduo: STJ, 5a Turma, HC 142.205/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, DJe 13/12/2010.

A nosso ver, o dispositivo do art. 241 do CPP não foi recepcionado pela Constituição Federal. A uma porque não se pode permitir que o magistra­ do execute diretamente uma busca domiciliar, sob pena de ressuscitarmos a figura do juiz inquisidor, comprometendo a garantia da imparcialidade e o sistema acusatório. A duas porque o delegado, ao executar uma busca domiciliar, está obrigado a apre­ sentar mandado expedido pela autoridade judiciá­ ria, porquanto o art. 5o, inciso XI, da Carta Magna, demanda determinação judicial para o ingresso em domicílio. Não há justificativa para o acompanhamento da mídia aos atos de busca e apreensão, notadamen­ te em tempo real. Portanto, é recomendável que o mandado de busca e apresnão determine que a po­ lícia se abstenha de convocar a imprensa e observe a discrição necessária no seu cumprimento. Por mais que, nesse caso, a exposição indevida da intimida­ de e da vida privada das pessoas não torne o ato viciado e nem acarrete a ilicitude da prova obtida, poderá gerar indenizações e responsabilidades dos agentes envolvidos. De mais a mais, o cumprimento dos mandados em órgãos públicos deve manter a discrição necessária, evitando-se, pelo menos em regra, o uso de armamento ostensivo. Na esteira do que dispõe o art. 245, caput, do CPP, “as buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executo­ res mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o representante, intimando-o, em seguida, abrir a porta”. A diligência deve ser executada por Oficiais de Justiça ou pelos órgãos de Polícia Judiciá­ ria. De modo excepcional, policiais militares podem colaborar com a execução da medida.

Caso o morador não franqueie o acesso à casa durante o dia após a leitura do mandado de busca domiciliar, a porta será arrombada e forçada a en­ trada, sendo possível que o agente seja responsabi­ lizado pelo crime de desobediência (CP, art. 330). Recalcitrando o morador, será permitido o emprego de força contra coisas existentes no interior da casa, para o descobrimento do que se procura (CPP, art. 245, §§ 2o e 3o). Em se tratando de casa habitada, deve a busca ser feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência (CPP, art. 248). Ausentes os moradores, a diligência deve ser realizada normalmente, com a ressalva de que, neste caso, deve ser intimado a assistir à diligência algum vizinho, se houver e estiver presente. Igual proce­ dimento será adotado quando as pessoas presentes

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em casa não tiverem capacidade para consentir (v.g., menores de idade ou doentes mentais). Se é determinada a pessoa ou coisa que se vai procurar, o morador será intimado a mostrá-la. Descoberta a pessoa ou coisa que se procura, será imediatamente apreendida e posta sob custódia da autoridade ou de seus agentes. Finda a diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemu­ nhas presenciais, e, eventualmente, por um vizinho, quando não houver moradores na casa. A ausência de testemunhas presenciais ao cumprimento da diligência de busca domiciliar é considerada mera irregularidade. Dispõe o art. 247 do CPP que, não sendo encontrada a pessoa ou coisa procurada, os motivos da diligência serão comunicados a quem tiver sofrido a busca, se o requerer. A autoridade ou seus agentes poderão penetrar no território de jurisdição alheia, ainda que de outro Estado, quando, para o fim de apreensão, forem no seguimento de pessoa ou coisa, devendo apresentar-se à competente autoridade local, antes da diligên­ cia ou após, conforme a urgência desta. Entende-se que a autoridade ou seus agentes vão em seguimento da pessoa ou coisa, quando: a) tendo conhecimento direto de sua remoção ou transporte, a seguirem sem interrupção, embora depois a percam de vista; b) ainda que não a tenham avistado, mas sabendo, por informações fidedignas ou circunstâncias indiciárias, que está sendo removida ou transporta­ da em determinada direção, forem ao seu encalço. Se as autoridades locais tiverem fundadas razões para duvidar da legitimidade das pessoas que, nas referidas diligências, entrarem pelos seus distritos, ou da legalidade dos mandados que apresentarem, poderão exigir as provas dessa legitimidade, mas de modo que não se frustre a diligência.

Uma vez realizada a busca e apreensão, deve ser assegurado à defesa acesso à íntegra dos dados ob­ tidos no cumprimento do mandado judicial, pouco importando o fato de o relatório sobre o resultado da diligência ficar adstrito aos elementos relaciona­ dos com os fatos sob apuração. Afinal, consoante disposto na Súmula Vinculante n. 14, é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documenta­ dos em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa. Assim, sob pena de indevido cerceamento de defesa, é cer­ to concluir que, iniciado o processo penal, com o oferecimento da denúncia, incumbe ao Ministério Público “abrir” para a defesa todo o material objeto

dos diversos mandados de busca e apreensão judi­ cialmente autorizados (v.g., computadores, tablets, cartões de memória, pen-drives, telefones celulares, mídias diversas, documentos etc.), aos quais a de­ fesa não tivera acesso até então. Por certo, poderá o órgão ministerial escolher o que irá supedanear a acusação, mas o material restante, supostamente não utilizado, deve permanecer à livre consulta do acusado, para o exercício de suas faculdades defen­ sivas. Essa é a ratio essendi da Súmula Vinculante n. 14 do STF. Logicamente, a fim de resguardar a intimidade dos demais investigados em relação aos quais foi cumprida diligência de busca e apreensão, basta que se colha dos advogados o compromisso de não dar publicidade ao material examinado e que não interesse, direta ou indiretamente, à defesa de seu cliente.360

10.4.1.3. Descoberta de outros elementos pro­ batórios e teoria do encontro fortuito de provas Durante o cumprimento de uma busca do­ miciliar, é provável que a autoridade policial ou o oficial de justiça se depare com elementos pro­ batórios relacionados a outros delitos, surgindo a indagação acerca da possibilidade de apreensão de tais elementos.

Anteriormente, ao tratarmos da teoria do en­ contro fortuito de provas, foi dito que referida teoria é utilizada nos casos em que, no cumprimento de uma diligência relativa a um delito, a autoridade policial casualmente encontra provas pertinentes à outra infração penal, que não estavam na linha de desdobramento normal da investigação. Fala-se em encontro fortuito de provas, portanto, quando a prova de determinada infração penal é obtida a partir de diligência regularmente autorizada para a investigação de outro crime. Nesses casos, a validade da prova inesperadamente obtida está condicionada à forma como foi realizada a diligência.361

Nesses casos de cumprimento de mandados de busca e apreensão, deve-se atentar para o fato de que a Constituição Federal autoriza a violação ao domi­ cílio nos casos de flagrante delito (CF, art. 5o, XI). Logo, se a autoridade policial, munida de mandado de busca e apreensão, depara-se com certa quanti­ dade de droga no interior na residência, temos que a apreensão será considerada válida, pois, como se trata do delito de tráfico de drogas na modalidade 360. Nesse contexto: STJ, 6aTurma, RHC 114.683/RJ, Rei. Min. Rogério

Schietti Cruz, j. 13.04.2021.

361. Vale lembrar que, de acordo com o art. 22, caput, da Lei n. 13.869/19, o ingresso pela autoridade em domicílio alheio fora das for­ malidades e finalidades legais caracteriza crime de abuso de autoridade.

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de “guardar”, espécie de crime permanente, haverá situação de flagrante delito, autorizando o ingresso no domicílio mesmo sem autorização judicial. Por­ tanto, nas hipóteses de flagrante delito (v.g., crimes permanentes), mesmo que o objeto do mandado de busca e apreensão seja distinto, será legítima a intervenção policial, a despeito da autorização para entrar na casa lhe ter sido deferida com outra finalidade.

Logo, ao cumprir mandado de busca e apreen­ são, desde que não haja desvio de finalidade, a po­ lícia pode apreender qualquer objeto que contribua para as investigações, ainda que seja de caráter pes­ soal e independentemente de ter sido mencionado de forma expressa na ordem do juiz. Isso porque não há necessidade de que a manifestação judicial que defere a cautelar de busca e apreensão esmiúce quais documentos ou objetos devam ser coletados, até mesmo porque tal pormenorização só pode­ ria ser implementada após a verificação do que foi encontrado no local. Portanto, supondo que a ordem judicial diga respeito ao recolhimento de documentos relacionados aos fatos investigados, é perfeitamente possível a apreensão de documento pessoal, capaz de revelar detalhes da vida privada do indivíduo (v.g., agenda pessoal).

10.4.2. Busca pessoal Inicialmente, é importante ressaltar que há duas subespécies de buscas pessoais: a) busca pessoal por razões de segurança: é aquela realizada em festas, boates, aeroportos, rodo­ viárias, etc. Essa espécie de busca pessoal não está regulamentada pelo Código de Processo Penal, de­ vendo ser executada de maneira razoável e sem ex­ por as pessoas a constrangimento ou à humilhação. Sua execução tem natureza contratual, ou seja, caso a pessoa não se submeta à medida, não poderá se valer do serviço ofertado nem tampouco frequentar o estabelecimento;362 362. Em caso concreto apreciado pela 5a Turma do STJ (HC 470.937/SP, Rel. Min. Joel llan Paciornik, j. 04/06/2019, DJe 17/06/2019), concluiu-se pela ilicitude de revista pessoal realizada por agente de segurança privada e de todas as provas daí decorrentes. Na visão do referido colegiado, extrai-se da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, res­ pectivamente, no capítulo da segurança pública e ao disciplinar a busca domiciliar e pessoal, que somente as autoridades judiciais, policiais ou seus agentes, estão autorizados a realizar a busca domiciliar ou pessoal. Nesse contexto, o agente objeto da revista pessoal não tem a obrigação

de sujeitar-se à mesma, ante a inexistência de disposição legal autori-

zadora desse ato, in casu, por integrantes da segurança da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). De outra parte, esses agentes de segurança não podem sequer ser equiparados a guardas municipais, porquanto são empregados de uma sociedade de economia mista ope­ radora de transporte ferroviário no Estado de São Paulo, sendo regidos, portanto, pela CLT.

b) busca pessoal de natureza processual pe­ nal: à luz do art. 240, §2°, do CPP, deve ser deter­ minada quando houver fundada suspeita de que al­ guém oculte consigo coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos, armas e munições, instrumentos utilizados na prá­ tica de crime ou destinados a fim delituoso, objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu, apreender cartas abertas destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhe­ cimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato, assim como qualquer outro elemento de convicção. De acordo com o art. 244 do CPP, a busca pessoal, à qual é equiparada uma busca veicular, in­ depende de mandado nas seguintes hipóteses: a) no caso de prisão; b) quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito: caso a busca pessoal seja executada sem que haja fundada suspeita, como no exemplo em que a autoridade a executa tão somente para demons­ trar seu poder, a conduta do agente policial pode caracterizar o crime de abuso de autoridade (Lei n° 13.869/19, art. 9o, caput); c) quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar: no cumprimento de busca domiciliar, as pessoas que se encontrem no interior da casa poderão ser objeto de busca pessoal, mesmo que o mandado não o diga de maneira expressa.

Na dicção do Supremo Tribunal Federal, “afun­ dada suspeita prevista no art. 244 do CPP não pode fúndar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exi­ gindo elementos concretos que indiquem a necessi­ dade da revista, em face do constrangimento que cau­ sa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um ‘blusão’ suscetível de es­ conder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder”.363 Com ra­ ciocínio semelhante, em caso concreto envolvendo a prática do delito de descaminho, a 6a Turma do STJ concluiu que o fato de uma busca veicular ter sido executada pela Polícia Rodoviária tão somente devido ao fato de o indivíduo trafegar durante o fim da madrugada (por volta das 05h20min) não autori­ zaria uma conclusão afirmativa acerca da presença de fundadas suspeitas (CPP, art. 240, §2°) de modo 363.STF, 1aTurma, HC 81,305/GO, Rel. Min. limar Galvão, DJ 22/02/2002 p. 35.

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a validar a execução da busca pessoal sem prévia autorização judicial.364

No caso de busca pessoal em mulher, dispõe o art. 249 do CPP que a diligência deve ser feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência. Por outro lado, no tocante à busca pessoal em advogado, tem-se que, em regra, documentos em poder de advogado não poderão ser apreendidos (Lei n° 8.906/94, art. 7o, II), salvo em duas situações: a) quando o documento é o corpo de delito de crime (CPP, art. 243, § 2o); b) quando o advogado for partícipe ou coautor do crime, ele deixa de gozar das prerrogativas do profissional da advocacia, podendo ter documentos vinculados a tal delito apreendidos.

10.4.2.1. Revista íntima em presídios Um dos mais graves e complexos problemas que desafia a Administração Penitenciária nos dias de hoje diz respeito ao ingresso de objetos ilícitos nos estabelecimentos prisionais por intermédio das pessoas que visitam os presos. De modo a cor­ roborar essa afirmação, podemos citar, a título de exemplo, dados oficiais fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP), que apontaram que, entre os anos de 2012 e 2013, foram realizadas 3.407.926 visitas nas 159 unidades prisionais do Estado administradas pela SAP, oportunidade em que ocorreram 493 apreen­ sões de telefones celulares e 354 de entorpecentes com visitantes.365 Ante a gravidade do problema, discute-se acerca da possibilidade de realização de revista íntima em presídios, discussão esta que in­ teressa ao processo penal para fins de verificação da licitude (ou não) da apreensão de eventuais objetos ilícitos encontrados com o visitante. Sobre o tema, há, fundamentalmente, duas correntes: a) Vedação à realização de revista íntima em presídios: em razão de, em certas ocasiões, violar brutalmente o direito à intimidade, à inviolabilidade corporal e à convivência familiar entre visitante e preso, parte da doutrina sustenta que não é possível a realização de revista íntima em presídios, por ser ela vexatória e atentatória à dignidade da pessoa humana, a qual seria um valor básico ensejador dos direitos fundamentais. Invoca-se, ademais, a proibi­ ção constitucional de se submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5o, III,

infine). Essa verdadeira prática medieval também vem de encontro a diversos tratados internacionais de Direitos Humanos firmados pelo Brasil. A títu­ lo de exemplo, por ocasião do julgamento do caso Castro Castro vs. Peru, ocorrido em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que a revista da genitália feminina é considerada forma de violência contra a mulher e, por tal motivo, constitui forma de tortura. Com base nesses argumentos, o Conselho Nacional de Política Criminal e Peniten­ ciária (CNPCP) publicou a Resolução n. 5, de 28 de agosto de 2014, que recomenda, dentre outras providências, a “não utilização de práticas vexatórias para o controle de ingresso aos locais de privação de liberdade”. Consoante disposto em seu art. 2o, são vedadas quaisquer formas de revista vexatória, desumana ou degradante, assim consideradas: a) desnudamento parcial ou total; b) qualquer conduta que implique a introdução de objetos nas cavida­ des corporais da pessoa revistada; c) uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim; d) agachamentos ou saltos. De acordo com o CNPCP, a revista pessoal deve ser feita por meio de equipamentos eletrônicos e estão vedadas quaisquer formas de revista que atentem contra a integridade física e psicológica dos visitantes. Também merece ser lembrada a Lei n. 13.271/16, cujo art. Io dispõe que as empresas privadas, os órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, ficam proi­ bidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino.366 Portanto, havendo suspeita de transporte de drogas, e, de modo a se evitar a extrema invasividade no corpo da suspeita, podem ser realizadas medidas alternativas, tais como impedir sua entrada, acom­ panhar seus movimentos no interior do cárcere, li­ mitar o direito de visitação, mas jamais submetê-la ao constrangimento de uma revista íntima, sob pena de ilicitude das provas assim obtidas;

b) Possibilidade de realização de revista ín­ tima em estabelecimentos prisionais como me­ dida de ultima ratio (nossa posição): pelo menos em regra, a revista pessoal deve ser realizada por inspeção visual e por detector de metal ou outro equipamento próprio para detecção de materiais

torio/23/Documentos/2014_07_15_Dados_RevistaVexatoria_EstadodeSR

366. Quando aprovado pelo Congresso Nacional, o art. 3o da Lei n. 13.271/16 tinha a seguinte redação: "Nos casos previstos em lei, para revistas em ambientes prisionais e sob investigação policial, a revista será unicamente realizada por funcionários servidores femininos". Ocorre que este dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, nos seguintes termos:"A redação do dispositivo possibilitaria interpretação no sentido de ser permitida a revista íntima nos estabelecimentos prisionais. Além disso, permitiría interpretação de que quaisquer revistas seriam reali­ zadas unicamente por servidores femininos, tanto em pessoas do sexo

pdf Acesso em: 11/12/2019.

masculino, quanto feminino".

364. STJ, 6a Turma, AgRg no HC 530.167/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 02.03.2021.

365. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Reposi-

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ilícitos. Todavia, em caso de visitante suspeito de portar material ilícito ou de mulheres em período menstruai, admite-se a realização de revista íntima, a qual pode ser recusada pelo visitante, situação em que será ele proibido de ingressar no estabelecimen­ to prisional. Admite-se a realização de revista ínti­ ma com base em uma ponderação de interesses, já que existe uma necessidade de que seja controlada a entrada de produtos proibidos nos presídios - ar­ mas, bebidas, drogas, celulares, etc. -, de forma que, por questão de segurança pública e em nome da segurança prisional, estaria autorizada a medida, desde que, obviamente, fossem tomadas as cautelas devidas, tais como, por exemplo, a impossibilidade de se adotar qualquer procedimento invasivo, a rea­ lização de revista em mulheres por agentes públicos do sexo feminino em sala reservada, a vedação a qualquer forma de contato físico com a profissional responsável pela revista, etc. Cuida-se, tal procedi­ mento, quando realizado com estrita observância a procedimento legal e com respeito aos princípios e às garantias constitucionais, de legítimo exercício do poder de polícia do Estado, de cunho preventivo, o qual objetiva garantir a segurança social e os inte­ resses públicos, daí por que não há falar em ilicitude de eventuais objetos apreendidos com o visitante. Vejamos um caso concreto: uma mulher, já na sala de revista do presídio, aparentava grande nervosis­ mo, relatando às agentes penitenciárias que estava com um absorvente interno por estar menstruada; desconfiadas, as agentes solicitaram à visitante que retirasse o absorvente para que pudesse ingressar no presídio, oportunidade em que visualizaram a ponta de um preservativo no interior da cavidade vaginal, dentro do qual a droga - cerca de 143,7g de maconha - estava acondicionada. In casu, concluiu a 6a Turma do STJ que, embora a acusada tivesse o direito de se recusar a ser revistada intimamente, submeteu-se, de maneira voluntária e em sala re­ servada, ao procedimento adotado no presídio, daí por que não há falar em ilicitude da droga com ela apreendida, visto que não houve a prática de ato ofensivo a sua honra, tampouco dano à sua integri­ dade física ou moral.367*De todo modo, essa revista 367. STJ, 6a Turma, REsp 1.523.735/RS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 20/02/2018, DJe 26/02/2018. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que não viola o princípio da dignidade da pessoa humana a revista íntima realizada conforme as normas administrativas que disciplinam a atividade fiscalizatória, quando houver fundada suspeita de que o visitan­

íntima, verdadeira espécie de busca pessoal, sujeita, pois, ao disposto no art. 244 do CPP, só poderá ser levada a efeito pelo agente público quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de objetos ilícitos. Por isso, em caso concreto no qual uma mulher foi submetida à realização de revista íntima realizada com base, tão somente, em uma denúncia anônima feita ao presídio no dia dos fa­ tos informando que ela tentaria entrar no presídio com drogas, sem a realização de outras diligências prévias para apurar a veracidade e a plausibilidade dessa informação, a 6a Turma do STJ reconheceu a ilicitude da prova assim obtida. Na visão do referido colegiado, se não havia fundadas suspeitas para a realização de revista na acusada, não haveria como se admitir que a mera constatação de situação de flagrância, posterior à revista, justificasse a medida, sob pena de esvaziamento do direito constitucional à intimidade, à honra e à imagem do indivíduo.368

A controvérsia deverá ser dirimida em breve pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no jul­ gamento de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 959.620), com repercussão geral reconhecida (Tema 998). Conquanto o julgamento ainda não te­ nha sido concluído, o Relator, Min. Edson Fachin, manifestou-se no sentido de que as provas obtidas a partir de práticas vexatórias, como o desnudamen­ to de pessoas, agachamento e busca em cavidades íntimas, por exemplo, devem ser qualificadas como ilícitas, por violação à dignidade da pessoa huma­ na e aos direitos fundamentais à integridade, à in­ timidade e à honra. O Ministro observou que, de acordo com a Lei 10.792/2003, que alterou a LEP e o CPP, o controle de entrada nas prisões deve ser feito com o uso de equipamentos eletrônicos como detectores de metais, scanners corporais, raquetes e aparelhos de raios-X. A ausência desses equipamen­ tos não justificaria a revista íntima. Para o Minis­ tro, as revistas pessoais são legítimas para viabilizar a segurança e evitar a entrada de equipamentos e substâncias proibidas nas unidades prisionais. No entanto, é inaceitável que agentes estatais ordenem a retirada de roupas para revistar cavidades corpo­ rais, ainda que haja suspeita fundada. Portanto, a busca pessoal, sem práticas vexatórias ou invasivas, só deve ser realizada se, após o uso de equipamentos eletrônicos, ainda houver elementos concretos ou documentos que justifiquem a suspeita do porte de

te esteja transportando drogas ou outros itens proibidos para o interior do estabelecimento prisional. Nessa linha: STJ, 5a Turma, HC 460.234/SC,

Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 11/09/2018, DJe 20/09/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1.687.496/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 20/03/2018, DJe 27/03/2018; STJ, 6a Turma, AgRg no REsp 1.696.487/ RS, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 13/03/2018, DJe 26/03/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1.652.864/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, DJe 21/06/2017, STJ,

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5a Turma, HC 328.843/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJe 09/11/2015; STJ, 5a Turma, HC 238.973/SP, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 16/08/2012, DJe 05/09/2012. 368. STJ, 6aTurma, REsp 1.695.349/RS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 08/10/2019, DJe 14/10/2019.

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substâncias ou objetos ilícitos ou proibidos. Propôs, assim, com a manifestação farovável dos Ministros Roberto Barroso e Rosa Weber, a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “É inadmissível a prática vexatória da revista íntima em visitas sociais nos es­ tabelecimentos de segregação compulsória, vedados sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos e radioscópicos”. Divergindo do Rela­ tor, todavia, o Min. Alexandre de Moraes sugeriu a seguinte tese: “A revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, de­ vidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exames invasivos. O excesso ou abuso da realização da re­ vista íntima acarretarão responsabilidade do agen­ te público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a reali­ zação da visita”. Na sequência, o Min. Dias Toffoli pediu vista dos autos.

11. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E CAPTA­ ÇÃO AMBIENTAL DE SINAIS ELETROMAGNÉ­ TICOS, ÓPTICOS OU ACÚSTICOS 11.1. Interceptação telefônica

11.1.1. Sigilo da correspondência, das comu­ nicações telegráficas, de dados e das comuni­ cações telefônicas De acordo com o art. 5o, inciso XII, da Consti­ tuição Federal, “é inviolável o sigilo da correspon­ dência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual”.

Interpretação literal e apressada do dispositivo constitucional, notadamente em face da expressão “salvo, no último caso”, poderia levar à conclusão (equivocada) de que estaria autorizada pela Consti­ tuição Federal apenas a violação ao sigilo das comu­ nicações telefônicas. Logo, os demais sigilos encontrar-se-iam protegidos de forma absoluta, de modo que, em nenhuma hipótese, poderíam ser objeto de revelação do conteúdo, salvo com autorização das pessoas envolvidas diretamente na relação. Essa li­ nha de interpretação, todavia, vai de encontro ao

posicionamento doutrinário e jurisprudencial sedi­ mentado no direito pátrio e no direito alienígena de que os direitos fundamentais, por mais importantes que sejam, não são dotados de caráter absoluto. Na verdade, não há falar em direito fundamental abso­ luto. Todos os direitos fundamentais devem ser sub­ metidos a um juízo de ponderação quando entram em rota de colisão com outros direitos fundamen­ tais, preponderando aquele de maior relevância.369 Na dicção do Min. Celso de Mello, “não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou ga­ rantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exi­ gências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas in­ cidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem públi­ ca ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros”.370

Fossem os demais sigilos (de correspondência, das comunicações telegráficas e de dados) de natu­ reza absoluta, não teria o Supremo Tribunal Federal considerado válida a interceptação de correspon­ dência de presos: “A administração penitenciaria, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n° 7.210/84, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do si­ gilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de praticas ilícitas”.371 Na mesma linha, porém no tocante ao sigilo da correspondência: “Correspondência, para os fins tutelados pela Constituição da República (art. 5o, VII) é toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta, através da via postal ou telegráfica. 369. Vide capítulo pertinente ao princípio da proporcionalidade. 370. STF, Tribunal Pleno, MS 23.452/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, j.

16/09/1999, DJ 12/05/2000. 371. STF, 1a Turma, HC 70.814/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j.

01°/03/1994, DJ 24/06/1994.

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(Lei n° 6.538/78). A apreensão pelo Juiz compe­ tente, na agência dos Correios, de encomenda, na verdade tigre de pelúcia com cocaína, não atenta contra a Constituição da República, art. 5o, VII. Para os fins dos valores tutelados, encomenda não é correspondência”.372 Por fim, em relação ao sigilo de dados bancá­ rio e fiscal: “O entendimento desta Suprema Corte consolidou-se no sentido de não possuir caráter ab­ soluto a garantia dos sigilos bancário e fiscal, sendo facultado ao juiz decidir acerca da conveniência da sua quebra em caso de interesse público relevante e suspeita razoável de infração penal”.373

Evidentemente, para que seja decretada a que­ bra do sigilo de dados, sejam eles fiscais, bancários, telefônicos, etc., há necessidade, pelo menos em re­ gra, de decisão judicial devidamente fundamenta­ da, sob pena do reconhecimento da ilicitude dos elementos probatórios assim obtidos. De fato, se a regra é a inviolabilidade do sigilo das correspon­ dências, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (CF, art. 5o, XII), o que visa, em última análise, a resguardar também direito constitucional à intimidade (art. 5o, X), so­ mente se justifica a sua mitigação quando razões de interesse público, devidamente fundamentadas por ordem judicial, demonstrarem a conveniência de sua violação para fins de promover a investigação criminal ou instrução processual penal.374 Aliás, especificamente em relação à prova ob­ tida por meio de abertura de encomenda postada nos correios, é de todo relevante destacar que, por ocasião do julgamento de Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 1.116.949/ PR),375 o Plenário do STF concluiu que, além da re­ serva de jurisdição, é possível ao legislador definir as hipóteses fáticas em que a atuação das autoridades públicas não podem ser equiparáveis à violação do sigilo a fim de assegurar o funcionamento regular dos correios. Confira-se, a propósito, a Tese de Re­ percussão Geral fixada no tema n. 1.041: “Sem au­ torização judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta, telegra­ ma, pacote ou meio análogo”. A leitura da tese fixada pela Suprema Corte permite extrair a conclusão de que, sem embargo da “inviolabilidade do sigilo da correspondência” prevista no art. 5o, inciso XII, da 372. STJ, 5a Turma, RHC 10.537/RJ, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 13/03/2001, DJ 02/04/2001 p. 311. 373. STF, 2a Turma, Al 541.265 AgR/SC, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 04/10/05, DJ 04/11/05.

374. STF, 2aTurma, HC 96.056/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, 28/06/2011.

375. STF, Pleno, RE 1.116.949-PR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 18.08.2020.

Constituição Federal, não estamos diante de matéria sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. É possível, pois, que a própria lei defina as hipóteses fáticas em que autoridades públicas poderão ter acesso ao conteúdo de determinada encomenda, independen­ temente de prévia autorização judicial. A propósito, o atual regulamento dos Correios (Lei n. 6.538/78) prevê o seguinte: “Art. 10. Não constitui violação de sigilo de correspondência postal a abertura de carta: I - endereçada a homônimo, no mesmo en­ dereço; II - que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos; III - que apresente indícios de conter valor não declarado, objeto ou substância de expedição, uso ou entrega proibidos; IV - que deva ser inutilizada, na forma prevista em regulamento, em virtude de impossibilidade de sua entrega e restituição. Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário”.

11.1.2. Direito intertemporal e Lei n° 9.296/96 Durante anos, reivindicou-se no Brasil a regula­ mentação da interceptação telefônica, na medida em que o preceito do inciso XII do art. 5o da Constitui­ ção Federal não era considerado autoaplicável. De fato, a partir do momento em que a Constituição Fe­ deral facultara a quebra do sigilo das comunicações telefônicas “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (art. 5o, XII), tornara-se indispensável a existência de estatuto ju­ rídico específico para as interceptações telefônicas. Estávamos diante de uma reserva legal, aliás, re­ serva legal qualificada, porque o constituinte não só estabeleceu a necessidade de uma lei para se admitir a restrição ao sigilo das comunicações telefônicas, como também fixou algumas exigências mínimas (fins de investigação criminal ou instrução penal e ordem judicial). Assim é que, em 25 de julho de 1996, entrou em vigor a Lei n° 9.296/96.

Em relação ao art. 10 da Lei n° 9.296/96, novatio legis incriminadora que versa sobre o delito de realização de interceptação telefônica ou quebra de segredo da Justiça sem autorização judicial, dúvidas não restam quanto à aplicação do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa (CF, art. 5o, XL), estando o âmbito de incidência da novel figura delituosa limitado aos fatos ocorridos a partir de 25 de julho de 1996. À exceção do art. 10 da Lei n° 9.296/96, dispo­ sitivo de natureza penal, ao qual se aplica a regra de direito intertemporal do art. 5o, XL, da Cons­ tituição Federal, os demais dispositivos da Lei n°

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9.296/96 têm natureza genuinamente processual, não afetando o direito de liberdade do agente. Em relação a eles, incide o princípio da aplicação ime­ diata (tempus regit actum), nos exatos termos do art. 2o do CPP.

Logo, mesmo que o crime tivesse sido come­ tido antes de 25 de julho de 1996, seria possível a determinação da interceptação telefônica, seja no curso da investigação criminal, seja no curso da instrução processual penal, desde que a autoriza­ ção judicial fosse determinada após a vigência e nos exatos termos da Lei n° 9.296/96. Isso não significa dizer, todavia, que a Lei n° 9.296/96 teve o condão de convalidar ou legitimar interceptações telefônicas autorizadas em momento anterior à sua vigência.376 Apesar de a Constituição Federal de 1988 (art. 5o, XII) ter autorizado que a lei dispusesse sobre a interceptação telefônica para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, a lei espe­ cífica sobre o assunto só entrou em vigor quase 8 (oito) anos depois, em 25/07/96 (Lei n° 9.296/96). Durante esse período, e mesmo antes da vigência da Constituição Federal, foi usado como permissivo para interceptações telefônicas o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n° 4.117/62), cujo art. 57, inciso II, alínea “e”, previa que não constituiría vio­ lação de telecomunicação o conhecimento dado ao juiz competente, mediante requisição ou intimação deste.

Apesar do dispositivo do Código Brasileiro de Telecomunicações, sempre prevaleceu nos Tribunais Superiores o entendimento de que tal dispositivo não fora recepcionado pela Constituição Federal. Por força do art. 5o, XII, da Magna Carta, era neces­ sária a edição de lei específica para que, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecesse, pudesse o juiz autorizar a interceptação de comunicações telefôni­ cas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.377

Com efeito, em virtude do art. 5o, XII, da Cons­ tituição Federal, a interceptação das comunicações telefônicas só poderia ser determinada se presentes três requisitos: a) ordem judicial autorizadora; b) 376. No mesmo sentido: v. Damásio E. de Jesus, Interceptação de co­ municações telefônicas, RT 735, p. 458-473. 377. Como observa Luiz Flávio Gomes, "no que concerne especifica­ mente ao mencionado inciso XII, aliás, para além da pura legalidade, a doutrina nele vislumbra a exigência de uma "reserva legal qualificada" (qualifizierter Gesestzesvorberalt), isto é, não só era preciso uma lei para limitar o direito ao sigilo nas comunicações telefônicas, senão, sobretudo, fazia-se necessário sua estrita vinculação aos requisitos estabelecidos na constituição (finalidade, formas, hipóteses). Lei qualificada, portanto, é a que deve atender a uma série de exigências vinculantes (impostas por outra norma jurídica, normalmente de cunho constitucional)". (Legislação

criminal especial. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2009. p. 412).

finalidade de colheita de evidências para instruir investigação criminal ou processo penal; e c) exis­ tência de lei específica prevendo as hipóteses em que a quebra será permitida. À exceção do primeiro requisito, que se refere à necessidade de autorização judicial, os demais não estavam presentes enquan­ to não editada a Lei n° 9.296/96, faltando, assim, a disciplina da duração das interceptações, da reali­ zação da gravação, da introdução do seu resultado como meio de prova, da documentação e registro das operações, da comunicação ao juiz competente, do processamento do contraditório, da possibilidade de impugnação da autenticidade da conversa, da identidade da voz, etc. Logo, se o art. 57, inciso II, alínea “e”, da Lei n° 4.117/62 foi tido como não recepcionado pela Constituição Federal, todo e qualquer elemen­ to probatório colhido com base em interceptação telefônica judicialmente autorizada em momento anterior à vigência da Lei n° 9.296/96 foi conside­ rado como prova ilícita, assim como as provas dele decorrentes (teoria dos frutos da árvore envenena­ da), in verbis: “O art. 5o, XII, da Constituição, que prevê, excepcionalmente, a violação do sigilo das comunicações telefônicas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, não é autoaplicável: exige lei que estabeleça as hipóteses e a forma que permitam a autorização judicial. Prece­ dentes. a) Enquanto a referida lei não for editada pelo Congresso Nacional, é considerada prova ilícita a obtida mediante quebra do sigilo das comunica­ ções telefônicas, mesmo quando haja ordem judicial (CF, art. 5o, LVI). b) O art. 57, II, a, do Código Bra­ sileiro de Telecomunicações não foi recepcionado pela atual Constituição (art. 5o, XII), a qual exige numerus clausus para a definição das hipóteses e formas pelas quais é legítima a violação do sigilo das comunicações telefônicas”.378

11.1.3. Conceito de interceptação De acordo com o dicionário Houaiss da língua portuguesa, interceptar significa interromper o cur­ so de, fazer parar, deter, captar ou apreender aquilo que é dirigido a outrem.379 Sob o ponto de vista da Lei n° 9.296/96, in­ terceptar uma comunicação telefônica não quer 378. STF, Tribunal Pleno, HC 72.588/PB, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 12/06/1996, DJ 04/08/00. No mesmo sentido: STF, Tribunal Pleno, HC 69.912/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 16/12/1993, DJ 25/03/1994; STF, 2a Turma, HC 74.116/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05/11/1996,

DJ 14/03/1997; STF, 2a Turma, HC 81.494/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05/03/02, DJ12/04/02; STJ, 5a Turma, REsp 225.450/RJ, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/02/2000, DJ 08/03/2000, p. 145. 379. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1096.

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dizer interrompê-la, impedi-la, detê-la ou cortá-la. A expressão deve ser compreendida como o ato de captar a comunicação telefônica alheia, tendo conhecimento do conteúdo de tal comunicação. É da essência da interceptação a participação de um terceiro, que passa a ter ciência do conteúdo de uma comunicação telefônica alheia.

É nesse sentido, entre outros, a lição de Suxberger e Souza,382 para quem ‘ a escuta ambiental seria aplicá­ vel o regime geral constitucional decorrente do art. 5o, X,383 da CF, que dispõe sobre o direito fundamen­ tal à intimidade, norma matricial que deve orientar a análise da licitude ou ilicitude das interceptações ambientais (sons e imagens)”;

Como destaca Avolio, “a gravação da conversa interceptada não é, necessariamente, elemento inte­ grante do conceito de interceptação. A simples es­ cuta, desacompanhada de gravação, pode ser objeto de prova no processo penal, desde que não configure violação à intimidade”.380 Deveras, como deixa en­ trever o próprio art. 6o, § Io, da Lei n° 9.296/96, a gravação da comunicação interceptada nem sempre será possível, o que, no entanto, não funciona como óbice à realização da diligência.

c) Interceptação telefônica (ou interceptação em sentido estrito): consiste na captação da co­ municação telefônica alheia por um terceiro, sem o conhecimento de nenhum dos comunicadores;

Inicialmente, é importante firmarmos alguns conceitos: a) Comunicação telefônica: abrange não apenas a conversa por telefone, mas também a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou infor­ mações de qualquer natureza, por meio de telefo­ nia, estática, ou móvel (celular). Por conseguinte, é possível a interceptação de qualquer comunicação via telefone, conjugada ou não com a informática, o que compreende aquelas realizadas direta (fax, modens) e indiretamente (internet, e-mail, cor­ reios eletrônicos). Daí dispor o caput do art. Io da Lei n° 9.296/96 ser possível a interceptação de comunicações telefônicas de qualquer natureza, acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que o disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de infor­ mática e telemática;

b) Comunicação ambiental: refere-se às comu­ nicações realizadas diretamente no meio ambiente, sem transmissão e recepção por meios físicos, arti­ ficiais, como fios elétricos, cabos óticos etc. Enfim, trata-se de conversa mantida entre duas ou mais pessoas sem a utilização do telefone, em qualquer recinto, privado ou público. Como essa espécie de comunicação não envolve a utilização de telefone, isso acarreta o deslocamento da análise desse ins­ tituto para regime jurídico constitucional diverso daquele aplicável às interceptações telefônicas, que são regidos, como se sabe, pelo art. 5o, XII, da CF.381*

d) Escuta telefônica: é a captação da comuni­ cação telefônica por terceiro, com o conhecimento de um dos comunicadores e desconhecimento do outro. É o que ocorre, por exemplo, na hipótese em que familiares da pessoa sequestrada, ou a vítima de estelionato, ou ainda aquele que sofre intromis­ sões ilícitas e anônimas, através do telefone, em sua vida privada, autoriza que um terceiro leve adiante a interceptação telefônica;384 e) Gravação telefônica clandestina: é a grava­ ção da comunicação telefônica por um dos comuni­ cadores, ou seja, trata-se de uma autogravação (ou e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou

instrução processual penal". 382. Projeto de Lei Anticrime. Coordenadores: Antônio Henrique Graciano Suxberger, Renee do Ó Souza, Rogério Sanches. Salvador: Editora

Juspodivm, 2019. p. 93.

383. Constituição Federal:"Art. 5o. (...) X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

384. Quando se tratar de crime cometido contra incapazes, como, por

exemplo, estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), é perfeitamente possível que a gravação das comunicações telefônicas seja feita com o consenti­ mento do genitor da vítima, em seu terminal telefônico, ainda que, para

tanto, seja necessário o auxílio de detetive particular para a captação das conversas. Nesses casos, a gravação da conversa não configura prova ilícita, visto que não ocorre, a rigor, uma interceptação da comunicação por terceiro, mas mera gravação, com auxílio técnico de terceiro, pelo proprietário do terminal telefônico, objetivando a proteção da liberdade sexual de absolutamente incapaz, seu filho, na perspectiva do poder fami­ liar, vale dizer, do poder-dever de que são investidos os pais em relação aos filhos menores, de proteção e vigilância. Na verdade, a hipótese se assemelha à gravação de conversa telefônica feita com a autorização de um dos interlocutores, sem ciência do outro, quando há cometimento de crime por este último, situação já reconhecida como válida pelos Tribunais Superiores. Com esse entendimento: STJ, 6a Turma, REsp 1,026.605/ES, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 13/5/2014. Para a 5a Turma do STJ (REsp 1,630.097/RJ, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 18/04/2017, DJe 28/04/2017), sem consentimento do acusado ou prévia autorização judicial, é ilícita a prova, colhida de forma coercitiva pela polícia, de conversa travada pelo investigado com terceira pessoa em telefone celular, por meio do recurso "viva-voz", que conduziu ao flagrante do crime de tráfico ilícito de entorpecentes no interior de sua residência. In casu, embora nada de ilícito houvesse sido encontrado em poder do acusado, a prova da traficância fora obtida em flagrante violação ao direito constitucional à não autoincriminação, uma vez que aquele foi compelido a reproduzir,

contra si, conversa travada com terceira pessoa pelo sistema viva-voz

380. Op. cit. p. 93. 381. Constituição Federal: "Art. 5o. (...) XII - É inviolável o sigilo da cor­ respondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunica­ ções telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses

do celular, que conduziu os policiais à sua residência e culminou com a arrecadação de todo material estupefaciente em questão. Desse modo, estar-se-ia diante de situação onde a prova está contaminada, diante do disposto na essência da teoria dos frutos da árvore envenenada.

TÍTULO 6 • PROVAS

gravação da própria comunicação). Normalmente é feita sem o conhecimento do outro comunicador, daí falar-se em gravação clandestina;

Parte da doutrina considera que o art. Io da Lei n° 9.296/96 abrange tanto a interceptação telefônica em sentido estrito quanto a escuta telefônica.385 Isso porque ambas consistem em processos de captação da comunicação alheia. Não estão abrangidas pelo regime jurídico do referido dispositivo, por conse­ quência, a gravação telefônica, a interceptação am­ biental, a escuta ambiental e a gravação ambiental. Ao tratar da interceptação telefônica, admitindo-a, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que fosse estabelecida em lei, para fins de investigação criminal e instrução processual penal (art. 5o, XII, parte final), a Constituição Federal refere-se à in­ terceptação feita por terceiro, sem conhecimento dos dois interlocutores ou com conhecimento de um deles. Não fica incluída a gravação de conversa por terceiro ou por um dos interlocutores, à qual se aplica a regra genérica de proteção à intimidade e à vida privada do art. 5o, X, da Carta Magna. A Lei n° 9.296/96 não abarca, portanto, a gra­ vação de conversa telefônica por um interlocutor sem o conhecimento do outro. Fica esta hipótese fora do regime da lei, sendo considerada válida a gravação como prova quando houver justa causa, como ocorre em casos de sequestro. Nada impede que o juiz autorize a escuta, se vir a ser feito reque­ rimento nesse sentido. Mas não é necessária a auto­ rização judicial, pois se houver a gravação sem ela, mas estiver fundada em justa causa, a prova pode ser utilizada. Prevalece, então, o entendimento de que as gravações telefônicas não estão amparadas pelo art. 5o, XII, da constituição Federal, devendo ser consideradas meios lícitos de prova, mesmo que realizadas sem ordem judicial prévia, pelo menos em regra.386

Independentemente da posição doutrinária a ser adotada, certo é que a realização de escuta telefônica poderá ser determinada pela autoridade judiciária sempre que houver justa causa, por força do princípio da proporcionalidade, como se dá nos casos de gravações efetuadas pela polícia de conver­ sas entre sequestradores e familiares da vítima, com prévia autorização destes.387* 385. Nesse sentido: JESUS, Damásio de. Interceptação de comunicações telefônicas, RT 735, p. 458-473. 386. Nessa linha: STF, Ia Turma, HC 80.949/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/10/2001, DJ 14/12/2001.

387. Veja-se a posição do Supremo: "Utilização de gravação de con­ versa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos interlo­ cutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização,

Quanto à natureza jurídica da interceptação telefônica em sentido estrito, deve se entender que as comunicações telefônicas, de per si, são fontes de prova, pois é delas que se extrai a comprovação de uma infração penal ou do envolvimento de um agente com um crime. A interceptação telefônica, por sua vez, funciona como meio de obtenção de prova, mais especificamente como medida cautelar processual, de natureza coativa real, consubstan­ ciada em uma apreensão imprópria, no sentido de por ela se apreenderem os elementos fonéticos que formam a conversação telefônica. De seu turno, a gravação da interceptação das comunicações tele­ fônicas é o resultado da operação técnica e, por­ tanto, a materialização da fonte de prova. Por fim, a transcrição das gravações funciona como o meio de prova, que será juntado aos autos para que possa ser valorado pelo magistrado.388

Como conclui Gomes, a finalidade da intercep­ tação telefônica é a obtenção de uma prova, que se materializa num documento (auto circunstanciado, transcrição) ou num depoimento (prova testemu­ nhai). É um desses meios probatórios que irá fi­ xar os fatos no processo, de tal modo a legitimar a decisão judicial, seja frente às partes, seja frente à universalidade das pessoas.389

11.1.4. Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais) A gravação clandestina, assim compreendida como aquela feita pelo próprio interlocutor, sem o conhecimento do outro, pode se dar através do re­ gistro da conversa telefônica (gravação telefônica) ou da conversa entre presentes (gravação ambien­ tal). Considerando-se a o novel §4° do art. 8o-A da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, que passou a prever que a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimen­ to da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação, optamos por tratar do assunto mais adiante, especificamente excludente da antijuridicidade. - Afastada a ilicitude de tal conduta - a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando crime -, é ela, por via de consequência, lícita e, também consequentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o artigo 5o, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da in­ timidade (art. 5o, X, da Carta Magna)". (STF, 1a Turma, HC 74.678/SP, Rei. Min. Moreira Alves, j. 10/06/1997, DJ 15/08/1997).

388. Nessa linha: GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades no processo pe­ nal. 11a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2009. p. 165. 389. Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tri­ bunais, 2009. p. 436.

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no tópico atinente à interceptação ambiental - item 11.2.7. “Gravações clandestinas (telefônicas e am­ bientais) e (im) possibilidade de utilização exclusi­ vamente em favor da defesa quando demonstrada a integridade da gravação” -, para onde remetemos o leitor.

cuida da comunicação (transmissão, manipulação) de dados, sinais, imagens, escritos e informações por meio do uso combinado da informática (do com­ putador) com as várias formas de telecomunicação, ou seja, telemática é a telecomunicação associada à informática.

11.1.5. Comunicações telefônicas de qualquer natureza

Em sentido diverso, Vicente Greco Filho en­ tende que o parágrafo único do art. Io da Lei n° 9.296/96 é inconstitucional, já que a Carta Magna somente autoriza a interceptação de comunicação telefônica, na qual não está incluída a transmissão de dados. De acordo com o autor, “a garantia consti­ tucional do sigilo é a regra e a interceptação a exce­ ção, de forma que a interpretação deve ser restritiva quanto a esta (exceptiora non sunt ampliandaf’.392

O objeto da Lei n° 9.296/96 é a interceptação das comunicações telefônicas de qualquer natureza (art. Io). Mas o que se deve por isso entender?

Num passado não muito distante, quando se falava em comunicações telefônicas, pensava-se apenas em uma conversa por telefone - perce­ ba-se que o próprio Código Brasileiro de Teleco­ municações (Lei n° 4.117/62, art. 4o) define como “telefonia o processo de telecomunicação destina­ do à transmissão da palavra falada ou de sons”. Considerando o fantástico desenvolvimento da informática na atualidade, a expressão não deve se restringir às comunicações por telefone. Por for­ ça de interpretação progressiva,390 deve também abranger a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio de telefonia, estática, ou móvel (celular).391 Por con­ seguinte, é possível a interceptação de qualquer comunicação via telefone, conjugada ou não com a informática, o que compreende aquelas realiza­ das direta (fax, modens) e indiretamente (internet, e-mail, correios eletrônicos).

Daí dispor o caput do art. Io da Lei n° 9.296/96 ser possível a interceptação de comunicações te­ lefônicas de qualquer natureza, acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que o disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de co­ municações em sistemas de informática e telemática. Por telemática compreende-se a ciência que 390. Como destaca José Cichocki Neto (Princípios informativos da

interpretação progressiva das leis, em Revista de Direito Civil, RT, n° 54, p. 101), citado por Gomes (op. cit. p. 422), "enquanto a norma jurídica inte­ grando-se ao ordenamento permanece com sua descrição inicial, os fatos sociais dinamizam-se perenemente em amplitude, espécie e número; o que importa, numa lei, em última análise, não é a voluntas legislatoris, senão a voluntas legis; o legislador, aliás, criando leis para viger no futuro,

tem necessariamente em conta a variação futura dos fatos e, por isso, na medida do possível, sopesa-os e seleciona-os, para serem abarcados pela lei, segundo sua vontade. De certa maneira, portanto, não é frustrada sua vontade com a atualização da ratio legis ou de sua consideração objetiva; a interpretação praeter legem, assim, é perfeitamente possível".

391. Referido conceito assemelha-se ao conceito de telecomunicação, constante do art. 60, § Io, da Lei n° 9.472/97, que regula a organização dos serviços de telecomunicações: "Telecomunicação é a transmissão, emis­ são ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza".

Com a devida vênia, a nosso juízo, quando a Constituição Federal autoriza a interceptação das comunicações telefônicas, refere-se não só as co­ municações telefônicas propriamente ditas como também à comunicação de dados, imagens e sinais através da telemática. Não se pode ficar alheio aos avanços tecnológico-culturais, ampliando as formas de comunicações, privando os órgãos da persecução penal de um importante instrumento de investiga­ ção e busca da verdade. Logo, a nosso ver, a Lei n° 9.296/96 tem seu campo de incidência sobre qualquer forma de comunicação, seja telefônica ou não; versa não apenas sobre conversação telefônica, como também qualquer tipo de comunicação tele­ mática (por telefone ou por via independente, sem uso da telefonia).393 Esclarecedora, nesse sentido, a lição de Damá­ sio de Jesus: “Inclino-me pela constitucionalidade do referido parágrafo único. A Carta Magna, quando excepciona o princípio do sigilo na hipótese de co­ municações telefônicas, não cometería o descuido de permitir a interceptação somente no caso de conver­ sação verbal por esse meio, isto é, quando usados dois aparelhos telefônicos, proibindo-a, quando pretendi­ da com finalidade de investigação criminal e prova em processo penal, nas hipóteses mais modernas. A exceção, quando menciona comunicações telefôni­ cas’, estende-se a qualquer forma de comunicação que empregue a via telefônica como meio, ainda que haja transferência de ‘dados’. É o caso do uso do modem. Se assim não fosse, bastaria, para burlar a permissão 392. Op. cit. p. 17. Em sentido semelhante: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 126. E também: AVOLIO. Op. cit. p. 168; GRINOVER,

Ada Pellegrini etalii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 171. 393. A constitucionalidade do parágrafo único do art. Io da Lei n° 9.296/96 foi objeto da ADI n° 1.488, que teve o pedido de medida cau­ telar indeferido e, posteriormente, foi extinta por falta de legitimidade ativa do requerente.

TÍTULO 6 • PROVAS

constitucional, “digitar” e não “falar”. [...] A circuns­ tância de a CF expressamente só abrir exceção no caso da comunicação telefônica não significa que o legislador ordinário não possa permitir a intercep­ tação na hipótese de transmissão de dados. Não há garantias constitucionais absolutas”.394

Os Tribunais têm considerado válida a inter­ ceptação das comunicações telemáticas.395 Aliás, especificamente quanto às conversas realizadas em “sala de bate papo” da internet, o STJ tem consi­ derado que não há falar em proteção do sigilo das comunicações, já que o ambiente virtual é de acesso irrestrito e destinado a conversas informais.396

Especial atenção também deve ser dispensada ao denominado e-mail corporativo, assim com­ preendida a comunicação eletrônica disponibilizada ao empregado para fins estritamente profissionais, podendo o empregador monitorar e rastrear a ati­ vidade do empregado no ambiente de trabalho, daí por que não se pode considerar ilícita a prova assim obtida. Nesses casos, não há expectativa de priva­ cidade do usuário, mormente quando advertido de que o e-mail se destina a mensagens profissionais. Nessa linha, como já se pronunciou o Tribu­ nal Superior do Trabalho, “se se cuida de e-mail corporativo, declaradamente destinado somente para assuntos e matérias afetas ao serviço, o que está em jogo, antes de tudo, é o exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computa­ dor capaz de acessar a Internet e sobre o próprio provedor”. Concluiu-se, assim, que a prova obtida mediante monitoramento desse e-mail corporativo não é ilícita para fins de se demonstrar a justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho.397

Por fim, é de todo importante não confundir o conceito de comunicações em sistemas de informá­ tica e telemática, cuja interceptação está sujeita aos ditames da Lei n. 9.296/96, com o acesso aos dados já armazenados em algum dispositivo eletrônico, prática relativamente comum quando ordenada uma busca domiciliar. Como já se pronunciou a 6a Tur­ ma do STJ, “(...) A cláusula absoluta de reserva de jurisdição se limita à comunicação dos dados - que deve ser compreendida como informações dinâmi­ cas -, e não aos dados em si - considerados como 394. JESUS, Damásio de. Interceptação de comunicações telefônicas: notas à Lei n° 9.296/96. RT, 735/458.

395. STJ, 6a Turma, HC 101.165/PR, Rel. Min. Jane Silva, j. 01/04/2008, DJe 22/04/2008.

396. STJ, 6a Turma, RHC 18.116/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 16/02/2006, DJ 06/03/2006 p. 443. 397. TST, RR 613/2000-013-10-00, 1a T. DJ 10/06/2005.

informações estáticas -, que possuem proteção distinta, conforme entendimento jurisprudencial. Isso significa que a existência de sigilo não deve ser confundida com cláusula de reserva de jurisdição. Na hipótese de o equipamento (computador, pen drive, HD externo, etc.) haver sido apreendido em busca e apreensão domiciliar, o próprio mandado judicial pode facultar o acesso às informações que nele constem. Por isso, não há óbice para que a au­ toridade policial ou o Ministério Público solicite, em sua representação pela autorização de busca e apreensão, que seja deferido o acesso aos dados estáticos contidos no material coletado. As Leis n. 12.965/14 e 9.296/96 possuem dispositivos legais que objetivam tutelar o fluxo das comunicações em sistemas de informática e telemática, isto é, prote­ ger a fluência da comunicação em andamento, di­ versamente do que ocorre quando são recolhidos aparelhos informáticos em decorrência de busca e apreensão domiciliar, nos quais os dados são está­ ticos. Em virtude disso, é incorreta a avaliação dos requisitos necessários para a interceptação do fluxo de comunicações, a fim de aferir a possibilidade de acesso às informações estáticas que estão armazena­ das em aparelhos recolhidos em busca e apreensão domiciliar”.398*

11.1.5.1. Gerações de provas (trilogia Olmstead-Katz-Kyllo) e (des) necessidade de auto­ rização judicial para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares apreendidos A classificação das provas em gerações - pri­ meira, segunda e terceira - tem sua origem em 3 (três) precedentes da Suprema Corte Norte Ameri­ cana - Olmstead (1928), Katz (1967) e Kyllo (2001) -, e está diretamente relacionada à necessidade (ou não) de prévia autorização judicial (cláusula de re­ serva de jurisdição) para a execução de certos pro­ cedimentos investigatórios invasivos, notadamente à vida privada e ao direito à intimidade. 398. STJ, 6a Turma, HC 444.024/PR, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 02.04.2019, DJe 02.08.2019. Com entendimento semelhante:"(...) A Lei do Marco Civil da Internet aplica-se às relações privadas, e o art. 10 desse estatuto tem previsão ampla da necessidade de tutela da privacidade de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas. Além disso,

ao tratar do acesso judicial, somente exige limitação temporal no acesso aos registros de "aplicações de internet", termo legal usado para definir "o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet" (art. 5o, VII). Apesar de o artigo 22, III, da Lei n. 12.965/2014 determinar que a requisição judicial de registro deve conter o período ao qual se referem, tal quesito só é necessário para o fluxo de comunicações, sendo inaplicável nos casos de dados já armazenados que devem ser obtidos para fins de investigações criminais". (STJ, 6a Turma, HC 587.732/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 20.10.2020, DJe

26.10.2020).

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11.1.5.1.1. Direito probatório de 1a geração: o caso Olmstead

telefônica. Tinha, pois, legítima expectativa de pro­ teção ao direito à intimidade.

No caso concreto apreciado pela Suprema Corte Norte-Americana em 1928, a polícia teria instalado um equipamento para interceptação de comunicações telefônicas, sem prévia autorização judicial, fazendo-o diretamente na fiação da em­ presa telefônica, é dizer, em via pública. Como não houve a realização de qualquer tipo de busca no interior da casa de Olmstead, concluiu-se que não teria havido violação ao direito à intimidade. Cha­ mada a analisar a (i) licitude dessa prova, porquanto realizada sem prévia autorização judicial, a referida Corte concluiu que não teria havido a penetração em qualquer propriedade do acusado.

Operou-se, assim, uma migração da teoria pro­ prietária (Olmstead) para a teoria da proteção cons­ titucional integral (Katz), que amplia o âmbito de proteção constitucional de coisas, lugares e pertences para pessoas e suas expectativas de privacidade.400

Restou cunhada, assim, a teoria proprietária (trespass theory). Na dicção de Danilo Knijnik, “a pro­ teção constitucional estender-se-ia apenas para áreas tangíveis e demarcáveis, exigindo a entrada, o ingres­ so e a violação de um espaço privado ou particular, o que, na espécie, efetivamente não havia ocorrido, dado que nenhuma propriedade de Olmstead fora de­ vassada pela autoridade. Neste primeiro momento da trilogia, surge, pois, uma interpretação constitucional protetiva de coisas, objetos e lugares”.399

11.1.5.1.2. Direito probatório de 2a geração: o caso Katz No precedente Katz v. United States (1967), a Suprema Corte norte-americana alterou seu enten­ dimento acerca da matéria, concluindo que a pro­ teção conferida à vida privada teria o condão de abranger não apenas a busca de itens tangíveis, mas também a gravação de declarações orais.

No caso concreto, a prova dos crimes fora obtida a partir da instalação de um dispositivo de gravação externamente a uma cabine de telefone público, posteriormente utilizado pelo investigado. Partindo-se da premissa de que a cabine telefônica era pública, entendeu-se, à luz do precedente Olms­ tead, que não teria havido invasão ou ingresso em propriedade privada, o que tornaria lícita a prova, independentemente de prévia autorização judicial.

Todavia, para a Suprema Corte norte-ameri­ cana, por mais que o indivíduo estivesse em uma cabine de vidro usando um telefone público, teria sim direito à proteção à intimidade a partir do exato momento em que fechou a porta atrás de si e pa­ gou o valor que lhe permitiría realizar a chamada

11.1.5.1.3. Direito probatório de 3a geração: o caso Kyllo Já no ano de 2001, a Suprema Corte dos Esta­ dos Unidos fixou o entendimento de que o avanço da tecnologia sobre a materialidade das coisas não pode limitar o escopo e a abrangência da proteção constitucional outorgada à intimidade das pessoas. O caso concreto dizia respeito a um agente de polícia que desconfiava que Danny Kyllo cultivava maconha no interior de sua residência. Apesar da desconfiança, os elementos de informação até então existentes eram frágeis para que se pudesse obter um mandado judicial. Sabedores de que o cultivo de maconha demanda a utilização de lâmpadas de alta intensidade, surgiu, então, a ideia, por parte dos policiais, de utilizar um equipamento de captação térmica para que se pudesse monitorar, da via pú­ blica, emanações de calor do interior da residência de Kyllo. Com base na utilização desse equipamento, as autoridades policiais conseguiram, então, obter as evidências necessárias para a expedição de um mandado de busca, do qual resultou a apreensão de inúmeras plantas de cannabis sativa L.

Sob a ótica do case Katz, poder-se-ia concluir que a prova seria lícita, ainda que não precedida de autorização judicial. A uma porque não teria havido a invasão do interior da residência. A duas porque Kyllo não havia manifestado qualquer pretensão de privacidade, já que nada fizera para impedir a emissão do calor.

Deixando de lado o precedente Katz, todavia, a Suprema Corte norte-americana concluiu que os avanços tecnológicos sobre a materialidade das coi­ sas não podem limitar o âmbito de proteção da vida privada e do direito à intimidade. Em outras palavras, não se pode equiparar a utilização de câmeras termográficas à observação de uma residência a olho nu. Se o Governo utiliza um dispositivo que não é de uso público geral para explorar os detalhes de uma casa que antes seriam desconhecidos sem intrusão física, esta atividade deveria ser compreendida como uma busca desarrazoada se acaso não precedida de um

399. Temas de Direito Penal, Criminologia e Processo Penal. A trilogia Olmstead-Katz-Kyllo: o art. 5o da Constituição Federal do século XXI. Porto

Alegre: Livraria do Advogado editora, 2015. p. 180. 712 j

400. Nesse contexto: KNIJNIK. Op. cit. p. 182

TÍTULO 6 • PROVAS

mandado judicial. Por conseguinte, na eventualidade de a autoridade policial pretender utilizar determina­ da tecnologia ainda não disseminada no uso geral do público, deveria obter prévia autorização judicial, sob pena de manifesta ilicitude das provas assim obtidas. É nesse cenário que se inserem as chamadas provas de terceira geração, ou um direito probatório de terceira geração, que devem ser compreendidas como “provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem al­ cançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais”.401

11.1.5.1.4. (Des) necessidade de autorização judicial prévia para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares apreendidos Essa necessidade de reinterpretar certas ga­ rantias à invasão da tecnologia no setor da prova consolidada pelo direito probatório de terceira ge­ ração - precedente Kyllo - também deve ser objeto de análise quando se discute a possibilidade de a polícia ter acesso a dados e conversas registradas em celulares apreendidos pela polícia. A 2a Turma do STF tem um precedente antigo abordando um caso concreto em que os policiais, logo após a prisão em flagrante, efetuaram a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos com o flagranteado. Sob o ar­ gumento de que não teria havido a interceptação das comunicações telefônicas, mas simples acesso a registros telefônicos - chamadas recebidas e efe­ tuadas -, que não gozam da proteção do art. 5o, XII, da Constituição Federal, concluiu-se pela validade das provas. Afinal, ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade poli­ cial teria agido em estrita observância ao art. 6o do CPP no sentido de colher elementos de informação quanto à autoria e materialidade.402403 Este precedente da 2a Turma do STF diz res­ peito a um caso concreto ocorrido em novembro de 2004. Mas por que se revela importante citarmos a data dos fatos? Ora, porque, à época, os telefo­ nes celulares sabidamente não estavam conectados à internet de banda larga. É de se concluir, então, que o acesso que os policiais teriam àquela época necessariamente seria bem menos intrusivo que o seria nos dias de hoje. É exatamente este o motivo 401. KNIJNIK. Op. cit. p. 179.

para o distinguishing*03 entre o HC 91.867 do STF e a recente decisão da 6a Turma do STJ no RHC 51.531, objeto de análise na sequência. Atualmente, os telefones celulares, em sua maioria, encontram-se conectados à internet de banda larga - os chamados smartphones e geral­ mente são dotados de aplicativos de comunicação em tempo real. Isso significa dizer que o acesso a um aparelho de telefonia celular de pessoa presa permite, pelo menos em tese, que a autoridade po­ licial tenha acesso a inúmeros aplicativos de comu­ nicação em tempo real, tais como Whatsapp, Viber, Line, Wechat, Telegram, BBM, Snapchat, etc., todos eles dotados das mesmas funcionalidades de envio e recebimento de mensagens, fotos, vídeos e docu­ mentos em tempo real. Por mais que as conversas mantidas por meio desses aplicativos fiquem regis­ tradas no aparelho celular, não se pode negar que es­ tamos diante de verdadeira espécie de comunicação escrita, imediata, entre duas ou mais pessoas. Logo, se há necessidade de prévia autorização judicial para a quebra do sigilo do correio eletrônico,404 idêntico raciocínio deve ser aplicado para fins de devassa das conversas mantidas por meio do whatsapp, nos termos do art. 5o, XII, da Constituição Federal, e do art. Io, parágrafo único, da Lei n° 9.296/96, pouco importando o fato de o celular do indivíduo ter sido apreendido por ocasião de eventual prisão em fla­ grante (preventiva ou temporária). Referindo-se expressamente às provas de ter­ ceira geração (voto-vista do Min. Rogério Schietti Cruz), a 6a Turma do STJ concluiu que, sem prévia autorização judicial, são nulas as provas obtidas pela polícia por meio da extração de dados e de conver­ sas registradas no whatsapp presentes no celular do suposto autor de fato delituoso, ainda que o aparelho tenha sido apreendido no momento da prisão em flagrante. Para a 6a Turma do STJ, o precedente do HC 91.867 da 2a Turma do STF não é mais adequa­ do para analisar a vulnerabilidade da intimidade dos cidadãos na hipótese de apreensão de um apa­ relho celular em uma prisão em flagrante. Afinal, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação por voz à longa distância, permitindo, 403. Fala-se em distinguishing quando houver distinção entre o caso concreto e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproxi­ mação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. Nesse sentido: Dl Dl ER JR„ Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2.10a ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 491.

402. STF, 2a Turma, HC 91.867/PA, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 24/04/2012, DJe 185 19/09/2012. Na mesma linha: STJ, 5a Turma, HC

404. No sentido de que a quebra do sigilo do correio eletrônico pres­ supõe prévia autorização judicial: STJ, 6aTurma, HC 315.220/RS, Rei. Min.

66.368/PA, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 29/06/2007 p. 673.

Maria Thereza de Assis Moura, j. 15/09/2015, DJe 09/10/2015.

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diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo a verificação de correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional. Desse modo, sem prévia autorização judicial, é ilí­ cita a devassa de dados e de conversas de whatsapp realizada pela polícia em celular apreendido.405 A autorização judicial revela-se indispensável não apenas para que as autoridades policiais possam ler as mensagens constantes de aparelhos celulares apreendidos, mas também para, eventualmente, atender ao telefone móvel da pessoa sob investiga­ ção e travar conversa com qualquer interlocutor que seja se passando por seu titular. Vejamos outro caso concreto: no momento da abordagem ao veículo em que estava o acusado, o telefone deste foi aten­ dido pelo policial, sem autorização para tanto, e se passou por ele para fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante. Esse mesmo policial também obteve acesso, novamente sem autorização pessoal nem judicial, aos dados do aparelho, lendo mensa­ gens que não lhe eram dirigidas. Para a 6a Turma do STJ, embora tal conduta não se encaixe perfeitamente no conceito de interceptação telefônica, revela verdadeira invasão de privacidade e quebra do sigilo das comunicações telefônicas, haja vista a ausência de autorização judicial e do titular da linha, do que deriva a ilicitude da prova assim obtida.406

Se o paradigma, a partir da decisão proferida no RHC 51.531/RO, é a necessidade de autorização judicial prévia para a devasssa nos dados constantes de aparelho celular apreendido, como mensagens de texto e conversas por meio de aplicativos, mesmo em se tratando de prisão em flagrante, há julgados subsequentes do próprio STJ apontando substancial distinção (distinguishing) entre os fundamentos que determinaram a formulação da referida tese jurí­ dica e as seguintes hipóteses, seja porque não há 405. STJ, 6a Turma, RHC 51.531/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 19/04/2016, DJe 09/05/2016. No sentido de que, por ocasião da prisão em flagrante, ainda que seja dispensável ordem judicial para a apreensão de telefone celular, as mensagens armazenadas no referido aparelho

estão protegidas pelo sigilo telefônico, daí por que incumbe à autoridade policial, logo após sua apreensão, requerer judicialmente a quebra do sigilo dos dados nele armazenados, nos termos da Lei n° 9.296/96, sob pena de ilicitude das provas assim obtidas: STJ, 5a Turma, RHC 67.379/ RN, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 20/10/2016, DJe 09/11/2016. Em outro precedente, a 5a Turma do STJ concluiu que, uma vez determinada judi­ cialmente a busca e apreensão de telefone celular, é lícito o acesso aos dados armazenados no aparelho apreendido, notadamente quando a referida decisão aludir expressamente ao acesso aos dados armazenados

coincidência entre os fatos fundamentais discutidos no caso concreto e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica), seja porque, a despei­ to de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades nos casos sob julgamento teriam o condão de afastar a aplicação do precedente: a) celular de vítima falecida: não há ilegalida­ de na perícia de aparelho de telefonia celular pela polícia, sem prévia autorização judicial, na hipótese em que seu proprietário - a vítima - estiver morto, tendo o referido telefone sido entregue à autoridade policial por sua própria esposa. Em caso concreto apreciado pela 6a Turma do STJ, concluiu-se que, es­ tando morto o detentor de eventual direito ao sigilo, não haveria mais sigilo algum a proteger do titular daquele direito. Sendo assim, não haveria sequer necessidade de uma ordem judicial porque, frise-se, no processo penal, o que se protege são os interesses do acusado. É dizer, soa como impróprio proteger-se a intimidade de quem foi vítima do homicídio, sendo que o objeto da apreensão e da investigação é esclarecer o homicídio e punir aquele que, teori­ camente, foi o responsável pela morte;407

b) situação excepcional que justifique o aces­ so imediato das autoridades policiais aos dados armazenados no aparelho celular: por ocasião do julgamento do RHC 76.324/DF, a 6a Turma do STJ concluiu que a extração de dados de aparelho celular sem autorização judicial viola o art. 157 do CPP, devendo a prova ser desentranhada dos autos se da hipótese não se depreende qualquerfundamento que possa justificar a urgência, em caráter excepcional, do acesso imediato das autoridades policiais aos da­ dos armazenados no aparelho celular. Nas palavras da Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, “(...) não descarto, de forma absoluta, que, a depender do caso concreto, caso a demora na obtenção de um mandado judicial pudesse trazer prejuízos concretos à investigação ou especialmente à vítima do deli­ to, mostre-se possível admitir a validade da prova colhida através do acesso imediato aos dados do aparelho celular. Imagine-se, por exemplo, um caso de extorsão mediante sequestro, em que a polícia encontre aparelhos celulares em um cativeiro recém-abandonado: o acesso incontinenti aos dados ali mantidos pode ser decisivo para a libertação do sequestrado;”408

c) materialidade do crime incorporada no próprio celular: em caso concreto envolvendo a

em eventuais computadores, arquivos eletrônicos de qualquer natureza e smartphones que forem encontrados: RHC 75.800/PR, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/9/2016, DJe 26/9/2016.

407. STJ, 6a Turma, RHC 86.076/MT, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. Acd. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 19/10/2017, DJe 12/12/2017.

406. STJ, 6a Turma, HC 511,484/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 15/08/2019, DJe 29/08/2019.

408. STJ, 6a Turma, RHC 76.324/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 14.02.2017, DJe 22.02.2017.

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transmissão de fotografia íntima de adolescente através de aplicativo de celular (Lei n. 8.069/90, art. 241-A), a 6a Turma do STJ considerou ser necessá­ rio realizar um discrímen, eis que, in casu, a ma­ terialidade delitiva estaria incorporada na própria coisa. Logo, quando se tratar do próprio corpo de delito, ou seja, quando a materialidade do crime se encontrasse plasmada em fotografias armazenadas no próprio aparelho, não haveria necessidade de autorização judicial prévia;409

d) autorização do proprietário: na visão da 5a Turma do STJ, por mais que a jurisprudência seja firme no sentido de reconhecer a ilicitude da prova oriunda do acesso aos dados armazenados no aparelho celular, relativos a mensagens de texto, SMS, conversas por meio de aplicativos (Whatsapp), obtidos diretamente pela polícia no momento da prisão em flagrante, sem prévia autorização judi­ cial, se restar evidenciado, no caso concreto, que os policiais teriam acessado as conversas telefônicas do aparelho celular sem autorização judicial, mas com a permissão do agente, não haveria qualquer ilegalidade a ser declarada;410 e) localização de aparelho próximo ao flagranteado, que, todavia, nega que o celular lhe pertencesse: como se pronunciou a 5a Turma do STJ, também se evidencia substancial distinção (dístinguishing) entre a extração de dados e de conversas registradas no whatsapp de flagranteado sem pré­ via autorização judicial, quando se tem reconhe­ cido a ilicitude do conjunto probatório, daquela hipótese em que, por ocasião da abordagem por policiais militares, o indivíduo inicialmente negue a propriedade do celular localizado próximo a ele, tendo os policiais realizado, então, uma breve con­ sulta dos dados do aparelho abandonado em via pública, a fim de identificar a propriedade do obje­ to. Ora, diante dessa específica particularidade do caso concreto (negativa do agente de que o celular lhe pertencesse), há de ser mantido o afastamento da suposta ilicitude das provas obtirdas a partir do acesso pelos policiais às informações contidas no referido aparelho celular apreendido;411

f) acesso exclusivo aos registros telefônicos e à agenda de celular apreendido: como exposto anteriormente, a devassa nos dados constantes de aparelhos celulares apreendidos, diretamente pela 409. STJ, 6a Turma, RHC 108.262/MS, Rel. Min. Antônio Saldanha Pa­ lheiro, j. 05.09.2019, DJe 09.12.2019.

410. STJ, 5a Turma, HC 537.274/MG, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Ra­ poso- Desembargador convocado doTJ-PE,j. 19.11.2019, DJe 26.11.2019.

411. Nessa linha: STJ, 5aTurma, AgRg no AREsp 1.573.424-SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 08.09.2020, DJe 15.09.2020.

polícia, sem autorização judicial, constitui meio de prova ilícito e, consequentemente, os dados obtidos não podem constituir prova, devendo ser excluídos dos autos. No entanto, se o acesso ficar restrito aos registros telefônicos e à agenda do aparelho celular apreendido com um dos envolvidos, há precedentes da 5a Turma do STJ no sentido de que, in casu, não haveria qualquer ilegalidade, ainda que a medida fosse levada a efeito sem prévia autorização judi­ cial, porquanto tais dados não estão abarcados pela reserva de jurisdição prevista no art. 5o, inciso XII, da Constituição Federal.412

Parte de toda essa controvérsia deverá ser di­ rimida em breve pelo STF, que reconheceu a exis­ tência de repercussão geral em Recurso Extraordi­ nário com Agravo (ARE 1.042.075/RJ), no qual se discute a (i) licitude da realização de perícia pela autoridade policial em aparelho celular encontra­ do no local do crime, com o consequente acesso à agenda telefônica e ao registro de chamadas, sem autorização judicial prévia. O Min. Dias Toffoli (Re­ lator) propôs a fixação da seguinte tese: “É lícita a prova obtida pela autoridade policial, sem autori­ zação judicial, mediante acesso a registro telefônico ou agenda de contatos de celular apreendido ato contínuo no local do crime atribuído ao acusado, não configurando esse acesso ofensa ao sigilo das comunicações, à intimidade ou à privacidade do indivíduo (CF, art. 5o, incisos X e XII)”. Em sentido diverso, todavia, eis a tese apresentada pelos Mi­ nistros Gilmar Mendes e Edson Fachin: “O acesso a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime atribuído ao acusado depende de prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos, a necessidade e a adequação da medida e delimite a sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e ao sigilo das comunicações e dados dos indivíduos (CF, art. 5o, X e XX)”. Na sequência, pediu vista dos autos o Ministro Alexandre de Moraes.413

Em conclusão, é de todo relevante destacar que a extração de dados e conversas registradas no WhatsApp do celular de investigado e a intercep­ tação de conversas mantidas por e-mail mediante prévia autorização judicial, ambas consideradas válidas pelos Tribunais Superiores, não se confun­ dem, porém, com o espelhamento, via WhatsApp web, de conversas realizadas pelo investigado com 412. Com esse entendimento: STJ, 5aTurma, AgRg no REsp 1.853.702/ RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 23.06.2020, DJe 30.06.2020. 413. STF, Pleno, ARE 1,042.075/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 10.11.2020.

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terceiros.414 Por isso, sob o argumento de que não seria possível aplicar a analogia entre o instituto da interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do WhatsApp Web, das conversas realizadas pelo aplicativo WhatsApp, a 6a Turma do STJ de­ clarou a nulidade de decisão judicial que autorizou o espelhamento do WhatsApp via Código QR, bem como das provas daí decorrentes, ressalvadas even­ tuais fontes independentes.415 Ao contrário da inter­ ceptação telefônica, no âmbito da qual o investiga­ dor de polícia atua como mero observador de con­ versas empreendidas por terceiros, no espelhamento via WhatsApp Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que já estão registradas no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela pró­ pria plataforma online, de interagir diretamente com conversas que estão sendo travadas, de enviar novas mensagens a qualquer contato presente no celular, e de excluir, com total liberdade, e sem deixar vestígios, qualquer mensagem passada, presente ou futura. O fato de eventual exclusão de mensagens enviadas (na modalidade “Apagar para mim”) ou recebidas (em qualquer caso) não deixar absolutamente nenhum vestígio nem para o usuário nem para o destinatá­ rio, e o fato de tais mensagens excluídas, em razão da criptografia end-to-end, não ficarem armazena­ das em nenhum servidor, constituem fundamentos suficientes para a conclusão de que a admissão de tal meio de obtenção de prova implicaria indevi­ da presunção absoluta da legitimidade dos atos dos investigadores, dado que exigir contraposição idônea por parte do investigado seria equivalente a demandar-lhe produção de prova diabólica (o que não ocorre em caso de interceptação telefônica, na qual se oportuniza a realização de perícia). Ainda segundo a 6a Turma do STJ, ao contrário da inter­ ceptação telefônica, que tem como objeto a escuta de conversas realizadas apenas depois da autoriza­ ção judicial (ex nunc), o espelhamento via QR Code viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando efeitos retroativos (ex tunc). Em termos técnico-jurídicos, o espelhamento seria melhor qualificado como um 414. O espelhamento das mensagens do WhatsApp ocorre em sítio eletrônico disponibilizado pela própria empresa, denominado WhatsApp Web. Na referida plataforma, é gerado um tipo específico de código de barras, conhecido como Código QR (Quick Response), o qual só pode ser lido pelo celular do usuário que pretende usufruir do serviço. Daí a necessidade de apreensão, ainda que por breve período de tempo, do aparelho telefônico que se pretende monitorar. 415. STJ, 6a Turma, RHC 99.735/SC, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 27/11/2018, DJe 12/12/2018.

tipo híbrido de obtenção de prova consistente, a um só tempo, em interceptação telefônica (quanto às conversas ex nunc) e em quebra de sigilo de e-mail (quanto às conversas ex tunc). Não há, todavia, ao menos por agora, previsão legal de um tal meio de obtenção de prova híbrido.

Aos olhos da jurisprudência, também se revela ilegal a quebra do sigilo telefônico mediante a habili­ tação de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado titular da linha. A controvérsia foi levada à apreciação do STJ em caso concreto envolvendo pedido de quebra de sigilo telefônico e telemático em que se determinou a interceptação de determinados terminais telefônicos mediante a habilitação temporária de SIMCARDS indicados pela autoridade policial em substituição às linhas do investigado. In casu, a ordem judicial, endereçada à concessionária de telefonia, consistira na determi­ nação de viabilizar à autoridade policial a utilização de “SIMCARD” (cartão “SIM”, sigla em inglês da expressão Subscriber Identity Module - módulo de identificação do assinante -, comumente referido no Brasil como “chip”), em substituição ao do aparelho celular do usuário investigado, “pelo prazo de 15 (quinze) dias e a critério da autoridade policial, em horários previamente indicados, inclusive de ma­ drugada”. Pretendeu-se que a operadora de telefonia, quando acionada, habilitasse o chip do agente in­ vestigador, em substituição ao do usuário, a critério da autoridade policial, que teria pleno acesso, em tempo real, às chamadas e mensagens transmitidas para a linha originária, inclusive via WhatsApp. Na visão da 6a Turma do STJ, esse procedimento não encontraria respaldo nos artigos da Lei n. 9.296/96, além de gerar insuperáveis inconvenientes. Isso por­ que, a ação, se implementada, permitiría aos inves­ tigadores acesso irrestrito a todas as conversas por meio do WhatsApp, inclusive com a possibilidade de envio de novas mensagens e a exclusão de outras. Se não bastasse, eventual exclusão de mensagem en­ viada ou de mensagem recebida não deixaria abso­ lutamente nenhum vestígio e, por conseguinte, não poderia jamais ser recuperada para servir de prova em processo penal, tendo em vista que, em razão da própria característica do serviço, feito por meio de encriptação ponta-a-ponta, a operadora não arma­ zena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários. Ao contrário da interceptação telefôni­ ca, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas travadas entre o alvo interceptado e terceiros, na troca do chip ha­ bilitado, o agente do estado teria a possibilidade de atuar como participante das conversas, poden­ do interagir diretamente com seus interlocutores,

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enviando novas mensagens a qualquer contato inse­ rido no celular, além de poder também excluir, com total liberdade, e sem deixar vestígios, as mensagens no WhatsApp. E, nesse interregno, o usuário fica­ ria com todos seus serviços de telefonia suspensos. Concluiu-se, enfim, ser inviável o alargamento das hipóteses de interceptação telefônica ou a criação de procedimento diverso, já que, por se tratar de providência que excepciona a garantia da inviola­ bilidade das comunicações, a execução desse meio de obtenção de prova extraordinário deve se dar nos estritos limites da Lei n. 9.296/96.416

11.1.6. Quebra do sigilo de dados telefônicos417 A interceptação das comunicações telefônicas não se confunde com a quebra do sigilo de dados telefônicos: aquela diz respeito a algo que está acon­ tecendo; esta guarda relação com chamadas telefôni­ cas pretéritas, já realizadas, ou seja, está relacionada aos registros documentados e armazenados pelas companhias telefônicas, tais como data da chamada telefônica, horário da ligação, número do telefone chamado, duração do uso, informações acerca das estações rádio base (ERBs),418 etc.

Portanto, em relação aos dados pertinentes aos usuários de computadores, com informações rela­ tivas à sua qualificação, horário dos acessos e iden­ tificação dos endereços de IP (Internet Protocol) das máquinas utilizadas, o acesso a tais dados não se confunde com a interceptação das comunicações telemáticas. Quanto ao tema, aliás, a Lei Estadual de São Paulo n° 12.228/06, que dispõe sobre os esta­ belecimentos comerciais que colocam à disposição, mediante locação, computadores e máquinas para acesso à internet - as denominadas Lan Houses -, impõe a obrigatoriedade de criar e manter cadas­ tro atualizado de seus usuários, contendo nome completo, data de nascimento, endereço completo, telefone e número de documento de identidade. Ademais, o fornecimento desses dados cadastrais 416. STJ, 6a Turma, REsp 1,806.792/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 11.05.2021. 417. Para mais detalhes acerca do acesso aos dados cadastrais de investigados e vítimas pelo Ministério Público ou pela Polícia independen­ temente de prévia autorização judicial, diligência investigatória prevista no art. 13-A do CPP, incluído pela Lei n° 13.344/16, e também na Lei de Lavagem de Capitais (art. 17-B) e na Lei das Organizações Criminosas (art. 15), remetemos o leitor ao Título atinente à investigação preliminar, mais precisamente ao item "9.11. Acesso aos dados cadastrais de vítimas

e de suspeitos". 418. Para mais detalhes acerca do assunto, inclusive no tocante ao novel art. 13-B do CPP, remetemos o leitor ao Título atinente à investi­ gação preliminar, mais especificamente para o item "9.12. Requisição de informações acerca das estações rádio base".

e demais informações somente pode ser feito me­ diante prévia autorização judicial.419

Entenda-se, então, que a simples titularidade e o endereço do computador do qual partiu um e-mail não estão resguardados pelo sigilo de que cuida o inciso XII do artigo 5o da Constituição da República, nem tampouco pelo direito à intimidade prescrito no inciso X, que não é absoluto. Por isso, a 6a Turma do STJ considerou legítima a requisi­ ção do Presidente do Superior Tribunal de Justiça à empresa de telefonia local de informações sobre mensagem eletrônica amplamente divulgada, dando conta da existência de fraude em concurso público para provimento de cargos efetivos do quadro de pessoal do próprio Tribunal a que preside, cuja honorabilidade restou afetada.420 Como dito acima, apesar do art. 5o, inciso XII, da Constituição Federal, ressalvar apenas a inter­ ceptação das comunicações telefônicas, não se deve compreender que o sigilo de dados tenha natureza absoluta. As liberdades públicas não podem ser in­ terpretadas em sentido absoluto, em face da natu­ ral restrição resultante do princípio da convivência das liberdades: não se permite que sejam exercidas de modo danoso à ordem pública e às liberdades alheias; não podem funcionar como mecanismo de salvaguarda para atividades ilícitas.421

Logicamente, a fim de que não haja uma devas­ sa indevida à intimidade do cidadão, é necessária a existência de justa causa para a quebra do sigilo de dados telefônicos, corroborando a prevalência do interesse público à investigação sobre o direito fundamental de proteção à intimidade do indivíduo. É possível, portanto, a quebra do sigilo de dados telefônicos, desde que demonstrada sua imperiosa necessidade para auxiliar nas investigações ou na instrução criminal. Destarte, a nosso ver, o objeto da Lei n° 9.296/96 não abrange a quebra do sigilo de dados telefôni­ cos.422 Como já se manifestou a jurisprudência, a Lei n° 9.296/96 é aplicável apenas às interceptações 419. Para o Supremo, o acesso a dados contidos em computador em lan house de modo a identificar o autor de crimes praticados pela in­ ternet, e não o conteúdo da comunicação criminosa, não requer prévia autorização judicial ou do acusado, se o proprietário do estabelecimento comercial permitir o exame do equipamento e consequente coleta de provas: STF, 1a Turma, HC 103.425/AM, Rei. Min. Rosa Weber, j. 26/06/2012.

420. STJ, 6a Turma, HC 83.338/DF, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j.

29/09/2009, DJe 26/10/2009. 421. Manoel Gonçalves Ferreira Filho define as liberdades públicas

como direitos subjetivos oponíveis ao Estado,"poderes de agir reconheci­ dos e protegidos pela ordem jurídica a todos os seres humanos". (Direitos humanos fundamentais. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 28-29).

422. Em sentido contrário, Vicente Greco Filho sustenta que a Lei n° 9.296/96 aplica-se à quebra do sigilo das comunicações telefônicas.

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telefônicas (atuais, presentes), não alcançando os registros telefônicos relacionados a comunicações passadas. Logo, a quebra do sigilo dos dados tele­ fônicos contendo os dias, os horários, a duração e os números das linhas chamadas e recebidas, não se submete à disciplina das interceptações telefôni­ cas regidas pela Lei 9.296/96.423 Em outras palavras, a proteção a que se refere o art. 5o, inciso XII, da Constituição Federal, é da comunicação de dados, e não dos dados em si mesmos.424

Portanto, diversamente da interceptação telefô­ nica, a quebra do sigilo de dados telefônicos não está submetida à cláusula de reserva de jurisdição. Logo, além da autoridade judiciária competente, Comis­ sões Parlamentares de Inquérito também podem determinar a quebra do sigilo de dados telefônicos com base em seus poderes de investigação (CF, art. 58, § 3o), desde que o ato deliberativo esteja devi­ damente fundamentado.425 Quanto à obtenção dos dados telefônicos pelo órgão do Ministério Público, queremos crer que o poder de requisição previsto no art. 129, VI, da Constituição Federal, autoriza que o Parquet tenha acesso aos registros de ligações anteriores, indepen­ dentemente de prévia autorização judicial. Não se tratando de captação de comunicações telefônicas em andamento - em relação às quais o art. 5o, XII, da Carta Magna, exige prévia autorização judicial, desde que preenchidos os requisitos estabelecidos pela Lei n° 9.296/96 -, mas sim da obtenção dos re­ gistros de ligações pretéritas, tidas como documen­ tos como outros quaisquer, é indiscutível a possibi­ lidade de requisição direta pelo Ministério Público.

11.1.7. Finalidade da interceptação telefônica: obtenção de elementos probatórios em inves­ tigação criminal ou instrução processual penal Da leitura do próprio texto constitucional (art. 5o, XII), depreende-se que a interceptação telefônica poderá ser determinada mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. É no mesmo sentido o teor do art. 1 °, caput, da Lei n° 9.296/96. (Interceptação telefônica: considerações sobre a Lei n° 9.296, de 24 de julho de 1996. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 9). 423. STJ, 5a Turma, EDcl no RMS 17.732/MT, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 23/08/05, DJ 19/09/05 p. 353.

424. STF,Tribunal Pleno, RE418.416/SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10/05/06, DJ 19/12/06. Na mesma linha: STF,Tribunal Pleno, MS 21.729/ DF, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 05/10/1995, DJ 19/10/2001. 425. STF, Tribunal Pleno, MS 23.652/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22/11/2000, DJ 16/02/2001.

Tanto a Constituição Federal quanto a Lei n° 9.296/96 fazem menção à investigação criminal, e não ao inquérito policial. Logo, ainda que não haja inquérito policial instaurado, será possível a inter­ ceptação telefônica, desde que haja outra forma de investigação criminal em curso, capaz de ministrar indícios de autoria ou participação em infração pe­ nal punida com pena de reclusão.426

A interceptação telefônica também pode ser decretada durante o curso da instrução processual penal. Chamada de formação da culpa por alguns, esta fase é aquela destinada à colheita de provas. Tem início com o oferecimento da peça acusatória, quando as partes poderão juntar documentos, sendo concluída com eventual requerimento de diligências cuja necessidade tenha se originado de circunstân­ cias ou fatos apurados na instrução (CPP, art. 402). Apesar da decretação da interceptação telefônica ser mais comum durante a fase investigatória, é perfeitamente possível o deferimento da medida durante a instrução processual penal. Com efeito, podem surgir, no curso do processo, circunstâncias novas, desco­ nhecidas, que recomendem a realização imediata da interceptação telefônica.

Como a Constituição Federal e a Lei n° 9.296/96 dispõem que a interceptação telefônica só pode ser autorizada para fins de investigação criminal ou ins­ trução processual penal, somos levados a acreditar que não é possível que essa medida seja determi­ nada no curso de um processo de natureza cível, comercial, trabalhista, administrativa, etc., apesar de sabermos que há precedentes de Tribunais Estaduais em sentido contrário.427

Porém, uma vez decretada a realização de uma interceptação telefônica para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, nada im­ pede que os elementos probatórios aí obtidos sejam utilizados em outro processo, a título de prova em­ prestada. Como destaca a doutrina, tendo em conta que o valor constitucionalmente protegido pela ve­ dação das interceptações telefônicas é a intimidade, rompida esta, licitamente, em face do permissivo constitucional, nada mais resta a preservar. Seria uma demasia negar-se a recepção da prova assim 426. No sentido de que a interceptação telefônica pode ser determina­ da independentemente da instauração de inquérito policial: STJ, 5aTurma, HC 43.234/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 03/11/2005, DJ 21/11/2005 p. 265. 427. Para a 3a Turma do STJ, desde que evidenciada a prática de cri­ me (v.g., subtração de menor previsto no art. 237 da Lei n° 8.069/90), é possível que a interceptação telefônica seja determinada inclusive em processo cível: STJ, 3a Turma, HC 203.405/MS, Rel. Min. Sidnei Beneti, j.

28/06/2011, DJe 01/07/2011.

TÍTULO 6 • PROVAS

obtida, sob a alegação de que estaria obliquamente vulnerado o comando constitucional.428

A jurisprudência entende que dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessa prova.429

Em relação à observância do princípio do contraditório, deve se compreender que este será diferido. E isso em face da própria natureza da inter­ ceptação telefônica como medida cautelar inaudita altera parte. O contraditório e a ampla defesa não são assegurados quando da execução da medida, sob pena de se frustrar qualquer tentativa de colheita de elementos probatórios. Serão observados sim, a posteriori, tão logo concluída a diligência. Este o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal confirmou que a defesa deve ter pleno aces­ so aos autos de inquérito policial, aí incluídos os dados obtidos em decorrência de interceptações telefônicas.430 Aliás, convém lembrar que o acesso aos autos da investigação criminal, especificamente no tocante às diligências concluídas, está assegurado pela súmula vinculante n° 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em pro­ cedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Quanto aos instrumentos processuais de que pode se valer o investigado para impugnar even­ tual interceptação telefônica que repute ilícita, por mais que o sigilo das comunicações telefônicas es­ teja relacionado à proteção da intimidade e da vida privada, não se pode perder de vista que, na dicção do Supremo Tribunal Federal, se se trata de processo 428. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 183. Em sentido diverso: GOMES. Op. cit. p. 437. 429. STF, Tribunal Pleno, Inq. 2.424 Q0-Q0/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 20/06/2007, DJe 087 23/08/2007. Admitindo o empréstimo de provas provenientes de interceptações telefônicas autorizadas judicialmente para processo administrativo disciplinar: STF, 1a Turma, RMS 28.774/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 09/08/2016. 430. STF, 1a Turma, HC 92.331 /PB, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 18/03/2008, DJe 142 31/07/2008. No sentido de que constitui nulidade por violação à ampla defesa a negativa de fornecimento à defesa de senha de acesso ao disco compacto em que gravadas as conversas interceptadas, acesso que permitiría o confronto entre tal conteúdo e as transcrições realizadas e existentes nos autos: STJ, 6a Turma, HC 150.892/RS, Rel. Min. Nilson Naves, j. 02/03/2010, DJe 07/06/2010.

penal ou mesmo de inquérito policial, há de ser admitida a possibilidade de impetração de habeas corpus, desde que possa advir prejuízo à liberdade de locomoção, ainda que não iminente, que poderia vir a ser decretada com base na ilegalidade contra a qual se insurge o impetrante. Nessa linha, não é de se recusar a idoneidade do habeas corpus.431 Como a própria Constituição Federal autoriza a interceptação das comunicações telefônicas (CF, art. 5o, XII), não há falar em violação ao princí­ pio do nemo tenetur se detegere (ou da proibição da autoincriminação). A propósito, como observa Grinover, “o sujeito não está em confronto direto com a autoridade, não é por ela solicitado a respon­ der, nem sofre pressões de qualquer espécie, já que não há constrição no telefonema e o instrumento é utilizado na mais ampla liberdade. O direito ao silêncio do réu ou do indiciado tem como finalidade preservar sua liberdade moral frente à autoridade”.432

11.1.8. Requisitos para a interceptação telefônica De acordo com a Constituição Federal (art. 5o, XII), a interceptação telefônica está condicionada à prévia autorização judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação cri­ minal ou instrução processual penal. Por força da Carta Magna, portanto, são pressupostos da inter­ ceptação telefônica: a) ordem judicial devidamente fundamentada; b) nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer; c) para fins de investigação criminal (medida cautelar preparatória) ou instrução proces­ sual penal (medida cautelar incidental). O provimento que autoriza a interceptação tem natureza cautelar, já que visa à fixação dos fatos tal como se apresentam no momento da conver­ sa telefônica. Tem por escopo evitar que a situação existente ao tempo do crime venha a se modificar durante a tramitação das investigações ou do pro­ cesso principal, e, nesse sentido, visa conservar, para fins exclusivamente processuais, o conteúdo de uma comunicação telefônica, daí por que pode ser agru­ pado entre as cautelas conservativas.

Cuidando-se de medida de natureza cautelar, deverão estar presentes o fumus comissi delicti e o periculum in mora. De modo semelhante ao que se dá com uma busca domiciliar, a determinação de uma interceptação telefônica está condicionada à existência de elementos seguros da existência de um crime, que justifique o sacrifício do direito à 431. STF, 1a Turma, HC 79.191/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ

08/10/1999 p. 39. 432. Liberdades públicas. Op. cit. p. 250.

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intimidade (fumus comissi delicti). Em relação ao periculum in mora, há de ser levado em considera­ ção o risco ou prejuízo que a não realização imediata da diligência poderá acarretar para a investigação criminal ou para a instrução processual. Revelando péssima técnica legislativa, ao invés de apontar de maneira detalhada em que hipóteses e mediante quais requisitos poderia ser determinada a interceptação das comunicações telefônicas, optou o legislador pela formulação negativa, apontando no art. 2o da Lei n° 9.296/96 as situações em que a interceptação não será admitida.

11.1.8.1. Ordem fundamentada da autoridade judiciária competente (teoria do juízo aparente) Na esteira da maioria das legislações estran­ geiras, a Constituição Federal (art. 5o, XII) e a Lei n° 9.296/96 (art. Io, caput, c/c art. 5o) conferem ex­ clusividade ao Poder Judiciário para determinar a interceptação das comunicações telefônicas. Essa regra só não vigora nas hipóteses de Estado de De­ fesa (CF, art. 136, § Io, I, c) e de Estado de Sítio (CF, art. 139, III). A autorização para a interceptação está condicionada, portanto, à prévia autorização do juiz competente da ação principal, decisão esta que deve ser devidamente fundamentada, sob pena de nulidade (CF, art. 93, IX).433

Adotou-se, assim, um sistema de controle judi­ cial prévio da legalidade da referida medida (cláu­ sula de reserva de jurisdição), o que significa que, em nenhuma hipótese, poderá a autoridade policial ou o Ministério Público determinar a interceptação, submetendo-a posteriormente ao controle judicial da legalidade. Essa autorização judicial será sem­ pre necessária, independentemente da natureza do telefone: público ou particular. Logo, nem mesmo o titular do direito de uso da linha telefônica pode interceptar comunicações telefônicas que outras pessoas realizem utilizando-se de sua linha telefô­ nica. Afinal de contas, o titular do sigilo das comu­ nicações telefônicas não é o dono da linha, mas sim os interlocutores. A rigor, configura crime realizar 433. Em comarcas maiores tem sido comum a criação das chamadas Centrais de Inquérito. Funcionam como Departamentos (órgãos administrativo-jurisdicionais) que recebem todos os inquéritos e que cuidam da sua distribuição, assim como das medidas cautelares que antecedem a propositura da ação penal. Na cidade de São Paulo, por exemplo, existe o DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais), criado pelo provimento CCXXXIII - 233 do Conselho Superior da Magistratura e reestruturado pelo Provimento 495, de 1993. Apesar de os juizes que compõem o DIPO não serem competentes para a ação principal, a jurisprudência tem conside­ rado válida a autorização judicial para a interceptação telefônica por eles concedida: STF, 1aTurma, RHC 92.354/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20/11 /2007, DJe 157 06/12/2007.

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interceptação de comunicação telefônica sem prévia autorização judicial (Lei n° 9.296/96, art. 10).

Por consequência, a ausência de autorização judicial para excepcionar o sigilo das comunica­ ções telefônicas macula indelevelmente eventual diligência policial de interceptações, ao ponto de não se dever - por causa dessa mácula - sequer lhes analisar os conteúdos, pois obtidos de forma claramente ilícita.434

Aliás, não é válida a interceptação telefônica realizada sem prévia autorização judicial, ainda que haja posterior consentimento de um dos interlocu­ tores para ser tratada como escuta telefônica e utili­ zada como prova em processo penal. Logo, o fato de um dos interlocutores dos diálogos gravados de for­ ma clandestina ter consentido posteriormente com a divulgação dos seus conteúdos não tem o condão de legitimar o ato, pois, no momento da gravação, não tinha ciência do artifício que foi implementado pelo responsável pela interceptação, não se podendo afirmar, portanto, que, caso soubesse, manteria tais conversas pelo telefone interceptado. Não existindo prévia autorização judicial, tampouco configurada a hipótese de gravação de comunicação telefônica, já que nenhum dos interlocutores tinha ciência de tal artifício no momento dos diálogos interceptados, há de se reconhecer a ilicitude da prova.435 Juiz competente para a decretação da intercep­ tação telefônica é o juiz constitucional ou legalmente previsto para conhecer e julgar determinado tipo de litígio. É necessária ordem desse juiz para que se concretize a medida cautelar da interceptação telefô­ nica. Tendo em conta que a interceptação telefônica é medida cautelar que visa à obtenção de prova em investigação criminal ou instrução processual penal, tal qual estabelece a Constituição Federal (art. 5o, XII), o juiz competente para emiti-la deve ser do­ tado de jurisdição penal. Portanto, todo e qualquer juiz criminal pode, em tese, conceder a ordem de interceptação, seja no âmbito da Justiça Estadual, da Justiça Federal, da Justiça Eleitoral, da Justiça Militar da União, seja no âmbito da Justiça Militar dos Estados. Lado outro, estando o juiz no exercício de competência não-criminal, não está autorizado a conceder a interceptação telefônica. Se a própria Lei n° 9.296/96 estabelece que a interceptação de comunicações telefônicas depende de autorização do juiz competente da ação principal 434. Nesse contexto: STJ, 5a Turma EDcl no HC 130.429/CE, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 27/04/2010, DJe 17/05/2010. 435. STJ, 5aTurma, HC 161,053/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 27/11 /2012, DJe 03/12/2012.

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(art. Io), deve ser considerada nula a autorização judicial para interceptação telefônica concedida por juiz incompetente. Logo, se durante a realização de inquérito policial militar, que apurava a prática de crime impropriamente militar (subtração de armas e munições da corporação, conservadas em esta­ belecimento militar), a interceptação foi deferida pela Justiça Comum Estadual, deve-se declarar a nulidade da prova ilicitamente obtida, em virtude da incompetência do juízo.436 Para a jurisprudência, todavia, quando a inter­ ceptação telefônica for decretada no curso de inves­ tigação criminal como medida cautelar, a exigência de que a autorização seja feita pelo juiz competente da ação principal deve ser entendida e aplicada com certo temperamento, para evitar eventual obstáculo da atuação da Justiça.437

Como explica o Min. Sepúlveda Pertence, “se se cuida de obter a autorização para a intercepta­ ção telefônica no curso de processo penal, não sus­ cita dúvidas a regra de competência do art. Io da L. 9296/96: só ao juiz da ação penal condenatória - e que dirige toda a instrução -, caberá deferir a medida cautelar incidente. Quando, no entanto, a interceptação telefônica constituir medida cau­ telar preventiva, ainda no curso das investigações criminais, a mesma norma de competência há de ser entendida e aplicada com temperamentos, para não resultar em absurdos patentes: aí, o ponto de partida à determinação da competência para a or­ dem judicial de interceptação - não podendo ser o fato imputado, que só a denúncia, eventual e futura, precisará -, haverá de ser o fato suspeitado, objeto dos procedimentos investigatórios em curso. Não induz à ilicitude da prova resultante da intercepta­ ção telefônica que a autorização provenha de Juiz Federal - aparentemente competente, à vista do ob­ jeto das investigações policiais em curso, ao tempo

da decisão - que, posteriormente, se haja declarado incompetente, à vista do andamento delas”.438 Portanto, a verificação do juízo criminal com­ petente para apreciar pedido de interceptação tele­ fônica no curso da investigação criminal deve ser feita com base nos elementos probatórios até então existentes, aplicando-se a regra rebus sic stantibus. Assim, caso um fato superveniente altere a deter­ minação do órgão jurisdicional competente da ação principal, isso não significa dizer que a ordem judi­ cial anteriormente concedida seja inválida.

É o que se denomina de teoria do juízo apa­ rente: se, no momento da decretação da medida, os elementos informativos até então obtidos apon­ tavam para a competência da autoridade judiciária responsável pela decretação da interceptação tele­ fônica, devem ser reputadas válidas as provas assim obtidas, ainda que, posteriormente, seja reconhecida a incompetência do juiz inicialmente competente para o feito.439 Exemplificando, vislumbrando-se a presença de tráfico doméstico de drogas, um Juiz Estadual determina a medida cautelar. Ocorre que, no curso da interceptação telefônica, constata-se que se trata de tráfico internacional, delito da competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso V, da Constituição Federal. Nessa hipótese, a ordem judicial inicialmente concedida pela Justiça Estadual e as informações obtidas por meio da interceptação telefônica hão de ser consideradas válidas, eis que, quando de sua concessão, nada se sabia a respeito de eventual traficância internacional, havendo fumus comissi delicti que dava amparo à fixação da competência da Justiça Estadual.440 438. STF, Tribunal Pleno, HC 81.260/ES, Rei. Min. Sepúlveda Pertence,

j. 14/11/2001, DJ 19/04/2002. 439. Na visão do Supremo, a teoria do juízo aparente deve ser aplicada

quando, no momento em que tiverem sido decretadas as medidas de

caráter probatório, a autoridade judiciária não tiver condições de saber

que a investigação fora instaurada em relação a alguém investido de 436. STJ, 5a Turma, HC 49.179/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 05/09/2006,

prerrogativa de foro: STF, 2a Turma, HC 110.496/RJ, Rei. Min. Gilmar Men­

DJ 30/10/2006 p. 341; STJ, 5a Turma, HC 10.243/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 18/12/2000, DJ 23/04/2001 p. 164; STJ, 5a Turma, HC 43.741/PR, Rei. Min. Felix Fischer, j. 23/08/2005, DJ 10/10/2005 p. 405. Na mesma linha: "Decerto, os atos investigatórios constantes do inquérito policial, da fase indiciária, não são nulos, ut art. 567 do CPP, porque não se revestem de caráter decisório, salvo aqueles de natureza constritiva de direito, que, possuindo essa índole, provêm de decisão judicial. Recurso parcialmente provido para ampliar o deferimento do habeas corpus e considerar nula a decisão do Juiz Federal incompetente, quanto à autorização para a interceptação telefônica e quebra dos sigilos bancário e telefônico, sem prejuízo das demais provas constantes do inquérito policial que, autô­ nomas, possam fundamentar a denúncia do Ministério Público Estadual". (STF, 2a Turma, RHC 80.197/GO, Rei. Min. Néri da Silveira, j. 08/08/2000,

des, j. 09/04/2013. Em sentido semelhante: STJ, 5aTurma, REsp 1.355.432/ SP, Rei. Min. Jorge Mussi, Rei. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21/8/2014. No sentido de que a alteração da competência não torna inválida a decisão acerca da interceptação telefônica determinada por juízo inicialmente competente para o processamento do feito: STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1,492.472/PR, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 04/10/2018, DJe 15/10/2018; STJ, 5a Turma, HC 349.583/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/09/2016, DJe 26/09/2016; STJ, 6aTurma, RHC 57.573/RS, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 18/08/2016, DJe 29/08/2016; STJ, Corte Especial, APn 675/GO, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 18/11/2015, DJe 02/02/2016.

DJ 29/09/2000). 437. STJ, 5a Turma, RHC 20.026/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 07/12/2006, DJ 26/02/2007 p. 616. Na mesma trilha: STJ, 5a Turma, REsp 770.418/ES, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 07/03/2006, DJ 27/03/2006 p. 324.

440. Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, HC 56.222/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 11/12/2007, DJ 07/02/2008 p. 1. Na mesma linha: STJ, 5a

Turma, RHC 19.789/RS, Rei. Min. Gilson Dipp,j. 07/12/2006, DJ 05/02/2007 p. 263; STJ, 5aTurma, HC 66.873/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 17/05/2007, DJ 29/06/2007 p. 674; STF, 2aTurma, HC 84.388/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 26/10/2004, DJ 19/05/2006; STJ, 5a Turma, HC 128.006/RR, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 23/02/2010, DJe 12/04/2010; STF, 2a Turma,

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Por fim, convém destacar que a decretação da interceptação telefônica no curso da investigação criminal é causa de fixação da competência por prevenção, nos exatos termos do art. 83 do CPP. Portanto, e a título de exemplo, quando o tráfico ilícito de entorpecentes se estender por mais de uma comarca, será competente, por força da prevenção, o Juiz que primeiro tomar conhecimento da infração e praticar qualquer ato processual, assim considerada a autorização para proceder à interceptação telefô­ nica, mesmo antes do oferecimento da denúncia.441

11.1.8.1.1. Da fundamentação da decisão Apesar da natureza cautelar da interceptação telefônica, a urgência em sua decretação e a sumariedade ou superficialidade da cognição não podem servir como justificativas para o arbítrio ou qualquer forma de automatismo no tocante à decisão que im­ porta restrição ao sigilo das comunicações telefô­ nicas. Daí a importância de que a decisão judicial seja devidamente fundamentada, nos exatos termos do art. 93, IX, da CF, c/c art. 5o da Lei n. 9.296/96.

Pela própria excepcionalidade que caracteriza a interceptação telefônica, esta pressupõe inequí­ voca demonstração da base empírica que justifica a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se aos requisitos do art. 2o da Lei n° 9.296/96. Não há mais espaço para decisões que se limitam a repetir os requisitos, nos moldes do que consta da lei. É indispensável que o magistrado aponte, de maneira concreta, as circunstâncias fáticas que apontam no sentido da adoção da medida cautelar, sob pena de manifesta ilegalidade do decisum, e, por consequên­ cia, ilicitude da prova assim obtida. Em relação ao conteúdo da decisão, assevera Gomes que o juiz deve exercer o controle judicial prévio da medida cautelar e deixar patenteado no decisum o seguinte: a) quais são os concretos in­ dícios de autoria ou de participação (art. 2o, I); b) RHC 87.198/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25/11/2008, DJe 25 05/02/2009. No sentido de que posterior declinação de competência do Juízo Militar para o Juízo Estadual não tem o condão de, por si só, invalidar a prova colhida mediante interceptação telefônica, deferida por Autoridade Judi­ cial competente até então, de maneira fundamentada e em observância às exigência legais: STJ, 5a Turma, HC 148.908/MS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/04/2011, DJe 04/05/2011. No mesmo contexto, como já se pronunciou o Supremo, a autorização para interceptação telefônica, concedida por juízo competente, antes de apurado o caráter interestadual dos fatos investigados, não impede desmembramento ulterior dos feitos e dis­

tribuição a juízos diversos: STF, 2a Turma, HC 85.962/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25/11/2008, DJe 25 05/02/2009. 441. STF, 1a Turma, HC 88.214/PE, Rel. Min. Menezes Direito, j. 28/04/2009, DJe 152 13/08/2009. Na mesma linha: STF, 2a Turma, HC 82.009/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 12/11/2002, DJ 19/12/2002; STJ, 5a Turma, HC 145.741/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 18/02/2010, DJe 19/04/2010.

quais são as provas existentes a respeito da infração penal (materialidade) (art. 2o, I); c) que se trata de infração punida com reclusão (art. 2o, III); d) que a interceptação é necessária em virtude da inexis­ tência de outros meios disponíveis para a obtenção da prova (art. 2o, II, e art. 4o); e) a descrição com clareza da situação objeto da investigação (delimi­ tação fática da medida, isto é, qual é o crime, onde está ocorrendo, desde quando vem ocorrendo etc.) (art. 2o, parágrafo único); f) indicação e, se possível, a qualificação do sujeito passivo da medida (iden­ tificação do investigado ou dos investigados (art. 2o, parágrafo único); g) individualização da linha telefônica que servirá de fonte para a captação da comunicação; h) quais meios serão empregados para a execução da medida (quais recursos tecnológicos, quais operações serão feitas etc.) (art. 4o); i) qual será a forma de execução da diligência - recursos próprios da polícia, recursos da concessionária, téc­ nicos da concessionária etc. (art. 5°); j) qual é a du­ ração da medida (o prazo não pode exceder quinze dias); 1) qual é a intensidade da medida (captação de todas as comunicações ou só das chamadas feitas ou só das chamadas recebidas, ou ambas, apenas constatação das chamadas sem importar o conteú­ do etc.); m) que a interceptação é proporcional no caso concreto, em razão da gravidade da infração, da necessidade da prova, dos interesses afetados etc.; n) que tudo deve ser feito “sob segredo de justiça” (art. Io).442 Para os Tribunais, não se exige fundamentação exaustiva, sendo suficiente que a decisão, ainda que de forma sucinta, concisa, analise a presença, no caso, dos requisitos legais ensejadores da intercep­ tação telefônica.

11.1.8.2. Indícios razoáveis de autoria ou participação Como dito acima, em virtude de sua natureza cautelar, a admissibilidade da interceptação telefô­ nica está condicionada à presença do fumus comissi delicti e do periculum in mora. Em face do caráter urgente da medida caute­ lar, ao analisar seu cabimento, limita-se o juiz ao exercício de uma mera cognição sumária. Em ou­ tras palavras, quando da adoção de uma medida cautelar, é inviável exigir-se que o juiz desenvolva atividade cognitiva no mesmo grau de profundi­ dade que aquela desenvolvida para o provimento definitivo. Não se decide com base no ius, mas sim no fumus comissi delicti. 442. Legislação criminal especial. Op. cit. p. 487.

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O fumus boni iuris, aqui denominado de fumus comissi delicti enseja a análise judicial da plausibilidade da medida pleiteada ou percebida como ne­ cessária a partir de critérios de mera probabilidade e verossimilhança e em cognição sumária dos ele­ mentos disponíveis no momento. Em se tratando de interceptação telefônica, não há falar em fumus boni iuris, mas sim em fumus comissi delicti. De fato, não é a fumaça do bom direito que determina ou não o deferimento da medida, mas sim a comprova­ ção por elementos objetivos dos autos que formam uma aparência de que houve a prática de um delito punido com pena de reclusão, e que tal crime foi provavelmente cometido por aquela pessoa cujas comunicações telefônicas pretende se interceptar. A palavra indício de autoria ou de participação, no sentido em que foi utilizada no art. 2o, inciso I, da Lei n° 9.296/96, deve ser compreendida com o signi­ ficado de prova semiplena, ou seja, um elemento de prova mais tênue, com menor valor persuasivo, nos mesmos moldes que o CPP se refere à decretação da prisão preventiva (art. 312). Logo, apesar de se tratar de prática investigatória rotineira, “não existe inter­ ceptação telefônica pré-delitual, fundada em mera conjectura ou periculosidade (de uma situação ou de uma pessoa). Não é possível interceptação telefônica para verificar se uma determinada pessoa, contra a qual inexiste qualquer indício, está ou não cometen­ do algum crime. É absolutamente defesa a chamada interceptação de prospecção, desconectada da reali­ zação de um fato delituoso, sobre o qual ainda não se conta com indícios suficientes. No nosso ius positum, em suma, só se admite interceptação pós-delitual. E a finalidade última dessa medida cautelar tem que ser uma investigação criminal (ou instrução penal). A interceptação, em suma, destina-se a provar um delito que já está sendo investigado, não a comprovar se o agente está ou não delinquindo”.443

Se a lei demanda a presença de indícios razoá­ veis de autoria ou participação em infração penal (Lei n° 9.296/96, art. 2o, I), uma simples manifesta­ ção policial ou ministerial, por si sós, não autorizam a decretação da interceptação telefônica. É neces­ sário que a representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público estejam 443. GOMES, Luiz Flávio. Legislação criminal especial. Op. cit. p. 437. No sentido da admissibilidade de interceptações telefônicas decretadas

com base em denúncia anônima, desde que corroborada por outros ele­ mentos que confirmem a necessidade da medida excepcional: STJ, 5a Turma, RHC 70.560/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 04/12/2018, DJe 14/12/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no AREsp 988.527/RS, Rel. Min. Felix Fischer, j. 20/09/2018, DJe 28/09/2018; STJ, 6a Turma, HC 443.331/SP, Rel.

acompanhados de mais dados, de elementos infor­ mativos ou de provas já obtidas, que possibilitem ao juiz formar sua convicção. Complementando o quanto previsto no art. 2o, inciso I, da Lei n° 9.296/96, o parágrafo único do mesmo dispositivo prevê que, em qualquer hipótese, deve ser descrita com clareza a situação objeto da in­ vestigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada. O parágrafo único do art. 2o da Lei n° 9.296/96 permite concluir que, caso a Polícia tenha conheci­ mento da prática de determinado delito, mas ainda não possua um suspeito, será possível a decretação de interceptação telefônica sobre pessoa indetermi­ nada, objetivando descobrir-se o provável autor ou partícipe do fato delituoso, hipótese em que a dili­ gência deverá recair sobre uma determinada linha telefônica, a ser individualizada no pedido.

Nesse prisma, como observa Greco Filho, o sujeito passivo da interceptação não será, obrigato­ riamente, o titular do uso da linha telefônica. Nas palavras do autor, “o sujeito passivo da interceptação é o interlocutor e não o titular formal ou legal do direito de uso, justificando-se a interceptação em face de alguém que se utiliza da linha ainda que não seja o seu titular. Daí a possibilidade de intercepta­ ção telefônica em linha pública, aberta ao público ou de entidade pública”.444

11.1.8.3. Quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis O periculum in mora é o segundo pressuposto para a decretação de toda e qualquer medida caute­ lar. No caso específico da interceptação telefônica, o perigo na demora deve ser compreendido como o risco ou prejuízo que a não realização imediata da diligência poderá acarretar para a investigação criminal ou para a instrução processual. Na verdade, o periculum in mora é ínsito à necessidade de a con­ versa telefônica ser colhida enquanto se desenvolve, sob pena de se perder a prova. Nesse prisma, dispõe o art. 2o, inciso II, da Lei n° 9.296/96, que a interceptação das comunicações telefônicas não será admitida quando a prova puder ser feita por outros meios disponíveis. Dentre as medidas restritivas de direitos fundamentais, deve o Poder Público escolher a menos gravosa, sobretudo quando diante de insidiosa ingerência na intimidade 444. GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica: considerações so­

Min. Sebastião Reis Júnior, j. 18/09/2018, DJe 02/10/2018; STJ, 6a Turma, AgRg no REsp 1,690.840/ES, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j.

bre a Lei n° 9.296, de 24 de julho de 1996. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

19/06/2018, DJe 29/06/2018.

p. 29.

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não só do suspeito, mas também de terceiros que com ele se comunicaram. Por isso, a interceptação telefônica deve ser utilizada como medida de ultima ratio.

Destarte, entre diversas medidas investigatórias idôneas a atingir o fim proposto, deve o ma­ gistrado buscar aquela que produza menores res­ trições à esfera de liberdade individual do agente. Considerando-se, então, a grave violação ao direito à intimidade decorrente da interceptação das co­ municações telefônicas, antes de decretar a me­ dida, deve o magistrado verificar se não há outro meio de prova ou de obtenção de prova menos invasivo (v.g., prova testemunhai, pericial, etc.). Não havendo outro meio disponível, ou, nos ter­ mos da lei, demonstrada a indispensabilidade do meio de prova (Lei n° 9.296/96, art. 5o), deve o magistrado deixar patente em sua fundamentação a referência à necessidade da medida cautelar, seja para a legitimação de sua atuação, seja para even­ tual impugnação a posteriori.445 A decisão que decreta (ou não) a intercepta­ ção telefônica é baseada na cláusula rebus sic stantibus. Logo, mesmo que, num primeiro momento, não esteja comprovada a indispensabilidade de sua adoção, nada impede que, com base em novos elementos probatórios, o juiz reavalie sua decisão anterior, decretando, então, a interceptação das co­ municações telefônicas.

11.1.8.4. Infração penal punida com pena de reclusão (crime de catálogo) O art. 2o, inciso III, da Lei n° 9.296/96, restringe a possibilidade de interceptação telefônica às infra­ ções penais punidas com pena de reclusão. Pouco importa se o delito está previsto no Código Penal ou na legislação especial - o importante é que a

pena cominada seja de reclusão. Logo, em tese, não se admite a decretação de interceptação telefônica para apurar crimes punidos com detenção, como a ameaça, nem tampouco para investigar contraven­ ções penais, como o jogo do bicho.

Ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, em que se enumeram os crimes que comportam a medida (rol taxativo), o legislador pátrio autoriza a interceptação telefônica, pelo menos em tese, na apuração de todo e qualquer crime punido com re­ clusão. Para Antônio Magalhães Gomes Filho, essa amplitude da utilização da interceptação telefônica é incompatível com o princípio da proporcionalidade, visto que somente diante da excepcional gravidade de certos delitos ou da forma particular de execução de outros (como, v.g., ameaça ou injúria pelo telefo­ ne), é que seria justificável a intromissão do aparato repressivo nas conversações telefônicas, com o fim de colher informações.446

De fato, essa opção legislativa acaba deixando de fora do âmbito de incidência da Lei n° 9.296/96 infrações penais em relação às quais a interceptação telefônica poderia funcionar como importante meio de obtenção de provas (v.g., contravenção do jogo do bicho, crimes de ameaça ou injúria praticados por telefone, etc.).447 Estando a decretação da interceptação telefô­ nica condicionada à investigação de crime punido com reclusão, não basta que a conduta do agente seja apenas típica. Deve se aferir também se sua conduta é antijurídica e culpável. Há de se verifi­ car, ademais, a presença de alguma causa extintiva da punibilidade, condições objetivas de punibilida­ de e condições de procedibilidade, etc. Em síntese, somente quando se visualizar a real possibilidade de punição é que se deve autorizar a decretação da interceptação telefônica. Nessa linha, em relação aos crimes materiais contra a ordem tributária, o Superior Tribunal de Justiça tem concluído que, antes de encerrado o procedimento administrativo fiscal, condição

445. Dúvidas poderão surgir quando a interceptação tiver sido autori­ zada por considerá-la o magistrado, no juízo de admissibilidade, o único meio possível de colheita da prova, demonstrando-se após que outros existiam. Nesse caso, como aponta Grinover,"a interceptação não poderá ser considerada ilícita (rectius, ilegítima), por configurar a exigência do inc. II do art. 2o requisito necessário à autorização, mas não condição de validade da prova. Se, naquele momento, à cognição sumária do juiz, a quebra do sigilo pareceu ser o único meio disponível para a obtenção da prova, a autorização terá sido legal e não perderá essa característica se se constatar, depois, a possibilidade de utilização de provas colhidas por outros meios". (As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 174). Para o STJ, a interceptação telefônica só será deferida quando não houver outros meios de prova disponíveis à época na qual a medida invasiva foi reque­ rida, sendo ônus da defesa demonstrar violação ao disposto no art. 2o, inciso II, da Lei n. 9.296/96. Nessa linha: STJ, 5aTurma, RHC 61,207/PR, Rei.

446. A violação do princípio da proporcionalidade pela Lei 9.296/96, Bo­ letim IBCCrim/Edição Especial n° 45, ago./96, p. 14. Apud AVOLIO (op. cit. p. 177). Na mesma linha: "Consideramos inconstitucional a postura do legislador brasileiro. Os sistemas modernos, incluindo o brasileiro, adotam

Min. Joel llan Paciornik, j. 25/09/2018, DJe 08/10/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no RMS 52.818/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 25/09/2018, DJe 03/10/2018; STJ, 5a Turma, RHC 83.320/DF, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 11/09/2018, DJe 19/09/2018; STJ, 6a Turma, HC 148.413/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 21/08/2014, DJe 01/09/2014.

447. Em relação ao crime de ameaça (CP, art. 147), por ser punido com pena de detenção, não se admite a autorização para a interceptação telefônica. Segundo Capez (op. cit. p. 505), a solução é conceder a quebra para investigar não a ameaça, mas o crime mais grave que se ameaçou praticar; por exemplo, o homicídio, no caso da ameaça de morte.

(expressa ou implicitamente) o princípio da proporcionalidade, segundo o qual uma lei restritiva, mesmo quando adequada e necessária, pode ser inconstitucional quando adote cargas coativas desmedidas, desajustadas, excessivas ou desproporcionais em relação aos resultados". (GRINOVER, et allii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 173).

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objetiva de punibilidade desses delitos, não é ca­ bível a autorização de interceptação telefônica. Para o STJ, a existência do crédito tributário é condição absolutamente indispensável para que se possa dar início à persecução penal pela prática de delito dessa natureza, sendo que o lançamen­ to definitivo do tributo é condição objetiva de punibilidade dos crimes definidos no artigo Io, da Lei 8.137/90. Logo, a autorização judicial para quebra do sigilo das comunicações telefônicas e telemáticas, para o efeito de investigação de crime de sonegação de tributo, é ilegal se deferida antes de configurada a condição objetiva de punibili­ dade de delito.448

Como a lei fala em investigação criminal ou instrução processual (art. Io, caput), e infração pe­ nal punida com pena de reclusão (art. 2o, III), sem distinguir a espécie de ação penal, conclui-se que a interceptação telefônica pode ser autorizada em relação a infrações penais de ação penal pública e de ação penal de iniciativa privada.

Na medida em que o art. 2o, inciso III, da Lei n° 9.296/96, demanda que a infração penal seja punida com pena de reclusão, depreende-se que não é pos­ sível a decretação de interceptação telefônica para investigar crimes de responsabilidade em sentido es­ trito (Lei n° 1.079/50 e Decreto-Lei n° 201/67). Afi­ nal, tais crimes não têm natureza jurídica de infração penal, mas sim de infração político-administrativa, passível de sanções político-administrativas, aplica­ das por órgãos jurisdicionais políticos (normalmente órgãos mistos, compostos por parlamentares ou por parlamentares e magistrados). A título de exemplo, de acordo com o art. 2o da Lei n° 1.079/50, os crimes aí definidos, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até 5 (cinco) anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos pro­ cessos contra o Presidente da República ou ministros de Estado, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador-Geral da República. Como desses crimes de responsabilidade não decorre sanção criminal, não podem ser qualificados como infrações penais, figurando, pois, como infrações po­ líticas da alçada do Direito Constitucional. Logicamente, se ao crime de responsabilidade corresponder uma infração penal comum, punida 448. STJ, 6a Turma, HC 57.624/RJ, Rel. Min. Paulo Medina, j. 12/09/2006, DJ 12/03/2007 p. 332. Nos mesmos moldes: STJ, 5a Turma, HC 128.087/ SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 27/10/2009, DJe 14/12/2009. A propósito, atente-se para o teor da súmula vinculante n° 24 do Supremo Tribunal Federal:"Não se tipifica crime contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo".

com pena de reclusão, não haverá qualquer óbice à autorização para a interceptação telefônica. Aliás, segundo o art. 3o da Lei n° 1.079/50, “a imposição da pena referida no artigo anterior (art. 2o) não ex­ clui o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal”.

11.1.8.5. Delimitação da situação objeto da in­ vestigação e do sujeito passivo da interceptação De acordo com a Lei n° 9.296/96 (art. 2o, pa­ rágrafo único), será sempre obrigatória a descrição com clareza da situação objeto da investigação, in­ clusive com a indicação e qualificação dos investiga­ dos, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada. Portanto, além dos requisitos dos incisos I, II e III do art. 2o, a decisão judicial que decreta a in­ terceptação telefônica também deve fazer menção à situação objeto da investigação, com a delimitação fática (objetiva) do fato que se quer comprovar. As­ sim, a título de exemplo, tratando-se de um delito de homicídio (CP, art. 121), deve o magistrado des­ crever de maneira objetiva o local onde a vítima fora morta, quem teria supostamente praticado o delito, quais indícios já existem acerca do crime e da auto­ ria e/ou participação, modus operandi do agente, etc. Além de exercer importante papel de garantia, no sentido de se coibir interceptações para apurar fatos indeterminados, essa delimitação da situação objeto da investigação também é de vital impor­ tância no tocante à descoberta de elementos pro­ batórios relacionados a outros delitos (encontro fortuito).

A par da descrição objetiva e pormenorizada do fato investigado, no quanto for possível, também é necessária a indicação e qualificação dos inves­ tigados, salvo impossibilidade manifesta, devida­ mente justificada. Cabe ao juiz, por conseguinte, individualizar o sujeito(s) passivo(s) da medida cautelar. Logicamente, não contando os órgãos da persecução penal com a identificação/qualificação dos investigados, nada impede que seja determinada a interceptação telefônica, hipótese em que cabe ao juiz apontar as razões fáticas que o impossibilitam de fazer menção à qualificação dos investigados. Também deve constar da decisão judicial a individualização da linha telefônica a ser interceptada, indicando-se seu número. A interceptação, assim, estará circunscrita ao(s) número(s) apontado na de­ cisão judicial, sendo vedado às autoridades executo­ ras ampliar a interceptação para outras linhas tele­ fônicas, salvo mediante prévia autorização judicial.

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11.1.9. Sigilo profissional do advogado Ao longo do período em que as comunicações telefônicas do investigado estão sob interceptação, é possível que as autoridades venham a se deparar com conversas firmadas entre o investigado e seu advogado. Nessa hipótese, em virtude da indevassabilidade do sigilo profissional do advogado, tais elementos probatórios (leia-se: somente as conversas entre o advogado e seu cliente) devem ser conside­ rados inadmissíveis no processo. Com efeito, seria de todo contraditório que o Estado obrigasse o Ad­ vogado a guardar segredo profissional, enquanto toma conhecimento da conversa entre o defensor e seu cliente, dela se valendo para fins de persecução penal.449 A propósito, vale lembrar que o Estatuto da Advocacia prevê como direito do advogado a in­ violabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e tele­ mática, desde que relativas ao exercício da advocacia (Lei n° 8.906/94, art. 7o, II).

Acerca do assunto, tornou-se conhecida no Brasil gravação feita pelo programa “Fantástico” de conversa entabulada entre a investigada S.L.V.R. e seu advogado. Apesar de a acusada ter concordado em conceder a entrevista ao programa semanal, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e seu advogado foi captada clandestinamente pela Rede Globo, daí por que o STJ considerou tratar-se de prova obtida por meios ilícitos, in verbis: “(...) Con­ versa pessoal e reservada entre advogado e cliente tem toda a proteção da lei, porquanto, entre outras reconhecidas garantias do advogado, está a inviola­ bilidade de suas comunicações. Como estão proibi­ das de depor as pessoas que, em razão de profissão, devem guardar segredo, é inviolável a comunicação entre advogado e cliente. Se há antinomia entre va­ lor da liberdade e valor da segurança, a antinomia é solucionada a favor da liberdade. É, portanto, ilícita a prova oriunda de conversa entre o advogado e o 449. Como já se pronunciou o STJ, "mesmo que em algumas inter­ ceptações os investigados tenham recebido e feito ligações para os seus defensores, estas foram gravadas e transcritas de maneira automática, do mesmo modo como ocorreu com as demais conversas efetivadas através dos celulares dos pacientes. Cabe ao Juiz, quando da sentença, avaliar os diálogos que serão usados como prova, podendo determinar

a destruição de parte do documento, se assim achar conveniente, no momento da prolação da sentença". (STJ, 5a Turma, HC 66.368/PA, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 05/06/2007, DJ 29/06/2007 p. 673). Em precedente isolado, todavia, a 5aTurma do STJ concluiu que não há violação ao sigilo profissional na hipótese em que as comunicações telefônicas do inves­ tigado com seu advogado forem legalmente interceptadas. Isso porque a captação das comunicações ocorreu tão somente porque o advogado era um dos interlocutores, e não porque defendia o investigado. Nesse sentido: STJ, 5a Turma, RMS 33.677/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 27/5/2014.

seu cliente. O processo não admite as provas obtidas por meios ilícitos. Na hipótese, conquanto tenha a paciente concordado em conceder a entrevista ao programa de televisão, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e um de seus advogados foi captada clandestinamente. Por revelar manifesta in­ fração ética o ato de gravação - em razão de ser a comunicação entre a pessoa e seu defensor resguar­ dada pelo sigilo funcional -, não poderia a fita ser juntada aos autos da ação penal. Afinal, a ilicitude presente em parte daquele registro alcança todo o conteúdo da fita, ainda que se admita tratar-se de entrevista voluntariamente gravada - a fruta ruim arruina o cesto. A todos é assegurado, independen­ temente da natureza do crime, processo legítimo e legal, enfim, processo justo. [...] Habeas corpus deferido para que seja desentranhada dos autos a prova ilícita”.450 Como se percebe pela própria redação do art. 7o, II, da Lei n° 8.906/94, caso haja indícios de envolvimento do advogado com o crime objeto da investigação, não há falar em proteção ao sigilo profissional, sendo plenamente válida a intercep­ tação de sua comunicação telefônica. Não se trata, pois, de imunidade absoluta, mas sim de legítima prerrogativa, a ser preservada quando relacionada ao exercício da função. Logo, não merece acolhida eventual alegação relativa à violação da liberdade de exercício profissional, se sobressai que a medi­ da foi tomada devido à possível participação do advogado em ilícitos criminais. Ainda que atuasse como advogado, as prerrogativas conferidas aos defensores não podem acobertar delitos, sendo certo que o sigilo profissional não tem natureza absoluta.451

11.1.10. Encontro fortuito de elementos pro­ batórios em relação a outros fatos delituosos (serendipidade) Tema que provoca certa controvérsia na dou­ trina e na jurisprudência diz respeito ao encontro fortuito de elementos probatórios em relação a ou­ tros fatos delituosos. Em outras palavras, supondo-se que uma interceptação telefônica tenha sido 450. STJ, 6aTurma, HC 59.967/SP, Rel. Min. Nilson Naves, j. 29/06/2006, DJ 25/09/2006 p. 316.

451. STJ, 5a Turma, HC 20.087/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 19/08/2003, DJ 29/09/2003 p. 285. Com entendimento semelhante: STJ, 6a Turma, RMS 58.898/SE, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 08/11/2018, DJe 23/11/2018; STJ, 6a Turma, RHC 73.498/DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 14/08/2018, DJe

23/08/2018; STJ, 6a Turma, Resp 1.465.966/PE, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 10/10/2017, DJe 19/10/2017; STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 457.522/SC, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 10/11 /2015, DJe 25/11 /2015; STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 1.123.449-MG, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 25.08.2020, DJe 01.09.2020.

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autorizada para apurar crime punido com reclusão (v.g., tráfico de drogas) praticado por determinado agente, indaga-se se seria possível a utilização de ele­ mentos probatórios colhidos casualmente ao longo da diligência em relação a outras infrações penais (v.g., homicídio, desacato, jogo do bicho, etc.), e/ou em relação a outras pessoas.

Acerca do assunto, tem sido aplicada pelos Tribunais a teoria do encontro fortuito ou casual de provas (serendipidade),452 a qual é utilizada nos casos em que, no cumprimento de uma diligência relativa a um delito, a autoridade policial casual­ mente encontra provas pertinentes à outra infração penal, que não estavam na linha de desdobramento normal da investigação. Fala-se em encontro for­ tuito de provas, portanto, quando a prova de deter­ minada infração penal (crime achado) é obtida a partir de diligência regularmente autorizada para a investigação de outro crime. Nesses casos, a validade da prova inesperadamente obtida está condicionada à forma como foi realizada a diligência: se houve desvio de finalidade, a prova não deve ser consi­ derada válida; se não houve desvio de finalidade, a prova é válida. Como destaca Luiz Flávio Gomes,453 duas cir­ cunstâncias marcam esse encontro fortuito: a) que ele acontece por uma razão técnica (na hora da exe­ cução da interceptação, não há condições técnicas de distinguir a priori o que versa sobre o objeto da investigação e o que lhe é distinto); b) que ele se concretiza sem autorização judicial, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, justamente por tratar-se de restrição a direito fundamental. Conclui o autor que “é válida a prova se se descobre fato delitivo conexo com o investigado, mas desde que de res­ ponsabilidade do mesmo sujeito passivo. Logo, se o fato não é conexo ou se versa sobre outra pessoa, não vale a prova. Cuida-se de prova nula. Mas isso não significa que a descoberta não tenha nenhum valor: vale como fonte de prova, é dizer, a partir

dela pode-se desenvolver nova investigação. Vale, em suma, como uma notitia criminis. Nada impede a abertura de uma nova investigação, até mesmo nova interceptação, mas independente”.

Assim, de acordo com parte da doutrina, no caso de interceptação telefônica regularmente au­ torizada pela autoridade judiciária competente, o encontro fortuito de provas em relação a outros delitos (ainda que punidos com pena de detenção) praticados pelo mesmo agente vale como legítimo meio probatório, desde que haja conexão entre as infrações penais.454

Caso se descubra o envolvimento de outra pessoa com o mesmo crime investigado, hipó­ tese em que estará caracterizada a continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77,1), o meio probatório também será considerado válido, so­ bretudo se considerarmos que o art. 2o, parágrafo único, da Lei n° 9.296/96, admite a autorização mesmo nos casos em que não tenha sido possível a indicação e qualificação dos investigados. Na visão do STJ, é lícita a prova de crime diverso, obtida por meio de interceptação de ligações te­ lefônicas de terceiro não mencionado na autori­ zação judicial de escuta, desde que relacionada com o fato criminoso objeto da investigação.455 Por outro lado, e ainda segundo a doutrina, se a interceptação telefônica conduzir à descoberta de fatos sem que haja qualquer hipótese de conexão ou continência, os elementos aí obtidos não podem ser valorados como prova pelo magistrado, o que não impede, todavia, sua utilização como notitia criminis para deflagrar novas investigações. Nessa hipótese, não há falar em prova ilícita ou prova ilícita deriva­ da. Isso porque a origem da descoberta fortuita está diretamente relacionada a uma interceptação lícita, regularmente decretada pela autoridade judiciária 454. Na mesma linha, segundo o STJ, se, no curso da escuta tele­ fônica - deferida para a apuração de delitos punidos exclusivamente

452. Segundo Gomes (Legislação criminal especial, op. cit. p. 474), "essa estranha palavra significa algo como sair em busca de uma coisa e des­ cobrir outra (ou outras), às vezes até mais interessante e valiosa. Vem do inglês serendipity, onde tem o sentido de descobrir coisas por acaso. Serendip era o antigo nome da ilha do Ceilão (atual Sri Lanka). A palavra foi cunhada em 1754 pelo escritor inglês Horace Walpole, no conto de fadas Os três príncipes de Serendip, que sempre faziam descobertas de coisas que não procuravam".

453. Legislação criminal especial, op. cit. p. 475. Ainda segundo o autor, haverá serendipidade ou encontro fortuito de primeiro grau em rela­ ção ao encontro fortuito de fatos conexos (ou quando haja continência), hipótese em que a prova produzida tem valor jurídico e deve ser analisada pelo juiz como prova válida. Quando se trata de fatos não conexos (ou quando não haja continência), impõe-se falar em serendipidade ou encontro fortuito de segundo grau, situação em que a prova produzida não pode ser valorada pelo juiz, valendo apenas como notitia criminis.

com reclusão - são descobertos outros crimes conexos com aqueles, punidos com detenção, não há porque excluí-los da denúncia, diante da possibilidade de existirem outras provas hábeis a embasar even­

tual condenação: STJ, 5a Turma, RHC 13.274/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 19/08/2003, DJ 29/09/2003 p. 276. Há doutrinadores que entendem que não é necessário que haja conexão entre os delitos. Para Capez, a ordem de quebra do sigilo vale não apenas para o crime objeto do pedido, mas também para quaisquer outros que vierem a ser desvenda­ dos no curso da comunicação, pois a autoridade não podería adivinhar tudo o que está por vir. Se a interceptação foi autorizada judicialmente, ela é lícita, e, como tal, captará licitamente toda a conversa. Não há nenhum problema. É o que o autor denomina de eficácia objetiva da autorização, (op. cit. p. 514). 455. STJ, 5a Turma, HC 33.462/DF, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 27/09/2005, DJ 07/11/2005 p. 316. Na mesma linha: STJ, 5a Turma, HC 33.553/CE, Rei.

Min. Laurita Vaz, j. 17/03/2005, DJ 11 /04/2005 p. 338.

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competente. Portanto, esse encontro fortuito é vá­ lido como legítima notitia criminis.

não do meio de prova utilizado e a partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa”.457

A jurisprudência, porém, vai um pouco mais além do entendimento doutrinário, entendendo que, se no curso de uma interceptação que apura infração punida com pena de reclusão descobre-se um delito punido com detenção ou praticado por outra pessoa, a transcrição final da captação pode ser usada não só como notitia criminis, mas também como legítimo meio probatório para fundamentar um decreto condenatório. Nessa linha, o Supremo já entendeu que, uma vez realizada a interceptação te­ lefônica de forma fundamentada, legal e legítima, as informações e provas coletas dessa diligência podem subsidiar denúncia com base em crimes puníveis com pena de detenção, desde que conexos aos pri­ meiros tipos penais que justificaram a interceptação. Do contrário, a interpretação do art. 2o, III, da L. 9.296/96 levaria ao absurdo de concluir pela impos­ sibilidade de interceptação para investigar crimes apenados com reclusão quando forem estes conexos com crimes punidos com detenção.456

11.1.10.1. Encontro fortuito de diálogos man­ tidos com autoridade dotada de foro por prer­ rogativa de função e momento adequado para a remessa dos autos ao Tribunal competente

Além disso, em alguns julgados do STJ, sequer tem sido imposta como obrigatória a existência de conexão ou continência entre as infrações penais: “havendo o encontro fortuito de notícia da prática futura de conduta delituosa, durante a realização de interceptação telefônica devidamente autorizada pela autoridade competente, não se deve exigir a demons­ tração da conexão entre o fato investigado e aquele descoberto, a uma, porque a própria Lei n° 9.296/96 não a exige, a duas, pois o Estado não pode se que­ dar inerte diante da ciência de que um crime vai ser praticado e, a três, tendo em vista que se por um lado o Estado, por seus órgãos investigatórios, violou a intimidade de alguém, o fez com respaldo constitu­ cional e legal, motivo pelo qual a prova se consolidou lícita. A discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne as infrações futuras o cerne da controvérsia se dará quanto a licitude ou 456. STF - HC 83.515/RS -Tribunal Pleno - DJ 04/03/2005 p. 11. Para Pacelli (op. cit. p. 323), "não é a conexão que justifica a licitude da prova. O fato, de todo relevante, é que, uma vez franqueada a violação dos direitos à intimidade e à privacidade dos moradores da residência, não haveria razão alguma para a recusa de provas de quaisquer outros delitos, punidos ou não com reclusão. Isso porque uma coisa é a justificação para a autorização da quebra de sigilo; tratando-se de violação à intimidade, haveria mesmo de se acenar com a gravidade do crime. Entretanto, ou­ tra coisa é o aproveitamento do conteúdo da intervenção autorizada; tratando-se de material relativo à prova de crime (qualquer crime), não se pode mais argumentar com a justificação da medida (interceptação telefônica), mas, sim, com a aplicação da lei".

Pela própria natureza da interceptação tele­ fônica, que, ao monitorar diretamente a comuni­ cação verbal entre pessoas, necessariamente acaba por envolver terceiros, em regra não investigados, no campo de sua abrangência, é relativamente co­ mum que a autoridade responsável pela investiga­ ção casualmente encontre elementos de informação pertinentes à outra infração penal, ou atinentes a indivíduo diverso, que não estavam na linha de desdobramento normal daquela técnica especial de investigação. Trabalha-se, nesse caso, como exposto anteriormente, com a denominada teoria do encon­ tro fortuito de provas (serendipidade).

Dentre as pessoas que podem ter suas conversas fortuitamente captadas durante uma interceptação telefônica deferida em primeiro grau de jurisdição estão aquelas dotadas de foro por prerrogativa de função (v.g., Deputado Federal). Nesse caso, partindo-se da premissa de que o prosseguimento das investigações em relação a tais indivíduos pressupõe prévia autorização do Tribunal competente (STF, Pleno, Inq. 2.411 QO/MT, Rei. Min. Gilmar Mendes, Dje 74 24/04/2008), discute-se acerca da necessi­ dade de imediata remessa dos autos àquele juízo. O ideal é concluir que a captação fortuita de diálogos mantidos por autoridade com prerrogativa de foro não impõe, por si só, a remessa imediata dos autos ao Tribunal competente para processar e julgar a referida autoridade, sem que antes se ava­ lie a idoneidade e a suficiência dos dados colhidos para se firmar o convencimento acerca do possível envolvimento do detentor de prerrogativa de foro com a prática de crime. Com efeito, uma simples conversa, um encontro casual ou mesmo sinais cla­ ros de amizade e contatos frequentes de indivíduo sob investigação com uma autoridade pública não pode, por si só, redundar na conclusão de que esta última participaria do esquema criminoso objeto 457. STJ, 5a Turma, HC 69.552/PR, Rei. Min. Felix Fischer, j. 06/02/2007, DJ 14/05/2007 p. 347. Com entendimento semelhante: STJ, Corte Especial, APN 425, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 16/11 /2005, DJ 15/05/2006 p. 141. Reputando válidas as provas encontradas casualmente pelos agentes

da persecução penal, ainda que inexista conexão (ou continência) com o crime supervenientemente encontrado e este não cumpra os requisitos autorizadores da medida probatória, desde que não haja desvio de fina­ lidade na execução do meio de obtenção de prova: STJ, 5a Turma, RHC 94.803/RS, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 04.06.2019, DJe 11.06.2019.

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da investigação. Nem mesmo a referência a favores pessoais, a contatos com terceiros, a negociações suspeitas implica, de per si, a inarredável conclusão de que se está diante de práticas criminosas mere­ cedoras de imediata apuração. Dito de modo mais específico, a simples captação de diálogos de quem detém foro especial com alguém que está sendo in­ vestigado por práticas ilícitas não pode conduzir, tão logo surjam conversas suspeitas, à conclusão de que a referida autoridade é participante da atividade criminosa investigada ou de outro delito qualquer, sendo mister um mínimo de avaliação quanto à ido­ neidade e à suficiência de dados para desencadear o procedimento esperado da autoridade judiciária responsável pela investigação. Em verdade, há de se ter certo cuidado para não se extraírem conclusões precipitadas ante a escuta fortuita de conversas.

Nesse contexto, como se pronunciou a 6a Turma do STJ, a remessa imediata de toda e qualquer inves­ tigação em que noticiada a possível prática delitiva de detentor de prerrogativa de foro ao órgão juris­ dicional competente não só pode implicar prejuízo à investigação de fatos de particular e notório inte­ resse público, como também representar sobrecarga acentuada aos tribunais, a par de, eventualmente, engendrar prematuras suspeitas sobre pessoa cujas honorabilidade e respeitabilidade perante a opinião pública são determinantes para a continuidade e o êxito de sua carreira. Portanto, é possível afirmar que, tão somente em um claro contexto fático do qual se possa com segurança depreender, a partir dos diálogos dos investigados com pessoa detentora de foro especial, que há indícios concretos de envol­ vimento dessa pessoa com a prática de crime(s), será imperativo o envio dos elementos de informação ao tribunal competente.458 Enfim, se se admite a descoberta fortuita do envolvimento de autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função a partir de interceptação te­ lefônica autorizada por magistrados de Ia instância à luz da teoria do juízo aparente, daí, todavia, não se pode concluir que tais investigações possam se perpetuar indefinidamente perante um juízo ma­ nifestamente incompetente. É dizer, surgindo in­ dícios inequívocos, por exemplo, do envolvimento de um parlamentar federal, incumbe à autoridade judiciária de primeira instância, sob cuja supervisão tramitar o procedimento investigatório, reconhecer, de imediato, sua falta de competência e determinar 458. STJ, 6a Turma, HC 307.152/G0, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 19/11/2015, DJe 15/12/2015. No mesmo contexto: STJ, 6a Turma, AgRg

a remessa dos autos ao seu juiz natural, in casu, ao Supremo Tribunal Federal, sob pena de mani­ festa ilicitude das provas obtidas por meio de tais interceptações. A propósito, em recente decisão, a 2a Turma do STF declarou a ilicitude de diversas interceptações telefônicas realizadas no âmbito das operações Vegas e Monte Cario, que serviram de base à denúncia oferecida contra o ex-Senador D. T., ao qual foram imputados os crimes de corrupção passiva e advo­ cacia administrativa. À época, o referido investigado era Senador da República, ou seja, ainda era dotado de foro por prerrogativa de função. Por conseguin­ te, eventual prorrogação do prazo das intercepta­ ções telefônicas que tinham o referido parlamentar como “alvo” jamais poderiam ter sido deferidas por um juiz de Ia instância, sob pena de manifesta usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102,1, “b”), foro competente para processar e julgar o então Senador, que ainda não havia renunciado ao seu mandato. Por mais que o referido Parlamentar não tivesse sido o “alvo” ini­ cial das investigações - este o motivo pelo qual as primeiras interceptações telefônicas foram deferidas por juiz de Ia instância -, seu envolvimento ficou evidenciado desde o limiar das investigações, fato este corroborado com a produção de relatórios à parte especificamente contra ele com mais de 1.000 páginas. Logo, não se poderia admitir o prossegui­ mento das interceptações por quase 1 (um) ano com o objetivo de se obter, por via oblíqua, mais indícios do envolvimento do então Senador sem prévia au­ torização do STF.459

11.1.11. Procedimento Diz o art. 3o da Lei n° 9.296/96 que a inter­ ceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I - da autoridade policial, na investigação criminal; II - do representante do Ministério Público, na in­ vestigação criminal e na instrução processual penal. Em relação à autoridade policial, seu pedido só é pertinente durante as investigações criminais. Apesar de a lei não se referir expressamente à ne­ cessidade de oitiva do Ministério Público quando a solicitação tenha partido da autoridade policial, queremos crer que a concordância do Parquet é obrigatória, nos mesmos moldes do que ocorre nos casos de prisão temporária (Lei n° 7.960/89, art. 2o, § Io) e de prisão preventiva, haja vista ser ele o titular

no RHC 91.681-SC, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j. 16.06.2020,

DJe 25.06.2020.

459. STF, 2a Turma, RHC 135.683, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 25/10/2016.

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da ação penal pública (CF, art. 129,1), e, portanto, destinatário final das investigações policiais.460

redução a termo. O juiz, no prazo máximo de vinte e quatro horas, decidirá sobre o pedido.

O órgão do Ministério Público pode requerer a interceptação telefônica na fase investigatória e durante o curso da instrução processual. Ademais, tendo em conta que a jurisprudência tem admitido o poder investigatório do Ministério Público, nada impede que uma interceptação telefônica seja so­ licitada no curso de procedimento investigatório criminal presidido pelo próprio órgão ministerial.461 Por analogia, na ação penal de iniciativa privada, deve-se conferir ao querelante legitimidade para requerer a interceptação.

Presentes os requisitos para a interceptação te­ lefônica, impõe-se a decretação da medida. Como sói ocorrer na legislação brasileira, apesar de o le­ gislador dizer que a interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz (Lei n° 9.296/96, art. 3o), não se trata de uma mera faculda­ de do magistrado. Incumbe sim, ao juiz, proceder à constatação fática e jurídica do que se lhe pede. Se, apesar da presença de todos os requisitos para a decretação da interceptação, o pedido for indefe­ rido, resta ao Ministério Público a possibilidade de interpor mandado de segurança. Além disso, como tal decisão é baseada na cláusula rebus sic stantibus, modificado o contexto probatório em que foi formulado o pedido inicial, nada impede que novo pedido seja formulado pelo Parquet.

Nos crimes de ação penal pública, a lei não con­ fere legitimidade à vítima para requerer a intercep­ tação telefônica, independentemente de ela ter-se habilitado (ou não) como assistente no processo. Se a vítima não tem legitimidade para requerê-la, queremos crer, porém, que pode sugerir à autorida­ de policial ou ao órgão do Ministério Público que requeiram a diligência.

Como se percebe pela leitura do art. 3o da Lei n° 9.296/96, a lei nada menciona acerca da possi­ bilidade de a defesa requerer a interceptação tele­ fônica. A despeito do silêncio da Lei n° 9.296/96, há doutrinadores que entendem que, se o acusado pretender interceptar a conversa de outro possível suspeito ou da suposta vítima, a fim de obter provas da própria inocência, poderia o advogado do réu, em face do princípio da proporcionalidade, requerer diretamente ao juiz a realização da interceptação. A nosso ver, o silêncio do legislador foi eloquente: não se confere legitimidade à defesa para requerer a interceptação telefônica, o que não significa dizer, no entanto, que o defensor ou o acusado não possam instar a autoridade policial ou o órgão ministerial para que exerçam sua legitimidade. Como dispõe o art. 4o da Lei n° 9.296/96, o pe­ dido de interceptação de comunicações telefônicas conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com in­ dicação dos meios a serem empregados. Excepcio­ nalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente, desde que estejam presen­ tes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em que a concessão será condicionada à sua 460. Para mais detalhes acerca da necessidade de anuência do Minis­ tério Público em relação às medidas cautelares solicitadas pela autorida­ de policial durante o curso do inquérito policial, remetemos o leitor ao capítulo da prisão cautelar, mais especificamente no tópico pertinente

à legitimidade para o requerimento de decretação da prisão preventiva. 461. STJ, 5a Turma, RHC 10.974/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 26/02/2002,

DJ 18/03/2002 p. 273.

Trata-se de medida cautelar inaudita altera pars, cuja decretação prescinde de prévia oitiva do investigado. De modo a se preservar a própria efi­ cácia da diligência, o investigado (ou acusado) e seu defensor não podem tomar conhecimento da circunstância de estar em curso uma interceptação telefônica.

11.1.12. Decretação da interceptação telefôni­ ca de ofício pelo juiz Pelo menos de acordo com a redação expressa do art. 3o, caput, da Lei n° 9.296/96, a interceptação telefônica poderia ser decretada de ofício pelo juiz no curso das investigações e durante a instrução processual. Tal dispositivo deve ser interpretado à luz da Constituição Federal.

Ao tratarmos da iniciativa probatória do juiz, foi dito que a possibilidade de o magistrado atuar de ofício na fase pré-processual representa clara e evidente afronta ao sistema acusatório adotado pela Carta Magna (CF, art. 129,1), além de violar a ga­ rantia da imparcialidade do magistrado.

Destoa das funções do magistrado exercer qual­ quer atividade de ofício na fase investigatória, sob pena de auxiliar a acusação na colheita de elementos de informação que irão servir ao titular da ação pe­ nal para provocar a jurisdição. A iniciativa da inter­ ceptação pelo juiz também representa usurpação à atribuição investigatória do Ministério Público e da Polícia Judiciária. Graves prejuízos seriam causados à imparcialidade do magistrado, caso se admitisse que pudesse decretar a medida de ofício ainda na fase investigatória. O que lhe compete é - e des­ de que seja provocado - analisar a necessidade da

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medida, concedendo-a caso presentes os requisitos acima analisados. Entretanto, uma vez em curso o processo, a au­ toridade judiciária passa a deter poderes inerentes ao próprio exercício da função jurisdicional, razão pela qual, nessa fase, é perfeitamente possível que determine a interceptação telefônica de ofício, seja por força do princípio da busca da verdade, seja pela própria adoção do sistema da persuasão racional do juiz (convencimento motivado). Afinal, visualizan­ do a necessidade da decretação da medida, não se pode privar o magistrado de importante instrumen­ to para assegurar o melhor acertamento dos fatos delituosos submetidos a julgamento. Acerca do assunto, aliás, importa registrar que foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repúbli­ ca Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n° 3.450) em face do art. 3o da Lei n° 9.296/96, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade par­ cial, sem redução de texto, do referido dispositivo, excluind '‘-se a interpretação que permite ao juiz, na fase pré-processual penal, determinar de ofício da interceptação de comunicações telefônicas.

11.1.13. Segredo de justiça Prevê o art. Io da Lei n° 9.296/96 que a intercep­ tação telefônica dependerá de ordem do juiz compe­ tente da ação principal, sob segredo de justiça. Isso significa dizer que a pessoa investigada não pode ter conhecimento da realização das diligências, pois, do contrário, seria totalmente frustrada a possível eficácia desse meio de investigação. Não importa se a medida cautelar venha a ser autorizada durante as investigações ou durante a instrução processual pe­ nal: a diligência deve ser levada a efeito sob segredo de justiça, única forma de se garantir sua utilidade.

Trata-se, portanto, de medida cautelar inaudita altera pars, cuja decretação prescinde de prévia oitiva do investigado. De modo a se preservar a própria efi­ cácia da diligência, o investigado (ou acusado) e seu defensor não podem tomar conhecimento da circuns­ tância de estar em curso uma interceptação telefônica. Finda a medida, abre-se lugar ao contraditório e à ampla defesa com todos os recursos a ela ine­ rentes (impugnações e direito à prova, v.g., perícias fonéticas, etc.). Em outras palavras, o contraditório será exercido posteriormente (contraditório diferi­ do), ou seja, quando concluídas as diligências per­ tinentes à interceptação telefônica, ao investigado e a seu defensor deve ser franqueado o acesso ao con­ teúdo integral das gravações, a fim de que possam impugnar a prova produzida, exercendo o direito à ampla defesa.

Mesmo após ser levantado o segredo de justiça para o investigado e seu defensor, todavia, não é qualquer pessoa que poderá ter acesso ao conteú­ do das diligências, gravações e transcrições. Va­ lores constitucionais como um processo justo, o direito à intimidade e à vida privada do acusado e das pessoas que com ele se comunicaram devem preponderar sobre o direito de que a todos seja assegurada a possibilidade de ter acesso ao teor das gravações telefônicas. Não há falar, portanto, em publicidade externa em relação aos elementos obtidos com a interceptação telefônica. Daí a própria lei ter tipificado a conduta de realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei (art. 10).

11.1.14. Duração da interceptação Diz o art. 5o da Lei n° 9.296/96 que a intercep­ tação telefônica não poderá exceder o prazo de 15 (quinze) dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Como se vê, a execução da diligência não pode ul­ trapassar o limite de 15 (quinze) dias. Evidentemen­ te, esse prazo de 15 (quinze) dias não se inicia da decisão judicial que autoriza a interceptação telefô­ nica, mas sim do dia em que a medida é efetivada.462 Sem embargo da literalidade do art. 5o da Lei n. 9.296/96, convém destacar que há precedentes dos Tribunais Superiores no sentido de que, embora o referido dispositivo estabeleça o prazo inicial de 15 (quinze) dias para as interceptações, nada impe­ de que o magistrado, com base em circunstâncias concretas, estabeleça período superior. Por isso, em caso concreto em que a interceptação foi autorizada inicialmente pelo prazo de 30 (trinta) dias, dada a excepcionalidade do caso, que envolvia fatos com­ plexos praticados por organização criminosa com­ posta por diversos membros, concluiu a 5a Turma do STJ no sentido da legalidade da medida.463 462. Nessa linha: STJ, 5a Turma, AgRg no RHC 114.973-SC, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 19.05.2020, DJe 27.05.2020; STJ, 6a Turma, HC 135.771/PE, Rel. Min. Og Fernandes, j. 04/08/2011. Por isso, em caso concreto no qual a interceptação só teve início 3 (três) meses após a autorização judicial, em virtude de greve da Polícia Federal no período, entendeu o STJ não haver qualquer ilegalidade: STJ, 6aTurma, HC 113.477/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/03/2012. 463. STJ, 5a Turma, RHC 88.021/PE, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 15.03.2018, DJe 23.03.2018. Com entendimento semelhante: STF, Ia Turma, HC 106.129/MS, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 26.03.2012; STJ, 6a Turma, HC 421.914/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 19.03.2019, DJe 26.03.2019; STJ, 5a Turma, AgRg no RHC 106.364/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 04.06.2019, DJe 14.06.2019. No sentido de que a prorroga­ ção por período superior ao do art. 5o da Lei n. 9.296-96 também não conduz à nulidade da interceptação, quando devidamente demonstrada

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A nosso juízo, esse prazo de 15 (quinze) dias é o prazo-limite para cada autorização judicial, o que não impede o juiz de conceder a autorização por prazo inferior, caso entenda ser tal prazo suficiente para auxiliar nas investigações.

Havendo necessidade de renovação do prazo da interceptação, esta deve se dar antes do decurso do prazo fixado na decisão originária, evitando-se uma solução de continuidade na captação das comuni­ cações telefônicas. Como o controle judicial deve ser prévio, seja no tocante à concessão inicial da interceptação, seja em relação à renovação do pra­ zo, se as interceptações se prolongarem por período “descoberto” de autorização judicial, os elementos aí obtidos devem ser considerados inválidos, por violação ao preceito do art. 5o, XII, da Constituição Federal.464

Como deixa entrever o próprio art. 5o da Lei n° 9.296/96, a renovação do prazo da interceptação não pode se dar de maneira automática, sendo impres­ cindível a comprovação da indispensabilidade do meio de prova. Quando mantidos os pressupostos que autorizaram a decretação da medida originária, admite-se a utilização da técnica de fundamentação per relationem para a prorrogação da interceptação telefônica.465 Para fundamentar o pedido de reno­ vação da interceptação, exige-se relatório circuns­ tanciado da polícia com a explicitação das conversas e da necessidade da continuação das investigações.

Não se exige que o deferimento das prorro­ gações (ou renovações) seja sempre precedido da completa transcrição das conversas, sob pena de se frustrar a rapidez na obtenção da prova. Não é necessária, pois, a transcrição das conversas a cada pedido de renovação da escuta telefônica, pois o que importa, para a renovação, é que o Juiz tenha conhecimento do que está sendo investigado, justi­ ficando a continuidade das interceptações, mediante demonstração de sua necessidade. a imprescindibilidade da continuidade da medida: STJ, 6a Turma, AgRg no RHC 119.429/MS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 18.02.2020, DJe 02.03.2020.

464. Como já decidiu o STJ, "eventual nulidade da interceptação te­ lefônica por breve período (7 dias), por falta de autorização judicial, não há de macular todo o conjunto probatório colhido anteriormente ou posteriormente de forma absolutamente legal; todavia, a prova obtida nesse período deve ser desentranhada dos autos e desconsiderada pelo Juízo". (STJ, 5aTurma, HC 152.092/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 08/06/2010, DJe 28/06/2010). 465. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, Aglnt no REsp 1.390.751/PR, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 08/11/2018, DJe 23/11/2018; STJ, 5a Turma,

RHC 34.349/RS, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 23/10/2018, DJe 09/11/2018; STJ, 6a Turma, RHC 73.498/DF, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 14/08/2018, DJe 23/08/2018; STJ, 6a Turma, AgRg no RHC 68.058/RS, Rei. Min. Sebastião

Reis Júnior, j. 07/06/2018, DJe 13/06/2018.

Quanto ao número de vezes em que o prazo da interceptação telefônica pode ser renovado, há intensa controvérsia doutrinária, podendo ser iden­ tificadas 4 (quatro) correntes distintas: a) a renovação só pode ocorrer uma única vez: logo, a duração máxima da interceptação seria de 30 (trinta) dias;466

b) a renovação só pode ocorrer uma única vez: porém, quando houver justificação exaustiva do excesso e quando a medida for absolutamente indispensável, é possível a renovação do prazo da interceptação, mas esse excesso não pode ofender a razoabilidade. Em caso concreto em que as intercep­ tações telefônicas perduraram por quase 02 (dois) anos, a 6a Turma do STJ concluiu haver evidente violação ao referido princípio, daí por que conside­ rou ilícita a prova resultante de tantos e tantos dias de interceptação das comunicações telefônicas;467 c) o limite máximo seria de 60 (sessenta) dias: quando decretado o Estado de Defesa (CF, art. 136), o Presidente da República pode limitar o direito ao sigilo da comunicação telegráfica e telefônica. Esse estado não pode superar o prazo de 60 (sessenta) dias (CF, art. 136, § 2o). Se durante o Estado de Defe­ sa a limitação não pode durar mais de 60 (sessenta) dias, em estado de normalidade esse prazo também não pode ser maior;

d) o prazo da interceptação pode ser renovado indefinidamente, desde que comprovada a indis­ pensabilidade do meio de prova (posição majoritá­ ria): no art. 5o da Lei n° 9.296/96, a expressão uma vez deve ser compreendida como preposição, e não como adjunto adverbial.468 Pensamos ser essa a po­ sição mais acertada. Com a crescente criminalidade em nosso país, é ingênuo acreditar que uma inter­ ceptação pelo prazo de 30 (trinta) dias possa levar ao esclarecimento de determinado fato delituoso. A depender da extensão, intensidade e complexidade das condutas delitivas investigadas, e desde que de­ monstrada a razoabilidade da medida, o prazo para a renovação da interceptação pode ser prorrogado indefinidamente enquanto persistir a necessidade da captação das comunicações telefônicas.469 466. É essa a posição de Luiz FranciscoTorquato Avolio (op. cit. p. 188). 467. STJ, 6aTurma, HC 76.686/PR, Rei. Min. Nilson Naves, j. 09/09/2008, DJe 10/11/2008. 468. GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 51. Com o mesmo entendimento: GRINOVER, et alii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 177.

469. STJ, 5aTurma, HC 152.092/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 08/06/2010, DJe 28/06/2010; STJ, 5a Turma, HC 138.933/MS, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29/10/2009, DJe 30/11/2009. A jurispru­ dência do Supremo Tribunal Federal também consolidou o entendimento segundo o qual as interceptações telefônicas podem ser prorrogadas desde que devidamente fundamentadas pelo juízo competente quanto

TÍTULO 6 • PROVAS

11.1.15. Execução da interceptação telefônica Deferido o pedido, a autoridade policial con­ duzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompa­ nhar a sua realização (Lei n° 9.296/96, art. 6o, caput). Apesar de o art. 6o da Lei n° 9.296 referir-se à autoridade policial, de onde se poderia extrair que somente a autoridade policial no exercício de fun­ ções de polícia judiciária poderia conduzir os pro­ cedimentos de interceptação, o STJ já admitiu a pos­ sibilidade de a Polícia Rodoviária Federal fazê-lo: “o art. Io, inciso X, do Decreto n° 1.655 de 03/10/1995, autorizou a polícia rodoviária federal a: “colaborar e atuar na prevenção e repressão aos crimes contra a vida, os costumes, o patrimônio, a ecologia, o meio ambiente, os furtos e roubos de veículos e bens, o tráfico de entorpecentes e drogas afins, o contraban­ do, o descaminho e os demais crimes previstos em lei.” O Pretório Excelso, ao julgar a medida cautelar na ADI 1.413/DF, manteve na íntegra o texto do referido Decreto. Ante as peculiaridades do caso em tela, há que se autorizar à polícia rodoviária federal auxiliar nas investigações”.470 à necessidade para o prosseguimento das investigações: HC n° 83.515/RS, Rei. Min. Nelson Jobim, Pleno, maioria, DJ de 04.03.2005; HC n° 84.301/ SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, 2a Turma, unanimidade, DJ de 24.03.2006

e HC 88.371/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/11/2006, DJ 02/02/2007.

No sentido de que as interceptações telefônicas podem ser prorrogadas sucessivas vezes pelo tempo necessário para a produção da prova, espe­

cialmente quando o caso for complexo e a prova, indispensável, sendo certo que a fundamentação da prorrogação pode manter-se idêntica à do pedido original, pois a repetição das razões que justificaram a escuta não constitui, por si só, ilicitude. Nesse sentido: STJ, 5aTurma, HC 143.805/ SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 14/02/2012. 470. STJ, 5aTurma, HC45.630/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 16/02/2006, DJ 10/04/2006 p. 242. A 5a Turma do STJ também considerou legais interceptações telefônicas realizadas, com ordem judicial, pela Coor-

denadoria de Inteligência do Sistema Penitenciário (Cispen), órgão da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro. Para o Min. Jorge Mussi, o art. 6o da Lei n° 9.296/96 não pode ser inter­ pretado de forma muito restritiva, sob pena de se inviabilizarem inves­ tigações criminais que dependam de interceptações telefônicas: STJ, 5a Turma, HC 131,836/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 04/11/2010, Informativo

n° 454 do STJ. Em outro julgado, concluiu a 5a Turma do STJ que o art. 6o da Lei n° 9.296/96 não autoriza a conclusão no sentido de que apenas a autoridade policial é autorizada a proceder às interceptações telefôni­ cas, sendo plenamente possível que eventual escuta e posterior trans­ crição das escutas telefônicas sejam feitas por servidores do Ministério Público: STJ, 5a Turma, HC 244.554/SP, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 09/10/2012.0 Supremo também admite a possibilidade excepcional de a polícia militar, mediante autorização judicial, sob supervisão do parquet, efetuar a mera execução das interceptações, na circunstância de haver singularidades que justifiquem esse deslocamento, como, por exemplo, quando houver suspeita de envolvimento de autoridades policias da delegacia local: STF, 2aTurma, HC 96.986/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 15/05/2012. É firme a orientação do STJ no sentido de que o art. 6o da Lei n. 9.296/96 não restringe à polícia civil a atribuição para a execução de interceptação telefônica ordenada judicialmente. A propó­ sito, confira-se: STJ, 5a Turma, RHC 78.743/RJ, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 13/11/2018, DJe 22/11/2018; STJ, 6a Turma, RHC 90.125/ SC, Rei. Min. Nefi Cordiro, j. 07/08/2018, DJe 15/08/2018; STJ, 5a Turma, RHC 62.067/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 06/03/2018, DJe 14/03/2018.

Perceba-se que é obrigatória a ciência dos pro­ cedimentos operacionais ao órgão do Ministério Público, sob pena de nulidade relativa.471 Agora, se a ciência ao órgão do Ministério Público é obriga­ tória, o acompanhamento das diligências é facul­ tativo. Afinal, como destinatário final das investi­ gações, ainda que o Ministério Público não tenha acompanhado as diligências, delas fatalmente terá conhecimento quando por ocasião da formação de sua opinio delicti.

Na medida em que a polícia investigativa nem sempre dispõe dos meios próprios para captação das comunicações telefônicas, a própria Lei n° 9.296/96 prevê que, para os procedimentos de interceptação, a autoridade policial poderá requisitar serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público (art. 7o). Em algumas situações, não é possível a gra­ vação das comunicações telefônicas interceptadas. Ademais, há situações em que a determinação judi­ cial não diz respeito à captação das comunicações telefônicas, limitando-se ao simples controle das chamadas telefônicas, a fim de se saber quando e para quem o sujeito passivo está efetuando ligações. Daí por que a própria Lei n° 9.296/96 ressalva que, no caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada a sua transcrição (art. 6o, § Io). A nosso ver, sendo possível a gravação da comunicação, deve o magistrado de­ terminá-la, para posterior transcrição das conversas interceptadas, pois, somente assim, poderá haver melhor aferição da veracidade da prova, sua idonei­ dade técnica e autenticidade da voz, para oportuna valoração do juiz.472 Caso a gravação seja efetuada, é importante a preservação dos originais, na medi­ da em que pode haver questionamentos acerca da autenticidade da prova (espectograma da voz).473

Caso não seja efetuada a gravação das conversas telefônicas, o conteúdo das conversas será trazido aos autos por meio de prova testemunhai - os res­ ponsáveis pela execução da medida serão ouvidos como testemunhas. Logicamente, nessa hipótese, 471. Na visão do STJ, "não se anula o procedimento por ausência de

intimação do Ministério Público para acompanhar as diligências, ante a

ausência de comprovação de prejuízo à parte". (STJ, 5aTurma, HC 43.234/ SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 03/11/2005, DJ 21/11/2005 p. 265). 472. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. As nulidades no processo penal.

Op. cit. p. 176.

473. De acordo com o STJ, é desnecessária a realização de perícia para a identificação de voz captada nas interceptações telefônicas, salvo quando houver dúvida plausível que justifique a medida. Nessa linha: STJ, 5a Tur­ ma, HC 453.357/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 16/08/2018, DJe 24/08/2018; STJ, 6aTurma, REsp 1,340.069/SC, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 15/08/2017, DJe 28/08/2017; STJ, 6a Turma, REsp 1.501,855/PR, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 16/05/2017, DJe 30/05/2017.

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

o valor probante da prova será indubitavelmente menor em relação àquele da gravação, mas daí não se pode concluir pela exclusão da prova, devendo o juiz atribuir a ela o que valor que merecer. De acordo com a jurisprudência, não é obri­ gatória a transcrição total das gravações, desde que assegurado às partes o acesso à integralidade das gravações.474 Em caso concreto em que houve gra­ vações diárias e ininterruptas de diversos terminais durante período de 7 (sete) meses, com mais de qui­ nhentos mil arquivos, concluiu o Supremo ser sufi­ ciente a transcrição literal e integral das gravações em que se apoiou a denúncia, desde que garantido à defesa o acesso ao meio magnético em que gravadas as conversas. Só é exigível, portanto, a transcrição integral de tudo aquilo que seja relevante para es­ clarecer sobre os fatos da causa sub iudice.475 Enfim, como já se pronunciou a 6a Turma do STJ, “(...) não se mostra razoável exigir, sempre e de modo irres­ trito, a degravação integral das escutas telefônicas, haja vista o prazo de duração da interceptação e o tempo razoável para dar-se início à instrução cri­ minal, porquanto há diversos casos em que, ante a complexidade dos fatos investigados, existem mais de mil horas de gravações. Assim, há de ser feita uma seleção daquilo que deve, realmente, constar dos autos para a defesa e para a acusação, dispen­ sável a transcrição de tudo que é irrelevante para a persecução criminal”.476 Há, todavia, precedente recente do Plenário do Supremo no sentido de que, desde que evidencia­ da a imprescindibilidade da medida, de caráter não protelatório, impõe-se a degravação de mídia eletrô­ nica referente a diálogos telefônicos interceptados

durante investigação policial, nos termos do art. 6o, § Io, da Lei n° 9.296/9Ó.477

Conquanto não haja necessidade de transcrição total das gravações, é dever do Estado disponibilizar a integralidade das conversas captadas, sendo inad­ missível a seleção pelas autoridades da persecução de partes dos áudios interceptados. A apresentação de parcela do produto extraído dos áudios, cuja fil­ tragem for feita sem a presença do defensor, acar­ reta evidente ofensa ao princípio da paridade de armas e ao direito à prova, porquanto a verificação da pertinência do acervo probatório não pode ser realizada apenas pela acusação, na medida em que gera desvantagem desarrazoada em detrimento da defesa.478 Noutro giro, disponibilizada a integralidade do conteúdo das conversas captadas nas interceptações telefônicas, não há falar em nulidade pelo fato de os arquivos se encontrarem em determinado formato, já que não recai sobre o Poder Público nenhuma obrigação de conversão destes em formato escolhido pela defesa.479

Não há na lei qualquer exigência no sentido de que a degravação seja submetida à perícia. Além disso, é desnecessário que a transcrição das grava­ ções resultantes da interceptação telefônica seja feita por peritos oficiais: cuidando-se de tarefa que não exige conhecimentos técnicos especializados, pode ser realizada pelos próprios policiais que atuaram na investigação.480 Cumprida a diligência, a autoridade policial en­ caminhará o resultado da interceptação ao Poder Ju­ diciário, acompanhado de auto circunstanciado, que 477. STF, Plenário, AP 508 AgR/AP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 07/02/2013. Foram vencidos os MinistrosTeori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Gilmar Mendes, que consideravam legítima a degravação parcial, desde que

474. Nesse sentido: STJ, 5a Turma, HC 422.642/SP, Rel. Min. Reynaldo

dado amplo acesso aos interessados da totalidade da mídia eletrônica.

Soares da Fonseca, j. 25/09/2018, DJe 02/10/2018; STJ, 5aTurma, AgRg no AREsp 1.301,242/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 11 /09/2018, DJe 17/09/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1.374.450/SP, Rel. Min. Joel llan Paciornik, j.

478. Reconhecendo a quebra da cadeia de custódia da prova, com a consequente nulidade da interceptação telefônica, em virtude da falta de acesso à integralidade das conversas: STJ, 6a Turma, REsp 1.795.341/

11/09/2018, DJe 17/09/2018; STJ, 6aTurma, AgRg no AREsp 1.136.157/G0,

RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 07/05/2019, DJe 14/05/2019.

Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 04/09/2018, DJe 13/09/2018.

475. STF, Pleno, Inq. 2424/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 26/11/2008, DJe 55 25/03/2010. E também: STF, Pleno, HC 91.207 MC/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 11/06/2007, DJe 106 20/09/2007. No sentido de que não é necessária a transcrição integral das conversas interceptadas, desde que possibilitado ao investigado o pleno acesso a todas as con­ versas captadas, assim como disponibilizada a totalidade do material que, direta e indiretamente, àquele se refira, sem prejuízo do poder do magistrado em determinar a transcrição da integralidade ou de partes do áudio: STF, Pleno, Inq. 3.693/PA, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 10/04/2014. No sentido de que é necessário transcrever o trecho completo da conversa, a fim de permitir sua contextualização, vedada a edição, ainda que dispensada a transcrição completa da intercepta­ ção: STF, Pleno, ADI 4.263/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 25/04/2018. 476. STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 1.123.449-MG, Rel. Min. Rogério

Schietti Cruz, j. 25.08.2020, DJe 01.09.2020.

479. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1.861.383-SC, Rel. Min. Joel llan Paciornik, j. 15.09.2020, DJe 21.09.2020.

480. STJ, 5aTurma, HC 66.967/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/11/2006, DJ 11/12/2006 p. 402. Ainda no sentido da desnecessidade de que as degravações das escutas sejam feitas por peritos oficiais: STJ, 6a Tur­ ma, AgRg no AREsp 583.598/MG, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 12/06/2018, DJe 22/06/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1.322.181/ SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 12/12/2017, DJe 18/12/2017; STJ, 6a Turma, REsp 1.501.855/PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 16/05/2017, DJe 30/05/2017; STJ, 6a Turma, HC 258.763/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 07/08/2014, DJe 21/08/2014. No sentido de que não há necessidade de identificação dos interlocutores por meio de perícia técnica ou de degravação dos diálogos em sua integridade por peritos oficiais, visto que a Lei n° 9.296/96 não faz qualquer exi­ gência nesse sentido: STJ, 5aTurma, REsp 1.134.455/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 22/02/2011.

TÍTULO 6 • PROVAS

deverá conter o resumo das operações realizadas (Lei n° 9.296/96, art. 6o, § 2o), mesmo quando a in­ terceptação não tenha tido êxito. Esse auto circuns­ tanciado é formalidade essencial à valia da prova resultante de degravações de áudio e interceptação telefônica, sendo que eventual vício dele constante é considerado causa de nulidade relativa.481

prolação da sentença. Em outras palavras, os três dispositivos legais acima citados dizem que o apen­ samento somente deve ocorrer após as alegações finais das partes. Tenta-se, assim, preservar com maior eficácia o sigilo das diligências e transcri­ ções, evitando que terceiros tomem conhecimento do conteúdo das comunicações telefônicas.

Recebidos esses elementos, o Juiz determinará sua autuação em apartado,482 ficando apensado aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Com o apensamento aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, os elementos obtidos por meio da interceptação te­ lefônica poderão servir para a formação da opinio delicti do órgão ministerial, bem como influenciar na formação da convicção do magistrado.

Entretanto, se a apensação só deve ocorrer antes da sentença quando a interceptação for decretada no curso do processo, daí não se pode concluir que o acusado e seu defensor só terão acesso ao conteúdo da prova nesse momento. Afinal, é óbvio que as par­ tes, antes de apresentarem suas alegações, devem ter acesso à prova obtida pela interceptação telefônica.

Segundo o art. 8o, parágrafo único, da Lei n° 9.296/96, a apensação somente poderá ser realiza­ da imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial ou na conclu­ são do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407,483 502484 ou 538485 do Có­ digo de Processo Penal. Há de se ter especial atenção aos dispositivos legais aí citados, na medida em que a reforma processual de 2008 alterou a redação de todos eles.

A referência feita pelo legislador no art. 8o aos dispositivos acima mencionados demonstra que a apensação deve se dar somente ao final do proces­ so, ou seja, no momento imediatamente anterior à

481. STF, 1 aTurma, HC 87.859/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12/06/2007, DJe 101 13/09/2007. 482. Eventual ausência de autos apartados é causa de nulidade re­

lativa: STJ, 5a Turma, HC 44.169/DF, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 13/09/2005, DJ 03/10/2005 p. 304.

483. Antes das alterações produzidas pela Lei n° 11.689/08, dispunha

o art. 407 do CPP: Decorridos os prazos de que trata o artigo anterior, os

autos serão enviados, dentro de 48 (quarenta e oito horas), ao presidente do Tribunal do Júri, que poderá ordenar as diligências necessárias para sanar qualquer nulidade ou suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade inclusive inquirição de testemunhas (art. 209), e proferirá sentença, na forma dos artigos seguintes. 484. Antes de ser revogado pela Lei n° 11.719/08, dispunha o art. 502 do CPP:"Findos aqueles prazos, serão os autos imediatamente conclusos, para sentença, ao juiz, que, dentro em 5 (cinco) dias, poderá ordenar diligências para sanar qualquer nulidade ou suprir falta que prejudique

o esclarecimento da verdade. Parágrafo único. O juiz poderá determinar que se proceda, novamente, a interrogatório do réu ou à inquirição de testemunhas e do ofendido, sem ao houver presidido a esses atos na

Com efeito, se, num primeiro momento, a in­ terceptação telefônica é decretada sem que o acu­ sado tenha conhecimento {inaudita altera parte), tão logo estejam concluídas as diligências e trans­ crições, deve se assegurar à defesa a possibilidade de ter acesso ao conteúdo da interceptação já con­ cluída. Somente assim serão respeitadas as garantias do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5o, LV). De fato, de nada adiantaria franquear o acesso da defesa à interceptação somente ao final do proces­ so, quando, então, não mais teria a possibilidade de produzir contraprova para infirmar os elementos probatórios obtidos com a interceptação telefônica. A nosso ver, portanto, independentemente de a interceptação ter sido decretada durante a fase investigatória ou processual, deve o acusado e seu defensor ter acesso à prova tão logo se considere que o conhecimento do resultado da diligência não importará em prejuízo ao prosseguimento das inves­ tigações ou do processo, momento em que poderão efetivar o contraditório (diferido) e o direito à ampla defesa. Logicamente, não é qualquer advogado que poderá ter acesso às gravações, mas somente aquele constituído pelo acusado ou nomeado pela autori­ dade judiciária.486

Ao ter acesso ao resultado da diligência, a defe­ sa pode arguir a licitude ou ilicitude da prova, hipó­ tese em que poderá requerer seu desentranhamento dos autos, com fundamento no art. 157, caput, do CPP. Poderá discutir também a idoneidade técnica da operação de interceptação, a autenticidade da prova documental, a própria identificação da voz etc.

instrução criminal". 485. Antes da modificação determinada pela Lei n° 11.719/08, dis­ punha o art. 538, caput, do CPP: "Após o tríduo para a defesa, os autos serão conclusos ao juiz, que, depois de sanadas as nulidades, mandará proceder às diligências indispensáveis ao esclarecimento da verdade, quer tenham sido requeridas, quer não, e marcará para um dos 8 (oito) dias seguintes a audiência de julgamento, cientificados o Ministério Pú­ blico, o réu e seu defensor".

486. No sentido de assegurar à defesa amplo acesso aos dados da interceptação telefônica a partir do momento em que designado o in­ terrogatório policial dos investigados: STF, 1a Turma, HC 92.331/PB, Rel.

Min. Marco Aurélio, j. 18/03/2008, DJe 142 31/07/2008.

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Por fim, quanto ao valor probatório do resul­ tado da interceptação, a questão insere-se no mo­ mento probatório da valoração pelo juiz, nada tendo a ver com a admissibilidade da prova. O problema envolve a autenticidade das reproduções mecânicas e não é diverso do que se coloca em relação a outras fontes de prova do mesmo gênero. Se a pessoa a quem a conversa é atribuída não a reconhecer como sua, será necessária a realização de exame pericial, com a comparação do espectograma da voz - téc­ nica de comparação das vozes - para a análise das vozes e sua comparação.487

11.1.16. Incidente de inutilização da gravação que não interessar à prova De acordo com o art. 9o, caput, da Lei n° 9.296/96, a gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquéri­ to, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada. Ainda segundo a Lei n° 9.296/96 (art. 9o, parágrafo único), o incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.

Ao longo da execução das diligências relativas à interceptação telefônica, serão objeto de gravação uma infinidade de comunicações que não guardam qualquer pertinência com a prova almejada. Veri­ ficada, assim, a imprestabilidade dessas gravações, deve a autoridade judiciária determinar sua inutili­ zação, preservando-se o direito à intimidade e à vida privada das pessoas cujas conversas foram gravadas, mas cujo conteúdo não interessa à situação objeto de investigação.

O requerimento para a inutilização das grava­ ções pode ser formulado pelo Ministério Público ou pela parte interessada, aqui compreendida como qualquer pessoa que demonstre legítimo interesse na destruição das gravações, seja o investigado ou mesmo um terceiro que tenha se comunicado com o sujeito passivo da interceptação. Esse requerimento pode ser formulado no curso das investigações ou durante a instrução processual. Como dispõe a própria lei, deve haver uma de­ cisão judicial determinando a inutilização da gra­ vação, sendo que, a nosso ver, a destruição somente 487. Sobre o assunto, vale ficar atento ao disposto no art. 383 do CPC, que dispõe: "Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das coisas representadas, se aquele contra quem foi produzida lhe admitir a conformidade". Parágrafo único. "Impugnada a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz ordenará a realização de exame pericial". Dispositivo semelhante a este consta do art. 422 do novo CPC.

será possível após a preclusão da referida decisão, sendo facultado ao Ministério Público e à parte in­ teressada acompanhar o incidente de inutilização.488

11.1.17. Resolução n° 59 do Conselho Nacional de Justiça Como resultado da CPI dos “grampos telefô­ nicos”, e considerando a necessidade de aperfeiçoar e uniformizar o sistema de medidas cautelares si­ gilosas referentes às interceptações telefônicas, de informática ou telemática, bem como a imprescindibilidade de preservar o sigilo das investigações realizadas, das informações colhidas e a eficácia da instrução processual, o Conselho Nacional de Justiça, com fundamento no art. 103-B, § 4o, da Constituição Federal, editou a Resolução n° 59, dis­ ciplinando e uniformizando as rotinas pertinentes à decretação de interceptação de comunicações tele­ fônicas. A matéria também é objeto da Resolução n. 36/09 do Conselho Nacional do Ministério Público, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF no julgamento da ADI 4.263/DF.489

No julgamento da ADI n. 4.145/DF,490 o Ple­ nário do STF assentou a constitucionalidade da re­ ferida resolução, à exceção do quanto disposto no art. 13, §1°, o qual determinava que não seria ad­ mitido pedido de prorrogação de prazo de medida cautelar de interceptação de comunicação telefôni­ ca, telemática ou de informática durante o plantão judiciário, ressalvada a hipótese de risco iminente e grave à integridade ou à vida de terceiros. Na vi­ são da Corte, o CNJ teria extrapolado, nesse ponto, sua competência normativa, adentrando em seara que lhe seria imprópria. Assim, desrespeitou: a) a competência legislativa estadual, no que concerne à edição das leis de organização judiciária locais (CF, art. 125, § Io); b) a competência legislativa da União para a edição de normas processuais (CF, art. 22,1); c) a norma constante do art. 5o, XXXV, da CF, no que respeita à inafastabilidade da jurisdição. 488. Segundo Gomes (op. cit. p. 504), da decisão que defere ou indefe­ re a inutilização cabe apelação (porque se trata de decisão com força de definitiva, não constante do rol do art. 581 do CPP) - v. art. 593, II, do CPP. Quanto ao terceiro interessado, que também tem interesse na destruição das gravações de conversas impertinentes e irrelevantes para a prova, caso seu pedido não seja atendido pelo juiz, poderá impetrar mandado de segurança contra o ato jurisdicional que indeferir sua pretensão à preservação da intimidade. (GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 179). 489. STF, Pleno, ADI 4.263/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 25/04/2018. 490. STF, Pleno, ADI 4.145/DF, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 26/04/2018.

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11.1.18. Caso Escher e outros (Corte Interamericana de Direitos Humanos) Na lição de Giacomolli,491 Arlei José Escher, Dal­ ton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni eram membros das organizações sociais ADECON e COANA, as quais se relacionavam com o Movimento dos Sem-Terra (MST), sobretudo na luta pela reforma agrária. Em data de 28 de abril de 1999, o Subcomandante e Chefe do Estado Maior da Polícia Militar solicitou ao Se­ cretário de Segurança Pública do Estado do Paraná a interceptação telefônica da COANA. Fundamen­ tou sua representação na assertiva de que as duas cooperativas estavam sendo utilizadas pelo MST para práticas delituosas, como desvio de recursos financeiros, além de possíveis homicídios. O pedi­ do foi acatado pelo Poder Judiciário nos seguintes termos: “Recebido e analisado. Defiro. Oficie-se”. Na sequência sobreveio um novo pedido de intercepta­ ção, também formulado pela Polícia Militar, agora da linha telefônica instalada na sede da ADECON, sem qualquer fundamento ou justificação, o qual foi igual­ mente deferido. Com a conclusão das interceptações, parte dos diálogos gravados foram divulgados pelo Jornal Nacional. Um dia depois, o então Secretário de Segurança Pública comentou, em entrevista cole­ tiva à imprensa, a atuação policial nas desocupações ocorridas nos acampamentos do MST, explicando as interceptações telefônicas. Aliás, durante a refe­ rida entrevista, foram reproduzidos diversos áudios de algumas conversas, além de ter sido entregue aos jornalistas um material contendo a transcrição de trechos dos diálogos interceptados dos membros da COANA e da ADECON. O caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que concluiu ter ha­ vido violação do direito à vida privada, à honra e à reputação das vítimas, reconhecidos nos arts. 11.1 e 11.2, combinados com os arts. 1.1, 8o e 25 do Pacto de São José da Costa Rica, porquanto não teria havido o consentimento dos interlocutores no tocante à divulgação do material gravado, a qual foi imputada ao Estado. A Corte também concluiu ter havido violação ao art. 16 da CADH porque as escutas telefônicas foram realizadas em desacordo com a legislação e com posterior e indevida divul­ gação. Esses dois fatos foram suficientes para abalar a imagem e a credibilidade das entidades e, con­ sequentemente, o direito ao livre e normal exercí­ cio de associação pelos membros da COANA e da 491. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 62-69.

ADECON, violando-se, assim, o direito à liberdade de associação previsto no art. 16 da CADH. Dentre outras sanções, o Estado Brasileiro foi obrigado a pagar a Arlei, Dalton, Delfino, Pedro e Cellso o valor equivalente a US$ 20.000,00 para cada um a título de dano imaterial (vida, honra e reputação), e mais US$ 10.000,00 às vítimas.

11.2. Captação ambiental de sinais eletromag­ néticos, ópticos ou acústicos

11.2.1. Noções introdutórias O avanço da tecnologia em várias áreas do co­ nhecimento humano vem reconfigurando, nos últi­ mos anos, a maneira pela qual uma infração penal pode ser elucidada. Quer nas vias públicas, onde há câmeras de vigilância espalhadas em todos os can­ tos, quer em locais fechados e regidos por relações privadas, em que gravações são feitas pelos próprios interlocutores, que sempre têm às mãos um aparelho celular, não há como negar que as relações sociais - e, logicamente, muitas infrações penais - estão sujeitas a um crescente e constante monitoramento. Isso tem proporcionado, numa escala nunca vista antes, a captação de sons e imagens que são mui­ to úteis à persecução penal, não apenas pelo baixo custo necessário para a sua produção, mas também pela credibilidade e veracidade capaz de auxiliar na formação do convencimento do julgador. É dentro desse contexto, pois, que deve ser compreendida a sistematização da escuta ambien­ tal de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, introduzida pelo Pacote Anticrime no art. 8°-A da Lei n. 9.296/96. Até o advento da Lei n. 13.964/19, a captação ambiental constava da Lei das Organiza­ ções Criminosas (Lei n. 12.850/13, art. 3o, II) como um dos meios de obtenção de prova passíveis de utilização para a persecução penal de tais delitos. Porém, pelo menos até então, não havia nenhum diploma normativo que dispusesse, expressamente, acerca de seus requisitos. Cuidava-se, pois, de um meio de obtenção de prova nominado, porquan­ to previsto em lei, porém atípico, já que a Lei n. 12.850/13 nada dispunha acerca do procedimento a ser adotado para a sua execução, daí por que se aplicava, por analogia, o procedimento descrito na Lei n° 9.296/96 acerca da interceptação telefônica (meio de obtenção de prova típico).492 Com a en­ 492. Nesse contexto: SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado:pro­ cedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 105; DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas. Campinas/SP: Millennium Editora, 2008, p. 299-308; BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n° 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 101.

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trada em vigor da Lei n. 13.964 no dia 23 de janeiro de 2020, o legislador, enfim, promove a sistematização desse importante meio de obtenção de prova, já consolidado pela jurisprudência e rotineiramente utilizado no Brasil.

11.2.2. Captação ambiental O art. 8°-A da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, autoriza, expressamente, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos. A expressão captar deve ser compreendi­ da como o ato de tomar conhecimento do conteúdo de comunicação alheia. É da essência da captação a participação de um terceiro, que passa a ter ciência do conteúdo de uma comunicação entre duas ou mais pessoas, geralmente sem o conhecimento dos interlocutores. Essa captação pode ser feita por meio de escutas, microfones, câmeras ocultas, monitora­ mento à distância, por satélite, antenas direcionais e outras tantas tecnologias hoje existentes para esse fim. Não se deve confundir interceptação com es­ cuta, nem tampouco com gravação ambiental. A interceptação ocorre sem o conhecimento dos in­ terlocutores, ou seja, nenhum deles tem consciên­ cia de que o conteúdo da comunicação está sendo captado por um terceiro; na escuta, um dos inter­ locutores tem conhecimento da ingerência de um terceiro na comunicação; a gravação é a captação feita diretamente por um dos comunicadores, sem a interveniência de um terceiro. Possamos, então, firmar alguns conceitos:

1. Interceptação ambiental em sentido estrito: é a captação sub-reptícia de uma comunicação no próprio ambiente em que ocorre, local público ou privado, feita por um terceiro sem o conhecimento de nenhum dos comunicadores, com o emprego de meios técnicos, utilizados em operação oculta e simultânea à comunicação. A título de exemplo, suponha-se que, no curso de investigação relativa ao crime de tráfico de drogas, a autoridade policial realize a filmagem de indivíduos comercializando drogas em uma determinada praça, sem que os traficantes tenham ciência de que esse registro está sendo efetuado;493 493. Em sentido pouco distinto, Arantes Filho (op. cit. p. 324) apon­ ta que a interceptação de comunicações entre pessoas presentes é o gênero, do qual decorrem duas espécies: a interceptação domiciliar e a interceptação ambiental. O local em que é executada a interceptação de comunicação entre pessoas presentes diferencia as duas espécies: em domicílio, a interceptação é domiciliar; em espaço físico que não seja caracterizado domicílio, a interceptação é ambiental.

2. Escuta ambiental: é a captação de uma co­ municação feita por terceiro em local público ou privado com o consentimento de um dos comu­ nicadores e desconhecimento do outro. Na escuta, um dos comunicadores tem ciência da intromissão alheia na comunicação. Por exemplo, imagine-se a hipótese de cidadão vítima de concussão que, com o auxílio da autoridade policial, efetue o registro audiovisual do exato momento em que funcionário público exige vantagem indevida para si em razão de sua função;

3. Gravação ambiental: é a captação da comu­ nicação ambiental no ambiente em que ocorre feita por um dos comunicadores sem o conhecimento do outro, daí por que é conhecida como gravação clandestina (ex. gravador, câmeras ocultas etc.). Apesar de o art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 fazer referência ao termo captação, houve certa redun­ dância por parte do legislador, porquanto a captação dos sinais eletromagnéticos, ópticos (v.g., filmagens e fotografias) ou acústicos (gravação ambiental de uma conversa entre pessoas presentes), funciona, na verdade, como elemento integrante do conceito de interceptação ambiental, também conhecida como vigilância eletrônica. Portanto, nos mesmos moldes do art. Io da Lei n° 9.296/96, que abrange tanto a interceptação telefônica em sentido estrito quanto a escuta telefônica, parece-nos que o art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 faz uso da expressão “captação ambien­ tal” em sentido amplo, englobando a interceptação ambiental em sentido estrito e a escuta ambiental. Isso porque ambas consistem em processos de cap­ tação da comunicação alheia.494

Por outro lado, não está abrangida pelo regime jurídico do art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 a gravação ambiental clandestina, espécie de captação feita di­ retamente por um dos comunicadores, sem a in­ terveniência de um terceiro, cuja licitude deve ser analisada casuisticamente.495 Prova disso, aliás, é o 494. Para Eduardo Araújo da Silva (Organizações criminosas: aspectos penais e processuais da Lei n. 12.850/13. São Paulo: Atlas, 2014, p. 109), a captação ambiental, também chamada de vigilância eletrônica, permite que "os agentes de polícia ou eventualmente do Ministério Público (...) instalem aparelhos de gravação de som e de imagem em ambientes fechados (residências, locais de trabalho, estabelecimentos prisionais, etc.), com a finalidade de não apenas gravar os diálogos travados entre os investigados (sinais acústicos), mas também de filmar as condutas por

eles desenvolvidas (sinais óticos). Ainda poderão os policiais registrar sinais emitidos através de aparelhos de comunicação, como rádios trans­ missores (sinais eletromagnéticos), que tecnicamente não se enquadram no conceito de comunicação telefônica, informática ou telemática". 495. Segundo Vinícius Marçal e Cleber Masson (Crime organizado. 2a ed. São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 211-212), a gravação clandestina (ambiental ou telefônica), feita sem a ciência do outro interlocutor, é

lícita, pelo menos em regra, "ainda que despida de autorização judicial, se realizada como (a) meio de defesa; (b) em razão de investida criminosa;

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fato de, ao tratar do crime de captação ambiental sem autorização judicial, o art. 10-A, §1°, da Lei n. 9.296/96, também incluído pelo Pacote Anticrime, dispor expressamente que não haverá tal crime se a captação for realizada por um dos interlocutores. Evidentemente, por cautela, nada impede que o juiz autorize a gravação ambiental, se houver requeri­ mento nesse sentido.496

Há diversas formas de captação do conteúdo da comunicação entre pessoas presentes: ingresso e permanência no local de pessoas que, portando instrumentos apropriados para a captação da comu­ nicação, escondem a própria presença dos interlocu­ tores; participação direta em conversa por operado­ res que portam consigo instrumentos apropriados para a captação da comunicação, oportunamente escondidos; ocultação no ambiente de dispositivos microscópicos ligados a aparelhos de captação e re­ gistros externos, instalados próximo ao local onde a interceptação for realizada. Esses equipamentos e aparelho destinados à captação e armazenamento de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos são chamados de meios eletrônicos de produção de provas. Quanto à natureza jurídica da captação am­ biental em sentido estrito, deve se entender que as comunicações ambientais, de per si, são fontes de prova, pois é delas que se extrai a comprovação de uma infração penal ou do envolvimento de um agente com um crime. A interceptação ambiental, por sua vez, funciona como técnica especial de in­ vestigação, mais especificamente como medida cau­ telar processual, de natureza coativa real, consubs­ tanciada em uma apreensão imprópria, no sentido de por ela se apreenderem os elementos óticos e (c) se não há reserva da conversação (obrigação de guardar segredo);

ou, ainda, (d) quando não restar caracterizado violação de sigilo, não havendo de se cogitar uma suposta (e inexistente) violação do direito à privacidade nesses casos". 496. Por ocasião do julgamento do HC 84.203/RS (Rel. Min. Celso de

acústicos que formam a comunicação ambiental. De seu turno, a gravação da interceptação das comuni­ cações ambientais é o resultado da operação técnica e, portanto, a materialização da fonte de prova. Por fim, a transcrição das gravações funciona como o meio de prova, que será juntado aos autos para que possa ser valorado pelo magistrado.497

Como se percebe, o objetivo precípuo da in­ terceptação ambiental é a obtenção de uma prova, que se materializa num documento (auto circuns­ tanciado, transcrição) ou num depoimento (prova testemunhai). É um desses meios probatórios que irá fixar os fatos no processo, de tal modo a legitimar a decisão judicial, seja frente às partes, seja frente à universalidade das pessoas.498

11.2.3. (I)licitude da captação ambiental e (des) necessidade de prévia autorização judicial Foi dito acima que a interceptação ambiental é a captação de uma comunicação no próprio recinto em que ocorre, privado ou público, efetuada por um terceiro, sem conhecimento dos comunicadores. Por sua vez, a escuta ambiental consiste na captação de uma comunicação, no ambiente dela, feita por terceiro, com o consentimento de um dos comu­ nicadores. Em ambas as situações, não se trata de uma conversa telefônica. Cuida-se de uma conversa não telefônica, ocorrida em um gabinete, residência, restaurante, estabelecimento comercial, etc.

Em face da proteção constitucional ao direito à intimidade e à vida privada (CF, art. 5o, X), discute-se na doutrina acerca da (i) licitude desses meios de obtenção de prova. Quanto à violação à intimidade, a discussão em torno da (i) licitude de uma inter­ ceptação ambiental diz respeito não à proteção ao segredo, que é o direito de que terceiros não tenham acesso à privacidade individual, mas sim ao direito de reserva, que é o direito de não ver divulgadas notícias concernentes à vida privada. Na verdade, a interceptação ambiental deve ser inserida em três diferentes cenários:499

Mello, j. 19/10/2004), a 2a Turma do STF reconheceu a licitude de grava­ ção ambiental realizada por meio de câmera instalada em garagem pelo proprietário da casa, com a finalidade de identificar o autor dos danos a seu automóvel, independentemente de prévia autorização judicial. Não se trata de precedente isolado. A título de exemplo, confira-se: a) licitude de gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocu­ tores quando há investida criminosa do outro (STF, Pleno, HC 75.338/ RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 11/03/1998, DJ 25/09/1998); b) licitude de

gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer

prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou (STF, 2aTurma, RE 402.717/PR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/12/2008, DJe 30 12/02/2009); c) licitude de gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles sem o conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, notadamente quando constituir exercício de defesa (STF, 2a Turma, Al 503.617 AgR/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 01/02/2005, DJ 04/03/2005).

a) captação de conversa alheia (ou de ima­ gens) em locais abertos ao público: trata-se de pro­ va lícita, mesmo que produzida sem prévia autori­ zação judicial, pois, se os interlocutores desejassem 497. Nessa linha, referindo-se, todavia, às comunicações telefônicas: GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNAN­ DES, Antônio Scarance. As nulidades no processo penal. 11a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 165. 498. GOMES, Luiz Flávio. Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 436.

499. Nesse contexto: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e pro­ cessuais penais comentadas. Vol. 1.6a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 368.

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privacidade e certeza de que não seriam importu­ nados ou ouvidos, deveriam recolher-se a lugar pri­ vado fechado ao público. Suponha-se, por exemplo, que um crime cometido em via pública seja gra­ vado sem prévia autorização judicial (v.g., câmera de vigilância instalada em um prédio). Ora, nessa hipótese, não há falar em direito ao segredo. Afinal de contas, quem comete um crime em via pública - ou, ainda que particular, mas aberto ao público (v.g., teatro, restaurante, etc.) - não tem qualquer expectativa de proteção à intimidade. Também não há falar em direito à reserva, na medida em que, pelo menos em regra, qualquer pessoa pode relatar o que ocorre em local aberto ao público. Logo, essa interceptação ambiental há de ser considerada prova lícita, já que não viola a intimidade nem tampouco a vida privada.500 Se o conteúdo da conversa entre os interlocutores não for reservado, nem proibida a captação por meio de gravador, tal prova deve ser considerada lícita. Ora, supondo-se que tal conver­ sa ocorra em local público, sendo presenciada por terceiro, como este pode relatá-la validamente em juízo como testemunho, por que não emprestar a mesma validade à captação da comunicação? Toda­ via, se o colóquio for reservado - suponha-se que alguém escute uma conversa reservada encostando o ouvido a uma porta, ou registre a conversa servin­ do-se de um gravador oculto -, sua interceptação ou escuta configurará prova ilícita, por ofensa ao direito à intimidade (CF, art. 5o, X), salvo se, por força do princípio da proporcionalidade, possa ser considerada lícita;

b) captação de conversa alheia (ou de ima­ gens) em locais abertos ao público, porém em caráter sigiloso, expressamente admitido pelos interlocutores: constitui invasão de privacidade, pois o interceptador não pode imiscuir-se em se­ gredo de terceiros sem permissão legal. Por não afrontarem o art. 5o, X, da Constituição Federal, interceptações ambientais lato sensu devem ser consideradas válidas, salvo quando realizadas em ambiente no qual haja expectativa de privacidade, ou quando praticadas com violação de confiança de­ corrente de relações interpessoais ou profissionais. Acerca do assunto, ganhou notoriedade no Brasil uma gravação feita pelo programa “Fantástico” de 500. No sentido de que é lícita a prova consistente em gravação de conversa realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva de con­ versação. Afinal, a gravação ambiental meramente clandestina realizada por um dos interlocutores não se confunde com a interceptação objeto de cláusula constitucional de reserva de jurisdição: STF, 2a Turma, Al 560.223 AgR/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 12/04/2011. Considerando válida gra­ vação ambiental de diálogo ocorrido em local público: STF, 1a Turma, HC 74.356/SP, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 10/12/1996, DJ 25/04/1997.

conversa entabulada entre a investigada S.L.V.R. e seu advogado. Apesar de a acusada ter concordado em conceder a entrevista ao programa semanal em um lugar aberto ao público, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e seu advogado foi captada clandestinamente pela Rede Globo, daí por que o STJ considerou tratar-se de prova obtida por meios ilícitos, in verbis: “(...) Conversa pessoal e reservada entre advogado e cliente tem toda a proteção da lei, porquanto, entre outras reconhecidas garantias do advogado, está a inviolabilidade de suas comuni­ cações. Como estão proibidas de depor as pessoas que, em razão de profissão, devem guardar segredo, é inviolável a comunicação entre advogado e cliente. Se há antinomia entre valor da liberdade e valor da segurança, a antinomia é solucionada a favor da li­ berdade. É, portanto, ilícita a prova oriunda de con­ versa entre o advogado e o seu cliente. O processo não admite as provas obtidas por meios ilícitos. Na hipótese, conquanto tenha a paciente concordado em conceder a entrevista ao programa de televisão, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e um de seus advogados foi captada clandestinamente. Por revelar manifesta infração ética o ato de grava­ ção - em razão de ser a comunicação entre a pessoa e seu defensor resguardada pelo sigilo funcional -, não poderia a fita ser juntada aos autos da ação pe­ nal. Afinal, a ilicitude presente em parte daquele registro alcança todo o conteúdo da fita, ainda que se admita tratar-se de entrevista voluntariamente gravada - a fruta ruim arruina o cesto. A todos é as­ segurado, independentemente da natureza do crime, processo legítimo e legal, enfim, processo justo. [...] Habeas corpus deferido para que seja desentranhada dos autos a prova ilícita”;501

c) captação de conversa mantida em lugar privado não aberto ao público: se produzida sem prévia autorização judicial, constitui invasão de privacidade, pois não está autorizado o ingresso em casa alheia, cuja inviolabilidade é constitucio­ nalmente assegurada (CF, art. °, XI), razão pela qual a coleta de dados resultante de conversação mantida dentro de domicílio alheio é prova ilícita. Se a interceptação ambiental em locais públicos é considerada válida pela doutrina e pela jurispru­ dência, o mesmo não se pode dizer em relação a uma interceptação ambiental efetuada no interior de domicílio. Nessa hipótese, além de violar o direito à intimidade (CF, art. 5o, X), seja no tocante ao direito ao segredo, seja em relação ao direito de reserva, também haverá evidente afronta à inviolabilidade 501. STJ, 6a Turma, HC 59.967/SP, Rel. Min. Nilson Naves, j. 29/06/2006, DJ 25/09/2006 p.316.

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domiciliar prevista no art. 5o, inciso XI, da Consti­ tuição Federal. Todavia, preenchidos os requisitos do art. 8°-A da Lei n. 9.296/96, havendo prévia e fundamentada autorização judicial, toda e qualquer gravação e interceptação ambiental será considerada prova lícita. Se não houver prévia ordem escrita da autoridade judicial competente, a licitude da prova deve ser analisada à luz do princípio da propor­ cionalidade. Portanto, em face do disposto no art. 8o-A Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, admite-se a filmagem (registro de sinais óticos) e a gravação (registro de sinais acústicos) no interior de residência ou local íntimo, seja pela captação (a chamada escuta ambiental, realizada entre presen­ tes), seja pela interceptação ambiental (realizada por um terceiro). Assim, desde que haja prévia e circunstanciada autorização judicial, os registros obtidos não constituem prova ilícita por violação ao direito à intimidade ou à garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio. Como o art. 8°-A, caput, da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, faz referência à ne­ cessidade de autorização judicial prévia para a cap­ tação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, fica a impressão de que, doravante, toda e qualquer escuta ambiental realizada sem esse controle jurisdicional seria considerada prova ilícita. Só que este raciocínio se revela equivocado, porquanto, diversamente de uma interceptação (ou escuta) telefônica, que sempre pressupõe autoriza­ ção judicial (CF, art. 5o, XII), não é toda intercepta­ ção (ou escuta) ambiental que se sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, eis que, nesse caso, o que está em jogo é o direito à intimidade (CF, art. 5o, X). Logo, ao contrário do que ocorre no inciso XII do art. 5o da Constituição Federal, o inciso X não recla­ ma necessariamente a expedição de ordem judicial como forma de viabilizar a devassa da privacidade por meio da captação ambiental.

De fato, é firme a jurisprudência no sentido de que, pelo menos em regra, não há necessidade de autorização judicial prévia para a interceptação ambiental realizada em local público (v.g, praça, parque, etc.), ou, ainda que particular, aberto ao público (v.g., cinemas, teatros, shoppings centers, estádios de futebol, bares, restaurantes, etc.),502 pois, se os interlocutores desejassem privacidade e certeza que não seriam importunados ou ouvidos, 502. Quanto a esses locais abertos ao público, ainda que particulares, nos quais uma escuta ambiental pode ser realizada sem prévia autoriza­ ção judicial, Suxberger e Souza (op. cit. p. 103) advertem que, a despeito

de pertencerem a particulares, são "de uso público", "pois não se destinam à utilização exclusiva de seus proprietários, mas ao público em geral".

deveríam ter se recolhido a um lugar privado. Basta pensar, a título de exemplo, nas diversas câmeras de vigilância espalhadas Brasil afora sem prévia autorização judicial (v.g., filmagem amadora que flagra a prática de crime em uma praça, câmera que filma um furto no interior de um supermercado ou aquela que capta as imagens de um roubo numa agência bancária): as imagens por elas captadas são constantemente usadas em investigações e pro­ cessos criminais, sem que se possa objetar que se trata de prova ilícita, eis que aquele que comete um crime em via pública (ou em local privado aberto ao público) jamais poderá ter qualquer expectativa de proteção à intimidade. Agora, se a interceptação (ou escuta) ambiental disser respeito à conversa mantida em local priva­ do fechado ao público, com expectativa legítima de privacidade, revela-se indispensável prévia autori­ zação judicial, nos exatos termos do art. 8°-A da Lei n. 9.296/96, não apenas de modo a resguardar a intimidade e a vida privada dos interlocutores (CF, art. 5o, X), mas também porque, nesse caso, haverá necessidade do ingresso em casa alheia, cuja inviola­ bilidade é constitucionalmente assegurada (CF, art. 5o, XI), para fins de instalação dos equipamentos destinados à captação de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (Lei n. 9.296/6, art. 8o-A, §1°, incluído pela Lei n. 13.964/19). Idêntico raciocínio é válido quando uma das partes pedir sigilo à outra durante conversa realizada em local público: nesse caso, ante a possibilidade de violação ao direito à intimidade (CF, art. 5o, X), também se faz necessária autorização judicial.

Nesse ponto, aliás, muito melhor teria sido a aprovação do chamado “Projeto Moro” na redação apresentada ao Congresso Nacional. Isso porque, ao regulamentar a captação ambiental de sinais eletro­ magnéticos, ópticos ou acústicos, acrescentando o art. 21-A à Lei das Organizações Criminosas, o §6° do referido dispositivo, se acaso tivesse sido apro­ vado pelo Congresso Nacional, teria a seguinte re­ dação: “A captação ambiental de sinais ópticos em locais abertos ao público não depende de prévia autorização judicial”. Por mais desnecessária que fosse a inserção da ressalva em questão, porquanto não se pode invocar proteção à privacidade quando o cidadão se encontra em local público, parece evi­ dente que a aprovação de norma semelhante a esta certamente implicaria em maior segurança jurídica para todos os atores envolvidos na persecução penal.

De todo modo, sem embargo da redação conferida ao art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 pela Lei n. 13.964/19, há de se concluir que a autorização

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judicial prévia se revela necessária tão somente quando se tratar de interceptação (ou escuta) am­ biental realizada em lugar privado não aberto ao público ou em local público, mas, neste último caso, tão somente quando houver expectativa de priva­ cidade (v.g, conversa entre médico e cliente). Do contrário, ou seja, se se concluir que toda e qual­ quer interceptação (ou escuta) ambiental estaria condicionada à autorização judicial prévia, ainda que realizada em local aberto ao público, chega­ ríamos à conclusão absurda503 de que, doravante, condutas absolutamente neutras, insignificantes e irrelevantes, como, por exemplo, a colocação de uma câmera de vigilância na portaria da entrada de um prédio residencial sem prévia autorização judicial, subsumir-se-ão ao tipo penal do art. 10-A da Lei n. 9.296/96504 se acaso as imagens por ela cap­ tadas forem usadas para investigação ou instrução criminal, o que, à evidência, não parece ter sido o objetivo do legislador responsável pela elaboração do Projeto Anticrime.505 É nesse sentido, aliás, o teor do Enunciado n. 38 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM): “Não é exigida autorização judicial para captação ambiental de que trata o art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 na hipótese de ser realizada em local público ou de acesso público”.

A jurisprudência parece caminhar nesse sen­ tido. Com efeito, em recente decisão da 6a Turma do STJ,506 concluiu-se que as inovações do Pacote Anticrime na Lei n. 9.296/96 não alteraram o en­ tendimento de que é lícita a prova consistente em 503. O Direito deve ser interpretado de maneira inteligente, não de

modo que a ordem legal envolva um absurdo, conclusões inconsistentes

ou impossíveis. Como nos lembra Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do Direito. 20a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 203), "prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade".

504. Lei n. 9.296/96: "Art. 10-A. Realizar captação Ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida: Pena - reclu­ são, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa". 505. Em sentido semelhante, Rodrigo Felberg (op. cit. p. 128) asse­ vera que "tanto a interceptação quanto a escuta ambiental realizada sem os requisitos legais somente poderão ser consideradas condutas infracionais quando transgredirem frontalmente o direito à intimidade dos comunicadores, o caráter reservado da comunicação. Será preciso avaliar, portanto, as circunstâncias e conteúdo da conversa entre os in­ terlocutores e eventual afetação à vida privada dos mesmos, sob pena de criminalização extensiva de condutas possivelmente inofensivas, como o registro audiovisual de um cidadão em via pública. Diferentemente da captação ambiental de uma conversa dentro de uma residência, por exemplo, em que o caráter privado é inerente, de modo que se realizada sem as formalidades legais configurará a conduta criminosa". 506. STJ, 6a Turma, HC 512.290/RJ, Rei. Min. Rogério Schietti Cru, j. 18.08.2020, DJe 25.08.2020.

gravação ambiental realizada por um dos interlo­ cutores sem conhecimento do outro. Na hipótese, depois de firmado acordo de colaboração premiada ocorreu a gravação ambiental de conversa realizada por um dos interlocutores, em repartição pública, sem o conhecimento dos outros, o que, apesar de clandestina, não consubstancia prova ilícita, confor­ me reconhecido pela jurisprudência deste Superior Tribunal. Na visão do referido colegiado, a gravação ambiental realizada por colaborador premiado, um dos interlocutores da conversa, sem o consentimen­ to dos outros, é lícita, ainda que obtida sem auto­ rização judicial, e pode ser validamente utilizada como meio de prova no processo penal. No mesmo sentido é o precedente do Supremo Tribunal Fe­ deral, exarado na QO-RG RE 583.937/RJ, de que, desde que não haja causa legal de sigilo, “é lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro” (Tema n. 237). Na oportunidade, considerou-se que a disponibilização de conteúdo de conversa por partícipe, emissor ou receptor, significaria ape­ nas dispor daquilo que também é seu, sem que se possa falar em interceptação, sigilo de comunicação ou de intromissão furtiva em situação comunicativa. Não se delimitou que a gravação de conversa por um dos participantes do diálogo seria lícita somente se utilizada em defesa própria, nunca como meio de prova da acusação. É mister ressaltar, ainda, que a Lei n. 9.296, de 24/7/1996, mesmo com as inovações trazidas pela Lei n. 13.964/2019, não dispôs sobre a necessidade de autorização judicial para a gravação de diálogo por um dos seus comunicadores. Consta, em dispositivo novo da Lei n. 9.296/1996 (art. 10-A, § Io) que não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores. Remanesce a reserva juris­ dicional apenas aos casos relacionados à captação por terceiros, sem conhecimento dos comunicado­ res, quando existe a inviolabilidade da privacidade, protegida constitucionalmente.

11.2.4. Procedimento e requisitos para a cap­ tação ambiental Consoante disposto no art. 8°-A, caput, da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a requerimento da auto­ ridade policial ou do Ministério Público, a capta­ ção ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos. Da breve leitura desse dispositivo já podemos extrair algumas importantes conclusões: a) finalidade da captação ambiental: quando a Constituição Federal cuida da interceptação telefôni­ ca no inciso XII do art. 5o da Constituição Federal,

TÍTULO 6 • PROVAS

é expressa ao dispor que sua utilização estaria “para fins de investigação criminal ou instrução proces­ sual penal”. Daí os dizeres do art. Io, caput, da Lei n. 9.296/96. Ocorre que a captação ambiental, como exposto anteriormente, está sujeita ao inciso X do art. 5o da Carta Magna, que em nenhum momento dispõe que eventual violação à intimidade e à vida privada das pessoas só possa ser determinada pelo Estado com idêntica finalidade. Sem embargo, ante o caráter invasivo da captação ambiental, o legislador da Lei n. 13.964/19 optou por dar a ela idêntico trata­ mento àquele dispensado à interceptação telefônica, no sentido de permitir sua decretação tão somente para fins de investigação ou instrução criminal. Ou­ trossim, se a utilização da captação ambiental está restrita à investigação ou instrução criminal, daí tam­ bém se pode extrair a conclusão de que apenas o juiz criminal competente poderá decretá-la. De todo modo, conquanto juízos cíveis e administrativos não possam, de maneira direta, determinar a realização de uma captação ambiental, isso não significa dizer que não possam ter acesso a tais imagens e áudios, seja a título de prova emprestada, seja pelo fato de a autorização judicial prévia a que se refere o art. 8oA, caput, da Lei n. 9.296/96 compreender apenas a captação em si, o que significa, a contrario sensu, que não há vedação para a utilização de tal prova se acaso materializada por outros meios legítimos;507

b) impossibilidade de decretação ex officio: diversamente do quanto previsto no art. 3o da Lei n. 9.296/96, que faz referência à possibilidade - de duvidosa constitucionalidade - de o juiz determinar a interceptação das comunicações telefônicas de ofí­ cio, a captação ambiental só poderá ser determinada pelo magistrado diante de requerimento da autori­ dade policial ou do Ministério Público. A vedação à iniciativa acusatória e probatória do magistrado, seja durante a investigação preliminar, seja durante o processo penal, vem ao encontro das mudanças introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19, a exemplo do art. 3o-A, segundo o qual 507. Como destacam Suxberger e Souza (op. cit. p. 94-97),"(...) Não se deve confundir a escuta ambiental com a requisição das imagens já armazenadas. A obtenção desses registros não está adstrita à reserva de jurisdição, embora o objeto de ambas as medidas seja exatamente o mesmo: sinais e imagens captadas por lentes de câmeras que servirão de provas na apuração de determinados fatos. Essa situação assemelha-se àquela de outrora relativa à possibilidade de obtenção das conversas realizadas por meio das chamadas salas de bate papo, eventualmente armazenadas em computadores pessoais. A discussão foi encerrada a partir da consolidação do entendimento de que essas conversas não estão preservadas pelo sigilo das comunicações, pois se trata de ambiente público e destinado a conversas informais (STJ, RHC 18.116). (...) Assim, por exemplo, caso um vizinho filme a prática de um suborno na varanda da

residência de outro, não haverá proibição para a utilização deste material em processo de improbidade administrativa".

“o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substi­ tuição da atuação probatória do órgão de acusação”. A consagração do sistema acusatório pela Consti­ tuição Federal procura “manter o juiz, sobretudo na fase investigatória, com uma certa contenção”.508 Especificamente quanto aos requisitos, impõe-se a análise dos dois incisos do art. 8°-A da Lei n. 9.296/96:

I - quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes (periculum in mora): à semelhança do art. 2o, inciso II, da Lei n. 9.296/96, o art. 8°-A, inciso I, do mes­ mo diploma normativo, deixa evidente que entre diversas medidas restritivas de direitos fundamen­ tais, as Agências Estatais devem escolher a menos gravosa, sobretudo quando diante de insidiosa ingerência na intimidade não só do suspeito, mas também de terceiros que com ele se comunicaram (ultima ratio). Por se tratar de meio de obtenção de prova invasivo sobre a privacidade, entendido como o direito do indivíduo a um espaço livre das restrições do Estado, antes de decretar a medida, deve o magistrado verificar se não há outro meio de prova ou de obtenção de prova menos gravoso e igualmente eficaz (v.g., prova testemunhai, pericial, etc.). Não havendo outro meio disponível, deve o magistrado deixar patente em sua fundamentação a referência à necessidade da medida cautelar, seja para a legitimação de sua atuação, seja para eventual impugnação a posteriori; II - houver elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações criminais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou em infrações penais conexas: como a lei exige a presença de elementos probatórios razoáveis de autoria e participação (fumus comissi delicti), depreende-se que a captação ambiental jamais poderá ser deferida para dar início a uma investigação, é di­ zer, não pode ser usada como fishing expedition.509 Noutro giro, diversamente do que ocorre em relação 508. A expressão foi utilizada pelo Min. Felix Fischer no âmbito da operação "Lava-jato", referindo-se à impossibilidade de o juiz decretar de ofício a prisão temporária: STJ, 5a Turma, HC 360.896/PR, j. 08/08/16, DJe 16/08/16.

509. Na dicção de Philipe Benoni Melo e Silva (Fishing Expedition: a pes­ ca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação. http://jota. info/artigos/fishing-expedition-21012017), "trata-se a fishing expedition de uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que'lança'suas redes com a esperança de'pescar'qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação. Ou seja, é uma investigação prévia, realizada de maneira muito ampla e genérica para buscar evidên­ cias sobre a prática de futuros crimes. Como consequência, não pode ser aceita no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de malferimento das

balizas de um processo penal democrático de índole Constitucional".

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à interceptação das comunicações telefônicas, cuja decretação está condicionada, dentre outros requisi­ tos, ao fato de a infração penal ser punida com pena de reclusão (Lei n. 9.296/96, art. 2o, III), ao tratar dos requisitos para a captação ambiental, o art. 8°-A da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, não faz qualquer ressalva quanto à espécie de pena cominada ao delito, referindo-se apenas ao quantum máximo, que, in casu, deve ser superior a 4 anos. Também não restringe sua utilização aos crimes envolvendo organizações criminosas.

11.2.5. Local e forma de instalação dos meios eletrônicos de produção de provas De acordo com o art. 8o-A, §1°, da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, o reque­ rimento da autoridade policial (ou do Ministério Público) deverá descrever circunstanciadamente o local e a forma de instalação do dispositivo de captação ambiental. O objetivo do dispositivo é evi­ tar que locais absolutamente estranhos ao fato sob apuração sejam objeto de indevida devassa pelas autoridades estatais.

11.2.5.1. (Im) possibilidade de instalação do dispositivo de captação ambiental na casa do investigado Quando aprovado pelo Congresso Nacional, o Projeto (Projeto de Lei n. 6.341, de 2019 - n. 10.372/18 na Câmara dos Deputados) que deu ori­ gem à Lei n. 13.964/19 previa, no §2° do art. 8o-A da Lei n. 9.296/96, que a instalação do dispositivo de captação ambiental poderia ser realizada, quando necessária, por meio de operação policial disfarçada ou no período noturno, exceto na casa, nos termos do inciso XI do caput do art. 5o da Constituição Fe­ deral. Ocorre que o dispositivo acabou sendo vetado pelo Presidente da República, nos seguintes termos: “A propositura legislativa gera insegurança jurídica, haja vista que, ao mesmo tempo em que admite a instalação de dispositivo de captação ambiental, es­ vazia o dispositivo ao retirar do seu alcance a casa’, nos termos do inciso XI do art. 5o da Lei Maior. Segundo a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o conceito de casa deve ser enten­ dido como qualquer compartimento habitado, até mesmo um aposento que não seja aberto ao público, utilizado para moradia, profissão ou atividades, nos termos do art. 150, §4°, do Código Penal (v.g. HC 82.788, Relator Min. Celso de Mello, 2a Turma, j. 12/04/2005)”. O Congresso Nacional deliberou, to­ davia, pela rejeição do referido veto, incorporando, assim, ao art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 esse §2°. De

sua leitura já se pode vislumbrar o surgimento de pelo menos 3 correntes diversas, quais sejam:

1. Impossibilidade de instalação de disposi­ tivos de captação ambiental no interior da casa, inclusive durante o dia: uma primeira corrente certamente trabalhará com a tese de que a ressalva constante do §2° do art. 8°-A - exceto na casa deverá abranger toda e qualquer instalação de dis­ positivos de captações ambientais, sejam aquelas realizadas por meio de operação policial disfarçada, sejam aquelas realizadas no período noturno. Cui­ da-se, pois, de vedação peremptória inserida pelo legislador de modo a tutelar não apenas a inviola­ bilidade domiciliar, mas também a intimidade e a vida privada dos cidadãos;

2. Possibilidade de instalação de dispositi­ vos de captação ambiental no interior da casa, exclusivamente durante o dia: o direito deve ser interpretado de maneira inteligente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, conclusões inconsistentes ou impossíveis. Como nos lembra Carlos Maximiliano,510 “prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade”. Ora, não há nenhuma lógica em se imaginar que a Lei n. 13.964/19 teria enfim promovido a sistematização da interceptação ambiental no art. 8°-A da Lei n. 9.296/96, vedando-a, todavia, justamente nas hipóteses em que a insta­ lação dos dispositivos de captação mediante prévia autorização judicial tivesse que ser feita no interior de uma casa, sob pena de completo esvaziamento da eficácia e da própria utilidade desse importante meio de obtenção de prova, dado o conceito amplo de “casa” conferido pela doutrina e pela jurispru­ dência, a abranger não apenas qualquer compar­ timento habitado (v.g., casa de campo ou de praia ocupada esporadicamente), aposento ocupado de habitação coletiva (v.g, quarto de hotel ou motel), mas também qualquer compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou ativi­ dade (v.g., consultório médico), nos termos do art. 150, §4°, do Código Penal. A instalação dos disposi­ tivos eletrônicos no interior da casa, todavia, jamais poderia ser executada no período noturno, leia-se, entre as 21h (vinte e uma horas) e 5h (cinco) horas, conforme previsto no art. 22, §1°, inciso III, da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19), já que a Constituição Federal é clara ao dispor que o ingresso em domicílio mediante prévia autorização judicial é cabível exclusivamente durante o dia. Daí, 510. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 203.

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aliás, a própria justificativa para o fato de a parte final do §2° fazer menção explícita ao inciso XI do art. 5o da Constituição Federal.511 Logo, a ressalva constante do §2° do art. 8°-A da Lei n. 9.296/96 exceto na casa - refere-se exclusivamente ao período noturno, do que se infere que é possível a instalação de dispositivo de captação ambiental no interior de domicílio alheio durante o dia por meio de operação policial disfarçada, aqui compreendida não como uma espécie de infiltração policial (Lei n. 12.850/13, arts. 10 a 14), mas sim como uma operação policial não ostensiva, executada de maneira discreta de modo a não levantar qualquer suspeita por parte dos moradores acerca da verdadeira finalidade da presença das autoridades policiais naquela casa;

3. Possibilidade de instalação de dispositivos de captação ambiental no interior da casa, inclu­ sive no período noturno: em precedente anterior à entrada em vigor do Pacote Anticrime, atinente ao envolvimento de advogado em práticas criminosas, o Supremo Tribunal Federal concluiu, com esteio no princípio da proporcionalidade, que, em situações excepcionais, há de se admitir a possibilidade da de­ nominada exploração de local, de modo a permitir a instalação de dispositivos eletrônicos no interior da casa - in casu, em um escritório de advocacia -, me­ diante prévia autorização judicial, inclusive durante o período noturno, eis que nem sempre é possível a execução dessas diligências durante o dia, dado o sigilo indispensável à própria eficácia desse meio de obtenção de prova. A propósito, confira-se: “(...) PROVA. Criminal. Escuta ambiental e exploração de local. Captação de sinais óticos e acústicos. Escritó­ rio de advocacia. Ingresso da autoridade policial, no período noturno, para instalação de equipamento. Medidas autorizadas por decisão judicial. Invasão de domicílio. Não caracterização. Suspeita grave da prática de crime por advogado, no escritório, sob pretexto de exercício da profissão. Situação não aco­ bertada pela inviolabilidade constitucional. Inteli­ gência do art. 5o, X e XI, da CF, art. 150, § 4o, III, do CP, e art. 7o, II, da Lei n° 8.906/94. (...) Não opera a inviolabilidade do escritório de advocacia, quando o próprio advogado seja suspeito da prática de cri­ me, sobretudo concebido e consumado no âmbito desse local de trabalho, sob pretexto de exercício da profissão”.512 Resta saber, então, se esse entendi­ 511. Constituição Federal: "Art. 5o. (...) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo, em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial", (nosso grifo)

mento jurisprudencial firmado com base no prin­ cípio da proporcionalidade - vedação da proteção deficiente - será mantido ou não pela Suprema Cor­ te, a despeito do novel dispositivo acrescentado à Lei n. 9.296/96, sobretudo se considerarmos que é praticamente impossível levar adiante a instalação de dispositivos de captação ambiental de maneira sigilosa no interior da casa durante o dia, sem que seus moradores tomem conhecimento da execução da medida, o que, na prática, acabará por esvaziar a própria eficácia da interceptação ambiental. Como bem percebido pela Corte Suprema no julgamen­ to supramencionado, “tais medidas não poderíam jamais ser realizadas com publicidade alguma, sob pena de intuitiva frustração, o que ocorrería caso fossem praticadas durante o dia, mediante apresen­ tação de mandado judicial”.

11.2.6. Prazo de duração da captação ambiental De acordo com o art. 8°-A, §3°, da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, a capta­ ção ambiental não poderá exceder o prazo de 15 (quinze) dias, renovável por decisão judicial por iguais períodos, se comprovada a indispensabilidade do meio de prova e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada. O dispositivo assemelha-se, de certo modo, ao art. 5o da Lei n. 9.296/96, porém vai além ao exigir que a prorrogação por iguais períodos - 15 (quinze) dias - ocorra apenas quando preenchidos dois requisi­ tos cumulativos, quais sejam, a indispensabilidade do meio de prova e a presença de atividade crimi­ nal permanente, habitual ou continuada. Por crime permanente se compreende aquele cuja consuma­ ção se prolonga no tempo, detendo o agente o po­ der de fazer cessar a execução do delito a qualquer momento (v.g., extorsão mediante sequestro). Por atividade criminosa habitual se entende a plurali­ dade de crimes, uma sequência de atos típicos que demonstram um estilo de vida do autor. Trata-se, a habitualidade, de uma característica do agente, e não da infração penal, o que, aliás, a diferencia do crime habitual, em que a prática de um ato isolado não gera tipicidade. Por fim, atividade criminosa continuada é aquela praticada em continuidade delitiva, nos termos do art. 71 do Código Penal, ou seja, crimes da mesma espécie praticados com homogeneidade de circunstâncias de tempo, lugar, modus operandi, etc.

512. STF, Pleno, Inq n. 2.424, Relator o Ministro Cezar Peluzo, DJe 26.3.2010. Reconhecendo a legalidade de provas colhidas por meio de

Lei n° 9.034/95: STF, 1a Turma, HC 102.819/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j.

escuta ambiental em ação controlada, nos termos do art. 2o, II e IV, da

05/04/2011, DJe 102 27/05/2011.

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11.2.7. Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais) e (im) possibilidade de utilização exclusivamente em favor da defesa quando demonstrada a integridade da gravação Como exposto anteriormente, a gravação am­ biental é uma espécie de captação feita diretamente por um dos comunicadores independentemente de prévia autorização judicial, sem o conhecimento do outro e sem a interveniência de um terceiro, cuja licitude deve ser analisada casuisticamente. Sem em­ bargo, por cautela, nada impede que o juiz autorize a gravação ambiental, se houver requerimento nesse sentido.

Quanto a sua (i) licitude, é ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência que, por força do prin­ cípio da proporcionalidade, a divulgação de grava­ ção sub-reptícia de conversa própria reputa-se lícita quando for usada para comprovar a inocência do acusado, ou quando houver investida criminosa de um dos interlocutores contra o outro.513 Assim é que deve ser considerada válida uma gravação clandes­ tina em um crime de extorsão, quando produzida para comprovar a inocência do extorquido. Não há falar, portanto, em ilicitude da prova que se con­ substancia na gravação de conversa por um dos in­ terlocutores, vítima, sem o conhecimento do outro, agente do crime. Nessas condições, esse verdadeiro estado de necessidade justificante teria o condão de retirar da gravação ambiental qualquer pecha de irregularidade. Além do mais, o próprio art. 233, parágrafo único, do CPP, é categórico ao concluir pela licitude da utilização da comunicação epistolar mesmo sem o consentimento do signatário, quando presente o interesse do destinatário. Daí ter concluí­ do o Supremo que é lícita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e 513. Por ocasião do julgamento do HC 84.203/RS (Rel. Min. Celso de Mello, j. 19/10/2004), a 2a Turma do STF reconheceu a licitude de grava­ ção ambiental realizada por meio de câmera instalada em garagem pelo proprietário da casa, com a finalidade de identificar o autor dos danos a seu automóvel, independentemente de prévia autorização judicial. Não se trata de precedente isolado. A título de exemplo, confira-se: a) licitude de gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocu­ tores quando há investida criminosa do outro (STF, Pleno, HC 75.338/ RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 11/03/1998, DJ 25/09/1998); b) licitude de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou (STF, 2a Turma, RE 402.717/PR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/12/2008, DJe 30 12/02/2009); c) licitude de gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles sem o conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, notadamente quando constituir exercício de defesa (STF, 2a Turma, Al 503.617 AgR/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 01/02/2005, DJ 04/03/2005).

fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com sequestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista. Afinal de contas, se a intimi­ dade está sendo utilizada como escudo protetivo para a instrumento para a prática de crimes, há de se reputar válida a gravação da conversa telefônica pela vítima.514 À exceção dessas hipóteses, há intensa con­ trovérsia doutrinária e jurisprudencial quanto à validade da prova obtida por meio de gravações clandestinas.

De um lado, parte da doutrina sustenta que gravações clandestinas representam patente viola­ ção ao direito à intimidade, uma vez que um dos interlocutores não tem conhecimento da captação da conversa, o que as torna ilegal, ilícita e moral­ mente condenável, mormente se considerarmos que não há, no Brasil, lei expressa admitindo-as. Se um dos interlocutores não tinha consciência da gravação, tal prova seria imoral por dois motivos: a uma, porque haveria má-fé de quem colhe a prova, já que usa de aparato visando iludir o outro inter­ locutor, enganando-o, já que não sabe da gravação; a duas, porque a prova pode ser induzida, já que aquele que conduz a conversa ou a gravação tem a possibilidade de obter a resposta desejada por meio astucioso.515 Nesse contexto, na Ação Penal n° 307/DF, o STF concluiu pela inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica, obtidos por meios ilícitos (art. 5o, LVI, da Constituição Federal), por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conheci­ mento do outro, havendo a degravação sido feita com inobservância do princípio do contraditório, 514. STF, Tribunal Pleno, HC 75.388/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, j.

11/03/1998, DJ 25/09/1998. Com entendimento semelhante, porém efetuada por vítima de concussão: STF, Ia Turma, RE 212.081/RO, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 05/12/1997, DJ 27/03/1998. E ainda: STF, 1a Tur­ ma, HC 74.678/SP, Rel. Min. Moreira Alves, j. 10/06/1997, DJ 15/08/1997; STF, Ia Turma, HC 75.261/MG, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 24/06/1997, DJ22/08/1997; STF, 1a Turma, HC 87.341/PR, Rel. Min. Eros Grau, j.

07/02/2006, DJ 03/03/2006. No sentido de que a gravação ambiental, realizada por um dos interlocutores, com o objetivo de preservar-se diante de atuação desvirtuada da legalidade, prescinde de autorização judicial: STJ, 5aTurma, AgRg no RHC 104.363/SE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 18.08.2020, DJe 24.08.2020; STJ, 6a Turma, RHC n. 313.456/ PI, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 24/3/2014. 515. É nesse sentido a posição de Adalberto José Q. T. de Camargo

Aranha: Da prova no processo penal. 7a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.

p. 58. Na mesma linha, segundo Luiz Flávio Gomes (op. cit. p. 427), não se pode divulgar o conteúdo de uma gravação. A isso se dá o nome de direito à reserva, que se distingue do direito ao segredo: neste o que se visa é evitar que um terceiro capte a comunicação alheia; por aquele

o que pretende é a não divulgação daquilo que foi gravado clandesti­ namente. A divulgação indevida configura o delito previsto no art. 153 do CP. Quem divulga, sem justa causa, o conteúdo de uma gravação clandestina, está praticando um ilícito penal.

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e utilizada com violação a privacidade alheia (art. 5o, X, da CF).516 Confirmando esse entendimento de que a análise da licitude (ou não) da gravação de conversa por um dos interlocutores sem a ciên­ cia do outro deve ser casuística, ou seja, feita de acordo com as peculiaridades do caso concreto, o Superior Tribunal de Justiça também considerou ilícita a gravação de conversa telefônica realizada pela amásia do réu, tão-somente com o intuito de responsabilizá-lo pelo crime, uma vez que a vítima do homicídio era pessoa com quem ela mantinha relação amorosa. Isso porque tal prova fora colhida com indevida violação de privacidade (art. 5o, X, da CF) e não como meio de defesa ou em razão de investida criminosa.517

Logo, desde que não haja, na conversa objeto da gravação clandestina, o direito à reserva (obri­ gação de guardar segredo), a parte contrária pode utilizá-la validamente em juízo. A verificação da configuração (ou não) do caráter reservado da co­ municação deve ser extraído, de forma objetiva, de suas características, especialmente do local em que seja realizada, da forma de sua exteriorização e das cautelas dos interlocutores, que visam a resguardar o seu conteúdo. Outrossim, ainda que a gravação seja considerada ilícita, havendo outro interesse ju­ rídico mais relevante que a proteção à intimidade, como a vida ou o direito à ampla defesa, há de se considerar lícita a gravação, por força do princípio da proporcionalidade.

Com a devida vênia, a nosso juízo, não se cui­ dando de interceptação ambiental ou de outro meio ilegal ou moralmente ilícito, mas simplesmente de reprodução de conversa mantida pelas partes e gravada pelo agente, há de se admitir a gravação clandest a como prova válida, nos moldes do que preconiza o art. 422 do novo CPC: “Qualquer repro­ dução mecânica, como a fotográfica, a cinematográ­ fica, a fonográfica ou de outra espécie, tem aptidão para fazer prova dos fatos ou das coisas representa­ das, se a sua conformidade com o documento ori­ ginal não for impugnada por aquele contra quem foi produzida”.

No âmbito dos Tribunais, o leading case na ma­ téria diz respeito a ex-ministro do Trabalho acusado de corrupção, sendo que a principal prova era uma gravação clandestina efetuada por um ex-assessor durante uma reunião. O Plenário do Supremo Tri­ bunal Federal concluiu pelo recebimento da denún­ cia com base na gravação clandestina.519 Em outra importante decisão, a 2a Turma do STF referendou a prisão cautelar do Senador Delcídio do Amaral, decretada pelo Min. Teori Zavascki, reconhecendo a validade da gravação ambiental levada a efeito pelo filho de Nestor Cerveró, um dos alvos da Opera­ ção Lava Jato, in verbis: “(...) Embora o art. 5o, LVI, da Constituição desautorize o Estado a utilizar-se de provas obtidas por meios ilícitos, considerados aqueles que resultem de violação às normas de di­ reito penal, a gravação de conversa feita por um dos interlocutores sem o conhecimento dos demais é considerada lícita, para os efeitos da aludida ve­ dação constitucional, quando não esteja presente causa legal de sigilo ou de reserva de conversação. (...) A Turma asseverou que a conduta por parte do

Reconhecido o direito de toda pessoa de gravar sua própria conversa, a gravação clandestina deve ser considerada prova lícita, salvo se sua obtenção violar princípios e garantias constitucionais, tais como o direito à intimidade, à vida privada, à honra e imagem das pessoas, à inviolabilidade do domicí­ lio, à vedação da tortura e tratamentos desumanos e degradantes, ao direito ao silêncio, entre outros. Assim, a gravação clandestina será considerada ilí­ cita quando o conteúdo da comunicação se referir a assunto que goza de sigilo profissional ou funcional protegido penalmente. Ainda que não haja prote­ ção penal, pode tratar-se de sigilo implícito, como as intimidades que um amigo relata a outro, cuja revelação pode violar o direito fundamental à inti­ midade, salvo se feita para atender direito próprio ou por quem o sigilo protege.518* 516. STF, Tribunal Pleno, AP 307/DF, Rei. Min. limar Galvão, j. 13/12/1994, DJ 13/10/1995. 517. STJ, 5a Turma, HC 57.961/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 21/06/2007, DJ 12/11/2007, p. 242. 518. No sentido de que a gravação de conversa entre dois interlocu­ tores, feita por um deles, sem conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita, principalmente quando constitui exercício de defesa: STF, 2a Turma, Al

503.617 AgR/PR, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 01/02/2005, DJ 04/03/2005 p. 30.

519. STF, Tribunal Pleno, Inq. 657/DF, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 30/09/1993, DJ 19/11/1993. Em outro julgado, relatado pelo Min. Carlos

Velloso, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a legalidade de pro­ va constante de gravação em fita magnética: STF, 2a Turma, HC 69.204, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 26/05/1992, DJ04/09/1992. Na visão do STJ, "a gravação de conversa realizada por um dos interlocutores é conside­ rada prova lícita, e difere da interceptação telefônica, esta sim, medida que imprescinde de autorização judicial (Precedentes do STF e do STJ)". (STJ, 5a Turma, RHC 19.136/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 20/03/2007, DJ 14/05/2007 p. 332). Também: STJ, 5a Turma, RMS 19.785/RO, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 10/10/2006, DJ 30/10/2006 p. 335; STJ, 5a Tur­ ma, RHC 14.041/PA, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 20/11/2003, DJ 09/12/2003, p. 296; STJ, 5aTurma, REsp 214.089/SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 16/03/2000, DJ 17/04/2000 p. 78; STJ, 5aTurma, HC 33.110/ SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 27/04/2004, DJ 24/05/2004 p. 318. Em outro julgado - STF, Tribunal Pleno, AP 447/RS, Rei. Min. Carlos Britto, j. 18/02/2009, DJe 99 28/05/2009 -, a maioria do Plenário do Supremo também concluiu que é lícita a gravação ambiental de diálogo realizada por um dos interlocutores.

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filho do candidato à delação premiada no sentido de gravar reuniões com o senador e demais parti­ cipantes não revelaria violação à normativa consti­ tucional. Portanto, não macularia os elementos de provas colhidos (...)”.52° Em síntese, como gravação meramente clandestina, que se não confunde com interceptação, objeto de vedação constitucional, é lícita a prova consistente no teor de gravação de con­ versa telefônica (ou ambiental) realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou.520 521

Enfim, em sede de Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 583.937 QO-RG), o Plenário do STF deliberou pela fixação da seguinte tese (Tema n. 237): “É lícita a prova con­ sistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro”. Enfim, à luz da jurisprudência pacífica dos Tribu­ nais Superiores, e como destacam Vinícius Marçal e Cleber Masson,522 reputa-se lícita, pelo menos em regra, a gravação ambiental clandestina, feita sem a ciência do outro interlocutor, passível de utilização tanto em favor da acusação quanto em favor da de­ fesa, mesmo que desprovida de prévia autorização judicial, naquelas hipóteses já sedimentadas pela jurisprudência: a) como meio de defesa;523 b) em razão de investida criminosa (v.g., vítima de concus­ são grava a conversa com o funcionário público); c) se não há reserva da conversação, leia-se, obrigação de guardar segredo; d) quando não restar caracteri­ zado violação de sigilo, não havendo de se cogitar uma suposta (e inexistente) violação do direito à privacidade nesses casos. Eis que surge, então, o Projeto de Lei n. 6.341, de 2019 (n. 10.372/18 na Câmara dos Deputados), que deu origem à Lei n. 13.964/19. Ao ser aprovado pelo Congresso Nacional, era nesse sentido o teor do §4° do art. 8°-A da Lei n. 9.296/96: “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação”. Ocorre que o dispositivo acabou sendo 520. STF, 2a Turma, ACs 4.036 e 4.039 - Referendo-MC-DF, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 25.11.2015. 521. STF, 2a Turma, RE 402.717/PR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/12/2008,

vetado pelo Presidente da República, nos seguintes termos: “A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental ape­ nas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que bene­ ficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispo­ sitivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova de infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimen­ to da autoridade policial ou do Ministério Públi­ co, quando demonstrada a integridade da grava­ ção (v.g. Inq-QO 2.116, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno)”. O veto em questão, todavia, foi rejeitado pelo Congresso Nacional. Sem embargo da inserção des­ se §4° ao art. 8°-A da Lei n. 9.296/96, já se pode antever o surgimento de inúmeros questionamentos acerca da validade desse novel dispositivo, senão vejamos:

a. Violação da vida privada ou da intimidade: o novel dispositivo vem na contramão da jurispru­ dência sedimentada do Supremo Tribunal Federal acerca do assunto - Tese de Repercussão Geral fixada no Tema n. 237 -, que sempre considerou a gravação clandestina realizada sem prévia auto­ rização judicial como espécie de prova lícita, pelo menos em regra, daí por que sua utilização poderia se dar tanto em favor da acusação, quanto em favor da defesa. Ao limitar o uso de uma prova lícita ape­ nas pela defesa, o art. 8o-A, §4°, da Lei n. 9.296/96 vem de encontro não apenas à paridade de armas, consectário lógico do princípio do contraditório, como também representa um gravíssimo retrocesso legislativo no combate à criminalidade que assola o país, sobrevalorizando a tutela de interesses indivi­ duais disponíveis, como a intimidade e vida privada, em detrimento da proteção do interesse público na tutela da segurança pública. Nesse ponto, é impor­ tante atentar para o fato de que a gravação ambiental está sujeita ao inciso X do art. 5o da Constituição Federal,524 diferenciando-se, nesse ponto, da inter­ ceptação telefônica, que se encontra tutelada pelo

DJe 30 12/02/2009. 522. Crime organizado. 5a ed. São Paulo: Método, 2020. P. 320-321.

523. STF, 2a Turma, RE 402.717/PR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/12/2008, DJe 30 12/02/2009.

524.Constituição Federal:"Art. 5o (...) X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

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inciso XII do mesmo dispositivo.525 Ora, enquanto a Constituição Federal é explícita ao se referir à ne­ cessidade de prévia autorização judicial para fins de interceptação das comunicações telefônicas (art. 5o, XII), em nenhum momento dispõe que eventual violação à intimidade e à vida privada das pessoas é matéria sujeita à cláusula de reserva de jurisdição (art. 5o, X);

b. Princípio da comunhão das provas: como exposto anteriormente, a gravação ambiental feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, independentemente de prévia autorização judicial, é espécie de prova lícita, pelo menos em regra. Prova disso, aliás, é o fato de o art. 10-A, §1°, da Lei n. 9.296/96, também incluído pelo Pacote Anticrime, ao tratar do crime de captação ambiental sem autorização judicial, dispor expressamente que não haverá tal crime se a captação for realizada por um dos interlocutores.526 Ora, se se trata de espécie de prova lícita, não há como justificar sua utilização apenas em matéria de defesa, leia-se, em favor do acusado, sob pena de evidente violação ao princípio da comunhão das provas, segundo o qual, uma vez produzida, a prova é comum, não pertencendo a ne­ nhuma das partes que a introduziu no processo, daí por que pode ser utilizada por qualquer das partes;

c. Princípio da proporcionalidade: firmada a premissa de que estamos diante de uma prova lícita, não há por que limitar sua utilização exclusivamente em matéria de defesa. Fosse a gravação ambiental clandestina espécie de prova ilícita, aí sim seria pos­ sível admitirmos sua utilização exclusivamente em favor do acusado. Isso porque é firme a orientação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que o 525. Constituição Federal: "Art. 5o (...) XII - É inviolável o sigilo da cor­ respondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comuni­

cações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal", (nosso grifo) 526. Por ocasião do julgamento do HC 84.203/RS (Rei. Min. Celso de Mello, j. 19/10/2004), a 2a Turma do STF reconheceu a licitude de grava­ ção ambiental realizada por meio de câmera instalada em garagem pelo proprietário da casa, com a finalidade de identificar o autor dos danos a seu automóvel, independentemente de prévia autorização judicial. Não se trata de precedente isolado. A título de exemplo, confira-se: a)

licitude de gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocu­ tores quando há investida criminosa do outro (STF, Pleno, HC 75.338/ RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, j. 11/03/1998, DJ 25/09/1998); b) licitude de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou (STF, 2aTurma, RE 402.717/PR, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 02/12/2008, DJe 30 12/02/2009); c) licitude de gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles sem o conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-

-la, futuramente, em caso de negativa, notadamente quando constituir exercício de defesa (STF, 2a Turma, Al 503.617 AgR/PR, Rei. Min. Carlos

Velloso, j. 01/02/2005, DJ 04/03/2005).

princípio da proporcionalidade não autoriza con­ clusão afirmativa quanto à tese da admissibilidade de provas ilícitas pro societate;527* d. (Des) necessidade de conhecimento prévio da autoridade policial ou do Ministério Público: para além de todas as impropriedades já menciona­ das, o novel dispositivo faz referência à possibilidade de utilização, em matéria de defesa, da captação am­ biental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público. Ora, se estamos diante de uma espécie de meio de obtenção de prova cuja realização indepen­ de de prévia autorização judicial, por que motivo haveria a necessidade de se dar mero conhecimento prévio ao Delegado de Polícia ou ao Promotor de Justiça (Procurador da República), se tais autori­ dades, aliás, sequer têm atribuição para autorizar (ou não) a realização da diligência? Destarte, por se tratar de medida que não está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, é de rigor a conclusão no sentido de que o conhecimento prévio da autori­ dade policial (ou ministerial) acerca da realização da captação não é uma condição sine qua non para fins de se emprestar validade à gravação ambiental;

e. Demonstração da integridade da grava­ ção: em sua parte final, o art. 8°-A, §4°, da Lei n. 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/19, faz menção expressa à demonstração da integridade da grava­ ção, como requisito indispensável à utilização da gravação ambiental. Nada mais óbvio. Com efeito, a demonstração da integridade da gravação, a ser aferida pela integralidade e continuidade das conversas e imagens captadas, não é um requisito exclusivo da gravação ambiental clandestina, mas sim de toda e qualquer evidência probatória. Prova disso, aliás, é o fato de a própria Lei n. 13.964/19 ter incorporado ao Código de Processo Penal diversos dispositivos referentes à proteção da cadeia de custódia - arts. 158-A a 158-F os quais são aplicáveis a todo e qualquer elemento probatório (v.g., drogas, res fur­ tiva, mídias digitais). Compreendida, pois, a cadeia de custódia, como a documentação formal de um procedimento destinado a manter e documentar a história cronológica de uma evidência, evitando-se, assim, eventuais interferências internas e externas capazes de colocar em dúvida o resultado da ativi­ dade probatória, assegurando, assim, o rastreamento da evidência desde o local do crime até o julgamento pela autoridade judiciária competente, é de todo evi­ dente que, independentemente da previsão explícita 527. STF, 1a Turma, HC 80.949/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j.

30.10.2001, DJ 14.12.2001.

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do art. 8°-A, §4°, in fine, da Lei n. 9.296/96 nesse sentido, a demonstração da integridade da gravação ambiental já seria uma medida obrigatória, nos exa­ tos termos dos arts. 158-A a 158-F do CPP, incluídos pelo Pacote Anticrime.

11.2.8. Aplicação subsidiária à captação am­ biental das regras atinentes à interceptação das comunicações telefônicas Em conclusão, o art. 8°-A, §5°, da Lei n. 9.296/96 determina que são aplicáveis subsidiaria­ mente à captação ambiental as regras previstas na legislação específica para a interceptação telefônica e telemática.

12. QUEBRA DO SIGILO DE DADOS BANCÁ­ RIOS, FINANCEIROS E FISCAIS O sigilo bancário e financeiro528 é um dever jurídico imposto às instituições financeiras para que estas não divulguem informações acerca das movimentações financeiras de seus clientes, tais como aplicações, depósitos, saques etc. Pode ser compreendido, portanto, como o dever jurídico de sigilo das entidades atuantes no sistema financei­ ro nacional. Tal imposição legal deriva do art. Io, caput, da LC n° 105/2001, que assim dispõe: “As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”. A quebra do sigilo financeiro, por sua vez, pode ser conceituada em sede processual penal como meio de obtenção de prova, funcionando como fer­ ramenta adequada para a revelação das informações referentes à utilização dos serviços disponibilizados pelas instituições financeiras. Em síntese, podem ser apontados como funda­ mentos para a proteção do sigilo financeiro:

a) direito à intimidade do cliente e de possí­ veis terceiros envolvidos nas operações efetuadas pelas instituições financeiras (CF, art. 5o, X): a depender do caso concreto, os dados financeiros de uma pessoa podem revelar detalhes da intimidade de uma pessoa, como, por exemplo, lojas, hotéis e restaurantes por ela frequentados, viagens realiza­ das, hábitos diurnos e noturnos, enfim, um leque enorme de informações estritamente pessoais e excluídas do domínio público; 528. Tecnicamente, revela-se mais correto falar em sigilo financeiro do que em sigilo bancário, porquanto esta expressão não oferece a abran­ gência adequada do instituto. É nesse sentido a lição de Maurício Zanoide

b) dever de sigilo do profissional: o exercício de certas profissões demanda a transmissão de da­ dos íntimos, ou até mesmo confidenciais, até mesmo como mecanismo para otimizar a prestação desse serviço. Logo, não se pode negar que o profissional que atua com a intermediação de crédito funciona como verdadeiro confidente necessário, consistin­ do o sigilo financeiro em modalidade de segredo profissional. Na dicção da doutrina,529 esse dever de sigilo estende-se a todos os funcionários da instituição financeira cientes das informações de clientes e de terceiros no exercício de sua atividade, os quais po­ dem vir a responder penal e disciplinarmente. Por eventuais danos materiais e morais causados pela revelação indevida, a própria pessoa jurídica atuante no sistema financeiro também pode ser responsabi­ lizada de maneira solidária, porém exclusivamente no âmbito cível, já que não se admite a responsa­ bilização criminal do ente fictício por suposta vio­ lação do sigilo. Noutro giro, uma vez determinada a quebra do sigilo bancário para fins de instrução processual penal, os destinatários das informações (v.g., juiz, promotor e advogados) também passam a ter o dever de zelar pela proteção desse sigilo.

De acordo com o art. 5o, § Io, do referido di­ ploma normativo, consideram-se operações finan­ ceiras: I - depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança; II - pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques; III - emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados; IV - resgates em contas de depósito à vista ou a prazo, inclusive de poupança; V - contratos de mútuo; VI - descontos de duplicatas, notas pro­ missórias e outros títulos de crédito; VII - aquisi­ ções e vendas de títulos de renda fixa ou variável; VIII - aplicações em fundos de investimentos; IX - aquisições de moeda estrangeira; X - conversões de moeda estrangeira em moeda nacional; XI transferências de moeda e outros valores para o exterior; XII - operações com ouro, ativo finan­ ceiro; XIII - operações com cartão de crédito; XIV - operações de arrendamento mercantil; e XV quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou ou­ tro órgão competente. Firmada a premissa de que o sigilo bancário e financeiro tem como fundamento constitucional a tutela do direito à intimidade e à vida privada

de Moraes (Sigilo financeiro: LC 105, de 10.01.2001. In: Alberto Silva Franco e Rui Stoco [org.], Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, 7a ed., São Paulo, RT, 2001, vol. 2, p. 2.797.

750 ,

529. BELLOQUE, Juliana Garcia. Sigilo bancário: análise crítica da LC 105/2001. São Paulo: Revista dosTribunais, 2003. p. 68.

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(CF, art. 5o, X), impõe-se analisar as hipóteses legais em que tais informações podem ser validamente acessadas para fins de investigação ou instrução processual penal: 1) fornecimento voluntário dos dados bancá­ rios e financeiros: à evidência, se os dados forem fornecidos voluntariamente pelo próprio investi­ gado, não se revela necessária prévia autorização judicial. Na visão dos Tribunais Superiores, tanto as instituições financeiras quanto a Administração Pública Direta ou Indireta não estão autorizadas a fornecer dados financeiros e/ou fiscais que dete­ nham em razão do exercício de suas atividades e funções, salvo, conforme autorização do art. 5o, XII, da CF, mediante autorização judicial devidamente motivada. A elas se impõe, portanto, a obrigatorie­ dade de proteção do sigilo bancário e fiscal. Logo, se o próprio indivíduo forneceu voluntariamente seus dados financeiros, não há por que se exigir prévia autorização judicial. A propósito, a Lei Complemen­ tar n° 105/01 determina que não constitui violação do dever de sigilo a revelação de informações sigi­ losas com o consentimento expresso dos interessados (art. Io, § 3o, V);530

2) Comissões Parlamentares de Inquérito: a denominada cláusula de reserva de jurisdição não se estende à quebra do sigilo de dados bancários e financeiros. Destarte, considerando-se que o art. 58, §3°, da Constituição Federal lhes outorga poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, assiste competência às Comissões Parlamentares de Inquérito para decretar, sempre em ato necessaria­ mente motivado, a excepcional ruptura dessa esfera de privacidade das pessoas. Para tanto, deve ser de­ monstrada, a partir de meros indícios, a existência concreta de causa provável que legitime a medida excepcional, justificando a necessidade de sua efeti­ vação no procedimento. A propósito, o art. 4o, § Io, da LC 105/01, preceitua que as comissões parlamen­ tares de inquérito, no exercício de sua competência 530. Acerca do assunto, a 5a Turma do STJ (RHC 34.799/PA, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 17/3/2016, DJe 20/4/2016) concluiu recen­ temente que não configura quebra de sigilo bancário e fiscal o acesso do MP a recibos e comprovantes de depósitos bancários entregues esponta­ neamente pela ex-companheira de investigado, os quais foram voluntaria­ mente deixados sob a responsabilidade dela pelo agente. Na visão daquele colegiado, o caso não se refere a sigilo bancário e/ou fiscal, não estando, pois, abrangido pelo direito fundamental consagrado no art. 5o, XII, da CF. Isso porque não houve, em momento algum, quebra ilegal de sigilo bancá­ rio e/ou fiscal pelo Parquet, pois os dados fornecidos não se encontravam mais sob a tutela de instituições financeiras e/ou da Administração Pública. Noutro julgado (RHC 66.520/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 02/02/2016, DJe 15/2/2016), a 5aTurma do STJ concluiu que os dados bancários entregues à autoridade fiscal pela sociedade empresária fiscalizada, após regular in­ timação e independentemente de prévia autorização judicial, também podem ser utilizados para subsidiara instauração de inquérito policial para apurar suposta prática de crime contra a ordem tributária.

constitucional e legal de ampla investigação, obterão as informações e documentos sigilosos de que ne­ cessitarem, diretamente das instituições financeiras, ou por intermédio do Banco Central do Brasil ou da Comissão de Valores Mobiliários.531 Logicamente, uma vez decretada a quebra desse sigilo por CPI, os dados obtidos devem ser mantidos sob reserva;532

3) Ministério Público: o poder de requisição ministerial constante do art. 129, VIII, da Consti­ tuição Federal, não lhe confere, pelo menos em re­ gra, poderes para determinar diretamente a quebra do sigilo financeiro, é dizer, sem prévia autorização judicial. Como já decidiu a 2a Turma do STF, “se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, que a Constituição Federal consagra em seu art. 5o, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a inter­ venção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa”.533 Todavia, não são nulas as provas obtidas por meio de requisição do Ministério Público de informações bancárias de titularidade de órgãos públicos para fins de apurar supostos crimes praticados por agentes públicos contra a Administração Pública. É pacífico na doutrina pátria e na jurisprudência dos Tribunais Superiores que o sigilo bancário constitui espécie do direito à intimidade/privacidade, consagrado no art. 5o, X e XII, da CF. No entanto, as contas públicas, ante os princípios da publicidade e da moralidade (art. 37 da CF), não possuem, em re­ gra, proteção do direito à intimidade/privacidade e, em consequência, não são protegidas pelo sigilo bancário. Na verdade, a intimidade e a vida privada de que trata a Lei Maior referem-se à pessoa hu­ mana, aos indivíduos que compõem a sociedade e às pessoas jurídicas de direito privado, inaplicáveis tais conceitos aos entes públicos. Concluir 531. Admitindo a quebra do sigilo financeiro por Comissão Parlamen­ tar de Inquérito: STF, Pleno, MS 23.639/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 16/11/2000, DJ 16/02/2001. E também: STF - MS 23.652/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 16/02/2001. As Casas Legislativas dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, também são dotadas de função fiscalizadora, mas só podem investigar os fatos que

se inserirem no âmbito de suas respectivas competências legislativas e materiais. Daí por que concluiu o Supremo que, ainda que seja omissa a Lei Complementar n° 105/01, é possível que uma CPI estadual deter­ mine a quebra de sigilo de dados bancários, com base no art. 58, § 3o, da Constituição: STF, ACO 730/RJ, Pleno, rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 11.11.2005, p. 5.

532. Com base nesse entendimento, o Plenário do STF concedeu man­ dado de segurança (MS 25.940, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 26/04/2018) para determinarão Senado Federal que retirasse de sua página na inter­ net dados bancários, telefônicos e fiscais obtidos por meio da quebra de sigilo determinada por CPI.

533. STF, 2a Turma, RE 215.301/CE, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 13/04/1999, DJ 28/05/1999.

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em sentido contrário implicaria o esvaziamento da própria finalidade do princípio da publicidade, que é permitir o controle da atuação do adminis­ trador público e do emprego de verbas públicas.534 Aliás, ante o interesse da sociedade em conhecer o destino dos recursos públicos, há precedentes da 2a Turma do STF admitindo que a requisição ministerial compreenda, por extensão, inclusive o acesso aos registros das operações bancárias su­ cessivas, ainda que realizadas por particulares-,535

4) Autoridade judiciária competente: con­ soante disposto no art. 3o, caput, da LC 105/01, serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Ju­ diciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão se servir para fins estranhos à lide. Diversamente da regulamentação conferida à interceptação das co­ municações telefônicas, que proíbe a adoção dessa medida na apuração de crimes apenas no máximo com pena de detenção (Lei n° 9.296/96, art. 2o, III), não há qualquer restrição desta espécie no tocante à quebra de sigilo financeiro. O art. Io, § 4o, da LC n° 105/01, traz um rol exemplificativo de infrações penais que admitem a quebra do sigilo financeiro, que pode ocorrer em qualquer fase da investigação ou do processo judicial;

5) Administração tributária: de acordo com o art. 5o, caput, da LC 105/01, o Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administra­ ção tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços. Por sua vez, o art. 6o, caput, da LC 105/01, estabelece que as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e re­ gistros de instituições financeiras, inclusive os refe­ rentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames se­ jam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

A constitucionalidade desses dispositivos legais sempre foi alvo de intensa controvérsia, justamente pelo fato de permitirem que a administração tri­ butária tenha acesso direto aos dados bancários e financeiros, é dizer, sem a necessidade de prévia autorização judicial. De um lado, há quem entenda que a regra se­ ria assegurar a privacidade das correspondências, das comunicações telegráficas, de dados e telefôni­ cas, sendo possível a mitigação por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal. A imprescindibilidade de autori­ zação judicial prévia visa resguardar o cidadão de atos extravagantes que possam, de alguma forma, alcançá-lo na dignidade, de modo que o afastamen­ to do sigilo apenas seria permitido mediante ato de órgão equidistante (Estado-juiz).536

Sempre prevaleceu, todavia, o entendimento no sentido de que a transferência de informações sigilosas da entidade bancária ao órgão de fiscali­ zação tributária federal sem prévia autorização ju­ dicial (LC n° 105/01, Lei n° 10.174/2001 e Decreto n° 3.724/2001) não configura quebra de sigilo ou da privacidade, mas sim hipótese de transferência de dados sigilosos de um órgão, que tem o dever de sigilo, para outro, o qual deverá manter essa mesma obrigação, sob pena de responsabilização na hipó­ tese de eventual divulgação desses dados. Afinal, se a Receita Federal tem acesso à declaração do patrimônio total de bens dos contribuintes, con­ junto maior, não haveria razão de negá-lo quanto à atividade econômica, à movimentação bancária, que seria um conjunto menor.537 Pondo um fim à controvérsia, o Plenário do Supremo concluiu, recentemente, o julgamento de 4 (quatro) Ações Diretas de Inconstitucionalidade para concluir que o acesso direto - sem prévia auto­ rização judicial - aos dados bancários e financeiros pelos órgãos públicos previsto nos arts. 5o e 6o da Lei Complementar n° 105/2001 não viola o direito à intimidade. 536. Com esse entendimento: STF, Pleno, RE 389.808/PR, Rel. Min. Mar­ co Aurélio, j. 15/12/2010, DJe86 09/05/2011. Para o Supremo, o Tribunal de Contas da União também não detém legitimidade para requisitar diretamente informações que importem quebra de sigilo bancário (Lei 4.595/64, art. 38 e LC 105/2001, art. 13): STF, 2a Turma, MS 22.934/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 17/04/2012. Maurício Zanoide de Moraes (Op. cit. p. 3.043) confere destaque a dois fundamentos de inconstitucio­ nalidade dos arts. 5o e 6o da LC 105/01: a parcialidade do Fisco, que, na atividade de fiscalização, tem interesse na obtenção do maior número

534. Nesse contexto: STJ, 5aTurma, HC 308.493/CE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 20/10/2015, DJe 26/10/2015.Também há preceden­ tes do STF no sentido de que as "operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar n° 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos

de informações sobre os contribuintes, e o fato de a violação do sigilo financeiro deslocar-se da exceção à regra, sendo que sequer uma emenda

no art. 37 da Constituição Federal". (MS 33.340-DF, Primeira Turma, DJe

constitucional poderia produzir tal resultado.

de 3/8/2015).

535. STF, 2a Turma, RHC 133.118/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 26/09/2017.

537. Nesse contexto: STF, Pleno, AC 33 MC/PR, Rel. Min. Joaquim Bar­ bosa, j. 24/11/2010, DJe 27 09/02/2011.

TÍTULO 6 • PROVAS

Aos olhos do STF, não haveria, in casu, quebra de sigilo financeiro, mas, ao contrário, a afirmação desse direito. Outrossim, seria clara a confluência entre os deveres do contribuinte - o dever funda­ mental de pagar tributos - e os deveres do Fisco - o dever de bem tributar e fiscalizar. Nesse sentido, para se falar em “quebra de sigilo bancário” pelos preceitos impugnados, necessário seria vislumbrar, em seus comandos, autorização para a exposição das informações bancárias obtidas pelo Fisco. A previsão de circulação dos dados bancários, toda­ via, inexistiria nos dispositivos questionados, que consagrariam, de modo expresso, a permanência no sigilo das informações obtidas com base em seus comandos. O que ocorreria não seria propriamente a quebra de sigilo, mas a transferência de sigilo dos bancos ao Fisco. Nessa transmutação, inexistiria qualquer distinção entre uma e outra espécie de si­ gilo que pudesse apontar para uma menor seriedade do sigilo fiscal em face do bancário. Ao contrário, os segredos impostos às instituições financeiras muitas das quais de natureza privada - se manteria, com ainda mais razão, com relação aos órgãos fiscais integrantes da Administração Pública, submetidos à mais estrita legalidade. Em síntese, a LC 105/2001 possibilitara o acesso de dados bancários pelo Fisco, para identificação, com maior precisão, por meio de legítima atividade fiscalizatória, do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte. Não permitiría, contudo, a divulgação dessas informações, resguardando-se a intimidade e a vida íntima do correntista. E esse resguardo se tornaria evidente com a leitura sistemática da lei em questão. Essa seria, em verdade, bastante protetiva na ponderação entre o acesso aos dados bancários do contribuinte e o exercício da atividade fiscali­ zatória pelo Fisco. Além de consistir em medida fiscalizatória sigilosa e pontual, o acesso amplo a dados bancários pelo Fisco exigiría a existência de processo administrativo - ou procedimento fiscal. Isso, por si, já atrairía para o contribuinte todas as garantias da Lei 9.784/1999 - dentre elas, a obser­ vância dos princípios da finalidade, da motivação, da proporcionalidade e do interesse público -, a permitir extensa possibilidade de controle sobre os atos da Administração Fiscal. No entanto, a Corte ressaltou que os Estados-Membros e os Municípios somente poderíam obter as informações previstas no art. 6o da LC 105/2001, uma vez regulamentada a matéria de forma análoga ao Decreto 3.724/2001, observados os seguintes parâmetros: a) pertinência temática entre a obtenção das informações bancá­ rias e o tributo objeto de cobrança no procedimen­ to administrativo instaurado; b) prévia notificação

do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos, garantido o mais amplo acesso do contribuinte aos autos, permitindo-lhe tirar cópias, não apenas de documentos, mas tam­ bém de decisões; c) sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; d) existência de sistemas eletrônicos de segurança que fossem certificados e com o registro de acesso; e, finalmente, e) estabe­ lecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios.538 Firmada a premissa de que é licito o forne­ cimento de informações sobre movimentações financeiras diretamente ao fisco, sem autorização judicial, também há se considerar lícito o compar­ tilhamento promovido pela Receita Federal desses dados bancários por ela obtidos com a Polícia e com o Ministério Público, quando do esgotamento da via administrativa e constituição definitiva do crédito tributário, se acaso verificada a prática, em tese, de infração penal, independentemente de pré­ via autorização judicial, sem que se possa objetar violação à cláusula de reserva de jurisdição. Com efeito, constitui obrigação dos órgãos de fiscaliza­ ção tributária, prevista no art. 83 da Lei n. 9.430/96 (redação dada pela Lei n. 12.350/2010) comunicar o Ministério Público, quando do encerramento do procedimento administrativo sobre exigência de crédito tributário, eventual prática de crime. E mais, não configura quebra do dever de sigilo “a co­ municação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa”, nos termos do inciso IV do § 3o do art. Io da Lei Complementar n. 105/2001. Enfim, sendo legítimos os meios de obtenção da prova material e sua utilização no processo administrativo fiscal, mostra-se igualmente lícita sua utilização para fins da persecução criminal, a partir da comunicação obrigatória promovida pela Receita Federal no cum­ primento de seu dever legal, quando do término da fase administrativa.539

538. STF, Pleno, ADI 2.390/DF, ADI 2.386/DF, ADI 2.397/DF, ADI 2.859/ DF, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 24/02/2016. Com entendimento semelhante: STF, Pleno, RE 601.314/SP, Rei. Min. Edson Fachin,j. 24/02/2016. No sentido da constitucionalidade das normas que permitem o acesso direto da Re­ ceita Federal à movimentação financeira dos contribuintes (LC 105/2001, artigos 5o e 6o; Decreto 3.724/2001; e Decreto 4.489/2002): STF, 2aTurma, RHC 121.429/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 19/04/2016. 539. Reconhecendo a licitude dessa prova emprestada do procedimen­ to fiscal no processo penal, independentemente de prévia autorização judicial: STJ, 5a Turma, AgRg no REsp 1.601.127/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 20/09/2018, DJe 26/09/2018; STJ, 6a Turma, HC 422.473/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 20/03/2018, DJe 27/03/2018; STF, ARE 953.058/ SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 25/05/2016, DJe 109 27/05/2016.

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Especificamente quanto à (des) necessidade de prévia autorização judicial para o compartilhamento de dados fiscais e bancários de contribuintes pe­ los órgãos de fiscalização e controle (v.g., Receita e Coaf - UIF) para fins penais, é de todo relevante destacar que, em data de 15 de julho de 2019, após o ingresso do Senador E B. na condição de amicus curiae (CPC, art. 1.038, I) no RE n. 1.055.941, no qual havia sido reconhecida repercussão geral acerca da matéria, o Presidente do STF determinou, singularmente, a suspensão do processamento de todos os processos judiciais, inquéritos e procedimentos de investigação criminal que foram instaurados à míngua de supervisão do Judiciário e de sua prévia autorização sobre os dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle, que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, consoante decidido pela Corte (v.g., ADI’S 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859). Res­ tou consignado que a contagem do prazo da pres­ crição ficaria suspensa, conforme já decidido no RE 966.177RG-QO.

Ocorre que, por ocasião da apreciação da ma­ téria pelo Plenário da Suprema Corte,540 o colegiado entendeu, acertadamente, que não há nenhuma in­ constitucionalidade ou ilegalidade no compartilha­ mento entre Receita (ou Coaf) e Ministério Público das provas e dados imprescindíveis à conformação e ao lançamento do Tributo, independentemente de prévia autorização judicial. Logo, se a Receita, após a conclusão de procedimento administrativo e cons­ tituição do débito tributário, encaminhar, ao Minis­ tério Público, Representação Fiscal Para Fins Penais (RFFP), com dados regularmente obtidos no curso da fiscalização e remetidos em caráter sigiloso, é perfeitamente possível que o Parquet ofereça denún­ cia contra os investigados, por exemplo, em virtude de supostos crimes contra a ordem tributária, sem que se possa objetar a existência de provas ilícitas em face da ausência de prévia autorização judicial. Ora, não há sentido em se produzir prova lícita, obtida de acordo com a Constituição e a legislação, e não permitir o compartilhamento com o titular da ação penal, que é outro órgão de fiscalização. O compartilhamento dessa prova, obtida mediante procedimento regular, nada mais é que típica prova emprestada, lícita. Por maioria, o Plenário fixou as seguintes teses (Tema n. 990 da Repercussão Ge­ ral): 1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da 540. STF, Pleno, RE 1.055.941/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 27/11/2019. Na ocasião, o Colegiado também revogou a tutela provisória anteriormente concedida pelo Min. DiasToffoli.

íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil (RFB), que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia au­ torização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdi­ cional; 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios. Por fim, não se pode confundir sigilo finan­ ceiro com sigilo fiscal. Este último funciona como um dever de segredo e confidencialidade da situa­ ção tributária dos contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas. Está amparado pelo art. 198 do Código Tributário Nacional (CTN), que dispõe que é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. Enquanto o sigilo financeiro deve ser preservado pelas institui­ ções financeiras elencadas pelo art. Io, § Io, da LC n° 105/01, pelas empresas defactoring (art. Io, § 2o, da LC n° 105/01) e pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários (art. 2o, caput, e § 3o, da LC n° 105/01), o sigilo fiscal tem como destinatários a Fazenda Pública (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e seus agentes.

Não constitui quebra do sigilo fiscal a requisi­ ção de autoridade judiciária no interesse da justiça, nem tampouco as solicitações de autoridade admi­ nistrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa (CTN, art. 198, § Io, incisos I e II). Também não é vedada a divulgação de infor­ mações relativas a representações fiscais para fins penais, inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pú­ blica e parcelamento ou moratória (CTN, art. 198, § 3o, incisos I, II e III). Para além disso, consoante disposto no art. 199 do CTN, a Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assis­ tência para a fiscalização dos tributos respectivos e

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permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.541

13. COLABORAÇÃO PREMIADA 13.1. Origem e conceito Desde tempos mais remotos, a História é rica em apontar a traição entre os seres humanos: Judas Iscariotes vendeu Cristo pelas célebres 30 (trin­ ta) moedas; Joaquim Silvério dos Reis denunciou Tiradentes, levando-o à forca; Calabar delatou os brasileiros, entregando-os aos holandeses. Com o passar dos anos e o incremento da criminalidade, os ordenamentos jurídicos passaram a prever a pos­ sibilidade de se premiar essa traição. Surge, então, a colaboração premiada. Sua origem histórica não é tão recente assim, já sendo encontrada, por exemplo, no sistema an­ glo-saxão, do qual advém a própria origem da ex­ pressão crown witness, ou testemunha da coroa. Foi amplamente utilizada nos Estados Unidos (plea bargain) durante o período que marcou o acirra­ mento do combate ao crime organizado, e adotada com grande êxito na Itália {pattegiamento) em prol do desmantelamento da máfia - basta lembrar as declarações prestadas por Tommaso Buscetta ao Pro­ motor italiano Giovarmi Falcone -, que golpearam duramente o crime organizado na península itálica. É no direito norte-americano que a utilização da colaboração premiada sofre forte incremento, sobretudo na campanha contra a máfia. Por meio de uma transação de natureza penal, firmada por Pro­ curadores Federais e alguns suspeitos, era prometida a estes a impunidade desde que confessassem sua participação e prestassem informações que fossem suficientes para atingir toda a organização e seus membros.542 541. A jurisprudência pátria também admite a requisição de infor­

mações ao Fisco por parte de Comissões Parlamentares de Inquérito no desenvolvimento de suas investigações, não podendo ser invocado o sigilo fiscal como óbice ao dever de obediência a tais requisições, desde que haja decisão fundamentada nesse sentido. Nessa linha: STF, Pleno,

Espécie do direito premial, a colaboração premiada pode ser conceituada como uma técnica especial de investigação (meio extraordinário de obtenção de prova) por meio da qual o coautor e/ou partícipe da infração penal, além de confessar seu envolvimento no fato delituoso, fornece aos órgãos responsáveis pela persecução penal informações ob­ jetivamente eficazes para a consecução de um dos objetivos previstos em lei, recebendo, em contra­ partida, determinado prêmio legal.543 Portanto, ao mesmo tempo em que o investigado (ou acusado) confessa a prática delituosa, abrindo mão do seu direito de permanecer em silêncio (nemo tenetur se detegere), assume o compromisso de ser fonte de prova para a acusação acerca de determinados fatos e/ou corréus. Evidentemente, essa colaboração deve ir além do mero depoimento do colaborador em detrimento dos demais acusados, porquanto não se admite sequer o recebimento de uma peça acusató­ ria baseado única e exclusivamente na colaboração premiada.

13.2. Natureza jurídica da colaboração premiada A despeito da redação confusa do art. 3°-A da Lei n. 12.850/13, incluído pela Lei n. 13.964/19 (“Art. 3°-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse pú­ blicos”),544 não se pode confundir a colaboração premiada, espécie de meio de obtenção de prova (técnica especial de investigação), com o acordo de colaboração premiada propriamente dito, objeto de análise mais adiante, o qual tem a natureza jurídica de negócio jurídico processual,545 ou seja, “um fato jurídico voluntário em cujo suporte fático, descrito 543. Referindo-se à colaboração premiada como meio de obtenção de prova cuja iniciativa não se submete à reserva de jurisdição, diferen­

temente do que ocorre, por exemplo, com a interceptação de comuni­ cações telefônicas: STF, Pleno, Pet 7.074 QO/DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 29/06/2017. No sentido de que a colaboração premiada é um meio de

obtenção de prova: STF, Pleno, HC 127.483/PR, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 27/08/2015, DJe 21 03/02/2016.

544. A compreensão da expressão "utilidade e interesse públicos"

ADI 2.225/SC, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 21/08/2014, DJe 213 29/10/2014. Por outro lado, os Tribunais Superiores entendem que as prerrogativas institucionais dos membros do Ministério Público não compreendem

constante do art. 3°-A da Lei n. 12.850/13, incluído pela Lei n. 13.964/19, pode ser extraída da Orientação Conjunta n. 1/2018 do Ministério Público Federal, senão vejamos: "24.3. Demonstração do interesse públicos: a)

a possibilidade de requisição de documentos fiscais sigilosos direta­ mente ao Fisco. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, RHC 20.329/PR, Rei. Min.

oportunidade do acordo; b) efetividade e utilidade do acordo: relativa

Jane Silva - Desembargadora convocada doTJ/MG -, j. 04/10/2007, DJ

22/10/2007, p. 312.

542. Nesse contexto: Aranha, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 136. Ao tratar da acusação do cúmplice, Malatesta a subdividiu em duas espécies: a acusação em sentido específico, referente à situação em que o comparsa delatado já figura como imputado nos autos do processo, e o chamamento de cúmplice, caracterizado pela indicação deste último unicamente pela palavra do acusado (MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Campinas: LZN Editora, 2003, p. 532).

à capacidade real de contribuição do colaborador para a investigação, por meio do fornecimento de elementos concretos que possam servir de prova; c) explicação sobre quantos e quais são os fatos ilícitos e pessoas envolvidas que ainda não sejam de conhecimento do Ministério Público Federal; d) indicação dos meios pelos quais se fará a respectiva prova". 545. É consenso no Supremo Tribunal Federal a definição do acordo de

colaboração premiada como um negócio jurídico processual. A propósito, confira-se:"(...) tratando-se de negócio jurídico processual personalíssi­ mo celebrado entre o Ministério Público e o colaborador, do qual não participa o Poder Judiciário, ao qual compete, exclusivamente, a aferição da regularidade, voluntariedade e legalidade do acordo". (STF, Pleno, Pet. 7.074 QO, Rei. Min. Edson Fachin, j. 29/06/2017, DJe 85 02/05/2018).

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em norma processual, esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais”.546 De se notar, portanto, que uma simples confis­ são não se confunde com a colaboração premiada. O agente fará jus aos prêmios previstos nos dispo­ sitivos legais que tratam da colaboração premiada apenas quando admitir sua participação no delito e fornecer informações objetivamente eficazes para a descoberta de fatos dos quais os órgãos incumbi­ dos da persecução penal não tinham conhecimento prévio, permitindo, a depender do caso concreto, a identificação dos demais coautores, a localização do produto do crime, a descoberta de toda a trama delituosa ou a facilitação da libertação do seques­ trado. Por conseguinte, se o acusado se limitar a confessar fatos já conhecidos, reforçando as provas preexistentes, fará jus tão somente à atenuante da confissão prevista no art. 65, I, alínea “d”, do Có­ digo Penal. Nesse contexto, como já se pronunciou o STJ, “apesar de o acusado haver confessado sua participação no crime, contando em detalhes toda a atividade criminosa, incriminando seus compar­ sas, não há nenhuma informação nos autos que ateste o uso de tais informações para fundamentar a condenação dos outros envolvidos, pois a ma­ terialidade, as autorias e o desmantelamento do grupo criminoso se deram, principalmente, pelas interceptações telefônicas legalmente autorizadas e pelos depoimentos das testemunhas e dos policiais federais”.547

Noutro giro, também não se pode confundir a colaboração premiada com os prêmios legais dela decorrentes. A colaboração premiada funciona como importante técnica especial de investigação, enfim, um meio de obtenção de prova.548 Por força dela, o investigado (ou acusado) presta auxílio aos órgãos oficiais de persecução penal na obtenção de fontes materiais de prova. Por exemplo, se o acusa­ do resolve colaborar com as investigações em um crime de lavagem de capitais, contribuindo para a localização dos bens, direitos ou valores objeto do 546. NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. 2a ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 153.

547. STJ, 6a Turma, HC 90.962/SP, Rel. Min. Haroldo Rodrigues - Desem­ bargador convocado doTJ/CE -, j. 19/05/2011, DJe 22/06/2011.

548. Em sentido diverso, Paulo Quezado Jamile Virgino conclui tra­ tar-se a delação de verdadeira prova anômala, inominada, pois não ar­ rolada no CPP; um testemunho impróprio, baseado no conhecimento extraprocessual dos fatos, instrumentário da busca da verdade real que se aporta à causa pela particularidade de ser narrada por um corréu, o qual inculpa outro (Delação premiada. Fortaleza: Gráfica e Editora For­ taleza, 2009. p. 97).

crime, e se essas informações efetivamente levam à apreensão ou sequestro de tais bens, a colaboração terá funcionado como meio de obtenção de prova, e a apreensão como meio de prova. Como será visto mais adiante, outra coisa bem distinta são os inú­ meros prêmios legais decorrentes do cumprimento do acordo de colaboração premiada. A depender da relevância das informações prestadas pelo colabo­ rador, este poderá ser beneficiado com os seguintes prêmios: a) diminuição da pena; b) fixação do regi­ me inicial aberto ou semiaberto; c) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; d) progressão de regimes; e) perdão judicial e con­ sequente extinção da punibilidade; f) não ofereci­ mento da denúncia.

13.3. Distinção entre colaboração premiada e delação premiada (chamamento de corréu) Há quem utilize as expressões colaboração premiada e delação premiada como expressões si­ nônimas. Outros doutrinadores, todavia, preferem trabalhar com a distinção entre delação premiada e colaboração premiada, considerando-as institutos diversos. A nosso ver, delação e colaboração premiada não são expressões sinônimas, sendo esta última do­ tada de mais larga abrangência.549 O imputado, no curso da persecutio criminis, pode assumir a culpa sem incriminar terceiros, fornecendo, por exemplo, informações acerca da localização do produto do crime, caso em que é tido como mero colaborador. Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e de­ latar outras pessoas. É nessa hipótese que se fala em delação premiada (ou chamamento de corréu).550 Só há falar em delação se o investigado ou acusado também confessa a autoria da infração penal. Do contrário, se a nega, imputando-a a terceiro, tem-se simples testemunho. A colaboração premiada fun­ ciona, portanto, como o gênero, do qual a delação premiada seria espécie.551

É bem verdade que a referência à expressão de­ lação premiada é muito mais comum na doutrina e na jurisprudência. No entanto, preferimos fazer uso da denominação colaboração premiada, quer pela 549. Em sentido semelhante: GOMES, Luiz Flávio. Corrupção política e delação premiada. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano VI, n° 34, Porto Alegre, out.-nov./2005, p. 18. 550. Há quem defenda ser a chamada de corréu o ato pelo qual um comparsa denuncia antigos parceiros sem que, para isso, lhe dê o legis­ lador recompensa legal, ou seja, seria a delação não-premiada.

551. Para o STJ, o instituto da delação premiada consiste em ato do acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades elementos capazes de facilitar a resolução do crime: STJ, 6a Turma, HC 107.916/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, j. 07/10/2008, DJe 20/10/2008.

TÍTULO 6 • PROVAS

carga simbólica carregada de preconceitos inerentes à delação premiada, que traz ínsita a ideia de traição, quer pela incapacidade de descrever toda a extensão do instituto, que nem sempre se limita ao mero cha­ mamento de correu. Com efeito, a chamada “delação premiada” (ou chamamento de corréu) é apenas uma das formas de colaboração que o agente revelador pode concretizar em proveito da persecução penal.552 Nesse contexto, Vladimir Aras aponta a existência de quatro subespécies de colaboração premiada:553

a) delação premiada (chamamento de cor­ réu): além de confessar seu envolvimento na práti­ ca delituosa, o colaborador expõe as outras pessoas implicadas na infração penal, razão pela qual é de­ nominado de agente revelador;

b) colaboração para libertação: o colaborador indica o lugar onde está mantida a vítima seques­ trada, facilitando sua libertação; c) colaboração para localização e recuperação de ativos: o colaborador fornece dados para a loca­ lização do produto ou proveito do delito e de bens eventualmente submetidos a esquemas de lavagem de capitais;

d) colaboração preventiva: o colaborador pres­ ta informações relevantes aos órgãos estatais respon­ sáveis pela persecução penal de modo a evitar um crime, ou impedir a continuidade ou permanência de uma conduta ilícita.

Nesse ponto, a Lei n° 12.850/13 faz clara opção pela utilização da expressão “colaboração premia­ da”. Ao invés de fazer referência à expressão “dela­ ção premiada”, o legislador optou por fazer menção a essa importante técnica especial de investigação com o nomen iuris de “colaboração premiada”, quer no art. 3o, I, quer na Seção I do Capítulo II, que abrange os arts. 4o, 5o, 6o e 7o.

13.4. Ética e moral Sob o ponto de vista da ética e da moral, parte da doutrina posiciona-se contrariamente à colabora­ ção (ou delação) premiada, denominando-a, por isso, de extorsão premiada. Nessa linha, segundo Natália Oliveira de Carvalho, ao preconizar que a tomada de uma postura infame (trair) pode ser vantajosa para quem o pratica, o Estado premia a falta de caráter do 552. Nesse sentido: ARAS, Vladimir. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Organizadora: Carla Veríssimo de Carli. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 428. 553. Op. cit. p. 427.

codelinquente, convertendo-se em autêntico incentivador de antivalores ínsitos à ordem social.554 Sem embargo de opiniões em sentido contrá­ rio, parece-nos não haver qualquer violação à ética, nem tampouco à moral. Apesar de se tratar de uma modalidade de traição institucionalizada, trata-se de instituto de capital importância no combate à criminalidade, porquanto se presta ao rompimento do silêncio mafioso (omertà), além de beneficiar o acusado colaborador. De mais a mais, falar-se em ética de criminosos é algo extremamente contradi­ tório, sobretudo se considerarmos que tais grupos, à margem da sociedade, não só têm valores pró­ prios, como também desenvolvem suas próprias leis. Como lembra Cassio Granzinoli, “não é incomum a chefes de grupos de tráfico de drogas, por exemplo, determinarem (por vezes e por telefone e de den­ tro dos próprios presídios onde cumprem penas) a execução de outros membros do grupo ou mesmo de pessoas de bem. Estarão eles, pois, preocupados com Ética, Moral, Religião e qualquer outra forma de controle social, diversa do Direito (uma vez que este prevê maior coerção para os atos que lhe são contrários)? Certamente que não”.555*

Apesar de, sob certo aspecto, a existência da co­ laboração premiada representar o reconhecimento, por parte do Estado, de sua incapacidade de solu­ cionar sponte própria todos os delitos praticados, a doutrina aponta razões de ordem prática que justi­ ficam a adoção de tais mecanismos, a saber: a) a im­ possibilidade de se obter outras provas, em virtude da “lei do silêncio” que vige no seio das organiza­ ções criminosas; b) a oportunidade de se romper o caráter coeso das organizações criminosas (quebra da affectio societatis), criando uma desagregação da solidariedade interna em face da possibilidade da colaboração premiada.

13.5. Direito ao silêncio A colaboração premiada é plenamente com­ patível com o princípio do nemo tenetur se detegere (direito de não produzir prova contra si mesmo). É fato que os benefícios legais oferecidos ao colabo­ rador servem como estímulo para sua colaboração, 554. CARVALHO, Natália Oliveira. A delação premiada no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 101. Para Eugênio Raúl Zaffaroni (Crime organizado: uma categoria frustrada. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, ano 1, v. 1, 1996, p. 45), "o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para'fazer justiça', o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria".

555. GRANZINOLI, Cassio M. M. A delação premiada. In Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juizes das varas especializadas em home­ nagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. p. 152.

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que comporta, invariavelmente, a autoincrimina­ ção. Porém, desde que não haja nenhuma espécie de coação para obrigá-lo a cooperar, com prévia advertência quanto ao direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII), não há violação ao direito de não produzir prova contra si mesmo. Afinal, como não há dever ao silêncio, todo e qualquer investigado (ou acusa­ do) pode voluntariamente confessar os fatos que lhe são imputados. Nessas condições, cabe ao próprio indivíduo decidir, livre e assistido pela defesa téc­ nica, se colabora (ou não) com os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal.556 Quanto ao assunto, especial atenção deve ser dispensada ao art. 4o, § 14, da Lei n° 12.850/13, que dispõe: “Nos depoimentos que prestar, o co­ laborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromis­ so legal de dizer a verdade”. Parece ter havido um equívoco por parte do legislador ao fazer uso do verbo renunciar. Afinal, se se trata, o direito ao si­ lêncio, de direito fundamental do acusado previsto na Constituição Federal (art. 5o, LXIII) e na Con­ venção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8o, § 2o, “g”), é evidente que não se pode falar em renúncia, porquanto tais direitos são, por natureza, inalienáveis (ou indisponíveis). Por consequência, o caráter indisponível do direito ao silêncio con­ duziría à nulidade absoluta, por ilicitude de objeto, do acordo de colaboração premiada em que fosse pactuada a renúncia a esse direito. Na verdade, não há falar em renúncia ao direito ao silêncio, mas sim em opção pelo seu não exercício, opção esta exerci­ da voluntariamente pelo investigado/acusado, que, para tanto, deverá contar com a assistência técnica de seu defensor e ser previamente informado de que não é obrigado a “colaborar para a sua própria destruição” (nemo tenetur se detegere). Tanto é verdade que não há renúncia ao direi­ to ao silêncio que o próprio art. 4o, § 10, da Lei n° 12.850/13, prevê que, na hipótese de retratação da proposta de colaboração premiada pelas partes, as provas autoincriminatórias produzidas pelo cola­ borador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. Como se percebe, ante a possibili­ dade de ser beneficiado por um dos prêmios legais previstos na nova Lei de Organizações Criminosas, o colaborador opta pelo não exercício do direito ao silêncio, sujeitando-se às consequências de sua confissão. Assim, com a expectativa de receber de­ terminado prêmio legal, o colaborador identifica 556. Com o mesmo entendimento: QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 215.

758

os demais coautores e partícipes do fato delituoso, contribui para a localização da vítima com sua inte­ gridade física preservada, etc. Frustrada a proposta em virtude da retratação por uma das partes, seria no mínimo injusto que todo esse acervo probatório fosse contra ele utilizado. Como não houve renún­ cia ao direito ao silêncio, mas simples não exercício dessa prerrogativa diante da expectativa de receber determinado prêmio legal, na hipótese de as partes se retratarem do acordo, as provas autoincrimina­ tórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor, embora possam ser úteis, na medida de sua veracidade, con­ tra os demais agentes, que não podem ser beneficia­ dos pelo exercício do direito ao silêncio titularizado pelo colaborador.

Apesar de o art. 4o, § 14, da Lei n° 12.850/13, fazer remissão ao compromisso legal de dizer a ver­ dade a que o agente estaria sujeito, daí não se pode concluir que o colaborador possa responder pelo crime de falso testemunho. Como o art. 342 do CP refere-se exclusivamente à testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete, revela-se inadmis­ sível a inclusão de corréu como sujeito ativo deste delito, sob pena de evidente violação ao princípio da legalidade. Na verdade, a única situação em que o colaborador pode ser ouvido como testemunha é na hipótese de não ter havido o oferecimento de denúncia contra ele, consoante disposto no art. 4o, § 4o, da Lei n° 12.850/13 (acordo de imunidade). Nesse contexto, o art. 4o, § 12, dispõe que, ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a reque­ rimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial, hipótese em que prestará o compromisso de dizer a verdade, daí por que pode responder pela prática do crime de falso testemunho (CP, art. 342) ou pelo delito previsto no art. 19 do referido diplo­ ma legal. Em tal hipótese, quando o colaborador não denunciado prestar declarações sobre fatos que dizem respeito à responsabilidade criminal alheia, adquire a qualidade de verdadeira prova testemu­ nhai incriminadora, limitada, à evidência, aos fatos por ele declarados, daí por que deve responder se­ gundo a verdade.557 557. Admitindo a possibilidade de o colaborador ser ouvido na con­ dição de informante, que é uma testemunha imprópria, que não presta compromisso, na hipótese em que não for denunciado no mesmo pro­ cesso que os demais corréus, até mesmo para que suas declarações pres­ tadas na fase investigatória sejam submetidas ao crivo do contraditório, possibilitando o cumprimento dos termos do acordo de colaboração por ele celebrado com o Ministério Público: STF,Tribunal Pleno, AP 470 QO3/ MG, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJe 07929/04/2009.

TÍTULO 6 • PROVAS

13.6. Previsão normativa Em países como Itália e Espanha, a colaboração premiada nasceu da necessidade de se combater o terrorismo e o crime organizado. De modo distinto, no Brasil, o reconhecimento explícito da ineficácia dos métodos tradicionais de investigação, e, conse­ quentemente, da necessidade da colaboração pre­ miada para a obtenção de informações relevantes para a persecução penal, está diretamente relacio­ nada ao incremento da criminalidade violenta, a partir da década de 90, direcionada a seguimentos sociais mais privilegiados e que, até então, estavam imunes a ataques mais agressivos (sequestros, rou­ bos a estabelecimentos bancários), o crescimento do tráfico de drogas e o aumento da criminalidade de massa (roubos, furtos, etc.), sobretudo nos grandes centros urbanos, que levou nosso legislador, impe­ lido pelos meios de comunicação e pela opinião pú­ blica, a editar uma série de leis penais mais severas. Várias leis especiais passaram a dispor, então, sobre a colaboração premiada, variando apenas quanto a seu objetivo, bem como no tocante aos benefícios concedidos pela lei ao colaborador. Aliás, mesmo antes da década de 90, não se pode negar que a colaboração premiada já estivesse presente no próprio Código Penal. De fato, sob o manto da atenuante da confissão espontânea (CP, art. 65, III, “d”), da atenuante genérica do art. 65, III, “b”, do Código Penal, em que se premia o crimi­ noso que tenha buscado, espontânea e eficazmente, logo após o crime, evitar ou minorar-lhe as conse­ quências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano, do arrependimento eficaz (CP, art. 15), e do arrependimento posterior (CP, art. 16), a expiação pelo mal cometido já integrava a parte geral do Có­ digo Penal desde a reforma produzida pela Lei n° 7.209/84. A primeira Lei que cuidou expressamente da colaboração premiada foi a Lei dos Crimes Hedion­ dos (Lei 8.072/90), cujo art. 8o, parágrafo único, passou a prever que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou a quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá pena redu­ zida de um a dois terços”. Este dispositivo legal, que permanece vigente e válido, a despeito da entrada em vigor da Lei n° 12.850/13, aplica-se exclusiva­ mente aos casos em que, praticados os delitos de que cuidam a referida lei, doravante por meio de associação criminosa, esta seja desmantelada em razão de denúncia feita por um de seus integrantes. Logo, demonstrando-se que não havia uma associa­ ção criminosa para o fim de praticar crimes hedion­ dos ou equiparados, ou seja, que um crime de tal

natureza foi praticado em mero concurso eventual de agentes, não se admite o reconhecimento da dela­ ção premiada, mesmo que as informações prestadas pelo delator sejam eficientes para a identificação dos demais coautores e partícipes.558

A Lei n° 8.072/90 também determinou a inclu­ são do § 4o ao art. 159 do Código Penal, que passou a dispor: “Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o coautor que denunciá-lo à autoridade, fa­ cilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. O dispositivo era alvo de críticas por atrelar a concessão da colaboração premiada apenas às hipóteses de crimes cometidos por quadrilha ou bando, cuja tipificação, até o ad­ vento da Lei n° 12.850/13, demandava a presença de pelo menos 4 (quatro) pessoas (CP, antiga redação do art. 288). Posteriormente, o dispositivo foi alte­ rado pela Lei n° 9.269/96, passando a ter a seguinte redação: “se o crime é cometido em concurso, o con­ corrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. Daí por que a 5a Turma do STJ concluiu ser irrelevante, para a incidência da redu­ ção prevista no § 4o do art. 159 do Código Penal, que o delito tenha sido praticado por quadrilha ou bando, bastando, para tanto, que o crime tenha sido cometido em concurso, observados, porém, os de­ mais requisitos legais exigidos para a configuração da delação premiada.559 Como deixa entrever o art. 159, § 4o, do CP, para a incidência do benefício aí previsto, é indis­ pensável que as informações prestadas pelo cola­ borador facilitem a libertação do sequestrado, lo­ gicamente com sua integridade física preservada. Na dicção do STJ, a colaboração premiada prevista no art. 159, § 4o, do Código Penal é de incidência obrigatória quando os autos demonstram que as informações prestadas pela testemunha da coroa (ou crownwitness) foram eficazes, possibilitando ou facilitando a libertação da vítima.560

Também havia previsão legal de colaboração premiada na Lei que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repres­ são de ações praticadas por organizações criminosas (revogada Lei 9.034/95, art. 6o, caput): “nos crimes 558. STJ, 5a Turma, HC 62.618/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 17/10/2006, DJ 13/11/2006 p. 283. 559. STJ, 5a Turma, HC 33.803/RJ, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/06/2004,

DJ 09/08/2004 p. 280. 560. STJ, 5a Turma, HC 26.325/ES, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 24/06/2003, DJ 25/08/2003 p. 337. Em sentido semelhante: STJ, 5a Turma, HC 40.633/ SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 01/09/2005, DJ 26/09/2005 p. 417; STJ, 6aTurma, REsp 223.364/PR, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 30/06/2005,

DJ 22/08/2005.

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praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços), quando a cola­ boração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”.561

Seguindo a ordem cronológica de edição das leis, veio em seguida a Lei n° 9.080/95, cujos arts. Io e 2o introduziram modificações na Lei que defi­ ne os crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n° 7.492/86) e no diploma legal que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei n° 8.137/90). A Lei 7.492/86, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, passou a dispor em seu art. 25, § 2o: “nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”.562 Por seu turno, a Lei que define os crimes contra a or­ dem tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei 8.137/90, art. 16, parágrafo único) preceitua que, nos crimes nela previstos, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autori­ dade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços). Com vigência a partir de 4 de março de 1998, também consta da Lei de Lavagem de Capitais a possibilidade de colaboração premiada na hipótese de as informações fornecidas pelo agente conduzi­ rem à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime (Lei n° 9.613/98, art. Io, § 5o, com redação dada pela Lei n° 12.683/12). A Convenção das Nações Unidas contra o Cri­ me Organizado Transnacional - Convenção de Palermo, promulgada pelo Decreto n° 5.015/2004 -, também cuida da colaboração premiada. De acor­ do com seu art. 26, cada Estado Parte tomará as 561. Como já se manifestou oTJ/SP,"se o réu, sem pertencer a qualquer organização criminosa, sem delatar ninguém e sem contribuir para o desmantelamento de qualquer quadrilha, simplesmente foi condenado (por porte ilegal de arma), confessando o crime no interrogatório judi­ cial, é manifestamente incabível a aplicação analógica do art. 6o da Lei 9.034/95, devendo ser afastada a redução de 1/3 efetuada pela sentença na pena privativa de liberdade do apelado" (TJSP, ApCrim. 281.081-3,4? Câm. Crim., j. 30.05.2000, rel. Des. Hélio de Freitas, RJTJ 240, p. 302-303).

medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos cri­ minosos organizados: a) a fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, notadamente: i) a identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados; ii) as conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; iii) as infrações que os grupos cri­ minosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) a prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do produto do crime.

De seu turno, a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006, art. 41, caput) prevê que “o indicia­ do ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do pro­ duto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços”. Como deixa claro o dispositivo em questão, a incidência da co­ laboração premiada somente é possível quando, na prática de qualquer dos delitos previstos na Lei n° 11.343/06, o agente perpetrar a conduta em con­ curso de pessoas.563

Perceba-se que o art. 41 da Lei n° 11.343/06 faz menção à recuperação do produto do crime. Como se sabe, produto do crime é o resultado da operação delinquencial. A droga pode ser considerada produto do crime tão somente em algumas condutas típicas previstas na Lei n° 11.343/06, tais como preparar, pro­ duzir e fabricar, já que, nestas hipóteses, o resultado útil imediato do crime é a própria droga. Todavia, nas demais hipóteses, a droga é apenas o objeto material do delito, ou seja, é a coisa sobre a qual recai a condu­ ta delituosa. A título de exemplo, na modalidade de “vender”, a droga é apenas o objeto material da con­ duta delituosa, enquanto o produto do crime é o valor que o traficante recebe em contraprestação à venda. Destarte, parece-nos que a expressão utilizada pelo art. 41 da Lei n° 11.343/06 - produto do crime - deve ser objeto de interpretação extensiva para abranger não apenas o produto direto ou indireto do crime, como também a droga propriamente dita.564*

562. De acordo com o STJ, para a configuração da delação premiada (art. 25, § 2o, da Lei 7.492/86), ou da atenuante da confissão espontânea (art. 65, III, "d", do CP), é preciso o preenchimento dos requisitos legais exigidos para cada espécie, não bastando, contudo, o mero reconheci­ mento, pelo réu, da prática do ato a ele imputado, sendo imprescindível, também, a admissão da ilicitude da conduta e do crime a que respon­ de: STJ, 5a Turma, REsp 934.004/RJ, Rel. Min. Jane Silva, j. 08/11 /2007, DJ 26/11/2007, p. 239.

563. STJ, 5aTurma, HC 99.422/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 12/08/2008, DJe 22/09/2008.

564. Com esse entendimento: MENDONÇA, Andrey Borges; CARVA­ LHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006 - comentada artigo por artigo. 3a ed. São Paulo: Editora Método, 2012. p. 190-191.

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Não obstante a existência da partícula “e” no art. 41 da Lei n° 11.343/06, tem prevalecido o enten­ dimento de que não é indispensável a identificação dos demais concorrentes e também a recuperação total ou parcial do produto do crime. Aos olhos da doutrina, dentro das possibilidades do colaborador, basta que resulte um dos dois resultados: identifica­ ção dos demais concorrentes ou recuperação total ou parcial do produto do crime. Evidentemente, se o colaborador tiver conhecimento de ambas as circunstâncias, indicando apenas uma delas, não poderá ser beneficiado pelo prêmio legal constante do art. 41 da Lei n° 11.343/06. Todavia, se o colabo­ rador tiver conhecimento apenas da localização do produto do crime, sendo incapaz de identificar os demais integrantes da organização criminosa - de se lembrar que uma das características das organi­ zações criminosas é a divisão hierárquica, de modo que um agente costuma conhecer apenas aqueles que atuam no mesmo ramo de atribuições -, não há por que se negar a concessão do benefício, cujo quantum de diminuição de pena deve ser sopesado de acordo com o grau de sua colaboração.565 Também há previsão de colaboração premiada na Lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Lei n° 12.529/11, com vigência a partir do dia 29 de maio de 2012). Consoante dis­ posto nos arts. 86 e 87 da Lei n° 12.529/11, este acordo de leniência poderá ser celebrado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e II - a obtenção de informações e do­ cumentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. No tocante às consequências pe­ nais e processuais penais decorrentes do acordo de leniência, especial atenção deve ser dispensada ao art. 87 da Lei n° 12.529/11, que passa a prever que, nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei n° 8.137/90 e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipifica­ dos na Lei n° 8.666/93 - atualmente nos arts. 337-E a 337-0 do CP - e os tipificados no art. 288 do Código Penal, a celebração de acordo de leniência determi­ na a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Ademais, de acordo 565. Nesse sentido: ARRUDA, Samuel Miranda. DROGAS: aspectos penais e processuais penais. Lei 11.343/2006. São Paulo: Editora Método, 2007. p. 99.

com o art. 87, parágrafo único, da Lei n° 12.529/11, cumprido o acordo de leniência pelo agente, extin­ gue-se automaticamente a punibilidade dos crimes acima referidos. A doutrina costuma se referir ao acordo de leniência como acordo de brandura ou doçura.566 Com vigência em 29 de janeiro de 2014, a Lei n° 12.846/13 (Lei Anticorrupção Empresarial), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos con­ tra a administração pública, nacional ou estrangeira, também prevê, em seu art. 16, a possibilidade de ce­ lebração de acordo de leniência, porém com reflexos exclusivamente administrativos. Na mesma linha, o art. 17 da referida Lei versa sobre a possibilidade de a Administração pública celebrar acordo de leniên­ cia com a pessoa jurídica responsável pela prática de crimes em licitações e contratos administrativos (CP, arts. 337-E a 337-0, incluídos pela nova Lei de Licitações - Lei n. 14.133, de Io de abril de 2021), com vistas à isenção ou atenuação das sanções ad­ ministrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.

13.6.1. Lei de proteção às testemunhas (Lei n° 9.807/99) A Lei 9.807/99, conhecida como “Lei de Prote­ ção às testemunhas e vítimas de crimes”, por não ter seu âmbito de aplicação restrito a determinado(s) delito(s), representou verdadeira democratização do instituto da colaboração premiada no ordenamento jurídico pátrio, possibilitando sua aplicação a qual­ quer delito, além de organizar um sistema oficial de proteção aos colaboradores. Com efeito, à ex­ ceção da Lei n° 9.034/95, que não se referia a tipos penais determinados, mas sim a crimes praticados em organização criminosa, todos os demais diplo­ mas legais que tratavam da colaboração premiada possibilitavam sua aplicação apenas a determinados crimes.567 Em seu art. 13, dispõe a Lei n° 9.807/99 que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, tendo em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso, conceder o perdão judi­ cial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado pela prática de qualquer crime que, sendo 566. É nesse sentido a lição de Damásio Evangelista de Jesus: Phoenix:

órgão informativo do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. São Paulo, n° 1,fev. 2001. 567. Nesse sentido: GRANZINOLI, Cassio M. M. A delação premiada. In Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juizes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advo­ gado Editora, 2007. p. 152.

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primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamen­ te com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I - a identi­ ficação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III - a recuperação total ou parcial do produto do crime. Apesar de o dispositivo referir-se ao “acusado”, predomina o en­ tendimento de que também se aplica ao indiciado, possibilitando a concessão do benefício até mesmo na fase das investigações preliminares.568

identificação dos demais concorrentes; localização da vítima com a sua integridade física preservada; recuperação total ou parcial do produto do crime. Por outro lado, caso o delito praticado não permita a incidência simultânea dos três incisos - a exemplo de um crime de roubo de cargas cometido em con­ curso de agentes - a incidência do art. 13 da Lei n° 9.807/99 fica dependendo apenas da identificação dos demais concorrentes e da recuperação total ou parcial do produto do crime.

Discute-se na doutrina se a aplicação do pre­ ceito do art. 13 da Lei n° 9.807/99 está subordinada à presença cumulativa de todos os requisitos nele elencados (identificação dos demais coautores, lo­ calização da vítima com sua integridade física pre­ servada, e recuperação total ou parcial do crime), hipótese em que a concessão do benefício ficaria restrita apenas ao delito de extorsão mediante se­ questro cometido em concurso de agentes cujo preço do resgate tenha sido pago, porquanto seria o único crime em que os três objetivos poderíam ser atingidos simultaneamente, ou se as condições devem ser aferidas alternativamente, de modo a se possibilitar a abrangência de todos os tipos penais.

13.6.2. Nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13)

A nosso ver, não se pode sustentar que a aplica­ ção do art. 13 da Lei n° 9.807/99 esteja condicionada à presença cumulativa de seus três incisos, sob pena de se transformar uma lei genérica, aplicável em tese a qualquer crime, em uma lei cuja incidência da colaboração premiada estaria restrita ao delito de extorsão mediante sequestro cometido em concurso de agentes cujo preço do resgate tenha sido pago. Portanto, há de prevalecer uma cumulatividade temperada, condicionada ao tipo penal, ou seja, é necessária a satisfação dos requisitos possíveis no mundo fático, quaisquer que sejam eles, de acordo com a natureza do delito praticado.

Logo, de modo a se conferir a máxima efeti­ vidade ao dispositivo em questão, estendendo sua aplicação a todos os crimes para os quais possa o Estado auferir vantagens da colaboração do acusa­ do, ao lado da efetiva proteção dos bens jurídicos tutelados, se o tipo penal permitir - é o que ocorre em um crime de extorsão mediante sequestro come­ tido em concurso de agentes em que o resgate tenha sido pago, mas a vítima não tenha sido libertada - a aplicação do art. 13 da Lei n° 9.807/99 estará con­ dicionada à presença simultânea dos três incisos: 568. Com esse entendimento: ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Le­ gislação criminal especial. Coordenação: Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 866.

Apesar de a colaboração premiada estar pre­ vista no ordenamento pátrio desde a década de 90, quando entrou em vigor a Lei n° 8.072/90, não havia, até bem pouco tempo, um regramento espe­ cífico e um roteiro mais detalhado que proporcio­ nasse a eficácia dessa importante técnica especial de investigação. Isso, aliás, não era uma exclusividade da colaboração premiada. Esta pobreza legislativa também contaminava a ação controlada e a infil­ tração de policiais. Daí a importância da nova Lei das Organiza­ ções Criminosas: sem descuidar da proteção dos direitos e garantias fundamentais do colaborador - a título de exemplo, seu art. 4o, §15, demanda a pre­ sença de defensor em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, constando do art. 5o inúmeros direitos do colaborador569 -, a Lei n° 12.850/13 passou a conferir mais eficácia à medida sob comento, principalmente por regula­ mentar expressamente a celebração do acordo de colaboração premiada, dispondo sobre a legitimida­ de para a proposta, conteúdo do acordo e necessária homologação judicial. Consoante disposto no art. 4o da Lei n° 12.850/13, o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colabo­ rado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colabora­ ção advenha um ou mais dos resultados ali listados. 569. Lei n. 12.850/13: "Art. 5o. São direitos do colaborador: I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica; II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; VI cumprir pena ou prisão cautelar em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados (Redação dada pela Lei n. 13.964/19)".

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A inserção da conjunção alternativa “ou” no caput do art. 4o da Lei n° 12.850/13 deixa transpare­ cer que não há necessidade da consecução de todos os resultados. Na verdade, ainda que a colaboração do agente resulte na obtenção de apenas um dos re­ sultados, como, por exemplo, a localização da vítima com a sua integridade física preservada (art. 4o, V), o agente fará jus aos prêmios legais, levando-se em consideração, para tanto, a personalidade do cola­ borador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. Vejamos então, separadamente, quais são os possíveis resultados que devem resultar diretamente das informações prestadas pelo colaborador para que o agente faça jus a um dos prêmios legais:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infra­ ções penais por eles praticadas: como o dispositi­ vo legal faz uso das expressões “demais coautores e partícipes”, fica evidente que, para fins de concessão dos prêmios legais, as informações devem se referir ao crime investigado (ou processado) para o qual o colaborador também tenha concorrido em concurso de agentes. A título de ilustração, se o agente estiver sendo investigado pelo fato de ser integrante de or­ ganização criminosa especializada na prática de cri­ mes de roubo de cargas, suas informações devem ser eficazes para a identificação dos demais coautores e partícipes envolvidos nesta prática delituosa. Logo, se este agente resolver colaborar com o Estado, for­ necendo informações pertinentes a crimes diversos que não são objeto do procedimento investigatório contra ele instaurado (v.g., associação criminosa res­ ponsável pela prática de tráfico de drogas da qual o agente sequer era integrante), não fará jus aos be­ nefícios previstos na Lei n° 12.850/13; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa: um dos elementos necessários à caracterização da organização criminosa é a existência de uma associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estrutu­ ralmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas. Daí a preocupação do legislador em obter informações capazes de revelar a hierarquia da or­ ganização, apontando-se, ademais, as tarefas atri­ buídas a cada um de seus integrantes. A consecu­ ção desse resultado deve ser analisada com certo temperamento, já que nem sempre o colaborador terá conhecimento de todos os integrantes do grupo. Afinal, é extremamente comum que o ocupante de uma posição inferior na hierarquia da organização criminosa sequer tenha acesso aos integrantes mais

graduados. Por isso, o que realmente interessa para fins de concessão dos prêmios legais é a revelação, por parte do colaborador, de todas as informações de que tinha conhecimento, de modo a otimizar a descoberta da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas do grupo;

III - a prevenção de infrações penais decor­ rentes das atividades da organização criminosa: sem embargo do silêncio do art. 4o, III, da Lei n° 12.850/13, que se limita a fazer referência às infra­ ções penais decorrentes das atividades da organização criminosa, sem estabelecer o quantum de pena a elas cominada, é evidente que tais infrações devem ter penas máximas superiores a 4 anos, ou que sejam de caráter transnacional, já que tais requisitos fazem parte do conceito legal de organizações criminosas constante do art. Io, § Io, do referido diploma legal. Nem sempre será fácil aferir a eficácia objetiva das informações prestadas pelo colaborador para fins de prevenir infrações penais decorrentes das ativida­ des da organização criminosa. No entanto, se restar demonstrado que a prisão em flagrante de determi­ nados integrantes do grupo, por ocasião da prática de determinada infração penal, só foi possível por força das informações prestadas pelo colaborador, não se pode negar a concessão dos prêmios legais; IV - a recuperação total ou parcial do produ­ to ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa: produto da infração penal (ou producta sceleris) é o resultado imediato da operação delinquencial, enfim, os bens que che­ gam às mãos do criminoso como resultado direto do crime: objeto roubado (art. 157, caput, do CP), dinheiro obtido com a prática da corrupção passiva (art. 317, caput, do CP), ou o dinheiro obtido com a venda da droga (art. 33, caput, da Lei 11.343/2006). Proveito da infração, produto indireto ou fructus sceleris, configura o resultado mediato do crime, ou seja, trata-se do proveito obtido pelo criminoso como resultado da transformação, substituição ou utilização econômica do produto direto do delito (e.g., dinheiro obtido com a venda do objeto rouba­ do, veículos ou imóveis adquiridos com o dinheiro obtido com a venda de drogas etc.);

V - a localização de eventual vítima com sua integridade física preservada: como será visto mais adiante, para fins de concessão dos prêmios legais inerentes à colaboração premiada, é indispensável que as informações prestadas pelo agente sejam objetivamente eficazes para a consecução dos re­ sultados previstos em lei. Portanto, não basta que o agente revele às autoridades o exato local do cati­ veiro da vítima. Para além disso, a vítima também

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deve ser localizada com sua integridade física pre­ servada. Destarte, se a cooperação do agente levar à localização do cadáver da vítima, revela-se inviável a concessão de qualquer benefício ao colaborador, por mais que imaginasse que a vítima ainda estaria viva. De mais a mais, se a vítima conseguir escapar do cativeiro ou se dele for resgatada por conta da ação de terceiros, sem qualquer vínculo causai com as informações prestadas pelo colaborador, também não será viável a concessão dos prêmios legais.

13.7. Voluntariedade e motivação da colaboração Ato espontâneo é aquele cuja intenção de praticá-lo nasce exclusivamente da vontade do agente, sem qualquer interferência alheia - deve preponderar a vontade de colaborar com as autoridades estatais. Apesar de alguns dispositivos legais faze­ rem referência à necessidade de a cooperação ser espontânea (v.g., art. Io, § 5o, da Lei n° 9.613/98), prevalece o entendimento de que a espontaneidade não é condição sine qua non para a aplicação dos prêmios legais inerentes à colaboração premiada.

Na verdade, o que realmente interessa para fins de colaboração premiada é que o ato seja voluntário. Ainda que não tenha sido do agente a iniciativa, ato voluntário é aquele que nasce da sua livre vontade, desprovido de qualquer tipo de constrangimento. Portanto, para que o agente faça jus aos prêmios le­ gais referentes à colaboração premiada, nada impede que o agente tenha sido aconselhado e incentivado por terceiro, desde que não haja coação. Ato espon­ tâneo, para fins de colaboração premiada, deve ser compreendido como o ato voluntário, não forçado, ainda que provocado por terceiros (v.g., Delegado de Polícia, Ministério Público ou Defensor).570

Andou bem, nesse sentido, a Lei n° 12.850/13. Ao dispor sobre a colaboração premiada, o art. 4o, caput, faz menção expressa à colaboração efetiva e voluntária com a investigação e com o processo criminal. Na mes­ ma linha, o art. 4o, § 7°, do referido diploma legal, em sua redação original, já previa que, antes de proceder à homologação do acordo de colaboração premiada, incumbe ao juiz verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo, para tanto, sigilosamente ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.

De maneira elogiável, a Orientação Conjunta n. 1/2018 do MPF prescreve: “8. O Membro do MPF oficiante deve empregar todos os esforços a fim de bem esclarecer ao interessado e ao seu defensor, desde 570. Em sentido diverso, há precedente isolado da 1a Turma do STF no sentido de que os vocábulos espontaneidade e voluntariedade são sinônimos: STF, Ia Turma, HC 129.877/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 18/04/2017, DJe 168 31/07/2017.

o início do procedimento, suas tratativas e antes de qualquer ato de colaboração, em que consiste o insti­ tuto da colaboração premiada, o respectivo procedi­ mento previsto em lei e nesta Orientação Normativa, os benefícios possíveis em abstrato, a necessidade de sigilo e outras informações pertinentes, em ordem a viabilizar o consentimento livre e informado (...)”.

Para o Supremo, o acordo de colaboração pre­ miada somente será válido se: a) a declaração de vontade do colaborador for resultante de um pro­ cesso volitivo, querida com plena consciência da realidade, escolhida com liberdade e deliberada sem má-fé - esta liberdade seria psíquica, e não de loco­ moção, logo, não haveria óbice a que o colaborador estivesse custodiado por ocasião da celebração do acordo, desde que respeitada a voluntariedade da sua colaboração; e b) o seu objeto for lícito, possível, determinado ou determinável.571 Noutro giro, é de todo irrelevante qualquer análise quanto à motivação do agente, pouco im­ portando se a colaboração decorreu de legítimo arrependimento, de medo ou mesmo de evidente interesse na obtenção da vantagem prometida pela Lei. Deveras, o Direito não se importa com os mo­ tivos internos do sujeito que resolve colaborar com a justiça, se de ordem moral, social, religiosa, po­ lítica ou mesmo jurídica, mas sim com o fato de que a entrega dos coautores de um fato criminoso possibilita a busca de um valor, e a manutenção da organização criminosa, de um desvalor.572*

13.7.1. (Im) possibilidade de celebração de acordo de colaboração premiada com investi­ gados (ou acusados) presos Levando-se em consideração que a voluntarie­ dade é verdadeiro pressuposto para a colaboração premiada, muito já se discutiu - e ainda se discu­ te - quanto à possibilidade de formalização desse acordo com quem se encontra preso, cautelarmente ou em virtude de sentença condenatória transitada em julgado. Vejamos as duas correntes acerca do assunto e seus respectivos argumentos: a) impossibilidade de celebração do acor­ do: de um lado, parte da doutrina sustenta que a celebração de um acordo de colaboração premia­ da com alguém que se encontra preso retira dele a característica da voluntariedade. Logo, por lhe faltar um pressuposto fundamental, perde sua 571. STF, Pleno, HC 127.483/PR, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 27/08/2015. 572. Nesse sentido: BRITO, Alexis Couto de. Crime organizado. Coor­ denadores: MESSA, Ana Flávia; CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 271.

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validade. Propõe-se, assim, uma vedação absoluta à celebração de acordo de colaboração premiada como única forma de se resguardar sua obrigatória voluntariedade; b) possibilidade de celebração de acordo (nossa posição): a pretexto de auxiliar na investi­ gação criminal (ou na instrução processual), uma prisão preventiva (ou temporária) não pode ser usada como estímulo para se constranger o inves­ tigado (ou acusado) a tomar a decisão de se tornar colaborador, sob pena de completo desvirtuamento da sua própria natureza cautelar. Agora, desde que presentes os pressupostos que autorizam a medi­ da extrema, daí não se pode concluir que haveria qualquer tipo de óbice à celebração do acordo. A uma porque a presença de advogado é obrigatória a qualquer momento da colaboração premiada, desde o oferecimento da proposta para formali­ zação do acordo (Lei n. 12.850/13, art. 3°-C, §1°), até a confirmação e execução do quanto pactuado (Lei n. 12.850/13, art. 4o, §15). A duas porque, a depender do caso concreto, a celebração do acordo pode se apresentar extremamente vantajosa para o próprio investigado. Com efeito, é possível en­ xergar a colaboração como um dos tantos meios permitidos pelo ordenamento jurídico para que o acusado, orientado por seu defensor, alcance o me­ lhor resultado possível para si no processo. Fosse negado a ele o direito de celebrar o acordo, criar-se-ia, então, se comparada sua situação com a de um investigado solto, indevida restrição ao direito de defesa, em evidente violação ao princípio da isonomia. De mais a mais, como observa Vinícius Marçal, “se a prisão fosse mesmo algo que reti­ rasse a voluntariedade do acordo de colaboração premiada, para manter a coerência argumentativa, deveríam os defensores da Ia corrente pugnar, igualmente, pela revogação do art. 4o, §5°, da Lei n. 12.850/13 (que prevê a colaboração posterior à sentença), o que até agora não vimos”.573 A pro­ pósito, no julgamento do HC 127.483, o Supremo Tribunal Federal entendeu que, para a celebração do acordo premial, exige-se que o colaborador aja com total liberdade psíquica, e não locomotiva. Assim, para a Corte, não haveria óbice a que o co­ laborador estivesse custodiado, desde que prseente a voluntariedade da colaboração. Parece caminhar nesse sentido o Pacote Anti­ crime. Deveras, com a sua entrada em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, o art. 4o, §7°, inciso IV, da Lei

n. 12.850/13, passou a ter a seguinte redação: “§7°. Realizado o acordo na forma do §6° deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, opor­ tunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: (...) IV - voluntariedade da manifes­ tação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares”. Ora, como se pode notar, ao fazer uso do verbo “estar” no presente do indicativo, o novel dispositivo deixa claro que é perfeitamente possível a celebração do acordo com colaborador sujeito a alguma medida cautelar (v.g., prisão preventiva), hipótese em que o juiz deverá dispensar especial atenção à análise da voluntariedade da manifestação da sua vontade.

13.8. Eficácia objetiva da colaboração premiada Em todas as hipóteses acima citadas de cola­ boração premiada, para que o agente faça jus aos benefícios penais e processuais penais estipulados em cada um dos dispositivos legais, é indispensável aferir a relevância e a eficácia objetiva das declara­ ções prestadas pelo colaborador. Não basta a mera confissão acerca da prática delituosa. Em um crime de associação criminosa, por exemplo, a confissão do acusado deve vir acompanhada do fornecimento de informações que sejam objetivamente eficazes, capazes de contribuir para a identificação dos com­ parsas ou da trama delituosa.574 Por força da colaboração, deve ter sido possível a obtenção de algum resultado prático positivo, resulta­ do este que não teria sido alcançado sem as declarações do colaborador. Aferível em momento posterior ao da colaboração em si, esta consequência concreta oriunda diretamente das informações prestadas pelo colabo­ rador depende do preceito legal em que o instituto estiver inserido, podendo variar desde a identificação dos demais coautores e participes do fato delituoso e das infrações penais por eles praticadas, a revela­ ção da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas 574. STJ, 6aTurma, HC 92.922/SP, Rei. Min. Jane Silva, j. 25/02/2008, DJe 10/03/2008. Negando a concessão do perdão judicial previsto no art. 13 da Lei n° 9.807/99 em caso concreto em que as informações fornecidas pelo colaborador não resultaram na identificação dos demais coautores e partícipes de tráfico de drogas: STF, 1a Turma, Al 820.480 AgR/RJ, Rei. Min. Luiz Fux, j. 03/04/2012, DJe 78 20/04/2012. Afastando a concessão de perdão judicial sob o argumento de ausência de efetividade da cola­ boração como meio de obtenção de provas, porquanto as investigações policiais, em momento anterior ao da celebração do acordo, já teriam

revelado os elementos probatórios acerca do esquema criminoso inte­ grado pelo investigado, especializado em enviar pessoas ilegalmente

573. MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. 3a ed. São Paulo: Método, 2017. p. 145.

para o exterior: STF, 1a Turma, HC 129.877/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 18/04/2017, DJe 168 31/07/2017.

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da organização criminosa, a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização cri­ minosa, a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela orga­ nização criminosa, até a localização de eventual vítima com sua integridade física preservada.575

Isso, no entanto, não significa dizer que o Mi­ nistério Público deva ter êxito nos processos que intentar contra os coautores expostos ou delatados. O que realmente importa é que o colaborador tenha prestado seu depoimento de forma veraz e sem re­ servas mentais sobre todos os fatos ilícitos de que tinha conhecimento, colaborando de maneira plena e efetiva. Por isso, embora a lei não o diga, é evidente que, na hipótese de colaboração realizada na fase extrajudicial, ela deve ser mantida pelo colabora­ dor em juízo. Se houver retratação, não é possível a concessão do prêmio legal, até mesmo porque o que poderá ser valorado pelo juiz é o interrogató­ rio judicial e o chamamento dos demais acusados em juízo, em que há possibilidade de exercício do contraditório pelos delatados, e não aquele realizado em procedimento investigatório de natureza inquisitória. Nesse contexto, como já se pronunciou o STJ, “não obstante tenha havido inicial colaboração pe­ rante a autoridade policial, as informações prestadas pelo Paciente perdem relevância, na medida em que não contribuíram, de fato, para a responsabilização dos agentes criminosos. O magistrado singular não pôde sequer delas se utilizar para fundamentar a condenação, uma vez que o Paciente se retratou em juízo. Sua pretensa colaboração, afinal, não logrou alcançar a utilidade que se pretende com o instituto da delação premiada, a ponto de justificar a incidên­ cia da causa de diminuição de pena”.576

Comprovada a eficácia objetiva das informa­ ções prestadas pelo agente, a aplicação do prêmio legal inerente à respectiva colaboração premiada é medida que se impõe. A título de exemplo, apesar de o art. Io, § 5o, da Lei n° 9.613/98 fazer uso da expressão “a pena poderá ser reduzida (...)”- o art. 575. Como já se pronunciou o STJ, a redução de pena prevista para os casos de delação de corréu a que se refere o art. 8o, parágrafo único, da Lei n° 8.072/90, requisita a existência e o desmantelamento de quadrilha ou bando: STJ, 6a Turma, HC 41.758/SP, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 07/11/2006, DJ 05/02/2007 p. 386. 576. STJ, 5aTurma, HC 120.454/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/02/2010, DJe 22/03/2010. Na mesma linha: "Correta a não aplicação do art. 14 da Lei 9.807/99 (delação premiada), uma vez que, segundo o acórdão impugnado, o primeiro paciente contradisse em juízo toda sua confissão policial, não indicando o corréu DIOGO como coautor do roubo, bem como suas informações não foram imprescindíveis à localização do cor­ réu. STJ, 5a Turma, HC 186.566/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 15/02/2011, DJe 21 /03/2011.

4o, caput, da Lei n° 12.850/13 também prevê que “o juiz poderá (...)” -, do que se poderia concluir que o juiz tem a faculdade de aplicar (ou não) os benefí­ cios legais aí previstos, prevalece o entendimento de que, uma vez atingidos um dos efeitos desejados, a aplicação de um dos prêmios legais da colaboração premiada é obrigatória. Na verdade, a discricionariedade que o magis­ trado possui diz respeito apenas à opção por um dos benefícios legais, a ser escolhido de acordo com o grau de participação do colaborador no crime, a gravidade do delito, a magnitude da lesão causada, a relevância das informações por ele prestadas e as consequências decorrentes do crime. Daí dispor o art. 4o, § Io, da Lei n° 12.850/13, que, para fins de concessão dos benefícios legais, deverá o juiz levar em consideração, em qualquer hipótese, a persona­ lidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.577

13.9. Prêmios legais Os primeiros dispositivos legais que cuidaram da colaboração premiada no ordenamento jurídico pátrio - Lei n° 8.072/90, art. 8o, parágrafo único; CP, art. 159, § 4o; revogada Lei n° 9.034/95, art. 6o; Lei n° 7.492/86, art. 25, § 2o; Lei n° 8.137/90, art. 16, parágrafo único - ofereciam um único prêmio legal, qual seja, uma diminuição da pena, de 1 (um) a 2/3 (dois terços). Fácil perceber, portanto, o motivo pelo qual o coautor ou partícipe do fato delituoso não se sentia encorajado a colaborar com as auto­ ridades estatais. Ora, se o único prêmio decorrente da colaboração premiada era a diminuição da pena de 1 (um) a 2/3 (dois terços), o colaborador já sa­ bia, de antemão, que provavelmente continuaria 577. Referindo-se à delação premiada prevista no art. 14 da Lei n° 9.807/99, o STJ já teve a oportunidade de asseverar que, preenchidos os requisitos legais, sua incidência passa a ser obrigatória: STJ, 5a Turma, HC 84.609/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 04/02/2010, DJe 01/03/2010. Noutro julgado, a 5a Turma do STJ concluiu que a "delação premiada" prevista no art. 159, § 4o, do Código Penal é de incidência obrigatória quando os autos demonstram que as informações prestadas pelo agente foram eficazes, possibilitando ou facilitando a libertação da vítima: STJ, 5a Turma, HC 35.198/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 28/09/2004, p. 215. Em outro julgado, depois de afirmar que ao delator deve ser assegurada a incidência do benefício quando da sua efetiva colaboração resulta

a apuração da verdade real, concluiu o STJ que ofende o princípio da motivação, consagrado no art. 93, IX, da CF, a fixação da minorante da delação premiada em patamar mínimo sem a devida fundamentação, ainda que reconhecida pelo juízo monocrático a relevante colaboração

do paciente na instrução probatória e na determinação dos autores do fato delituoso: STJ, 5a Turma, HC 97.509/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 15/06/2010, DJe 02/08/2010. No sentido de que o juiz é obri­ gado a fundamentar de maneira detalhada os motivos pelos quais não foram concedidos os benefícios da colaboração premiada, notadamente quando esta se mostrar objetivamente eficaz: STF, Ia Turma, HC 99.736/ DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 27/04/2010, DJe 91 20/05/2010.

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cumprindo pena, quiçá no mesmo estabelecimento prisional que seus antigos comparsas. Isso acaba­ va por desestimular qualquer tipo de colaboração premiada, até mesmo porque é fato notório que o “Código de Ética” dos criminosos geralmente pune a traição com verdadeira “pena de morte”.

Foi exatamente essa a grande inovação trazida pela Lei de Lavagem de Capitais, quando entrou em vigor em 4 de março de 1998. Em sua redação original, o art. Io, § 5o, da Lei 9.613/98, dispunha que a pena devia ser reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços) e começar a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborasse espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que con­ duzissem à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. Com o advento da Lei n° 12.683/12, o art. Io, § 5o, da Lei n° 9.613/98, sofreu sensível modificação, in verbis: “A pena poderá ser reduzi­ da de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as auto­ ridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”.

Da leitura da nova redação do art. Io, § 5o, da Lei n° 9.613/98, depreende-se que 3 (três) be­ nefícios distintos podem ser concedidos ao cola­ borador na lei de lavagem de capitais: a) dimi­ nuição de pena de um a dois terços e fixação do regime aberto ou semiaberto: na redação antiga do dispositivo, a Lei n° 9.613/98 fazia menção ao início do cumprimento da pena apenas no regi­ me aberto. Com as mudanças produzidas pela Lei n° 12.683/12, o início do cumprimento da pena, após a redução de um a dois terços, poderá se dar tanto no regime aberto quanto no semiaberto; b) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos: a depender do grau de colaboração, poderá o juiz deferir a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, pouco importando a não observância dos pressupostos do art. 44 do Código Penal, que dispõe sobre as hipóteses em que é cabível a subs­ tituição da pena; c) perdão judicial como causa extintiva da punibilidade: nesse caso, o acordo de imunidade pode ser viabilizado pelo arquiva­ mento da investigação em relação ao colaborador, com fundamento no art. 129, I, da CF, c/c art. 28

do CPP, ou pelo oferecimento da denúncia com pedido de absolvição sumária pela aplicação do perdão judicial, nos termos do art. 397, IV, do CPP, c/c art. 107, IX, do CP.578 A opção por um desses benefícios fica a critério do juiz, que deve sopesar o grau de participação do colaborador no crime, a gravidade do delito, a magnitude da lesão causada, a relevância das in­ formações por ele prestadas e as consequências decorrentes do crime de lavagem. Para ser benefi­ ciado, deve o colaborador prestar esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. Diversamente do quanto disposto na redação original do art. Io, § 5o, da Lei n° 9.613/98, que fazia menção à apuração das infrações penais e de sua autoria, a nova redação conferida a este dispositivo pela Lei n° 12.683/12 faz uso da conjunção alterna­ tiva “ou”, do que se depreende que os três objetivos são alternativos, e não cumulativos.

Na esteira da Lei n° 12.683/12, responsável pelas mudanças da redação da Lei de Lavagem de Capitais, a nova Lei de Organizações Criminosas também ampliou o leque de opções de prêmios le­ gais passíveis de concessão ao colaborador. A de­ pender do caso concreto, a Lei n° 12.850/13 prevê os seguintes prêmios legais, que poderão ser conce­ didos mesmo no caso de inexistir a formalização de qualquer acordo de colaboração premiada:

a) diminuição da pena: ao contrário de outros dispositivos legais referentes à colaboração premia­ da, que preveem a diminuição da pena de 1 (um) a 2/3 (dois terços), o art. 4o, caput, da Lei n° 9.613/98, faz referência apenas ao máximo de diminuição de pena - 2/3 (dois terços) - sem estabelecer, todavia, o quantum mínimo de decréscimo da pena. Ante o silêncio do dispositivo legal e, de modo a se evitar uma redução irrisória (v.g., um dia ou um mês), que poderia desestimular a vontade do agente em colaborar com o Estado, parece-nos que deve ser utilizado como parâmetro o menor quantum de diminuição de pena previsto no Código Penal e na 578. Para o Supremo, todavia, a denúncia deve ser oferecida para que o magistrado aplique o perdão judicial ao final do processo, desde que constatada a efetividade da colaboração. A propósito, veja-se parte da ementa de questão de ordem decidida pelo Plenário no caso Mensalão: "Necessidade da denúncia para possibilitar o cumprimento dos termos da Lei n° 9.807/99 e do acordo de colaboração firmado pelo Ministério Público Federal com os acusados. (...) Questão de ordem resolvida para julgar ausente violação à decisão do plenário que indeferiu o desmem­ bramento do feito e, afastando sua condição de testemunhas, manter a possibilidade de oitiva dos co-réus colaboradores nestes autos, na con­ dição de informantes". (STF, Pleno, AP 470 QO3/MG, Rel. Min. Joaquim

Barbosa, j. 23/10/2008, DJe 079 29/04/2009).

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Legislação Especial, que é de 1/6 (um sexto). A nova Lei de Organizações Criminosas também prevê a possibilidade de redução da pena na hipótese de a colaboração ocorrer após a sentença. Nesse caso, a pena poderá ser reduzida até a metade (art. 4o, § 5o).579 Outrossim, como a confissão funciona como circunstância atenuante (CP, art. 65, I, “d”), incidindo, pois, na segunda fase de aplicação da pena, ao passo que a colaboração premiada confe­ re ao agente, em algumas hipóteses, uma causa de diminuição de pena, a ser aplicada na terceira fase (CP, art. 68), há precedentes do STJ no sentido de que a aplicação simultânea desses benefícios legais é perfeitamente compatível, porquanto dotados de natureza distinta;580 b) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos: como o art. 4o, caput, da Lei n° 12.850/13, refere-se à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, sem fazer qualquer remissão ao disposto no art. 44 do Código Penal, o ideal é concluir que esta substitui­ ção deverá ser feita independentemente da obser­ vância de tais requisitos; c) perdão judicial e consequente extinção da punibilidade: nos exatos termos do art. 4o, § 2o, da Lei n° 12.850/13, considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qual­ quer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do CPP;

d) não oferecimento de denúncia (acordo de imunidade): pelo menos em regra, a concessão dos diversos prêmios legais está condicionada à sentença final condenatória, sem a qual não se poderia pensar 579. Esta possibilidade de diminuição da pena por ocasião da sentença condenatória guarda certa semelhança com o instituto norte-americano do sentence bargaining, uma das espécies de plea bargaining. Por meio do plea bargaining, acusação e defesa negociam uma confissão de culpa em troca da acusação por um crime menos grave. Esta barganha pode ser fei­ ta de duas formas distintas: a) charge bargaining: o investigado declara-se culpado e a acusação muda a imputação, substituindo o delito original por outro de menor gravidade; b) sentence bargaining: depois do reconhe­ cimento da culpabilidade, o acusado postula a aplicação de sanção mais branda, tal qual ocorre nesta hipótese de diminuição de pena prevista no caput do art. 4o da Lei n° 12.850/13. Nesse sentido: PINTO, Ronaldo Batista; CUNHA, Rogério Sanches. Crime organizado: comentários à nova Lei sobre o Crime Organizado. Editora Juspodivm: Salvador, 2013, p. 62. 580. Admitindo a aplicação da atenuante da confissão na segunda fase de aplicação da pena e da colaboração na terceira fase, por funcionar, no caso concreto, como causa de diminuição de pena: STJ, 5a Turma, HC 84.609/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 04/02/2010, DJe 01/03/2010. Na mesma linha: STJ, 5aTurma, REsp 1.002.913/PR, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17/09/2009, DJe 19/10/2009.

em diminuição de pena, substituição por restritiva de direitos ou perdão judicial. Por isso, o órgão mi­ nisterial deve oferecer denúncia em face do colabo­ rador e dos demais investigados eventualmente por ele delatados. No entanto, nos mesmos moldes que o acordo de leniência, espécie de colaboração pre­ miada prevista no art. 87 da Lei n° 12.529/11 para os crimes contra a ordem econômico-financeira, o art. 4o, § 4o, da Lei n° 12.850/13, com redação dada pelo Pacote Anticrime, prevê que, nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de ofe­ recer denúncia se a proposta de acordo de colabora­ ção premiada referir-se à infração de cuja existência não tenha prévio conhecimento e o colaborador: I - não seja o líder da organização criminosa; II - seja o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. Considera-se existente o conhecimen­ to prévio da infração quando o Ministério Público ou a autoridade policial competente tenha instau­ rado inquérito ou procedimento investigatório para apuração dos fatos apresentados pelo colaborador (Lei n. 12.850/13, art. 4o, §4°-A, incluído pela Lei n. 13.964/19). Como se percebe, o legislador aí inseriu mais uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, porquanto o órgão ministerial poderá deixar de ofe­ recer denúncia se a colaboração levar à consecução de um dos resultados constantes dos incisos do art. 4o. Apesar de o legislador ter previsto a possibilidade de não oferecimento da denúncia, nada disse quanto ao fundamento de direito material a ser utilizado para fins de arquivamento do procedimento investigatório. Diante do silêncio da nova Lei de Organizações Cri­ minosas, parece-nos possível a aplicação subsidiária do art. 87, parágrafo único, da Lei n° 12.529/11, que prevê que o cumprimento do acordo de colabora­ ção premiada acarreta a extinção da punibilidade do colaborador. Como se trata, a concessão do perdão judicial, de decisão declaratória extintiva da punibi­ lidade, tal decisão estará protegida pela coisa julgada, o que importa no reconhecimento da imutabilidade do comando que dela emerge. Por consequência, este dispositivo deve ser utilizado de maneira excepcional, vale dizer, o juiz não deve conceder o perdão judicial de pronto, vez que nem sempre será possível atestar o grau de liderança da organização criminosa exercido pelo colaborador sem o prévio encerramento da ins­ trução criminal em juízo. Daí a importância de o não oferecimento da denúncia previsto no art. 4o, § 4o, ser precedido do sobrestamento da persecução penal inserido no art. 4o, § 3o, a fim de verificar a eficácia objetiva das informações prestadas pelo colaborador. Outrossim, na eventualidade de o juiz não concordar com a promoção de arquivamento com fundamen­ to no art. 4o, § 4o, por entender, por exemplo, que

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o suposto colaborador seria o líder da organização criminosa, não fazendo jus à extinção da punibilidade por tal motivo, deve o magistrado aplicar o princípio da devolução inserido no art. 28 do CPP,581 deter­ minando a remessa dos autos ao Procurador-Geral;

e) causa de progressão de regimes: pelo me­ nos até a entrada em vigor do Pacote Anticrime, a progressão de regimes estava condicionada, em regra, ao cumprimento de ao menos 1/6 (um sex­ to) da pena no regime anterior e à ostentação de bom comportamento carcerário (LEP, redação ori­ ginária do art. 112), sem prejuízo da possibilidade de realização do exame criminológico, valendo lembrar que, em se tratando de crimes hediondos e equiparados, a transferência para regime me­ nos rigoroso dar-se-ia após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado fosse primá­ rio, e de 3/5 (três quintos), se reincidente (Lei n° 8.072/90, art. 2o, revogado § 2o, com redação dada pela Lei n° 11.464/07). Com a vigência da Lei n. 13.964 no dia 23 de janeiro de 2020, tal dispositivo foi revogado, constando do art. 112 da LEP novos critérios para a progressão: I - 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; II - 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime co­ metido sem violência à pessoa ou grave ameaça; III - 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido come­ tido com violência à pessoa ou grave ameaça; IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violên­ cia à pessoa ou grave ameaça; V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento con­ dicional; b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou c) condenado pela prática do cri­ me de constituição de milícia privada; VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equi­ parado; VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o 581. Para mais detalhes acerca da possibilidade de o juiz continuar aplicando o art. 28, caput, do CPP, mesmo após as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime, remetemos o leitor aoTítulo atinente à Investiga­ ção Preliminar, mais precisamente ao item 14.2.3 - "(In) subsistência da

aplicação do art. 28 do CPP pelo juiz nas hipóteses de divergência entre o magistrado e o órgão ministerial".

livramento condicional.582 Em todos os casos, o apenado só terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Outrossim, por força do art. 112, §3°, da LEP, incluído pela Lei n. 13.769/18, no caso de mulher gestante ou mãe que seja responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regi­ me, independentemente da natureza hedionda ou não do delito, são, cumulativamente: a) não ter cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa; b) não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente; c) ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior; d) ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento; e) não ter integrado organização criminosa. Ainda em relação a essa progressão especial para a ressocialização de mulheres nas condições acima espe­ cificadas, o art. 112, §4°, da LEP, também incluído pela Lei n. 13.769/18, dispõe que o cometimento de novo crime doloso ou falta grave implicará a revogação do benefício. Com o objetivo de incen­ tivar a colaboração premiada, a Lei n° 12.850/13 passou a prever que, na hipótese de a colaboração premiada ser posterior à sentença, será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os re­ quisitos objetivos (art. 4o, § 5o). De se notar que o dispositivo legal sob comento ressalva apenas os requisitos objetivos. Por consequência, mesmo que a colaboração premiada posterior à sentença seja objetivamente eficaz para a consecução de um dos resultados previstos nos incisos do art. 4o, a progressão de regimes ainda depende da obser­ vância dos requisitos subjetivos, ou seja, ao bom comportamento carcerário do condenado. Sem embargo dos inúmeros prêmios legais pre­ vistos na Lei n. 12.850/13, referido diploma nor­ mativo não dispunha, pelo menos em sua redação originária, acerca da forma pela qual o magistrado deveria fazer incidir na sentença condenatória o benefício pactuado no acordo de colaboração pre­ miada. Não obstante, sempre se entendeu, doutrinariamente, que o magistrado deveria observar o cri­ tério trifásico constante do art. 68 do Código Penal, estabelecendo, assim, a pena adequada para o caso 582. De se lembrar que a contagem desse prazo para a progressão de regime de cumprimento de pena é interrompida na hipótese de prática de falta grave, reiniciando-se a partir do cometimento dessa infração, nos termos da súmula n° 534 do STJ. Outrossim, na visão do Plenário do STF, o inadimplemento deliberado da pena de multa cumulativamente

aplicada ao sentenciado impede a progressão no regime prisional, salvo se comprovada a impossibilidade econômica do apenado em pagar o valor, ainda que parceladamente. A propósito: STF, Pleno, EP 12 ProgReg-AgR/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 08/04/2015, DJe 93 19/05/2015.

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concreto, como se sequer existisse um acordo de colaboração. Tão somente depois, e desde que cons­ tatada a eficácia da colaboração do agente, caberia ao magistrado efetuar a substituição da pena aplica­ da pela sanção barganhada, naquilo que a doutrina convencionou chamar de “substituição premial”.583 Caberia ao magistrado, ademais, deixar consignado que eventual descumprimento de cláusula do acordo poderia dar ensejo à “reconversão da pena aplicada”. Esse entendimento restou consolidado pelo art. 4o, §7°-A, da Lei n. 12.850/13, incluído pelo Pacote Anticrime: “§7°-A. O juiz ou o tribunal deve proce­ der à análise fundamentada do mérito da denúncia, do perdão judicial e das primeiras etapas de apli­ cação da pena, nos termos do Código Penal e do Código de Processo Penal, antes de conceder os be­ nefícios pactuados, exceto quando o acordo prever o não oferecimento da denúncia na forma dos §§4° e 4°-A do art. 4o ou já tiver sido proferido sentença”.

A Lei 12.850/2013 não apresenta a revogação da prisão preventiva como benefício previsto pela realização de acordo de colaboração premiada. Tam­ pouco há previsão de que, em decorrência do des­ cumprimento do acordo, seja restabelecida prisão preventiva anteriormente revogada. Em outras pala­ vras, a prisão provisória não pode ser utilizada como moeda de troca ou punição antecipada àquele que, réu em processo penal, celebra ou está em vias de celebrar o mencionado acordo. Portanto, o descum­ primento de acordo de colaboração premiada não autoriza, por si só, a decretação da prisão preventiva. Enfim, para tanto, impõe-se a observância dos pres­ supostos dos arts. 312e313do CPP, não podendo o decreto prisional ter como fundamento apenas a quebra do acordo.584

Com a amplitude dos benefícios legais previs­ tos na Lei n. 12.850/13, certamente haverá ques­ tionamentos quanto ao seu âmbito de incidência, ou seja, se tais benefícios podem ser aplicados a todo e qualquer ilícito decorrente de organização criminosa, ou se a concessão de tais prêmios estaria restrita ao crime de organização criminosa (Lei n° 12.850/13, art. 2o, caput), isoladamente considerado. Há quem entenda que as regras do art. 4o da Lei n° 12.850/13 são aplicáveis exclusivamente ao crime de organização criminosa, e não a todas as infra­ ções penais dela decorrentes.585*A nosso ver, mesmo 583. MARÇAL. Op. cit.

584. Nessa linha: STF, 2aTurrna, HC 138.207/PR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 25/04/2017; STJ, 6a Turma, HC 396.658/SP, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j. 27/06/2017, DJe 1°/08/2017. 585. Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização da 17aedi­ ção do curso de processo penal em virtude da Lei n° 12.850/13. Disponível

para os crimes anteriormente estudados que contam com regramento específico acerca do assunto (v.g., extorsão mediante sequestro, tráfico de drogas), não há fundamento razoável para se lhes negar a conces­ são dos benefícios previstos pela Lei n° 12.850/13, sob pena de esvaziamento da eficácia da colabora­ ção premiada. Ora, se o agente souber que eventual prêmio legal ficará restrito ao crime de organização criminosa, dificilmente terá interesse em celebrar o acordo de colaboração premiada. Essa mesma dis­ cussão já havia se instalado com o advento da Lei n° 9.807/99. Por não ter seu âmbito de aplicação restrito a determinado(s) delito(s), muito se discutiu quanto à incidência dos benefícios constantes dos arts. 13 e 14. Acabou prevalecendo a orientação de que referida Lei seria aplicável inclusive para crimes que contassem com um regramento específico sobre colaboração premiada (v.g., tráfico de drogas).586 Todos esses prêmios legais são pessoais, sendo inaplicáveis àqueles que não colaboraram volun­ tariamente com as investigações. Com efeito, por constituir circunstância subjetiva de caráter pessoal, os prêmios legais decorrentes da aplicação da cola­ boração premiada não se comunicam aos demais coautores e partícipes, nos exatos termos do art. 30 do Código Penal.587 Para fins de concessão de qualquer um desses prêmios legais, não basta que as informações pres­ tadas pelo colaborador levem à consecução de um dos resultados previstos em lei. Para além disso, o magistrado também deverá levar em consideração a personalidade do colaborador, a natureza, as cir­ cunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração (Lei n° 12.850/13, art. 4o, § Io). Em sentido semelhante, o art. 13, parágrafo único, da Lei n° 9.807/99, também em: http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao-comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-12-85013-2/. Acesso

em 05/11/2013. 586. Referindo-se à possibilidade de aplicação dos dispositivos refe­ rentes à colaboração premiada previstos na Lei n° 9.807/99 aos crimes de tráfico de drogas: MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Paulo Ro­ berto Galvão de. Op. cit. p. 192. Para Sérgio Moro, todos os dispositivos anteriores que previam a colaboração encontram-se superados pela Lei n° 9.807/99, por serem mais abrangentes e por regularem mais precisa­ mente a matéria: Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 109-110. O STJ já teve a oportunidade de concluir que a Lei n° 9.807/99 não traz qualquer restrição relativa à sua aplicação apenas a determinados delitos: STJ, 6a Turma, REsp 1.109.485/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 12/04/2012, DJe 25/04/2012. Na mesma linha: "O sistema geral de delação premiada está previsto na Lei 9.807/99. Ape­ sar da previsão em outras leis, os requisitos gerais estabelecidos na Lei de Proteção a Testemunha devem ser preenchidos para a concessão do benefício". (STJ, 5a Turma, HC 97.509/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 15/06/2010, DJe 02/08/2010).

587. Nesse contexto: STF, 1aTurma, HC 85.176/PE, Rel. Min. Eros Grau, j. 01/03/2005, DJ 08/04/2005. Nos mesmos moldes: STJ, 5a Turma, REsp 418.341/AC, Rel. Min. Felix Fischer, j. 08/04/2003, DJ 26/05/2003 p. 374.

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prevê que a concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso. Destarte, de modo a se evitar que esta impor­ tante técnica especial de investigação seja transfor­ mada em indevido instrumento de impunidade, a aplicação dos prêmios legais depende não apenas do preenchimento de requisitos objetivos - consecução de um dos resultados listados pelos diversos dispo­ sitivos legais que tratam da colaboração premiada -, como também de requisitos subjetivos. Assim, mesmo que a colaboração tenha sido objetivamente eficaz para a obtenção de um dos resultados listados nos incisos do art. 4o da Lei n° 12.850/13, poderá o juiz recusar a homologação desse acordo se a aná­ lise do conjunto dessas circunstâncias judiciais for desfavorável ao colaborador. Na verdade, conquanto não haja nenhum óbice à celebração de um acordo de colaboração premiada com o líder de uma organização criminosa - nesse caso, a única restrição expressa diz respeito ao não oferecimento de denúncia (Lei n. 12.850/13, art. 4o, §4°, I) - os prêmios legais inerentes à colaboração premiada devem ser concedidos apenas àqueles acusados de pequena ou média importância, preservando-se intacta a persecução penal dos líderes das organizações criminosas. Como observa Sérgio Moro, “o método deve ser empregado para permitir a escalada da investigação e da persecução na hie­ rarquia da atividade criminosa. Faz-se um acordo com um criminoso pequeno para obter prova contra o grande criminoso ou com um grande criminoso para lograr prova contra vários outros grandes cri­ minosos”.588 Nessa linha, ao apreciar habeas corpus relacionado a investigador de polícia envolvido em crime de extorsão mediante sequestro, circunstância que denota maior reprovabilidade da conduta, o STJ entendeu ser inviável a concessão do perdão judi­ cial previsto no art. 13 da Lei n° 9.807/99. Aplicou, todavia, a causa de diminuição do art. 14 da Lei n° 9.807/99, com a diminuição da reprimenda em 2/3 (dois terços).589

Diversamente da colaboração premiada pre­ vista no art. 13, caput, da Lei n° 9.807/99, onde o legislador faz referência expressa à necessidade de o colaborador ser primário, o art. 4o, § Io, da Lei n° 12.850/13, nada diz acerca do assunto. Por conse­ quência, partindo da premissa de que não é dado ao

intérprete restringir onde a lei não estabeleceu qual­ quer restrição, pelo menos para fins de colaboração premiada na nova Lei de Organizações Criminosas, não há necessidade de que o acusado seja primário, nem tampouco que tenha bons antecedentes. Quanto à gravidade do fato criminoso citada no art. 4o, § Io, da Lei n° 12.850/13, parece-nos que a gravidade em abstrato da infração penal não pode ser utilizada como óbice à concessão dos prêmios legais inerentes à colaboração premiada. Ora, a gra­ vidade da infração pela sua natureza, de per si, é uma circunstância inerente ao delito, funcionando, aliás, como verdadeira elementar do próprio conceito de organização criminosa. A propósito, há diversas sú­ mulas dos Tribunais Superiores no sentido de que a gravidade em abstrato de determinada infração penal não pode ser utilizada como circunstância judicial em detrimento do acusado.590 Todavia, demonstrada a gravidade em concreto do delito, seja pelo modo de agir, seja pela condição subjetiva do agente, afigu­ ra-se possível o indeferimento dos benefícios legais decorrentes da celebração do acordo de colaboração premiada.

13.9.1. (Im) possibilidade de sanções premiais extralegais Muito se discute acerca da possibilidade de os celebrantes pactuarem a concessão de prêmios não previstos expressamente no ordenamento jurídico (v.g., prisão domiciliar). No âmbito da operação “Lava Jato”, por exemplo, foram celebrados acordos dando permissão para que familiares do colabora­ dor fizessem uso de bens que são produto de crime e o cumprimento da pena em regimes diferenciados (v.g., pena de mais de 8 anos de reclusão substituída por regime domiciliar diferenciado). Sobre o assun­ to, há, fundamentalmente, duas correntes: a) Possibilidade de adoção de sanções pre­ miais não previstas em lei: de um lado, uma pri­ meira corrente entende ser possível a adoção de sanções premiais não previstas em lei, desde que não sejam vedadas pelo ordenamento jurídico, bem como não agravem a situação do agente colaborador com a estipulação de sanção mais severa do que a permitida pelo Direito Penal, respeitando-se um 590. Nessa linha, eis o teor da súmula n° 718 do STF: "A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motiva­ ção idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada". No mesmo contexto, consoante disposto na súmula n° 719 do STF, "a imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea". Por fim,

588. Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 111-112.

dispõe a súmula n° 440 do STJ: "Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que

589. STJ, 6a Turma, HC 49.842/SP, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j.

o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito".

30/05/2006, DJ 26/06/2006.

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critério de razoabilidade. Prova disso se encontra em precedente da Ia Turma do STF, no qual se ad­ mitiu a aplicação de sanção premial não prevista em lei, desde que seja benéfica ao colaborador. Na oca­ sião, afirmou-se que o princípio da legalidade deve ser considerado uma garantia ao jurisdicionado de que não sofrerá sanção mais severa do que a legal. Desse modo, quando mais benéfica, sendo por ele aceita de maneira voluntária, nenhuma ilegalidade haveria.591 O Plenário do Supremo também tem pre­ cedente no sentido de que o acordo de colaboração pode dispor sobre efeitos extrapenais de natureza patrimonial da condenação, como, por exemplo, a liberação de imóveis do interesse do colaborador, supostamente produtos de crimes. Como a colabo­ ração exitosa teria o condão de afastar consequên­ cias penais da prática delituosa, também poderia mitigar efeitos de natureza extrapenal, a exemplo do confisco do produto do crime.592 A propósito, eis o teor da Orientação Conjunta n. 1/2018 do MPF: “27. O acordo pode prever, como indicativo para a resposta penal a ser concretizada em sede judicial, além da pena unificada para o montante de fatos e a pena a ser efetivamente cumprida, eventuais penais restritivas de direito, o regime inicial de cumpri­ mento da pena, a progressão de regimes, a suspen­ são condicional da pena, a suspensão condicional do processo, a suspensão do prazo prescricional e a aplicação dos institutos da remissão e detração. Em caso da previsão de regimes diferenciados, suas re­ gras devem ser detalhadas no acordo. 27.1. O acordo de colaboração premiada pode também prever o valor da multa penal, o valor ou os bens objeto de perdimento e sua destinação, o valor mínimo da reparação do dano e sua destinação às vítimas dos delitos, quando couber”;

b) Impossibilidade de adoção de sanções pre­ miais não previstas em lei: com a devida vênia aos adeptos da primeira corrente, pensamos ser cogente o estrito cumprimento da lei quanto aos benefícios passíveis de negociação em um acordo de colabo­ ração premiada. O estabelecimento de balizas legais para o acordo é uma opção do nosso sistema jurídi­ co, para assegurar a isonomia e evitar a corrupção dos imputados, mediante incentivos desmesurados à colaboração, e dos próprios agentes públicos, aos quais se daria um poder sem limite sobre a vida

dos imputados.593 Se se trata, o acordo de colabo­ ração premiada, de um negócio jurídico processual, às partes não é dada a possibilidade de livremente dispor sobre as suas consequências sem o respeito de balizas mínimas. O que há, portanto, nesse negó­ cio jurídico, é uma liberdade de escolha limitada ao campo de atuação permitido pelo sistema jurídico. Extremamente relevantes, nesse sentido, as mudanças produzidas pelo Pacote Anticrime no §7° do art. 4o da Lei n. 12.850/13. Explica-se: na redação originária do dispositivo citado, uma vez celebrado o acordo, este seria remetido ao juiz para homologação, o qual deveria verificar apenas sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo, para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor. Com a entrada em vigor da Lei n. 13.964 no dia 23 de janeiro de 2020, o §7° do art. 4o da Lei n. 12.850/13 passa a impor ao juiz a análise dos seguintes aspectos por ocasião da homologação do acordo de colaboração premiada: I - regularidade e legalidade; II - adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§4° e 5o do art. 4o, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento depena do art. 33 do Código Penal, as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei de Execução Penal e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo §5° do art. 4o-, III - adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput do art. 4o; IV - voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares.

13.10. Sobrestamento do prazo para ofereci­ mento da denúncia ou suspensão do processo, com a consequente suspensão da prescrição A depender da espécie de infração penal prati­ cada pela organização criminosa, nem sempre será possível que as informações fornecidas pelo colabo­ rador levem, de imediato, à consecução de um dos resultados listados nos incisos do art. 4o da Lei n° 12.850/13. Supondo a prática de um crime de lava­ gem de capitais, por mais que o colaborador forneça informações quanto à localização do produto ou do proveito das infrações penais, a recuperação total ou parcial desses bens, condição sine qua non para a aplicação do art. 4o, IV, da Lei n° 12.850/13, deman­ dará um pouco mais de tempo. Daí a importância do art. 4o, § 3o, da Lei n° 12.850/13, que permite que o

591. STF, Ia Turma, Inq. 4.405 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 27/02/2018, DJe 64 04/04/2018. 592. Com esse entendimento: STF, Pleno, HC 127.483/PR, Rel. Min.

Dias Toffoli, j. 27/08/2015.

593. Com raciocínio semelhante: STF, 2a Turma, HC 151.605/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20/03/2018.

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prazo para oferecimento da denúncia ou o próprio processo, relativos ao colaborador, seja suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colabora­ ção, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional. Esta paralisação da persecução penal está restrita ao colaborador, não devendo abranger os demais inves­ tigados (ou acusados) para que não haja um prolon­ gamento indevido das investigações (ou do processo). Com o sobrestamento da persecução penal, também haverá suspensão da prescrição. Logo, há necessidade de determinação judicial nesse sentido, até mesmo para que se saiba o termo a quo a partir de quando a prescrição foi suspensa. Com o fim do prazo de suspensão, a denúncia deverá ser oferecida pelo órgão ministerial, salvo se verificada a hipótese prevista no art. 4o, § 4o, objeto de análise no tópico anterior.594

Conquanto o art. 4o, §3°, da Lei n. 12.850/13 não estabeleça nenhuma ressalva nesse sentido, o ideal é concluir que o sobrestamento para o ofe­ recimento da denúncia (ou do próprio processo penal) por prazo tão elástico quanto este - 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período - jamais po­ derá envolver investigados (ou acusados) presos. Primeiro porque seria suprimida qualquer ideia de cautelaridade da referida prisão. Segundo porque é a própria Lei das Organizações Criminosas (art. 22, parágrafo único) que dispõe que, quando o acusado estiver preso, a instrução deverá ser encerrada em prazo razoável, o qual não poderá exceder 120 (cen­ to e vinte) dias, prorrogáveis em até igual período. Portanto, a melhor solução é colocar o acusado em liberdade para que, aí sim, seja determinada o so­ brestamento das investigações ou do processo.

13.11. Valor probatório da colaboração pre­ miada: regra da corroboração No momento preliminar de apuração da prá­ tica delituosa, nada impede que uma colaboração premiada, isoladamente considerada, sirva como fundamento para a instauração de um inquérito policial. Afinal de contas, para que se dê início a uma investigação criminal, não se faz necessário um juízo de certeza acerca da prática delituosa. Basta, na dicção da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19, art. 27), a presença de qualquer indí­ cio da prática de crime, sendo a palavra “indício” aí 594. Uma vez deferida a suspensão da persecução penal e da pres­

crição, não será cabível a ação penal privada subsidiária da pública, que, como é sabido, pressupõe a inércia do órgão ministerial. Caso a queixa subsidiária seja oferecida pelo ofendido (ou por seu representante legal),

incumbe ao Ministério Público repudiá-la, nos termos do art. 29 do CPP.

compreendida como uma prova semiplena, leia-se, de menor valor persuasivo. Esses elementos de corroboração, aliás, já de­ vem ser apontados pela defesa inclusive por ocasião do oferecimento da proposta para formalização do acordo de colaboração premiada. É nesse senti­ do o art. 3°-C, §4°, da Lei n. 12.850/13, incluído pela Lei n. 13.964/19: “Incumbe à defesa instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas cir­ cunstâncias, indicando as provas e os elementos de corroboração”.

Em sede de sentença condenatória, todavia, se nem mesmo a confissão do acusado, auto incrimi­ nando-se, é dotada de valor absoluto, não mais sen­ do considerada a rainha entre as provas (CPP, art. 197), o que dizer, então, da colaboração premiada? Ante a possibilidade de mendacidade intrínseca à colaboração premiada, a jurisprudência firmou-se no sentido de que, isoladamente considerada, esta técnica especial de investigação não pode respaldar uma condenação, devendo estar corroborada por outros elementos probatórios. Se, porém, a colabo­ ração estiver em consonância com as demais provas produzidas ao longo da instrução processual, adqui­ re força probante suficiente para fundamentar um decreto condenatório.595 Daí a importância daquilo que a doutrina chama de regra da corroboração, ou seja, que o colaborador traga elementos de informação e de prova capazes de confirmar suas declarações (v.g., indicação do produto do crime, de contas bancárias, localização do produto direto ou indireto da infra­ ção penal, auxílio para a identificação de números de telefone a serem grampeados ou na realização de interceptação ambiental, etc.).596 Este entendimento jurisprudencial acabou sendo positivado pela Lei n° 12.850/13, cujo art. 4o, § 16, em sua redação original, dispunha: “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”.

Com o passar dos anos, porém, o Supremo Tri­ bunal Federal passou a restringir ainda mais o valor 595. STF, 2aTurma, HC 75.226/MS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 12/08/1997, DJ 19/09/1997. E ainda: STF, RE 213.937/PA, 1.a Turma, j. 26.03.1999, rei. Min. limar Galvão, DJ 25.06.1999; STF, IaTurma, RHC 81.740/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/03/2005, DJ 22/04/2005; STF, 1a Turma, HC 84.517/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19/10/2004, DJ 19/11/2004; STF, IaTurma, HC 94.034/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 10/06/2008, DJe 167 04/09/2008; STF, 1aTurma, RHC 84.845/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12/04/2005, DJ 06/05/2005.

596. Nesse contexto: MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006 - co­ mentada artigo por artigo. 3a ed. São Paulo: Editora Método, 2012. p. 195.

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probatório da colaboração premiada, entendendo, por exemplo, que, isoladamente considerada, sequer teria o condão de configurar a justa causa necessá­ ria para a deflagração de um processo penal (CPP, art. 395, III). Nesse sentido, confira-se: “(...) Se os depoimentos do réu colaborador, sem outras pro­ vas minimamente consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação, também não podem autorizar a instauração da ação penal, por padece­ rem da presunção relativa de falta de fidedignidade. A colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, tem aptidão para autorizar a deflagração da investigação preliminar, visando adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória. Essa, em verdade, constitui sua verda­ deira vocação probatória. Todavia, os depoimentos do colaborador premiado, sem outras provas idô­ neas de corroboração, não se revestem de densidade suficiente para lastrear um juízo positivo de admis­ sibilidade da acusação, o qual exige a presença do fumus comissi delicit. O fumus commissi delicti, que se funda em um juízo de probabilidade de conde­ nação, traduz-se, em nosso ordenamento, na prova da existência do crime e na presença de indícios suficientes de autoria. Se nenhuma sentença con­ denatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador’ (art. 4o, § 16, da Lei n° 12.850/13 - em sua redação original), é lícito concluir que essas declarações, por si sós, não autorizam a formulação de um juízo de probabilida­ de de condenação e, por via de consequência, não permitem um juízo positivo de admissibilidade da acusação. Na espécie, não se vislumbra a presença de elementos externos de corroboração dos depoi­ mentos de colaboradores premiados, mas simples registros genéricos de viagens e reuniões. Denúncia rejeitada, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal”.597

Na esteira desse novo entendimento juris­ prudencial firmado pela Suprema Corte, o Pacote Anticrime houve por bem ampliar ainda mais as restrições ao valor probatório da colaboração pre­ miada, conferindo nova redação ao §16 do art. 4o da Lei das Organizações Criminosas, que passou a prever que nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas 597. STF, 2a Turma, Inq. 3.998/DF, Rel. p. Acórdão: Min. Dias Toffoli, j. 18/12/2017, DJe 45 08/03/2018. No mesmo sentido: STF, 2a Turma, Inq. 4.005, Rel. Min. Edson Fachin, j. 11/12/2018; STF, Inq. 3.944 ED-segundos, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 07/08/2018, DJe 185 04/09/2018. No sentido de que as palavras do colaborador, embora sejam suficientes para o início da investigação preliminar, não constituem motivo idôneo autônomo para fundamentar o recebimento da peça acusatória: STJ, 5aTurma, AgRg

no RHC 124.867-PR, Rel. Min. Felix Fischer, j. 18.08.2020, DJe 04.09.2020.

declarações do colaborador: I - medidas cautelares reais ou pessoais; II - recebimento de denúncia ou queixa; III - sentença condenatória. Na dicção da doutrina, não se admite a denomi­ nada corroboração recíproca ou cruzada. Segundo Badaró,598 a regra da corroboração não se realiza na hipótese de o elemento de confirmação de uma de­ lação premiada ser outra delação premiada, de um diverso delator, ainda que ambas tenham conteúdo concordante. Em outras palavras, exige-se corrobora­ ção por fontes extrínsecas às da delação propriamen­ te dita (credibilidade objetiva). Em recente julgado monocrático (Pet. 5.700/DF), o Min. Celso de Mello concluiu, em obter dictum, que o Estado não pode se utilizar da denominada corroboração recíproca ou cruzada, ou seja, não poderá impor condenação ao réu pelo fato de contra este existir, unicamente, depoimento de agente colaborador que tenha sido confirmado, tão somente, por outros delatores.

Com o fito de prevenir delações falsas, deve o magistrado ter extrema cautela no momento da valoração da colaboração premiada, devendo se perquirir acerca da personalidade do colaborador, das relações precedentes entre ele e o (s) acusado (s) delatado (s), dos móveis da colaboração, da verossimilhança das alegações e do seu contexto circunstancial. Como se sabe, é cada vez mais comum que haja disputas inter­ nas pela gerência de organizações criminosas, o que pode, de certa forma, servir como móvel para a de­ lação de antigos parceiros, ou até mesmo de pessoas inocentes. Tais situações espúrias, denominadas pela doutrina estrangeira de móveis turvos ou inconfes­ sáveis da delação, devem ser devidamente valoradas pelo magistrado, de modo a se evitar que a delação seja utilizada para deturpar a realidade.

13.12. Observância do contraditório e da am­ pla defesa O terceiro delatado por corréu, em termo de colaboração premiada, tem direito de ter acesso aos trechos nos quais citado, com fundamento na súmula vinculante n. 14 (“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em pro­ cedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”). À luz do referido verbete, o acesso deve ser franqueado caso estejam 598. BADARÓ, Gustavo. O valor probatório da delação premiada: sobre o §16 do art. 4oda Lei n. 12.850/13. Disponível em: http://badaroadvogados.com.br/fev-de-2015-o-valor-probatorio-da-delacao-premiada-sobre-o-16-do-art-4-da-lei-n-12850-13.html. Acesso em: 13 de dezembro de 2018.

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presentes dois requisitos: a) o ato de colaboração deve apontar a responsabilidade criminal do re­ querente (STF - Inq. 3.983); b) o ato de colabora­ ção não deve referir-se à diligência em andamento (STF - Rel 24.116). Isso porque a leitura do § 2o do art. 7o da Lei 12.850/2013 determina que, an­ tes mesmo da retirada do sigilo, será assegurado ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente pre­ cedido de autorização judicial, ressalvados os refe­ rentes às diligências em andamento. A propósito, é firme a jurisprudência da 2a Turma do STF no sentido de assegurar o acesso a todos os elementos de prova documentados nos autos dos acordos de colaboração, incluídas as gravações audiovisuais dos atos de colaboração de corréus, com o escopo de confrontá-los, e não para impugnar os termos dos acordos propriamente ditos (STF - Rel 21.258 AgR).599 Enfim, há de se entender que o sigilo do acordo de colaboração premiada previsto no art. 7o da Lei n. 12.850/13 não é oponível ao delatado. Há uma norma especial que regulamenta o acesso do defensor do delatado aos atos de colaboração (Lei 12.850/2013, art. 7o, §2°). O dispositivo consagra o amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, ressal­ vados os referentes a diligências em andamento. Portanto, em um cotejo analítico entre o referido verbete sumular e a Lei 12.850/2013, o acesso deve ser garantido caso estejam presentes dois requisitos: um positivo - o ato de colaboração deve apontar a responsabilidade criminal do requerente; e outro negativo - o ato de colaboração não se deve referir a diligência em andamento.600

existência da prova, tal qual dispõem a Constituição Federal (art. 5o, LV) e o Código de Processo Penal (art. 155, caput), surgindo a necessidade de se ouvir o colaborador no processo a que respondam, por exemplo, os acusados objeto da delação, a produção dessa prova deve ser feita na presença do juiz com a participação dialética das partes. Logo, tendo em conta que a colaboração ga­ nha contornos de verdadeira prova testemunhai em detrimento do corréu delatado, há de se permitir ao defensor deste último a possibilidade de fazer reperguntas ao delator, exclusivamente no tocante à delação realizada, sob pena de indevido cerceamen­ to da defesa e consequente anulação do processo a partir do interrogatório, inclusive. Acerca do assun­ to, nas mesas de processo penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, coordenadas pela Professora Ada Pellegrini Grinover, a súmula n° 675 enuncia que “o interrogatório de corréu, in­ criminando outro, tem, com relação a este, natureza de depoimento testemunhai, devendo, por isso, se admitirem reperguntas”. Para que seja preservado o direito de não produzir prova contra si mesmo do delator, as reperguntas formuladas pelo advogado do litisconsorte passivo deverão se limitar aos fatos que incriminam o corréu delatado.

Nesse contexto, como observa Aury Lopes Jr.,601 quando estiver depondo na condição de réu, o delator estará amparado pelo direito ao silêncio. Logo, não está obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas (pelo juiz, acusador ou demais corréus) e que lhe possam prejudicar. No tocante às perguntas que digam respeito às imputações que está fazendo, o silêncio alegado deve ser considerado no sentido de desacreditar a versão incriminatória dos corréus. Por fim, quando arrolado como testemunha da acusação em um processo em que não figure como acusado, o delator não está protegido pelo direito ao silêncio, tendo o dever de responder a todas as perguntas, como qualquer testemunha, desde que das respostas não produza prova contra si mesmo.

Caso haja necessidade de oitiva formal do colaborador (ou delator) no processo relativo aos coautores ou partícipes delatados, a fim de se lhe conferir o valor de prova, e não de mero elemen­ to informativo, há de se assegurar a participação dialética das partes, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa. Afinal, se há simples confissão na parte em que o acusado reconhece que praticou o delito, ao atribuir o cometimento do crime a outra pessoa, o delator passa a agir como se fosse teste­ munha, tendo o ato, nessa parte, natureza de prova testemunhai, daí por que imprescindível o respeito ao contraditório judicial. Funcionando a observân­ cia do contraditório como verdadeira condição de

Sobre o assunto, a 6a Turma do STJ tem en­ tendido que, apesar de o interrogatório ser essen­ cialmente meio de defesa, se dele exsurgir delação de outro acusado, sobrevêm para a defesa deste o direito de apresentar reperguntas, sendo que a vedação do exercício de tal direito macula o con­ traditório e revela nulidade irresgatável.602 No mes-

599. STF, 2aTurma, Rel 30.742 AgR/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 04/02/2020.

601. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 592.

600. Com esse entendimento: STF, 2a Turma, Pet 7.494 AgR/DF, Rel.

602. STJ, 6a Turma, HC 83.875/G0, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 25/03/2008, DJe 04/08/2008. Há julgados em sentido contrário

Min. Gilmar Mendes, j. 19/05/2020.

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mo rumo, a 2a Turma da Suprema Corte também já teve a oportunidade de asseverar que assiste, a cada um dos litisconsortes penais passivos, o di­ reito - fundado em cláusulas constitucionais (CF, art. 5o, incisos LIV e LV) - de formular reperguntas aos demais corréus, que, no entanto, não estão obrigados a respondê-las, em face da prerrogativa contra a autoincriminação, de que também são ti­ tulares. O desrespeito a essa franquia individual do réu, resultante da arbitrária recusa em lhe permitir a formulação de reperguntas, qualifica-se como causa geradora de nulidade processual absoluta, por implicar grave transgressão ao estatuto cons­ titucional do direito de defesa.603 Nesse caso, é indispensável que o advogado do corréu manifeste sua intenção de fazer reperguntas aos demais acusados em audiência, sob pena de preclusão. Portanto, se a defesa, no interrogatório, não requereu reperguntas ao corréu, subscreven­ do sem ressalvas o termo de audiência, a mani­ festação posterior de inconformismo não elide a preclusão.604

Se é assegurada a participação do advogado do corréu delatado, o mesmo não pode ser dito quanto ao coautor ou partícipe objeto da delação. A uma porque, verificando o juiz que a presença do acusado delatado possa causar humilhação, te­ mor ou sério constrangimento ao delator, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará sua inquirição por videoconferência e, somente na im­ possibilidade dessa forma, determinará a retirada do acusado, prosseguindo na inquirição, com a presen­ ça do seu defensor, nos exatos termos do art. 217 do CPP.605 A duas porque é a própria Lei das Organi­ zações Criminosas que já prevê, dentre os direitos da 5a Turma do STJ, entendendo que a participação de advogados dos

corréus não tem amparo legal, visto que criaria uma forma de constran­ gimento para o interrogado, o qual não pode ser induzido a se auto acusar: STJ, 5a Turma, HC 100.792/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 28/05/2008, DJe 30/06/2008; STJ, 5a Turma, HC 93.125/CE, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 04/09/2008, DJe 29/09/2008. 603. STF, 2a Turma, HC 94.016/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 038 26/02/2009. Em sentido contrário: STJ, 5aTurma, HC 90.331/SP, Rei. Min.

Laurita Vaz, DJe 04/05/2009). Em julgados mais recentes, todavia, a 5a Turma do STJ vem entendendo que, apesar de os interrogatórios serem realizados separadamente, a inquirição complementar pode ser feita não apenas pelo defensor do interrogando e pelo Ministério Público, mas também pelos advogados dos demais corréus: STJ, 5aTurma, HC 198.668/ SC, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 04/09/2012, DJe 18/09/2012.

604. STF, 2a Turma, HC 90.830/BA, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 071 22/04/2010.

605. Quanto à realização de audiência de instrução, com a colheita do depoimento de testemunhas, sem a presença física do acusado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que sua ausência não configura nulidade, se a ela tiver comparecido seu defensor e não lhe tenha sobrevindo qualquer prejuízo: STJ, HC 131,655/SP, Rei.

Min. Felix Fischer, j. 09/03/2010.

do colaborador, o de participar das audiências sem contato visual com os outros acusados (art. 5o, IV), do que se conclui que a observância do art. 217 do CPP seria praticamente uma medida de observân­ cia obrigatória nas hipóteses em que o colaborador participar da audiência.

13.12.1. A implicação do acordo na ordem de manifestação dos acusados Em importante precedente da 2a Turma do STF,606 proferido antes da entrada em vigor do Pa­ cote Anticrime, concluiu-se que, na eventualidade de o processo envolver vários acusados, dentre eles alguns que tenham firmado acordo de colabora­ ção premiada e outros que tenham sido por eles delatados, não se revelaria possível a apresenta­ ção, em prazo comum, dos memoriais de todos os acusados, sob pena de violação à ampla defesa e ao contraditório. Na visão daquele colegiado, a despeito de não haver previsão legal nesse sentido à época, a peça defensiva do delatado obrigatoria­ mente deveria ser apresentada tão somente após a apresentação dos memoriais da acusação, pouco importando a qualificação jurídica do agente acu­ sador: Ministério Público ou corréu colaborador. Permitir, pois, o oferecimento de memoriais escri­ tos de réus colaboradores, de forma simultânea ou depois da defesa — sobretudo no caso de utilização desse meio de prova para prolação de édito condenatório — comprometería o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder reagir às manifes­ tações acusatórias.

Esse entendimento jurisprudencial acabou sen­ do positivado pelo Pacote Anticrime. Com efeito, eis o teor do art. 4o, §10-A, da Lei n. 12.850/13, incluído pela Lei n. 13.964/19: “§10-A Em todas as fases do processo, deve-se garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou”. De se notar que o dispositivo não diz respeito apenas à ordem de apresentação dos memoriais. Refere-se, generi­ camente, a todas as fases do processo, determinando que o acusado delatado deva ter a oportunidade de se manifestar após o delator, daí por que se pode compreender que tal sistemática também é válida, por exemplo, para o interrogatório, a significar, por­ tanto, que o delatado deve ter a oportunidade de exercer seu direito de audiência tão somente depois da oitiva do colaborador. 606.STF, 2a Turma, HC 157.627 AgR/PR, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27/08/2019.

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13.13. Acordo de colaboração premiada Até bem pouco tempo atrás, não havia nenhum dispositivo legal que cuidasse expressamente do acordo de colaboração premiada. Por consequência, a colaboração premiada era feita verbal e informal mente com o investigado, que passava a ter, então, mera expectativa de premiação se acaso as informa­ ções por ele repassadas aos órgãos de persecução penal fossem objetivamente eficazes para atingir um dos objetivos listados nos diversos dispositivos legais que cuidam da matéria. Sem embargo do silêncio da Lei, diversos acordos de colaboração premiada passaram a ser celebrados entre Promotores de Justiça (Procura­ dores da República) e investigados (ou acusados), sempre com a presença da defesa técnica. Para tan­ to, utilizava-se como fundamento jurídico o art. 129, inciso I, da Constituição Federal, os artigos 13 a 15 da Lei 9.807/99, os demais dispositivos específicos de cada uma das leis citadas, a depen­ der da espécie de crime, e o art. 313, II, do novo CPC, aplicado subsidiariamente ao processo penal, com fundamento no art. 3o do Código de Proces­ so Penal. O procedimento adotado para a pactuação e implantação desse acordo fora construído a partir do direito comparado, de regras do direito internacional (art. 26 da Convenção de Palermo e art. 37 da Convenção de Mérida) e da aplicação analógica de institutos similares como a transação penal e a suspensão condicional do processo, o acordo de leniência previsto na Lei n° 12.529/11, e o termo de compromisso previsto no art. 60 da Lei n° 12.651/12 (Código Florestal).607

Por mais que a existência desse acordo não seja condição sine qua non para a concessão dos prê­ mios legais decorrentes da colaboração premiada, sua celebração é de fundamental importância para a própria eficácia do instituto. Afinal, a lavratura desse pacto entre acusação e defesa confere mais segurança e garantias ao acusado, que não ficará apenas com uma expectativa de direito, que, ausente o acordo, poderia ou não ser reconhecida pelo ma­ gistrado. Ainda que esse acordo de colaboração pre­ miada não tenha sido formalizado durante o curso da fase investigatória, é perfeitamente possível que o Ministério Público, por ocasião do oferecimento da peça acusatória, formule proposta de colaboração premiada a um dos denunciados, com requerimento 607. Nesse contexto: Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juizes

das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Org. José Paulo Baltazar Júnior, Sérgio Fernando Moro; Abel Fernandes Gomes et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. p. 157.

de sua oitiva (e da defesa técnica), com subsequente apreciação pelo juiz.608

Diante das características do acordo de colabo­ ração premiada e da necessidade de distanciamento do Estado-juiz do cenário investigativo, não há falar em direito líquido e certo a compelir o ministério público à celebração do referido negócio jurídico. Ora, cuida-se de ato voluntário por essência, insus­ cetível de imposição judicial. Prova disso, aliás, é o teor do art. 4o, §6°, da Lei n. 12.850/13, segundo o qual o juiz não pode participar das negociações rea­ lizadas entre as partes. Portanto, com fundamento no sistema acusatório (CPP, art. 3°-A), cabe exclu­ sivamente ao Promotor de Justiça avaliar a conve­ niência e a oportunidade de celebração do ato nego­ ciai, sem prejuízo de eventual escrutínio no seio do próprio Ministério Público, aplicando-se, por ana­ logia, o art. 28 do Código de Processo Penal. Sem embargo, é possível afirmar que o acusado ostenta um direito subjetivo à colaboração, aí compreen­ dida como atividade, e não como negócio jurídico, comportamento processual este que estará sujeito ao oportuno exame do Poder Judiciário, por ocasião da sentença. Isso, todavia, não se estende, necessaria­ mente, ao âmbito negociai. É dizer, uma coisa é o direito subjetivo à colaboração e, em contrapartida, a percepção de sanção premial correspondente a ser concedida pelo Poder Judiciário. Situação diversa é a afirmação de que a atividade colaborativa traduz a imposição do Poder Judiciário ao Ministério Pú­ blico para fim de celebrar acordo de colaboração ainda que ausente voluntariedade ministerial. Aliás, mesmo antes do advento da Lei n. 12.850/13, diver­ sos diplomas normativos já previam a possibilidade de concessão de sanção premial sem a exigência da celebração de acordo de colaboração, o qual, embora confira maior segurança jurídica à esfera do cola­ borador, não se revela indispensável à mitigação da pretensão punitiva. Portanto, independentemente da formalização de ato negociai, persiste a possibi­ lidade, em tese, de adoção de postura colaborativa e, ainda em tese, a concessão judicial de sanção pre­ mial condizente com esse comportamento.609

13.13.1. Proposta para formalização de acordo de colaboração premiada (proffer session ou queen for a day) As tratativas que antecedem a celebração de um acordo de colaboração premiada são marcadas 608. Admitindo a possibilidade de a proposta de colaboração premia­ da ser oferecida por ocasião do oferecimento da denúncia: STJ, 5a Turma,

Rei. Min. Laurita Vaz, j. 18/08/2005, DJ 0/10/2005, p. 291. 609. Com esse entendimento: STF, 2a Turma, MS 35.693 AgR/DF, Rei.

Min. Edson Fachin, j. 28/05/2019.

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por uma enorme tensão, haja vista a natural des­ confiança inicial entre o Ministério Público e o investigado, sempre assistido por seu defensor. De um lado, o órgão ministerial costuma ter eviden­ te receio de assumir o compromisso de solicitar a concessão de um prêmio legal ao colaborador se ainda não tem em mãos maiores detalhes acerca do possível grau de colaboração do investigado com a persecução penal. Do outro, o colaborador certamente também não se sentirá muito confor­ tável em municiar o órgão ministerial com todas as informações de que dispõe (v.g., gravações clan­ destinas, extratos bancários, números de telefones a serem objeto de interceptação), isso sem contar na autoincriminação, se não tem nenhum acordo formalizado com o órgão acusador.

Em sua redação original, a Lei n. 12.850/13 si­ lenciava acerca do assunto. Sem embargo visando outorgar um grau maior de confiança a essas ne­ gociações preliminares, típicas de um verdadeiro pré-contrato, a doutrina610 sempre fez referência à possibilidade de ser celebrado um pré-acordo, um trato preliminar, por meio do qual o investigado fornecería uma pequena amostra das evidências probatórias que possuía, recebendo dos órgãos persecutórios o compromisso de não as utilizar pelo menos enquanto o acordo de colaboração premiada não fosse efetivamente celebrado. Esclarecedora, nesse sentido, a lição de Andrey Borges de Mendonça: “firmado um pré-acordo, in­ dicando que as provas produzidas antes da concreti­ zação do acordo não poderão ser usadas, o que deve ser respeitado. Assim, para que o réu/investigado colaborador não fique em situação desconfortável, enquanto o acordo não for formalizado, o membro do MP não deve utilizar, em hipótese alguma, os elementos e provas apresentados nestas reuniões preliminares pelo colaborador em seu desfavor. Nos EUA são chamadas proffer session, também deno­ minadas ‘queen for a day (rainha por um dia). E caso o acordo não se concretize ao final, deve-se desconsiderar todas as informações apresentadas pelo colaborador durante as tratativas. Do contrá­ rio, haveria afronta ao dever de lealdade, que deve pautar a atuação do membro do MP. Assim, somente após a realização do acordo definitivo (por escrito e homologado) é que o membro estará autorizado a utilizar das provas e elementos apresentados pelo colaborador”.611 610. MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. 3a ed. São

Ante o vazio legislativo até então existente, as 2a e 5a Câmaras de Coordenação e Revisão do Minis­ tério Público Federal deliberaram por expedir uma orientação - Orientação conjunta n. 1/2018 - a ser observada na celebração e assinatura de acordos de colaboração premiada. E é exatamente dessa Orien­ tação Conjunta que foi extraída praticamente a integralidade dos arts. 3°-B a 3°-C da Lei n. 12.850/13, aí introduzidos por força do Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/19).

De fato, o art. 3°-B da Lei das Organizações Criminosas passou a dispor que o recebimento da proposta para formalização de acordo de colabo­ ração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documen­ to que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial. Como se pode notar, não é a lavratura do termo de confidencialidade que delimita o início das negociações e, por consequência, o dever de resguardar o sigilo. Na verdade, tão logo recebida a proposta já se tem por iniciadas as negociações, impondo-se a todos o respeito ao sigilo e à boa-fé. Tal sigilo só poderá ser levantado mediante prévia autorização judicial, nos termos do art. 7o, §3°, da Lei n. 12.850/13.

Essa proposta para formalização do acordo de colaboração pode ser firmada pessoalmente pela parte que pretende a colaboração, devidamente assistida por advogado (ou defensor público), ou pode ser oferecida pelo próprio profissional da advocacia, hipótese em que a proposta deve estar instruída com procuração com poderes específicos para iniciar o procedimento de colaboração e suas tratativas (Lei n. 12.850/13, art. 3°-C, caput). Jus­ tifica-se todo esse cuidado com a procuração com poderes especiais, não apenas para fins de se evitar eventuais questionamentos quanto a eventual crime de denunciação caluniosa (CP, art. 339, caput, com redação determinada pela Lei n. 14.110/20) ou cola­ boração caluniosa ou fraudulenta (Lei n. 12.850/13, art. 19), mas também para que se tenha certeza de que a proposta reflete, com segurança, a vontade do agente colaborador.

Confere-se, assim, papel de proeminência à defesa no início da negociação. A ela incumbe convencer a autoridade policial (ou ministerial) da relevância das informações e elementos de prova de maneira suficiente para justificar a celebração do acordo. Esse aspecto é relevante porque, como

Paulo: Método, 2017. p. 187.

611. MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei n. 12.850/13). Custos Legis - Revista Eletrônica

do Ministério Público Federal, v. 4, 2013.

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todo e qualquer contrato, necessita-se que ambas as partes tenham interesse na sua celebração. Com o acordo de colaboração premiada, não seria dife­ rente. Sem embargo de o legislador ter outorgado apenas à defesa a possiblidade de oferecer a proposta de colaboração premiada, daí não se pode concluir que os órgãos persecutórios responsáveis pela in­ vestigação - Polícia ou Ministério Público - estejam impedidos de provocar a manifestação do investiga­ do ou de seu defensor, orientando-os, por exemplo, quanto aos prêmios legais passíveis de negociação.

O fato de a defesa ter apresentado uma propos­ ta para formalização de um acordo de colaboração premiada, porém, não obriga o órgão ministerial (ou o Delegado de Polícia) a aceitá-la. Com efeito, é perfeitamente possível que a autoridade policial (ou ministerial) não tenha qualquer interesse em celebrar tal acordo com o proponente, seja porque já dispõe de fartos e robustos elementos de infor­ mação acerca da autoria e materialidade da infra­ ção penal sob investigação, seja por entender que tal agente jamais faria jus à concessão de qualquer prêmio legal (v.g., reincidente específico em crimes hediondos, líder da organização criminosa, etc.). Em tais hipóteses, incumbe ao Ministério Público (ou à autoridade policial) indeferir sumariamente a proposta, com a devida justificativa, cientificando-se o interessado (Lei n. 12.850/13, art. 3°-B, §1°).

Lado outro, se a proposta não for sumaria­ mente indeferida, as partes deverão firmar Termo de Confidencialidade para o prosseguimento das tratativas, o que vinculará os órgãos envolvidos na negociação e impedirá o indeferimento posterior sem justa causa (Lei n. 12.850/13, art. 3°-B, §2°). A importância atribuída à confidencialidade é justi­ ficada pela importância do sigilo para o sucesso da tarefa de colheita de elementos probatórios, lógica presente também em outros meios de obtenção de prova (v.g., interceptação ambiental, busca domi­ ciliar, etc.).

Como se pode notar, na eventualidade de a pro­ posta não ser sumariamente indeferida, as partes es­ tarão vinculadas ao termo de confidencialidade por elas firmado, sendo vedado ulterior indeferimento posterior sem qualquer justificativa. Respeita-se, assim, o dever de lealdade e o princípio da boa-fé. O dispositivo, porém, deixa entrever que, havendo justa causa, é possível ulterior indeferimento da pro­ posta. É o que ocorre, por exemplo, se, a despeito do oferecimento da proposta, o colaborador-proponente não cessar seu envolvimento com a conduta ilícita relacionada ao objeto da proposta.

O recebimento da proposta (art. 3°-B, caput) e a subscrição do próprio termo de confidencialidade para prosseguimento das tratativas (art. 3°-B, §2°) não implicam, por si sós, a suspensão da investiga­ ção. O que a lei permite às partes é a celebração de um acordo em contrário exclusivamente quanto à propositura de medidas processuais penais caute­ lares (v.g., busca domiciliar) e assecuratórias (v.g., sequestro), bem como medidas processuais cíveis admitidas pela legislação processual civil em vigor.

À semelhança do acordo de colaboração pre­ miada - art. 4o, §15, da Lei n. 12.850/13 -, nenhu­ ma tratativa sobre colaboração premiada poderá ser realizada sem a presença de advogado constituído ou defensor público, sendo que, na eventualidade de um conflito de interesses (v.g., o advogado não concorda com a intenção do cliente de celebrar um acordo de colaboração premiada), ou de colabora­ dor hipossuficiente, o celebrante deverá solicitar a presença de outro advogado ou a participação de defensor público (Lei n. 12.850/13, art. 3°-C, §§1° e 2o). Os termos de recebimento de proposta de co­ laboração e de confidencialidade serão elaborados pelo celebrante e assinados por ele, pelo colaborador e pelo advogado ou defensor público com poderes específicos.

Por ocasião do oferecimento dessa proposta, in­ cumbe ao colaborador-proponente narrar todos os fatos ilícitos para os quais concorreu e que tenham relação com os fatos investigados. Deverá, ademais, instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando as provas e os elementos de corroboração. Quanto a esse dever de instrução da proposta de colaboração, especial atenção deve ser dispensada à Orientação Conjunta n. 1/2018 do MPF, in verbis: “Art. 13.1. Cada fato típico descrito ou conjunto de fatos típicos intrinsecamente ligados deverá ser apresentado em termo próprio e apartado (anexo) a fim de manter o necessário sigilo sobre cada um deles e possibilitar sua investigação indi­ vidualizada; 13.2. Os anexos devem conter, no mí­ nimo, os seguintes elementos: a) descrição dos fatos delitivos; b) duração dos fatos e locais de ocorrência; c) identificação de todas as pessoas envolvidas; d) meios de execução do crime; e) eventual produto ou proveito do crime; f) potenciais testemunhas dos fatos e outras provas de corroboração existentes em relação a cada fato e a cada pessoa; g) estimativa dos danos causados”. Na hipótese desses elementos de corroboração não evidenciarem, de plano, o grau de utilidade e eficácia da colaboração, admite-se que a lavratura

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do acordo de colaboração premiada seja precedida por uma instrução preliminar. É nesse sentido, aliás, o art. 3°-B, §4, da Lei n. 12.850/13, segundo o qual “o acordo de colaboração premiada poderá ser pre­ cedido de instrução, quando houver necessidade de identificação ou complementação de seu objeto, dos fatos narrados, sua definição jurídica, relevância, utilidade e interesse público”. Se, a despeito dessa instrução preliminar, o celebrante (Ministério Público/Polícia) deliberar por não levar adiante a celebração do acordo, não lhe será permitido se valer de nenhuma das infor­ mações ou provas apresentadas pelo colaborador, de boa-fé-, para qualquer finalidade. Consagra-se, assim, como exposto anteriormente, o denominado queen for a day, em fiel observância ao dever de lealdade e boa-fé que deve nortear a atuação dos órgãos persecutórios. Por outro lado, se as partes acordarem em relação à celebração da colaboração premiada, a avença terá seguimento regular, com a devida formalização do acordo, do qual deverão constar todas as informações essenciais para a iden­ tificação do pacto e de seus elementos, definindo as obrigações e os direitos das partes negociantes.

13.13.2. Conteúdo do acordo de colaboração premiada Na dicção da doutrina, “o termo de acordo de colaboração premiada pode ser considerado um compromisso de ambas as partes celebrantes de que cumprirão o que nele estiver especificado, seja por parte do agente colaborador, compromissado em contribuir para a atividade de persecução pe­ nal da autoridade estatal, seja por parte da própria autoridade, compromissada a respeitar os direitos conferidos ao colaborador a partir da pactuação”.612

Atento à importância do acordo de colaboração premiada, a Lei n° 12.850/13 resolveu, enfim, dis­ por expressamente sobre o assunto. Tal regramento também pode ser aplicado, por analogia, às demais hipóteses de colaboração premiada anteriormen­ te citadas. Consoante disposto no art. 6o da Lei n° 12.850/13, o termo de acordo da colaboração pre­ miada deverá ser feito por escrito e conter: I - o relato da colaboração e seus possíveis re­ sultados: de modo a aferir a relevância da coopera­ ção do agente, deverá constar do acordo uma síntese das informações por ele repassadas às autoridades incumbidas da persecução penal. Por consequência, 612. CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Colaboração premiada: lições práticas e teóricas de acordo com ajurisprudência do Supre­ mo Tribunal Federal. 2a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 66.

se o colaborador apontar os demais coautores ou partícipes do fato delituoso e as infrações penais por eles praticadas (Lei n° 12.850/13, art. 4o, I), tais informações deverão constar do instrumento do acordo. O dispositivo legal sob comento faz refe­ rência aos possíveis resultados porquanto a eficácia objetiva das informações por ele repassadas deverá ser confirmada pelo magistrado, pelo menos em regra, por ocasião de eventual sentença condena­ tória. Nessa linha, dispõe o art. 4o, § 11, da Lei n° 12.850/13, que a sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia; II - as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia: considerando a diversidade de prêmios legais passíveis de concessão ao colaborador (v.g., diminuição da pena, substitui­ ção da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, progressão de regimes, perdão judicial), deve constar do acordo uma indicação específica do benefício com o qual o colaborador será agraciado na hipótese de as informações por ele repassadas às autoridades levarem à consecução de um dos resul­ tados listados nos incisos do art. 4o;

III - a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor: consoante disposto no art. 4o, § 15, da Lei n° 12.850/13, em todos os atos de nego­ ciação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor. Por consequência, para se emprestar validade ao acordo de colaboração premiada, e até mesmo para se aferir sua voluntariedade, condição sine qua non para sua homologação (Lei n° 12.850/13, art. 4o, § 7o), faz-se necessária não apenas a declaração de aceitação do colaborador, mas também a anuência de seu defen­ sor. Na hipótese de o colaborador ser estrangeiro incapaz de se comunicar na língua pátria, deverá ser nomeado tradutor, nos termos do art. 236 do CPP; IV - as assinaturas do representante do Mi­ nistério Público ou do Delegado de Polícia, do colaborador e de seu defensor: o acordo de co­ laboração premiada deve ser subscrito pelo órgão do Ministério Público que detém atribuições para atuar no caso concreto, pelo Delegado de Polícia, pelo colaborador e por seu defensor, sob pena de ser considerado inexistente. Em se tratando de co­ laborador analfabeto, tal fato deverá ser consignado no termo, ex vi do art. 195 do CPP; V - a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessá­ rio: o art. 5o da Lei n° 12.850/13 prevê uma série de direitos do colaborador, dentre eles a possibilidade de usufruir das medidas de proteção previstas na Lei n° 9.807/99. Se as partes envolvidas na celebração

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do acordo concluírem que há risco potencial à in­ tegridade física (ou vida) do colaborador e de seus familiares, as medidas de proteção a serem adotadas deverão constar expressamente do acordo. Apesar de o art. 6o, V, da Lei n° 12.850/13, dar a impressão (equivocada) de que, por ocasião da homologação do acordo, seria o magistrado a autoridade compe­ tente para a aplicação dessas medidas de proteção, o ingresso de acusado colaborador nos programas de proteção instituídos pela Lei n° 9.807/99 fica a critério de um Conselho Deliberativo, após mani­ festação do Ministério Público. Portanto, onde se lê “especificação das medidas de proteção ao colabora­ dor e à sua família”, deve-se entender que, uma vez homologado o acordo de colaboração premiada, o magistrado poderá apenas encaminhar a solicitação de proteção ao Conselho mencionado, nos termos do art. 5o, IV, da Lei n° 9.807/99.613 De modo a resguardar o exercício da mais am­ pla defesa, durante todos os atos de negociação, con­ firmação e execução da colaboração, é indispensável a presença de defensor (Lei n° 12.850/13, art. 4o, § 15). Diretamente responsável pelo aconselhamento do possível colaborador, é evidente que o Defen­ sor deverá ter pleno acesso a todos os elementos de informação já produzidos contra seu cliente, até mesmo de modo a permitir um juízo mais seguro quanto aos riscos do processo e, consequentemente, vantagens de se aceitar um acordo de colaboração premiada.

É firme a jurisprudência no sentido de que, pelo menos em regra, eventual coautor ou partíci­ pe dos crimes praticados pelo colaborador não têm legitimidade para impugnar o acordo de colabora­ ção. Afinal, trata-se de negócio jurídico processual personalíssimo. Na verdade, o contraditório em relação aos delatados será estabelecido tão somen­ te nos processos penais instruídos com as provas produzidas pelo colaborador.614

Muito se discute acerca da possibilidade de se inserir no acordo de colaboração premiada cláusulas 613. De acordo com o art 4° da Lei n° 9.807/99, esse conselho delibera­ tivo responsável pela direção dos programas de proteção será composto por representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário e de órgãos públicos e privados relacionados com a segurança pública e a defesa dos direitos humanos. 614. STF, Pleno, HC 127.483/PR, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 27/08/2015.

Ainda que seja negada ao delatado, pelo menos em regra, a possibili­ dade de impugnar o acordo, esse entendimento não se aplica quando a impugnação disser respeito à competência da autoridade judiciária para a homologação do acordo (v.g., foro por prerrogativa de função). Por isso, a 2aTurma do STF concluiu pela ineficácia de colaboração premiada feita

contra um Governador de Estado que não fora submetida à homologação perante o Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido: STF, 2a Turma, HC

151.605/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20/03/2018.

expressas renunciando ao direito de recorrer, inclu­ sive para fins de impugnação do próprio negócio jurídico processual. De um lado, há quem entenda não haver qualquer óbice. Seriam, na verdade, mero desdobramento de princípios afeitos aos negócios jurídicos em geral, dentre eles o respeito à vedação de comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium). Tais cláusulas estariam inseridas, portanto, no âmbito de liberdade e de disponibili­ dade que o colaborador detém na celebração de ne­ gócios jurídicos. A propósito, é nesse sentido o item 33 da Orientação Conjunta n. 1/2008 do Ministé­ rio Público Federal: “O acordo de colaboração deve prever a recorribilidade da sentença condenatória ou absolutória somente na parte que extrapolar os limites do acordo, como desdobramento do princí­ pio do nemo potest venire contra factum proprium”. Esse entendimento não encontra ressonância nos Tribunais Superiores. Com efeito, em importan­ te precedente acerca do assunto, o Min. Teori Zavascki (Petição n. 5.209/STF) decotou de um acordo cláusula que estipulava a renúncia pelo colaborador ao direito de recorrer em caso de condenação, em razão de configurar uma lesão “ao pleno exercício, no futuro, do direito fundamental de acesso à Justi­ ça, assegurado pelo art. 5o, XXXV, da Constituição”. É dentro desse contexto que deve ser compreendido o art. 4o, §7°-B, da Lei n. 12.850/13, incluído pela Lei n. 13.964/19: “§7°-B. São nulas de pleno direito as previsões de renúncia ao direito de impugnar a de­ cisão homologatória”. Conquanto o dispositivo não faça qualquer referência nesse sentido, é de rigor a conclusão de que seus dizeres são aplicáveis apenas às partes. Isso porque, como exposto anteriormente, é firme a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de concluir que, por se tratar de negócio jurídico processual personalíssimo, eventuais coau­ tores e partícipes dos crimes praticados pelo cola­ borador não têm interesse para impugnar o acordo por ele firmado.

13.13.3. Legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada Quanto à legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada, especial atenção deve ser dispensada a dois dispositivos constantes da Lei n° 12.850/13. Primeiro, ao art. 4o, § 2o, que dispõe que o Ministério Público, a qualquer tem­ po, e o Delegado de Polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela con­ cessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do

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CPP. Segundo, ao art. 4o, § 6o, segundo o qual o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o Delegado de Po­ lícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

Como se percebe, os dois dispositivos legais deixam entrever que um acordo de colaboração premiada poderia ser celebrado entre o Delegado de Polícia e o acusado, assegurada a presença de seu defensor, com a simples manifestação do Ministério Público. De modo a conferir maior efetividade à colabo­ ração premiada, tanto a autoridade policial, durante o inquérito policial, quanto o Ministério Público, a qualquer tempo, devem alertar os indiciados (e acu­ sados) sobre a possível pena a que estarão sujeitos em caso de condenação e sobre os benefícios que poderão obter em caso de colaboração efetiva. A fim de se evitar qualquer prejuízo à voluntariedade da colaboração premiada, essas tratativas devem ser implementadas de maneira prudente, evitando-se, assim, possíveis arbitrariedades, além de se preser­ var a liberdade de autodeterminação do possível colaborador.615

No entanto, por mais que a autoridade policial possa sugerir ao investigado a possibilidade de cele­ bração do acordo de colaboração premiada, daí não se pode concluir que o Delegado de Polícia tenha legitimação ativa para firmar tais acordos com uma simples manifestação do Ministério Público. Por mais que a Lei n° 12.850/13 faça referência à manifesta­ ção do Ministério Público nas hipóteses em que o acordo de colaboração premiada for “firmado pelo Delegado de Polícia”, esta simples manifestação não tem o condão de validar o acordo celebrado exclu­ sivamente pela autoridade policial. Isso porque a Lei n° 12.850/13 não define bem o que seria essa manifestação, que, amanhã, poderia ser interpretada como um simples parecer ministerial, dando ensejo, 615. Nesse sentido se manifestam Paulo José F.Teotônio e MarcusTúlio A Nicolino: "Deve-se evitar, entretanto, a presença de estranhos, dentre eles até mesmo advogados, que nâo sejam os relacionados com a defesa do colaborador, até para própria garantia de vida e segurança do delator. No que pertine à garantia citada, ademais, vale anotar que o conteúdo da colaboração não deva ser exteriorizado nos autos, muito menos ser objeto da instrução probatória. Com efeito, seria um contrassenso, uma verdadeira insensatez, a exigência de produção de prova, no que con­ cerne ao conteúdo da colaboração ou delação, posto que tornaria letra morta o dispositivo em referência, não sendo este, a nosso ver, o espírito da existência do preceito do diploma legal", (in O Ministério Público e a colaboração premiada. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano IV, n° 21, ago.-set. 2003).

assim, à celebração de um acordo de colaboração premiada pela autoridade policial ainda que o órgão ministerial discordasse dos termos pactuados. Se é verdade que a autoridade policial tem in­ teresse em obter informações relevantes acerca do funcionamento da organização criminosa através dessa importante técnica especial de investigação, é inconcebível que um acordo de colaboração premiada seja celebrado sem a necessária interveniência do titular da ação penal pública. Quan­ do a Constituição Federal outorga ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública (art. 129,1), também confere a ele, com exclusividade, o juízo de viabilidade da persecução penal através da valoração jurídico-penal dos fatos que tenham ou possam ter qualificação criminal. Destarte, diante da possibilidade de o prêmio legal acordado com o investigado repercutir diretamente na pretensão punitiva do Estado (v.g., perdão judicial), não se pode admitir a lavratura de um acordo de colabo­ ração premiada sem a necessária e cogente inter­ venção do Ministério Público como parte princi­ pal, e não por meio de simples manifestação.

De mais a mais, ainda que o acordo de cola­ boração premiada seja celebrado durante a fase in­ vestigatória, sua natureza processual resta eviden­ ciada a partir do momento em que a própria Lei n° 12.850/13 impõe a necessidade de homologação judicial (art. 4o, § 7o). Por consequência, se a auto­ ridade policial é desprovida de capacidade postulatória e legitimação ativa, não se pode admitir que um acordo por ela celebrado com o acusado venha a impedir o regular exercício da ação penal públi­ ca pelo Ministério Público, sob pena de se admitir que um dispositivo inserido na legislação ordiná­ ria possa se sobrepor ao disposto no art. 129,1, da Constituição Federal. Nesse contexto, como observa Pacelli, “se o sis­ tema processual penal brasileiro sequer admite que a autoridade policial determine o arquivamento de inquérito policial, como seria possível admitir, ago­ ra, a capacidade de atuação da referida autoridade para o fim de: a) extinguir a persecução penal em relação a determinado agente, sem a consequen­ te legitimação para promover a responsabilidade penal dos demais (delatados), na medida em que cabe apenas ao parquet o oferecimento de denúncia; b) viabilizar a imposição de pena a determinado agente, reduzida ou com a substituição por restritiva de direito, condicionando previamente a sentença judicial; c) promover a extinção da punibilidade do

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fato, em relação a apenas um de seus autores ou partícipes, nos casos de perdão judicial”.616 Firmada a premissa de que a autoridade poli­ cial, por si só, não tem legitimidade para celebrar um acordo de colaboração premiada, deverá o juízo competente recusar-se a homologar o acordo cele­ brado exclusivamente pelo Delegado de Polícia, nos termos do art. 4o, § 7o, I, da Lei n° 12.850/13, que dispõe que o juiz é obrigado a verificar a legalidade do acordo antes de proceder à homologação. Antes, porém, deverá ouvir o órgão ministerial. Afinal, se o Parquet manifestar-se favoravelmente aos termos do ajuste celebrado entre o Delegado de Polícia e o acusado, a legitimidade ativa do Ministério Público para a ação penal pública terá o condão de chan­ celar a validade do acordo, que, na sequência, será submetido pelo órgão ministerial à homologação do juiz competente.

Admitida a legitimidade exclusiva do Ministé­ rio Público para a celebração do acordo de colabora­ ção premiada durante as investigações ou no curso do processo judicial, é importante que haja algum tipo de controle e revisão sobre a atuação ministe­ rial. A sindicabilidade é fundamental nesse ponto, já que não se pode admitir a existência de poderes absolutos, insusceptíveis de controle. Logo, a fim de se evitar que eventual discordância do Ministério Público em face de proposta de acordo de colabo­ ração premiada sugerida pela autoridade policial fique imune a qualquer tipo de controle, é possível a aplicação subsidiária do princípio da devolução inserido no art. 28 do CPP, nos mesmos moldes do que ocorre, por exemplo, em relação à transação pe­ nal e à suspensão condicional do processo (súmula n° 696 do STF). Assim, em caso de discordância do membro do parquet, o Delegado de Polícia e/ou o magistrado devem devolver a apreciação da questão ao órgão superior do Ministério Público, tal qual previsto no art. 4o, § 2o, infine, da Lei n° 12.850/13, que faz referência expressa à possibilidade de apli­ cação, subsidiária, do art. 28 do CPP.617 Não é essa, todavia, a orientação do Supremo Tribunal Federal em relação à matéria. Em recen­ te decisão, o Plenário do STF julgou improceden­ te pedido formulado na ADI 5.508 para assentar a 616. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização da 17a edição do curso de processo penal em virtude da Lei n° 12.850/13. Disponível em: http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao-

-comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-12-85013-2/. Acesso em 05/11 /2013. 617. Para mais detalhes acerca da possibilidade de o juiz continuar aplicando o art. 28, caput, do CPP, mesmo após as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime, remetemos o leitor aoTítulo atinente à Investiga­ ção Preliminar, mais precisamente ao item 14.2.3 - "(In) subsistência da aplicação do art. 28 do CPP pelo juiz nas hipóteses de divergência entre o magistrado e o órgão ministerial".

constitucionalidade dos §§ 2o e 6o do art. 4o da Lei 12.850/2013. A ação impugnava as expressões “e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público” e “entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, confor­ me o caso”, contidas nos referidos dispositivos, que conferem legitimidade ao delegado de polícia para conduzir e firmar acordos de colaboração premiada. In casu, prevaleceu o voto do ministro Marco Aurélio (Relator), no sentido de que o delegado de polícia pode formalizar acordos de colaboração premiada, na fase de inquérito policial, respeitadas as prerrogativas do Ministério Público, o qual deverá se manifestar, sem caráter vinculante, previamente à decisão judicial. Para a Suprema Corte, o art. 4o, §6°, do referido diploma normativo não afasta a participação do Ministério Público em acordo de colaboração premiada, ainda que ocorrido entre o delegado de polícia, o investi­ gado e o defensor. Embora o Ministério Público seja o titular da ação penal de iniciativa pública, não o é do direito de punir. A delação premiada não retira do órgão a exclusividade da ação penal. A norma fixa as balizas a serem observadas na realização do acordo. Estas, porque decorrem de lei, vinculam tanto a polícia quanto o Ministério Público, tendo em vis­ ta que a nenhum outro órgão senão ao Judiciário é conferido o direito de punir. Longe fica o julgador de estar atrelado à dicção do Ministério Público, como se concentrasse a arte de proceder na persecução criminal, na titularidade da ação penal e, também, o julgamento, embora parte nessa mesma ação penal.618 Em conclusão, nada diz a legislação quanto à possibilidade de a proposta de colaboração premia­ da ser oferecida pelo assistente da acusação. Este silêncio eloquente deve ser interpretado no sentido de não se admitir a proposta por ele oferecida. Por mais que as recentes mudanças legislativas tenham ampliado a atuação do assistente no processo pe­ nal, que passou a ter legitimidade para requerer a decretação de medidas cautelares (CPP, art. 311), o desaforamento (CPP, art. 427), etc., fato é que sua habilitação somente é possível durante o curso do processo judicial em crimes de ação penal pública (CPP, art. 268), jamais durante a fase investigató­ ria. Ora, se a colaboração premiada funciona como técnica especial de investigação, seria no mínimo inusitado que se admitisse a intervenção da vítima na busca por fontes de prova, usurpando atribui­ ção investigatória própria das autoridades estatais incumbidas da persecução penal. 618. STF, Pleno, ADI 5.508/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 20/06/2018.

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13.13.4. Retratação do acordo Só se pode falar em acordo quando há con­ vergência de vontades: no caso da colaboração premiada, o Estado tem interesse em informações que só podem ser fornecidas por um dos coautores ou partícipes do fato delituoso; o acusado, por sua vez, deseja ser beneficiado com um dos diversos prêmios legais previstos em lei. Por consequência, antes da homologação do acordo pela autoridade judiciária competente, é perfeitamente possível que as partes resolvam se retratar da proposta, nos ter­ mos do art. 4o, § 10, da Lei n° 12.850/13, hipótese em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclu­ sivamente em seu desfavor.

Como este dispositivo não faz qualquer res­ trição em relação ao responsável pela retratação - “as partes podem retratar-se da proposta (...)” -, tanto o Ministério Público quanto o acusado podem se arrepender da proposta formulada. À evidência, esta retratação só pode ocorrer até a homologação judicial do acordo. Fosse possí­ vel a retratação após sua homologação judicial, o Ministério Público poderia celebrar um falso acordo de colaboração premiada, obtendo, por consequência da homologação judicial, todas as informações necessárias para a consecução de um dos objetivos listados nos incisos do art. 4o da Lei n° 12.850/13, para, na sequência, retratar-se do acordo, privando o colaborador da concessão do prêmio legal acordado.

13.13.5. Distinção entre retratação, rescisão e anulação do acordo de colaboração premiada Como exposto anteriormente, o art. 4o, §10, da Lei n. 12.850/13, versa sobre a retratação, a qual não se confunde com a rescisão, nem tampouco com a anulação do acordo de colaboração premiada.

Retratar-se significa “voltar atrás”, “arrepen­ der-se”. Ocorre, portanto, quando deixa de haver a convergência de interesses. A Lei n. 12.850/13 deixa claro que as partes podem retratar-se da proposta. Isso significa dizer que há um limite temporal para a retratação, qual seja, enquanto se tratar de uma mera proposta. Por conseguinte, se a proposta já tiver sido homologada pelo juízo competente, não mais será cabível a retratação. De mais a mais, ha­ vendo a retratação por qualquer das partes, os ele­ mentos probatórios fornecidos poderão ser usados livremente no curso do processo, salvo em desfavor do colaborador.

Por sua vez, a rescisão do acordo de colabo­ ração premiada ocorre quando uma das partes

- Ministério Público ou acusado - descumprir as obrigações assumidas por ocasião da celebração da avença. Ora, como espécie de negócio jurídico processual, são aplicáveis ao acordo de colaboração premiada alguns dos princípios desenvolvidos no âmbito da teoria do Direito Civil. Dessa forma, iden­ tificam-se no regramento da colaboração premiada, por exemplo, a vigência do princípio da boa-fé e a necessidade de respeito à vedação de comportamen­ tos contraditórios (venire contra factum proprium). Portanto, na eventualidade de inobservância desses princípios, o acordo estará sujeito à rescisão.

Com propriedade, Vinícius Marçal aponta pos­ síveis causas de rescisão do acordo em virtude de fatos atribuídos ao colaborador que age de má-fé: “a) reserva mental (pela qual se sonega a verdade) ou mentira em relação aos fatos em apuração; b) adulteração ou destruição de provas que tinha em seu poder ou sob sua disponibilidade, após a cele­ bração do acordo; c) recusa a prestar informações de seu conhecimento relacionadas ao objeto do acordo; d) recusa a entregar documento ou prova que tenha em seu poder ou sob a guarda de pessoa sujeita a sua autoridade ou influência, salvo se, diante da eventual impossibilidade de obtenção direta de tais documentos ou provas, o colaborador indicar a pes­ soa que o guarda e o local onde poderá ser obtido; e) prática de crime doloso da mesma natureza dos fatos em apuração após a homologação judicial da avença;/) fuga; g) tentativa de furtar-se à ação da Justiça Criminal etc”.619 Relevantes, nesse sentido, as inovações introdu­ zidas pelo Pacote Anticrime na Lei das Organizações Criminosas. De fato, consoante disposto no art. 4o, §17, da Lei n. 12.850/13, o acordo homologado po­ derá ser rescindido em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração. O novel dispositivo deve ser interpretado à luz da Orientação Conjunta n. 1/2018 do Ministério Público Federal, cujo item n. 38 prescreve que “é recomendável a inserção de cláusula com previsão de sanções ao colaborador que omitir informações pontuais, quando a um elemento probatório ou a agentes diversos, circunstância que pode não ensejar, por si só, a rescisão do acordo, caso fornecida a devida complementação e esclarecimen­ tos, independentemente da aplicação de penalidades pela omissão”. Noutro giro, nos exatos termos do art. 4o, §18, da Lei n. 12.850/13, o acordo de colaboração 619. MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. 4a ed. São Paulo: Método, 2018. Marçal também aponta possíveis causas de rescisão por fatos atribuídos ao Parquet: a) quando o Parquet não pugnar pela

concessão dos prêmios legais acordados; b) quando não forem assegu­ rados ao colaborador os direitos previstos no art. 5o da Lei n. 12.850/13; c) quando o Ministério Público violar o caráter sigiloso do acordo.

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premiada pressupõe que o colaborador cesse o envol­ vimento em conduta ilícita relacionada ao objeto da colaboração, sob pena de rescisão. As consequências decorrentes da rescisão de­ pendem da parte que a ela deu causa. Quando a cau­ sa da rescisão puder ser imputada exclusivamente ao colaborador, dar-se-á a perda do prêmio negociado, assim como o aproveitamento integral das provas por ele fornecidas, inclusive as autoincriminatórias. Noutro giro, havendo a rescisão do acordo por fato imputável ao Ministério Público, “o colaborador po­ derá, a seu critério, fazer cessar a cooperação, asse­ gurada a manutenção dos benefícios concedidos e as provas já produzidas”.620

De se notar, portanto, que a rescisão do acordo de colaboração premiada por responsabilidade ex­ clusiva do colaborador não tem o condão de acar­ retar a invalidação do conjunto probatório por ele fornecido. A propósito, em importante decisão acer­ ca do assunto pelo Plenário do Supremo em caso concreto envolvendo a colaboração de integrantes de determinado grupo empresarial, concluiu-se que a possibilidade de rescisão ou de revisão, total ou parcial, de acordo de colaboração premiada, de­ vidamente reconhecido pelo Poder Judiciário, em decorrência de descumprimento de deveres assumi­ dos pelo colaborador, não propicia conhecer e julgar alegação de imprestabilidade das provas, porque a rescisão ou revisão tem efeitos somente entre as partes, não atingindo a esfera jurídica de terceiros.621 Por fim, opera-se a anulação do acordo de co­ laboração premiada quando esse negócio jurídico processual estiver contaminado por algum defeito (CC, art. 166), tal como: a) não participação do de­ fensor em todos os atos de negociação, confirma­ ção e execução da colaboração, violando-se a regra do art. 4o, §15, da Lei n. 12.850/13; b) ausência de voluntariedade do colaborador em participar da avença, como pode se dar se acaso comprovada eventual constrangimento por parte da Polícia ou do Ministério Público; c) não advertência quanto ao direito ao silêncio.

Reconhecida a nulidade do acordo de colabo­ ração premiada, seja no momento da homologação da avença pela autoridade judiciária - o art. 4o, §7°, 620. FONSECA, Cibele Benevides Guedes. Colaboração premiada. Belo

incisos I e IV, da Lei n. 12.850/13, prevê que, uma vez realizado o acordo, o termo será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade -, seja por ocasião da decisão final do processo - à luz do art. 966, §4°, do novo CPC, os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros par­ ticipantes do processo e homologados pelo juízo estão sujeitos à anulação, nos termos da lei622 -, a consequência inevitável será o reconhecimento da ilicitude de todas as provas fornecidas pelo colabo­ rador e daquelas daí derivadas (teoria dos frutos da árvore envenenada). Destarte, na eventualidade de restar comprovado que um dos integrantes de uma organização criminosa fora constrangido a firmar um acordo de colaboração premiada em virtude de ameaças a seus familiares, tendo, por força disso, identificado os demais coautores e partícipes do grupo e apontado a localização do produto direto e indireto da infração penal, a anulação do negócio jurídico acarretará o reconhecimento da ilicitude das provas e daquelas daí derivadas, nos termos do art. 157, caput e §1°, do CPP. De se notar, portanto, que a anulação do acordo de colaboração premiada diferencia-se da rescisão por tal motivo: enquanto a anulação da avença traz, como efeito inexorável, o reconhecimento da ilicitude das provas forneci­ das pelo colaborador, a rescisão causada pela má-fé do colaborador não impede o aproveitamento dos elementos de prova provenientes da colaboração, inclusive aqueles autoincriminatórios.

13.13.6. Intervenção do juiz O magistrado não deve presenciar ou partici­ par das negociações, enfim, não deve assumir um papel de protagonista das operações referentes ao acordo de colaboração premiada, sob pena de evi­ dente violação do sistema acusatório (CF, art. 129, I). Ora, se o magistrado presenciar essa tratativa anterior à colaboração, na hipótese de o acusado confessar a prática do delito, mas deixar de prestar outras informações relevantes para a persecução penal, inviabilizando a celebração do acordo, é in­ tuitivo que o magistrado não conseguirá descartar mentalmente os elementos de informação dos quais tomou conhecimento, o que poderia colocar em ris­ co sua imparcialidade objetiva para o julgamento

Horizonte: Dei Rey, 2017, p. 158. 621. STF, Pleno, Inq. 4.483 QO/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 21/09/2017.

No sentido de que a rescisão do acordo de colaboração premiada não é causa de nulidade das provas, nem tampouco impede a investigação dos fatos noticiados pelos colaboradores, considerados os requisitos do art. 4o, §7°, da Lei n. 12.850/13: STF, 1a Turma, Inq. 4.506/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 17/04/2018.

622. Reconhecendo a possibilidade de a autoridade judiciária analisar fatos supervenientes ou de conhecimento posterior capazes de ferir a legalidade do acordo de colaboração premiada, nos termos do art. 966, §4°, do novo CPC: STF, Pleno, Pet 7.074/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 21, 22, 28 e 29/06/2017 (Informativo n. 870 do STF).

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da causa.623 A propósito, o art. 4o, § 6o, da Lei n° 12.850/13, dispõe expressamente que o juiz não par­ ticipará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o Delegado de Polícia, o investiga­ do e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

Se, de um lado, o art. 4o, § 6o, da Lei n° 12.850/13, dispõe que o juiz não poderá participar das negociações realizadas entre as partes, do outro, a parte final do § 8o do art. 4o desse mesmo diploma legal, em sua redação original, estranhamente pre­ via a possibilidade de o juiz adequar a proposta ao acaso concreto. Considerando-se a impossibilidade de o juiz imiscuir-se nas negociações inerentes ao acordo de colaboração premiada, a doutrina sem­ pre entendeu que ao magistrado não se deferia a possibilidade de modificar os termos da proposta, sob pena de evidente violação ao sistema acusatório e à garantia da imparcialidade. Na verdade, o que o magistrado poderia fazer é apenas rejeitar a ho­ mologação de eventual acordo por não concordar com a concessão de determinado prêmio legal, nos termos do art. 4o, § 8o, primeira parte, aguardando, então, que as próprias partes interessadas na ho­ mologação da proposta chegassem a novo acordo quanto ao benefício a ser concedido ao colaborador. Daí se entende o porquê da nova redação conferi­ da ao §8° do art. 4o da Lei n. 12.850/13 pela Lei n. 13.964/19, o qual passou a dispor: “O juiz poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, devolvendo-a às partes para as adequações necessárias”. Firmada a premissa de que o magistrado não deve imiscuir-se nas tratativas anteriores à celebra­ ção da colaboração premiada, havia duas correntes na doutrina acerca da necessidade de homologação desse acordo pela autoridade judiciária competente, pelo menos até o advento da Lei n° 12.850/13:

a) desnecessidade de homologação do acordo pelo juiz competente: havia quem entendesse que não era necessário que o juiz homologasse o acor­ do firmado pelo Ministério Público e pelo acusado na presença de seu defensor. Era nesse sentido o entendimento de Mendonça e Carvalho, que, em momento anterior à vigência da Lei n° 12.850/13, sustentavam que, durante o inquérito ou processo, o colaborador somente teria uma expectativa de

direito, não podendo exigir do magistrado a ob­ servância do acordo realizado;624

b) necessidade de homologação do acordo pelo juiz competente: desde a primeira edição desta obra, sempre nos posicionamos no sentido de que o acordo deve ser submetido ao juiz para homologação, que não poderá deixar de observá-lo por ocasião da sentença, caso o colaborador tenha cumprido todas as obrigações previamente pactua­ das. Considerando-se que, ao celebrar o acordo de colaboração premiada com o Ministério Público, o colaborador assume uma postura incomum para os criminosos, já que se afasta do próprio instinto de conservação (ou autoacobertamento), tanto indivi­ dual quanto familiar, sujeito que fica a retaliações de toda ordem, haveria conduta desleal por parte do Estado-juiz se não lhe fosse concedida a sanção premial inerente à colaboração premiada, violando o próprio princípio da moralidade (CF, art. 37, caput). Daí a importância da homologação pela autorida­ de judiciária, conferindo mais segurança jurídica ao acordo. Se o acordo de colaboração premiada funcionar como mera expectativa de direito para o colaborador, é natural que este não se sinta encora­ jado a experimentar todos os dissabores inerentes a sua traição, o que contribuiría para a redução da eficácia desse importante procedimento investiga­ tório. Por consistir em exercício de atividade de delibação, essa homologação judicial do acordo deve se limitar a aferir sua regularidade, legalidade e voluntariedade (redação original do art. 4o, §7°, da Lei n. 12.850/13), não havendo qualquer juízo de valor a respeito das declarações do colaborador.625 Com o advento da Lei n° 12.850/13, parece não haver mais dúvidas quanto à necessária homologa­ ção judicial do acordo de colaboração premiada, assim compreendida como a formalidade que atesta a regularidade do pacto e a possibilidade de que se dê andamento em seu procedimento com as fases seguintes, leia-se, à colheita das provas com o auxílio do colaborador. Deveras, consoante disposto no art. 4o, § 7o, uma vez realizado o acordo, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colabo­ rador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade e legalidade (inciso I), adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§4° e 5o do art. 4o, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Código Penal, as

623. Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo

Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais - comentá­ rios à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2012. p. 163.

624. Op. cit. p. 198.

625. Nesse contexto: STF, Pleno, HC 127.483, Rei. Min. Dias Toffoli, DJe21 04/02/2016.

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regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei de Execução Penal e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo §5° do art. 4o (inciso II), adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput do art. 4o (inciso III) , e voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares (inciso IV) . À evidência, o magistrado não está obrigado a homologar o acordo. Poderá, como exposto an­ teriormente, recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais (Lei n° 12.850/13, art. 4o, § 8o). Esse provimento interlocutório — o qual não julga o mérito da pretensão acusatória, mas resolve uma questão incidente — tem natureza meramente homologatória. Ao homologar o acordo de colabo­ ração, o juiz não deve emitir juízo de valor a res­ peito das declarações eventualmente prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público, nem conferir o signo da idoneidade a seus depoimentos posteriores. Entendimento contrário colocaria em risco a própria viabilidade do instituto, diante da iminente ameaça de interferência exter­ na nas condições acordadas pelas partes, reduzin­ do de forma significativa o interesse no ajuste. Essa “postura equidistante” do juiz em relação às partes no processo penal informa o citado comando legal que prestigia o sistema acusatório e a garantia da imparcialidade. Se as declarações do colaborador são verdadeiras ou respaldadas por provas de cor­ roboração, esse juízo será feito apenas “no momento do julgamento do processo”, no momento diferido, qual seja, na sentença, conforme previsto no §11 do art. 4o da Lei 12.850/2013. Nessa etapa, serão analisados os elementos trazidos pela colaboração e sua efetividade.626

A propósito, em importante precedente da 2a Turma do STF,627 considerou-se que o juiz teria se investido na função persecutória ainda na fase pré-processual, atuando em reforço à tese acusatória, e não no mero controle de homologação do acor­ do, daí por que se declarou a nulidade da sentença condenatória, seja por violação à imparcialidade do julgador, seja por violação ao sistema acusatório. Nas palavras do Relator (Min. Gilmar Mendes), o simples fato de o juiz ter procedido à homologação de acordos de colaboração ou mesmo ter realizado

as oitivas dos colaboradores não tem o condão de configurar de per si a quebra de sua imparcialidade para o julgamento do acusado ao qual imputados ilícitos no âmbito dos respectivos acordos. Todavia, as circunstâncias particulares do caso demonstra­ ram que o juiz se investiu na função persecutória ainda na fase pré-processual, violando o sistema acusatório. Não houve mera homologação de acor­ do de colaboração premiada para verificação de sua legalidade e voluntariedade, tampouco ocorreu mera produção de prova de ofício pelo julgador. A espécie apresenta especificidades que caracterizam manifesta ilegalidade. Com a redação dada pela Lei 13.964/2019, a Lei n. 12.850/13 passou a esclare­ cer que, após a homologação do acordo, a análise do juiz deve cingir-se ao exame da regularidade e legalidade, da voluntariedade da manifestação, da adequação dos benefícios pactuados. Da leitura das atas de depoimentos, o ministro depreendeu ser evi­ dente a atuação acusatória do julgador. Ao analisar a sequência de atos, verificou a proeminência do magistrado na realização de perguntas ao interro­ gado, as quais fogem completamente ao controle de legalidade e voluntariedade de eventual acordo de colaboração premiada. Avaliou ter havido atua­ ção direta do julgador em reforço à acusação. Logo, não houve mera supervisão dos atos de produção de prova, mas o direcionamento e a contribuição do magistrado para o estabelecimento e para o fortale­ cimento da tese acusatória.

Nos feitos de competência originária dos Tri­ bunais, essa competência para a homologação do acordo de colaboração premiada é monocrática do Relator, na condição de juiz da instrução (Lei n. 8.038/90, art. 2o, caput). Isso, todavia, sem prejuízo da competência colegiada do respectivo Tribunal (Turma, Seção ou Pleno) para avaliar, em decisão final de mérito, o cumprimento integral dos termos do ajuste, assim como a eficácia do acordo de cola­ boração premiada.628 A delação de autoridade com prerrogativa de foro atrai a competência do tribunal competente para a respectiva homologação e, em consequên­ cia, do órgão do Ministério Público respectivo. Por isso, a 2a Turma do STF concluiu pela invalidação de delação premiada feita contra Governador de Estado que não fora realizada pela Procuradoria-Geral da República, nem tampouco submetida à homologa­ ção pelo Superior Tribunal de Justiça, determinan­ do, por consequência, o trancamento do respectivo

626. Nesse contexto: STF, Pleno, Pet 7.074 QO/DF, Rei. Min. Edson FachinJ. 29/06/2017.

627. STF, 2a Turma, RHC 144.615 AgR/PR, Rei. Min. Gilmar Mendes, j.

25/08/2020.

628. Nesse contexto: STF, Pleno, Pet 7.074 QO/DF, Rei. Min. Edson FachinJ. 29/06/2017.

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inquérito, porquanto sua instauração teria se dado com base exclusivamente nos atos de colaboração.629 Há necessidade de homologação por parte des­ se Relator tão somente quando restar evidenciado, de plano, que o investigado seria pessoa detentora de foro de prerrogativa de função. Por consequência, a homologação de acordo de colaboração premia­ da por juiz de primeiro grau de jurisdição, que se limite a mencionar autoridade com prerrogativa de foro, não traduz em usurpação de competência do respectivo Tribunal. Como a colaboração premiada está relacionada à comunicação da ocorrência de um crime ou à provocação da iniciativa do Minis­ tério Público a esse respeito, assume a característica de delatio criminis, de mero recurso à formação da convicção do acusador, e não de elemento de prova. Sendo assim, as informações prestadas pelo colabo­ rador podem se referir até mesmo a crimes diversos daqueles que dão causa ao acordo, configurando-se, nessa situação, a hipótese da serendipidade ou des­ coberta fortuita de provas. Portanto, à semelhança do que ocorre em casos de interceptação telefônica, hão de ser considerados válidos os elementos proba­ tórios indicativos da participação de pessoas deten­ toras de prerrogativa de foro colhidos fortuitamente no curso de medidas investigativas envolvendo in­ divíduos sem essa prerrogativa. Outra consequência do encontro fortuito de provas é, portanto, a inci­ dência da teoria do juízo aparente, segundo a qual é legítima a obtenção de elementos relacionados à pessoa que detenha foro por prerrogativa de função por juiz que até aquele momento era competente para o processamento dos fatos. Logicamente, se houver a constatação da existência de indícios da participação ativa e concreta de pessoa com prerro­ gativa de foro, os autos deverão ser encaminhados imediatamente ao respectivo Tribunal, sob pena de evidente violação ao princípio do juiz natural.630 A gestão do acordo de colaboração premia­ da pelo respectivo Desembargador (ou Ministro) justifica-se tão somente diante de possível respon­ sabilização criminal de autoridade dotada de foro por prerrogativa de função naquele Tribunal, e, desse modo, não implica a automática supervisão de acordo de leniência celebrado e homologado em 629. STF, 2a Turma, HC 151.605/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20/03/2018.

630. Em caso concreto apreciado pelo STJ, como as investigações até então se referiam a pessoas sem prerrogativa de foro e a informação a respeito do possível envolvimento de autoridade com prerrogativa de foro naquela Corte somente surgiu com a formalização do acordo de cola­ boração premiada, concluiu-se que o juízo de primeiro grau de jurisdição era competente para sua homologação, não havendo, portanto, nulidade a ser declarada em relação ao ponto: STJ, Corte Especial, Rel 31.629/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/09/2017, DJe 28/09/2017.

esfera jurídica diversa. De fato, em se tratando de pretensão de índole exclusivamente administrativa, não se justifica a atração da competência constitu­ cional originária, dada sua aplicação restrita à seara criminal.631 Para fins de verificação da voluntariedade da manifestação da vontade do colaborador, poderá o juiz ouvi-lo sigilosamente, assegurada a presença de seu defensor. Interpretando-se a contrario sensu a parte final do art. 4o, § 7o, depreende-se que a Lei não faz referência à presença da parte responsável pela propositura do acordo (Ministério Público e/ ou Delegado de Polícia - neste caso, para quem en­ tende que a autoridade policial teria legitimidade para propor o acordo). Queira ou não, a presença do proponente do acordo nesta audiência poderia provocar certo constrangimento ao colaborador, ini­ bindo-o de revelar os reais motivos que o levaram a colaborar com as autoridades responsáveis pela persecução penal (v.g., promessa de não haver pedi­ do de prorrogação do prazo da prisão temporária).

Desta decisão judicial que homologa o acordo de colaboração premiada não resultará, de imedia­ to, a aplicação dos benefícios legais decorrentes do cumprimento do quanto pactuado. Afinal, pelo menos em regra, os benefícios legais decorrentes do cumprimento do acordo de colaboração pre­ miada serão concedidos ao colaborador apenas por ocasião da prolação da sentença condenatória. Pro­ va disso é o quanto disposto no art. 4o, § 11, que prevê que a sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia. Como se percebe, a homologação do acordo pelo juiz simplesmente confere ao colaborador maior segurança jurídica quanto à concessão do prêmio legal pactuado no momento da sentença, mas desde que as informa­ ções por ele prestadas sejam objetivamente eficazes para a consecução de um dos resultados elencados pelo legislador.

Como meio de obtenção de prova, a colabora­ ção premiada não constitui critério de determina­ ção, de modificação ou de concentração da com­ petência. Isso porque, conforme decidido pelo STF nos autos do Inq. 4.130, os fatos relatados em cola­ boração premiada não geram prevenção. Enquanto meio de obtenção de prova, tais fatos, quando não conexos com o objeto do processo que deu origem ao acordo, devem receber o mesmo tratamento con­ ferido ao encontro fortuito de provas.632 631. Com esse entendimento: STF, 2a Turma, AgRg na Pet. 8.015/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 17.03.2020. 632. Nessa linha: STF, 2a Turma, HC 181.978 AgR/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 10.11.2020.

TÍTULO 6 • PROVAS

Nada diz a Lei n° 12.850/13 quanto ao recurso adequado a ser utilizado na hipótese de o juiz re­ cusar homologação à proposta de colaboração pre­ miada apresentada pelo órgão ministerial. Diante do silêncio da Lei, a doutrina sempre sugeriu a possibi­ lidade de interposição de recurso em sentido estrito, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 581,1, do CPP. Conquanto não se trate de decisão que rejei­ ta (ou não recebe) a peça acusatória, propriamente dita, não se pode negar a existência de uma decisão que, grosso modo, rejeita a iniciativa postulatória do órgão da acusação.633 Com a entrada em vigor do Pacote Anticrime, o art. 581, inciso XXV, do CPP, passou a prever o cabimento de recurso em sentido estrito contra a decisão que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal, previs­ to no art. 28-A do CPP. Levando-se em consideração a semelhança entre as duas situações, revela-se perfeitamente possível a interpretação extensiva desse inciso para também se admitir o cabimento de RESE contra a decisão judicial que recusar homologação à proposta de acordo de colaboração premiada. Há, todavia, precedente da 6a Turma do STJ no sentido de que a apelação seria o recurso adequado para impugnar a decisão que recusa a homologação do acordo de colaboração premiada.634

Ao fim e ao cabo, convém destacar que a ju­ risprudência sempre entendeu que o magistrado que participa de procedimento de homologação de colaboração premiada não estaria impedido para futura ação penal, vez que esta hipótese não consta do rol taxativo de perda da imparcialidade objetiva constante do art. 252 do CPP.635 A questão deverá ser repensada à luz do art. 3°-D, caput, do CPP,636 incluído pela Lei n. 13.964/19, segundo o qual o juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 3o-B, ficará impe­ dido de funcionar no processo. Ora, considerando-se

633. Nesse contexto: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização da 17a edição do curso de processo penal em virtude da Lei n° 12.850/13. Disponível

em: http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao-comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-1 2-85013-2/. Acesso em 05/11/2013.

634. STJ, 6a Turma, REsp 1.834.215/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 27.10.2020, DJe 12.11.2020. 635. No sentido de que não é possível interpretar-se extensivamente o inciso III do art. 252 do CPP de modo a entender que o juiz que atua em fase pré-processual ou em sede de procedimento de delação premiada em ação conexa desempenha funções em outra instância, pois o"desempenhar funções em outra instância"a que se refere o referido dispositivo deve ser compreendido como a atuação do mesmo magistrado, em uma mesma ação penal, em diversos graus de jurisdição: STF, Ia Turma, HC 97.553/PR, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 16/06/2010, DJe 168 09/09/2010.

que o inciso XVII do art. 3°-B outorga ao juiz das garantias a competência para decidir sobre a ho­ mologação do acordo de colaboração premiada, quando formalizado durante a investigação, é de rigor a conclusão de que, nesse caso, tal magistra­ do, estará, doravante, impedido de funcionar como juiz da instrução e julgamento. Isso, todavia, não significa dizer que o juiz que homologar o acordo de colaboração jamais poderá vir a julgar o proces­ so. De fato, firmada a premissa de que o acordo de colaboração premiada também pode ser celebrado durante o curso do processo, hipótese à qual não seria aplicável o art. 3°-D, caput, do CPP, tal magis­ trado não estaria, por consequência, impedido de julgar o caso penal.

13.13.7. Momento para a celebração do acordo de colaboração premiada Como se pode perceber pela leitura dos dispo­ sitivos legais relativos à colaboração premiada, pelo menos até o advento da Lei n° 12.683/12, que deu nova redação à Lei de Lavagem de Capitais, e da Lei n° 12.850/13, nenhum deles dispunha expressamente sobre o momento de celebração do acordo. Por se tratar, a colaboração premiada, de es­ pécie de meio de obtenção de prova, poder-se-ia concluir, precipitadamente, que o benefício somente seria aplicável até o encerramento da instrução pro­ batória em juízo. Ligada que está à descoberta de fontes de prova, é intuitivo que sua utilização será muito mais comum na fase investigatória ou durante o curso da instrução processual.

Porém, não se pode afastar a possibilidade de celebração do acordo mesmo após o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. De fato, a partir de uma interpretação teleológica das nor­ mas instituidoras da colaboração premiada, cujo objetivo pode subsistir para o Estado mesmo após a condenação irrecorrível daquele que deseja co­ laborar, deve-se admitir a incidência do instituto após o trânsito em julgado de sentença condenató­ ria, desde que ela ainda seja objetivamente eficaz.637

Nessa linha, especial atenção deve ser dispen­ sada ao art. Io, § 5o, da Lei n° 9.613/98, com reda­ ção dada pela Lei n° 12.683/12, que passou a dispor expressamente acerca da possibilidade de a cola­ boração premiada ser celebrada a qualquer tempo. O dispositivo deixa evidente que o que realmente interessa não é o momento em que a colaboração

die, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de

637. Nesse sentido: FREIRE JR., Américo Bedê. Qual o meio processual para requerer a delação premiada após o trânsito em julgado da sentença penalcondenatória? In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal,

seus consectários (CPP, arts. 3°-A a 3°-F do CPP).

ano VI, n° 36, Porto Alegre, fev.-mar./2006, p. 235.

636. De se lembrar que, na condição de Relator das ADI's 6.298,6.299, 6.300 e 6.305, o Min. Luiz Fux (j. 22/01/2020) suspendeu a eficácia sine

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premiada é celebrada, mas sim a eficácia objeti­ va das informações prestadas pelo colaborador. Em sentido semelhante, o art. 4o, § 5o, da Lei n° 12.850/13, também prevê expressamente que, na hipótese de a colaboração ser posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou ser ad­ mitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos. À primeira vista, pode parecer um pouco es­ tranho que tais dispositivos se refiram à celebração do acordo de colaboração premiada após a sentença condenatória irrecorrível (n qualquer tempo). To­ davia, na hipótese de o produto direto ou indireto da infração penal não ter sido objeto de medidas assecuratórias durante o curso da persecução penal, inviabilizando ulterior confisco, não se pode descar­ tar a possibilidade de que as informações prestadas pelo agente mesmo após o trânsito em julgado de sentença condenatória ainda sejam objetivamente eficazes no sentido da recuperação de tais bens, o que, em tese, lhe assegura a concessão dos prêmios legais inerentes à colaboração premiada prevista no art. 4o, § 5o, da Lei n° 12.850/13. Sem embargo de a possibilidade de celebra­ ção do acordo de colaboração premiada a qualquer tempo estar prevista apenas nas Leis de Lavagem de Capitais e de Organizações Criminosas, parece não haver qualquer óbice à extensão desse benefício aos demais crimes, até mesmo por uma questão de isonomia. Deveras, não há qualquer fundamento razoável de discrímen capaz de justificar a invia­ bilidade de celebração de acordos de colaboração premiada após a sentença condenatória irrecorrível em relação a outros delitos, desde que, obviamente, aferida a eficácia objetiva das informações prestadas pelo colaborador.638

Firmada a premissa de que o acordo de cola­ boração premiada pode ser celebrado a qualquer momento, inclusive após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, discute-se na doutrina qual seria o meio adequado para se requerer o re­ conhecimento da colaboração na fase de execução. Parte da doutrina entende ser possível o ajuizamen­ to de revisão criminal. Isso porque uma das hipóte­ ses de rescisão de coisa julgada ocorre quando, após a sentença condenatória com trânsito em julgado, se descobrem novas provas de inocência do condenado

638. Admitindo a colaboração premiada a qualquer tempo nos casos de tráfico de drogas, mesmo após o trânsito em julgado de sentença condenatória, caso as informações prestadas pelo colaborador sejam capazes de incriminar outros corréus que não haviam sido condenados nem sequer processados criminalmente: MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Op. cit. p. 192.

ou de circunstância que determine ou autorize di­ minuição especial da pena (CPP, art. 621, III). O argumento de que não seria cabível sua concessão em fase de execução, por ser a sentença o momento de concessão dos benefícios (redução de pena, re­ gime penitenciário brando, substituição de prisão por pena alternativa ou extinção da punibilidade) não parece convincente. Como assevera Jesus,639 o art. 621 do CPP autoriza explicitamente desde a re­ dução da pena até a absolvição do réu em sede de revisão criminal, de modo que este também deve ser considerado um dos momentos adequados para exame de benefícios aos autores de crimes, inclusive em relação à colaboração premiada. Exigir-se-á, evi­ dentemente, o preenchimento de todos os requisitos legais, inclusive o de que o ato se refira à delação dos coautores ou partícipes do(s) crime(s) objeto da sentença rescindenda. Será preciso, ademais, que esses concorrentes não tenham sido absolvidos de­ finitivamente no processo originário, uma vez que, nessa hipótese, formada a coisa julgada material, a colaboração, ainda que sincera, jamais seria eficaz, diante da impossibilidade de revisão criminal pro societate. A nosso juízo, considerando que a revisão criminal é meio para reparação de erro judiciário, e tendo em conta que a incidência da colaboração pre­ miada em sede de execução não pressupõe erro do juiz que exija a rescisão da sentença original, o meio processual adequado para que seja reconhecida a colaboração após o trânsito em julgado de sentença condenatória é submeter o acordo à homologação perante o juiz da vara de execuções penais, nos mes­ mos moldes de outros incidentes da execução. Não se trata, a colaboração premiada após o trânsito em julgado de sentença condenatória, de prova nova da inocência do acusado para fins de ajuizamento de revisão criminal (CPP, art. 621, III). Cuida-se de fato novo que deve ser levado à consideração do juiz da execução penal, nos mesmos moldes que os demais fatos novos que surgem ao longo da execução, tal qual o surgimento de lei nova mais benigna (LEP, art. 66,1). Aplica-se, pois, por analogia, o raciocínio constante da súmula n° 611 do STF: “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna”.640 Tratando-se de norma mais benéfica para o colaborador, este novo regramento acerca da pos­ sibilidade de celebração do acordo de colaboração 639. JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Di­ reito Penal brasileiro. Jus Navigandi,Teresina, ano 10, n° 854,4 nov. 2005.

Disponível em: . Acesso em 04mar2009.

640. Com entendimento semelhante: PINTO, Ronaldo Batista. Op. cit. p. 64.

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premiada a qualquer tempo pode retroagir para beneficiar condenados por crimes diversos, mes­ mo que a decisão condenatória tenha transitado em julgado antes da vigência das Leis 12.683/12 e 12.850/13.

acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o re­ cebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese.

13.13.8. Publicidade do acordo de colaboração premiada

14. AÇÃO CONTROLADA

Recebida a denúncia e instaurado o processo criminal, abre-se lugar ao contraditório e à ampla defesa com todos os recursos a ela inerentes (im­ pugnações e direito à prova). Em outras palavras, o contraditório será exercido posteriormente (con­ traditório diferido), ou seja, quando concluídas as diligências decorrentes da colaboração premiada, ao investigado e a seu defensor deve ser franquea­ do o acesso ao conteúdo do acordo, resguardada a proteção dos direitos do colaborador listados no art. 5o da Lei n° 12.850/13, a fim de que possam impugnar a prova produzida, exercendo o direito à ampla defesa.

Destarte, por força do art. 7o, § 3o, da Lei n° 12.850/13, a partir do momento em que a fase ju­ dicial da persecução penal tiver início, dar-se-á am­ pla publicidade ao acordo de colaboração premiada, desde que preservado o sigilo das informações cons­ tantes do art. 5o, que constituem direitos do colabo­ rador. Interpretando-se a contrario sensu o art. 7o, § 3o, da Lei n° 12.850/13, conclui-se que, durante o curso das investigações, deve ser preservado o cará­ ter sigiloso do acordo de colaboração premiada, pelo menos em regra. A propósito, em julgado anterior ao advento da nova Lei das Organizações Crimino­ sas, em que se discutia a possibilidade de advogados de coautores terem acesso aos autos de investigação em que firmados acordos de delação premiada, a partir dos quais foram utilizados documentos que subsidiaram ações penais contra ele instauradas, a Ia Turma do STF afastou a pretensão de se conferir publicidade ao acordo, por lhe ser ínsito o sigilo, inclusive por força de lei.641

Conquanto a Lei das Organizações Crimino­ sas sempre tenha resguardado o sigilo do acordo de colaboração premiada, não era de todo incomum que o depoimento do colaborador se tornasse público, muitas vezes inclusive disponibilizado à imprensa por ordem da própria autoridade judi­ ciária. Daí a importância da nova redação con­ ferida ao §3° do art. 7o da Lei n. 12.850/13 pelo Pacote Anticrime, o qual passou a prever que o

14.1. Conceito e previsão legal A depender do caso concreto, é estrategicamen­ te mais produtivo, sob o ponto de vista da colheita de provas, evitar a prisão prematura de integrantes menos graduados de determinada organização cri­ minosa, pelo menos num primeiro momento, de modo a permitir o monitoramento de suas ações e subsequente identificação e prisão dos demais membros, notadamente daqueles que exercem o comando da societas criminis. Exsurge daí a impor­ tância da chamada ação controlada, que consiste no retardamento da intervenção do aparato estatal, que deve ocorrer num momento mais oportuno sob o ponto de vista da investigação criminal.

Cuida-se de importante técnica especial de in­ vestigação, prevista expressamente na Lei de Drogas (Lei n° 11.343/06, art. 53, II), na Lei de Lavagem de Capitais (Lei n° 9.613/98, art. 4°-B, com redação dada pela Lei n° 12.683/12, e art. Io, §6°, da Lei n. 9.613/98, incluído pela Lei n. 13.964/19) e na nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13, art. 80).642 De acordo com o art. 53, inciso II, da Lei de Drogas, em qualquer fase da persecução criminal re­ lativa aos crimes ali previstos, é permitida, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, a não atuação policial sobre os portadores de dro­ gas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível. Nesse caso, a autorização judicial fica condicionada ao conhecimento do itinerário provável e da identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.643 642. A ação controlada também estava prevista expressamente na antiga Lei das Organizações Criminosas (revogada Lei n° 9.034/95, art. 2o, inciso II), podendo ser executada independentemente de prévia au­ torização judicial.

643. Para a 6a Turma do STJ (RHC 60.251/SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 17/9/2015, DJe 9/10/2015), a investigação policial que tem como única finalidade obter informações mais concretas acerca de conduta e de paradeiro de determinado traficante, sem pretensão de identificar

074 24/04/2008. Na mesma linha: STJ, 5a Turma, HC 59.115/PR, Rel. Min.

outros suspeitos, não configura a ação controlada do art. 53, II, da Lei 11.343/2006, sendo dispensável, portanto, a autorização judicial para

Laurita Vaz, j. 12/12/2006, DJ 12/02/2007 p. 281.

a sua realização.

641. STF, 1a Turma, HC 90.688/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe

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A Lei n° 9.613/98 também prevê, em seu art. 4oB, com redação determinada pela Lei n° 12.683/12, uma espécie de ação controlada, consistente na suspensão pelo juiz da ordem de prisão de pessoas ou das medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores, ouvido o Ministério Público, quando sua execução imediata puder comprometer as investi­ gações, seja por impedir a identificação de outros criminosos envolvidos com o esquema de lavagem de capitais, seja por impedir a descoberta de outros bens objeto dos crimes previstos nesta lei (princí­ pio da oportunidade). Com a obtenção prévia da autorização judicial para a efetivação da medida e o sobrestamento de sua eficácia, a investigação cri­ minal é otimizada com o ganho de tempo, já que, chegado o momento oportuno para o cumprimento da ordem judicial, não mais será necessário requerê-la e aguardar seu deferimento pela autoridade judiciária competente para somente então dar-lhe cumprimento. Diversamente da Lei n° 11.343/06, a Lei n° 9.613/98 silenciou quanto ao adiamento da prisão em flagrante. De fato, ao se referir à suspen­ são da ordem de prisão de pessoas, inequivocamente referiu-se à prisão preventiva, eis que a prisão em flagrante não depende de ordem judicial. Assim, para a autoridade policial e seus agentes, a prisão em flagrante continua figurando como obrigatória nos casos de lavagem de capitais, eis que não abrangida pelo dispositivo em análise.644 O Pacote Anticrime incluiu no art. Io da Lei n. 9.613/98 o §6°, segundo o qual, para a apuração de crime de que trata este artigo, admite-se a utilização da ação controlada e da infiltração de agentes. No Capítulo II, referente à investigação e aos meios de obtenção da prova, a nova Lei das Orga­ nizações Criminosas cuida da ação controlada na Seção II, que abrange os arts. 8o e 9o, conceituando-a nos seguintes termos: “consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observa­ ção e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações”.

Diversamente do art. 2o, II, da revogada Lei n° 9.034/95, que fazia referência expressa apenas ao retardamento da interdição policial, o art. 8o

644. No mesmo sentido: MAIA, Rodolfo Tigre (Lavagem de dinheiro - la­ vagem de ativos provenientes de crime - Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 134). Marco Antônio de Barros (Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas - com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2004, p. 250) sustenta ser possível o retardamento da prisão em flagrante pela autoridade policial.

da Lei n° 12.850/13 autoriza o retardamento da intervenção policial ou administrativa. Isso sig­ nifica dizer que a não atuação imediata poderá abranger não apenas diligências policiais, como também intervenções administrativas. Por conse­ quência, agentes das receitas estaduais e federal, integrantes da Agência Brasileira de Inteligência, corregedorias e outras autoridades administra­ tivas também poderão retardar sua intervenção para que esta se concretize num momento mais eficaz sob o ponto de vista da colheita de elemen­ tos de informação.645

A ação controlada não é incompatível com o di­ reito à não autoincriminação. Como destaca Maria Elizabeth Queijo, se, à primeira vista, a inexistência de advertência quanto ao nemo tenetur se detegere conduz à conclusão de que há violação ao citado direito fundamental, pois os averiguados acabariam por produzir provas em seu desfavor, na verdade, o interesse público na persecução penal dos delitos praticados por organizações criminosas justifica a restrição ao referido princípio, representada pela ação controlada, em consonância com o princípio da proporcionalidade.646

14.2. (Des) necessidade de prévia autorização judicial Diversamente das Leis de Drogas e de Lavagem de Capitais, a Lei n° 12.850/13 não faz referência expressa à necessidade de prévia autorização judicial para a execução da ação controlada quando se tratar de crimes praticados por organizações criminosas, assemelhando-se, nesse ponto, à sistemática vigente à época da revogada Lei n° 9.034/95 (art. 2o, II). Consoante disposto no art. 8o, § Io, da Lei n° 12.850/13, o retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público. Como se percebe, a nova Lei das Organizações Criminosas em momento algum faz menção à necessidade de prévia autorização judicial. Refere-se tão somente à necessidade de prévia comunicação à autoridade judiciária competente. Aliás, até mesmo por uma questão de lógica, se o dispositivo legal prevê que o retardamento da intervenção policial ou adminis­ trativa será apenas comunicado previamente ao juiz

645. Nesse contexto: PINTO, Ronaldo Batista. Op. cit. p. 91. 646. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 368.

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competente, forçoso é concluir que sua execução independe de autorização judicial.647 De mais a mais, quando a Lei n° 12.850/13 exi­ ge autorização judicial para a execução de determi­ nada técnica especial de investigação, o legislador o fez expressamente. Nesse sentido, basta atentar para o quanto disposto no art. 10, caput, que faz menção expressa à necessidade de prévia, circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial para fins de infiltração de agentes. Se, ao cuidar da infiltração policial, o legislador mencionou expressamente a necessidade de prévia autorização judicial, limitan­ do-se, todavia, ao tratar da ação controlada, a fazer menção apenas à necessidade de prévia comunica­ ção, parece ficar evidente que a Lei n° 12.850/13 quis dispensar tratamento diverso aos dois institutos.

Mas por que se faz necessária prévia comuni­ cação ao juiz se a ação controlada envolvendo in­ frações penais praticadas por organizações crimi­ nosas pode ser executada sem anterior autorização judicial? A nosso juízo, a eficácia da ação controlada pode ser colocada em risco se houver necessidade de prévia autorização judicial, haja vista a demora inerente à tramitação desses procedimentos perante o Poder Judiciário. A título de exemplo, suponha-se que, por meio de denúncia anônima, as autoridades policiais obtenham informações de que um agente, integrante de organização criminosa especializada em falsificação de moeda, esteja levando consigo grande quantidade de notas falsas em um voo do­ méstico. Fosse necessária prévia autorização do juiz competente para a ação controlada, dificilmente a autoridade policial poderia postergar a prisão em flagrante no momento do desembarque na cidade de destino, porquanto não teria em mãos a necessária ordem judicial para que deixasse de levar adiante o flagrante obrigatório, a não ser que se admitisse uma absurda execução da diligência pelo próprio magistrado, o que, à evidência, feriria de morte o sistema acusatório e a garantia da imparcialidade. Por consequência, o objetivo inerente à ação con­ trolada de se identificar os demais integrantes dessa organização criminosa especializada em falsificação de moeda restaria prejudicado, porquanto, ausente a prévia autorização judicial para a ação controla­ da, ver-se-ia a autoridade policial obrigada a efe­ tuar a prisão em flagrante de apenas um de seus membros. Daí a importância de se permitir que a

647. No sentido de que a ação controlada prevista no art. 8o, §1°, da Lei n. 12.850/13 independe de autorização, bastando sua comunicação

prévia à autoridade judicial: STJ, Sexta Turma, HC 512.290/RJ, Rel. Min.

Rogério Schietti Cruz, j. 18.08.2020, DJe 25.08.2020.

ação controlada possa ser executada pela autoridade policial independentemente de prévia autorização judicial, postergando-se o momento do flagrante obrigatório. Se, de um lado, o art. 8o, § Io, da Lei n° 12.850/13, dispensa prévia autorização judicial para a execução da ação controlada, do outro, passa a exigir que o retardamento da intervenção policial ou adminis­ trativa seja comunicado com antecedência ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público. O obje­ tivo dessa comunicação prévia é dar conhecimento ao juiz competente e ao órgão do Ministério Público acerca do retardamento da intervenção policial ou administrativa. Logo, a depender das peculiaridades do caso concreto, a autoridade judiciária poderá es­ tabelecer os limites da ação controlada.

Os limites que podem ser impostos pelo juiz à ação controlada são de duas espécies: a) temporais: em tese, é possível que o juiz estabeleça um prazo máximo de duração da ação controlada, findo o qual a autoridade policial seria obrigada a representar pelo prosseguimento da medida, já, então, sob o controle judicial; b) funcionais: diante da possibi­ lidade de dano a bens jurídicos de maior relevân­ cia, deve o juiz determinar a pronta intervenção da autoridade policial. Com essa comunicação prévia, o legislador também visa evitar que uma autoridade corrupta utilize a ação controlada como justificativa para o fato de ter permanecido inerte diante de situação de flagrância na qual estava obrigada a agir. Explica-se: na vigência da legislação pretérita, a ação controlada era executada sem prévia autorização judicial e sem que houvesse necessidade de comunicação anterior ao juiz e ao órgão ministerial. Assim, quando uma autoridade corrupta era flagrada deixando de efe­ tuar a prisão em flagrante de crimes praticados por organizações criminosas - lembre-se que o flagrante é obrigatório para as autoridades policiais e seus agentes (CPP, art. 301) -, incorrendo, em tese, no crime de prevaricação (CP, art. 319), ou até mesmo nos próprios crimes praticados pela organização cri­ minosa, já que trata de garantidor que concorreu para a prática delituosa ao se omitir no cumpri­ mento de dever imposto por lei (CP, art. 13, § 2o), era comum que sustentasse que, na verdade, tinha postergado o flagrante por força da ação controlada, haja vista seu interesse em obter mais informações quanto aos demais integrantes do grupo.

De se notar, então, que o objetivo da Lei n° 12.850/13 foi pôr fim a essa verdadeira ação con­ trolada descontrolada, vigente à época da Lei n°

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9.034/95, quando não havia necessidade de prévia autorização judicial, nem tampouco de comunica­ ção ao juiz competente. Doravante, a ação contro­ lada na Lei das Organizações Criminosas continua sendo passível de execução sem prévia autorização judicial, o que, de certa forma, vem ao encontro da otimização dessa importante técnica especial de investigação. Do outro, de modo a se obter maior controle na execução dessa medida, sua execução deve ser precedida de comunicação à autoridade ju­ diciária competente, que, ouvido o Ministério Públi­ co, poderá estabelecer certos limites a sua execução. Como a quase totalidade dos ilícitos relativos ao tráfico de drogas para cuja investigação se faz ne­ cessária a ação controlada são cometidos por meio de organizações criminosas, não se pode descartar a possibilidade de se utilizar, por empréstimo, a re­ gulamentação constante da Lei n° 12.850/13, dis­ pensando-se prévia autorização judicial.648

Nesse sentido, referindo-se à sistemática vigen­ te à época da revogada Lei n° 9.034/95, Mendonça e Carvalho observam que “a ação controlada, em regra, necessita urgência e a exigência de autori­ zação judicial poderia inviabilizar a efetividade da diligência. Justamente por isto, na prática, em caso de investigação de tráfico de drogas, a Polícia requer autorização judicial prévia, já no início das investi­ gações, para realização de ações controladas, caso as situações de fato se apresentem”.649

Aliás, na visão da 6a Turma do STJ, até mesmo nos casos em que a autorização judicial é prevista, quando se trata de investigação de crimes da Lei de Drogas, o descumprimento do art. 53, I, da Lei n. 11.343/2003 não autoriza, de forma automática, a declaração de invalidade da prova. Deveras, a auto­ rização (art. 53, I, da Lei n. 11.343/2003) ou a co­ municação judicial (art. 8o da Lei n. 12.850/2013) não visam a preservar a intimidade do cidadão, como ocorre, por exemplo, com a interceptação telefônica ou a busca e apreensão, de forma a evitar violações a direitos e garantias fundamentais, mas “a proteger o próprio trabalho investigativo, afastando eventual crime de prevaricação ou infração administrativa por parte do agente policial que aguarda, observa

648. Na vigência da revogada Lei n° 9.034/95, cuja ação controlada também dispensava prévia autorização judicial, era firme o entendimento jurisprudencial no sentido de que tal medida podia ser executada sem anterior autorização do juiz competente, mesmo se utilizada para a prisão referente a tráfico de drogas: STJ, 5a Turma, HC 119.205/MS, Rei. Min. Jorge

Mussi, j. 29/09/2009, DJe 16/11/2009. Na mesma linha: STJ, 5aTurma, RHC 29.658/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 02/02/2012, DJe 08/02/2012. 649. MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006 - comentada artigo por artigo. 3a ed. São Paulo: Editora Método, 2012. p. 280.

e monitora a atuação dos suspeitos e não realiza a prisão em flagrante assim que toma conhecimento acerca da ocorrência do delito”.650 Com as inovações da Lei n. 13.964/2019, o legislador passou a admitir a ação controlada para apuração de crimes de lavagem de dinheiro (art. Io, § 6o, da Lei n. 9.613/1998) e, ain­ da, a atuação de agentes de polícia infiltrados virtuais (art. 10-A da Lei n. 12.850/2013) com o propósito de investigar os crimes previstos na Lei de Organização Criminosa e a eles conexos. Entretanto, mesmos de­ pois das diversas modificações para aperfeiçoar a le­ gislação processual penal, não se condicionou a ação controlada à permissão prévia do Poder Judiciário.651

14.3. Flagrante prorrogado, retardado ou diferido Como visto anteriormente, nas hipóteses da Lei de Drogas e da Lei de Organizações Criminosas, a ação controlada funciona como uma autorização le­ gal para que a prisão em flagrante seja retardada ou protelada para outro momento, que não aquele em que o agente está em uma situação de flagrância (CPP, art. 302). Daí por que é chamada de flagrante prorro­ gado, retardado, protelado ou diferido. Apresenta-se, pois, como uma mitigação ao flagrante obrigatório, que determina que as autoridades policiais e seus agentes têm o dever de efetuar a prisão em flagrante sempre que se deparam com alguém em situação de flagrância (CP, art. 301). A título de exemplo, supon­ do-se uma situação de flagrância envolvendo a práti­ ca de roubo por organização criminosa especializada na subtração de cargas, a despeito da obrigação de efetuar a prisão em flagrante por parte da autoridade policial - flagrante obrigatório (CPP, art. 301,2a par­ te) -, esta poderá deixar de fazê-lo, a fim de que seja capaz de identificar os demais integrantes do grupo, assim como o local em que a res furtiva é guardada. Pelo menos enquanto houver sequência de acompanhamento da situação de flagrante próprio, impróprio ou presumido, nos termos dos incisos do art. 302 do Código de Processo Penal, será possível a execução da prisão dentro dos critérios da prisão em flagrante. Exemplificando, se as autoridades po­ liciais perseguirem determinado integrante de uma organização criminosa logo após a prática do crime, sem solução de continuidade, e sem que o crimi­ noso perceba a perseguição policial, nada impede ulterior prisão em flagrante, haja vista a presença de flagrante impróprio (CPP, art. 302, III).652

650. STJ, 6a Turma, REsp 1.655.072/MT, Rei. Min. Rogério Schietti, DJe 20/2/2018. 651. STJ, Sexta Turma, HC 512.290/RJ, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 18.08.2020, DJe 25.08.2020.

652. Nessa linha: MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 2a ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007,

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Todavia, se, por ocasião da descoberta dos elementos probatórios mais relevantes, não hou­ ver qualquer situação de flagrância, a autoridade policial não poderá realizar a prisão em flagrante pelo ato pretérito que foi tolerado visando à eficá­ cia da investigação. Se a ação controlada envolven­ do crimes praticados por organizações criminosas independe de prévia autorização judicial, seria no mínimo temerário concluir que a autoridade policial passaria a ter discricionariedade plena para efetuar a prisão quando melhor lhe aprouvesse, sem qualquer limitação temporal e independentemente de situa­ ção de flagrância ou de ordem do juiz competente. Como a própria Constituição Federal estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5o, LXI), a prisão a ser efetuada nesse momento posterior estará condicio­ nada à verificação de situação de flagrância (v.g., a localização da carga roubada com os receptadores autoriza a prisão em flagrante por se tratar, a recep­ tação, de crime permanente), ou à decretação prévia de eventual prisão preventiva e/ou temporária.653

Em ambas as hipóteses acima referidas, a ação controlada deve ser executada pela autoridade poli­ cial com a máxima cautela, de modo a se evitar que os autores da infração penal escapem da persecução penal. Nesse sentido, a Lei n° 12.850 deixa claro que o procedimento investigatório em questão deve ser levado a efeito mediante observação e acompa­ nhamento das ações praticadas por organizações criminosas. Aliás, consoante disposto em seu art. 9o, se a ação controlada envolver transposição de fronteiras (delitos transnacionais), o retardamento da intervenção policial ou administrativa somente poderá ocorrer com a cooperação das autoridades dos países que figurem como provável itinerário ou destino do investigado, de modo a reduzir os riscos de fuga e extravio do produto, objeto, instrumento ou proveito do crime.654

p. 50. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que a ausência de

autorização judicial no flagrante retardado (ação controlada) não tem o condão de tornar ilegal ulterior prisão em flagrante, vez que o instituto

visa a proteger o trabalho investigativo, afastando eventual responsabili­ dade criminal ou administrativa por parte do agente policial. A propósito, confira-se: STJ, 5a Turma, HC 424.553/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 21/08/2018, DJe 28/08/2018; STJ, 6a Turma, REsp 1,655.072/MT, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 12/12/2017, DJe 20/02/2018. 653. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo. Processo Pe­

A Lei de Drogas, por sua vez, condiciona a execução da ação controlada ao conhecimento do itinerário provável e da identificação dos agentes do delito ou de seus colaboradores (art. 53, parágrafo único). Do contrário, autorizar o trânsito de pes­ soas carregando drogas sem se ter noção do provável itinerário colocaria em risco a própria eficácia do procedimento investigatório.

Se, a despeito de toda a cautela empregada, não for possível a identificação e prisão dos demais agentes - ou até mesmo dos primeiros criminosos identificados -, não há falar em crime de prevarica­ ção (CP, art. 319), a não ser que fique evidenciado que o flagrante não foi efetuado pela autoridade po­ licial para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

14.4. Entrega vigiada Uma das técnicas mais tradicionais de ação controlada é a entrega vigiada,655 cujo objetivo é a identificação do maior número possível de agen­ tes do esquema criminoso, bem como localização dos ativos ocultos, e descoberta de outras fontes de prova. Ganhou este nome justamente por denotar fielmente aquilo que representa: entrega vigiada, porque as remessas ilícitas de drogas, armas, etc., são monitoradas do ponto de partida até o destino final, com identificação dos agentes envolvidos na prática delituosa.

De acordo com o art. 2o, alínea “i”, da Conven­ ção de Palermo, entrega vigiada é a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou sus­ peitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática. A entrega vigiada surgiu como técnica de moni­ toramento de remessas ilícitas de substâncias entor­ pecentes. Com o passar dos anos, todavia, deixou de ser um procedimento investigatório de uso exclusivo para fins de enfrentamento ao tráfico de drogas, já que sua aplicação foi estendida para o combate do tráfico de armas, da lavagem de dinheiro, joias ou qualquer outro bem de valor (v.g., obras de arte), com previsão em diversos tratados internacionais. A entrega vigiada pode ser classificada da se­ guinte forma: a) entrega vigiada limpa (ou com substituição): as remessas ilícitas são trocadas antes

nal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 724. 654. Em seu sistema organizacional, a Polícia Federal dispõe de uma Coordenação-Geral de Cooperação Internacional (CIGE), composta por um serviço de cooperação policial, que é exatamente a "Interpol", além de outros setores de suporte a essa espécie de atividade, consoante disposto

655. Parte minoritária da doutrina sustenta que a entrega vigiada não se confunde com a ação controlada. Nesse contexto: RASCOVSKI, Luiz.

no art. 2o, VI, da Portaria MJ n° 2.877/11, que aprovou o Regimento Interno

Entrega vigiada: meio investigativo de combate ao crime organizado. São

do Departamento de Polícia Federal.

Paulo: Saraiva, 2013, p. 83.

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de serem entregues ao destinatário final por outro produto qualquer, um simulacro, afastando-se o risco de extravio da mercadoria; b) entrega vigia­ da suja (ou com acompanhamento): a encomenda segue seu itinerário sem alteração do conteúdo. À evidência, como não há substituição da mercadoria, esta espécie de entrega vigiada demanda redobrado monitoramento, exatamente para atenuar o risco de perda ou extravio de objetos ilícitos.656

15. INFILTRAÇÃO DE AGENTES

15.1. Conceito e previsão normativa Integrante da estrutura dos órgãos policiais, o agente infiltrado (undercover agent) é introduzido dissimuladamente em uma organização crimino­ sa, passando a agir como um de seus integrantes, ocultando sua verdadeira identidade, com o obje­ tivo precípuo de identificar fontes de prova e obter elementos de informação capazes de permitir a de­ sarticulação da referida associação. No ordenamento jurídico pátrio, é possível chegarmos a uma definição comum de agente in­ filtrado, observando-se algumas características que lhe são inerentes: a) agente policial; b) atuação de forma disfarçada, ocultando-se a verdadeira identi­ dade; c) prévia autorização judicial; d) inserção de forma estável, e não esporádica, nas organizações criminosas; e) fazer-se passar por criminoso para ganhar a confiança dos integrantes da organização; f) objetivo precípuo de identificação de fontes de provas de crimes graves.657

É indispensável, portanto, que o agente se en­ tranhe no seio da organização criminosa, passando a integrá-la como se criminoso fosse, a fim de identi­ ficar fontes de provas que possibilitem, mais adiante, prevenir, detectar, reprimir ou combater a atividade delituosa em questão. Por consequência, nas hipóte­ ses em que não houver a introdução do agente em uma determinada associação criminosa, não há falar em infiltração de agentes, nem tampouco em neces­ sidade de prévia autorização judicial. Não por outro motivo, em caso concreto em que um agente, com identidade falsa, apenas representou o ofendido nas negociações de um crime de extorsão, sem se intro­ duzir ou se infiltrar na organização criminosa com

656. Segundo Luiz Rascovski (op. cit. p. 124), há uma outra espécie de entrega vigiada, denominada de interdição: trata-se de espécie anômala

de entrega vigiada, pois nesta modalidade a entrega da remessa ilícita ao seu destino é interrompida com a sua apreensão, porém desde que

o propósito de identificar e angariar a confiança de seus membros ou obter provas sobre a estrutura e o funcionamento do bando, concluiu a 6a Turma que não haveria, in casu, verdadeira infiltração policial.658

Com natureza jurídica de técnica especial de in­ vestigação passível de utilização em qualquer fase da persecução penal, o agente infiltrado está previsto na Lei de Drogas, cujo art. 53, inciso I, dispõe que, mediante autorização judicial e ouvido o Ministé­ rio Público, é permitida a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes. Também se admite sua utilização para a apuração dos crimes de lavagem de capitais (Lei n. 9.613/98, art. Io, §6°, incluído pela Lei n. 13.964/19). Com esta mesma simplicidade assustadora para tratar de instituto tão complexo, e, por isso, tão polêmico, também havia previsão legal do agente infiltrado na revogada Lei n° 9.034/95. Sem maior detalhamento ou regulamentação, o art. 2o, inciso V, da antiga Lei das Organizações Criminosas, li­ mitava-se apenas a dizer que, em qualquer fase da persecução criminal, era possível a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.

Se, até bem pouco tempo atrás, a infiltração po­ licial era tratada de forma omissa e lacunosa, a nova Lei das Organizações Criminosas passou a dispensar maior atenção à matéria, tratando de regulamentar este importante procedimento investigatório ao pre­ ver, por exemplo, seus requisitos, prazo de duração, legitimidade para o requerimento, necessidade de oitiva do órgão ministerial, controle jurisdicional prévio, tramitação sigilosa do pedido de infiltração, outorgando, ademais, diversos direitos ao agente infiltrado. A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, internalizada pelo Decre­ to n° 5.015/2004, também faz menção à infiltração em seu art. 20: “Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras téc­ nicas especiais de investigação, como a vigilância ele­ trônica ou outras formas de vigilância e as operações

atingidos os objetivos de desmantelamento da organização criminosa. 657. Nesse contexto: NEISTEIN, Mariângela Lopes. O agente infiltrado

como meio de investigação. 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

658. STJ, 6a Turma, HC 512.290/RJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 18.08.2020, DJe 25.08.2020.

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de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada” (nosso grifo). De modo semelhante ao que ocorre com a colaboração premiada, muito se discute acerca da validade da infiltração policial à luz da ética. A crí­ tica se baseia na utilização da fraude e da mentira pelo agente infiltrado, e na conivência do Estado com a utilização dessa técnica especial de investi­ gação, quando fornece, de maneira imoral, um de seus agentes para a execução dessa operação. Em síntese, se a finalidade das penas é a confirmação das normas éticas, a partir do momento em que o próprio Estado viola esses preceitos éticos para lograr a aplicação de uma pena, estar-se-ia demons­ trando que pode valer a pena violar qualquer norma fundamental cuja vigência o direito penal se propõe a assegurar. Para Antônio Magalhães Gomes Filho, cuida-se “de procedimento cuja legitimidade ética e jurídi­ ca é cada vez mais contestada em sociedades mais avançadas, como a alemã e a norte-americana, pois é incompatível com a reputação e dignidade da Jus­ tiça Penal que seus agentes se prestem a envolver-se com as mesmas práticas delituosas que se propõem a combater; e mesmo as eventuais provas resultantes dessas operações terão sido conseguidas através de instigação, simulação ou outros meios enganosos, e portanto de duvidosa validade. De outro lado, não constitui heresia supor que, entre nós, sobretudo pela notória má remuneração atribuída aos agen­ tes policiais, tais expedientes encerrariam um sério risco de atraírem para a criminalidade pessoas que, por sua ligação com as estruturas oficiais, teriam excepcionais condições para se integrarem às mes­ mas associações criminosas, incrementando suas atividades ilegais”.659

Mais uma vez somos obrigados a discordar. Os tradicionais meios de obtenção de prova previstos na legislação processual penal têm se mostrado ine­ ficazes para fazer frente à expansão das organizações criminosas, daí por que o Estado precisa se valer de novas técnicas especiais de investigação. Como essas técnicas caracterizam-se pelo emprego do sigilo e da dissimulação, certamente serão tidas como mais agressivas contra os criminosos, porquanto trazem consigo maior restrição não apenas à liberdade de locomoção, mas também a outros direitos funda­ mentais. Isso, no entanto, não autoriza qualquer

conclusão no sentido da sua inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, porque se trata de procedimen­ to investigatório que demanda prévia autorização judicial. Segundo, porque sua utilização é medida de ultima ratio (Lei n° 12.850/13, art. 10, § 2o). Em conclusão porque, à luz do princípio da proporcio­ nalidade, a periculosidade social inerente às orga­ nizações criminosas acaba justificando o emprego de procedimentos investigatórios mais invasivos, sem os quais os órgãos estatais não seriam capazes de localizar fontes de prova e coligir elementos de informação necessários para a persecução penal.660

15.2. Atribuição para a infiltração: agentes de polícia A revogada Lei n° 9.034/95 autorizava a infil­ tração de agentes de polícia ou de inteligência. Se­ gundo a Lei n° 9.883/99, considera-se inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e dis­ seminação de conhecimentos dentro e fora do ter­ ritório nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado (art. 2o). Por sua vez, o art. 3o, além de criar a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN -, órgão da Presidência da República, a colocou na posição de órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência, com as funções de planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do País, ob­ servadas as disposições da referida Lei. Essa autorização para a infiltração de agentes de inteligência era de duvidosa constitucionali­ dade. Sem embargo da importância das ativida­ des de inteligência, as atividades investigatórias devem ser exercidas precipuamente por autori­ dades policiais, sendo vedada a participação de agentes estranhos à autoridade policial, sob pena de violação do art. 144, § 1°, IV, da CF/1988, da Lei n° 9.883/1999, e dos arts. 4° e 157 e parágra­ fos do CPP. Não por outro motivo, os Tribunais Superiores vêm considerando que a execução de atos típicos de polícia judiciária como monitora­ mento eletrônico e telemático, bem como ação controlada, por agentes de órgão de inteligência (v.g., ABIN), sem autorização judicial, acarreta a ilicitude da provas assim obtidas. A título de exemplo, em habeas corpus referente à operação

659. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Também em matéria pro­ cessual provoca inquietação a Lei Anti-Crime Organizado, In: Boletim do

660. Com entendimento semelhante: PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal: infiltrações policiais, entregas controladas e vigiadas, equipes conjuntas de investigação e provas periciais de inteli­ gência. In Limites Constitucionais da Investigação. Luiz Flávio Gomes, Pedro Taques, Rogério Sanches Cunha (coords). São Paulo: Revista dos

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n° 13, p. 01, fev. 1994.

Tribunais, 2009, p. 100.

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“Satiagraha”, o STJ considerou irregular a parti­ cipação de dezenas de funcionários da ABIN e de ex-servidor do SNI em investigação conduzi­ da pela Polícia Federal, declarando a ilicitude de diversas provas por eles produzidas.661 Em consonância com a Lei de Drogas (art. 53, I), a nova Lei das Organizações Criminosas faz referência à infiltração apenas por agentes de polícia. O art. 190-A do ECA, incluído pela Lei n. 13.441/17, também é explícito ao fazer referência à infiltração virtual de agentes de polícia. Por con­ sequência, temos que, doravante, a ação infiltrada poderá ser executada exclusivamente por agentes de polícia, não mais por agentes do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Como se trata, a infiltração de agentes, de técnica especial de investigação, devem ser entendidos como agentes de polícia apenas as autoridades policiais que tenham atribuição para a apuração de infrações penais.

15.2.1. (Im)possibilidade de infiltração de particulares Os três dispositivos legais que cuidam do agen­ te infiltrado no ordenamento jurídico pátrio - art. 53, inciso I, da Lei n° 11.343/06, art. 10 da Lei n° 12.850/13 e art. 190-A do ECA - deixam entrever que não se admite a infiltração de particulares. Logo, na hipótese de infiltração de “gansos” ou “informan­ tes” - civis que prestam serviços esporádicos aos organismos policiais sem qualquer hierarquia fun­ cional ter-se-á verdadeira prova ilícita.662

No entanto, caso um dos integrantes da organi­ zação criminosa resolva colaborar com as investiga­ ções para fins de ser beneficiado com a celebração de possível acordo de colaboração premiada, há quem entenda ser possível que o colaborador atue de modo infiltrado. Nesse caso, por mais que esse colaborador não seja servidor policial, desde que haja autoriza­ ção judicial para a conjugação dessas duas técnicas especiais de investigação - colaboração premiada e agente infiltrado -, é possível que o colaborador mantenha-se infiltrado na organização criminosa com o objetivo de coletar informações capazes de identificar os demais integrantes do grupo.663*

661. STJ, 5a Turma, HC 149.250/SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu Desembargador convocado do TJ/RJ -, j. 07/06/2011, DJe 05/09/2011. 662. Nessa linha: C0NSERIN0, Cassio Roberto. Crime organizado e ins­ titutos correlatos. Série Legislação Penal Especial. Organizadores: Clever Rodolfo Carvalho Vasconcelos e Levy Emanuel Magno. São Paulo: Editora Atlas, 2011,p. 82. 663. É nesse sentido a lição de Vladimir Aras (Técnicas especiais de investigação. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Ale­ gre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 429). O autor afirma que, em 2005,

15.3. Requisitos para a infiltração A infiltração policial está condicionada ao preenchimento dos seguintes requisitos:

a) prévia autorização judicial: quando a revo­ gada Lei n° 9.034/95 foi aprovada pelo Congresso Nacional, a infiltração de agentes policiais estava prevista em seu art. 2o, inciso I, nos seguintes ter­ mos: “a infiltração de agentes da polícia especializa­ da em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer co-participação delituosa, exceção feita ao disposto no art. 288 do Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, de cuja ação se preexclui, no caso, a antijuridicidade”. Como se percebe, nos termos em que foi aprovado, o referido dispositivo legal permitia a infiltração policial independente­ mente de prévia autorização judicial. Por tal motivo, e pelo fato de conceder expressa autorização legal para que o agente infiltrado cometesse crimes, o art. 2o, inciso I, da revogada Lei n° 9.034/95, acabou sen­ do vetado pelo Presidente da República (mensagem n° 483, de 3 de maio de 1995). Daí a origem da Lei n° 10.217/01, que reintroduziu a figura do agente infiltrado à revogada Lei n° 9.034/95, inserindo-o no inciso V do art. 2o, porém com expressa menção à necessidade de circunstanciada autorização judicial. Na mesma linha que a revogada Lei n° 9.034/95, o art. 10, caput, da Lei n° 12.850/13, também dispõe que a infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação deverá ser precedida de circunstan­ ciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites. Em sentido semelhante, o art. 190-A, inciso I, do ECA, incluído pela Lei n. 13.441/17, também prevê que a infiltração policial virtual ali prevista será precedida de autorização ju­ dicial devidamente circunstanciada efundamentada, que estabelecerá os limites da infiltração para ob­ tenção de prova, ouvido o Ministério Público. Em fiel observância ao art. 93, IX, da Constituição Fe­ deral, esta autorização judicial deve ser devidamente fundamentada, sob pena de nulidade absoluta. Para além de fazer menção à duração razoável da infiltra­ ção, a decisão judicial também deve indicar certas diretrizes a serem observadas pelo agente infiltrado (v.g., abstenção de prática de crimes de dano),664 na operação TNT, o MPF no Paraná fez uso dessa técnica conjugada, sob a coordenação do Procurador Regional da República Januário Paludo, tendo o colaborador "Xis" realizado interceptação ambiental mediante autorização judicial do juiz Sérgio Moro, de Curitiba. 664. Para Vladimir Aras (Op. cit. p. 435), deve haver uma vedação ao concurso em delitos sexuais ou crimes violentos (dolosos contra a vida) e a tortura, porém a decisão judicial pode autorizar o agente infiltrado a transportar pessoas e produtos ilícitos, de modo a facilitar a descoberta e a prova de uma determinada infração penal. No plano internacional, a figura do agente infiltrado é utilizada quase sempre permitindo que sejam praticadas algumas condutas criminosas que não afetem interesse

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além da descrição detalhada dos procedimentos in­ vestigatórios que poderão ser por ele produzidos, na medida em que o sucesso dessa medida depende de sua combinação com outros procedimentos in­ vestigatórios (v.g., apreensão de objetos, gravações ambientais e/ou telefônicas, vigilância eletrônica, etc.). Afinal, a infiltração não pode constituir uma “carta branca” para violações, realizáveis pela discri­ cionariedade (ou arbitrariedade) do próprio agente infiltrado. Logo, há necessidade de autorização e monitoramento para que, antes mesmo da violação do direito, possa o juiz fazer tal julgamento, autori­ zando ou não, nos limites legais, a violação de uma garantia fundamental. Fosse o agente infiltrado obrigado a buscar autorização judicial para cada situação vivenciada durante a execução da opera­ ção, haveria evidente prejuízo à eficácia desse pro­ cedimento investigatório, além de colocar em risco a própria segurança do policial. Daí a importância de o magistrado, ao conceder a autorização judicial para a infiltração, pronunciar-se, desde já, quanto à execução de outros procedimentos investigatórios. De mais a mais, também deve constar determina­ ção expressa no sentido de que haja uma equipe de policiais que prestem apoio constante ao agente infiltrado, viabilizando eventual proteção caso sua verdadeira identidade seja revelada; tyfumus comissi delicti e periculum in mora: de modo semelhante ao que ocorre com outras técnicas especiais de investigação, a infiltração de agentes de polícia está condicionada à existência de elementos indiciários da existência de crimes praticados por organizações criminosas (fumus co­ missi delicti). A propósito, o art. 10, § 2o, primeira parte, da Lei n° 12.850/13, dispõe expressamente que a infiltração será admitida se houver indícios de infração penal de que trata o art. 1 °.665 Não se faz necessária a prova cabal da existência da orga­ nização criminosa, até mesmo porque, fosse isso necessário, não haveria motivo para a produção de quaisquer outros elementos de informação. Face a complexidade dos crimes decorrentes de orga­ nizações criminosas, geralmente praticados por agentes residentes em estados e/ou países diversos, o que acaba dificultando a identificação de todos individual ou o afetem de forma proporcional, ou que somente atinjam a bens supraindividuais como, por exemplo, na compra de drogas em que teoricamente se atinge a saúde pública. 665. No mesmo sentido, consoante disposto no art. 190-A, II, do ECA, incluído pela Lei n. 13.441/17, a infiltração policial virtual dar-se-á me­ diante requerimento do Ministério Público ou representação de delegado

de polícia e conterá a demonstração de sua necessidade, o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou cadas trais que permitam a identificação dessas pessoas.

os integrantes, o dispositivo legal sob comento não exige a presença de indícios de autoria (ou de parti­ cipação), como se faz necessário, por exemplo, para a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312). Na verdade, basta a presença de indícios de infração pe­ nal de que trata o art. Io da Lei n° 12.850/13. Prova disso, alias, é o quanto previsto no art. 11 da Lei n° 12.850/13: ao tratar dos requisitos do pedido de infiltração, o dispositivo deixa claro que a indicação de nomes ou apelidos dos membros da organização criminosa deve ser feita apenas quando possível. Em relação ao periculum in mora, há de ser levado em consideração o risco ou prejuízo que a não realiza­ ção imediata dessa diligência poderá representar para a aplicação da lei penal, para a investigação criminal ou para evitar a prática de novas infrações penais (CPP, art. 282,1); c) indispensabilidade da infiltração: de apli­ cação subsidiária e complementar, a infiltração só deve ser admitida quando a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis (ultima ratio). Por força do princípio da proporcionalidade - subprincípio da necessidade -, dentre diversas medidas investigatórias idôneas a atingir o fim proposto, deve o magistrado buscar aquela que produza menores restrições à esfera de liberdade individual do agente. Enfim, a infiltração deve ser precedida por outros meios de obtenção de prova, mesmo que igualmente invasivos, como, por exem­ plo, a interceptação das comunicações telefônicas. Considerando-se, então, os riscos inerentes à in­ filtração de agentes de polícia e o grau de invasão intrínseco à adoção dessa técnica especial de inves­ tigação, antes de adotá-la, deve o magistrado veri­ ficar se não há outro meio de prova ou de obtenção de prova menos invasivo (v.g., prova testemunhai, pericial, busca domiciliar, etc.). Daí dispor o art. 10, § 2o, infine, da Lei n° 12.850/13, que a infiltra­ ção será admitida apenas se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis;

d) anuência do agente policial: consoante dis­ posto no art. 14, I, da Lei n° 12.850/13, o agente policial tem o direito de recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada. Como se percebe, eventual recusa do agente policial em participar da infiltração não caracteriza insubordinação, nem tampouco violação aos seus deveres funcionais. É um direito do agente policial.666 Com efeito, diante do grau de periculo666. Se a própria Lei n° 12.850/13 confere ao agente policial o direito de recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada, eventual recusa por parte do servidor público não caracteriza infração funcional ao disposto no art. 116 da Lei n° 8.112/90, que impõe ao servidor o dever de cumprir as

ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.

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sidade envolvido na infiltração policial, a própria Lei determina que o agente policial deve, volunta­ riamente, manifestar seu interesse em participar da operação, daí por que sua prévia anuência deve ser apontada como verdadeiro requisito para a realiza­ ção desse procedimento investigatório.

15.4. Duração da infiltração Consoante disposto no art. 10, § 3o, da Lei n° 12.850/13, a infiltração será autorizada pelo prazo de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais re­ novações, desde que comprovada sua necessidade. Esse prazo de 6 (seis) meses é o prazo-limite para cada autorização judicial, o que não impede o juiz de conceder a autorização por prazo inferior, caso entenda ser tal prazo suficiente para auxiliar nas investigações. De mais a mais, como a própria Lei estabelece que o agente infiltrado pode fazer cessar a atuação infiltrada, é evidente que a exe­ cução desse procedimento investigatório pode ser interrompida a qualquer momento, se acaso houver risco à integridade física do agente policial.

Havendo necessidade de renovação do prazo, esta deve se dar antes do decurso do prazo fixado na decisão originária, evitando-se uma solução de continuidade na realização da infiltração. Como o controle judicial deve ser prévio, seja no tocante à concessão inicial da infiltração, seja em relação à renovação do prazo, se a infiltração se prolongar por período “descoberto” de autorização judicial, os elementos probatórios aí obtidos devem ser consi­ derados inválidos, por violação ao preceito do art. 10, caput, da Lei n° 12.850/13, que demanda prévia autorização judicial para a execução da infiltração de agentes. Como deixa entrever o próprio art. 10, § 3o, da Lei n° 12.850/13, a renovação do prazo da in­ filtração não pode se dar de maneira automática, sendo imprescindível a existência de decisão funda­ mentada comprovando que subsiste a necessidade da medida. Portanto, se a prorrogação da medida não for devidamente fundamentada pela autoridade judiciária competente, é perfeitamente possível o reconhecimento da ilicitude da prova, com o conse­ quente desentranhamento das informações obtidas a partir da renovação da infiltração.

Não se exige que o deferimento das renovações seja sempre precedido de relatório circunstanciado da atividade de infiltração, sob pena de se frustrar a rapidez na obtenção da prova e até mesmo a pró­ pria segurança do agente infiltrado. Na verdade, este relatório deverá ser apresentado apenas ao final da infiltração policial ou a qualquer tempo, mediante

determinação do Delegado de Polícia ou do Minis­ tério Público (Lei n° 12.850/13, art. 10, §§ 3o e 5o).

Ante a redação do art. 10, § 3o, da Lei n° 12.850/13, que faz referência expressa ao prazo de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais reno­ vações, parece não haver dúvidas de que o prazo da infiltração pode ser renovado indefinidamen­ te, desde que comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Com a crescente profissionalização das organizações criminosas em nosso país, é no mínimo ingênuo acreditar que uma infiltração pelo prazo de 6 (seis) meses possa levar ao esclarecimen­ to dos diversos crimes por ela praticados e à identi­ ficação de todos os seus integrantes. A depender da extensão, intensidade e complexidade das condutas delitivas investigadas, e desde que demonstrada a razoabilidade da medida, o prazo para a renovação da infiltração pode ser prorrogado enquanto persis­ tir a necessidade da medida. De qualquer sorte, é no mínimo desaconselhável admitir infiltrações tão longas. A imersão pessoal do agente infiltrado den­ tro da organização criminosa e o nível de intimidade que se pode esperar de períodos tão extensos pode vir a fragilizar as investigações, expondo o infiltrado a toda sorte de cooptação.667

15.5. Agente infiltrado, agente provocador (entrapment doctrine ou teoria da armadilha) e agente de inteligência O agente infiltrado tem autorização judicial para se infiltrar em determinada organização cri­ minosa com o objetivo de colher elementos capazes de proporcionar seu desmantelamento, devendo agir precipuamente de maneira passiva, não instigando os demais integrantes do bando à prática de qual­ quer ilícito. Logo, se os agentes de polícia ou de inteligência têm indícios suficientes da existência de uma organização criminosa e nela se infiltram em busca de informações que permitam identificar os diversos ilícitos praticados por seus integrantes, não há falar em crime impossível, porquanto a in­ tenção de delinquir já havia surgido firmemente nos sujeitos que estão praticando as infrações penais, por meio de decisão livre e anterior à intervenção do agente infiltrado. Consequentemente, na hipótese de as infor­ mações prestadas pelo agente infiltrado serem úteis para a prisão em flagrante de determinados

667. Nesse contexto: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização da 17a edição do curso de processo penal em virtude da Lei n° 12.850/13. Disponível em: http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao-comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-1 2-85013-2/. Acesso em 05/11/2013.

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integrantes da organização criminosa, este flagran­ te esperado será plenamente válido. No entanto, se a autoridade policial que estiver monitorando seu agente infiltrado entender que a prisão em flagrante naquele momento pode se revelar inoportuna sob o ponto de vista probatório, afigura-se válida a pror­ rogação daquela medida para outro momento tem­ poral e espacial mais adequado (ação controlada).

Como se percebe, a depender das circunstân­ cias do caso concreto, se a infiltração visar tão so­ mente a identificação de uma situação de flagrân­ cia de modo a permitir a captura de determinados integrantes da organização criminosa, este proce­ dimento investigatório poderá ser utilizado sem a utilização concomitante da ação controlada (Lei n° 12.850/13, arts. 8o e 9o). No entanto, se as autori­ dades responsáveis pela persecução penal entende­ rem que o flagrante deve ser postergado para um momento mais oportuno sob o ponto de vista da colheita de provas, é possível que o procedimento investigatório do agente infiltrado seja utilizado em conjunto com a ação controlada (Lei n° 12.850/13, arts. 8o e 9o, c/c arts. 10 a 14). Noutro giro, a atuação do agente provocador (entrapment doctrine ou teoria da armadilha,), ge­ ralmente realizada sem prévia autorização judicial, caracteriza-se pela indução de alguém à prática de determinado ilícito, sem que esta pessoa tivesse pre­ viamente tal propósito, hipótese na qual se viola o direito fundamental de não se autoacusar e o da amplitude de defesa, comprometidos pelo engano provocado pelo agente infiltrado.

Quando alguém (particular ou autoridade po­ licial), de forma insidiosa, instiga o agente à prática do delito com o objetivo de responsabilizá-lo cri­ minalmente, ao mesmo tempo em que adota todas as providências para que o delito não se consume, prevalece o entendimento de que haverá crime im­ possível, em virtude da ineficácia absoluta do meio (CP, art. 17). Nesses casos de atuação de agente provocador, o suposto autor do delito não passa de um protagonista inconsciente de uma comédia, cooperando para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou da simulação da exterioridade de um crime. Exemplificando, suponha-se que, após prender o traficante de uma pequena cidade e com ele apreender seu computador pessoal no qual consta um cronograma de distribuição de drogas, a autoridade policial passe a efetuar ligações aos usuá­ rios, simulando uma venda de droga. Os usuários comparecem, então, ao local marcado, efetuando o pagamento pela aquisição da droga. Alguns mi­ nutos depois, são presos por agentes policias que

se encontravam à paisana, sendo responsabilizados pela prática do crime do art. 28 da Lei n° 11.343/06.

Nesse caso, diante da atuação do agente pro­ vocador, estará caracterizado o flagrante prepara­ do, como espécie de crime impossível, em face da ineficácia absoluta dos meios empregados. Logo, diante da ausência de vontade livre e espontânea dos autores e da ocorrência de crime impossível (CP, art. 17), a conduta deve ser considerada atí­ pica. Cuidando-se de flagrante preparado, e, por conseguinte, ilegal, pois alguém se vê preso em face de conduta atípica, afigura-se cabível o rela­ xamento da prisão pela autoridade judiciária com­ petente (CF, art. 5o, inciso LXV). Sobre o assunto, confira-se o teor da Súmula n° 145 do Supremo Tribunal Federal: “Não há crime, quando a prepa­ ração do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. A leitura da súmula fornece os dois requisitos do flagrante preparado: preparação e não consumação do delito. Logo, mesmo que o agente tenha sido induzido à prática do delito, po­ rém operando-se a consumação do ilícito, haverá crime e a prisão será considerada legal. Em síntese, para serem válidas em juízo, “as provas colhidas pelo undercover agent devem deri­ var de atos preparatórios iniciados espontaneamente pelo investigado, ou devem resultar de iter criminis por ele percorrido também espontaneamente. Cabe ao Ministério Público provar que não houve insti­ gação e que o crime teria ocorrido mesmo sem a infiltração policial. Qualquer prova que tenha sido obtida por provocação do agente infiltrado é inad­ missível, por ilicitamente obtida”.668

Não por outro motivo, em caso concreto envol­ vendo a infiltração de agente policial em associação criminosa voltada ao tráfico de drogas, concluiu o STJ que, diante da inexistência de induzimento à prática delituosa, não seria possível qualquer ques­ tionamento em relação à legalidade da prisão e ul­ terior condenação pelo crime de tráfico de drogas. Afinal, se as provas produzidas comprovaram que o acusado, não obstante não estar comercializando a droga no momento da prisão, portava, juntamente com outros corréus, elevada quantidade de substân­ cia tóxica, caracterizada estaria a traficância e o es­ tado de flagrância, na medida em que a consumação

668. ARAS, Vladimir. Técnicas especiais de investigação. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 435-436. Ainda segundo o autor, há provocação quando a con­ duta do infiltrado ou do agente encoberto é decisiva para a consumação do crime. Não há provocação quando o dolo é latente e antecede o in­ duzimento policial, não havendo ardil ou persuasão dos investigadores para viciar a vontade do suspeito ou fazer surgir a intenção criminosa.

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do ilícito em questão já vinha se protraindo no tem­ po e era preexistente à ação policial.669

Também não se pode confundir o agente infil­ trado com o agente de inteligência: enquanto este tem uma função preventiva e genérica, buscando informações de fatos sociais relevantes ao governo, aquele age com finalidades repressivas e investigativas em busca da obtenção de elementos probatórios relacionados a fatos supostamente criminosos e or­ ganizações criminosas específicas. Outra importante diferença diz respeito à necessidade de autorização judicial, pressuposto indispensável para a infiltração policial, porém desnecessário para a atuação dos agentes de inteligência. Por isso, em caso concreto apreciado pela 2a Turma do STF em que determinado agente de in­ teligência, originariamente designado para coletar dados para subsidiar a Força Nacional de Segurança em atuação estratégica diante dos movimentos sociais e dos protestos ocorridos no Brasil em 2014, passou a realizar verdadeira e genuína infiltração em associa­ ção criminosa, concluiu o referido colegiado que todo o conjunto probatório por ele colhido seria ilícito, devendo, pois, ser desentranhado dos autos do pro­ cesso, nos termos do art. 157, §3°, do CPP. Reconhe­ ceu-se, assim, a clandestinidade da prova produzida, porquanto o agente de inteligência, sem autorização judicial, ultrapassou os limites da sua atribuição e agiu como incontestável agente infiltrado. A ilegali­ dade não estaria presente na designação para o agente de inteligência atuar na coleta de dados genéricos, mas sim em sua infiltração, com a participação em grupo de mensagens criado pelos investigados e em reuniões do grupo em bares, a fim de realizar inves­ tigação criminal específica e subsidiar a condenação. Suas declarações poderíam servir para orientação de estratégias de inteligência, mas jamais como elemen­ tos probatórios em uma persecução penal.670 15.6. Sustação da operação

A preocupação do legislador com a proteção da integridade física (e da própria vida) do agente infiltrado fica evidenciada diante do dispositivo 669. STJ, 5aTurma, HC 92.724/SC, Rei. Min. Jorge Mussi,j. 14/04/2009, DJe 01/06/2009. Em caso concreto envolvendo a infiltração de agente policial para a investigação de tráfico internacional de drogas e associação para o tráfico, oTRF da 3a Região também concluiu que o dolo de praticar o tráfico de drogas não foi provocado nos agentes pelo undercoveragent, porquanto os criminosos já haviam executado, ao menos, os verbos "ex­ por a droga à venda", "importar", "transportar"e"trazer consigo", situação idônea para se afastar a aplicação da Súmula n° 145 do STF:TRF3a Região, 2aTurma, Apelação Criminal n° 35.261, Rei. Desembargador Cotrim Gui­ marães, j. 20/10/2009). 670. STF, 2a Turma, HC 147.837/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, j.

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constante do art. 12, § 3o, da Lei n° 12.850/13, que dispõe: “Havendo indícios seguros de que o agente infiltrado sofre risco iminente, a operação será sustada mediante requisição do Ministério Público ou pelo delegado de polícia, dando-se imediata ciência ao Ministério Público”. O art. 14,1, por sua vez, confere expressamente ao agen­ te policial o direito de recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada. Se o início da infiltração está condicionado à aquiescência do agente policial e à prévia autoriza­ ção judicial, a sustação das operações deverá ocorrer de imediato, antes mesmo de qualquer requisição do Ministério Público ou do Delegado de Polícia. Afinal, seria no mínimo temerário que se exigisse a continuidade da infiltração a despeito da presença de indícios seguros de que o undercover agent esti­ vesse sofrendo risco iminente. Portanto, após sustar a operação, o agente policial deverá comunicar o fato ao Delegado de Polícia e ao Ministério Público, a fim de que o juiz seja cientificado do encerramen­ to da diligência.

15.7. Responsabilidade criminal do agente infiltrado A partir do momento em que o agente infiltra­ do passar a integrar a organização criminosa como se fosse um de seus membros, é evidente que os demais integrantes desse grupo podem exigir sua contribuição para a execução de certos crimes. Aliás, a depender do caso concreto, a recusa do agente infiltrado em concorrer para essas práticas delituosas pode inclusive levantar suspeitas acerca de sua verdadeira identidade, colocando em risco não apenas o procedimento investigatório, como também sua própria integridade física. Nada dizia a revogada Lei 9.034/95 acerca da responsabilidade criminal do agente infiltrado. A Lei de Drogas, apesar de regulamentar a infiltração de agentes, também silencia acerca do assunto. Daí a importância da nova Lei das Organizações Cri­ minosas, cujo art. 13 prevê que o agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação, responderá pe­ los excessos praticados. Em sentido semelhante, ao tratar da infiltração policial virtual, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, em seu art. 190C (incluído pela Lei n. 13.441/17), que não comete crime o policial que oculta a sua identidade para, por meio da internet, colher indícios de autoria e materialidade dos crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D da referida Lei, e nos arts. 154-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B do

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Código Penal. Logicamente, se o agente policial infiltrado deixar de observar a estrita finalidade da investigação, deverá responder pelos excessos prati­ cados (Lei n. 8.069/90, art. 190-C, parágrafo único, incluído pela Lei n. 13.441/17). A despeito da redação genérica do art. 13 da Lei n. 12.850/13, que faz referência à atuação des­ proporcional do agente com a finalidade da in­ vestigação, sem explicitar melhor o que poderia ser compreendido como excesso por ele praticado, parece-nos evidente que o undercover agent não poderá ser responsabilizado por quaisquer das infrações penais de que trata o art. 2o da Lei n° 12.850/13 (v.g., integrar organização criminosa), nem tampouco pelos crimes de associações crimi­ nosas (v.g., art. 35 da Lei n° 11.343/06 ou art. 288 do CP). Afinal, o fato de haver prévia autorização judicial para a utilização dessa técnica especial de investigação, permitindo sua infiltração no seio da organização criminosa, tem o condão de afastar a ilicitude de sua conduta, diante do estrito cum­ primento do dever legal (CP, art. 23, III). Nesse sentido, como observa Mendroni, “a exclusão da antijuridicidade é evidente e inafastável, pois, ha­ vendo autorização para a infiltração do agente, que significa integrar o bando, mas para fins de inves­ tigação criminal, que serve aos fins dos órgãos de persecução, ele não estaria na verdade integrando a organização criminosa, mas sim dissimulando a sua integração com a finalidade de coletar infor­ mações e melhor viabilizar o seu controle”.671 Na hipótese de o agente ser coagido a praticar outros crimes (v.g., tráfico de drogas, receptação), sob pena de ter sua verdadeira identidade revelada, o ideal é concluir pela inexigibilidade de conduta diversa, com a consequente exclusão da culpabi­ lidade, desde que respeitada a proporcionalidade e mantida a finalidade da investigação. É evidente que, em prol da infiltração do agente, nada justifica o sacrifício de uma vida. No entanto, se um poli­ cial infiltrado, impossibilitado de impedir o pior, se ver obrigado a atirar contra uma pessoa por ter uma arma apontada para sua própria cabeça, não se pode estabelecer um juízo de reprovação sobre sua conduta, porquanto, no caso concreto, não lhe era possível exigir conduta diversa.

Nesse sentido, o art. 13, parágrafo único, da Lei n° 12.850/13, dispõe expressamente que “não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de

671. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Op. cit. p. 55. Na mesma linha: ARAS, Vladimir. Técnicas especiais de investigação. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 434.

crime pelo agente infiltrado no curso da investiga­ ção, quando inexigível conduta diversa”. Apesar do caráter dúbio do dispositivo legal, que, inicialmente, faz referência à não punibilidade do agente infiltra­ do para, na sequência, referir-se à inexigibilidade de conduta diversa, preferimos entender que se trata de hipótese de exclusão da culpabilidade, e não de causa extintiva da punibilidade.672 Excluindo-se apenas a culpabilidade do injusto penal praticado pelo agente infiltrado, isso significa dizer que subsiste a tipicidade e ilicitude da conduta, permitindo, por meio da teoria da acessoriedade limitada, a punição dos demais integrantes da orga­ nização criminosa pelas infrações penais praticadas.

15.8. Infiltração virtual O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), com redação determinada pela Lei n. 13.441/17, passou a prever a infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de investigar cri­ mes contra a dignidade sexual de crianças e adoles­ centes. Com efeito, de acordo com o art. 190-A do ECA, esta infiltração policial virtual será cabível, grosso modo, em 3 (três) categorias de delitos: a) pedofilia (ECA, arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D); b) crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis: estupro de vulnerável (CP, art. 217A), corrupção de menores (CP, art. 218), satisfa­ ção de lascívia (CP, art. 218-A) e favorecimento da prostituição de criança ou adolescente ou de vulnerável (CP, art. 218-B); c) invasão de disposi­ tivo informático (CP, art. 154-A). Essa infiltração policial virtual prevista no art. 190-A do ECA não poderá exceder o prazo de 90 (noventa) dias, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que o total não exceda a 720 (setecentos e vinte) dias e seja demonstrada sua efetiva necessidade, a critério da autoridade judicial (Lei n. 8.069/90, art. 190-A, III, incluído pela Lei n. 13.441/17). É possível, pois, desde a entrada em vigor da Lei n. 13.441/17, classificar as infiltrações em pre­ senciais ou virtuais (cibernética ou eletrônica). Enquanto a infiltração prevista na Lei de Drogas e na Lei das Organizações Criminosas têm natureza presencial (física), aquela introduzida no art. 190-A do Estatuto da Criança e do Adolescente funciona

672.Há quem entenda que, sob o ponto de vista da dogmática penal, melhor seria concluir que a não punição do agente infiltrado afasta ape­ nas a punibilidade. Nesse sentido, antes da vigência da Lei n° 12.850/13, Alexis Couto de Brito (op. cit. p. 259) advertia:"embora o agente pratique conduta criminosa em todos os seus elementos (conduta típica, ilícita e culpável), não haveria necessidade de aplicar-lhe uma pena - depen­ dendo sempre do caso concreto - diante da ausência de finalidades preventivas".

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como espécie de infiltração virtual (cibernética ou eletrônica), já que não é efetuada no ambiente físico, mas sim pela internet.

§2°,675 e 18, parágrafo único,676 ambos do Estatuto do Desarmamento, e no art. 33, §1°, inciso IV,677 da Lei de Drogas.

Mais recentemente ainda, o Pacote Anticrime também alterou a Lei das Organizações Criminosas para tratar da matéria. Consoante disposto no art. 10-A da Lei n. 12.850/13, será admitida a ação de agentes de polícia infiltrados virtuais, obedecidos os requisitos do caput do art. 10, na internet, com o fim de investigar os crimes previstos no referido diploma normativo e a eles conexos, praticados por organizações criminosas, desde que demonstrada sua necessidade e indicados o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de co­ nexão673 ou cadastrais674 que permitam a identifi­ cação dessas pessoas. Será admitida a infiltração se houver indícios de infração penal de que trata o art. Io da Lei n. 12.850/13 e se as provas não puderem ser produzidas por outros meios dispo­ níveis. A infiltração em questão será autorizada pelo prazo de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais renovações, mediante ordem judicial fundamentada e desde que o total não exceda a 720 (setecentos e vinte) dias e seja comprovada sua necessidade. Findo esse prazo, o relatório circuns­ tanciado, juntamente com todos os atos eletrônicos praticados durante a operação, deverão ser regis­ trados, gravados, armazenados e apresentados ao juiz competente, que imediatamente cientificará o Ministério Público. Outrossim, consoante dispos­ to no art. 10-C da Lei n. 12.850/13, incluído pelo Pacote Anticrime, não comete crime o policial que oculta a sua identidade para, por meio da internet, colher indícios de autoria e materialidade dos cri­ mes previstos no art. Io da Lei n. 12.850/13, deven­ do, todavia, responder pelos excessos praticados quando deixar de observar a estrita finalidade da investigação.

Uma breve leitura dos referidos dispositivos legais demonstra que estamos diante de verdadei­ ras técnicas especiais de investigação, passíveis de execução exclusivamente por agentes policiais, dos quais se demanda a capacidade de atuar de maneira dissimulada para fins de obtenção de elementos de informação quanto à materialida­ de e autoria da infração penal, sem exercer, po­ rém, qualquer forma de intervenção no seu curso causai. Na sistemática introduzida no Estatuto do Desarmamento e na Lei de Drogas, tem como objetivo precípuo evitar que a dispersão de armas e drogas seja feita por meio de pequenas quanti­ dades (tráfico formiguinhaf Ao se fazer passar por um possível comprador (ou recebedor) de arma de fogo, drogas ou matéria-prima, o agente policial disfarçado objetiva, precipuamente, assegurar a criminalização autônoma dos crimes de comércio ilegal de arma de fogo, tráfico internacional de arma de fogo e tráfico de drogas, afastando-se, assim, todo e qualquer entendimento no sentido de que a conduta em questão poderia vir a caracterizar flagrante preparado, logo, crime impos­ sível, diante da ineficácia absoluta do meio, conforme previsto na súmula n. 145 do STF (“Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”). Nesse caso, ainda que se queira objetar que o agente disfarçado tenha, de fato, contribuído na cadeia causai da conduta delituo­ sa, o fato de o legislador ter tipificado, como crime autônomo, o envolvimento preexistente - por isso, voluntário - do investigado com a venda ou entrega desses artefatos ao policial, já será o suficiente para que se possa atestar o preenchimento de todas as elementares da figura típica, autorizando, pois, não apenas eventual prisão em flagrante, mas também a deflagração da persecução penal in iudicio.

16. AGENTE POLICIAL DISFARÇADO

Dentre tantas inovações introduzidas pelo Pa­ cote Anticrime no direito penal e processual penal brasileiro, uma delas merece especial atenção: o agente disfarçado, doravante previsto nos arts. 17,

673. Consideram-se dados de conexão as informações referentes à hora, data, início, término, duração, endereço de Protocolo de Internet (IP) utilizado e terminal de origem da conexão (Lei n. 12.850/13, art. 10-A, §1°, I, incluído pela Lei n. 13.964/19). 674. Consideram-se dados cadastrais as informações referentes a nome e endereço de assinante ou de usuário registrado ou autenticado para a conexão a quem endereço de IP, identificação de usuário ou código de acesso tenha sido atribuído no momento da conexão (Lei n. 12.850/13, art. 10-A, §1°, II, incluído pela Lei n. 13.964/19).

675. Lei n. 10.826/03. "Art. 17. (...) §2° Incorre na mesma pena quem vende ou entrega arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente". 676. Lei n. 10.826/03. "Art. 18. (...) Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem vende ou entrega arma de fogo, acessório ou munição, em operação de importação, sem autorização da autoridade competente, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente". 677. Lei n. 11.343/06."Art. 33. (...) §1°(...) IV-vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elemen­ tos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente".

TÍTULO 6 • PROVAS

Como deixa entrever o art. 17, §2°, infine, o art. 18, parágrafo único, infine, ambos da Lei n. 10.826/03, e o art. 33, §1°, IV, infine, da Lei n. 11.343/06, todos incluídos pela Lei n. 13.964/19, a validade da atua­ ção do agente disfarçado, que independe de prévia autorização judicial, está condicionada à presença de elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. Ou seja, há necessidade de uma causa provável capaz de indicar que o criminoso já havia realizado uma conduta delituosa em momento an­ terior, característica esta que distancia esta técnica especial de investigação do flagrante preparado, por­ quanto evidencia que o crime em questão já teria sido praticado de maneira livre, consciente e voluntária, leia-se, sem qualquer induzimento.

Exemplificando, se um policial, anonimamente, induz alguém a lhe fornecer determinada quantida­ de de droga, que, no momento, sequer possuía, sem que houvesse, ademais, quaisquer elementos proba­ tórios razoáveis de conduta criminal preexistente, efetuando sua prisão momentos depois por ocasião da entrega da droga, há de se concluir que o “tráfi­ co” em questão seria fruto da conduta proativa do agente provocador, caracterizando-se, pois, evidente hipótese de flagrante preparado.678 Por outro lado, na eventualidade de haver um levantamento pré­ vio por parte de policiais em um evento qualquer, demonstrando que determinado indivíduo estaria vendendo drogas em pequenas quantidades, sem mantê-las consigo antes de receber cada proposta, eventual venda da droga ao agente disfarçado terá o condão de tipificar o crime do art. 33, §1°, IV, da Lei n. 11.343/06, pouco importando, in casu, que com o traficante seja localizada exclusivamente a exata quantidade de droga comercializada.679 Como se pode notar, não existisse o novel tipo penal en­ volvendo o agente disfarçado, a prisão em flagrante do traficante pelos demais verbos núcleos do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06 não seria viável, porquan­ to descartada a voluntariedade acerca da posse da droga envolvida na negociação.680* 678. RT 707/293.

679. É exatamente nesse sentido a lição de Renee do Ó Souza e outros. A nova figura do agente disfarçado prevista na Lei n. 13.964/2019. Dispo­ nível em: Acesso em 24/01/2020 às 22:35. Os autores definem o agente disfarçado como"aquele que, ocultando sua real identidade, posiciona-se com aparência de um cidadão comum (não chega a infiltrar-se no grupo criminoso) e, a partir disso, coleta elementos que indiquem a conduta criminosa preexistente do sujeito ativo. O agente disfarçado ora em estudo não se insere no seio do ambiente criminoso e tampouco macula a voluntariedade na conduta delitiva do autor dos fatos". 680. Era nesse sentido, aliás, o entendimento jurisprudencial em mo­ mento anterior à entrada em vigor da Lei n. 13.964/19: "Não há crime na operação preparada de venda de droga, quando não preexiste sua posse pelo acusado. Fica descaracterizado o delito para o réu que tão só dele

Não se pode confundir o agente disfarçado com o agente provocador, tampouco com o agen­ te infiltrado. A atuação do agente provocador, ge­ ralmente realizada sem prévia autorização judicial, caracteriza-se pela instigação de alguém à prática de determinado delito, sem que esta pessoa tivesse pre­ viamente tal propósito, o que retira a neutralidade causai de sua conduta no cometimento da infração. Na sequência, adota todas as precauções para que o delito não se consume (v.g. prisão em flagrante). Cui­ da-se, na visão dos Tribunais Superiores - súmula n. 145 do STF -, de hipótese de crime impossível diante da ineficácia absoluta do meio (CP, art. 17). Por sua vez, agente infiltrado é aquele que tem autorização judicial para se infiltrar em determinada organiza­ ção criminosa (Lei n. 12.850/13, art. 10, caput), tor­ nando-se, aparentemente, um deles, com o objetivo de colher elementos capazes de proporcionar seu desmantelamento, devendo agir precipuamente de maneira passiva (neutra) no que toca às atividades ilí­ citas exercidas pelo grupo investigado, é dizer, não os instigando à prática de qualquer ilícito, sob pena de se transformar em verdadeiro agente provocador. Sua atuação caracteriza-se sobremaneira pela confiança que almeja conquistar dos integrantes da organização criminosa, o que mais adiante facilitará seu acesso a informações que interessam aos órgãos persecutórios (v.g., revelação da estrutura hierárquica, identificação dos demais integrantes, etc.). Em sentido diverso, a atuação do agente disfarçado não está condicionada à autorização judicial prévia, nem tampouco de prévia comunicação ao juiz competente, como se exige no caso da ação controlada (Lei n. 12.850/13, art. 8o, §1°). Conquanto se assemelhe ao agente infiltrado no sentido de que ambos ocultam sua verdadeira iden­ tidade, diferencia-se daquele pelo fato de que não há necessidade de se ganhar a confiança do grupo criminoso.681

É nesse sentido a lição de Vinícius Marçal e Cleber Masson: “Por todas essas razões, não se deve confundir a técnica especial de investigação da ação controlada com a figura do agente policial disfarça­ do (criado pela Lei n. 13.964/19 - Pacote Anticri­ me). O agente disfarçado atua independentemente de autorização judicial ou de prévia comunicação ao juízo e não investiga, necessariamente, ações praticadas por organizações criminosas. O agen­ te disfarçado encobre a sua real identidade com o

participou em conluio com policiais, visando a repressão ao narcotráfico". (STF, 2a Turma, HC 70.235/RS, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 08/03/94, DJ 06/05/1994). E também: STJ, 6aTurma, HC 17.483/G0, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 04/02/2002 p. 568. 681. Nesse sentido: PEREIRA, Flávio Cardoso. Agente encubierto como médio extraordinário de investigación: perspectivas desde el garantismo procesalpenal. Bogotá: Grupo Editoral Ibánez, 2013. p. 275-334.

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intuito de coletar informações que indiquem o en­ volvimento preexistente - e, por isso, voluntário do investigado com o comércio irregular de armas e drogas, sem fazer nascer nele o intuito delitivo (ao contrário do que ocorre com o provocador). Ademais, o agente disfarçado não precisa manter o seu alvo sob vigilância perene, como acontece na

ação controlada. Não obstante essas diferenças, os dois institutos - respeitados os requisitos legais de cada qual - podem se fazer presentes de maneira concomitante. Ou seja, uma ação controlada pode ser levada a efeito com ou sem um agente policial disfarçado”.682

682. MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. São Paulo: Método, 2020.

TÍTULO

7 MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

CAPÍTULO I

DAS PREMISSAS FUNDAMENTAIS E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS 1. A TUTELA CAUTELAR NO PROCESSO PENAL Apesar de não ser possível se admitir a existên­ cia de um processo penal cautelar autônomo, certo é que, no âmbito processual penal, a tutela jurisdi­ cional cautelar é exercida através de uma série de medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal e na legislação especial, para instrumentalizar, quando necessário, o exercício da jurisdição. Afinal, em sede processual penal, é extremamente comum a ocorrência de situações em que essas providências urgentes se tornam imperiosas, seja para assegurar a correta apuração do fato delituoso, a futura e possível execução da sanção, a proteção da própria coletivi­ dade, ameaçada pelo risco de reiteração da conduta delituosa, ou, ainda, o ressarcimento do dano cau­ sado pelo delito.

Com efeito, de nada valeria, por exemplo, uma sentença condenatória à pena privativa de liberda­ de, se o acusado já tivesse se evadido do distrito da culpa; ou garantir à parte o direito de produzir de­ terminada prova testemunhai se, ao tempo da instru­ ção processual, essa testemunha já estivesse morta. É evidente, pois, que o processo penal precisa dispor de instrumentos e mecanismos que sejam capazes de contornar os efeitos deletérios do tempo sobre o processo. Afinal, como advertiu Calamandrei, sem a

cautela ter-se-ia um remédio longamente elaborado para um doente já morto.1 Daí a importância da tutela cautelar no proces­ so penal, a qual é prestada independentemente do exercício de uma ação dessa natureza, que daria ori­ gem a um processo cautelar com base procedimental própria, mas sim através de medidas cautelares que podem ser concedidas durante toda a persecução penal, seja na fase investigatória, seja no curso do processo. Essas medidas cautelares inserem-se nas restrições reclamadas pelo Estado Democrático de Direito à coerção para assegurar a finalidade do processo.2 A razão de ser desses provimentos cautelares é a possível demora na prestação jurisdicional, funcio­ nando como instrumentos adequados para se evitar a incidência dos efeitos avassaladores do tempo so­ bre a pretensão que se visa obter através do processo. Como já observava Calamandrei, os provimentos cautelares “representam uma conciliação entre duas exigências geralmente contrastantes na Justiça: a da celeridade e a da ponderação. Entre fazer logo porém mal e fazer bem, mas tardiamente, os provimentos cautelares visam, sobretudo, a fazer logo, permitindo que o problema do bem e do mal, isto é, da justiça intrínseca da decisão seja resolvido posteriormen­ te, de forma ponderada, nos trâmites vagarosos do processo ordinário”.3 1. CALAMANDREI, Piero. Introduzione alio studio sistemático deiprovvedimenti cautelari. Pádova: Cedam, 1936, p. 19.

2. Essa coerção pode ser compreendida como o uso efetivo ou poten­ cial da força estatal para obter determinados objetivos, cujo cumprimento pelo indivíduo é obrigatório.

3. CALAMANDREI, Piero. Op. cit. p. 20.

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Essas medidas cautelares processuais penais estão elencadas de modo atécnico no Código de Processo Penal, podendo ser encontradas tanto no título que versa sobre provas, como também no tí­ tulo pertinente à prisão, às medidas cautelares e à liberdade provisória (nova denominação do Título IX do Livro I do CPP), ou, ainda, dentre os inciden­ tes relativos às medidas assecuratórias. Além dessas medidas cautelares, também não podemos nos es­ quecer das chamadas medidas de contracautela, as quais visam à eliminação do dano provocado pela concessão da medida cautelar, funcionando como uma espécie de antídoto em relação às medidas cau­ telares, tal como acontece com a prisão em flagrante legal, que tem como substitutivo a liberdade provi­ sória, com ou sem fiança. É bem verdade que, com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, o legislador procurou dar uma nova disciplina às medidas cau­ telares no processo penal, porém tais modificações atingiram apenas os provimentos cautelares relativos à liberdade de locomoção do agente. A despeito dessa falta de técnica do legislador, é possível apontar uma classificação própria das medidas cautelares no processo penal:

a) medidas cautelares de natureza patrimo­ nial: são aquelas relacionadas à reparação do dano e ao perdimento de bens como efeito da condena­ ção. Como exemplos, podemos citar as medidas assecuratórias dispostas entre os artigos 125 e 144 do estatuto processual penal (sequestro, arresto e hipoteca legal), e a restituição de coisas apreendi­ das, prevista nos arts. 118 a 124 do CPP, quando requerida e deferida pelo juiz. Quanto a esta última, é bem verdade que a apreensão de coisas, prevista no art. 6o, I e II, do CPP, não tem a natureza estrita de medida cautelar, por se tratar de mera medida assecuratória administrativa. Porém, a restituição de coisas apreendidas, mormente quando pleitea­ da em juízo, funciona como medida cautelar (ou contracautela patrimonial), pois é o instrumento de que se utiliza o interessado para reincorporar ao seu patrimônio os bens apreendidos no processo;4

b) medidas cautelares relativas à prova: são aquelas que visam à obtenção de uma prova para o processo, com a finalidade de assegurar a utilização no processo dos elementos probatórios por ela revela­ dos ou evitar o seu perecimento. A título de exemplo, podemos citar a busca domiciliar (e pessoal), prevista nos arts. 240 e seguintes do CPP, assim como a produ­ ção antecipada de prova testemunhai, disposta no art. 4. Nessa linha: LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no processo penal. Op. cit. p. 159.

225 do CPP, também conhecida como depoimento ad perpetuam rei memoriam, que também está prevista no art. 366 do CPP. Outro bom exemplo de medida cautelar probatória consta do art. 19-A, parágrafo úni­ co, da Lei n° 9.807/99, com redação dada pela Lei n° 12.483/11, que passou a prever que, qualquer que seja o rito processual criminal, o juiz, após a citação, tomará antecipadamente o depoimento das pessoas incluídas nos programas de proteção previstos na referida Lei;

c) medidas cautelares de natureza pessoal: são aquelas medidas restritivas ou privativas da li­ berdade de locomoção adotadas contra o imputado durante as investigações ou no curso do processo, com o objetivo de assegurar a eficácia do processo, importando algum grau de sacrifício da liberdade do sujeito passivo da cautela, ora em maior grau de intensidade (v.g., prisão preventiva, temporária), ora com menor lesividade (v.g., medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP).

1.1. Lei n° 12.403/11 e o fim da bipolaridade das medidas cautelares de natureza pessoal previstas no Código de Processo Penal Durante anos e anos, nosso sistema processual penal ofereceu ao magistrado apenas duas opções de medidas cautelares de natureza pessoal: prisão cautelar ou liberdade provisória, lembrando que, antes do advento da Lei n° 12.403/11, esta medida de contracautela só podia ser concedida àquele que fora anteriormente preso em flagrante. Tem-se aí o que a doutrina denominava de bipo­ laridade cautelar do sistema brasileiro. Significa dizer que, no sistema originalmente previsto no CPP, ou o acusado respondia ao processo com total privação de sua liberdade, permanecendo preso cautelarmente, ou então lhe era deferido o direito à liberdade provisória, seja com a obrigação de comparecer aos atos processuais, na hipótese de liberdade provisória sem fiança, seja mediante o compromisso de com­ parecer perante a autoridade, todas as vezes que fosse intimado para atos do inquérito, da instrução criminal e para o julgamento, proibição de mudança de residência sem prévia permissão da autoridade processante, e impossibilidade de se ausentar por mais de 8 (oito) dias da residência sem comunicar à autoridade o lugar onde poderia ser encontrado, no caso da liberdade provisória com fiança.

Essa reduzida gama de opções de medidas cau­ telares de natureza pessoal era causa de evidente prejuízo, quer à liberdade de locomoção do agente, quer à própria eficácia do processo penal. Afinal, se é verdade que é muito comum o surgimento de situações que demandam a decretação de medidas

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

cautelares, também é verdade que nem sempre a prisão cautelar era o instrumento mais idôneo e adequado para salvaguardar a eficácia do processo ou das investigações. Como o juiz não era dotado de outras opções, ou decretava a privação de liber­ dade do acusado ou deixava de decretar a medida extrema, o que, às vezes, colocava em risco a própria eficácia do processo. Seguindo a orientação do direito comparado, e com o objetivo de por fim a esta bipolaridade cau­ telar do sistema do Código de Processo Penal, a Lei n° 12.403/11 ampliou de maneira significativa o rol de medidas cautelares pessoais diversas da prisão cautelar, proporcionando ao juiz a escolha da pro­ vidência mais ajustada ao caso concreto, dentro de critérios de legalidade e de proporcionalidade. De acordo com a nova redação do art. 319 do CPP, são previstas 9 (nove) medidas cautelares diversas da prisão, todas aplicáveis pelo juiz, de forma isolada ou cumulativa, como vínculos da liberdade provisó­ ria (CPP, art. 321), ou, ainda, de forma autônoma à prisão, sendo que o art. 320 do CPP também passou a prever a possibilidade de retenção do passapor­ te quando for imposta ao acusado a proibição de se ausentar do país. Daí o motivo da mudança da designação do Título IX do Livro I do CPP: antes relativo à prisão e à liberdade provisória, a nova denominação do Título IX é: “Da prisão, das medi­ das cautelares e da liberdade provisória”. A rigor, o título em questão deveria ser chamado de medidas cautelares de natureza pessoal, já que a prisão em fla­ grante, a prisão preventiva e a liberdade provisória nele previstas são espécies de medidas cautelares.

Essa mudança reflete tendência mundial conso­ lidada pelas diretrizes fixadas nas Regras das Nações Unidas sobre medidas não privativas de liberdade, as conhecidas Regras de Tóquio, de 1990. Esta De­ claração refletiu a percepção de que as medidas cautelares, notadamente as de natureza pessoal, por privarem o acusado de um de seus bens mais preciosos - a liberdade -, quando ainda não há de­ cisão definitiva sobre sua responsabilidade penal, devem possuir um caráter de ultima ratio, sendo utilizadas tão somente quando não for possível a adoção de outra medida cautelar menos gravosa, porém de igual eficácia. Além do menor custo pes­ soal e familiar dessas medidas cautelares diversas da prisão, o Estado também é beneficiado com a sua adoção, porquanto poupa vultosos recursos hu­ manos e materiais, indispensáveis à manutenção de alguém no cárcere, além de diminuir os riscos e malefícios inerentes a qualquer encarceramento, tais como a transmissão de doenças infectocontagiosas, estigmatização, criminalização do preso, etc.

Com efeito, o uso abusivo da prisão cautelar é medida extremamente deletéria, porquanto contri­ bui para diluir lações familiares e profissionais, além de submeter os presos a estigmas sociais. Não à toa, os índices de reincidência no país chegam a 85%. O uso excessivo do cárcere ad custodiam também con­ tribui para uma crescente deterioração da situação das já superlotadas e precárias penitenciárias bra­ sileiras. Basta ver os episódios recentes envolvendo presídios em Pedrinhas, Cascavel e Porto Alegre. De mais a mais, levando-se em conta que é comum não haver qualquer separação entre presos provisórios e definitivos, nem tampouco entre presos que come­ teram crimes com diferentes graus de violência, tais pessoas são expostas a um possível recrutamento por organizações criminosas, que vêm ganhando cada vez mais força em nosso sistema penitenciário. Daí a importância da ampliação do leque de medidas cautelares de natureza pessoal diversas da prisão, proporcionando ao juiz a escolha da provi­ dência mais ajustada ao caso concreto. Em certas situações, a adoção dessas medidas pode inclusive evitar a decretação da prisão preventiva, porquanto o juiz pode nelas encontrar resposta suficiente para tutelar a eficácia do processo, sem necessidade de adoção da medida extrema do cárcere ad custodiam. Na verdade, como observa com propriedade Pierpaolo Bottini, a superação dessa dualidade medíocre (prisão ou nada) “protege, de forma mais efetiva, o processo, o acusado e a própria sociedade. O pro­ cesso, porque surge um novo rol de medidas pro­ tetivas à ordem dos trabalhos. O acusado, porque a prisão cautelar, ato de extrema violência, fica restrita como opção extrema e última. A sociedade, porque a redução da prisão cautelar significa o desencarceramento de cidadãos sem condenação definitiva, que eram submetidos desde o início do processo ao contato nefasto com o submundo de valores criados pela cultura da prisão”.5

Essas medidas cautelares diversas da prisão previstas nos arts. 319 e 320 do CPP podem ser adotadas: a) como instrumento de contracautela, subs­ tituindo anterior prisão em flagrante, preventiva ou temporária: como deixa entrever a nova redação do art. 321 do CPP, ao receber o auto de prisão em flagrante, se o juiz verificar a ausência dos requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, deve conceder ao preso liberdade provisória, im­ pondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas 5. 4s reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 455.

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no art. 319, observados os critérios de necessidade e adequação do art. 282,1 e II, do CPP;6

b) como instrumento cautelar ao acusado que estava em liberdade plena: desde que presentes seus pressupostos, as medidas cautelares diversas da prisão listadas nos arts. 319 e 320 do CPP tam­ bém podem ser aplicadas de maneira autônoma, ou seja, como medidas que não guardam nenhum vínculo com anterior prisão em flagrante, preventiva ou temporária. É o que se extrai da nova redação do art. 282, § 2o, do CPP. O art. 282, § 3o, do CPP, também reforça o entendimento de que as medidas cautelares do art. 319 do CPP podem ser decreta­ das autonomamente, ao prever que, “ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cau­ telar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo” (nos­ so grifo). Logo, não se pode querer restringir o uso das medidas cautelares tão somente às hipóteses de anterior prisão. Afinal, o caput do art. 319 do CPP não faz alusão à modalidade de prisão, limitando-se a indicar quais são as medidas cautelares diversas da prisão. Uma vez que os critérios a serem aplica­ dos na escolha de todas as medidas cautelares de natureza pessoal previstas no Título IX do CPP são coincidentes, à exceção de alguns requisitos comple­ mentares para a prisão preventiva (art. 313), nada impede que, considerando a adequação da medida à gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do agente, opte o magistrado por lhe impor uma ou mais das medidas cautelares diversas da prisão. A vantagem quanto à aplicação autônoma des­ sas medidas cautelares é evidente, já que seus requi­ sitos são menos exigentes quando comparados com os da prisão preventiva. Em outras palavras, com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, persecuções penais em relação a infrações que, pela legislação pretérita, se encontravam desprovidas de providên­ cias acautelatórias, doravante poderão encontrar nas medidas cautelares diversas da prisão importantes instrumentos de tutela cautelar do processo. É ver­ dade que tanto a adoção das medidas cautelares diversas da prisão quanto a decretação da prisão preventiva pressupõem a presença do fumus comissi delicti e do periculum libertatis. Porém, enquanto a prisão preventiva só pode ser decretada nos crimes 6. Concedendo-se a ordem em habeas corpus para fins de se determi­ nar a substituição da prisão preventiva por medidas cautelares diversas da prisão, que, in casu, teriam a mesma eficiência da medida extrema: STF, 2a Turma, HC 132.233/PR, Rel. Min.Teori Zavascki, j. 26/04/2016.

dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos, se o agente for reincidente em crime doloso, ou se o crime envol­ ver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (CPP, art. 313,1, II e III, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11), a de­ cretação das medidas cautelares diversas da prisão exige apenas que à infração penal seja cominada pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou alternativamente cominada. Por isso, no caso do art. 28 da Lei de Drogas - porte de drogas para consumo pessoal -, que não prevê pena privativa de liberdade, inexiste a possibilidade de imposição de qualquer medida cautelar.7

2. PRINCÍPIOS APLICÁVEIS ÀS MEDIDAS CAU­ TELARES DE NATUREZA PESSOAL A adoção de qualquer medida cautelar de natu­ reza pessoal acarreta inegável restrição à liberdade de locomoção, ora com maior intensidade (prisão preventiva e temporária), ora com menor intensi­ dade (medidas diversas da prisão do art. 319 do CPP). Portanto, sua aplicação deve ser feita com fiel observância a alguns princípios.

2.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade) O princípio da presunção de inocência foi ob­ jeto de análise no título introdutório deste livro. De modo a evitarmos repetições desnecessárias, reme­ temos o leitor aos referidos comentários.

2.2. Da jurisdicionalidade (princípio tácito ou implícito da individualização da prisão e não somente da pena) Pelo princípio da jurisdicionalidade, a decreta­ ção de toda e qualquer espécie de medida cautelar de natureza pessoal está condicionada à manifesta­ ção fundamentada do Poder Judiciário, seja previa­ mente, nos casos da prisão preventiva, temporária e imposição autônoma das medidas cautelares di­ versas da prisão, seja pela necessidade de imediata apreciação da prisão em flagrante, devendo o ma­ gistrado indicar de maneira fundamentada, com base em elementos concretos existentes nos autos, a necessidade da segregação cautelar, inclusive com 7. Há tão somente uma restrição relativa à modalidade de crime que comporta tais medidas cautelares: a internação provisória do acusado está condicionada às hipóteses de crimes praticados com violência ou

grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração (CPP, art. 319, VII).

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

apreciação do cabimento da liberdade provisória, com ou sem fiança (CPP, art. 310, II e III). Se a Constituição Federal enfatiza que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legar (art. 5o, LIV), que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (art. 5o, LXI), que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juízo competente (art. 5o, LXII), que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (art. 5o, LXV) e que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança’ (art. 5o, LXVI), fica evidente que a Carta Magna im­ põe a sujeição de toda e qualquer medida cautelar de natureza pessoal à apreciação do Poder Judiciário.8

Não por outro motivo, dispõe o art. 282, § 2o, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 13.964/19, que as medidas cautelares serão decreta­ das pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representa­ ção da autoridade policial ou mediante requerimen­ to do Ministério Público. Na mesma linha, o art. 321 do CPP preceitua que, ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios cons­ tantes do art. 282 do CPP. Em face desses dispositivos, depreende-se que a restrição ao direito de liberdade do acusado deve resultar não simplesmente de uma ordem judicial, mas de um provimento resultante de um procedi­ mento qualificado por garantias mínimas, como a independência e a imparcialidade do juiz, o con­ traditório e a ampla defesa, o duplo grau de juris­ dição, a publicidade e, sobretudo nessa matéria, a obrigatoriedade de motivação (jurisdicionalidade em sentido estrito).9 8. Em alguns países, como na Itália e na Espanha, em hipóteses ex­ cepcionais, permite-se que o Ministério Público ordene a prisão do in­ vestigado por algumas horas, até ulterior homologação pela autoridade judiciária. Na Itália, por exemplo, admite-se o fermo, previsto no art. 384 do Código de Processo Penal, instrumento utilizado para deter pessoas sobre as quais recaiam graves suspeitas de prática de crime punido com prisão perpétua ou com reclusão não inferior, no mínimo, a dois anos de reclusão e, no máximo, superior a seis anos.

9. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 29. Na dicção de Ferrajoli, a jurisdicionalidade em sentido amplo se resume na singela intervenção de um juiz, ao passo que a jurisdicio­ nalidade em sentido estrito supõe um juízo formulado com observância das garantias processuais.

Destarte, considerando que todas essas me­ didas cautelares afetam, direta ou indiretamente, a liberdade de locomoção, ora com maior (prisão cautelar), ora com menor intensidade (v.g., compa­ recimento periódico em juízo, proibição de acesso a determinados lugares),10 podendo inclusive ser convertidas em prisão preventiva diante do des­ cumprimento das obrigações impostas (CPP, art. 282, § 4o), não se admite que possam ser decretadas por Comissões Parlamentares de Inquérito. Como observa Gilmar Mendes, “o poder de investigação judicial que o constituinte estendeu às CPIs não se confunde com os poderes gerais de cautela de que dispõem os magistrados nos feitos judiciais. Estes não foram atribuídos às Comissões Parlamentares de Inquérito”.11 Como toda e qualquer prisão cautelar depende de ordem escrita e fundamentada da autoridade ju­ diciária competente, forçoso é concluir que o art. 18 do CPPM merece interpretação conforme a Cons­ tituição. Segundo o referido dispositivo, indepen­ dentemente de flagrante delito, o indiciado poderá ficar detido, durante as investigações policiais, até 30 dias, comunicando-se a detenção à autoridade judiciária competente. Esse prazo poderá ser prorro­ gado por mais 20 dias, pelo Comandante da Região, Distrito Naval ou Zona Aérea, mediante solicitação fundamentada do encarregado do inquérito e por via hierárquica. À primeira vista, poder-se-ia pensar que o art. 18 do CPPM também não fora recepcio­ nado pela Constituição Federal, por prever que uma autoridade não judiciária possa decretar a prisão de alguém, independentemente de flagrante delito. No entanto, não se pode olvidar que o próprio in­ ciso LXI do art. 5o da Carta Magna estabelece que ninguém será preso, senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgres­ são militar ou crime propriamente militar, definidos em lei’ (nosso grifo). Excepcionando a Constituição Federal a necessidade de prévia autorização judi­ cial nessas duas hipóteses - transgressão militar ou crime propriamente militar -, forçoso é concluir que o art. 18 do CPPM foi recepcionado em rela­ ção ao crime propriamente militar, hipótese em que 10. Ainda que sejam mais favoráveis ao acusado em relação à decre­ tação da prisão, as medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP representam um constrangimento à liberdade individual, razão pela qual se faz necessária a devida fundamentação para a impo­

sição de qualquer uma das alternativas à segregação, de acordo com o disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal: STJ, 5a Turma, HC 231.817/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 23/04/2013, DJe 25/04/2013. 11. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 997.

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é possível a expedição de mandado de prisão pelo próprio encarregado do inquérito policial militar (CPPM, art. 225). Porém, em se tratando de crimes impropriamente militares, é inviável a decretação de prisão por encarregado, sendo imprescindível pré­ via autorização judicial, salvo no caso de flagrante delito.12 A propósito da autoridade judiciária competen­ te para decretar a prisão cautelar e qualquer outra medida cautelar de natureza pessoal, é importante ressaltar que somente o magistrado no exercício de sua função judicante é que pode decretar a medida cautelar. Supondo, assim, que determinado magis­ trado esteja sendo investigado pela prática de um ilícito, não se pode admitir que sua prisão cautelar seja decretada por um Juiz Corregedor. Como o Corregedor não se encontra no exercício de função jurisdicional propriamente dita, mas sim de caráter administrativo, conduzindo instrução pré-processual, caso entenda que a prisão processual deva ser decretada, não pode simplesmente fazê-lo. Cabe a ele representar ao tribunal competente postulando sua decretação.

Caso uma medida cautelar seja decretada por juízo absolutamente incompetente, grande parte da doutrina entende que tal decisão não pode ser ra­ tificada pelo juízo competente, nos termos do art. 567 do CPP. Porém, é bom destacar que, a partir do julgamento do HC 83.006, o plenário do Supre­ mo passou a admitir a possibilidade de ratificação pelo juízo competente inclusive de atos de caráter decisório.13 Para além da obrigação da intervenção do Po­ der Judiciário em sede de medidas cautelares de natureza pessoal, também deriva desse princípio a necessidade de fundamentação da medida, sen­ do indispensável a demonstração dos motivos que justificam a restrição à liberdade de locomoção de alguém antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, sob pena de nulidade absoluta (CF, art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX). De fato, com o conhe­ cimento dos fundamentos da decisão, torna-se pos­ sível o exercício da ampla defesa e do contraditório em torno da comprovação dos pressupostos em que está assentado o pronunciamento jurisdicional, seja

quanto a aspectos fáticos, seja quanto a interpreta­ ções jurídicas dele oriundas.14 Ressalva especial ao princípio da jurisdicionalidade consta da nova redação do art. 322 do CPP. Segundo este dispositivo, a autoridade policial pode­ rá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Como a liberdade provisória com fiança é espécie de medida cautelar, porquanto su­ jeita o agente às vinculações dos arts. 327 e 328 do CPP, percebe-se que, nesta hipótese do art. 322 do CPP, é possível que a autoridade policial conceda a referida medida cautelar, independentemente de prévia autorização judicial. De todo modo, caso seja verificado que a autoridade policial se excedeu na concessão de liberdade provisória com fiança, é perfeitamente possível a posterior cassação da fiança pela autoridade judicial, nos termos do art. 338 do CPP. Outra exceção ao princípio da jurisdicionalidade, a nosso ver de duvidosa constitucionalidade,15 foi introduzida recentemente na Lei Maria da Penha. Consoante disposto no art. 12-C da Lei n. 11.340/06, incluído pela Lei n. 13.827/19, e posteriormente al­ terado pela Lei n. 14.188/21, verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de vio­ lência doméstica e familiar, ou de seus dependen­ tes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: I - pela autoridade judicial; II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de co­ marca; ou III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. Nas hipóte­ ses dos incisos II e III, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 horas e decidirá, em igual pra­ zo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente. Ademais, por força do art. 12C, §2°, da Lei Maria da Penha, nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.16 14. É nesse sentido a lição de Grinover, Gomes Filho e Fernandes: As

12. Jorge César de Assis (Código de Processo Penal Militar anotado, vol. 1. Curitiba: Juruá, 2004, p. 54-55), Cláudio Amin Miguel e Nelson Coldibelli (Elementos de direito processual penal militar. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 35-37) comungam de entendimento semelhante. Em senti­ do diverso: CARVALHO, Esdras dos Santos. O direito processual penal militar numa visão garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 70. Para mais detalhes acerca da prisão do militar nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, vide abaixo tópico pertinente ao assunto.

nulidades no processo penal. 11a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribu­ nais, 2009. p. 274. Para mais detalhes acerca da exigência de motivação, vide abaixo item pertinente à fundamentação da decisão que decreta a prisão preventiva.

13. STF, Pleno, HC 83.006/SP, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 29/08/2003.

da Lei n. 11.340/06, remetemos o leitor ao Capítulo X ("Da liberdade

15.0 tema é objeto de análise nos comentários à Lei Maria da Penha constantes do nosso livro de Legislação Criminal Especial Comentada. 16. Para mais detalhes acerca da (in) constitucionalidade dessa ve­ dação em abstrato à liberdade provisória constante do §2° do art. 12-C

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2.2.1. Da vedação da prisão cautelar exlege Prisão cautelar ex lege é aquela imposta por força de lei, de maneira automática e obrigatória, in­ dependentemente da análise de sua necessidade por parte do Poder Judiciário. Se não ofende, de per si, a presunção de inocência, ofende indiscutivelmente o princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5o, inc. LXI, da Constituição Federal.17

Exemplo antigo de prisão ex lege é aquele constante da redação original do art. 312 do CPP, quando do advento do estatuto processual penal, segundo o qual a prisão preventiva seria decretada nos crimes a que fosse cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos. Esse art. 312 do CPP, no entanto, foi poste­ riormente alterado por força da Lei n° 5.349/67. Mais recentemente, tínhamos como espécies de prisão ex lege as prisões decorrentes de sentença condenatória ou de pronúncia, decretadas como simples efeito automático de tais decisões, desde que o acusado não fosse primário ou não tivesse bons antecedentes, independentemente da análise de sua necessidade pelo juiz natural. Essas duas espécies de prisão, no entanto, foram extintas pelas Leis 11.689/08 e 11.719/08. Hoje, subsiste a prisão imposta por força de lei tão somente nos casos em que o legislador veda de maneira absoluta e peremptória a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança àquele que foi preso em flagran­ te (v.g., art. 44 da Lei n° 11.343/06; art. 310, §2°, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19), estabele­ cendo verdadeira hipótese de prisão obrigatória, independentemente da análise de sua necessidade pelo Poder Judiciário.18* provisória") deste Título, mais precisamente ao item n. 7 ("Liberdade provisória proibida"). 17. Nessa linha: GOMES, Luiz Flávio. Estado constitucional de direito e a

nova pirâmidejurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 188. Consoan­ te lição de Nicolas Gonzáles-Cuellar Serrano (Proporcionalidady derechos

fundamentalesem elprocesopenal. Madrid:Colex, 1990. p. 278), qualquer norma que determine, obrigatoriamente, restrições à liberdade, seria inconstitucional, porque priva o magistrado "da possibilidade de controlar a proporcionalidade das medidas no caso concreto e, ademais, porque a aptidão da norma para alcançar um fim determinado depende das possibilidades que se concedam ao juiz para graduar a gravidade da ingerência, assim como para adotar medidas mais benignas, questões que não podem ser nunca decididas 'ex ante'e tampouco 'ex post' fre­

quentemente". (Apud in Machado Cruz, op. cit. p. 92).

Ora, se toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado ostenta natureza cautelar, não se pode negar que a única autoridade pública que pode res­ ponder pela aludida tutela é o Poder Judiciário, eis que o que estará sendo acautelado, com a prisão, é, imediatamente, o processo, e, mediatamente, a jurisdição penal.19 Somente o juiz, no exercício de atividade juris­ dicional, é que detém competência para determinar a prisão de alguém. Essa reserva de jurisdição é perfeitamente compreensível, já que, em qualquer Es­ tado Democrático de Direito, é ao Judiciário que se atribui a missão de tutela dos direitos e garantias do indivíduo em face do Estado (liberdades públicas). Afinal, se acaso fosse admitida uma prisão cautelar ex lege, esta resultaria de uma ordem do legislador, feita em abstrato, com base no poder de punir e no fato delitivo em si mesmo. Ter-se-ia, em tal hipótese, uma espécie de prisão cautelar desprovida de análi­ se judicial, sem competência, sem fundamentação judicial e cautelar referida a alguma circunstância fática concreta e devidamente demonstrada, vio­ lando-se, à evidência, o disposto no art. 5o, LXI, da Constituição.20

2.3. Da proporcionalidade Em sede processual penal, o Poder Público não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da proporcionalidade. Daí a importância desse princípio, que se qualifica, enquanto coefi­ ciente de aferição da razoabilidade dos atos estatais, como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.

Referindo-se especificamente à prisão caute­ lar, Roxin adverte que o princípio constitucional da proporcionalidade demanda a restrição da medida e dos limites da prisão preventiva ao estritamente necessário, revelando a verdadeira existência de um Estado de Direito, devendo todos os profissionais do Direito, notadamente os que representam o Estado na persecução penal, estarem cientes dos males que qualquer encarceramento, e em especial o provisó­ rio, produzem no sujeito passivo da medida.

Em suas palavras, “entre as medidas que asse­ guram o procedimento penal, a prisão preventiva é a ingerência mais grave na liberdade individual;

18. Voltaremos a tratar das hipóteses de liberdade provisória proibida mais adiante, onde será demonstrada sua absoluta incompatibilidade com a Constituição Federal. De todo modo, convém destacar, desde já,

que o próprio Plenário do Supremo declarou recentemente a inconsti­ tucionalidade da expressão "e liberdade provisória", constante do art.

44, caput, da Lei n° 11.343/06. Logo, mesmo em relação ao crime de tráfico de drogas, a conversão de anterior prisão em flagrante em preven­ tiva somente será possível se acaso presentes os pressupostos dos arts.

312 e 313 do CPP: STF, Pleno, HC 104.339/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10/05/2012. 19. Nesse contexto: PACELLI, Eugênio de Oliveira. Op. cit. p. 488.

20. Com esse entendimento: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6a ed. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 904/905.

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por outra parte, ela é indispensável em alguns casos para uma administração da justiça penal eficiente. A ordem interna de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito; os Estados totalitários, sob a antítese errônea Estado-cidadão, exagerarão facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do procedimento penal. Num Estado de Direito, por outro lado, a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão. Com isso, o princípio constitucional da proporcionalidade exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário”.21 Portanto, por ocasião da decretação de uma prisão cautelar, impõe-se ao magistrado uma pon­ derada avaliação dos malefícios gerados pelo am­ biente carcerário, agravados pelas más condições e superlotação do sistema carcerário, sem prejuízo, todavia, da proteção dos legítimos interesses da so­ ciedade e da eficácia da persecução penal. Afinal, não se pode perder de vista que o princípio da pro­ porcionalidade possui um duplo espectro, represen­ tado por um âmbito negativo - de proteção contra o excesso - e por um âmbito positivo - de proibição de ineficiência, também chamado de vedação da proteção deficiente.

Ao lado do garantismo negativo, que se traduz na proibição de excesso do Estado em relação ao acusado, trabalha-se, como contraponto, em ga­ rantismo positivo, identificado com a proibição de proteção insuficiente de toda a coletividade, pelo mesmo Estado. É nesta ponderação de valores que reside a busca pela legitimação da prisão cautelar, que deve ser usada como medida de ultima ratio na busca da eficácia da persecução penal. Caso sua decretação tenha o condão de acarretar consequên­ cias mais danosas que o provimento buscado pelo processo penal, a prisão cautelar perde sua razão de ser, transformando-se em medida de caráter exclu­ sivamente punitivo.22 Essa necessidade de o Estado combater a criminalidade e punir o criminoso, e que permi­ te vislumbrar um verdadeiro direito do Estado à 21. ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores dei Puerto; 2000, p. 258. 22. Nessa linha: STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da propor­ cionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Revista da AJURIS, ano XXXII, n° 97, março/2005. p. 180.

investigação e à persecução criminal, decorre do primado da segurança, previsto expressamente como direito fundamental no caput do art. 5o da Carta Magna. Nessa linha de raciocínio, assim se posicionou o Superior Tribunal de Justiça acerca do regime disciplinar diferenciado: “Consideran­ do-se que os princípios fundamentais consagrados na Carta Magna não são ilimitados (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas), vislumbra-se que o legislador, ao instituir o Regime Disciplinar Diferenciado, atendeu ao princípio da proporcionalidade. Legitima a atuação estatal, ten­ do em vista que a Lei n° 10.792/2003, que alterou a redação do art. 52 da LEP, busca dar efetividade à crescente necessidade de segurança nos estabe­ lecimentos penais, bem como resguardar a ordem pública, que vem sendo ameaçada por criminosos que, mesmo encarcerados, continuam comandan­ do ou integrando facções criminosas que atuam no interior do sistema prisional - liderando rebeliões que não raro culminam com fugas e mortes de re­ féns, agentes penitenciários e/ou outros detentos - e, também, no meio social”.23

Em sede de medidas cautelares de natureza pes­ soal, tem-se que a medida somente será legítima quando o sacrifício da liberdade de locomoção do acusado for proporcional à gravidade do crime e às respectivas sanções que previsivelmente venham a ser impostas ao final do processo. Isso porque seria inconcebível admitir-se que a situação do indiví­ duo ainda inocente fosse pior do que a da pessoa já condenada.

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, a obrigatória observância deste subprincípio da pro­ porcionalidade passa a constar expressamente do Título IX, atinente à prisão, às medidas cautelares e à liberdade provisória. Consoante a nova redação do art. 282, inciso II, do CPP, as medidas cautelares previstas no referido Título deverão ser aplicadas observando-se a adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pes­ soais do indiciado ou acusado. Esses parâmetros, é bom que se diga, são válidos não apenas para as cautelares previstas no Título IX do Livro I do CPP, mas também para a prisão temporária, prevista na Lei n° 7.960/89. Portanto, verificada a necessidade da adoção de medida cautelar de natureza pessoal para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução cri­ minal ou para evitar a prática de infrações penais 23. STJ, 5a Turma, HC 40.300/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 22/08/2005 p. 312.

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(CPP, art. 282, I), a intensidade e a qualidade da medida cautelar de natureza pessoal deve ser esta­ belecida segundo os critérios fixados no inciso II do art. 282 do CPP: a) gravidade do crime; b) circuns­ tâncias do fato; c) condições pessoais do indiciado ou acusado.

Destarte, pelo menos em regra, não se pode autorizar a segregação cautelar se não se vislumbra, no caso concreto, a possibilidade de imposição de pena privativa de liberdade de efetivo cumprimen­ to. Além disso, o período de prisão cautelar jamais pode ultrapassar o prazo da pena efetivamente apli­ cável, sob pena de se tratar o não culpável de modo pior que o culpável. Como observa Maier, “parece racional o desejo de impedir que, mesmo nos casos em que a prisão seja admissível, a persecução penal inflija a quem a suporta um mal maior, irremediável, que a própria reação legítima do Estado em caso de condenação. Já numa apreciação vulgar, se apresen­ ta como um contrassenso o fato de que, por uma infração penal hipotética, o imputado sofra mais durante o processo que com a pena que eventual­ mente lhe será aplicada, em caso de condenação, pelo fato punível que lhe é atribuído”.24 Em síntese, a fim de se harmonizar a imposição de qualquer medida cautelar de natureza pessoal com o princípio da proporcionalidade, e com o obje­ tivo de não se emprestar a ela função exclusivamente punitiva, que é própria do momento em que ocorre o trânsito em julgado de sentença penal condenató­ ria, impõe-se concluir que sua decretação somente é possível quando, além de necessária e adequada, não resulte na imposição de gravame superior ao decorrente de eventual provimento condenatório. Bom exemplo disso consta do próprio CPP, ao dis­ por que as medidas cautelares previstas no Título IX não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena pri­ vativa de liberdade (CPP, art. 283, § Io). Essa discussão em torno da proporcionalidade em sentido estrito ganha relevo diante de sistemáti­ cas modificações que vem alterando nossa legisla­ ção penal e processual penal com a inclusão de leis com conteúdo despenalizador, tais como a Lei n° 9.099/95 e a Lei n° 9.714/98. 24. MAIER, Júlio B. J. Derecho Procesal Penal. Tomo I: Fundamentos. 3a ed. Buenos Aires: Editores dei Puerto, 2004, p. 526 (tradução livre). Para que se tenha uma noção exata do quanto a prisão cautelar é mal utilizada no nosso país, recente pesquisa divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça revelou que 90 mil presos provisórios mantidos nas cadeias de todo Brasil, leia-se, 37,2% do total de presos provisó­ rios, acabam sendo absolvidos ou condenados a penas restritivas de direitos ao final do processo. Fonte: http://www.cnj.jus.br/noticias/ cnj/28746-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carcerariabrasileira

Se às contravenções penais e aos crimes cuja pena máxima não seja superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa, sujeitos ou não a procedimento especial (art. 61 da Lei n° 9.099/95, com redação determinada pela Lei n° 11.313/06), afigura-se possível a concessão de benefícios des­ penalizadores como a composição civil dos danos (Lei n° 9.099/95, art. 74) e a transação penal (Lei n° 9.099/95, art. 76), não faz sentido decretar-se uma prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal em relação a tais delitos, haja vista a total au­ sência de homogeneidade entre a medida cautelar e a solução de mérito do processo. O mesmo se diga em relação aos crimes que admitem, em tese, a con­ cessão da suspensão condicional do processo (Lei n° 9.099/95, art. 89). A Lei n° 9.714/98, que alterou o sistema de aplicação de penas restritivas de direitos do Código Penal (CP, arts. 43 e seguintes), também afastou a imposição de pena privativa de liberdade quando as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (até mesmo para o réu reincidente), desde que a pena não seja superior a 4 (quatro) anos e que o crime não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo. A Lei n° 12.403/11 segue claramente essa orientação. Com efeito, na redação antiga, o CPP dizia em seu art. 313, inciso I, que a prisão preventiva seria cabível, em regra, nos crimes dolosos punidos com reclusão. Com a nova redação do art. 313, inciso I, do CPP, a prisão preventiva será cabível, pelo menos em regra, nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liber­ dade máxima superior a 4 (quatro) anos.25 A mudança, como se vê, leva em consideração o quantum de pena previsto para substituição por restritiva de direitos. Em outras palavras, se há um prognóstico de que, ao final do processo, o acu­ sado possa ser beneficiado pela substituição, seria de todo incongruente dar a ele, durante o curso do processo, tratamento mais gravoso, consubstanciado pela prisão cautelar. Pensar diferente, como sugere Antônio Vieira, seria o mesmo “que conceber que se possa amputar uma perna para cessar a dor pro­ vocada por uma inflamação na unha, vale dizer, é Também 25. será cabível a decretação da prisão preventiva no caso de reincidente em outro crime doloso, se o crime envolver violência domés­ tica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, ou quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa e esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, hipótese em que o preso deverá ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida (CPP, art. 313, incisos II e III, e parágrafo único, com redação de­

terminada pela Lei n° 12.403/11).

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compactuar com o inimaginável, com o absurdo! Isto, obviamente, porque ninguém aceitaria fazer uso de um remédio que cause mais sofrimento que a própria enfermidade”.26

Em todas essas hipóteses, a decretação de uma prisão cautelar merece atenção redobrada do ma­ gistrado, ante a probabilidade de que, ao final do processo, não seja imposto ao acusado o efetivo cumprimento de pena privativa de liberdade. Impõe-se uma verificação da homogeneidade da me­ dida adotada, sob pena de o mal causado durante o curso do processo - prisão cautelar - ser bem mais gravoso do que aquele que, possivelmente, pode­ ria ser infligido ao acusado quando de seu término - benefícios despenalizadores da Lei n° 9.099/95, penas restritivas de direitos, etc.27 Portanto, como a medida cautelar não pode constituir um fim em si mesmo, e tendo em con­ ta que a prisão preventiva sempre segue o regime fechado, deve a gradação em abstrato da pena do crime praticado pelo agente funcionar como im­ portante elemento de valoração no momento da apreciação da necessidade de decretação da pri­ são cautelar. Somente assim se consegue evitar o risco de a medida instrumental representar, para o acusado, um mal maior do que o decorrente da própria condenação ainda por vir. De modo algum estamos dizendo que a prisão cautelar jamais po­ derá ser decretada em tais hipóteses. Na verdade, o que se impõe é uma efetiva ponderação judicial a ser feita por ocasião de sua decretação, levando-se em consideração não apenas a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do investigado (CPP, art. 282, II), como também a efetiva viabilidade de imposição de pena de prisão ao final do processo. Logo, de modo a se evitar que a prisão cau­ telar perca sua razão de ser, passando a desempe­ nhar função exclusivamente punitiva, sempre que o magistrado visualizar que a custódia cautelar pode atingir ou ultrapassar o limite máximo abstrato que a pena resultante da condenação poderia alcançar, deve se abster de adotar a medida extrema, pena de incorrer em grave vício que afasta a legitimidade e justificação das medidas cautelares - o periculum in mora inverso -, que ocorre quando houver dano irreparável à parte contrária, ou seja, quando o dano resultante da concessão da medida cautelar for su­ perior ao que se deseja evitar.

Mesmo antes do advento das mudanças pro­ duzidas no CPP pela Lei n° 12.403/11, os Tribunais Superiores já vinham confirmando a importância do princípio da proporcionalidade quando da decreta­ ção de uma prisão cautelar. A Ia Turma do Supremo, por exemplo, concluiu pela impossibilidade de se decretar a prisão preventiva em relação ao delito de porte ilegal de arma de fogo, porquanto a sanção corporal não excede a 4 anos, ensejando a imposi­ ção de pena restritiva de direitos, ante a ausência de violência ou grave ameaça.28 Na mesma linha, em caso concreto apreciado pela 6a Turma do STJ, manifestou-se certo inconformismo quanto à ne­ cessidade de prisão preventiva na hipótese de furto, ainda que qualificado, porquanto a prisão preven­ tiva sempre segue o regime fechado, enquanto, no furto, o regime, em princípio, não seria esse.29 Em outro julgado, a 6a Turma do STJ entendeu que não seria justificável manter o acusado preso em infra­ ção que admite fiança, mormente quando a pena privativa de liberdade em tese projetada não fosse superior a quatro anos.30

3. PRESSUPOSTOS DAS MEDIDAS CAUTELA­ RES: FUMUS COMISSI DELICTI E PERICULUM LIBERTATIS Em que pese a falta de sistematização das cau­ telares no Código de Processo Penal e a inexistência de um processo penal cautelar autônomo, isso não significa dizer que esses provimentos cautelares pos­ sam ser determinados durante a persecução penal sem a observância de requisitos e fundamentos pró­ prios do processo cautelar. Como espécies de provi­ mentos de natureza cautelar, as medidas cautelares de natureza pessoal jamais poderão ser adotadas como efeito automático da prática de determinada infração penal. Sua decretação também está con­ dicionada à presença do fumus comissi delicti e do periculum libertatis. Não se pode pensar que as medidas diversas da prisão, por não implicarem a restrição absoluta da liberdade, não estejam condicionadas à observância dos pressupostos e requisitos legais. Pelo contrário. À luz da garantia da presunção de não culpabilidade 28. STF, 1a Turma, HC 90.443/BA, Rei. Min. Ricardo Lewandowski - Dje 008 03/05/2007. 29. STJ, 6aTurma, HC 88.909/PE, Rei. Min. Nilson Naves, DJ 18/02/2008 p. 70. Reconhecendo a ilegalidade da manutenção da prisão provisória na hipótese em que for plausível antever que o início do cumprimento

26. Leituras Complementares de Processo Penal. Org. Rômulo Moreira. Salvador: Editora Juspodium. 2008. p. 452.

da reprimenda, em caso de eventual condenação, dar-se-á em regime menos rigoroso que o fechado: STJ, 5a Turma, HC 182.750/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 14/05/2013, DJe 24/05/2013.

27. Nessa linha: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17a ed. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. p. 736.

30. STJ, 6a Turma, HC 59.009/SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 03/09/2007 p. 228.

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e da própria redação do art. 282 do CPP, nenhuma dessas medidas pode ser aplicada sem que existam os pressupostos do fumus comissi delicti e do peri­ culum libertatis. Em face do caráter urgente da medida caute­ lar, ao analisar seu cabimento, limita-se o juiz ao exercício de uma mera cognição sumária. Em ou­ tras palavras, quando da adoção de uma medida cautelar, é inviável exigir-se que o juiz desenvolva atividade cognitiva no mesmo grau de profundi­ dade que aquela desenvolvida para o provimento definitivo. Não se decide com base no ius, mas sim no fumus boni iuris. O fumus boni iuris enseja a análise judicial da plausibilidade da medida pleiteada ou percebida como necessária a partir de critérios de mera pro­ babilidade e verossimilhança e em cognição sumá­ ria dos elementos disponíveis no momento, ou seja, basta que se possa perceber ou prever a existência de indícios suficientes para a denúncia ou eventual condenação de um crime descrito ou em investiga­ ção, bem como a inexistência de causas de exclusão de ilicitude ou de culpabilidade.

Em se tratando de medidas cautelares de natu­ reza pessoal, não há falar, porém, em fumus boni iu­ ris, mas sim em fumus comissi delicti. Como destaca Aury Lopes Jr.,31 se o delito é a própria negação do direito, como se pode afirmar que a decretação de uma prisão cautelar está condicionada à comprova­ ção da fumaça do bom direito? Ora, não é a fuma­ ça do bom direito que determina ou não a prisão de alguém, mas sim a comprovação por elementos objetivos dos autos que formam uma aparência de que o delito foi cometido por aquela pessoa que se pretende prender. Daí o uso da expressão fumus comissi delicti, a ser entendida como a plausibili­ dade do direito de punir, ou seja, plausibilidade de que se trata de um fato criminoso, constatada por meio de elementos de informação que confirmem a presença de prova da materialidade e de indícios de autoria do delito.

Apesar de o art. 282 do CPP não exigir expres­ samente a presença do fumus comissi delicti para a adoção das medidas cautelares diversas da prisão, mas apenas que a medida seja necessária e adequada (CPP, art. 282,1 e II), e que à infração penal seja co­ minada pena privativa de liberdade, isolada, cumu­ lativa ou alternativamente (CPP, art. 283, § Io), não se pode perder de vista que estamos diante de um provimento de natureza cautelar. Por isso, embora as exigências para a decretação das medidas cautelares 31. Op. cit. p. 49.

diversas da prisão possam ser menores ou menos intensas do que as exigências feitas para a prisão preventiva, não pode a lei deixar de exigir a presença do fumus comissi delicti, tal como fez para a prisão preventiva, sob pena de possível abuso na aplicação dessas medidas cautelares.32 Daí por que nos parece que, apesar de não haver previsão legal expressa, a aplicação das medidas cautelares alternativas à pri­ são deve observar, por analogia com a disciplina da prisão preventiva, o pressuposto negativo do art. 314 do CPP, razão pela qual não podem ser decretadas se o juiz visualizar que o fato fora praticado sob o abrigo de alguma causa excludente da ilicitude. Esse fumus comissi delicti, indispensável para a decretação da prisão preventiva e de toda e qualquer medida cautelar, vem previsto na parte final do art. 312 do CPP: prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. É indispensável, portanto, que o juiz verifique que a conduta supostamente pratica­ da pelo agente é típica, ilícita e culpável, apontando as provas em que se apoia sua convicção. No tocante à materialidade, como denota a expressão prova da existência do crime constante do art. 312 do CPP, exige-se um juízo de certeza quando da decretação da prisão preventiva. No caso de crimes que deixam vestígios, não há falar em indispensabilidade do exame de corpo de delito para a decretação da prisão preventiva. Na verdade, como é cediço, o laudo pericial pode ser juntado durante o curso do processo, salvo nas hipóteses de drogas (laudo de constatação da natureza da droga - art. 50, § Io, da Lei n° 11.343/06) e crimes contra a pro­ priedade imaterial (CPP, art. 525), em que o exame de corpo de delito assume condição de verdadeira condição específica de procedibilidade.

No que tange à autoria, entretanto, exige o Código a presença de indício suficiente de autoria. Como exposto no tópico atinente à terminologia da prova, a palavra indício possui dois significados: ora é usada no sentido de prova indireta, tal qual preceitua o art. 239 do CPP, ora é usada no sentido de uma prova semiplena, ou seja, aquela com menor valor persuasivo.33 É exatamente neste último senti­ do que a palavra indício é usada no art. 312 do CPP, 32. Nesse contexto: DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. Medi­ das substitutivas e alternativas à prisão cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 281. 33. Não se pode confundir o indício, que é sempre um dado objetivo, em qualquer de suas acepções (prova indireta ou prova semiplena), com a simples suspeita, que não passa de um estado de ânimo. O indício é constituído por um fato demonstrado que autoriza a indução sobre outro fato ou, pelo menos, constitui um elemento de menor valor; a suspeita é uma pura intuição, que pode gerar desconfiança, dúvida, mas também

conduzir a engano.

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da mesma forma que ocorre no art. 126 e no art. 413 do CPP. Como sublinha Antônio Magalhães Gomes Filho, indício suficiente é aquele que autoriza “um prognóstico de um julgamento positivo sobre a au­ toria ou a participação”.34 Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal concluiu que, para a decretação da prisão preventiva, faz-se necessário a verifica­ ção de indícios de autoria, locução na qual indício não tem o sentido específico de prova indireta - e eventualmente conclusivo - que lhe dá a lei (CPP, art. 239), mas, sim, o de indicação, começo de prova ou prova incompleta.35

Por conseguinte, quanto à materialidade deliti­ va, é necessário que haja prova, isto é, certeza de que o fato existiu, sendo, neste ponto, uma exceção ao regime normal das medidas cautelares, na medida em que, para a caracterização do fumus boni iuris, há determinados fatos sobre os quais o juiz deve ter certeza, não bastando a mera probabilidade. Já no tocante à autoria delitiva, não se exige que o juiz tenha certeza desta, bastando que haja elementos probatórios que permitam afirmar a existência de indício suficiente, isto é, probabilidade de autoria, no momento da decisão, sendo a expressão “indício” utilizada no sentido de prova semiplena.36

O periculum in mora, por sua vez, caracteriza-se pelo fato de que a demora no curso do processo principal pode fazer com que a tutela jurídica que se pleiteia, ao ser concedida, não tenha mais eficácia, pois o tempo fez com que a prestação jurisdicional se tornasse inócua, ineficaz.

Em outras palavras, periculum in mora nada mais é do que o perigo na demora da entrega da prestação jurisdicional. No tocante às medidas cau­ telares de natureza real, como o sequestro e o arres­ to, esse conceito de periculum in mora se ajusta de maneira perfeita, pois a demora da prestação juris­ dicional possibilitaria a dilapidação do patrimônio do acusado. Em se tratando de medidas cautelares de natureza pessoal, no entanto, o perigo não deriva do lapso temporal entre o provimento cautelar e o definitivo, mas sim do risco emergente da situação de liberdade do agente. Logo, em uma terminologia mais específica à prisão cautelar, utiliza-se a expres­ são periculum libertatis, a ser compreendida como o perigo concreto que a permanência do suspeito em liberdade acarreta para a investigação criminal, 34. A motivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 223. 35. STF, Pleno, RHC 83.179/PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ

22/08/2003 p. 22. 36. Comunga deste entendimento Gustavo Badaró. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 424.

o processo penal, a efetividade do direito penal ou a segurança social.37

Consoante a nova redação do art. 282, inciso I, do CPP, as medidas cautelares de natureza pessoal deverão ser aplicadas observando-se a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais. O dispositivo guarda estreita semelhança com o art. 312 do CPP, que estabelece que a prisão preventiva poderá ser decretada para assegurar a aplicação da lei penal, por conveniência da instrução criminal, ou como garantia da ordem pública ou da ordem econômica.38 Como se percebe, tanto as prisões cautelares quanto as medidas cautelares diversas da prisão destinam-se a proteger a aplicação da lei penal, a apuração da verdade, ou, ainda, a própria coletivi­ dade, ameaçada pela perspectiva do cometimento de novas infrações penais. O que varia, como se percebe, não é a justificativa para a adoção da caute­ la, mas sim o grau de lesividade decorrente de cada uma delas. Decretar a prisão preventiva com base na garantia de aplicação da lei penal e determinar a proibição de ausentar-se da comarca, com o reco­ lhimento do passaporte do agente (CPP, art. 319, IV, c/c art. 320) têm igual preocupação em assegurar a aplicação da lei penal, variando apenas o quantum de sacrifício da liberdade do agente. É equivocado, portanto, querer condicionar a decretação das medidas cautelares do art. 319 ao não cabimento da prisão preventiva, como o faz o art. 321 do CPP, porquanto qualquer medida cautelar de natureza pessoal toma como parâmetro as mes­ mas circunstâncias que justificam a decretação da prisão preventiva. Na verdade, como bem observa Machado Cruz, “a prisão preventiva é cabível, mas a sua decretação não se mostra necessária, porque, em avaliação judicial concreta e razoável, devidamente motivada, considera-se suficiente para produzir o mesmo resultado a adoção de medida cautelar me­ nos gravosa”.39 Exemplificando, suponha-se que de­ 37. Na dicção do Supremo, "à falta da demonstração em concreto do periculum libertatis do acusado, nem a gravidade abstrata do crime imputado, ainda que qualificado de hediondo, nem a reprovabilidade do fato, nem o consequente clamor público constituem motivos idôneos à prisão preventiva: traduzem sim mal disfarçada nostalgia da extinta prisão preventiva obrigatória". (STF, 1a Turma, RHC 79.200/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13/08/1999 p. 09). 38. Todos esses conceitos serão abordados por ocasião do estudo da prisão preventiva, onde também será discutida a possibilidade de decretação de medidas cautelares de modo a se evitar a prática de novas infrações penais. 39. CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 141.

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terminado funcionário público tenha exigido, para si, vantagem indevida em razão do exercício de suas funções, o que caracteriza o crime de concussão (CP, art. 316). Iniciadas as investigações, a autoridade policial toma conhecimento que o agente continua a praticar o mesmo crime. Nesse caso, evidenciado o perigo que a permanência do acusado em liberdade representa para a coletividade, ante o risco de rei­ teração delituosa, sua prisão preventiva poderia ser decretada com base na garantia da ordem pública. Porém, com a recente introdução das medidas cau­ telares diversas da prisão, ao juiz agora é deferida a possibilidade de adotar um provimento igualmente eficaz, porém com grau de lesividade bem menor. De fato, como a reiteração da prática do crime de concussão só é possível por conta do exercício da função pública, decretada a medida cautelar da sus­ pensão do exercício da função pública (CPP, art. 319, VI), conseguirá o magistrado atingir a mesma finalidade que seria ultimada pela prisão preventiva, a saber, impedir o cometimento de novos crimes. Portanto, verificando o magistrado que tanto a prisão preventiva quanto uma das medidas cau­ telares previstas no art. 319 do CPP são idôneas a atingir o fim proposto, deverá optar pela medida menos gravosa, preservando, assim, a liberdade de locomoção do agente. No entanto, caso a liberda­ de plena do agente não esteja colocando em risco a eficácia das investigações, o processo criminal, a efetividade do direito penal, ou a própria segurança social, não será possível a imposição de quaisquer das medidas cautelares substitutivas e/ou alternati­ vas à prisão cautelar. A despeito de o art. 282,1, do CPP, dispor que as medidas cautelares previstas no Título IX deverão ser aplicadas observando-se a necessidade para apli­ cação da lei penal, para a investigação ou a instru­ ção criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais, quando se analisa o texto do art. 319 do CPP, parece que há medidas cautelares em espécie que aparentemente restringem o âmbito de sua aplicação apenas à deter­ minada finalidade. É o que ocorre, por exemplo, no art. 319, VI, do CPP, onde o legislador faz menção à suspensão do exercício de função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais. À primeira vista, fica parecendo que tal medida só poderia ser utilizada para essa finalidade - evitar a reiteração delituosa. Porém, pensamos que tal entendimento é equivocado, já que todas as medidas cautelares recentemente inse­ ridas no CPP podem ser utilizadas para tentar neu­ tralizar qualquer situação de perigo prevista no art. 282,1, do CPP. O que o art. 319 faz, ao estabelecer a

finalidade de determinada medida, é simplesmente orientar o juiz no sentido de sua aptidão para atin­ gir determinados objetivos, o que, no entanto, não significa que sua decretação não possa ser levada a efeito com o objetivo de neutralizar outros riscos à eficácia do processo. Logo, no exemplo citado, da mesma forma que a suspensão pode ser imposta para impedir a reiteração delituosa, também pode ser aplicada quando houver o risco de que a per­ manência do acusado no exercício da função possa causar prejuízos à produção probatória, em situa­ ções em que o acusado esteja destruindo provas, ameaçando testemunhas, etc. Por fim, é de todo relevante destacar que, para fins de decretação de qualquer medida cautelar, esse periculum libertatis deve ser atual, presente. Afinal, as medidas cautelares são situacionais’, ‘provisionais’, tutelam uma situação fática presente, um risco atual. É dizer, não se admite a decretação de uma medida cautelar para tutelar fatos pretéritos, que não neces­ sariamente ainda se fazem presentes por ocasião da decisão judicial em questão. É exatamente isso o que a doutrina chama de princípio da atualidade (ou contemporaneidade) do perigo (ou do periculum libertatis). Por isso, em caso concreto em que o acu­ sado teria sido intimado acerca de medidas protetivas de urgência no dia 12 de agosto de 2014, sendo registrado no dia seguinte um boletim de ocorrência narrando fatos consistentes em ameaça de morte a sua ex-companheira, mas cuja prisão foi decretada quase um ano depois, no dia 30 de junho de 2015, sem nenhuma referência a outro evento ocorrido nesse intervalo, concluiu a 6a Turma do STJ que a medida em questão não guardaria atualidade e contemporaneidade com os fatos que a justificaram, descaracterizando, assim, o periculum libertatis, daí por que deliberou pela revogação da preventiva.40

4. CARACTERÍSTICAS CAUTELARES

DAS MEDIDAS

As medidas cautelares apresentam as seguintes características:41 40. STJ, 6a Turma, RHC 67.534/RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 17/03/2016, DJe 31/03/2016. No sentido de que a custódia processual do indivíduo desafia a aferição da atualidade do risco que a legitima, incumbindo ao Estado-Juiz, se alterado o quadro processual e fático que a motivou, o reexame da medida gravosa: STF, Ia Turma, HC 126.815/ MG, Rel. Min. Edson Fachin, j. 04/08/2015, DJe 169 27/08/2015. Em caso concreto em que o acusado teria respondido ao processo penal em liber­ dade, mas cuja prisão preventiva foi decretada por ocasião da sentença condenatória justificadamente com base em circunstâncias posteriores à conduta delitiva, indicando, pois, a atualidade dos seus motivos, enten­ deu a 6a Turma do STJ (HC 429.322/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 15/03/2018, DJe 27/03/2018) não haver qualquer ilegalidade. 41. JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11a ed. Rio de Ja­

neiro: Forense, 2002. p. 266.

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a) acessoriedade: a medida cautelar depende de um processo principal, não possuindo vida autô­ noma em relação a este. Essa dependência, todavia, não afasta a possibilidade de decretação da medida cautelar sem o futuro processo, já que pode ocorrer, por exemplo, a decretação de uma prisão cautelar no curso de determinada investigação, sem que ocorra a instauração do processo penal, por se verificar, posteriormente, ser hipótese de arquivamento;

b) preventividade: destina-se a atividade caute­ lar a prevenir a ocorrência de danos de difícil repara­ ção enquanto o processo principal não chega ao fim;

cautelarmente. Se inexiste referibilidade, ou direito referido, não há direito acautelado, ocorrendo neste caso satisfatividade, nunca referibilidade;”43

h) jurisdicionalidade: o poder cautelar é des­ tinado ao magistrado, daí resultando a denominada reserva de jurisdição, consubstanciada pela neces­ sidade de controle jurisdicional sobre a medida cautelar. As mudanças produzidas no CPP pela Lei n° 12.403/11 deixaram bem claro que as medidas cautelares de natureza pessoal devem ser decretadas pela autoridade judiciária competente (art. 282, § 2o, art. 321, caput), ressalvada a possibilidade de a autoridade policial conceder liberdade provisória com fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322);

c) instrumentalidade hipotética e qualificada: a tutela cautelar não é um fim em si mesmo, mas visa a assegurar a eficácia prática da atividade jurisdicio­ nal desempenhada no processo de conhecimento ou de execução. Como instrumento do instrumento - o processo é o instrumento de que se vale o Esta­ do para a aplicação do direito objetivo, enquanto a medida cautelar é um instrumento para assegurar a eficácia do processo - as medidas cautelares têm por escopo tutelar os fins e os meios do processo satisfativo. Diz-se instrumentalidade hipotética porque o resultado que a medida cautelar pretende garantir, por ser futuro, é incerto. Acrescenta-se, ademais, que essa instrumentalidade também é qualificada, porque tutela a função jurisdicional, que, por sua vez, é meio e modo para a realização do Direito;42

i) sumariedade: a cognição nas medidas cautela­ res, em relação à profundidade, não é exauriente, mas sumária. Em razão da natureza urgente dessas medi­ das, o juiz exerce uma cognição sumária, limitada em sua profundidade, permanecendo em nível superficial. Daí por que, por ocasião da decretação dessas medidas, não se faz necessário um juízo de certeza, mas sim de probabilidade de dano (periculum in mora) e de probabilidade do direito (fumus boni iuris).

d) provisoriedade: a eficácia da medida cau­ telar é provisória. Tem justificativa na situação de emergência, deixando de vigorar quando sobrevêm o resultado do processo principal ou qualquer outro motivo que a torne desnecessária;

5.1. Aplicação isolada ou cumulativa das me­ didas cautelares

e) revogabilidade (ou variabilidade): como desdobramento de sua provisoriedade, a manuten­ ção da medida cautelar depende da persistência dos motivos que evidenciaram a urgência da medida necessária à tutela do processo;

f) não definitividade: a decisão relativa à me­ dida cautelar não faz coisa julgada material; g) referibilidade: a medida cautelar deve se refe­ rir a uma situação de perigo a que se destina suplan­ tar. Na lição de Luiz Guilherme Marinoni, “na tutela cautelar há sempre referibilidade a um direito acaute­ lado. O direito referido é que é protegido (assegurado) 42. Como observa Cândido Rangel Dinamarco,"a instrumentalidade das medidas cautelares às principais (cognitivas ou executivas) é instru­ mentalidade eventual e de segundo grau. É eventual, porque se efetivará se e quando houver necessidade do processo principal. É de segundo grau, porque as medidas cautelares colocam-se como instrumento a serviço do instrumento; elas servem à eficiência do provimento jurisdi­ cional principal e este, por sua vez, serve ao direito material e à própria sociedade". (A instrumentalidade do processo. 4a ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1994. p. 261.

5. PROCEDIMENTO PARA A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Como visto acima, o art. 282, § Io, do CPP, estabelece que as medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. Significa dizer que, a depender da adequação da medida e da necessidade do caso concreto, é possível que o juiz adote uma ou mais das medidas acautelatórias, devendo, logicamente, verificar a compatibilidade entre elas. É o que ocorre, por exemplo, com a medida cautelar do recolhimento domiciliar no pe­ ríodo noturno e nos dias de folga, cuja aplicação, a nosso ver, pode (e deve) ser feita em conjun­ to com o monitoramento eletrônico, a fim de se obter maior eficácia em seu cumprimento. Nessa hipótese, é interessante perceber que a própria Lei de Execução Penal, ao tratar da prisão-albergue domiciliar, permite que o juiz defina a fiscaliza­ ção por meio de monitoramento eletrônico quando conceder a prisão domiciliar (Lei n° 7.210/84, art. 146-B, IV, acrescentado pela Lei n° 12.258/10). 43. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tri­ bunais, 1992, p. 79.

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Evidentemente, na hipótese de decretação da prisão cautelar (ou internação provisória), não será possível, pelo menos em regra,44 a cumulação com outra medida cautelar, uma vez que já se estará impondo ao acusado o grau máximo de restrição cautelar, privando-o de sua liberdade de locomo­ ção. Porém, à exceção dessas hipóteses, as demais medidas cautelares poderão ser aplicadas, isolada ou cumulativamente. Aliás, nas hipóteses de prisão domiciliar, também se afigura possível a aplicação cumulativa de uma das medidas cautelares do art. 319 do CPP (v.g., monitoramento eletrônico), por­ quanto há plena compatibilidade entre elas.

5.2. Vedação à decretação de medidas caute­ lares pelo juiz de ofício na fase investigatória e na fase processual Pelo menos até o advento da Lei n. 13.964/19, o Código de Processo Penal vedava a decretação de medidas cautelares de ofício pelo juiz apenas durante a fase investigatória, admitindo-o, todavia, quando em curso o processo criminal. Com a nova redação con­ ferida aos arts. 282, §§2° e 4o, e 311, ambos do Código de Processo Penal, pelo Pacote Anticrime, denota-se que, doravante, não mais poderá o juiz decretar ne­ nhuma medida cautelar de ofício, pouco importando o momento da persecução penal. A mudança em questão vem ao encontro do sistema acusatório. Acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (art. 129,1), o siste­ ma acusatório determina que a relação processual somente pode ter início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (neprocedat judex ex officio). Destarte, deve o juiz se abster de promover atos de ofício, seja durante a fase investigatória, seja durante a fase processual. Afinal, graves prejuízos seriam causados à imparcialidade do magistrado se se admitisse que este pudesse de­ cretar uma medida cautelar de natureza pessoal de ofício, sem provocação da parte ou do órgão com atribuições assim definidas em lei.

Destoa das funções do magistrado exercer qual­ quer atividade de ofício que possa caracterizar uma 44. Pelo menos em regra, quando a prisão cautelar for decretada, não se admite a imposição de outra cautelar pessoal diversa da prisão.

Dissemos em regra, porquanto, na eventualidade de as medidas em ques­ tão atingirem pessoas diversas, é perfeitamente possível a aplicação de ambas. A propósito, em caso concreto em que o proprietário de postos de gasolina fora denunciado como mentor de organização criminosa dedicada ao roubo de combustíveis, havendo fortes indícios de que a pessoa jurídica estaria sendo utilizada para a venda de parte dos produtos roubados e lavagem de dinheiro, concluiu a 5aTurma do STJ (RMS 60.818/ SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 20/08/2019, DJe 02/09/2019) não haver nenhum óbice à decretação da prisão cautelar do indivíduo cumulada com a suspensão do exercício de atividade econômica ou fi­

nanceira da empresa, nos termos do art. 282, §1°, do CPP.

colaboração à acusação. O que se reserva ao magis­ trado, em qualquer momento da persecução penal, é atuar somente quando for provocado, tutelando liberdades fundamentais como a inviolabilidade do­ miciliar, a vida privada, a intimidade, assim como a liberdade de locomoção, enfim, atuando como garantidor da legalidade da investigação, como, aliás, previsto no art. 3°-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19. A Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89) reforça esse argumento. Tendo seu âmbito de incidência limitado à fase preliminar, a própria lei, atenta ao novo sistema acusatório trazido pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, I), jamais possibilitou que o juiz decretasse a medida caute­ lar de ofício. Em outras palavras, se ao juiz não é permitido, durante a fase das investigações, expedir ordem de prisão temporária, cuja vedação consta expressamente do art. 2o, caput, da Lei n° 7.960/89, por que não acolher igual vedação em relação às demais medidas cautelares?

Diante do teor do art. 282, §§ 2o e 4o, c/c art. 311, ambos do CPP, com redação determinada pela Lei n° 13.964/19, conclui-se que, a qualquer mo­ mento da persecução penal, a decretação das medi­ das cautelares pelo juiz só poderá ocorrer mediante provocação da autoridade policial, do Ministério Público ou do ofendido - neste último caso, exclu­ sivamente em relação aos crimes de ação penal de iniciativa privada. Desde que o magistrado seja pro­ vocado, é possível a decretação de qualquer medida cautelar, haja vista a fungibilidade que vigora em re­ lação a elas. Por isso, se o Ministério Público reque­ rer a prisão temporária do acusado, é plenamente possível a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, ou vice-versa. Enfim, havendo representação por parte da autoridade policial ou do Ministério Público, não há falar em decisão ex officio de juiz que se limita a adequar, com base no princípio iura novit curia e no seu poder geral de cautela, o pedido à prisão (ou medida) cautelar cabível.45

Outrossim, se ao juiz não se defere a possibili­ dade de decretar medidas cautelares de ofício na fase investigatória, o mesmo não pode ser dito quanto à possibilidade de revogação ou substituição. De fato, considerando que a revogação ou substituição recai sobre medida anteriormente decretada pelo próprio juiz, em relação à qual fora anteriormente provo­ cado, não há dúvidas acerca da possibilidade de o juiz rever a medida cautelar de ofício, independen­ temente de provocação das partes. É nesse sentido, 45. Nessa linha: STJ, 5a Turma, AgRg no HC 620.474-PR, Rei. Min. João Otávio de Noronha, j. 03.11.2020, DJe 18.11.2020.

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aliás, o teor da Ia parte do §5° do art. 282 do CPP, com redação dada pela Lei n. 13.964/19.

anterior, haja vista a superveniência de novas razões que a justificam;

Em conclusão, considerando-se a nova sistemá­ tica adotada pelo Código de Processo Penal quanto à vedação da atuação ex officio do magistrado quan­ to à decretação de medidas cautelares, especial aten­ ção deverá ser dispensada às seguintes hipóteses:

c) ulterior manifestação ministerial pela re­ vogação de medida cautelar anteriormente de­ cretada pelo magistrado a pedido do Ministério Público e (im) possibilidade de discordância da autoridade judiciária: se ao juiz não é permitido decretar qualquer espécie de medida cautelar de ofí­ cio, seja na fase investigatória, seja na fase proces­ sual, tal qual disposto nos arts. 3°-A, 282, §§2° e 4o, e 311, ambos do CPP, com redação dada pelo Pacote Anticrime, daí, todavia, não se pode concluir que, uma vez decretada, por exemplo, a prisão preventi­ va, mediante requerimento do Ministério Público, encontre-se o magistrado vinculado à subsequente manifestação ministerial pugnando pela revogação da medida ou substituição por cautelares diversas da prisão. O raciocínio, in casu, é bem semelhante àquele constante do art. 385, primeira parte, do CPP, segundo o qual, nos crimes de ação penal pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absol­ vição. É dizer, o que importa é que, no momento inicial, o juiz não tenha agido de ofício. Daí a impor­ tância do oferecimento da denúncia (ou da queixa) para o início do processo penal, e da provocação da autoridade policial, do Ministério Público, do querelante ou do assistente para fins de decretação das medidas cautelares. Porém, uma vez superado o “obstáculo” da inércia da jurisdição, é de todo evidente que recai única e exclusivamente sobre o juiz natural a competência para deliberar sobre a manutenção ou revogação da medida, sob pena de se admitir que parcela relevante de seu poder ju­ risdicional fosse transferido ao Ministério Público (ou à Polícia);46

a) conversão da prisão em flagrante em pre­ ventiva (ou temporária) de ofício por ocasião da sua convalidação judicial: para mais detalhes acer­ ca do assunto, remetemos o leitor ao Capítulo III do presente Título, mais precisamente ao item n. 9 (“Audiência de custódia”);

b) redecretação de medida cautelar diante da superveniência de razões que a justifiquem: consoante disposto no art. 282, §5°, do CPP, o juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como vol­ tar a decretá-la, se sobrevierem razões que a jus­ tifiquem. Dispositivo praticamente idêntico a este consta do art. 316 do CPP, relativo, porém, à prisão preventiva. Quanto à primeira parte dos referidos dispositivos, que fazem referência à possibilidade de o juiz, de ofício, revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, o dispositivo em questão não merece nenhuma crítica. Afinal, se juizes e tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de ha­ beas corpus quando verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal (CPP, art. 654, §2°), não haveria por que se negar ao juiz a possibilidade de agir ex officio em prol da proteção da liberdade de locomoção do indivíduo quando concluísse, por exemplo, que a medida cautelar por ele anteriormente decretada não mais se fizesse ne­ cessária. Na verdade, o problema reside na parte final desses dispositivos, a qual, na contramão de todo o reforço ao sistema acusatório e à garantia da imparcialidade introduzido pela Lei n. 13.964/19, autoriza o juiz a voltar a decretar, de ofício, uma medida cautelar por ele anteriormente revogada ou substituída, quando sobrevierem razões que a justi­ fiquem. Ora, se os arts. 282, §§2° e 4o, e 311 do CPP, ambos com redação alterada pela Lei n. 13.964/19, vedam a decretação ex officio de qualquer medida cautelar, seja durante a fase investigatória, seja du­ rante a fase judicial da persecução penal, revela-se contraditório admitir tal iniciativa nesse caso. Ain­ da que se queira objetar que o magistrado já teria sido provocado anteriormente, quando decretou a cautelar em questão pela primeira vez, não nos pa­ rece possível o “aproveitamento” dessa postulação

d) (im) possibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz no âmbito da vio­ lência doméstica e familiar contra a mulher: de acordo com o art. 20 da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requeri­ mento do Ministério Público ou mediante represen­ tação da autoridade policial”. É bem provável que al­ guns ainda queiram invocar o princípio da especiali­ dade para justificar a subsistência desse dispositivo. 46. A propósito, confira-se:"(...) a prisão preventiva não foi decretada de ofício, mas mediante representação do Ministério Público, de modo que, ainda que ocorra posterior manifestação pela sua substituição por medidas cautelares alternativas, não há ilegalidade na manutenção da

custódia pelo magistrado, quando subsistentes os requisitos do art. 312

do CPP. (...)". (STF, Decisão monocrática proferida no HC 195.009/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 09.12.2020, DJ 14.12.2020).

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Ocorre que o dispositivo em questão não representa nada de novidade em relação ao Código de Proces­ so Penal. De fato, à época em que a Lei Maria da Penha entrou em vigor - 22 de setembro de 2006 os dizeres de seu art. 20 funcionavam como mera transcrição, quase que literal, da redação original do art. 311 do CPP então vigente: “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autorida­ de policial”. Se assim o é, alterada a redação dos art. 282, §§2° e 4o, e 311, ambos do CPP, inicialmente pela Lei n. 12.403/11, para fins de se vedar a possi­ bilidade de decretação de qualquer medida cautelar de ofício pelo juiz durante a fase investigatória, e, agora, com a Lei n. 13.964/19, também durante a fase processual, forçoso é concluir que tal mudança também deverá repercutir no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher.47 Prova disso, aliás, é o próprio art. 13 da Lei n. 11.340/06, segun­ do o qual são aplicáveis as normas do Código de Processo Penal ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher; e) (Im) possibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz por ocasião da pro­ núncia ou da sentença condenatória recorrível: se a regra geral, a partir da vigência do Pacote Anticri­ me, é a impossibilidade de o magistrado decretar de ofício medidas cautelares, seja na fase investigatória, seja na fase processual, especial atenção deverá ser dispensada à prisão preventiva por ocasião da sen­ tença condenatória recorrível (CPP, art. 387, §1°) ou da pronúncia (CPP, art. 413, §3°). Isso porque, em tais hipóteses, não nos parece haver qualquer óbice à atuação ex officio do magistrado. Primeiro porque os dispositivos legais que versam sobre a matéria não sofreram qualquer alteração pela Lei n. 13.964/19. De fato, sem embargo dos inúmeros artigos do Código de Processo Penal que foram alte­ rados (e incluídos) pelo Pacote Anticrime de modo a evidenciar a impossibilidade de atuação ex officio do magistrado a qualquer momento da persecução penal - arts. 3o-A, 282, §§2° e 4o, e 311 -, não houve qualquer mudança dos arts. 387, §1°, e 413, §3°, do CPP. Fosse a intenção do legislador de coibir a atua­ ção ex officio do magistrado nesses momentos pro­ cedimentais, deveria ter promovido, por exemplo, a alteração expressa do art. 387, §1°, do CPP, para 47. Nesse sentido: PINTO, Ronaldo Batista; CUNHA, Rogério Sanches. Violência doméstica: Lei Maria da Pena - comentada artigo por artigo. 4a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 118.

que, à semelhança do que consta da nova redação conferida ao art. 311 do CPP, dispusesse que “o juiz decidirá, fundamentadamente, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”. Se não bastasse esse primeiro argumen­ to, não se pode perder de vista que a vedação à atua­ ção ex officio do magistrado no curso da persecução penal tem como objetivo precípuo a preservação da sua imparcialidade. É dizer, como ser humano que é, se o juiz sumariante, por exemplo, decretar de ofício a prisão preventiva do acusado durante a Ia fase do júri, restará vinculado a esta decisão, e, mesmo que involuntariamente, buscará a sua manutenção por ocasião da pronúncia, superestimando, assim, novas informações que possam confirmá-la, ao mesmo tempo em que tenderá a subestimar outras que a contrariem, sobretudo se levarmos em consideração que a decretação do carcer ad custodiam deman­ da ampla fundamentação e juízo valorativo sobre circunstâncias do fato e do acusado que denotam praticamente um convencimento pré-formado na mente do julgador no sentido de futura pronúncia. Se todo esse raciocínio é válido durante a fase in­ vestigatória e no curso do processo penal, parece de todo evidente que a razão de ser da preservação des­ sa imparcialidade subjetiva e objetiva do magistrado deixa de existir no exato momento procedimental em que a própria Lei impõe a ele a tomada de uma decisão no sentido de condenar (ou absolver) o acu­ sado, ou de pronunciá-lo (impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação). Ora, se o magistrado está proferindo uma decisão condenatória, já não há mais nenhuma justificativa em se vedar sua atuação ex officio, porquanto, neste exato momento proce­ dimental, já externou sua convicção acerca do caso sub judice, daí por que não só pode como deve fazer uso de toda e qualquer medida cautelar que se fizer necessária, independentemente de requerimento das partes, até mesmo de modo a não se evitar uma pos­ sível ineficácia da decisão por ele proferida naquele momento. De fato, seria absolutamente irracional que ao condenar determinado acusado, foragido, por exemplo, há 6 (seis) meses, ficasse o magistrado impossibilitado de decretar eventual prisão preven­ tiva com base na garantia da aplicação da lei penal pelo simples fato de não ter havido requerimento ministerial nesse sentido em sede de alegações orais (ou memoriais). Ter-se-ia, em tal hipótese, eviden­ te denegação da própria tutela jurisdicional, já que o magistrado estaria proibido de adotar medidas cautelares de modo a salvaguardar a eficácia da sua

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própria sentença condenatória. Com efeito, de que adianta conferir ao juiz a competência para delibe­ rar sobre a condenação de alguém se não lhe forem outorgadas, concomitantemente, medidas cautela­ res para resguardar sua eficácia? Por tais motivos, queremos crer que a atuação ex officio do magis­ trado no momento da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível não se revela incompatível com as inúmeras mudanças promovidas pelo Pacote Anticrime.

5.3. Legitimidade para o requerimento de de­ cretação de medida cautelar Durante a fase investigatória, as medidas caute­ lares podem ser decretadas em face de representa­ ção da autoridade policial, assim como em virtude de requerimento do Ministério Público. Durante o curso do processo criminal, tais medidas podem ser decretadas em face de requerimento do Parquet, do querelante ou do assistente. Questão pouco debatida na doutrina diz res­ peito à possibilidade de decretação de medidas cautelares de natureza pessoal, aí incluída a prisão cautelar, durante a fase investigatória, em virtude de representação da autoridade policial, porém sem a prévia oitiva do Ministério Público. De acordo com o art. 129, inciso I, da Consti­ tuição Federal, o Ministério Público é o titular da ação penal pública. Essa titularidade também diz respeito a todas as demais medidas de natureza cau­ telar. Com efeito, devido ao caráter instrumental das medidas cautelares em relação à ação principal, de­ vem elas ser pleiteadas pelo próprio titular da ação de acordo com a estratégia processual considerada eficiente e adequada para viabilizar a ação principal. Assim, a nosso ver, só pode se admitir o manejo das medidas cautelares por parte daquele que es­ teja na legítima condição de parte para o processo principal.

Se o Código de Processo Penal ainda prevê a possibilidade de as medidas cautelares serem de­ cretadas em face de representação da autoridade policial, sem que se refira à necessária e prévia aquiescência do órgão do Ministério Público (CPP, art. 282, § 2o, e art. 311), deve-se compreender que assim o faz porquanto, na vigência da ordem cons­ titucional pretérita, ainda se admitia o compartilha­ mento da titularidade da ação penal pública entre o Ministério Público, delegados de polícia e até a própria autoridade judiciária. De fato, de acordo com o art. 26 do CPP, tido como não recepcionado pela Carta Magna, a ação

penal, nas contravenções, será iniciada com o auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedi­ da pela autoridade judiciária ou policial. Assim, no regime constitucional anterior, admitia-se uma re­ presentação direta entre autoridade policial e Poder Judiciário, na medida em que aquele detinha parcela da titularidade na persecução penal.

Com a titularidade privativa da ação penal pú­ blica por parte do Ministério Público e a consequen­ te adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal de 1988 (art. 129,1), nenhuma outra autori­ dade detém legitimidade para postular medida cau­ telar para fins de instrumentalizar futura ação penal pública. Assim, no caso de representações da auto­ ridade policial noticiando a necessidade de adoção de medidas cautelares para viabilizar a apuração de infração penal, ou até mesmo para assegurar a eficá­ cia de futuro e eventual processo penal, é cogente a manifestação do órgão ministerial, a fim de que seja avaliado se a medida sugerida é (ou não) necessária e adequada aos fins da apuração da infração.48 Por conseguinte, a decretação da prisão preven­ tiva na fase investigatória mediante representação da autoridade policial, que não é parte na relação processual, funciona como verdadeira hipótese de prisão decretada de ofício, o que, como visto acima, não pode ser admitido durante a fase preliminar, diante da adoção do sistema acusatório pela Cons­ tituição Federal de 1988. Tendo em conta que o MP é o titular da ação penal pública, fosse possível a decretação da prisão sem a oitiva do Parquet, poder-se-ia ocorrer de, por exemplo, a prisão preventiva ser decretada em hipótese em que o dominus litis sequer visualizasse a presença de justa causa para oferecer denúncia. Consideramos, pois, indispensá­ vel a oitiva do MP, sob pena de restar caracterizada espécie de prisão preventiva decretada de ofício durante as investigações.49

Admitida a legitimidade exclusiva do Ministé­ rio Público para solicitar a decretação de medidas cautelares na fase investigatória em crimes de ação

48. Como bem adverte MACHADO CRUZ (op. cit. p. 114), "nos casos em que a lei faz menção à representação da autoridade policial (art. 311 do CPP e art. 2o, caput, da Lei n° 7.960/89), deve-se entender tal ato como mero encaminhamento de uma opinião policial, porquanto somente pode haver requerimento, no sentido próprio da palavra, por quem é parte na relação processual e, portanto, detém legitimidade adcausam". Para Geraldo Prado, "a constatação de comportamentos do indiciado prejudiciais à investigação deve ser compartilhada entre a autoridade policial e o Ministério Público (ou

o querelante, conforme o caso), para que o autor da ação penal ajuize seu real interesse em ver a prisão decretada. (Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coorde­ nação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 131).

49. É essa a opinião de José Barcelos de Souza. Direito processual civil e penal. Rio de Janeiro/RJ: Editora Forense, 1995. p. 114.

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penal pública, já que a autoridade policial não é dotada de capacidade postulatória, é importante que haja algum tipo de controle e revisão sobre a atuação ministerial. A sindicabilidade é funda­ mental nesse ponto, já que não se pode admitir a existência de poderes absolutos, insusceptíveis de controle. Logo, a fim de se evitar que eventual discordância do Ministério Público em face de representação formulada pela autoridade policial no sentido da decretação de prisão cautelar fique imune a qualquer tipo de controle, é possível a aplicação subsidiária do princípio da devolução inserido no art. 28 do CPP.50 Assim, como aponta a doutrina, o delegado e/ou magistrado, em caso de discordância do membro do parquet, devem devolver a apreciação da questão ao órgão superior do Ministério Público.51

A despeito dessa posição de parte da doutrina, é dominante o entendimento, sobretudo na juris­ prudência, no sentido de que o Delegado de Polícia pode representar pela decretação de qualquer me­ dida cautelar na fase investigatória, respeitadas as prerrogativas do Ministério Público, o qual deverá se manifestar, sem caráter vinculante, porém, pre­ viamente à decisão judicial. Raciocínio semelhante a este, aliás, já é feito pelos Tribunais quando se discute a legitimidade da Polícia para conduzir e firmar acordos de colaboração premiada.52 Superada tal controvérsia, convém destacar que, pela redação expressa do art. 282, § 2o, infine, do CPP, durante a fase investigatória, o ofendido não teria legitimidade para requerer a decretação de medidas cautelares em crimes de ação penal privada, já que o dispositivo fala apenas em representação da autori­ dade policial ou mediante requerimento do Ministério Público no curso da investigação criminal. Em que pese o teor do referido preceito, pensamos que não há justificativa razoável para não se outorgar ao ofendido legitimidade para requerer a medida na fase investi­ gatória na hipótese de crimes de ação penal privada. Ora, se a lei transfere ao ofendido a legitimidade para a ação penal de iniciativa privada, deve obrigatoria­ mente transferir a ele todos os instrumentos para o exercício do seu direito, dentre os quais o de pleitear a adoção de medidas cautelares.

50. Para mais detalhes acerca da possibilidade de o juiz continuar aplicando o art. 28, caput, do CPP, mesmo após as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime, remetemos o leitor aoTítulo atinente à Investiga­ ção Preliminar, mais precisamente ao item 14.2.3 - "(In) subsistência da aplicação do art. 28 do CPP pelo juiz nas hipóteses de divergência entre

Ainda em relação à legitimidade para requerer a decretação de medidas cautelares, é importante perceber que, de acordo com a antiga redação do art. 311 do CPP, a prisão preventiva somente podia ser decretada mediante representação da autoridade policial, ou mediante requerimento do Ministério Público, ou do querelante.

Com a modificação do CPP pela Lei n° 12.403/11, extrai-se da nova redação do art. 311 que, doravante, o assistente também passa a ter legitimidade para re­ querer a prisão preventiva. Essa legitimidade, todavia, somente pode ocorrer durante o curso do processo. Afinal, segundo o art. 268 do CPP, só se admite a ha­ bilitação do assistente da acusação no curso do pro­ cesso penal. Essa legitimidade do assistente, a nosso ver, também se estende às demais medidas cautelares de natureza pessoal, já que o art. 282, § 2o, faz menção ao requerimento das partes, aí incluído o assistente da acusação. Se o assistente passa a ter legitimidade para re­ querer a decretação de medidas cautelares, forçoso é concluir pela superação do enunciado da súmula n° 208 do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “o assistente do Ministério Público não pode recorrer extraordinariamente de decisão concessiva de ha­ beas corpus”. Ora, se, por força da Lei n° 12.403/11, o assistente passou a ter legitimidade para requerer a prisão preventiva durante o andamento do processo (art. 311), há de se concluir que também passou a ter interesse recursal para impugnar eventual de­ cisão concessiva de habeas corpus relativa à prisão preventiva decretada durante o curso do processo penal.

Os §§ 2o e 4o do art. 282 do CPP nada dizem acerca da legitimidade do investigado ou acusado para requerer a decretação de medidas cautelares, o que, aliás, é bem óbvio, já que dificilmente este teria interesse em postular medida que restringe ou limita direitos próprios atinentes a sua liberdade de locomoção. Porém, tal hipótese não pode ser des­ prezada, porquanto, nos casos em que a acusação postule a imposição de determinada medida cau­ telar, e considerando a previsão do contraditório prévio no art. 282, § 3o, é possível que o acusado, em contraposição a eventual pedido de prisão pre­ ventiva, postule a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, cumulado com medida cautelar diversa da prisão.53

o magistrado e o órgão ministerial".

51. MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pes­ soais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 70. 52. Nesse sentido: STF, Pleno, ADI 5.508/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 20/06/2018.

53.Com esse entendimento: BOTTINI, Pierpaolo. As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. Coordenação Maria The­ reza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

p. 462.

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5.4. Contraditório prévio à decretação das me­ didas cautelares No processo penal, sempre prevaleceu o en­ tendimento de que não seria possível conceber e admitir a intervenção defensiva do investigado e/ou de seu advogado em momento anterior à decretação da prisão cautelar, sob pena de frustração da eficá­ cia da medida cautelar pleiteada. Assim, as medidas cautelares pessoais eram sempre aplicadas inaudita altera pars, ou seja, sem a oitiva da parte contrá­ ria. A defesa, portanto, somente teria condições de interferir na decretação da prisão preventiva e/ou temporária em momento diferido, questionando a legalidade da medida por meio de habeas corpus, isto é, o contraditório era diferido.

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, e na esteira da moderna legislação europeia, o art. 282, § 3o, do CPP, passou a prever o contraditório prévio à decretação da medida cautelar. Em face desse preceito, pelo menos em regra, a parte con­ trária deverá ser chamada para opinar e contra ar­ gumentar em face da representação da autoridade policial, do requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, confiando-se ao juiz a ponderação plena e com visibilidade, em face da presença de mais uma e justificada variável, de todos os aspectos que tangenciam a extensão da medida, permitindo-lhe chegar a um convencimento mais adequado sobre a necessidade (ou não) de adoção da medida cautelar pleiteada. De fato, as razões apresentadas pela defesa técnica podem levar o juiz a não adotar a medida cautelar pretendida, não só em uma hipótese de eventual erro quanto à qualifi­ cação do verdadeiro autor do delito, como também na hipótese em que ele conseguir demonstrar a des­ necessidade do provimento cautelar, ou, ainda, a possibilidade de adoção de medida menos gravosa. Essa bilateralidade da audiência vem parcial­ mente ao encontro da regra positivada no art. 7o, § 5o, do Decreto n° 678/92 (Pacto de São José da Costa Rica) e no art. 9o, § 3o, do Decreto n° 592/92 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque), que conferem ao indivíduo preso o direito de ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz ou de autoridade que detenha atribuição judiciária. É bem verdade que, por força da norma do art. 282, § 3o, do CPP, o acusado não será fisicamente conduzi­ do à presença da autoridade judiciária. Porém, pelo menos em regra, a ele será assegurado o direito de se manifestar previamente quanto à decretação da medida cautelar.

Como o art. 282, § 3o, do CPP, não estabelece qualquer distinção, esse contraditório prévio deve 826

ser observado tanto na fase judicial quanto na fase investigatória, apesar de sabermos que, nesta última, não vigora o contraditório de maneira absoluta. Na mesma linha, considerando-se que o dispositivo está inserido no Capítulo I (“Disposições Gerais”) do Título IX do CPP (“Da prisão, das medidas caute­ lares e da liberdade provisória”), há de se concluir que seu comando normativo é válido, pelo menos em tese, para toda e qualquer espécie de medida cautelar pessoal, inclusive prisões cautelares.54

Apesar de o art. 282, § 3o, do CPP, ter instituído o contraditório prévio à decretação da medida cau­ telar, o próprio dispositivo ressalta que, nos casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o provimento cautelar poderá ser determinado pelo magistrado sem a prévia oitiva da parte contrária. É o que pode ocorrer por ocasião da decretação de prisão preventiva de indivíduo apontado como líder de uma organização criminosa, situação em que a prévia comunicação ao acusado pode levá-lo a em­ preender fuga. Basta imaginar, por exemplo, hipó­ tese de requerimento de decretação de prisão com base na garantia de aplicação da lei penal. Se a pró­ pria decretação da medida já pressupõe a demons­ tração de que o acusado pretende fugir do distrito da culpa, inviabilizando futura e eventual execução da pena, não é leviano concluir que, cientificado o acusado de que o juiz está considerando a possibi­ lidade de prendê-lo cautelarmente, provavelmente irá levar adiante seu desiderato, fugindo. Pensar o contrário é muita ingenuidade.

Nesse caso, a limitação ao exercício do direito de defesa é plenamente constitucional e se apresenta em franca compatibilidade com a prisão cautelar decretada, que pressupõe a surpresa e a imprevidência, preservando a eficácia do processo. Aqui, a defesa terá condições de interferir na decretação da medida cautelar apenas em momento posterior, questionando sua legalidade por meio de eventual recurso ou habeas corpus, hipótese em que o con­ traditório será diferido. Como a observância do contraditório prévio passou a ser a regra em virtude das mudanças pro­ duzidas pela Lei n. 12.403/11, sempre sustentamos, mesmo antes do advento da Lei n. 13.964/19, que se o juiz entendesse que não deveria dar prévia ciência ao acusado da possibilidade de imposição de medi­ da cautelar de natureza pessoal contra sua pessoa, 54. Em sentido diverso, eis o teor do Enunciado n. 31 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM): "Os dispositivos do §3° do art. 282 não se

aplicam à prisão preventiva, mas apenas às cautelares do art. 319 do CPP".

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

deveria fazer constar da motivação de sua decisão a situação de urgência ou de perigo de ineficácia da medida que justificasse a imposição da cautelar inaudita altera pars. Em síntese, o motivo que deu ensejo ao afastamento do contraditório prévio de­ veria fazer parte da fundamentação da decisão. Isso, no entanto, era solenemente ignorado pelos juizes por ocasião da decretação da medida cautelar, o que acabava por esvaziar a importância desse contradi­ tório prévio. Eis o porquê da nova redação conferida ao §3° do art. 282 do CPP pela Lei n. 13.964/19: em sua parte final, o dispositivo prevê expressamente que “os casos de urgência ou de perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que con­ tenha elementos concretos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional”. Com o novo regramento legal, parece não haver mais dúvidas no sentido de que, ausente fundamentação explícita apontado a impossibilidade de observância do con­ traditório prévio em virtude da urgência ou perigo de ineficácia da medida, ter-se-á medida cautelar manifestamente ilegal, passível, pois, de relaxamen­ to, pela instância superior.

5.5. Descumprimento injustificado das obriga­ ções inerentes às medidas cautelares De nada adianta a imposição de determinada medida cautelar se a ela não se emprestar força coer­ citiva. É nesse sentido que se destaca a importância dos arts. 282, § 4o, e 312, §1°, ambos do CPP. Verificado o descumprimento injustificado das medidas cautelares diversas da prisão, o que demonstra que o acusado não soube fazer por me­ recer o benefício da medida menos gravosa, é pos­ sível que o juiz determine a substituição da medida, a imposição de outra em cumulação, ou, em última hipótese, a própria prisão preventiva. O magistra­ do não está obrigado a seguir a ordem indicada no art. 282, § 4o, do CPP. Na verdade, incumbe a ele analisar qual das medidas é mais adequada para a situação concreta. Para tanto, e em fiel observância ao disposto no art. 282, § 3o, deve ser assegurado ao acusado o contraditório prévio, ressalvados os casos de urgên­ cia ou de perigo de ineficácia da medida, apontando o magistrado, fundamentadamente, as razões pelas quais entendeu necessária a substituição da medida, a imposição de outra em cumulação, ou a imposição da prisão preventiva.

Portanto, o descumprimento a que se refere o art. 282, § 4o, do CPP, além de injustificado, deve ser comprovado mediante o devido processo legal,

assegurados ao investigado ou acusado o direito ao contraditório e à ampla defesa, salvo na hipótese de urgência ou de perigo de ineficácia da medida. A decisão judicial determinando a substituição da medida cautelar descumprida, imposição de outra em cumulação, ou até mesmo a prisão preventiva, deve ser devidamente fundamentada, bem como lastreada em critérios de legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, ex vi do art. 282, incisos I e II, do CPP.

Com o advento da Lei n. 13.964/19, suprimindo do §4° do art. 282 do CPP a expressão “de ofício”, o legislador deixa transparecer que a medida em questão jamais poderá ser decretada senão mediante requerimento das partes. À semelhança das mudan­ ças produzidas no §2° do art. 282 e no art. 311 do CPP pelo Pacote Anticrime, o objetivo do legislador é retirar do magistrado qualquer iniciativa quanto às cautelares, mesmo durante o curso do processo, o que, de certa forma, visa à preservação do siste­ ma acusatório e da garantia da imparcialidade do magistrado. Questão que sempre provocou controvérsia na doutrina diz respeito à possibilidade de decretação da prisão preventiva diante do descumprimento in­ justificado das cautelares diversas da prisão se acaso a infração penal não preencher uma das hipóteses do art. 313 do CPP: crime doloso punido com pena máxima superior a 4 (quatro) anos; acusado rein­ cidente em outro crime doloso, ressalvado o lapso temporal de 5 (cinco) anos da reincidência; crime cometido com violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa. A título de exemplo, suponha-se a prática de um crime de lesão corporal leve, previsto no art. 129, caput, cuja pena é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. Inicialmente, visando impedir a reiteração delituo­ sa, já que o acusado estaria ameaçando a vítima, o juiz determinou a imposição da medida cautelar de proibição de manter contato com pessoa deter­ minada (CPP, art. 319, III), in casu, o próprio ofen­ dido. Ocorre que o acusado passou a frequentar, com certa frequência, as imediações próximas ao local de trabalho do ofendido. Ciente do descum­ primento da primeira medida imposta, o juiz, então, resolveu impor outra medida cumulativamente, a saber, proibição de frequentar o local de trabalho da vítima (CPP, art. 319, II). Novamente, o acusado deixou de observar as medidas cautelares impostas pelo juiz. Indaga-se: seria cabível a decretação da prisão preventiva, a despeito de o crime praticado

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pelo agente não se adequar a nenhuma hipótese do art. 313 do CPP?

Por mais que se deva respeitar a homogenei­ dade das medidas cautelares, não se pode negar ao juiz a possibilidade de decretar a prisão preventiva no caso de descumprimento das cautelares diver­ sas da prisão, ainda que ausente qualquer hipótese do art. 313 do CPP, sob pena de se negar qualquer coercibilidade a tais medidas. Realmente, se disser­ mos que, na hipótese de não preenchimento do art. 313 do CPP, jamais será possível a decretação da prisão preventiva diante do descumprimento das cautelares diversas da prisão, o art. 319 do CPP tornar-se-á letra morta em relação a tais delitos. Afinal, se o acusado sabe, antecipadamente, que a inob­ servância das cautelares jamais poderá dar ensejo à conversão em preventiva, isso implica em retirar qualquer força coercitiva das medidas cautelares recém criadas pela Lei n° 12.403/11. De nada terá adiantado, assim, a criação de um amplo e variado leque de medidas cautelares diversas da prisão se, uma vez aplicadas e descumpridas, nada puder ser feito para neutralizar as situações de perigo do art. 282,1, do CPP. Portanto, tendo em conta que a própria eficácia das medidas cautelares diversas da prisão está con­ dicionada, essencialmente, ao seu caráter coercitivo, de onde se extrai a importância da possibilidade de decretação da preventiva como ameaça constante que deve pairar sobre o acusado para a eventuali­ dade de descumprimento injustificado das medidas do art. 319 do CPP, concluímos que, na hipótese do art. 282, § 4o, c/c art. 312, §1°, a preventiva pode ser decretada independentemente da observância do art. 313 do CPP.55

Esse entendimento não acarreta qualquer vio­ lação ao princípio da homogeneidade. Isso porque a concessão de benefícios despenalizadores como a transação penal, suspensão condicional do processo, substituição da pena privativa de liberdade por restri­ tiva de direitos, etc., nem sempre depende apenas do quantum de pena cominado ao delito. Com efeito, a concessão de tais benefícios sempre leva em conside­ ração a análise das circunstâncias judiciais do acusa­ do. A título de exemplo, não se admitirá a proposta de transação penal se os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e 55. No sentido de que a prisão preventiva decretada em razão do descumprimento de medida cautelar anteriormente imposta não está submetida às circunstâncias e hipóteses previstas no art. 313 do CPP: STJ, 5a Turma, HC 281.472/MG, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 05/06/2014, DJe 18/06/2014; STJ, 5a Turma, HC 286.578/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 05/06/2014, DJe 18/06/2014.

as circunstâncias indicarem que tal medida revela-se insuficiente (Lei n° 9.099/95, art. 76, § 2o, III). De modo semelhante, a proposta de suspensão condi­ cional do processo não será apresentada ao acusado se ausentes os requisitos que autorizam a suspensão condicional da pena (Lei n° 9.099/95, art. 89, caput). De seu turno, a substituição por restritiva de direi­ tos pode ser negada se acaso o juiz constatar que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição não seja suficiente (CP, art. 44, III). De mais a mais, não se pode esquecer que a pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorre o descumprimento injustificado da restrição impos­ ta (CP, art. 44, § 4o). Ora, se o descumprimento de uma pena restritiva de direitos autoriza a conversão em pena privativa de liberdade, idêntico raciocínio há de ser aplicado ao descumprimento injustificado de medida cautelar diversa da prisão, autorizando a decretação da prisão preventiva, independentemente da observância do art. 313 do CPP.

Como se vê, a pena em abstrato do delito nem sempre é sinônimo de aplicação de tais benefícios. Ora, tendo em conta que a nova redação do art. 313 do CPP foi pensada exatamente para se impedir a decretação da preventiva nas hipóteses em que não se vislumbra a possibilidade de aplicação de pena de prisão ao final do processo, é de se concluir que, na hipótese de descumprimento injustificado das cautelares diversas da prisão, é bem provável que o acusado não faça jus aos institutos despenalizadores acima mencionados ao final do processo, já que suas circunstâncias são desfavoráveis. Logo, não há falar em desrespeito à homogeneidade na hipótese de de­ cretação da preventiva.

É nesse sentido a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira. Segundo o autor, com o advento da Lei n° 12.403/11, a prisão preventiva poderá ser utilizada em três circunstâncias distintas: a) de modo autô­ nomo, em qualquer fase da investigação, hipótese em que sua decretação estará condicionada à ob­ servância dos arts. 311,312e313do CPP; b) como conversão da prisão em flagrante (CPP, art. 310, II), que também está condicionada à observância dos arts. 311, 312 e 313 do CPP, e, por fim; c) de modo subsidiário, pelo descumprimento de caute­ lar diversa da prisão anteriormente imposta (CPP, art. 282, § 4o, c/c art. 312, §1°), hipótese em que a preventiva poderá ser decretada independentemente

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

das circunstâncias e hipóteses arroladas no art. 313 do CPP.56

Por fim, é oportuno destacar que o descumpri­ mento injustificado das medidas cautelares diversas da prisão não caracteriza o crime de desobediên­ cia (CP, art. 330). Isso porque o próprio CPP (art. 282, § 4o) já prevê as consequências decorrentes do descumprimento das cautelares - substituição da medida, imposição de outra cumulativamente ou decretação da prisão preventiva -, sem fazer qual­ quer ressalva expressa quanto à possibilidade de responsabilização criminal pelo delito de desobe­ diência. Quando a lei extrapenal não traz previsão expressa acerca da possibilidade de cumulação do crime de desobediência com outras sanções extra­ penais, como ocorre na hipótese em questão, é fir­ me o entendimento jurisprudencial no sentido da impossibilidade de tipificação do referido delito.57 É bem verdade que a Lei n. 13.641, com vigência em data de 04 de abril de 2018, introduziu na Lei Maria da Penha o crime do art. 24-A nos seguintes termos: “Descumprir decisão judicial que defere me­ didas protetivas de urgência previstas nesta Lei”. No entanto, referindo-se o art. 24-A da Lei n. 11.340/06 expressamente ao descumprimento de decisão judi­ cial que defere medidas protetivas de urgência previs­ tas nesta Lei, não nos parece possível qualquer tipo de interpretação analógica e/ou extensiva para fins de se concluir que a figura delituosa em apreço tenha o condão de abranger o descumprimento das medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 e 320 do CPP, sob pena de evidente analogia in malam partem e consequente violação ao princípio da legali­ dade. Logicamente, se a cautelar diversa da prisão do CPP encontrar previsão legal na Lei Maria da Penha e for decretada no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher como espécie de medida protetiva de urgência, aí não haverá dúvidas no sen­ tido da tipificação do crime do art. 24-A.58

5.6. Revogabilidade e/ou substitutividade das medidas cautelares Como desdobramento de sua natureza provisó­ ria, a manutenção de uma medida cautelar depende 56. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização do processo penal. Lei n° 12.403/11 - capítulo a ser incorporado à obra Curso de processo penal. 15a

ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2011. p. 19.

57. STJ, 6a Turma, RHC 15.596/SP, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 16/12/2004, DJ 28/02/2005; STJ, 5a Turma, RHC 41.970/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 7/8/2014. E ainda: STJ, 6a Turma, REsp 1.374.653/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/3/2014. 58. Para mais detalhes acerca da nova figura delituosa do art. 24A, remetemos o leitor ao nosso livro de Legislação Criminal Especial Comentada.

da persistência dos motivos que evidenciaram a ur­ gência da medida necessária à tutela do processo. São as medidas cautelares situacionais, pois tute­ lam uma situação fática de perigo. Desaparecido o suporte fático legitimador da medida, consubstan­ ciado pelo fumus comissi delicti e pelo periculum libertatis, deve o magistrado revogar a constrição.

Por isso é que se diz que a decisão que decreta uma medida cautelar sujeita-se à cláusula rebus sic stantibus, pois está sempre sujeita à nova verifica­ ção de seu cabimento, seja para eventual revogação, quando cessada a causa que a justificou, seja para nova decretação, diante do surgimento de hipótese que a autorize (CPP, art. 282, § 5o, c/c art. 316). Enfim, como toda e qualquer espécie de medida cautelar, sujeita-se a decisão que decreta as caute­ lares de natureza pessoal, inclusive a própria prisão cautelar, à cláusula da imprevisão, podendo ser re­ vogada quando não mais presentes os motivos que a ensejaram, ou renovada se acaso sobrevierem razões que a justifiquem. Assim, como observa Badaró, uma vez decre­ tada qualquer das medidas cautelares alternativas à prisão, mudanças do estado de fato subjacente ao momento de sua decretação ou mesmo o surgimen­ to de novas provas que alterem o convencimento judicial sobre o fumus comissi delicti ou o periculum libertatis podem levar à necessidade de: 1) revoga­ ção da medida cautelar; 2) substituição da medida cautelar por outra, mais gravosa ou mais benéfica; 3) reforço da medida cautelar, por acréscimo de ou­ tra medida em cumulação; 4) atenuação da medida caultear, pela revogação de uma das medidas ante­ riormente imposta cumulativamente com outra.59 Exemplificando, encerrada a instrução crimi­ nal, se o juiz passa a ter dúvidas quanto à própria existência do crime, tem-se que o fumus comissi de­ licti deixou de existir. Impõe-se, pois, a revogação da custódia preventiva. Da mesma forma, suponha-se que uma prisão preventiva tenha sido decretada com base na conveniência da instrução criminal, porquanto o acusado estaria constrangendo deter­ minada testemunha. Uma vez realizada a audiência una de instrução e julgamento, inclusive com a oi­ tiva da referida testemunha, percebe-se que o mo­ tivo que deu origem à prisão deixa de existir. Mais uma vez, também será cabível a revogação da pri­ são preventiva, sem prejuízo, todavia, da imposição das medidas cautelares diversas da prisão, se acaso 59. BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas cautelares no processo pe­ nal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.p. 224.

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necessárias.60 Neste último exemplo, especial aten­ ção deve ser dispensada ao procedimento bifásico do júri. Explica-se: se a preventiva do acusado fora decretada na primeira fase (iudicium accusationis) porquanto testemunhas vinham sendo ameaçadas, é de todo evidente que a pronúncia, de per si, não afasta a necessidade de manutenção da medida, pelo menos em tese, eis que tais testemunhas possivel­ mente ainda terão que ser ouvidas no plenário do Júri. Subsiste, pois, o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, justificando, então, a ma­ nutenção da prisão cautelar. Da mesma forma que, uma vez decretada a prisão cautelar, esta pode ser revogada, caso o juiz verifique a falta de motivo para que subsista, também é possível o contrário, ou seja, revogada a prisão preventiva, nada impede que, sobrevindo razões que a justifiquem, possa o magistrado decretá-la novamente, desde que seja provocado nesse sentido.61 A superveniência de fato novo, provocado pelo acusado, que se encontrava em liberdade, seja por força de anterior revogação da prisão preventi­ va, seja por concessão de liberdade provisória, com ou sem a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, elimina a falta de justa causa, ensejando, por conseguinte, a cassação da liberdade concedida com a consequente decretação de nova segregação cautelar.62 A competência para revogar as cautelares recai, originariamente, sobre o mesmo órgão jurisdicional que decretou referida medida. Destarte, mesmo que um determinado Tribunal tenha atuado em sede recursal, ao apreciar um habeas corpus impetrado, por exemplo, contra a decretação da prisão caute­ lar, caberá ao magistrado de primeiro grau decidir, inicialmente, acerca do pedido de revogação da pri­ são preventiva decretada, sob pena de supressão de instância, levando em consideração a verificação da continuidade (ou não) dos motivos que autorizaram a decretação do cárcere ad custodiam. Caso esse ma­ gistrado conclua pela necessidade de manutenção da 60. STF, 2a Turma, HC 88.129/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 15/05/2007, DJe 082 16/08/2007. E também: STF, 1a Turma, HC 86.374/ MG, Rei. Min. Eros Grau, DJ 06/10/2006 p. 50; STJ, 6a Turma, HC 53.856/ RS, Rei. Min. Paulo Medina, DJ 26/02/2007 p. 646.

61. Para mais detalhes acerca da impossibilidade de o juiz, de ofício, voltar a decretar cautelar por ele anteriormente revogada ou substituída, consultar comentários ao item 5.2. ("Vedação à decretação de medidas cautelares pelo juiz de ofício na fase investigatória e na fase processual). 62. Referindo-se à possibilidade de decretação de nova prisão pre­ ventiva, caso sobrevenham fundamentos concretos que autorizem a adoção da medida: STF, 1a Turma, HC 94.062/RJ, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 29/04/2008, DJe 117 26/06/2008. Em sentido semelhante, reiterando que a decretação de nova prisão preventiva só é possível diante de fatos novos que a justifiquem: STJ, 6a Turma, RHC 6.630/MG, Rei. Min. William Patterson, DJ 24/11/1997 p. 61.286.

prisão preventiva, aí sim ter-se-á referido magistra­ do de Io grau como autoridade coatora para fins de impetração de habeas corpus perante o respectivo tribunal.

Como deixa entrever a nova redação conferi­ da ao art. 282, §5°, do CPP, pela Lei n. 13.964/19, essa decisão de revogação ou substituição pode ser proferida de ofício pelo juiz, ou mediante requeri­ mento de qualquer das partes, seja da defesa, seja do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou mediante representação da autoridade policial. Exemplificando, se ao acusado tiver sido determi­ nada a proibição de manter contato com pessoa determinada, a fim de assegurar a eficácia da ins­ trução probatória, ouvida a testemunha, poderá a defesa requerer a revogação da medida, porquanto deixou de existir o fundamento que autorizava sua decretação.

Em relação ao status do agente após a revoga­ ção de sua prisão preventiva, convém esclarecer que o mesmo passará a gozar da mesma liberdade an­ terior à decretação da medida. Em outras palavras, revogada a prisão preventiva, o indivíduo passa a gozar de liberdade plena, nos mesmos moldes da­ quele acusado que não foi preso em flagrante, a não ser que, com base no poder geral de cautela, alguma medida inominada lhe seja imposta. A revogação da prisão preventiva é um pro­ vimento de urgência, marcado pela sumariedade formal. Não faz coisa julgada material. No entanto, não é decretado com base na aparência, além de não ser uma medida referível. Logo, não se trata de medida cautelar nem antecipatória, mas sim de uma medida urgente, baseada no poder de polícia da autoridade judiciária.63

Se o fundamento que deu ensejo à revogação da prisão preventiva de um dos acusados não tiver como fundamento argumento de caráter exclusivamente pessoal, os efeitos da decisão serão extensivos aos demais acusados, por meio do denominado efeito extensivo, constante do art. 580 do CPP.64 Conquanto a Lei da prisão temporária (Lei n° 7960/89) tenha deixado de prever a possibilidade de sua revogação, tal lacuna pode ser preenchida por meio da analogia. Assim, se, no curso da inves­ tigação, a cautela não se mostrar mais necessária, a prisão temporária deixa de possuir sustentáculo, 63. É nesse sentido a lição de João Gualberto Garcez Ramos: A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte/MG: Editora Dei Rey, 1998. p. 387.

64. STJ, 5a Turma, PExt no HC 50.829/RJ, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 20/06/2006, DJ 01/08/2006 p. 478.

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não devendo, portanto, persistir. Deve, portanto, ser objeto de revogação, nos exatos termos do art. 316 do CPP.65 Apesar de entendermos que a utilização da expressão revogação da prisão preventiva só deva ser usada para as hipóteses em que, num primei­ ro momento, havia motivo para a decretação da medida, o qual, posteriormente, deixou de existir, convém destacar que a expressão revogação tam­ bém é usada pelos Tribunais quando caracterizada qualquer falha de motivação do decreto prisional em apontar, baseada em elementos objetivos dos autos e de modo específico para o caso concreto, os requisitos essenciais e legitimadores da prisão preventiva. Nesse sentido, confira-se: “O ato judicial que decreta a prisão preventiva, diz a lei, bem como o ato que a revoga, ‘será sempre fundamentado’. No caso, faltaram ao decreto de imposição da preven­ tiva os indispensáveis fundamentos, pois levou-se em conta apenas a gravidade abstrata dos fatos pe­ nais noticiados. Habeas corpus deferido para ser revogada a prisão preventiva” (nosso grifo).66 Com a devida vênia, pensamos que revogação da prisão preventiva não pode ser confundida com a sua cassação (ou anulação). Para vícios de legalidade pertinentes à prisão preventiva, tais como ausência de fundamentação, o instrumento próprio é a sua cassação, anulação, por meio de um habeas corpus objetivando o relaxamento da prisão. Destina-se a revogação ao afastamento de prévia prisão cautelar decretada legalmente, mas cujos pressupostos autorizadores deixaram de existir.

5.7. Recursos cabíveis

5.7.1. Em favor da acusação De acordo com o art. 581, inciso V, infine, do CPP, caberá recurso no sentido estrito da decisão que indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisória ou relaxar a prisão em flagrante. Logo, tal instrumento de im­ pugnação também se revela adequado contra a de­ cisão que indefere requerimento de medida cautelar diversa da prisão ou revoga constrição anteriormen­ te imposta. É bem verdade que a Lei n° 12.403/11 silenciou acerca dos recursos cabíveis quando se tra­ tar de medidas cautelares diversas da prisão. No en­ tanto, a despeito do silêncio do legislador, pensamos 65. STJ, 5a Turma, RHC 4.877/RJ, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 23/10/1995 p. 35.685. Ainda no sentido da possibilidade de revogação da prisão temporária: STJ, 6a Turma, HC 49.948/SP, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 09/10/2006 p. 363. 66. STJ, 6a Turma, HC 37.571/PA, Rel. Min. Nilson Naves, j. 14/12/2004,

DJ 01/08/2006 p. 550.

ser possível interpretar-se extensivamente o rol do art. 581 do CPP, até mesmo porque, à época em que o estatuto processual penal entrou em vigor - Io de janeiro de 1942 - sequer era concebida a existência de medidas cautelares diversas da prisão.67 Se a autoridade policial representar no sentido de ser decretada a prisão preventiva, e o magistrado deixar de fazê-lo, o delegado de polícia não terá le­ gitimidade para interpor RESE. O recurso só pode ser interposto se indeferido requerimento formula­ do pelo Ministério Público, pelo querelante ou pelo assistente, sendo a legitimidade deste último restrita à fase processual. Interposto o recurso em sentido estrito, será necessária a intimação do acusado para apresentar contrarrazões? Como se sabe, nas hipóteses de não recebimento da peça acusatória, interposto o RESE pela acusação com base no art. 581,1, do CPP, deve o magistrado intimar o acusado para oferecer con­ trarrazões, tal qual disposto na súmula n° 707 do STF. No caso de RESE interposto contra o indeferi­ mento do requerimento de medidas cautelares, deve ser aplicado o mesmo raciocínio, tal qual explicitado pelo próprio art. 282, § 3o, do CPP, que passou a assegurar o contraditório prévio à decretação das medidas cautelares. O contraditório prévio também deve ser respeitado por ocasião da interposição do RESE, assegurando-se ao acusado a possibilidade de apresentar contrarrazões recursais, salvo na hi­ pótese de risco de esvaziamento da eficácia da me­ dida cautelar. De fato, o próprio art. 282, § 3o, do CPP, ressalva os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, ressalva esta onde se insere eventual pedido de prisão preventiva. Nesse caso, a fim de se preservar a eficácia e utilidade da me­ dida cautelar pretendida, não se deve assegurar ao acusado a oportunidade de tomar conhecimento da interposição do RESE.68

Se é verdade que cabe RESE em face da decisão que indefere requerimento de medidas cautelares, também é verdade que, sob um ponto de vista prá­ tico, a depender do caso concreto, é muito mais útil e eficaz que o Parquet obtenha novos elemen­ tos de informação quanto à autoria e materialidade, formulando novo pedido ao magistrado. De fato, 67. No sentido do cabimento de recurso em sentido estrito contra decisão que revoga medida cautelar diversa da prisão: STJ, 6a Turma, REsp 1.628.262/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 13/12/2016, DJe 19/12/2016.

68. Antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, já havia precedente do Supremo nesse sentido: STF, 2aTurma, HC 96.445/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 08/09/2009, DJe 186 01/10/2009.

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optando o Ministério Público pela interposição de um recurso em sentido estrito, a demora no jul­ gamento do recurso traria prejuízo irreparável às investigações, esvaziando por completo a utilidade da medida cautelar caso fosse decretada posterior­ mente pelo juízo ad quem.69

5.7.2. Em favor do acusado O Código de Processo Penal não prevê o ca­ bimento de recurso contra a decisão que decreta a prisão preventiva e/ou quaisquer das medidas cau­ telares diversas da prisão, nem tampouco contra a decisão que indefere o pedido formulado pela defesa de revogação e/ou substituição da medida cautelar. Não obstante, o indivíduo (ou qualquer pessoa) po­ derá impetrar ordem de habeas corpus.

À primeira vista, poder-se-ia pensar que o ha­ beas corpus somente seria cabível quando tivesse havido a decretação da prisão preventiva. Porém, não se pode afastar o cabimento do writ para as demais medidas cautelares de natureza pessoal. Em primeiro lugar, porque a decretação de quaisquer das medidas cautelares de natureza pessoal acarreta algum tipo de constrangimento à liberdade de loco­ moção. Segundo, porque as medidas cautelares de natureza pessoal só podem ser adotadas em relação à infração penal à qual seja cominada, isolada, ou alternativamente, pena privativa de liberdade. Por fim, não se pode esquecer que o descumprimento injustificado de uma das medidas cautelares diver­ sas da prisão pode ensejar a conversão em prisão preventiva (art. 282, § 4o).70

Portanto, a inobservância dos elementos do inciso I do art. 282 para a decretação da cautelar, ou do inciso II para a escolha de sua qualidade, ou a ausência de fundamentação na sua aplicação enseja a utilização de habeas corpus, mesmo que a medida cautelar diversa da prisão não restrin­ ja completamente a liberdade de locomoção do agente, haja vista que, diante do disposto no § 4o do art. 282 do CPP, o descumprimento das condições estabelecidas pode ensejar a decreta­ ção da prisão. Evidente, portanto, o interesse de 69. Para mais detalhes acerca do cabimento de mandado de segu­ rança para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público, objeto do enunciado da súmula n. 604 do STJ ("O mandado de segurança não se presta para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público"), remetemos o lei­ tor ao Título 13, referente aos Recursos, mais precisamente ao item 7.3, atinente ao efeito suspensivo. 70. Em sentido diverso (e isolado), negando a possibilidade de utiliza­ ção do habeas corpus, por considerar que haverá apenas risco mediato à liberdade de locomoção: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização do

processo penal. Lei n° 12.403/11 - capítulo a ser incorporado à obra Curso de processo penal. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2011. p. 31.

agir na utilização do habeas corpus para impugnar eventual decisão relativa à decretação de medidas cautelares de natureza pessoal, já que delas pode resultar potencial constrangimento ilegal à liber­ dade de locomoção.71 Outrossim, se a medida cautelar de natureza pessoal for decretada na decisão de pronúncia, cabe­ rá RESE contra tal decisão, com fundamento no art. 581, inciso IV, do CPP. Por sua vez, se a medida for decretada no bojo da sentença condenatória, o re­ curso oponível será o de apelação, ex vi do art. 593, inciso I, do CPP. No entanto, a despeito da previsão de recursos contra a pronúncia e contra a sentença condenatória, nada impede que o interessado impe­ tre imediatamente um habeas corpus questionando a medida cautelar, por ser remédio constitucional mais célere na tutela da liberdade de locomoção, sendo inadmissível que normas infraconstitucionais limitem o cabimento do writ (CF, art. 5o, LXVIII).

5.8. Duração e extinção das medidas cautelares de natureza pessoal Nada disse a Lei n° 12.403/11 quanto ao prazo de duração das medidas cautelares de natureza pes­ soal. O problema, como se percebe, assemelha-se à ausência de previsão de prazo de duração da prisão preventiva.72 Por ora, destacamos apenas que, em se tratando de medidas cautelares diversas da prisão, o prazo de sua duração deve ser mais dilatado quando com­ parado ao da prisão. Na verdade, há uma relação inversa entre a gravidade da restrição à liberdade de locomoção e o prazo de sua manutenção, ou seja, quanto mais grave a restrição aos direitos funda­ mentais do acusado, menor deve ser o prazo de duração da medida cautelar.73 71. Com base no entendimento de que o habeas corpus pode ser em­ pregado para impugnar medidas cautelares de natureza pessoal diversas da prisão, haja vista a possibilidade de conversão em prisão processual se acaso descumpridas, a 2a Turma do STF concedeu a ordem para revogar a suspensão do exercício da função pública de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Amapá e demais medidas cautelares pessoais impostas pelo STJ: STF, 2a Turma, HC 147.303/AP e HC 147.426/AP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 18/12/2017. No mesmo sentido: STF, 2a Turma, HC 121.089/AP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 16/12/2014; STJ, 5aTurma, HC 262.103/AP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 09/09/2014, DJe 15/09/2014. Admi­ tindo a utilização do HC para impugnar medida protetiva de urgência

consistente na proibição de aproximar-se de vítima de violência domés­ tica e familiar contra a mulher: STJ, 5a Turma, HC 298.499/AL, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 1°/12/2015, DJe 9/12/2015. 72. Para evitarmos repetições desnecessárias, remetemos o leitor ao capítulo pertinente à prisão preventiva, onde o tema do excesso de prazo na formação da culpa será abordado detalhadamente. 73. A propósito, em caso concreto referente ao afastamento cautelar de Desembargador com fundamento na LC 35/79 (art. 29), que perdurou por cerca de 4 anos e 6 meses, o Supremo concluiu tratar-se de excesso de prazo gritante. Daí por que foi deferida a ordem em habeas corpus para

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

No tocante à extinção das medidas cautelares diversas da prisão, é certo dizer que, na hipó­ tese de sentença condenatória com trânsito em julgado, tendo em conta que o acusado deverá dar início ao cumprimento da pena definitiva, a medida provisória deverá ser extinta. Essa extin­ ção também deverá ocorrer automaticamente nos casos de arquivamento do inquérito policial, rejei­ ção da peça acusatória, extinção da punibilidade ou, ainda, na hipótese de sentença absolutória, tal qual disposto no art. 386, parágrafo único, II, do CPP. Em tais situações, a medida cautelar deve ser cassada de imediato, ainda que haja recurso da acusação, já que esta impugnação não é dotada de efeito suspensivo.

5.9. Detração Como se sabe, por força do art. 42 do Código Penal, computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão pro­ visória, no Brasil ou no exterior, e o de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. A detração consiste, portanto, no desconto, da pena final aplicada, do tempo em que o acusado ficou preso cautelarmente.

Nada disse a Lei n° 12.403/11 quanto à possibi­ lidade de detração no caso de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, ou seja, se o tempo de cumprimento das medidas cautelares diversas da prisão durante o curso da persecução penal deve (ou não) ser descontado do quantum de pena aplicado ao final do processo. Inicialmente, parece-nos que, havendo seme­ lhança e homogeneidade entre a medida cautelar aplicada no curso do processo e a pena imposta ao acusado na sentença condenatória irrecorrível, é plenamente possível a detração. A título de exemplo, supondo que tenha sido imposta ao acusado a medi­ da cautelar de recolhimento domiciliar no período noturno, se acaso for condenado ao cumprimento da pena restritiva de direitos de limitação de final de semana, não temos dúvida quanto à possibilidade de detração, já que a cautelar guarda certa similitude com a pena definitiva.

A propósito, em recente e paradigmático pre­ cedente acerca da controvérsia, a 3a Seção do STJ concluiu que é possível considerar o tempo subme­ tido à medida cautelar de recolhimento noturno,

aos finais de semana e dias não úteis, supervisio­ nados por monitoramento eletrônico, com o tempo de pena efetivamente cumprido, para detração da pena.74 Na visão do referido Colegiado, interpretar a legislação que regula a detração de forma que favo­ reça o sentenciado harmoniza-se com o Princípio da Humanidade, que impõe ao Juiz da Execução Penal a especial percepção da pessoa presa como sujeito de direitos. O óbice à detração do tempo de recolhi­ mento noturno e aos finais de semana determinado com fundamento no art. 319 do Código de Processo Penal sujeita o apenado a excesso de execução, em razão da limitação objetiva à liberdade concretizada pela referida medida diversa do cárcere. Note-se que a medida diversa da prisão que impede o acautelado de sair de casa após o anoitecer e em dias não úteis assemelha-se ao cumprimento de pena em regime prisional semiaberto. Se nesta última hipótese não se diverge que a restrição da liberdade decorre nota­ damente da circunstância de o agente ser obrigado a recolher-se, igual premissa deve permitir a detração do tempo de aplicação daquela limitação cautelar. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde exis­ te a mesma razão fundamental, aplica-se a mesma regra jurídica. O Superior Tribunal de Justiça, nos casos em que há a configuração dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, admite que a condenação em regime semiaberto produza efeitos antes do trânsito em julgado da sentença (prisão preventiva compatibilizada com o regime carcerário do título prisional). Nessa perspectiva, mostra-se incoerente impedir que a medida cautelar que pres­ suponha a saída do paciente de casa apenas para laborar, e durante o dia, seja descontada da repri­ menda. Essa conjuntura impõe o reconhecimento de que as hipóteses do art. 42 do Código Penal não consubstanciam rol taxativo. Desse modo, con­ clui-se que o período de recolhimento domiciliar, aplicado simultaneamente a monitoração eletrôni­ ca, para fiscalização de seu cumprimento, deve ser objeto de detração penal. Mas e quando não houver essa homogeneida­ de? Em se tratando de medidas cautelares diversas da prisão que acarretam a restrição completa à liber­ dade de locomoção, pensamos não haver qualquer óbice à detração. Logo, na hipótese de internação provisória do inimputável (CPP, art. 319, VII) e pri­ são domiciliar (CPP, arts. 317 e 318), o tempo refe­ rente ao cumprimento da cautelar deve ser descon­ tado da pena definitiva aplicada ao agente. Todavia,

suspender os efeitos da decisão da Corte Especial do STJ no tocante ao afastamento do cargo, determinando-se, por consequência, o retorno do acusado à função de Desembargador Estadual perante oTJ/PE: STF, 2a Turma, HC 90.617/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 30/10/2007, DJe 41

Na mesma linha: STJ, 5a Turma, AgRg no HC 565.899/SP, Rel. Min. João

06/03/2008.

Otávio de Noronha, j. 27.10.2020, DJe 12.11.2020.

74. STJ, 3a Seção, HC 455.097/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14.04.2021.

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quanto às demais medidas cautelares, como não há restrição absoluta à liberdade de locomoção e como elas não guardam homogeneidade com uma possí­ vel pena de prisão a ser aplicada ao final do proces­ so, sempre houve resistência em relação à aplicação do art. 42 do Código Penal. De fato, mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, os Tribunais Superio­ res já tiveram a oportunidade de analisar discussão semelhante, porém no tocante à possibilidade de ser levado em consideração, para fins de detração, o lapso temporal referente ao período em que o acusado per­ manecera em gozo de liberdade provisória. Em caso concreto referente à condenação à pena de 9 (nove) anos de reclusão e 3 (três) meses de detenção, no qual foi concedida liberdade provisória com os ônus de pagamento de fiança, comparecimento quinzenal em juízo e necessidade de autorização judicial para se au­ sentar do distrito da culpa, concluiu o Supremo que não seria possível a detração penal considerando-se o lapso em que o acusado esteve em liberdade provisória, por ausência de previsão legal, já que o art. 42 do CP prevê o computo de período relativo ao cumprimento de pena ou de medida restritiva de liberdade.75 Sem embargo dessa linha de entendimento, nas hipóteses em que o acusado se sujeitar à imposição de medidas cautelares extremamente gravosas (v.g., monitoramento eletrônico, proibição de ausentar-se da comarca, etc.), parece-nos extremamente desarrazoado não se conceder nenhum benefício àquele que cumpriu a medida cautelar por um longo período, até mesmo como forma de compensação decorrente dos gravames inerentes a esse castigo antecipado. A título de exemplo, suponha-se que determinado acu­ sado tenha cumprido cumulativamente as medidas cautelares de proibição de se ausentar da comarca e monitoramento eletrônico durante 5 (cinco) anos. Seria possível simplesmente desconsiderar esse lapso temporal por ocasião do cumprimento do tempo de prisão penal? Será que, nesse caso, não seria justo descontar ao menos uma parte do tempo de restrição parcial de sua liberdade de locomoção? Para aqueles 75. STF, 2a Turma, HC 81.886/RJ, Rei. Min. Maurício Corrêa, j. 14/05/2002, DJ 21/06/2002. Na mesma linha: STJ, 6a Turma, RHC 17.501/ SP, Rei. Min. Paulo Medina, j. 23/08/2005, DJ 06/03/2006 p. 442. No sentido de que a consideração do tempo para fins de contagem de detração penal deve ser aquela em que o condenado esteve sob efetiva custódia ou submetido a medida restritiva de direito, sendo descabida a soma do tempo em que o paciente esteve em liberdade provisória, por ausência de expressa previsão legal: STJ, 6a Turma, HC 25.183/CE, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 27/04/2004, DJ 28/06/2004 p. 419. E ainda: STJ, 6a Turma, RHC 17.697/ES, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 18/08/2005, DJ 14/11/2005 p. 407. Com o entendimento de que não se vislumbra restrição ao direito de locomoção na simples condição de comparecimento quinzenal a Juízo, sem qualquer outra formalidade, que autorize sua inclusão no rol do art. 42 do Código Penal, mesmo se adotando posicionamento liberalizante: STJ, 6a Turma, HC 16.048/ RJ, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 22/11/2001, DJ 04/03/2002 p. 297.

que dizem que tal lapso temporal não deve ser com­ putado para fins de possível detração, criar-se-ia si­ tuação de absoluta desigualdade em relação àquele que não cumpriu nenhuma medida cautelar durante o curso da persecução penal. Exemplificando, tanto o acusado que cumpriu 5 (cinco) anos de monito­ ramento eletrônico e proibição de ausentar-se da comarca, quanto aquele que não esteve submetido a nenhuma medida cautelar durante o mesmo período, não terão nenhum tempo a descontar da prisão pe­ nal. Isso servirá como fator de evidente desestimulo aos acusados que cumprem as medidas cautelares, já que saberão, de antemão, que nenhum benefício será recebido por tal comportamento. Nesse caso, admitida a possibilidade de detra­ ção, ainda que não haja semelhança entre a medi­ da cautelar e a pena definitiva aplicada ao final do processo, surge um outro problema: qual o critério a ser utilizado? Seria possível descontarmos um dia de pena de prisão para cada dia de monitoramento eletrônico? Seria possível descontarmos um dia de pena de prisão para cada dia de proibição de au­ sentar-se da comarca? Certamente que não, já que o gravame de tais medidas não se equipara a um dia de prisão. Portanto, de lege ferenda, pensamos que deveria ser trabalhado critério de detração seme­ lhante ao da remição, constante do art. 126 da LEP. Ou seja, para cada 03 (três) dias de cumprimento da medida cautelar diversa da prisão, deveria ser descontado um dia de pena do agente. Esse critério de remição, todavia, deve guardar relação com a gra­ vidade da medida cautelar diversa da prisão. Assim, se a utilização do monitoramento eletrônico por 3 (três) dias pode dar ensejo a um dia a menos de prisão, certamente há de ser pensado outro critério para medidas cautelares menos gravosas.76

CAPÍTULO II

PRISÃO 1. CONCEITO DE PRISÃO E SEU FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL A palavra “prisão” origina-se do latim prensione, que vem de prehensione (prehensio, onis), que 76. Com entendimento semelhante, referindo-se à possibilidade de acréscimo de regulamentação legal que previsse uma espécie de remi­ ção relativa, permitindo o desconto parcial do tempo final de pena se a cautelar for distinta da prisão, sob pena de a jurisprudência, com base no princípio da igualdade, ser obrigada a construir um caminho alternativo: BOTTINI, Pierpaolo. As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2008. p. 486.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

significa prender. Nossa legislação não a utiliza de modo preciso. De fato, o termo “prisão” é en­ contrado indicando a pena privativa de liberdade (detenção, reclusão, prisão simples), a captura em decorrência de mandado judicial ou flagrante delito, ou, ainda, a custódia, consistente no recolhimento de alguém ao cárcere, e, por fim, o próprio estabe­ lecimento em que o preso fica segregado (CF, art. 5o, inciso LXVI; CPP, art. 288, caput).

com trânsito em julgado, chamada pela doutrina de prisão penal.79 Recentemente, porém, o Pacote Anticrime conferiu ao art. 283, caput, do CPP nova redação: “Ninguém poderá ser preso senão em fla­ grante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrên­ cia de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado”.

No sentido que mais interessa ao direito pro­ cessual penal, deve ser compreendida como a priva­ ção da liberdade de locomoção, com o recolhimento da pessoa humana ao cárcere, seja em virtude de flagrante delito, ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, seja em face de transgressão militar ou por força de crime propria­ mente militar, definidos em lei (CF, art. 5o, LXI).

3. PRISÃO EXTRAPENAL

2. ESPÉCIES DE PRISÃO No ordenamento jurídico pátrio há, fundamen­ talmente, 3 (três) espécies de prisão: a) prisão extrapenal: tem como subespécies a prisão civil e a prisão militar;

b) prisão penal (prisão pena ou pena): é aque­ la que decorre de sentença condenatória com trân­ sito em julgado (STF - ADCs 43, 44 e 54);77 c) prisão cautelar, provisória, processual ou sem pena: tem como subespécies a prisão em fla­ grante,78 a prisão preventiva e a prisão temporária. Com a reforma de 2008 (Lei n° 11.689/08 e Lei n° 11.719/08), foram expressamente extintas as prisões decorrentes de pronúncia e de sentença condenató­ ria recorrível, outrora previstas como espécies au­ tônomas de prisão cautelar. Por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 12.403/11, a nova redação então conferida ao art. 283, caput, do CPP reiterou esse entendimento: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e funda­ mentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do pro­ cesso, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Como se percebe, o dispositivo indicava as espécies de prisão admitidas no âmbito crimi­ nal: a prisão em flagrante, a prisão temporária, a prisão preventiva, espécies de prisão cautelar, e a prisão decorrente de sentença penal condenatória 77. Para mais detalhes acerca da vedação à execução provisória da pena, remetemos o leitor ao capítulo introdutório deste livro, mais es­ pecificamente aos comentários ao princípio da presunção de inocência. 78. Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. O tema será abordado mais adiante.

3.1. Prisão civil

3.1.1. Prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel Prisão civil é aquela decretada para fins de compelir alguém ao cumprimento de um dever civil. Pelo menos de acordo com a Constituição Federal, a decretação dessa prisão civil seria pos­ sível em duas hipóteses: no caso do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia,80*e também nas hipóteses do depositário infiel (art. 5o, LXVII). Importante notar que a prisão civil por dívida não decorre diretamen­ te do art. 5o, LXVII, da Constituição Federal, mas sim da legislação infraconstitucional. Na verdade, o preceito constitucional em questão apenas autoriza 79. Corrente minoritária da doutrina também insere dentre as espécies

de prisão cautelar a prisão para condução coercitiva de partes proces­

suais, testemunhas, peritos ou outros que se recusem, sem justo motivo, a comparecer perante a autoridade judicial ou policial. Com a devida

vênia, não enxergamos aí espécies autônomas de prisão cautelar, mas apenas medidas coercitivas decretadas durante o curso da persecução penal objetivando a apuração do fato delituoso. 80. O fundamento da obrigação alimentícia é o dever da família, e, em especial, dos pais, de promover a manutenção dos filhos menores,

assegurando-lhes, juntamente com a sociedade e o Estado, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (CF, art. 227). Como adverte Nelson Nery Junior, "a decreta­

ção da prisão civil do devedor de alimentos, permitida pela CF 5o, LXVII,

é meio coercitivo de forma a obrigá-lo a adimplir a obrigação. Somente

será legítima a decretação da prisão civil por dívida de alimentos se o res­ ponsável inadimplir voluntária e inescusavelmente a obrigação. Caso seja escusável ou involuntário o inadimplemento, não poderá ser decretada a prisão". (Código de Processo Civil Comentado. 4a ed. rev. ampl., São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1999. p. 1180). A prisão do devedor de prestação alimentícia está prevista no Código de Processo Civil (art. 733, § 1o e § 3o - art. 528, §§ 3o a 7o, do novo CPC). Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, caso o devedor não efetue o pagamento, ou não se escuse do adimplemento da obrigação, o juiz deverá decretar a prisão pelo prazo de 1 a 3 meses, podendo ser suspenso o cumprimento da ordem no caso de pagamento da prestação alimentícia. Na visão dosTribunais, a prisão civil do devedor de alimentos tem que ser aplicada a situações nas quais, de fato, sirva de estímulo para o cumprimento da obrigação. Logo, demonstrada a impossibilidade de o alimentante solver o débito, não se justifica a decretação de sua prisão, porquanto o inadimplemento não teria sido voluntário e inescusável. Nessa linha: STF, HC 106.709/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, 21/06/2011.

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a possibilidade de previsão legal de prisão civil nas duas hipóteses citadas.81 Em que pese o teor da Carta Magna, possibi­ litando a prisão civil do devedor de alimentos e a do depositário infiel, a Convenção Americana so­ bre Direitos Humanos (Pacto de São José da Cos­ ta Rica), incorporada ao ordenamento pátrio por meio do Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992, estabelece em seu art. 7o, § 7o, que “ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente ex­ pedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Como o Pacto de São José da Costa Rica ressalva apenas a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos, passou-se a se questionar se a prisão civil do depositário infiel ainda teria lugar no ordenamento pátrio.

Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de que a prisão civil do devedor fiduciante, nas condições em que prevista pelo DL n° 911/69 (Art. 4o), revestia-se de plena legitimidade constitucional, além de não transgre­ dir o sistema de proteção instituído pela Conven­ ção Americana sobre Direitos Humanos. Entendia a Suprema Corte que os tratados internacionais, necessariamente subordinados à autoridade da Constituição da República, não podiam legitimar interpretações que restringissem a eficácia jurídica das normas constitucionais. A possibilidade jurídica de o Congresso Nacional instituir a prisão civil no caso de infidelidade depositária teria fundamento na própria Constituição Federal (art. 5o, LXVII).82 Posteriormente, todavia, houve uma mudança de orientação do Supremo Tribunal Federal quanto ao status normativo de tratados internacionais de di­ reitos humanos no ordenamento pátrio, o que, con­ sequentemente, afetou a validade da prisão civil do depositário infiel. A partir do julgamento do RE n° 466.343/SP, o Supremo passou a entender que os tra­ tados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. Portanto, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Inter­ nacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, 7), não há mais base legal para a prisão

civil do depositário infiel. Ressaltou-se, assim, que o Pacto de São José da Costa Rica não implicaria a derrogação da Constituição Federal, mas resultaria no afastamento do arcabouço normativo das regras comuns alusivas ao depósito.83 Inicialmente, o raciocínio desenvolvido pelo Supremo no RE 466.343/SP limitou-se ao reconhe­ cimento da invalidade da prisão civil do alienante fiduciário, e não das demais hipóteses de depositá­ rio infiel.84 Posteriormente, no entanto, a Suprema Corte concluiu pelo afastamento de toda e qualquer prisão civil do depositário infiel, seja nas hipóteses de alienação fiduciária, seja nas hipóteses de depó­ sito judicial. Com a introdução do Pacto de São José da Costa Rica no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.85

Seguindo esse raciocínio, o Supremo Tribunal Federal averbou expressamente a revogação da Sú­ mula 619 do STF.86 Além disso, a fim de por fim à controvérsia em torno da prisão civil do depositá­ rio infiel, o plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou, no dia 16 de dezembro de 2009, a edição da súmula vinculante n° 25, com o seguinte teor: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. No mesmo ca­ minho, o STJ editou a súmula n° 419, que dispõe: “Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel”. Logo, subentende-se que deixaram de ter validade as súmulas 304 e 305 do STJ.87* Hoje, portanto, não há mais espaço para a de­ cretação da prisão civil do depositário infiel, seja nos casos de alienação fiduciária, seja em contratos de depósito, ou, ainda, nos casos de depósito judicial, na medida em que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo status normativo supralegal a coloca abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna, produziu a invalidade das normas 83. STF, Pleno, RE 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Dje 104 04/06/2009. Na mesma linha: STF, 2a Turma, HC 90.172/SP, Rel. Min. Gil­ mar Mendes, DJ 17/08/2007 p. 91. 84. STF, 1a Turma, HC 92.541/PR, Rel. Min. Menezes Direito, Dje 074 24/04/2008. No mesmo sentido, confira-se: STF, 1a Turma, HC 92.257/SP, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJe 065 11/04/2008; STF, Ia Turma, RHC 90.759/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 22/06/2007 p. 41. 85. STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 118 25/06/2009. 86. STF, Pleno, HC 92.566/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 104 04/06/2009.

81. Com entendimento semelhante: NOVELINO, Marcelo. Direito cons­ titucional. 4a ed. São Paulo: Método, 2010. p. 426. 82. STF, Pleno, HC 72.131 /RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01°/08/2003 p. 103. E ainda: STF, Pleno, HC 81.319/G0, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/08/2005 p. 186.

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87. Apesar de o STJ ainda não ter cancelado formalmente as súmulas acima referidas, depois do julgamento do RE 466.343/SP, a própria Corte Especial do STJ já vem trilhando o mesmo caminho da Suprema Corte, como se denota do teor do Informativo n° 418 do STJ: REsp 914.253/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 02/12/2009.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

infraconstitucionais que dispunham sobre tal espé­ cie de prisão civil.

3.1.2. Prisão do falido O revogado Decreto-Lei n° 7.661/45 (antiga Lei de Falências) previa a denominada prisão do falido em seu art. 35 e parágrafo único; a prisão do devedor, no art. 60, § Io; e a do síndico no art. 69, § 5o. Quanto ao tema, já havia posição firmada nos Tribunais Superiores segundo a qual essa es­ pécie de prisão não havia sido recepcionada pela Constituição Federal, porque em confronto com a disposição constante do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição Federal. É esse, aliás, o teor da Súmula n° 280 do Superior Tribunal de Justiça: “O art. 35 do Decreto-Lei n° 7.661, de 1945, que estabelece a prisão administrativa, foi revogado pelos incisos LXI e LXVII do art. 5o da Constituição Federal de 1988”.™

A nova lei de falência (Lei n° 11.101/05) deixou de admitir a prisão nas hipóteses acima menciona­ das, dispondo em seu art. 99 que “A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras deter­ minações (...) VII - determinará as diligências ne­ cessárias para salvaguardar os interesses das partes envolvidas, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crimes de­ finidos nesta Lei”.

Como se percebe, pela nova lei de falência, a prisão do falido ou dos administradores deixa de ser considerada espécie de prisão administrativa ou civil para ser considerada espécie de prisão preventi­ va, ficando sua decretação sujeita à observância dos pressupostos e requisitos estabelecidos entre os arts. 311 e 315 do CPP.

Em que pese a nova lei de falências prever a decretação de prisão preventiva, já vem surgindo certa controvérsia na doutrina acerca da consti­ tucionalidade do dispositivo constante do art. 99, inciso VII, da Lei n° 11.101/05, haja vista permi­ tir que a prisão preventiva seja decretada pelo juiz falimentar, portanto, por um juiz cível, e não por um juiz criminal. De um lado, parte da doutrina considera ser possível a decretação da prisão pre­ ventiva pelo juiz da falência, mesmo não sendo ele o juiz com competência criminal. Nessa linha de raciocínio, para Denílson Feitoza, cuida-se de au­ toridade competente para a decretação da referida prisão cautelar, em fiel observância ao princípio do juiz natural. Eventual argumento de que se trata de

juiz cível decretando prisão processual penal não deve prosperar, pois a Lei n° 11.101/05 prevê que, quanto à prisão preventiva por crimes previstos na Lei, o juiz da falência tem competência criminal.89 A nosso ver, o art. 99, inciso VII, da Lei n° 11.101/05, é incompatível com o art. 5o, incisos LXI e LXVII, da Constituição Federal, porquanto permite que, no cível, o juiz determine a prisão preventiva do falido como efeito da sentença que decreta a falência, sem que haja ação penal, pois esta será oferecida no juízo criminal e não perante o Juízo de falência (Lei n° 11.101/05, art. 187, caput). Tendo em conta que a prisão preventiva é espécie de prisão cautelar que visa assegurar a eficácia das investigações ou do pro­ cesso criminal, não se pode admitir que essa medi­ da cautelar seja decretada por autoridade judiciária desprovida de competência criminal para processar e julgar os crimes falimentares supostamente prati­ cados pelo falido ou pelo administrador. Portanto, pensamos que subsiste a possibilidade de decretação da prisão preventiva, mas desde que decretada pela autoridade judiciária competente para processar e julgar os crimes falimentares.90

3.2. Prisão administrativa A prisão administrativa pode ser conceituada como espécie de prisão decretada por autoridade administrativa com o objetivo de compelir alguém a cumprir um dever de direito público. Com a superveniência da Constituição de 1988, e a previsão de que ninguém será preso sem prévia autorização judicial, ressalvadas as hipóteses de flagrante delito, transgressão militar e crime propriamente militar (CF, art. 5o, LXI), surgiu intensa controvérsia quanto à subsistência dessa espécie de prisão no ordena­ mento pátrio.

Inicialmente, cabe lembrar que, nas hipóteses de Estado de Defesa (CF, art. 136, § 3o) e de Estado de Sítio (CF, art. 139, incisos I e II), autoridades não judiciárias poderão decretar restrições à liberdade de locomoção independentemente de prévia auto­ rização judicial. À exceção desses momentos de anormalidade, antes do advento da Lei n° 12.403/11, parte da dou­ trina entendia que, mesmo após a Constituição de 1988, ainda seria possível a prisão administrativa, desde que decretada por uma autoridade judiciária. 89. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6a ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2009. p. 877.

88. A propósito: STF, 1aTurma, RHC 76.741/MG, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 22/05/1998 p. 32.

90. Nesse contexto: RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 17a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 785.

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Segundo essa posição doutrinária, a prisão ad­ ministrativa (CPP, antiga redação do art. 319) teria cabimento contra remissos ou omissos em entrar para os cofres públicos com os dinheiros a seu car­ go, a fim de compeli-los a que o fizessem,91 contra estrangeiro desertor de navio de guerra ou mercan­ te, surto em porto nacional,92 contra estrangeiro ou brasileiro naturalizado, nos procedimentos relati­ vos à deportação, expulsão e extradição, quando a lei a admitisse (Lei n° 13.445). Todas essas prisões não podiam decorrer de mera dívida civil, pois a Constituição Federal estabelece que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obri­ gação alimentícia e a do depositário infiel (art. 5o, LXVII). No entanto, caso a conduta seja prevista como infração penal, é cabível a prisão penal por dívidas, decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado, assim como a prisão caute­ lar, desde que presentes os requisitos legais. Com a devida vênia, sempre pensamos que, diante da Constituição de 1988, e à exceção das hi­ póteses do Estado de Defesa e do Estado de Sítio, não havia mais espaço para a prisão administrativa no ordenamento pátrio. Se a Carta Magna determi­ na que, pelo menos em regra, a prisão de alguém depende de prévia autorização judicial, não se pode argumentar no sentido da subsistência da prisão administrativa. A hipótese do inciso II do art. 319 do CPP so­ mente pode ocorrer no curso de processo de extra­ dição, mas desde que comprovada a necessidade da medida cautelar para salvaguardar a eficácia do pro­ cedimento extradicional. Portanto, no ordenamento 91. Explica FEITOZA que tal hipótese trata da "responsabilidade por alcance, que é a denominação dada para a apropriação de bens públi­ cos. Remisso é o que retarda a entrega de bens públicos e omisso é o que não entrega os bens públicos. A finalidade da prisão administrativa

é compelir o remisso ou omisso à entrega do bem público. No caso, é semelhante à finalidade das prisões civis. Se o remisso ou omisso é um funcionário público que se apropriou do bem público em razão da função, obviamente não se trata de dívida civil, mas de crime, e, assim, as três espécies de prisão são possíveis: a prisão penal, a prisão processual penal e a prisão administrativa. No caso da prisão admi­ nistrativa, a autoridade administrativa deverá requerer a decretação da prisão administrativa à autoridade judiciária. Seria, por exemplo,

o caso das várias hipóteses de peculato do art. 312 do CP. Mas, se for uma hipótese como a da apropriação indébita previdenciária do art. 168-A do CP, trata-se de dívida, para a qual é incabível a prisão civil ou a administrativa. Restariam a prisão penal e a prisão processual penal, que, contudo, possuem requisitos muito mais restritos para sua decre­ tação" (op. cit. p. 875). 92. Ainda segundo FEITOZA, a prisão administrativa deverá ser reque­ rida pelo cônsul do país a que pertença o navio. A prisão dos desertores não poderá durar mais de 3 (três) meses e será comunicada aos cônsules. Entretanto, se está demonstrado que os desertores se apresentarão es­ pontaneamente, não haverá necessidade cautelar para sua decretação (op. cit. p. 875).

pátrio, não há qualquer prisão administrativa, a não ser nos casos de prisão disciplinar, que serão estu­ dadas a seguir.

Logo após a entrada em vigor da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se pela não recepção da prisão administrativa. Para a Suprema Corte, por força do disposto no inciso LXI do art. 5o da Carta Magna, deixou de ser permitida a prisão administrativa.93 Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, pensamos que a discussão em torno da subsistên­ cia da denominada prisão administrativa chegou ao fim. Isso porque o Capítulo V do Título IX do Livro I do CPP, que versava sobre a prisão administrativa, passou a tratar das outras medidas cautelares. Além disso, os arts. 319 e 320 do CPP, que dispunham so­ bre a prisão administrativa, passaram a dispor sobre medidas cautelares de natureza pessoal distintas da prisão cautelar. Se não bastasse o fim do Capítulo do CPP que versava sobre a prisão administrativa, a nova redação conferida ao art. 283 do CPP também não faz menção à prisão administrativa.

3.2.1. Prisão do estrangeiro para fins de extra­ dição, expulsão e deportação O inciso LXI do art. 5o da Constituição Federal prevê que, à exceção dos casos de flagrante deli­ to, transgressões militares e crimes propriamente militares definidos em lei, a privação da liberdade de locomoção só poderá ocorrer mediante ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Por consequência, sempre se entendeu que o dispositivo legal do revogado Estatuto do Es­ trangeiro que, em sua redação original, atribuía ao Ministro da Justiça o poder de decretar a prisão do estrangeiro para fins de extradição (revogada Lei n. 6.815/80, art. 81) não havia sido recepcionado pela Carta Magna. Na verdade, levando-se em conside­ ração que recai sobre o Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por estado estrangeiro (art. 102,1, g, da CF), é de se concluir que tal prisão só poderia ser decretada pelo respectivo Ministro Relator daquela Corte.94

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.878 em data de 05 de novembro de 2013, esse entendimento doutrinário e jurisprudencial acabou sendo posi­ tivado pelo legislador. Por força da nova redação 93. STF, 1a Turma, RHC 66.905/PR, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 10/02/1989 p. 383. 94. Com esse entendimento: STF, Pleno, HC 73.256/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 13/12/1996.

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conferida ao art. 82, caput, da revogada Lei n° 6.815/80, o Estado interessado na extradição pode­ ria, em caso de urgência e antes da formalização do pedido de extradição, ou conjuntamente com este, requerer a prisão cautelar do extraditando por via diplomática ou, quando previsto em tratado, ao Mi­ nistério da Justiça, que, após exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em Tratado, representaria ao Supremo Tribunal Federal.95

Antigamente, era firme o entendimento doutri­ nário ejurisprudencial no sentido de que essa prisão do estrangeiro era verdadeiro requisito de procedi­ bilidade da ação extradicional. Sua importância es­ tava relacionada ao fato de que seria impossível para o país que pretende julgar um criminoso apresentar pedido de extradição para um determinado Estado onde o procurado foi localizado, mas, logo após, este fugir para outro país. Também de nada adiantaria conceder um pedido de extradição, mas, na hora de entregar o estrangeiro ao Estado requerente, não estar com ele em mãos. A propósito, basta atentar para o quanto disposto no art. 84 da revogada Lei n° 6.815/80, que dispunha que, efetivada a prisão do extraditando com base em ordem do Ministro da Justiça, tal prisão perduraria até o julgamento final do STF, não sendo admitida a liberdade vigia­ da,96 a prisão domiciliar, nem tampouco a prisão al­ bergue. Assim, à exceção da prisão decretada antes da formalização do pedido de extradição, que teria eficácia temporal limitada de 90 (noventa) dias, aquela decretada a partir do ajuizamento da ação de extradição passiva deveria durar todo o proces­ so extradicional. Nesse contexto, eventual excesso de prazo ocorrido em relação à prisão cautelar do extraditando ficaria descaracterizado pelo início da ação de extradição passiva, uma vez que o súdito estrangeiro deveria ficar obrigatoriamente à dispo­ sição do STF até o julgamento final.97 Com o passar dos anos, todavia, esse entendi­ mento foi sendo mitigado pelo próprio Supremo, 95. Reconhecendo a legitimidade da Interpol para apresentar pedido de prisão preventiva para fins de extradição ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 82, § 2°, do Estatuto do Estrangeiro (Lei n° 6.815/80), com redação determinada pela Lei n° 12.878/13: STF, 2a Turma, PPE 732 QO/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 11/11/2014.

96. A súmula 2 do STF ("Concede-se liberdade vigiada ao extraditando que estiver preso por prazo superior a sessenta dias") já não tem mais eficácia, desde a revogação, pelo Decreto-lei n° 941/69 (art. 95, § Io), do art. 9o do Decreto-lei n° 394/38, sob cuja égide foi editado o preceito sumularem questão. 97. Nesse sentido: MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil in­ terpretada e legislação constitucional. 5a ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 353. Na mesma linha: STF, Pleno, HC 81.709/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 31/05/2002; STF, Pleno, HC 71.402/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 23/09/1994.

que há anos admite que o extraditando seja posto em liberdade quando não houver nos autos risco processual ou à coletividade pelo fato em si da li­ berdade do agente. O STF vem considerando que a prisão do extraditando não é uma condição sine qua non do processo de extradição, estando sua de­ cretação condicionada à observância dos requisitos para a decretação da prisão preventiva, constantes do art. 312 do CPP. Por isso, tal medida já vem sendo chamada de prisão preventiva para fins de extradição (PPE). Na dicção da Suprema Corte, apesar da necessidade das devidas cautelas em ca­ sos de relaxamento ou de concessão de liberdade provisória, era desproporcional o tratamento que vinha sendo dado ao instituto. Na prisão preven­ tiva para extradição (PPE), também se impõe a observância dos requisitos do art. 312 do CPP, sob pena de expor o extraditando à situação de desi­ gualdade em relação aos nacionais que respondem a processos criminais no Brasil. A PPE deve ser analisada caso a caso, e a ela deve ser atribuído limite temporal, compatível com o princípio da proporcionalidade.98

Com a entrada em vigor da Lei de Migração (Lei n. 13.445/17) e consequente revogação do Esta­ tuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80), parece não ha­ ver mais qualquer dúvida acerca da natureza dessa prisão do estrangeiro para fins de extradição. Trata-se de verdadeira prisão cautelar, que jamais poderá ser decretada de maneira automática como mera consequência do ajuizamento da ação de extradição passiva, devendo ser utilizada apenas quando estri­ tamente necessária, e desde que presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis previstos no art. 312 do CPP. Enfim, independentemente do mo­ mento em que a prisão cautelar for pleiteada pelo Estado estrangeiro - antes da formalização do pe­ dido de extradição ou em conjunto com este -, sua decretação jamais deverá ser compreendida como consequência lógica e inexorável da formalização do pedido de extradição. Deveras, consoante disposto em seu art. 84, em caso de urgência, o Estado interessado na ex­ tradição poderá, previamente ou conjuntamente com a formalização do pedido extradicional, re­ querer, por via diplomática ou por meio de auto­ ridade central do Poder Executivo, prisão cautelar com o objetivo de assegurar a executoriedade da 98. STF, Pleno, HC 91.657/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJe 047 13/03/2008. Precedentes citados no referido julgado: Ext. n° 1008/Colômbia, Rei. DJ 17.8.2007; Ext 791/Portugal, Rei. Min. Celso de Mello, DJ de 23.10.2000; AC n° 70/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 12.3.2004; Ext - QO. n° 1054/EUA, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ de 14.9.2007. Na mes­

ma linha: STF, Ext. 1.254 QO/Romênia, ReL Min. Ayres Britto, 06/09/2011.

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medida de extradição que, após exame da presen­ ça dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em tratado, deverá repre­ sentar à autoridade judicial competente, ouvido previamente o Ministério Público Federal. Esse pedido de prisão cautelar poderá ser transmitido à autoridade competente para extradição no Brasil por meio de canal estabelecido com o ponto focal da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) no País, devidamente instruído com a documentação comprobatória da existência de or­ dem de prisão proferida por Estado estrangeiro, e, em caso de ausência de tratado, com a promes­ sa de reciprocidade recebida por via diplomática. Na ausência de disposição específica em tratado, o Estado estrangeiro deverá formalizar o pedido de extradição no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data em que tiver sido cientificado da prisão do extraditando. Caso o pedido de extradição não seja apresentado nesse prazo, o extraditando deverá ser posto em liberdade, não se admitindo novo pedi­ do de prisão cautelar pelo mesmo fato sem que a extradição tenha sido devidamente requerida. A prisão cautelar poderá ser prorrogada até o julga­ mento final da autoridade judiciária competente quanto à legalidade do pedido de extradição.

Confirmando a ideia de que a prisão do es­ trangeiro não é mais uma condição sine qua non do processo extradicional, a novel Lei de Migração também prevê que o Supremo Tribunal Federal, ou­ vido o Ministério Público, poderá autorizar prisão albergue ou domiciliar ou determinar que o extra­ ditando responda ao processo de extradição em liberdade, com retenção do documento de viagem ou outras medidas cautelares necessárias, até o jul­ gamento da extradição ou a entrega do extraditando, se pertinente, considerando a situação administra­ tiva migratória, os antecedentes do extraditando e as circunstâncias do caso (art. 86).

3.3. Prisão militar

3.3.1. Da prisão militar em virtude de trans­ gressão disciplinar De acordo com a Constituição Federal (art. 142, caput), as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disci­ plina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Por sua vez, consoante dispõe o art. 42, caput, da Constituição de 1988, os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, ins­ tituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Como se percebe, a própria Carta Magna realça a importância da hierarquia e da discipli­ na, na medida em que estas funcionam como a base institucional das Forças Armadas, das Polícias Militares e do Corpos de Bombeiros. Consoante dispõe o art. 14 do Estatuto dos Militares (Lei n° 6.880/80), “a hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estru­ tura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubs­ tanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade. Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, nor­ mas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumpri­ mento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo”.

Diversamente do Estatuto do Estrangeiro (revo­ gada Lei n. 6.815/80, arts. 61 e 69), a Lei de Migração nada dispõe acerca da possibilidade de ser decretada a prisão cautelar nos casos de deportação (medida decorrente de procedimento administrativo que consiste na retirada compulsória de pessoa que se encontre em situação migratória irregular em terri­ tório nacional) e expulsão (medida administrativa de retirada compulsória de migrante ou visitante do território nacional, conjugada com o impedimento de reingresso por prazo determinado).99

ao reconhecimento ou adoção do filho. A dependência econômica não é, portanto, o único fator a impedir a expulsão de estrangeiros com filhos

99. De se lembrar que é inadmissível a expulsão de estrangeiro que possua filho brasileiro, dependente socioafetivo ou econômico, mesmo que o crime ensejador da expulsão tenha ocorrido em momento anterior

brasileiros. Nesse sentido, o art. 55, II, "a", da Lei n. 13.445, de 2017, prevê expressamente que "não se procederá à expulsão quando o expulsando tiver filho brasileiro que esteja sob sua guarda ou dependência econômi­ ca ou socioafetiva ou tiver pessoa brasileira sob sua tutela". Nesse contex­ to: STF, IaTurma, RHC 123.891 AgR/DF, Rei. Min. Rosa Weber,j. 23.02.2021.

Como importante instrumento coercitivo de tutela da hierarquia e da disciplina no âmbito das Forças Armadas, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, ao dispor sobre a prisão, a Constituição Federal estabelece em seu art. 5o, inciso LXI, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamen­ tada de autoridade judiciária competente, salvo

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nos casos de transgressão militar ou crime propria­ mente militar, definidos em lei” (nosso grifo). Da leitura do referido dispositivo depreende-se que, além das hipóteses de prisão decretada por ordem fundamentada de autoridade judiciária compe­ tente e de flagrante delito, também é possível a prisão nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar. Impõe-se, portanto, estabe­ lecer o que se entende por transgressão militar e crime propriamente militar.100 De acordo com o Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto n° 4.346, de 26 de agosto de 2002), transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos es­ tatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensi­ va à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar101 e o decoro da classe. Essas transgressões disciplinares estão listadas no anexo I do referido Regulamento.102

A depender da espécie de transgressão discipli­ nar, levando-se em consideração também a pessoa do transgressor, as causas que a determinaram, a natureza dos fatos ou atos que a envolveram, assim como as consequências que dela possam advir, os militares estão sujeitos às seguintes punições disci­ plinares, em ordem de gravidade crescente:

a) advertência: é a forma mais branda de punir, consistindo em admoestação feita verbalmente ao transgressor, em caráter reservado ou ostensivo;

b) impedimento disciplinar: é a obrigação de o transgressor não se afastar da Organização Militar, sem prejuízo de qualquer serviço que lhe competir dentro da unidade em que serve; c) repreensão: é a censura enérgica ao trans­ gressor, feita por escrito e publicada em boletim interno;

d) detenção disciplinar: é o cerceamento da liberdade do punido disciplinarmente, o qual deve permanecer no alojamento da subunidade a que 100. Tal conceito será trabalhado no próximo tópico. 101. Considera-se pundonor militar o dever de o militar pautar a sua conduta como a de um profissional correto. Exige dele, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento ético que refletirá no seu de­ sempenho perante a Instituição a que serve e no grau de respeito que lhe é devido (Decreto n° 4.346/2002, art. 6o, II). 102. O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica está previsto no De­ creto n° 76.322, de 22 de setembro de 1975.0 Decreto n° 88.545, de 26

de julho de 1983, versa sobre o regulamento Disciplinar da Marinha. De seu turno, o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo está inserido na Lei Complementar n° 893, de 09 de março de 2001.

pertencer ou em local que lhe for determinado pela autoridade que aplicar a punição disciplinar; e) prisão disciplinar: consiste na obrigação de o punido disciplinarmente permanecer em local próprio e designado para tal. Nesse ponto, impor­ tante atentar para a Lei n. 13.967/19, que extinguiu a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal;103

f) licenciamento e a exclusão a bem da disci­ plina: consistem no afastamento, ex officio, do mi­ litar das fileiras do Exército, conforme prescrito no Estatuto dos Militares.

Ainda segundo o Estatuto dos Militares, as penas disciplinares de impedimento, detenção ou prisão não podem ultrapassar 30 (trinta) dias (Lei n° 6.880/80, art. 47, § Io).

3.3.2. Da prisão militar em virtude de crime propriamente militar Apesar de o Código Penal Militar não estabele­ cer qualquer distinção dos crimes em propriamen­ te e impropriamente militares, a doutrina se viu obrigada a realizar essa diferenciação. Isso porque a Constituição Federal, em seu art. 5o, inciso LXI, estabelece que ninguém será preso senão em fla­ grante delito, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente mi­ litar, definidos em lei. Por sua vez, o Código Penal comum também faz menção aos crimes militares próprios em seu art. 64, inciso II, deixando de con­ siderá-los para fins de reincidência.

Por razões óbvias, a norma constitucional em análise, ao permitir a prisão no caso de transgres­ sões militares ou crimes propriamente militares, independentemente da situação de flagrância ou de ordem fundamentada da autoridade judiciária competente, tem como destinatários exclusivos os militares, ou seja, somente o militar está autori­ zado a prender e somente o militar está sujeito à referida prisão. O civil, por conseguinte, só pode ser preso em flagrante delito ou mediante decisão judicial. 103. Decreto-Lei n. 667/69: "Art. 18. As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina, aprovado por lei estadual ou federal para o Distrito Federal, específica, que tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões

disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Dis­ ciplina Militares, observados, dentre outros, os seguintes princípios: (...) VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade".

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Como visto no título atinente à competência criminal, crime propriamente militar é aquele que só pode ser praticado por militar, pois consiste na violação de deveres restritos, que lhe são próprios, sendo identificado por dois elementos: a qualidade do agente (militar) e a natureza da conduta (prática funcional). Diz respeito particularmente à vida mili­ tar, considerada no conjunto da qualidade funcional do agente, da materialidade especial da infração e da natureza peculiar do objeto danificado, que deve ser o serviço, a disciplina, a administração ou a econo­ mia militar. A título de exemplo, podemos citar os delitos de deserção (CPM, art. 187), embriaguez em serviço (CPM, art. 202), dormir em serviço (CPM, art. 203), etc.104 Apreendido esse conceito, convém destacar que, por força do art. 5o, LXI, da Constituição Fe­ deral, independentemente de o agente estar ou não em situação de flagrância, ou de prévia autorização judicial, é possível a prisão do militar nas hipóteses de transgressão militar ou de crime propriamente militar. É o que acontece, v.g., na hipótese do crime de deserção (CPM, art. 187), em que se apresenta possível a prisão na medida em que se trata de crime propriamente militar. Assim, a prisão do desertor pode ser efetuada a qualquer tempo, desde que não tenha ocorrido a prescrição nos termos do art. 132 do CPM.105

Costuma-se acreditar (equivocadamente) que a prisão do desertor seria possível por se tratar de crime permanente.106 Logo, considerando-se que, nas infra­ ções permanentes, considera-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência (CPPM, art. 244, parágrafo único), a prisão do desertor seria possível por estar ele em situação de flagrância. A nosso ver, trata-se de raciocínio equivocado.107 O crime de deserção (ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de 8 dias) não é crime permanente. Crime permanente é aquele cuja consumação, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, detendo o agente o poder de fazer cessar o estado antijurídico por ele realizado. Como se vê, uma das principais 104. Para mais detalhes acerca do conceito de crimes militares, reme­ temos o leitor ao título relativo à competência criminal.

105. CPM. Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo da prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de 45 (quarenta e cinco) anos, e, se oficial, a de 60 (sessenta).

106. No sentido de que o crime de deserção tem natureza perma­ nente: STF, 1aTurma, HC 112.005/RS, Rel. Min. DiasToffoli, j. 10/02/2015. 107. No sentido de que o crime de deserção é de natureza perma­ nente: STF, 2a Turma, HC 112.511/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/10/2012.

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características do crime permanente consiste em o agente poder fazer cessar a perturbação do bem jurídico a qualquer momento. Ele possui o domínio do fato, da conduta e do resultado. Ora, no crime de deserção, decorrido o prazo de ausência de 8 (oito) dias, o delito já está consumado. Após esse prazo, a manutenção da situação de permanência já não depende mais da vontade do próprio agente, tal como acontece em crimes permanentes como o de sequestro, em que a vítima pode ser libertada, desde que o agente que a privou da liberdade atue nesse sentido. Ao contrário, no caso de deserção, o retorno à situação anterior foge à alçada do agente, que já não tem mais o domínio do fato para fazer cessar a prática do delito.

Portanto, afigura-se possível a prisão do de­ sertor não por se tratar de prisão em flagrante em relação a crime permanente, mas sim por se tratar de crime propriamente militar. Como já se mani­ festaram os Tribunais Superiores, não há qualquer ilegalidade na prisão imediata do militar desertor que se apresenta voluntariamente e/ou é capturado (CPPM, art. 452). Sendo a deserção um crime defi­ nido em lei como de natureza propriamente militar, a custódia daquele que comete o delito capitulado no artigo 187 do CPM, tão-somente baseada no Termo de Deserção, independentemente de ordem escrita de autoridade judiciária, está consentânea com o que dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 5o, inciso LXI.108

Nessa linha, segundo a 2a Turma da Suprema Corte, “a prática do crime de deserção quando o paciente ainda ostentava a qualidade de militar autoriza a instauração de instrução provisória de deserção, assim como a prisão do desertor, inde­ pendentemente de ordem judicial (art. 5o, LXI, da Constituição). A exclusão do desertor do serviço militar obsta apenas o ajuizamento da ação penal (CPPM, art. 457, § 3o), que não se confunde com a instauração de instrução provisória de deserção. Ademais, mesmo a ação penal poderá ser ajuiza­ da após a recaptura ou apresentação espontânea do paciente, quando então este será reincluído nas forças armadas, salvo se considerado inapto depois de submetido à inspeção de saúde (CPPM, art. 457, § Io)”.109 108. STM, HC n° 2005.01.033994-9/DF, Rel. Min. Flávio de Oliveira Lencastre, DJ 23/03/2005. Em sentido semelhante, porém sem especificar que o crime de deserção é crime propriamente militar: STF, IaTurma, HC 84.330/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 27/08/2004 p. 71.

109. STF, 2a Turma, HC 94.367/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 025 05/02/2009.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Não negamos que a prisão do militar por transgressão disciplinar seja uma espécie de pri­ são extrapenal, na medida em que é imposta por uma autoridade administrativa militar, indepen­ dentemente de autorização judicial, seja a priori, seja a posteriori. No entanto, no tocante à prisão do militar por crime propriamente militar, con­ quanto sua captura seja possível em um primeiro momento sem autorização judicial (e, portanto, um simples ato administrativo), uma vez efetivada a captura do militar, deve a autoridade judiciária militar ser comunicada acerca da prisão, a fim de que delibere sobre a necessidade (ou não) da manutenção da prisão do militar. Assemelha-se, nesse ponto, a prisão do militar por crime pro­ priamente militar, à prisão em flagrante. Nessa linha de raciocínio, ao julgar o HC 89.645 (Rel. Min. Gilmar Mendes), a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu que, mesmo na Justiça Castrense, para que a liberdade dos ci­ dadãos seja legitimamente restringida, é necessá­ rio que o órgão judicial competente se pronun­ cie de modo expresso e fundamentado quanto à presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, nos termos do art. 312 do CPP (na verdade, as hipóteses de prisão preventiva no Código de Processo Penal Militar estão listadas no art. 255), indicando elementos concretos aptos a justificar a constrição cautelar do direito funda­ mental da liberdade de locomoção (art. 5o, inciso XV, da CF/88).110

4. PRISÃO PENAL (CARCER AD POENAM) A prisão penal, prisão-pena ou carcer adpoenam, é aquela que resulta de sentença condenató­ ria com trânsito em julgado que impôs o cumpri­ mento de pena privativa de liberdade (STF, ADCs 43, 44 e 54). Só pode ser aplicada após um devido processo penal no qual tenham sido respeitadas todas as garantias e direitos do cidadão. Além de expressar a satisfação da pretensão punitiva ou a realização do Direito Penal objetivo, caracteriza-se pela definitividade. Conquanto sua utilização venha sendo reduzida ao mínimo necessário, é um mal necessário do qual ainda não podemos prescindir, conforme salienta Alberto Silva Fran­ co: “Enquanto a dogmática penal mais criativa não oferecer nenhum substitutivo válido para a pena privativa de liberdade, e enquanto a prisão, embora já considerada um ‘mal necessário’, não

sofrer total esvaziamento, o regime penitenciá­ rio, com toda a sua problemática, não poderá ser descartado.”111

5. PRISÃO CAUTELAR (CARCER AD CUSTODIAM) Prisão cautelar (carcer ad custodiam) é aquela decretada antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória com o objetivo de assegurar a eficácia das investigações ou do processo criminal.

Em um Estado que consagra o princípio da presunção de não culpabilidade, o ideal seria que a privação da liberdade de locomoção do imputado somente fosse possível por força de uma prisão pe­ nal, ou seja, após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.112 Todavia, entre o momento da prática do delito e a obtenção do provimento jurisdicional definitivo, há sempre o risco de que certas situações comprometam a atuação jurisdicio­ nal ou afetem profundamente a eficácia e utilidade do julgado. Daí o caráter imperioso da adoção de medidas cautelares, a fim de se atenuar esse risco. Como aponta Antônio Scarance Fernandes, são pro­ vidências urgentes, através das quais se tenta evitar que a decisão da causa, ao ser proferida, não mais satisfaça o direito da parte, atingindo-se, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa.113 A prisão cautelar deve estar obrigatoriamen­ te comprometida com a instrumentalização do processo criminal. Trata-se de medida de nature­ za excepcional, que não pode ser utilizada como cumprimento antecipado de pena, na medida em que o juízo que se faz, para sua decretação, não é de culpabilidade, mas sim de periculosidade. Tendo em conta a função cautelar que lhe é inerente - atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal - a prisão cautelar também não pode ser decretada para dar satisfação à sociedade, à opi­ nião pública ou à mídia, como mera consequência da deflagração de uma investigação policial ou até mesmo da instauração de um processo penal, sob pena de se desvirtuar sua natureza instrumental.

111. Temas de direito penal: breves anotações sobre a Lei n° 7.209/84. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 121/122.

112. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, tradução de Fauzi Hassan Choukr. 2002, pp. 446 e 449.

110. No mesmo contexto: STF, 2a Turma, RHC 105.776/PA, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22/05/2012. Para mais detalhes acerca da liberdade pro­

113. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3a ed. rev„ atual, e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 297. Na mesma linha, como bem observa Pedro Aragoneses (Instituciones de derechoprocesalpenal. Madri: Rubi, 1981. p. 258), "o grande problema das medidas cautelares consiste em que, se não adotada, corre-se o risco

visória no processo penal militar, vide abaixo item pertinente ao assunto.

da impunidade; se adotada, corre-se o perigo da injustiça".

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Infelizmente, não é isso o que se vê no dia a dia forense, em que há uma massificação das pri­ sões cautelares, a despeito do elevado custo que re­ presentam. Como bem ressaltam Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró, “infelizmente as prisões cautelares acabaram sendo inseridas na dinâmica da urgência, desempenhando um relevantíssimo efei­ to sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de eficiência do aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com isso, o que foi concebido para ser ex­ cepcional torna-se um instrumento de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa teratológica alquimia, sepulta-se a legitimidade das prisões cautelares, quadro esse agravado pela dura­ ção excessiva”.114 Enquanto a prisão penal (“carcer ad poenam”) objetiva infligir punição àquele que sofre a sua de­ cretação, a prisão cautelar (“carcer ad custodiam”) destina-se única e exclusivamente a atuar em bene­ fício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. Como toda medida cautelar, tem por objetivo imediato a proteção dos meios ou dos resultados do processo, servindo como instrumento do instru­ mento, de modo a assegurar o bom êxito tanto do processo de conhecimento quanto do processo de execução. Logo, a prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada pelo Poder Público como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito. Isso significa que a prisão cautelar não pode ser utilizada com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito en­ tender, subverter-se-ia a finalidade da prisão pre­ ventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da presunção de inocência. Louvável, nesse sentido, a modificação pro­ duzida no CPP pela Lei n. 13.964/19. Segundo o novel §2° do art. 313 do CPP, não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.

De acordo com a doutrina majoritária, a prisão cautelar apresenta-se entre nós sob três modalidades:

114. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55. Na mesma linha é a lição de Rogério Schietti Machado Cruz: "o certo é que está havendo um cada vez mais frequente deslocamento da resposta penal para as prisões cautelares, ao invés do que seria mais natural, para a sentença condenatória (Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 2/3).

a) prisão em flagrante;115 b) prisão preventiva; c) prisão temporária. A nosso juízo, desde o advento da Constituição de 1988, e a consagração expressa do princípio da presunção de não culpabilidade, a prisão decorrente de pronúncia e a decorrente de sentença condena­ tória recorrível não mais podiam ser consideradas espécies autônomas de prisão cautelar. Diante do disposto no art. 5o, inciso LVII, não seria possível que uma ordem legislativa, subtraindo da aprecia­ ção do Poder Judiciário a análise da necessidade da segregação cautelar diante dos elementos do caso concreto, determinasse o recolhimento de alguém à prisão como efeito automático da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível. Referidas pri­ sões já não podiam mais, de per si, legitimar uma custódia cautelar. Deviam, sob pena de constrangi­ mento ilegal, cingir-se fundamentadamente à órbita do art. 312 do CPP. Estar-se-ia, portanto, diante de uma prisão preventiva, e não mais de uma prisão decorrente de pronúncia ou de sentença condena­ tória recorrível.

Independentemente da discussão em torno da subsistência (ou não) da prisão decorrente de pronúncia e de sentença condenatória em face do advento da Carta Magna, certo é que a reforma processual de 2008 aboliu tais prisões, pelo menos como modalidades autônomas de prisão cautelar. A Lei n° 11.689/08 (referente ao novo procedi­ mento do júri) afastou a prisão automática do antigo art. 408, §§ 2o e 3o, passando a dispor em seu art. 413, § 3o, que o juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da pri­ são ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código. Além disso, segundo a nova redação do art. 492,1, “e”, do CPP, ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri, em caso de condenação, caberá determinar o recolhimento ou permanência do acu­ sado na prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva. Por outro lado, com a Lei n° 11.719/08, restou revogado o art. 594 do Código de Processo Penal, constando do art. 387, § Io, do CPP, que o juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta.

115. Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em fla­ grante. Voltaremos a tratar do assunto mais adiante.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Em conclusão, é de todo relevante destacar que a súmula vinculante n. 56 não é aplicável ao preso cautelar. Ante o direito de o apenado não ser submetido a regime mais gravoso daquele imposto no título condenatório, o Supremo deliberou pela aprovação do referido enunciado, nos seguintes termos: “A falta de estabelecimento penal adequa­ do não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se obser­ var, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS”. Na oportunidade, restaram estabele­ cidos como parâmetros que, previamente à con­ cessão da prisão domiciliar, devem ser observadas outras alternativas ao déficit de vagas, quais sejam, (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamen­ te ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; ou (iii) o cumprimento de penas alternativas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Como se pode notar, a Súmula Vinculante n. 56 destina-se com exclusividade aos casos de efetivo cumprimento de pena. Em outras palavras, aplica-se tão somente ao preso definitivo. O seu objetivo não é outro senão vedar o resgate da reprimenda em regime mais gravoso do que teria direito o apenado pela falha do Estado em oferecer vaga em local apropriado. Não se pode estender a citada súmula vinculante ao preso pro­ visório, eis que se trata de situação distinta. Por deter caráter cautelar, a prisão preventiva não se submete a distinção de diferentes regimes. Assim, sequer é possível falar em regime mais ou menos gravoso ou estabelecer um sistema de progressão ou regressão da prisão.116

6. MOMENTO DA PRISÃO De acordo com o art. 283, § 2o, do CPP, a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabili­ dade do domicílio. Assim, ainda que a pessoa esteja durante o casamento, em núpcias, durante festivida­ des natalinas ou religiosas, final de semana, etc., não há qualquer impedimento para o cumprimento da prisão, já que a regra é que a prisão pode ser levada a efeito em qualquer dia e a qualquer hora. Porém, há importantes restrições, a saber: 116. STJ, 5a Turma, RHC 99.006/PA, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 07/02/2019,

DJe 14/02/2019.

6.1. Inviolabilidade do domicílio O tema foi objeto de análise no título atinen­ te às provas, mais precisamente no tópico “10.4.1. Busca domiciliar”, para onde remetemos o leitor.

6.2. Conceito de dia O tema também já foi trabalhado no título atinente às provas, mais especificamente no tópico “10.4.1. Busca domiciliar”, para onde remetemos o leitor.

6.3. Cláusula de reserva de jurisdição A possibilidade de invasão domiciliar, durante o dia, está sujeita à cláusula de reserva de jurisdi­ ção, a qual, conforme observa J.J. Gomes Canotilho,117 importa em “submeter à esfera única de decisão dos magistrados a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de verdadeira dis­ criminação material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive da­ queles a quem se hajam eventualmente atribuído poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, como ocorre com as Comissões Parla­ mentares de Inquérito.

Logo, por expressa previsão constitucional, compete exclusivamente aos órgãos do Poder Judi­ ciário, com total exclusão de qualquer outro órgão estatal, a prática de determinadas restrições a direi­ tos e garantias individuais: a) violação ao domicí­ lio durante o dia (CF, art. 5o, inciso XI); b) prisão, salvo nas hipóteses de flagrante delito (CF, art. 5o, inciso LXI); c) interceptação telefônica (CF, art. 5o, inciso XII); d) afastamento de sigilo de processos jurisdicionais. Se a violação do domicílio está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, forçoso é concluir que não foi recepcionada pela Constituição Federal a parte final do art. 176, caput, do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual a busca domiciliar poderá ser ordenada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes, ou determinada pela autoridade policial militar.

6.4. Momento da prisão e Código Eleitoral Ao lado da inviolabilidade do domicílio, outra limitação ao momento da prisão está prevista no Código Eleitoral. 117. Direito constitucionale teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 580 e 586.

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De acordo com o art. 236, caput, e § Io, da Lei n° 4.737/1965, nenhuma autoridade poderá, desde cinco dias antes e até 48 horas depois do encerra­ mento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo em flagrante delito (v.g., “boca de urna”) ou em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável com trânsito em julgado, ou, ain­ da, por desrespeito a salvo-conduto. Quanto à esta última hipótese, é bom destacar que a violação a salvo-conduto (ordem concedida em habeas corpus preventivo), por si só, já pode constituir infração penal (e, daí, hipótese de flagrante delito), seja por abuso de autoridade, seja por constrangimento ile­ gal. Outrossim, em se tratando de candidatos, esse prazo é de quinze dias antes das eleições. Por sua vez, os membros das mesas receptoras e os fiscais de partido, durante o exercício de suas funções, não poderão ser detidos ou presos, salvo o caso de fla­ grante delito. O Código Eleitoral não se refere à prisão tem­ porária, o que é por demais óbvio, na medida em que a lei que instituiu a prisão temporária - Lei n° 7.960/89 - é posterior à vigência do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65). Assim, considerando que a prisão temporária é uma espécie de prisão cautelar, pensa­ mos que o preceito do art. 236 do Código Eleitoral também se aplica a ela.118

Ainda em relação ao preceito do art. 236 do Código Eleitoral, na medida em que a finalidade do dispositivo do Código Eleitoral é a preservação do direito ao voto, afigura-se ilegítima sua aplica­ ção quando não estiver caracterizado o fim ao qual se destina. Nessa linha, segundo Fábio Ramazzini Bechara, “no caso do estrangeiro residente no país ou ainda daquele que está com a prisão preventiva decretada e é surpreendido tentando embarcar no aeroporto para o exterior, não se vislumbra a fina­ lidade da lei eleitoral, não sendo vedada, portanto, a privação da liberdade aquém das hipóteses legal­ mente autorizadas”.119

7. IMUNIDADES PRISIONAIS Em regra, toda e qualquer pessoa pode ser pre­ sa. No entanto, há exceções.

7.1. Presidente da República e Governadores de Estado O Presidente da República, nas infra­ ções comuns, enquanto não sobrevier sentença 118. Nesse sentido: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Op. cit. p. 461.

119. BECHARA, Fábio Ramazzini. Breves notas acerca da prisão, in Sín­ tese Jornal. São Paulo: IOB Publicações Jurídicas Ltda., ano 08, n° 94, dezembro de 2004, p. 6.

condenatória, não estará sujeito à prisão (CF, art. 86, § 3o). Como se vê, não cabe contra o Presidente da República nenhuma prisão cautelar. Ademais, por força do disposto no art. 86, § 4o, da Constituição Federal, enquanto vigente o mandato, o Presidente da República não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de sua função (fatos praticados antes ou durante o mandato). Trata-se da cláusula da irresponsabili­ dade relativa, que não protege o Presidente da Re­ pública quanto aos ilícitos praticados no exercício da função ou em razão dela, assim como não exclui sua responsabilização civil, administrativa ou tribu­ tária. Extinto ou perdido o mandato, o Presidente da República poderá ser criminalmente processado pelo fato criminoso estranho ao exercício da função, ainda que praticado antes ou durante a investidura. Discute-se na doutrina se essa imunidade seria extensiva a Governadores de Estado. A nosso ver, a regra do art. 86, § 3o, da Constituição Federal, é de aplicação exclusiva do Presidente da República, e não pode ser estendida aos chefes do Executivo Estadual e municipal, mesmo que por via de Constituição Estadual ou Lei Orgânica Municipal. A propósito, no julgamento da ADI 1.026, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do art. 86 da Constituição do Estado de Sergipe, que reproduzia a disciplina contida nos §§ 3o e 4o do art. 86 da Consti­ tuição Federal, a fim de que fossem eles aplicáveis ao Governador do mesmo Estado. Considerou-se que tal disciplina aplica-se exclusivamente ao Presidente da República, não servindo de modelo para os Estados.120

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, porém, até bem pouco tempo atrás, havia enten­ dimento em sentido contrário, segundo o qual, em razão do princípio da simetria, nas infrações co­ muns, governadores não estariam sujeitos à prisão enquanto não sobreviesse sentença condenatória.121

Recentemente, todavia, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no curso de inquérito instaurado contra o então Governador do Distrito Federal J.R.A., diante da tentativa deste de frus­ trar a instrução criminal mediante corrupção de testemunha e falsidade ideológica de documento privado, deliberou pela decretação de sua prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública e na conveniência da instrução criminal. 120. STF-ADI 1.026/SE-Tribunal Pleno - Rel. Min. limar Galvão- DJ 18/10/2002 p. 26. Nos mesmos moldes: STF - ADI 1.022/RJ - Tribunal Pleno - Rel. p/ Acórdão: Min. Celso de Mello - DJ 17/11 /95 p. 39.202. 121. STJ - Corte Especial - HC 2.271 /PB - Rel. Min. José Cândido de Car­ valho Filho - Julgamento 09/12/93 - Publicação: DJ 05/09/94. No mesmo sentido posiciona-se Fernando da Costa Tourinho Filho (Op. cit. p. 712).

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Entendeu a Corte Especial do STJ que os Gover­ nadores dos Estados e do Distrito Federal não go­ zam de imunidade à prisão cautelar, prerrogativa extraordinária garantida somente ao Presidente da República, na qualidade de Chefe de Estado (re­ serva de competência da União Federal). Ademais, concluiu que a apreciação do pedido de prisão pre­ ventiva pelo STJ independe de prévia autorização da Câmara Distrital, tendo em vista a natureza cau­ telar da prisão preventiva, bem como o suposto envolvimento de membros da Casa Legislativa no esquema de corrupção.122 A prisão preventiva do Governador do Distrito Federal foi confirmada pelo Supremo Tribunal Fe­ deral, que entendeu presente de forma clara a prática de atos com o escopo de obstruir a justiça, atraindo a incidência do disposto no art. 312 do CPP, a re­ velar a possibilidade de prisão preventiva, admitida pela Carta da República no art. 5o, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV e LXVI, em virtude da necessidade de preservar-se não só a regular instrução criminal, no caso retratada nos autos do inquérito, mas também a ordem pública ante a atuação profícua de institui­ ções, como a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário.123

7.2. Imunidade diplomática Chefes de governo estrangeiro ou de Estado estrangeiro, suas famílias e membros das comi­ tivas, embaixadores e suas famílias, funcionários estrangeiros do corpo diplomático e suas família, assim como funcionários de organizações inter­ nacionais em serviço (ONU, OEA, etc.) gozam de imunidade diplomática, que consiste na prerro­ gativa de responder no seu país de origem pelo delito praticado no Brasil (Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo De­ creto Legislativo 103/1964, e promulgada pelo Decreto n° 56.435, de 08/06/1965). Em virtude disso, tais pessoas não podem ser presas e nem julgadas pela autoridade do país onde exercem suas funções, seja qual for o crime pratica­ do (CPP, art. 1°, inciso I). Em caso de falecimento de um diplomata, os membros de sua família “con­ tinuarão no gozo dos privilégios e imunidades a que 122. STJ, Corte Especial, Inq. 650/DF, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 11 /02/2010, DJe 15/04/2010. 123. STF, Tribunal Pleno, HC 102.732, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 04/03/2010, DJe 081 06/05/2010. Posteriormente, por entender que o ex-Governador não tinha mais condições de interferir na coleta de pro­ vas, a Corte Especial do STJ deferiu o pedido de revogação de sua prisão preventiva, sob o argumento de que não havia mais elementos para que

subsistisse a prisão preventiva: Informativo n° 430 do STJ, Corte Especial, QO na APn 622/DF, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgada em 12/04/2010.

têm direito, até a expiração de um prazo razoável que lhes permita deixar o território do Estado acre­ ditado” (art. 39, § 3o, da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas). Admite-se renúncia expressa à garantia da imunidade pelo Estado acreditante, ou seja, aquele que envia o Chefe de Estado ou representante. Tal imunidade não é extensiva aos empregados particulares dos agentes diplomáticos. Importante salientar que essa imunidade dos integrantes de corpo diplomático dos Estados es­ trangeiros é pela via da imunidade de jurisdição cognitiva, isto é, imunidade ao processo de conhe­ cimento, ou pela imunidade à jurisdição executi­ va, referente ao cumprimento da pena. Ambas as imunidades derivam, ordinariamente, do básico princípio “comitas gentium”, consagrado pela prá­ tica consuetudinária internacional e assentado em premissas teóricas e em concepções políticas que, fundadas na essencial igualdade entre as soberanias estatais, legitima o reconhecimento de “par in parem non habet imperium vel judicium”, conforme entende a doutrina do Direito Internacional Público. Pelo menos em tese, é possível que o Estado estrangeiro renuncie a ambas as imunidades, ou apenas à de jurisdição cognitiva, mantendo, toda­ via, a competência para o cumprimento de even­ tual pena criminal imposta ao agente diplomático. Quando isso ocorrer, leia-se, renúncia apenas à imu­ nidade de jurisdição, reservando-se a imunidade de execução, não se revela adequada a imposição de medidas cautelares no sentido de proibir o agente diplomático de se ausentar do país sem autorização judicial. In casu, por mais que o agente possa ser processado no Brasil e eventualmente condenado, a execução da pena obrigatoriamente deverá se dar no país de origem. Carece de razoabilidade, por­ tanto, qualquer fundamentação cautelar no sentido de se assegurar a aplicação da lei penal, porquanto a execução de eventual pena não é atribuição da jurisdição brasileira. Raciocínio diverso é válido, todavia, para as cautelares decretadas com outras finalidades que não a de assegurar a aplicação da lei penal, como, por exemplo, por conveniência da instrução cirminal, que são passíveis de decretação, porquanto diretamente relacionadas à própria ati­ vidade de cognição desenvolvida no processo de conhecimento cuja competência foi transferida às autoridades brasileiras.124*

Quanto ao cônsul, este só goza de imunidade em relação aos crimes funcionais (Convenção de 124. Nesse sentido: STJ, 6a Turma, RHC 87.825/ES, Rel. Min. Nefi Cor­

deiro, j. 05/12/2017, DJe 14/12/2017.

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Viena, de 1963, sobre Relações Consulares, Decreto n° 61.078, de 26/07/1967). Além disso, a prisão só é admitida na hipótese de crime grave e desde que haja decisão da autoridade competente. Por crime grave, o STF concluiu que basta que se trate de crime apenado com reclusão, ainda que cabível o benefí­ cio da suspensão condicional do processo. Não por outro motivo, ao apreciar habeas corpus referente a crime de pedofilia supostamente praticado pelo Cônsul de Israel no Rio de Janeiro, posicionou-se a Suprema Corte pela inexistência de obstáculo à prisão preventiva, nos termos do art. 41 da Conven­ ção de Viena, pois os fatos imputados ao paciente não guardavam pertinência com o desempenho das funções consulares.125 De se lembrar que, segundo o art. 45.1 da Con­ venção de Viena sobre relações consulares, é possí­ vel a renúncia, pelo Estado, às imunidades do agente consular. Por isso, no julgamento de habeas corpus perante o STJ, referente a crimes de descaminho e falsidade ideológica supostamente praticados pelo Cônsul-Geral de El Salvador no exercício da fun­ ção, diante da renúncia feita pelo Estado estrangeiro, concluiu-se pela possibilidade de prosseguimento da persecução penal.126

Vale ressaltar que essa imunidade não impede que as autoridades policiais investiguem o delito praticado, colhendo as informações necessárias referentes à autoria e materialidade do ilícito, que deverão ser encaminhadas às autoridades do país de origem do agente. Com efeito, o fato de o crime ser praticado por alguém que goze de imunidade diplomática não significa que nada possa ser fei­ to. Supondo, assim, que um embaixador seja sur­ preendido desferindo tiros contra uma pessoa, sua captura poderá ser efetuada, de modo a se evitar a consumação do delito. Só que, uma vez obstada a prática do delito, o auto de prisão em flagrante delito não poderá ser lavrado. A ocorrência, porém, será registrada para o efeito de se enviar provas ao seu país de origem.

7.3. Senadores, deputados federais, estaduais ou distritais De acordo com a Constituição Federal (art. 53, §2°, c/c art. 27, §1°), Senadores, Deputados Federais, Estaduais ou Distritais,127 desde a expedição do di­

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ploma, não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. É a chamada freedom from arrest. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.128

Merece especial atenção a súmula 4 do STF, segundo a qual “não perde a imunidade parlamen­ tar o congressista nomeado Ministro de Estado”. Referida súmula foi cancelada pela Suprema Corte quando do julgamento do Inquérito n° 104.129 Logo, tratando-se de deputado licenciado à época do fato para o exercício de outro cargo na Administração Pública, não há que se falar na inviolabilidade ou imunidade processual, mesmo que venha a reassu­ mir o mandato posteriormente após a prática do fato delituoso.130 Ao contrário do que ocorre com parlamentares federais, estaduais131 ou distritais, vereadores não gozam de incoercibilidade pessoal relativa (freedom from arrest), embora sejam detentores da chamada imunidade material em relação às palavras, opiniões e votos que proferirem no exercício do mandato e na circunscrição do município (CF, art. 29, VIII), e pos­ suam, em alguns Estados da Federação, prerrogativa de foro assegurada na respectiva Constituição.132* Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal, as normas

sobre imunidades parlamentares dos integrantes do Congresso Nacio­

nal, ficou superada a tese da Súmula 3/STF ("A imunidade concedida

a Deputados Estaduais é restrita à Justiça do Estado"), que tem por suporte necessário que o reconhecimento aos deputados estaduais das imunidades dos congressistas não derivava necessariamente da

Constituição Federal, mas decorreria de decisão autônoma do consti­ tuinte local". (STF, Pleno, RE 456.679/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 07/04/2006 p. 16). 128. Para mais detalhes em relação à (im) possibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão em relação a parlamentares,

notadamente a suspensão do exercício da função pública (CPP, art. 319, VI), bem como quanto à (des) necessidade de se submeter a respectiva

decisão judicial à deliberação da respectiva Casa Legislativa em 24 horas, remetemos o leitor ao Capítulo IX do presente título, mais precisamente ao item 7 ("Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira").

129. STF, Pleno, Inq. 104, Rei. Min. Djaci Falcão, j. 26/08/81, DJ 02/10/81.

130. "Não assiste a prerrogativa da imunidade processual ao Depu­ tado estadual, licenciado, à época do fato, para o exercício do cargo de Secretário de Estado (cfr. Inq. 104, RTJ 99/487), mesmo havendo, após, reassumido o desempenho do mandato (cfr. Inq. 105, RTJ 99/487)". (STF - HC 78.093/AM - 1a Turma - Rei. Min. Octavio Galloti - DJ 16/04/1999 p. 6). 131. Segundo Tales Castelo Branco, as imunidades dos deputados estaduais "não se limitam ao território do Estado, pois, se assim não fos­ se, ficariam os parlamentares estaduais sujeitos às pressões do governo

125. STF, Ia Turma, HC 81.158/RJ, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 19/12/2002.

federal e sem condições de exercer com amplitude e independência o

126. STJ, 6a Turma, HC 149.481/DF, Rei. Min. Haroldo Rodrigues - De­ sembargador convocado doTJ/CE -,j. 19/10/2010, DJe 16/11/2010.

Paulo: Saraiva, 2001. p. 161).

127. Na visão do Supremo,"com o advento da Constituição de 1988 (art. 27, § 1o), que tornou aplicáveis, sem restrições, aos membros das

Ricardo Lewandowski, DJe 107 13/06/2008. Na mesma linha: STJ, 5aTur­

mandado popular". (Da prisão em flagrante. 5a ed. rev., aum. e atual. São

132. Com esse entendimento: STF, 1a Turma, HC 94.059/RJ, Rei. Min.

ma, HC 106.642/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 04/08/2008.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

7.3.1. (Im) possibilidade de prisão em flagran­ te de parlamentares federais, estaduais ou distritais A Constituição Federal deixa evidente que não se revela possível a prisão em flagrante de Depu­ tados e Senadores em virtude da prática de crimes afiançáveis. Isso, todavia, não significa dizer que nada possa ser feito quando colhidos em situação de flagrância. Nesse caso, seja a autoridade policial, seja qualquer do povo, poderá adotar medidas no sentido de interromper a atividade ilícita, regis­ trando a ocorrência, mas não será lavrado o auto de prisão em flagrante, nem tampouco ocorrerá o recolhimento ao cárcere.

Se a Constituição Federal veda a prisão em fla­ grante de parlamentares federais, estaduais ou dis­ tritais pela prática de crimes afiançáveis, o mesmo não pode ser dito em relação àqueles inafiançáveis, hipótese em que a autoridade que presidir o auto deve encaminhá-lo à casa respectiva, que, no exercí­ cio de função anômala, pelo voto aberto da maioria de seus membros (maioria absoluta: 257 deputados ou 41 senadores), deverá deliberar sobre a prisão, mantendo ou não o congressista preso.

Foi dentro desse contexto, leia-se, flagrante de crime inafiançável, que se deu, no bojo do Inqué­ rito das Fake News (Inq. 4781 do STF), a contro­ versa expedição de ofício de “mandado de prisão em flagrante” pelo Min. Alexandre de Moraes133 em face do Deputado Federal Daniel Silveira, que ha­ via publicado vídeo em redes sociais no qual, além de atacar frontalmente os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio de diversas ameaças e ofensas, teria expressamente propagado a adoção de medidas antidemocráticas contra aquela Corte, bem como instigado a adoção de medidas violentas con­ tra a vida e a segurança de seus membros, em clara afronta aos princípios democráticos, republicanos e da separação de Poderes. Na sequência, essa decisão monocrática do Min. Alexandre de Moraes foi refe­ rendada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal.. Na visão da Corte, tais condutas, além de tipificarem crimes contra a honra do Poder Judiciário e dos ministros do STF, estavam previstas, à época, na re­ vogada Lei 7.170/1983, mais precisamente nos arts. 17, 18, 22,1 e IV, 23,1, II e IV, e 26. Configurariam, ademais, hipótese de flagrante delito, pois verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação no tempo dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permaneceu disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores. 133. STF, Inq. 4.781/DF, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 16.02.2021.

Ressaltou-se que as condutas criminosas atentariam diretamente contra a ordem constitucional e o Es­ tado Democrático, apresentando, portanto, todos os requisitos para que fosse decretada a prisão pre­ ventiva, nos termos do art. 312 do CPP, tornando, consequentemente, essa prática delitiva insuscetível de fiança, na exata previsão do art. 324, IV, do CPP, a configurar, assim, a possibilidade constitucional de prisão em flagrante de parlamentar pela prática de crime inafiançável, nos termos do § 2o do art. 53 da CF. Enfim, concluiu-se que atentar contra a democracia e o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imu­ nidade constitucional prevista no art. 53, caput, da Constituição Federal.134

Com a devida vênia ao Supremo Tribunal Fede­ ral e ao Exmo. Min. Alexandre de Moraes, por mais graves e repulsivas que sejam as condutas suposta­ mente imputadas ao referido parlamentar federal, a decisão em questão é passível de veementes críticas com base em diversos argumentos: a. Inconstitucionalidade do Inquérito das Fake News (Inq. 4.781): ainda que o Pleno do Su­ premo Tribunal Federal já tenha julgado impro­ cedente o pedido formulado na ADPF 572,135 no qual se discutia a inconstitucionalidade do Inquérito

das Fake News, dentro do qual se deu exatamente a decretação da prisão em flagrante do Deputado Federal Daniel Silveira, não se pode perder de vista que o procedimento investigatório em questão pa­ dece de vícios insanáveis e gravíssimos desde seu nascedouro, seja por violação ao sistema acusatório e à garantia da imparcialidade, seja por violação ao princípio do juiz natural e à própria titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público,136 os quais contaminam as próprias decisões judiciais que vêm sendo proferidas em seu curso, haja vista o princípio da causalidade das nulidades (CPP, art. 573, §1°); b. Impossibilidade de decretação de qualquer medida cautelar de ofício pela autoridade judiciá­ ria: com a entrada em vigor da Lei n. 12.403/11 e da 134. STF, Pleno, Inq. 4.781 Ref./DF, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 17.02.2021. Como a Câmara dos Deputados deliberou por manter a prisão em flagrante e sem fiança do referido parlamentar - 364 votos a favor e 130 contra -, sua prisão perdurou até o dia 14 de março de 2021, quando o Min. Alexandre de Moraes lhe concedeu prisão domiciliar com o uso de tornozeleira eletrônica.

135. STF, Pleno, ADPF 572 MC/DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 18.06.2020.

136. Todos os aspectos controversos atinentes à instauração do In­ quérito das Fake News já foi objeto de ampla e detida análise no título 3 ("Investigação Preliminar"), mais precisamente no item 7.2.1.1. ["(Im) pos­ sibilidade de instauração de inquérito de ofício pela autoridade judiciária (Inquérito das Fake News - Inq. 4.781 do STF")], para onde remetemos o leitor de modo a evitar repetições desnecessárias.

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Lei n. 13.964/19, já não se admite mais a possibili­ dade de decretação de qualquer medida cautelar de ofício pela autoridade judiciária, seja na fase investi­ gatória, seja na fase processual da persecução penal. Prova disso, aliás, é o quanto disposto nos arts. 282, §§2° e 4o, e 311 do CPP. Logo, ainda que se queira argumentar que se trata de mandado de prisão em flagrante - mais uma inusitada novidade concebi­ da pela Suprema Corte -, há de se aplicar, in casu, a mesma lógica válida quanto à prisão preventiva, temporária, e em relação às cautelares diversas da prisão. Afinal, onde existe a mesma razão funda­ mental, aplica-se a mesma regra jurídica (IJbi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio). Revela-se indevida, portanto, tal qual ocorreu no caso sob comento, a decretação da prisão em flagrante pela autoridade judiciária sem representação da autoridade policial, nem tampouco requerimento do Ministério Público;

c. Inexistência de crime permanente capaz de autorizar o reconhecimento de flagrante delito: o fato de o vídeo gravado pelo Deputado Federal Daniel Silveira ter permanecido disponível e aces­ sível a todos os usuários da rede mundial de com­ putadores não autoriza a conclusão de que estamos diante de supostos crimes permanentes, a justificar, portanto, a prisão em flagrante, pelo menos enquan­ to não cessada a permanência (CPP, art. 303), pela simples razão de que a consumação dos delitos em questão ocorreu no exato momento em que o ví­ deo foi publicado nas redes sociais. Como é cediço, compreende-se por crime permanente aquele deli­ to cuja consumação, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, desde que seja mantido nas mãos do agente o poder de fazer cessar a conduta delituosa. Nesses crimes, há uma conti­ nuidade da situação antijurídica que decorre não apenas da manutenção do status quo, mas também da contínua afetação do bem jurídico em virtude de atos reiterados praticados pelo agente (v.g., extorsão mediante sequestro, sequestro ou cárcere privado). Essa espécie de crime apresenta a característica da possibilidade, por parte do agente, de fazer cessar a conduta criminosa, embora sem fazer desaparecer a infração penal, já consumada. No caso concreto, porém, o que se tem é um crime instantâneo de efeitos permanentes, no qual a consumação teria cessado no exato instante em que o parlamentar publicou o vídeo ofensivo no Youtube, mas cujos efeitos perduraram no tempo, leia-se, pelo menos enquanto possível ulterior acesso pelos usuários da rede mundial de computadores. Não fosse assim, se acaso alguém praticasse um crime contra a honra, publicando, por exemplo, um vídeo nas redes sociais em janeiro de 2020, poderia ser preso em flagrante

10 (dez), 15 (quinze), 20 (vinte) anos depois, con­ quanto os vídeos ainda estivessem disponíveis na rede mundial de computadores; d. Inexistência de crime inafiançável: ainda que se queira argumentar que o art. 324, IV, do CPP, dispõe que não será concedida fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva, daí não se pode concluir que, por tal motivo, todo e qualquer delito que se amol­ de à referida hipótese teria o condão de se tornar inafiançável. Ora, ao admitir a excepcionalíssima possibilidade de prisão em flagrante de Senado­ res e Deputados Federais pela prática de crimes inafiançáveis, o Constituinte originário certamente levou em consideração a extrema gravidade de tais delitos, daí por que a interpretação desse concei­ to deve ser feita única e exclusivamente à luz da própria Constituição, que elenca como inafiançá­ veis tão somente os delitos de racismo (CF, art. 5o, XLII), tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos (CF, art. 5o, XLIII), e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem consti­ tucional e o Estado Democrático (CF, art. 5o, XLIV). Aliás, não por outro motivo, são exatamente esses mesmos delitos que constam do art. 323, incisos I, II, e III, do CPP, com redação dada pela Lei n. 12.403/11. Revela-se equivocado, portanto, rotular como “inafiançáveis” meros crimes contra a honra, e até mesmo contra a segurança nacional, a ordem política e social, até mesmo porque, pelo menos em tese, estes últimos não teriam sido praticados por grupos armados, como exige a própria Constituição Federal. Enfim, fosse possível extrairmos o conceito de “crimes inafiançáveis” do art. 324 do CPP, como o fez a decisão do Supremo ora discutida, aplican­ do, in casu, seu inciso IV, então também teríamos que concluir que anterior quebramento da fiança igualmente teria o condão de transformar todo e qualquer delito em crime inafiançável, independen­ temente da sua natureza, já que o art. 324, inciso I, do CPP, prevê que não será concedida fiança àqueles que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida, sem motivo justo. Ora, ao autorizar a prisão em flagrante de crimes inafiançá­ veis de Deputados Federais e Senadores, teria sido esta a vontade do Constituinte, leia-se, no sentido de permiti-la em relação a todo e qualquer delito, independentemente da sua gravidade? Certamente que não. No mais, soa no mínimo desproporcional e incongruente pensarmos que, enquanto um De­ putado Federal é preso em flagrante pela prática de crimes políticos e contra a honra por ordem do Supremo Tribunal Federal, há, na atual legislatura, outra parlamentar investigada pela suposta prática

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de homicídio qualificado - crime hediondo, logo, inafiançável à luz da própria Constituição Federal (art. 5o, XLIII) - contra seu próprio marido, a qual, no entanto, permanece em plena liberdade.

7.3.2. (Im) possibilidade de decretação da pri­ são preventiva (ou temporária) de parlamen­ tares federais, estaduais ou distritais Segundo precedente antigo do Supremo Tribu­ nal Federal, congressistas só poderiam sofrer prisão provisória ou cautelar numa única e singular hipó­ tese: situação de flagrância em crime inafiançável. Logo, não poderiam ser objeto de prisão temporária, nem tampouco de prisão preventiva. Como se trata de prerrogativa de caráter institucional, inerente ao Poder Legislativo, não se reconhece ao congressista a faculdade de a ela renunciar. Por outro lado, den­ tro do contexto normativo delineado pela Consti­ tuição, a garantia da imunidade parlamentar não obsta a execução de penas privativas de liberdade definitivamente impostas ao membro do Congresso Nacional.137

A despeito desse precedente antigo, em julga­ mento relativo à Operação “Dominó”, deflagrada no Estado de Rondônia, a Ia Turma do STF entendeu que o caso concreto não comportaria interpretação literal da regra proibitiva da prisão de parlamentar (CF, art. 53, §§ 2o e 3o), e sim solução que conduzisse à aplicação efetiva e eficaz de todo o sistema consti­ tucional. Aduziu-se que a situação evidenciaria ab­ soluta anomalia institucional, jurídica e ética, uma vez que praticamente a totalidade dos membros da Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia esta­ ria indiciada ou denunciada por crimes relacionados à mencionada organização criminosa, que se rami­ ficaria por vários órgãos estatais. Assim, tendo em conta essa conjuntura, considerou-se que os pares do deputado estadual não disporiam de autonomia suficiente para decidir sobre a sua prisão, porquan­ to ele seria o suposto chefe dessa organização. Em consequência, salientou-se que aplicar o pretendido dispositivo constitucional, na espécie, conduziría a resultado oposto ao buscado pelo ordenamento jurídico. Entendeu-se, pois, que à excepcionalidade do quadro haveria de corresponder à excepcionali­ dade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras constitucionais, sob pena de se prestigiar regra de exceção que culminasse na impunidade dos parlamentares.138

A matéria voltou a ser apreciada alguns anos depois pelo Supremo Tribunal Federal, in casu, pela 2a Turma, por ocasião da decretação da prisão do Senador Delcídio do Amaral. Reiterou-se o enten­ dimento de que não se pode fazer uma leitura seca da regra proibitiva da prisão de parlamentar, tal qual disposta no art. 53, § 2o, da Constituição Federal, para fins de se concluir que parlamentares federais, estaduais ou distritais, só podem ser presos em fla­ grante de crime inafiançável. Na verdade, o referido dispositivo constitucional deve ser interpretado no sentido de que a Constituição garante a imunidade relativa dos parlamentares e a Constituição proíbe a impunidade absoluta de quem quer que seja. A Constituição não diferencia o parlamentar para pri­ vilegiá-lo. Distingue-o e torna-o imune ao processo judicial e até mesmo à prisão para que os princípios do Estado Democrático da República sejam cumpri­ dos; jamais para que eles sejam desvirtuados. Afinal, o que se garante é a imunidade, não a impunidade. Por isso, a 2a Turma do Supremo referendou a de­ cretação da prisão preventiva do referido Senador pelo Ministro Relator, fundamentada não apenas em indícios de autoria e prova da existência de diversos crimes (v.g., lavagem de capitais, crimes contra a administração pública, organização criminosa, etc.), mas também nos pressupostos da conveniência da instrução criminal - suposto pagamento de R$ 50.000,00 mensais a família de pretenso colabora­ dor para que este não firmasse acordo de colabora­ ção premiada na “Operação Lava Jato” -, garantia de aplicação da lei penal - havia um plano para a fuga deste colaborador se acaso fosse agraciado com um habeas corpus - e garantia da ordem pública cooptação de colaborador, promessa de intercessão política junto aos Ministros do Supremo em favor da liberdade do pretenso colaborador, obtenção de documentos judiciais sigilosos, etc.139

7.4. Magistrados e membros do Ministério Público De acordo com a Lei Orgânica da Magistratu­ ra Nacional (LC 35/79), são prerrogativas do Ma­ gistrado não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafian­ çável, caso em que a autoridade fará imediata

p. 4.581.

estão indiciados em diversos inquéritos, afirma situação excepcional e, por isso, não se há de aplicar a regra constitucional do art. 53, § 2o, da Constituição da República, de forma isolada e insujeita aos princípios fundamentais do sistema jurídico vigente''. (STF - HC n° 89.417/RO - 1a Turma - Relatora Ministra Cármen Lúcia - DJ 15/12/2006 p. 96).

138. Para a Suprema Corte, "a Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, composta de vinte e quatro deputados, dos quais vinte e três

j. 25/11/2015.

137. STF, Pleno, Inq. 510/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/04/1991

139. STF, 2a Turma, AC 4.036 Referendo-MC/DF, Rel. Min.Teori Zavascki,

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comunicação e apresentação do Magistrado ao Pre­ sidente do Tribunal a que esteja vinculado (art. 33, inciso II). Além disso, quando, no curso de investi­ gação, houver indício da prática de crime por parte do Magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou Órgão Especial competente para o julgamento, a fim de que se prossiga na investigação (LC 35/79, art. 33, parágrafo único).140

judiciária consistente na colheita de elementos de informação contra o suposto autor do delito. Nessa linha, veja-se o enunciado n° 6 da 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF: “Não cabe à au­ toridade policial instaurar inquérito para investigar conduta delituosa de membro do Ministério Público da União. Este trabalho investigatório é instaurado, tem curso, e é concluído no âmbito do Ministério Público Federal”.

Por sua vez, nos exatos termos da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n° 8.625/93), constituem prerrogativas dos membros do Ministé­ rio Público ser preso somente por ordem judicial es­ crita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça (art. 40, inciso III). Ademais, quando, no curso de investigação, houver indício da prática de infração penal por parte do membro do Ministério Público, a autoridade policial, civil ou militar, reme­ terá imediatamente, sob pena de responsabilidade, os respectivos autos ao Procurador-Geral de Justiça, a quem competirá dar prosseguimento à apuração (Lei n° 8.625/93, art. 41, parágrafo único).

É bom ressaltar que o fato de a prisão-captura ter sido feita pela autoridade policial não significa, necessariamente, que ocorrerá a lavratura do auto de prisão em flagrante pelo Presidente do Tribunal ou pelo Procurador-Geral. Afinal, cabe a esta autorida­ de um juízo de valoração das condições objetivas da flagrância e verificação da razoabilidade probatória dos indícios colhidos, a fim de determinar a medida extrema de constrição da liberdade.

Como se percebe pela leitura dos dispositivos legais, no tocante à prisão em flagrante, há expres­ sa restrição quanto aos crimes afiançáveis. Essa ressalva quanto à prisão em flagrante por crimes afiançáveis não significa, no entanto, que essas auto­ ridades estejam penalmente isentas por eles. Apesar de não ser possível a prisão em flagrante em crimes afiançáveis, a ocorrência deve ser registrada, e pos­ teriormente encaminhada à Presidência do Tribu­ nal a que estiver vinculado o juiz, ou ao respectivo Procurador-Geral, em se tratando de membros do Ministério Público. No caso de flagrante de crime inafiançável, afigura-se possível a captura do Magistrado ou do membro do Ministério Público, porém o auto de prisão em flagrante não pode ser presidido por de­ legado de polícia. Ora, como a apuração de ilíci­ tos supostamente praticados por Magistrados ou membros do Ministério Público deve ser feita pelo Presidente do Tribunal ou pelo Procurador-Geral, não há como se pretender que o auto de prisão em flagrante não seja lavrado por essas mesmas au­ toridades. Afinal de contas, no auto de prisão em flagrante delito, já se está a praticar ato de polícia

140. Para mais detalhes acerca da discussão em torno da recepção (ou não) do art. 33 da LC 35/79 à luz do nosso sistema acusatório, remetemos

o leitor aoTítulo 3 ("Investigação preliminar"), mais precisamente ao item 16.7.3 ("Infrações penais praticadas por magistrados").

Ao contrário de senadores, deputados fede­ rais, estaduais ou distritais, em relação aos quais o Supremo entende que, pelo menos em regra, a Constituição Federal somente autoriza a prisão em flagrante de crime inafiançável (CF, art. 53, § 2o), excluindo-se, assim, a incidência de qualquer outra modalidade cautelar prisional, magistrados e mem­ bros do Ministério Público, apesar de não estarem sujeitos à prisão em flagrante por crime afiançável, estão sujeitos à prisão temporária e/ou preventiva. Basta perceber que as próprias Leis Orgânicas fazem menção à possibilidade de prisão mediante ordem judicial escrita (art. 40, inciso III, da Lei n° 8.625/93, art. 18, inciso II, alínea “d”, da Lei Complementar n° 75/93, e art. 33, inciso II, da Lei Complementar n° 35/79).

7.5. Advogados Por motivo ligado ao exercício da profissão, ad­ vogados somente poderão ser presos em flagrante em caso de crime inafiançável, assegurada, nesse caso, a presença de representante da OAB para la­ vratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à sec­ cional da OAB (Lei n° 8.906/94, art. 7o, § 3o). Por­ tanto, se o delito em virtude do qual o advogado foi preso em flagrante estiver relacionado ao exercício da profissão, sua prisão somente será possível se o delito for inafiançável, assegurada a presença de re­ presentante da OAB quando da lavratura do respec­ tivo auto. Por outro lado, caso a prisão em flagrante ocorra por motivos estranhos ao exercício da advo­ cacia (v.g., embriaguez ao volante), a prisão poderá ser realizada normalmente, independentemente da natureza do delito - afiançável ou inafiançável -,

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com a ressalva de que subsiste a obrigatoriedade de comunicação expressa à seccional da OAB. Por fim, convém lembrar que a violação à prerrogativa em questão pode dar ensejo à tipificação do crime de abuso de autoridade previsto no art. 7°-B da Lei n. 8.906/94, incluído pela Lei n. 13.869/19. Apesar de não ser possível a prisão em flagran­ te de advogado pela prática do delito de desacato ligado ao exercício da profissão, seja por se tratar de infração de menor potencial ofensivo, seja por se tratar de crime afiançável, isso não significa di­ zer que o advogado não possa ser responsabilizado criminalmente pelo referido delito. Como se sabe, é possível que o advogado responda pelo crime de desacato, delito este que foi eliminado do âmbito de sua imunidade material ou penal (vide ADI 1.127-8/ DF).141

7.6. Menores de 18 anos Há de se diferenciar a situação da criança (até doze anos de idade incompletos) e a do adolescente, com idade entre doze e dezoito anos.

Cuidando-se de criança, não é possível a pri­ vação de sua liberdade em razão da prática de ato infracional (Lei n° 8.069/90, art. 101, § Io, com reda­ ção dada pela Lei n° 12.010/2009). Logo, caso uma criança seja, por exemplo, surpreendida em situação de flagrância de conduta prevista como crime ou contravenção penal (Lei n° 8.069/90, art. 103), deve ser apresentada ao Conselho Tutelar ou à Justiça da Infância e da Juventude, para fins de aplicação da medida de proteção que se reputar adequada, nos termos dos arts. 101,105 e 136, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por outro lado, nenhum adolescente será pri­ vado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (Lei n° 8.069/90, art. 106, caput). Como se percebe, no caso de ado­ lescentes, é possível que ocorra sua apreensão (não se deve usar o termo prisão) em duas situações: fla­ grante de ato infracional e nos casos de internação provisória. Antes da sentença definitiva, a interna­ ção pode ser determinada pelo prazo máximo de 45 (quarenta e cinco) dias. A decisão deve ser fun­ damentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida. A internação, decretada ou mantida pela au­ toridade judiciária, não poderá ser cumprida em 141. Informativo n° 436 do Supremo Tribunal Federal: HC 88164/MG, Rel. Min. Celso de Mello, 15.8.2006.

estabelecimento prisional. Inexistindo na comarca entidade com as características definidas no art. 123 da Lei n° 8.069/90, o adolescente deverá ser imediatamente transferido para a localidade mais próxima. Sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos e com instalações apropriadas, não podendo ultra­ passar o prazo máximo de 5 (cinco) dias, sob pena de responsabilidade. Quanto aos inimputáveis em razão de doença mental, sua prisão é plenamente possível. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao tópico pertinente às medidas cautelares diversas da prisão, especificamente no item pertinente à inter­ nação provisória (CPP, art. 319, VII).

8. PRISÃO E EMPREGO DE FORÇA De acordo com o art. 284 do CPP, não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou tentativa de fuga do pre­ so. Nos mesmos moldes, dispõe o art. 234, caput, do CPPM, que o emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, re­ sistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por 2 (duas) testemunhas.

Trata-se, o emprego de força, de medida de natureza excepcional, devendo o agente limitar seu emprego àquilo que for indispensável para vencer a resistência ativa do preso ou sua tentativa de fuga. Assim agindo, não há falar em conduta ilícita por parte do responsável pela prisão, eis que sua ação está acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal (agente público) ou pelo exercício regular de direito (particular), podendo, a depender do caso concreto, caracterizar inclusive legítima defesa. De modo algum, todavia, autoriza-se o empre­ go de violência extrema, consubstanciada na morte do preso, como ainda sói ocorrer em hipóteses de tentativas de fuga com uso de veículos automoto­ res. Obviamente, na hipótese de resistência ativa por parte do preso, com a prática de agressão injusta em face do responsável pela prisão, pode este agir amparado pela legítima defesa, desde que se socor­ ra dos meios necessários de maneira moderada e proporcional (CP, art. 25). Nessa linha, com o objetivo de regulamentar o uso de força pelos agentes de segurança pública, foi editada a Portaria Interministerial n° 4.226, de 31 de

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dezembro de 2010, conjuntamente pelo Ministro da Justiça e o Ministro Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. No anexo I da referida portaria, a diretriz n° 3 afirma que os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra peri­ go iminente de morte ou lesão grave. Tal portaria ainda prevê que não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros. De modo semelhante, dispõe que não é legítimo o uso de armas de fogo contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, a não ser que o ato represente um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros (diretriz n° 5). Ademais, a diretriz n° 7 afirma que o ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada.

8.1. Instrumentos de menor potencial ofensivo (ou não letais) Com o objetivo de resguardar a integridade física de toda e qualquer pessoa - presa ou em li­ berdade - sujeita ao uso da força por agentes de se­ gurança pública, evitando seu emprego de maneira irracional, foi editada a Lei n° 13.060, com vigência em data de 23 de dezembro de 2014. Referida Lei disciplina o uso dos instrumentos de menor poten­ cial ofensivo, assim considerados aqueles projetados especificamente para, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, conter, de­ bilitar ou incapacitar temporariamente pessoas, a exemplo de armas de choque, como a “taser”, spray de pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha, etc. Por força da Lei n° 13.060/14, os órgãos de segurança pública, quais sejam, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviá­ ria Federal, as Polícias Civis, as Polícias Militares, os Corpos de Bombeiros Militares e as Guardas Municipais, deverão priorizar a utilização desses instrumentos não letais, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, razoabilidade e proporcio­ nalidade. De mais a mais, consoante disposto no art. 2o, parágrafo único, da referida Lei, não é le­ gítimo o uso de arma de fogo: a) contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes

de segurança pública ou a terceiros; b) contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros.

9. MANDADO DE PRISÃO À exceção dos casos de flagrante delito, trans­ gressão militar e crime propriamente militar, a Car­ ta Magna (art. 5o, LXI) demanda ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente para que alguém seja preso. Por isso, não se pode fechar os olhos para a importância do mandado de prisão, instrumento que materializa a ordem de pri­ são escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.

Tamanha é a sua importância que o próprio art. 288 do CPP estabelece que ninguém será recolhido à prisão, sem que seja exibido o mandado ao res­ pectivo diretor ou carcereiro, a quem será entregue cópia assinada pelo executor ou apresentada a guia expedida pela autoridade competente, devendo ser passado recibo da entrega do preso, com declaração de dia e hora. Dispõe o art. 285 do CPP que a autoridade que ordenar a prisão fará expedir o respectivo mandado, observados os seguintes requisitos:

a) ser lavrado pelo escrivão e assinado pela autoridade competente: nada impede que o man­ dado seja lavrado por um escrevente ou por um funcionário da justiça. O que é indispensável é a assinatura da autoridade judiciária competente, ele­ mento essencial à existência do mandado de prisão. Cuida-se de pressuposto de validade que comprova a autenticidade da ordem emanada. Sem a assinatu­ ra do juiz, o mandado jamais prestará para prender, pois a desconformidade com o modelo legal é tão intensa que se pode falar em inexistência do ato;

b) designar a pessoa que tiver de ser presa, por seu nome, alcunha ou sinais característicos: de ma­ neira semelhante ao que ocorre na denúncia (CPP, art. 41), não são necessários todos os dados referen­ tes à qualificação da pessoa que tiver de ser presa (RG, filiação, alcunha, sexo, cor da pele, data de nascimento, naturalidade, endereço residencial). No entanto, diante dos frequentes casos de homônimos, deve-se buscar individualizá-la da melhor maneira possível, a fim de se evitar abusos e/ou erros; c) mencionará a infração penal que motivar a prisão: impõe-se, aqui, uma interpretação extensiva, eis que a lei disse menos do que queria dizer. Isso porque, em se tratando de prisão civil do devedor de alimentos, não há infração penal. Destarte, o

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dispositivo em questão deve ser lido: mencionará a infração penal ou o motivo legal que der ensejo à prisão; d) declarará o valor da fiança arbitrada, quando afiançável a infração: tendo em conta que a Consti­ tuição Federal preceitua que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança, do man­ dado deve constar o valor da fiança se a infração for afiançável, sob pena, inclusive, de restar carac­ terizado o delito de abuso de autoridade previsto no art. 9o, parágrafo único, II, da Lei n. 13.869/19. O conceito de infrações afiançáveis deve ser feito a partir de uma interpretação a contrario sensu dos arts. 323 e 324 do CPP;

e) será dirigido a quem tiver qualidade para dar-lhe execução: quem tem atribuição para fazer cumprir o mandado de prisão é o oficial de justiça, a autoridade policial ou seus agentes. Particulares ou funcionários públicos de outras categorias não detêm autorização para efetuar o cumprimento de mandado de prisão, nem mesmo por delegação. Além dos requisitos constantes do art. 285, outros são apontados pela doutrina: a) colocação da comarca, vara e ofício de onde é originário; b) número do processo e/ou do inquérito onde foi pro­ ferida a decisão decretando a prisão; c) nome da vítima do crime; d) teor da decisão que deu origem à ordem de prisão (preventiva, temporária, etc.); e) data da decisão; f) data do trânsito em julgado (quando for o caso); g) pena aplicada (quando for o caso); h) prazo de validade do mandado, que equi­ vale ao lapso prescricional.142

É indispensável que o mandado de prisão seja passado em duplicata, estando ambas as cópias assinadas pela autoridade judiciária. O dispositi­ vo em questão atende ao preceito do art. 5o, inciso LXIV, da Constituição Federal, segundo o qual o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial, o qual, obviamente, também abrange a autoridade judiciária responsável pela privação da liberdade de locomoção do preso. Não menos importante é a especificação do dia, hora e lugar em que a diligên­ cia foi cumprida, sobretudo para fins de contagem do tempo de prisão. Afinal, por força da detração, computa-se, na pena privativa de liberdade, o tem­ po de prisão provisória no Brasil ou no estrangeiro (CP, art. 42). 142. NUCCI.Op. cit. p. 546.

Da entrega do mandado de prisão deve o cap­ turado passar recibo no outro exemplar, retornando aos autos em seguida. Se acaso o preso se recuse a passar recibo, duas testemunhas deverão assinar o outro mandado. São as denominadas testemunhas instrumentárias ou fedatárias.

De acordo com redação original do art. 287 do CPP, que não foi modificada por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 12.403/11, em se tratando de infração inafiançável, se o executor não estivesse, no momento da captura, com o mandado de prisão, poderia dar voz de prisão ao capturando, devendo, neste caso, apresentar o preso imediatamente à au­ toridade judiciária responsável pela expedição do mandado, ou também ao juiz corregedor da polícia judiciária ou plantonista, a fim de verificar a lega­ lidade da prisão.

Com raciocínio semelhante, antes do advento da Lei n. 12.403/11, o art. 299 do CPP também dizia que, na hipótese de infração inafiançável, a captura poderia ser requisitada, à vista de mandado judi­ cial, por via telefônica, tomadas pela autoridade, a quem se fizesse a requisição, as precauções neces­ sárias para averiguar a autenticidade desta. Perceba-se que ambos os dispositivos legais autorizavam a efetivação da prisão sem a exibição do mandado de prisão (sine mandado ad capiendum) apenas em relação às infrações inafiançáveis. Ocorre que a Lei n. 12.403/11 deu nova redação ao art. 299 do CPP, que passou a dispor: “A captura poderá ser requi­ sitada, à vista de mandado judicial, por qualquer meio de comunicação, tomadas pela autoridade, a quem se fizer a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta”. Ao contrário da antiga redação, o novo art. 299 do CPP não res­ tringiu sua aplicação às infrações inafiançáveis, daí por que também passou a ser aplicado aos crimes afiançáveis. Diante dessa nova redação do art. 299 do CPP, autorizando a captura sem a exibição imediata do mandado de prisão, independentemente da natu­ reza da infração penal (afiançável ou inafiançá­ vel), a doutrina passou a entender que o art. 287 do CPP fora objeto de revogação parcial tácita, devendo então ser lido nos seguintes termos: “A falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apre­ sentado ao juiz que tiver expedido o mandado.” Evidentemente, na hipótese de infração afiançável, uma vez efetuada a captura e recolhido o valor da fiança, deverá o agente ser colocado em liberda­ de provisória. Outra hipótese de prisão que pode ser realizada sem a exibição imediata do mandado 855

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de prisão (sine mandado ad capiendum) é aquela prevista no art. 684, caput, do Código de Processo Penal, segundo o qual a recaptura do réu evadido não depende de prévia ordem judicial e poderá ser efetuada por qualquer pessoa.143 Parte minoritária da doutrina entende que o art. 287 do CPP não foi recepcionado pela Consti­ tuição Federal. Isso porque, de acordo com o art. 5o, LXI, da CF, à exceção das hipóteses ali mencionadas, ninguém será preso senão mediante ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária compe­ tente. Nessa linha, segundo Pacelli,144 para quem a exibição do mandado é requisito indispensável para a efetivação da prisão, a desnecessidade de exibição do mandado em infrações inafiançáveis poderia dar ensejo a abusos e atuações contrárias ao direito por parte das autoridades policiais. Prevalece, no entan­ to, a orientação de que tais dispositivos legais são plenamente compatíveis com a Constituição Fede­ ral, pois não se referem à efetivação de prisão sem mandado judicial, mas sim à prisão sem a imediata exibição do mandado existente. Ou seja, houve a expedição prévia de um mandado judicial, mas ele não está fisicamente disponível, pois o executor não se encontra com a cópia dele.

Com a entrada em vigor do Pacote Anticrime, é mantida a parte inicial do art. 287 do CPP, no sentido de que a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, seja nos crimes afiançáveis, seja nos crimes inafiançáveis, haja vista a alteração do art. 299 do CPP pela Lei n. 12.403/11. Na parte fi­ nal, porém, o legislador passou a determinar que a apresentação imediata do preso ao juiz que tiver expedido o mandado deverá ser feita para a reali­ zação da audiência de custódia, o que demonstra, à evidência, que a realização desse ato não está restrita às hipóteses de prisão em flagrante, como parece transparecer a leitura isolada do art. 310, caput, do CPP, com redação também conferida pela Lei n. 13.964/19. Enquanto o art. 287 dispõe sobre a possibilida­ de de se efetuar a captura sem a imediata exibição do mandado, o art. 288 estabelece a obrigatoriedade de exibição do mandado ao diretor ou carcereiro, 143. Também não há necessidade de ordem judicial, nem tampouco de mandado de prisão nas seguintes hipóteses: a) prisão em flagrante; b) transgressões militares e crimes propriamente militares (art. 5o, LXI, CR); c) durante o Estado de Defesa (art. 136, §3°, CR); d) durante o Estado de Sítio (art. 139, CR). À exceção dessas hipóteses, em que sequer é necessária

prévia autorização judicial, não se admite, em hipótese alguma, inclusive sob pena de restar caracterizado abuso de autoridade (Lei n. 13.869/19, art. 9o, caput), a efetivação de prisão sem mandado, cuja expedição seja levada a efeito pelo juiz tão somente após a captura.

144. Op. cit. p. 436.

certificando-se este, assim, que não está recolhendo ao cárcere pessoa que não tenha contra si ordem judicial de prisão. Por fim, convém destacar que o mandado de prisão autoriza apenas a efetivação da captura do agente. Logo, se o capturando se esconder em sua residência, sua captura não mais poderá ser efe­ tuada sem mandado judicial de busca específico, que deverá trazer expressa autorização para a en­ trada no domicílio. Nesse sentido, o art. 243, § Io, do CPP, dispõe que, havendo ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca e apreensão.

9.1. Cumprimento do mandado de prisão Se o capturando estiver no território nacional, porém em local diverso da jurisdição da autorida­ de judicial que expediu o mandado, poderá ser deprecada a sua prisão. Da precatória deve constar o inteiro teor do mandado, nos termos do parágrafo único do art. 285 do CPP. No entanto, nada impe­ de que o juízo deprecante também envie duas vias originais do mandado de prisão, a fim de que uma delas seja entregue ao preso, nos termos do art. 286 do CPP. Em ambas as hipóteses, essa precatória deve observar o disposto no art. 354 do CPP, no que for aplicável.145 Diante da possibilidade de que o trâmite buro­ crático da expedição da precatória a que se refere o caput do art. 289 possibilite a fuga do capturando, o § Io do art. 289 do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, passa a dispor que, havendo urgência, poderá o juiz requisitar a prisão por qual­ quer meio de comunicação, do qual deverá constar o motivo da prisão, bem como o valor da fiança se arbitrada. Nesse ponto, é importante perceber a mudança produzida pela Lei n° 12.403/11. Antes das altera­ ções do CPP, o parágrafo único do art. 289 dizia que, havendo urgência, o juiz poderia requisitar a prisão por telegrama, do qual deveria constar o motivo da prisão, bem como, se afiançável a infração, o valor 145. Ao juízo deprecado compete unicamente cumprir a determi­ nação emanada pelo deprecante, não podendo, por exemplo, declarar extinta a punibilidade, se identificá-la. Tal decisão é da competência do juiz condutor do processo. Na mesma linha, se a precatória for expedida por juiz federal para cumprimento em comarca onde exerça jurisdição unicamente juiz estadual, este não poderá recusar-se a cumpri-la. A re­ cusa da diligência só pode ser fundamentada na ausência dos requisitos legais da carta precatória ou dúvida sobre sua autenticidade. No sentido de que o juízo deprecado não é o condutor do processo principal, mas o executor dos atos deprecados, incumbindo-lhe, se for o caso, apenas a

recusa da precatória, se configurada alguma das hipóteses previstas no art. 209 do CPC (art. 267 do novo CPC): STJ, 3a Seção, CC 81.892/DF, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 12/12/2007, DJ 01/02/2008.

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da fiança, sendo que, no original levado à agência telegráfica, deveria ser autenticada a firma do juiz, o que se mencionaria no telegrama. Em hipótese de interpretação progressiva, a jurisprudência já vinha admitindo também a utilização do fax, de­ vendo a autoridade receptora da ordem certificar sua origem.146

Ainda em relação à possibilidade de alguém, estando fora do distrito da culpa, ser preso e man­ tido na prisão em face de informações constantes de sistema virtual de dados, sem que tivesse havido prévia expedição de carta precatória (CPP, art. 289), o Supremo Tribunal Federal também já vinha enten­ dendo, mesmo antes da inserção do art. 289-A pela Lei n° 12.403/11, que a não expedição de precatória acarreta mera irregularidade administrativa, perfeitamente sanável.147

Com a finalidade de desburocratizar a comu­ nicação por precatória ou a requisição de captura, a nova redação do § Io do art. 289 do CPP permite que, havendo urgência, possa o juiz requisitar a pri­ são por qualquer meio de comunicação, do qual de­ verá constar o motivo da prisão, bem como o valor da fiança se arbitrada. Em complemento, o § 2o do art. 289 do CPP determina que a autoridade a quem se fizer a requisição tomará as precauções necessá­ rias para averiguar a autenticidade da comunicação. Uma vez efetuada a prisão em outra comarca, o juiz processante deverá providenciar a remoção do preso no prazo máximo de 30 (trinta) dias, contados da efetivação da medida (CPP, art. 289, § 3o). Des­ tarte, no caso de prisão efetivada por meio de carta precatória, o responsável por providenciar a remoção do preso é o juiz processante, ou seja, aquele que soli­ citou a prisão, tendo, para tanto, o prazo máximo de 30 (trinta) dias, contados da data da prisão.

Nada disse a lei quanto às consequências decor­ rentes da inobservância desse prazo. Aliás, durante a tramitação legislativa do projeto de lei que deu origem à Lei n° 12.403/11, chegou a ser incluída na parte final do dispositivo a seguinte consequência em caso de descumprimento do prazo: “sob pena de a autoridade requisitada ou deprecada colocá-lo em liberdade independentemente de qualquer formalidade”. Ocorre que, durante a tramitação do projeto, essa parte final acabou sendo suprimida. Logo, pensamos que a inobservância do prazo de 30 (trinta) dias para as providências pertinentes à 146. STJ, 5aTurma, HC 53.666/PR, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 05/11/2007 p. 298. 147. STF, 2a Turma, HC 85.712/GO, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 03/05/2005, DJ 16/12/2005.

remoção do preso não autoriza, de per si, o relaxa­ mento da prisão. O art. 299 do CPP caminha no mesmo sentido, permitindo que, à vista de mandado judicial, a cap­ tura seja requisitada por qualquer meio de comu­ nicação, tomadas pela autoridade, a quem se fizer a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta. Perceba-se que, de maneira distinta à antiga redação, o novo art. 299 do CPP não estabelece qualquer distinção quanto à natureza da infração penal, se afiançável ou se inafiançável.

Como se percebe, na esteira da Lei n° 11.900/09, que passou a dispor sobre a videconferência no or­ denamento pátrio, as mudanças visam possibilitar a utilização dos meios eletrônicos de comunicação no processo penal, imprimindo maior celeridade e dinamismo à troca de informações, notadamente no tocante ao cumprimento de mandados de prisão.

Na mesma linha de raciocínio, o art. 289-A foi inserido no bojo do Código de Processo Penal com a finalidade de otimizar o sistema de comunicação e de troca de informações entre autoridades poli­ ciais e judiciais. Isso porque, atualmente, a existência de mandado de prisão contra determinada pessoa costuma constar apenas dos registros da própria unidade federativa que o expediu, o que dificulta sobremaneira o seu cumprimento quando o agente foge para outro Estado. Segundo o novel art. 289-A, o juiz competente providenciará o imediato registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional da Justiça para essa finalidade. Qualquer agente policial poderá efetuar a prisão determina­ da no mandado de prisão registrado no Conselho Nacional de Justiça, ainda que fora da competência territorial do juiz que o expediu. Qualquer agente policial poderá efetuar a prisão decretada, ainda que sem registro no Conselho Nacional de Justiça, adotando as precauções necessárias para averiguar a autenticidade do mandado e comunicando ao juiz que a decretou, devendo este providenciar, em se­ guida, o registro do mandado na forma do caput deste artigo. A prisão será imediatamente comuni­ cada ao juiz do local de cumprimento da medida o qual providenciará a certidão extraída do registro do Conselho Nacional de Justiça e informará ao juí­ zo que a decretou. Caberá ao Conselho Nacional de Justiça regulamentar o registro do mandado de prisão a que se refere esse dispositivo. A propósito, consoante disposto no art. 12, parágrafo único, I, da Lei n. 13.869/19, constitui abuso de autoridade deixar de comunicar, imediatamente, a execução

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de prisão temporária ou preventiva à autoridade judiciária que a decretou. O objetivo do art. 289-A é unificar, em um só sistema, todos os mandados de prisão expedidos no país, possibilitando o seu cumprimento por qual­ quer agente público em qualquer localidade do território nacional, evitando, assim, que os limites territoriais das cidades e dos Estados sejam utiliza­ dos por pessoas foragidas como ferramentas para a fuga e para a clandestinidade. Em outras palavras, o mandado de prisão registrado no sistema passará a ter executoriedade em todo o território nacional.

A nosso ver, o art. 289-A deve ser interpretado de maneira extensiva, abrangendo não só o registro imediato dos mandados de prisão, como também de qualquer outra medida cautelar que tenha sido imposta. Com efeito, imagine-se hipótese em que o magistrado tenha determinado o cumprimento da medida cautelar de proibição de se ausentar da Comarca (CPP, art. 319, IV). Ora, seria válido que essa decisão também fosse incluída no cadastro do Conselho Nacional de Justiça, possibilitando que autoridades policiais ou judiciais de outras comarcas ou de outras unidades federativas tivessem conheci­ mento das restrições impostas ao agente, auxiliando seu cumprimento e fiscalização. É exatamente nesse sentido, aliás, a inovação introduzida na Lei Maria da Penha pela Lei n. 13.827/19, senão vejamos: “Art. 38-A. O juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência. Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e à efetividade das medidas protetivas”.

Ante o disposto no art. 299 e, considerando-se a nova redação do art. 289-A, ambos do CPP, forçoso é concluir que houve a revogação tácita do quanto disposto no art. 2o, § 4o, da Lei n° 7.960/89 (Lei da prisão temporária). Ao se referir ao registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, o art. 289-A não fez qualquer restrição à prisão preventiva, daí por que referido mandado também pode ser pertinente à prisão temporária. Destarte, o cumprimento da prisão temporária pode ser levado a efeito mesmo sem a obrigatória exibição do mandado de prisão, desde que haja registro de prévio decreto prisional no Conselho Nacional de Justiça, ou que a autori­ dade policial adote as precauções necessárias para averiguar a autenticidade da ordem judicial.

Esse Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0) criado pela Lei n° 12.403/11 encontra-se disciplinado pela Resolução do Conse­ lho Nacional de Justiça n° 251, de 4 de setembro de 2018. Consoante disposto em seu art. 3o, o BNMP abrangerá todas as pessoas privadas de liberdade por ordem judicial proferida em procedimentos de natureza criminal e civil. Para tanto, considera-se pessoa privada de liberdade o preso e o interna­ do provisório, o condenado que esteja cumprindo pena em regime fechado, semiaberto ou aberto, desde que haja recolhimento em unidade penal do sistema penitenciário, assim como o cumpridor de medida de segurança na modalidade internação. Por outro lado, o Banco não alcança pessoas que esti­ verem no cumprimento de medida cautelar diversa da prisão, os condenados que, no cumprimento de pena, estiverem submetidos ao sistema de monito­ ramento eletrônico, sem recolhimento, ou prisão domiciliar e os adolescentes apreendidos em razão de ato infracional.

Com o mandado de prisão em mãos, a auto­ ridade policial pode transmitir a ordem de captura por telefone, devendo o recebedor da ligação adotar as medidas de cautela necessárias para se certificar que a requisição é autêntica (art. 265, § Io, do novo CPC).148

De modo a dar cumprimento ao mandado de prisão expedido pela autoridade judiciária, o art. 297 do CPP autoriza a autoridade policial a extrair cópias do mandado original, em todos os seus ter­ mos, adotando-se a cautela de autenticá-los. Há de se lembrar que cada executor deverá trazer consigo ao menos duas cópias, fornecendo uma ao preso e mantendo a outra em seu poder, com recibo de entrega, consoante dispõe o art. 286 do CPP. Considera-se efetuada a prisão por manda­ do quando o executor, identificando-se perante o capturando, apresenta-lhe o mandado, e o intima a acompanhá-lo (CPP, art. 291, caput). Perceba-se que o Código de Processo Penal não prevê uma “voz de prisão” a ser dada ao capturando. Diverge, nesse ponto, do Código de Processo Penal Militar (art. 230), segundo o qual a captura se fará: a) em caso de flagrante, pela simples voz de prisão; b) em caso de mandado, pela entrega ao capturando de uma das vias e consequente voz de prisão dada pelo executor que se identificará. O art. 291 do CPP atende, portanto, à garan­ tia constitucional do art. 5o, inciso LXIV, segundo 148. STJ, 5a Turma, RHC 15.394/PI, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 01/02/2005 p. 580.

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o qual o preso tem direito à identificação dos res­ ponsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial.

Visa o dispositivo do art. 291 do CPP a de­ terminar com precisão o momento em que o cap­ turando por mandado deve ser tido como preso. A importância do preceito diz respeito à contagem de prazo, sejam eles processuais (oferecimento da denúncia, excesso de prazo na formação da culpa, etc.), sejam eles penais (v.g., detração).

A partir desse momento em que o indivíduo está preso, afigura-se possível a prática dos crimes de resistência (CP, art. 329), fuga de pessoa preso ou submetida a medida de segurança (CP, art. 351), evasão mediante violência contra pessoa (CP, art. 352), e arrebatamento de preso (CP, art. 353). Além disso, se o preso for vítima de algum crime, incide a circunstância agravante prevista no art. 61, inciso II, “i”, do CP, qual seja, quando o ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade, desde que não constitua ou qualifique a infração. Em uma situação de flagrância, ou também nas hipóteses em que se dá cumprimento a um manda­ do de prisão, se o capturando se puser em fuga, e ultrapassar os limites territoriais de uma comarca, ou até mesmo de um Estado da Federação, nada impede que a autoridade policial dê prosseguimento à perseguição, efetuando a prisão no local em que alcançar o preso, independentemente da expedição de precatória, telegrama ou telefonema da autorida­ de competente.149

Essa possibilidade do executor ultrapassar os limites territoriais da comarca do juízo responsável pela decretação da prisão está adstrita às hipóteses de perseguição: a) tendo-o avistado, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha per­ dido de vista; b) sabendo, por indícios ou informa­ ções fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço (CPP, art. 290, § Io, « » «1 »\ a e b ). Nesse caso, o executor deve apresentar o preso à autoridade do local em que se der a captura. Se hou­ ver mandado de prisão, a apresentação à autoridade policial do local é tida como válida, comunicando-se a autoridade judiciária local em seguida. Caso não se tenha o mandado em mãos (art. 299), o preso deve ser apresentado à autoridade judiciária local, a fim

de que esta certifique a origem da ordem, conse­ guindo a cópia do mandado e/ou telegrama com o motivo da prisão de modo a verificar a legalidade da prisão.

Em se tratando de situação de flagrância, o auto de flagrante delito será lavrado pela autoridade po­ licial do local em que o ocorreu a captura,150 expe­ dindo-se a comunicação da prisão ao juiz local, a fim de que verifique sua legalidade. Nessa hipótese, posteriormente, os autos serão encaminhados ao juízo competente.

Se houver dúvida quanto à legitimidade do executor da prisão ou da legalidade do mandado apresentado, o preso poderá ser posto em custódia até que o problema seja resolvido (CPP, art. 289-A, § 5o). Essa custódia a que se refere o § 2o do art. 290 do CPP deve ser compreendida como a manu­ tenção de alguém detido, em local seguro, fora da esfera do executor da captura, até que essa dúvida seja dissipada. Como visto anteriormente, é possível que, no momento da prisão em flagrante ou de prisão pre­ ventiva e/ou temporária, não só o capturando, como também terceiros ofereçam resistência, opondo-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio (CP, art. 329). Nesse caso, o próprio Código de Processo Penal autoriza que o executor e as pessoas que o auxiliam usem dos meios necessários para se defender ou vencer a resistência, lavrando-se, em seguida, auto de re­ sistência, subscrito também por duas testemunhas. Essa resistência à prisão pode se dar de forma ativa ou passiva. Por resistência ativa entende-se aquela praticada mediante violência (vis corporalis) ou ameaça (vis compulsiva). Nesse caso, o executor é autorizado a usar a força necessária para vencer a resistência, bem como se defender, usando mode­ radamente dos meios necessários, sob o amparo da legítima defesa (CPP, art. 284, caput). A depender do caso concreto, o acusado e terceiros que ofere­ cem resistência ativa, mediante violência ou amea­ ça, poderão ser presos em flagrante pelo crime de resistência (CP, art. 329). Vale lembrar que só há falar no crime de resistência se a violência ou amea­ ça é dirigida ao funcionário ou a quem lhe esteja prestando auxílio. Assim, se o flagrante for efetuado 150. Na dicção do STJ, "não há falar em ilegalidade da prisão em flagrante, decorrente do fato de o respectivo auto ter sido lavrado por

149. Na hipótese de perseguição que ultrapasse as fronteiras do país, prevalece o entendimento de que a autoridade policial brasileira só po­ derá ingressar no território estrangeiro se houver autorização por meio de Tratado ou autorização específica.

autoridade diversa daquela que efetivou a custódia, porquanto a polícia não exerce ato de jurisdição, não restando caracterizada a incompetên­ cia "racione loci". (...)". (STJ, 6aTurma, RHC 8.342/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 24/05/1999 p. 201).

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somente pelo particular (flagrante facultativo, art. 301 do CPP), não há falar em crime de resistência, em virtude de manifesta atipicidade, subsistindo, todavia, a possibilidade de eventual crime de lesão corporal e/ou ameaça. Por outro lado, a resistência também pode se dar de forma passiva, quando o capturando em­ preende fuga, agarra-se a um obstáculo ou queda-se inerte no chão, para não ser preso ou removido de determinado local, autorizando-se o executor a usar dos meios necessários para vencê-la, ampara­ do que estará pelo estrito cumprimento do dever legal. Seja na hipótese de resistência ativa, seja na hipótese de resistência passiva, o executor deve agir de maneira proporcional e moderada, sob pena de responder pelo excesso doloso ou culposo (CP, art. 23, parágrafo único).

Na hipótese de prisão por mandado, se o exe­ cutor constatar que o capturando entrou ou se en­ contra em alguma casa, deverá intimar o morador a entregá-lo, mediante apresentação da ordem de prisão. Havendo concordância por parte do mora­ dor, franqueando o acesso do executor ao domicílio, a prisão poderá ser efetuada durante o dia ou até mesmo durante a noite.

Não havendo concordância por parte do mora­ dor, diz o art. 293 do Código de Processo Penal que o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, podendo inclusive arrombar as portas. A nosso ver, referido dispositivo mere­ ce interpretação conforme o art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal, segundo o qual “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo pene­ trar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. À vista do preceito em questão, a violação do domicílio durante o dia sem consentimento do mo­ rador somente é possível nas seguintes hipóteses: a) flagrante delito; b) desastre; c) para prestar socorro; d) por determinação judicial. Mas não é toda e qual­ quer autorização judicial que autoriza a violação do domicílio, e sim uma ordem certa e determinada quanto à “casa” a ser invadida. Veja-se, nesse sen­ tido, que o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 243, inciso I, ao se referir aos requisitos do mandado de busca e apreensão, estipula que este de­ verá indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respecti­ vo proprietário ou morador. Portanto, mesmo com um mandado de prisão em mãos, o executor não pode invadir casa alheia, devendo guardar todas as saídas de modo a impedir eventual fuga, enquanto

providencia a obtenção de mandado específico para aquele domicílio.151

Do contrário, conferir-se-ia à autoridade execu­ tora ampla liberdade de escolha e de opções acerca dos locais a serem invadidos e vasculhados, sob a justificativa de que o capturando estaria naquele domicílio, esvaziando-se, por demais, a proteção constitucional à inviolabilidade do domicílio.152 Aliás, como dito acima, essa é a inteligência a ser emprestada ao art. 243, § Io, do CPP, que estabe­ lece que, sendo deferida a diligência investigatória, bem assim a captura de alguém, deve constar do mandado de busca a ordem de prisão (“Se houver ordem de prisão, constará do próprio texto do man­ dado de busca”). Exatamente por esse motivo, em alguns casos, o juiz, por força de decisão motiva­ da, manda expedir mandado de busca, apreensão e prisão.

No que tange ao morador que se recusa a entre­ gar o capturando durante o dia (tendo a autoridade policial em mãos mandado de busca, apreensão e prisão), a ele deve se dar voz de prisão em flagrante pelo crime de favorecimento pessoal (CP, art. 348). Se acaso essa recusa se dê durante a noite, não há falar em favorecimento pessoal, pois o morador se encontra no exercício regular do direito previsto no art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal (CP, art. 23, inciso III, 2a parte). 151. Há quem entenda que o simples mandado de prisão é o quanto basta para que os executores possam adentrar o domicílio, pressupondo ele a autorização judicial para a entrada na casa durante o dia (Mira­

bete, Código de Processo Penal Interpretado, cit, 4a ed., Atlas, p. 342). Sem embargo, segundo Tourinho Filho, como o mandado de prisão

não contém essa autorização, que é específica, deve ela ser expedida

também. Do contrário a entrada é ilegal, configura o crime de violação de domicílio e ainda sujeita o executor às penas do art. 22 da Lei n°

13.869/19 (Código de Processo Penal Comentado. Vol. 1.9a ed. rev. aum. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2005. p. 697).

152. Perfilha desse entendimento Walter Nunes da Silva Júnior, segun­ do o qual "não se confunde com autorização judicial, para fins de flexibili­ zação da inviolabilidade do domicílio, a decretação da prisão processual,

com a consequente expedição do mandado para o seu cumprimento. Do mesmo modo, a expedição de mandado de busca e apreensão não dá poder para a prisão processual. Uma coisa é o juiz determinar a prisão de alguém, outra, totalmente diferente, é autorizar o policial a ter acesso ao interior de uma casa. Quando o magistrado decreta apenas a prisão e manda expedir o respectivo mandado, a ordem é para que, sendo ele encontrado, proceda-se ao seu recolhimento. Caso se queira permitir que a autoridade policial entre na casa para lá efetuara prisão, o juiz tem, além

de fundamentar a decretação da prisão, de justificar a flexibilização do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, naturalmente com a exposição dos motivos que o faz crer que se encontra refugiada no local

a pessoa contra quem expedido o mandado. Como dois são os direitos fundamentais - direito de liberdade física e à inviolabilidade do domicílio -, a flexibilização, por ordem judicial, tem de ser motivada em relação aos dois aspectos. Por isso mesmo, a autoridade policial, munida apenas do mandado de prisão, não tem autorização judicial para proceder à busca domiciliar. Se a pessoa procurada estiver escondida ou recolhida em uma determinada casa, para que seja efetuada, legalmente, a sua prisão no local, havendo recusa por parte do morador, é preciso que se obtenha a autorização judicial para a invasão" (op. cit. p. 661).

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As regras quanto à prisão em domicílio previs­ tas no art. 293 do Código de Processo Penal também se aplicam à prisão em flagrante. Nesse caso, como dito anteriormente, a própria Constituição Federal autoriza a violação do domicílio sem autorização judicial.

9.2. Difusão vermelha (red notice) Outro aspecto importante pertinente ao cum­ primento do mandado de prisão diz respeito à pos­ sibilidade de prisão de pessoa que se encontra no estrangeiro, ou daqueles que se encontram no ter­ ritório nacional, sendo procurados no estrangeiro.

Com o crescente caráter transnacional dos de­ litos, esse tema ganha cada vez mais importância. Daí por que a Interpol (Organização Internacional de Polícia Internacional), que é uma polícia inter­ nacional formada por várias polícias nacionais in­ terligadas, formando uma rede de auxílio à perse­ cução penal transnacional, criou um instrumento, denominado de difusão vermelha, que visa auxiliar as autoridades nacionais no cumprimento desses mandados de prisão. Na dicção da doutrina, as difusões vermelhas (red notices), verdadeiros mandados de capturas internacionais, podem ser conceituadas como “re­ gistros utilizados pela Organização de Polícia In­ ternacional (Interpol) para divulgar entre os Estados-membros a existência de mandados de prisão em aberto, expedidos por autoridades competentes nacionais ou por tribunais penais internacionais, no curso de procedimentos criminais”.153

9.2.1. Difusão vermelha a ser executada no exterior De acordo com a Instrução Normativa n° 01, de 10 de fevereiro de 2010, oriunda da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça, os juizes criminais brasileiros, ao expedirem mandados de prisão, tendo ciência própria ou por suspeita, referência, indicação, ou declaração de qual­ quer interessado ou agente público, que a pessoa a ser presa está fora do país, vai sair dele ou pode se encontrar no exterior, devem remeter o instrumento 153. ARAS, Vladimir. A Difusão Vermelha no Brasil. Disponível em http:// blogdovladimir.wordpress.com/201 0/02/21 /a-difusao-vermelha/. Acesso em 13 de maio 2011, apud MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras

medidas cautelarespessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 112. Além das difusões vermelhas, temos as yellow notices (para ajudar a localizar pessoas desaparecidas), blue notices (para coletar informações sobre a identidade de uma pessoa ou atividades em relação a um crime), black notices (para buscar informações sobre corpos não identificados), green notices (para proporcionar informações de natureza criminal sobre pes­ soas que cometeram delitos e estão propensos a repeti-los em outros países) e white notices (localização de bens culturais).

ao Superintendente Regional da Polícia Federal (SR/ DPF) do respectivo Estado, a fim de que se providen­ cie sua inclusão no sistema informático da Interpol como uma red notice. Essa medida deve ser adotada apenas nos casos de prisão preventiva ou prisão de­ corrente de sentença condenatória com trânsito em julgado. Com o mandado em mãos, a Interpol emitirá a notícia de sua existência para todos os 188 (cento e oitenta e oito) países membros da organização inter­ nacional, objetivando a localização e eventual captura da pessoa procurada. Caso ocorra o cumprimento da difusão no estrangeiro, caberá ao Brasil enviar a formalização do pedido de extradição do preso.

9.2.2. Difusão vermelha a ser cumprida no Brasil Se, no estrangeiro, a difusão vermelha é sufi­ ciente, de per si, para que seja efetivada a prisão da pessoa procurada, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal entende que é indispensável prévia ordem escrita da autoridade judiciária competente brasi­ leira. Logo, estando a pessoa no território nacional, ainda que seu nome conste na Interpol como procu­ rada em razão de difusão vermelha, deve haver pré­ vio pedido de extradição tramitando no Supremo, ocasião em que o Ministro Relator poderá determi­ nar a prisão preventiva para fins de extradição, nos termos do art. 102, I, “g”, da Constituição Federal. Nesse contexto, o Plenário do Supremo já teve a oportunidade de asseverar que, ausente pedido de extradição em tramitação perante o STF, caracteriza constrangimento ilegal à liberdade de locomoção o cumprimento de mandado de prisão expedido por justiça estrangeira contra pessoa residente no Brasil, para cuja execução foi solicitada a cooperação da Interpol, já que tal mandado, por si só, não pode lograr qualquer eficácia no território nacional.154

Assim, caso um terrorista internacionalmente procurado, com difusão vermelha já expedida, seja encontrado no território nacional, sua prisão so­ mente poderá ser efetivada se houver pedido oficial de extradição formulado pelo país interessado, o qual será submetido à apreciação do Supremo, para que, somente então, possa ser expedido o mandado de prisão. Enquanto este pedido oficial de extradi­ ção não chegar ao Supremo pela via diplomática e enquanto não for decretada a prisão pelo Relator, as autoridades policiais nada poderão fazer, a não ser monitorar a pessoa procurada. Para muitos, essa interpretação do Supremo é incompatível com o princípio geral da cooperação, 154. STF, Pleno, HC 80.923/SC, Rei. Min. Néri da Silveira, j. 15/08/2001, DJ 21/06/2002 p. 97. Na mesma linha: STF, Pleno, HC 82.686/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 05/02/2002, DJ 28/03/2003 p. 64.

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que rege as relações internacionais (CF, art. 4o, IX). Por força do princípio do mútuo reconhecimento das decisões judiciais e objetivando imprimir maior eficácia ao princípio da justiça penal internacional, bastaria que o Supremo interpretasse a parte final do art. 5o, LXI, da Constituição Federal - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competen­ te - no sentido de também abranger a autoridade judiciária estrangeira. De fato, do mesmo jeito que as autoridades judiciárias estrangeiras cumprem a difusão vermelha oriunda do Brasil, por confiarem que houve a expedição regular desta ordem, com observância da lei e da Constituição Federal, o Brasil também deve confiar na red notice proveniente do exterior. Outrossim, eventuais abusos e ou irregu­ laridades poderão ser analisados pelo Supremo a posteriori, já que a prisão será comunicada imedia­ tamente para fins de eventual homologação. Ade­ mais, se houve a expedição da difusão vermelha por um Estado estrangeiro, é de se presumir que haverá interesse na extradição do agente.155

10. PRISÃO ESPECIAL E SEPARAÇÃO DE PRE­ SOS PROVISÓRIOS Resultado do reconhecimento explícito da pés­ sima situação carcerária vivenciada no Brasil,156 e da própria seletividade do sistema penal, o legislador brasileiro resolve conferir a certos indivíduos o di­ reito à prisão especial, pelo menos até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Cria-se, por meio da prisão especial, tratamen­ to diferenciado entre um cidadão diplomado e outro analfabeto, violando-se o princípio da isonomia sem qualquer critério lógico e razoável a justificá-lo. Na verdade, se o próprio Estado reconhece que não consegue fornecer condições carcerárias dignas, deveria reservar a todo e qualquer preso provisório, primário e com bons antecedentes, recolhimento em separado daqueles que foram condenados, e, por conseguinte, já possuem mais tempo de vivência no cárcere.

Uma ressalva importante deve ser feita em re­ lação àqueles que, em virtude da função exercida antes de serem presos, possam ter sua integrida­ de física e moral ameaçadas quando colocados em 155. Nessa linha: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelarespessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 115.

156. "A prisão não intimida nem regenera. Embrutece e perverte. Insensibiliza ou revolta. Descaracteriza e desambienta. Priva de funções. Inverte a natureza. Gera cínicos e hipócritas. A prisão, fábrica e escola de reincidência, habitualidade e profissionalidade, produz e reproduz criminosos". (LYRA, Roberto. Novo Direito Penal. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1971, v. 3, p. 109).

convivência com outros presos, tais como juizes, membros do Ministério Público, policiais, defenso­ res, funcionários da Justiça, etc. A eles, sim, deve-se reservar o direito à prisão especial (vide art. 84, § 2o, da Lei de Execução Penal). Nesse caso, há uma razão razoável para o discrimine.157 Mantê-las presas em celas comuns equivalería a instituir, do ponto de vista prático, verdadeira pena de morte.

A prisão especial não pode ser considerada mo­ dalidade de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, de especial forma de cumprimento da prisão cautelar. Com efeito, segundo o disposto no art. 295 do CPP, só há falar em direito à prisão especial quando o agente estiver sujeito à prisão antes de condenação definitiva. Logo, com o trânsito em julgado, cessa o direito à prisão especial, sendo o condenado sub­ metido ao regime ordinário de cumprimento da pena, ressalvada a hipótese do art. 84, § 2o, da LEP, referente ao preso que, ao tempo do fato, era fun­ cionário da administração criminal, o qual deverá ficar em dependência separada dos demais presos. Não se deve confundir o direito à prisão espe­ cial com a separação dos presos provisórios dos que já estiverem definitivamente condenados, prevista no art. 300, caput, do CPP. Segundo o referido dis­ positivo, com redação dada pela Lei n° 12.403/11, as pessoas presas provisoriamente/zcarao separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal. Esse disposi­ tivo visa evitar a promiscuidade resultante da con­ vivência entre presos provisórios e presos que já tenham contra si sentença condenatória com trân­ sito em julgado. No mesmo sentido é a redação do art. 84, caput, da Lei de Execução Penal, segundo o qual o preso provisório ficará separado do conde­ nado por sentença transitada em julgado. Os presos cautelares, por sua vez, ficarão separados de acordo com os seguintes critérios (LEP, art. 84, § Io, com redação dada pela Lei n° 13.167/15): a) acusados pela prática de crimes hediondos ou equiparados; b) acusados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa; c) acusados pela prática de outros crimes ou contravenções diversos dos apontados nas duas alíneas anteriores. De seu turno, os presos condenados ficarão separados de acordo com os seguintes critérios (LEP, art. 84, § 3o, incluído pela Lei n° 13.167/15): a) condenados pela prática de crimes hediondos ou equiparados; b) reincidentes condenados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa; 157. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3a ed. 8a tir. São Paulo: Malheiros, 2000.

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c) primários condenados pela prática de crimes co­ metidos com violência ou grave ameaça; d) demais condenados pela prática de outros crimes ou con­ travenções em situação diversa das previstas nas 3 alíneas anteriores. Por fim, a Lei de Execução Penal também determina que o preso que tiver sua inte­ gridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio (art. 84, § 4o, incluído pela Lei n° 13.167/15). Pode ocorrer de o indivíduo estar preso cautelarmente em prisão especial por conta da prática de determinado crime, quando, então, sobrevêm condenação definitiva à pena privativa de liberdade em razão da prática de outra infração penal. Nes­ se caso, prevalece o entendimento de que o preso que ostenta condenações criminais com trânsito em julgado deixa de ser tratado como preso provisório, mesmo que tenha contra si outros processos crimi­ nais em andamento, perdendo, assim, o direito à prisão especial.158

Tamanhos eram os benefícios aos presos es­ peciais que a Lei n° 5.256, que entrou em vigor no dia 7 de abril de 1967, determinava em seu art. Io que, nas localidades em que não houvesse estabe­ lecimento adequado ao recolhimento dos que te­ nham direito a prisão especial, o juiz, considerando a gravidade das circunstâncias do crime, ouvido o representante do Ministério Público, poderia autorizar a prisão do réu ou indiciado na própria residência, de onde o mesmo não poderia afastar-se sem prévio consentimento judicial. Somente a violação da obrigação de comparecer aos atos policiais ou judiciais para os quais fosse convocado é que poderia implicar na perda do benefício da prisão domiciliar, devendo o indivíduo ser reco­ lhido a estabelecimento penal, onde permanecesse separado dos demais presos.

No entanto, com a entrada em vigor da Lei n° 10.258/01, esse panorama foi alterado. Isso porque, de acordo com os §§ Io e 2o do art. 295 do CPP, acrescentados pela referida lei, a prisão especial consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum e, não havendo estabele­ cimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimen­ to. Na verdade, o que ocorre na prática é o recolhi­ mento do preso especial a um determinado distrito policial, especificamente destinado a abrigar presos dessa espécie. A inexistência desse local distinto,

todavia, não implica em imediata prisão domiciliar, como dispunha o art. Io da Lei n° 5.256/67. Nesse caso, o preso deverá ser colocado no mesmo esta­ belecimento prisional que os demais presos, porém em cela distinta.159

Destarte, com a entrada em vigor da Lei n° 10.258/01, e diante do disposto no art. 295, § 2o, do CPP, somente na hipótese de inexistência de cela distinta para preso especial é que poderá ocorrer a prisão domiciliar. Nessa última hipótese, por ato de ofício do juiz, a requerimento do MP ou da auto­ ridade policial, o beneficiário da prisão domiciliar poderá ser submetido à vigilância policial, exercida sempre com discrição e sem constrangimento para o réu ou indiciado e sua família (Lei n° 5.256/67, art. 3o). Ademais, a violação de qualquer das condições impostas na conformidade da Lei n° 5.256/67 im­ plicará na perda do benefício da prisão domiciliar, devendo o réu ou indiciado ser recolhido a estabe­ lecimento penal, onde permanecerá separado dos demais presos. A prisão especial pode consistir em alojamen­ to coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico ade­ quados à existência humana (CPP, art. 295, § 3o).160 Cumpre lembrar que esse respeito à dignidade do preso não é exclusividade do preso especial. Pelo menos de acordo com o que consta do texto da Lei de Execução Penal (art. 88, parágrafo único, da Lei n° 7.210/84), são requisitos básicos da unidade ce­ lular em penitenciária a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, além de uma área mínima de 6 m2 (seis metros quadrados).

Caso seja necessário o traslado do preso espe­ cial ao fórum ou à delegacia, dispõe o art. 295, § 4o, do CPP, que seu transporte não pode ser efetuado juntamente com presos que não detenham o mesmo privilégio.

Mesmo estando recolhido à prisão especial, o preso tem direito à progressão de regimes. É esse o teor da súmula 717 do Supremo Tribunal Federal: “Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”. 159. STJ, 5aTurma, HC 87.933/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/05/2008, DJe 23/06/2008.

158. Nesse sentido: STJ, 6a Turma, HC 56.208/PE, Rel. Min. Maria The­ reza de Assis Moura, j. 14/04/2009, DJe 04/05/2009.

160. STJ, 5a Turma, HC 56.160/RN, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 07/05/2007 p. 339.

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O art. 295 traz um rol exemplificativo dos cida­ dãos com direito à prisão especial. De acordo com o STF, o art. 295 do CPP comporta interpretação restritiva, não sendo possível estender o benefício excepcional da prisão especial por analogia. Por isso, em caso concreto envolvendo parlamentar estran­ geiro, foi indeferida a concessão de prisão especial, já que o art. 295, III, do CPP, faz menção apenas aos membros do Parlamento Nacional.161 O art. 295, V, do CPP também assegura pri­ são especial aos oficiais das Forças Armadas162 e aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.163 A contrario sensu, aos militares que não forem oficiais das Forças Armadas aplica-se a regra do art. 296, devendo ser custodiados em es­ tabelecimentos militares.164

Por sua vez, de acordo com o parágrafo único do art. 242 do Código de Processo Penal Militar, a prisão de praças especiais e a de graduados atenderá aos respectivos graus de hierarquia. Ademais, com as mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11, o parágrafo único do art. 300 do CPP passou a dispor que o militar preso em flagrante delito, após a lavra­ tura dos procedimentos legais, será recolhido a quartel da instituição a que pertencer, onde ficará preso à dis­ posição das autoridades competentes. Como adverte Og Fernandes, essa regra volta-se não apenas para a prisão em flagrante delito, mas para toda e qualquer medida cautelar privativa de liberdade, aplicando-se 161. STF, Pleno, PPE 315 AgR/AU, Rei. Min. Octavio Gallotti, DJ 06/04/01.

162. "Prisão especial ou domiciliar. Militar da reserva não remunera­ da (R-2). Sendo a prisão especial uma exceção, deve ser sua aplicação

interpretada restritivamente, para que o direito não se transforme em

privilégio. Assim, quando o inciso V do art. 296 do CPP se refere aos

oficiais das forças armadas, está se referindo aos militares da carreira, não os que, atendendo à convocação obrigatória, se preparam, em curto espaço, nos NPOR, ou CPOR, que compõem a reserva não remunerada

(R-2). Também não há amparo para a prisão domiciliar". (STJ - RHC 6.759/ RS - 6a Turma - Rei. Min. Anselmo Santiago - DJ 10/11/1997 p. 57.844). Nossa observação: o art. 296 foi citado de maneira incorreta, referindo-se o relator, na verdade, ao art. 295 do CPP.

163. Enquanto não excluído da força pública, tem o policial militar condenado, ainda que por crime comum, o direito a ser mantido em prisão especial: STJ, 5a Turma, HC 12.173/MG, Rei. Min. Edson Vidigal, DJ 12/06/2000 p. 122. Porém, a superveniência do trânsito em julgado da condenação faz cessar o direito de policial militar ser recolhido em prisão especial: STF, 1aTurma, HC 102.020/PB, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23/11/2010, DJe 240 09/12/2010.

aos militares das Forças Armadas, dos Estados e do Distrito Federal.165 O art. 295, X, do CPP, também conferia aos jurados o direito à prisão especial. Apesar de a Lei n° 12.403/11 não ter revogado expressamente o art. 295, X, do CPP, quando se compara o texto antigo do art. 439 do CPP e sua nova redação, fica evidente que o legislador deixou de prever o direito à prisão especial para aquele que tenha exercido a função de jurado. Portanto, diante da nova redação em­ prestada ao caput do art. 439, queremos crer que o art. 295, X, do CPP foi tacitamente revogado pela Lei n° 12.403/11. Logicamente, para aqueles que já exerceram efetivamente a função de jurado antes do advento da Lei n° 12.403/11, deverá ser respeitado o direito à prisão especial, em fiel observância ao art. 5o, XXXVI, da Constituição Federal, que assegura que a lei não prejudicará o direito adquirido.166

Além das hipóteses listadas no art. 295 do CPP, leis especiais também contemplam outros ci­ dadãos com o benefício da prisão especial: 1) Lei n° 2.860/56: dirigentes de entidades sindicais de todos os graus e representativas de empregados, emprega­ dores, profissionais liberais, agentes e trabalhadores autônomos; 2) Lei n° 3.313/57: servidores do depar­ tamento federal de segurança pública com exercício de atividade estritamente policial; 3) Lei n° 3.988/61: pilotos de aeronaves mercantes nacionais;167 4) Lei n° 4.878/65: policiais civis da União e do Distrito Federal; 5) Lei n° 5.350/67: funcionário da polícia civil dos Estados e Territórios; 6) Lei n° 5.606/70: oficiais da marinha mercante; 7) Lei n° 7.102/83: vigilantes e transportadores de valores; 8) Lei n° 7.172/83: professores de Io e 2o graus. Por fim, convém ressaltar que a Lei n° 9.807/99, que estabeleceu normas para a organização e a ma­ nutenção de programas especiais de proteção a ví­ timas e a testemunhas ameaçadas, prevê que serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e prote­ ção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual e efetiva. Dentre tais medidas, estando sob prisão temporária, preventiva ou em 165. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 76. 164. Como decidiu o STJ, "em hipóteses extremas e atento ao princí­ pio constitucional que assegura a 'integridade física e moral dos presos' (Constituição Federal, artigo 5o, inciso XLIX), razão não há para negar, ao praça reformado, a extensão do benefício da prisão especial disposto no artigo 296 da Lei Adjetiva Penal. Ordem concedida para, convolando em definitiva a medida liminar deferida, determinar que o paciente fique custodiado em estabelecimento militar até o trânsito em julgado de sua condenação". (STJ, 6aTurma, HC 17.718/GO, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 06/05/2002 p. 320).

166. Na mesma linha, segundo Badaró, com a nova redação do art. 439 do CPP, quem exerce a função de jurados deixa de ter o direito à prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo: Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 300.

167. STJ, 5a Turma, RHC 1.916/SP, Rei. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 08/06/92 p. 8.624.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos (Lei n° 9.807/99, art. 15, § Io).

10.1. Prisão de índios O art. 231 da Constituição Federal assegura aos índios o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Por sua vez, o Estatuto do índio (Lei n° 6.001/73) assevera que as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de as­ sistência aos índios mais próximo da habitação do condenado (art. 56, parágrafo único). Considerando que a prisão penal do índio deve ser cumprida em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de as­ sistência aos índios mais próximo da habitação do condenado, entende-se que a prisão cautelar tam­ bém deve se adequar a esse regramento, sob pena de a medida cautelar aplicada durante o curso do processo se revelar mais gravosa que aquela que, possivelmente, será aplicada com o trânsito em jul­ gado de sentença condenatória, violando o princípio da homogeneidade.

Em caso concreto apreciado pelo STJ, ad­ mitiu-se o cumprimento da custódia cautelar em regime especial de semiliberdade no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios (FUNAI) mais próximo da habitação do condenado, nos termos do art. 56, parágrafo único, da Lei n° 6.001/73. Na dicção do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, “para preservar os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas, bem como conferir segurança àquele que vive à margem da sociedade, admite-se a possibilida­ de de a custódia do índio se dar em unidade da FUNAI, órgão estatal de proteção ao índio, desde que tal órgão administrativo possua condições de receber o réu”.168

Ainda em relação à prisão do índio, convém destacar que, na hipótese de não ser ele aculturado e não compreender o idioma nacional, é fundamen­ tal a presença de intérprete em seu interrogatório. Todavia, tratando-se de índio plenamente integra­ do, capaz de compreender completamente o portu­ guês, torna-se dispensável a nomeação de intérprete. Como já se pronunciou o Supremo, tratando-se de índio alfabetizado, eleitor e integrado à civilização,

falando fluentemente a língua portuguesa, não se faz mister a presença de intérprete.169 Outrossim, na hipótese de índios não inte­ grados, entende-se que, por força do art. 231 da Constituição Federal e do Estatuto do índio (Lei n° 6.001/73), que assegura aos índios e às comuni­ dades indígenas ainda não integrados verdadeiro regime tutelar (art. 7o), deve haver a comunicação à FUNAI, órgão que exerce a tutela do índio em nome da União. De todo modo, é bom destacar que, na visão do Supremo, a tutela que a Constituição Federal cometeu à União Federal no art. 231 é de natureza civil, e não criminal, consoante arts. 7o e 8° da Lei n° 6.001/73 e art. 4°, parágrafo único, do Código Civil. Logo, não haveria necessidade de co­ municação à FUNAI.170

11. SALA DE ESTADO-MAIOR Os conceitos de sala de Estado-Maior e de pri­ são especial não se confundem e a prerrogativa de recolhimento naquela não se reduz à prisão especial de que trata o art. 295 do CPP. Se por Estado-Maior se entende o grupo de oficiais que assessoram o Comandante de uma or­ ganização militar (Exército, Marinha, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar), sala de Esta­ do-Maior é o compartimento de qualquer unidade militar que, ainda que potencialmente, possa ser por eles utilizado para exercer suas funções. Destarte, enquanto uma “cela” tem como finalidade típica o aprisionamento de alguém e, em razão disso, possui grades, em regra, uma “sala” apenas ocasionalmente é destinada para esse fim, além de oferecer insta­ lações e comodidades condignas, isto é, condições adequadas de higiene e segurança. Compreende-se a sala de Estado-Maior, portan­ to, como uma sala e não cela, instalada no Coman­ do das Forças Armadas ou de outras instituições militares, configurando tipo heterodoxo de prisão, eis que destituída de grades ou de portas fechadas pelo lado de fora.171 O direito à sala de Estado-Maior somente se refere às hipóteses de prisão cautelar, assemelhando-se, assim, à prisão especial, cujo direito 169. STF, 1aTurma, HC79.530/PA, Rel. Min. limar Galvão, j. 16/12/1999, DJ 25/02/2000, p. 53. 170. STF, 1a Turma, HC 79.530/PA, Rel. Min. limar Galvão, j. 16/12/1999,

DJ 25/02/2000, p. 53. 168. STJ, 5a Turma, HC 124.622/PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 08/09/2009, DJe 13/10/2009. No mesmo contexto: STJ, 5a Turma, HC 55.792/BA, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 29/06/2006, DJ 21/08/2006 p. 267.

171. STF, Pleno, Rel 4.535/ES, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15/06/2007 p. 21. Nos mesmos moldes: STF, 1aTurma, HC 91.089/SP, Rel.

Min. Carlos Britto, DJ 19/10/2007 p. 46; STF, Pleno, Rel 4.713/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 041 07/03/08.

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também cessa com o trânsito em julgado da sen­ tença condenatória.172 No entanto, membros do Ministério Público da União (LC n° 75/93, art. 18, inciso II, “e”), in­ tegrantes da Polícia Civil do Distrito Federal e da União (Lei n° 4.878/65, art. 40, § 3o) e presos que, ao tempo do fato, eram funcionários da adminis­ tração da Justiça Criminal (LEP, art. 84, § 2o, c/c o art. 106, § 3o) terão direito à cela separada dos demais presos, mesmo durante a execução da prisão definitiva. Apesar de não existir dispositivo especí­ fico para o juiz, compreende-se que o magistrado estaria inserido no permissivo do art. 84, § 2o, da LEP, por tratar-se de funcionário da Justiça Crimi­ nal. Tais dispositivos visam preservar a integridade física e moral do preso (CF, art. 5o, inciso XLIX), evitando que esse condenado permaneça no meio de presos que possam nutrir sentimentos de vingança contra o funcionário ou ex-funcionário da Justiça Criminal173.

Fazem jus à sala de Estado-Maior: 1) Mem­ bros do Ministério Público (Lei n° 8.625/93, art. 40, V; Lei Complementar n° 75/93, art. 18, II, “e”); 2) Membros do Poder Judiciário (LC 35/79, art. 33); 3) Membros da Defensoria Pública (LC 80/94, arts. 44, inciso III, e 128, inciso III); 4) Advogados: de acordo com o Estatuto da OAB (Lei n° 8.906/94, art. 7o, V), ao advogado assiste o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado-Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reco­ nhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão do­ miciliar. Importante destacar que, no julgamento da ADIN 1.127-8, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da expressão ‘assim reconhecidas pela OAB’. Por conta do disposto no art. 7o, V, in fine, da Lei n° 8.906/94, a ausência de sala de Es­ tado-Maior implica no recolhimento domiciliar do advogado, benefício este que não foi estendido aos membros da magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública. A jurisprudência firma­ da pelo Plenário e pelas duas Turmas do Supremo é no sentido de se garantir a prisão cautelar aos profissionais da advocacia, devidamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, em sala de

Estado-Maior e, não sendo possível ou não exis­ tindo dependências definidas como tal, conceder a eles o direito de prisão domiciliar.174 No entanto, o próprio Supremo Tribunal Federal tem consi­ derado válida, a depender das circunstâncias do caso concreto, a manutenção de profissionais da advocacia em penitenciária que possua celas in­ dividuais, com condições regulares de higiene e instalações que impeçam o contato do paciente com presos comuns. Não seria razoável interpre­ tar a prerrogativa conferida aos advogados como passível de inviabilizar a própria custódia.175 Ou­ trossim, consoante disposto no art. 7°-B da Lei n. 8.906/94, incluído pela Lei n. 13.869/19, a violação à prerrogativa em questão pode caracterizar crime de abuso de autoridade. Quanto aos jornalistas, dispunha o art. 66 da Lei n° 5.250/67 (Lei de Imprensa) que o jornalista pro­ fissional não poderia ser detido nem recolhido preso antes de sentença transitada em julgado; em qualquer caso, somente em sala decente, arejada e onde encontre todas as comodidades. A pena de prisão de jornalistas, por sua vez, devia ser cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crime co­ mum e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário. Ocorre que o Supremo Tribunal Fede­ ral, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 130, julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67. Destarte, jor­ nalistas deixaram de ter direito à sala de Estado-Maior, subsistindo, todavia, o direito à prisão especial, mas desde que o jornalista seja diplomado por qualquer das faculdades superiores da República (CPP, art. 295, VII).176 174. STF, 1a Turma, HC 91.150/SP, Rel. Min. Menezes Direito, DJ 31/10/2007 p. 91.

- DJ 28/09/2007 p. 65).

175. STF, 2a Turma, HC 93.391/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 15/04/2008, DJe 83 08/05/2008. Ainda no sentido da possibilidade de prisão de advogado em local diverso das dependências do comando das forças armadas ou auxiliares, desde que apresentadas condições condignas para o encarcerado: STF, 2a Turma, Rcl 23.567/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 07/06/2016, DJe 124 15/06/2016. Logicamente, se o advogado estiver suspenso dos quadros da OAB, não fará jus ao recolhimento provisório em sala de Estado-Maior. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, HC 368.393/MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/09/2016, DJe 30/09/2016.

173. Embora os funcionários da Administração Criminal possuam di­ reito à prisão especial mesmo após o trânsito em julgado da condenação, a execução de suas penas dar-se-á em estabelecimento penal sujeito ao mesmo sistema disciplinar e carcerário de outros presos com o mesmo regime prisional, em dependência isolada dos demais reclusos, a teor do disposto no § 2o do art. 2o do art. 84 da Lei n° 7.210/84". (STJ - REsp 744.857/RN - 5a Turma - Relatora Ministra Laurita Vaz - DJ 06/02/2006 p. 304).

176. Vale lembrar que, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal, a exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela ordem consti­ tucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadei­ ra supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1o, da Constituição. (STF, Pleno, RE 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 213 12/11/2009).

172. STF - HC-AgR 82.850/SP - 2a Turma - Rel. Min. Gilmar Mendes

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

CAPÍTULO III

DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E CONVENCIONAIS ATINENTES À TUTELA DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO 1. DA OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDA­ MENTAIS NO ESTADO DE DIREITO A prisão cautelar e a imposição de outras medidas cautelares de natureza pessoal põem em evidência uma enorme tensão no processo penal, pois, ao mesmo tempo em que o Estado se vale de instrumento extremamente gravoso para assegurar a eficácia da persecução penal - privação absoluta ou relativa da liberdade de locomoção antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória -, deve também preservar o indispensável respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro custaram para serem reconhecidos e que, em verdade, condicio­ nam a legitimidade da atuação do próprio aparato estatal em um Estado Democrático de Direito.

Na medida em que a liberdade de locomoção do cidadão funciona como um dos dogmas do Esta­ do de Direito, é intuitivo que a própria Constituição Federal estabeleça certas regras fundamentais a fim de impedir prisões ilegais ou arbitrárias. Afinal de contas, qualquer restrição à liberdade de locomoção é medida de natureza excepcional, cuja adoção deve estar sempre condicionada a parâmetros de estrita legalidade. É a boa aplicação (ou não) desses direitos e ga­ rantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e dis­ tinguir a civilização da barbárie. Afinal, a proteção do cidadão no âmbito dos processos estatais é jus­ tamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária.177

Por isso, antes de se adentrar na análise pro­ priamente dita de cada uma das prisões cautelares e das demais medidas cautelares de natureza pessoal, impõe-se minuciosa análise desses direitos e garan­ tias atinentes à liberdade de locomoção. Esses direitos e garantias individuais estão previstos na Constituição Federal, nos Tratados 177. Nessa linha: STF, 2aTurma, HC 91,386/BA, Rei. Min. Gilmar Mendes,

DJeO88 15/05/2008.

Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário e na legislação processual penal. É indispensável que o agente seja cientificado quanto ao seu conteúdo quando da efetivação de sua prisão. De fato, segundo o próprio inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal, o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. Na mesma esteira, o art. 2o, § 6o, da Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89), cujo precei­ to, a nosso ver, é aplicável às demais modalidades de prisão cautelar, dispõe que, efetuada a prisão, a autoridade policial informará o preso dos direitos previstos no art. 5o da Constituição Federal. Com previsão semelhante, o art. 289-A, § 4o, inserido no CPP pela Lei n° 12.403/11, também prevê que o preso será informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, será comunicado à Defensoria Pública.

2. DO RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MO­ RAL DO PRESO De acordo com o art. 5o, inciso XLIX, da Cons­ tituição Federal, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Ao proclamar o respei­ to à integridade física e moral dos presos, a Carta Magna garante ao preso a conservação de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, à exceção, é claro, daqueles que sejam incompatíveis com a condição peculiar de uma pessoa presa, tais como a liberdade de locomoção (CF, art. 5o, XV), o livre exercício de qualquer profissão (CF, art. 5o, XIII), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela (CF, art. 5o, XI) e o exercício dos direitos políticos (CF, art. 15, III). Não obstante, mantém o preso os demais diretos e garantias fundamentais, tais como o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5o, III, V, X e LXIV), à liberdade religiosa (CF, art. 5o, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5o, XXII), e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana.178 Não por outro motivo, o Superior Tribunal de Justiça acabou por reconhecer que presos não po­ dem ficar custodiados em contêiner, in verbis: “Se se usa contêiner como cela, trata-se de uso inade­ quado, ilegítimo e ilegal. (...) Caso, pois, de prisão inadequada e desonrante; desumana também. Não se combate a violência do crime com a violência da prisão. Habeas corpus deferido, substituindo-se a prisão em contêiner por prisão domiciliar, com 178. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil: interpretada e le­

gislação constitucional. 5a ed. São Paulo: Atlas, 2005. 338.

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extensão a tantos quantos - homens e mulheres estejam presos nas mesmas condições”.179

Dispondo a Constituição Federal que é assegu­ rado aos presos o respeito à integridade física e mo­ ral (art. 5o, XLIX), e que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5o, III), não se pode afastar a responsabilização criminal das autoridades em caso de atentado à in­ tegridade corporal do preso, seja pelo delito de lesão corporal (CP, art. 129), seja pelo próprio delito de tortura, tipificado no art. Io, § Io, da Lei n° 9.455/97. Aliás, em caso concreto relativo a cidadão preso que se debatia contra as grades, agredia outros detentos e proferia impropérios contra os policiais, que foi algemado e agredido por policial civil com vários golpes de cassetete, sofrendo lesões corporais graves, concluiu o STJ estar tipificado o delito de tortura previsto no art. Io, § Io, da Lei n° 9.455/97. Essa modalidade de tortura, ao contrário das demais, não exige especial fim de agir por parte do agente para configurar-se, bastando o dolo de praticar a conduta descrita no tipo objetivo.180 A fim de se resguardar a integridade físi­ ca e moral do preso, é indispensável que toda e qualquer pessoa presa seja submetida a exame de corpo de delito, seja no momento da captura, seja no momento da soltura. A sujeição do preso a exame de corpo de delito visa documentar seu estado de saúde durante o período em que ficou sob a custódia do Estado. De mais a mais, como é extremamente comum que presos se insurjam quanto ao comportamento da autoridade policial, alegando que sofreram agressões, tortura ou sevícias físicas durante o período de encarceramento, a realização do exame pericial resguarda a própria autoridade policial contra tais questionamentos. É nessa linha, aliás, o teor do art. 2o, §3°, da Lei da Prisão Temporária (Lei n. 7.960/89). Apesar de o dispositivo deixar transparecer que o juiz poderá determinar que o preso seja submetido a exame de corpo de delito, não se trata de preceito de aplicação facultativa. Na verdade, a autoridade policial, independentemente de prévia autoriza­ ção judicial, deve submeter o preso a exame de corpo de delito. O dever de zelar pela integridade física e mo­ ral do preso foi reiterado pelo Plenário do STF no julgamento do RE 580.252, quando reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado do Mato Grosso

do Sul, obrigando-o a indenizar um detento no va­ lor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), em virtude dos danos, inclusive morais, que comprovadamente lhe foram causados em decorrência da falta ou insu­ ficiência das condições legais de encarceramento. Para a Corte, o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarcera­ mento, enquanto ali permanecerem detidas, sendo seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir os danos que daí decorrerem. Concluiu-se que a criação de sub­ terfúgios teóricos - como a separação dos Poderes, a reserva do possível e a natureza coletiva dos danos sofridos - para afastar a responsabilidade estatal pe­ las calamitosas condições da carceragem afronta não apenas o sentido do art. 37, § 6o, da CF, mas também determina o esvaziamento de inúmeras cláusulas constitucionais e convencionais. Também se revela indevida a invocação seletiva de razões de Estado para negar, especificamente a determinada categoria de sujeitos, o direito à integridade física e moral. Acolher essas razões é o mesmo que recusar aos detentos os mecanismos de reparação judicial dos danos sofridos, deixando-os descobertos de qual­ quer proteção estatal, em condição de vulnerabili­ dade juridicamente desastrosa. É dupla negativa: do direito e da jurisdição.181

2.1. Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia (“Perp Walk"). A questão relativa ao respeito à integridade moral do preso ganha importância em sede do es­ tudo da prisão cautelar quando se verifica a cres­ cente importância dada pela mídia às mazelas do processo penal. Com efeito, hoje em dia, não são raras as prisões cautelares acompanhadas ao vivo pela imprensa que, coincidentemente, está sempre presente no lugar e hora marcados para registrar tudo. Tais imagens, depois, são exploradas à exaus­ tão nos telejornais pelos doutrinadores do direito penal e processual penal, o que é feito a título de informar a população. Sob os holofotes da mídia, é colocada em segundo plano a finalidade de toda e qualquer prisão cautelar, qual seja, a de assegurar a eficácia da persecução penal. Passam as prisões cautelares, outrossim, a desempenhar um efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea,182 exercendo uma função absoluta­ mente incoerente e proscrita para um instrumento

179. STJ, 6aTurma, HC 142.513/ES, Rei. Min. Nilson Naves, j. 23/03/2010, DJe 10/05/2010. 180. STJ, 5a Turma, REsp 856.706/AC, Rei. Min. Felix Fischer, j.

06/05/2010, DJe 28/06/2010.

181. STF, Pleno, RE 580.252/MS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 16/02/2017. 182. LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo

Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

legitimado por sua feição cautelar. Daí, aliás, o sur­ gimento da expressão Perp walk - em inglês, desfile do acusado -, termo que se refere à prática policial de expor, intencionalmente, o acusado preso de for­ ma sensacionalista em local público, de modo que a mídia possa observar, gravar e divulgar o evento. O suspeito geralmente é algemado ou imobilizado de alguma forma, e, muitas vezes, traja uniforme de presidiário. Não olvidamos a importância da liberdade de expressão, compreendida como a possibilidade de difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, mediante a palavra escrita ou qualquer outro meio de reprodução. No entanto, se aos ór­ gãos de informação é assegurada a maior liberdade possível em sua atuação, também se lhes impõe o dever de não violar princípios basilares do pro­ cesso penal, substituindo o devido processo legal previsto na Constituição por um julgamento sem processo, paralelo e informal, mediante os meios de comunicação.

Oportuna, nesse sentido, a lição sempre abali­ zada do Min. Marco Aurélio: “(...) Ninguém desco­ nhece a necessidade de adoção de rigor no campo da definição de responsabilidade, mormente quando em jogo interesses públicos da maior envergadura. No levantamento de dados, no acompanhamento dos fatos, no esclarecimento da população, impor­ tante é o papel exercido pela imprensa. Todavia, há de se fazer presente advertência de Joaquim Falcão, veiculada sob o título A imprensa e a justiça, no Jornal O Globo, de 06.06.93: 'Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é justiça. Esta relação é um re­ mendo. Um desvio institucional. Jornal não é fórum. Repórter não é juiz. Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a dignidade da informação na arrogância da auto­ ridade que não têm. Não raramente, hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar. Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública. Enfim, condenam sem julgar'.”183 Especificamente em relação à divulgação da imagem de pessoas presas, o que se vê no dia a dia é uma crescente degradação da imagem e da honra produzida pelos meios de comunicação de massa com a conivência das autoridades estatais, por meio da reprodução da imagem do preso sem que haja prévia autorização do preso, nem tam­ pouco um fim social na sua exibição. Utilizam sua

imagem, pois, como produto da notícia, a fim de saciar a curiosidade do povo. Os programas sen­ sacionalistas do rádio e da televisão saciam curio­ sidades perversas extraindo sua matéria-prima da miséria de cidadãos humildes que aparecem algemados e exibidos como verdadeiros troféus.184

Queremos crer, com base na lição de Ana Lú­ cia Menezes Vieira,185 que a reprodução pública da imagem de pessoas envolvidas em crimes deve ser vedada se ela resulta de modo antissocial, aflitivo ou degradante, a não ser que haja autorização do titu­ lar da imagem, ou se necessária à administração da justiça - exemplo seria o retrato falado ou a própria fotografia, para fins investigativos. Ora, como dito acima, a condição de cidadão preso não lhe retira o direito ao respeito à integri­ dade moral e à dignidade.186 Seus direitos persona­ líssimos devem ser tutelados de forma mais eficaz, não só por jornalistas, como também por autori­ dades policiais e membros do Ministério Público, que devem se abster de exibir presos à mídia. E isso não só para preservar os direitos personalíssimos do preso, como também para evitar que inocentes sejam identificados indevidamente como autores de delitos.

Infelizmente, não são poucos os exemplos de pessoas que são exibidas à mídia como suspeitas da prática de delitos, mas cuja inocência é posterior­ mente reconhecida. O célebre episódio da “Escola Base” é um dos mais emblemáticos casos de as­ sassinato moral de inocentes, na dicção de Vieira. Os responsáveis pela referida escola foram dados pela mídia como autores de abusos sexuais con­ tra crianças de classe média. A escola foi alvo de depredação, seus proprietários tiveram que aban­ donar os empregos, e também não podiam sair às ruas, porque corriam o risco de sofrer agressões em público, na medida em que a imprensa divul­ gava suas fotos. O inquérito policial, no entanto, acabou sendo arquivado por falta de elementos de informação que evidenciassem a prática dos crimes sexuais. Outro caso recente é o denominado crime do Bar Bodega: em uma choperia em Moema, bair­ ro nobre na cidade de São Paulo, dois jovens da classe média paulistana foram assassinados no dia 184. Nesse sentido: BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 156. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Pro­ cesso penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2003. p. 156. 185. VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2003. p. 153.

183. STF - HC - Liminar - Rel. Marco Aurélio -j. 14.06.2000 - Revista Síntese 3/141.

186. SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo pe­ nal. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2004. p. 181.

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10 de agosto de 1996. Pressionada pela comoção social que o delito gerou, a polícia apresentou cin­ co jovens negros e pobres, moradores da periferia, como os responsáveis pelos homicídios. Como ano­ ta Eduardo Araújo Silva, “expostos à imprensa como animais bravios, algemados e com placas dependuradas em seus corpos, indicando números, foram fotografados, filmados e entrevistados por dezenas de repórteres de rádio, tevês, jornais e revistas”.187 Pouco tempo depois, porém, foram postos em li­ berdade, pois o Ministério Público não encontrou elementos de informações suficientes para oferecer denúncia. Na verdade, foram identificados indica­ tivos de que teriam confessado a prática do delito mediante tortura.

Além desses dois episódios, comumente nos referimos em sala de aula a um caso ocorrido em novembro de 2006, no bairro de Perdizes, localizado na cidade de São Paulo, relativo a um casal de idosos que foi encontrado morto a facadas dentro de sua residência. A Polícia apressou-se em apontar o filho do casal como suspeito de ter praticado o duplo homicídio, já que, inicialmente, não foram encon­ trados sinais de arrombamento nem de sangue na residência. Como consequência do açodamento da Polícia, e da imediata divulgação feita pela mídia, que induziram uma pré-convicção de culpa do filho do casal, a casa em que a família residia foi pichada com a palavra assassino, em referência ao filho do casal, que também passou a ser hostilizado pelos moradores do bairro. Posteriormente, no entanto, a mesma Polícia encontrou manchas de sangue na casa ao lado, além de pegadas na parte de dentro da residência onde ocorreu o crime, confirmando uma rota de fuga usada pelo verdadeiro autor do delito. Dois dias depois, o criminoso apresentou-se à Polícia, sendo com ele apreendida a faca utilizada no crime. Difícil expressar o prejuízo causado ao filho do casal: além de perder seus pais, em um cri­ me bárbaro e cruel, foi apontado pelas autoridades policiais como suposto autor do delito, sendo, então, submetido ao tradicional linchamento midiático, e transformado, aos olhos da população, em culpado. Por mais que a mídia se apressasse depois em des­ fazer o equívoco, já era tarde demais: a violência já estava consumada. Pelo menos até a entrada em vigor do Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/19), a legislação brasileira não possuía normas infraconstitucionais específi­ cas regulamentando explicitamente a publicidade 187. SILVA, Eduardo Araújo. O papel da imprensa no caso do Bar Bodega. Istoé, 4dez. 1996, p. 151.ApudVIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal emídia. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2003. p. 169.

das investigações e dos atos judiciais de modo a preservar os direitos personalíssimos do preso (CF, art. 5o, incisos X e XLIX). Sem embargo, já era pos­ sível encontrar alguma normatização do assunto através de Portarias e Regulamentos dos próprios órgãos policiais. A título de exemplo, o art. 11 da Portaria n° 18 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo dispõe que as autoridades po­ liciais devem zelar pela preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou a sua disposição na condição de vítimas, a fim de que a elas e a seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de apuração. Após orientadas sobre seus di­ reitos constitucionais, tais pessoas somente serão fotografadas, entrevistadas ou terão suas imagens por qualquer meio registradas, se expressamente o consentirem mediante manifestação explícita de vontade, por escrito ou por termo devidamente assinado.188 Com a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, passou a constar do CPP dispositivo expresso acer­ ca do assunto, senão vejamos: “Art. 3°-F. O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de respon­ sabilidade civil, administrativa e penal. Parágrafo único. Por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em 180 (cento e oitenta) dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso, serão, de modo padronizado e respeitada a programação norma­ tiva aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecu­ ção penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão”. É dentro desse mesmo contexto que devemos compreender os tipos pe­ nais dos incisos I e II do art. 13 da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19): “Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante vio­ lência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública; II - sub­ meter-se a situação vexatória ou a constrangimen­ to não autorizado em lei; (...)”. Ambos têm como objetivo precípuo evitar que presos (ou detentos) 188. Publicada no DOE de 27 de novembro de 1998.

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continuem a ser exibidos à curiosidade pública, sem qualquer finalidade social na sua exibição, ou que sejam submetidos a situações vexatórias ou a constrangimentos não autorizados em lei.189

2.2. Respeito à integridade física e moral do preso e uso de algemas Durante anos, silenciou o Código de Processo Penal acerca do uso de algemas no momento da prisão, limitando-se a Lei de Execução Penal a dis­ por que o emprego de algemas seria disciplinado por decreto federal (LEP, art. 199), que entrou em vigor tão somente em data de 27 de setembro de 2016 (Decreto n. 8.858/2016).190 Só mais recen­ temente é que o CPP passou a prever, no âmbito do procedimento do júri, que não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se ab­ solutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da inte­ gridade física dos presentes (CPP, art. 474, § 3o, com redação dada pela Lei n° 11.689/08). Ademais, segundo o art. 478, inciso I, do CPP, durante os de­ bates, as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficie ou prejudique o acusado.

Não obstante o silêncio do Código de Proces­ so Penal ao longo dos anos, é forçoso convir que a Constituição Federal assegura aos presos o respei­ to à integridade física e moral (CF, art. 5o, inciso XLIX). Ademais, admitindo a lei processual penal a aplicação analógica, por força do art. 3o, caput, do CPP, mesmo antes das alterações produzidas pela Lei n° 11.689/08, já deveria incidir no processo pe­ nal comum o art. 234, § Io, do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso. 189. Para mais detalhes acerca do referido delito, remetemos o leitor

ao nosso livro sobre a Nova Lei de Abuso de Autoridade (Salvador: Editora Juspodivm, 2020). 190. De acordo com o art. 1o do referido Decreto, o emprego de al­ gemas terá como diretrizes: I - o inciso III do caput do art. Io e o inciso III do caput do art. 5o da Constituição, que dispõem sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante; II - a Resolução n. 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok); III - o Pacto de San José da Costa Fica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade. Dispõe, ademais, que é veda­ do emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada (art. 3o).

Em face da lacuna legal referente ao uso de al­ gemas quando do momento da prisão, mesmo antes da reforma processual de 2008, o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado no sentido de que o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nas seguintes hipóteses: a) com a finalidade de impedir, prevenir ou di­ ficultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer;

b) com a finalidade de evitar agressão do pre­ so contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo.191 Seguindo a mesma linha de raciocínio, ao jul­ gar o HC 91.952, referente a cidadão que perma­ necera algemado durante toda a sessão do Júri, en­ tendeu a Suprema Corte que o uso das algemas, no caso, estaria em confronto com a ordem jurídico-constitucional, tendo em conta que não havia, no caso, uma justificativa socialmente aceitável para submeter o acusado à humilhação de permanecer durante horas algemado, quando do julgamento no Tribunal do Júri, não tendo sido, ademais, aponta­ do um único dado concreto, relativo ao perfil do acusado, que estivesse a exigir, em prol da segu­ rança, a permanência com algemas. Aduziu-se que manter o acusado algemado em audiência, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosi­ dade, implicaria colocar a defesa, antecipadamen­ te, em patamar inferior. Acrescentou-se que, em razão de o julgamento no Júri ser procedido por pessoas leigas que tiram ilações diversas do con­ texto observado, a permanência do réu algemado indicaria, à primeira vista, que se estaria a tratar de criminoso de alta periculosidade, o que acar­ retaria desequilíbrio no julgamento, por estarem os jurados influenciados.192 Apesar de não nos parecer que estivessem pre­ sentes os pressupostos constitucionais para a edição de súmula vinculante (CF, art. 103-A, caput), como consequência do referido julgamento foi aprovado pelo Supremo Tribunal Federal o Enunciado da Sú­ mula Vinculante n° 11, que dispõe: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de funda­ do receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de tercei­ ros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob 191. STF, 1aTurma, HC 89.429/RO, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 02/02/2007 p. 114. 192. STF, HC 91.952/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 241 18/12/2008.

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pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.193 Da leitura da súmula vinculante n° 11 do STF, depreende-se que, sendo necessária a utilização de algemas, seja para prevenir, impedir ou dificultar a fuga do capturando, seja para evitar agressão do preso contra policiais, contra terceiros ou contra si mesmo, será indispensável a lavratura de auto de utilização de algemas pela autoridade competente. O ideal é que esse auto de utilização de algemas seja lavrado tão logo efetuada a captura do agente, nos mesmos moldes em que se lavra o chamado auto de resistência. De mais a mais, a nosso juízo, nada impede que a menção à situação fática que legitimou o uso de algemas seja feita no bojo do próprio auto de prisão em flagrante delito. No entanto, caso isso não seja possível (v.g., hipótese em que o capturando tenha que ser transportado para outra cidade), nada impede que essa justificativa seja lavrada quando da chegada do indivíduo à delegacia de polícia.194

2.2.1. Vedação ao uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres duran­ te a fase de puerpério imediato O Brasil é signatário do Pacto sobre as Regras Mínimas da ONU para Tratamento da Mulher Pre­ sa, conhecido como Regras de Bangkok. Consoante disposto na regra n. 24 do referido Tratado, “ins­ trumentos de contenção jamais deverão ser usados em mulheres em trabalho de parto, durante o parto e nem no período imediatamente posterior”. Aten­ dendo às Regras de Bangkok, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária decidiu “con­ siderar defeso utilizar algemas ou outros meios de contenção em presas parturientes, definitivas ou provisórias, no momento em que se encontrem em intervenção cirúrgica para realizar o parto ou se es­ tejam em trabalho de parto natural, e no período de repouso subsequente ao parto” (Resolução n. 3, de Io de julho de 2012, art. 3o). Não obstante os diplo­ mas normativos em questão, o uso de algemas em 193. Na visão da 1a Turma do STF (Rcl. 7.116/PE, Rei. Min. Marco Auré­ lio, j. 24/05/2016), a apresentação de custodiado algemado à imprensa pelas autoridades policiais não afronta a súmula vinculante n° 11. Em caso concreto em que, por ocasião de sua transferência para presídio em outra unidade da Federação, o ex-Governador do Rio de Janeiro S. C. F. foi exibido às câmeras de televisão algemado por pés e mãos, a despeito de sua aparente passividade, a 2a Turma do STF (HC 152.720/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10/04/2018) reputou haver evidente afronta à súmula vinculante n. 11, concluindo, assim, que o uso infundado de algemas seria, por si só, causa suficiente para invalidar a referida transferência. 194. Nesse sentido: STJ - HC 138.349/MG - 6a Turma - Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado doTJ/SP - Dje 07/12/2009.

mulheres grávidas ainda era uma rotina no país. De acordo com um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz com base em dados obtidos num censo nacional realizado entre agosto de 2012 e janeiro de 2014, mais de um terço das mulheres presas grávidas relataram o uso de algemas na internação para o parto. Daí a origem da Lei n. 13.434/17 e a inclusão do parágrafo único do art. 292 do CPR De acordo com o novel dispositivo, a mulher não deve perma­ necer algemada em três hipóteses: a) durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto; b) durante o trabalho de parto; c) durante o período de puerpério imediato.195

2.3. Caso Damião Ximenes Lopes Cuida-se da primeira condenação internacional do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em data de Io de outu­ bro de 1999, Damião Ximenes Lopes foi internado numa clínica psiquiátrica na cidade de Sobral/CE. Ao chegar à referida clínica no dia 04/10/99 para uma visita, a mãe de Damião deparou-se com seu filho sangrando, com a roupa rasgada, sujo, chei­ rando a excremento, mãos amarradas para trás, com dificuldade para respirar, agonizante, com hema­ tomas, gritando e pedindo socorro. Dirigiu-se, de imediato, ao médico. Pouco tempo depois Damião veio a óbito, sem ser assistido por qualquer médico, já que a clínica não dispunha de nenhum profissio­ nal de saúde. Seu corpo apresentava diversas marcas de tortura, os punhos estavam dilacerados e roxos, suas mãos perfuradas, com sinais de unhas, e uma parte de seu nariz estava machucada. Não obstante, os médicos atestaram causa mortis indeterminada. No dia 4 de julho de 2006, a CIDH reconhe­ ceu, por unanimidade, a responsabilidade parcial do Estado brasileiro pela violação: a) do direito à vida (CADH, art. 4o); b) da integridade física (CADH, art. 5o); c) das garantias judiciais (CADH, art. 8°); d) da proteção judicial (CADH, art. 25). A Corte apontou que o Brasil falhou em seus deveres de respeito, prevenção e proteção aos direitos hu­ manos. Fez menção, ademais, à demora do Poder Judiciário, porquanto, seis anos após o oferecimen­ to da peça acusatória, sequer havia uma sentença de primeira instância. Por consequência, a Corte dispôs: a) ser dever do Estado garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado 195. Segundo a doutrina - FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 10a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015. P. 687 - compreende-se por puerpério o período de tempo compreendido entre o desprendi­ mento da placenta até o retorno do organismo materno às condições anteriores à gestação. Puerpério imediato, por sua vez, compreende esse estado do Io ao 10° dia após o parto.

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a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos surta seus devidos efeitos; b) que o teor da decisão deveria ser publicado no prazo de seis meses no Diário Oficial; c) ser dever do Estado continuar a desenvolver programas de formação e capacitação profissional para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental; d) que o Estado pague, em dinheiro, para a família da vítima, no prazo de um ano, a título de indenização por da­ nos materiais e imateriais, nos termos do art. 63.1 da CADH, a quantia de US$ 146.000,00, além do pagamento de todas as despesas que estes tenham realizado nos processos na Justiça Brasileira e no exterior. Determinou, ainda, no prazo de um ano, que o Brasil apresentasse à Corte um relatório so­ bre as medidas adotadas para o seu cumprimento.

3. DA COMUNICAÇÃO IMEDIATA DA PRISÃO AO JUIZ COMPETENTE E AO MINISTÉRIO PÚBLICO De acordo com o art. 5o, inciso LXII, da Cons­ tituição Federal, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. Como se percebe pela leitura do dispositivo, a Carta Magna estabelece que a prisão de qualquer pessoa será comunicada imediatamente ao juiz com­ petente, sem se referir à espécie de prisão. Logo, toda e qualquer prisão deve ser comunicada à au­ toridade judiciária, seja ela preventiva, temporária, ou flagrante. A questão, todavia, assume especial relevância quando do estudo da prisão em flagrante, haja vista que tal modalidade de prisão independe de prévia autorização judicial.

Com a entrada em vigor da Lei n° 11.449/07, o art. 306, caput, do CPP passou a prever que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada”. O art. 306, § Io, do CPP, em acréscimo, estabelecia que “dentro em 24 (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”. Antes de qualquer coisa, é de bom alvitre desta­ car que a comunicação imediata da prisão de toda e qualquer pessoa ao juiz competente não se confunde com o posterior encaminhamento do auto de prisão

em flagrante. São coisas distintas, em momentos diferentes. Uma coisa é a imediata comunicação da pri­ são à autoridade judiciária. Como a própria Cons­ tituição Federal dispõe em seu art. 5o, LXII, tal comunicação deve ser imediata, ou seja, tão logo haja o cerceamento à liberdade de locomoção, o juiz competente deve ser comunicado acerca da prisão. Outra coisa é a posterior remessa do auto de prisão em flagrante delito, em até 24 (vinte e quatro) horas depois da captura. A comunicação imediata informa a autoridade judiciária de que há uma pessoa que está detida sem que haja prévia autorização judicial, possibilitando que o magistra­ do, a partir de então, passe a controlar os passos da autoridade policial, até mesmo no que toca à conclusão do auto de prisão em flagrante no prazo legal de 24 (vinte e quatro) horas.196 A Constituição Federal (art. 5o, LXII) dispõe que a prisão de qualquer pessoa será comunicada ao juiz competente. Logo, como a Constituição não faz qualquer menção à necessidade de que essa prisão seja mantida, conclui-se que, mesmo que a autori­ dade policial conceda ao preso liberdade provisória com fiança (CPP, art. 322), essa comunicação deve ser feita. Afinal, em última análise, houve cercea­ mento da liberdade de locomoção. Ademais, o afian­ çado fica submetido ao cumprimento de certas con­ dições e, caso o flagrante seja anulado pelo juiz, tais obrigações deixarão de existir, com a consequente devolução do valor dado em garantia.197

Além da comunicação ao juiz competente, é bom lembrar que, consoante o art. 10 da Lei Com­ plementar n° 75/93, que dispõe sobre o Ministério Público da União, impõe-se à autoridade policial o dever de comunicação imediata ao Ministério Público competente da prisão de toda e qualquer pessoa, com indicação do lugar onde se encontre o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão. Obviamente que o dispositivo em destaque refere-se apenas à prisão em flagran­ te, devendo se entender por cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão o auto de prisão em flagrante delito. Essa norma, em face do disposto no art. 80 da Lei n° 8.625/93, também se aplica ao Ministério Público Estadual.

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, essa obrigatoriedade de comunicação da prisão ao 196. Comungam do mesmo entendimento: Walter Nunes da Silva Júnior (op. cit. p. 889/890) e Aury Lopes Jr. (op. cit. p. 53).

197. Nesse sentido: GONÇALVES, Daniela Cristina Rios (Prisão em fla­

grante. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p. 103).

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Ministério Público passou a constar expressamente do caput do art. 306 do CPP.

em flagrante continuará valendo, mas tão somente como peça informativa.200

Resta saber, então, quais são as consequências da ausência dessa comunicação do flagrante à auto­ ridade judiciária ou ao órgão do Ministério Público. O fato de o agente público deixar injustificadamente de comunicar prisão em flagrante à autoridade ju­ diciária no prazo legal caracteriza o delito de abuso de autoridade, nos exatos termos do art. 12, caput, da Lei n. 13.869/19. Mas será que a ausência dessa comunicação acarreta o obrigatório relaxamento da prisão? Ou será que se trata de mera irregularida­ de, sem o condão de determinar o relaxamento da prisão?

No entanto, como será visto abaixo, eventual re­ laxamento da prisão em flagrante por conta da ausên­ cia de comunicação à autoridade judiciária não im­ pede a imposição de medidas cautelares de natureza pessoal, inclusive a própria prisão preventiva, desde que presentes seus pressupostos legais.201

Há julgados antigos do Supremo Tribunal Fe­ deral e do Superior Tribunal de Justiça, segundo os quais a ausência de comunicação da prisão à autoridade judiciária não teria o condão de ex­ cluir a legalidade da prisão, gerando tão somente responsabilidade funcional e criminal por parte da autoridade que presidiu o auto de prisão em flagrante.198 Com a devida vênia, pensamos que a ausência de comunicação do flagrante à autoridade judiciária configura grave violação a preceito constitucional (CF, art. 5o, LXII), o qual foi colocado na Carta Magna visando à preservação do status libertatis do indivíduo, determinando que toda e qualquer prisão seja comunicada à autoridade judiciária, a fim de que o magistrado possa verificar sua legalida­ de (para fins de eventual relaxamento), ou analisar o cabimento de liberdade provisória, com ou sem fiança. Não custa lembrar que estamos falando da prisão em flagrante, espécie de restrição à liberdade de locomoção que independe de prévia autorização judicial. Dizer que a não comunicação da prisão é mera irregularidade significa dizer que a inob­ servância de preceito constitucional é de todo irre­ levante, tornando letra morta importante garantia constitucional.199

Temos, portanto, que a ausência da comuni­ cação da prisão em flagrante importa em violação à garantia constitucional, gerando a perda da força coercitiva do auto de prisão, e o consequente re­ laxamento da prisão. Portanto, o auto de prisão

4. DA COMUNICAÇÃO IMEDIATA DA PRISÃO À FAMÍLIA DO PRESO OU À PESSOA POR ELE INDICADA A comunicação imediata da prisão de qualquer pessoa ao juiz competente e aos familiares ou à pes­ soa indicada pelo preso, prevista no art. 5o, LXII, da Carta Magna, consiste em verdadeira garantia de liberdade, pois dela dependem outras garantias expressamente previstas no texto constitucional, como a análise da ocorrência ou não das hipóteses permissivas para a prisão (art. 5o, LXI), a possibi­ lidade de relaxamento por sua ilegalidade (art. 5o, LXV), ou, nos casos de legalidade, se possível for, a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança (art. 5o, LXVI). Especificamente no tocante à obrigação de co­ municação da prisão à família do preso ou à pessoa por ele indicada, sua razão de ser está relacionada a dois objetivos: primeiro, certificar familiares acerca da localização do preso; segundo, permitir que o preso obtenha de seus familiares a assistência e o apoio de que necessita.

Obviamente, caso o preso não indique a pes­ soa a quem deva ser comunicada sua prisão, não há como a autoridade policial dar cumprimento ao preceito constitucional do art. 5o, LXII, sendo inviável qualquer alegação de ilegalidade da prisão. Como já teve a oportunidade de se manifestar o STJ, “a Constituição da República visa a resguardar o status libertatis, ensejando a pessoas de confiança do preso o conhecimento do fato, a fim de, diante de qualquer ilegalidade, ser afrontado o vício jurí­ dico. A participação imediata do juiz competente é impostergável. A comunicação à família ou à pes­ soa pelo preso indicada configura direito público

198. STF - RHC 64.152/PR - 2a Turma - Rel. Min. Aldir Passarinho - DJ

200. TRF1 - RHC 2002.38.00.019498-5/MG - 4a Turma - Rel. Desem­ bargador Federal Hilton Queiroz - DJ 04/10/2002 p. 122. Etambém:TRF1 - RCHC 2001.33.00.006872-1 /BA - 4aTurma - Rel. Desembargador Federal Hilton Queiroz - DJ 05/09/2001 p. 123).

29/08/1986 p. 15.186; STF - RHC 62.187/G0 - 2a Turma - Rel. Min. Aldir Passarinho - DJ 08/03/1985 - p. 2.599; STJ - HC 28.575/BA - 5a Turma

superada a tese de excesso de prazo na comunicação do flagrante:

- Rel. Min. Felix Fischer - DJ 28/10/2003 p. 321; STJ - RHC 4.274/RJ - 6a Turma - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - DJ 20/03/1995 p. 6.145. 199. BRANCO, Tales Castelo. Da prisão em flagrante. 5a ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001.

201. No sentido de que, uma vez decretada a prisão preventiva, fica

STJ, 5a Turma, RHC 102.209/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 18/09/2018, DJe 28/09/2018; STJ, 5a Turma, HC 375.488/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 16/02/2017, DJe 15/03/2017; STJ, 6a Turma, HC 325.958/ AL, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 18/08/2015, DJe 01/09/2015.

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subjetivo. A interpretação, porém, deve ser finalística. Pode ocorrer que o preso não tenha interesse, ou mesmo não deseje que tal aconteça. Urge respeito a sua intimidade. Se terceira pessoa, ainda que estra­ nha à família ou pelo preso indicada, intervier, e de modo eficaz, compensar a ausência de alguém do rol constitucional, suprida estará a situação jurídica. Exemplificativamente, a presença de defensor”.202 E qual é a consequência da inobservância desse preceito constitucional? Ora, como dito acima, a observância de todas as formalidades no momento da prisão de alguém é de extrema relevância, por­ que constituem meio de tutela da liberdade. Sua inobservância configura constrangimento ilegal, sanável por meio de habeas corpus objetivando o relaxamento da prisão.

Por fim, resta esclarecer que, se do auto de prisão em flagrante constar menção à observância das garantias constitucionais acima mencionadas, incumbe ao preso o ônus de demonstrar o descum­ primento dos preceitos constitucionais.203

5. DO DIREITO AO SILÊNCIO (NEMO TENETUR SE DETEGERE) O direito ao silêncio, previsto na Carta Magna como direito de permanecer calado, apresenta-se como uma das decorrências do nemo tenetur se de­ tegere, segundo o qual ninguém é obrigado a pro­ duzir prova contra si mesmo. O princípio do nemo tenetur se detegere foi abordado com profundidade no título introdutório deste livro, para onde reme­ temos o leitor.

6. DA ASSISTÊNCIA DE ADVOGADO AO PRESO Em seu art. 5o, inciso LXIII, in fine, a Cons­ tituição Federal assegura ao preso a assistência da família e de advogado. Não obstante o preceito constitucional, é certo dizer que, pelo menos até bem pouco tempo atrás, o que se via no dia a dia forense era a não concessão de assistência jurídica ao sujeito preso em flagrante delito, nem mesmo para que a defesa técnica pudesse 202. STJ, 6a Turma, RHC 1.526/RJ, Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 25/11/1991 p. 17.084. Ainda segundo o STJ, "em se tratando de prisão em flagrante de estrangeiros acusados de associação para a prática de crime de tráfico internacional de substâncias entorpecentes e roubo de aeronave, que residem na Colômbia onde tem famílias, a autoridade po­ licial não está obrigada a comunicar a ocorrência aos familiares. Basta-lhe

assegurar o direito de comunicação. Por outro lado, há nos autos notas assegurando-lhes os direitos constitucionais de assistência da família e de advogado". (STJ - RHC 3.894/PA - 5a Turma - Rei. Min. Jesus Costa Lima - DJ 12/09/1994 p. 23.775). 203. STJ, 6aTurma, HC 8.690/GO, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 07/06/1999

p. 133.

pleitear o relaxamento da prisão ou a concessão de liberdade provisória. Restava ao preso, na prática, aguardar a conclusão do inquérito policial, remessa dos autos a juízo para, se acaso fosse denunciado, pudesse, enfim, contar com o auxílio de defensor, o que, não raramente, demorava meses, na medida em que esse primeiro contato preso-defensor somente seria possível quando da apresentação da respos­ ta à acusação (CPP, art. 396-A), ou por ocasião da realização da audiência una de instrução e julga­ mento (CPP, art. 400, caput). Em outras palavras, o preceito constitucional do art. 5o, inciso LXIII, ficava limitado à mera indagação ao acusado se ele desejava comunicar sua prisão a advogado, e a um papel por ele assinado segundo o qual as garantias constitucionais teriam sido observadas. É nesse cenário que se insere a importância da Lei n° 11.449/07, ao inserir no § Io do art. 306 do CPP o dever da autoridade policial de comunicar à Defensoria Pública, no prazo de vinte e quatro ho­ ras, a prisão de toda pessoa que não informe o nome de seu advogado, remetendo cópias de todos os ter­ mos de depoimentos tomados na oportunidade da lavratura do auto de prisão em flagrante. Na esteira da Lei n° 11.449/07, por força da Lei Complementar n° 132, de 07 de outubro de 2009, passou a cons­ tar, dentre as funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras, a de acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado (LC n° 80/94, art. 4o, inciso XIV). O dispositivo em questão objetiva suprir antiga omissão do legislador brasileiro em prover a grande clientela da Justiça Criminal de assistência jurídica no momento da prisão em flagrante. Deveras, não há como fechar os olhos para o tratamento desigual e odioso que sempre imperou (e continua impe­ rando) na Justiça Criminal entre o acusado preso, que detém condições econômicas para constituir advogado, e o acusado preso menos afortunado, que, vez por outra, acabava ficando preso de maneira indevida simplesmente por não ter a assistência de profissional da advocacia para solicitar o relaxamen­ to de sua prisão e/ou a concessão de liberdade pro­ visória. Esse tratamento diferenciado entre pobres e ricos perante o Poder Judiciário faz ressurgir o que asseverou, há muito tempo, Ovídio, segundo o qual cura pauperibus clausa est (o Tribunal está fechado para os pobres).

Como se vê, o dispositivo vem parcialmente ao encontro do art. 7o, número 6, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incorporada

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ao ordenamento pátrio por meio do Decreto n° 678/92, segundo o qual toda pessoa privada da li­ berdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais Sem dúvida alguma, a imediata comunicação à Defensoria Pública assegura que eventual pedido de relaxamento da prisão ou de liberdade provisória seja levado ao conhecimento da autoridade judiciá­ ria, que deverá se manifestar fundamentadamente quanto à necessidade (ou não) da subsistência da medida constritiva.

Um primeiro questionamento a ser produzido em virtude do § Io do art. 306 do Código de Pro­ cesso Penal diz respeito ao procedimento a ser ado­ tado nas localidades em que não houver Defensoria Pública. Como é cediço, lamentavelmente, tanto as Defensorias dos Estados quanto a Defensoria Públi­ ca da União têm sido vítimas do descaso do Poder público, que, além de não criar cargos em número compatível com a demanda, não fornece estrutura material e pessoal adequada ao desempenho de tão importante mister - a orientação jurídica e a de­ fesa, em todos os graus, dos necessitados (CF, art. 5o, LXXIV, c/c art. 134, caput). Indaga-se, então, o que fazer em um município que não seja dotado de Defensoria Pública?204 Acreditamos que a solução passa, obrigatoria­ mente, pela aplicação antecipada do art. 263 do Có­ digo de Processo Penal já no momento da prisão, e não, como acontecia antes, somente na fase judicial. Em outras palavras, ao receber cópia do auto de prisão em flagrante (CPP, art. 306, § Io, Ia parte), deve a autoridade judiciária nomear imediatamente um advogado dativo em favor do acusado.

Outra indagação que o § Io do art. 306 do Código de Processo Penal irá produzir é evidente: qual será a consequência da ausência de comunica­ ção à Defensoria Pública? Já podemos antever po­ sição doutrinária muito semelhante àquela relativa à ausência de comunicação da prisão à autoridade judiciária, segundo o qual essa omissão configura­ ria mera irregularidade, que não enseja ilegalidade de modo a afastar a força coercitiva da prisão em flagrante. Somos obrigados a discordar novamente, sob pena de negarmos qualquer força coercitiva ao inciso LXIII do art. 5o da Carta Magna. Ora, a comunicação da prisão em flagrante à Defensoria

Pública traduz-se em requisito de legalidade dessa modalidade de prisão cautelar. Ausente essa co­ municação, a força coercitiva do auto de prisão em flagrante delito desaparece, devendo a prisão ser relaxada imediatamente,205 o que, no entanto, não impede a decretação da prisão preventiva, caso presentes os pressupostos legais do art. 312 do CPP.

Conquanto o § Io do art. 306 esteja localizado no Capítulo II do Título IX do Livro I do Código de Processo Penal - ‘Da prisão em flagrante’ -, enten­ demos que nada impede sua aplicação por analogia às demais espécies de prisão cautelar (preventiva e temporária), bem como no processo penal militar. Nessas hipóteses, uma vez preso o suspeito, cópia do mandado de prisão deve ser remetida à Defensoria Pública, sob pena de ilegalidade do cerceamento à liberdade de locomoção.

Nessa linha, ao dispor sobre registro de man­ dados de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, a Lei n° 12.403/11 passou a prever que “o preso será informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, será comunicado à Defensoria Pública” (CPP, art. 289-A, § 4o). Perceba-se que esse preceito está inserido em dispositivo que cuida do cumprimento de mandados de prisão. Logo, tendo em conta que essa prisão determinada pelo juiz só pode ser a preventiva ou temporária, depreende-se que, por conta das alterações produzidas pela Lei n° 12.403/11, a comunicação à Defensoria Pública pas­ sou a ser obrigatória em relação a toda e qualquer espécie de prisão cautelar, caso o preso não informe o nome de seu advogado.

Por fim, vale lembrar que o art. 36, 1, “b”, da Convenção de Viena sobre relações consulares de 1963 (promulgada no Brasil pelo Decreto n° 61.078/67) assevera a necessidade de comunicar à autoridade consular respectiva em caso de prisão de estrangeiro, caso este solicite. A finalidade do dispo­ sitivo é permitir que o preso estrangeiro tenha um auxílio necessário do órgão consular, visando com­ pensar não apenas a barreira da língua, como tam­ bém a defasagem decorrente do desconhecimento 205. Segundo Ada Pellegrini Grinover et alii, "trata-se portanto de providência indeclinável e o seu não atendimento deve levar ao reco­ nhecimento da nulidade absoluta - com a consequente ilegalidade da

204. De acordo com reportagem do Correio Braziliense, publicada em 12/08/2008, da jornalista Érica Montenegro, apenas 40% das comarcas

prisão uma vez que estará afetado o próprio direito de defesa". (As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 272). No sentido de que o atraso da comunicação da prisão em flagrante à Defensoria Pública é causa de mera irregularidade: STJ, 5a Turma, RHC 25.633/SP, Rei. Min. Félix Fischer,

são dotadas de Defensoria Pública.

j. 13/08/2009, DJe 14/09/2009.

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do ordenamento jurídico daquele país e de seus direitos.206

7. DO DIREITO DO PRESO À IDENTIFICAÇÃO DOS RESPONSÁVEIS POR SUA PRISÃO OU POR SEU INTERROGATÓRIO POLICIAL De acordo com o art. 5o, inciso LXIV, da Cons­ tituição Federal, o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu inter­ rogatório policial. Dispositivo semelhante é en­ contrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, § 4o).

No caso da prisão em flagrante, tal direito se torna efetivo por meio da entrega da nota de culpa ao preso. Consiste a nota de culpa em instrumento de caráter informativo, dirigido ao preso, que lhe comunica o motivo da prisão, o nome da autori­ dade que lavrou o auto, da pessoa que o prendeu (condutor) e o das testemunhas, tornando efetiva a garantia constitucional prevista no art. 5o, inciso LXIV, além de assegurar o direito de resguardo da liberdade do preso contra eventuais abusos e o exer­ cício da ampla defesa. A necessidade da entrega da nota de culpa limita-se às hipóteses de prisão em flagrante, porquanto, nas demais espécies de prisão cautelar (preventiva e temporária), a concretização do preceito do art. 5o, LXIV, da CF, ocorre com a entrega ao preso de cópia do mandado expedido, do qual já constam as informações imprescindíveis à defesa.

Em outras palavras, enquanto nos casos de pri­ são em flagrante é a nota de culpa que funciona como o instrumento que materializa o direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão, em se tratando de prisão preventiva e/ou temporária, esse direito é concretizado por meio da cópia do mandado de prisão, que deve ser entregue ao preso. Em se tratando de prisão em flagrante delito, segundo o art. 306, § 2o, do CPP, com redação dada pela Lei n° 12.403/11, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas. Esse prazo de 24 (vinte e quatro) horas é contado a partir do momen­ to da captura, e não da lavratura do auto de prisão em flagrante delito.207 Caso o preso não saiba, não possa, ou não quei­ ra assinar, duas testemunhas assinarão o recibo pelo 206. STF, Pleno, Ext. 1.126, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22/10/2009, DJe 11/12/2009. 207. Perfilha do mesmo entendimentoTourinho Filho (op. cit. p. 722).

preso, atestando a entrega do documento (testemu­ nhas instrumentárias). A nota de culpa de modo algum importa em confissão, nem tampouco que o preso esteja aceitando as acusações que lhe foram feitas quando de sua prisão.

A ausência de entrega da nota de culpa, ou a ausência de entrega de cópia do mandado de prisão, maculam a prisão com grave vício de ilegalidade, autorizando seu relaxamento. De fato, se conside­ rarmos que a ausência de entrega é causa de mera irregularidade, afasta-se o caráter coercitivo do art. 5o, LXIV, tornando ineficaz o preceito que assegura ao preso o direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial.208

Novamente, não podemos concordar com posicionamento doutrinário e/ou jurisprudencial segundo o qual o desrespeito ao direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão seria mera irregularidade, inidôneo, portanto, para afetar a força coercitiva da prisão.209 Cuidando-se a prisão de inequívoco gravame à liberdade de locomoção, a observância das for­ malidades previstas na Constituição e no Código de Processo Penal são essenciais à validade do ato, devendo se emprestar máxima efetividade ao precei­ to do art. 5o, inciso LXIV, da Constituição Federal. Deveras, como observa Barroso, por força do prin­ cípio da efetividade, também designado por prin­ cípio da eficiência ou da interpretação efetiva, deve se dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso. No caso de dúvidas, deve se dar preponderância à interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.210

8. DO RELAXAMENTO DA PRISÃO ILEGAL Segundo o art. 5o, LXV, da Constituição Fede­ ral, “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.” Firma o dispositivo constitu­ cional o direito subjetivo de todo e qualquer cidadão de ter restabelecida sua liberdade de locomoção caso 208. STF, Ia Turma, HC 77.042/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/06/1998 p. 3.

209. STJ, 5a Turma, RHC 21.532/PR, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 12/11/2007 p. 239. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 60.666/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 10/09/2007 p. 254; STJ, 6a Turma, RHC 20.625/ BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 21/05/2007 p. 616; STJ, 5a Turma, RHC 7.890/RJ, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 16/11/1998 p. 106; STJ, 6a Turma, RHC 7.122/PA, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 30/03/1998 p. 140.

210. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 246. Na mesma linha, vide: NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 4a ed. São Paulo: Método, 2010. p. 180.

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sua prisão tenha sido levada a efeito fora dos bali­ zamentos legais. Esse vício, que macula a custódia de ilegal, pode se apresentar desde a origem do ato de constrição à liberdade de locomoção ou mesmo no curso de sua incidência: em ambas as hipóteses, deve ser reconhecida a ilegalidade da prisão, com seu consequente relaxamento.211 Relaxar a prisão significa reconhecer a ilega­ lidade da restrição da liberdade imposta a alguém, não se restringindo à hipótese de flagrante delito. Conquanto o relaxamento seja mais comum nas hipóteses de prisão em flagrante delito, dirige-se contra todas as modalidades de prisão, desde que tenham sido levadas a efeito sem a observância das formalidades legais. Assim, a título de exemplo, deve ser relaxada a prisão nos casos de flagrante prepa­ rado ou forjado; lavratura do auto de prisão em fla­ grante sem a observância das formalidades legais; prisão preventiva decretada por juiz incompetente; prisão automática ou obrigatória para apelar ou em virtude de decisão de pronúncia; prisão preventiva sem fundamentação; prisão preventiva com excesso de prazo; prisão temporária além do prazo preestabelecido ou em relação a delito que não a comporte.

O relaxamento da prisão ilegal não tem natu­ reza de medida cautelar, nem tampouco de medida de contracautela, funcionando, na verdade, como garantia do réu em face do constrangimento ilegal à liberdade de locomoção decorrente de prisão ilegal. Como observa Garcez Ramos, “o relaxamento da prisão em flagrante, por ser providência que não apresenta as características da cautelaridade (não é baseada na aparência nem é temporária), nem da antecipação de tutela (não tem referibilidade com o direito material que se discute no processo prin­ cipal), pode ser definido como uma medida de ur­ gência fundada no poder de polícia da autoridade judiciária. Como se trata de um poder propenso à defesa da ordem jurídica e, na hipótese, à proteção do direito constitucional de liberdade de ir e vir, que só pode ser coarctado com base em título legítimo, o juiz protege-a de ofício ou a requerimento das par­ tes, na primeira ocasião em que a prisão preventiva aparentar ilegalidade”.212

Reconhecida a ilegalidade da prisão, e deferi­ do o relaxamento da constrição, o agente não fica sujeito ao cumprimento de deveres e obrigações. Permanece o agente livre de quaisquer ônus ou 211. Nessa linha: SAMPAIO JÚNIOR, José Herval; CALDAS NETO, Pedro

restrições de direito. Trata-se de liberdade plena, diferenciando-se, portanto, das hipóteses de liber­ dade provisória com vinculação.213 Todavia, se presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, é perfeitamente possível a imposição de medidas cautelares de natureza pessoal. A propósito, os tribunais têm, reiteradamente, reconhecido a ilegalidade da prisão, com o seu consequente relaxamento, porém submetido o imputado ao cumprimento de certas obriga­ ções, como denota o julgado a seguir transcrito: “A instrução criminal deve ser concluída em pra­ zo razoável, nos exatos termos do art. 5o, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. O excesso de prazo na ultimação do processo-crime enseja o relaxamento da prisão cautelar. Ordem concedida para reconhecer o excesso de prazo e determinar o relaxamento da prisão do paciente, expedindo alvará de soltura clausulado, para que compareça a todos os atos do processo, sob pena de revogação da liberdade” (nosso grifo).214

Ainda em relação ao art. 5o, LXV, da Cons­ tituição Federal, há de se ressaltar que, enquanto alguns dispositivos legais, de duvidosa constitu­ cionalidade, vedam a concessão da liberdade pro­ visória, o relaxamento da prisão é cabível em re­ lação a todo e qualquer delito. Prova disso, aliás, é a súmula n° 697 do STF: “a proibição da liberdade provisória nos processos por crimes hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo”.215* Por fim, enquanto a liberdade provisória com fiança pode ser concedida tanto pela autoridade policial quanto pela autoridade judiciária, o rela­ xamento da prisão só pode ser determinado pela autoridade judiciária, haja vista o teor expresso do art. 5o, inciso LXV, da CF, segundo o qual “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (nosso grifo). Há doutrinadores que entendem que a leitu­ ra a contrario sensu do art. 304 do CPP autoriza a conclusão de que a autoridade policial pode re­ laxar a prisão em flagrante do conduzido. Assim, se das respostas do condutor e das testemunhas não resultar fundada a suspeita contra o conduzi­ do, a autoridade policial não poderá recolhê-lo à 213. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Regimes constitucionais da liberdade provisória. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 85. Para mais detalhes acerca das diferenças entre relaxamento da prisão, liberdade provisória e revogação da prisão cautelar, vide abaixo item e quadro comparativo pertinente ao assunto.

jurisprudência. São Paulo: Editora Método, 2007. p. 319.

214. STJ, 6a Turma, HC 69.382/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 08/10/2007 p. 371.

212. RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte/MG: Editora Dei Rey, 1998. p. 406.

Desembargadora Convocada doTJ/MG, DJ 10/12/2007 p. 404.

Rodrigues. Manual de prisão e soltura sob a ótica constitucional: doutrina e

215. STJ, 5a Turma, Edcl no HC 74.623/SP, Relatora Ministra Jane Silva,

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prisão, devendo determinar sua imediata soltura, sem prejuízo da instauração de inquérito policial ou lavratura de simples boletim de ocorrência. Ter-se-ia aí, para parte da doutrina, a possibilidade de relaxamento da prisão em flagrante pela própria autoridade policial.216 Com a devida vênia, não se cuida propriamente de relaxamento da prisão em flagrante. Isso porque, como ato complexo que é, a prisão em flagrante somente estará aperfeiçoada após a captura, con­ dução coercitiva, lavratura do auto e recolhimento à prisão, sendo inviável falar-se em relaxamento da prisão em flagrante se todas essas fases ainda não foram efetivadas. Ademais, a própria Constituição Federal, ao se referir ao relaxamento da prisão ilegal, deixa claro que somente a autoridade judiciária tem competência para fazê-lo (CF, art. 5, LXV). Enxer­ gamos, pois, no art. 304, § Io, do CPP, não uma hipótese de relaxamento da prisão em flagrante, mas sim situação em que a autoridade competente deixa de ratificar a voz de prisão em flagrante dada pelo condutor por entender que não há fundada suspeita contra o conduzido.

Ainda em relação ao relaxamento da prisão, convém destacar que, além do art. 5o, inciso LXV, da Constituição Federal, o próprio Código de Pro­ cesso Penal, em seu art. 649, autoriza a concessão ex officio do habeas corpus, com fundamento na ilegalidade da coação, constando do art. 648 do CPP rol exemplificativo de hipóteses em que a coação à liberdade de locomoção deve ser consi­ derada ilegal: a) quando não houver justa causa; b) quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; c) quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; d) quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; e) quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei autoriza; f) quando o processo for manifestamente nulo; g) quando extinta a punibilidade. Dentre as causas mais comuns que ensejam o relaxamento da prisão, podemos citar, a título de exemplo: 1) prisão por fato atípico; 2) inobservân­ cia dos requisitos essenciais ao mandado de prisão (CPP, art. 285, parágrafo único); 3) inexistência da situação de flagrância (CPP, art. 302); 4) prisão em flagrante daquele que se apresenta espontanea­ mente à autoridade policial; 5) inobservância das formalidades legais e constitucionais no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante; 6) falta 216. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit. p. 304-305. E ainda: PEREIRA, Maurício Henrique Guimarães. Habeas corpus e polícia judiciária. Tortura, crime militar, habeas corpus. Justiça penal - críticas e sugestões. Vol. 5. Coordenação Jaques de Camargo Penteado. São Paulo: RT, 1997 p. 233-234.

de laudo de constatação da natureza da substância entorpecente (Lei n° 11.343/06, art. 50, § Io); 7) ausência de requerimento da vítima em se tratando de prisão em flagrante por crime de ação penal pri­ vada; 8) ausência de representação do ofendido, no caso de crime de ação penal pública condicionada à representação; 9) não entrega de nota de culpa ao preso no prazo de 24 (vinte e quatro) horas após a prisão; 10) não comunicação imediata da prisão à autoridade judiciária competente; 11) não encaminhamento de cópia do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, quanto o autuado não informa o nome de seu advogado; 12) prisão preventiva desprovida de fundamentação ou em re­ lação a crime que não autoriza sua decretação; 13) excesso de prazo da prisão preventiva; 14) inob­ servância dos pressupostos que autorizam a pri­ são preventiva: prova da materialidade e indícios suficientes de autoria (CPP, art. 312, caput); 15) prisão preventiva decretada em crime não listado no rol do art. 313 do CPP; 16) prisão temporária decretada em relação a crime que não comporte a medida; 17) prisão temporária em curso por prazo superior àquele previsto em lei.

9. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO) 9.1. Conceito Na sistemática adotada pelo Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/19), a audiência de custódia pode ser conceituada como a realização de uma audiência sem demora após a prisão de alguém, independen­ temente da espécie de prisão e da natureza do delito (hediondo ou não), de modo a permitir o contato imediato do custodiado com o juiz das garantias, com um defensor (público, dativo ou constituído) e com o Ministério Público.217

Pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, o diploma normativo que regulamenta­ va a audiência de custódia - Resolução n. 213 do Conselho Nacional de Justiça - dispunha expres­ samente que a apresentação à autoridade judicial deveria ser assegurada não apenas à pessoa presa em flagrante delito (art. Io), mas também àquelas presas 217. Como de costume, a vítima segue ao largo das mudanças produ­ zidas no processo penal. De fato, não consta do art. 310, caput, do CPP,

com redação dada pela Lei n. 13.964/19, qualquer menção à presença da vítima na audiência de custódia. A despeito de sua presença não ser obrigatória, daí não se pode concluir que não possa ser franqueada pelo magistrado. Com efeito, a depender do caso concreto, sua participação pode se revelar de fundamental importância para a decretação de even­ tuais medidas cautelares. A título de exemplo, basta supor hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando a oitiva da vítima de imediato na própria audiência de apresentação pode fornecer ao juiz elementos capazes de subsidiar a adoção de medidas protetivas de ur­ gência, nos termos dos arts. 18 a 24 da Lei n° 11.340/06.

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em decorrência do cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva (art. 13).

Com a nova redação do art. 310, caput, do CPP, fica a impressão, à primeira vista, que o legis­ lador teria deliberado por restringir a sua realização apenas aos casos de anterior prisão em flagrante. A uma porque o art. 310 do CPP, dispositivo legal que passou a cuidar da audiência de custódia com o advento do Pacote Anticrime, está inserido no capítulo que versa sobre a “prisão em flagrante”. A duas porque o caput do art. 310 do CPP, com re­ dação dada pela Lei n. 13.964/19, é categórico ao afirmar que o juiz deverá promover audiência de custódia após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão. Todavia, não se pode perder de vista o quanto disposto na parte final do art. 287 do CPP, também com redação determinada pela Lei n. 13.964/19, segundo o qual se a infração for inafiançável - ou afiançável, segundo a doutrina -,218 a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia. Ou seja, enquanto o art. 310 versa sobre a audiência de cus­ tódia do preso em flagrante, o art. 287 a prevê nos casos de prisão decorrente de mandado referente à infração penal, ou seja, quando se tratar de prisão temporária ou preventiva, já que o referido disposi­ tivo encontra-se inserido no Título do CPP atinen­ te às medidas cautelares pessoais. Logo, pelo menos à luz das recentes mudanças produzidas no CPP pelo Pacote Anticrime, a realização da audiência de custódia estaria restrita às hipóteses de prisão em flagrante, preventiva e temporária, não abrangendo, portanto, a prisão penal decorrente de sentença con­ denatória irrecorrível, eis que esta não tem natureza de medida cautelar. Divergindo desse entendimento, todavia, o Min. Edson Fachin deferiu medida liminar, ad re­ ferendum do Plenário do STF, nos autos de Agravo Regimental na Reclamação n. 29.303/RJ, ajuizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, para de­ terminar que o Tribunal de Justiça daquele Estado na sequência, os efeitos da decisão foram estendidos a outros Estados da Federação (v.g., Ceará, Pernam­ buco) - realize, no prazo de 24 (vinte e quatro) ho­ ras, audiência de custódia em todas as modalidades prisionais, inclusive prisões temporárias, preventivas e definitivas. A reclamação em questão insurgia-se

218. Por força da mudança do art. 299 do CPP pela Lei n. 12.403/11, a doutrina entende que a falta de exibição do mandado também não obsta a prisão no caso de infração afiançável.

contra a Resolução 29/2015, ato normativo edita­ do pelo TJ/RJ, que teria limitado a realização de audiências de custódia tão somente aos casos de prisões em flagrante. Para o Min. Fachin, o Pacote Anticrime também teria estabelecido a obrigato­ riedade de realização da audiência de custódia nas prisões preventivas e temporárias (CPP, art. 287). Para além disso, como as normas internacionais que asseguram a realização da audiência de apresentação não fazem qualquer distinção acerca da modalidade prisional, não haveria razão para se afastar sua obri­ gatoriedade também relação às prisões definitivas.219 Em prática em inúmeros países, dentre eles Peru, Argentina e Chile, a audiência de custódia tem 2 (dois) objetivos precípuos: 1) coibir eventuais excessos como torturas e/ou maus tratos, verifican­ do-se o respeito aos direitos e garantias individuais do preso; 2) conferir ao juiz das garantias, no caso da prisão em flagrante, uma ferramenta mais eficaz para fins de convalidação judicial, é dizer, para ter mais subsídios quanto à medida a ser adotada - re­ laxamento da prisão ilegal, decretação da prisão pre­ ventiva (ou temporária), ou concessão de liberdade provisória, com (ou sem) a imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da pri­ são (CPP, art. 310,1, II e III), sem prejuízo de possí­ vel substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do art. 318 do CPP.220 Indiretamente, sua realização também visa à diminuição da superpopulação carcerária. Afinal, em contraposição à simples leitura de um auto de prisão em flagrante, o contato mais próximo com o preso proporcionado pela realização da audiência de custódia permite elevar o nível de cientificidade da autoridade judiciária, que terá melhores condições para fazer a triagem daqueles flagranteados que efe­ tivamente devem ser mantidos presos.

9.2. Previsão normativa Por anos, o Poder Legislativo quedou-se inerte no sentido de positivar a audiência de custódia no Brasil. Por isso, o Conselho Nacional de Justiça e diversos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais passaram a adotar resoluções e provimen­ tos com o objetivo de implementá-la, porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Convenção Americana sobre Direitos Hu­ manos (Dec. 678/92), dotada de status normativo 219. STF, AgRg na Reclamação n. 29.303/RJ, Decisão monocrática do Min. Edson Fachin, j. 10.12.2020. 220. Para mais detalhes acerca da convalidação judicial da prisão em flagrante (CPP, art. 310, incisos I, II e III), remetemos o leitor ao Capítulo IV

("Da prisão em flagrante"), mais precisamente ao item 11 ("Convalidação judicial da prisão em flagrante").

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supralegal, cujo art. 7o, § 5o, dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autori­ zada pela lei a exercer funções judiciais”. É o caso, por exemplo, do Estado de São Paulo: o Provimento Conjunto n° 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo e da Corregedoria Geral da Jus­ tiça, de 27 de janeiro de 2015, passou a determinar a apresentação da pessoa detida em flagrante delito até 24 (vinte e quatro) horas após a sua prisão para participar de audiência de custódia (art. Io).

Para o Supremo Tribunal Federal, essa regula­ mentação das audiências de custódia por meio de Resoluções e Provimentos dos Tribunais de Justiça (ou dos Tribunais Regionais Federais) não importa­ ria violação aos princípios da legalidade e da reserva de lei federal em matéria processual penal (CF, art. 5o, II, e art. 22,1, respectivamente). Por isso, o Ple­ nário do STF julgou improcedente pedido formu­ lado em Ação Direta ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL) em face do Provimento Conjunto n° 03/2015 do TJ/SP. Para o Supremo, não teria havido, por parte dos referidos provimentos, nenhuma extrapolação daquilo que já constaria da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, § 5o), e do próprio CPP, numa interpretação teleológica de seus dispositivos, como, por exemplo, o art. 656, que dispõe que, recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessá­ rio, e estiver preso o paciente, poderá determinar que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar.221 Com o advento da Lei n. 13.964/19, a controvérsia em questão deixou de existir, visto que, doravante, a audiência de custódia passa a constar expressamente do art. 310 do Código de Processo Penal.

9.3. Presidência da audiência de custódia Como exposto anteriormente, ao tratar da au­ diência de custódia, a Convenção Americana dispõe que a pessoa será conduzida, sem demora, à presen­ ça de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais. Por conta da parte final do art. 7o, §5°, da CADH, causou muita polêmica decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que o ato em questão poderia ser presidi­ do por um Delegado de Polícia, in verbis: “(...) No cenário jurídico brasileiro, embora o Delegado de Polícia não integre o Poder Judiciário, é certo que a Lei atribui a esta autoridade a função de receber e ratificar a ordem de prisão em flagrante. Assim, in

221. STF, Pleno, ADI 5.240/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 20/08/2015.

concreto, os pacientes foram devidamente apresen­ tados ao Delegado, não se havendo falar em relaxa­ mento da prisão. Não bastasse, em 24 horas, o juiz analisa o auto de prisão em flagrante”.222

Com a devida vênia, não se pode afirmar que toda e qualquer autoridade possa presidir a au­ diência de custódia. Somente terá competência para tanto aquela autoridade legalmente autoriza­ da ao exercício de função judicial. É difícil afirmar quem seria essa outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais’, já que os pactos possuem abrangência mundial (ou regional), de­ vendo-se atentar, por isso, à realidade interna de cada nação que os subscrevem. Mas parece certo que, pelo menos na realidade brasileira, não seria o Delegado de Polícia, nem tampouco o órgão do Ministério Público. Longe de se pretender esta­ belecer, com essa premissa, qualquer demérito às funções do Delegado de Polícia e do Promotor de Justiça, mas não são eles dotados de autorização para exercer funções judiciais. A Lei n. 13.964/19 parece colocar uma pá de cal nessa controvérsia. De fato, seja no art. 287, seja no art. 310, am­ bos do CPP, a lei é expressa ao fazer referência à apresentação do preso ao juiz para a realização da audiência de custódia.

Firmada a premissa de que a audiência de custódia só pode ser presidida por uma autori­ dade judiciária, jamais pelo órgão do Ministério Público, nem tampouco pelo Delegado de Polícia, resta saber qual é o juiz competente para tanto. A despeito do silêncio do art. 310, caput, do CPP, acerca da matéria - o dispositivo faz referência apenas ao juiz -, é de rigor a conclusão no sentido de que o magistrado em questão será, doravante, o juiz das garantias.223 Primeiro, porque, dentre suas competências estão, nos exatos termos dos incisos I, II e III do art. 3°-B do CPP, a de receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5° da Constitui­ ção Federal, e a de receber o auto de prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código, e a de zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo, competências estas que evidentemente compreendem a realização da

222. TJSP, 16a Câmara, HC n. 2016152-70.2015.8.26.0000, Rei. Desem­ bargador Guilherme de Souza Nucci,j. 12/05/2015. 223. De se lembrar que, na condição de Relator das ADI's 6.298,6.299, 6.300 e 6.305, o Min. Luiz Fux (j. 22/01/2020) suspendeu a eficácia sine die, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3°-A a 3°-F do CPP).

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audiência de custódia. De mais a mais, se se trata, a audiência de custódia, na sistemática adotada pelo art. 310, caput, do CPP, de espécie de audiên­ cia a ser realizada sem demora após a prisão em flagrante de alguém, espécie de medida pré-cautelar levada a efeito na fase investigatória, logo, antes do recebimento da denúncia, a competência para a sua presidência deverá recair sobre o juiz das garantias, nos exatos termos do art. 3°-C, caput, do CPP, com redação dada pela Lei n. 13.964/19. Logicamente, na eventualidade de a audiência de custódia ser realizada num plantão judiciário, este juiz que tiver presidido o ato não necessariamen­ te atuará como juiz das garantias para ulteriores medidas invasivas decretadas na fase investiga­ tória daquele mesmo feito. De todo modo, tendo sido ele o responsável pela convalidação judicial da prisão em flagrante, decidindo, por exemplo, sobre uma medida cautelar pleiteada pelo órgão ministerial na audiência de apresentação, estará impedido de funcionar no processo, nos termos do art. 3°-D, caput, do CPP, incluído pelo Pacote Anticrime. Ainda em relação ao juiz natural para a rea­ lização da audiência de custódia, especial atenção deve ser dispensada às hipóteses envolvendo pri­ sões decorrentes do cumprimento de mandado (v.g., preventiva, temporária) executadas em localidade diversa daquela onde o magistrado exerce sua com­ petência. Em tais hipóteses, é firme a orientação jurisprudencial no sentido de que a audiência de custódia deverá ser realizada, pelo menos em re­ gra, na localidade em que ocorreu a prisão.224 Se, todavia, o preso já tiver sido transferido para a co­ marca em que foi expedido o mandado de prisão, não se mostra razoável determinar o seu retorno à localidade em que ocorreu a captura tão somente para fins de realização da audiência de apresenta­ ção, notadamente em razão da celeridade que deve ser empregada em casos de análise de legalidade da custódia.225 A título de exemplo, suponha-se que um Juiz Federal da Justiça Militar da União em Porto Alegre decrete a prisão preventiva de alguém, a qual, todavia, vem a ser executada no interior de Minas Gerais (v.g., Montes Claros). Em tal hipótese, consi­ derando-se a evidente impossibilidade de condução do preso - sem demora - ao juiz que determinou a sua prisão, indaga-se: qual seria o juízo competen­ te para presidir a audiência de custódia e deliberar 224. STJ, 3a Seção, CC 168.522/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 11.12.2019, DJe 17.12.2019.

225. STJ, 3a Seção, CC 182.728/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 13.10.2021, DJe 19.10.2021.

sobre a prisão? Aquele que decretou a prisão ou o juiz da localidade onde o mandado foi cumprido? Quanto à controvérsia, reputamos acertada a con­ clusão de Caio Paiva, no sentido de que “o juiz da localidade de onde a pessoa foi presa pode presidir a audiência de custódia, mas deverá proceder com um fatiamento do ato: presidirá a audiência de cus­ tódia, ouvirá a pessoa presa, concederá a palavra às partes para se manifestarem, verificará se houve algum tipo de violência praticada contra a pessoa presa e, ao final, remeterá os autos do processo para o juiz natural (que decretou a prisão), o qual deve­ rá se pronunciar sobre o requerimento das partes. Entendimento diverso resultaria numa violação da garantia do juiz natural, permitindo que um juiz incompetente relaxasse ou revogasse uma prisão decretada pelo juiz competente”.226

9.4. Prazo Sempre houve controvérsia acerca do prazo para a realização da audiência de custódia. O Pacto de São José da Costa Rica não determina a apresen­ tação “imediata” da pessoa presa, mas, sim, que a pessoa presa seja conduzida “sem demora” à pre­ sença de um juiz. Conforme precedentes de Cortes Internacionais de Direitos Humanos, “sem demora” pode ser considerado “poucos dias”, a ser analisado caso a caso, e não 24 horas improrrogáveis, como consta, por exemplo, do provimento conjunto n° 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e da Corregedoria Geral de Justiça.227 Aliás, curiosamente, quiçá por reconhecer a existência de um crônico quadro de fragilidade institucional, o mesmo provimento que prevê a rea­ lização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas dispõe que a implantação da referida audiência no Estado de São Paulo será gradativa e obedecerá ao cronograma de afetação dos distritos policiais aos juízos competentes (art. 2o). No cenário do possível, do exequível, do rea­ lizável, enfim, por reconhecer que o prazo de 24 226. Disponível em: < https://www.instagram.eom/p/ClbAm4sDJtP/> Acesso em 16.12.2020. 227. A fixação do prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da audiência de custódia está diretamente relacionada à tentativa de

se coibir eventuais maus-tratos contra o preso. Em julho de 2014, a Human Rights Watch enviou comunicação às autoridades brasileiras (PRESI/ CNMP n° 523/2014) manifestando suas preocupações em relação à prática recorrente de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante por

policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo do Brasil. Restou constatado que espancamentos, ameaças de agressões físicas e de violência sexual, choques elétricos, sufocamentos com sacos plásticos e violência sexual ocorrem justamente nas primeiras 24 (vinte e quatro) horas da custódia policial, geralmente com o objetivo de extrair informações ou confissões dos presos ou castigá-los por supostos atos criminosos.

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(vinte e quatro) horas não é factível, partilhamos do entendimento no sentido de que a audiência de custódia deveria ser realizada num prazo mais compatível com a realidade brasileira, qual seja, em até 72 (setenta e duas) horas, até mesmo para não transformar ato de tamanha importância numa ver­ dadeira audiência de custódia drive trhu. Trata-se de prazo não tão exíguo que inviabiliza a realização da audiência de custódia, mas não tão elástico de modo a comprometer a sua própria finalidade. De todo modo, para que não haja prejuízo em relação a eventual desaparecimento de vestígios ou mar­ cas de tortura, seria obrigatória a realização, pela autoridade policial, de exame de corpo de delito no prazo de 24 (vinte e quatro) horas da efetivação da prisão em flagrante. A propósito, no dia 20 de novembro de 2014, a Corregedoria do Estado do Maranhão estipulou a audiência de custódia na Capital São Luís, estabelecendo, à época, o prazo de 48 (quarenta e oito) horas, contadas da comu­ nicação da prisão, e não da captura propriamente dita (Provimento n° 21/2014 da CGMA).228

Não obstante, no julgamento de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 347) em que se discute a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro - violação ge­ neralizada de direitos fundamentais dos presos in­ seridos no sistema prisional brasileiro no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades -, em virtude do qual as penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios teriam sido convertidas em penas cruéis e desumanas, o Plenário do Supremo Tribunal deferiu medida cautelar para determinar que juizes e tribunais de todo o País, inclusive no âmbito da Justiça Militar e Eleitoral, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Hu­ manos, realizassem, em até 90 dias, audiências de 228. Para que se tenha uma ideia das dificuldades de realização da audiência de custódia em até24 (vintee quatro) horas após a captura, basta atentar para o fato de que, no 2° trimestre de 2012, houve um total de 8.108 prisões em flagrantes apenas na cidade de São Paulo, o que repre­ senta uma média diária superior a 90 prisões por dia, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Sou da Paz ("O impacto da Lei das Cautelares nas prisões em flagrante na cidade de São Paulo"). Como se percebe, fixado o lapso temporal de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da referida audiência, todas essas pessoas teriam que ser transportadas das mais diversas unidades policiais e carcerárias do município para os fóruns

criminais em um curtíssimo espaço de tempo. Ante a logística necessária para a escolta dos autuados pela polícia às audiências, parece-nos que esse prazo de 24 (vinte e quatro) horas é absolutamente inexequível.

custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão.229 Com a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19 no dia 23 de janeiro de 2020, temos, enfim, um regramento legal acerca da matéria. Consoante disposto no art. 310, caput, do CPP, referido ato deverá ser realizado no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão.

9.5. Procedimento adequado Lavrado o auto de prisão em flagrante pela autoridade policial, o preso será conduzido, sem demora, à presença do juiz. Havendo a necessidade de utilização de algemas, seja por conta do risco de fuga, seja por conta do risco de agressão do preso contra os policiais, contra terceiros ou contra si mesmo, impõe-se a devida fundamentação, nos exatos termos da súmula vinculante n. II.230 Estando o flagranteado acometido de grave en­ fermidade, ou havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apre­ sentado ao juiz, deverá ser assegurada a realização da audiência no local em que ele se encontre e, nos casos em que o deslocamento se mostrar inviável, deverá ser providenciada a condução para a audiên­ cia de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação.

Durante a realização da audiência de custódia, a autoridade judiciária deverá: a) cientificar o preso de seu direito de permanecer em silêncio; b) perguntar ao preso se foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de se con­ sultar com advogado, o de ser visto por médico e o de comunicar-se com seus familiares; c) indagar o preso sobre as circunstâncias de sua prisão e sobre as condições do estabelecimento onde se encontra de­ tido; d) fazer consignar em ata quaisquer protestos, 229. STF, Pleno, ADPF 347 MC/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/09/2015.

Com vigência a partir do dia 10 de fevereiro de 2016, o Conselho Nacional de Justiça aprovou, em data de 15 de dezembro de 2015, a Resolução n° 213, regulamentando a implantação da audiência de custódia em todo o território nacional, fixando o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para

apresentação do preso, salvo por situações excepcionais devidamente justificadas. Consta expressamente do art. Io da referida Resolução que a comunicação da prisão em flagrante à autoridade judicial por meio do encaminhamento do auto de prisão em flagrante não supre a apresenta­ ção pessoal do flagranteado efetivada por meio da audiência de custódia. 230. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que não há nulidade da audiência de custódia por suposta violação à súmula vinculante n. 11, quando devidamente justificada a necessidade do uso de algemas pelo segregado: STJ, 5a Turma, RHC 91.748/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik,

j. 07/06/2018, DJe 20/06/2018; STJ, 5a Turma, HC 433.755/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 27/02/2018, DJe 08/03/2018; STJ, 5a Tur­

ma, HC 387.476/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 27/06/2017, DJe 01/08/2017.

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queixas ou observações relacionadas com os pro­ cedimentos policiais ou administrativos ou com as condições de sua custódia; e) tomar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades; f) comunicar ao Ministério Público possíveis ilegalida­ des; g) abster-se de formular perguntas com finali­ dade de produzir prova para a investigação ou ação penal, sem prejuízo de mandar consignar as decla­ rações que o preso desejar fazer espontaneamente: como se percebe, é vedada a inquirição do preso sobre o mérito da imputação. Portanto, não devem ser admitidas perguntas que antecipem instrução própria de eventual processo de conhecimento. Afi­ nal, em um sistema acusatório que visa preservar a imparcialidade do magistrado, ter-se-ia ressuscitada a figura do juiz inquisidor (e não espectador) se o juiz se aproveitasse da audiência de custódia para assumir iniciativa acusatória incompatível com a sua função de garante das regras do jogo (CPP, art. 3°-A). Para além desses questionamentos, o juiz também deve formular perguntas sobre residência, atividade, e outras necessárias, de modo a ter me­ lhores condições para avaliar a situação econômica do preso para fins de concessão de liberdade pro­ visória com ou sem fiança, cumulada (ou não) com as cautelares diversas da prisão.231

Levando-se em conta que a audiência de custó­ dia geralmente será presidida por um juiz de plan­ tão, eventual decisão por ele proferida nos termos do art. 310 do CPP não terá o condão de acarretar a fixação da competência por prevenção. O art. 83 do CPP, que versa sobre a competência por prevenção, deve ser compreendido em conjunto com o art. 75, parágrafo único, do CPP, ou seja, só se pode cogi­ tar de prevenção da competência quando a decisão, que a determinaria, tenha sido precedida de distri­ buição, por isso que não previnem a competência decisões de juiz de plantão, nem as facultadas, em caso de urgência, a qualquer dos juizes criminais do foro. Portanto, concluída a realização da audiência de custódia, enfim, após o fim do plantão, o feito deve ser objeto de regular distribuição. Em conclusão, convém ressaltar que a audiência de custódia envolve apenas juízo preliminar acerca da legitimidade da prisão, da necessidade de sua manutenção, da possibilidade de seu relaxamento ou de sua substituição por medidas alternativas. Logo, ainda que o magistrado responsável pela re­ ferida audiência venha a reconhecer a atipicidade de 231. Por mais que a oitiva do preso durante a audiência de custódia deva ser registrada em autos apartados, parece-nos perfeitamente pos­ sível a utilização das informações por ele reveladas a título de prova, nos

termos do art. 155, caput, do CPP. 884

determinada conduta para fins de determinar o re­ laxamento da prisão em flagrante, essa decisão não pode ser equiparada a uma decisão de mérito para efeito de coisa julgada. A propósito, em importante precedente do STF, referente a caso concreto em que 18 pessoas foram presas em flagrante com base nos crimes de associação criminosa (CP, art. 288) e corrupção de menores (Lei n. 8.069/90, art. 244B), tendo o magistrado de plantão deliberado pelo relaxamento da prisão em virtude da atipicidade da conduta, a Ia Turma concluiu que tal magistrado não teria competência para determinar o arqui­ vamento dos autos, porquanto sua atuação estaria limitada à regularidade da prisão, logo, incapaz de produzir coisa julgada.232

9.6. (Im) possibilidade de utilização da videoconferência Como o objetivo precípuo da audiência de cus­ tódia é coibir eventuais excessos como maus-tratos e/ou torturas, verificando-se o respeito aos direitos e garantias individuais do preso, sempre houve con­ trovérsias acerca da possibilidade de realização do ato por meio de videoconferência. Para muitos, foge à ratio essendi do instituto a sua realização por meio de videoconferência. A propósito, ao deferir a medi­ da liminar para suspender a Resolução n. 09/2019, que, à época, permitia a realização da audiência de custódia por meio de videoconferência, o Presidente do Conselho Nacional de Justiça destacou que “o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) considerou que a apresentação pessoal do preso é fundamental para inibir e, sobretudo, coibir, as indesejadas práticas de tortura e maus tratos, pois que a transmissão de som e imagem não tem condições de remediar as vantagens que o contato e a relação direta entre juiz e jurisdicionado proporciona”.

Na mesma linha, em importante decisão pro­ ferida no CC 168.522,233 a 3a Seção do STJ concluiu que não se admite, por ausência de previsão legal, a realização da audiência de custódia por meio de videoconferência, ainda que pelo juízo que decretou a custódia cautelar. Concluiu, ademais, que, no caso de mandado de prisão preventiva cumprido fora do âmbito territorial da jurisdição do juízo que a determinou, a referida audiência deve ser efetivada por meio da condução do preso à autoridade ju­ dicial competente na localidade em que ocorreu a 232. STF, 1’Turma, HC 157.306/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 25/09/2018. 233. STJ, 3a Seção, CC 168.522/PR, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 11.12.2019, DJe 17.12.2019.

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prisão. Importante ressaltar, todavia, que o julgado em questão diz respeito à audiência de custódia rea­ lizada sob a égide do regramento normativo anterior ao Pacote Anticrime: no caso concreto, o mandado de prisão preventiva foi cumprido no dia 18 de se­ tembro de 2019, valendo lembrar que o Pacote Anti­ crime entrou em vigor no dia 23 de janeiro de 2020. Eis que surge, então, a Lei n. 13.964/19. Quando aprovado pelo Congresso Nacional, o art. 3°-B, §1°, do então Projeto de Lei n. 6.341/19 (n. 10.372/18 na Câmara dos Deputados, tinha a seguinte redação: “O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o em­ prego de videoconferência" (nosso grifo). Ocorre que o dispositivo em questão acabou sendo vetado, nos seguintes termos: “A propositura legislativa, ao su­ primir a possibilidade da realização da audiência por videoconferência, gera insegurança jurídica ao ser incongruente com outros dispositivos do mes­ mo código, a exemplo do art. 185 e 222 do Código de Processo Penal, os quais permitem a adoção do sistema de videoconferência em atos processuais de procedimentos e ações penais, além de dificultar a celeridade dos atos processuais e do regular funcio­ namento da justiça, em ofensa à garantia da razoável duração do processo, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (RHC 77.580/RN, 5a Turma, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 10/02/2017). Ademais, o dispositivo pode acarretar aumento de despesa, notadamente nos casos de juiz em vara única, com apenas um magistrado, seja pela necessidade de pagamento de diárias e passagens a outros magistrados para a realização de uma única audiência, seja pela necessidade premente de rea­ lização de concurso para a contratação de novos magistrados, violando a regra do art. 113 do ADCT, bem como dos arts. 16 e 17 LRF e ainda do art. 114 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2019 (Lei n. 13.707, de 2018)”. Levando-se em consideração o veto ao §1° do art. 3o-B do CPP, parte da doutrina passou a admi­ tir, então, exclusivamente em situações excepcionais, a realização da audiência de custódia por video­ conferência, desde que presente uma das hipóteses listadas nos diversos incisos do §2° do art. 185 do CPP, e conquanto fosse possível constatar a plena observância dos direitos fundamentais do preso. Nesse caso, o preso e a autoridade judiciária deverão estar, preferencial e simultaneamente, em estabele­ cimentos sob administração do Poder Judiciário,

assegurando-se a presença, na localidade onde se encontrar o preso, de defensor constituído, público ou dativo, à semelhança do que ocorre no interro­ gatório judicial por videoconferência (CPP, art. 185, §5°). Prova disso, aliás, é o teor do Enunciado n. 32 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM): “Em razão do veto presidencial ao §1° do art. 3°-B (que proibia a realização do ato por videoconferência), nos casos em que se faça inviável a realização pre­ sencial do ato (devidamente fundamentada) facul­ ta-se o uso de meios tecnológicos”. Ora, se o próprio Conselho Nacional de Justiça recomendou aos Tribunais e magistrados, em cará­ ter excepcional e exclusivamente durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os ris­ cos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerar a pandemia de Covid-19 como motivação idônea para a não realização de audiências de custódia, na forma prevista pelo art. 310, §§3° e 4o, do CPP (Recomen­ dação n. 62, de 17 de março de 2020, art. 8o, caput), por que não se admitir a sua realização por meio de videoconferência? Afinal, entre as duas opções em questão - não realização da audiência de custódia e realização por meios telemáticos - parece extreme de dúvida que a segunda opção é aquela que mais atende aos preceitos constitucionais e convencionais atinentes à matéria.

Nesse sentido, como se pronunciou a 2a Turma do STF no julgamento do HC 186.421/SC, “(...) a pandemia causada pelo novo coronavírus não afas­ ta a imprescindibilidade da audiência de custódia, que deve ser realizada, caso necessário, por meio de videoconferência, diante da ausência de lei em sentido formal que proíba o uso dessa tecnologia. A audiência por videoconferência, sob a presidên­ cia do Juiz, com a participação do autuado, de seu defensor constituído ou de Defensor Público, e de membro do Ministério Público, permite equacio­ nar as medidas sanitárias de restrição decorrentes do contexto pandêmico com o direito subjetivo do preso de participar de ato processual vocacionado a controlar a legalidade da prisão”.234 Sensível à questão, e notadamente diante do agravamento da pandemia do novo Coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 329, de 30 de julho de 2020, cujo art. 19, com reda­ ção dada pela Resolução n. 357, de 26 de novembro 234. STF, 2a Turma, HC 186.421/SC, Rei. Min. Edson Fachin.j. 20.10.2020.

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de 2020, dispõe o seguinte: “Art. 19. Admite-se a realização por videoconferência das audiências de custódia previstas nos artigos 287 e 310, ambos do CPP, e na Resolução CNJ 213/2015, quando não for possível a realização, em 24 horas, de forma presen­ cial. §1° Será garantido o direito de entrevista prévia e reservada entre o preso e advogado ou defensor, tanto presencialmente quanto por videoconferência, telefone ou qualquer outro meio de comunicação. §2° Para prevenir qualquer tipo de abuso ou cons­ trangimento ilegal, deverão ser tomadas as seguintes cautelas: I - deverá ser assegurada privacidade ao preso na sala em que se realizar a videoconferência, devendo permanecer sozinho durante a realização de sua oitiva, observada a regra do §1° e ressalvada a possibilidade de presença física de seu advogado ou defensor no ambiente; II - a condição exigida no inciso I poderá ser certificada pelo próprio Juiz, Ministério Público e Defesa, por meio do uso con­ comitante de mais de uma câmera no ambiente ou de câmeras 360 graus, de modo a permitir a visua­ lização integral do espaço durante a realização do ato; III - deverá haver também uma câmera externa a monitorar a entrada do preso na sala e a porta desta; e IV - o exame de corpo de delito, a atestar a integridade física do preso, deverá ser realizado antes do ato”. Quando a realização da audiência de custódia por videoconferência já havia se tornado uma rotina ao longo da pandemia, o Congresso Nacional deli­ berou, então, por derrubar os vetos do Presidente da República ao Pacote Anticrime, ressuscitando o art. 3°-B, §1°, do CPP, que, como visto anteriormente, é categórico ao vedar a realização desse ato processual com o emprego da videoconferência. Naturalmente, era de se concluir que toda a sistematização infralegal da realização da audiência de apresentação por via remota, como, por exemplo, o art. 19 da Reso­ lução n. 329 do Conselho Nacional de Justiça, teria perdido seu fundamento de validade. Afinal, um ato regulamentar jamais poderá entrar em rota de colisão com um dispositivo legal validamente apro­ vado pelo Congresso Nacional. É dizer, o art. 3°-B, §1°, do CPP, deveria prevalecer em detrimento de dispositivos regulamentares em sentido contrário.

Há, porém, um detalhe absolutamente inusi­ tado, que merece especial atenção. Conquanto a audiência de custódia tenha sido disciplinada pelo Pacote Anticrime no art. 310 do CPP, a ela tam­ bém se referindo o art. 287 do CPP, não consta, de tais dispositivos, qualquer vedação ao emprego da videoconferência. Na verdade, tal vedação foi inserida pelo legislador ordinário no bojo do art. 3°-B do CPP, que versa sobre o Juiz das Garantias.

E é exatamente aí que reside o problema. No cur­ so da exígua vacatio legis da Lei n. 13.964/19, que durou apenas 30 dias, o Min. Luiz Fux, na condi­ ção de Relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020), todas ajuizadas em face da Lei n. 13.964/19, suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das ga­ rantias e de seus consectários (CPP, arts. 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E e 3°-F), dentre outros dispositivos. Como se pode notar, por mais que, à época da refe­ rida decisão do Min. Fux, ainda não tivesse havido a derrubada do veto do Presidente da República ao §1° do art. 3°-B do CPP pelo Congresso Nacional, fato é que sua Excelência derrubou a suspensão da eficácia da integralidade dos dispositivos compreen­ didos entre os arts. 3°-A e 3°-F do CPP, dentre os quais se encontra, atualmente, aquele que veda o emprego da videoconferência durante a realização da audiência de custódia. Logo, bem ou mal, pelo menos enquanto a matéria não for levada à aprecia­ ção do Plénario do Supremo Tribunal Federal, há de se admitir, excepcionalmente, o emprego da via remota para a realização da audiência de apresenta­ ção, tal qual disciplinado pela Resolução n. 329 do Conselho Nacional de Justiça.

9.7. (Im) possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária) de ofício pelo juiz Desde o advento da Lei n. 12.403/11, quando o CPP passou a vedar expressamente a decretação de medidas cautelares de ofício pelo juiz durante a fase investigatória - redação originária do arts. 282, §2° e 311 -, a doutrina já questionava a possibilidade de a conversão do flagrante em preventiva (CPP, art. 310, II) ocorrer sem que o magistrado tivesse sido provocado nesse sentido.

O auto de prisão em flagrante é procedimento de natureza administrativa, em que a autoridade policial limita-se a observar as formalidades legais para a sua lavratura (arts. 304 e seguintes do CPP), sem tecer consideração sobre a necessidade e a ade­ quação da prisão preventiva, espécie com pressu­ postos e requisitos distintos (art. 311 e seguintes do CPP). Faz-se necessário, portanto, pedido formal e expresso da autoridade policial (ou do Ministério Público), em audiência de custódia, para a imposi­ ção da prisão preventiva pelo magistrado. Destoa, de fato, das funções do magistrado exercer qualquer atividade de ofício na fase investigatória que possa caracterizar uma colaboração à acusação. O que se reserva ao magistrado, na fase investigatória, é atuar somente quando for provocado, tutelando liberda­ des fundamentais como a inviolabilidade domiciliar,

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a vida privada e a intimidade, assim como a liber­ dade de locomoção.

Portanto, a doutrina sempre entendeu que o art. 310, inciso II, do CPP, deveria ser interpretado sistematicamente com o art. 306, caput, do CPP, que inseriu no CPP a comunicação da prisão em flagran­ te ao Ministério Público, e com o arts. 282, § 2o, e 311, que já previam que, na fase investigatória, ao juiz só seria dado decretar uma medida cautelar se fosse provocado nesse sentido. Enfim, a conclusão a que se chega é a de que o Ministério Público (ou a autoridade policial) deveria se apresentar em juízo para reivindicar a decretação da prisão preventiva (ou temporária), caso entendesse necessária a ma­ nutenção da privação da liberdade do acusado, ou, ainda, no sentido da imposição de medida cautelar diversa da prisão.235 Em sentido diverso, porém, a jurisprudência insistia em reconhecer a legalidade da conversão da prisão em flagrante em preventiva de ofício pelo juiz, mesmo sem prévia provocação da autoridade policial ou do Ministério Público.236 Com a vigência da Lei n. 13.964/19, pensamos que é hora dos Tribunais Superiores revisarem sua jurisprudência quanto à matéria. Ainda que se quei­ ra objetar que, nesse ponto, não houve nenhuma novidade legislativa - a decretação de cautelares ex officio na fase investigatória já era vedada desde a entrada em vigor da Lei n. 12.403/11 - toda a sis­ temática introduzida no CPP pela Lei n. 13.964/19 visa retirar do magistrado, seja ele o juiz das ga­ rantias, seja ele o juiz da instrução e julgamento, qualquer iniciativa capaz de colocar em dúvida sua imparcialidade. Logo, se ao magistrado não se defere a possibilidade de decretar uma prisão preventiva (ou temporária) de ofício na fase investigatória, não há lógica nenhuma em continuar a se admitir esta iniciativa para fins de conversão (CPP, art. 310, II). Afinal, ontologicamente, não há absolutamente 235. Nessa linha, em momento anterior à vigência do Pacote Anticri­

me, Og Fernandes observava que, embora a lei não preveja, nessa etapa, a vista dos autos pelo Ministério Público, a providência parece decorrer da própria natureza das medidas cautelares e em face das atribuições do Parquet no sistema acusatório. Não custa lembrar que o órgão ministerial deverá ter recebido a comunicação da prisão em flagrante, conforme dispõe o caput do art. 306, o que permitirá requerer ao juiz as medidas que entender adequadas, independentemente de vista promovida pelo julgador. (Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alter­ nativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 89).

236. STJ, 5a Turma, HC 280.980/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 18/02/2014, DJe 07/03/2014; STJ, 5a Turma, HC 281.756/PA, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 15/05/2014, Dje 22/05/2014. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 474.322/MG, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 12/02/2019, DJe 19/02/2019; STJ, 5a Turma, RHC 105.955/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 05/02/2019, DJe 13/02/2019; STJ, 6a Turma, RHC 102.770/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 06/12/2018, DJe 01/02/2019; STJ, 6a Turma, RHC 102.326/MG, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 13/11/2018, DJe 04/12/2018.

nenhuma diferença entre a preventiva resultante da conversão de anterior prisão em flagrante e a pre­ ventiva decretada em relação àquele indivíduo que estava em liberdade. Representando uma possível mudança de orientação jurisprudencial quanto à matéria, a 2a Turma do STF já tem alguns precedentes no sentido de que é legítima a conversão da prisão em flagrante em preventiva no contexto da audiência de custódia somente se e quando houver pedido expresso e inequí­ voco por parte do Ministério Público, da autoridade policial ou, se for o caso, do querelante ou do assis­ tente do Parquet. Na dicção do referido colegiado, a reforma introduzida pela Lei 13.964/2019 modificou a disciplina referente às medidas de índole cautelar. Ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, §§ 2o e 4o, e do art. 311 do CPP, a lei vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem prévio requerimento. Assim, não é possível a decretação ex officio de prisão preventiva em qual­ quer situação (em juízo ou no curso de investigação penal), inclusive no contexto de audiência de cus­ tódia. Mostra-se inconcebível que se infira do auto de prisão em flagrante, ato de natureza meramente descritiva, a existência de representação tácita ou implícita da autoridade policial a fim de convertê-la em prisão preventiva. Por isso, em caso concreto em que o magistrado de Ia instância deixou de realizar a audiência de custódia por conta da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), convertendo de ofí­ cio, porém, as prisões em flagrante em preventivas, a 2a Turma do STF concedeu a ordem em habeas corpus para invalidar, por ilegal, a conversão ex of­ ficio levada a efeito pelo magistrado.237

Pelo menos até o ano de 2020, era firme o en­ tendimento de ambas as Turmas Criminais do STJ no sentido de que, mesmo após o advento do Pacote Anticrime, o art. 310, II, do CPP continuava a auto­ rizar a conversão, de ofício, pelo Juízo processante, da prisão em flagrante em preventiva. Embora a Lei n. 13.964/2019 tenha retirado a possibilidade de de­ cretação da prisão preventiva, de ofício, do art. 311 do CPP, trata-se, a conversão da prisão em flagrante, de hipótese distinta e amparada pela regra específica do art. 310, II, do CPP, o qual autoriza a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva pelo 237. STF, 2a Turma, HC 188.888/MG, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06.10.2020. No sentido de que o art. 310 do CPP deve ser interpretado à luz do sistema acusatório e, em conjunto, com os demais dispositivos legais que regem a aplicação das medidas cautelares penais (CPP, arts.

282, §§ 2o e 4o, 311 e seguintes do CPP), do que decorre a ilicitude da conversão, de ofício, da prisão em flagrante em prisão preventiva pela autoridade judicial: STF, 2aTurma, HC 186.421/SC, Rei. Min. Edson Fachin, j. 20.10.2020.

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Juízo processante, desde que presentes os requisitos dos arts. 312e313do CPP. Quando o juiz converte, por força de comando legal, a prisão em flagrante em alguma(s) medida(s) cautelar(es) de natureza pessoal, inclusive a prisão preventiva, o autuado já foi preso em flagrante delito e é trazido à presença da autoridade judiciária competente, após a lavratura de um auto de prisão em flagrante, como de­ termina a lei processual penal, para o controle da legalidade e da necessidade da prisão, bem como da observância dos direitos do preso, especialmente o de não sofrer coação ou força abusiva pelos agentes estatais responsáveis por sua prisão e guarda. Não há, em tal situação, uma atividade propriamente ofi­ ciosa do juiz, porque, a rigor, não apenas a lei obriga o ato judicial, mas também, de um certo modo, há o encaminhamento, pela autoridade policial, do auto de prisão em flagrante para sua acurada análise, na expectativa, derivada do dispositivo legal (art. 310 do CPP), de que o juiz, após ouvir o autuado, adote uma das providências ali previstas, inclusive a de manter o flagranteado preso, já agora sob o título da prisão preventiva.238 Em fevereiro de 2021, todavia, por ocasião do julgamento do RHC 131.263/GO,239 a 3a Seção do STJ concluiu que, após o advento da Lei n. 13.964/19, não é mais possível a conversão ex officio da prisão em flagrante em preventiva, mesmo se decorrente de prisão em flagrante e mesmo se não tiver ocorrido audiência de custódia. Concluiu-se, enfim, que a prisão preventiva não é uma consequência natural da prisão em flagrante. Trata-se, na verdade, de uma situação nova, que deve respeitar o disposto nos arts. 282, §2°, 311 e 312, todos do CPP. Isoladamente considerado, o art. 310, II, do CPP não autoriza a conversão de ofício, já que tal dispositivo deve ser obrigatoriamente interpretado em conjunto com os demais que cuidam da prisão preventiva. Logo, para fins de conversão da prisão em flagrante em preven­ tiva, para além da presença dos pressupostos do art. 312 e da ausência de possibilidade de substituição por cautelares diversas, deve haver pedido expresso por parte do Ministério Público, da autoridade po­ licial, do assistente ou do querelante. Noutro giro, 238. STJ, 6a Turma, HC 583.995/MG, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 15.09.2020, DJe 07.10.2020; STJ, 5a Turma, AgRg no HC 611.940/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 22.09.2020, DJe 28.09.2020; STJ, 6a Turma, HC 612.009/MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 20.10.2020, DJe 28.10.2020; STJ, 5a Turma, HC 581.811/MG, Rel. Min. Joel llan Paciornik, j.

04.08.2020, DJe 10.08.2020; STJ, 5a Turma, HC 539.645/RJ, Rel. Min. Joel llan Paciornik, j. 18.08.2020, DJe 24.08.2020; STJ, 6a Turma, HC 605.305/

a não realização da audiência de custódia - qual­ quer que tenha sido a razão para que isso ocorresse ou eventual ausência do órgão ministerial quando de sua realização - não autoriza a prisão, de ofício, considerando que o pedido para tanto pode ser for­ mulado independentemente de sua ocorrência. Sem embargo dessa mudança de orientação pela Seção Criminal do STJ, a 5a Turma ainda tem precedente posterior no sentido de que ulterior requerimento da autoridade policial pela segregação cautelar ou manifestação do Ministério Público favorável à pri­ são preventiva suprem o vício da inobservância da formalidade de prévio requerimento.240

9.8. (Im) possibilidade de conversão da audiên­ cia de custódia em audiência una de instrução e julgamento Brasil afora, tem se tornado relativamente co­ mum a notícia de que audiências de custódia decor­ rentes de prisões em flagrante estariam sendo con­ vertidas em audiências de instrução e julgamento, proporcionando, invariavelmente, a condenação do custodiado em tempo recorde, o que, em tese, su­ postamente viria ao encontro da garantia da razoá­ vel duração do processo. Ilustra bem esse raciocínio o Enunciado n. 29 do Fórum Nacional de Juizes Cri­ minais (Fonajuc): “A audiência de custódia poderá concentrar os atos de oferecimento e recebimento da denúncia, citação, resposta à acusação, suspensão condicional do processo e instrução e julgamento”.

Com a devida vênia, essa prática de se conferir hiperceleridade ao processo penal, transformando-o em fast-food condenatório, ou, na voz do saudoso Tim Maia, em um verdadeiro “Vale Tudo”, revela-se indevida pelos seguintes motivos: a) primeiro, porque há uma subversão da própria finalidade da audiência de custódia, que jamais foi concebida para imprimir maior celeridade ao procedimento comum; b) segundo, porque a Convenção Ameri­ cana sobre Direitos Humanos (art. 8o, §2°, “c”) asse­ gura a “concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa”, direito este que é evidentemente ignorado quando alguém se vê julgado em até 24 (vinte e quatro) horas após sua prisão em flagrante; c) terceiro, porque o di­ reito a um julgamento no prazo razoável não pode ser entendido como o direito a um processo que busque a celeridade processual a qualquer custo. Como observam Aury Lopes Jr. e Gustavo Henri­ que Badaró, “para se respeitar o direito ao processo no prazo razoável, a busca de celeridade não pode

MG, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j. 06.10.2020, DJe 27.10.2020.

239. STJ, 3a Seção, RHC 131.263/GO, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 24.02.2021. Com entendimento semelhante: STJ, 5a Turma, HC 590.039/ GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 20.10.2020, DJe 29.10.2020.

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240. STJ, 5a Turma, AgRg no RHC 136.708/MS, Rel. Min. Felix Fischer, j. 11.03.2021.

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violar outras garantias processuais como a ampla defesa e o direito de a defesa possuir o tempo ne­ cessário para seu exercício adequado”;241 d) quarto, porque não se pode admitir a utilização subsidiá­ ria do Código de Processo Civil, notadamente dos dispositivos que versam sobre o julgamento anteci­ pado do mérito (arts. 355 e 356), se há, no âmbito do Código de Processo Penal, disposição legal em sentido expresso e contrário, como, por exemplo, o art. 396, que prevê que o acusado terá 10 (dez) dias para apresentar sua resposta à acusação; e) quinto, porque, a depender do caso concreto, é possível que a conversão em questão viole o princípio do juiz natural, quando, por exemplo, o julgamento for feito por um juiz do plantão - geralmente competente para a realização das audiências de custódia -, o que acarretaria usurpação da competência do juiz da vara criminal competente para o processo e jul­ gamento daquele feito.

Ao positivar a audiência de custódia no art. 310 do CPP, a Lei n. 13.964/19 perdeu uma boa oportunidade de tratar da matéria, pelo menos ex­ pressamente. Dissemos expressamente porque, sem embargo do silêncio do art. 310 do CPP acerca da possibilidade (ou não) de conversão da audiência de custódia em audiência una de instrução e julga­ mento, o fato de o Pacote Anticrime ter introduzido a figura do juiz das garantias entre os arts. 3°-B a 3°-F do CPP242 terá o condão de abolir essa prática nefasta. Com efeito, levando-se em consideração que a audiência de custódia deve ser presidida pelo juiz das garantias, e que o ato de receber o auto de prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310, está elencado no inciso III do art. 3°-B, também do CPP, dentre os atos por ele praticados na fase de investi­ gação capazes de acarretar seu impedimento para funcionar no processo (CPP, art. 3°-D, caput), pare­ ce inevitável a conclusão de que tal magistrado não poderá proceder ao imediato julgamento do feito por ocasião da realização da audiência de custódia, sob pena de manifesta inexistência da decisão por ele proferida. 241. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora

Lumen Juris: 2006. p. 44.

9.9. Liberdade provisória sem fiança nas hipó­ teses de descriminantes De modo a evitarmos repetições desnecessá­ rias, remetemos o leitor ao Capítulo X (“Da liberda­ de provisória”), onde o tema será objeto de análise no item 4.2. (“Liberdade provisória sem fiança nas hipóteses de descriminantes”).

9.10. Liberdade provisória proibida (CPP, art. 310, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19) Consoante disposto no art. 310, §2°, do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, “se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organiza­ ção criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares”. O no­ vel dispositivo será objeto de análise no Capítulo X (“Da liberdade provisória”), mais precisamente no item 7 (“Liberdade provisória proibida”), para onde remetemos o leitor.

9.11. Consequências decorrentes da não reali­ zação da audiência de custódia Em conclusão, resta saber quais são as conse­ quências decorrentes da não realização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão. Será que estamos diante de um prazo próprio, cujo descumprimento implica o reconhecimento da ilegalidade da prisão, autorizando, por consequência, o relaxamento da prisão (nossa posição)?243 Ou será que, valendo-se da premissa de que a contagem para o excesso de prazo na formação da culpa é global, e não individualizado, eventual excesso na apresenta­ ção do preso para fins de realização da audiência de custódia pode ser compensando durante o curso do processo judicial, transformando-se, assim, o refe­ rido prazo, em mais um prazo impróprio constante do CPP, funcionando como mero balizador para os operadores do Direito, mas cuja inobservância não gera qualquer sanção? Mesmo antes do advento do Pacote Anticrime já era firme a jurisprudência do STJ no sentido de que, uma vez realizada a conversão da prisão em flagrante em preventiva, ficaria superada a alega­ ção de nulidade porventura existente em relação à ausência de audiência de custódia.244* 243 No sentido de que a ausência da realização da audiência de cus­ tódia qualifica-se como causa geradora da ilegalidade da própria prisão em flagrante, com o consequente relaxamento da privação cautelar da

6.300 e 6.305, o Min. Luiz Fux (j. 22/01/2020) suspendeu a eficácia sine

liberdade: STF, Segunda Turma, HC 188.888/MG, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06.10.2020.

die, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3°-A a 3°-F do CPP).

06/12/2018, DJe 12/12/2018; STJ, 6a Turma, HC 474.093/SP, Rei. Min. Nefi

242. De se lembrar que, na condição de Relator das ADI's 6.298,6.299,

244. STJ, 5a Turma, RHC 103.333/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j.

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Com a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, o art. 310, §4°, do CPP, passou a dispor: “Trans­ corridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem pre­ juízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva”. Considerando-se, pois, que o prazo para a re­ messa do auto de prisão em flagrante delito é de 24 (vinte e quatro) horas após a realização da captura do agente - art. 310, caput, do CPP -, a ilegalidade capaz de dar ensejo ao relaxamento dessa prisão estará caracterizada quando transcorridas, então, mais 24 (vinte e quatro) horas desse prazo, logo, 48 (quarenta e oito) horas depois da prisão, desde que não haja motivação idônea justificando a não reali­ zação da audiência de custódia nesse interregno.245 De se notar que o dispositivo é claro ao afirmar que a ilegalidade da prisão só deverá ser reconheci­ da se houver o decurso do prazo acima mencionado e desde que não haja motivação idônea justifican­ do a não realização da audiência de apresentação. A título de exemplo atual e recente de motivação idônea capaz de justificar a não realização do ato podemos citar a propagação da infecção pelo novo coronavírus. Prova disso, aliás, é o teor do art. 8o da Recomendação n. 62/2020 do CNJ, que sugeriu aos Tribunais e aos magistrados, em caráter excepcio­ nal e exclusivamente durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerar a pandemia de Covid-19 como motivação idônea, na forma prevista pelo art. 310, §§3° e 4o, do CPP, para a não realização de audiências de custódia. Cordeiro, j. 04/12/2018, DJe 04/02/2019; STJ, 6a Turma, RHC 98.748/RS,

Rei. Min. Laurita Vaz, j. 04/12/2018, DJe 19/12/2018; STJ, 5a Turma, HC 423.564/SC, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 13/11/2018, DJe 28/11/2018; STJ, 5a Turma, RHC 85.101/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/08/2017, DJe 21/08/2017. 245. É nesse sentido, aliás, o Enunciado n. 30 do Conselho Nacional

de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Crimi­ nal (GNCCRIM):"A comunicação da prisão deverá ocorrer em até 24 horas da sua realização. Transcorridas 24 horas desse prazo de comunicação, sem a realização da audiência de custódia, sem motivação idônea, a pri­ são deverá ser relaxada, o que não obstará a decretação da preventiva". Com a devida vênia ao CNPG e ao GNCCRIM, o enunciado em questão não foi muito técnico no que diz respeito à utilização do termo "comu­ nicação". A uma porque a comunicação da prisão de qualquer pessoa ao juiz competente deve ser imediata (CPP, art. 306, caput). A duas porque, à luz do art. 310, caput, do CPP, é a remessa do auto de prisão em flagrante delito que deve ocorrer no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão.

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Considerando que a audiência de custódia tem finalidades sistêmicas totalmente distintas daquelas desempenhadas pela audiência de instrução e julga­ mento, a superveniência desta não torna superada eventual vício decorrente da não realização da au­ diência de apresentação. Ainda que eventualmente questões sobre a prisão ou eventuais abusos possam ser levantados pelas partes na audiência de instru­ ção, deve-se perceber que tais questionamentos se­ riam objeto de análise incidental, e não o tema cen­ tral da audiência a ser submetido ao contraditório. Além disso, aceitar a superação da necessidade de realização da audiência de custódia pelo transcurso do prazo e a ocorrência da audiência de instrução findaria por transmitir uma mensagem distorcida aos operadores do sistema criminal, no sentido da desnecessidade da medida.246 A parte final do art. 310, §4°, do CPP, deixa entrever que o relaxamento da prisão em flagrante ilegal não impede a decretação da prisão preventiva e/ou temporária, nem tampouco a decretação das medidas cautelares diversas da prisão, desde que presente seus requisitos legais. Não se pode con­ fundir o juízo de legalidade da prisão em flagrante com o juízo de necessidade das medidas cautelares. O que não se pode admitir, todavia, é o relaxamento da prisão em flagrante em virtude da não realização da audiência de custódia sem motivação idônea, e a subsequente e automática decretação de eventual prisão preventiva. Esta modalidade de prisão caute­ lar somente se afigura possível quando presentes o fumus comissi delicti, consubstanciado na prova da materialidade e indícios de autoria, e o periculum libertatis - garantia da ordem pública, da ordem econômica, da aplicação da lei penal e conveniên­ cia da instrução criminal -, e desde que se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão listadas no art. 319 do CPP.247

Não obstante a importância do novel dispositi­ vo para conferir à audiência de custódia certo grau de coercibilidade, convém ressaltar que, em sede de apreciação de cautelar nos autos da ADI n. 6.305 (j. 22/01/2020), o Min. Luiz Fux concedeu a medida requerida para suspender sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da liberalização da prisão 246. STF, 2a Turma, HC 202.579 AgR/ES, Rei. Min. Gilmar Mendes, j.

26.10.2021; STF, 2a Turma, HC 202.700 AgR/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 26.10.2021. 247. Nessa linha, eis o teor do Enunciado n. 33 do Conselho Nacional

de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União

(CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Cri­ minal (GNCCRIM): "Não obstante o relaxamento da prisão em flagrante por transcurso do prazo prevista no §4° do art. 310, pode a autoridade judicial, no mesmo ato, decretar a prisão preventiva se preenchidos os requisitos legais, sanando-se qualquer irregularidade".

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

pela não realização da audiência de custódia no prazo de 24 (vinte e quatro) horas (CPP, art. 310, §4°, incluído pela Lei n. 13.964/19). Nas palavras do Ministro, “(...) não se desconsidera a importância do instituto da audiência de custódia para o sistema acusatório penal. No entanto, o dispositivo impug­ nado fixa consequência jurídica desarrazoada para a não realização da audiência de custódia, consistente na ilegalidade da prisão. Esse ponto desconsidera dificuldades práticas locais de várias regiões do país, especialmente na região Norte, bem como dificul­ dades logísticas decorrentes de operações policiais de considerável porte, que muitas vezes incluem grande número de cidadãos residentes em diferen­ tes estados do país. A categoria aberta motivação idônea’, que excepciona a ilegalidade da prisão, é demasiadamente abstrata e não fornece baliza interpretativa segura aos magistrados para a aplicação do dispositivo”. Curiosamente, por ocasião do julgamento da ADI n. 5.240 (STF, Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 20/08/2015, Dje 18 29/01/2016), ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil em face do Provimento Conjunto n. 03/15 (TJ/SP), que disciplinou as audiências de custódia no âmbito da­ quele Tribunal, o mesmo Ministro Fux sustentou a imprescindibilidade da realização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão, admitindo o alargamento desse prazo tão so­ mente diante de motivação idônea (v.g., Municípios que não sejam sede de comarca ou cujo acesso seja excepcionalmente difícil, auto de prisão em flagran­ te envolvendo várias presos ou várias testemunhas, ou necessidade de atendimento médico urgente ao preso, com eventual internação).

Ainda em relação ao §4° do art. 310 do CPP, é de todo relevante destacar que a 6a Turma do STJ248 tem precedentes no sentido de que, ainda não seja o modelo ideal - neste, a cautelar deveria ser decidida em sede de audiência de custódia, com a presen­ ça do Ministério Público e da defesa do autuado -, eventual não realização, por motivo justificado, dessa audiência no prazo legal não desautoriza a excepcional conversão da prisão em flagrante, sem prévia manifestação do órgão ministerial ou da au­ toridade policial,249 em prisão preventiva, dando-se oportunidade, em momento imediatamente pos­ terior, ao exercício do contraditório diferido, com possível revisão do ato judicial. 248. STJ, 6a Turma, HC 583.995-MG, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 15.09.2020, DJe 07.10.2020.

249. Vide acima discussão quanto à (im) possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva de ofício pelo juiz.

9.12. Tipificação do crime de abuso de autori­ dade (Lei n. 13.869/19) Em conclusão, especial atenção deve ser dis­ pensada ao art. 310, §3°, do CPP, também incluído pela Lei n. 13.964/19: “§3° A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão” (nosso grifo). Ante a explícita referência à responsabilidade penal pela omissão, indaga-se: haverá crime de abuso de autori­ dade previsto na Lei n. 13.869/19 se acaso o juiz das garantias não determinar a realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput do art. 310 do CPP? Sobre o tema, certamente surgirão 2 (duas) correntes:

a) não tipificação do crime de abuso de au­ toridade: inexplicavelmente, a nova Lei de Abuso de Autoridade olvidou-se de prever uma figura específica quanto à não realização da audiência de custódia. Deveria tê-lo feito. É dizer, deveria ter acrescentado ao parágrafo único do art. 9o um inciso IV no seguinte sentido: “IV - Deixar a au­ toridade judiciária de realizar audiência de custó­ dia no prazo legal”. Não o fez, todavia. Logo, por mais que o art. 310, §3°, do CPP, faça referência à responsabilidade penal pela omissão em questão, firmada a premissa de que tal dispositivo não é um tipo penal, já que não contém sujeito ativo, tipos objetivo e subjetivo, etc., é de todo evidente que, isoladamente considerado, jamais terá o condão de alçar referida conduta à categoria de crime. Assim, se, a despeito de não ter sido realizada a audiência de custódia, o juiz das garantias tiver deliberado, tão logo recebida a comunicação do flagrante, pelo relaxamento da prisão manifestamente ilegal, pela concessão de liberdade provisória manifestamente cabível, ou até mesmo pela conversão do flagrante em prisão preventiva ou temporária, não há falar em crime de abuso de autoridade à luz da Lei n. 13.869/19, seja por conta do absurdo esquecimento do legislador em criar um tipo penal específico nesse sentido, seja por conta da impossibilidade de qualquer construção hermenêutica para que se entenda que a conduta em questão também estaria tutelada pelo art. 9o, caput, ou por qualquer um dos incisos de seu parágrafo único, sob pena de evidente analogia in malam partem e consequente violação ao princípio da legalidade. Isso, todavia, não afastaria eventual responsabilização do juiz das garantias no âmbito cível e/ou administrativo; b) tipificação do crime de abuso de autorida­ de (nossa posição): é bem verdade que o legislador

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da nova Lei de Abuso de Autoridade não tipificou de maneira autônoma a não realização da audiên­ cia de custódia no prazo legal. Porém, se acaso restaurada a eficácia do art. 310, §4°, do CPP, em decisão do Plenário do Supremo revogando a medida cautelar concedida pelo Min. Luiz Fux no julgamento da ADI n. 6.305 (j. 22/01/2020), como o dispositivo prevê que, transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput do art. 310, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará tam­ bém a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, é perfeitamente possível concluir que a não realização do ato em questão pode vir a tipificar o crime do art. 9o, parágrafo único, inciso I, da Lei n. 13.869/19, visto que, em tal hipótese, ter-se-á, ao fim e ao cabo, uma prisão manifestamente ilegal que não foi relaxada pela au­ toridade judiciária dentro de prazo razoável. Logo, se determinado juiz das garantias receber um auto de prisão em flagrante, deixando de determinar a realização da audiência de custódia, por exemplo, em até 5 (cinco) dias após a prisão, e desde que não haja nenhuma motivação idônea justificando sua inércia, a conduta em questão terá o condão de tipificar o delito sob comento, ainda que, dentro desse prazo, tenha o magistrado concedido liberda­ de provisória ou convertido o flagrante em preven­ tiva (ou temporária), porquanto tais decisões não teriam o condão de suprir a ausência da realização da audiência de apresentação. A ressalva ficaria por conta da possibilidade de o juiz ter determinado o relaxamento da prisão em flagrante imediatamente após receber o respectivo auto, por exemplo, em virtude de suposto flagrante preparado (súmula n. 145 do STF), vez que, nesse caso, se a prisão em fla­ grante já fora anteriormente relaxada, sequer seria possível cogitar em novo relaxamento decorrente da não realização da audiência de custódia, o que, em tese, inviabilizaria a tipificação do crime do art. 9o, parágrafo único, inciso I, da nova Lei de Abuso de Autoridade, eis que o magistrado já teria rela­ xado a prisão manifestamente ilegal, ainda que por outro motivo que não aquele previsto no art. 310, §4°, do CPP. De todo modo, convém lembrar que, para fins de tipificação de abuso de autoridade, há de se demonstrar a presença do especial fim de agir do art. Io, §1°, da Lei n. 13.869/19 - “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capri­ cho ou satisfação pessoal” -, algo que dificilmente estaria presente, a nosso juízo, não apenas na hi­ pótese de o juiz haver concedido ao flagranteado liberdade provisória com ou sem fiança, cumulada

ou não com as cautelares diversas da prisão, mas também quando o juiz deixasse de adotar quais­ quer das providências dos incisos do art. 310 em virtude do excesso de trabalho (v.g., acúmulo de varas em comarcas diversas na condição de juiz das garantias).

CAPÍTULO IV

DA PRISÃO EM FLAGRANTE 1. CONCEITO DE PRISÃO EM FLAGRANTE A expressão ‘flagrante’ deriva do latim ‘flagrare (queimar), e flagrans’, flagrantis’ (ardente, brilhante, resplandecente), que, no léxico, significa acalorado, evidente, notório, visível, manifesto. Em linguagem jurídica, flagrante seria uma caracterís­ tica do delito, é a infração que está queimando, ou seja, que está sendo cometida ou acabou de sê-lo, autorizando-se a prisão do agente mesmo sem au­ torização judicial em virtude da certeza visual do crime. Funciona, pois, como mecanismo de auto­ defesa da própria sociedade.

Compreendido o conceito de flagrante delito, pode-se definir a prisão em flagrante como uma medida de autodefesa da sociedade, consubstancia­ da na privação da liberdade de locomoção daquele que é surpreendido em situação de flagrância, a ser executada independentemente de prévia au­ torização judicial (CF, art. 5o, LXI). A expressão ‘delito’ abrange não só a prática de crime, como também a de contravenção. Nesse caso, todavia, tratando-se de infração de menor potencial ofen­ sivo, não se procede à lavratura de Auto de Prisão em Flagrante, mas sim de Termo Circunstanciado de Ocorrência, caso o agente assuma o compromis­ so de comparecer ao Juizado ou a ele compareça imediatamente (Lei n° 9.099/95, art. 69, parágrafo único).

2. FUNÇÕES DA PRISÃO EM FLAGRANTE A prisão em flagrante tem as seguintes funções: a) evitar a fuga do infrator; b) auxiliar na colheita de elementos informativos: persecuções penais de­ flagradas a partir de um auto de prisão em flagrante costumam ter mais êxito na colheita de elementos de informação, auxiliando o dominus litis na com­ provação do fato delituoso em juízo; c) impedir a consumação do delito, no caso em que a infração está sendo praticada (CPP, art. 302, inciso I), ou de

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seu exaurimento, nas demais situações (CPP, art. 302, incisos II, III e IV); d) preservar a integridade física do preso, diante da comoção que alguns cri­ mes provocam na população, evitando-se, assim, possível linchamento.

tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração so­ bre a ilicitude e a culpabilidade.

Com a inserção do parágrafo único ao art. 310 do CPP pela Lei n° 6.416, de 24 de maio de 1977, a prisão em flagrante deixou de ser motivo para que a pessoa permanecesse presa ao longo de todo o processo, pois, ao receber cópia do auto de prisão em flagrante, passou a ser obrigação do magistrado examinar não só a legalidade da medida, para fins de eventual relaxamento, como também verificar a presença de algum dos motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.250

Na sistemática do CPP, o flagrante se divide em quatro momentos distintos: captura, condução coercitiva, lavratura do auto de prisão em flagrante e recolhimento à prisão. No primeiro momento, o agente encontrado em situação de flagrância (CPP, art. 302) é capturado, de forma a evitar que continue a praticar o ato delituoso. A captura tem por fun­ ção precípua resguardar a ordem pública, fazendo cessar a lesão que estava sendo cometida ao bem jurídico pelo impedimento da conduta ilícita. Após a captura, o agente será conduzido coercitivamente à presença da autoridade policial para que sejam ado­ tadas as providências legais. De seu turno, a lavra­ tura é a elaboração do auto de prisão em flagrante, no qual são documentados os elementos sensíveis existentes no momento da infração. Este ato tem como objetivo precípuo auxiliar na manutenção dos elementos de prova da infração que se acabou de cometer. Por fim, a detenção é a manutenção do agente no cárcere, que não será necessária nas hipóteses em que for cabível a concessão de fiança pela autoridade policial, ou seja, infrações penais cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com reda­ ção dada pela Lei n° 12.403/11). Ao preso, depois, deve ser entregue nota de culpa, em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura.

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, ficou ainda mais patente que a prisão em flagrante, por si só, não mais autoriza que o agente permaneça preso ao longo de todo o processo. Afinal, segundo a redação então conferida pelo referido diploma normativo ao art. 310 do CPP, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presen­ tes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder li­ berdade provisória, com ou sem fiança.

Posteriormente, a prisão em flagrante conver­ te-se em ato judicial, a partir do momento em que a autoridade judiciária é comunicada da detenção do agente, a fim de analisar sua legalidade, para fins de relaxamento, necessidade de conversão em pri­ são preventiva, ou acerca do cabimento de liberdade provisória, com ou sem fiança. De mais a mais, com o advento da Lei n° 11.449/07, e objetivando asse­ gurar ao preso a assistência de advogado (CF, art. 5o, LXIII), caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral do auto de prisão em flagrante também deve ser encaminhada à Defen­ soria Pública (CPP, art. 306, § Io).

No sistema concebido originalmente pelo Có­ digo de Processo Penal de 1941, a prisão em flagran­ te tinha não apenas essas funções, como igualmente a de servir de medida acautelatória. Desse modo, quem era preso em flagrante, desde que não se li­ vrasse solto, não fosse admissível a fiança, ou não tivesse sua conduta justificada por alguma excluden­ te da ilicitude, deveria, apenas por esse motivo, per­ manecer preso durante todo o processo. O flagrante, por si só, era fundamento suficiente para que o in­ divíduo permanecesse recolhido à prisão ao longo de todo o processo, sem que houvesse necessidade de se motivar o encarceramento à luz de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.

3. FASES DA PRISÃO EM FLAGRANTE Inicialmente, a prisão em flagrante funciona como mero ato administrativo, dispensando-se autorização judicial. Exige apenas a aparência da 250. Como será visto com mais detalhes ao tratarmos da liberdade provisória, essa liberdade provisória sem fiança outrora prevista no art. 310, parágrafo único, do CPP, cabível quando o juiz verificasse a inocor­ rência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, foi revogada

pela Lei n° 12.403/11.

Essa análise da prisão em flagrante em fases é de extrema relevância. Em um primeiro momento, em virtude de certos dispositivos legais, segundo os quais se estabelece que não se imporá prisão em flagrante:

a) Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança (Lei n° 9.099/95, art. 69, parágrafo único);

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b) Tratando-se da conduta de porte de drogas para consumo pessoal, ou posse de planta tóxica para extração de droga com o escopo de consumo pessoal, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo compe­ tente, ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários (Lei n° 11.343/06, art. 48, § 2o).

Conquanto a lei use a expressão não se imporá prisão em flagrante, deve-se entender que é perfeitamente possível a captura e a condução coercitiva do agente, estando vedada somente a lavratura do auto de prisão em flagrante e o subsequente recolhimento ao cárcere. Em tais hipóteses, caso o capturado as­ suma o compromisso de comparecer ao Juizado ou a ele compareça imediatamente, não será lavrado o auto de prisão em flagrante, mas tão somente o ter­ mo circunstanciado, com sua imediata liberação.251 Se, todavia, o agente se recusar a comparecer imediatamente ao Juizado ou a assumir o com­ promisso de a ele comparecer, deve a autoridade policial proceder à lavratura do auto de prisão em flagrante, o que também não significa que o agente permanecerá preso, porquanto é possível que lhe seja concedida liberdade provisória com fiança pelo próprio delegado de polícia, caso a infração seja pu­ nida com pena máxima não superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11). O Código de Trânsito Brasileiro também tem dispositivo semelhante aos acima citados. Segundo o art. 301, caput, da Lei n° 9.503/97, ao condutor de veículo, nos casos de acidentes de trânsito de que resulte vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral socorro àquela.

Outro aspecto relevante decorrente dessa divi­ são da prisão em flagrante em fases diz respeito à au­ toridade coatora para fins de impetração de habeas corpus. Enquanto a prisão em flagrante for um ato administrativo, a autoridade coatora é o delegado de polícia,252 razão pela qual eventual habeas cor­ pus deve ser impetrado perante um juiz de Io grau. No entanto, a partir do momento em que o juiz é comunicado da prisão em flagrante, quedando-se inerte, seja quanto ao relaxamento da prisão ilegal, seja quanto à concessão da liberdade provisória,

transforma-se em autoridade coatora, devendo o habeas corpus ser dirigido ao respectivo Tribunal.253

4. NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO EM FLA­ GRANTE DELITO Diversamente da prisão preventiva e da prisão temporária, a prisão em flagrante independe de pré­ via autorização judicial, estando sua efetivação limi­ tada à presença de uma das situações de flagrância descritas no art. 302 do CPP. Como dito acima, quando da elaboração do Có­ digo de Processo Penal, a prisão em flagrante, por si só, era fundamento suficiente para que o acusado permanecesse preso durante todo o processo, salvo se o delito fosse afiançável ou nas hipóteses em que o acusado se livrava solto (antiga redação do art. 321 do CPP). Esse sistema, todavia, sofreu profunda modifi­ cação com a Lei n° 6.416/77, que inseriu, à época, um parágrafo único ao art. 310 do Código de Processo Penal, segundo o qual se o juiz verificasse, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, de­ veria conceder ao capturado liberdade provisória sem fiança, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação. Diante da antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, não mais se justificava que alguém permanecesse preso em flagrante durante todo o processo. Em outras palavras, para que alguém fi­ casse preso, afigurava-se imprescindível a presença de um dos fundamentos para a prisão preventiva. Logo, se o agente permanecesse preso, não estaria preso por causa do flagrante, mas sim em virtude da conversão de sua prisão em flagrante em preven­ tiva. Portanto, mesmo antes das alterações produzi­ das pela Lei n° 12.403/11, a homologação do auto de prisão em flagrante já não era suficiente, por si só, para que o capturado pudesse permanecer sob custódia, sendo necessária, para tanto, a decretação de sua prisão preventiva com base na presença dos pressupostos dos arts. 312e313do CPP.

No entanto, somos obrigados a ressaltar que, pelo menos antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, ainda prevalecia na jurisprudência o en­ tendimento de que a prisão em flagrante era modali­ dade autônoma de custódia provisória, sendo capaz de justificar, de per si, a manutenção do indivíduo sob cárcere, independentemente de sua conversão em preventiva no momento subsequente à homo­ logação do respectivo auto. Costumava-se citar,

251. STJ - 5a T. HC 19.071 - Rel. Felix Fischer -j. 19.02.2002 - JSTJ e TRF-LEX 156/354). 252. STJ, 5a Turma, HC 60.243/GO, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 12/03/2007 p. 276.

253. STJ, 5aTurma, HC 40.455/RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 04/04/2005 p. 334.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

como fundamento legal dessa corrente, o preceito do art. 334 do CPP que permite que a fiança seja prestada em qualquer termo do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. Como a fiança só podia ser concedida àquele que foi preso em flagrante, e considerando que o art. 334 permite sua prestação em qualquer fase do pro­ cesso, enquanto não houver o trânsito em julgado da condenação, concluía-se que o indivíduo preso em flagrante podia permanecer preso por conta do flagrante até esse momento.

prever que, recebido o auto de prisão em flagrante, e verificada sua legalidade, terá o juiz duas opções: converter a prisão em flagrante em preventiva, a qual é espécie de medida cautelar, ou conceder li­ berdade provisória com ou sem fiança, impondo as medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP, observados os critérios do art. 282. Fica patente, assim, que a prisão em flagrante coloca o preso à disposição do juiz para a adoção de uma medida cautelar, daí por que deve ser considerada como medida de natureza precautelar.

Com a entrada em vigor da Lei n. 12.403/11, fica patente que a prisão em flagrante, por si só, não mais autoriza que o agente permaneça preso ao longo de todo o processo. Afinal, de acordo com o art. 310 do CPP, após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá fundamentadamente: a) rela­ xar a prisão ilegal; b) converter a prisão em flagrante em preventiva (ou temporária); c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada ou não com as medidas cautelares diversas da prisão.

Em outra linha, há doutrinadores que enten­ dem que a natureza jurídica da prisão em flagrante é de ato administrativo tão somente, não possuindo natureza jurisdicional, sendo inviável querer situá-la como medida processual acautelatória com a qual se determina a prisão de alguém. Com esse enten­ dimento, Walter Nunes da Silva Júnior sustenta que “o que ocorre com a prisão em flagrante é, tão so­ mente, a detenção do agente, a fim de que o juiz, posteriormente, decida se a pessoa deve ser levada, ou não, à prisão. Com isso, se quer dizer que não há, propriamente, uma prisão em flagrante como espécie de medida acautelatória processual penal. O flagrante delito se constitui e justifica apenas a detenção, cabendo ao juiz, após a análise por meio da leitura do auto de prisão em flagrante, definir se a prisão preventiva deve, ou não, ser decretada”.255

Se a prisão em flagrante já não é mais capaz de justificar, por si só, a subsistência da prisão do agente, cuja necessidade deve ser aferida à luz da presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, discute-se na doutrina acerca de sua verdadeira natureza jurídica: medida de caráter precautelar, ato administrativo, e, portanto, espécie de prisão administrativa, ou prisão cautelar?

Sem embargo de opiniões em sentido contrá­ rio, pensamos que a prisão em flagrante tem caráter precautelar. Não se trata de uma medida cautelar de natureza pessoal, mas sim precautelar, porquanto não se dirige a garantir o resultado final do pro­ cesso, mas apenas objetiva colocar o capturado à disposição do juiz para que adote uma verdadeira medida cautelar: a conversão em prisão preventiva (ou temporária), ou a concessão de liberdade pro­ visória, com ou sem fiança, cumulada ou não com as medidas cautelares diversas da prisão.254 Esse entendimento, quanto a sua natureza ju­ rídica de medida precautelar, ganha reforço com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, que passa a

Prevalece, todavia, o entendimento de que a prisão em flagrante é espécie de prisão cautelar, ao lado da prisão preventiva e temporária. Perfilha des­ se entendimento Tourinho Filho, que inclui a prisão em flagrante entre as prisões cautelares de natureza processual.256

Há, ainda, o entendimento de José Frederico Marques, para quem a prisão de natureza cautelar subdivide-se em duas espécies: prisão penal cautelar administrativa e prisão penal cautelar processual, de­ pendendo da autoridade que a decreta. A prisão penal cautelar administrativa é aquela decretada ainda na fase pré-processual, pelo Delegado de Polícia, em ra­ zão de investigado apanhado em flagrante delito. Tal prisão, entretanto, muito embora tenha inicialmen­ te natureza administrativa, torna-se posteriormente de natureza processual, pois projeta consequências na relação processual que se estabelece no juízo pe­ nal. Por sua vez, a prisão penal cautelar processual 255. Op. cit. p. 880.

254. No sentido de que a prisão em flagrante não é uma medida cautelar, mas sim pré-cautelar: GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 89. E ainda: LOPES JR.,

Aury. Op. cit. p. 63.

256. Processo Penal. 31a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 464. Denílson Feitoza (Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6a ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2009. P. 840) e Mirabete (ProcessoPenal. 18a ed. rev. e atual, até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 374) também entendem que a prisão em flagrante é espécie de prisão cautelar.

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é aquela decretada pelo juiz e se destina a tutelar os meios e fins do processo penal de conhecimento, de modo a assegurar a eficácia da decisão a ser prolatada ao final e possibilitar a normalidade da instrução probatória e da ordem pública e econômica.257

5. SUJEITO ATIVO DA PRISÃO EM FLAGRANTE Sujeito ativo da prisão em flagrante é aquele que efetua a prisão do cidadão encontrado em uma das situações de flagrância previstas no art. 302 do CPP. Pode ser qualquer pessoa, integrante ou não da força policial, inclusive a própria vítima. Não se confunde com o condutor, que é a pessoa que apresenta o preso à autoridade que presidirá a lavratura do auto, nem sempre correspondendo àquele que efetuou a prisão.

5.1. Flagrante facultativo Extrai-se do art. 301 do CPP que qualquer do povo poderá prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Percebe-se, pois, que o particular (inclusive a própria vítima) tem a faculdade de prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Tem-se aí aquilo que a doutrina chama de exercício regular de direito pro magistratu, que são situações em que o Estado não pode estar presente para evitar a lesão ao bem jurídico ou recompor a ordem pública, daí por que incentiva o cidadão a atuar no seu lugar.

5.2. Flagrante obrigatório, compulsório ou coercitivo Também se extrai do art. 301 do CPP que as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. A autoridade policial e seus agentes têm, portanto, o dever de efetuar a prisão em flagrante, não tendo discricionariedade sobre a conveniência ou não de efetivá-la. A prisão em flagrante, para as autoridades policiais e seus agentes, configura estrito cumpri­ mento do dever legal.258

O art. 301 do CPP não faz qualquer distinção entre polícia ostensiva (Polícia Militar, Polícia Rodo­ viária e Ferroviária Federal) e polícia judiciária (Po­ lícia Civil e Polícia Federal), razão pela qual se aplica a ambas o dever de efetuar a prisão em flagrante. 257. Elementos de direito processual penal. 2a ed. rev. e atual. Campinas: Millennium, 2000. p. 25.

258. Deve a autoridade policial efetuar a prisão durante as 24 horas do dia: "A situação de trabalho do policial civil o remete ao porte permanente de arma, já que considerado por lei constantemente atrelado aos seus deveres funcionais" (TJSP, HC 342.778-3, Jaú, 6a G, rei. Barbosa Pereira,

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Tendo a autoridade policial o dever de agir, sua omissão pode inclusive estabelecer responsabilidade criminal, seja pelo delito de prevaricação - desde que comprovado que assim agiu para satisfazer in­ teresse ou sentimento pessoal -,259 seja pelo próprio delito praticado pelo agente em situação de flagrân­ cia, se podia agir para evitar sua consumação (CP, art. 13, § 2o, “a”). Ressalte-se que a lei faz menção apenas à auto­ ridade policial, o que afasta as demais autoridades como o juiz e o promotor, os quais, como qualquer outro cidadão, só terão a faculdade de prender o agente em flagrante delito.

Essa obrigação de prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito que recai sobre a autoridade policial é mitigada nos casos de ação controlada, flagrante prorrogado ou retardado, es­ pécies de flagrante a serem estudadas mais adiante. Em relação aos Guardas Municipais, sem embargo do quanto disposto no art. 144, §8°, da Constituição Federal, que restringe suas atribuições à proteção dos bens, serviços e instalações dos Mu­ nicípios, se qualquer pessoa do povo pode prender quem quer que esteja em situação de flagrância flagrante facultativo - não se pode proibir tais agen­ tes de efetuar tal prisão. Logo, na eventualidade de uma prisão em flagrante ser levada a efeito pelos integrantes das guardas municipais, não há falar em ilegalidade do ato, nem tampouco ilicitude das provas então obtidas (v.g., apreensão de drogas).260

6. SUJEITO PASSIVO DO FLAGRANTE Pelo menos em regra, qualquer pessoa pode ser presa em flagrante. Há exceções, que já foram abordadas anteriormente ao tratarmos das imunidades prisionais.

7. ESPÉCIES DE FLAGRANTE As hipóteses que autorizam a prisão em fla­ grante de determinada pessoa estão previstas nos incisos I, II, III e IV do art. 302 do Código de Pro­ cesso Penal. Cuida-se de rol taxativo, modelando e qualificando situações de flagrância, de modo a 259. Para o Supremo,"o simples fato de não se haver lavrado auto de prisão em flagrante, formalizando-se tão-somente o boletim de ocor­ rência, longe fica de configurar o crime de prevaricação que, à luz do disposto no artigo 319 do Código Penal, pressupõe ato omissivo ou comissivo voltado a satisfazer interesse ou sentimento próprio. Inexistente o dolo específico, cumpre o arquivamento de processo instaurado". (STF, 1a Turma, HC 84.948/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ 18/03/2005 p. 63).

19/04/2001, v.u., JUBI 60/01). A Portaria CORREGPM-1/01/01 da PMESP determina ser dever do policial militar "atuar onde estiver, mesmo não

260. Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, AgRg no HC 592.722-SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 20.10.2020, DJe 26.10.2020; STJ, 6a Turma, HC 286.546-SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 22.09.2015,

estando em serviço, para preservar a ordem pública ou prestar socorro".

DJe 15.10.2015.

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afastar eventual violência ao direito constitucio­ nal de locomoção. Esse rol, por conseguinte, não comporta o emprego de analogia, nem tampouco de interpretação extensiva, evidenciando-se cons­ trangimento ilegal à liberdade de locomoção caso o agente se veja preso em flagrante em situação fática que não se amolde às hipóteses previstas no art. 302, quando, então, será cabível o relaxamento da prisão (CF, art. 5o, LXV). Pela leitura dos incisos do art. 302 do Código de Processo Penal, percebe-se que há uma relação decrescente de imediatidade. Nas palavras de Paulo Rangel, “tem início com o fogo ardendo (está co­ metendo a infração penal - inciso I), passa para uma diminuição da chama (acaba de cometê-la inciso II), depois para a perseguição direcionada pela fumaça deixada pela infração penal (inciso III) e, por último, termina com o encontro das cinzas ocasionadas pela infração penal (é encontrado logo depois - inciso IV)”.261

7.1. Flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro Entende-se em flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro, o agente que é surpreendido come­ tendo uma infração penal ou quando acaba de co­ metê-la (CPP, art. 302, incisos I e II). A expressão “acaba de cometê-la” deve ser interpretada de forma restritiva, no sentido de absoluta imediatidade (sem qualquer intervalo de tempo). Em outras palavras, o agente é encontrado imediatamente após cometer a infração penal, sem que tenha conseguido se afastar da vítima e do lugar do delito. Assim, caso o agente seja surpreendido no momento em que está prati­ cando o verbo núcleo do tipo penal (ex: subtraindo coisa alheia móvel), sua prisão em flagrante poderá ser efetuada. Ainda que, posteriormente, seja reco­ nhecida a atipicidade material de sua conduta (v.g., por força do princípio da insignificância), isso não tem o condão de afastar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, porquanto a análise que se faz, no momento da captura do agente, restringe-se à análise da tipicidade formal.262

Para que se possa afirmar que o agente está co­ metendo a infração penal, o que, em tese, autorizaria sua prisão em flagrante com fundamento no art. 302, I, do CPP, é necessário verificar se ele ingres­ sou na fase executória do delito, pois, pelo menos em regra, é a partir desse momento que o Direito 261. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 10a ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2005. p. 620.

262. STJ, 5aTurma, HC 154.949/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 03/08/2010, DJe 23/08/2010.

Penal passa a ter incidência, configurando no mí­ nimo um crime tentado (CP, art. 14, II). Logo, se o agente ainda estiver nas fases iniciais do iter criminis de cogitação e preparação, revelar-se-á indevida a sua prisão em flagrante, salvo, logicamente, se o ato preparatório em questão for punível (v.g., petrechos para falsificação de moeda). Como é sabido, um dos problemas mais árduos do Direito Penal é diferen­ ciar com precisão um ato preparatório de um ato executório, eis que nem sempre é fácil estabelecer o momento exato em que se opera a transição de uma fase para outra do iter criminis, em virtude do caráter fronteiriço de tais atos. Inúmeras teorias apresentam diferentes propostas para a solução do impasse, como, por exemplo, a subjetiva, a objeti­ va, a qual, por sua vez, subdivide-se em teoria da hostilidade ao bem jurídico, objetivo-formal, objetivo-material, objetivo-individual etc. Não há ju­ risprudência dominante dos Tribunais Superiores sobre a divergência. Há, todavia, alguns precedentes adotando a teoria objetivo-formal para a separação entre atos preparatórios e atos de execução, exigin­ do-se, para a configuração da tentativa, que haja início da prática do verbo núcleo do tipo penal. Com base nesse raciocínio, em caso concreto em que houve o rompimento de cadeado e a destrui­ ção de fechadura de portas da casa da vítima, com o intuito de efetuar subtração patrimonial da resi­ dência, a 5a Turma do STJ concluiu terem restado configurados meros atos preparatórios impuníveis, por não iniciar o núcleo do verbo subtrair, e não tentativa de crime patrimonial.263

7.2. Flagrante impróprio, imperfeito, irreal ou quase-flagrante O flagrante impróprio, também chamado de imperfeito, irreal ou quase-flagrante, ocorre quando o agente é perseguido logo após cometer a infração penal, em situação que faça presumir ser ele o autor do ilícito (CPP, art. 302, inciso III). Exige o flagrante impróprio a conjugação de 3 (três) fatores: a) perseguição (requisito de ati­ vidade); b) logo após o cometimento da infração penal (requisito temporal); c) situação que faça presumir a autoria (requisito circunstancial).

Impõe-se, inicialmente, verificar o significado da expressão logo após. Por logo após compreende-se

263. STJ, 5a Turma, AREsp 974.254/TO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 21.09.2021, DJe 27.09.2021. Considerando descabida, à luz da teoria ob­ jetivo-formal, a imputação de crime de roubo em caso concreto em que não se verificou qualquer ato de execução, mas somente a cogitação e os atos preparatórios de acusados que confessaram a intenção de roubar determinada agência dos correios: STJ, 3a Seção, CC 56.209-MA, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14.12.2005, DJ 06.02.2006. 3,7

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o lapso temporal que permeia entre o acionamento da autoridade policial, seu comparecimento ao lo­ cal e colheita de elementos necessários para que dê início à perseguição do autor.264 Por isso, tem-se en­ tendido que não importa se a perseguição é iniciada por pessoas que estavam no local ou pela polícia, acionada por meio de ligação telefônica.

Nessa esteira, como se pronunciou o STJ, “a se­ quência cronológica dos fatos demonstram a ocor­ rência da hipótese de prisão em flagrante prevista no art. 302, inciso III, do Código de Processo Pe­ nal, denominada pela doutrina e jurisprudência de flagrante impróprio, ou quase-flagrante. Hipótese em que a polícia foi acionada às 05:00 horas, logo após a prática, em tese, do delito, saindo à procura do veículo utilizado pelo paciente, de propriedade de seu irmão, logrando êxito em localizá-lo por volta das 07:00 horas do mesmo dia, em frente à casa de sua mãe, onde o paciente se encontrava dormindo. Do momento em que fora acionada até a efetiva localização do paciente, a Polícia levou cerca de 02 (duas) horas, não havendo dúvidas de que a situação flagrancial se encontra caracteri­ zada, notadamente porque foram encontrados os brincos da vítima no interior do veículo utilizado para a prática da suposta infração penal, fazendo presumir que, se infração houve, o paciente seria o autor”.265

Em se tratando de crimes contra menores de idade (v.g., estupro de vulnerável do art. 217-A, caput, do CP), há julgados do Superior Tribunal de Justiça conferindo maior elasticidade à expressão logo após. Entende o Egrégio Tribunal que, tratan­ do-se de quase-flagrante ou flagrante impróprio relativo a fato contra menor, o tempo a ser con­ siderado medeia entre a ciência do fato pelo seu representante e as providências legais que este venha a adotar para a perseguição do paciente. Havendo perseguição ao ofensor, por policiais, logo após te­ rem sido informados do fato pela mãe da vítima, caracterizado estará o estado de quase-flagrância, pouco importando se a prisão ocorreu somente poucas horas depois. Evidentemente, se não houve a perseguição logo após o delito, não é admissível 264. STJ, 5aTurma, HC 83.895/CE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 05/11/2007 p. 328; STJ, 5a Turma, HC 24.510/MG, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 02/06/2003 p. 310; STJ, 5a Turma, HC 8.303/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 16/08/99 p. 78. 265. STJ, 5aTurma, HC 55.559/GO, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 29/05/2006 p. 284. Com entendimento semelhante: STJ, 5aTurma, HC 126.980/GO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 06/08/2009, DJe 08/09/2009.

a prisão no outro dia, mesmo que no momento da prisão já se soubesse quem era o autor do delito.266 Como a lei não define o que se entende por ‘perseguido, logo após’, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 290, § Io, alíneas “a” e “b”, do CPP, segundo os quais entende-se que há perseguição quando: a) tendo a autoridade, o ofendido ou qual­ quer pessoa avistado o agente, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista; b) sabendo, por indícios ou informações fide­ dignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço. Vale lembrar que, nessas hipó­ teses de perseguição, a prisão pode ser efetuada em qualquer local onde o capturando for encontrado, ainda que em outro Estado da federação, em sua casa ou em casa alheia (CPP, art. 290, caput, c/c art. 293, caput, c/c art. 294, caput).

O importante, no quase-flagrante, é que a per­ seguição tenha início logo após o cometimento do fato delituoso, podendo perdurar por várias horas, desde que seja ininterrupta e contínua, sem qual­ quer solução de continuidade. Carece de fundamen­ to legal, portanto, a regra popular segundo a qual a prisão em flagrante só pode ser levada a efeito em até 24 (vinte e quatro) horas após o cometimento do crime. Isso porque, nos casos de flagrante im­ próprio, desde que a perseguição seja ininterrupta e tenha tido início logo após a prática do delito, é cabível a prisão em flagrante mesmo após o decurso desse lapso temporal. Ex: acusado que estava sendo medicado em emergência de hospital, em razão de tiros que o atingiram quando perseguido pela Po­ lícia, logo após o fato, ocasião em que foi preso.267

7.3. Flagrante presumido, ficto ou assimilado No flagrante presumido, ficto ou assimilado, o agente é preso logo depois de cometer a infração, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que 266. STJ, 5a Turma, HC 3.496/DF, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 25/09/1995 p. 31.114. Na mesma linha:"Cuidando-se de violência sexual perpetrada contra menor, pode-se entender como logo após o tempo que medeia entre a prática do delito, a ciência do fato pelo representante legal da menor, as prementes medidas que este venha a adotar para a perseguição do agente, a breve apuração dos fatos e da identidade do autor e o efetivo início da perseguição. A seu turno, perseguição é fato definido normativamente (CPP, art. 290, § 1o) e se deve operar de ma­ neira incessante. In casu, demonstrando que a perseguição empreendida pela Polícia Judiciária, após as medidas adotadas pela representante da vítima, tão logo tomou conhecimento do que se passara, foi incessante e ininterrupta até a localização, o reconhecimento e a prisão em flagran­ te delito do paciente como autor do fato criminoso, configurada está a ocorrência do quase-flagrante ou flagrante impróprio nos moldes da lei (CPP, art. 302, III)" (TJBA - 2a Câm. Crim. HC 14.810-2/99 - Rel. Benito A. de Figueiredo -j. 24.02.2000 - RT 778/632). 267. Nessa linha: STJ, 5a Turma, HC 66.616/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 25/06/2007 p. 264.

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façam presumir ser ele o autor da infração (CPP, art. 302, IV). Nesse caso, a lei não exige que haja perseguição, bastando que a pessoa seja encontra­ da logo depois da prática do ilícito com coisas que traduzam um veemente indício da autoria ou parti­ cipação no crime. Ex: agentes encontrados algumas horas depois do crime em circunstâncias suspeitas, aptas a autorizar a presunção de serem os autores do delito, por estarem na posse do automóvel e dos objetos da vítima, além do fato de tentarem fugir, ao perceberem a presença de viatura policial.268

Segundo parte da doutrina, a expressão logo depois constante do inciso IV não indica prazo certo, devendo ser compreendida com maior elasticidade que logo após (inciso III). Deve ser interpretada com temperamento, todavia, a fim de não se desvirtuar a própria prisão em flagrante. Com a devida vênia, pensamos que a expressão logo depois (CPP, art. 302, IV) não é diferente de logo após (CPP, art. 302, III), significando ambas uma relação de imediatidade en­ tre o início da perseguição, no flagrante impróprio, e o encontro do acusado, no flagrante presumido. Na verdade, a única diferença é que, no art. 302, III, há perseguição, enquanto que, no art. 302, IV, o que ocorre é o encontro do agente com objetos que façam presumir ser ele o autor da infração.

Caso o agente seja encontrado com objetos que façam presumir ser ele o autor da infração, porém algum tempo após a prática do delito, deve a au­ toridade policial deixar de dar voz de prisão em flagrante, sem prejuízo, no entanto, da lavratura de boletim de ocorrência e posterior instauração de inquérito policial.

7.4. Flagrante preparado, provocado, crime de ensaio, delito de experiência ou delito putativo por obra do agente provocador Ocorre quando alguém (particular ou autori­ dade policial), de forma insidiosa, instiga o agente à prática do delito com o objetivo de prendê-lo em fla­ grante, ao mesmo tempo em que adota todas as pro­ vidências para que o delito não se consume. Como adverte a doutrina, nessa hipótese de flagrante o su­ posto autor do delito não passa de um protagonista inconsciente de uma comédia, cooperando para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou da simulação da exterioridade de um crime.

Exemplificando, suponha-se que, após pren­ der o traficante de uma pequena cidade, e com ele 268. STJ, 6a Turma, REsp 147.839, Rei. Hamilton Carvalhido, j. 01.03.2001, RT 794/572. Com entendimento semelhante: STJ, 5a Turma, HC 75.114/MT, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada

doTJ/MG, DJ 01/10/2007 p. 317.

apreender seu computador pessoal no qual consta um cronograma de distribuição de drogas, a auto­ ridade policial passe a efetuar ligações aos usuá­ rios, simulando uma venda de droga. Os usuários comparecem, então, ao local marcado, efetuando o pagamento pela aquisição da droga. Alguns mi­ nutos depois, são presos por agentes policias que se encontravam à paisana, sendo responsabilizados pela prática do crime do art. 28 da Lei n° 11.343/06. Nesse caso, estará caracterizado o flagrante pre­ parado, como espécie de crime impossível, em face da ineficácia absoluta dos meios empregados. Logo, diante da ausência de vontade livre e espontânea dos autores e da ocorrência de crime impossível (CP, art. 17), a conduta deve ser considerada atípica269. Cui­ dando-se de flagrante preparado, e, por conseguinte, ilegal, pois alguém se vê preso em face de conduta atípica, afigura-se cabível o relaxamento da prisão pela autoridade judiciária competente (CF, art. 5o, inciso LXV).

Acerca do flagrante preparado, confira-se o teor da Súmula n° 145 do Supremo Tribunal Federal: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. A leitura da súmula fornece os dois requisitos do fla­ grante preparado: preparação e não consumação do delito. Logo, mesmo que o agente tenha sido induzido à prática do delito, porém operando-se a consumação do ilícito, haverá crime e a prisão será considerada legal. Para Pacelli, “não existe real diferença entre o flagrante preparado e o flagrante esperado, no que respeita à eficiência da atuação policial para o fim de impedir a consumação do delito. Duzentos po­ liciais postados para impedir um crime provocado por terceiro (o agente provocador) têm a mesma eficácia ou eficiência que outros duzentos policiais igualmente postados para impedir a prática de um crime esperado. Assim, de duas, uma: ou se aceita ambas as hipóteses como de flagrante válido, como nos parece mais acertado, ou as duas devem ser igualmente recusadas, por coerência na respectiva fundamentação”.270

A jurisprudência, no entanto, não estabelece qualquer distinção entre flagrante preparado ou provocado, concluindo que a prisão será conside­ rada ilegal quando restar caracterizada a indução à 269. Reconhecendo a existência de flagrante preparado e, conse­ quentemente, a atipicidade da conduta, em caso concreto no qual um indivíduo fora induzido pela Polícia a cometer o crime de tráfico de dro­ gas: STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 262.294/SP, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 21/11/2017, DJe 01/12/2017.

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prática delituosa por parte do denominado agente provocador, aliada à ineficácia absoluta dos meios empregados pelo agente para se atingir a consuma­ ção do ilícito.271

7.5. Flagrante esperado Nessa espécie de flagrante, não há qualquer ati­ vidade de induzimento, instigação ou provocação. Valendo-se de investigação anterior, sem a utilização de um agente provocador, a autoridade policial ou terceiro limita-se a aguardar o momento do cometimento do delito para efetuar a prisão em flagran­ te, respondendo o agente pelo crime praticado na modalidade consumada, ou, a depender do caso, tentada. Tratando-se de flagrante legal, não há falar em relaxamento da prisão nos casos de flagrante esperado, funcionando a liberdade provisória com ou sem fiança como medida de contracautela.272

A propósito, como já se manifestou o STJ, não se deve confundir flagrante preparado com esperado - em que a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar qualquer mecanismo causai da infração. A “campana” realizada pelos policiais a espera dos fa­ tos não se amolda à figura do flagrante preparado, porquanto não houve a instigação e tampouco a pre­ paração do ato, mas apenas o exercício pelos mili­ cianos de vigilância na conduta do agente criminoso tão-somente à espera da prática da infração penal.273

Em sentido um pouco diverso, Rogério Greco entende que é possível que uma hipótese de flagrante esperado transforme-se em crime impossível, caso a autoridade policial adote um esquema infalível de proteção ao bem jurídico, de tal forma que o crime jamais possa se consumar (CP, art. 17, caput). Segundo o referido autor, se o agente, analisando o caso concreto, estimulado ou não a praticar o crime, não tinha como alcançar a sua consumação porque dele soubera com antecedência a autoridade policial 271. STJ - HC 81.020/SP - 5a Turma - Rei. Min. Felix Fischer - Dje 14/04/2008.

272. STF, 2a Turma, HC 78.250/RJ, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 26/02/1999 p. 3. E ainda: STF, 1a Turma, HC 76.397/RJ, Rei. Min. limar Galvão, DJ 27/02/1998 p. 3. Verifica-se o flagrante esperado na hipótese em que policiais, após obterem, por meio de interceptação telefônica ju­ dicialmente autorizada, informações de que associação criminosa armada pretende realizar roubo em estabelecimento industrial, conseguem, por meio de ação tempestiva, evitar a consumação da empreitada criminosa: STJ, 5a Turma, HC 84.141/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 18/02/2008 p. 48. Ainda no sentido da legalidade do flagrante esperado: STJ, 5aTurma, RHC 103.456/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 06/11/2018, DJe 14/11/2018; STJ, 5a Turma, AgRg no HC 438.565/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 19/06/2018, DJe 29/06/2018; STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 377.808/ MS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 12/09/2017, DJe 22/09/2017; STJ, 6a Turma, AgRg no REsp 1.356.130/GO, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 30/06/2015, DJe 14/12/2015. 273. STJ, 5a Turma, HC 40.436/PR, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 02/05/2006 p. 343.

e preparou tudo de modo a evitá-la, não podemos atribuir-lhe o conatus. Não importa se o flagrante é preparado ou esperado.274 Em que pese o referido posicionamento doutri­ nário, a jurisprudência reluta em aceitar a hipótese de crime impossível no flagrante esperado. E isso porque a simples presença de sistemas de vigilân­ cia, ou monitoramento por policiais, não tornam o agente absolutamente incapaz de consumar o delito. Ter-se-ia, portanto, ineficácia relativa do meio em­ pregado, e não absoluta, como exige o Código Penal para a caracterização do crime impossível (CP, art. 17, caput). Daí por que, em caso concreto no qual o agente, no momento da subtração, estava sendo observado pelo sistema interno de segurança, com posterior prisão em flagrante, concluiu o STJ que a simples presença de sistema permanente de vigilân­ cia, ou de ter sido o acusado acompanhado por vigia enquanto tentava subtrair o bem, não torna o agente completamente incapaz de consumar o delito. Logo, não há que se afastar a punição, a ponto de reconhe­ cer o crime impossível pela ineficácia absoluta dos meios empregados. Diante da possibilidade, ainda que mínima, de consumação do delito, não há falar em crime impossível.275

7.5.1. Venda simulada de droga ou outros ob­ jetos ilícitos (v.g., armas de fogo) Muito se discute acerca do flagrante no caso de drogas ou outros objetos ilícitos, tais como armas de 274. Curso de Direito Penal. 5a ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p. 328.

275. STJ, 6a Turma, HC 89.530/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada doTJ/MG, DJ 11/02/2008 p. 1. Na visão da 3a Seção

do STJ, a existência de sistema de segurança ou de vigilância eletrônica não torna impossível, por si só, o crime de furto cometido no interior de estabelecimento comercial. À luz do art. 17 do CP, há que se distinguir a insuficiência do meio (inidoneidade relativa) - deficiência de forças para al­ cançar o fim delituoso e determinada por razões de qualidade, quantidade, ou de modo - da ausência completa de potencialidade causai (inidoneidade absoluta), observando-se que a primeira (diferentemente da segunda) não torna absolutamente impossível o resultado que consuma o delito, pois o fortuito pode suprir a insuficiência do meio empregado. No caso de furto praticado no interior de estabelecimento comercial guarnecido por me­ canismo de vigilância e de segurança, embora os sistemas eletrônicos de vigilância tenham por objetivo evitar a ocorrência de furtos, sua eficiência apenas minimiza as perdas dos comerciantes, visto que não impedem, de modo absoluto, a ocorrência de subtrações no interior de estabelecimentos

comerciais. Ora, não se pode afirmar, em um juízo normativo de perigo

potencial, que o equipamento funcionará normalmente, que haverá vigi­ lante a observar todas as câmeras durante todo o tempo, que as devidas providências de abordagem do agente serão adotadas após a constatação do ilícito etc. Sendo assim, se a ineficácia do meio ocorrer apenas de forma relativa, não é possível o reconhecimento do instituto do crime impossível previsto no art. 17 do CP. A propósito: STJ, 3a Seção, REsp 1.385.621-MG, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 27/5/2015, DJe 2/6/2015. É exatamente nesse sentido o enunciado da súmula n° 567 do STJ:"Sistema de vigilância realizado por monitoramento eletrônico ou por existência de segurança no interior do estabelecimento comercial, por si só, não torna impossível a configuração do crime de furto". Em sentido semelhante: STF, Ia Turma,

HC 111.278/MG, Rei. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10/04/2018.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

fogo: preparado ou esperado? A nosso juízo, tudo depende do caso concreto.

A título de exemplo, imagine-se a hipótese em que uma autoridade policial, fazendo-se passar por usuário de drogas, dirige-se a um local onde tem conhecimento que determinada pessoa esteja ven­ dendo drogas. Com a intenção de confirmar que o traficante traz consigo substância entorpecente, solicita a este certa quantidade de droga, efetuando a prisão no exato momento em que a droga lhe é en­ tregue. Com o vendedor são apreendidos inúmeros papelotes de cocaína e maconha, além da pequena porção supostamente vendida à autoridade policial. Nessa hipótese, dúvidas não restam quanto à confi­ guração do flagrante preparado em relação ao ver­ bo ‘vender’. Afinal de contas, ao mesmo tempo em que a autoridade policial induziu o agente à venda da droga, adotou todas as precauções para que tal venda não se consumasse. Entretanto, há que se lem­ brar que o tipo penal do art. 33 da Lei n° 11.343/06 é exemplo de tipo misto alternativo, ou seja, tipo penal que descreve crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado ou plurinuclear. 276 Assim, ape­ sar de o agente ter sido induzido a vender a droga, venda esta que caracterizaria hipótese de flagrante preparado, como o crime de tráfico de drogas (Lei n° 11.343/06, art. 33, caput) não se configura apenas com o ato de venda de substância entorpecente, afigura-se possível que o agente responda pelo crime de tráfico, nas modalidades de ‘trazer consigo’, guar­ dar’277, ‘oferecer’, ‘ter em depósito’278, etc. Em outras palavras, não se dá voz de prisão em flagrante pelo delito preparado, mas sim pelo outro, descoberto em razão deste.279

Portanto, considerando-se que o delito de trá­ fico de entorpecente consuma-se com a prática de qualquer uma das dezoito ações identificadas no núcleo do tipo (Lei n° 11.343/06, art. 33, caput), algumas de natureza permanente, quando qual­ quer uma delas for preexistente à atuação policial,

estará legitimada a prisão em flagrante, sem que se possa falar em flagrante forjado ou preparado. Torna-se descabida, assim, a aplicação da súmula n° 145 do Supremo, a fim de ser reconhecido o crime impossível.280 Nesses casos de venda simulada de drogas, é importante que seja demonstrado que a posse da droga preexistia à aquisição pela autoridade policial: “Não há crime na operação preparada de venda de droga, quando não preexiste sua posse pelo acusado. Fica descaracterizado o delito para o réu que tão só dele participou em conluio com policiais, visando a repressão ao narcotráfico”.281 De fato, se restar demonstrado que somente a quantidade vendida à autoridade policial estava com o agente, há de se concluir pela presença de crime impossível, pois não há crime anterior pelo qual ele possa responder. Ex: o agente policial induz ou instiga o acusado a fornecer-lhe a droga que, no momento, não a possuía. Porém, saindo do local, e retornando minutos depois apenas com a quantidade de entorpecente pedida pelo poli­ cial, ocorre a prisão em flagrante.282

Daí, aliás, a justificativa para a criação da no­ vel figura do agente policial disfarçado (Lei n. 10.826/03, arts. 17, §2°, e 18, parágrafo único; Lei n. 11.343/06, art. 33, §1°, IV).283 De fato, ante a cria­ ção das novas figuras típicas, na eventualidade de haver um levantamento prévio por parte de policiais demonstrando que determinado indivíduo estaria vendendo drogas em pequenas quantidades (“trá­ fico formiguinha”), sem mantê-las consigo antes de receber cada proposta, eventual venda da substân­ cia ao agente disfarçado terá o condão de tipificar o crime do art. 33, §1°, IV, da Lei n. 11.343/06, pouco importando, in casu, que com o traficante seja localizada exclusivamente a exata quantidade de droga comercializada. Não existisse o novo tipo penal envolvendo o agente policial disfarçado, a pri­ são em flagrante do traficante pelos demais verbos núcleos do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, não

276. STJ, 5a Turma, HC 12.269/SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 14/08/2000 p. 185). 277. STF:"lnocorre flagrante preparado em sede de crime permanen­ te, porquanto o crime preexiste à açâo do agente provocador; assim, o policial que comparece ao local e mostra-se interessado na aquisição do entorpecente não induz os acusados à prática do delito, pois o fato de

280. STJ, 5aTurma, RHC 20.283/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 04/06/2007 p. 378. No mesmo contexto: STJ, 6a Turma, REsp 1.556.355/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 02/10/2018, DJe 16/10/2018; STJ, 5a Turma, HC 463.572/ SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 25/09/2018, DJe 02/10/2018;

manter guardada a droga destinada ao consumo de terceiros já consti­ tui o crime; portanto, a atuação do agente provocador caracteriza mero

STJ, 6a Turma, HC 290.663/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 04/12/2014, DJe 17/12/2014.

exaurimento". (RT 740/539).

281. STF, 2aTurma, HC 70.235/RS, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 08/03/94, DJ 06/05/1994. E também: STJ, 6a Turma, HC 17.483/GO, Rel. Min. Hamil­ ton Carvalhido, DJ 04/02/2002 p. 568.

278. STJ, 5aTurma, HC 17.454/SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 10/06/2002 p. 232. E também: STF, 1a Turma, HC 81.970-2, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 28.06.2002; STJ, 5a Turma, RHC 17.698/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 06/08/2007 p. 537. 279. STF, 1 aTurma, HC 72.824/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 17/05/1996 p. 16.324.

282. RT 707/293. 283. O tema foi objeto de análise no Título atinente às "Provas", mais precisamente no item 16 ("Agente policial disfarçado"), para onde re­ metemos o leitor.

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seria viável, porquanto descartada a voluntariedade acerca da posse da droga envolvida na negociação. Outrossim, nesses casos de drogas, é importan­ te lembrar que, para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante, e estabelecimento da materia­ lidade da infração penal, é indispensável a presença de laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea (Lei n° 11.343/06, art. 50, § Io).284

7.6. Flagrante prorrogado, protelado, retardado ou diferido: ação controlada e entrega vigiada A ação controlada consiste no retardamento da intervenção policial, que deve ocorrer no momento mais oportuno do ponto de vista da investigação cri­ minal ou da colheita de provas. Também conhecida como flagrante prorrogado, retardado ou diferido, vem prevista na Lei de Drogas, na Lei de Lavagem de Capitais e na nova Lei das Organizações Crimi­ nosas (Lei n° 12.850/13).285

7.7. Flagrante forjado, fabricado, maquinado ou urdido Nesta espécie de flagrante totalmente artificial, policiais ou particulares criam provas de um crime inexistente, a fim de ‘legitimar’ (falsamente) uma prisão em flagrante.286

Imagine-se o exemplo em que alguém coloca certa porção de substância entorpecente no veículo de determinada pessoa, para que posteriormente lhe dê voz de prisão em flagrante pelo crime de tráfico ou porte de drogas para consumo pessoal. Nesse caso, a par da inexistência do delito, responde a au­ toridade policial criminalmente pelo delito de abuso de autoridade (Lei n° 13.869/19, art. 9o, caput), caso o delito seja praticado em razão de suas funções, ao passo que o particular pode responder pelo crime de denunciação caluniosa (CP, art. 339, caput, com redação determinada pela Lei n. 14.110/20). 284. Para a lavratura do auto de prisão em flagrante é despicienda a elaboração do laudo toxicológico definitivo, o que se depreende da leitura do art. 50, §1°, da Lei n. 11.343/06, segundo o qual é suficien­ te para tanto a confecção do laudo de constatação da natureza e da quantidade da droga. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, RHC 102.865/GO, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 27/11/2018, DJe 12/12/2018; STJ, 6a Turma, RHC 97.517/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 15/05/2018, DJe 29/05/2018; STJ, 5a Turma, HC 388.361/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 18/04/2017, DJe 12/05/2017; STJ, 6a Turma, RHC 76.870/MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 01/12/2016, DJe 13/12/2016.

8. PRISÃO EM FLAGRANTE NAS VÁRIAS ESPÉ­ CIES DE CRIMES 8.1. Prisão em flagrante em crime permanente Crime permanente é aquele cuja consuma­ ção, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, detendo o agente o poder de fazer cessar o estado antijurídico por ele realizado, ou seja, é o delito cuja consumação se prolonga no tempo.287 Enquanto não cessar a permanência, o agente encontra-se em situação de flagrância, ensejando, assim, a efetivação de sua prisão em flagrante, inde­ pendentemente de prévia autorização judicial. Nos exatos termos do art. 303 do CPP, “nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante de­ lito enquanto não cessar a permanência”.288

Daí a importância de se saber se determinado delito é ou não permanente. Vejamos alguns exem­ plos de crimes permanentes: a) sequestro e cárcere privado (CP, art. 148); b) redução à condição análoga de escravo (CP, art. 149);289 c) extorsão mediante se­ questro (CP, art. 159, caput, e parágrafos); d) recepta­ ção, nas modalidades de transportar, ocultar, ter em depósito (CP, art. 180);290 e) ocultação de cadáver (CP, art. 211, caput);291 f) quadrilha ou bando (CP, antiga redação do art. 288);292 g) associação para o tráfico de drogas (Lei n° 11.343/06, art. 35): permite a prisão em flagrante delito durante cada momento em que subsistir vínculo associativo entre os con­ sortes;293 h) ocultação de bens, direitos e valores (Lei n° 9.613/98, art. Io); i) evasão de divisas, nas moda­ lidades de manutenção de depósitos não informa­ dos no exterior (Lei n° 7.492/86, art. 22, parágrafo único); j) tráfico de drogas (Lei n° 11.343/06, art. 33, caput), em algumas modalidades como guardar, trazer consigo, transportar, ter em depósito, etc.294 287. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 146-147.

288. STJ, 6aTurma, HC 17.618, Rel. Fernando Gonçalves, j. 25/09/2001, DJU 15/10/2001. 289. STJ, 5a Turma, HC 33.484/PA, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 13/12/2004 p. 387.

290. STJ, 5a Turma, HC 91,703/MG, Relatora Ministra Jane Silva, Desem­ bargadora convocada doTJ/MG, DJ 26/11/2007 p. 227 291. TJSP:"Prisão. Flagrante. Relaxamento. Inadmissibilidade. Oculta­ ção de cadáver. Réu preso quatro dias após o fato. Irrelevância. Crime de natureza permanente. Ordem denegada"(JTJ 156/343).

285. A ação controlada foi objeto de estudo no Título atinente às pro­ vas, item n° 14, para onde remetemos o leitor.

286. Nessa linha: STF, 1aTurma, HC 74.510/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 22/11/1996 p. 45.690. Não é flagrante forjado aquele resultante de dili­ gências policiais após denúncia anônima sobre tráfico de entorpecentes: STF, Ia Turma, HC 74.195/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 13/09/1996 p. 33.235.

292. STF, 2a Turma, HC 74.127/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 13/06/1997 p. 26.693.

293. STJ, 6a Turma, HC 140.207/SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 03/09/2009, DJe 21/09/2009. 294. No sentido da legalidade da prisão em flagrante de indivíduo cultivando cannabissativa em sua horta particular, por se tratar de crime

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Em todos esses crimes permanentes, em relação aos quais a prisão em flagrante é possível a qualquer momento, enquanto não cessar a permanência, a Constituição Federal autoriza a violação ao domi­ cílio mesmo sem prévia autorização judicial (art. 5o, XI).295 Assim, supondo-se um delito de tráfico de drogas, na modalidade “ter em depósito”, delito de natureza permanente, no qual a consumação se prolonga no tempo e, consequentemente, persiste o estado de flagrância, admite-se, ainda que em perío­ do noturno, e sem autorização judicial, o ingresso da Polícia na casa em que está sendo praticado tal crime, com a consequente prisão em flagrante dos agentes e apreensão do material relativo à prática criminosa.296

8.2. Prisão em flagrante em crime habitual O crime habitual é aquele que demanda a práti­ ca reiterada de determinada conduta, por exemplo, rufianismo (CP, art. 230), exercício ilegal da medi­ cina, arte dentária ou farmacêutica (CP, art. 282). Crime habitual não se confunde com habitualidade criminosa. Enquanto no crime habitual o delito é único, figurando a habitualidade como elementar do tipo, na habitualidade criminosa há pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma característica do agente, e não da infração penal. No crime habitual a prática de um ato isolado não gera tipicidade, ao passo que, na habitualidade criminosa, tem-se uma sequência de atos típicos que demonstram um estilo de vida do autor.297

Há divergências quanto à possibilidade de prisão em flagrante em crime habitual. Parte da doutrina não a admite, sob o fundamento de que tal delito somente se aperfeiçoa com a reiteração da conduta, o que não seria passível de verificação em um ato isolado, que é a prisão em flagrante. É essa, entre outros, a posição de Fernando da Costa Tourinho Filho.298 Com a devida vênia, pensamos que não se pode estabelecer uma vedação absoluta à prisão permanente: STJ, 5a Turma, HC 11.222/MG, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 27/11/2000 p. 175. 295. STF, 2a Turma, HC 84.772/MG, Relatora Ministra Ellen Gracie, Dj 12/11/2004 p. 41.

296. STJ, 6a Turma, HC 21.392, Rei. Vicente Leal, j. 22.10.2002, DJU 18.11.2002, p. 296. No mesmo sentido: STJ, 5a Turma, HC 35.642/SP, Rei.

Min. Gilson Dipp, DJ 07/03/2005 p. 293.

297. STF, Ia Turma, HC 72.848/SP, Rei. Min. limar Galvão, DJU 24/11/1995. 298. Op. cit. p. 479. Na mesma linha: CAPEZ, Fernando. Curso de proces­ so penal. 6a ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 225. No mesmo sentido é a posição de Paulo Rangel (op. cit. p. 624) e de Tourinho Filho (op. cit. p. 479). MARQUES, José Frederico Marques,". (Tratado de Direito Penal, vol. II. Bookseller, 1997. p. 89).

em flagrante em crimes habituais. Na verdade, a possibilidade de efetivação da prisão em flagrante em crimes habituais deve estar diretamente ligada à comprovação, no ato, da reiteração da prática de­ lituosa pelo agente.299 A título de exemplo, imagine-se a hipótese em que a polícia, após ligação anônima, comparece a determinado consultório onde um falso médico é encontrado prestando serviços médicos a clientes ludibriados. Lá chegando, depara-se com uma es­ trutura completa de um consultório médico - se­ cretária atendendo ao telefone, inúmeros clientes aguardando atendimento, documentação comprobatória de inúmeras consultas já realizadas, além de um atendimento médico realizado pelo agente naquele exato momento. Ora, em uma tal situação, não haveria como negar a certeza visual do crime, autorizando-se, portanto, a prisão em flagrante.300*

8.3. Prisão em flagrante em crime de ação pe­ nal privada e em crime de ação penal pública condicionada Como o art. 301 não distingue entre crime de ação penal pública e crime de ação penal privada, referindo-se ao sujeito passivo do flagrante como ‘quem quer que seja encontrado em flagrante delito’, nada impede a prisão em flagrante em relação a crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada.

Ocorre que, em se tratando de crime de ação penal pública condicionada à representação (ou à requisição do Ministro da Justiça), ou de ação pe­ nal privada, a instauração do inquérito policial e a própria persecução penal estão condicionadas à manifestação de vontade do ofendido (ou do Mi­ nistro da Justiça). De fato, o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado (CPP, art. 5o, § 4o), ao passo que, nos crimes de ação privada, a autori­ dade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para in­ tentá-la (CPP, art. 5o, § 5o).

Portanto, em relação a tais delitos, afigura-se possível a captura e a condução coercitiva daque­ le que for encontrado em situação de flagrância, 299. No sentido de que o caráter habitual do crime de casa de prosti­ tuição não impede a efetuação de prisão em flagrante: STF, RHC 46.115/ SP, Rei. Min. Amaral Santos - DJ 26/09/1969. Ainda no sentido da possibi­ lidade de prisão em flagrante em crimes habituais: STF, Pleno, HC 36.723, Rei. Min. Nelson Hungria, DJ 05/09/1960 p. 975; STJ, 5a Turma, HC 42.995/ RJ, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 24/10/2005 p. 354. 300. É essa a posição de Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal. 18a

ed. rev. e atual, até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 378) e de Marcellus Polastri Lima (op. cit. p. 344).

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fazendo-se cessar a agressão com o escopo de manter a paz e a tranquilidade social. No entanto, a lavratura do auto de prisão em flagrante estará condicionada à manifestação do ofendido ou de seu representante legal. Se a vítima não puder imediata­ mente ir à delegacia para se manifestar, por ter sido conduzida ao hospital ou por qualquer motivo rele­ vante, poderá fazê-lo no prazo de entrega da nota de culpa (24 horas). Não há necessidade de qualquer formalismo nessa manifestação de vontade, bastan­ do estar evidenciada a intenção da vítima de que o autor do delito seja responsabilizado criminalmente. Assim, caso a vítima tenha comunicado o fato à au­ toridade policial e presenciado a lavratura do auto de prisão em flagrante, tem-se como demonstrado inequivocamente o seu interesse em que se promova a responsabilidade penal do agente.301

Caso a vítima não emita autorização, deve a autoridade policial liberar o ofensor, sem nenhuma formalidade, documentando o ocorrido em boletim de ocorrência, para efeitos de praxe.

8.4. Prisão em flagrante em crimes formais Crime formal ou de consumação antecipada é aquele que prevê um resultado naturalístico, que, no entanto, não precisa ocorrer para que se opere a consumação da infração penal. A título de exemplo, a mera exigência de vantagem indevida no crime de concussão (CP, art. 316, caput) já é suficiente para sua consumação, configurando o recebimento mero exaurimento do delito. A prisão em flagrante é perfeitamente possível em crimes formais. No entanto, deve ser efetivada enquanto o agente estiver em situação de flagrân­ cia, e não no momento do exaurimento do delito. Logo, voltando-se ao exemplo do crime de concus­ são, a conduta que autoriza a prisão em flagrante é a exigência de vantagem indevida pelo funcionário público, e não o seu recebimento uma semana de­ pois. Destarte, se o agente for preso quando estava recebendo a vantagem indevida, ter-se-á uma prisão ilegal, caso esta seja efetuada em relação ao crime de concussão, autorizando-se o relaxamento. Isso, no entanto, não significa dizer que o agente não será responsabilizado pelo delito. Não se pode confun­ dir a existência do crime, que efetivamente ocorreu, com a prisão em flagrante, que somente seria possí­ vel no momento da exigência da vantagem indevida. E nem se diga, em relação ao exemplo, que teria ocorrido flagrante preparado, e, por consequência, 301. STJ, 5a Turma, RHC 8.680/MG, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 04/10/1999 p. 63. 904

crime impossível. Com efeito, não houve qualquer induzimento ou instigação à prática do delito, que se consumou com a mera exigência do funcionário público.302

Como dito acima, caso a prisão em flagrante seja efetuada pelo crime de concussão (CP, art. 316) quando o agente está recebendo a vantagem indevi­ da, ter-se-á flagrante ilegal, pois ninguém pode ser preso quando do exaurimento do delito - lembre-se que o verbo núcleo do tipo penal de concussão é exigir. No entanto, caso a autoridade policial conclua que o delito praticado tenha sido o de corrupção passiva (CP, art. 317) na modalidade de receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vanta­ gem indevida, em razão da função pública, deve a prisão em flagrante ser considerada legal, na medida em que o agente fora preso quando estava receben­ do vantagem indevida, caracterizando hipótese de flagrante próprio, nos termos do art. 302,1, do CPP.

8.5. Prisão em flagrante em crime continuado (flagrante fracionado) Na hipótese de continuidade delitiva, temos, indubitavelmente, várias condutas, simbolizando várias infrações. Contudo, por uma ficção jurídica, irá haver, na sentença, a aplicação da pena de um só crime, exasperada de um sexto a dois terços, na hipótese do art. 71, caput, do Código Penal. Como existem várias ações independentes, irá incidir, iso­ ladamente, a possibilidade de se efetuar a prisão em flagrante por cada uma delas, ou seja, na medida em que os delitos que compõem o crime continuado guardam, em termos fáticos, autonomia entre si, cada um deles autoriza, de forma independente no tocante aos demais, a efetivação da prisão, desde que presente uma das hipóteses do art. 302 do CPP. É o que se denomina de flagrante fracionado.

9. FLAGRANTE E APRESENTAÇÃO ESPONT­ NEA DO AGENTE Pela própria leitura a contrario sensu da antiga redação do art. 317 do CPP, doutrina e jurisprudên­ cia eram uníssonas em afirmar que se o agente se apresentasse espontaneamente à autoridade policial, que não o perseguia, não era possível sua prisão em 302. No sentido de que, no crime de concussão, a situação de flagrante delito configura-se pela exigência - e não pela entrega - da vantagem indevida, já que se trata, o crime do art. 316 do CP, de crime formal, que se consuma com a exigência da vantagem indevida, funcionando even­ tual entrega do exigido como mero exaurimento do crime previamente consumado: STJ, 5a Turma, HC 266.460/ES, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 11/6/2015, DJe 17/6/2015. Sob a mesma ótica: STF, 1a Turma, HC 80.033/BA, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/05/2000 p. 15; STF, 1a Turma, HC 72.168/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 09/06/1995 p. 17.232; STF, 1a Turma, RHC 48.438/RJ, Rei. Min. Djaci Falcão, DJ 19/02/1971.

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flagrante, o que, todavia, não impedia a decretação de sua prisão preventiva, caso presentes seus pres­ supostos. O dispositivo era claro ao afirmar que a apresentação espontânea não impedia a decretação da prisão preventiva. Logo, era inviável a prisão em flagrante, o que, no entanto, não significava dizer que haveria impunidade, pois é óbvio que a autori­ dade policial deveria instaurar o respectivo inqué­ rito policial.303

Ainda em relação à apresentação espontânea, especial atenção deve ser dispensada à antiga reda­ ção do art. 318 do CPP, segundo o qual não teria efeito suspensivo a apelação de sentença absolutória quando o acusado se apresentasse espontaneamen­ te à prisão, confessando crime de autoria ignorada ou imputado a outrem. Com a redação dada ao art. 596 do CPP pela Lei n° 5.941/73, o art. 318 foi tacitamente revogado, pois a apelação que ataca a sentença absolutória nunca terá efeito suspensivo. Subsiste a confissão, portanto, tão somente como circunstância atenuante genérica (CP, art. 65, inciso III, “d”). Com o advento da Lei n° 12.403/11, percebe-se que o Capítulo IV, que tratava da apresentação espontânea do acusado, doravante passará a dispor sobre a prisão domiciliar, objeto de nosso estudo mais abaixo. Não obstante tal modificação, quere­ mos crer que a apresentação espontânea continua figurando como causa impeditiva da prisão em flagrante. Afinal, não tem cabimento prender em flagrante o agente que se entrega à polícia, que não o perseguia, e confessa o crime. De mais a mais, quando o agente se apresenta espontaneamente, não haverá flagrante próprio, impróprio, nem tampouco presumido (CPP, art. 302,1, II, III e IV), desautori­ zando sua prisão em flagrante. Obviamente, caso o juiz entenda que estão presentes os pressupostos dos art. 312e313do CPP, nada impede a decretação da prisão preventiva pela autoridade judiciária compe­ tente, caso se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP.304 303. STF, 2a Turma, RHC 61.442/MT, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ 10/02/1984 p. 11.016. E também: STF, 1aTurma, RHC 58.568/ES, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJ 13/02/1981 p. 752; STJ, 5a Turma, HC 30.527/ RJ, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 22/03/2004 p. 335; STJ, 6a Turma, HC 7.828/ RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 17/02/1999 p. 166; STF, 1aTurma, HC 87.425/PE, Rel. Min. Eros Grau, j. 14/03/2006, DJ 05/05/2006. 304. Na mesma linha: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 156. Em sentido diverso, apontando que, doravante, a apresentação espontânea não mais impede a prisão em flagrante: MACIEL, Silvio. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. Coordenação: Luiz Flávio Gomes e Ivan Luís Marques. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 161.

10. LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO EM FLA­ GRANTE DELITO Efetuada a prisão em flagrante delito do agente, é indispensável que se proceda a sua documentação, o que será feito por meio da lavratura do auto de prisão em flagrante delito (CPP, art. 304). Cuida-se, o auto de prisão em flagrante deli­ to, de instrumento em que estão documentados os fatos que revelam a legalidade e a regularidade da restrição excepcional do direito de liberdade, fun­ cionando, ademais, como uma das modalidades de notitia criminis (de cognição coercitiva), e, portanto, como peça inicial do inquérito policial.

Todas as formalidades legais devem ser obser­ vadas quando de sua lavratura, seja no tocante à efetivação dos direitos constitucionais do preso em flagrante, seja em relação à documentação que deve ser feita, sob pena de a prisão ser considerada ilegal, do que deriva seu relaxamento. Tal ilegalidade, to­ davia, só atinge a prisão em flagrante, não contami­ nando o processo, uma vez que os vícios constantes do inquérito policial não tem o condão de macular a ação penal a que der origem. Ademais, como visto anteriormente, o relaxamento da prisão em flagrante por força da inobservância das formalidades legais não impede que o juiz decrete a prisão preventiva ou a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, desde que preenchidos seus pressupostos. No caso de crime relacionado a drogas, a lavra­ tura do auto de prisão em flagrante está condiciona­ da à presença de laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea (Lei n° 11.343/06, art. 50, § Io).

No âmbito processual penal militar, se o auto de prisão em flagrante delito for, por si só, suficiente para a elucidação do fato e sua autoria, o próprio auto constituirá o inquérito, dispensando outras di­ ligências, salvo o exame de corpo de delito no crime que deixa vestígios, a identificação da coisa e a sua avaliação, quando o seu valor influir na aplicação da pena (CPPM, art. 27). Quanto ao teor do revogado art. 531 do CPP, segundo o qual o processo das contravenções penais poderia ter início com o auto de prisão em flagrante delito, já se entendia, desde o advento da Consti­ tuição Federal de 1988, que atribuiu ao Ministério Público a função de promover, privativamente, a ação penal pública (art. 129, inciso I), que o referido dispositivo do CPP não havia sido recepcionado. Em boa hora, portanto, o dispositivo acabou sendo revogado pela Lei n° 11.719/08.

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Em regra, o auto de prisão em flagrante deve ser lavrado por escrito. Porém, a nosso ver, é plena­ mente possível que as oitivas realizadas por ocasião da lavratura do APF sejam filmadas, independen­ temente de consentimento dos envolvidos. A uma, porque tal gravação reproduzirá com maior fide­ lidade as informações prestadas pela vítima, pelas testemunhas e pelo próprio preso, evitando, ade­ mais, futuras alegações de constrangimentos físicos e/ou morais praticados pela autoridade policial. Em segundo lugar, porque o art. 405, § Io, do CPP, auto­ riza que o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas seja feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual.

10.1. Autoridade com atribuições para a lavra­ tura do auto de prisão em flagrante Em regra, a atribuição para a lavratura do auto de prisão em flagrante é da autoridade policial no exercício das funções de polícia investigativa do local em que se der a captura do agente, o que, no entanto, não afasta a atribuição de outra autoridade administrativa a quem, por lei, é cometido o mesmo mister (CPP, art. 4o, parágrafo único), como, por exemplo, agentes florestais. Nessa linha, de acordo com a súmula 397 do Supremo Tribunal Federal, “o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito”.

No âmbito militar, esta atribuição recai sobre o comandante, oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou autoridade correspondente, tal qual dispõe o art. 245, caput, do CPPM. Apesar de o art. 304 do CPP fazer menção à apresentação do preso à autoridade competente, a não observância das normas administrativas que disciplinam a divisão de atribuições entre as diver­ sas autoridades policiais não acarreta o reconhe­ cimento de nulidade, não só porque tais autorida­ des não exercem jurisdição, sendo descabido falar em incompetência, como também por força do art. 564, I, CPP, que se refere à incompetência do juiz como causa de invalidade do ato irregularmente praticado.305

Por força da Constituição Federal, apresenta­ do o preso à autoridade competente, esta deverá: a) 305. Nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE, Antônio Fernandes; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6a ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 224.

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comunicar a prisão e o local onde se encontre ime­ diatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 5o, inciso LXII); b) informar ao preso seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistên­ cia da família e de advogado (art. 5o, inciso LXIII); c) identificar ao preso os responsáveis por sua pri­ são ou por seu interrogatório policial (art. 5o, inciso LXIV). É comum que a autoridade policial, de modo a documentar os atos acima referidos, determine a lavratura de uma certidão de direitos constitucionais, juntando-a aos autos.306

Na medida em que a prisão em flagrante dis­ pensa prévia autorização judicial, as formalidades estabelecidas pela Constituição Federal e pelo Có­ digo de Processo Penal devem ser rigorosamente observadas, sob pena de, não o sendo, acarretar a ilegalidade da prisão e seu consequente relaxamen­ to (CF, art. 5o, inciso LXV). Não se pode perder de vista que a prisão em flagrante é uma medida de caráter excepcional que, embora permitida pela Constituição Federal, amplia o poder estatal em detrimento do direito de locomoção, sem que haja prévio controle jurisdicional acerca da medida constritiva. Daí a necessária e obrigatória observância das formalidades legais impostas pela Constituição Federal e pela legislação processual penal: trata-se de requisitos ad solemnitatem, cuja razão de ser se encontra na excepcionalidade do poder conferido à referida autoridade.307 Em regra, o auto de prisão em flagrante deve ser lavrado pelo escrivão, na presença do Delegado de Polícia. Na falta ou impedimento do escrivão, per­ mite a lei que a autoridade designe qualquer pessoa para tal função, desde que preste o compromisso legal anteriormente (CPP, art. 305, caput).

Quando a infração penal é cometida contra a autoridade competente para a lavratura do auto de prisão em flagrante, ou em sua presença, estando ela no exercício de suas funções, a própria autori­ dade pode figurar como condutora. Essa permissão somente se refere às pessoas que podem presidir inquéritos ou ações penais (autoridade policial e juiz), e não a qualquer autoridade, mesmo sendo ela presidente de comissão parlamentar de inquérito.308 306. Remetemos o leitor ao tópico pertinente aos direitos e garantias constitucionais atinentes à liberdade de locomoção. 307. É essa a lição de PIMENTA BUENO (Anotações aos apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1959, p. 86, apud Romeu Pires de Campos Barros. Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro: Forense: 1982. p. 127). 308. A propósito: "Nulidade do auto de prisão em flagrante lavrado por determinação do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, dado que não se consignou qual a declaração falsa feita pelo depoente

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Quanto à possibilidade de o magistrado lavrar o auto, o art. 307 do Código de Processo Penal deixa entrever que o juiz também pode lavrar o fla­ grante (... remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conhecimento do fato delituoso, se não for a autoridade que houver presidido o auto). Indispensável, nessa hipótese, que a infração tenha sido praticada na presença da autoridade, quando no exercício de suas funções, ou cometida contra ela própria, quando estava no exercício de suas funções. A nosso juízo, em relação ao magistrado, esse dispositivo do art. 307 do CPP não foi recep­ cionado pela Constituição Federal. Isso porque a Carta Magna adotou o sistema acusatório, do que deriva a conclusão de que o juiz não deve partici­ par da colheita de elementos informativos na fase investigatória.

Dada a voz de prisão pela própria autoridade, do auto constará a narração do fato, a oitiva de duas testemunhas e do preso, nessa ordem. Em seguida, o auto deve ser encaminhado à autoridade judiciária competente. Como dito acima, parte da doutrina entende que nada impede que o próprio magistrado seja a autoridade competente para a lavratura do auto. Nesse caso, obviamente, não há falar em co­ municação à autoridade judiciária, pois ele próprio já conferiu legalidade à prisão, transformando-se em autoridade coatora para fins de cabimento de habeas corpus, motivo pelo qual eventual impugnação de­ verá ser encaminhada ao respectivo tribunal. Caso a autuação seja presidida pelo juiz, não poderá ele exercer jurisdição no processo resultante da prática do crime, haja vista o impedimento constante do art. 252, inciso II e IV, do CPP, devendo remeter os autos ao seu substituto legal.

10.2. Condutor e testemunhas A primeira pessoa a ser ouvida quando da lavra­ tura do auto de prisão em flagrante é o condutor, que pode ser tanto uma autoridade, como também um particular, responsável pela condução do capturado à autoridade. Não é necessário que tenha presenciado a prática do delito, nem tampouco a prisão, pois o pre­ so pode ter sido entregue a ele. Após sua oitiva, deve o presidente do auto de prisão em flagrante proceder à oitiva de duas testemunhas que tenham presenciado o fato. A oitiva do ofendido não é obrigatória, o que, no entanto, não impede sua realização.

Por construção jurisprudencial, desde que o condutor tenha presenciado o fato delituoso, vem-se admitindo que seja ouvido como se fos­ se testemunha. Assim, bastaria apenas mais uma testemunha.309

A ausência de testemunhas que tenham pre­ senciado o fato delituoso não impede a lavratura do auto de prisão em flagrante. Nessa hipótese, além do condutor, duas testemunhas que tenham presencia­ do a apresentação do preso à autoridade deverão ser ouvidas (CPP, art. 304, § 2o). A jurisprudência vem admitindo que policiais sirvam como testemunhas no auto de prisão em flagrante delito.310

Não se deve confundir as testemunhas que pre­ senciaram o fato delituoso, nem tampouco as que acompanharam a apresentação do preso à autori­ dade com as testemunhas a que se refere o § 3o do art. 304 do CPP. Essas testemunhas, denominadas de fedatárias ou instrumentárias, que não são teste­ munhas de um fato, mas sim de um ato, serão cha­ madas a assinar o auto quando o preso se recusar a assiná-lo, não souber ou não puder fazê-lo, exigindo a lei que tenham ouvido a leitura do interrogatório na presença do conduzido. A finalidade é confirmar que as declarações ali colhidas foram efetivamente prestadas pelo preso.311

10.3. Interrogatório do preso312 Após a oitiva do condutor e das testemunhas, deve a autoridade competente proceder à realização do interrogatório do preso. Conquanto o Código de Processo Penal se refira em seu art. 304, caput, ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, tecnicamente ainda não há falar em acusado, haja vista não existir peça acusatória imputando-lhe a prática de fato delituoso.

Deve o presidente do auto assegurar ao preso a possibilidade de que seja ouvido. No entanto, é possível que este permaneça calado, fazendo uso de seu direito ao silêncio (art. 5o, LXIII, da Cons­ tituição Federal), desdobramento do princípio do 309. STJ, 6a Turma, RHC 7.610/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 24/08/1998 p. 106. 310. STJ, 5a Turma, HC 58.127/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada doTJ/MG, DJ 17/12/2007 p. 234. No mesmo sentido: STJ, 6a Turma, HC 45.653/PR, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 13/03/2006 p. 380. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 27.269/DF, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 25/08/2003 p. 342.

311. STJ, 5a Turma, RHC 1.454/ES, Rei. Min. Jesús Costa Lima, DJ 21/10/1991 p. 14.751. e a razão pela qual assim a considerou a Comissão. Auto de prisão em flagrante lavrado por quem não preenche a condições de autoridade (art. 307 do CPP)''. (STF - HC 73.035/DF -Tribunal Pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 19/12/1996 p. 51.766).

312. Quanto à obrigatoriedade da presença de defensor por ocasião do interrogatório realizado durante a lavratura do auto de prisão em fla­ grante, remetemos o leitor ao capítulo atinente à investigação preliminar,

mais precisamente ao item 9.5.1.

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nemo tenetur se detegere. Deve se assegurar ao pre­ so, ademais, a assistência da família e de advogado, assim como a possibilidade de comunicar a prisão à família ou à pessoa por ele indicada (CF, art. 5o, LXII, LXIII).313 É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que eventual nulidade no auto de prisão em flagrante devido à ausência de assistência por advogado somente se verifica caso não seja oportunizado ao conduzido o direito de ser assistido por defensor técnico, sendo suficiente a lembrança, pela autoridade policial, dos direitos do preso previstos no art. 5o, LXIII, da Constituição Federal.314 Por razões óbvias, se não for possível a rea­ lização do interrogatório do preso, porque este se encontra hospitalizado, embriagado ou impossi­ bilitado por qualquer razão de se manifestar, isso não acarreta a ilegalidade do auto de prisão em flagrante.315

Caso o preso seja estrangeiro e não compreen­ da o idioma nacional, é imprescindível a nomeação de um intérprete, nos termos do art. 193, c/c arts. 275 a 281 do CPP. O intérprete, que é equiparado ao perito (CPP, art. 281), deve ser pessoa capaz de compreender e transmitir ao preso, assim como dele receber, as informações essenciais para que possa entender a situação e se defender. Trata-se de ga­ rantia fundamental, já que, na hipótese de o preso não compreender o idioma e não conseguir se co­ municar, ficam prejudicados seus direitos constitu­ cionais. Se o preso estrangeiro entender o português, notadamente quando se trata de língua semelhante ao espanhol, não há necessidade de nomeação de intérprete. Noutro giro, caso não seja possível a no­ meação de intérprete capaz de falar a língua original do estrangeiro, é perfeitamente possível a nomeação de intérprete que fale língua que o preso conheça.316

313. Vide acima item pertinente aos direitos e garantias constitucio­

nais relativas à prisão cautelar. 314. Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, HC 442.334/RS, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 21/06/2018, DJe 29/06/2018; STJ, 6aTurma, HC 382.872/TO, Rei. Min. MariaThereza de Assis Moura, j. 09/05/2017, DJe 15/05/2017; STJ, 6a Turma, RHC 63.063/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 27/10/2015, DJe 16/11/2015. 315. Não invalida a prisão em flagrante a audiência do conduzido, no leito do hospital, subsequentemente a lavratura do auto na delegacia, quando impossibilitado de ser interrogado: STF, 1a Turma, RHC 62.855/ SP, Rei. Min. Rafael Mayer, DJ 19/04/1985 p. 15.456.

316. Em caso concreto referente a cidadão alemão, já radicado no Brasil há mais de 3 (três) anos e meio, que falava o português, concluiu

o STJ não haver necessidade de nomeação de intérprete: STJ, 6a Turma, RHC 4.582/RJ, Rei. Min. Adhemar Maciel, j. 19/09/1995, DJ 27/11/1995 p. 40.928. No sentido de que, na falta de intérprete do idioma do interro­ gado estrangeiro, é possível que o ato seja feito em língua a ele acessível - no caso concreto, tratava-se de cidadão austríaco, que falava alemão, mas entendida o inglês permitindo-lhe entender os fatos, ter ciência de sua situação e fornecer respostas: STJ, 6a Turma, RHC 7.229/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 19/03/1998, DJ 06/04/1998 p. 164.

No tocante à prisão em flagrante de advogado, é bom lembrar que, segundo o art. 7o, IV, da Lei n° 8.906/94, é direito do advogado ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB. Perceba-se que a presença de representante da OAB somente será necessária quando o crime praticado pelo advogado guardar certo liame com o exercício de sua profissão. Não havendo qualquer liame, basta a comunicação expressa à seccional da OAB.317 Discute-se na doutrina quanto à necessidade de que o preso menor de 21 (vinte e um) e maior de 18 (dezoito) anos seja ouvido na presença de curador (CPP, art. 15, caput). A nosso ver, a presença do curador é desnecessária, haja vista que a menori­ dade civil cessa aos 18 (dezoito) anos completos, de acordo com o art. 5o do Novo Código Civil, dispo­ sitivo este que derrogou os arts. 15, 262, e 564, III, “c”, última parte, do CPP. Aliás, o próprio art. 194 do CPP, que previa a realização do interrogatório na fase judicial com a presença de curador, foi revogado pela Lei n° 10.792/03. Todavia, para aqueles autores que entendem que os silvícolas são relativamente incapazes e também necessitam de curador para acompanhá-los durante a fase investigativa e processual, sob pena de nulidade, assim como para aqueles que en­ tendem ser necessária a nomeação de curador aos acusados que sofrem de perturbações mentais se não tiverem representante legal ou se os interesses deste colidirem com os daqueles, com fundamento na lei processual civil (NCPC, art. 72,1), a figura do curador ainda permanece obrigatória. Aliás, caso a autoridade que preside a lavratura do auto de prisão em flagrante delito perceba que o preso revela sinais de alienação mental, deve representar ao juiz pela instauração de incidente de insanidade mental, nos termos do art. 149, § Io, do CPP.

Por ocasião da lavratura do APF devem ser colhidas informações sobre a existência de filhos do flagranteado, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de even­ tual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa (CPP, art. 304, § 4o, incluído pelo Marco Civil da Primeira Infância). O objetivo da Lei n° 13.257/16 foi conferir ao magistrado informações mais completas acerca da pessoa presa para fins de

TRF4, 317. HC 1999.04.01.135923-3, Turma de Férias, Relator Silvia Maria Gonçalves Goraieb, DJ 16/02/2000.

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possível concessão de prisão domiciliar (CPP, art. 318, III, V, e VI).

subentende-se que esse é o prazo máximo de que dispõe a autoridade para formalizá-lo.318

10.4. Fracionamento do auto de prisão em fla­ grante delito

10.6. Relaxamento da prisão em flagrante pela autoridade policial (auto de prisão em flagran­ te negativo)

Com a entrada em vigor da Lei n° 11.113/05, houve o fracionamento do auto de prisão em fla­ grante delito. Antes da entrada em vigor da referida lei, o auto era uma peça única, inteiriça, de texto corrido, composta pelo depoimento do condutor, das testemunhas e do conduzido, que só assinavam o auto após a oitiva de todos os envolvidos. Em outras palavras, imaginando-se a hipótese de um policial militar como condutor, isso significava que ele deveria permanecer na Delegacia até o final da lavratura do auto, aguardando a oitiva das testemu­ nhas e de todos os presos, quando, então, poderia assinar o auto e retornar às suas atividades rotinei­ ras. Essa permanência do condutor até o final da lavratura do auto era causa de inequívocos prejuízos à segurança pública, retirando o policial de sua ati­ vidade funcional por tempo bastante considerável.

É compreendendo o cenário anterior que se visualiza a importância da Lei n° 11.113/05, que fracionou o auto de prisão em flagrante delito. Atualmente, o presidente do auto deve ouvir o condutor, colhendo sua assinatura desde logo, e lhe entregando cópia do termo e recibo de entre­ ga do preso. Isso significa que, após sua oitiva, o condutor estará livre para retornar ao exercício da sua função. Da mesma forma se procederá quanto à oitiva das testemunhas, que não mais precisarão aguardar o término do auto para o assinarem. Ao fi­ nal, a autoridade policial determina ao escrivão que autue todos os documentos em uma capa, incluin­ do o auto de prisão em flagrante, a nota de culpa, laudo de constatação da natureza da substância (no caso de drogas), ofício de comunicação da prisão em flagrante ao juiz e ao Ministério Público, termo de ciência das garantias constitucionais entregue ao preso, ofício de comunicação da prisão à defensoria pública, caso o autuado não possua advogado, etc., remetendo-os ao juiz competente.

10.5. Prazo para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito Não há dispositivo legal expresso quanto ao prazo para a lavratura do auto de prisão em fla­ grante. Entretanto, em virtude do disposto nos §§ Io e 2o do art. 306, segundo os quais o auto de prisão em flagrante será encaminhado ao juiz competen­ te e a nota de culpa será entregue ao preso den­ tro em 24 (vinte e quatro) horas depois da prisão,

De acordo com o disposto no caput do art. 304 do CPP, cabe à autoridade policial ouvir o condutor, as testemunhas que o acompanharem e, finalmente, interrogar o preso. Se de todo o apurado obtiver, na linguagem do parágrafo primeiro do mesmo dispo­ sitivo, fundada suspeita contra o conduzido, ou seja, se os fatos narrados constituírem infração penal, constando elementos que indiquem que o condu­ zido provavelmente é o seu autor, e se a situação em que o conduzido foi encontrado configurar uma das hipóteses de flagrante admitidas na legislação, deverá a autoridade policial determinar seu reco­ lhimento à prisão.

Caso contrário, se das respostas do condutor e das testemunhas não resultar fundada suspeita contra o conduzido, interpretando-se a contrario sensu o art. 304, § Io, do CPP, a autoridade policial não poderá recolhê-lo à prisão, devendo determinar sua imediata soltura, sem prejuízo da instauração de inquérito policial ou lavratura de simples boletim de ocorrência.319 Tem-se aí, para parte da doutrina, a possibi­ lidade de relaxamento da prisão em flagrante pela própria autoridade policial (auto de prisão em fla­ grante negativo).320 Assim, o Delegado de Polícia pode e deve relaxar a prisão em flagrante, com ful­ cro no art. 304, § Io, interpretado a contrario sensu, correspondente ao primeiro contraste de legalidade obrigatório quando não estiverem presentes algu­ mas condições somente passíveis de verificação ao final da formalização do auto, como, por exemplo, o convencimento, pela prova testemunhai colhida, de que o preso não é o autor do delito.321 318. STF, 2a Turma, RHC 60.649/SC, Rel. Min. Cordeiro Guerra, DJ

25/03/1983 p. 3.464. 319. De modo semelhante, segundo o art. 246 do CPPM, se das respos­ tas resultarem fundadas suspeitas contra a pessoa conduzida, a autorida­ de mandará recolhê-la à prisão, procedendo-se, imediatamente, se for o caso, a exame de corpo de delito, à busca e apreensão dos instrumentos do crime e a qualquer outra diligência necessária ao seu esclarecimento. Por sua vez, de acordo com o art. 247, § 2o, do CPPM, se, ao contrário da hipótese prevista no art. 246, a autoridade militar ou judiciária verificar a manifesta inexistência de infração penal militar ou a não participação da pessoa conduzida, relaxará a prisão. Em se tratando de infração penal comum, remeterá o preso à autoridade civil competente.

320. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo pena/. 3o volume. 31a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 421. 321. Habeas corpus e polícia judiciária. Tortura, crime militar, habeas corpus. Justiça penal - críticas e sugestões. Vol. 5. Coordenação Jaques de Camargo Penteado. São Paulo: RT, 1997 p. 233-234.

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A nosso ver, não se trata propriamente de re­ laxamento da prisão em flagrante. A uma porque, como ato complexo que é, a prisão em flagrante somente estará aperfeiçoada após a captura, con­ dução coercitiva, lavratura do auto e recolhimento à prisão, sendo inviável falar-se em relaxamento da prisão em flagrante se todas essas fases ainda não foram cumpridas. Ademais, a própria Constituição Federal, ao se referir ao relaxamento da prisão ilegal, deixa claro que somente a autoridade judiciária tem competência para fazê-lo (CF, art. 5, LXV). Enxer­ gamos, pois, no art. 304, § Io, do CPP, não uma hipótese de relaxamento da prisão em flagrante, mas sim situação em que a autoridade competente deixa de ratificar a voz de prisão em flagrante dada pelo condutor por entender que não há fundada suspeita contra o conduzido.

10.7. Recolhimento à prisão Após a lavratura do auto de prisão em flagrante, o presidente do auto mandará recolher o conduzido à prisão, salvo nas hipóteses em que for cabível a concessão de liberdade provisória com fiança pela autoridade policial, ou seja, nos casos de infração cuja pena máxima não seja superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com redação dada pela Lei n° 12.403/11). A título de exemplo, imagine-se a hi­ pótese de um homicídio culposo (CP, art. 121, § 3o), cuja pena é de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Nesse caso, as três primeiras fases da prisão em flagrante ocorrerão normalmente: 1) captura; 2) condução coercitiva; 3) lavratura do auto de prisão em flagrante. Ocorre que, como a infração é punida com pena máxima não superior a 4 (quatro) anos, ao invés de recolher o conduzido à prisão (quarto e último ato da fase administrativa da prisão em flagrante), deve a autoridade policial conceder-lhe liberdade provisória com fiança, ex vi do art. 322 do CPP. Caso não seja efetuado o recolhimento da fiança, a colocação do preso em liberdade passa a depender de autorização judicial, nos termos do art. 310, III, do CPP.

10.8. Remessa do auto à autoridade competente Como visto no art. 290, caput, do CPP, em re­ gra, a autoridade competente para a lavratura do auto de prisão em flagrante é aquela que exerce suas funções no local em que foi efetuada a prisão, e não a do local em que se deu a consumação da infração penal. Caso não haja autoridade no lugar em que se tiver efetuado a prisão, o conduzido será apre­ sentado à do lugar mais próximo (CPP, art. 308), entendendo-se por lugar mais próximo aquele a que mais rapidamente se consiga chegar. Vale ressaltar,

todavia, que, o fato de o auto ter sido lavrado por autoridade diversa daquela que efetivou a custódia, por si só, não torna a prisão em flagrante ilegal.322 Não se deve confundir a autoridade com atri­ buição para a lavratura do auto - a do local em que se der a captura -, com a autoridade judiciária com competência territorial para processar e julgar o fei­ to. Lembre-se que, em regra, fixa-se a competência territorial pelo local da consumação da infração penal (CPP, art. 70, caput), subsidiariamente, pelo domicílio ou residência do réu (CPP, art. 72, caput). Caso a autoridade competente para a lavratura do auto não tenha atribuições para os demais atos do inquérito, deverá remeter o auto à autoridade que o seja. Veja-se, que, tratando-se de crime de competência da Justiça Federal, não haverá qualquer nulidade a macular o auto se porventura vier a ser lavrado por autoridade policial estadual. Como já dito acima, o inquérito é mera peça informativa, sendo que os vícios nele existentes não têm o condão de macular o processo penal a que der ensejo.323

Por fim, conquanto o art. 304, § Io, do CPP, refira-se a “processo”, no sentido de que a autorida­ de policial poderia prosseguir nos atos processuais, vale lembrar que, diante da Constituição Federal de 1988 e a adoção do sistema acusatório (CF, art. 129, inciso I), deixaram de existir os chamados proces­ sos judicialiformes pela prática de contravenções e crimes culposos de trânsito, que eram iniciados por portaria ou flagrante delito.

10.9. Remessa do auto de prisão em flagrante delito à autoridade judiciária A nova redação conferida ao art. 306, § Io, do CPP, dispõe que, em até 24 (vinte e quatro ho­ ras) após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas. Como visto anteriormente, ao tratarmos da comunicação imediata da prisão ao juiz competente, não se deve confundir a obrigatoriedade de imediata comuni­ cação com a ulterior remessa do auto, que deve se dar em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura do agente. 322. STJ, 6a Turma, RHC 8.342/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 24/05/1999 p. 201. Com sentido semelhante: STJ, 5a Turma, HC 30.236/ RJ, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 22/03/2004 p. 335.

323. STF: "O fato de o Promotor de Justiça que ofereceu a denúncia contra os Pacientes ter acompanhado a lavratura do auto de prisão em flagrante e demais atos processuais não induz à qualquer ilegalidade ou nulidade do inquérito e da consequente ação penal promovida, o que, aliás, é perfeitamente justificável em razão do que disposto no art. 129, inc. VII, da Constituição da República". (STF, 1aTurma, HC 89.746/SC, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 09/02/2007 p. 30).

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

10.10. Remessa do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, se o autuado não infor­ mar o nome de seu advogado De acordo com o art. 306, § Io, do CPP, com re­ dação determinada pela Lei n° 11.449/07, e mantida pela Lei n° 12.403/11, em até 24 h (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.

10.11. Nota de culpa Em se tratando de prisão em flagrante delito, segundo o art. 306, § 2o, do CPP, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será en­ tregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas. Esse prazo de 24 (vinte e quatro) horas é contado a partir do momento da captura, e não da lavratura do auto de prisão em flagrante delito.324

Caso o preso não saiba, não possa ou não quei­ ra assinar, duas testemunhas assinarão o recibo pelo preso, atestando a entrega do documento (testemu­ nhas instrumentárias). A nota de culpa de modo algum importa em confissão, nem tampouco que o preso esteja aceitando as acusações que lhe foram feitas quando de sua prisão.325

11. CONVALIDAÇÀO JUDICIAL DA PRISÃO EM FLAGRANTE Uma vez comunicada a autoridade judiciária acerca da prisão em flagrante, com o recebimento do auto acompanhado de todas as oitivas colhidas, o que deve fazer o magistrado?

Ao longo dos anos, a jurisprudência majoritária sempre entendeu que, ao receber a comunicação do flagrante, a autoridade judiciária não estaria obriga­ da a fundamentar a manutenção da prisão cautelar do agente. Se acaso deliberasse pelo relaxamento da prisão, aí sim a decisão deveria ser motivada. Portanto, quando da comunicação da prisão em fla­ grante, competia ao Juiz apenas verificar a existência de situação de flagrância e a devida observância das formalidades legais, estando obrigado a apresentar 324. Com esse entendimento: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit. p. 722.

325. Para mais detalhes acerca da nota de culpa e da remessa dos autos à Defensoria Pública, remetemos o leitor ao item pertinente às garantias constitucionais relativas à liberdade de locomoção.

fundamentação apenas se fosse determinado o re­ laxamento da prisão.326

Não obstante o entendimento pretoriano, sem­ pre entendemos que, se a própria Constituição Fe­ deral determina que a prisão ilegal será imediata­ mente relaxada pela autoridade judiciária (CF, art. 5o, inciso LXV) e que ‘ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (CF, art. 5o, LXVI), ao receber a comunicação da prisão em flagrante, e a fim de se assegurar a necessária e inafastável apreciação judicial sobre os pressupostos da priva­ ção cautelar do direito à liberdade de locomoção, deveria o magistrado não só se manifestar quanto à (i) legalidade da prisão em flagrante, como também acerca da necessidade (ou não) de manutenção da prisão do agente, se acaso presentes os pressupostos da prisão preventiva.

Como, na prática, grande parte dos juizes se limitava a analisar apenas a legalidade do auto de prisão em flagrante, deixando para apreciar even­ tual pedido de liberdade provisória apenas quando houvesse pedido formulado pela defesa - não por outro motivo, inseriu-se a obrigatoriedade de co­ municação da prisão à Defensoria Pública, caso o autuado não informasse o nome de seu advogado (CPP, art. 306, § Io, in fine) -, ou por ocasião da audiência una de instrução e julgamento, procedeu bem a Lei n° 12.403/11 ao conferir nova redação ao art. 310 do CPP, obrigando o magistrado a aferir a necessidade (ou não) da manutenção da prisão do agente preso em flagrante.

Consoante disposto no art. 310 do CPP, por ocasião da realização da audiência de custódia decorrente de anterior prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: a) relaxar a prisão ilegal; b) converter a prisão em flagrante em pre­ ventiva (ou temporária); c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada ou não com as medidas cautelares diversas da prisão. Ve­ jamos, separadamente, então, cada uma dessas possibilidades.

11.1. Relaxamento da prisão em flagrante ilegal O primeiro passo do magistrado, ao receber o auto de prisão em flagrante delito, diz respeito à 326. STJ, 6a Turma, RHC 5.650/RS, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 01/09/1997 p. 40.884; TRF1, 3a Turma, HC 2002.01.00.030272-2/MA, Rei. Desembar­ gador Federal Cândido Ribeiro, DJ 18/10/2002 p. 41. E também: TRF1,3a Turma, HC 2004.01.00.036314-8/PA, Rei. Desembargador Federal Tourinho Neto, DJ 17/09/2004 p. 32; STJ, 5a Turma, RHC 10.080/MG, Rei. Min. Edson Vidigal, DJ 25/09/2000 p. 114.

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análise da legalidade da medida constritiva. Essa análise passa pela verificação da regularidade da pri­ são em flagrante, seja pela presença dos requisitos materiais, seja pela presença dos requisitos formais, a saber: a) se o auto de prisão em flagrante noticia a prática de infração penal; b) se o agente capturado estava em uma das situações legais que autoriza o flagrante, elencadas no art. 302 do CPP; c) se foram observadas as formalidades estabelecidas pela Cons­ tituição Federal e pelo Código de Processo Penal, realizando-se um exame ad solemnitatem do auto, ou seja, analisando-se se está formalmente em or­ dem, sem vícios formais; d) se o uso de algemas foi feito nos termos preconizados pela súmula vincu­ lante n° 11 do STF. Assim, verificada a ilegalidade da prisão em flagrante, deve o magistrado determinar seu relaxamento.327 Verificando o magistrado a presença de ordem ou execução de medida privativa de liberdade indi­ vidual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder, também deve encaminhar ao órgão do Minis­ tério Público as peças comprobatórias da ilegalidade, a fim de promover a responsabilização criminal do funcionário, nos termos do art. 9o, caput, da Lei n° 13.869/19. Além disso, vale lembrar que também configura abuso de autoridade deixar a autoridade judiciária, dentro de prazo razoável, de relaxar a pri­ são manifestamente ilegal (Lei n° 13.869/19, art. 9o, parágrafo único, inciso I). O relaxamento da prisão em flagrante não im­ pede, entretanto, a decretação da prisão preventiva e/ou temporária, nem tampouco a decretação das medidas cautelares diversas da prisão, desde que presente seus requisitos legais. Não se pode con­ fundir o juízo de legalidade da prisão em flagrante com o juízo de necessidade das medidas cautelares. O que não se pode admitir, todavia, é o relaxa­ mento da prisão em flagrante, porque ilegal, e a subsequente e automática decretação de eventual prisão preventiva. Esta modalidade de prisão cau­ telar somente se afigura possível quando presentes o fumus comissi delicti, consubstanciado na prova da materialidade e indícios de autoria, e o peri­ culum libertatis - garantia da ordem pública, da ordem econômica, da aplicação da lei penal e con­ veniência da instrução criminal -, e desde que se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas 327. Como adverte Tourinho Filho (op. cit. p. 496), relaxada a prisão em flagrante, descabe o recurso ex officio referido no art. 574,1, do CPP, uma vez que, nessa hipótese, o Juiz não está concedendo habeas corpus de ofício. Remetido o auto de prisão em flagrante a juízo, o preso fica à sua disposição, e, assim, não tem sentido possa o Magistrado conceder habeas corpus contra si próprio.

cautelares diversas da prisão listadas no art. 319 do CPP.328 Por fim, convém destacar que eventual vício no momento da prisão em flagrante só tem o condão de repercutir na legalidade da medida restritiva, não gerando nulidade do processo penal subsequente, nem tampouco servindo como óbice à formação da opinio delicti, ressalvada, logicamente, a hipótese de provas obtidas por meios ilícitos por ocasião da referida prisão.

11.2. Conversão da prisão em flagrante em pre­ ventiva (ou temporária) De acordo com a nova redação do art. 310, II, do CPP, verificada a legalidade da prisão em flagrante, o juiz poderá fundamentadamente con­ verter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, hipótese em que deverá ser expedido um mandado de prisão.329 Para tanto, é indispensável que seja provocado nes­ se sentido, pois jamais poderá fazê-lo de ofício, sob pena de violação aos arts. 3°-A, 282, §§2° e 4o, e 311, todos do CPP, com redação dada pela Lei n. 13.964/19.330 O art. 310, II, do CPP, está em perfeita harmo­ nia com o disposto a respeito da liberdade provisó­ ria no art. 321, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, segundo o qual, ausentes os pressupostos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constan­ tes do art. 282 do CPP. 328. STF, 1a Turma, HC 77.042/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/06/1998 p. 3. E também: STF, 2a Turma, RHC n° ° 61,442/MT, Rei. Min.

Francisco Rezek, DJU de 10.02.84. Ou ainda: STJ, 5aTurma, HC 30.527/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 22/03/2004 p. 335; STJ, 6aTurma, RHC 3.429/RJ, Rei. Min. Pedro Acioli, DJ 16/05/1994 p. 11.787. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que a superveniência de prisão preventiva torna prejudicada a alegação de ilegalidade da segregação em flagrante, tendo em vista a formação de novo título ensejador da custódia cautelar. A

propósito, confira-se: STJ, 6a Turma, RHC 93.880/GO, Rei. Min. Sebastião

Reis Júnior, j. 13/12/2018, DJe 04/02/2019; STJ, 5a Turma, RHC 98.538/CE, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 13/12/2018, DJe 04/02/2019; STJ, 5aTurma, HC 476.258/SC, Rei. Min. Felix Fischer, j. 11/12/2018, DJe 18/12/2018; STJ, 6a Turma, HC 448.480/SP, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 04/12/2018, DJe 14/12/2018.

329. No sentido de que a prisão preventiva só pode ser decretada se houver fundamentação demonstrando a insuficiência ou inadequação das medidas cautelares diversas da prisão: STJ, 5a Turma, HC 219.101/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 10/04/2012. 330. O tema foi objeto de análise no Capítulo III do presente Título, mais precisamente no item 9.7 - "(Im) possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária) de ofício pelo juiz"-, para onde remetemos o leitor.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Em face do art. 310, inciso II, do CPP, a prisão em flagrante deixa de ser motivo para que alguém permaneça preso durante todo o processo, o que se afigura correto, porquanto a finalidade cautelar do flagrante, no tocante a seu caráter processual, esgota-se precisamente na sua função probatória. Para que o acusado possa permanecer preso, para além da evidência da prova do crime e de indícios de autoria (fumus comissi delicti), decorrentes da prisão em flagrante delito em si, deve-se acrescentar outra e nova fundamentação, confirmando a imprescindibilidade da constrição à liberdade de locomoção a partir da presença do suporte fático e normativo autorizadores da prisão preventiva (periculum li­ bertatis). Deve o magistrado, por conseguinte, ao receber cópia do auto de prisão em flagrante, exa­ minar não só a legalidade da medida - para fins de eventual relaxamento da prisão -, como também se há algum motivo que justifica a decretação da prisão preventiva à luz dos arts. 312e313do CPP. Cabe ao juiz, nesse momento, questionar-se acerca da existência de alguma hipótese que autorize a prisão preventiva do acusado: garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, garantia de aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal. Em síntese, após analisar os aspectos re­ lacionados à legalidade da prisão em flagrante, relaxando-a em caso de ilegalidade, deve o juiz se ques­ tionar: se o agente estivesse em liberdade, seria caso de decretação da sua prisão preventiva? As medidas cautelares diversas da prisão são adequadas e sufi­ cientes para assegurar a eficácia do processo ou será necessária a decretação do cárcere ad custodiam?

Se o juiz entender que, no caso concreto, exis­ te uma hipótese que autoriza a prisão preventiva do acusado, e que as medidas cautelares diversas da prisão revelam-se inadequadas ou insuficien­ tes, deve converter a prisão em flagrante em prisão preventiva.331 Mas a quem compete o ônus de demonstrar a necessidade da manutenção da prisão do agente preso em flagrante? A nosso ver, da mesma forma que se exige do Estado a demonstração da presença do suporte fático e de direito justificadores da prisão preventiva em relação ao acusado que esteja solto, também se impõe ao Estado o ônus da prova da ne­ cessidade da manutenção da prisão na hipótese do art. 310, inciso II, do CPP, sob pena de se estabelecer indevida presunção de necessidade da custódia cau­ telar daquele que foi preso em flagrante, violando 331. Nesse sentido: STJ, 5a Turma, RHC 21.278/DF, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 15/10/2007 p. 299.

a regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência. Daí a necessidade de uma mudança de pos­ tura do papel da autoridade policial por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, que não pode mais se limitar ao mero registro da prisão em flagrante e subsequente remessa do APF à autoridade judiciária. Verificando a autoridade policial que há elementos concretos que recomen­ dam a manutenção da prisão do agente, incumbe a ela arregimentar, de imediato, o maior número de informações nessse sentido, auxiliando o trabalho do magistrado no momento da conversão da prisão em flagrante em preventiva. A título de exemplo, em caso concreto do qual tivemos conhecimento, ao efetuar a prisão em flagrante de determinado agente pela prática do crime de estupro, a autori­ dade policial verificou que 02 (dois) outros crimes sexuais tinham sido praticados em circunstâncias semelhantes na mesma localidade. Dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas que dispõe para remeter o APF à autoridade judiciária, o delegado conseguiu que as vítimas dos outros 02 (dois) crimes sexuais fossem à delegacia e fizessem o reconhecimento pessoal do preso. Com tais informações em mãos, procedeu à remessa do APF ao juízo competente, ao mesmo tempo em que representou no sentido da decretação da preventiva. Nesse caso, diante da excelência do trabalho da autoridade policial, terá o magistrado substrato fático e jurídico para proceder à conversão do flagrante em preventiva.

Outro aspecto importante a ser analisado quanto ao art. 310, inciso II, do CPP, diz respeito à necessidade de observância do art. 313 do CPP por ocasião da conversão da prisão em flagrante em preventiva. Corrente minoritária sustenta que é possível a conversão em preventiva independen­ temente da observância do art. 313 do CPP, já que o art. 310, inciso II, do mesmo Código, faz menção apenas à presença dos requisitos constantes do art. 312. Trabalha-se, assim, com uma interpretação gra­ matical do art. 310, II, do CPP. Logo, segundo essa corrente, em se tratando de crime de furto simples, cuja pena é de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, caso um agente primário tenha sido preso em fla­ grante, e o juiz entenda que sua prisão é necessária para impedir a prática de novos delitos (garantia da ordem pública), poderá converter a prisão em flagrante em preventiva, pouco importando o fato de o delito não preencher nenhuma das hipóteses de admissibilidade do art. 313 do CPP.

A nosso juízo, tal posição revela-se completa­ mente absurda. Em primeiro lugar porque não se

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pode admitir que o ordenamento jurídico passe a contar com diversas espécies de prisão preventiva, uma condicionada à observância do art. 313 do CPP, e outra não. Segundo, não se pode admitir que a sorte (ou azar) de uma pessoa no processo penal esteja condicionada ao simples fato dela ter sido presa em flagrante ou não. Com efeito, a se admi­ tir a corrente anterior, o agente detido em situação de flagrância poderia ter sua prisão convertida em preventiva, independentemente da observância do art. 313. Porém, caso tivesse conseguido fugir, evi­ tando o flagrante, sua preventiva não poderia ser decretada. Qual o critério lógico e razoável capaz de justificar tal discriminação? Não conseguimos encontrar. Terceiro, é sabido que a interpretação gramatical é a pior interpretação possível. Deve-se buscar, sempre, uma interpretação sistemática. Re­ vela inviável, pois, querer concluir que o art. 313 não precisa ser observado por ocasião da conversão pelo simples fato de o inciso II do art. 310 do CPP não fazer menção a ele. De modo semelhante ao art. 310, II, do CPP, ao se referir à decretação da prisão preventiva do acusado citado por edital que não compareceu nem constituiu advogado, o art. 366 do CPP também faz menção apenas ao disposto no art. 312. Não obstante, ninguém jamais ousou dizer que, por conta disso, o art. 313 do CPP não precisaria estar presente. Por tais motivos, não há como negar que a conversão em preventiva só será possível se, para além da comprovação do fumus boni iuris e do periculum in mora (CPP, art. 312), também restar preenchida uma das hipóteses de admissibilidade do art. 313 do CPP.332

Superada essa análise, é oportuno destacar que, apesar de o art. 310, inciso II, do CPP, fazer menção apenas à conversão da prisão em flagrante em pre­ ventiva, revela-se plenamente possível a conversão em prisão temporária (Lei n° 7.960/89), desde que haja requerimento do Ministério Público ou repre­ sentação da autoridade policial nesse sentido. Com efeito, se o art. 310, II, do CPP, autoriza a conversão do flagrante em preventiva, não há razão lógica para não se autorizar, por meio de analogia, a mesma conversão para a temporária. Afinal, onde impera a mesma razão, impera o mesmo direito. Consideran­ do a vocação da prisão temporária para assegurar a eficácia das investigações, é plenamente possível a conversão da prisão em flagrante em temporária, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a) demonstrada a imprescindibilidade da prisão do 332. Andrey Borges de Mendonça comunga de entendimento se­ melhante: Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 214.

agente para assegurar as investigações; b) a infração penal deve ser crime hediondo ou equiparado (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o) ou um dos crimes listados no art. Io, III, da Lei n° 7.960/89; c) requerimento do Ministério Público ou representação da autori­ dade policial postulando a conversão do flagrante em temporária; d) demonstração da inadequação ou insuficiência das medidas cautelares diversas da prisão.

Por fim, não se revela possível advogar a tese de que a conversão da prisão em flagrante em pre­ ventiva (ou temporária) seria obrigatória em rela­ ção aos crimes que não admitem a concessão de liberdade provisória (v.g., art. 310, §2°, do CPP). A uma porque não há prisão cautelar obrigatória, sob pena de patente violação à regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência. Em segundo lugar, até mesmo em relação ao crime de tráfico de drogas, tem sido considerada inconstitu­ cional a vedação em abstrato da concessão de liber­ dade provisória (STF, HC 104.339, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 10/05/2012). Logo, não se pode admitir a conversão automática da prisão em flagrante em preventiva, por meio de simples remissão ao óbi­ ce à liberdade provisória contido no art. 44 da Lei 11.343/2006. Afinal, a garantia da fundamentação a que se refere a Constituição Federal (art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX) importa o dever judicante da real ou efetiva demonstração de que a segregação atende aos requisitos dos arts. 312e313do CPP.333 Destarte, ante a declaração incidental da inconstitucionalidade da expressão “e liberdade pro­ visória” constante do art. 44 da Lei 11.343/06 pelo Plenário do Supremo, conclui-se que, mesmo para o crime de tráfico de drogas, a conversão do flagrante está condicionada à apreciação fundamentada dos pressupostos que autorizam a prisão preventiva e/ ou temporária. Logo, não é dado ao juiz indeferir o pedido de liberdade provisória e proceder à automá­ tica conversão do flagrante fazendo mera alusão à referida vedação legal, sem a indicação de elementos concretos e individualizados, aptos a justificar a ne­ cessidade da constrição da liberdade de locomoção do flagranteado.

11.3. Concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada (ou não) com as me­ didas cautelares diversas da prisão Ao receber o auto de prisão em flagrante, ve­ rificada a legalidade da medida, se o juiz concluir 333. Para mais detalhes acerca da inconstitucionalidade da expressão "e liberdade provisória", constante do caput do art. 44 da Lei n° 11.343/06, remetemos o leitor ao tópico atinente à liberdade provisória proibida.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

que não há necessidade de conversão do flagrante em preventiva (ou temporária), deverá, fundamentadamente, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (CPP, art. 310, III).

Como visto acima, se o juiz verificar a ilega­ lidade da prisão em flagrante, deverá relaxá-la, o que, no entanto, não impede a decretação da prisão preventiva, desde que presentes seus pressupostos legais. Todavia, caso a prisão em flagrante seja legal, e desde que ausentes os pressupostos que autorizam a prisão preventiva, deverá o juiz conceder ao preso liberdade provisória, com ou sem fiança. Mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, grande parte da doutrina já se manifestava no sen­ tido da obrigatória análise, por parte do juiz, acerca do cabimento da liberdade provisória, com ou sem fiança, sobretudo diante da antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, que previa o cabi­ mento de liberdade provisória sem fiança quando o juiz verificasse a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.334 No entanto, como posto acima, sempre preva­ leceu o entendimento pretoriano no sentido de que, por ocasião da comunicação do flagrante, a autori­ dade judiciária não estaria obrigada a fundamentar a manutenção da prisão cautelar do agente. Daí a grande importância da nova redação do art. 310, inciso III, do CPP, que estabelece expressamente que, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, caso não seja hipó­ tese de relaxamento da prisão, e desde que ausentes os pressupostos que autorizam a prisão preventiva.

O novel dispositivo põe fim a decisões em que o magistrado se limitava a dizer: “flagrante formal­ mente em ordem - aguarde-se a vinda dos autos principais”, permitindo que alguém permanecesse preso pelo simples fato de ter sido preso em fla­ grante, independentemente da análise da necessi­ dade de manutenção do cárcere ad custodiam, o que importava em violação à regra que obriga o juiz a fundamentar a necessidade da prisão caute­ lar (CF, art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX). Como visto acima - princípio da jurisdicionalidade -, toda es­ pécie de prisão de natureza cautelar está submetida à apreciação do Poder Judiciário, seja previamente, 334. É essa também a posição de Antônio Scarance Fernandes (Pro­

cesso penal constitucional. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2002. p. 304) e de Afrânio Silva Jardim (Direito processual penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p. 253). Na mesma linha: ROCHA, Luiz Otávio de Oliveira; BAZ, Marco Antônio Garcia (Fiança criminal e liberdade provisória. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2000. p. 83); GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões pe­

nais. São Paulo. Editora Revista dosTribunais, 2001. p. 227.

seja pela necessidade de imediata convalidação da prisão em flagrante, devendo o magistrado indicar de maneira fundamentada, com base em elemen­ tos concretos existentes nos autos, a necessidade da manutenção da segregação cautelar, inclusive com apreciação do cabimento da liberdade provisória. Destarte, diante da nova redação do art. 310, inciso III, do CPP, inexistindo os requisitos que autorizam a prisão preventiva, deve o juiz conceder liberdade provisória ao preso, com ou sem fiança.

Leitura apressada do art. 310, inciso III, do CPP, pode levar o intérprete à conclusão de que somente seria possível a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, o que não é verdade. Isso porque tal dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o art. 321 do CPP, o qual prevê que, ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provi­ sória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP e observados os crité­ rios constantes do art. 282. Como se percebe, com o advento da Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória já não se restringe mais àquela anteriormente con­ cedida: com ou sem fiança. Para além da concessão (ou não) da fiança, é plenamente possível que o juiz aplique isolada ou cumulativamente as medidas cau­ telares diversas da prisão, desde que evidenciada sua necessidade para neutralizar uma das situações de perigo listadas no art. 282,1, do CPP. Supondo, assim, funcionário público flagrado na prática do crime de concussão, ao juiz é permitido conceder liberdade provisória com fiança, impondo, cumu­ lativamente, a suspensão do exercício da função pública, nos termos do art. 319, VI, c/c art. 282,1, do CPP, desde que evidenciado que a manutenção do agente no exercício funcional daria ensejo à rei­ teração delituosa. Especificamente em relação àqueles a quem foi concedida liberdade provisória condicionada ao pa­ gamento de fiança, mas que ainda se encontravam submetidos à privação cautelar da liberdade em razão do não pagamento do valor, especial atenção deve ser dispensada à decisão proferida pela 3a Se­ ção do STJ nos autos do Habeas Corpus Coletivo n. 568.693/ES.335 Referida ação coletiva foi ajuizada pela Defensoria Pública do Espírito Santo, alegando-se que, diante do cenário de pandemia causado pelo novo coronavírus (Covid-19), seria desarrazoada a manutenção da privação cautelar de indivíduos pelo simples fato de não terem condições financeiras para 335. STJ, 3a Seção, HC 568.693/ES, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j.

14.10.2020, DJe 16.10.2020.

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arcar com o pagamento da fiança. Para a 3a Seção do STJ, não se pode olvidar que o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação n. 62/2020, reco­ mendando aos tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus - covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. Destarte, não se mostraria proporcional a manutenção de investiga­ dos na prisão, tão somente em razão do não paga­ mento da fiança, visto que os casos - notoriamente de menor gravidade - não revelariam a excepcionalidade imprescindível para o decreto preventivo. Por isso, levando-se em consideração, ademais, que o quadro fático apresentado pelo estado do Espírito Santo é idêntico aos dos demais estados brasileiros, a 3a Seção do STJ concedeu a ordem no referido writ para determinar a soltura, independentemente do pagamento de fiança, em favor de todos aqueles a quem foi concedida liberdade provisória condicio­ nada ao pagamento de fiança Brasil afora.

CAPÍTULO V

DA PRISÃO PREVENTIVA 1. CONCEITO DE PRISÃO PREVENTIVA Cuida-se de espécie de prisão cautelar decreta­ da pela autoridade judiciária competente, median­ te representação da autoridade policial ou reque­ rimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, em qualquer fase das investigações ou do processo criminal, sempre que estiverem preenchidos os requisitos legais (CPP, art. 313) e ocorrerem os motivos autorizadores listados no art. 312 do CPP, e desde que se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319). Na redação original do Código de Processo Pe­ nal, era possível se falar em uma prisão preventiva obrigatória e outra facultativa. Isso porque, embora o Código não usasse as referidas expressões, segundo a redação original do art. 312 do CPP, a prisão pre­ ventiva seria decretada nos crimes a que fosse comi­ nada pena de reclusão por tempo igual ou superior a dez anos. Logo, nessas hipóteses, tinha-se espécie de prisão preventiva obrigatória. A expressão prisão preventiva facultativa era usada em contraposição à preventiva compulsória, sendo cabível quando, além de prova da materialidade e indícios de autoria, es­ tivessem presentes outros pressupostos. Com a ex­ tinção da prisão preventiva obrigatória pela Lei n°

5.349/67, que deu nova redação ao art. 312 do CPP, não há mais falar em prisão preventiva obrigatória nem facultativa. A prisão preventiva não se confunde com a pri­ são temporária, pelos seguintes motivos:

a) a prisão temporária só pode ser decretada durante a fase pré-processual (Lei n° 7.960/89, art. Io, incisos I, II e III); a prisão preventiva pode ser decretada tanto durante a fase de investigação poli­ cial quanto durante o processo (CPP, art. 311);

b) a prisão temporária só é cabível em relação a um rol taxativo de delitos, listados no art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89, e no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90 (crimes hediondos e equiparados); não há um rol taxativo de delitos em relação aos quais seja cabível a decretação da prisão preventiva, bastando, para tanto, o preenchimento dos pressupostos alter­ nativos constantes dos incisos do art. 313 do CPP; c) a prisão temporária possui prazo pré-determinado: 5 (cinco) dias, prorrogáveis por igual período em caso de extrema e comprovada neces­ sidade (Lei n° 7.960/89, art. 2o); 30 (trinta) dias, prorrogáveis por igual período em caso de extre­ ma e comprovada necessidade, em se tratando de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o), findo o qual o preso será colocado imedia­ tamente em liberdade, independentemente da ex­ pedição de alvará de soltura pelo juiz, salvo se tiver sido decretada sua prisão preventiva. De seu turno, a prisão preventiva não tem prazo pré-determinado.336

2. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTI­ VA DURANTE A FASE PRELIMINAR DE INVESTIGAÇÕES De acordo com a nova redação do art. 311, caput, do CPP, a prisão preventiva pode ser decre­ tada em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal.

Com o advento da Lei n° 7.960/89, que ver­ sa sobre a prisão temporária, pensamos que, pelo menos em relação aos delitos constantes do art. Io, inciso III, da referida lei, bem como no tocante aos crimes hediondos e equiparados (Lei n° 8.072/90, art. 2°, § 4o), somente será possível a decretação da prisão temporária na fase preliminar de investiga­ ções, à qual não poderá se somar a prisão preventiva, pelo menos durante essa fase. Portanto, em relação a tais delitos, não se afigura possível a aplicação da

336. Vide abaixo item relativo à duração da prisão preventiva e excesso de prazo para a formação da culpa.

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temporária seguida de preventiva, exclusivamente durante a fase investigatória.

viável a decretação da prisão preventiva durante o inquérito policial.

Ora, se em relação a tais delitos foi criada uma modalidade de prisão cautelar com o escopo especí­ fico de tutelar as investigações, não faz sentido que a prisão preventiva também seja decretada na fase preliminar. Logo, se a prisão temporária tiver sido decretada pelo magistrado pelo prazo de 60 (sessen­ ta) dias para auxiliar nas investigações de um crime hediondo, não faz sentido que, findo esse prazo, seja decretada a prisão preventiva, concedendo-se à au­ toridade policial mais 10 (dez) dias para finalizar o inquérito. Portanto, se a autoridade policial não conseguir concluir as investigações no prazo máxi­ mo previsto para a prisão temporária, o indivíduo deve ser posto em liberdade, sem prejuízo da conti­ nuidade da apuração do fato delituoso. No entanto, uma vez expirado o prazo da prisão temporária, e oferecida denúncia ou queixa, nada impede que o magistrado, ao receber a peça acusatória, converta a prisão temporária em preventiva, medida esta que deverá perdurar durante o processo enquanto sub­ sistir sua necessidade.337

Sendo o inquérito policial peça dispensável ao oferecimento da peça acusatória, desde que a justa causa necessária à deflagração do processo esteja respaldada por outros elementos de convicção (CPP, art. 39, § 5o), não é obrigatória a existência de in­ quérito policial em andamento para a decretação da prisão preventiva, mas sim que haja uma investiga­ ção preliminar que demonstre a imprescindibilidade da prisão preventiva do investigado para melhor apuração do fato delituoso. Assim, além do cabi­ mento da prisão preventiva durante o curso de um inquérito policial, também o será diante de outros procedimentos investigatórios, tais como comissões parlamentares de inquérito, inquéritos civis ou pro­ cedimentos investigatórios criminais presididos pelo órgão do Ministério Público.

Isso não significa dizer que a Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89) tenha afastado a pos­ sibilidade de decretação da prisão preventiva na fase investigatória. Na verdade, subsiste a possibi­ lidade de prisão preventiva na fase pré-processual em relação aos delitos que não autorizam a decre­ tação da prisão temporária, desde que preenchidos os pressupostos do art. 313 do CPP e verificada sua imperiosa necessidade. Imagine-se uma hi­ pótese de estelionato em continuidade delitiva,338 praticado contra inúmeras vítimas por agente com maus antecedentes, que demonstre a intenção de se evadir do distrito da culpa. Nesse caso, como não é cabível a prisão temporária, apresenta-se 337. Na mesma linha: Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi (Prisão tempo­

rária: análise e perspectivas de uma releitura garantista da Lei n° 7.960, de

21 de dezembro de 1989. São Paulo: Quartier Latin, 2009? e Guilherme de Souza Nucci (Tribunal do Júri. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 57).

338. A título de exemplo, a regra da continuidade delitiva é aplicável ao estelionato previdenciário (art. 171, § 3o, do CP) praticado por aque­ le que, após a morte do beneficiário, passa a receber mensalmente o benefício em seu lugar, mediante a utilização do cartão magnético do

falecido. Nessa situação, não se verifica a ocorrência de crime único, pois a fraude é praticada reiteradamente, todos os meses, a cada utilização do cartão magnético do beneficiário já falecido. Assim, configurada a reiteração criminosa nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, tem incidência a regra da continuidade delitiva prevista no art. 71 do CP. A hipótese, ressalte-se, difere dos casos em que o estelionato é praticado pelo próprio beneficiário e daqueles em que o não benefi­ ciário insere dados falsos no sistema do INSS visando beneficiar outrem; pois, segundo a jurisprudência do STJ e do STF, nessas situações o crime deve ser considerado único, de modo a impedir o reconhecimento da continuidade delitiva. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, REsp 1.282.118/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 26/02/2013, DJe 12/03/2013.

Uma última questão merece ser analisada acerca da prisão preventiva decretada no curso das investigações: a obrigatoriedade do oferecimento da peça acusatória. Parte majoritária da doutrina entende que, havendo elementos para a segrega­ ção cautelar do agente (prova da materialidade e indícios de autoria), também há elementos para o oferecimento da peça acusatória, sendo inviável, por conseguinte, a devolução dos autos do inqué­ rito policial à autoridade policial para realização de diligências complementares. Apesar de ser esse o entendimento que preva­ lece na doutrina, comungamos de entendimento diverso. Explica-se: se presentes os requisitos legais do art. 312 do CPP, a prisão preventiva deve ser decretada. Porém, mesmo após a decretação da pre­ ventiva, caso subsista a necessidade de realização de diligência imprescindível para a formação da opinio delicti, os autos podem retornar à autoridade poli­ cial. No entanto, o prazo total para a conclusão do processo, que começa a contar a partir da prisão, estará correndo, o que pode dar ensejo a eventual excesso de prazo, autorizando o relaxamento da prisão.339

3. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DU­ RANTE O CURSO DO PROCESSO CRIMINAL De acordo com antiga redação do caput do art. 311, determinada pela Lei n° 5.349/67, a prisão preventiva podia ser decretada em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal. 339. Denilson Feitoza comunga do mesmo entendimento (op. cit.

p. 860).

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Antes das alterações trazidas pela Lei n° 11.689/08 e 11.719/08, a instrução criminal era com­ preendida como o período entre o recebimento da peça acusatória e a fase do art. 499 do CPP (diligên­ cias), no procedimento comum, ou até a inquirição de testemunhas, no procedimento do júri (CPP, art. 406, caput). Com as alterações produzidas pela re­ forma processual de 2008, a instrução criminal no procedimento comum ordinário tem início com o recebimento da peça acusatória (CPP, art. 396) e vai até a audiência una de instrução e julgamento (CPP, art. 400, caput), salvo se houver requerimento de diligências cuja necessidade tenha se originado de circunstâncias ou fatos apurados na instrução (CPP, art. 402, caput), quando, então, a instrução encerrar-se-á com a realização da diligência. Quanto ao pro­ cedimento comum sumário, pelo menos de acordo com o art. 534 do CPP, não é possível requerimento de diligências, razão pela qual a instrução criminal se encerra na própria audiência una de instrução e julgamento. Por sua vez, no tocante à primeira fase do procedimento do júri, a instrução vai até a audiência de instrução (CPP, art. 411, caput).

Como o art. 311 do CPP, em sua redação ante­ rior, dispunha que a prisão preventiva somente seria cabível durante o curso do inquérito policial ou da instrução criminal, poder-se-ia pensar, à primeira vista, que a prisão preventiva não seria cabível após o encerramento da instrução criminal. No entan­ to, com a superveniência da Constituição Federal de 1988 e a consagração expressa do princípio da presunção de não culpabilidade, já não havia mais espaço para uma prisão provisória como efeito au­ tomático de sentença condenatória recorrível (CPP, art. 393, inciso I) ou da pronúncia (vide antiga re­ dação do art. 408, §§ Io e 2o, do CPP). Em outras palavras, se o acusado permanecera solto durante o processo, devia permanecer em liberdade quando da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível, salvo se surgisse alguma hipótese que autorizasse sua prisão preventiva. Por outro lado, tendo o acusa­ do permanecido preso ao longo da instrução, devia permanecer preso, salvo se desaparecesse o motivo que autorizava sua prisão preventiva, quando então devia ser posto em liberdade. Obviamente, para que o agente fosse mantido preso, devia o magistrado fundamentar a necessidade da manutenção de sua segregação. Se assim o era, e se a decretação de tais prisões tinha que se dar com fundamento no art. 312 do CPP, estávamos diante de uma hipótese de prisão preventiva decretada após o encerramento da ins­ trução criminal, e não de uma espécie de prisão cautelar autônoma. Desde a Constituição de 1988, a

prisão decorrente de pronúncia e a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível já não podiam mais, de per si, legitimar uma custódia cautelar. De­ viam, sob pena de constrangimento ilegal, cingir-se, fundamentadamente, à órbita do art. 312 do CPP.340

Como bem ressaltava Pacelli em momento an­ terior à vigência da Lei n° 12.403/11, haverá quem diga, em relação à possibilidade de decretação de pri­ são por ocasião de sentença condenatória recorrível quando demonstrados os pressupostos listados no art. 312 do CPP, que a prisão preventiva somente pode ser decretada até o final da instrução criminal. Dessa forma, faltaria previsão legal para a prisão. Ocorre que a previsão de decretação da prisão preventiva até o final da instrução criminal, tal qual prevista na an­ tiga redação do art. 311, caput, do CPP, tinha firmes propósitos e coerência lógica, ao tempo da elaboração do Código de Processo Penal. De fato, como adverte o autor, “não havia a menor necessidade de se prever a prisão preventiva para além dessa fase, pela simples razão de que, após a instrução, a só superveniência da sentença condenatória já implicava o recolhimento à prisão, nos termos da redação primitiva do Código de Processo Penal. A prisão, àquele tempo, era, pois, consequência automática da condenação em primei­ ro grau”.341 Como, hoje, a prisão não surge mais como efeito simples e automático da sentença condenatória ou da pronúncia, nada impede, portanto, que a prisão preventiva seja decretada mesmo após o encerramen­ to da instrução criminal. Com as alterações trazidas pelas leis que altera­ ram o procedimento comum e o procedimento do júri, pôs-se fim a tal controvérsia, restando inequívo­ ca a possibilidade de decretação da prisão preventiva mesmo após o encerramento da instrução criminal, já que o recolhimento à prisão não mais subsiste como efeito automático da pronúncia ou da sentença con­ denatória recorrível, mesmo que o acusado não seja primário e não tenha bons antecedentes.

De fato, com a nova redação dada ao art. 413, § 3o, do CPP, pela Lei n° 11.689/08, quando da pro­ núncia, o juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação, ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código. Por sua vez, segundo o art. 387, § Io, do CPP, o juiz, ao proferir sentença 340. STJ, 5aTurma, HC 48.090/MS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14/03/2006, DJ 03/04/2006, p. 380. 341. Curso de processo penal. 9a ed. Rio de Janeiro/RJ: Editora Lumen Juris, 2008. p. 431.

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condenatória, decidirá fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de pri­ são preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta. Em relação ao Tribunal do Júri, o Juiz-Presidente, ao proferir sentença condenatória, mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.

Daí se entende o porquê da nova redação do art. 311 do CPP, segundo a qual a prisão preven­ tiva será cabível em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal. Hoje, portanto, não há mais dúvidas: a prisão preventiva pode ser de­ cretada em qualquer fase da persecução penal, seja na fase investigatória, seja no curso do processo criminal.

3.1. Concessão antecipada de benefícios pri­ sionais ao preso cautelar Sendo necessária a manutenção ou a decretação da prisão do acusado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, em virtude da presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão pre­ ventiva, nada impede a concessão antecipada dos benefícios da execução penal. De fato, supondo que já tenha se operado o trânsito em julgado da sen­ tença condenatória para o Ministério Público, mas ainda pendente recurso da defesa, é certo que, por força do princípio da non reformado in pejus, a pena imposta ao acusado não poderá ser agravada (CPP, art. 617, infine). Logo, estando o cidadão subme­ tido à prisão cautelar, justificada pela presença dos requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP, afigura-se possível a incidência de institutos como a progres­ são de regime e outros incidentes da execução. Em outras palavras, a vedação à execução provisória da pena decorrente do princípio da presunção de não culpabilidade não impede a antecipação cautelar dos benefícios da execução penal definitiva ao pre­ so processual.342* 342. A execução provisória da pena, considerada válida pelo SupremoTribunal Federal entre o julgamento do HC 126.292 e as ADC's 43, 44 e 54, não se confunde com a concessão antecipada de benefícios prisionais ao preso cautelar. Naquela, não estão presentes os requisitos para a prisão cautelar. A prisão penal do indivíduo, decorrente de acór­ dão condenatório proferido porTribunal de 2a instância, surge, assim, como verdadeira antecipação da pena, em flagrante contrariedade, a nosso juízo, ao princípio da presunção de inocência. Na antecipação dos benefícios, o cidadão está submetido à prisão cautelar, justificada

De se ver que a própria Lei de Execução Penal estende seus benefícios aos presos provisórios (Lei n° 7.210/84, art. 2o, parágrafo único), sendo que a detração prevista no art. 42 do Código Penal permite que o tempo de prisão provisória seja descontado do tem­ po de cumprimento de pena. Nessa linha, de acordo com a Súmula 716 do STF, admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. A súmula 717 do STF, por sua vez, preceitua que não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.343

4. INICIATIVA PARA A DECRETAÇÃO DA PRI­ SÃO PREVENTIVA De acordo com o art. 311 do CPP, em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a re­ querimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade po­ licial. Em se tratando de processo da competência ori­ ginária dos Tribunais, a competência é do Relator, nos termos do art. 2o, parágrafo único, da Lei n° 8.038/90, porque a ele são outorgadas as atribuições que a legis­ lação processual confere aos juizes singulares.

4.1. (Im)possibilidade de decretação da prisão preventiva pelo juiz de ofício na fase investiga­ tória e no curso do processo penal De modo a evitarmos repetições desnecessárias, remetemos o leitor aos comentários ao art. 282, §§2° e 4o, do CPP, com redação dada pela Lei n. 13.964/19.344

4.2. Legitimidade para o requerimento de de­ cretação da prisão preventiva Consultar comentários ao item 5.3 (“Legitimi­ dade para o requerimento de decretação de medida cautelar”) do Capítulo I deste Título. pela existência dos requisitos do art. 312 do CPP, e, como há privação de liberdade, seria possível a incidência de institutos como a progres­ são de regime e outros incidentes da execução. Com entendimento semelhante: BOTTINI, Pierpaolo. As reformas no processo penal: as novas

Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Editora Revista dosTri­ bunais, 2008. p. 468. Na mesma linha: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. Op. cit. p. 318.

343. Acerca da antecipação de benefícios prisionais ao preso cautelar, vide Resolução n° 19/2006 do Conselho Nacional de Justiça. 344. O tema foi objeto de análise no Capítulo I ("Das premissas fun­ damentais e aspectos introdutórios") deste Título, mais precisamente no item 5.2. ("Vedação à decretação de medidas cautelares pelo juiz de ofício na fase investigatória e na fase processual").

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5. PRESSUPOSTOS345 O novo sistema de medidas cautelares pessoais introduzido pela Lei n° 12.403/11 evidencia que as medidas cautelares diversas da prisão são preferíveis em relação à prisão preventiva, dentro da ótica de que sempre se deve privilegiar os meios menos gravosos e restritivos de direitos fundamentais. Tem-se aí, na dicção de Badaró, a característica da preferibilidade das medidas cautelares diversas da prisão, da qual decorre a consequência de que, diante da necessidade da tutela cautelar, a primeira opção deverá ser sempre uma das medidas previstas nos arts. 319 e 320. Por outro lado, como reverso da moeda, a prisão preven­ tiva passa a funcionar como a extrema ratio, somente podendo ser determinada quando todas as outras medidas alternativas se mostrarem inadequadas.346 Portanto, o magistrado só poderá decretar a prisão preventiva quando não existirem outras medidas menos invasivas ao direito de liberdade do acusado por meio das quais também seja possível alcançar os mesmos resultados desejados pela prisão cautelar.

Portanto, no caminho para a decretação de uma prisão preventiva, cabe ao magistrado, inicialmen­ te, verificar o tipo penal cuja prática é atribuída ao agente, aferindo, a partir do art. 313 do CPP, se o crime em questão admite essa prisão cautelar. Num segundo momento, incumbe ao magistrado analisar se há elementos que apontem no sentido da presen­ ça simultânea de prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria (fumus comissi delic­ ti). O terceiro passo é aferir a presença do periculum libertatis, compreendido como o perigo concreto que a permanência do investigado (ou acusado) em liberdade acarreta para a investigação criminal, para o processo penal, para a efetividade do direito pe­ nal ou para a segurança social. Logicamente, esses fatos que justificam a prisão preventiva devem ser contemporâneos à decisão que a decreta (princípio da atualidade do periculum libertatis). Por fim, tam­ bém se faz necessária a demonstração da ineficácia ou da impossibilidade de aplicação de qualquer das medidas cautelares diversas da prisão. Nesse sentido, o art. 310, inciso II, do CPP, autoriza a conversão da prisão em flagrante em preventiva, quando presen­ tes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se 345. De modo a evitarmos repetições desnecessárias, remetemos o leitor ao item 3 ("Pressupostos das medidas cautelares: fumus comissi delicti e periculum libertatis") do Capítulo I ("Das premissas fundamentais e aspectos introdutórios") deste Título. 346. BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas cautelares no processo pe­ nal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011.

Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2011. p. 223.

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revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão.

De nada adianta o legislador impor a utilização da prisão cautelar como medida de ultima ratio se ao juiz não for imposta a obrigatoriedade de fun­ damentar o porquê da opção pela medida extrema, o porquê da impossibilidade de aplicação das cau­ telares diversas da prisão no caso concreto. É nesse sentido que se deve compreender a nova redação conferida ao §6° do art. 282 do CPP pela Lei n. 13.964/19, segundo o qual a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substitui­ ção por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada.

5.1. Fumus comissi delicti A decretação da prisão preventiva depende da demonstração da presença do fumus comissi delic­ ti, consoante disposto na parte final do art. 312 do CPP: prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

5.2. Perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado: princípio da atualidade (ou contemporaneidade) do periculum libertatis Comparando-se a redação antiga do caput do art. 312 do CPP com a atual, que lhe foi conferida pela Lei n. 13.964/19, percebe-se que, na parte fi­ nal do referido dispositivo, o legislador passou a exigir, para além da prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, a presença de uma situação de perigo gerada pelo estado de liberdade do imputado. Nesse ponto em especial, não houve qualquer inovação por parte do Pacote Anticrime. Afinal, sempre se entendeu que a decretação de toda e qualquer prisão preventiva tem como pressuposto o denominado periculum libertatis, consubstancia­ do numa das hipóteses já ressaltadas pelo caput do art. 312, quais sejam, garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou garantia de aplicação da lei penal, ou, como dispõe o art. 282, inciso I, do CPP, quando a medida revelar-se necessária para aplicação da lei penal, para a investigação ou instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais. É este, pois, o peri­ go gerado pelo estado de liberdade do imputado, que sempre figurou, e deverá continuar a figurar, como pressuposto indispensável para a decretação

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

de toda e qualquer medida cautelar, ao qual deverá se somar, obviamente, o fumus comissi delicti, con­ substanciado pela prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria ou de participação. Consoante disposto no art. 312, §2°, do CPP, é de­ ver do magistrado, ao fundamentar a decisão que decreta a prisão preventiva, fazer referência a esse receio de perigo, sob pena de possível nulidade em virtude da carência de fundamentação (CPP, art. 564, V, incluído pela Lei n. 13.964/19).347

Para que a prisão preventiva seja decretada, não é necessário que o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado esteja evidenciado com a presença concomitante de todas as hipóteses do art. 312, leia-se, garantia da ordem pública, da or­ dem econômica, garantia de aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal. Para se atestar a presença desse perigo, basta a presença de um único destes para que o decreto prisional seja expedido. Logicamente, caso esteja presente mais de um fun­ damento (v.g., garantia da ordem pública e conve­ niência da instrução criminal), deve o magistrado fazer menção a cada um deles por ocasião da fun­ damentação da decisão, conferindo ainda mais legi­ timidade à determinação judicial. Assim o fazendo, na eventualidade de impetração de habeas corpus, ainda que o juízo ad quem reconheça a inexistência de um dos fundamentos, a prisão preventiva poderá ser mantida com base no outro. Para fins de decretação de toda e qualquer medida cautelar, esse periculum libertatis que a jus­ tifica deve ser atual, presente. Afinal, as medidas cautelares são ‘situacionais’, provisionais’, tutelam uma situação fática presente, um risco atual. É dizer, não se admite a decretação de uma medida cautelar para tutelar fatos pretéritos, que não necessariamen­ te ainda se fazem presentes por ocasião da decisão judicial em questão. Ou seja, a contemporaneidade diz respeito aos fatos motivadores da medida cau­ telar, e não ao momento da prática do fato crimino­ so.348 É exatamente isso o que a doutrina chama de princípio da atualidade (ou contemporaneidade) do perigo (ou do periculum libertatis). É dentro

desse contexto que deve ser compreendida, portan­ to, a parte final do art. 312, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19, segundo o qual a decisão que decre­ tar a prisão preventiva deve ser motivada e funda­ mentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. Em sentido seme­ lhante, o art. 315, §1°, do CPP, também incluído pelo Pacote Anticrime, passa a dispor que na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.349

A despeito de se tratar de regramento inédi­ to no âmbito do Código de Processo Penal, pelo menos de maneira expressa, sua aplicação às me­ didas cautelares, principalmente às prisões, já era amplamente admitida pelos Tribunais Superiores. A propósito, em caso concreto em que o acusado teria sido intimado acerca de medidas protetivas de urgência no dia 12 de agosto de 2014, sendo re­ gistrado no dia seguinte um boletim de ocorrência narrando fatos consistentes em ameaça de morte a sua ex-companheira, mas cuja prisão foi decretada quase um ano depois, no dia 30 de junho de 2015, sem nenhuma referência a outro evento ocorrido nesse intervalo, concluiu a 6a Turma do STJ que a medida em questão não guardaria atualidade e contemporaneidade com os fatos que a justificaram, descaracterizando, assim, o periculum libertatis, daí por que deliberou pela revogação da preventiva.350

349. Reiterando a importância da contemporaneidade (ou atualidade) do periculum libertatis para fins de decretação da prisão preventiva: STF,

2a Turma, HC 179.859 AgR/RS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 03/03/2020.

Afastando a alegação de constrangimento ilegal por ausência de contem­ poraneidade diante da fuga do acusado, o que revelaria seu intento de frustrar o direito do Estado de punir, justificando, assim, a custódia: STJ,

5aTurma, AgRg no HC 628.560/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,

j. 1 °.12.2020, DJ 09.12.2020. 350. STJ, 6a Turma, RHC 67.534/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 17/03/2016, DJe 31/03/2016. Em sentido semelhante:"(...) A jurisprudên­ cia desta Corte Superior é firme em assinalar que a urgência intrínseca às cautelares exige a contemporaneidade dos fatos justificadores dos

348. Nessa linha: STF, IaTurma, HC 183.167/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 22.6.2020; STF, Decisão monocrática proferida no HC 185.893/SP, Rei.

riscos que se pretende evitar com a segregação processual. O juiz sentenciante, mais de dois anos após os delitos, decretou a custódia pro­ visória do réu, sem indicar fatos novos para evidenciar que ele, durante o longo período em que permaneceu solto, colocou em risco a ordem pública ou a instrução criminal". (STJ, 6aTurma, HC 509.878/SP, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 05/09/2019, DJe 12/09/2019). No sentido de que a custódia processual do indivíduo desafia a aferição da atualidade do risco que a legitima, incumbindo ao Estado-Juiz, se alterado o quadro processual e fático que a motivou, o reexame da medida gravosa: STF, 1aTurma, HC 126.815/MG, Rei. Min. Edson FachinJ. 04/08/2015, DJe 169 27/08/2015. Em caso concreto em que o acusado teria respondido ao processo penal em liberdade, mas cuja prisão preventiva foi decretada por ocasião da sentença condenatória justificadamente com base em circunstâncias posteriores à conduta delitiva, indicando, pois, a atuali­ dade dos seus motivos, entendeu a 6a Turma do STJ (HC 429.322/SP, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 15/03/2018, DJe 27/03/2018) não haver

Min. Rosa Weber, DJ 15.12.2020.

qualquer ilegalidade.

347. É nesse sentido, aliás, o teor do Enunciado n. 34 do Conselho

Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM):"O §2° do art. 312 afirma a necessidade de que a decretação da prisão preventiva seja motivada e fundamentada com a demonstração de "receio de perigo gerado pelo estado de liberdade do acusado", que nada mais é do que o perigo concreto que a manutenção da liberdade do suspeito acarreta para a investigação criminal, o processo penal, a efetividade do direito penal ou à ordem pública ou econômica".

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Em sentido semelhante, confira-se: “(...) No caso concreto, o fundamento da manutenção da custó­ dia cautelar mostra-se frágil, porquanto, de acordo com o que se colhe dos autos, as 3 ameaças, em tese praticadas pelo paciente, teriam ocorrido en­ tre os anos de 2015 e 2016, cumprindo-se salientar que a segregação em exame foi decretada em abril de 2018, havendo, portanto, um lapso temporal de cerca de 2 anos entre a data da suposta prática crimi­ nosa e o encarceramento do paciente, tudo a indicar a ausência de contemporaneidade entre os fatos a ele imputados e a data em que foi decretada a sua prisão preventiva”.351

5.2.1. Garantia da ordem pública A expressão “garantia da ordem pública” é ex­ tremamente vaga e indeterminada, gerando contro­ vérsias na doutrina e na jurisprudência quanto ao seu real significado. Há pelo menos 3 (três) corren­ tes acerca do assunto.

Para uma primeira corrente (minoritária), a prisão preventiva decretada com fundamento na garantia da ordem pública não é dotada de fun­ damentação cautelar, figurando como inequívoca modalidade de cumprimento antecipado de pena. Para os adeptos dessa primeira corrente, medi­ das cautelares de natureza pessoal só podem ser aplicadas para garantir a realização do processo ou de seus efeitos (finalidade endoprocessual), e nunca para proteger outros interesses, como o de evitar a prática de novas infrações penais (finali­ dade extraprocessual). Entre outros, é esta a po­ sição sustentada por Odone Sanguiné, segundo o qual “a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou, ainda, o clamor público) acaba sendo utilizada com uma função de prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao atribuir-lhe fun­ ções de prevenção que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”.352* 351. STF, 2a Turma, HC 156.600/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 25/09/2018, DJe 203 18/09/2019. No sentido de que os fatos que justifi­ cam a prisão preventiva devem ser contemporâneos à decisão que a de­ creta: STJ, 6aTurma, HC 214.921/PA, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 17/03/2015, DJe 25/03/2015; STJ, 6a Turma, HC 119.533/ES, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 27/05/2014, DJe 10/06/2014.

352. "A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva". In: Revista de Estudos Criminais, n° 10, p. 114/115. Em sentido semelhante: TOURINHO FILHO (op. cit. p. 530); GOMES FI­ LHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. Op. cit. p. 66-67; PRADO, Geraldo. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 120. A prevenção geral significa que a pena deve ser um estímulo

Para uma segunda corrente de caráter restriti­ vo, que empresta natureza cautelar à prisão preven­ tiva decretada com base na hipótese sob comento, entende-se garantia da ordem pública como risco considerável de reiteração de ações delituosas por parte do acusado, caso permaneça em liberdade, seja porque se trata de pessoa propensa à prática delituosa, seja porque, se solto, teria os mesmos es­ tímulos relacionados com o delito cometido, inclu­ sive pela possibilidade de voltar ao convívio com os parceiros do crime. Acertadamente, essa corrente, que é a majoritária, sustenta que a prisão preventiva poderá ser decretada com o objetivo de resguardar a sociedade da reiteração de crimes em virtude da periculosidade do agente. O caráter cautelar é preservado, pois a pri­ são tem o objetivo de assegurar o resultado útil do processo, de modo a impedir que o réu possa continuar a cometer delitos, resguardando o prin­ cípio da prevenção geral. Há, de fato, evidente pe­ rigo social decorrente da demora em se aguardar o provimento jurisdicional definitivo, eis que, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o agente já poderá ter cometido diversas infra­ ções penais. Como adverte Scarance Fernandes, “se com a sentença e a pena privativa de liberdade pretende-se, além de outros objetivos, proteger a sociedade, impedindo o acusado de continuar a cometer delitos, esse objetivo seria acautelado por meio da prisão preventiva”.353

No caso de prisão preventiva com base na ga­ rantia da ordem pública, faz-se um juízo de peri­ culosidade do agente (e não de culpabilidade), que, em caso positivo, demonstra a necessidade de sua retirada cautelar do convívio social. Embora não tenham o condão de exasperar a pena-base no mo­ mento da dosimetria da pena, inquéritos policiais e processos em andamento são elementos aptos a de­ monstrar eventual reiteração delitiva, fundamento suficiente para a decretação da prisão preventiva.354 Portanto, de acordo com essa corrente, a prisão preventiva poderá ser decretada com fundamento na garantia da ordem pública sempre que dados concretos - não se pode presumir a periculosidade do agente a partir de meras ilações, conjecturas a que as demais pessoas não pratiquem qualquer delito, servindo como exemplo aos demais membros da coletividade. A prevenção especial, por sua vez, visa reeducar o agente, com o intuito de compeli-lo a não mais delinquir. Por fim, a pena visa punir o agente e retribuir-lhe o mal que causou à sociedade. 353. Processo penal constitucional. Op. cit. p. 302. 354. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, RHC 055.365/CE, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 17/03/2015, DJe 06/04/2015; STJ, 6a Turma, RHC 052.402/BA, Rei.

Min. Sebastião Reis Júnior, j. 18/12/2014, DJe 05/02/2015.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

desprovidas de base empírica concreta - demons­ trarem que, se o agente permanecer solto, voltará a delinquir. As mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11 vêm ao encontro dessa segunda corrente, porquan­ to, segundo a nova redação do art. 282,1, as medidas cautelares poderão ser adotadas não só para tutelar a aplicação da lei penal e a investigação ou instru­ ção criminal, como também para evitar a prática de infrações penais.

Essa segunda corrente acerca do conceito de garantia da ordem pública sempre prevaleceu nos Tribunais Superiores. A título de exemplo, em caso concreto apreciado pelo STJ, concluiu-se estar perfeitamente justificada a necessidade de garantia da ordem pública em razão da periculosidade concreta do paciente, denunciado como mandante de cinco homicídios qualificados consumados e seis tenta­ dos, cometidos por ocasião da invasão da residência das vítimas durante a madrugada, utilizando-se de metralhadoras, bem como de armamento de grosso calibre, tudo isso motivado por sentimento de vin­ gança e disputa por poder dentro da organização criminosa voltada ao tráfico ilícito de drogas.355 Compreendendo-se garantia da ordem públi­ ca como expressão sinônima de periculosidade do agente, não é possível a decretação da prisão pre­ ventiva em virtude da gravidade em abstrato do delito, porquanto a gravidade da infração pela sua natureza, de per si, é uma circunstância inerente ao delito. Assim, a simples assertiva de que se trata de autor de crime de homicídio cometido mediante disparo de arma de fogo não é suficiente, por si só, para justificar a custódia cautelar. Daí por que, em caso concreto versando sobre a apreensão de cerca de 245.000 pés de maconha, cuja decisão de prisão preventiva baseou-se tão somente na gra­ vidade em abstrato do delito, a 6a Turma do STJ deferiu a ordem em habeas corpus para assegurar 355. STJ, 6a Turma, HC 85.922/SP, Rel. Min. Paulo Gallotti, Informativo

n° 354 do STJ (28 de abril a 9 de maio de 2008). Na mesma trilha: STJ - HC 52.745/SP - 6a Turma - Rel. Min. Paulo Gallotti - DJ 09/04/2007 p. 270; STJ - HC 119.115/RJ - 5a Turma - Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho - Dje 11/05/2009; STF - HC 89.266/GO - Ia Turma - Rel. Min. Ricardo

Lewandowski - DJ 29/06/2007 p. 58. E também: STF - HC 88.196/MS - 1a Turma - Rel. Min. Marco Aurélio - DJ 18/05/2007 p. 82; STF - HC 86.002/ RJ - 2a Turma - Rel. Min. Gilmar Mendes - DJ 03/02/2006 p. 88; STF - HC 88.608/RN - 2a Turma - Rel. Min. Joaquim Barbosa - DJ 06/11/2006 p. 51. Ambas as Turmas Criminais do STJ têm precedentes no sentido de que a prisão cautelar pode ser decretada para garantia da ordem pública potencialmente ofendida, especialmente nos casos de: reiteração deli­ tiva, participação em organizações criminosas, gravidade em concreto da conduta, periculosidade social do agente, ou pelas circunstâncias em que praticado o delito (modus operandi). A propósito: STJ, 6a Turma, HC 311.909/CE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 10/03/2015, DJe 16/03/2015; STJ, 5a Turma, RHC 053.944/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 10/03/2015, DJe 19/03/2015.

que os acusados permanecessem em liberdade até o julgamento definitivo do processo.356 Todavia, de­ monstrada a gravidade em concreto do delito, seja pelo modo de agir, seja pela condição subjetiva do agente, afigura-se possível a decretação da prisão preventiva, já que demonstrada sua periculosidade, pondo em risco a ordem pública.357 É por isso que a Suprema Corte tem censurado decisões que fundamentam a privação cautelar da liberdade no reconhecimento de fatos que se subsumem à própria descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica do tipo penal. Os elementos próprios à tipologia bem como as cir­ cunstâncias da prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta. Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito daquela Corte, ainda que o delito imputado ao acusado seja legalmente classificado como cri­ me hediondo. Afinal, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5o, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do acusado, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada. Também não será possível a decretação da prisão preventiva em virtude da repercussão da in­ fração ou do clamor social provocado pelo crime, isoladamente considerados. Tais argumentos, de per si, não são justificativas para a tutela penal cautelar. Afirmações a respeito da gravidade do delito tra­ zem aspectos já subsumidos ao próprio tipo penal, ou seja, aspectos como a gravidade em abstrato do delito, o clamor social provocado pelo delito, ou a necessidade de segregação cautelar do agente como forma de se acautelar o meio social devem perma­ necer alheios à avaliação dos pressupostos da prisão preventiva, mormente para garantia da ordem pú­ blica, pois desprovidos de propósito cautelar.

Nessas hipóteses de clamor público e repercus­ são social do fato delituoso, não se vislumbra pericu­ lum libertatis, eis que a prisão preventiva não seria decretada em virtude da necessidade do processo, mas simplesmente em virtude da gravidade abstrata do delito, satisfazendo aos anseios da população e da mídia. Não custa lembrar: o poder judiciário está 356. STJ, 6a Turma, HC 609.038-BA, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 17.12.2020.

357. No sentido de que o modo como o crime é cometido, revelando a gravidade em concreto da conduta praticada, constitui elemento capaz de demonstrar o risco social, o que justifica a decretação da prisão pre­ ventiva para garantia da ordem pública: STJ, 5a Turma, HC 581.811/MG, Rel. Min. Joel llan Paciornik, j. 04.08.2020, DJe 10.08.2020.

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sujeito à lei e, sobretudo, ao direito, e não à opinião da maioria, facilmente manipulada pela mídia.358

pior, não está demonstrando o caráter instrumental da providência acautelatória.”361

Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Fe­ deral já decidiu que não constituem fundamentos idôneos, por si sós, à prisão preventiva: a) o cha­ mado clamor público provocado pelo fato atribuí­ do ao réu, mormente quando confundido, como é frequente, com a sua repercussão nos veículos de comunicação de massa;359 b) a consideração de que, interrogado, o acusado não haja demonstrado inte­ resse em colaborar com a Justiça; ao indiciado não cabe o ônus de cooperar de qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar - que é todo dos organismos estatais da repressão penal; c) a afirmação a ser o acusado capaz de interferir nas provas e influir em testemunhas, quando despida de qualquer base empírica; d) o subtrair-se o acusado, escondendo-se, ao cumprimento de decreto anterior ilegal de prisão processual.360

Essa linha de pensamento, segundo a qual o clamor público, por si só, não autoriza a prisão preventiva, foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal em caso de repercussão nacional, no qual o jornalista P.N. fora acusado de matar sua na­ morada, também jornalista. Nas palavras do Min. Celso de Mello, a prisão preventiva, que não deve ser confundida com a prisão penal, pois não ob­ jetiva infligir punição àquele que sofre a sua de­ cretação, mas sim atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal, não pode ser decretada com base no estado de comoção social e de eventual indignação popular, isolada­ mente considerados. Também não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação da segregação cautelar, a alegação de que o acusado, por dispor de privilegiada condição econômico-financeira, deveria ser mantido na prisão, em nome da credibilidade das instituições e da pre­ servação da ordem pública.362

Vale lembrar que somente a prisão penal pode ter finalidade de prevenção geral - positiva ou ne­ gativa - (intimidação e integração do ordenamento jurídico), ou prevenção especial - positiva ou nega­ tiva - (ressocialização e inocuização), sendo vedado que a medida cautelar assuma tais encargos. Como assevera Luiz Flávio Gomes, “o juiz que decreta uma prisão cautelar para intimidar outras pessoas, para servir de exemplo, está absolutamente equivocado e, 358. STF - HC 87.041/PA - 1a Turma - Rel. Min. Cezar Peluso - DJ

24/11/2006 p. 76. E também: STF - HC 91.616/RS - 1a Turma - Rel. Min. Carlos Britto - DJ 07/12/2007, p. 59; STF - HC 92.368/MG - 2a Turma -

Rel. Min. Eros Grau - DJE 70 - 18/04/2008; STF - HC n° 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1a Turma, unânime, DJ 22.10.2004; STJ - HC 84.683/SP - 5a Turma - Relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada doTJ/MG - DJ 05/11/2007 p. 332; STJ - 5a Turma - HC 51.100/PB - Rel.

Min. Gilson Dipp - Julgamento: 11/04/2006 - Publicação: DJ 08/05/06,

p. 257. No mesmo sentido, o Supremo tem reiteradamente reconhecido como ilegais as prisões preventivas decretadas, por exemplo, com base

na gravidade abstrata do delito (HC 90.858/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 21/06/2007; HC 90.162/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 28/06/2007); na periculosidade presumida do agente (HC 90.471/PA, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU de 13/09/2007); no clamor social decorrente da prática da conduta delituosa (HC 84.311/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU de 06/06/2007) ou, ainda, na afirmação genérica de que a prisão é necessária para acau­ telar o meio social (HC 86.748/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso,

DJU de 06/06/2007). 359. Como bem adverte Rogério Schietti Machado Cruz,"semelhante sentimento, saliente-se, é fortemente influenciado por setores da mídia e da política, que deliberadamente infundem na população uma contínua sensação de terror e de insegurança, campo fértil para afirmar a idéia do encarceramento como panaceia para os problemas da criminalidade urbana. O leitmotiv dos políticos de plantão, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o medo do crime violento passa, como refere WACQUANT (2001, p. 75), a ser'lock'em up and throw away the key'(tranque-os e jogue fora a chave)”, (op. cit. p. 12).

360. STF - HC 79.781/SP - 1a Turma - Rel. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 09/06/2000 p. 22.

Lado outro, também não se pode dizer que o clamor público no sentido da população revoltar-se contra o suspeito e querer linchá-lo autorize a decretação de sua prisão preventiva. Ora, o Estado tem a obrigação de garantir a integridade física e mental do acusado. Segregá-lo, cautelarmente, a fim de assegurar sua integridade física e mental, signifi­ ca o completo desvirtuamento da tutela cautelar, em evidente desvio de finalidade. Significa o reconheci­ mento da incompetência dos poderes constituídos, colocando sobre os ombros do suspeito todo o ônus da desídia do Estado em manter a ordem e a paz no seio da sociedade.363 Para a 3a Seção do STJ, a prática de ato infra­ cional durante a adolescência pode servir de funda­ mento para a decretação de prisão preventiva, desde que observados os seguintes critérios: a) a particular gravidade concreta do ato infracional, não bastando mencionar sua equivalência a crime abstratamente considerado grave; b) a distância temporal entre o ato infracional e o crime que deu origem ao pro­ cesso (ou inquérito policial) no qual se deve deci­ dir sobre a decretação da prisão preventiva; e c) a comprovação desse ato infracional anterior, de sorte a não pairar dúvidas sobre o reconhecimento judi­ cial de sua ocorrência. Ora, se uma pessoa, recém 361. Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica. São

Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 198. 362. STF - HC 80.719/SP - 2a Turma - Rel. Min. Celso de Melo - DJ

28/09/2001 p. 37.

363. JTJ 153/321.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

ingressa na maioridade penal, comete crime grave e possui histórico de atos infracionais também graves, indicadores de seu comportamento violento, como desconsiderar tais dados para a avaliação judicial sobre a sua periculosidade? Enfim, os registros sobre o passado de uma pessoa, seja ela quem for, não podem ser desconsiderados para fins cautelares. Se os atos infracionais não servem, por óbvio, como antecedentes penais e muito menos para firmar re­ incidência (porque tais conceitos implicam a ideia de “crime” anterior), não podem ser ignorados para aferir o risco que a sociedade corre com a liberdade plena do acusado.364 Por fim, para uma terceira corrente, com ca­ ráter ampliativo, a prisão preventiva com base na garantia da ordem pública pode ser decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinquir, e também nos casos em que o cárcere ad custodiam for necessário para acautelar o meio so­ cial, garantindo a credibilidade da justiça em crimes que provoquem clamor público.365 Entre os adeptos dessa terceira corrente, Fernando Capez assevera que “a brutalidade do delito provoca comoção no meio social, gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional, de tal forma que, havendo fumus boni iuris, não convém aguardar-se até o trânsito em julgado para só então prender o indivíduo”.366

Trilhando esse raciocínio, em julgados recentes, o Ministro Gilmar Mendes tem destacado as seguin­ tes circunstâncias principais quanto ao requisito da garantia da ordem pública: 1) a necessidade de res­ guardar a integridade física ou psíquica do paciente ou de terceiros; 2) o objetivo de impedir a reitera­ ção das práticas criminosas, desde que lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; 3) associada aos dois elementos anteriores, para assegurar a credi­ bilidade das instituições públicas, em especial do poder judiciário, no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas, eficazes e fundamentadas 364. Nesse contexto: STJ, 3a Seção, RHC 63.855/MG, Rei. Min. Rogé­ rio Schietti Cruz, j. 11/05/2016, DJe 13/06/2016. Na mesma linha: STJ, 5a Turma, RHC 47.671/MS, Rei. Min. Gurgel de Faria, j. 18/12/2014, DJe 02/02/2015. Em sentido diverso: STJ, 6a Turma, HC 338.936/SP, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 17/12/2015, DJe 5/2/2016.

365. Informativo n°397 do STJ - HC 120.167/PR-5a Turma - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 04/06/2009. No sentido de que a garantia da ordem pública abrange também a promoção daquelas providências de resguardo à integridade das instituições, à sua credibi­ lidade social e ao aumento da confiança da população nos mecanismos oficiais de repressão às diversas formas de delinquência: STJ, 5a Turma, RHC 26.308/DF, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 08/09/2009, DJe 19/10/2009. 366. Curso de processo penal. 16a ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 279.

quanto à visibilidade e transparência da implemen­ tação de políticas públicas de persecução criminal e desde que diretamente relacionadas com a adoção tempestiva de medidas adequadas e eficazes asso­ ciadas à base empírica concreta que tenha ensejado a custódia cautelar.367

Uma última observação deve ser feita: inde­ pendentemente da corrente que se queira adotar, comprovada a periculosidade do agente com base em dados concretos, ou na eventualidade da pre­ sença de outra hipótese que autorize a prisão pre­ ventiva (garantia da ordem econômica, garantia de aplicação da lei penal ou conveniência da instrução criminal), condições pessoais favoráveis como bons antecedentes, primariedade, profissão definida e residência fixa não impedem a decretação de sua prisão preventiva.368

5.2.2. Garantia da ordem econômica O pressuposto da garantia da ordem econômica foi inserido no Código de Processo Penal pelo art. 86 da Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994 (Lei antitruste), tendo sido mantido no caput do art. 312 pela Lei n° 12.403/11. O conceito de garantia da ordem econômica as­ semelha-se ao de garantia da ordem pública, porém relacionado a crimes contra a ordem econômica, ou seja, possibilita a prisão do agente caso haja risco de reiteração delituosa em relação a infrações penais que perturbem o livre exercício de qualquer ativida­ de econômica, com abuso do poder econômico, ob­ jetivando a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4o). Na mesma linha, de acordo com o art. 36 da Lei n° 12.529/11, constituem infração da ordem econômica, independentemente de cul­ pa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limi­ tar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mer­ cado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante.369 367. STF, 2a Turma, HC 89.090/GO, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 05/10/2007 p. 38.

368. STJ, 6aTurma, RHC 21,989/CE, Rei. Min. Carlos Fernando Mathias, j. 06/12/2007, DJ 19/12/2007. 369. Na visão do Supremo, "a garantia da ordem econômica auto­ riza a custódia cautelar, se as atividades ilícitas do grupo criminoso a que, supostamente, pertence o paciente repercutem negativamente no comércio lícito e, portanto, alcançam um indeterminando contingen­ te de trabalhadores e comerciantes honestos. Vulneração do princípio

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Esses crimes que atentam contra a ordem econô­ mica estão previstos na Lei n° 1.521/51 (crimes contra a economia popular), Lei n° 7.134/83 (crimes de apli­ cação ilegal de créditos, financiamentos e incentivos fiscais), Lei n° 7.492/86 (crimes contra o sistema fi­ nanceiro nacional), Lei n° 8.078/90 (crimes previs­ tos no Código de Defesa do Consumidor), Lei n° 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômi­ ca e contra as relações de consumo), Lei n° 8.176/91 (crimes contra a ordem econômica), Lei n° 9.279/96 (crimes em matéria de propriedade industrial) e Lei n° 9.613/98 (crimes de lavagem de capitais).

Importante ficar atento ao art. 30 da Lei n° 7.492/86, segundo o qual a prisão preventiva do acu­ sado da prática de crime contra o sistema financeiro nacional, sem prejuízo do disposto no art. 312 do CPP, poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada. À primeira vista, pode-se concluir que, em se tratando de crimes contra o sistema financeiro na­ cional, a magnitude da lesão causada é fundamento suficiente e autônomo para a decretação da prisão preventiva. No entanto, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, tal prisão preventiva funda-se não somente na magnitude da lesão causada, mas também na necessidade de se resguardar a credibi­ lidade das instituições públicas. Em outras palavras, nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, a magnitude da lesão causada, por si só, não autoriza a prisão preventiva - deve estar conjugada com um dos pressupostos do art. 312 do CPP.370

Uma observação final deve ser feita quanto à prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem econômica: não olvidamos a importância da privação cautelar da liberdade de locomoção de agentes envolvidos com organizações criminosas e/ ou com crimes contra a ordem econômica. Todavia, não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que a prisão cautelar de um ou mais agentes terá o condão de pôr fim às práticas delituosas.

Um dos meios mais eficientes para o combate aos crimes contra a ordem econômica passa pela recuperação de ativos ilícitos, sendo imperiosa a criação de uma nova cultura, uma nova menta­ lidade, que, sem deixar de lado as prisões caute­ lares, passe a dar maior importância às medidas cautelares de natureza patrimonial e ao confisco dos valores espúrios. Em crimes contra a ordem constitucional da livre concorrência." (STF, 1a Turma, HC 91.285/SP, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 074 25/04/2008).

370. STF, Pleno, HC 80.717, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 13/06/2001, DJ 05/03/2004. E também: STJ, 6a Turma, HC 14.270/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 12/12/2000, DJ 19/03/2001, p. 142.

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econômica, a prisão de um e/ou mais integrantes da organização não a destruirá, sendo certo que outro agente fatalmente irá ocupar seu lugar. No entanto, se o braço financeiro da organização for atingido, torna-se possível seu enfraquecimento ou até mesmo sua destruição. Assim, para atacar o poder financeiro da criminalidade organizada, é imprescindível uma eficiente colaboração na­ cional e internacional na identificação de fundos patrimoniais ilegais, no confisco de bens e na ade­ quação das legislações dos países soberanos sobre essa criminalidade.371

5.2.3. Garantia de aplicação da lei penal A prisão preventiva com base na garantia de aplicação da lei penal deve ser decretada quando o agente demonstrar que pretende fugir do distrito da culpa, inviabilizando a futura execução da pena. Sob pena de evidente violação ao princípio da presunção de inocência, não se pode presumir a fuga do agente simplesmente em virtude de sua con­ dição socioeconômica favorável. Meras ilações ou conjecturas desprovidas de base empírica concreta não autorizam a decretação da prisão do agente com base nesse pressuposto. O juiz só está autorizado a decretar a prisão preventiva com base em elemen­ tos concretos constantes dos autos que confirmem, de maneira insofismável, que o agente pretende se subtrair à ação da justiça.372

Além disso, diante da regra probatória que deriva do princípio da presunção de não culpabi­ lidade, não é do réu o ônus de assegurar que não pretende fugir, mas sim da acusação e do juízo o de demonstrar, à vista dos fatos concretos, ainda que indiciários - e não de vagas suposições - ha­ ver motivos para temer a fuga às consequências da condenação eventual. 371. SCARTEZZINI, Cid Flaquer. A situação do Brasil quanto à lavagem de dinheiro sujo. Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, Brasília, v. 16, n° 2, p. 1-87, jul/dez. 2004, p. 15. 372. Para o Supremo, "a simples afirmação de que os pacientes care­ cem de domicílio certo e conhecido não tem a força de lastrear a segre­ gação provisória para assegurar eventual aplicação da lei penal". (STF, Ia Turma, HC 91.616/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 07/12/2007 p. 59). E também: STF, 1a Turma, HC91.334/PA, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 17/08/2007 p. 59; STJ, 5aTurma, HC 88.313/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 25/02/2008 p. 344; STF, Ia Turma, HC 90.967/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 26/10/2007 p. 63; STF, 2aTurma, HC 91.971/ AC, Rel. Min. Eros Grau, DJe 31 22/02/2008; STF, Ia Turma, HC 90.265/ AL, DJ 31/08/2007 p. 36; STJ, 5a Turma, HC 88.101/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/03/2008 p. 1; STJ, 5a Turma, HC 97.520/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 07/04/2008 p. 1. No sentido de que a simples mudança, para o exterior, de domicílio ou residência de indiciado, com a devida comunicação à autoridade competente, não justifica, por si só, a prisão preventiva: STF, 2a Turma, HC 102.460/SP, Rel. Min. Ayres Britto, j. 23/11/2010.

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Os tribunais têm analisado essa intenção de se subtrair à aplicação da lei penal com certo tempe­ ramento. Assim, uma ausência momentânea, seja para evitar uma prisão em flagrante, seja para evi­ tar uma prisão decretada arbitrariamente, não ca­ racteriza a hipótese de garantia de aplicação da lei penal. Além disso, não pode justificar uma ordem de prisão a fuga posterior à sua decretação, cuja validade se contesta em juízo: do contrário, seria impor ao acusado, para questioná-la, o ônus de sub­ meter-se à prisão processual que entende ser ilegal ou abusiva.373 Com base nesse entendimento, o STJ já con­ cluiu que a fuga do distrito da culpa, diante de decreto prisional marcado pela carência de funda­ mentação, não corporifica, por si só, o risco para aplicação da lei penal, mas, antes, exercício regular de direito: legítima oposição ao arbítrio estatal.374 O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também já teve a oportunidade de asseverar que a mera evasão do distrito da culpa - seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou validade da pró­ pria decisão de custódia cautelar - não basta, só por si, para justificar a decretação ou manutenção da medida excepcional de privação da liberdade do indiciado ou do réu.375

Se é verdade, então, que a simples fuga para se evitar a prisão em flagrante ou para impugnar decisão constritiva tida por ilegal não autorizam, de per si, a decretação da prisão preventiva, também é verdade que, demonstrada inequívoca intenção do agente de se furtar à aplicação da lei penal, em situações em que comprovada sua fuga em momen­ to anterior à expedição de decreto prisional, haverá causa idônea a justificar sua segregação cautelar com base na garantia da aplicação da lei penal.376

Acerca da prisão preventiva decretada com base na garantia de aplicação da lei penal, oportu­ no relembrar rumoroso caso concreto relativo ao cidadão S.A.C., natural da Itália, acusado da práti­ ca de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, notadamente de gestão fraudulenta e temerária, res­ pectivamente, das instituições financeiras MARKA 373. STJ, 5a Turma, HC 80.269/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 05/11/2007 p. 317.

374. STJ, 6a Turma, HC 91.083/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de

Assis Moura, DJ 10/03/2008 p. 1. STF, 1a Turma, HC 84.470/MG, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/08/2004, DJ 08/10/2004. 375. STF, 2a Turma, HC 89.501/GO, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 16/03/2007 p. 43. No mesmo sentido: STF, HC 91741/PE, rei. orig. Min. Ellen Gracie, rei. p/ o acórdão Min. Eros Grau, 3.6.2008. 376. STF, 2a Turma, HC 101.206/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 17/08/2010, DJe 173 16/09/2010.

S/A e FONTECIDAM S/A, bem como o auxílio prestado pelo BACEN a ambas, indevidamente, de que resultou, segundo laudos periciais oficiais, um prejuízo público da órbita de 1.574.805.000,00 (um bilhão, quinhentos e setenta e quatro milhões, oi­ tocentos e cinco mil reais). Após obter decisão da Suprema Corte suspendendo, em sede liminar (HC 80.288/RJ), os efeitos de mandado de prisão contra ele decretado, o cidadão S.A.C. viajou para a Itá­ lia, país que, à semelhança do Brasil, não extradita seus nacionais. Posteriormente, por concluir que o acusado não demonstrara sua intenção de retornar ao Brasil, e, por consequência, manter-se alheio à ação penal, o Juízo da 6a Vara Federal houve por bem decretar nova prisão preventiva do acusado, fazendo-o mais uma vez sob o fundamento da ga­ rantia da ordem econômica. Assim é que, em 15 de setembro de 2007, S.A.C. acabou sendo preso quando se encontrava no principado de Mônaco.

Impugnada a decisão que decretara sua prisão preventiva, concluiu-se que a manutenção de sua prisão era medida de rigor em face da efetiva fuga do agente, o qual, logo após a decisão que, em sede de liminar, suspendera a eficácia do mandado de prisão, viajou às pressas para a Itália, lá permanecen­ do sem qualquer intenção de retornar. A magnitude da lesão causada, desde que aliada aos demais requi­ sitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, é fator capaz de influenciar na decisão que examina o pedido de prisão preventiva do acusado: inteligência do artigo 30 da Lei 7.492/1986.377

5.2.3.1. Prisão de estrangeiros e garantia de aplicação da lei penal Enfoque especial está a merecer a situação do es­ trangeiro que comete crime no território nacional. De início, cumpre firmar que o fato de o suposto autor do delito ostentar a condição jurídica de estrangeiro não lhe inibe, só por si, o acesso aos instrumentos proces­ suais de tutela da liberdade, nem lhe subtrai, por tais razões, o direito de ver respeitadas, pelo Poder Públi­ co, as prerrogativas de ordem jurídica e as garantias de índole constitucional que o ordenamento positivo brasileiro confere e assegura a qualquer pessoa que sofra persecução penal instaurada pelo Estado. Logo, pelo simples fato de o acusado ser estrangeiro, não se pode estabelecer uma presunção absoluta de fuga. Assim, caso o estrangeiro se encontre em si­ tuação regular no país, com residência fixa, além de desenvolver atividade lícita, não se afigurará 377. STJ, 3a Seção, HC 111.111/DF, Rei. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada doTJ/MG), Dje 17/02/2009.

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necessária sua prisão com base na garantia de apli­ cação da lei penal.378 Por outro lado, em se tratando de estrangeiro em situação irregular no País, sem residência fixa, nem tampouco no exercício de ati­ vidade lícita, afigura-se lícita a decretação de sua prisão preventiva.379

Recentemente, no entanto, com a crescente celebração de acordos de assistência judiciária em matéria criminal pelo governo brasileiro, os Tribu­ nais Superiores têm optado pela não decretação da prisão preventiva com base na garantia de aplicação da lei penal, sobretudo quando o agente demonstrar que possui residência certa no país de origem.380 Acerca desses acordos de assistência judiciária, Walter Nunes da Silva Júnior assevera que, “a par da cooperação jurídica internacional com a qual um país pede que o outro, tendo em conta decisão dada pela sua justiça, acate e determine o cumprimento do que nela restou determinado, no âmbito inter­ nacional tem-se admitido a chamada cooperação direta, hipótese na qual o país, tendo interesse na realização de uma diligência ou que seja determi­ nada uma medida coercitiva em território alheio, solicita ao país estrangeiro o patrocínio dessa pre­ tensão perante os órgãos jurisdicionais nacionais. A diferença é que, na assistência direta, ao invés de o Estado requerente solicitar que seja cumprida, no território alheio, a decisão dada pela sua justiça, ele pede que o Governo do Estado requerido patrocine, em seu nome, perante o seu Poder Judiciário, que este determine a realização da audiência ou proce­ da à diligência solicitada. Nesse caso, a coopera­ ção jurídica internacional se faz perante a jurisdi­ ção de primeira instância, apresentando-se, assim, como forma difusa e descentralizada de enfrentar a questão”.381

Por isso, em caso concreto apreciado pelo Su­ premo, entendeu-se que, prevendo o Tratado cele­ brado entre o Brasil e a Espanha a troca de presos, inexiste óbice ao retorno do acusado ao país de ori­ gem. Conforme versado no referido tratado, inseri­ do na ordem jurídica nacional mediante o Decreto 378. STF, 1aTurma, HC 93.134/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 036 29/02/2008.

379. STJ, 5a Turma, HC 86.112/MA, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/03/2008 p. 1.

380. Na dicção do STJ, "os fundamentos de que houve a fuga do pa­ ciente estrangeiro e de que seria necessário, por isso, o resguardo da aplicação da lei penal não justificam a medida extrema, pois ele logrou comprovar que possui residência fixa no país de sua nacionalidade (Pa­ raguai) e que o interrogatório foi perfeitamente viabilizado mediante o cumprimento de rogatória remetida ao endereço que informou ao juízo". (Informativo n° 417 do STJ - 6a Turma - HC 87.752/PR, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 24/11/2009).

381. Op. cit. p. 365.

n° 2.576/98, mostra-se possível executar na Espanha eventual título condenatório formalizado pelo Judi­ ciário pátrio.382

Destarte, conclui-se que a condição jurídica de não nacional e a circunstância de o réu estrangeiro não possuir domicílio em nosso país não legitimam a adoção de qualquer tratamento arbitrário ou dis­ criminatório, mormente se houver acordo de assis­ tência judiciária entre o Brasil e o país de origem do acusado em matéria penal, a permitir apoio durante a tramitação do inquérito e de eventual processo criminal.

5.2.4. Conveniência da instrução criminal A prisão preventiva decretada com base na conveniência da instrução criminal visa impedir que o agente perturbe ou impeça a produção de provas. Tutela-se, com tal prisão, a livre produção probatória, impedindo que o agente comprometa de qualquer maneira a busca da verdade. Assim, haven­ do indícios de intimidação ou aliciamento de tes­ temunhas ou peritos, de supressão ou alteração de fontes de provas, ou de qualquer tentativa de turbar a apuração dos fatos e o andamento da persecução criminal, será legítima a adoção da prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal.383

Apesar de o legislador usar a expressão “con­ veniência da instrução criminal”, a medida cautelar não pode ser decretada com base em mera con­ veniência. Sua decretação está condicionada, sim, 382. STF, 1a Turma, HC 91.690/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe-018 01/02/2008. Na mesma linha: STF, 1 aTurma, HC 91.444/RJ, Rel. Min. Mene­ zes Direito, DJe 078 02/05/2008. No julgamento do HC 2006.01.00.0433511 (Rel. Desembargador Federal Cândido Ribeiro - DJ 12/01/2007, p. 17), relativo ao acidente aéreo envolvendo o jato'legacy'e o boeing da gol,

do qual resultou a morte de 154 (cento e cinquenta e quatro) pessoas, entendeu oTribunal Regional Federal da 1a Região não estar demonstrada

a cautelaridade da retenção dos passaportes dos pilotos americanos, in verbis:"(...) A condição de estrangeiros, por si só, não se justifica para a restrição à liberdade de locomoção, eis que a Constituição Federal não faz distinção entre brasileiros e estrangeiros. Ademais, não obstante a natureza do delito não permitir a custódia cautelar, foi demonstrado que possuem família e trabalho regular no seu país, estando há mais de 60 (sessenta) dias retidos sem que tenham prestado depoimento ou mesmo sido indiciados, a configurar constrangimento ilegal. Existência de acordo de assistência judiciária entre Brasil e Estados Unidos em matéria penal, a permitir apoio durante a tramitação do inquérito e eventual ação penal. Ordem que se concede em parte para determinar a restituição

dos passaportes dos pacientes no prazo de 72 (setenta e duas) horas".

383. Na dicção do STJ, "o fato de o paciente haver ameaçado o cor­ réu delator, intimidando-o com o nítido propósito de alterar as suas declarações perante a autoridade judicial, constitui motivação idônea à decretação da prisão preventiva para a conveniência da instrução cri­ minal". (STJ, 5a Turma, HC 75.492/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/12/2007 p. 404). E também: STF, 1a Turma, HC 92.839/SP, Rel. Min.

Menezes Direito, DJe 070 18/04/2008; STJ, 5a Turma, REsp 909.021/RN, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 17/03/2008 p. 1; STJ, 5a Turma, HC 84.241/PE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora Convocada doTJ/MG, DJ 12/11 /2007 p. 263; STJ, 5a Turma, RHC 20.500/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/12/2007 p. 398.

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à necessidade ou indispensabilidade da medida a fim de possibilitar o bom andamento da instrução criminal. Levando-se em conta que o interrogatório é con­ siderado meio de defesa, a ausência do acusado ao interrogatório não autoriza, por si só, a decretação da prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal. O direito de audiência, que se materializa através do interrogatório, desdobramento da autodefesa, é renunciável, o que significa que o acusado pode abrir mão do direito de formar a con­ vicção do juiz quanto a sua versão sobre os fatos, sem que isso importe em risco à aplicação da lei penal e/ ou à conveniência da instrução criminal.384

Na verdade, embora o acusado não possa obstruir a atividade probatória, não se admite que sua prisão seja decretada com o objetivo de obrigá-lo a contribuir para a apuração do fato delituoso. Afinal, por força do princípio do nemo tenetur se detegere, o acusado não está obrigado a contribuir ativamente com a produção de prova que possa incriminá-lo. Enfim, firmada a premis­ sa de que o acusado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, eventual recusa de sua parte em colaborar com as investigações (ou com a instrução processual) jamais poderá funcionar como fundamento para a decretação da sua pri­ são preventiva, sob pena de patente violação ao direito ao silêncio.385 Ao decretar a prisão preventiva com base nessa hipótese, deve o juiz ter sempre em mente o prin­ cípio da proporcionalidade, notadamente em seu segundo subprincípio, qual seja, o da necessidade, devendo se questionar se não existe outra medi­ da cautelar menos gravosa que a prisão preventi­ va. De fato, se uma busca e apreensão for idônea a atingir o objetivo desejado, não se faz necessária uma prisão preventiva; se a condução coercitiva do acusado para o reconhecimento pessoal for apta a alcançar o fim almejado, não se afigura correto escolher medida mais gravosa consubstanciada na 384. Informativo n°402 do STJ, 6aTurma, HC 115.881/RS, Rei. Min. Ma­ ria Thereza de Assis Moura, julgado em 13/08/2009. Na visão do Supremo, "a prisão cautelar da paciente se apoia, exclusivamente, no conteúdo de entrevista concedida a programa de televisão. Entrevista pela qual a paciente, com o legítimo propósito de autodefesa, narrou sua própria versão aos fatos criminosos a ela mesma imputados. A análise dos autos

evidencia ilegítimo cerceio à liberdade de locomoção da paciente". (STF, 1a Turma, HC 95.116/SC, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 43 05/03/2009). 385. No sentido de que a negativa por parte do investigado de forne­ cer a senha dos seus aparelhos eletrônicos apreendidos não caracteriza justificativa idônea a justificar a prisão temporária, pois, diante do prin­ cípio nemo tenetur se detegere, não pode o investigado ser compelido a fornecer suposta prova capaz de levar à caracterização de culpa: STF, HC 192.380, Rei. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática do dia 06.10.2020.

privação da liberdade de locomoção do acusado; se a proibição de manter contato com pessoa determi­ nada ou a monitoração eletrônica (CPP, art. 319, III e IX, respectivamente) se revelarem adequadas e idôneas para assegurar a eficácia da investigação ou da instrução criminal, deve o magistrado evitar a decretação do cárcere ad custodiam.

A prisão preventiva decretada com base na con­ veniência da instrução criminal subsiste enquanto persistir a instrução processual. Em outras pala­ vras, uma vez encerrada a instrução processual (ou até mesmo ouvida a testemunha que estava sendo ameaçada), deve o juiz revogar a prisão preventiva decretada com base nessa hipótese, de acordo com o art. 316, caput, c/c art. 282, § 5o, ambos do Código de Processo Penal. Relembre-se que, em se tratando de processo criminal da competência do Júri, a prisão preventiva decretada com base na conveniência da instrução criminal pode perdurar até o julgamento em plenário, já que as testemunhas ameaçadas pelo acusado poderão vir a ser chamadas para depor em plenário.386

5.2.5. Descumprimento de qualquer das obri­ gações impostas por força de outras medidas cautelares Na redação conferida pela Lei n. 12.403/11, o art. 312, parágrafo único, dispunha: “A prisão pre­ ventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações im­ postas por força de outras medidas cautelares (art. 282, §4°)”. Eis que surge, então, a Lei n. 13.964/19, conferindo nova redação ao caput do art. 312, ao mesmo tempo em que acrescentou um §2° ao mes­ mo dispositivo legal. Tecnicamente, portanto, ante a criação de um §2°, o legislador deveria ter trazido uma norma de transição para que o parágrafo único do art. 312 fosse renumerado para §1°. Não o fez, todavia. Manteve, equivocadamente, um suposto §1°, que jamais existiu no art. 312.387 A despeito do equívoco grosseiro, algo comum, aliás, em di­ versos dispositivos constantes da Lei n. 13.964/19, parece-nos evidente que a intenção do legislador foi manter o teor do parágrafo único do art. 312, que, doravante, terá sua previsão normativa deslocada para o §1° do art. 312 - a não ser que se queira concluir que teremos um parágrafo único seguido de um parágrafo segundo - até mesmo porque o Pacote Anticrime continua prevendo a possibilidade 386. Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, HC 177.774/DF, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 07/10/2010. 387. Erro semelhante a este também ocorreu em relação ao antigo parágrafo único do art. 313, doravante §1°.

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de o descumprimento injustificado das cautelares diversas da prisão dar ensejo, em último caso, à decretação da prisão preventiva. A propósito, eis o teor do art. 282, §4°, com redação dada pela Lei n. 13.964/19: “No caso de descumprimento de qual­ quer das obrigações impostas, o juiz, mediante re­ querimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código”, (nosso grifo).388

6. HIPÓTESES DE ADMISSIBILIDADE DA PRI­ SÃO PREVENTIVA Presentes os pressupostos do art. 312 do Có­ digo de Processo Penal, a prisão preventiva poderá ser decretada em relação aos crimes listados no art. 313 do CPP. Na hipótese de inadmissibilidade da decretação da prisão preventiva, porquanto não preenchidos os requisitos do art. 313, incisos I, II e III, e parágrafo único, do CPP, nada impede a decretação de medida cautelar diversa da prisão pela autoridade judiciá­ ria, desde que à infração penal seja cominada pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou alter­ nativamente (CPP, art. 283, § Io). Aliás, no tocante à possibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão em relação às infrações de menor potencial ofensivo, confira-se o teor do Enunciado n° 121 do XXX FONAJE, realizado em São Paulo entre 16 e 18 de novembro de 2011: “As medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP e suas con­ sequências, à exceção da fiança, são aplicáveis às infrações de menor potencial ofensivo para as quais a lei cominar em tese pena privativa de liberdade”.

6.1. Crimes dolosos punidos com pena máxima superior a 4 (quatro) anos Nos termos do art. 312 do CPP, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 313,1). Logo, independentemente da natureza da pena, reclusão ou detenção, será cabível a decretação da prisão pre­ ventiva quando a pena máxima cominada ao delito for superior a 4 (quatro) anos.

O dispositivo guarda pertinência com o quan­ tum de pena fixado como limite para a substitui­ ção da pena privativa de liberdade por restritiva de 388. A possibilidade de decretação da prisão preventiva como medida de ultima ratio diante do descumprimento injustificado das cautelares diversas da prisão foi objeto de análise no capítulo introdutório do pre­ sente título, mais precisamente no item 5.5, para onde remetemos o leitor.

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direitos e para o início do cumprimento da pena em regime aberto. Com efeito, segundo o art. 44, inciso I, do Código Penal, pelo menos em regra, será cabível a substituição da pena privativa de liberdade por res­ tritiva de direitos quando for aplicada pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. Por sua vez, de acordo com o art. 33, § 2o, alínea “c”, do CP, o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

Atento ao princípio da proporcionalidade, o dispositivo visa evitar que o mal causado durante o processo seja desproporcional àquele que, possivel­ mente, poderá ser infligido ao acusado quando de seu término. Ou seja, ao decretar a prisão preventiva, deve o juiz fazer um prognóstico se, ao término do processo, ao réu poderá ser aplicada pena privativa de liberdade. Assim, se o juiz, ab initio, percebe que o crime cometido pelo agente terá sua pena privativa de liberdade convertida em restritiva de direitos, não faz sentido que decrete uma prisão preventiva. Impõe-se, pois, a observância da homogeneidade ou proporcio­ nalidade entre a prisão preventiva a ser decretada e eventual condenação a ser proferida.389

Perceba-se que o critério fixado pelo legislador no art. 313, inciso I, do CPP, leva em consideração a pena máxima prevista para o crime doloso, que deve ser superior a 4 (quatro) anos. Tendo em conta que, pelo menos em regra, o cabimento da prisão preventiva será determinado a partir do quantum de pena máxima cominada ao delito, há de se dis­ pensar especial atenção às hipóteses de concursos de crimes, qualificadoras, causas de aumento e de diminuição de pena, agravantes e atenuantes. Nos casos de concursos de crimes, que neces­ sariamente devem ser dolosos, há de ser levado em consideração o quantum resultante da somatória das penas nas hipóteses de concurso material (CP, art. 69) e de concurso formal impróprio (CP, art. 70, in fine), assim como a majoração resultante do concur­ so formal próprio (CP, art. 70, Ia parte) e do crime continuado (CP, art. 71). Não se pode confundir a determinação do cabimento da prisão preventiva (CPP, art. 313,1) com a contagem da prescrição, que 389. No sentido de que não se justifica a manutenção de prisão pre­ ventiva de acusado preso em infração que admite fiança, sobretudo quan­ do a pena privativa de liberdade em tese projetada não for superior a 4 anos: STJ, 6a Turma, HC 59.009/SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 03/09/2007 p. 228.

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incide sobre cada delito isoladamente, nos termos do art. 119 do Código Penal.390

Raciocínio semelhante já vem sendo aplicado pelos Tribunais Superiores em relação à suspensão condicional do processo, com a diferença, todavia, de que o art. 89 da Lei n° 9.099/95 leva em consi­ deração a pena mínima de 1 (um) ano, e não a pena máxima superior a 4 (quatro) anos, como o faz o art. 313, inciso I, do CPP, na hora de admitir a decre­ tação da prisão preventiva. De fato, de acordo com a súmula 723 do Supremo Tribunal Federal, “não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de 1/6 (um sexto) for superior a 1 (um) ano”. Nos mesmos moldes, a súmula 243 do STJ preconiza que “o be­ nefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo soma­ tório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de 1 (um) ano”. Da mesma forma que ocorre com as hipóteses de concurso de crimes, as qualificadoras também devem ser levadas em consideração na hora de se aferir o cabimento da prisão preventiva. Supondo, assim, a prática do crime de abandono de incapaz qualificado pelo resultado lesão corporal de na­ tureza grave (CP, art. 133, § Io), será admissível a decretação da prisão preventiva, porquanto a pena cominada para a figura qualificada em questão é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. Em se tratando de causas de aumento e de di­ minuição de pena, deve-se atentar para o fato de que, nos termos do art. 313, inciso I, do CPP, o ca­ bimento da prisão preventiva é aferido com base no máximo da pena cominada ao delito. Logo, em se tratando de causas de aumento de pena, leva-se em consideração o quantum que mais aumente a pena; quando se tratar de causa de diminuição de pena, utiliza-se o quantum que menos diminua a pena. Raciocínio distinto será aplicável nas hipóteses de agravantes e atenuantes. Estas não são levadas em consideração quando da análise do cabimento da prisão preventiva. Isso porque não há critério legal predeterminado de majoração ou diminuição da pena em virtude de sua incidência. 390. Ao aplicar a nova redação do art. 313,1, do CPP, alterado pela

Lei 12.403/2011, a 2a Turma do Supremo concedeu habeas corpus para cassar decreto de prisão preventiva em face de suposta prática dos de­ litos de resistência (CP, art. 329) e de desacato (CP, art. 331), ambos com pena máxima abstratamente cominada de 2 anos de detenção: STF, HC 107.617/ES, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23/08/2011.

6.2. Investigado ou acusado condenado por outro crime doloso em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no art. 64, inciso I, do Código Penal Nos termos do art. 312 do CPP, também será admitida a decretação da prisão preventiva se o investigado ou acusado tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em jul­ gado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal (CPP, art. 313, II). Perceba-se que, independentemente de o crime ser punido com reclusão ou detenção - onde a lei não distingue, não é dado ao intérprete fazê-lo -, a prisão preventiva poderá ser decretada se o acusado for reincidente em crime doloso, salvo se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a in­ fração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação, de acordo com o art. 64, inciso I, da nova Parte Geral do Código Penal, ou, ainda, se na condenação anterior o réu tiver sido be­ neficiado pelo instituto do perdão judicial, hipótese em que a sentença não pode ser considerada para fins de reincidência (CP, art. 120).

Como se pode notar, não basta que o acusado seja reincidente. Na verdade, o legislador exige que esta reincidência seja específica em crime doloso, hipótese em que sua prisão preventiva poderá ser decretada independentemente da quantidade depena cominada ao delito. De se lembrar que, em recente julgado (Plenário, RE 453.000/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 04/04/2013), o Plenário do Supremo con­ cluiu ser constitucional a aplicação da reincidência, não só como agravante da pena (CP, art. 61, inci­ so I), mas também como fator impeditivo para a concessão de diversos benefícios, sem que se possa objetar a configuração de bis in idem. Logo, não há falar em inconstitucionalidade do art. 313, II, do CPP, por permitir a prisão preventiva do reinciden­ te específico em crime doloso, independentemente do quantum de pena cominado ao segundo delito doloso por ele cometido.

6.3. Quando o crime envolver violência domés­ tica e familiar contra a mulher, criança, ado­ lescente, idoso, enfermo ou pessoa com defi­ ciência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência Nos termos do art. 312 do CPP, também será admitida a decretação da prisão preventiva se o cri­ me envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou

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pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Referindo-se o art. 313, III, do CPP, aos crimes praticados nesse contexto, não há campo para interpretação diversa da literal, razão pela qual não se admite a preventiva quando se tratar de contravenção penal (v.g., vias de fato).391 À primeira vista, pode-se pensar que, nessa hipótese, a prisão preventiva seria cabível tanto em relação a crimes dolosos quanto em face de crimes culposos, já que o inciso III do art. 313, diversa­ mente dos dois incisos anteriores, não estabelece qualquer distinção, referindo-se apenas à prática de crime. Não obstante, se o inciso III do art. 313 pressupõe a prática de crime envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, ado­ lescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, é evidente que referido crime só pode ter sido praticado dolosamente. Afinal, se se trata de violência de gênero, deve ficar evidenciada a cons­ ciência e a vontade do agente de atingir uma das vítimas vulneráveis ali enumeradas, assim como sua intenção dolosa de violar as medidas protetivas de urgência, o que não resta caracterizado nas hipóte­ ses de crimes culposos. A vítima desse crime doloso envolvendo vio­ lência doméstica e familiar que autoriza a decretação da prisão preventiva não é apenas a mulher, mas também a criança, o adolescente, o idoso, o enfermo ou pessoa com deficiência, valendo ressaltar que, nestas últimas cinco hipóteses, pouco importa se se trata de pessoa do sexo masculino ou feminino. O conceito de criança e de adolescente pode ser extraí­ do do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segun­ do o art. 2o da Lei n° 8.069/90, considera-se criança a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade. Idoso, por sua vez, é a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (Lei n° 10.741/03, art. Io). Pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obs­ truir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas

(art. 2o do Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei n° 13.146/15).

Por sua vez, por violência doméstica e fami­ liar contra tais pessoas compreende-se qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicoló­ gico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o es­ paço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreen­ dida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expres­ sa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (Lei n° 11.340/06, art. 5o).392 Como a redação do inciso IIII do art. 313 não faz distinção quanto à natureza da pena do crime doloso, deve-se entender que, independentemente da quantidade de pena cominada ao delito, pou­ co importando, ademais, se punido com reclusão ou detenção, a prisão preventiva pode ser adotada como medida de ultima ratio no sentido de compelir o agente à observância das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, mas desde que presente um dos fundamentos que autorizam a prisão preventiva (CPP, art. 312).393 Essas medidas protetivas de urgência que obri­ gam o agressor estão listadas no art. 22 da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), com redação dada pela Lei n. 13.984/20, podendo ser aplicadas em con­ junto ou separadamente: a) suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente; b) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; c) proi­ bição de determinadas condutas, entre as quais a aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor, o contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação, e a frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psi­ cológica da ofendida; d) restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

391. No sentido de que a prática de contravenção penal no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, in casu, puxões de cabelo e torção de braço que não geraram lesão corporal, e discussão no interior de um veículo, não é motivo idôneo para justificar a prisão preventiva do réu, mesmo diante do descumprimento de medidas protetivas de urgência, já que o art. 313, III, do CPP, faz referência apenas a crimes: STJ, 6a Turma, HC 437.535/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 26/06/2018, DJe 02/08/2018.

392. Para mais detalhes acerca do art. 5° da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), remetemos o leitor aoTítulo referente à competência criminal, onde fizemos amplo estudo da competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. 393. Nessa linha: STJ, 5a Turma, HC 132.379/BA, Rel. Min. Laurita Vaz, Dje 15/06/2009.

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e) prestação de alimentos provisionais ou provisó­ rios; f) comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; g) acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. Se tais medidas não surtirem o efeito almejado, a prisão preventiva pode ser usada como soldado de reserva, a fim de se evitar reiteração de violência doméstica e familiar contra a mulher. Aqui reside uma aparente contradição do in­ ciso III do art. 313 do CPP, com redação dada pela Lei n° 12.403/11. As medidas protetivas de urgência a que se refere o inciso III estão previstas na Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), a qual dispõe apenas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher. Como, então, explicar-se o teor do inciso III do art. 313 do CPP, que faz menção à garantia da execução dessas medidas protetivas de urgência quando o crime envolver violência doméstica e fa­ miliar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência? Na verdade, mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, apesar de a Lei n° 11.340/06 ter por objeto apenas a violência doméstica e familiar con­ tra a mulher, as medidas protetivas nela previstas já vinham sendo utilizadas por meio de analogia em toda e qualquer hipótese de violência de gênero, ou seja, desde que presente situação de hipossuficiência física e/ou econômica. Assim, mesmo que a violência doméstica e familiar fosse praticada, por exemplo, contra uma criança do sexo masculino, tais medidas protetivas de urgência já vinham sendo aplicadas cautelarmente, seja por meio de analo­ gia, seja com fundamento no poder geral de cautela. Daí o porque do inciso III do art. 313 do CPP ter acrescentado a violência doméstica e familiar contra crianças, adolescentes, idosos, enfermos ou pessoas com deficiência, já que também se afigura possível a adoção das medidas protetivas de urgência listadas na Lei Maria da Penha em face dessas situações de vulnerabilidade. Leitura isolada do inciso III do art. 313 do CPP pode levar à conclusão de que o descumprimen­ to das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, por si só, pode dar ensejo à decretação da prisão preventiva do acusado. Não seria necessário, assim, que se demonstrasse a pre­ sença da garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e garantia de aplicação da lei penal.394* 394. Deixamos de inserir o pressuposto da garantia da ordem eco­ nômica por não ser aplicável aos casos de violência doméstica e familiar

A nosso ver, o inciso III deve ser lido em con­ junto com o teor do caput do art. 313 do CPP, que expressamente faz menção aos termos do art. 312 do Código. Ora, se o caput do art. 313 faz menção aos termos do art. 312 do CPP, significa dizer que, mesmo nos casos de violência doméstica e fami­ liar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, a decretação da prisão preventiva também está condicionada à demonstração da necessidade da imposição da custódia para garantia da ordem pública, por con­ veniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.395 Outro ponto que merece destaque quanto ao inciso III do art. 313 diz respeito à compatibilidade da decretação da prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência e o princípio constitucional esculpido no art. 5o, inci­ so LXVII, que autoriza a prisão civil apenas para as hipóteses de dívida de alimentos ou depositá­ rio infiel.396 Explica-se: como várias das medidas protetivas de urgência possuem, inequivocamente, caráter civil, ao se decretar a prisão preventiva do agressor como forma de garantir sua execução, estar-se-ia criando uma nova hipótese de prisão civil, o que não seria permitido pela Constituição Fede­ ral. Por isso, se o descumprimento de uma medida protetiva de urgência estiver relacionado à prática de determinado delito (v.g., lesão corporal, tenta­ tiva de homicídio), será possível a decretação da preventiva. Todavia, se ao agente for atribuído tão somente o descumprimento da medida protetiva de urgência (v.g., inobservância da determinação de afastamento do lar), não será possível a decretação do carcer ad custodiam, sob pena de se instalar uma nova e inconstitucional modalidade de prisão civil. Para as hipóteses não penais de desobediência, a própria Lei Maria da Penha prevê a possibilidade de o juiz se valer da tutela específica (art. 22, § 4o), contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência. 395. No sentido de que o descumprimento das medidas protetivas de urgência não autoriza, de per si, a prisão preventiva, cuja decretação está condicionada ao preenchimento dos pressupostos do art. 312 do CPP: STJ - HC 100.512/MT - 6a Turma - Rei. Min. Paulo Gallotti - Dje 23/06/2008. Na mesma linha: STJ - HC 123.804/MG - 5a Turma - Rei. Min. Felix Fischer - Dje 27/04/2009. No sentido de que, inexistindo o descumprimento das medidas protetivas de urgência, não se justifica a custódia cautelar, já que não haveria demonstração de que a perma­ nência do agressor em liberdade importaria em risco à ordem pública: STJ, 6a Turma, HC 151.174/MG, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/04/2010, DJe 10/05/2010.

396. Lembre-se que, a partir da decisão do Supremo no RE 466.343, somente subsiste a prisão civil no ordenamento pátrio nos casos de dívida alimentar, haja vista o status supralegal conferido aos tratados interna­ cionais de direitos humanos. Para mais detalhes acerca do assunto, vide acima tópico relativo à prisão civil.

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cujo objetivo é conferir efetividade à decisão que tenha por objeto obrigação de fazer.397

6.4. Dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou não fornecimento de elementos suficientes para seu esclarecimento Por força do art. 313, §1°, do CPP, a prisão pre­ ventiva também será admitida quando houver dúvi­ da sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em li­ berdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

Para que o Estado possa deflagrar a persecu­ ção penal, é indispensável que se saiba contra quem será instaurado o processo. Individualiza-se a pessoa por meio de seu prenome, nome, apelido, estado civil, naturalidade, data de nascimento, número da carteira de identidade, número do cadastro de pes­ soa física (CPF), profissão, filiação, residência, etc. Portanto, havendo dúvida sobre a identidade civil da pessoa, ou caso esta não forneça elementos sufi­ cientes para seu esclarecimento, a prisão preventiva poderá ser decretada para assegurar a aplicação da lei penal ou a conveniência da instrução criminal, evitando-se, ademais, possíveis erros judiciários, por conta da instauração de processos criminais contra eventuais homônimos do autor do delito.398 Diversamente dos incisos do art. 313 do CPP, seu §1° nada diz quanto à natureza da infração pe­ nal. Portanto, quando a prisão preventiva for neces­ sária para esclarecer dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, a prisão preventiva poderá ser decretada em relação a crimes dolosos e culposos, pouco importando o quantum de pena a eles cominado.399 O §1° do art. 313 do CPP deve ser interpreta­ do em cotejo com a possibilidade de obtenção da identificação do indiciado por meio da identifica­ ção criminal. Em outras palavras, mesmo diante da dúvida sobre a identidade civil da pessoa, da recusa do indiciado em fornecer ou indicar elementos para 397. É nesse sentido a lição de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto. Op. cit. p. 82.

398. Admitindo a prisão preventiva de indivíduo que se utilizava de vários CPF's e identidades diversas: STJ - HC 103.523/PR - 6a Turma - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJe 02/03/2009.

399. Com o entendimento de que, na hipótese do art. 313, §1°, do CPP, a prisão preventiva também pode ser decretada em relação a crimes culposos, pouco importando a pena cominada ao delito: PRADO, Geraldo. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comen­ tários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 148.

esclarecer sua identidade, caso a identificação cri­ minal efetuada por meio do processo datiloscópico e fotográfico seja capaz de sanar a dúvida quanto a sua verdadeira identidade, não se faz necessária a decretação de sua prisão preventiva.400

Logo, se o indivíduo não fornecer ou não indi­ car elementos para esclarecer sua identidade, sendo tal omissão suprida pela identificação criminal, não se justifica a decretação de sua prisão preventiva. Reiteramos aqui o quanto foi dito acerca do princí­ pio da proporcionalidade, em seu subprincípio da necessidade, no sentido de que, dentre as medidas aptas a atingir o fim almejado, deve o juiz escolher a que menor gravame cause ao imputado.

Desde a vigência da Lei n° 10.054/00, uma das hipóteses que autorizava a identificação criminal se dava quando o indiciado ou acusado não com­ provasse, em 48 (quarenta e oito) horas, sua iden­ tificação civil (Lei n° 10.054/00, art. 3o, inciso VI, revogado pela Lei n° 12.037/09). Ora, se a Lei auto­ rizava a identificação criminal nessa hipótese, não se justifica a adoção de meio mais gravoso. A nova lei de identificação criminal também permite a identi­ ficação criminal caso o indivíduo não se identifique civilmente (Lei n° 12.037/09, art. Io, c/c art. 2o). A custódia cautelar sob o argumento de que se destina a conhecer a identidade do indiciado só pode ser aceitável, portanto, no caso de fracasso das diligências policiais que devem ocorrer previamente e, mesmo assim, o tempo limite de cárcere deve ser o estritamente necessário para se obter sua iden­ tificação. O próprio art. 313, §1°, in fine, do CPP, confirma esse raciocínio, ao dispor que o preso deve ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. Segundo o §1° do art. 313 do CPP, a prisão preventiva poderá ser decretada quando, havendo dúvida sobre a identidade civil da pessoa, esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la. Certamente, haverá quem diga que referido dispo­ sitivo seria incompatível com o direito que assiste ao acusado de não produzir prova contra si mes­ mo (nemo tenetur se detegere), porquanto a prisão preventiva do agente poderia ser decretada caso ele não fornecesse elementos para esclarecer sua iden­ tidade. A nosso ver, é certo que o direito ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade quanto à identidade pessoal. Para o Supremo, aliás, tipifica o 400. Na mesma linha: LOPES JR., Aury (op. cit. p. 101). Para mais deta­ lhes acerca da identificação criminal, vide título atinente à investigação preliminar.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o objetivo de esconder seus maus antecedentes.401 A propósito, eis o teor da súmula n° 522 do STJ: “A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa”. Em conclusão, ousando inovar em relação ao entendimento consolidado da doutrina, parece-nos que o art. 313, §1°, do CPP, não é uma espécie de prisão preventiva. Funciona, na verdade, como ver­ dadeira condução coercitiva do investigado (acusado) para fins de investigação criminal. Deveras, como será exposto no Capítulo IX (“Das medidas caute­ lares de natureza pessoal diversas da prisão”) deste Título, mais precisamente no item 11 (“Condução coercitiva”), por meio da medida cautelar prevista no art. 313, §1°, do CPP, o indivíduo é privado de sua liberdade de locomoção pelo lapso temporal estritamente necessário para que seja identificado, após o que o próprio dispositivo legal determina que seja colocado em liberdade. Logo, sem embargo de o próprio dispositivo fazer uso do termo prisão preventiva, cuida-se de verdadeiro mandado de con­ dução coercitiva.

7. PRISÃO PREVENTIVA E EXCLUDENTES DE ILICITUDE E DE CULPABILIDADE Comparando-se a nova redação do art. 314 do CPP com a antiga, verifica-se que não houve gran­ des alterações, a não ser pela adequação do texto do CPP à nova redação do Código Penal, determinada pela entrada em vigor da Lei n° 7.209/84, que des­ locou as causas excludentes da ilicitude do art. 19 para o art. 23, incisos I, II e III.

Não se admite a decretação da prisão preventiva quando o juiz verificar das provas colhidas nos autos que o agente praticou o crime acobertado por uma causa excludente da ilicitude, ou seja, em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimen­ to de dever legal e no exercício regular de direito. Não faz sentido a decretação da prisão preventiva se o juiz já visualiza futura e provável absolvição do agente com fundamento no art. 386, inciso VI, do CPP (com redação dada pela Lei n° 11.690/08). Por analogia, a doutrina estende a aplicação do art. 314 às justificantes previstas na Parte Especial do Código Penal e em leis especiais (CP, arts. 128, I e II, 142,1, II e III, 146, § 3o, 150, § 3o, I e II, etc.).

Mas e em relação às causas excludentes da cul­ pabilidade? Seria possível aplicarmos o art. 314 do CPP a elas? Ressalvada a hipótese de inimputabilidade do art. 26, caput, do Código Penal, o art. 314 do CPP também é aplicável quando o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente pra­ ticado o fato acobertado por uma causa excluden­ te da culpabilidade, como obediência hierárquica, coação moral irresistível, inexigibilidade de conduta diversa, etc. Ora, se o próprio Código de Proces­ so Penal autoriza a absolvição sumária do agente quando o juiz verificar a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade (CPP, art. 397, II), seria de todo desarrazoado permitir-se a decretação da prisão preventiva em tal situação.

Ademais, admitindo a legislação processual penal comum o emprego da analogia (CPP, art. 3o, caput), afigura-se perfeitamente possível a aplicação subsidiária do art. 258 do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual a prisão preventiva em ne­ nhum caso será decretada se o juiz verificar, pelas provas constantes dos autos, ter o agente praticado o fato nas condições dos arts. 35 (erro de direito), 38 (coação moral irresistível e obediência hierárqui­ ca), observado o disposto no art. 40 (coação física ou material), e dos arts. 39 (estado de necessidade como excludente da culpabilidade) e 42 (excludentes de ilicitude), do Código Penal Militar. Portanto, seja diante de causas excludentes da ilicitude, seja nas hipóteses de excludentes da cul­ pabilidade (v.g., coação moral irresistível, inexigibi­ lidade de conduta diversa), a prisão preventiva não poderá ser decretada. Importante ressalva, todavia, deve ser feita quanto ao inimputável do art. 26, caput, do Código Penal, cuja condição de pericu­ losidade pode ensejar a privação de sua liberdade.402

8. DURAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA E EX­ CESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA

8.1. Noções introdutórias Segundo notícia divulgada pelo site da Folha de São Paulo em 26 de julho de 2009,403 o Conselho Na­ cional de Justiça teria descoberto o que considerava ser, à época, um dos casos mais graves da história do Judiciário no país: o lavrador V. R. A., com 42 anos, 402. Para mais detalhes acerca do inimputável do art. 26, caput, do CP, remetemos o leitor ao tópico pertinente às medidas cautelares diversas

da prisão, onde trataremos da internação provisória prevista no art. 319,

401. STF, 2a Turma, HC 72.377/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 30/06/1995 p. 271. E também: STF, 1aTurma, RE 561.704, Rel. Min. Ricardo Lewando­ wski, DJe 64 02/04/2009.

VII, do CPP. 403. Notícia obtida em - acesso em 09 de janeiro de 2010.

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teria passado quase 11 (onze) anos preso no Espírito Santo sem nunca ter sido julgado. Acusado de ter praticado um homicídio em 1998, V. R. A. teria pas­ sado por quatro presídios e não teve direito de sair da prisão nem mesmo para o enterro da mãe, em 2007. O lamentável caso confirma um dos maiores problemas da prisão preventiva no ordenamento pátrio: sua indeterminação temporal. Impera, no processo penal comum brasileiro, absoluta indeterminação acerca do prazo de duração da prisão preventiva, que passa a assumir contor­ nos de verdadeira pena antecipada. Isso porque, ao contrário da prisão temporária, que possui prazo prefixado, o Código de Processo Penal não prevê prazo determinado para a duração da prisão pre­ ventiva. Assim, a prisão preventiva, cuja natureza cautelar deveria revelar a característica da provi­ soriedade, acaba por assumir caráter de verdadeira prisão definitiva.

Uma exceção a essa indeterminação estaria prevista no art. 390 do Código de Processo Penal Militar, que estabelece o prazo de 50 (cinquenta) dias para a conclusão da instrução criminal quando o acusado estiver preso. Em sentido semelhante, o art. 22, parágrafo único, da nova Lei das Organiza­ ções Criminosas (Lei n° 12.850/13), dispõe que a instrução criminal deverá ser encerrada em prazo razoável, o qual não poderá exceder a 120 (cento e vinte) dias quando o réu estiver preso, prorrogáveis em até igual período, por decisão fundamentada, devidamente motivada pela complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu.

Ao longo dos anos, em virtude dessa indeter­ minação do prazo da custódia preventiva, diversos abusos foram cometidos, em patente violação à natureza provisória da prisão cautelar, que se via transformada, mediante subversão dos fins que a legitimam, em inaceitável antecipação executória da própria sanção penal, violando não só o princípio da presunção de inocência, como também o direito à razoável duração do processo, previsto expressa­ mente na Constituição Federal (art. 5o, LXXVIII) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 7o, § 5o). No Brasil, por se entender que a ausência de fixação de prazo certo para a duração da prisão pre­ ventiva deixava o acusado inteiramente à mercê do Estado, consolidou-se entendimento jurisprudencial segundo o qual, se o acusado estivesse preso, o pro­ cesso penal na Ia instância deveria estar concluído no prazo de 81 (oitenta e um) dias, sob pena de restar caracterizado o denominado excesso de prazo na formação da culpa, hipótese de constrangimento

ilegal à liberdade de locomoção a autorizar o rela­ xamento da prisão (CPP, art. 648, inciso II), sem prejuízo, obviamente, da continuação do proces­ so. De fato, se a duração da prisão cautelar exce­ der um prazo razoável, torna-se ilegal, porquanto viola a garantia constitucional da razoável duração do processo. Se a prisão é ilegal, deve ser objeto de relaxamento, já que a Constituição Federal prevê que toda prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária, sem prejuízo, todavia, da continuidade do processo.

Esse prazo de 81 (oitenta e um) dias foi fixado em leading case do Tribunal de Justiça de Minas Ge­ rais, em consideração aos prazos legais fixados para a prática de atos processuais no antigo procedimen­ to comum ordinário dos crimes punidos com reclu­ são, em se tratando de acusado preso, decorrendo da soma do prazo de todos os atos da persecução penal, desde o início do inquérito policial ou da segregação do acusado, até a prolação da sentença, sem que fossem levados em consideração nessa contagem os prazos para a movimentação cartorária. Confi­ ra-se tais prazos: 1) Inquérito: 10 (dez) dias (CPP, art. 10, caput); 2) Denúncia: 5 (cinco) dias (CPP, art. 46, caput); 3) Defesa Prévia: 3 (três) dias (CPP, antiga redação do art. 395, caput); 4) Inquirição de testemunhas: 20 (vinte) dias (CPP, antiga redação art. 401, caput); 5) Requerimento de diligências: 2 (dois) dias (CPP, revogado art. 499, caput); 6) Des­ pacho do requerimento de diligências: 10 (dez) dias (CPP, revogado art. 499, c/c art. 800, § 3o); 7) Ale­ gações das partes: 6 (seis) dias (CPP, revogado art. 500, caput); 8) Diligências ex officio: 5 (cinco) dias (CPP, revogado art. 502, c/c art. 800, inciso II); 9) Sentença: 20 (vinte) dias (CPP, revogado art. 502, c/c art. 800, § 3°).

Como se percebe pela leitura dos próprios dis­ positivos legais de onde esse prazo de 81 (oitenta e um) dias foi extraído, inicialmente, esse prazo era computado desde o momento da prisão até o da sentença de 1° grau. Posteriormente, no entan­ to, adotou-se o entendimento de que esse prazo de 81 (oitenta e um) dias - que tem início com a prisão do acusado - não seria até a prolação da sentença, mas sim até o final da instrução criminal, entendendo-se por essa, no antigo procedimento comum ordinário dos crimes punidos com reclu­ são, a fase do revogado art. 499 do CPP, reservada a diligências complementares. Por isso, o STJ editou a súmula n° 52: “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Esse encurtamento do termo final (da decisão final para o término da instrução criminal), consoli­ dado pela súmula n° 52 do STJ, também contaminou a legislação especial. De fato, na redação original da revogada Lei n° 9.034/95, dizia o art. 8o: “O prazo máximo da prisão processual, nos crimes previstos nesta Lei, será de cento e oitenta dias”. Posterior­ mente, todavia, com a Lei n° 9.303, de 13 de julho de 1999, o referido artigo passou a ter a seguinte redação: “O prazo para encerramento da instrução criminal, nos processos por crime de que trata esta Lei, será de 81 (oitenta e um) dias, quando o réu estiver preso, e de 120 (cento e vinte) dias, quando solto”.

Para parte da doutrina, esse encurtamento do termo final, ou seja, a adoção de um termo a quo anterior ao julgamento em primeiro grau, seria in­ compatível com o direito ao processo penal em pra­ zo razoável, assegurado pelo art. 5o, inc. LXXVIII, da Carta Magna. Afinal, o direito à razoável duração do processo não pode ficar circunscrito ao direito à razoável duração da instrução, na medida em que o término da instrução não põe fim ao processo.404

Por se tratar da somatória de prazos específicos, isto é, estipulados para a prática de atos processuais isolados, havia entendimento minoritário segundo o qual o excesso de prazo estaria caracterizado pelo descumprimento de qualquer um deles. Em outras palavras, a contagem seria feita de modo isolado e não globalmente.405 No entanto, sempre prevaleceu o entendimento de que a contagem seria global, a significar, portan­ to, que o prazo de 81 (oitenta e um) dias deveria ser observado até o final da instrução criminal, ou seja, até a fase do art. 499 do CPP. Assim, eventual excesso no momento do oferecimento da denún­ cia poderia ser compensado ao longo da instrução processual. Nesse sentido, aliás, o Superior Tribu­ nal de Justiça editou duas súmulas: a) Súmula n° 21: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo na instrução”; b) Súmula n° 52: “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangi­ mento por excesso de prazo”.406* 404. LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao processo

penal no prazo razoável. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.

p. 108.

8.2. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e novo prazo para a conclusão do processo quando o acu­ sado estiver preso Com o novo procedimento comum ordinário (Lei n° 11.719/08), aplicável quando o crime tiver sanção máxima igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade (CPP, art. 394, § Io, inciso I), a contagem do prazo para o encerramento do processo criminal quando o acusado estiver pre­ so foi sensivelmente alterada, podendo variar entre 110 (cento e dez) e 190 (cento e noventa) dias. É bom esclarecer que, de modo semelhante ao que se dava com a construção pretoriana da contagem do prazo de 81 (oitenta e um) dias, não levamos em consideração os prazos relativos à movimentação cartorária.

Sem dúvida alguma, para fins de contagem des­ se prazo, o termo inicial deve ser a data do início da prisão do agente, pouco importando se se trata de prisão em flagrante, preventiva ou temporária, bem como se houve modificação da natureza da prisão (v.g., prisão temporária decretada na fase in­ vestigatória, sendo convertida em preventiva na fase judicial). Vejamos, então, cada um desses prazos, separadamente: 1) Inquérito Policial: 10 (dez) dias (CPP, art. 10, caput). Porforça do art. 3°-B, §2°, do CPP, incluí­ do pela Lei n. 13.964/19, este prazo pode ser prorro­ gado por até 15 (quinze) dias. O total, portanto, pode chegar a 25 (vinte e cinco) dias. De acordo com o art. 66 da Lei n° 5.010/66, na Justiça Federal, quando o indiciado estiver preso, o prazo para a conclusão do inquérito policial será de 15 (quinze) dias, poden­ do ser prorrogado por mais 15 (quinze). Logo, no âmbito da Justiça Federal, o prazo para a conclu­ são do inquérito pode chegar a 30 (trinta) dias. Em se tratando de crimes hediondos e equiparados, a prisão temporária pode ser decretada por 30 dias, prazo esse que é prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o). Parte da doutrina entende que o prazo da prisão temporária não deve ser le­ vado em consideração para o computo do prazo para o encerramento do processo. Isso porque se trata, a prisão temporária, de espécie de prisão ca­ bível para determinados delitos, mais gravemente apenados, do que se depreende um grau maior de dificuldade na apuração dos delitos.407 A nosso ver,

405. STF, 2a Turma, HC 78.978/PI, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 13/10/2000 p. 10. 406. STF, 1a Turma, HC 91.973/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 55 28/03/2008. E também HCs 82.056-QO e 69.448, Ministro Celso de Mello; HC 80.776, Ministro limar Galvão; HC 81.729, Ministro Maurício Corrêa; HCs 83.090 e 82.902, Ministra Ellen Grade; HC 86.753, Ministra Cármem Lúcia; HC 88.292, Ministro Eros Grau; RHC 84.994, Ministro Gilmar

Mendes; e HCs 85.292-AgR e 90.258. (STF, 1a Turma, HC 90.407/MG, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 65 11/04/2008). Ou ainda: STF, 1aTurma, HC 90.809/ PE, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 55 28/03/2008).

407. É nesse sentido a lição de Pacelli: Curso de Processo Penal. 11a ed.

Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 464/465. Denilson Feitoza

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o prazo da prisão temporária, sobretudo em se tra­ tando de crimes hediondos, não pode ser deixado de lado no computo do prazo para o encerramento do processo. Caso tenha sido decretada a prisão tem­ porária por 60 (sessenta) dias com o objetivo de se acautelar as investigações em crimes hediondos e equiparados, o prazo de 25 (vinte e cinco) dias para a conclusão do inquérito de investigado preso (CPP, art. 10, caput, c/c art. 3°-B, §2°) deve ser au­ tomaticamente substituído pelo prazo previsto na lei dos crimes hediondos, quando, então, o prazo para a conclusão da fase investigatória será de 60 (sessenta) dias. Respeitadas opiniões em sentido contrário, não há fundamento para a não inclusão do prazo de 60 (sessenta) dias de prisão temporária em crimes hediondos e equiparados no computo do prazo de encerramento do processo. Diante da inserção do direito à razoável duração do processo no bojo da Constituição Federal, que abrange não somente o processo propriamente dito, mas também a fase preliminar de investigações, não se pode ad­ mitir que alguém possa permanecer preso por até 60 (sessenta) dias, e que tal prazo não seja levado em consideração para o computo do prazo para o encerramento do processo. Deve-se ter em mente que o Código de Processo Penal é anterior à Lei da Prisão Temporária: daí o próprio art. 10 do CPP, ao falar do prazo de 10 (dez) dias para a conclusão do inquérito de investigado preso, mencionar tão somente a prisão em flagrante e a prisão preventiva. Logo, o art. 10 do CPP deve ser lido em cotejo com o prazo de prisão temporária previsto no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90, ou seja, em se tratando de inquérito para investigação de crimes hediondos e equiparados, o prazo para a conclusão do procedi­ mento investigatório poderá ser de até 60 (sessenta) dias. Portanto, para fins de contagem do prazo para o encerramento do processo, ao invés de se contar apenas 25 (vinte e cinco) dias para a conclusão do inquérito, o prazo a ser levado em consideração é o de 60 (sessenta) dias, caso tenha havido decretação da prisão temporária com base no prazo máximo previsto no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90. Do que foi dito, denota-se que não há um prazo único e inflexível para o encerramento do processo. Cada caso é um caso, podendo o prazo variar de acordo com suas peculiaridades. No âmbito da Justiça Es­ tadual, o prazo para a conclusão das investigações será de 25 (vinte e cinco) dias, pelo menos em regra, nos termos do art. 10, c/c art. 3°-B, §2°, ambos do CPP; na Justiça Federal, esse prazo pode chegar a 30 (trinta) dias, por força do art. 66 da Lei n° 5.010/66;

caso tenha sido decretada a prisão temporária pelo prazo máximo em relação a crimes hediondos, o prazo para o encerramento da fase investigatória pode ser de até 60 (sessenta) dias;

2) Oferecimento da peça acusatória: 5 (cinco) dias (CPP, art. 46, caput); 3) Recebimento da peça acusatória: 5 dias (CPP, 396, caput, c/c art. 800, inciso II). 4) Resposta à acusação por escrito: 10 (dez) dias (CPP, art. 396, caput). Caso a resposta não seja apresentada no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, deve o juiz nomear defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos, hi­ pótese em que deverão ser acrescidos mais 10 (dez) dias (CPP, art. 396-A, § 2o);

5) Eventual vista à acusação, caso a defesa tenha juntados documentos dos quais o MP ou o querelante não tinham ciência: após a apresentação da resposta à acusação pela defesa, pode surgir a necessidade de se ouvir a acusação acerca de fatos e provas novas, em fiel observância ao princípio do contraditório, hipótese em que deve ser acrescido ao computo do prazo o interstício de 5 (cinco) dias (CPP, art. 409, aplicável subsidiariamente ao proce­ dimento comum); 6) Análise da resposta à acusação apresentada pelo acusado e decisão fundamentada rejeitando eventual pedido de absolvição sumária: 5 (cinco) dias (CPP, art. 397, c/c art. 800, inciso II). No com­ puto do prazo para o encerramento do processo, parte da doutrina não tem levado em consideração o prazo de 5 (cinco) dias para o recebimento da peça acusatória, nem tampouco o prazo de 5 (cinco) dias para análise da resposta à acusação apresentada pelo acusado, com eventual rejeição de pedido de absolvição sumária.408 Com a devida vênia, pensa­ mos que tais prazos não podem ser desprezados na contagem do prazo, sobretudo por estarmos diante de importantes decisões jurisdicionais, que deman­ dam a concessão de lapso temporal ao magistrado para que, de maneira fundamentada, possa analisar o recebimento (ou a rejeição) da peça acusatória, bem como eventual pedido de absolvição sumária. Negar a concessão de prazo ao magistrado para proferir tais decisões é querer equipará-las a meros despachos de movimentação cartorária, quiçá feitos pelos próprios funcionários do cartório, com o que, evidentemente, não se pode concordar. 408. É a posição de Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró. Direito

comunga do mesmo entendimento (op. cit. p. 880).

ao processo penal no prazo razoável. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 146.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

7) Designação de audiência una de instru­ ção e julgamento: deve ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias (CPP, art. 400, capuf). No caso do procedimento comum sumá­ rio, a audiência de instrução e julgamento dar-se-á no prazo máximo de 30 dias (CPP, art. 531, caput);

8) Substituição das alegações orais por me­ moriais: caso tenha sido determinada a realização de diligências consideradas imprescindíveis para o julgamento da causa (CPP, art. 404, parágrafo úni­ co), bem como nas hipóteses de complexidade do caso ou pluralidade de acusados, deverá o juiz con­ ceder à cada parte o prazo de 5 (cinco) dias sucessi­ vamente para a apresentação de memoriais, tendo, nessa hipótese, o prazo de 10 (dez) dias para proferir a sentença (CPP, art. 403, § 3o). Ressalte-se, no en­ tanto, que esse prazo de 10 (dez) dias para proferir sentença pode ser duplicado, chegando a 20 (vinte) dias, desde que o juiz declare justo motivo (CPP, art. 800, * 3o). Como se percebe pela somatória dos prazos acima discriminados, o prazo mínimo para o en­ cerramento do processo é de 110 (cento e dez) dias. Porém, a depender das peculiaridades do caso con­ creto, esse prazo pode chegar a 190 (cento e noven­ ta) dias. De fato, na hipótese de crimes hediondos, a prisão temporária pode ter sido decretada por 60 (sessenta) dias; some-se a isso o prazo para o ofere­ cimento (+ 5 dias) e recebimento da peça acusatória (+ 5 dias); suponha-se que, citado para apresentar a resposta à acusação (+10 dias), o acusado não tenha constituído defensor, hipótese em que o juiz será obrigado a nomear advogado dativo para oferecê-la (+ 10 dias); apresentada a resposta à acusação com documentos dos quais a acusação não tinha ciência, o Ministério Público deve ter vista dos autos (+ 5 dias), com subsequente análise, por parte do magis­ trado, de eventual pedido de absolvição sumária (+ 5 dias); por fim, apesar de o art. 400, caput, do CPP, prever que a audiência de instrução e julgamento deva ser realizada no prazo máximo de 60 dias, é possível que, por conta da complexidade do caso, ou em virtude da realização de diligências, haja a concessão às partes de prazo para apresentação de memoriais (+ 10 dias), hipótese em que a sentença pode ser proferida em até 20 dias, perfazendo, as­ sim, um total de 190 (cento e noventa) dias. Quanto à Ia fase do procedimento do Tribu­ nal do Júri (Judicium accusationis), o prazo pode variar entre 115 (cento e quinze) e 120 (cento e vinte) dias, na Justiça Estadual e Federal, respec­ tivamente. É bem verdade que o art. 412 do CPP,

com redação determinada pela Lei n° 11.689/08, determina que o procedimento será concluído no prazo máximo de 90 (noventa) dias. Todavia, não se pode olvidar que o dispositivo refere-se ao prazo para o encerramento do procedimento. Logo, não se pode esquecer que a este prazo de 90 (noventa) dias, referente ao encerramento do procedimento judicial, deve ser acrescido o prazo relativo às in­ vestigações: + 25 (vinte e cinco) dias na Justiça Es­ tadual (CPP, art. 10, c/c art. 3°-B, §2°); +15 (quin­ ze) dias, prorrogáveis por outro tanto, na Justiça Federal (Lei n° 5.010/66, art. 66); ou, ainda, + 60 (sessenta) dias, caso tenha sido decretada a prisão temporária em seu prazo máximo para crimes he­ diondos e equiparados. Quanto à 2a fase do procedimento do júri (ju­ dicium causae), diante da ausência de prazo ex­ presso em lei para o julgamento em plenário do acusado já pronunciado, pode-se estabelecer uma presunção relativa de excesso de prazo caso o jul­ gamento não seja realizado no prazo de 6 (seis) meses contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia, aplicando-se aí o prazo previsto para o desaforamento (CPP, art. 428, caput, com redação determinada pela Lei n° 11.689/08).409

8.3. Natureza do prazo para o encerramento do processo e princípio da proporcionalidade Com o incremento da criminalidade no país, e a crescente e consequente complexidade dos pro­ cessos criminais, consolidou-se perante os Tribunais Superiores o entendimento de que o prazo para a conclusão da instrução processual de réu preso não tem natureza absoluta, podendo ser dilatado com fundamento no princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade), seja em virtude da complexidade da causa, seja em face da pluralidade de réus envolvidos no fato delituoso. Portanto, não é o simples somatório aritmético dos prazos abstratamente previstos na lei processual penal que servirá de balizamento para fins de deli­ mitação do excesso de prazo na formação da culpa. Dependendo da natureza do delito e das diligências necessárias no curso do processo, é possível, en­ tão, que eventual dilação do feito seja considerada justificada. Assim, segundo o entendimento pretoriano, “aplica-se o princípio da razoabilidade para justifi­ car o excesso de prazo, caso haja regular tramitação 409. Para Nucci (Tribunal do Júri, São Paulo: Editora Revista dos Tri­

bunais, 2008. p. 78/79), não está se defendendo a fixação do prazo de seis meses, mas apenas se busca fornecer um exemplo do que seria a procura pelo razoável.

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do feito, com eventual retardamento no julgamento do paciente causado pela complexidade do processo, decorrente da pluralidade de acusados (onze), do desmembramento do feito em relação aos pacientes, bem como pela necessidade de expedição de diver­ sas cartas precatórias para o interrogatório dos réus. Justifica-se eventual dilação de prazo para a conclu­ são da instrução processual, quando a demora não é provocada pelo Juízo ou pelo Ministério Público, mas sim decorrente de incidentes do feito e devido à observância de trâmites processuais sabidamente complexos”.410

8.4. Hipóteses que autorizam o reconhecimen­ to do excesso de prazo Como dito acima, na visão dos Tribunais, o prazo para o encerramento do processo não tem natureza peremptória, subsistindo apenas como referencial para verificação do excesso, de sorte que sua superação não implica necessariamente em constrangimento ilegal, podendo ser excedido com base em juízo de razoabilidade. Diante dessa natureza relativa do prazo para o encerramento do processo, indaga-se: quando restará caracterizado o excesso de prazo, autorizando-se o relaxamento da prisão? No plano internacional, a Comissão Européia de Direitos Humanos, para facilitar a determinação do prazo razoável, fixou inicialmente a regra dos sete critérios no caso Neumeister:4111) A efetiva duração da detenção; II) A duração da prisão preventiva em relação à natureza da infração, grau da pena confi­ nada que se possa prever para o suspeito, e o siste­ ma legal de abatimento da prisão no cumprimento 410. STJ, 5aTurma, HC91.982/CE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada doTJ/MG, DJ 17/12/2007 p. 285. No âmbito do

Supremo Tribunal Federal: STF, Ia Turma, HC 92.202/RS, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 65 11/04/2008; STF, 2a Turma, HC 92.483/PE, Rei. Min. Eros Grau, DJe 31 22/02/2008; STF, 2aTurma, HC 91.430/PA, Rei. Min. Eros Grau, DJe

31 22/02/2008. Com base no princípio da razoabilidade, a 6° Turma do STJ deixou de reconhecer o excesso de prazo na formação da culpa, em virtude da complexidade da causa e do comportamento das partes: no curso da instrução em processo criminal relativo a dezesseis acusados,

foram inquiridas 16 (dezesseis) testemunhas da acusação e 113 (cento e treze) da defesa, com expedição de 17 (dezessete) cartas precatórias e pedido de oitiva de 04 (quatro) residentes no exterior. (STJ, 6a Turma, HC 138.654/GO, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado doTJ/ SP -Julgado em 14/09/2010). 411. Neste caso, cuja sentença é de 27/07/1968, a Corte afirmou que "em uma sociedade democrática, o fato de manter um homem durante

mais de vinte anos na incerteza, na inquietude, na angústia do que será dele, com os sofrimentos que se produzirão e sua vida profissional e

social, constituem uma clara vulneração do art. 6.1 de que se trata". Eis o teor do art. 6.1 da Convenção Européia de Direitos Humanos: "Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publi­ camente, em prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial,

estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela [...]".

da pena que no caso venha a ser imposta; III) Os efeitos materiais, morais e de outra natureza que a detenção produz no detido quando ultrapassarem as normas consequências da mesma; IV) A conduta do acusado: a) teria ele contribuído para retardar ou ativar a instrução ou os debates? b) teria retardado o procedimento em consequência da apresentação de pedidos de liberdade provisória, de apelações ou de outros recursos? c) pediu sua liberdade mediante fiança ou oferecendo outras garantias para assegurar o comparecimento em juízo? V) As dificuldades da instrução do caso (a complexidade dos fatos ou do número de testemunhas e acusados, necessidade de produzir provas no estrangeiro); VI) A forma em que se desenvolveu a instrução; VII) A atuação das autoridades judiciais. Essa regra dos sete critérios, todavia, foi posteriormente abandonada, passando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos a levar em conta apenas 3 (três) critérios: 1) a complexidade do caso; 2) o comportamento da parte; 3) o comporta­ mento das autoridades judiciárias. No Brasil, tem-se considerado que o excesso de prazo na formação da culpa é medida de todo excepcional e somente estará caracterizado nas se­ guintes hipóteses:

1) mora processual decorrente de diligências suscitadas exclusivamente pela atuação da acusa­ ção: a título de exemplo, por conta das inúmeras interceptações telefônicas em andamento, tem havido grande lentidão na realização de exames periciais para comparação das vozes (espectrograma da voz). Ora, não se pode admitir que o excessivo volume de trabalho pericial sirva como desculpa para a mo­ rosidade, gerando dilações indevidas e permitindo que o acusado permaneça preso cautelarmente por prazo irrazoável. Assim é que a Ia Turma do Supre­ mo concluiu que, estando o paciente preso cautelar­ mente há um ano e seis meses, sem que tenha dado causa ao excesso de prazo, que, no caso, resultou de diligências requeridas pelo Ministério Público e de incidente de suspeiçâo suscitado pelo juiz, estará caracterizado constrangimento ilegal à liberdade de locomoção;412

2) mora processual decorrente da inércia do Poder Judiciário, em afronta ao direito à razoá­ vel duração do processo: é óbvio que o excessivo volume de trabalho isenta o magistrado pessoal­ mente de qualquer responsabilidade, mas não es­ cusa o atraso da prestação jurisdicional. De outro lado, a organização defeituosa da Administração 412. STF, Ia Turma, HC 85.400/PE, Rei. Min. Eros Grau, DJ 11/03/2005 p. 38.

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da Justiça, sua carência de pessoal e de material não podem servir como justificativas para a mo­ rosidade, afrontando o direito a um processo sem dilações indevidas.413 A propósito, como já se ma­ nifestou o Min. Celso de Mello, “o excesso de pra­ zo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário, não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu, traduz situação anômala que compromete a efetivi­ dade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevi­ das (CF, art. 5o, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, in­ clusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabe­ lecido em lei”;414

3) mora processual incompatível com o prin­ cípio da razoabilidade, evidenciando-se um ex­ cesso abusivo, desarrazoado, desproporcional: nas palavras do Min. Gilmar Mendes, “a demora na instrução e julgamento de ação penal, desde que gritante, abusiva e irrazoável, caracteriza o excesso de prazo. Manter uma pessoa presa cautelarmente por mais de dois anos é desproporcional e inaceitá­ vel, constituindo inadmissível antecipação executória da sanção penal”.415

8.5. Excesso de prazo provocado pela defesa Quando ficar evidenciado que o excesso de pra­ zo foi causado por conta de diligências procrastinatórias da defesa, não há falar em constrangimento ilegal à liberdade de locomoção de modo a autorizar o relaxamento da prisão. Afinal, ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza. Daí dispor a súmula n° 64 do STJ que não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela Defesa. Com base na 413. Nessa linha: GOMES, LuizFlávio. O sistema interamericano de pro­ teção dos direitos humanos e o direito brasileiro. Coordenação Luiz Flávio Gomes e Flávia Piovesan. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 244. 414. STF, 2a Turma, HC 91.662/PR, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 60 04/04/2008. Na mesma linha: STF, 2a Turma, HC 86.850/PA, Rei. Min. Joa­ quim Barbosa, DJ 06/11/2006 p. 50. E também: STF, Pleno, HC 85.237/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 17/03/2005, DJ 29/04/2005; STJ, 5a Turma, HC 92.444/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, DJe 26/05/2008; STJ, 5a Turma, HC 95.698, Rei. Min. Jorge Mussi, Informativo n° 353 do STJ, 21 a 25 de abril de 2008.

415. STF, 2a Turma, HC n° 86.915/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 21/02/2006,DJ 16/06/2006. E também: STF, 1a Turma, HC 84.931/CE, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 16/12/2005 p. 83; STF, 2aTurma, HC 84.095/GO, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 16/12/2005 p. 111.

súmula n° 64 do STJ, os Tribunais Superiores têm entendido que: a) Não se vislumbra constrangimento ilegal por excesso de prazo se o processo está aguardando o julgamento do recurso em sentido estrito interposto pela defesa, o que justificaria a razoável demora para o encerramento do processo;416417 418

b) Se está pendente apenas a realização de perícia requerida pela defesa, havendo inclusive o Ministério Público e outro corréu apresentado ale­ gações finais, encontra-se encerrada a instrução cri­ minal, incidindo à espécie a Súmula 52/STJ. Logo, se a defesa insiste em exame de razoável complexidade, demandando a expedição de ofícios para diversos Institutos de Criminalística do país, incide à espécie a Súmula 64/STJ;417 c) Não constitui constrangimento ilegal o ex­ cesso de prazo na instrução provocado concorrente­ mente pela defesa, ante a necessidade de expedição de precatórias para o interrogatório do acusado e para a oitiva de testemunhas da defesa.418

d) Evidenciando-se que a defesa contribuiu para a demora do julgamento do feito, visto que as testemunhas que arrolou não compareceram à audiência de instrução e julgamento, houve requeri­ mento de oitiva de testemunhas em outra comarca, sem falar no atraso na entrega de instrumento de procuração, não há falar em excesso de prazo na formação da culpa.419 Como visto nos julgados acima referidos, para os Tribunais Superiores, a interposição de recursos por parte da Defesa, a realização de perícias reque­ ridas pelo defensor, e até mesmo a expedição de cartas precatórias para o interrogatório do acusado e a oitiva de testemunhas da defesa não dão ensejo ao relaxamento da prisão, por se tratar de excesso provocado pela defesa.

Sem embargo desse entendimento, parece-nos que da utilização dos meios legais postos à dispo­ sição do acusado e de seu defensor não lhes pode resultar qualquer gravame. Ninguém pode sofrer qualquer espécie de punição simplesmente por fa­ zer uso de um recurso previsto em lei, sob pena de obrigarmos a defesa a não recorrer, a não arrolar 416. STF, Ia Turma, HC 92.204/PR, Rei. Min. Menezes Direito, DJ 19/12/2007 p. 54. 417. STJ, 5a Turma, HC 88.676/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 07/02/2008 p. 1. 418. STJ, 5a Turma, HC 83.974/RN, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 08/10/2007 p. 347. 419. STJ, 5a Turma, HC 162.936/ES, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em

16/12/2010.

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testemunhas, a fim de que possa arguir eventual excesso de prazo. Impõe-se diferenciar, portanto, o uso normal do direito de defesa, com o exercício das suas faculdades procedimentais decorrentes do pleno contraditório judicial, seja arrolando testemu­ nhas residentes em outra comarca para comprovar eventual álibi, seja interpondo recursos previstos em lei, do uso abusivo do direito de defesa.

Em síntese, o regular exercício do direito de de­ fesa não pode servir como óbice ao reconhecimento do excesso de prazo, sob pena de a prisão preven­ tiva do acusado servir como elemento inibidor das faculdades processuais do defensor, causando de­ sequilíbrio incompatível com a paridade de armas inerentes ao devido processo legal. Acreditamos, pois, com a devida vênia, que a súmula n° 64 do STJ deva ser lida nos seguintes termos: não cons­ titui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado por manobras manifestamente procrastinatórias da defesa que visem à criação de uma dilação indevida.

8.6. Excesso de prazo após a pronúncia ou o encerramento da instrução criminal: mitigação das súmulas 21 e 52 do STJ De acordo com a súmula n° 21 do STJ, “pro­ nunciado o réu, fica superada a alegação do cons­ trangimento ilegal por excesso de prazo na instru­ ção”. Por sua vez, preceitua a súmula n° 52 do STJ: “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de pra­ zo”. Como se percebe pela leitura das duas súmulas, pronunciado o acusado ou encerrada a instrução criminal, já não seria mais possível a caracterização do excesso de prazo. A aplicação irrestrita das duas súmulas pode nos levar a uma conclusão absurda, qual seja, a de que, pronunciado o acusado, ou encerrada a ins­ trução do processo, não haverá mais espaço para a caracterização do excesso de prazo na formação da culpa. Assim, a título de exemplo, pronunciado o réu, pouco importa se seu julgamento em plenário demorar 2 (dois), 3 (três) ou 4 (quatro) anos - o acusado permanecerá preso - como se o direito à razoável duração do processo fosse extensivo tão somente até o momento da pronúncia. No mesmo sentido, encerrada a instrução processual, a prolação de sentença pelo magistrado de Ia instância ou até mesmo o julgamento de seu recurso de apelação possa levar anos, permanecendo o acusado preso cautelarmente. Ora, em tais situações, haveria evidente afronta ao disposto no art. 5o, LXXVIII, da Constituição Fe­ deral, se acaso não fosse possível o reconhecimento

do excesso de prazo após a pronúncia ou o encerra­ mento da instrução. Afinal, a garantia ali inserida é a da razoável duração do processo, sendo certo que o término da instrução ou da primeira fase do pro­ cedimento bifásico do júri não põe fim ao processo. A nosso juízo, impõe-se um juízo de pondera­ ção entre os valores constitucionais do exercício do poder-dever de julgar (art. 5o, XXXV) e, de outro, do direito subjetivo à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tra­ mitação (art. 5o, LXXVIII), sobretudo quando em jogo a liberdade de locomoção. De nada adianta a Constituição declarar o direito à razoável duração do processo se a ele não corresponder o dever estatal de julgar com presteza. Portanto, ainda que pronun­ ciado o acusado ou encerrada a instrução criminal, é possível reconhecer-se o excesso de prazo quando houver uma dilação indevida que não possa ser atri­ buída a manobras manifestamente procrastinatórias da defesa. Nessa linha de raciocínio, tanto a súmula n° 21 do STJ quanto a de n° 52, também do STJ, vêm sen­ do mitigadas pelos próprios Tribunais Superiores. A Ia Turma do Supremo já teve a oportunidade de asseverar que, “evidenciado que a prisão preven­ tiva do paciente perdura por mais de dois anos e cinco meses, sem que a defesa tenha concorrido para esse excesso de prazo, a decisão pela prejudicialidade da impetração, face à superveniência da sentença de pronúncia, traduz situação expressiva de constrangimento ilegal”.420 Na mesma esteira: “a jurisprudência deste Supremo Tribunal firmou o entendimento segundo o qual o encerramento da instrução criminal afasta a alegação de excesso de prazo. Todavia, aquela inteligência haverá de ser to­ mada com o temperamento jurídico necessário para atender aos princípios constitucionais e infraconstitucionais, especialmente quando o caso evidencia flagrante ilegalidade decorrente do excesso de prazo não imputável ao acusado”.421 420. STF, 2a Turma, HC 86.980/SP, Rei. Min. Eros Grau, DJ 27/10/2006 p. 63. 421. STF, Ia Turma, HC 87.913/PI, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 07/12/2006 p. 52. Reconhecendo o excesso de prazo em virtude do transcurso de praticamente 1 ano entre a sentença e o julgamento da apelação e, ainda, a distribuição dos embargos de infringência, opostos em 20.1.2010, apenas em 8.11.2010, sobretudo por ser a paciente maior de 60 anos e portadora de doença grave (câncer), tendo assegurado, por

lei, prioridade na tramitação em todas as instâncias: STF, Ia Turma, HC 102.015/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, julgado em 09/11/2010. Reconhecendo o excesso de prazo de acusados que, a despeito de terem sido pronun­ ciados, aguardavam o julgamento perante o Tribunal do Júri há mais de 7 (sete) anos: STF, 2a Turma, HC 142.177/RS, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06/06/2017, DJe 212 18/09/2017.

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O Superior Tribunal de Justiça também vem sujeitando as súmulas 21 e 52 a uma releitura, no sentido de que, ainda que encerrada a instrução cri­ minal, é possível reconhecer o excesso de prazo na formação da culpa, especialmente quando o caso evidenciar flagrante ilegalidade decorrente de mora processual não imputável ao acusado. Por isso, em caso concreto no qual o acusado permanecia preso há mais de quatro anos e 10 meses sem que tivesse sido submetido ao Tribunal do Júri, concluiu o STJ que a demora injustificável para a prestação juris­ dicional, quando encerrada a instrução criminal, permanecendo o réu preso preventivamente, carac­ terizava hipótese de constrangimento ilegal, razão pela qual determinou não só a expedição de alvará de soltura como também a imediata realização da sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri.422

8.7. Excesso de prazo e aceleração do julgamento Caracterizado o excesso de prazo na formação da culpa, impõe-se o relaxamento da prisão, que pode ser determinado pelo próprio juiz que preside a instrução processual, ou pelo respectivo Tribunal, seja em face da interposição de habeas corpus, seja de ofício, quando da apreciação de eventual recurso.

Em alguns precedentes jurisprudenciais, no entanto, ao invés de se reconhecer o excesso de prazo, com o consequente relaxamento da prisão, os Tribunais têm se limitado a determinar a reali­ zação imediata do julgamento, de modo semelhante à novel aceleração do julgamento inserida no pro­ cedimento do desaforamento por força da Lei n° 11.689/08 (CPP, art. 428, § 2o).423

8.8. Relaxamento da prisão por excesso de pra­ zo e decretação de nova prisão De nada adianta o reconhecimento do excesso de prazo na formação da culpa em julgamento de habeas corpus, com a consequente expedição de 422. STJ, 5a Turma, HC 117.466/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 23/03/2010, DJe 26/04/2010. Na mesma trilha: STJ, 6a Turma, RHC 20.566/ BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 25/06/2007 p. 300). E também: "A permanência do pronunciado preso desde 8/3/04 e o seu julgamento pelo Tribunal popular marcado para 4/12/08, ou seja, mais de quatro anos após a sua prisão, configura excesso de prazo para a prestação jurisdicional". (STJ, 5a Turma, HC 53.302/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/03/2008 p. 1). Na mesma linha, em relação a indivíduo pronunciado em dezembro de 2005 e que se encontrava preso preventivamente há 3 (três) anos, sem que fosse submetido a julgamento pelo Júri: STJ, 6aTurma, HC 77.469/SP, Rei. Min. Nilson Naves, DJe 28/10/2008.

423. STF, 2a Turma, HC 95.314/SP, Rei. Min. Ellen Gracie, DJe 211 06/11/2008. Na dicção do Supremo, o acusado tem direito à jurisdição em período razoável, daí por que se revela inadmissível que um habeas corpus não seja julgado em 02 (dois) anos, pouco importando o fato de o acusado estar preso, ou não: STF, Ia Turma, HC 112.659/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 29/05/2012.

alvará de soltura, se o juiz puder decretar nova e automática prisão preventiva do acusado, mantendo seu status quo. Fosse isso possível, haveria clara e evidente afronta ao direito à razoável duração do processo, previsto na Constituição Federal (art. 5o, LXXVIII) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, n° 1). Deveras, se a prisão cautelar anterior foi relaxada por excesso de prazo no encerramento do processo, seria expedien­ te arbitrário e desleal restabelecer a detenção por meio de novo mandado de prisão preventiva, pois, assim, ficaria burlada a lei quando reclama, estando preso o acusado, se conclua o processo em prazo menor que o fixado para os processos de réu solto. Portanto, uma vez relaxada a prisão preventiva por excesso de prazo, não pode o juiz decretar nova prisão cautelar, salvo diante de motivo supervenien­ te que a autorize. Essa motivação que autoriza nova prisão cautelar deve ser completamente nova, seja quanto aos argumentos jurídicos, seja quanto aos fatos. Na verdade, como aponta a doutrina, deve-se exigir que essa motivação cautelar nova refira-se a fatos novos posteriores à soltura do réu, ou, quan­ do muito, de fatos que, embora não posteriores à soltura do réu, eram estranhos ao processo penal e completamente desconhecidos do juiz quando da revogação da prisão preventiva.424

8.9. Excesso de prazo e efeito extensivo Se o excesso de prazo não tiver como funda­ mento argumento de caráter exclusivamente pessoal, surgindo idêntica a situação de corréu, impõe-se um tratamento igualitário, estendendo-se a ordem con­ cedida a todos os acusados, consoante o disposto no art. 580 do CPP. Segundo o referido dispositivo, no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.425

8.10. Relaxamento da prisão preventiva e li­ berdade plena Em se tratando de relaxamento de prisão pre­ ventiva ilegal, não é possível, pelo menos em regra, 424. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval; CALDAS NETO, Pedro Rodrigues.

Manual de prisão e soltura sob a ótica constitucional: doutrina e jurispru­ dência. São Paulo: Método, 2007. 430. No sentido de o relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo não impedir a decretação de nova prisão preventiva por outros fundamentos explicitados na senten­ ça condenatória: STF, Ia Turma, HC 103.881/MG, Rei. Min. Dias Toffoli, julgado em 31/08/2010.

425. STF, 1a Turma, HC 87.132/MG, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ 31/10/2007 p. 91. E também: STF, 1aTurma, HC segunda extensão 87.913/ PI, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 23/03/2007 p. 109.

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a imposição de qualquer ônus ou restrição de direi­ to em desfavor do libertado. Trata-se de liberdade plena, diferenciando-se, portanto, das hipóteses de liberdade provisória com vinculação.

Não é isso, todavia, o que se vê no dia a dia fo­ rense. Nesse sentido, confira-se a posição do STJ: “A instrução criminal deve ser concluída em prazo razoável, nos exatos termos do art. 5o, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. O excesso de prazo na ultimação do processo-crime enseja o relaxamento da prisão cautelar. Ordem concedida para reconhecer o excesso de prazo e determinar o relaxamento da prisão do paciente, expedindo alvará de soltura clausulado,pczra que compareça a todos os atos do processo, sob pena de revogação da liberdade” (nosso grifo).426 A nosso ver, reconhecida a ilegalidade da pri­ são, impõe-se seu relaxamento, sem a imposição de quaisquer ônus ao acusado, pelo menos em regra. Porém, como tem sido admitida a utilização do po­ der geral de cautela no processo penal, é possível que o acusado seja submetido ao cumprimento de algum tipo de obrigação, caso tal medida se apresente ne­ cessária para assegurar a eficácia das investigações ou do processo criminal.

8.11. Relaxamento da prisão e natureza da in­ fração penal Como será visto com mais detalhes ao tra­ tarmos do tema liberdade provisória proibida, há inúmeros dispositivos constitucionais e legais que vedam a concessão da liberdade provisória com ou sem fiança a certos delitos (v.g., tráfico de drogas - art. 44 da Lei n° 11.343/06). Ainda que se queira sustentar a validade de tais dispositivos legais - o que, como será visto mais adiante, não encontra ressonância na mais moderna jurisprudência do próprio Supremo -, não se pode confundir a ve­ dação da concessão da liberdade provisória com a possibilidade de relaxamento da prisão ilegal. A própria Constituição Federal, ao tratar do relaxamento da prisão ilegal (art. 5o, LXV), não estabelece qualquer restrição quanto à espécie do delito. Portanto, uma vez reconhecida a ilegalidade da prisão, impõe-se seu relaxamento, ainda que o delito praticado pelo agente tenha natureza hedion­ da. Nesse sentido, eis o teor do enunciado da súmula n° 697 do Supremo Tribunal Federal: a proibição 426. STJ, 6a Turma, HC 69.382/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 08/10/2007 p. 371. No sentido da imposição de vinculações como o compromisso de comparecimento a todos os atos do processo e a proibição de se ausentar do distrito da culpa sem autoriza­ ção judicial, a despeito de ter sido reconhecido o excesso de prazo. STF, 1a Turma, HC 102.668/PA, Rei. Min. Dias Toffoli, julgado em 05/10/2010.

da liberdade provisória nos processos por crimes he­ diondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo. Não por outro motivo, a 5a Turma do STJ deliberou pela concessão de ordem em habeas corpus para determinar o relaxamento da prisão em relação a acusado pela prática de crime hediondo cujo processo já durava mais de 5 anos sem que a instrução estivesse concluída.427

8.12. Excesso de prazo e investigado ou acu­ sado solto Em regra, restringe-se a análise acerca do ex­ cesso de prazo na formação da culpa em relação ao indivíduo preso. E isso porque, tratando-se de acusado preso, apresenta-se o reconhecimento do excesso de prazo como causa de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, autorizando o re­ laxamento da prisão com fundamento no art. 648, inciso II, do CPP. No entanto, pela própria dicção do texto cons­ titucional (CF, art. 5o, inciso LXXVIII), depreen­ de-se que o direito à razoável duração do processo é aplicável tanto ao acusado que está preso quanto àquele que está em liberdade. O problema é que, enquanto o relaxamento da prisão afigura-se como consequência da ilegalidade decorrente do excesso de prazo quando o acusado está preso, a legislação processual penal pátria silencia acerca de medidas a serem adotadas em caso de dilação indevida re­ ferente a investigações ou processos criminais de acusados que estejam em liberdade. No plano internacional, Daniel R. Pastor apresenta algumas soluções, aplicáveis tanto ao acusado preso quanto ao acusado solto: 1) com­ pensatórias, que podem ser: a) de direito inter­ nacional - com a condenação do Estado infrator, por órgãos internacionais de direitos humanos (como o TEDH), à compensação pelos prejuízos causados ao acusado, que poderá ser em dinheiro ou, ainda, através de indulto ou perdão da pena aplicada (total ou parcial); b) de direito civil - por meio de ressarcimento, indenização ou repara­ ção; c) de direito penal - por meio de redução de pena ou de suspensão de sua execução - no Brasil, seria possível a aplicação, nesse caso, da circuns­ tância atenuante genérica do art. 66 do Código Penal; 2) processuais, que podem ser resumidas na possibilidade de reconhecimento de nulidade 427. STJ, 5aTurma, Edcl no HC 74.623/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora Convocada doTJ/MG, DJ 10/12/2007 p. 404. Reconhe­ cendo o excesso de prazo na formação da culpa em caso concreto em que indivíduo acusado de tráfico de drogas já estava preso preventivamente há mais de 4 (quatro) anos, sem que sequer tivesse sido designada a au­ diência de interrogatório: STF, 2a Turma, HC 141.583/RN, Rei. Min. Edson Fachin, j. 19/09/2017.

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do processo ou dos atos processuais posteriores ao cumprimento do prazo razoável; 3) punitivas, traduzidas em sanções disciplinares, administra­ tivas ou penais para os agentes responsáveis pela dilação indevida do processo.428

nulidade. Evidente, pois, a necessidade de que todo e qualquer decreto prisional seja devidamente funda­ mentado. Aliás, a necessidade de fundamentação não está restrita apenas às prisões cautelares, mas também abrange as medidas cautelares diversas da prisão.430

Não obstante o silêncio da legislação brasileira quanto às consequências de eventual dilação inde­ vida referente a persecuções criminais em que o acusado esteja em liberdade, convém destacar que, em pioneiro julgado acerca do assunto, a 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem para determinar o trancamento de inquérito policial em andamento em relação a suspeitos que estavam em liberdade, por entender que, no caso concreto, passados mais de sete anos desde a instauração do inquérito, ainda não teria havido o oferecimento da denúncia contra os pacientes. Nas palavras do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, “é certo que existe jurisprudência, inclusive desta Corte, que afirma inexistir constrangimento ilegal pela simples instau­ ração de Inquérito Policial, mormente quando o in­ vestigado está solto, diante da ausência de constrição em sua liberdade de locomoção; entretanto, não se pode admitir que alguém seja objeto de investigação eterna, porque essa situação, por si só, enseja evi­ dente constrangimento, abalo moral e, muitas vezes, econômico e financeiro, principalmente quando se trata de grandes empresas e empresários e os fatos já foram objeto de Inquérito Policial arquivado a pedido do Parquet Federal”.429

Antigamente, entendia-se que a fundamentação das decisões judiciais era apenas uma garantia técnica do processo, com objetivos endoprocessuais: através dela, proporcionava-se às partes o conhecimento necessário para que pudessem impugnar a decisão, permitindo, ademais, que os órgãos jurisdicionais de segundo grau examinassem a legalidade e a justiça da decisão. Destacava-se, assim, apenas a função endoprocessual da motivação. Com o passar do tempo, a garantia da motivação das decisões passou a ser considerada também garantia da própria jurisdição. Afinal de contas, os destinatários da fundamentação não são mais apenas as partes e o juízo ad quem, como também toda a coletividade que, com a moti­ vação, tem condições de aferir se o magistrado deci­ diu com imparcialidade a demanda. Muito além de uma garantia individual das partes, a motivação das decisões judiciais funciona como exigência inerente ao próprio exercício da função jurisdicional. Não por outro motivo, a garantia da motivação vem prevista na Constituição Federal no capítulo pertinente ao Poder Judiciário, e não no capítulo dos direitos e ga­ rantias individuais, em que se encontra grande parte das garantias processuais. Destarte, sob o enfoque da sociedade, pode-se dizer que a motivação também apresenta uma finalidade extraprocessual.431

9. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DE­ CRETA A PRISÃO PREVENTIVA As prisões cautelares são, invariavelmente, me­ didas de natureza urgente. A urgência da medida cautelar pleiteada, bem como a sumariedade ou su­ perficialidade da cognição, não podem, entretanto, servir como justificativas para o arbítrio ou qualquer forma de automatismo no tocante a decisões que decretem as referidas medidas.

Ora, consoante disposto no art. 5o, inciso LXI, da Constituição Federal, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamen­ tada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Por sua vez, o art. 93, inciso IX, da Carta Magna, determina que todos os julga­ mentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públi­ cos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de

Funciona, assim, a motivação dos atos jurisdi­ cionais, verdadeira garantia processual de segundo grau, como importante forma de controle das partes sobre a atividade intelectual do juiz, a fim de que possam verificar se este levou em consideração to­ dos os argumentos e provas produzidas pelas par­ tes, e se teria aplicado de maneira correta o direito objetivo ao caso concreto.432 430. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que as medidas

cautelares diversas da prisão, ainda que mais benéficas, implicam em res­ trições de direitos individuais, sendo necessária fundamentação para sua imposição. Nesse sentido, confira-se: STJ, 6a Turma, HC 302.730/PA, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 16/12/2014, DJe 05/02/2015; STJ, 5a Turma, RHC 042.853/RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 18/12/2014, DJe 02/02/2015; STJ, 6a Turma, RHC 037.377/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 09/12/2014, DJe 19/12/2014. 431. Nesse sentido: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2002. p. 129. 432. Consoante lição de Ferrajoli, a motivação "exprime e ao mesmo

428. El plazo razonable em el proceso dei Estado de Derecho: una investigación acerca dei problema de Ia excesiva duración dei proceso penal y sus posibles soluciones. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002. p. 504-540.

429. STJ, 5a Turma, HC 96.666/MA, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 04/09/2008, DJe 22/09/2008.

tempo garante a natureza cognitiva em vez da natureza potestativa do juízo, vinculando-o, em direito, à estrita legalidade, e, de fato, à prova das hipóteses acusatórias". Ainda segundo o referido autor, "a motivação permite a fundação e o controle das decisões seja de direito, por violação de lei ou defeito de interpretação ou subsunção, seja de fato, por defeito ou insuficiência de provas ou por explicação inadequada do nexo entre

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Especificamente em relação à prisão preventiva, a nova redação conferida ao art. 315 do CPP pela Lei n. 13.964/19 vem ao encontro do art. 5o, LXI, e art. 93, IX, ambos da Constituição Federal, no sentido de exigir que toda decisão que decrete, substitua ou denegue a prisão preventiva seja sempre fundamen­ tada. Pela própria excepcionalidade que caracteriza a prisão preventiva, a decisão que a decreta pres­ supõe inequívoca demonstração da base empírica que justifica a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se a qualquer das previsões do art. 312 do Código de Processo Penal. Diante da Carta Magna, não há mais espaço para decisões que se limitem à mera explicitação textual dos requisitos previstos pelo art. 312 do CPP: .. Decreto a prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública”. De fato, a tarefa de interpretação constitucional para a análise da excepcional situação jurídica de constri­ ção da liberdade dos cidadãos exige que a alusão a tais aspectos estejam lastreados em elementos con­ cretos. Meras ilações ou conjecturas desprovidas de base empírica concreta não autorizam a segregação cautelar da liberdade de locomoção. É indispensável que o magistrado aponte, de maneira concreta, as circunstâncias fáticas que apontam no sentido da adoção da medida cautelar, sob pena de manifesta ilegalidade do decreto prisional.433

Interpretando-se sistematicamente todas as mudanças produzidas pela Lei n. 13.964/19 no Tí­ tulo IX do CPP (“Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória”), de modo a se evitar o reconhecimento da ilegalidade da decisão em virtu­ de de carência de fundamentação (CPP, art. 564, V), com o consequente relaxamento da prisão preventi­ va, é possível afirmar que, doravante, a fundamenta­ ção do magistrado deverá abranger expressamente não apenas menção ao fumus comissi delicti e ao periculum libertatis, e à respectiva hipótese de ad­ missibilidade (CPP, art. 313,1, II, III, ou §1°), mas também as seguintes justificativas:

a) justificativa expressa para a excepcional inobservância do contraditório prévio: consoante disposto no art. 282, §3°, do CPP, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da me­ dida, o juiz, ao receber, o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, convencimento e provas" (Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2a ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2006. p. 573/574).

433. STJ, 6a Turma, HC 86.113/DF, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 17/03/2008 p. 1. E também: STJ, 5aTurma, HC 101.827/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 30/03/2009.

permanecendo os autos em juízo, e os casos de ur­ gência ou de perigo deverão ser justificados e funda­ mentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional;

b) justificativa expressa para a não substitui­ ção da medida extrema por cautelar diversa da prisão: de acordo com o art. 282, §6°, a prisão pre­ ventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimen­ to da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, deforma individualizada; c) justificativa expressa acerca da atualidade do periculum libertatis; por força do art. 312, §2°, e do art. 315, §1°, ambos do CPP, incluídos pela Lei n. 13.964/19, na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz de­ verá indicar concretamente a existência defatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.

Se ao magistrado se impõe o dever de apontar elementos concretos que confirmem a necessidade da segregação cautelar do acusado, também se lhe impõe o dever de moderação de linguagem. Ao exteriorizar seu convencimento no momento da fundamentação, a utilização de linguagem sóbria por parte do ma­ gistrado serve, assim, para demonstrar que não está havendo um julgamento antecipado do acusado. Esse dever de fundamentar a decisão que decre­ ta a prisão preventiva é do juiz natural, geralmente de um juiz de Ia instância. Assim, o Tribunal terá competência para decretá-la em nível de segundo grau de jurisdição apenas diante de recurso inter­ posto pela acusação contra a decisão que indeferiu a prisão preventiva (CPP, art. 581, V).

Portanto, o chamado indevido reforço de fun­ damentação não pode substituir a decisão do juiz natural que decreta ou mantém a prisão, que deve subsistir por si só. Não se admite, assim, que o órgão ad quem supra eventual deficiência da fundamen­ tação do juízo a quo por ocasião do julgamento de habeas corpus, nem tampouco que a autoridade coatora complemente a decisão omissa ao prestar informações em pedido de habeas corpus. Nesse contexto, como já se pronunciou o Min. Celso de Mello, “a legalidade da decisão que decreta a prisão cautelar ou que denega liberdade provisória deverá ser aferida em função dos fundamentos que lhe dão suporte, e não em face de eventual reforço advindo dos julgamentos emanados das instâncias judiciá­ rias superiores. A motivação há de ser própria, ine­ rente e contemporânea à decisão que decreta o ato

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excepcional de privação cautelar da liberdade, pois a ausência ou a deficiência de fundamentação não podem ser supridas a posteriori”.434

De mais a mais, em recurso exclusivo da defe­ sa, também não se afigura possível a decretação da prisão cautelar, de ofício, pelo Tribunal, sob pena de violação ao princípio da ne reformatio in pejus. A teor do art. 316 do Código de Processo Penal, é possível a decretação de prisão preventiva no curso do processo, ainda que esta tenha sido anteriormente revogada, se sobrevierem razões que justifiquem tal medida. Contudo, essa providência - de apreciar as altera­ ções fáticas da situação determinantes da custódia - compete ao juiz da causa, não podendo supri-la o Tribunal de origem em recurso exclusivo da Defesa.435

9.1. Rol exemplificativo de decisões não-fundamentadas (CPP, art. 315, §2°, incluído pela Lei n. 13.964/19) Reproduzindo, grosso modo, os dizeres do art. 489, §1°, do CPC, o novel §2° do art. 315 do CPP, in­ troduzido pela Lei n. 13.964/19, prevê um rol exem­ plificativo de decisões que devem ser consideradas não-fundamentadas. Por mais que seu conteúdo já pudesse ser extraído do dever de fundamentação expressamente previsto pela Constituição Federal art. 5o, LXI, e art. 93, IX -, é salutar que, doravante, algumas hipóteses em que a decisão se considera não fundamentada estejam previstas expressamente no texto legal. Pelo menos em tese, isso permite um controle mais efetivo das decisões judiciais, reduzin­ do, assim, a margem de subjetividade dos julgadores quanto à percepção do que é - e do que não é - uma decisão devidamente fundamentada. Tecnicamente, revelar-se-ia mais correta a in­ serção do dispositivo em comento entre os arts. 381 e 392 do CPP, inseridos que estão no Título XII do Livro I, que cuida da “sentença”, à semelhança, aliás, do que foi feito no âmbito do Código de Processo Civil, onde este rol exemplificativo de decisões não fundamentadas foi introduzido no Capítulo que cui­ da “da sentença e da coisa julgada”. Optou o legislador, todavia, por inserir o novel dispositivo no art. 315, §2°, do CPP, é dizer, no capítulo que versa sobre a “Prisão preventiva”, muito provavelmente diante da 434. STF, 2aTurma, HC 98.862/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 23/06/2009, DJe 200 22/10/2009. Com o mesmo entendimento: STF, 2a Turma, HC 93.803/RJ, Rei. Min. Eros Grau, DJe 172 12/09/2008; STF, 2a Turma, HC

93.114/SP, Rei. Min. Eros Grau, DJe 70 18/04/2008. Tendo em vista que o habeas corpus constitui meio exclusivo de defesa do cidadão, não é lícito aoTribunal de origem inovar na fundamentação para manter a prisão de natureza provisória: STJ, 6aTurma, HC 199.533/SP, Rei. Min. Og Fernandes, j. 03/05/2011, DJe 16/05/2011.

435. STJ, 5aTurma, HC 169.412/AL, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 05/08/2010,

DJe 13/09/2010.

infinidade de habeas corpus que diariamente são im­ petrados nos Tribunais Superiores contra decisões que decretam a referida prisão cautelar com termos singelos e genéricos (v.g., “Decreto a prisão preven­ tiva com base na garantia da ordem pública”). Sem embargo da opção feita pelo legislador, ante a própria redação do §2° do art. 315 do CPP, sua aplicação é válida para toda e qualquer decisão judicial proferida em sede processual penal, pouco importando se trata de decisão interlocutória, sentença ou acórdão, e in­ clusive no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.

É claro que a fundamentação não precisa ser extensa para ser uma verdadeira fundamentação. A concisão, nos dias de hoje, é uma virtude, e em nada se revela incompatível com o disposto no art. 315, §2°, do CPP. Destarte, não se pode confundir funda­ mentação sucinta com ausência de fundamentação: aquela jamais dará ensejo à nulidade do art. 564, in­ ciso V, do CPP, desde que enfrentadas, logicamente, todas as questões cuja resolução, em tese, tenham o condão de influenciar a causa. Especificamente em relação à prisão preventiva, há diversos precedentes dos Tribunais no sentido de que não se exige funda­ mentação exaustiva, sendo suficiente que o decreto constritivo, ainda que de forma sucinta, concisa, ana­ lise a presença, no caso, dos requisitos legais constan­ tes dos arts. 312e313do CPP.436 Vejamos, então, separadamente, o rol exempli­ ficativo de decisões judiciais não fundamentadas constante do art. 315, §2°, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19:437

I - Decisão que se limita à indicação, à re­ produção ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão de­ cidida: não é sempre que o magistrado descreve, de maneira racional e controlável, todo o caminho cognitivo por ele percorrido para chegar à determi­ nada conclusão. E é exatamente daí que exsurge a importância do art. 315, §2°, I, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19. O dispositivo deverá servir, dora­ vante, para advertir ao juiz que ele precisa expor, em 436. A propósito, confira-se: STF, Ia Turma, RHC 89.972/G0, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJU de 29/06/2007. 437. De acordo com o novo CPC, quando a decisão incorrer em qual­ quer dessas hipóteses, admite-se, inicialmente, a oposição de embargos de declaração com o objetivo de suprir tal omissão (art. 1022, parágrafo único, II, do novo CPC). À evidência, opostos os embargos de declaração,

se o magistrado insistir em manter a ausência de fundamentação, caberá à parte manejar o recurso adequado contra a referida decisão em sede processual penal (v.g., RESE, apelação, etc). A nosso juízo, ante o silêncio do art. 315, §2°, do CPP, acerca da matéria, é perfeitamente possível a aplicação subsidiária desses dispositivos no âmbito processual penal, nos exatos termos do art. 3° do CPP, com a ressalva de que, em se tratando de decisão concessiva de prisão cautelar carente de fundamentação, ter-se-á evidente constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, revelando-se mais oportuna, portanto, a impetração de um habeas corpus.

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sua decisão, a interpretação que fez dos fatos, das provas constantes dos autos, de eventuais teses ju­ rídicas apresentadas pelas partes, da norma jurídica que lhe serve de fundamento, e, principalmente, da relação que entende existir entre os fatos imputados ao acusado e determinado tipo penal incrimina­ dor. Enfim, o que não se pode admitir, sob pena de manifesta nulidade (CPP, art. 564, V, incluído pela Lei n. 13.964/19), é que o magistrado simplesmen­ te repita o texto da lei penal ou processual penal, ou parafraseá-lo, deixando aos destinatários do ato decisório a difícil tarefa de intuir o raciocínio de subsunção que o magistrado fizera; II - Decisão que emprega conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso: na difícil tarefa de apli­ car o ordenamento jurídico, verificando a efetiva subsunção do fato à norma, não raras vezes o magis­ trado se depara com dispositivos que contemplam expressões vagas, de conteúdo semântico aberto. São os chamados conceitos jurídicos indeterminados, assim conceituados pela doutrina438 como aqueles compostos por termos vagos, de acepção aberta, que, exatamente por isso, demandam um cuidado maior do aplicador por ocasião do preenchimento do seu sentido. São exemplos: a “garantia da ordem pública” (CPP, art. 312), o “logo depois”, para fins de caracterização do flagrante presumido (CPP, art. 302, IV), a “doença grave”, para fins de concessão de prisão domiciliar (CPP, art. 318, II), etc. Destarte, ao fundamentar a decisão judicial, impõe-se redobrada atenção do magistrado na eventualidade de se depa­ rar com tais conceitos, eis que, nessa hipótese, para além de revelar o que compreende daquela noção vaga, considerando dados sistemáticos (v.g., pre­ cedentes judiciais) e extra-sistemáticos (v.g., usos, costumes, etc.), deverá, ademais, indicar as razões concretas que justificam sua aplicação ao caso sub judice. Exemplificando, não há como se entender como fundamentada uma decisão judicial que de­ crete a prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal. O juiz - das garantias ou da instrução e julgamento, a depender do momento da persecução penal em que estivermos - tem que explicar por que tal pressuposto estaria presente, desenvolvendo seu raciocínio com base nas circuns­ tâncias do caso concreto, detalhando, por exemplo, condutas concretas perpetradas pelo acusado que estariam prejudicando a livre produção das provas

no curso do processo, tais como ameaças a testemu­ nhas, destruição de fontes de provas, etc; III - Decisão que invoca motivos que se pres­ tariam a justificar qualquer outra decisão: o que se busca evitar no art. 315, §2°, III, do CPP, é a utilização de fundamentação padrão, que pode ser utilizada nas mais variadas situações. Ora, a motivação deve ser dotada de conteúdo substancial, e não meramente formal. Daí por que não se pode admitir decisões do tipo “ausente a justa causa para o exercício da ação penal, rejeito a peça acusatória” ou simplesmen­ te “indefiro o pedido de habilitação do assistente da acusação, por falta de amparo legal”. Cuida-se, na irreverente imagem de Teresa Wambier, de “decisão judicial tipo ‘vestidinho preto”’,439 que, exatamente por isso, não se pode considerar fundamentada. Por consequência, valendo-se dos exemplos acima cita­ dos, recai sobre o magistrado a obrigação de dizer por que entendeu que o lastro probatório constante da investigação preliminar não seria suficiente para dar ensejo à instauração do processo penal, ou dizer o motivo concreto pelo qual o pedido de habilitação do assistente não teria sido admitido; IV - Decisão que não enfrenta todos os argu­ mentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador: não raras vezes, encontramos precedentes dos Tribunais Superiores afirmando que o magistrado não é obriga­ do a se manifestar sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já tiver encontrado motivos suficientes para fundamentar sua decisão. Esse entendimento deve ser interpretado com redobrada cautela, notadamen­ te no âmbito processual penal, sob pena de evidente violação à ampla defesa e ao contraditório, visto sob a perspectiva substancial. Com efeito, por mais que o juiz da instrução e julgamento delibere pela conde­ nação do acusado, por entender estar comprovada, por exemplo, a prática de um crime de roubo cir­ cunstanciado pelo emprego de arma de fogo (CP, art. 157, §2°-A, I, incluído pela Lei n. 13.654/18), recai sobre ele a obrigação de analisar todos os argumentos apresentados pela defesa técnica e pelo próprio acu­ sado (autodefesa), tais como eventual álibi no sentido de que estaria em outro local por ocasião da prática do delito, atipicidade em virtude da insignificância, impossibilidade de incidência da causa de aumento de pena em virtude da não apreensão e perícia da arma de fogo, etc. Não o fazendo, sua decisão deverá ser anulada por falta de fundamentação, consoante disposto no art. 315, §2°, IV, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19. E nem se diga que a análise de todos

438. DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexan­ dria. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório,

ações probatórias, decisão, precedente, cosia julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Vol. 2.10a ed. Salvador: Juspodivm, 2015.p. 330.

439. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Embargos de declaração e omissão do juiz. 2a ed. São Paulo: RT, 2014. p. 282.

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os fundamentos da tese derrotada não teria relevân­ cia prática. Pelo contrário. A omissão nessas hipó­ teses poderá, mais adiante, inviabilizar a discussão da matéria nas instâncias superiores, seja por meio de Recurso Extraordinário, seja por meio de Recurso Especial, daí por que, em casos tais, o ideal é que a parte ingresse com embargos de declaração para fins de prequestionamento. Aliás, não por outro motivo, dispõe o art. 1.022, parágrafo único, inciso II, do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal (CPP, art. 3o), que se considera omissa, para fins de oposição de embargos de declaração, a decisão que incorrer em qualquer das condutas descritas no §1° do art. 489 do CPC (leia-se, no nosso caso: art. 315, §2°, do CPP);

V - Decisão que se limita a invocar preceden­ te ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles funda­ mentos: com a crescente importância dispensada pelo ordenamento jurídico aos precedentes e aos enunciados de súmulas, não raras vezes nos de­ paramos com decisões judiciais que os invocam, geralmente transcrevendo-se apenas as respectivas ementas no corpo do julgado, sem que o juiz das garantias (ou da instrução e julgamento), porém, tenha o cuidado de fazer uma efetiva contraposição entre o contexto em que o precedente surgiu e o caso sub judice. Ao fundamentar sua decisão, não basta ao juiz fazer mera referência a precedentes ou enunciados. Para além disso, exige-se dele uma avaliação explícita da pertinência de sua aplicação ao caso concreto, verificando, assim, se a tese jurí­ dica adotada pelos Tribunais Superiores é, de fato, adequada ao caso sub judice. VI - Decisão que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invo­ cado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento: o inciso VI do §2° do art. 315 é um mero desdobramento do anterior, porém em sentido contrário. É dizer, se ao invocar um prece­ dente o juiz está obrigado a fazer um juízo analítico quanto à conformação da sua ratio decidendi ao caso concreto (inciso V), na eventualidade de deixar de aplicá-lo, também lhe é exigível que faça o denomi­ nado distinguishing, apontando as diferenças fáticas que justificam sua não aplicação, ou que informe o motivo pelo qual tal enunciado teria perdido sua força vinculante (overruling).

Ao fim e ao cabo, é de todo relevante reiterar que o art. 315, §2°, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/17, é meramente exemplificativo. Há, por­ tanto, outras hipóteses em que a decisão poderá ser considerada não-fundamentada. No âmbito processual penal, e especificamente em relação às

decisões que decretam prisões cautelares, talvez o exemplo mais recorrente seja aquele atinente à in­ vestigação criminal (ou processo penal) envolvendo mais de um acusado, hipótese em que a fundamen­ tação deverá ser feita de maneira individualizada, considerando-se as condições pessoais de cada um dos acusados na verificação do periculum liberta­ tis, sob pena de manifesta nulidade (CPP, art. 564, V).440 A despeito de tal hipótese não ter constado expressamente de nenhum dos incisos do §2° do art. 315 do CPP, há de se notar que o Pacote Anti­ crime conferiu nova redação ao §6° do art. 282 do CPP, que passou a prever que a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, ob­ servado o disposto no art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamen­ tada nos elementos presentes no caso concreto, de forma individualizada.

9.2. Fundamentação per relationem (ou aliunde) Há controvérsias em torno da possibilidade da adoção da denominada fundamentação per re­ lationem (ou aliunde), assim compreendida como aquela em que a autoridade judiciária se utiliza de trechos de decisões anteriores ou das alegações con­ tidas na representação da autoridade policial, no requerimento do órgão do Ministério Público, do querelante, do assistente, ou até mesmo do defensor. Grande parte da doutrina posiciona-se contra­ riamente à motivação per relationem, por nela não haver explicitação, por parte do Magistrado, das suas razões de decidir, não bastando o reenvio à justifica­ ção contida na manifestação de uma das partes ou, até mesmo, da autoridade policial, o que afetaria até mes­ mo a própria imparcialidade da decisão, porquanto não é certo que as razões do provimento jurisdicional sejam dadas por uma das partes.441

No entanto, na visão dos Tribunais, tem-se ad­ mitido a possibilidade de o juiz adotar como funda­ mento de sua decisão as alegações das partes, desde que nelas haja argumentos suficientes que autorizem a decretação da prisão preventiva, sendo desneces­ sária, inclusive, a sua reprodução nos mesmos au­ tos.442 A nosso juízo, em homenagem à eficiência, 440. Nessa linha: GRINOVER, Ada Pellegrini, et alii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 274-275. 441. É nesse sentido a lição de Antônio Magalhães Gomes Filho. Op.

cit. p. 221. 442. STJ, 5a Turma, HC 29.293/SC, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 10/05/2004 p. 312. No mesmo sentido: STJ, 6a Turma, HC 31.015/SP, Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 19/05/2005, DJ 20/03/2006, p. 355; STJ, 5a Turma, HC 84.262/SP, Relatora Ministra Jane Silva, DJ 22/10/2007 p. 336; STJ, 6a Turma, HC 25.352/SC, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 20/05/2003, DJ 30/06/2003, p. 318. Na mesma linha, entendeu a 1a Turma do Supremo

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não há por que fecharmos as portas de maneira pe­ remptória à possibilidade de utilização da técnica da fundamentação per relationem no âmbito processual penal, desde que não tenha havido arguição de fato novo, a peça processual à qual se reporta a decisão esteja substancialmente fundamentada, e que tal peça conste dos autos do processo sob julgamento e que as partes a ela tenham acesso.443

10. REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA São válidos aqui os mesmos comentários feitos em relação ao art. 282, §5°, do CPP, com redação determinada pela Lei n. 13.964/19, constantes do Capítulo I (“Das premissas fundamentais e aspectos introdutórios ”) deste Título, mas precisamente do item 5.6. (“Revogabilidade e/ou substitutividade das medidas cautelares”).

11. OBRIGATORIEDADE DE REVISÃO PERIÓDI­ CA DA NECESSIDADE DA MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA A CADA 90 (NOVENTA) DIAS Apesar de a Lei n° 12.403/11 não ter previsto qual­ quer dispositivo expresso quanto ao controle perma­ nente da subsistência das condições de aplicabilidade das medidas cautelares pessoais por parte da autori­ dade judiciária, especial atenção deve ser dispensada à Resolução Conjunta n° 1 do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Públi­ co, de 29 de setembro de 2009, que foi editada com o objetivo de institucionalizar mecanismos de revisão periódica das prisões provisórias e definitivas. De acor­ do com o art. Io da referida Resolução, as Unidades do Poder Judiciário e do Ministério Público, com compe­ tência em matéria criminal, infracional e de execução penal, implantarão mecanismos que permitam, com periodicidade mínima anual, a revisão da legalidade da manutenção das prisões provisórias e definitivas, das medidas de segurança e das internações de adoles­ centes em conflito com a lei. Especificamente quanto à prisão provisória, a Resolução estabelece que a revisão consistirá na reavaliação de sua duração e dos requisi­ tos que a ensejaram (art. 2o).444 que, muito embora o sucinto decreto de prisão preventiva tivesse ado­ tado como fundamentação o requerimento do Ministério Público, sem, entretanto, transcrevê-lo, a constrição cautelar teria sido baseada em fatos concretos, portanto, em conformidade com o disposto no art. 312

do CPP. (STF, 1a Turma, HC 102.864/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 03/08/2010, DJe 173 16/09/2010). 443. Nesse exato contexto, referindo-se, porém, ao processo civil: DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Op. cit. p. 343. 444. Consoante disposto no art. 3o da Resolução n. 66/2009 do CNJ, verificada a paralisação por mais de três meses dos inquéritos e processos, com indiciado ou réu preso, deverá a Secretaria ou o Cartório encaminhar os autos imediatamente à conclusão do juiz para que sejam examinados.

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Daí a importância da Lei n° 12.714/12, que passou a dispor sobre um sistema informatizado de acompanhamento da execução das penas, das prisões cautelares e das medidas de segurança, cujos dados são acompanhados pelo magistrado, pelo re­ presentante do Ministério Público e pelo defensor e estão disponíveis à pessoa presa ou custodiada. Por força do art. 2o da Lei n° 12.714/12, tal sistema deve conter o registro dos seguintes dados e informações: I - nome, filiação, data de nascimento e sexo; II data da prisão ou da internação; III - comunicação da prisão à família e ao defensor; IV - tipo penal e pena em abstrato; V - tempo de condenação ou da medida aplicada; VI - dias de trabalho ou estudo; VII - dias remidos; VIII - atestado de comporta­ mento carcerário expedido pelo diretor do estabe­ lecimento prisional; IX - faltas graves; X - exame de cessação de periculosidade, no caso de medida de segurança; e XI - utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado. Consoan­ te disposto no art. 4o da referida Lei, esse sistema informatizado deve conter ferramentas que: I - in­ formem as datas estipuladas para: a) conclusão do inquérito; b) oferecimento da denúncia; c) obtenção da progressão de regime; d) concessão do livramen­ to condicional; e) realização do exame de cessação de periculosidade; e f) enquadramento nas hipóteses de indulto ou de comutação de pena; II - calculem a remição da pena; e III - identifiquem a existência de outros processos em que tenha sido determinada a prisão do réu ou acusado. Aliás, segundo o art. 4o, § Io, da Lei n° 12.714/12, as datas mencionadas no inciso I do art. 4o devem ser informadas tem­ pestiva e automaticamente, por aviso eletrônico, ao Ministério Público, ao Defensor e ao magistrado responsável pela investigação criminal, processo penal ou execução da pena ou cumprimento da medida de segurança, a fim de que possa analisar o cumprimento das condições legalmente previstas para soltura ou concessão de outros benefícios à pessoa presa ou custodiada. Mais recentemente, porém, o Pacote Anticrime conferiu nova redação ao parágrafo único do art. 316 do CPP, que passou a dispor que, uma vez de­ cretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fun­ damentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Sem embargo de o novel dispositivo estar inse­ rido no Capítulo que versa sobre a prisão preventiva, não há por que não interpretá-lo extensivamente para se entender que a verificação com periodici­ dade mínima trimestral deve abranger não só as

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

prisões preventivas, como todas as demais medidas cautelares (CPP, arts. 319 e 320).

Noutro giro, revela-se indevido pretender res­ tringir a aplicação do preceito apenas às hipóteses de prisões preventivas que forem redecretadas, sob o argumento de que o parágrafo único deve ser in­ terpretado sistematicamente à luz do caput do art. 316 do CPP, que trata exatamente dessa possibi­ lidade de nova decretação da medida extrema, se sobrevierem razões que a justifiquem. Ora, não há nenhum critério lógico capaz de justificar tamanha desigualdade. É dizer, para aquele que teve sua pri­ são preventiva decretada novamente, recairia sobre o juiz competente a obrigação de revisar a necessi­ dade da manutenção da medida a cada 90 (noven­ ta) dias, ao passo que, para aquele cuja preventiva foi decretada inicialmente, não haveria semelhante obrigação. Enfim, por mais que o comando norma­ tivo em questão tenha sido introduzido como um parágrafo único do art. 316 do CPP, o mais correto e justo é interpretá-lo como verdadeira norma ge­ ral em relação às medidas cautelares pessoais, que, por tal motivo, e até de modo a se evitar discussões inócuas, deveria ter sido introduzido pelo Pacote Anticrime em um dos parágrafos do art. 282 do CPP. Sem embargo da falta de técnica do legislador, algo tão recorrente, aliás, nas alterações produzi­ das pela Lei n. 13.964/19, daí não se pode, todavia, buscar uma espécie de interpretação “topográfica” de modo a se negar eficácia e abrangência ao novel dispositivo.

11.1. Juízo obrigado a revisar a necessidade de manutenção da prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias Ao fazer referência à obrigatoriedade de revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias, o art. 316, parágrafo único, do CPP, faz referência explícita ao “órgão emissor da decisão”. Isso, todavia, não autoriza a utilização de interpretação gramatical - e literal - para fins de se concluir, equivocadamente, que a obrigação sob comento recai apenas sobre o juiz (ou Tribu­ nal) que decretar a prisão preventiva, sob pena de se desvirtuar a própria ratio essendi do dispositivo, que, como exposto anteriormente, vem ao encontro da natureza provisória de toda e qualquer medida cautelar. Logo, independentemente de o processo estar tramitando no primeiro ou segundo grau de jurisdição, ou até mesmo nos Tribunais Superiores, subsiste a obrigatoriedade de revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva.

Quanto ao juízo competente para fazê-lo, é fácil deduzir que, pelo menos enquanto o processo esti­ ver em tramitação no Io grau de jurisdição, caberá ao órgão emissor da decisão, in casu, ao juiz da ins­ trução e julgamento, a competência para reavaliar a necessidade de manutenção da medida a cada 90 dias. A questão se torna mais interessante quando cogitamos da possibilidade de, a despeito de a pri­ são ter sido decretada por tal magistrado, encon­ trar-se o feito perante o Tribunal de 2a instância, aguardando, por exemplo, o julgamento de eventual apelação. Nesse caso, qual seria o juízo competente para reavaliar a necessidade de manutenção da pri­ são? De modo a responder a esse questionamento, reputamos necessário conjugar o art. 316, parágra­ fo único, do CPP, com a ideia de esgotamento de instância constante do CPC (art. 494), que dispõe que publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la para corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo, ou por meio de embargos de declaração. Destarte, na even­ tualidade de um magistrado de Ia instância ter de­ cretado a prisão preventiva do acusado por ocasião da sentença condenatória, com base, por exemplo, na garantia de aplicação da lei penal, na eventuali­ dade de interposição de apelação pela Defesa, com subsequente remessa dos autos ao Tribunal, àquele juiz jamais poderá caber o reexame da necessidade de manutenção da medida, vez que esgotada sua jurisdição. Caberá, pois, ao Relator do recurso o dever de reavaliar a necessidade de manutenção da medida, o que deverá ser feito dentro de 90 (no­ venta) dias, contados da custódia do indivíduo, sob pena de tornar a prisão ilegal. É exatamente nesse sentido, aliás, o Enunciado n. 19 da I Jornada de Direito e Processo Penal do Centro de Estudos Ju­ diciários do Conselho da Justiça Federal (CJF/CEJ), realizada em agosto de 2020: “Cabe ao Tribunal no qual se encontra tramitando o feito em grau de re­ curso a reavaliação periódica da situação prisional do acusado, em atenção ao parágrafo único do art. 316 do CPP, mesmo que a ordem de prisão tenha sido decretada pelo magistrado de primeiro grau”. Em sentido diverso, porém, há precedentes de ambas as Turmas Criminais do STJ no sentido de que a obrigação de revisar, a cada 90 (noventa) dias, a necessidade de se manter a custódia cautelar, é imposta apenas ao juiz ou tribunal que decretar a prisão preventiva. Consoante se infere da literalidade da norma a obrigação de revisar, no prazo assina­ lado, a necessidade de se manter a custódia cautelar é imposta apenas ao juiz ou tribunal que decretar a prisão preventiva. Com efeito, a Lei nova atribui ao “órgão emissor da decisão” - em referência expressa

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à decisão que decreta a prisão preventiva - o dever de reavaliá-la. A inovação legislativa se apresenta como uma forma de evitar o prolongamento da medida cautelar extrema, por prazo indetermina­ do, sem formação da culpa. Daí o dever de ofício de o juiz ou o tribunal processantes declinarem fundamentos relevantes para manter a segregação provisória. No entanto, depois de exercido o contra­ ditório e a ampla defesa, com a prolação da sentença penal condenatória, a mesma Lei Processual Penal prevê que “O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de apelação que vier a ser interposta” (CPP, art. 387, §1°), a partir de outra perspectiva acerca da culpa do réu e da necessidade da custódia cautelar. Pretender o intérprete da Lei nova que essa obrigação - de revisar, de ofício, os fundamentos da prisão preventiva, no exíguo prazo de noventa dias, e em períodos sucessivos - seja estendida por toda a cadeia recursal, impondo aos tribunais (todos abarrotados de recursos e de habeas corpus) tarefa desarrazoada ou, quiçá, inexequível, sob pena de tornar a prisão preventiva “ilegal”, data maxima venia, é o mesmo que permitir uma contracautela, de modo indiscriminado, impedindo o Poder Judiciário de zelar pelos interesses da perse­ cução criminal e, em última análise, da sociedade.445

11.2. Consequências decorrentes da inobser­ vância do prazo nonagesimal Ante a nova regra introduzida no art. 316, pa­ rágrafo único, do CPP, o decurso do prazo de 90 (noventa) dias sem qualquer manifestação da auto­ ridade judiciária competente acerca da necessidade de manutenção da medida cautelar em questão acar­ retará, de per si, o reconhecimento da sua ilegalida­ de. É dizer, o transcurso desse prazo in albis acarre­ tará a ilegalidade da prisão. Não se pode, portanto, condicionar o reconhecimento dessa ilegalidade à avaliação do magistrado competente, sob pena de se tornar letra morta o novo regramento introduzido pela Lei n. 13.964/19, o qual, nesse ponto, é muito claro ao afirmar que o órgão emissor da decisão de­ verá revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. Em sentido diverso, eis o teor do Enunciado n. 35 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais 445. Nessa linha: STJ, 6a Turma, HC 589.544/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 08.09.2020, DJe 22.09.2020; STJ, 5aTurma, AgRg no HC 569.701/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 17/06/2020; STJ, 5aTurma, AgRg no HC 612.818/ SP, Rel. Min. Joel llan Paciornik,j. 22.09.2020.

dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM): “O es­ gotamento do prazo previsto no parágrafo único do art. 316 não gera direito ao preso de ser posto imediatamente em liberdade, mas direito ao reexame dos pressupostos fáticos da prisão preventiva. A eventual ilegalidade da prisão por transcurso do prazo não é automática, devendo ser avaliada judicialmente”. A controvérsia foi levada à apreciação do Ple­ nário do Supremo Tribunal Federal no rumoroso caso de “André do Rap”, apontado como um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC), que permaneceu foragido por 5 (cinco) anos, e que foi condenado por tráfico internacional de 4 (quatro) toneladas de cocaína à pena de 10 anos, 2 meses e 15 dias em regime inicial fechado. Por meio de medida liminar concedida pelo Min. Marco Aurélio nos autos do HC 191.836/SP (j. 02.10.2020), deter­ minou-se a expedição de alvará de soltura em favor do referido indivíduo, com a mera advertência da “necessidade de permanecer em sua residência, de informar possível transferência e de adotar postura que se aguarda de cidadão integrado à sociedade”. Na visão do Relator, o preso, sem culpa formada, desde o dia 15 de dezembro de 2019, teve sua cus­ tódia mantida, em 25 de junho de 2020, no julga­ mento da apelação, sem que houvesse, na sequência, nenhuma decisão judicial posterior ratificando a indispensabilidade da medida, em flagrante desres­ peito à regra do art. 316, parágrafo único, do CPP. Um dia depois, André do Rap deixou a prisão de Presidente Venceslau, tomando rumo ignorado. Na mesma data, de modo a se evitar grave lesão à or­ dem e à segurança pública, o Min. Luiz Fux, então no plantão, suspendeu os efeitos da medida liminar proferida nos autos do HC 191.836 até o julgamento do writ pelo órgão colegiado competente e deter­ minou a imediata prisão de “André do Rap”, o qual, todavia, não foi mais localizado, havendo a suspeita de que teria se evadido para o Paraguai. Com o objetivo de referendar (ou não) a decisão do Min. Fux que havia determinado a suspensão da liminar concedida nos autos do HC 191.836, a maté­ ria foi levada, então, à apreciação do Plenário do Su­ premo Tribunal Federal, que concluiu, por maioria - houve um único voto vencido do Min. Marco Au­ rélio -, que a inobservância do prazo nonagesimal do parágrafo único do art. 316 do CPP não implica automática revogação da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legali­ dade e a atualidade de seus fundamentos. Na visão da Corte, o dispositivo em questão insere-se em um

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

sistema a ser interpretado harmonicamente, sob pena de se produzirem incongruências deletérias à processualística e à efetividade da ordem penal. A exegese que se impõe é a que, à luz do caput do artigo, extrai-se a regra de que, para a revogação da prisão preventiva, o juiz deve fundamentar a decisão na insubsistência dos motivos que determinaram sua decretação, e não no mero decurso de prazos processuais. Devem ser rechadas interpretações que associam, automaticamente, o excesso de prazo ao constrangimento ilegal da liberdade, tendo em vista: a) o critério de razoabilidade concreta da duração do processo, aferido à luz da complexidade de cada caso, considerados os recursos interpostos, a plurali­ dade de réus, crimes, testemunhas a serem ouvidas, provas periciais a serem produzidas, etc.; e b) o de­ ver de motivação das decisões judiciais (CF, art. 93, X), que devem sempre se reportar às circunstâncias específicas dos casos concretos submetidos a julga­ mento, e não apenas aos textos abstratos das leis. À luz desta compreensão jurisprudencial, o disposto no art. 316, parágrafo único, do CPP não conduz à revogação automática da prisão preventiva. Ao esta­ belecer que “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tor­ nar a prisão ilegal”, o dispositivo não determina a revogação da prisão preventiva, mas a necessidade de fundamentá-la periodicamente. Mais ainda: o parágrafo único do art. 316 não fala em prorrogação da prisão preventiva, não determina a renovação do título cautelar. Apenas dispõe sobre a necessidade de revisão dos fundamentos da sua manutenção. Logo, não se cuida de prazo prisional, mas prazo fixado para a prolação de decisão judicial. Portanto, a ilegalidade decorrente da falta de revisão a cada 90 dias não produz o efeito automático da soltura, por­ quanto esta, à luz do caput do dispositivo, somente é possível mediante decisão fundamentada do órgão julgador, no sentido da ausência dos motivos autorizadores da cautela, e não do mero transcorrer do tempo.446 446. STF, Pleno, SL 1.395 MC Ref-SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 14.10.2020. A 5a Turma do STJ também tem precedentes no sentido de que não se trata, o prazo de 90 dias previsto no parágrafo único do art. 316 do CPP, incluído pelo Pacote Anticrime, de termo peremptório, daí por que eventual atraso na execução deste ato não implica automático reconhecimento da ilega­ lidade da prisão, tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade. A propósito: STJ, 5a Turma, AgRg nos EDcl no HC 605.590MT, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 06.10.2020, DJe 15.10.2020.

12. APRESENTAÇÃO ESPONTÂNEA DO ACUSADO Como visto anteriormente, a apresentação es­ pontânea continua figurando como causa impeditiva da prisão em flagrante. Afinal, não tem cabimento prender em flagrante o agente que se entrega à po­ lícia, que não o perseguia, e confessa o crime. Ora, quando o agente se apresenta espontaneamente, não há flagrante próprio, impróprio, nem tampouco pre­ sumido (CPP, art. 302,1, II, III e IV), desautorizando sua prisão em flagrante. Obviamente, caso estejam presentes os pressupostos dos arts. 312e313do CPP, nada impede a decretação da prisão preventiva pela autoridade judiciária competente, caso se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP.

Nesse contexto, a apresentação espontânea de acusado primário, com bons antecedentes, inclusive com a entrega de passaporte, denota, pelo menos a princípio, que o agente não pretende fugir do distrito da culpa, desautorizando, por conseguin­ te, eventual decretação de sua segregação cautelar. Obviamente, se o magistrado perceber que o agente utiliza a apresentação espontânea apenas como um subterfúgio para escapar da indispensável segrega­ ção cautelar, deve o magistrado decretá-la, apontan­ do os fundamentos que a autorizam.447 No âmbito processual penal militar, compare­ cendo espontaneamente o indiciado ou acusado, tomar-se-ão por termo as declarações que fizer. Se o comparecimento não se der perante a autoridade judiciária, a esta serão apresentados o termo e o indiciado ou acusado, para que delibere acerca da prisão preventiva ou de outra medida que entender cabível (CPPM, art. 262, caput). Com base no art. 3o do CPP, pensamos que o art. 262 do CPPM pos­ sa ser aplicado subsidiariamente ao processo penal comum.

13. PRISÃO PREVENTIVA NO CÓDIGO DE PRO­ CESSO PENAL MILITAR Segundo o art. 254 do Código de Processo Pe­ nal Militar, mediante representação da autoridade 447. No sentido de que não há necessidade de decretação da prisão cautelar de acusado que se apresenta espontaneamente, pouco tem­ po depois dos fatos, e um dia após o decreto da sua prisão preventiva, demonstrando que pretende colaborar com a administração da justiça, inclusive confessando a prática do crime, e fornecendo a sua versão: STJ, 6a Turma, HC 71.708/SE, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 05/11/2007 p. 378). No sentido de que a fuga, como causa justificadora da necessidade da prisão cautelar, deve ser analisada caso a caso, de modo a se afastar a interpretação literal do artigo 317 do Código de Processo Penal, em sua antiga redação: STF, 1a Turma, HC 87.425/PE, Rei. Min. Eros Grau, j. 14/03/2006, DJ 05/05/2006. E também: STF, HC 85.453/

AL, Rei. Min. Eros Grau, DJ 10/06/2005 p. 51.

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encarregada do inquérito policial militar ou reque­ rimento do Ministério Público, a prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça em qualquer fase do inquérito ou do proces­ so, desde que haja prova do fato delituoso e indícios suficientes de autoria. Com as alterações advindas da EC n° 45/04, não se fala mais em Juiz-Auditor na Justiça Militar Estadual, mas sim em Juiz de Direito do Juízo Mili­ tar (CF, art. 125, § 5o). Assim, caso a prisão preven­ tiva seja decretada antes do início do processo,448 a competência é do Juiz Federal da Justiça Militar (ou, na Justiça Militar Estadual, do Juiz de Direito do Juí­ zo Militar); caso a prisão preventiva seja decretada durante o curso do processo, a competência será monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar da União, em se tratando de crimes militares praticados por civis e por militares, quando estes forem acusa­ dos juntamente com aqueles no mesmo processo, e pelo respectivo Conselho de Justiça, nos crimes militares praticados exclusivamente por militares federais (Lei n. 8.457/92, art. 30,1-B, incluído pela Lei n. 13.774/18).

Com a nova redação do art. 125, § 5o, da Cons­ tituição Federal, a competência para processar e julgar crimes militares cometidos contra civis na Justiça Militar Estadual não é mais do Conselho de Justiça, mas sim do juiz de direito, singularmente. Logo, se a prisão preventiva estiver relacionada a crime militar cometido contra civil, a competência para sua decretação na Justiça Militar Estadual é do Juiz de Direito, singularmente, seja na fase pré-pro­ cessual, seja na fase processual. Na segunda instância, a decretação da prisão preventiva compete ao relator (CPPM, art. 254, parágrafo único). Perceba-se que, na Justiça Mili­ tar da União, o órgão jurisdicional que funciona como juízo de 2o grau é o Superior Tribunal Militar (STM), enquanto que, na Justiça Militar Estadual, é o Tribunal de Justiça Militar, nos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, ou o Tribunal de Justiça, nos demais estados da federação. As hipóteses que autorizam a prisão preventiva no âmbito processual penal militar estão listadas no art. 255 do CPPM: a) garantia da ordem pública; b) conveniência da instrução criminal; c) pericu­ losidade do indiciado ou acusado; d) segurança da aplicação da lei penal; e) exigência da manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina 448. Segundo o art. 35 do CPPM, o processo inicia-se com o recebi­ mento da denúncia pelo juiz, efetiva-se com a citação do acusado e extingue-se no momento em que a sentença definitiva se torna irrecorrível, quer resolva o mérito, quer não.

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Renato Brasileiro de Lima militares, quando ficarem ameaçados ou atingidos com a liberdade do indiciado ou acusado.449 Apesar de a Lei n° 12.403/11 ter silenciado acerca da possibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão ao processo penal militar, é perfeitamente possível que tais medidas sejam usadas no âmbito castrense, caso o magistra­ do entenda que são necessárias para a aplicação da lei penal, para a investigação ou instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais. Isso porque o próprio Código de Processo Penal Militar admite a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal Comum. Além disso, como será visto mais abaixo, nada im­ pede a utilização do denominado poder geral de cautela no processo penal.

Enquanto o Código de Processo Penal comum dispõe acerca dos crimes que admitem a prisão pre­ ventiva (art. 313), o CPPM silencia acerca do assun­ to. Logo, pelo menos em tese, é cabível a decretação da prisão preventiva em crimes punidos com pena de reclusão ou detenção.

Apesar de não haver qualquer restrição expres­ sa no CPPM à decretação da prisão preventiva em relação a crimes culposos, não se pode olvidar do disposto no art. 270, parágrafo único, alínea “a”, do CPPM, que afirma que o indiciado ou acusado livrar-se-á solto no caso de infração culposa, salvo se compreendida entre as previstas no Livro I, Título I, da Parte Especial, do Código Penal Militar - são 3 (três) os crimes ali previstos que admitem a moda­ lidade culposa: consecução de notícia, informação ou documento para fim de espionagem (CPM, art. 143, § 2o), revelação de notícia, informação ou do­ cumento, cujo sigilo seja de interesse da segurança externa do Brasil (CPM, art. 144, § 3°) e turbação de objeto ou documento concernente à segurança externa do Brasil (CPM, art. 145, § 2o). Destarte, se o art. 270, parágrafo único, alínea “a”, do CPPM, dispõe que o indivíduo se livra solto em crimes culposos, forçoso é concluir que não cabe prisão preventiva em relação a tais delitos, salvo em relação às infrações culposas que o próprio disposi­ tivo ressalva: art. 143, § 2o, art. 144, § 3°, e art. 145, § 2o, todos do Código Penal Militar.

Conforme dispõe o art. 258 do CPPM, a pri­ são preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar, pelas provas constantes dos autos, ter o agente praticado o fato nas condições dos arts. 449. Admitindo a decretação da prisão preventiva a fim de assegurar a manutenção dos princípios da hierarquia e disciplina militares: STJ, 6a Turma, HC 95.345/MS, Rel. Min. Jane Silva, DJe 12/05/2008.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

35 (erro de direito), 38 (coação moral irresistível e obediência hierárquica), 39 (estado de necessidade excludente da culpabilidade), 40 (coação física ou material) e 42 (excludentes de ilicitude).450 Segundo o art. 516, “h”, do CPPM, caberá re­ curso em sentido estrito da decisão que decretar, ou não, a prisão preventiva, ou revogá-la. Diferencia-se, portanto, do art. 581, inciso V, do CPP, que só pre­ vê Recurso em sentido estrito contra a decisão que indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la. Em que pese tal previsão, acreditamos que, em favor do acusado, apresenta-se o habeas corpus como instrumento muito mais ágil para a tutela da liberdade de locomoção, devendo, por conseguinte, ser usado como substitutivo do recurso em sentido estrito.

CAPÍTULO VI

DA PRISÃO TEMPORÁRIA 1. ORIGEM A Lei n° 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que instituiu a prisão temporária, foi criada com o objetivo de assegurar a eficácia das investigações criminais quanto a alguns crimes graves. Outra preocupação era acabar com a denominada prisão para averiguações. A propósito, consta da própria Exposição de Motivos da referida Lei que “a pri­ são só pode ser executada depois da expedição do mandado judicial. Com isso, procura impedir que a representação policial se transforme em simples comunicação ao Poder Judiciário”. Como se vê, o principal objetivo da criação da prisão temporária foi o de pôr fim à famigerada prisão para averiguações, que consiste no arrebatamento de pessoas pelos órgãos de investigação para aferir a vinculação das mesmas a uma infração, ou para investigar a sua vida pregressa, independen­ temente de situação de flagrância ou de prévia au­ torização judicial. Essa prisão para averiguação é de todo ilegal, caracterizando manifesto abuso de autoridade, nos termos do art. 9o, caput, da Lei n. 13.869/19. 450. Além das tradicionais causas excludentes da ilicitude do Código Penal comum (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumpri­ mento do dever legal e exercício regular de direito), dispõe o art. 42, parágrafo único, do CPM, que não há crime quando o comandante de navio, aeronave ou praça de guerra, na iminência de perigo ou grave calamidade, compele os subalternos, por meios violentos, a executar serviços e manobras urgentes, para salvar a unidade ou vidas, ou evitar

o desânimo, o terror, a desordem, a rendição, a revolta ou o saque.

A prisão temporária, portanto, não se confun­ de com a prisão para averiguações. Como destaca Diaulas Costa Ribeiro, “a prisão temporária é mo­ dalidade de prisão para investigação, porque parte de um fato criminoso, delimitado no tempo e no espaço, para uma pessoa certa e determinada. Ao contrário, a prisão para averiguações desenha-se sob um ponto de vista absolutamente diferente, eis que por meio dela as autoridades prendem, alea­ toriamente, pessoas, para depois descobrir crimes que não estavam sequer investigando ou para apu­ rar crimes nos quais essas pessoas nem ao menos figuravam como suspeitas, caracterizando o que vulgarmente se conhece como operação arrastão’, realizada em áreas de contingente criminoso e cujo único critério utilizado para limitar o direito de ir e vir é a simples presença nesses locais. Somente após a implementação de uma prisão, neste último sentido discorrido, é que as pessoas serão conduzi­ das a uma Delegacia e, daí então, se principiará por averiguar eventual envolvimento delas com alguma infração penal, o que é bem diferente de prender para investigar um crime já conhecido e depois de, razoavelmente, consolidada e definida a suspeição de alguém”.451 A Lei n° 7.960/89, que instituiu a prisão tempo­ rária, foi resultado da conversão da Medida Provi­ sória n° 111, de 24 de novembro de 1989. Para parte da doutrina, isso macularia a lei com vício formal de inconstitucionalidade, qual seja, a iniciativa da matéria, eis que o Executivo, por meio de Medi­ da Provisória, teria legislado sobre Processo Penal e Direito Penal, matérias que são da competência privativa da União (CF, art. 22, inciso I) e, portan­ to, deveríam ser tratadas pelo Congresso Nacional. Nessa linha, Alberto Silva Franco assevera que, em matéria de liberdades pessoais, a iniciativa de leis é do Poder Legislativo, não sendo admitido que o Poder Executivo por meio de Medida Provisória se intrometa em área que a ele não é permitido.452

Tais argumentos não foram ignorados pelo Ministro Celso de Mello, quando deferiu a liminar postulada na ADI n° 162, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil questio­ nando a validade da Medida Provisória n° 111/89. Segundo o Ministro, a proteção constitucional da liberdade tem, no princípio da reserva absoluta de lei - e de lei formal - um de seus instrumentos 451. Prisão temporária - Lei n° 7.960, de 21.12.89 - um breve estudo sistemático e comparado. Revista dos Tribunais, n° 707, p. 273, set. 1994. 452. FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 4a ed. Revista dos Tri­ bunais, São Paulo: 2000, p. 357-358. Paulo Rangel comunga do mesmo

entendimento: op. cit. p. 667.

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jurídicos mais importantes. A cláusula da reserva absoluta de Lei confere um inigualável grau de in­ tensidade jurídica à tutela constitucional dispensada à liberdade individual, pois condiciona a legítima imposição de restrições ao status libertatis da pessoa à prévia edição de um ato legislativo em sentido formal. Perante a composição plena da Suprema Corte, todavia, tal tese acabou não prevalecendo, decidindo o Supremo, por maioria de votos (8 a 2), que a ADI resultou prejudicada em virtude da perda do objeto, por considerar que a Lei 7.960/1989 não foi originada da conversão da Medida Provisória 111/1989.453 Posteriormente, sobreveio a Emenda Consti­ tucional n° 32/2001, a qual deu nova redação ao art. 62 da Constituição Federal, impedindo que fato análogo volte a ocorrer, na medida em que foi ve­ dada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito penal, processual penal e processual civil (CF, art. 62, § Io, inciso I, “b”).

2. CONCEITO DE PRISÃO TEMPORÁRIA Cuida-se de espécie de prisão cautelar decretada pela autoridade judiciária competente durante a fase preliminar de investigações, com prazo preestabelecido de duração, quando a privação da liberdade de locomoção do indivíduo for indispensável para a ob­ tenção de elementos de informação quanto à autoria e materialidade das infrações penais mencionadas no art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89, assim como em relação aos crimes hediondos e equiparados (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o), viabilizando a instauração da persecutio criminis in judicio. Como espécie de me­ dida cautelar, visa assegurar a eficácia das investiga­ ções - tutela-meio -, para, em momento posterior, fornecer elementos informativos capazes de justificar o oferecimento de uma denúncia, fornecendo jus­ ta causa para a instauração de um processo penal, e, enfim, garantir eventual sentença condenatória - tutela-fim.454

3. REQUISITOS De acordo com o art. Io da Lei n° 7.960/89, caberá prisão temporária:

I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;

II - quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao es­ clarecimento de sua identidade;

III - quando houver fundadas razões, de acor­ do com qualquer prova admitida na legislação pe­ nal, de autoria ou participação do indiciado nos se­ guintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2o); b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ Io e 2°); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ Io, 2° e 3o); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2o); e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ Io, 2o e 3°); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);455 h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);456 i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § Io); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); 1) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3o da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de suas formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);457 o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986); p) crimes previstos na Lei de Terrorismo (incluído pela Lei n° 13.260/16). Diverge a doutrina quanto aos requisitos para a decretação da prisão temporária. São 05 (cinco) as correntes sobre o tema: a. Ia Corrente: basta a presença de qualquer um dos incisos. Esta primeira corrente tem funda­ mento em regra básica da hermenêutica, segundo a qual incisos não se comunicam com incisos, mas somente com o parágrafo ou com o caput.458 Com a devida vênia, esse entendimento nos conduz a uma interpretação absolutamente descontextualizada da Constituição Federal. Ora, fosse isso possível, onde estaria o fundamento cautelar da prisão tem­ porária? Meras razões de autoria ou participação do indiciado em um dos crimes ali elencados au­ torizaria a privação cautelar da liberdade do indi­ víduo? O que dizer, então, quanto à possibilidade de se prender alguém simplesmente por não ter 455. Vide abaixo comentário acerca da Lei n° 12.015/09, que revogou o art. 214 do Código Penal. 456. Vide abaixo comentário acerca da Lei n° 11.106/05, que revogou o art. 219 do Código Penal. 457. Vide comentário abaixo quanto à revogação da Lei n° 6.368/76 pela Lei n° 11.343/06.

458. É essa a posição de Diaulas Costa Ribeiro,"os incisos representam 453. STF, Pleno, AD1162/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 27/08/1993 p. 1. 454. Nesse contexto: FREITAS, Jayme Walmer. Prisão temporária. 2a ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 102.

unidades autônomas entre si, vinculadas ao preceito do parágrafo ou do artigo". (Prisão temporária - Lei n° 7.960/89, de 21.12.89 - um breve estudo sistemático e comparado. Revista dos Tribunais, n° 707, p. 272, set. 1994).

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residência fixa? Interpretação nesse sentido aten­ taria contra o princípio da presunção de inocência, transformando a prisão temporária em inequívoca forma de execução antecipada da pena; b. 2a corrente: é necessária a presença cumu­ lativa dos três incisos. Com a devida vênia, fossem os incisos considerados cumulativamente - segun­ da corrente -, a prisão temporária praticamente desaparecería do cenário processual. Com efeito, tornar-se-ia muito difícil identificar-se uma situa­ ção em que alguém cometesse um dos delitos pre­ vistos no inciso III, não possuísse residência fixa ou elementos necessários para esclarecer sua iden­ tidade, aliada à imprescindibilidade de sua segre­ gação para as investigações;459

c. 3a corrente: além do preenchimento dos três incisos, é necessária a combinação com uma das hipóteses que autoriza a prisão preventiva. A terceira corrente é sustentada por Vicente Greco Filho. Após analisar os incisos I, II e III, asseve­ ra o autor que, aos requisitos cumulados da Lei n° 7.960/89 devem ser acrescidas as hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Segundo ele, “es­ sas hipóteses parecem ser puramente alternativas e destituídas de qualquer outro requisito. Todavia, assim não podem ser interpretadas. Apesar de ins­ tituírem uma presunção de necessidade da prisão, não teria cabimento a sua decretação se a situação demonstrasse cabalmente o contrário. É preciso, pois, combiná-las entre si e combiná-las com as hi­ póteses de prisão preventiva, ainda que em sentido inverso, somente para excluir a decretação”;460 d. 4a corrente (posição majoritária): o inciso III deverá estar sempre presente, seja combinado com o inciso I, seja combinado com o inciso II. De acordo com esse entendimento, com o objetivo de consertar a falta de técnica do legislador, somen­ te é possível decretar a prisão temporária quando houver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes listados no inciso III do art. Io (ou hediondos e equiparados), associada à imprescindibilidade da segregação cautelar para a investigação policial ou à situação de ausência de residência certa ou identidade incontroversa.461* 459. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Co­

mentadas. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2006. p. 658.

460. Manual de processo penal. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 272/273.

461. SILVA JÚNIOR (Curso de direito processual penal: teoria (constitu­

cional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 837) observa que "a hipótese contemplada no inciso I (imprescindibilidade para as

Tendo em conta tratar-se a prisão temporária de espécie de prisão cautelar, conjugam-se, assim, seus pressupostos: í) fumus comissi delicti, previs­ to no inciso III; 2) periculum libertatis, previsto no inciso I ou no inciso II;462 e. 5a corrente (nossa posição): sempre serão necessários os incisos I e III, na medida em que o primeiro demonstra a necessidade da prisão (pe­ riculum libertatis) para o sucesso da investigação, sendo esta a razão primeira do instituto, e o ter­ ceiro demonstra o fumus comissi delicti. É essa, a nosso ver, a posição mais acertada, porquanto a combinação do inciso II com o inciso III não deve autorizar, por si só, a decretação da prisão tempo­ rária, na medida em que sempre será necessário se demonstrar a imprescindibilidade da adoção da medida para se assegurar a eficácia das investiga­ ções. É possível que determinado agente não tenha residência fixa e que, mesmo assim, sua prisão tem­ porária não seja necessária para o inquérito poli­ cial, pois este já se encontra concluído. Nesse caso, poder-se-ia até cogitar da possibilidade de decre­ tação de sua prisão preventiva, seja para garantir a aplicação da lei penal, a ordem pública ou econô­ mica, seja por conta da conveniência da instrução criminal, mas não de decretação da temporária.463

3.1. Da imprescindibilidade da prisão tempo­ rária para as investigações Acerca do primeiro requisito caracterizador do periculum libertatis (inciso I do art. Io da Lei n° 7.960/89), é indispensável a existência de prévia investigação (não necessariamente de um inqué­ rito policial), apresentando-se a privação cautelar da liberdade de locomoção do indivíduo como re­ curso indispensável para a colheita de elementos investigações do inquérito policial) compreende a que é prevista no inciso II (não ter o indiciado residência fixa ou não fornecer elementos

necessários ao esclarecimento de sua identidade), ambos da lei em es­

tudo. Ora, sendo a prisão temporária medida acautelatória a ser adotada ainda na fase pré-processual, tem-se que ela, para ser decretada, há de ser, necessariamente, imprescindível para as investigações do inquérito policial. Se ela não for necessária, não há por que limitar o direito de liberdade da pessoa". 462. É nesse sentido a posição de Antônio Scarance Fernandes (Op. cit. p. 308). Com raciocínio semelhante, GRINOVER, etalii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 278.

463. É essa a posição de Marcellus Polastri Lima (op. cit. p. 358). Na mesma linha, segundo Lanfredi (op. cit. p. 136), o inciso II do art. 1o não implica nem autoriza, estando sozinho e isolado, o particular e exigido periculum libertatis, se a ele não se associar a reivindicação de um bom termo das investigações criminais. No sentido de que a prisão temporá­ ria tem por única finalidade legítima a necessidade da custódia para as investigações: STF, 2a Turma, RHC 92.873/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa,

j. 12/08/2008, DJe 241 18/12/2008.

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de informação quanto à autoria e materialidade da conduta delituosa. Por meio de uma interpretação histórica, poder-se-ia chegar à conclusão de que o inquérito poli­ cial é peça indispensável para a decretação da prisão temporária. Explica-se: comparando-se o texto da medida provisória n° 111, de 24 de novembro de 1989, que deu origem à prisão temporária, com o texto definitivo da Lei n° 7.960/89, constata-se que o inciso I da medida provisória estabelecia que a prisão poderia ser decretada quando imprescindível para a ‘investigação criminal’, tendo o texto defini­ tivo da lei, todavia, restringido sua decretação as investigações do inquérito policial’.

No entanto, sendo o inquérito policial peça dis­ pensável ao oferecimento da peça acusatória, desde que a justa causa necessária à deflagração da ação penal esteja respaldada por outros elementos de convicção (CPP, art. 39, § 5o), não sendo a função investigatória uma atribuição exclusiva da Polícia Judiciária (CPP, art. 4o, parágrafo único), queremos crer que a existência de inquérito policial em an­ damento não é indispensável para a decretação da temporária. Há, sim, necessidade de que haja uma investigação preliminar em curso (v.g., comissão parlamentar de inquérito, procedimento investiga­ tório criminal presidido pelo órgão do Ministério Público, etc.), que demande a prisão do investigado para melhor apuração do fato delituoso.464

Impõe-se, pois, uma interpretação extensiva do art. Io, inciso I, da Lei n° 7.960/89, adequando-o à nova realidade investigatória.465 Deve a autoridade requerente demonstrar ao juiz o que faz ser considerado “imprescindível” o encarceramento do suspeito para elucidar o fato delituoso, como, por exemplo, a ocultação de pro­ vas, o aliciamento ou a ameaça às testemunhas, a impossibilidade de se proceder ao reconhecimento do acusado por se encontrar em local incerto, etc.466 464. TJSP - 4a C. - HC 275.316/3 - Rel. Passos de Freitas - JTJ - LEX 217/345.

465. Na mesma linha: Marcellus Polastri Lima (op. cit. p. 355) e tam­ bém Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi (op. cit. p. 126). Em sentido contrário: SAMPAIO JÚNIOR, José Herval; CALDAS NETO, Pedro Rodrigues. Manual

de prisão e soltura sob a ótica constitucional: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Método, 2007. p. 150. 466. Admitindo a prisão temporária de indivíduos foragidos que, em liberdade, estariam obstruindo a correta apuração de fatos gravíssimos: TRF 1a R. - 3aT. - HC 1998.01.00.048281-0 - Rel. Osmar Tognolo - DJU 29/09/1998. No sentido de que está caracterizado constrangimento ilegal à liberdade de locomoção se a prisão temporária for determinada tão somente para uma melhor apuração do envolvimento dos suspeitos, sem a demonstração concreta da imprescindibilidade da medida: STJ, 6a Turma,

RHC 20.410/RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 15/10/2009, DJe 09/11/2009.

Ao decretar a prisão temporária, deve o juiz ter sempre em mente o princípio da proporciona­ lidade, notadamente em seu segundo subprincípio, qual seja, o da necessidade, devendo se questio­ nar se não existe outra medida cautelar diversa da prisão menos gravosa. Em outras palavras, se uma busca e apreensão já se apresentar idônea a atingir o objetivo desejado, não se faz necessária uma prisão temporária; se a condução coercitiva do acusado para o reconhecimento pessoal já se apresentar apta a alcançar o fim almejado, não se afigura correto escolher medida mais gravosa consubstanciada na privação da liberdade de lo­ comoção do acusado; se uma das medidas cau­ telares diversas da prisão do art. 319 do CPP já for suficiente para tutelar as investigações, como, por exemplo, a proibição de manter contato com pessoa determinada, ou a suspensão do exercício de função pública, deve o magistrado se abster de decretar a prisão temporária.467 Impõe-se, portanto, interpretar extensivamente o art. 282, § 6o, e o art. 310, II, ambos do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, no sen­ tido de que, quando as medidas cautelares diversas da prisão se revelarem adequadas ou suficientes para tutelar as investigações, a prisão temporária não po­ derá ser decretada.

Prestando-se a prisão temporária a resguardar, tão somente, a integridade das investigações, for­ çoso é concluir que, uma vez recebida a denúncia, não mais subsiste o decreto de prisão temporária, devendo o denunciado ser colocado em liberdade, salvo se sua prisão preventiva for decretada. Pri­ são temporária, por conseguinte, somente na fase pré-processual.

3.2. Ausência de residência fixa e não forneci­ mento de elementos necessários ao esclareci­ mento da identidade do indiciado Não ter residência fixa tem sido entendido pela doutrina como sendo a ausência total de um ende­ reço onde possa o indiciado ser localizado.468 467. A propósito: "Incabível a prisão temporária de indiciado que possui residência fixa, ainda que em outra unidade da federação, for­ neceu os elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e já foi submetido a reconhecimento pela vítima. Se imprescindível sua presença aos atos da investigação, poderá, se não atender ao chamado da autoridade, ser determinada sua condução coercitiva, medida menos gravosa do que a prisão"(TJDF, 2aT. HC 2.758-3, Rel. Des. Getúlio Pinheiro, DJU de 22/04/1999). 468. STJ, 5aTurma, RHC 12.658/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 28/04/2003 p. 209. E ainda: STJ, 5aTurma, HC 75.488/SP, Rel. Min. Gilson

Dipp, DJ 29/06/2007 p. 683.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

De fato, alguém pode perambular sempre pelas mesmas ruas de uma cidade, em um estado de total miserabilidade, sem que isso importe em presunção de fuga. Daí ter concluído a Suprema Corte ser ilegal a decretação de prisão cautelar pelo simples fato de o agente não possuir residência fixa, decorrente de sua condição de morador de rua.469 Conquanto a lei se refira à figura do “indiciado”, como o inquérito policial não é elemento indispen­ sável à decretação da prisão temporária, forçoso é concluir que o indiciamento também não é requisito obrigatório para a decretação da medida cautelar. Na verdade, ao se referir ao “indiciado”, quis a lei demonstrar a necessidade da presença de uma li­ gação mínima de elementos de informação capazes de vincular alguém à prática de um fato delituoso.

Para Tourinho Filho, no caso de não ser a pri­ são imprescindível às investigações e ter apenas a finalidade de esclarecer a identidade do suspeito, uma simples notificação de comparecimento ao distrito policial para a identificação dactiloscópica é o bastante e assim não tem justificativa prender alguém por 5 (cinco) dias.470 Com efeito, desde a vigência da Lei n° 10.054/00, ora revogada pela Lei n° 12.037/09, não mais se jus­ tificava a prisão temporária por 05 (cinco) dias tão somente para a obtenção de elementos necessários ao esclarecimento da identidade do indiciado. Isso porque, com o advento da Lei n° 10.054/00, uma das hipóteses que autorizava a identificação cri­ minal se dava quando o indiciado ou acusado não comprovasse, em 48 (quarenta e oito) horas, sua identificação civil (Lei n° 10.054/00, art. 3o, inciso VI, revogado pela Lei n° 12.037/09). Ora, se a lei autorizava a identificação criminal nessa hipótese, não se justificava a adoção de meio mais gravoso (prisão temporária por 5 dias), em estrita observân­ cia ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo - subprincípio da necessidade. A nova lei de identificação criminal também permite a identifi­ cação criminal caso o indivíduo não se identifique civilmente (Lei n° 12.037/09, art. Io c/c art. 2o).

A custódia cautelar sob o argumento de que se destina a conhecer a identidade do indiciado só pode ser aceitável, portanto, no caso de fracasso das diligências policiais que devem ocorrer previamente e, mesmo assim, o tempo limite de cárcere temporá­ rio deve ser o estritamente necessário para submeter 469. STF, 2a Turma, HC 97.177, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 191

o indivíduo à identificação criminal, sem que seja necessário cumprir todo o prazo previsto na lei.

3.3. Fundadas razões de autoria ou participa­ ção do indiciado nos crimes listados no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89 e no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90 Prisão temporária decretada em relação a cri­ me que não esteja previsto no rol do inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89, bem como no tocante a crimes hediondos e equiparados (art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90), é completamente ilegal, devendo ser objeto de relaxamento. Assim, será ilegal, por exemplo, a prisão temporária por homicídio culpo­ so, estelionato, apropriação indébita, etc. Antes de verificarmos o rol taxativo de de­ litos que admitem a prisão temporária, convém analisarmos o significado da expressão fundadas razões, pressuposto inafastável para a segregação temporária.

Para Nucci, embora fossem elementos desejá­ veis, a prova da materialidade e indícios suficientes de autoria não são indispensáveis para a decreta­ ção da prisão temporária. Segundo o autor, a prisão temporária substitui, “para melhor, a antiga prisão para averiguação, pois há controle judicial da sua realização e das diligências policiais. No entanto, nem sempre é possível aguardar a formação da ma­ terialidade (prova da existência da infração penal) e a colheita de indícios suficientes de autoria para que se decrete a temporária. Ela é medida urgente, lastreada na conveniência da investigação policial, justamente para, prendendo legalmente um sus­ peito, conseguir formar, com rapidez, o conjunto probatório referente tanto à materialidade quanto à autoria. Aliás, se fossem exigíveis esses dois requisi­ tos (materialidade e indícios suficientes de autoria), não haveria necessidade da temporária. O delegado representaria pela preventiva, o juiz a decretaria e o promotor já oferecería denúncia. A prisão temporá­ ria tem a função de propiciar a colheita de provas, quando, em crimes graves, não há como atingi-las sem a detenção cautelar do suspeito”.471 Com a devida vênia, não podemos concordar com tal posição. A uma porque a prisão temporária não pode ser decretada em virtude da conveniência da investigação policial para prender um suspeito. Deve sim ser decretada quando a privação cautelar da liberdade de locomoção do investigado figurar como medida indispensável para o bom êxito das investigações. Como pondera com propriedade Luís

08/10/2009. 470. Da Prisão e da Liberdade Provisória. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, n° 7, julho/setembro, São Paulo: 1994, p. 80.

471. Op. Cit. p. 658/659.

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Geraldo SantAna Lanfredi, a prisão temporária “não deve ser utilizada como instrumento para facilitar o trabalho acometido à polícia, se não para viabilizar, imprescindivelmente, o prosseguimento das investi­ gações criminais, no sentido (e abrindo o caminho) da aquisição de provas, que não têm como serem alcançadas estando o indiciado em liberdade, e des­ de que sejam indispensáveis para a formalização da denúncia”.472 De mais a mais, da própria expressão utilizada pelo legislador no art. Io, III, da Lei n° 7.960/89 - de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal - depreende-se a necessidade de elementos indiciários de autoria ou de participação nos crimes ali enumerados. Em sede de restrição de liberda­ de pessoal, as fundadas razões de que trata a Lei 7.960/1989, e que bastam para justificar o decreto de prisão temporária, têm que ser algo muito mais coeso e convincente que uma simples suspeita. As fundadas razões têm que estar acompanhadas por dados objetivos que apontem para a conclusão de que o suspeito ou indiciado possa ser autor ou par­ tícipe em um dos crimes ali enumerados e em razão do que é requerida a sua prisão temporária, sendo ilegal e repudiável uma captura destinada a fazer nascer referidos indicativos.473

Em outras palavras, quando da decretação da prisão temporária, deve o juiz concluir, em virtude dos elementos probatórios existentes - essa análi­ se deve ser compatível com o momento em que se requer a prisão temporária, qual seja, logo na fase inicial das investigações - de que é elevada a proba­ bilidade da superveniência de uma denúncia, desenhando-se igualmente viável a pretensão acusatória do órgão ministerial, sendo a constrição cautelar da liberdade de locomoção do agente imprescindível para a eficácia das investigações. Nesse sentido, a 5a Turma do STJ já concluiu que “a determinação da prisão temporária deve ser fundada em fatos con­ cretos que indiquem a sua real necessidade, aten­ dendo-se os termos descritos na lei. Evidenciada a presença de indícios de autoria dos pacientes no delito de atentado violento ao pudor, praticado, em tese, contra três crianças, para o qual é permitida a decretação da custódia provisória, bem como o fato de o paciente se encontrar em lugar incerto e não sabido, necessária se torna a decretação da prisão temporária, tendo em vista a dificuldade de 472. Op. cit. p. 137. 473. LANFREDI, Luís Geraldo Sant'Ana. Op. cit. p. 129.

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investigação e conclusão do inquérito quando au­ sente o indiciado”.474 Superada a análise da expressão fundadas ra­ zões, passemos à análise do rol dos crimes que com­ portam prisão temporária. São eles (consumados ou tentados), de acordo com o inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89:

a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2o): atente-se para o fato de que o homicídio qua­ lificado (CP, art. 121, § 2o), e o homicídio simples, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, são considerados hediondos (Lei n° 8.072/90, art. Io, I, com redação determinada pela Lei n° 13.104/15), daí por que, em relação a tais delitos, a prisão temporária poderá ser decreta­ da pelo prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade;

b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ Io e 2o); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2o e 3o): com vigência em data de 24 de abril de 2018, a Lei n. 13.654/18 acrescentou uma nova causa de aumento de pena ao crime de roubo. De acordo com o art. 157, §2°-A, “a pena aumenta-se de 2/3 (dois terços); I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma de fogo; II - se há destruição ou rompimento de obstáculo mediante o emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum. Por sua vez, o Pacote Anticrime introdu­ ziu o §2°-B ao art. 157 (“Se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo”). A despeito da criação dessas novas majorantes para o crime de roubo, a Lei da Prisão Temporária não foi alterada a fim de se nela fazer inserir expressamente o §2°A e o §2°-B do art. 157 do CP, do que se poderia concluir que a prisão temporária não seria cabível em relação a tais delitos. Com a devida vênia, esse raciocínio não nos parece ser o mais acertado. As Leis 13.654/18 e 13.964/19 não criaram delitos au­ tônomos. Na verdade, funcionam apenas como um desdobramento do tipo do crime de roubo, uma vez que o legislador apenas definiu um modus operandi do referido delito. Deveras, é pressuposto para o reconhecimento de tais crimes de roubo a prática da ação prevista no caput do art. 157 do CP, razão pela qual não é possível dissociar o crime majorado das circunstâncias a serem sopesadas na figura típica 474. STJ, 5aTurma, RHC 18.004/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 14/11/2005 p. 347.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

do art. 157. Logo, se a modalidade simples de roubo prevista no caput do art. 157 admite a decretação da prisão temporária, seria absurdo concluirmos que referida espécie de prisão cautelar não seria cabível em relação às figuras circunstanciadas do §2°-A e do §2°-B. Sem embargo, ainda que não se concorde com tal argumentação, é de todo relevante destacar que a Lei dos Crimes Hediondos foi alterada pelo Pacote Anticrime para fins de prever que o crime de roubo será considerado hediondo em três hipó­ teses (Lei n. 8.072/90, art. Io, II, “a”, “b” e “c”), quais sejam, circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (CP, art. 157, §2°, V), circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (CP, art. 157, §2°-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (CP, art. 157, §2°-B), e quando qualifica­ do pelo resultado lesão corporal grave ou morte (CP, art. 157, §3°), hipótese em que a prisão temporária de tais delitos será cabível com fundamento no art. 2o, §4°, da Lei n. 8.072/90; d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ Io e 2o): por força da Lei n° 11.923/09, foi acrescido o § 3o ao art. 158 do Código Penal, para tipificar o denomi­ nado sequestro relâmpago (“Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente”). Com base nos mesmos argumentos acima expostos em relação aos §2°-A e §2°-B do art. 157 do CP, reputamos que a prisão temporária também é cabível em relação ao crime do art. 158, §3°, do CP, o qual também é etiquetado como hediondo (Lei n. 8.072/90, art. Io, III, com redação dada pela Lei n. 13.964/19);

e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ Io, 2o e 3o); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único): o art. 223, caput, e parágrafo único, do Código Penal, fo­ ram revogados pela Lei n° 12.015/09. Quanto à nova figura delituosa do estupro de vulnerável, prevista no art. 217-A do CP, certo é que o legislador não teve o cuidado de fazer inserir o referido delito no rol do art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89. Não obstante, a partir do momento em que a Lei n° 12.015/09 inseriu o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A) no rol dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90, art. Io, inciso VI), admitir-se-á a prisão temporária com fundamen­ to no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90; g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput,

e parágrafo único): o art. 214 do Código Penal foi revogado pela Lei n° 12.015/09. Isso, no entanto, não significa dizer que teria havido abolitio criminis, já que houve continuidade normativo-típica. Referida conduta delituosa, consubstanciada no constran­ gimento de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pra­ tique ato libidinoso diverso da conjunção carnal, simplesmente migrou do revogado art. 214 para o atual art. 213 do CP;

h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único): o crime de rapto (art. 219) foi eliminado do Código Penal pela Lei n° 11.106/05. No entanto, não se pode falar em abolitio criminis, pois não houve descriminalização total da conduta (princípio da continuidade normativo-típica), na medida em que o art. 148, § Io, V, do Código Penal, acabou absorvendo a figu­ ra típica do antigo art. 219. Assim, como o crime de sequestro ou cárcere privado (art. 1°, inciso III, alínea “b”) comporta prisão temporária, esta ainda pode ser decretada em relação a tal delito;475

i) epidemia com resultado de morte (art. 267, §1°); j) envenenamento de água potável ou subs­ tância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); 1) quadrilha ou bando (antiga redação do art. 288): com o advento da Lei n° 12.850/13, o antigo crime de quadrilha ou bando foi substi­ tuído pelo delito de associação criminosa, cuja tipificação demanda apenas a presença de 3 (três) pessoas. Surge, então, o questionamento: a prisão temporária continua sendo cabível em relação a tal delito? Por mais que o legislador não tenha tido o cuidado de proceder à alteração da Lei da Prisão Temporária, se a tipificação do crime de quadrilha ou bando demandava a associação estável e permanente de pelo menos 4 (quatro) pessoas, não se pode negar que tal conduta conti­ nua sendo tratada como tipo penal incriminador pelo art. 288, caput, do CP, que, doravante, exige apenas a presença de 3 (três) pessoas. Em termos bem simples, toda quadrilha ou bando composta por 4 (quatro) pessoas já caracterizava uma as­ sociação criminosa. Por consequência, por força 475. Apesar de o art. 219 do CP ter sido revogado com o advento da Lei n° 11.106/05, a restrição da liberdade com finalidade libidinosa teria passado a figurar entre as possibilidades de qualificação dos crimes de sequestro ou cárcere privado (CP, art. 148, § 1o, V). Portanto, a mera alte­ ração da norma não deveria ser entendida como abolitio criminis, por ter havido continuidade normativa acerca do tipo penal. Nesse sentido: STF,

HC 101.035/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/10/10.

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do princípio da continuidade normativo-típica, o art. Io, III, “1”, da Lei n° 7.960/89, continua válido. Todavia, onde se lê “quadrilha ou bando”, deverá se ler, a partir da vigência da Lei n° 12.850/13, “as­ sociação criminosa”. Noutro giro, por força da Lei n° 12.720/12, com vigência em 28 de setembro de 2012, foi acrescido ao Código Penal o art. 288-A, que passou a tipificar o crime de constituição de milícia privada. Apesar da tipificação dessa nova modalidade delituosa, a Lei dos crimes hediondos e a Lei da prisão temporária não foram alteradas a fim de se nelas fazer inserir o referido crime. Destarte, por mais absurdo que possa parecer a possibilidade de decretação da prisão temporária apenas em relação ao crime menos grave - associa­ ção criminosa -, parece-nos inviável a decretação da prisão temporária em relação à constituição de milícia privada, sob pena de evidente violação ao princípio da legalidade;

Ocorre que, após a vigência da Lei n° 7.960/89, entrou em vigor a lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90), que, em seu art. 2o, § 3o (posterior § 4o renumerado pela Lei n° 11.464/07), passou a dispor que a prisão temporária, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Portanto, a partir da Lei n° 8.072/90, a prisão temporária passou a ser cabível não só em relação aos crimes previstos no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89, como também em relação aos crimes previstos no caput do art. 2o da Lei n° 8.072/90, quais sejam, os crimes hediondos e equi­ parados (tortura, tráfico de drogas e terrorismo).

m) genocídio (arts. Io, 2o e 3o da Lei n° 2.889, de Io de outubro de 1956), em qualquer de suas formas típicas;

1) a prisão temporária não é admissível em contravenções penais, nem tampouco em crimes culposos;

n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);476

2) a Lei n° 8.072/90 menciona no art. 2o, caput, os crimes hediondos (consumados ou tentados),479 a prática de tortura e o terrorismo (Lei n° 13.260/16),

o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986);

p) crimes previstos na Lei de Terrorismo (in­ cluído pela Lei n° 13.260/16):477 como se trata, o deli­ to de terrorismo propriamente dito previsto do art. 2o da Lei n° 13.260/16, de crime equiparado a hediondo, é de se concluir que o prazo da prisão temporária será de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual perío­ do, em caso de extrema e comprovada necessidade, nos termos do art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90. Em relação aos demais crimes previstos na Lei Antiter­ rorismo - organização terrorista (art. 3o), preparação de terrorismo (art. 5o) e financiamento ao terrorismo (art. 6o) -, que não podem ser considerados como espécie de terrorismo, logo, equiparados a hediondo, o prazo será de 5 (cinco) dias, também prorrogáveis por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade (Lei n° 7.960/89, art. 2o, caput).

ser decretada em relação aos crimes enumerados no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89.478

Da leitura e comparação entre as Leis n° 7.960/89 e 8.072/90, constata-se:

478. Afastando prisão temporária decretada em relação a crime de furto: STJ, 5a Turma, HC 35.557/PR, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 20/09/2004

p. 318.

479. De acordo com o art. 1o da Lei n. 8.072/90, são considerados he­ diondos os seguintes crimes, todos tipificados Código Penal, consumados ou tentados: I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homi­ cídio qualificado (art. 121, § 2o, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII); l-A - lesão

corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, §3°), quando praticadas contra autoridade ou

agente descrito nos arts. 142 e 144 da CF, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em

decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição; II - roubo: a) circuns­

tanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2o, inciso V); b) circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2°-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 157, § 2°-B); c) qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 157, § 3o); III - extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, § 3o); IV - extorsão me­ diante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§l°, 2o e 3°); V - estupro (art. 213, caput e §§1 ° e 2o); VI - estupro de vulnerável (art. 217-A,

podivm, 2017), onde o referido diploma normativo é objeto de detalhado

caput e §§ 1 o, 2o, 3o e 4o); VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1°); VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §1°, §1°-A e §1°-B, com a redação dada pela Lei n. 9.677, de 2 de julho de 1998); VIII favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1° e 2°); IX - furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4°-A). Noutro giro, por força do art. 1o, parágrafo único, também são considerados hediondos, tentados ou consumados: I - o crime de genocídio previsto nos arts. 1°, 2° e 3o da Lei n. 2.889/56; II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n. 10.826/03; III - o crime de comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei n. 10.826/03; IV - o crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no

estudo, em conjunto com outras 13 (treze) leis especiais (v.g., hediondos, violência doméstica, organizações criminosas, etc.).

art. 18 da Lei n. 10.826/03; V- o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado.

Doutrina e jurisprudência consideram que o rol de delitos que autorizam a decretação da pri­ são temporária é taxativo, caracterizando o fumus comissi delicti. Assim, a prisão temporária só pode 476. Vide comentário abaixo quanto à revogação da Lei n° 6.368/76 pela Lei n° 11.343/06.

477. Para mais detalhes acerca da Lei n° 13.260/16, remetemos o leitor ao nosso livro de Legislação Criminal Especial Comentada (Salvador: Jus-

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

não constantes do rol do art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89;

3) a Lei n° 8.072/90 refere-se ao tráfico ilícito de entorpecentes de forma ampla (art. 2o, caput), enquanto que a Lei n° 7.960/89 (art. Io, III, “n”) menciona expressamente somente o tráfico de dro­ gas previsto no art. 12 da Lei n° 6.368/76. Indaga-se, então, se seria cabível prisão tem­ porária no crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ Io e 2o)? À primeira vista, pode-se pensar que não, eis que referido delito não consta do rol ta­ xativo do art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89. No entanto, como o crime do art. 218-B, caput, e §§ Io e 2o, do CP, passou a ser etiquetado como he­ diondo em virtude da entrada em vigor da Lei n° 12.978 em 22 de maio de 2014 - Lei n° 8.072/90, art. Io, VIII -, não há como negar que, doravante, a prisão temporária também passou a ser cabível em relação a tal delito.

Outro ponto a ser analisado diz respeito à pos­ sibilidade de decretação da prisão temporária no crime de tráfico de drogas. Isso porque, embora referida na Constituição (art. 5o, inciso XLIII), na Lei dos Crimes Hediondos (art. 2o, caput, da Lei n° 8.072/90), a expressão tráfico ilícito de entorpecentes não consta expressamente da Lei n° 11.343/06, na medida em que a nova lei de drogas, assim como a anterior (Lei n° 6.368/76), não traz um crime cujo nomen iuris seja “tráfico de drogas”. De modo a se determinar qual crime é o de tráfico de drogas, pode-se utilizar como subsídio a interpretação dada pela jurisprudência na aplica­ ção da Lei n° 8.072/90, que, na vigência da Lei n° 6.368/76, sempre entendeu que o tráfico abrange­ ría as condutas dos artigos 12 e 13. A conduta de associação para o tráfico, então constante do art. 14 da Lei n° 6.368/76, não era crime equiparado a hediondo.480 Na nova lei de drogas (Lei n° 11.343/06), por­ tanto, encontra-se o crime de tráfico de drogas pre­ visto nos artigos 33, caput, e § Io, e 34, excluído des­ se conceito o art. 35, que traz a figura da associação para fins de tráfico.

Insere-se também no conceito de tráfico de drogas, para fins de decretação da prisão tempo­ rária, o delito de financiamento ao tráfico, pre­ visto no art. 36 da Lei n° 11.343/06. Antes da Lei 480. STF, 1a Turma, HC 83.017/RJ, Rel. Min. Carlos Britto, DJU 23/04/2004 p. 24. E ainda: STF, 2a Turma, HC 83.656/AC, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 20/04/2004, DJ 28/05/2004.

n° 11.343/06, aquele que financiasse o tráfico de drogas ou de maquinários respondería pelo mesmo crime que o traficante, em concurso de agentes (CP, art. 29, caput). Com a intenção de punir mais severamente aquele que financia o tráfico, a nova lei de drogas insere as condutas em tipos distin­ tos, trazendo, assim, mais uma exceção pluralista à teoria monista.481 Portanto, apesar de o financiamento estar in­ serido em dispositivo diverso, somos levados a crer que tal figura também se equipara ao “tráfico de drogas”, sob pena de patente violação ao princípio da proporcionalidade. Dito de outra maneira: a lei não pode levar a interpretações absurdas - se o delito previsto no art. 33 comporta prisão temporária, é inegável que tal atributo também se estende ao de­ lito mais grave, financiamento ao tráfico, sobretudo se levarmos em consideração que, neste, o móvel do agente é a obtenção de bens, direitos e valores com a prática do tráfico de drogas por terceiro.

Também se admite prisão temporária em re­ lação ao tipo penal previsto no art. 37 da Lei n° 11.343/06 (“Colaborar, como informante, com gru­ po, organização, ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput, e § Io, e 34 desta Lei”). Ora, esse informante, que colabora com grupo destinado ao tráfico de drogas, concorre inegavelmente para a prática do tráfico de drogas, dificultando sobremaneira as investigações, razão pela qual sua prisão temporária apresenta-se como medida indispensável para o bom êxito da fase investigatória.

Todo esse raciocínio acaba sendo corrobora­ do a partir da leitura do art. 44, caput, da Lei de drogas, que, à semelhança das restrições previstas na Lei n° 8.072/90 para os crimes hediondos e equiparados, estabelece uma série de restrições aos crimes previstos nos arts. 33, caput e § Io, e 34 a 37 da Lei 11.343/06, a significar, portanto, que tais delitos seriam equiparados a hediondos, ou seja, ao tráfico de drogas (CF, art. 5o, XLIII). Em outras palavras, se a tais delitos foi estabelecida uma série de restrições, algumas delas próprias dos crimes hediondos e equiparados, somos le­ vados a acreditar que, à exceção do art. 35 (asso­ ciação para fins de tráfico), que jamais foi con­ siderado equiparado a hediondo na vigência da Lei anterior (art. 14 da Lei n° 6.368/76), os delitos citados no art. 44, caput, da Lei n° 11.343/06 (art. 33, caput, e § Io, art. 34, art. 36 e art. 37) são tidos 481. No Código Penal há outros exemplos de exceções pluralistas à teoria monista: arts. 124/126; 317/333; 318/334; 342, § 1°/343.

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como “tráfico de drogas” para fins de decretação da prisão temporária.482

4. PROCEDIMENTO A prisão temporária será decretada pelo juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o pra­ zo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Da leitura do art. 2o, caput, da Lei n° 7.960/89, depreen­ de-se que a prisão temporária não pode ser decreta­ da de ofício pelo juiz. Preserva-se, assim, o sistema acusatório e o princípio da imparcialidade do juiz. Firmada a premissa de que ao juiz não é dado decretar uma prisão temporária ex officio, especial atenção deve ser dispensada ao quanto disposto no art. 2o, § 3o, da Lei n° 7.960/89. Por força desse dispositivo, o juiz poderá, de ofício, determinar a apresentação do preso, a solicitação de informa­ ções e esclarecimentos da autoridade policial e a realização de exame de corpo de delito. Nada mais. Logo, não se pode admitir sua intervenção nos de­ mais atos investigatórios realizados pela autorida­ de de polícia judiciária (v.g., interrogatório poli­ cial), sob pena se tornar impedido para o processo e julgamento do feito. Nesse contexto, confira-se: “ Hipótese em que o Juiz, antes de haver, sequer, o oferecimento da denúncia, estando ainda no curso da investigação preliminar, se imiscuiu nas ativi­ dades da polícia judiciária e realizou o interroga­ tório do réu, utilizando como fundamento o artigo 2o, § 3o, da Lei 7.960/1989. A lei da prisão tempo­ rária permite ao magistrado, de ofício, em relação ao preso, determinar que ele lhe seja apresentado e submetê-lo a exame de corpo de delito. Em relação à autoridade policial o Juiz pode solicitar informa­ ções e esclarecimentos. A Lei 7.960/1989 não dis­ ciplinou procedimento em que o Juiz pode, como inquisidor, interrogar o réu. O magistrado que pra­ tica atos típicos da polícia judiciária torna-se impe­ dido para proceder ao julgamento e processamento da ação penal, eis que perdeu, com a prática dos atos investigatórios, a imparcialidade necessária ao exercício da atividade jurisdicional. O sistema acusatório regido pelo princípio dispositivo e con­ templado pela Constituição da República de 1988 diferencia-se do sistema inquisitório porque nesse 482. Ressalvamos a posição em sentido diverso de NUCCI, segundo o qual se considera tráfico, "logo crime equiparado a hediondo, tanto as figuras descritas no art. 33, como também as previstas nos artigos 34 a 37. Para fim de decretação da prisão temporária, no entanto, somente se leva em conta o art. 33 da Lei n° 11.343/06" (op. cit. p. 660).

a gestão da prova pertence ao Juiz e naquele às par­ tes. No Estado Democrático de Direito, as garan­ tias processuais de julgamento por Juízo imparcial, obediência ao contraditório e à ampla defesa são indispensáveis à efetivação dos direitos fundamen­ tais do homem”.483

Quando houver representação da autoridade policial, deve o Ministério Público ser obrigatoria­ mente ouvido, a fim de que se manifeste quanto à presença dos pressupostos indispensáveis à privação cautelar da liberdade - fumus comissi delicti (inciso III do art. Io) e periculum libertatis (inciso I ou II do art. Io). Na hipótese de uma prisão temporária ser decretada de ofício, ou diante de mera representação policial, sem a obrigatória e prévia manifestação do Ministério Público, ter-se-á manifesto constrangi­ mento ilegal, haja vista ser o Parquet o titular da ação penal pública, sendo ilógica e arbitrária a ado­ ção da medida cautelar sem que o dominus litis ma­ nifeste-se favoravelmente à adoção da medida. Com efeito, basta imaginarmos o quanto inconveniente seria a decretação de uma prisão temporária sem a aquiescência do órgão ministerial, caso o Ministério Público deliberasse posteriormente pelo não ofere­ cimento de denúncia. A representação da autoridade policial ou o re­ querimento do Ministério Público precisam estar instruídos com indicativos suficientes de autoria ou participação delituosa (fumus comissi delicti), além da necessária comprovação do periculum li­ bertatis, consubstanciado na indispensabilidade da segregação cautelar para assegurar a efetividade da investigação preliminar.

A Lei n° 7.960/89 não atribui legitimidade ao querelante para requerer a prisão temporária. Neste ponto, difere da prisão preventiva, que confere legi­ timidade ao querelante e ao assistente (CPP, art. 311, caput). Na verdade, diante das alterações trazidas pela Lei n° 12.015/09, não mais constam do rol do inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89 e do art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90, quaisquer delitos sujeitos à ação penal de iniciativa privada. Doravante, por­ tanto, pode-se afirmar que a prisão temporária não mais pode ser decretada em relação a crimes de ação penal privada. Se o pedido de prisão temporária formulado pelo Ministério Público for indeferido pelo juiz, o recurso cabível será o Recurso em Sentido Estrito (CPP, art. 581, inciso V). É bem verdade que o dis­ positivo em questão refere-se à decisão que indeferir 483. STJ, 6aTurma, RHC 23.945/RJ, Rel. Min. Jane Silva - Desembargadora convocada do TJ/MG - j. 05/02/2009, DJe 16/03/2009.

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o requerimento de prisão preventiva. No entanto, in casu, afigura-se possível interpretação extensiva para também abranger a decisão que indefere o re­ querimento de temporária, sobretudo se lembrar­ mos que, quando da entrada em vigor do Código de Processo Penal (Io de janeiro de 1942), somente existiam as prisões em flagrante, preventiva, de­ corrente de pronúncia e de sentença condenatória recorrível. Pragmaticamente, no entanto, diante do inde­ ferimento do requerimento de prisão temporária formulado pelo Parquet, acreditamos ser bem mais útil e eficaz que o Parquet obtenha novos elemen­ tos de informação quanto à autoria e materialidade, formulando novo pedido ao magistrado. De fato, optando o Ministério Público pela interposição de um recurso em sentido estrito, a demora no jul­ gamento do recurso traria prejuízo irreparável às investigações, esvaziando por completo a utilidade da medida cautelar caso fosse decretada posterior­ mente pelo juízo ad quem. Diante do princípio da obrigatoriedade de fundamentação da prisão pela autoridade judiciá­ ria competente (CF, art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX), a decisão que decreta a prisão temporária deve ser fundamentada, sob pena de nulidade. Daí dispor o art. 2o, § 2o, da Lei n° 7.960/89, que o despacho que decretar a prisão temporária deverá ser funda­ mentado e prolatado dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas a partir do recebimento da representação ou do requerimento.

Não se permite ao magistrado, nessa decisão (veja-se que a Lei n° 7.960/89 impropriamente refere-se a essa decisão como mero “despacho” em seu art. 2o, § 2o), limitar-se a repetir os ter­ mos da lei, no sentido de que “a prisão do indi­ ciado é imprescindível à investigação do inquérito policiar. Como já se manifestou o STJ, “é válido o decreto de prisão temporária que se encontra devidamente fundamentado, ainda que de forma sucinta, demonstrando a necessidade da custódia para as investigações do inquérito policial e em consonância com os indícios de participação do paciente em fato típico e antijurídico previsto na Lei n° 7.960/89”.484

Por se tratar de medida cautelar urgente e im­ prescindível para as investigações, o art. 5o da Lei n° 7.960/89 prevê que, em todas as comarcas e se­ ções judiciárias, haverá um plantão permanente de 24 (vinte e quatro) horas do Poder Judiciário e do

484. STJ, 5a Turma, RHC 8.121 /SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 15/03/1999 p. 263.

Ministério Público para apreciação dos pedidos de prisão temporária.

Além disso, segundo o art. 2o, § 3o, da Lei n° 7.960/89, o Juiz poderá, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público e do advogado, determinar que o preso lhe seja apresentado, solicitar infor­ mações e esclarecimentos da autoridade policial e submetê-lo a exame de corpo de delito.

Caso a prisão temporária seja decretada por magistrado durante o plantão judicial, este não es­ tará prevento para a futura ação penal. Agora, se a prisão temporária for decretada fora das situações de plantão, esse magistrado estará prevento.485

5. PRAZO Diversamente da prisão preventiva, que não pos­ sui prazo predefinido, o prazo de duração da prisão temporária é de, no máximo, 5 (cinco) dias, prorro­ gável uma única vez por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade. De acordo com o art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90, esse prazo é de, no máximo, 30 dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade, no caso de crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas e terro­ rismo. Consoante disposto no art. 2o, §4°-A, da Lei n. 7.960/89, incluído pela Lei n. 13.869/19, o mandado de prisão conterá necessariamente o período de duração da prisão temporária, bem como o dia em que o preso deverá ser libertado. Essa prorrogação do prazo da prisão tempo­ rária não é automática, devendo sua imprescindi­ bilidade ser comprovada com base em elementos colhidos enquanto o acusado estava preso. Na ver­ dade, apenas diligências novas, diversas daquelas inicialmente pensadas pela autoridade policial, po­ dem efetivamente autorizar a prorrogação do prazo da prisão temporária.486

O prazo da custódia temporária só começa a fluir a partir da efetiva prisão do acusado. Ademais, sua contagem deve ser feita à luz do art. 10 do Código Penal, incluindo-se no computo do prazo o dia do começo. É nesse sentido, aliás, o art. 2o, §8°, da Lei n. 7.960/89, incluído pela nova Lei de Abuso de Autorida­ de: “§8° Inclui-se o dia do cumprimento do mandado de prisão no computo do prazo de prisão temporária”. Assim, se o agente foi preso no dia 05 (independente­ mente do horário - às 08 horas ou às 23h e 59min.), deverá ser colocado em liberdade à OOhOOmin hora do dia 10. Como dito antes, o prazo de duração da prisão

485. STJ, 5a Turma, RHC 10.630/CE, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 20/08/2001 p. 490. 486. No mesmo contexto: LANFREDI. Op. cit. p. 173.

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temporária não começa a fluir a partir do instante em que o juiz a decreta, mas apenas após a captura da pessoa contra quem foi emitida a ordem. Trata-se de prazo limite, ou seja, nada impede que o juiz decrete a prisão temporária por um perío­ do menor que o previsto em lei. Ora, quem pode o mais pode o menos. Se o juiz entende que 15 (quinze) dias de prisão temporária são suficientes para au­ xiliar nas investigações de um crime hediondo, por que seria obrigado a manter o réu preso por mais tempo? Pode-se decretar a temporária por 10 (dez) dias e prorrogá-la por mais 5 (cinco), assim como se afigura viável decretá-la por 5 (cinco) dias, prorro­ gando-a por mais 15 (quinze), em caso de extrema e comprovada necessidade.

Se a prisão temporária tiver sido decretada pelo prazo de 30 (trinta) dias, concluindo a autoridade policial, posteriormente, que não há mais necessi­ dade de se manter o indivíduo preso, deve represen­ tar à autoridade judiciária competente solicitando a revogação da prisão temporária. Somente o juiz poderá revogar a prisão temporária, jamais a própria autoridade policial.487

Decorrido o prazo da prisão temporária, o pre­ so deverá ser colocado imediatamente em liberdade, sem necessidade de expedição de alvará de soltura, salvo se houver prorrogação da temporária ou se tiver sido decretada sua prisão preventiva (Lei n. 7.960/89, art. 2o, §7°, incluído pela Lei n. 13.869/19). Relembre-se que a prisão temporária não pode ser decretada ou mantida após o recebimento da peça acusatória. Portanto, após o decurso do prazo da temporária, deve o inquérito ser remetido à Justi­ ça, oferecendo o Ministério Público a denúncia, ao mesmo tempo em que requer a decretação da prisão preventiva, se acaso necessária.488 Aliás, de acordo com o art. 12, parágrafo úni­ co, inciso IV, da Lei n. 13.869/19, constitui abuso de autoridade prolongar a execução de pena pri­ vativa de liberdade, de prisão temporária, de prisão 487. Em sentido contrário, Carlos Kauffmann entende que a autorida­ de policial e o Ministério Público também podem determinar a liberta­ ção do investigado, caso entendam que não subsiste a necessidade de segregação da liberdade. (Prisão temporária. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 113/114). Comunga do mesmo entendimento Aury Lopes Jr. (op. cit. p. 123).

488. No sentido de que, uma vez recebida a denúncia não mais sub­ siste o decreto de prisão temporária, que visa resguardar, tão somente, a integridade das investigações: STJ, 5a Turma, HC 44.987/BA, Rel. Min. Felix Fischer, j. 02/02/2006, DJ 13/03/2006 p. 341. Em caso concreto apre­ ciado pelo STJ, como o paciente estava preso há mais de seis meses, em razão de prisão temporária, sem a convolação em preventiva ou o oferecimento da denúncia, concluiu-se pela ilegalidade do excesso de prazo: STJ - HC 78.376/SC - 5a Turma - Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho-DJ 08/10/2007 p. 335.

preventiva, de medida de segurança ou de interna­ ção, deixando, sem motivo justo e excepcionalíssimo, de executar o alvará de soltura imediatamente após recebido ou de promover a soltura do preso quando esgotado o prazo judicial ou legal.

Outro ponto que merece destaque diz respei­ to à possibilidade ou não de contagem do prazo da prisão temporária para o computo do termo de encerramento da instrução criminal. Como foi vis­ to ao tratarmos da duração da prisão preventiva e excesso de prazo na formação da culpa, pensamos que o prazo da prisão temporária deve ser levado em consideração para o computo do lapso temporal para o encerramento do processo.

6. DIREITOS E GARANTIAS DO PRESO TEMPORÁRIO Além dos direitos e garantias constitucionais atinentes a toda e qualquer prisão cautelar, tópico abordado anteriormente, dispõe o art. 3o, caput, da Lei n° 7.960/89, que os presos temporários deverão permanecer, obrigatoriamente, separados dos de­ mais detentos. O dispositivo visa evitar a promis­ cuidade resultante da convivência entre presos pro­ visórios e presos que já tenham contra si sentença condenatória com trânsito em julgado. A realização de exame de corpo de delito tam­ bém é medida prevista na Lei n° 7.960/89 (art. 2o, § 3o). Trata-se de medida de salutar importância, pois serve para o resguardo do preso e da própria auto­ ridade responsável pela prisão. Tal exame deve ser feito tanto no momento inicial da prisão quanto do seu término, de modo a se afastar eventual arguição de maus-tratos, tortura ou sevícias físicas sofridas durante o período de encarceramento.

CAPÍTULO VII

DAS PRISÕES DECORRENTES DE PRONÚNCIA E DE SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRÍVEL ••••®®®®®®®®e®®®®®®®®®®®®®®®®®®®®®®®®«

1. ANÁLISE HISTÓRICA DAS PRISÕES DECOR­ RENTES DE PRONÚNCIA E DE SENTENÇA CON­ DENATÓRIA RECORRÍVEL Pelo menos até a reforma processual de 2008, a prisão cautelar também funcionava como efeito

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automático da pronúncia ou de sentença conde­ natória recorrível. A prisão cautelar decorrente de pronúncia vinha prevista no art. 408, §§ Io e 2o, do CPP, que estabelecia como efeito automático da re­ ferida decisão a prisão do acusado, salvo se primário e portador de bons antecedentes. Em complemento ao dispositivo citado, o art. 585, caput, do CPP, prevê que “o réu não poderá recorrer da pronúncia senão depois de preso, salvo se prestar fiança, nos casos em que a lei a admitir”. Por sua vez, o revogado art. 393, inciso I, do CPP, estabelecia a prisão como efeito automático da sentença penal condenatória recorrível. O revogado art. 594, caput, do CPP, de seu turno, exigia o recolhimento do acusado à prisão para poder apelar da sentença condenatória, salvo se fosse primário e portador de bons antecedentes. Em harmonia com os preceitos anteriores, o art. 597 não dá à apelação força para suspender o efeito da sentença condenatória prevista no art. 393, inciso I, ao passo que o revogado art. 595 declarava deserta a apelação quando o réu condenado fugisse depois de haver interposto o recurso.

Na mesma linha do Código de Processo Pe­ nal, a legislação especial também dispunha sobre a prisão como efeito automático da sentença conde­ natória recorrível:

1) Lei n° 7.492/86 (Art. 31, caput): nos crimes contra o sistema financeiro nacional previstos na referida lei e punidos com pena de reclusão, o réu não poderá prestar fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, ainda que primário e de bons antecedentes, se estiver configurada situação que autoriza a prisão preventiva;

2) Lei n° 8.038/90 (art. 27, § 2o): os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo - ao tratarmos do princípio da presun­ ção de inocência, foi dito que, ao apreciar o HC 84.078, decidiu o Supremo Tribunal Federal que ofende o princípio da presunção de não culpabi­ lidade a execução provisória de pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cau­ telar do réu, cuja decretação está condicionada à presença do suporte fático e normativo constante dos arts. 312e313do CPP. De se notar que o art. 1072, IV, do novo CPC revogou os arts. 13 a 18, 26 a 29 e 38 da Lei n° 8.038/90. De todo modo, con­ soante disposto nos arts. 995 e 1029, § 5o, do novo CPC, o recurso extraordinário e o recurso especial continuam desprovidos de efeito suspensivo, pelo menos em regra; 3) Lei n° 8.072/90 (art. 2o, § 2o - com a alte­ ração dada pela Lei n° 11.464/07, o § 2o do art.

2o foi renumerado, estando hoje no § 3o do art. 2o): em caso de sentença condenatória, o juiz de­ cidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade;

4) Lei n° 9.613/98: em sua redação original, o art. 3o da Lei de Lavagem de Capitais dispunha que, em caso de sentença condenatória, o juiz decidiría fundamentadamente se o réu poderia apelar em li­ berdade. Ocorre que este dispositivo foi revogado pela Lei n° 12.683/12; 5) Lei n° 11.343/06 (art. 59, caput): nos crimes previstos nos arts. 33, caput e § Io, e 34 a 37 desta Lei, o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória. O ponto nevrálgico relativo a essas espécies de prisão cautelar’ diz respeito a sua (in) com­ patibilidade com o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII). Ao longo dos anos, os Tribunais Superiores sempre se manifestaram favoravelmente à constitucionalidade da prisão decorrente de pronúncia e de sentença conde­ natória recorrível. Procuravam justificá-las sob o argumento de que contemplariam hipótese de prisão cautelar fundada no fato de que, se o réu não é primário, não possui bons antecedentes, e foi condenado (ou pronunciado), deverá fugir, afigurando-se imprescindível a prisão de modo a assegurar a aplicação da lei penal. Entendia-se, as­ sim, que o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade não impedia que se iniciasse a execução provisória antes do trânsito em julga­ do da decisão condenatória, desde que a apelação não tivesse efeito suspensivo. Acerca do assunto, o Superior Tribunal de Justiça chegou a editar a Súmula n° 09: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”.489 Em que pese o entendimento pretoriano, a doutrina sempre se posicionou em sentido diver­ so, visualizando nessa espécie de prisão verdadeira execução provisória da pena, com evidente violação ao princípio da presunção de não culpabilidade. A uma, por não trazer em si as características de uma medida cautelar: acessoriedade, preventividade, instrumentalidade hipotética e provisoriedade. De fato, apesar de o fumus comissi delicti ser evidente quando da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível, o fato de o acusado não ser primário ou não possuir bons antecedentes, por si só, nada diz 489. STF, 2a Turma, HC 80.174/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ

12/04/2002 p. 53.

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acerca da cautelaridade da medida. Da mesma for­ ma que a prisão preventiva pode ser necessária em relação a acusado primário e de bons antecedentes, v.g., porque está ameaçando testemunhas ou dando indicativos concretos de que pretende fugir, é pos­ sível que a prisão preventiva de um acusado rein­ cidente e de maus antecedentes seja desnecessária, porquanto sua liberdade não esteja colocando em risco a eficácia do processo.490

A duas, por firmar uma indevida presunção de que o acusado, por não ser primário e portador de bons antecedentes, irá fugir, sendo sua prisão neces­ sária para assegurar a aplicação da lei penal. Ou, o que é pior, na probabilidade de condenação, antecipando-se, assim, a execução de sua pena, o que importaria em flagrante violação ao princípio da presunção de inocência. Com efeito, se o acusado permaneceu solto ao longo de toda a primeira fase do procedimento do júri, ou até a sentença condenatória recorrível, mesmo não sendo primário e com bons antecedentes, isso se deve ao fato de o juiz não ter visualizado ne­ nhum motivo que autorizasse sua prisão preventiva. Poderia, então, a prisão ser determinada como efeito automático da pronúncia ou da sentença condena­ tória recorrível? Evidentemente que não, porque, se assim o fizesse, estaria o magistrado impondo uma prisão provisória como efeito automático de decisão não definitiva, o que somente seria possível após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em se tratando de prisões provisórias, não se admite a privação cautelar como efeito automáti­ co da pronúncia ou da sentença condenatória re­ corrível, sob pena de se admitir uma hipótese de prisão provisória desprovida de qualquer necessi­ dade cautelar referida a alguma circunstância fática concreta e devidamente demonstrada, diversa do poder de punir ou do fato delitivo em si mesmos. Afinal, não se admite uma ordem legislativa que abstrata e antecipadamente subtraia da apreciação do Poder Judiciário a análise da necessidade da segregação cautelar diante dos elementos do caso concreto (vedação à prisão ex lege - inciso LXI do art. 5o da CF). Admitir essa necessidade abstrata (firmada pelo legislador) significa conceber prisão obrigatória, eis que o juiz não poderá questionar os critérios legais, nem terá necessidade de funda­ mentar a decretação da prisão, o que importa em evidente retrocesso, eis que tal espécie de prisão foi abolida do ordenamento pátrio em 1967 pela Lei n° 5.349.

É bem verdade que, na fundamentação cons­ tante da sentença condenatória, o juiz, ao acolher a pretensão punitiva estatal deduzida em juízo, procura demonstrar o fumus comissi delicti - nes­ se momento, aliás, o juiz vai muito além da mera probabilidade, eis que, para um decreto condenatório, faz-se necessário um juízo de certeza. Isso, no entanto, não basta para privar o acusado de sua liberdade de locomoção antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Para que isso aconteça, impõe-se fundamentação específica que demonstre a presença do periculum libertatis (necessidade imperiosa da prisão cautelar), à luz de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventi­ va (CPP, art. 312, caput).491 Na verdade, os dispositivos em análise (CPP, revogado art. 408, §§ Io e 2o e revogado art. 594) tinham (e tem) que ser interpretados a partir de duas situações distintas quando do momento da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível:

a) acusado em liberdade por ocasião da pronúncia ou da sentença condenatória recor­ rível: se o acusado permanecera solto ao longo de toda a instrução processual, pouco importando se primário ou reincidente, portador de bons ou maus antecedentes, autor de crime hediondo ou não, significa dizer que o juiz entendeu não ser necessária sua prisão, seja por força da ausência de uma das hipóteses que autorizava a prisão pre­ ventiva, seja porque as medidas cautelares diver­ sas da prisão se mostraram adequadas e suficien­ tes para tutelar a eficácia do processo. Não faria sentido, portanto, estabelecer como efeito auto­ mático da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível seu recolhimento à prisão, sob pena de patente violação ao princípio da presunção da não culpabilidade. Assim, se o acusado estava solto quando da sentença condenatória, deveria perma­ necer solto, salvo se surgisse alguma hipótese que autorizasse sua prisão preventiva.492 Com efeito, proferida sentença penal condenatória, nada im­ pede que o Poder Judiciário, a despeito do caráter

491. Na dicção do Min. Joaquim Barbosa, "o art. 594 do Código de Processo Penal não implica o recolhimento compulsório do apelante. Ao contrário, cuida de modalidade de prisão cautelar, razão por que deve ser interpretado em conjunto com o art. 312 do mesmo diploma. No caso concreto, a sentença condenatória mostra-se suficientemente motivada quanto aos requisitos ensejadores da prisão preventiva do paciente". (STF, 1aTurma, HC 84.104/DF, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 06/08/2004 p.42). 492. Admitindo a possibilidade de decretação da prisão cautelar de acusados que permaneceram soltos durante o processo, porquanto fun­

damentada a necessidade da segregação em razão da elevada periculosi­ dade dos agentes, a complexidade do esquema delituoso e a magnitude

490. No mesmo contexto: JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 267.

da lesão causada: STJ, 5aTurma, HC 29.445/RS, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 19/12/2003 p. 532.

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recorrível desse ato, decrete, excepcionalmente, e de maneira fundamentada, a prisão cautelar do réu condenado, desde que existam, quanto à ela, reais motivos evidenciadores da necessidade de adoção dessa extraordinária medida constritiva de ordem pessoal.493 Qualquer outra interpretação que se quisesse dar aos revogados §§ Io e 2o do art. 408 e art. 594 (caso de prisão automática ou obrigatória, de execução provisória da pena, de condição do recurso etc.) conflitaria de maneira direta com os princípios vigentes a partir da Carta de 1988; b) acusado preso por ocasião da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível: se o acusado estava preso, isso significa dizer que o juiz entendeu que havia motivos que autorizavam sua prisão pre­ ventiva. Portanto, não faria sentido que colocasse o acusado em liberdade. Pode o acusado condenado em Ia instância, portanto, permanecer preso. Po­ rém, nessa hipótese, deve o magistrado apontar na sentença condenatória (ou na pronúncia) a persis­ tência dos motivos que justificam sua segregação cautelar.494 Quando mantida a custódia cautelar no momento da sentença condenatória (ou da pronún­ cia) nos casos em que o acusado permaneceu preso durante toda a instrução criminal, é firme a juris­ prudência no sentido de que não há necessidade de fundamentação exaustiva, sendo suficiente que o magistrado faça referência à permanência inalterada dos motivos que levaram à decretação da medida extrema em um primeiro momento, desde que es­ tejam, de fato, preenchidos os requisitos legais dos arts. 312e313do CPP.495

Outrossim, embora demonstrada, fundamen­ tadamente, a indispensabilidade da prisão cautelar do acusado por ocasião da sentença condenatória, os Tribunais vêm entendendo que é desproporcional determinar que o acusado aguarde o julgamento do recurso de apelação em regime mais gravoso 493. Mesmo antes das alterações produzidas pelas Leis 11.689/08 e 11.719/08, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já havia se firmado no sentido de reconhecer que a prisão decorrente de sentença condenatória meramente recorrível não transgride o princípio consti­ tucional da não culpabilidade, desde que a privação da liberdade do sen­ tenciado - satisfeitos os requisitos de cautelaridade que lhe são inerentes - encontrasse fundamento em situação evidenciadora da real necessidade de sua adoção: STF, 2a Turma, HC 89.754/BA, Rei. Min. Celso de Mello, DJU 27/04/2007, p. 106. No âmbito do STJ: STJ, 6a Turma, HC 35.100/GO, Rei.

Min. Paulo Medina, DJU 01/08/2005, p. 566. 494. Nesse contexto, como já se pronunciou o Supremo, não há lógica em se permitir que o acusado, preso preventivamente durante toda a instrução criminal, aguarde em liberdade o trânsito em julgado da causa, se mantidos os motivos da segregação cautelar: STF, 1 aTurma, HC 89.824/ MS, Rei. Min. Carlos Britto, j. 11/03/2008, DJe 162 28/08/2008.

495. Nesse contexto: STJ, 6a Turma, RHC 114.974-CE, Rei. Min. Laurita

Vaz, j. 04.08.2020, DJe 19.08.2020.

que aquele fixado no decreto condenatório. Logo, considerando que a prisão cautelar acarreta o reco­ lhimento do acusado à prisão em circunstâncias ab­ solutamente semelhantes ao cumprimento da pena no regime fechado, há diversos precedentes da 5a Turma do STJ no sentido de que, fixado o regime inicial semiaberto para o cumprimento da pena, o acusado tem o direito de aguardar o julgamento do recurso de apelação no mesmo regime, aplicando-se, desde já, as respectivas regras.496 Enfim, a prisão preventiva pode ser mantida por ocasião da sen­ tença condenatória recorrível que aplicou o regime semiaberto para o cumprimento da pena, desde que persistam os motivos que inicialmente a justificaram e que seu cumprimento se adeque ao modo de execu­ ção intermediário aplicado. De fato, não é razoável manter o réu constrito preventivamente durante o desenrolar da ação penal e, por fim, libertá-lo ape­ nas porque foi agraciado com regime de execução diverso do fechado, permitindo-lhe que, solto, ou mediante algumas condições, aguarde o trânsito em julgado da condenação. Afinal, quando presentes as hipóteses autorizadoras da prisão preventiva, não há sentido lógico permitir que o réu, preso preven­ tivamente durante toda a instrução criminal, possa aguardar o julgamento da apelação em liberdade. Por outro lado, tendo em vista a imposição do re­ gime semiaberto na condenação, se faz necessário compatibilizar a manutenção da custódia cautelar com o aludido modo de execução, sob pena de estar-se impondo ao condenado modo mais gravoso tão somente pelo fato de ter optado pela interposição 496. STJ, 5a Turma, HC 218.098/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 08/05/2012,

DJe 21/05/2012. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 227.960/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 18/10/2012. STJ, 5a Turma, HC 89.018, Rei. Min. Arnaldo Esteves

Lima, j. 18/12/2007, DJe 10/03/2008. No sentido de que há compatibilida­

de entre a prisão cautelar mantida pela sentença condenatória e o regime

inicial semiaberto fixado nessa decisão, devendo o réu, contudo, cumprir a respectiva pena em estabelecimento prisional compatível com o regime inicial estabelecido: STJ, 5aTurma, HC 289.636/SP, Rei. Min. Moura Ribeiro, j. 20/5/2014. Sob o argumento de que a prisão cautelar tem como prin­ cipal característica a segregação total da liberdade de locomoção do acusado, não admitindo temperamento para ajustar-se a regime imposto na sentença diverso do fechado, a 5a Turma do STJ concluiu em recente julgado que, na hipótese de o acusado ser condenado a pena que deva ser cumprida em regime inicial diverso do fechado, não será admissível a decretação ou manutenção de prisão preventiva na sentença conde­ natória. Na visão daquele órgão colegiado, estabelecido o regime aberto ou semiaberto como o inicial para o cumprimento de pena, a decretação da prisão preventiva inviabiliza o direito de recorrer em liberdade, na medida em que impõe a segregação cautelar ao recorrente, até o trân­ sito em julgado, sob o fundamento de estarem presentes os requisitos ensejadores da prisão preventiva insertos no art. 312 do CPP. Ao admitir essa possibilidade, chegar-se-ia ao absurdo de ser mais benéfico ao réu renunciar ao direito de recorrer e iniciar imediatamente o cumprimento da pena no regime estipulado do que exercer seu direito de impugnar a decisão perante o segundo grau. A propósito: STJ, 5a Turma, RHC 52.407/ RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 10/12/2014, DJe 18/12/2014.

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de recurso, em flagrante ofensa ao princípio da razoabilidade.497 Mesmo antes do advento das Leis 11.689 e 11.719/08, já era possível afirmar que subsistiam apenas três hipóteses de prisão cautelar no ordena­ mento pátrio: flagrante, preventiva e temporária. A prisão decorrente de pronúncia e a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível já não podiam mais, de per si, legitimar uma custódia cautelar. De­ viam, sob pena de constrangimento ilegal, cingir-se, fundamentadamente, à órbita do art. 312 do CPP. Se assim o era, ou seja, se a prisão decorrente de pro­ núncia e de sentença condenatória recorrível tinham que estar atreladas a uma das hipóteses do art. 312, tinha-se, então, hipótese de prisão preventiva, e não uma prisão autônoma decorrente de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível.498

Com as alterações trazidas pelas leis que alte­ raram o procedimento comum e o procedimento do júri (Leis 11.689/08 e 11.719/08), põe-se fim a tal controvérsia, restando inequívoca a impossibi­ lidade de se considerar que a pronúncia e a senten­ ça condenatória recorrível legitimem, de per si, e desprovidas de qualquer fundamentação cautelar, o recolhimento ao cárcere. De fato, com a nova redação dada ao art. 413, § 3o, do CPP, pela Lei n° 11.689/08, por ocasião da pronúncia, o juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação, ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente de­ cretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a ne­ cessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319). O art. 594 do CPP foi expressamente revogado pelo art. 3o da Lei n° 11.719/08. Consoan­ te disposto no art. 387, § Io, do CPP, ao proferir sentença condenatória, o juiz decidirá fundamen­ tadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar (art. 319), sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta. De seu turno, no âmbito do Tribunal do Júri, o Juiz-presidente, ao proferir sentença condenatória, mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á na prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preven­ tiva (CPP, art. 492,1, “e”).

Como se vê, no momento da pronúncia, ou no momento da sentença condenatória recorrível, 497. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, RHC 53.828/ES, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 14/4/2015, DJe 24/4/2015.

498. STJ, 5a Turma, HC 48.090/MS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/03/2006, DJ 03/04/2006, p. 380.

continua sendo possível a decretação da prisão cautelar ou a imposição de medida cautelar diversa da prisão, devendo o magistrado, para tanto, apon­ tar a presença de seus pressupostos, tanto quando mantém medida cautelar anteriormente decretada, como quando a determina nesse momento. Por­ tanto, diante da nova redação do art. 387, § Io, do CPP, já não há mais dúvidas: quando da prolação da sentença penal condenatória, o magistrado tem um duplo dever - o de fundamentar o decreto de condenação penal e o de justificar a decretação da custódia cautelar ou a sua manutenção, se acaso necessária.499

A entrada em vigor da Lei n° 12.403/11 vem reforçar todo esse entendimento: seu art. 4o revogou expressamente o art. 393 e o art. 595 do Código de Processo Penal, corroborando o entendimento de que o recolhimento à prisão não é mais efeito da sentença condenatória recorrível e que a apelação não mais poderá ser declarada deserta se o conde­ nado fugir depois de haver apelado. Essas alterações legislativas oriundas da refor­ ma processual de 2008 têm repercussões práticas de suma relevância. Uma primeira consequência diz respeito aos acusados que permaneciam presos preventivamente durante o processo e que se valiam de habeas corpus para impugnar o decreto prisional por conta, por exemplo, do excesso de prazo. Era muito comum que, impetrado o writ, fosse proferida pelo juiz a sentença condenatória (ou pronúncia), hipótese, então, em que a anterior prisão preventi­ va seria substituída por uma prisão decorrente de sentença condenatória recorrível (ou de pronúncia). Nesses casos, os Tribunais costumavam declarar a perda do objeto do habeas corpus, porquanto teria havido a mudança do título da prisão. Com a nova sistemática, mantida a prisão preventiva do acusado depois da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível, subsiste interesse jurídico em se conhe­ cer de habeas corpus que ataque os fundamentos ou qualquer outro requisito de legalidade da prisão preventiva anteriormente decretada e mantida no momento da sentença ou da pronúncia, se não hou­ ver nova fundamentação com acréscimo de novos fatos a justificar a necessidade da prisão.500 499. STF, 2a Turma, HC 99.914/SC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23/03/2010, DJe 76 29/04/2010.

500. É nesse sentido a lição de Gustavo Henrique Badaró (As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. Coorde­ nação: Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 83). Para o Supremo, não fica prejudicado habeas corpus impetrado contra decreto de prisão cautelar, se superveniente sentença condenatória que utiliza os mesmos fundamentos para manter a custódia do réu: STF, 2a Turma, HC 119.396/ES, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 04/02/2014.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Outra mudança extremamente importante diz respeito aos acusados que tiveram a prisão decor­ rente de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível decretada em momento anterior à refor­ ma processual de 2008, com base nos fundamentos legais anteriores, quais sejam, por não se tratar de pessoa primária e portadora de bons antecedentes (CPP, art. 408, §§ Io e 2o, c/c art. 594). Com a nova redação do art. 387, § Io, do art. 413, § 3o, e do art. 492, inciso I, alínea “e”, todos do CPP, o fato de o acusado pronunciado ou sentenciado em primei­ ra instância não ser primário ou não possuir bons antecedentes deixou de ser fundamento legal para autorizar seu recolhimento ou permanência na pri­ são. Tais dispositivos, portanto, por repercutirem diretamente no ius libertatis do agente, devem ser considerados como normas processuais materiais, e, por conseguinte, retroagir em benefício daqueles que estavam presos.

Por conseguinte, a partir do dia 9 de agosto de 2008, data da vigência da Lei n° 11.689/08, e do dia 22 de agosto de 2008, data em que entrou em vigor a Lei n° 11.719/08, as prisões impostas como efeito automático de pronúncia ou de sentença condena­ tória recorrível, pelo simples fato de o acusado não ser primário ou não possuir bons antecedentes, tornaram-se ilegais, pois desprovidas de fundamento legal. Impõe-se, pois, o reconhecimento da ilegali­ dade de tais prisões, salvo se o magistrado apontar fundamentação cautelar que justifique a manuten­ ção da prisão do acusado, à luz de uma das hipóteses do art. 312 do CPP.

CAPÍTULO VIII

DA PRISÃO DOMICILIAR DA 1.

PRISÃO DOMICILIAR

Com as mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11, o Capítulo IV do Título IX do Livro I do CPP passou a dispor sobre a prisão domiciliar.

Levando em consideração certas situações es­ peciais, de natureza humanitária, a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar visa tor­ nar menos desumana a segregação cautelar, permi­ tindo que, ao invés de ser recolhido ao cárcere, ao agente seja imposta a obrigação de permanecer em sua residência. Para que ocorra essa substituição, que só pode ser determinada pela autoridade ju­ diciária, deve se exigir prova idônea dos requisitos

estabelecidos no art. 318 do CPP.501 O disposto nos arts. 317e318do CPP tem aplicação em casos de prisão preventiva, sendo inadequado quando se trata de execução de título condenatório alcançado pela preclusão maior (trânsito em julgado).502 Nada diz a lei quanto à natureza do crime como requisito para a substituição da prisão preventiva pela domiciliar. Destarte, queremos crer que o be­ nefício sob comento é aplicável a qualquer espécie de infração penal, tenha ou não natureza hedionda, desde que, logicamente, preenchidos os requisitos alternativos dos incisos do art. 318 do CPP. Interessante perceber que o legislador estabele­ ceu a prisão domiciliar no Capítulo IV, denominado “Da prisão domiciliar”. Como este capítulo está in­ serido no Título IX (“Da prisão, das medidas cau­ telares e da liberdade provisória”), e por ser a prisão domiciliar medida substitutiva da prisão preventiva, mantém o mesmo caráter cautelar desta, isto é, a prisão domiciliar também possui natureza cautelar e a sua finalidade será a mesma da prisão substituída.

Também é importante notar que a prisão do­ miciliar foi inserida em tópico diverso daquele pertinente às medidas cautelares diversas da prisão (Capítulo V, arts. 319 e 320). Isso significa que a pri­ são domiciliar é considerada pelo legislador como uma forma de prisão preventiva domiciliar e não como medida cautelar alternativa à prisão. Portan­ to, a prisão domiciliar não foi criada, em princípio, com a finalidade de impedir a decretação da pri­ são preventiva, mas justamente de substituí-la, por questões humanitárias e excepcionais, previstas no art. 318 do CPP.

Como destaca a doutrina, da constatação de que a prisão domiciliar funciona como uma espécie de prisão preventiva, decorrem importantes conse­ quências: a) possibilidade de uso de habeas corpus-, b) possibilidade de detração; c) necessidade de ser limitada no tempo, de acordo com prazo razoável; d) possibilidade de haver guarda permanente da habitação; e) possibilidade de caracterização, em tese, do crime de evasão (CP, art. 352), se houver violência contra a pessoa.503 501. No sentido de que a prisão domiciliar possui cunho humanitário: STJ, 6a Turma, HC 138.986/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 17/11/2009, DJe 07/12/2009. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e a prisão domiciliar: STF, 2aTurma, HC 98.675/ES, Rel. Min. Eros Grau, j. 09/06/2009, DJe 20/08/2009. 502. Nessa linha: STF, 1aTurma, HC 177.164/PA, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 18/02/2020; STF, 1a Turma, HC 188.850-ES, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15.09.2020, DJe 29.09.2020.

503. Nesse sentido: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medi­ das cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 409.

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Caso haja descumprimento da prisão domici­ liar, o juiz deve analisar se é caso de revogação do benefício, restaurando-se a prisão preventiva do agente, nos termos do art. 282, § 4o, do CPP. Essa substituição da prisão cautelar pela prisão domiciliar prevista nos arts. 317e318do CPP não se confunde com a medida prevista no art. 117 da Lei de Execução Penal. Este dispositivo cuida da possibilidade do recolhimento do beneficiário do regime aberto504 em residência particular quando se tratar de: I - condenado maior de 70 (setenta) anos; II - condenado acometido de doença grave; III - condenada com filho menor ou deficiente fí­ sico ou mental; IV - condenada gestante. Além das hipóteses previstas no art. 117 da LEP, é pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que, na falta de vagas em estabelecimento compatível ao regime a que faz jus o apenado (v.g, semiaberto), configura constrangimento ilegal a sua submissão ao cumpri­ mento de pena em regime mais gravoso, devendo o mesmo cumprir a reprimenda em regime aberto, ou em prisão domiciliar, na hipótese de inexistência de Casa de Albergado.505 504. Sob o argumento de que a aplicação do art. 117 da LEP - cum­ primento da sanção em regime domiciliar - pressupõe o enquadramento em uma das situações jurídicas nele contempladas, dentre eles o de se tratar o condenado beneficiário de regime aberto, a 1a Turma do STF (HC 177.164/PA, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 18/02/2020) denegou o cumpri­ mento de sanção penal em regime domiciliar à paciente que fora con­ denada à pena de 26 anos em regime fechado, conquanto comprovada

a existência de filho menor.

505. STJ, 5a Turma, REsp 1.187.343/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 17/03/2011, DJe 04/04/2011. E ainda: STJ, 6a Turma, HC 158.783/RS, Rei.

Min. Celso Limongi, Desembargador Convocado doTJ/SP, j. 31/08/2010,

DJe 20/09/2010. No sentido de que o condenado em regime semiaberto que faz jus à progressão tem direito a cumprir a pena em prisão domiciliar

pelo menos enquanto não surgir vaga em estabelecimento prisional com as condições necessárias ao adequado cumprimento da pena em regime

aberto: STJ, 6a Turma, HC 216.828/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis

Moura, j. 02/02/2012. Constatada pelo juízo da execução a inexistência, no Estado-membro, de estabelecimento prisional para cumprimento de pena em regime aberto, nos termos da sentença, permite-se o início do cumprimento em prisão domiciliar, até ser disponibilizada vaga no regime adequado: STF, 1a Turma, HC 113.334/RS, Rei. Min. Rosa Weber, j. 18/02/2014). Na visão da 5a Turma do STJ, a superlotação carcerária e a precariedade das condições da casa de albergado não são justifi­ cativas suficientes para autorizar o deferimento de pedido de prisão

domiciliar. Nessa linha: STJ, 5a Turma, HC 240.715/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 23/04/2013. A inexistência de casa de albergado na localidade da execução da pena não gera o reconhecimento de direito ao benefício da prisão domiciliar quando o paciente estiver cumprindo a reprimenda em local compatível com as regras do regime aberto. O STJ tem admitido, excepcionalmente, a concessão da prisão domiciliar quando não houver local adequado ao regime prisional imposto.Todavia, na hipótese em que o paciente, em face da inexistência de casa de albergado, estiver cumprin­ do pena em local compatível com as regras do regime aberto - tendo o juízo da execução providenciado a infraestrutura necessária, atento ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade -, não se vislumbra o necessário enquadramento nas hipóteses excepcionais de concessão do regime prisional domiciliar. A propósito: STJ, 5a Turma, HC 299.315/ RS, Rei. Min. Gurgel de Faria, j. 18/12/2014, DJe 2/2/2015.

Como se vê, enquanto os arts. 317 e 318 do CPP cuidam da substituição da prisão preventiva, espécie de prisão cautelar, pela prisão domiciliar, a prisão-albergue domiciliar prevista no art. 117 da LEP funciona como modalidade de prisão aberta, ou seja, hipótese de cumprimento de prisão penal de regime aberto em residência particular. Essa prisão domiciliar prevista nos arts. 317 e 318 do CPP, que funciona como substitutivo da prisão preventiva justificada por razões humanitá­ rias, também não se confunde com o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga, previsto como medida cautelar autônoma no art. 319, inciso V, do CPP. Na primeira situação, temos a veri­ ficação da presença dos elementos necessários para a decretação da prisão preventiva do agente (CPP, art. 312). Porém, por conta da presença de uma das situações especiais do art. 318, a prisão preventiva será substituída pelo recolhimento domiciliar, sendo que o agente só pode se ausentar de sua residência com autorização judicial.

Lado outro, a medida cautelar de recolhimento domiciliar apenas no período noturno e nos dias de folga deve ser adotada quando o juiz entender que, apesar de ser cabível a prisão preventiva, sua decre­ tação não é necessária, porque a medida cautelar do art. 319, V, do CPP, já seria suficiente para produzir o mesmo resultado. Nesse caso, não é necessário que o agente preencha os requisitos do art. 318, os quais são pressupostos para a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, e não para a aplicação da medida cautelar autônoma do art. 319, inciso V. Outra diferença é que a medida cautelar diversa da prisão do art. 319, V, do CPP, permite que o agente trabalhe durante o dia, recolhendo-se à residência apenas à noite ou nos dias de folga.

Certamente haverá questionamentos quanto à possibilidade de substituição da prisão temporária pela prisão domiciliar. O art. 318, caput, do CPP, refere-se apenas à possibilidade de substituição da preventiva pela domiciliar, silenciando acerca da prisão temporária. A nosso ver, esse silêncio elo­ quente deve ser interpretado no sentido da impos­ sibilidade de substituição da prisão temporária pela domiciliar. Em primeiro lugar, porque a prisão temporária tem prazo de duração bem reduzido - 5 (cinco) dias, prorrogáveis por igual período, ou 30 (trinta) dias, também prorrogáveis por igual período, em se tratando de crimes hediondos e equiparados. Esse prazo de duração mais curto demonstra que a prisão temporária não tem o condão de causar os mesmos prejuízos à saúde que a prisão preventiva,

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

cuja indeterminação temporal acaba por repercutir de maneira bem mais grave e cruel. Em segundo lu­ gar, considerando que o objetivo precípuo da prisão temporária é assegurar a eficácia das investigações, parece-nos que esse objetivo estaria seriamente comprometido se acaso o agente permanecesse no gozo de prisão domiciliar.

1.1. Hipóteses de admissibilidade e ônus da prova Antes de analisarmos as hipóteses que autori­ zam a substituição da prisão preventiva pela domi­ ciliar, convém destacar que a presença de um dos pressupostos indicados no art. 318, isoladamente considerado, não assegura ao acusado, automatica­ mente, o direito à substituição da prisão preventiva pela domiciliar. O princípio da adequação também deve ser aplicado à substituição (CPP, art. 282, II), de modo que a prisão preventiva somente pode ser substituída pela domiciliar se se mostrar adequada à situação concreta. Do contrário, bastaria que o acu­ sado atingisse a idade de 80 (oitenta) anos para que tivesse direito automático à prisão domiciliar, com o que não se pode concordar. Portanto, a presença de um dos pressupostos do art. 318 do CPP funcio­ na como requisito mínimo, mas não suficiente, de per si, para a substituição, cabendo ao magistrado verificar se, no caso concreto, a prisão domiciliar seria suficiente para neutralizar o periculum liberta­ tis que deu ensejo à decretação da prisão preventiva do acusado.

De acordo com a nova redação dos arts. 317 e 318 do CPP, o juiz poderá aplicar a prisão domiciliar como medida substitutiva da prisão preventiva nas seguintes hipóteses: a) agente maior de 80 (oitenta) anos: verifi­ cando o juiz que se trata de pessoa maior de 80 (oitenta) anos, com o estado de saúde debilitado e fragilizado, o que demonstra a inconveniência e a desnecessidade de sua manutenção no cárcere, é possível a substituição da prisão preventiva pela do­ miciliar. No sentido da possibilidade de substituição da prisão penal pela domiciliar com fundamento na LEP, e não no CPP, o STJ já havia se pronunciado no seguinte sentido: “Conquanto esteja recluso no regi­ me fechado, verifica-se que o paciente possui mais de 70 (setenta) anos de idade e é portador de cân­ cer de próstata, trombose e aneurisma abdominal, bem como apresenta quadro depressivo, conforme comprovado nos autos. Assim, embora o estabeleci­ mento prisional seja dotado de estrutura para aten­ dimentos emergenciais, as enfermidades descritas necessitam de cuidados específicos e continuados,

ensejando a concessão da prisão domiciliar como medida, até mesmo, de cunho humanitário. Ordem concedida a fim de determinar a transferência do paciente para a prisão domiciliar, em virtude do seu comprovado estado de saúde debilitado e da sua idade avançada”.506 b) agente extremamente debilitado por moti­ vo de doença grave: não basta que o acusado esteja extremamente debilitado por motivo de doença para grave para que possa fazer jus, automatica­ mente, à prisão domiciliar. Há necessidade de se demonstrar, ademais, que o tratamento médico do qual o acusado necessita não pode ser ministrado de maneira adequada no estabelecimento prisional, o que estaria a recomendar que seu tratamento fosse prestado na sua própria residência. Mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, os Tribunais Superiores já admitiam a possibilidade de o magis­ trado substituir a prisão preventiva por domiciliar na hipótese de doença grave. Em caso concreto re­ ferente a acusado que foi submetido à cirurgia para a retirada de câncer da próstata e, em razão disso, necessitava de tratamento radioterápico sob risco de morte, além de precisar ingerir medicamentos específicos, entendeu o STJ que, excepcionalmente, pode-se conceder ao preso provisório o benefício da prisão domiciliar, porquanto demonstrada a gravidade do estado de saúde e a impossibilidade de o estabelecimento prisional prestar a devida as­ sistência médica.507 Na mesma linha de raciocínio, porém no tocante à possibilidade de substituição da prisão penal pela prisão domiciliar, nos termos do art. 117, inciso II, da LEP, sempre foi esse o entendimento jurisprudencial: “ser portador de doença crônica incurável não garante, por si só, o direito à prisão domiciliar, sendo indispensável a prova incontroversa de que o custodiado depende efetivamente de tratamento médico que não pode ser ministrado no estabelecimento prisional”;508 506. STJ, 6a Turma, HC 138.986/DF, Rei. Min. Maria Thereza de Assis

Moura, j. 17/11/2009, DJe 07/12/2009.

507. STJ, 6aTurma, HC 202.200/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, j. 21/6/2011, DJe 24/08/2011. Em sentido semelhante: STF, 2a Turma, HC 153.961/DF, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 27/03/2018. 508. STJ, 5a Turma, HC 47.115/SC, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 18/10/2005, DJ 05/12/2005 p. 349. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 66.702/MT, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 12/12/2006, DJ 05/02/2007 p. 309. No sentido de que a substituição depende de comprovação da imprescindibilidade do tratamento externo,o que não deflui de quadro de diabete e hipertensão, males que podem ser, medicamentosamente, controlados no interior da unidade penitenciária: STJ,6aTurma, HC 120.121/SC, Rei. Min. MariaThereza

de Assis Moura, j. 03/09/2009, DJe 21/09/2009. No sentido de que, não obstante o fato de o apenado efetivamente apresentar limitações físicas, tendo sido acometido por acidente vascular encefálico isquêmico, não restou demonstrada a impossibilidade de prestação da devida assistência médica no estabelecimento penal em que se encontra recolhido, bem como a precariedade do seu estado de saúde, daí por que lhe foi negada

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c) agente que seja imprescindível aos cuida­ dos especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência: ao contrário da LEP, que permite à mulher condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental cumprir a pena em prisão domiciliar, o CPP não exige que se trate de mulher, já que se refere ao agente que seja impres­ cindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência. Apesar de não ser tão comum, há situações em que a única pessoa responsável pelo menor ou deficiente é o pai ou outro homem da família, como, por exemplo, na hipótese em que o genitor tem a guarda exclusiva dos filhos. Não por outro motivo, ao conceder a ordem no Habeas Corpus Coletivo n. 165.704/DF (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20.10.2020), a 2a Tur­ ma do STF afirmou categoricamente que tem direito à substituição da prisão preventiva pela domiciliar - desde que observados os requisitos do art. 318 do CPP e não praticados crimes mediante violência ou grave ameaça ou contra os próprios filhos ou depen­ dentes - os pais, caso sejam os únicos responsáveis pelos cuidados de menor de 12 anos ou de pessoa com deficiência, bem como outras pessoas presas, que não sejam a mãe ou o pai, se forem imprescin­ díveis aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 anos ou com deficiência. Na visão do referido cole­ giado, em observância à proteção integral e à priori­ dade absoluta conferidas pela Constituição Federal de 1988 às crianças e às pessoas com deficiência, é cabível a substituição da prisão preventiva em prisão domiciliar, nos casos dos incisos III e VI do art. 318 do CPP, quando o contexto familiar do investigado ou réu demonstrar a sua importância para a criação, o suporte, o cuidado e o desenvolvimento de criança ou pessoa com deficiência, bem como em decor­ rência das circunstâncias de grave crise na saúde pública nacional que geram riscos mais elevados às pessoas inseridas no sistema penitenciário, em especial em razão da proliferação do Coronavírus (Covid-19) no Brasil. Portanto, eventual recusa à a substituição da prisão penal pela domiciliar: STJ, 5aTurma, HC 84.685/RS, Rel. Min. Jane Silva - Desembargadora convocada doTJ/MG, j. 27/09/2007, DJ 15/10/2007. Em caso concreto no qual o agente sofria de diabetes tipo II, hipertensão arterial sistêmica e histórico de obesidade mórbida, além de ter sido submetido à cirurgia oncológica para a remoção de parte do pâncreas, o Supremo indeferiu o pedido de substituição da prisão penal por prisão domiciliar humanitária. Primeiro, por conta da ausência de doença grave atestada por junta médica oficial. Segundo, porque o sistema peni­ tenciário teria condições de oferecer a dieta e o acompanhamento médico e nutricional prescritos para o tratamento do sentenciado. Destarte, ape­ sar de o estado clínico do preso exigir o uso contínuo de medicamentos, sua situação não demandaria permanência em prisão domiciliar fixa, até mesmo porque a família poderia encaminhar à unidade prisional eventuais medicamentos ou gêneros alimentícios que integrassem a prescrição mé­ dica e não estivessem disponíveis no sistema carcerário (STF, Pleno, EP 23 AgR/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 222 11/11/2014).

substituição deve ser amplamente fundamentada pelo magistrado e só deve ocorrer em casos gra­ ves, tais como a prática pelo acusado de crime com violência ou grave ameaça à pessoa ou a prática de delitos contra sua própria prole. O objetivo da prisão domiciliar do art. 318, III, do CPP, é não prejudicar a criança menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência em decorrência da decretação da prisão preventiva da pessoa indispensável aos seus cuida­ dos. Trata-se de situação excepcional, tanto que o próprio legislador refere-se à imprescindibilidade do agente para os cuidados especiais. Assim, se houver familiares em liberdade que possam ficar responsá­ veis por esse cuidado especial, não há necessidade de substituição da prisão preventiva pela domiciliar. Ademais, caso esses cuidados especiais possam ser dispensados pelo agente no próprio estabelecimento prisional, não há falar em aplicação do art. 318, III, do CPP. Nessa linha, o STJ já teve a oportunidade de concluir que, firmada a possibilidade de se assegurar o direito à amamentação contínua na prisão, não há por que se conceder à mulher o direito à prisão domiciliar previsto na LEP;509

d) gestante: na LEP, o art. 117, IV, permite o cumprimento da pena em regime domiciliar quan­ do se trata de condenada gestante. No CPP, o art. 318, IV, referia-se, inicialmente, à gestante a partir do 7° (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. Com o advento do Marco Civil da Primeira Infância - Lei n° 13.257, com vigência em data de 9 de março de 2016 -, o inciso IV do art. 318 passou a autorizar a referida substituição quando se tratar de gestante. Ou seja, pelo menos de acordo com a nova redação do dispositivo legal, não mais se faz necessária que a gestante esteja no sétimo mês de gravidez ou que sua gestação seja de alto risco. Basta que se trata de gestante. Novamente, há de se en­ tender que a substituição da preventiva pela prisão domiciliar só deverá ocorrer na hipótese em que o estabelecimento prisional não puder conceder trata­ mento adequado à gestante. Nesse sentido, como já se pronunciou o STJ, “não há ilegalidade na negativa de substituição da preventiva por prisão domiciliar quando não comprovada a inadequação do estabele­ cimento prisional à condição de gestante ou lactante da condenada, visto que asseguradas todas as ga­ rantias para que tivesse a assistência médica devida 509. STJ, 5a Turma, HC 133.287/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 02/03/2010, DJe 03/05/2010. Admitindo a substituição de prisão preventiva por prisão domiciliar, quando demostrada a imprescindibilidade de cuidados espe­ ciais de pessoa menor de 6 anos de idade (art. 318, III, do CPP) e o decreto prisional não indicar a periculosidade concreta a justificar a manutenção da segregação cautelar em estabelecimento prisional: STJ, 6a Turma, HC 291.439/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 22/5/2014.

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e condições de amamentar o recém-nascido”.510 A despeito do silêncio do legislador acerca do termo ad quem dessa prisão domiciliar, conclui-se que o direito à substituição cessa com o nascimento ou, ao menos, findo o puerpério, que se estende, em média, por cerca de três meses após o parto. Findo esse lapso temporal, a manutenção da prisão domiciliar somente será possível se presente uma das hipóteses do art. 318, incisos III e V, do CPP, leia-se, caso a pessoa seja imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência ou se for mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; e) mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos: a nova hipótese de substitui­ ção da prisão preventiva pela domiciliar prevista no inciso V do art. 318, com redação dada pela Lei n° 13.257/16, visa atender ao melhor interesse da criança (CF, art. 227, caput), permitindo que mãe e filho façam uso do direito à convivência familiar em local diverso do cárcere. Também encontra raízes em importante documento internacional intitulado Regras de Bangkok, que são Regras das Nações Uni­ das para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Tais Regras propõem um olhar diferenciado para as especificidades de gênero no encarceramento fe­ minino, tanto no campo da execução penal, como também na priorização de medidas não privativas de liberdade, ou seja, que evitem a entrada de mu­ lheres no sistema carcerário.511 O novel inciso V do art. 318 do CPP deve ser interpretado com extre­ ma cautela. Isso porque, à primeira vista, fica a im­ pressão de que o simples fato de a mulher ter filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos daria a ela, automaticamente, o direito de ter sua prisão

preventiva substituída pela prisão domiciliar, o que não é correto. Na verdade, se considerarmos que o próprio Marco Civil da Primeira Infância introduziu diversas mudanças no CPP, tornando obrigatória a colheita de informações da (o) investigada (o) quanto à existência de filhos, respectivas idades, se possuem alguma deficiência e o nome e o conta­ to de eventual responsável pelos cuidados dos filhos (CPP, art. 6o, inciso X, art. 185, § 10, art. 304, § 4o, todos com redação determinada pelo art. 41 da Lei n° 13.257/16), fica evidente que, para fins de con­ cessão do benefício da prisão domiciliar cautelar sob comento, incumbe à interessada comprovar que não há nenhuma outra pessoa que possa cuidar do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. Logo, se houver familiares (v.g., avó, tia, pai) em liberdade que possam ficar responsáveis por esse filho, não há por que se determinar a substituição da prisão pre­ ventiva pela domiciliar. Não por outro motivo, em caso concreto de cidadã estrangeira, sem domicílio no Brasil, que foi presa em flagrante no Aeroporto Internacional de Guarulhos/SP transportando para o exterior mais de 2kg de cocaína acondicionadas clandestinamente no interior de sua bagagem, a 5a Turma do STJ deliberou pela manutenção da prisão preventiva, eis que não ostentaria a condição de úni­ ca responsável pelos cuidados dos filhos menores, uma vez que ela mesmo teria afirmado que o pai é quem cuida das crianças;512 f) homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de ida­ de incompletos: com melhor redação que o inciso anterior, o art. 318, inciso VI, do CPP, com reda­ ção dada pela Lei n° 13.257/16, deixa claro que a prisão preventiva só será substituída pela domici­ liar quando não houver ninguém que possa assumir os cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.

510. STJ, 5aTurma, HC 328.813/SP, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Rapo­ so - Desembargador convocado doTJ/PE -, j. 1 °/10/2015, DJe 08/10/2015.

Na mesma linha: STJ, 5aTurma, HC 231.265/RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 18/12/2014, DJe 02/02/2015. Admitindo a substituição de prisão pre­ ventiva por domiciliar em relação à acusada de tráfico de drogas em

estágio avançado de gravidez - 7 (sete) meses -, sobretudo porque a penitenciária em que ela se encontrava não era dotada de estrutura física para acolhimento de presas nessa condição: STF, 2a Turma, HC 128.381 / SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 09/06/2015, DJe 128 30/06/2015. 511. Nesse contexto: STF, 2a Turma, HC 134.734, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30/06/2016. Nos autos do Habeas Corpus n° 134.069/DF (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 21/06/2016), a 2a Turma do STF concedeu a ordem para fins de determinar a substituição de prisão preventiva por domiciliar de paciente, acusada de tráfico de drogas, que dera à luz enquanto se encontrava encarcerada, para que a criança e a mãe pudessem permane­ cer juntas em ambiente que não lhes causasse danos. Com base no art. 318, V, do CPP, a 1aTurma do STF (HC 136.408/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05/12/2017) concedeu a ordem em habeas corpus para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar de mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos que fora presa em flagrante pela prática do crime de tráfico de drogas. O benefício foi negado ao marido, que também fora preso em flagrante pela prática do mesmo crime.

Especificamente quanto às hipóteses de prisão domiciliar previstas nos incisos III, IV e V do art. 318 do CPP, é importante ficar atento à decisão proferida pela 2a Turma do STF no habeas corpus coletivo513 n. 143.641, impetrado em favor de todas as mulheres presas preventivamente que ostentas­ sem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade. Ante a 512. STJ, 5aTurma, AgRg no RHC 128.660/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 18.08.2020, DJe 24.08.2020.

513. Para melhor compreensão do habeas corpus coletivo, assim compreendido como aquele writ que tem por paciente uma coletividade determinada ou, ao menos, determinável, remetemos o leitor ao Título 14 do nosso Manual ("Ações autônomas de impugnação"), mais preci­ samente ao Capítulo I, atinente ao Habeas Corpus, item n. 5.1.1. Habeas Corpus coletivo.

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comprovação nos autos de que mulheres grávidas e mães de crianças estariam, de fato, cumprindo pri­ são preventiva em situação degradante, privadas de cuidados médicos pré-natais e pós-parto, inexistindo, outrossim, berçários e creches para seus filhos, a ordem foi concedida no referido writ para se de­ terminar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar — sem prejuízo da aplicação concomi­ tante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP — de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda, nos termos do art. 2o do ECA e da Con­ venção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), enquanto perdurasse tal condição, excetuados os ca­ sos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deveríam ser devidamente fundamentadas pelos juizes que denegassem o benefício.514 A ordem foi estendida, de ofício, às demais mulheres presas, gestantes, puérpe­ ras ou mães de crianças e de pessoas com deficiên­ cia, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas acima. Quando a detida fosse tecnicamente reincidente, o juiz deveria proceder em atenção às circunstân­ cias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, obser­ vando, ademais, a diretriz de excepcionalidade da prisão. Se o juiz entendesse que a prisão domiciliar se mostrava inviável ou inadequada em determi­ nadas situações, poderia substituí-la por medidas alternativas arroladas no já mencionado art. 319 do CPP. Para apurar a situação de guardiã dos filhos da mulher presa, dever-se-ia dar credibilidade à palavra da mãe. Facultava-se ao juiz, sem prejuízo de cumprir, desde logo, a determinação em apreço, requisitar a elaboração de laudo social para eventual

514. No sentido de que não é cabível a substituição da prisão pre­ ventiva pela domiciliar quando o crime é praticado na própria residência da agente, onde convive com filhos menores de 12 anos, notadamente se constar dos autos laudo pericial de assistente social atestando que a paciente usava de sua própria residência para a prática delituosa: STJ, 6a Turma, HC 441.781/SC, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 12/06/2018, DJe 19/06/2018. Ao apreciar o HC 168.900/MG (Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/09/2019), versando sobre mulher que fora preventivamente pela suposta prática dos crimes de associação criminosa, posse irregular de arma de fogo de uso permitido e posse irregular de arma de fogo de uso

restrito, a 1a Turma do STF denegou a ordem, rejeitando o argumento da impetrante no sentido de que a custódia cautelar não poderia subsistir por se tratar de mãe de criança. Na visão do referido colegiado, a prisão estaria devidamente fundamentada na garantia da ordem pública, por se tratar de pessoa supostamente integrante de grupo criminoso voltado ao cometimento dos delitos de tráfico de drogas, disparo de armas de fogo, ameaça e homicídio. Revelar-se-ia indevida, portanto, a substitui­ ção da prisão por medida cautelar diversa, até mesmo porque o próprio convívio da mãe com o menor poderia prejudicar seu desenvolvimento.

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reanálise do benefício. Caso se constatasse a sus­ pensão ou destituição do poder familiar por outros motivos que não a prisão, a presente ordem não seria aplicável.515

Essa decisão da Suprema Corte acabou sendo positivada pela Lei n. n. 13.769/18, responsável pela inclusão de dois novos artigos ao Código de Proces­ so Penal. Com efeito, de acordo com o art. 318-A do CPP, a prisão preventiva imposta à mulher ges­ tante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por pri­ são domiciliar, desde que: I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa; II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente. Por sua vez, consoante disposto no art. 318-B, a substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP.

Outrossim, a despeito de os arts. 318, incisos IV e V, e 318-A do CPP fazerem menção expressa à substituição da prisão preventiva, espécie de prisão cautelar, há precedentes do STJ admitindo a con­ cessão de prisão domiciliar mesmo em se tratando de prisão penal, até mesmo porque referido benefí­ cio também está previsto na Lei de Execução Penal (art. 117, III). Por isso, em caso concreto envolvendo acusada que havia sido beneficiada com a conversão da preventiva em domiciliar, mas que teve contra si expedido mandado de prisão diante do esgotamento da instância no Tribunal de Apelação - o julgado é anterior à mudança de orientação do Supremo no julgamento das ADC s 43, 44 e 54 -, a 5a Turma do STJ concedeu a ordem para conceder prisão domi­ ciliar, mesmo em se tratando de execução provisória da pena. Na visão do referido colegiado, uma inter­ pretação teleológica da Lei n. 13.257/2016, em con­ junto com as disposições da Lei de Execução Penal, e à luz do constitucionalismo fraterno, previsto no art. 3o, bem como no preâmbulo da Constituição Fe­ deral, revela ser possível se inferir que as inovações trazidas pelo novo regramento podem ser aplicadas também à fase de execução da pena.516 Atento ao alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus, ao agravamento significativo do risco de contágio em estabelecimentos prisionais, tendo em vista, ademais, fatores como a aglome­ ração de pessoas, a insalubridade dessas unidades, as dificuldades para garantia da observância dos 515. STF, 2a Turma, HC 143.641/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20/02/2018.

516. STJ, 5a Turma, HC 487.763/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fon­ seca, j. 02/04/2019, DJe 16/04/2019.

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procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, e a insuficiên­ cia de equipes de saúde, entre outros problemas, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomen­ dação n. 62, de 17 de março de 2020, sugerindo aos Tribunais e magistrados a adoção de inúmeras medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus - Covid-19 - no âmbito dos sis­ temas de justiça penal e socioeducativo. Para o STJ, todavia, a Recomendação n. 62 do CNJ, isoladamente considerada, não teria implicado automática substituição da prisão preventiva pela domiciliar. É bem verdade que, em decisão isolada do Min. João Otávio de Noronha, então Presidente do STJ e plantonista durante o recesso judiciário, foi concedida a liminar nos autos do HC 594.360/ RJ (j. 09.07.2020), para determinar a substituição da prisão preventiva de F. Q., investigado pela prá­ tica de um esquema de “rachadinha” na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (peculato, lavagem de capitais, organização criminosa e obstrução de jus­ tiça), e de sua esposa, a qual, aliás, estava inclusive foragida por ocasião da concessão da ordem, colocando-os em prisão domiciliar. Majoritariamente, porém, acabou prevalecendo no âmbito do STJ o entendimento de que, para tanto, o eventual be­ neficiário deveria demonstrar: a) sua inequívoca adequação no chamado grupo de vulneráveis do COVID19 (v.g., pessoas idosas, gestantes, portado­ ras de doenças crônicas, imunossupressoras, respi­ ratórias ou de outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doençs renais, HIV e coinfecções); b) a impossibilidade de receber tratamento no estabelecimento prisional em que se encontra; e c) risco real de que o estabelecimento em que se encontra, e que o segrega do convívio social, causa mais risco do que o ambiente em que a sociedade está inserida.517

Nessa linha de entendimento, em habeas corpus coletivo impetrado pela DPU em favor de todas as pessoas presas em locais acima da sua capacidade, que sejam integrantes de grupos de risco para a covid-19, e que não tenham praticado crimes com violência ou grave ameaça, a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal referendou medida liminar, con­ cedida, em parte, pelo Relator, Min. Edson Fachin 517. Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, AgRg no RHC 128.660SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 18.08.2020, DJe 24.08.2020. No sentido de que a crise sanitária decorrente do novo coronavírus é insuficiente a autorizar recolhimento domiciliar ou progressão anteci­ pada de regime: STF, 1a Turma, HC 188.85/ES, Rei. Min. Marco Aurélio, j.

15.09.2020, DJe 29.09.2020.

(HC 188.820 MC-Ref/DF, j. 24.02.2021), nos se­ guintes termos: a) quanto à progressão antecipada da pena: determinar que os juizes de execução penal do país, desde que presentes os requisitos subjetivos (LEP, art. 112, §1°), concedam progressão antecipada da pena aos condenados que estejam no regime semia­ berto para o regime aberto em prisão domiciliar e que, cumulativamente, atendam aos seguintes re­ quisitos: i) estejam em presídios com ocupação aci­ ma da capacidade física; ii) comprovem, mediante documentação médica, pertencer a um grupo de risco para a Covid-19; iii) cumpram penas por cri­ mes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, salvo se condenados por crimes previstos na Lei n. 12.850/13 (organizações criminosas), Lei n. 9.613/98 (lavagem de capitais), contra a adminis­ tração pública, por crimes hediondos ou por crimes de violência doméstica contra a mulher; iv) faltem 120 (cento e vinte) dias para completar o requisito objetivo para a progressão do regime semiaberto para o aberto (art. 112 e parágrafos da LEP). Ressal­ vou, todavia, que o juízo competente, caso entenda adequado, poderá deixar de conceder ao condenado essa progressão antecipada para o regime aberto em prisão domiciliar, caso objetivamente presentes as seguintes hipóteses cumulativas: 1) ausência de re­ gistro de caso de Covid-19 no estabelecimento pri­ sional respectivo; 2) adoção de medidas preventivas ao novo coronavírus pelo presídio; 3) existência de atendimento médico adequado no estabelecimento prisional. Destacou, ademais, que, alternativamente, o juízo competente poderá deixar de conceder a pro­ gressão caso presentes situações excepcionalíssimas que demonstrem objetivamente a ausência de risco concreto e objetivo à saúde do detento na hipótese de sua manutenção no cárcere e que o regime aberto em prisão domiciliar, ainda que com monitoração eletrônica, mostrar-se-ia manifestamente inadequa­ do ao caso concreto e causa de demasiado risco à segurança pública;

b) quanto à prisão domiciliar e à liberdade provisória: determinar que os juizes singulares e os Tribunais do País, quando emissores da ordem de prisão cautelar, de ofício ou mediante requerimento das partes, concedam prisão domiciliar ou liberda­ de provisória, ainda que cumuladas com medidas diversas da segregação (art. 319 do CPP), a presos que, cumulativamente, atendam aos seguintes re­ quisitos: i) estejam em presídios com ocupação aci­ ma da capacidade física; ii) comprovem, mediante documentação médica, pertencer a um grupo de risco para a Covid-19; iii) não estejam presos por crimes praticados sem violência ou grave ameaça,

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exceto em se tratando de infrações penais previstas na Lei n. 12.850/13 (organizações criminosas), na Lei n. 9.613/98 (lavagem de capitais), contra a ad­ ministração pública, hediondas ou por crimes de violência doméstica contra a mulher. Ressalvou, todavia, que o juiz competente, caso entenda ade­ quado, poderá deixar de conceder a prisão domi­ ciliar ou a liberdade provisória, caso objetivamente presentes as seguintes hipóteses cumulativas: 1) au­ sência de registro de caso de Covid-19 no estabele­ cimento prisional respectivo; 2) adoção de medidas de preventivas ao novo coronavírus pelo presídio; 3) existência de atendimento médico no estabele­ cimento prisional. Destacou, ademais, que, alter­ nativamente, o juízo competente poderá deixar de conceder prisão domiciliar ou liberdade provisória, se acaso presentes situações excepcionalíssimas que demonstrem a ausência de risco concreto e objetivo à saúde do detento na hipótese de sua manutenção no cárcere e que a soltura, mesmo com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319), mostrar-se-ia manifestamente inadequada ao caso concreto e causa de demasiado risco à segu­ rança pública. Em conclusão, convém destacar que recai sobre o interessado o ônus de comprovar categoricamente uma das situações que autorizam a prisão domici­ liar. É nesse sentido, aliás, o teor do parágrafo úni­ co do art. 318 do CPP: “Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo”. Diversamente do que se dá no âmbito do processo penal condenatório, em que o ônus da defesa é imperfeito, ou seja, basta criar uma dúvida razoável para que o magistrado possa absolver o acusado (v.g., CPP, art. 386, VI, in fine), na hipó­ tese de substituição da preventiva pela domiciliar, trata-se de ônus perfeito, ou seja, o in dubio pro reo não favorece o agente, daí por que, ausente a comprovação cabal pelo interessado da ocorrência de qualquer das hipóteses listadas no art. 318, deve ser indeferido o pedido.

1.2. Fiscalização da prisão domiciliar Apesar de os arts. 317e318do CPP silenciarem acerca do assunto, pensamos que a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar deve ser adotada em conjunto com a medida cautelar do monitoramento eletrônico (prisão domiciliar ele­ trônica). Primeiro, porque o próprio art. 282, § Io, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, permite que as medidas cautelares sejam aplicadas isolada ou cumulativamente. Segundo, porque a própria Lei de Execução Penal, ao tratar da prisão-albergue domiciliar, permite que o juiz 978

defina a fiscalização por meio de monitoramento eletrônico quando conceder a prisão domiciliar (Lei n° 7.210/84, art. 146-B, IV, acrescentado pela Lei n° 12.258/10). Nas hipóteses em que o processo criminal estiver em tramitação em determinado Estado da Federação, mas o acusado tiver residência em ou­ tro, impõe-se a expedição de carta precatória com a finalidade de fiscalização de prisão preventiva em regime domiciliar, devendo recair sobre o Juí­ zo deprecado a obrigação de fornecer tornozeleira eletrônica, quando disponível, e de fiscalizar a medida cautelar. Para a 3a Seção do STJ, ainda que houvesse prova da existência atual de tecnologia e de disponibilidade, no Juízo deprecante, de equi­ pamentos capazes de realizar o monitoramento de tornozeleira eletrônica em outros Estados da Fede­ ração, ainda assim tal monitoramento interestadual não seria aconselhável, na medida em que eventuais intercorrências derivadas de mal funcionamento da tornozeleira não poderíam ser sanadas a partir do Estado do Juízo deprecante, não sendo razoável se impor o deslocamento do acusado a outro Estado, sempre que houvesse a necessidade de solucionar algum problema técnico com o equipamento, sobre­ tudo em um país de dimensões continentais como o Brasil. Em tais circunstâncias, impõe-se, pois, ao Juízo deprecado lançar mão de todos os meios a seu dispor para o bom cumprimento da precatória, den­ tre eles o fornecimento de tornozeleira eletrônica, se acaso disponível.518 Caso não seja possível a utilização do monito­ ramento eletrônico, pensamos que não há óbice ao emprego de vigilância contínua na residência, caso se entenda necessária e conveniente, desde que com discrição e sem constrangimento ao preso. Afinal, cuida-se, a prisão domiciliar, de verdadeira espécie de prisão, cumprida, porém, na residência do acu­ sado. Nesse caso, afigura-se possível a utilização, por analogia, do quanto disposto no art. 3o da Lei n° 5.256/67, que dispõe sobre a prisão especial: “Por ato de ofício do juiz, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial, o beneficiário da prisão domiciliar poderá ser submetido a vigilância policial, exercida sempre com discrição e sem cons­ trangimento para o réu ou indicado e sua família”.

1.3. Saídas controladas De acordo com o art. 317, a prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado 518. STJ, 3a Seção, CC 174.482-MG, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fon­ seca, j. 14.10.2020, DJe 20.10.2020.

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em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial. Como se percebe, toda e qual­ quer saída do agente de sua residência pressupõe prévia autorização judicial, que pode ser: a) específica: trata-se de autorização judicial para que o acusado possa se ausentar de sua residên­ cia apenas para uma situação determinada. Nesse caso, é possível a aplicação analógica do art. 120 da LEP, que autoriza a saída dos condenados que cum­ prem pena em regime fechado ou semiaberto e dos presos provisórios, mediante escolta, nos seguintes casos: a.l) falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão; a.2) necessidade de tratamento médico.

b) genérica: para situações mais amplas e corri­ queiras, tais como frequência a cultos religiosos, etc. Uma vez autorizada a saída, a permanência do preso fora de sua residência terá duração necessá­ ria à finalidade da saída. Ademais, é possível que essa saída seja acompanhada por escolta policial. Para tanto, basta que o juiz aplique, por analogia, o quanto disposto nos arts. 120 e 121 da LEP. A nosso juízo, afigura-se inviável que o preso domiciliar possa trabalhar. Isso porque as hipóteses que autorizam a substituição da prisão preventiva pela domiciliar são absolutamente incompatíveis com a possibilidade laborai. Com efeito, soaria mui­ to estranho que agente extremamente debilitado por motivo de doença grave (CPP, art. 318, II) estives­ se em condições de desempenhar uma atividade laborativa.

1.4. Utilização da prisão domiciliar como medi­ da cautelar diversa da prisão preventiva A prisão domiciliar regulamentada pelos arts. 317e318do CPP foi pensada como medida subs­ titutiva de anterior prisão preventiva. Não funcio­ na, pois, como medida cautelar diversa da prisão, o que pode ser confirmado pelo fato de não estar arrolada dentre as medidas do art. 319 do CPP. Discute-se, no entanto, acerca da possibilidade de aplicação da prisão domiciliar de modo a impedir a decretação da prisão preventiva, isto é, como medida alternativa à referida prisão.

Tendo em conta que o art. 282, § 6o, do CPP, dispõe que a prisão preventiva somente pode ser decretada se não for possível a substituição por outra medida alternativa à prisão, caso o magis­ trado entenda que a prisão domiciliar, por si só, é suficiente para resguardar a eficácia do processo, neutralizando uma das situações de perigo previstas no art. 282, inciso I, do CPP, pensamos não haver

óbice à aplicação da prisão domiciliar como medida alternativa à prisão preventiva. É bem verdade que o art. 282, § 6o, do CPP, faz referência apenas às medidas cautelares do art. 319 do CPP. Porém, não se pode perder de vista que, por força do princípio da proporcionalidade, a medida extrema da prisão preventiva só deve ser utiliza­ da pelo juiz quando não for possível o emprego de medida menos gravosa. De mais a mais, como será visto mais adiante, é plenamente possível a aplicação do poder geral de cautela no processo penal.

Destarte, sempre que o magistrado verificar que a prisão domiciliar se mostra adequada ao caso con­ creto, revelando-se por demais gravosa a imposição da prisão preventiva, poderá impor a prisão domi­ ciliar como medida cautelar autônoma. Nesse caso, não será necessária a observância das hipóteses do art. 318 do CPP. Basta que a prisão domiciliar seja adequada e suficiente para neutralizar os perigos indicados no art. 282, I, do CPP. Lado outro, caso o juiz constate que a prisão domiciliar não é sufi­ ciente para resguardar a eficácia do processo, deverá decretar a prisão preventiva, hipótese em que a pri­ são domiciliar só poderá ser concedida de maneira substitutiva, e desde que presentes os requisitos do art. 318 do CPP.519

1.5. Detração Nada disse a Lei n° 12.403/11 quanto à detração nas hipóteses de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar. Em que pese o silêncio do legislador, entendemos que, funcionando a prisão domiciliar como modalidade de cumprimento de prisão preventiva, o desconto do tempo de cumpri­ mento da medida em caso de condenação previsto no art. 42 do Código Penal é medida de rigor e ade­ quada. Sobre o assunto, aliás, o Código de Processo Penal italiano tem dispositivo expresso no sentido de que o imputado em arresto domiciliar se consi­ dera, para todos os efeitos, em estado de custódia cautelar (art. 284, 5).520

No mesmo contexto, o STJ já concluiu que o tempo de prisão cautelar efetivamente cumprida em regime domiciliar deve ser computado na pena privativa de liberdade para fins de detração (CP, art. 42).521 519. Com esse entendimento: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e ou­ tras medidas cautelarespessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 418. 520. Nessa linha: DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Medidas substitutivas e alternativas àprisão cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

p. 296.

521. STJ, 5aTurma, HC 11,225/CE, Rei. Min. Edson Vidigal, j. 06/04/2000,

DJ 02/05/2000 p. 153.

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CAPÍTULO IX

MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL DIVERSAS DA PRISÃO 1. DA AMPLIAÇÃO DO ROL DE MEDIDAS CAU­ TELARES DE NATUREZA PESSOAL PREVISTAS NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL Como visto anteriormente, seguindo a orien­ tação do direito comparado, e com o objetivo de superar a lógica maniqueísta, de tudo ou nada, a Lei n° 12.403/11 ampliou de maneira significativa o rol de medidas cautelares pessoais diversas da pri­ são cautelar, proporcionando ao juiz a escolha da providência mais ajustada ao caso concreto, dentro de critérios de legalidade e de proporcionalidade. É a concretização do princípio da adaptabilidade no marco de uma tutela jurisdicional diferenciada. Trata-se, conforme leciona Bedaque, “de adaptar a própria prestação jurisdicional e seus instrumen­ tos ao objetivo desejado. Como este varia em cada situação apresentada ao órgão jurisdicional, não se justifica manter-se inalterável o tipo de tutela”.522 Assim é que, na busca de alternativas para o cárcere cautelar, ou seja, a previsão legal de outras medidas coercitivas que o substituam com menor dano para a pessoa humana, porém com similar garantia da eficácia do processo, o art. 319 do CPP passou a elencar 09 (nove) medidas cautelares di­ versas da prisão, tendo o art. 320 do CPP passado a autorizar expressamente a possibilidade de retenção do passaporte. Como espécies de provimentos de natureza cautelar, tais medidas jamais poderão ser adotadas como efeito automático da prática de determinada infração penal. Sua decretação também estará con­ dicionada à presença do fumus comissi delicti e de uma das hipóteses que autorizam a prisão preven­ tiva. A propósito, o art. 282, inciso I, prevê que as medidas cautelares previstas no Título IX do CPP deverão ser aplicadas observando-se a necessida­ de para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais. Em outras palavras, verificando o magistrado que tanto a prisão preventiva quanto uma das me­ didas cautelares previstas no Projeto do novo CPP são idôneas a atingir o fim proposto, deverá optar 522. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do Direito Material sobre o Processo. 2a ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 53.

pela medida menos gravosa, preservando, assim, a liberdade de locomoção do agente. Caso a liberda­ de plena do agente não esteja colocando em risco a eficácia das investigações, o processo criminal, a efetividade do direito penal, ou a própria segurança social, não será possível a imposição de quaisquer das medidas cautelares substitutivas e/ou alternati­ vas à prisão cautelar. Por força do art. Io, parágrafo único, do CPP, as medidas cautelares diversas da prisão podem ser aplicadas não apenas aos procedimentos regulados pelo CPP, mas a todo e qualquer procedimento cri­ minal, em primeira ou segunda instância. A título de exemplo, o art. 22, § Io, da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), estabelece que as medidas protetivas de urgência ali previstas não impedem a aplica­ ção de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. De nada adianta a imposição de determinada medida cautelar se a ela não se emprestar força coer­ citiva. De fato, a eficácia de qualquer norma que ve­ nha a impor deveres está condicionada à cumulação de sanções, sob pena de se transformar em mera recomendação, simples admoestação, desprovida de força coercitiva. Portanto, a criação dessas medidas cautelares diversas da prisão resultará absolutamen­ te inócua se, concomitantemente, não for trabalhada uma estrutura adequada e eficiente para sua operacionalização e fiscalização. Se isso não ocorrer, have­ rá um certo temor quanto à adoção de tais medidas, com o surgimento de uma natural resistência por parte de juizes e membros do Ministério Público, que irão se voltar novamente à prisão cautelar como o instrumento mais eficiente para tutelar a eficácia do processo, a despeito do sacrifício da liberdade de locomoção do agente. Ademais, caso não haja a menor possibilida­ de de fiscalização de uma medida cautelar diversa da prisão, isso significa dizer que tal medida será ineficiente para neutralizar as situações de perigo indicadas no art. 282, I, do CPP. Logo, de modo a evitar a imposição de medida totalmente inócua e absolutamente inadequada para resguardar a apli­ cação da lei penal, a investigação criminal e para evitar a prática de infrações penais, ao magistrado não restará outra opção senão deixar de decretá-la, preservando-se, assim, o princípio da proporciona­ lidade em sua visão positiva (vedação da proteção deficiente). Por isso, apesar do silêncio do legislador, que se limitou a prever que do descumprimento de qualquer das obrigações impostas poderá resultar

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a substituição da medida, imposição de outra em cumulação, ou, em último caso, a decretação da pri­ são preventiva (CPP, art. 282, § 4o), acreditamos que, para cada medida cautelar diversa da prisão, devem ser pensados instrumentos idôneos para assegurar sua operacionalidade e eficácia.

2. COMPARECIMENTO PERIÓDICO EM JUÍZO A medida cautelar do art. 319, I, do CPP, tem como objetivo precípuo verificar que o acusado permanece à disposição do juízo para a prática de qualquer ato processual, mas também pode ser usada para se obter informações acerca das ativi­ dades que o acusado está exercendo. É pertinente para situações em que o acusado não possui vín­ culos com o local e há risco de não ser encontrado posteriormente. Determinada esta medida, o acusado deve com­ parecer, pessoalmente, perante a Secretaria do Juízo para informar onde está residindo e qual atividade está exercendo, caso esteja empregado. A nosso ver, a medida pode ser aplicada inclusive para aqueles que não possuem emprego. Evidentemente, esse comparecimento deve ser pessoal. De fato, não faz sentido em se permitir que o comparecimento se dê por procuração ou por meio de pessoa da famí­ lia, porquanto a medida tem em vista a pessoa do acusado. Caso o acusado resida em outra comarca, pen­ samos que o acompanhamento dessa medida pode ser feito perante o juízo onde ele reside, expedindo-se, para tanto, carta precatória. É sabido que gran­ de parte da clientela do direito penal é composta por pessoas miseráveis. Exigir-se o deslocamento de acusado pobre até o juízo processante poderia acabar por inviabilizar o cumprimento da medida em virtude de fator alheio a sua vontade. Essa carta precatória seria expedida apenas para a fiscalização da medida. Destarte, na hipótese de descumprimen­ to injustificado da medida, deve o juízo deprecado comunicar o fato ao juízo deprecante imediatamen­ te, recaindo sobre este a competência para possível e eventual revogação da medida, nos termos do art. 282, § 4o, do CPP. A medida se assemelha àquela prevista no art. 89, § Io, IV, da Lei n° 9.099/95, que impõe ao acu­ sado, como condição a ser cumprida no período de prova da suspensão condicional do processo, o comparecimento pessoal e obrigatório ajuizo, men­ salmente, para informar e justificar suas atividades. Porém, ao contrário da condição imposta para a suspensão condicional do processo, o art. 319, inciso I, do CPP, deixa em aberto a periodicidade com que o acusado deve se apresentar em juízo. Na verdade,

a fim de não prejudicar o beneficiário no que diz respeito a suas ocupações regulares, laborativas, etc., deve o juiz fixar essa periodicidade de acordo com as peculiaridades do caso concreto - semanal, mensal ou até em períodos maiores que um mês -, atento aos ditames do art. 282, incisos I e II, do CPP. Essa medida cautelar do art. 319, inciso I, do CPP, também não se confunde com aquela prevista no art. 310, §1°, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 13.964/19, a saber, comparecimento a todos os atos do processo, como vinculação a que fica submetido o agente beneficiado pela liberdade provisória sem fiança ali prevista, quando o juiz ve­ rificar, pelo auto de prisão em flagrante delito, que o fato foi praticado sob o amparo de causa excludente da ilicitude. Enquanto o comparecimento periódico em juízo para informar e justificar as atividades é medida cautelar autônoma, que pode ser imposta isolada ou cumulativamente com outra medida, o compromisso de comparecimento a todos os atos processuais é vinculação a que fica submetido o agente para ser beneficiado pela liberdade provisó­ ria sem fiança do art. 310, §1°, do CPP, funcionando como medida de contracautela que substitui a prisão em flagrante. Além disso, enquanto o descumprimento da medida cautelar do art. 319, inciso I, do CPP, auto­ riza a substituição da medida, a imposição de outra em cumulação, ou, em último caso, a decretação da prisão preventiva, do não comparecimento aos atos processuais não é possível o recolhimento do acusado à prisão, já que, por força do art. 314, a prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do art. 23 do Código Penal. Firmada a possibilidade de decretação da medi­ da cautelar do comparecimento periódico em juízo, pensamos não haver nenhum óbice à decretação do comparecimento do acusado a todos os atos proces­ suais, seja com base no poder geral de cautela, seja por meio de utilização subsidiária do art. 310, § Io, do CPP, que autoriza a imposição de tal medida nas hipóteses em que o acusado é posto em liberdade por verificar o juiz que a conduta fora praticada sob o amparo de excludente da ilicitude. Ora, se tal medida pode ser imposta àquele que possivelmente será absolvido ao final do processo (v.g., em face do reconhecimento da legítima defesa), não faz sentido não poder o juiz impor semelhante restrição ao acu­ sado, quando verificar sua necessidade no caso con­ creto. Portanto, para além das hipóteses do art. 310, §1°, do CPP, o comparecimento aos atos processuais também pode ser imposto como medida cautelar

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diversa da prisão, o que pode ser feito inclusive por meio da medida cautelar do art. 319,1, desde que o juiz fixe a periodicidade do comparecimento pes­ soal do acusado de acordo com os atos processuais a serem praticados em juízo. Tal medida pode se revelar necessária em situações em que a presença do acusado durante a audiência seja necessária para eventual reconhecimento pessoal. Nesse caso, é bom lembrar, o princípio do nemo tenetur se detegere não pode ser por ele invocado, já que o reconhecimento não demanda nenhum comportamento ativo por parte do acusado. Portanto, para além das hipóteses do art. 310, § Io, do CPP, o comparecimento aos atos processuais também pode ser imposto como medida cautelar diversa da prisão, o que pode ser feito inclusive por meio da medida cautelar do art. 319,1, desde que o juiz fixe a periodicidade do comparecimento pes­ soal do acusado de acordo com os atos processuais a serem praticados em juízo. Tal medida pode se revelar necessária em situações em que a presença do acusado durante a audiência seja necessária para eventual reconhecimento pessoal. Nesse caso, é bom lembrar, o princípio do nemo tenetur se detegere não pode ser por ele invocado, já que o reconheci­ mento não demanda nenhum comportamento ativo por parte do acusado.523

3. PROIBIÇÃO DE ACESSO OU FREQUÊNCIA A DETERMINADOS LUGARES De acordo com o art. 319, inciso II, do CPP, pode o juiz determinar a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por cir­ cunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações. A expressão acesso deve ser compreendida como a simples ação de entrar ou ingressar em determinado local, não tendo qualquer conotação de reiteração ou repetição. A expressão frequência traduz a noção de repetição sistemática de um fato ou comportamento, in casu, a repetição habitual do investigado em comparecer a determinado lugar. A lei não dispõe sobre a espécie de lugar cujo acesso ou frequência poderá ser objeto da medida. Logo, poderá ser determinada a restrição ao acesso a locais públicos (v.g., parques em que há venda de drogas), locais privados abertos ao público (v.g., ca­ sas noturnas) e até mesmo locais privados (v.g., casa 523. No sentido de que o comparecimento do acusado aos atos pro­ cessuais, em princípio, é um direito e não um dever, sem embargo da pos­ sibilidade de sua condução coercitiva, caso necessário, por exemplo, para audiência de reconhecimento: STJ, 6a Turma, REsp 346.677/RJ, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 10/09/2002, DJ 30/09/2002 p. 297.

do ofendido ou de testemunhas). De todo modo, deve haver uma relação entre o local cujo acesso está proibido e a prática do ilícito (v.g., impedir que um integrante de torcida organizada frequente estádios de futebol). Além disso, por ocasião de sua adoção, deve o magistrado especificar quais os lugares que o acusado não pode frequentar, sendo inadmissível a proibição de frequência a determinados locais em termos genéricos, sem especificá-los. No âmbito dessa medida, também pode ser determinado o afastamento do lar, já que a proi­ bição de aceso ou frequência do acusado pode ser determinada em relação a sua própria residência, quando, por exemplo, lá residir a vítima em situação de coabitação. Nesse caso, ainda que não se trate de situações abrangidas pela Lei Maria da Penha, que faz menção expressa ao afastamento do lar (Lei n° 11.340/06, art. 22, II), é possível que o juiz deter­ mine o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. Quanto à utilização dessa medida com o ob­ jetivo de evitar a reiteração delituosa, é sabido que determinados locais, por sua natureza, finalidade, localização ou tipo de frequência, favorecem a práti­ ca de infrações penais. Daí a importância da medida cautelar do art. 319, inciso II, do CPP, que se afigura adequada para os casos em que a vedação se mostrar necessária para prevenir a prática de novos ilícitos. Nos mesmos moldes que se questiona a pos­ sibilidade de decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem pública ou da ordem econômica, é certo que haverá doutrina que irá questionar a cautelaridade dessa medida. Não vi­ sualizamos qualquer inviabilidade de adoção dessa medida, porquanto, como visto ao tratarmos do conceito de garantia da ordem pública, é perfeitamente possível a adoção de medidas cautelares quando ficar evidenciado o risco de reiteração deli­ tuosa por parte do agente. O próprio art. 282, inciso I, do CPP, confirma esse entendimento, ao afirmar que as medidas cautelares poderão ser adotadas quando necessária para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos em lei, para evitar a prática de infrações penais. Apesar de o inciso II do art. 319 referir-se à decretação dessa medida para evitar o risco de rei­ teração delituosa, a medida também pode ser utili­ zada para preservar e proteger a prova, no caso de fontes orais, como testemunhas ou vítimas, evitando ameaças, agressões, tentativas de suborno e outras atitudes do mesmo gênero.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Evidentemente, essa medida cautelar só pode ser aplicada àquele que figurar na condição de inves­ tigado ou acusado, sendo vedada sua utilização con­ tra terceiros. Afinal, a decretação de toda e qualquer medida cautelar pressupõe a presença de periculum libertatis e fumus comissi delicti, compreendendo-se este como a presença de prova da existência do crime e indícios de autoria ou participação. Logo, a não ser que a pessoa também esteja sendo inves­ tigada pela prática delituosa, afigura-se inviável a aplicação dessa (e de qualquer outra) medida cau­ telar a familiares do acusado.524 A fim de assegurar a operacionalidade e eficácia da medida, devem ser pensados instrumentos idô­ neos para a fiscalização dessa medida. A despeito do silêncio da lei, queremos crer que a adoção dessa medida deve ser comunicada de imediato à Polícia Judiciária e à própria Polícia Militar, a fim de que deem apoio ao seu cumprimento.

4. PROIBIÇÃO DE MANTER CONTATO COM PESSOA DETERMINADA O art. 319, inciso III, do CPP, trata da proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indi­ ciado ou acusado dela permanecer distante. Dentre outras finalidades dessa medida cautelar, podemos destacar:

a) proteção de determinada(s) pessoa(s), colo­ cadas em situação de risco em virtude do compor­ tamento do agente: a título de exemplo, suponha-se que uma pessoa esteja sendo vítima de ameaças por parte do agente, ou, ainda, hipótese em que um indi­ víduo esteja sendo ofendido em sua honra subjetiva por meio de ligações telefônicas. Em tais situações, como os crimes de ameaça e de injúria têm pena máxima inferior a 4 (quatro) anos, não seria cabível a decretação da prisão preventiva. Porém, a fim de se evitar que haja a reiteração da conduta delituosa, poderá o juiz determinar que o acusado se abstenha de manter contato com a vítima, hipótese em que referida medida seria adotada de modo a evitar a prática de novas infrações penais; b) impedir que, em liberdade total e abso­ luta, possa o agente influenciar o depoimento de um ofendido e/ou testemunha, causando prejuízo à descoberta dos fatos. Nesse caso, verificando o magistrado a necessidade da medida para tutelar 524. No sentido da impossibilidade de imposição, sem a devida funda­ mentação, do afastamento do lar àqueles que não figuraram na relação litigiosa, implicando tal, no caso, restrição ao direito de locomoção e, por

conseguinte, constrangimento ilegal: STJ, 6a Turma, HC 108.437/DF, Rei. Min. Nilson Naves, j. 16/10/2008, DJe 16/02/2009.

a investigação ou a instrução criminal, protegen­ do-se uma fonte de prova que se sente intimidada pelo rotineiro contato com o acusado, assim como a adequação do provimento, consoante a gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado, poderá o magistrado de­ terminar que o investigado ou acusado se abstenha de manter contato com tais pessoas.

O art. 319, III, do CPP, refere-se à proibição de manter contato com pessoa determinada, sem res­ tringir a aplicação da medida apenas à vítima. Logo, é possível que ao acusado seja imposta a proibição de manter contato com a vítima, com testemunhas e, a depender da necessidade do caso concreto, até mesmo com eventuais corréus.

O dispositivo também não estabeleceu a forma de contato que poderá ser proibida. Evidentemen­ te, o contato pessoal é sempre o mais importante, porém não se pode descartar a possibilidade de utilização da medida para fins de se impedir even­ tuais contatos telefônicos, por meio de msn, messenger, Skype, e-mail, enfim, por qualquer meio de comunicação. Tendo em conta que o art. 319, III, do CPP, au­ toriza a imposição da medida cautelar de proibição de manter contato com pessoa determinada, é pos­ sível que o magistrado fixe uma distância mínima (em metros ou quilômetros) que o acusado deve se manter da vítima ou de sua residência, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 22, III, “a”, da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06).525 Perceba-se que, ao criar referida medida caute­ lar, silenciou o legislador quanto à previsão legal de mecanismos hábeis para sua fiscalização. A despeito do silêncio da lei, e de modo a assegurar a operacio­ nalidade e eficácia da medida, o ideal é que a vítima ou pessoa com quem o investigado ou acusado está proibido de manter contato seja informada acerca da adoção da referida medida, sendo advertidas de que, no caso de eventual violação à determinação judicial, poderão comunicar o fato imediatamente à autoridade policial, ao Ministério Público ou à auto­ ridade judiciária. Para tanto, é possível a aplicação por analogia dos §§ 2o e 3o do art. 201 do CPP, com redação determinada pela Lei n° 11.690/08, os quais permitem que o ofendido seja comunicado dos atos 525. Com base no art. 22, III, "a", da Lei n° 11.340/06, o STJ entende que o magistrado pode fixar, em metros, a distância a ser mantida pelo agressor da vítima, sendo, pois, desnecessário nominar quais os lugares a serem evitados, uma vez que, se assim fosse, lhe resultaria burlar essa proibição e assediar a vítima em locais que não constam da lista de lu­ gares previamente identificados: STJ, 5a Turma, RHC 23.654/AP, Rei. Min.

Napoleão Nunes Maia Filho, j. 03/02/2009, DJe 02/03/2009.

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processuais relativos ao ingresso e à saída do acusa­ do da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem, sendo que tais comunicações de­ vem ser feitas no endereço indicado pelo ofendido, admitindo-se o uso de meio eletrônico. É evidente que, comunicado acerca da inobser­ vância da medida cautelar, não deve o juiz proferir sua decisão baseado única e exclusivamente na pala­ vra da vítima e/ou da testemunha objeto da medida. Cabe a ele levar em consideração os demais ele­ mentos probatórios, consoante seu convencimento motivado. Ademais, para que fique caracterizado o descumprimento da medida, há de ser demonstrado que o acusado se aproximou conscientemente da pessoa com a qual devia evitar o contato. Assim, na hipótese do contato ter sido involuntário, casual, não há falar em descumprimento da medida.

5. PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DA COMARCA OU DO PAÍS Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, confere-se ao magistrado a possibilidade de, ve­ rificada sua necessidade e adequação, determinar a aplicação da medida cautelar de proibição de se ausentar da comarca, quando sua permanência for conveniente ou necessária para a investigação ou instrução (CPP, art. 319, IV). Referida medida cau­ telar também pode abranger a vedação de saída do País, porquanto, tratando-se de saída do território nacional, necessariamente também haverá saída da comarca. De mais a mais, o art. 320 do CPP refere-se expressamente à retenção do passaporte na hipótese de proibição de ausentar-se do País. À primeira vista, pode parecer que essa medida só poderia ser decretada quando ela se mostrasse conveniente ou necessária para a investigação ou instrução (v.g., reconhecimento pessoal). Não obs­ tante, parece-nos que essa impressão não se con­ firma e que essa medida também pode ser decre­ tada para outras finalidades cautelares, desde que abrangidas pelo art. 282, I, do CPP. Na verdade, o que o art. 319 visa, ao estabelecer a finalidade da medida, é apenas dar uma orientação ao magistrado no sentido da medida a ser adotada e, também, na aptidão dela para atingir tal ou qual objetivo. Porém, isso não importa em restrição à possibilidade de o magistrado decretar a medida cautelar com o obje­ tivo de neutralizar outros riscos, desde que restritos àqueles indicados no art. 282,1, do CPP: necessida­ de para aplicação da lei penal, para a investigação

ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.526

Para que a adoção dessa medida não funcione na prática como uma mera advertência ao acusa­ do, e objetivando assegurar sua operacionalidade e eficácia, o art. 320 do CPP prevê que a proibição de ausentar-se do País será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 horas. Para além dessa medida, pensamos ser possível uma interpretação extensiva do quanto disposto no art. 289-A do CPP, de modo a se enten­ der que, no banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, deve ser providenciado não só o registro imediato dos mandados de prisão, como também de qualquer outra medida cautelar que te­ nha sido imposta. Com efeito, imagine-se hipótese em que o magistrado tenha determinado o cum­ primento dessa medida cautelar de proibição de se ausentar da Comarca. Ora, seria extremamente válido e importante que essa decisão também fos­ se incluída no cadastro do Conselho Nacional de Justiça, possibilitando que autoridades policiais ou judiciais de outras comarcas ou de outras unidades federativas tivessem conhecimento das restrições impostas ao agente, auxiliando seu cumprimento e fiscalização. Ademais, nada impede que tal medida seja determinada cumulativamente com outra(s) medida(s) prevista no art. 319 do CPP, tal como o com­ parecimento periódico em juízo, o monitoramento eletrônico, mormente no caso de aparelhos com tecnologia de GPS.

Por fim, convém destacar que a criação dessa medida cautelar da proibição de se ausentar da co­ marca não revogou a prisão preventiva decretada com base na garantia de aplicação da lei penal. Com efeito, não se pode perder de vista que, em certas situações, o agente acaba se valendo de meios ilícitos para empreender sua fuga, tais como corrupção de agentes responsáveis pela fiscalização das saídas do território nacional, falsificação de documentos de identidade e passaportes, etc. Em tais hipóteses, a prisão preventiva ainda se apresentará como medida de ultima ratio a ser adotada pelo juiz de modo a tutelar a aplicação da lei penal. 526. Nessa linha: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 428. Pacelli co­

munga da mesma opinião: Atualização do processo penal. Lei n° 12.403/11 - capítulo a ser incorporado à obra Curso de processo penal. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2011. p. 19.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

6. RECOLHIMENTO DOMICILIAR NO PERÍODO NOTURNO E NOS DIAS DE FOLGA QUANDO O INVESTIGADO OU ACUSADO TENHA RESIDÊN­ CIA E TRABALHO FIXOS A decretação de uma prisão cautelar é a in­ terferência mais agressiva do Estado na vida e na dignidade do indivíduo, pois, além da segregação em si, o cárcere produz intensa estigmatização so­ cial e psicológica. Não se pode, pois, banalizar a prisão preventiva, já que seus efeitos criminógenos, mais que ressocializar o agente, causam profunda desagregação dos valores da pessoa, inserindo-a em um contexto capaz de afetar de maneira defi­ nitiva qualquer processo de socialização. Por isso, verificando que não é necessário privar o agente de sua liberdade de locomoção em absoluto, e que seu mero recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga já será suficiente e necessário para garantir a aplicação da lei penal, para tutelar a investigação ou a instrução criminal e para evitar a prática de novas infrações penais, deve o magis­ trado optar pela medida cautelar do art. 319, inciso V, do CPP.

Trata-se de medida menos gravosa que a pri­ são domiciliar, porquanto se admite que o acusado possa exercer sua atividade laborativa durante o dia. Esta medida baseia-se na autodisciplina e no senso de responsabilidade do acusado, que, de modo a não perder seu emprego e poder manter sua rotina de vida praticamente inalterada, sujeita-se à obrigação de não se ausentar de sua casa no período noturno e nos dias de folga.527 Para a aplicação dessa medida, o art. 319, V, do CPP, exige que o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos. Não obstante, há de se admitir a aplicação da medida no caso em que o investigado ou acusado não tenha trabalho, mas es­ teja estudando. Em síntese, o fato de o acusado estar estudando deve receber igual tratamento à hipóte­ se em que estiver trabalhando. Nessa linha, aliás, a própria LEP foi alterada recentemente pela Lei n° 527. Para Badaró, por implicar privação de liberdade, ainda que parcial, o tempo em que o investigado ou acusado ficar submetido ao recolhi­ mento domiciliar noturno deverá ser considerado para fins de detração penal: Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 247. Nessa linha: STJ, 5a Turma, AgRg no HC 565.899/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 27.10.2020, DJe 12.11.2020. Em sentido diverso, concluindo que não é possível a detração do período em que sentenciado submeteu-se a medidas cautelares diversas da prisão - no caso concreto, recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga - na pena privativa de liberdade, em razão da ausência de previsão legal: STJ, 5aTurma, AgRg no HC 494.693/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 11.02.2020, DJe 27.02.2020; STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 1.406.675/GO, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 28.05.2019, DJe 05.06.2019.

12.433/11 para fins de prever expressamente que o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. Segun­ do o art. 126, § Io, da LEP, essa contagem será feita à razão de: I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissio­ nal - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.528

Apesar de o art. 319, V, do CPP, silenciar acerca do assunto, pensamos que, a fim de se conferir maior eficácia a essa medida, a prudência recomenda que sua aplicação seja feita em conjunto com o monito­ ramento eletrônico. Primeiro, porque o próprio art. 282, § Io, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, permite que as medidas cautelares sejam aplicadas isolada ou cumulativamente. Se­ gundo, porque a própria Lei de Execução Penal, ao tratar da prisão-albergue domiciliar, permite que o juiz defina a fiscalização por meio de monitoramen­ to eletrônico quando conceder a prisão domiciliar (Lei n° 7.210/84, art. 146-B, IV, acrescentado pela Lei n° 12.258/10). De fato, se aplicada isoladamente, essa medida de recolhimento domiciliar no período noturno será de difícil, senão impossível fiscaliza­ ção. Aplicada cumulativamente com a fiscalização eletrônica, a verificação de seu cumprimento será facilitada, conferindo-se maior eficácia à medida. Outrossim, quando compatível com as condições impostas, revela-se possível, a nosso juízo, a auto­ rização para que o indivíduo se ausente de sua re­ sidência no período noturno para frequentar culto religioso.529 528. Mesmo antes do advento da Lei n° 12.433/11, a súmula n° 341 do STJ já dispunha que "a frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou

semiaberto". Na visão do STJ, a remição da pena pelo estudo deve ocorrer

independentemente de a atividade estudantil ser desenvolvida em dia não útil, já que o art. 126 da LEP não faz qualquer ressalva em relação ao assunto, dispondo apenas que a contagem de tempo para remição da pena pelo estudo deve ocorrer à razão de 1 dia de pena para cada 12 horas de frequência escolar, sendo inclusive mencionada, expressa mente,

a possibilidade de ensino à distância. Nessa linha: STJ, 6a Turma, AgRg no REsp 1.487.218/DF, Rel. Min. Ericson Maranho - Desembargador convoca­ do doTJ/SP -, j. 05/02/2015, DJe 24/02/2015.Também há precedente do STJ no sentido de que a atividade de leitura pode ser considerada para fins de remição de parte do tempo de execução da pena, porquanto se trata de atividade semelhante ao estudo, com nítido caráter ressocializador, diminuindo consideravelmente a ociosidade dos presos e reduzindo a reincidência criminal: STJ, 6aTurma, HC 312.486/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 09/06/2015, DJe 22/06/2015. 529. Nessa linha, referindo-se, porém, à prisão domiciliar previs­ ta na LEP: STJ, 6a Turma, REsp 1.788.562/TO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 17/09/2019, DJe 23/09/2019.

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7. SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO PÚBLICA OU DE ATIVIDADE DE NATUREZA ECONÔMICA OU FINANCEIRA Na esteira da Lei de Drogas, que já previa a pos­ sibilidade de o juiz decretar o afastamento cautelar do funcionário público de suas atividades, tratan­ do-se de condutas tipificadas nos arts. 33, caput, e § Io, e 34 a 37 (Lei n° 11.343/06, art. 56, § Io), o Código de Processo Penal passa a prever, dentre as medidas cautelares diversas da prisão, a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, quando houver justo receio de sua utilização para a prática de in­ frações penais. Trata-se de medida cautelar específica, cuja uti­ lização está voltada, precipuamente, a crimes pra­ ticados por funcionário público contra a adminis­ tração pública (v.g., peculato, concussão, corrupção passiva, etc), e crimes contra a ordem econômico-fi­ nanceira (v.g., lavagem de capitais, gestão temerária ou fraudulenta de instituição financeira). Por função pública compreende-se toda ativi­ dade desempenhada com o objetivo de consecução de finalidades próprias do Estado, por meio daquele que exerce cargo, emprego ou função pública, nos termos do art. 327 do Código Penal. Exercem fun­ ção pública todos aqueles que prestam serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração in­ direta, aí incluídos os agentes políticos, os servidores públicos, assim como os particulares em colabora­ ção com o Poder Público.

ser restringida em favor de outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Por isso, o próprio Supremo já teve a oportunidade de asseverar que a livre iniciativa não pode ser invocada para afastar a regulamentação do mercado e as regras de pro­ teção ao consumidor.530 Logo, considerando que a própria decretação da medida cautelar do art. 319, VI, está condicionada ao abuso da livre iniciativa no exercício de atividade econômico-financeira, não há falar em inconstitucionalidade da medida. A pro­ pósito, em caso concreto em que o proprietário de postos de gasolina fora denunciado como mentor de organização criminosa dedicada ao roubo de com­ bustíveis, havendo fortes indícios de que a pessoa jurídica estaria sendo utilizada para a venda de parte dos produtos roubados e lavagem de dinheiro, con­ cluiu a 5a Turma do STJ não haver nenhum óbice à suspensão do exercício de atividade econômica ou financeira da própria pessoa jurídica, ainda que esta sequer tivesse sido denunciada.531

A medida cautelar do art. 319, VI, do CPP, somente poderá recair sobre o agente que tiver se aproveitado de suas funções públicas ou de sua ati­ vidade de natureza econômica ou financeira para a prática do delito, ou seja, deve haver um nexo funcional entre a prática do delito e a atividade fun­ cional desenvolvida pelo agente.532 O periculum libertatis, por seu turno, deve se basear em fundamentação que demonstre que a ma­ nutenção do agente no exercício de tal função ou atividade servirá como estímulo para a reiteração delituosa.

Noutro giro, o conceito de atividade de natu­ reza econômica ou financeira guarda relação com o tipo de delito investigado, qual seja, crimes contra a ordem econômico-financeira, os quais estão pre­ vistos nas seguintes leis: a) Lei n° 1.521/51 (crimes contra a economia popular); b) Lei n° 7.134/83 (cri­ mes de aplicação ilegal de créditos, financiamentos e incentivos fiscais); c) Lei n° 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional); d) Lei n° 8.078/90 (crimes previstos no Código de Defesa do Consu­ midor); e) Lei n° 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de con­ sumo); f) Lei n° 8.176/91 (crimes contra a ordem econômica); g) Lei n° 9.279/96 (crimes em matéria de propriedade industrial); h) Lei n° 9.613/98 (cri­ mes de lavagem de capitais).

Sob a lógica do menor sacrifício do direito afe­ tado, entende-se que, na medida em que o art. 319, inciso VI, do CPP, autoriza a suspensão do exercício da função pública, é perfeitamente possível que o juiz determine a suspensão de apenas parte da ativi­ dade rotineiramente desenvolvida pelo funcionário público. Exemplificando, da mesma forma que o juiz pode determinar a suspensão da função pública de um policial rodoviário investigado pela prática de sucessivos crimes de concussão em fiscalizações de trânsito, também pode determinar que este se limite a cumprir expediente interno.

A suspensão do exercício de atividade de natureza econômica ou financeira é plenamente compatível com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. Io, IV, c/c art. 170, caput). Afinal, esta livre iniciativa não é absoluta e pode

08/02/2011, DJe 40 28/02/2011.

De uma leitura apressada do art. 319, inciso VI, do CPP, pode parecer que essa medida só poderia 530. STF, 1a Turma, Al 636.883 AgR, Rei. Min. Cármen Lúcia, j.

986

531. STJ, 5a Turma, RMS 60.818/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fon­ seca, j. 20/08/2019, DJe 02/09/2019. 532. Nessa linha: MENDONÇA, Andrey Borges de; CARVALHO, Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006 - comentada artigo por artigo. São Paulo: Método: 2007. p. 56.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

ser decretada quando ela se mostrasse conveniente ou necessária para impedir a reiteração delituosa. Não obstante, parece-nos que essa impressão não se confirma e que essa medida também pode ser decretada para outras finalidades cautelares, desde que abrangidas pelo art. 282,1, do CPP. Na verdade, o que o art. 319 visa, ao estabelecer a finalidade da medida, é apenas dar uma orientação ao magistra­ do no sentido da medida a ser adotada e, também, na aptidão dela para tal ou qual objetivo. Porém, isso não importa em restrição à possibilidade de o magistrado decretar a medida cautelar com o obje­ tivo de neutralizar outros riscos, desde que restritos àqueles indicados no art. 282,1, do CPP: necessida­ de para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.

Assim, da mesma forma que a suspensão do exercício da função pode ser determinada para evitar novas práticas delituosas, a medida também pode ser imposta para que o acusado não se utilize de suas funções para destruir provas, pressionar tes­ temunhas, intimidar vítimas, ou seja, para obstruir a investigação de qualquer forma ou prejudicar a busca da verdade. Portanto, apesar de o art. 319, VI, do CPP, fazer menção à suspensão apenas para evitar a prática de novas infrações, é evidente que o agente também poderá ser suspenso para garantia da investigação ou instrução criminal.533 Face a pobreza do teor do art. 319, inciso VI, do CPP, tem surgido discussão na doutrina acerca da possibilidade de aplicação dessa medida cautelar no caso de funções públicas decorrentes de mandatos eletivos. Há quem se posicione contrariamente, já que, como o CPP não estabelece o prazo máximo de sua duração, essa medida poderia ser utilizada como um mecanismo para uma cassação, de fato, do mandato eletivo.534 Sem embargo de opiniões em sentido contrário, pensamos que a função pública a que se refere o art. 319, inciso VI, abrange toda e qualquer atividade exercida junto à Administração Pública, seja em cargo público, seja em mandatos eletivos. De mais a mais, se considerarmos que há precedentes do STJ

e do Supremo admitindo inclusive a prisão preven­ tiva de Governador de Estado, seria de se estranhar que uma medida de tal porte pudesse ser utilizada, negando-se, porém, a possibilidade de suspensão da função pública, a qual, a depender do caso concreto, pode revelar-se igualmente eficaz para assegurar a eficácia do processo, só que com grau de lesividade bem menor. Logo, se se admite a aplicação de medi­ da mais gravosa (prisão cautelar), não há restrição para a aplicação de medidas menos gravosas.535 A jurisprudência dos Tribunais Superiores parece ca­ minhar nesse sentido. Prova disso, aliás, é a cautelar inominada n. 35-DF (Rel. Min. Benedito Gonçal­ ves, j. 18.08.2020), em que o Superior Tribunal de Justiça determinou o afastamento de Wilson José Witzel do exercício da função pública de governador e proibiu seu ingresso nas dependências do governo do Estado do Rio de Janeiro e de se comunicar com funcionários e utilizar seus serviços, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias. In casu, as investigações visam apurar supostos crimes de desvio de recursos públicos e lavagem de capitais praticados na con­ tratação de hospitais de campanha, respiradores e medicamentos no contexto do combate à pandemia de Covid-19. A única ressalva à suspensão da função pública nos casos de mandatos eletivos fica por conta da­ quelas pessoas que possuem imunidade absoluta à prisão preventiva. Logo, se o Presidente da Repúbli­ ca não pode ser preso em hipótese alguma, também não pode ser suspenso de suas atividades.536 O ideal, portanto, é admitir a possibilidade de aplicação dessa medida cautelar a todos aqueles que podem ser presos, vedando-se sua aplicação apenas àqueles que possuem imunidade absoluta à prisão preventiva. Assim, apesar de promotores e juizes serem dotados de imunidade relativa, já que só podem ser presos em flagrante de crime inafian­ çável, é de se admitir a possibilidade de suspensão das funções, porquanto se admite a decretação da prisão preventiva e temporária de tais autoridades. Ademais, a própria LC n° 35/79 prevê que, a depen­ der da natureza ou gravidade da infração penal, se 535. Em recente julgado, a 5a Turma do STJ concluiu ser possível a

533. Admitindo o afastamento cautelar de Conselheiro deTribunal de

aplicação das medidas cautelares diversas da prisão aos detentores de

Contas do Estado, mesmo durante a fase de inquérito visando à apuração de possível desvio de verbas públicas, desde que presentes elementos indiciários e probatórios da conduta delituosa, a incompatibilidade com o exercício do cargo ou função e o risco para o regular desenvolvimento das investigações: STJ, Corte Especial, Inq. 780/CE, Rel. Min. Nancy Andrighi,

mandato eletivo - no caso concreto, um Prefeito seja durante as in­ vestigações, seja durante a fase processual. Outrossim, também concluiu

j. 06/06/2012, DJe 27/08/2012.

534. BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas cautelares no processo pe­

que, à luz da garantia constitucional da razoável duração do processo, o afastamento do cargo por mais de um ano acaba se revelando excessivo, notadamente se a denúncia sequer tiver sido oferecida: STJ, 5a Turma, HC 228.023/SC, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu, j. 19/06/2012.

nal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

536. Eugênio Pacelli de Oliveira comunga do mesmo entendimento: Atualização do processo penal. Lei n° 12.403/11 - capítulo a ser incorpo­ rado à obra Curso de processo penal. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen juris,

2011.p. 249.

2011. p. 21.

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se tornar aconselhável o recebimento de denúncia ou de queixa contra magistrado, o Tribunal, ou seu órgão especial, poderá, em decisão tomada pelo voto de dois terços de seus membros, determinar o afastamento do cargo do magistrado denunciado (art. 29). Nessa linha, aliás, ante a presença de fortes indícios de crimes de corrupção passiva e lavagem de capitais imputados a Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pela suposta venda de decisões judiciais e a posterior realização de inúme­ ras operações de dólar-cabo, com movimentações milionárias de recursos em espécie e remessa de mais de USD 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil dólares) para o exterior, a Corte Especial do STJ determinou seu afastamento pelo prazo inicial de 90 (noventa) dias, como forma de garantia da ordem pública e da lisura da instrução procedimental, pois, se acaso fosse reintegrado ao cargo, seria muito pro­ vável que voltasse a exercer indevida influência em funcionários daquele Tribunal, além da vulneração de provas e manipulação de dados.537

Inicialmente, o Plenário do Supremo Tribunal concluiu não haver qualquer óbice à aplicação de medidas cautelares diversas da prisão a detentores de mandatos eletivos, in casu, Deputado Federal. Por reputar que os elementos fáticos e jurídicos teriam demonstrado que a presença de parlamentar na função de Presidente da Câmara dos Deputados representaria risco para as investigações penais em curso no Supremo Tribunal Federal, o Plenário da­ quela Corte confirmou a suspensão do exercício do mandato do então Deputado Federal E. C. Na visão do STF, a denúncia descrevera diversos fatos supos­ tamente criminosos praticados com desvio de fina­ lidade, sob a atuação direta do referido parlamentar que estaria a utilizar o cargo de deputado federal e a função de Presidente da Câmara dos Deputados para fins ilícitos e, em especial, para obtenção de vantagens indevidas. In casu, a decretação da me­ dida cautelar do art. 319, inciso VI, do CPP, serviría a dois interesses públicos indivisíveis: a) a preserva­ ção da utilidade do processo (pela neutralização de uma posição de poder que possa tornar o trabalho de persecução mais acidentado); e b) a preservação da finalidade pública do cargo (pela eliminação da possibilidade de captura de suas competências em favor de conveniências particulares sob suspeita).538

Posteriormente, todavia, o Plenário do STF, por maioria de votos (6 a 5), alterou seu entendimen­ to acerca do assunto. A Corte julgou parcialmente 537. STJ, Corte Especial, QO no Inq. 1.284-DF, Rei. Min. Felix Fischer, j. 06.05.2020, DJe 14.05.2020. 538. STF, Pleno, AC 4.070/DF, Rei. Min.Teori Zavascki, j. 05/05/2016.

procedente ação direta de inconstitucionalidade na qual se pedia interpretação conforme à Constituição para que a aplicação das medidas cautelares, quando impostas a parlamentares, fossem submetidas à deli­ beração da respectiva Casa Legislativa em 24 horas. Primeiramente, o Supremo assentou que o Poder Judiciário dispõe de competência para impor, por autoridade própria, as medidas cautelares a que se refere o artigo 319. Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, também por votação majoritária, delibe­ rou encaminhar, para os fins a que se refere art. 53, §2°, da Constituição Federal, a decisão que houver aplicado medida cautelar sempre que a execução desta impossibilitar direta ou indiretamente o exer­ cício regular do mandato legislativo. Salientou que, na independência harmônica que rege o princípio da separação dos Poderes, as imunidades parla­ mentares são instrumentos de vital importância, visto buscarem, prioritariamente, a proteção dos parlamentares no exercício de suas funções contra os abusos e pressões dos demais Poderes. Consti­ tui-se, pois, um direito instrumental de garantia de liberdade de opiniões, palavras e votos dos mem­ bros do Poder Legislativo bem como de sua proteção contra prisões arbitrárias e processos temerários. O Plenário asseverou que essas imunidades não dizem respeito à figura do parlamentar em si, mas à fun­ ção por ele exercida, ao Poder que ele representa, no intuito de resguardar a atuação do Legislativo perante o Executivo e perante o Judiciário, consagrando-se como garantia de independência perante os outros dois Poderes constitucionais. No tocante à imunidade parlamentar processual em relação à prisão, afirmou que a ratio da norma constitucional é somente permitir o afastamento do parlamentar do exercício de seu mandato conferido pelo povo em uma única hipótese: prisão em flagrante delito por crime inafiançável. O art. 53, §2°, da CF prote­ ge o integral exercício do mandato parlamentar, ao referir, expressamente, que a restrição à liberdade de ir e vir do parlamentar somente poderá ocorrer na referida hipótese. Dessa forma, a norma constitu­ cional estabeleceu, implicitamente, a impossibilida­ de de qualquer outro tipo de prisão cautelar. Nesse contexto, a Corte ponderou que, sendo a finalidade da imunidade formal proteger o livre exercício do mandato parlamentar contra interferências exter­ nas, a ratio da norma constitucional não pode ser contornada pela via das medidas cautelares diversas da prisão. Assim, ato emanado do Poder Judiciário que houver aplicado medida cautelar que impossi­ bilite direta ou indiretamente o exercício regular do mandato legislativo, deve ser submetido ao controle

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

político da Casa Legislatvfti respectiva, nos termos do art. 53, § 2o, da CF.539

direito à integralização da remuneração (artigo 229, parágrafo Io, da Lei n° 8.112/90)”.540

Quanto à suspensão do exercício da função pública, tem havido séria controvérsia acerca da possibilidade de ser determinada a suspensão da remuneração do servidor.

A nosso ver, tendo em conta o princípio da pre­ sunção de inocência, pensamos que esse afastamento coativo das funções não pode implicar em desconto ou suspensão do subsídio. Afinal, o afastamento do funcionário não é voluntário, mas sim resultado da aplicação de uma medida cautelar, valendo lembrar que, como efeito de uma possível condenação, poderá haver inclusive a perda do cargo, tal qual previsto no art. 92,1, do CP. Analogicamente, pode-se utilizar o quanto disposto no art. 147, caput, da Lei n° 8.112/90, que prevê o afastamento cautelar do funcionário pú­ blico no processo administrativo disciplinar, porém sem prejuízo da remuneração.

De um lado, há quem entenda que a manu­ tenção do pagamento do servidor suspenso de suas funções criaria uma situação de desigualdade ou in­ justiça em comparação com o funcionário que teve que trabalhar durante todo o mês para perceber sua remuneração. A propósito, o STJ já se pronunciou no seguinte sentido: “Não prestado o serviço pelo agente público, a consequência legal é a perda da remuneração do dia em que esteve ausente, salvo se houver motivo justificado. E, por induvidoso, a ausência do agente público no serviço devido ao cumprimento de prisão preventiva não constitui motivação idônea a autorizar a manutenção do pa­ gamento da remuneração. Com efeito, não há falar, em hipóteses tais, em força maior. Isso porque, em boa verdade, é o próprio agente público que, me­ diante sua conduta tida por criminosa, deflagra o óbice ao cumprimento de sua parte na relação que mantém com a Administração Pública. Por outras palavras, não há falar em imprevisibilidade e inevi­ tabilidade, afastando, por isso mesmo, um dos ele­ mentos essenciais ao reconhecimento da alegada força maior. A Lei n° 8.112/90, em seu artigo 229, assegura à família do servidor ativo o auxílio-reclusão, à razão de dois terços da remuneração, quando afastado por motivo de prisão preventiva. A pre­ tensão, todavia, há de ser deduzida pelos próprios beneficiários. Em caso de absolvição, o servidor terá 539. STF, Pleno, ADI 5.526/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 11/10/2017. Vencidos os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber e Celso de Mello, que julgaram improcedente o pedido. Entenderam - a nosso juízo, acertadamente-que os poderes conferidos

ao Congresso para sustar processos penais em curso são estritos, cir­ cunscritos às hipóteses especifica mente limitadas na CF, pois as medidas cautelares penais não são instrumentais apenas ao processo penal, mas também meios de tutela da fase pré-processual investigativa e da ordem pública. Nesse sentido, a outorga constitucional de poder para sustar um processo penal não compreende a concessão de poderes para impedir a adoção de providências cautelares necessárias à tutela da ordem pública (visando a impedir reiteração delitiva), bem como, à tutela da investigação e completa elucidação dos fatos. Para a 5aTurma do STJ (RHC 88.804/RN, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 07/11/2017, DJe 14/11/2017), esse entendimento firmado pelo Supremo no julgamento da ADI 5.526/DF é válido apenas para Deputados Federais, Senadores, e, por incidência do princípio da simetria, aos deputados estaduais, mas não abrange parla­ mentares municipais, já que o art. 53, §2°, da Constituição Federal, por se tratar de norma de exceção, deve ser interpretado restritivamente. Por consequência, admite-se que um Juiz de 1o grau, fundamentadamente, imponha a parlamentares municipais as medidas cautelares de afasta­

Nesse contexto, em Recurso extraordinário no qual se discutia a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impunha a redução de ven­ cimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional (art. 2o da Lei n° 2.364/61, que deu nova redação à Lei n° 869/52), o Plenário do Supremo afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação aos princípios da presunção de inocência e da irredutibilidade de vencimentos (CF, art. 5o, LVII, e art. 37, XV, respec­ tivamente). Isso porque, a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das di­ ferenças, em caso de absolvição.541

Superada essa análise quanto à impossibilida­ de de suspensão da remuneração, é bom lembrar que, caso o indivíduo seja absolvido em primeira instância, deve o magistrado afastar a medida cau­ telar, retornando o servidor ao exercício normal de suas funções. E isso por força de uma interpretação analógica com o disposto no art. 386, parágrafo úni­ co, inciso II, do CPP, que prevê que, na sentença absolutória, o juiz ordenará a cessação das medidas cautelares provisoriamente aplicadas.

De outro lado, se o agente for condenado, prevê o art. 92, inciso I, alínea “a”, do Código Penal, que 540. STJ, 6a Turma, REsp 413.398/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 04/06/2002, DJ 19/12/2002 p. 484.

mento de suas funções legislativas sem necessidade de remessa à Casa

541. STF, Pleno, RE 482.006/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 07/11/2007, DJe 162 13/12/2007. Em caso concreto em que a 2a Turma do STF determinou a suspensão do exercício da função pública de Procu­ rador da República, o referido Colegiado o fez sem prejuízo da percepção dos subsídios: STF, 2aTurma, Pet 7.063/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,

respectiva para deliberação.

j. 1°/08/2017.

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um dos efeitos da condenação é exatamente a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, quan­ do aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, efeito este que só pode­ rá incidir após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

8. INTERNAÇÃO PROVISÓRIA Em sua redação original, o art. 80 do Código Penal dispunha que, durante o processo, o juiz po­ dia submeter os inimputáveis e os ébrios habituais ou toxicômanos às medidas de segurança que lhes fossem aplicáveis. Essa aplicação provisória da me­ dida de segurança era referendada pelo art. 378 do Código de Processo Penal.

Com as mudanças produzidas pela reforma da Parte Geral do Código Penal pela Lei n° 7.209/84, aí incluída a revogação do art. 80 do CP, doutrina e jurisprudência concluíram que o art. 378 do CPP também fora revogado, já que ambos tratavam da mesma matéria. De modo semelhante, em virtude da exclusão das denominadas penas acessórias, den­ tre as quais se encontrava a interdição de direitos, os dispositivos do CPP que versavam sobre a ma­ téria (arts. 373 a 380) também foram tacitamente revogados, porquanto lei posterior tratou da matéria de forma diferente. Ademais, essas modalidades de interdições temporárias de direitos e as medidas de segurança provisórias previstas até então no CPP não haviam sido recepcionadas pela Constituição Federal, mormente diante do princípio da presun­ ção de inocência. Portanto, apesar de o art. 152, § Io, do CPP, dispor que o juiz poderá, na hipótese de doença mental superveniente à infração penal, ordenar a internação do acusado em manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado, estabelecen­ do verdadeira imposição automática da internação quando verificada a presença de doença mental, sempre se entendeu que esse dispositivo não fora recepcionado pela Constituição Federal, por esta­ belecer indevida antecipação do resultado final da ação penal condenatória, em flagrante violação ao princípio da presunção de não culpabilidade. Com efeito, à semelhança do que ocorre com a pena pri­ vativa de liberdade aplicada aos imputáveis, também não se pode admitir a execução provisória de me­ dida de segurança, que também é uma espécie de sanção penal, cujo cumprimento está condicionado,

pois, ao trânsito em julgado de sentença absolutória imprópria.542 Apesar de não ser possível que a internação provisória fosse decretada como efeito automáti­ co da constatação da inimputabilidade do acusado, entendia-se possível que, presentes os pressupostos da prisão preventiva, e comprovada a periculosidade do agente, fosse decretada sua prisão preventiva, a ser cumprida em hospital de custódia.543

Essa possibilidade de internação do acusado em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico era referendada pela interpretação sistemática do art. 108 e do art. 2o, parágrafo único, da Lei de Execu­ ção Penal. O art. 108 estabelece que “o condenado a quem sobrevier doença mental será internado em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico”. Por sua vez, o art. 2o, parágrafo único, da LEP, permite a aplicação do dispositivo ao preso provisório, ao prever que “esta lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório, e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária”. Portanto, a despeito do art. 172 da LEP dizer que “ninguém será internado em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, ou submetido a tratamento ambulatorial, para cumpri­ mento de medida de segurança, sem a guia expedi­ da pela autoridade judiciária”, depreende-se que a exigência de guia expedida pela autoridade judicial ocorre apenas para o cumprimento de medida de segurança, e não para a internação provisória de acusado submetido a prisão preventiva. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, o art. 319, inciso VII, do CPP, passa a prever, dentre as medidas cautelares diversas da prisão, a interna­ ção provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração.

Como se percebe, a internação provisória so­ mente será aplicável ao inimputável ou semi-imputável nas hipóteses de fatos típicos e ilícitos cometi­ dos com violência ou grave ameaça, quando houver risco de reiteração, o que demonstra que essa medi­ da deve ser aplicada com a finalidade de proteção da sociedade contra a possível prática de crimes graves. O dispositivo não estabelece distinção entre quem já era inimputável ou semi-imputável à época do 542. Nesse sentido: STJ, 5a Turma, HC 226.014/SP, Rei. Min. Laurita

Vaz,j. 19/04/2012.

543. STJ, 6aTurma, RHC 11,329/BA, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 10/09/2001 p. 414. Com entendimento semelhante: CRUZ, Rogério Schietti Machado.

Op. cit. p. 165.

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crime (CP, art. 26, caput, e parágrafo único) e aquele cuja doença mental sobreveio à infração. Logo, a medida pode ser aplicada em ambas as hipóteses, jamais como medida de segurança provisória, mas sim como instrumento de natureza cautelar destina­ do à tutela da garantia da ordem pública, para evitar a prática de novas infrações penais com violência ou grave ameaça. Como toda e qualquer medida cautelar, essa internação provisória também está condiciona­ da à presença do fumus comissi delicti (prova da materialidade e indícios de autoria) e do pericu­ lum libertatis. Este pode restar caracterizado pela necessidade da medida para a garantia da ordem pública, ou seja, pela necessidade de adoção da medida para evitar a prática de novas infrações penais com violência ou grave ameaça (CPP, art. 282,1, c/c art. 319, VII). Há quem entenda que, em fiel observância ao princípio da proporcionalidade, além de se tratar de crime cometido com violência ou grave ameaça, a internação provisória só deve ser imposta quando houver o prognóstico de, ao final do processo, ser aplicável a medida de segu­ rança detentiva, ou seja, de internação. Assim, caso a medida mais adequada a ser aplicada ao final do processo seja a de tratamento ambulatorial, deve ser evitada a imposição da medida cautelar de in­ ternação provisória.544 De acordo com o art. 319, VII, do CPP, a apli­ cação dessa medida cautelar está condicionada à conclusão dos peritos no sentido de ser o acusado inimputável ou semi-imputável (CP, art. 26). Há ne­ cessidade, portanto, de prévio incidente de insanida­ de mental, cuja realização só pode ser determinada pela autoridade judiciária, jamais pela autoridade policial (CPP, art. 149). No entanto, embora a regra seja a existência de prévio laudo de exame de insanidade mental, não se pode concluir que referido exame funcione como condição sine qua non para a imposição da medida. Como há excessiva demora para a elaboração desse laudo, e tendo em conta que essa medida também pode ser aplicada aos inimputáveis e semi-imputáveis cuja doença mental sobreveio à infração, podem ser utilizadas outras provas do estado mental do acusado, pelo menos enquanto não é concluído o exame de insanidade mental. Nessa linha, como des­ taca Nucci, apesar de se exigir a conclusão pericial de inimputabilidade ou semi-imputabilidade para a adoção da medida, conforme o caso, deve o juiz 544. Com esse entendimento: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e ou­ tras medidas cautelarespessoais. Sâo Paulo: Editora Método, 2011. p. 453.

valer-se de seu poder geral de cautela, determinan­ do a internação provisória, antes mesmo do laudo ficar pronto, pois é incabível manter-se em cárcere comum o doente mental, que exiba nítidos sinais de sua enfermidade.545 O art. 319, inciso VII, do CPP, faz menção à conclusão dos peritos no sentido da inimputabili­ dade ou semi-imputabilidade do acusado. Apesar de o dispositivo usar a palavra peritos no plural, isso não significa que o exame tenha que ser feito por dois peritos. Na verdade, tal dispositivo deve ser lido à luz do art. 159, caput, do CPP, que prevê que os exames de corpo de delito e outras periciais devem ser feitos apenas por 1 (um) perito, salvo na hipótese de falta de perito oficial, em que o exame será realizado por 2 (duas) pessoas idôneas.

A internação provisória deve ser cumprida em estabelecimento hospitalar adequado, ou seja, em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, nos termos do art. 96, I, do Código Penal. De acordo com o art. 99 da LEP, o acusado inimputável ou semi-imputável deve ficar no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Caso não haja referido hospital, deve ser mantido em outro estabelecimen­ to adequado.

Na hipótese de não haver vaga em estabeleci­ mento público ou em estabelecimento adequado, caso o acusado esteja enquadrado no art. 318, II, do CPP, encontrando-se extremamente debilitado por motivo de doença grave, é possível que a internação provisória seja substituída por uma prisão domici­ liar, a ser aplicada cumulativamente com tratamento ambulatorial. Todavia, é certo que haverá situações em que a prisão domiciliar será insuficiente para impedir a reiteração delituosa. Nesses casos, indaga-se: o que fazer? O STJ tem precedentes no sentido de que caracteriza constrangimento ilegal manter o acusado em presídio comum em razão da falta de hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado, devendo, diante de sua ausência, submeter-se a tratamento ambu­ latorial. Não obstante, considerando que a inter­ nação provisória do art. 319, VII, está voltada para impedir a reiteração delituosa de crimes praticados com violência ou grave ameaça, seria de todo teme­ rário colocar em liberdade agente inimputável que possa voltar a cometer delitos de tal natureza. Não por outro motivo, em caso concreto envolvendo a 545. NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. As reformas proces­ suais penais introduzidas pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 85.

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prática de atentado violento ao pudor com violên­ cia presumida, concluiu o STJ que, não obstante houvesse falta de vagas em estabelecimento ade­ quado, não seria possível a concessão simples de liberdade ao acusado inimputável, em razão de sua periculosidade. Portanto, a única solução que se pode aventar para situações de notória periculo­ sidade de agente inimputável seja determinar sua permanência em ala hospitalar do estabelecimento prisional, com tratamento adequado, pelo menos até que seja encontrada vaga em local adequado.546

Além da finalidade precípua inerente a essa medida, no sentido de se evitar a reiteração deli­ tuosa de crimes praticados com violência ou gra­ ve ameaça, a internação provisória também visa à recuperação do agente, já que este será colocado à disposição médica. Esse tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do pa­ ciente em seu meio e será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros - vide Lei n° 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portado­ ras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. A este indivíduo internado provisoriamente, portador de transtorno mental, são assegurados os seguintes direitos: ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessi­ dades; ser tratado com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; ser protegido contra qualquer forma de abuso e exploração; ter livre aces­ so aos meios de comunicação disponíveis; receber o maior número de informações a respeito de sua 546. No sentido de que, imposta medida de segurança de interna­ ção, caracteriza-se patente constrangimento ilegal o fato de ter sido o paciente colocado em presídio comum, em razão da falta de hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado,

já que a insuficiência de recursos do Estado não é fundamentação idô­ nea a ensejar a manutenção do paciente em regime prisional, quando lhe foi imposta medida de segurança de internação. Logo, deliberou-se pela concessão da ordem para determinar a imediata transferência do

paciente para hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado, devendo, na falta de vaga, ser submetido a regime de tratamento ambulatorial: STJ, 5a Turma, HC 108.517/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 16/09/2008, DJe 20/10/2008. Na mesma linha: STJ, 5aTurma, HC 121.760/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 13/08/2009, DJe 14/09/2009; STJ, 5a Turma, HC 231.124/SP, Rei. Min.

Laurita Vaz, j. 23/04/2013; STJ, 6a Turma, RHC 38.499/SP, Rei. Min. Maria Thereza De Assis Moura, j. 11/3/2014, DJe 24/03/2014. No entanto, evi­ denciada a periculosidade do agente, é inviável a concessão de liberdade

doença e de seu tratamento; ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis.

Por acarretar restrição da liberdade de locomo­ ção, o lapso temporal em que o acusado inimputá­ vel ou semi-imputável ficar submetido à internação provisória deve ser levado em consideração para fins de detração penal, seja no tocante à eventual quan­ tum de pena privativa de liberdade (quando houver recuperação das faculdades mentais daquele cuja doença mental sobreveio à infração), seja quanto ao prazo mínimo de aplicação da medida de segurança.

9. FIANÇA A liberdade provisória sem fiança e com fiança sempre foi tratada pelo ordenamento jurídico pátrio como espécie de medida de contracautela, funcio­ nando como substitutivo da prisão em flagrante. Ou seja, nosso sistema nunca admitiu que alguém fosse submetido ao regime de liberdade provisória, com ou sem fiança, sem que estivesse previamente preso em flagrante. No entanto, a partir da vigência da Lei n° 12.403/11, a fiança também passou a funcionar como medida cautelar autônoma, que pode ser im­ posta, isolada ou cumulativamente, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu an­ damento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial (CPP, art. 319, VIII). Na mesma linha, segundo o art. 319, § 4o, a fiança será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI, podendo ser cumulada com outras medidas cautelares. Evidentemente, essa aplicação da fiança cumulativamente com outras medidas cautelares somente será possível se entre elas houver compatibilidade lógica. Logo, não se afigura viável a cumulação da fiança com a prisão preventiva, com a prisão temporária, com a prisão domiciliar e com a internação provisória do inimputável, já que tais medidas já acarretam restrição completa à liberdade de locomoção do agente. Portanto, verificada a necessidade da medida para a aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais, ao invés de decretar a prisão preventiva, poderá o juiz optar por impor ao acusado o recolhimento de fiança, isolada ou cumulativamente com outras me­ didas cautelares, desde que verifique que sua adoção se revela igualmente eficaz e suficiente para o fim desejado pela providência cautelar, porém com me­ nor sacrifício à liberdade do acusado.547

pura e simples: STJ, 5aTurma, RHC 22.654/MG, Rei. Min. Napoleão Nunes

Maia Filho, j. 04/09/2008, DJe 22/09/2008.

547.Voltaremos a tratar da fiança mais abaixo.

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10. MONITORAÇÃO ELETRÔNICA Consiste no uso de dispositivo não ostensivo de monitoramento eletrônico, geralmente afixado ao corpo da pessoa, a fim de que se saiba, permanen­ temente, à distância, e com respeito à dignidade da pessoa humana, a localização geográfica do agente, de modo a permitir o controle judicial de seus atos fora do cárcere. O monitoramento eletrônico surgiu na década de 60, porém passou a ser utilizado principalmente a partir dos anos 80, quando sua utilização se popu­ larizou nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, notadamente na Inglaterra.

No Brasil, após alguns Estados da Federação regulamentarem o assunto por meio de legislação estadual (v.g., Lei Paulista n° 12.906/08), de duvi­ dosa constitucionalidade, já que leis estaduais não podem cuidar de execução penal, nos termos dos arts. 22, inciso I, e 24, inciso I, da Constituição Fe­ deral, o monitoramento eletrônico foi finalmente introduzido por meio da Lei n° 12.258, de 15 de junho de 2010, que institui o monitoramento eletrô­ nico apenas no âmbito da execução penal, alterando dispositivos da Lei de Execução Penal. O Projeto de Lei do qual se originou a Lei n° 12.258/10 possuía contornos mais amplos e obje­ tivava permitir o monitoramento também em rela­ ção aos condenados submetidos ao regime aberto, penas restritivas de direito, livramento condicional e suspensão condicional da pena. Porém, em virtu­ de dos vetos sofridos, a referida Lei passou a per­ mitir a monitoração eletrônica apenas em relação àqueles beneficiados com saídas temporárias no regime semiaberto (LEP, arts. 122 a 125, c/c art. 146-B, II) e aos que estiverem em prisão domiciliar (LEP, art. 117, c/c art. 146-B, IV), disciplinando o chamado monitoramento-sanção. Esse sistema, introduzido na LEP, é conhecido como back-door, pois visa utilizar o monitoramento eletrônico para retirar antecipadamente do sistema carcerário aquelas pessoas presas que possuam condições de terminar o cumprimento da pena fora do cárcere. Busca-se, assim, diminuir o tempo de cumprimen­ to da pena na prisão.

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, a utilização do monitoramento eletrônico deixa de ser uma exclusividade da execução penal e passa a ser possível também como medida cautelar autô­ noma e substitutiva da prisão (CPP, art. 319, IX). Adota-se, a partir de agora, o sistema do monito­ ramento eletrônico chamado front-door, isto é, tal tecnologia passa a ser utilizada de modo a se evitar o ingresso do agente na prisão. Trata-se, portanto,

de uma medida alternativa à prisão, que visa evitar o contato do agente com o cárcere.548 Destarte, seja no curso das investigações, seja durante o processo criminal, verificando a neces­ sidade da medida para aplicação da lei penal, para a investigação ou instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais, poderá o magistrado determinar a utilização do monitoramento eletrônico, isolada ou cumulativamente com outra medida cautelar diversa da prisão. Há quem entenda que, antes do advento de uma lei disciplinando todos os aspectos necessários para o funcionamento e controle da monitoração eletrô­ nica, não será possível sua aplicação. Tem prevaleci­ do, porém, o entendimento de que o monitoramento pode - e deve - ser aplicado de imediato, sobretudo porque sua utilização já foi objeto de regulamenta­ ção pelo Decreto n° 7.627/11, cujo art. 2o conceitua a monitoração eletrônica como a vigilância telemática posicionai à distância de pessoas presas sob medida cautelar ou condenadas por sentença transitada em julgado, executada por meios técnicos que permi­ tam indicar a sua localização. Como forma de acompanhamento, e a depen­ der da tecnologia disponível, o monitoramento ele­ trônico pode ser utilizado pelo juiz com a imposição de zonas de inclusão e exclusão, isto é, locais em que o monitorado poderá/deverá permanecer (zonas de inclusão) ou lugares onde não pode comparecer ou frequentar (zonas de exclusão). Assim, o monitora­ mento eletrônico pode ser utilizado para a obtenção de 3 (três) finalidades:

a) Detenção: o monitoramento tem como ob­ jetivo manter o indivíduo em lugar predeterminado, normalmente em sua própria residência;

b) Restrição: o monitoramento é usado para garantir que o indivíduo não frequente certos luga­ res, ou para que não se aproxime de determinadas pessoas, em regra testemunhas, vítimas e coautores; c) Vigilância: o monitoramento é usado para que se mantenha vigilância contínua sobre o agente, sem restrição de sua movimentação.

Visando atingir essas finalidades, podem ser usadas as seguintes tecnologias:

1) Sistemas passivos: o monitorado é periodi­ camente acionado pela central de monitoramento 548. A distinção dos sistemas front-door e back-door é trabalhada por Carlos Eduardo Ariano Japiassú e Celina Maria Macedo. O Brasil e o monitoramento eletrônico. Monitoramento eletrônico: uma alternativa à prisão? Experiências internacionais eperspectivas no Brasil. Brasília: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 2008. p. 15.

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por meio de telefone ou pager, para garantir que ele se encontra onde deveria estar, sendo sua iden­ tificação feita por meio de senhas ou biometria, como impressão digital, mapeamento da íris ou reconhecimento de voz. Esse sistema não permite que o acusado tenha grande mobilidade, mas pode ser aplicado para verificar o cumprimento do reco­ lhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga ou prisão domiciliar;

2) Sistemas ativos: o dispositivo instalado em local determinado (v.g., casa) transmite o sinal para uma central de monitoramento. Nesse caso, se o monitorado se afastar do local determinado acima da distância determinada, a central é imediatamente acionada;

3) Sistema de Posicionamento Global (GPS): por conta de seus três componentes - satélites, es­ tações de terra conectadas em rede e dispositivos móveis (braceletes ou tornozeleiras eletrônicas) -, essa tecnologia elimina a necessidade de dispositi­ vos instalados em locais predeterminados, sendo utilizada como instrumento de detenção, restrição ou vigilância. Pode ser usado de forma ativa, permi­ tindo a localização do usuário em tempo real, ou na forma passiva, hipótese em que o dispositivo é capaz de registrar toda a movimentação do monitorado ao longo do dia, sendo tais dados transmitidos a uma central, que gera um relatório diário. Sua utiliza­ ção também permite que se saiba se o acusado se distanciou de local onde deveria permanecer (zona de inclusão) ou se adentrou em local que não devia frequentar (zona de exclusão).

Na medida em que o monitoramento eletrônico é capaz de fornecer informações acerca da localiza­ ção da pessoa, sua utilização pode ser feita com o objetivo de atingir duas finalidades:

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extremamente útil, porquanto será capaz de auxiliar na identificação do espaço geográfico onde o acusa­ do se encontra, permitindo a fiscalização da medida. Nesse sentido, sua aplicação cumulativa é compatí­ vel com a prisão domiciliar e com as medidas do art. 319, incisos II (proibição de acesso ou frequência a determinados lugares), III (proibição de manter contato com pessoa determinada ou obrigação de permanecer distante dela), IV (proibição de ausentar-se da comarca) e V (recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga). Nada diz o art. 319, inciso IX, do CPP, acerca da necessidade de consentimento do acusado para fins de aplicação da medida cautelar do monitoramento eletrônico. No entanto, é evidente que o consenti­ mento do agente está implícito na utilização dessa medida, daí por que o monitoramento não deve ser imposto diante de eventual recusa expressa por parte do acusado. Afinal, a aplicação dessa medida pressupõe que o acusado observe os deveres que lhe serão impostos fora do cárcere (zonas de inclusão e/ou exclusão). Ademais, caso não concorde com a utilização do dispositivo eletrônico, basta que o acusado rompa o dispositivo eletrônico tão logo implantado, dando ensejo à cassação do benefício. Portanto, a despeito do silêncio da lei, parece-nos que, diante de manifestação em sentido contrário do acusado, a medida não deve ser implementada.

Tal qual ocorreu em relação às demais medidas cautelares do art. 319 do CPP, o legislador silenciou acerca de mecanismos de controle e fiscalização do monitoramento eletrônico. Sem embargo desse si­ lêncio, é certo que, com a utilização da tecnologia do sistema de posicionamento global (GPS), é possível que a autoridade judiciária monitore os locais e ho­ rários onde o condenado deva estar ou permanecer, aferindo em tempo real a observância (ou não) das condições impostas.

i) medida cautelar em si, isoladamente aplica­ da: nessa hipótese, o objetivo precípuo do monitora­ mento será o de evitar a fuga do agente. Nesse caso, a medida deve ser utilizada com extrema cautela e de maneira excepcional, porquanto é plenamente possível o rompimento do dispositivo eletrônico a qualquer momento. Daí a importância de se ve­ rificar a efetiva possibilidade de se realizar a pri­ são do agente antes que sua intenção de fuga seja concretizada;

Ademais, pensamos ser possível a aplicação subsidiária do quanto disposto no art. 146-C da LEP, que cuida da monitoração eletrônica nas hi­ póteses de saída temporária549 no regime semiaberto e na prisão domiciliar. Segundo esse dispositivo, o condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento eletrônico e dos seguintes deveres: I - receber visitas do servidor

ii) medida cautelar auxiliar de outra medida diversa da prisão, aplicada cumulativamente com esta (art. 282, § Io, do CPP): é certo que várias medidas cautelares diversas da prisão são de difícil fiscalização. É o que ocorre, a título de exemplo, com a proibição de ausentar-se da comarca. Nesses casos, o monitoramento eletrônico pode se revelar

549. De se lembrar que, aos olhos do STJ, o benefício de saída tempo­ rária no âmbito da execução penal é ato jurisdicional insuscetível de dele­ gação à autoridade administrativa do estabelecimento prisional (súmula n° 520 do STJ). Para mais detalhes acerca do referido verbete sumular, remetemos o leitor ao nosso Código de Processo Penal Comentado, do qual também consta uma análise pormenorizada de 200 (duzentas) súmulas criminais do STF e do STJ, não apenas em relação ao Direito Processual Penal, mas também no tocante ao Direito Penal e Execução penal.

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responsável pela monitoração eletrônica, respon­ der aos seus contatos e cumprir suas orientações; II - abster-se de remover, de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça. Deve ser determinada, ademais, a imediata comunicação à polícia de eventual rompimento do dispositivo de monitoração eletrônica, a fim de que consiga recapturar o agente. Para tanto, é recomendável que seja feita uma audiência de advertência, à qual estarão presentes o juiz, o órgão do Ministério Público, o defensor e o investigado ou acusado, oportunidade em que este será cientificado de seus deveres e das consequên­ cias do descumprimento da medida, notadamente quanto à possibilidade de decretação de sua prisão preventiva.

Certamente haverá questionamentos quanto à constitucionalidade da utilização do monitoramento eletrônico como medida cautelar autônoma e substi­ tutiva da prisão cautelar. Haverá quem diga que sua utilização é extremamente dispendiosa, com alto custo orçamentário. Haverá quem diga que, como a ocultação do dispositivo eletrônico é complicada, sobretudo para pessoas de baixa renda em locais com temperatura elevada, sua utilização sujeitará o agente a um constrangimento perante a sociedade, violando sua intimidade e o próprio princípio da presunção de não culpabilidade.

Com a devida vênia, tais argumentos não mere­ cem acolhida. Se é verdade que a utilização do mo­ nitoramento eletrônico é extremamente dispendiosa para o Estado, também é verdade que seu emprego acaba sendo compensado pelas inúmeras vantagens que ele traz. Trata-se de dispositivo eletrônico não osten­ sivo, ou seja, deve ser assegurada a discrição dos aparelhos a serem utilizados - braceletes ou tornozeleiras eletrônicas -, evitando-se que o agente sofra qualquer tipo de estigmatização perante a sociedade. A propósito, a evolução tecnológica tem permitido a diminuição desses dispositivos eletrônicos, permi­ tindo que fiquem ocultos ou até mesmo imperceptí­ veis, assemelhando-se a acessórios geralmente utili­ zados pelas pessoas, como um relógio, por exemplo. Aliás, consoante disposto no art. 5o do Decreto n° 7.627/11, o equipamento de monitoração eletrônica deverá ser utilizado de modo a respeitar a integri­ dade física, moral e social da pessoa monitorada. De mais a mais, ao contrário do que ocorre com o monitoramento eletrônico previsto na Lei de Execução Penal, cabível apenas em relação àque­ les beneficiados com saídas temporárias no regime

semiaberto e aos que estiverem em prisão domici­ liar, ou seja, representando um “plus” no controle de pessoas que já foram condenadas, a previsão do monitoramento eletrônico no art. 319, IX, do CPP, se apresenta como alternativa à privação da liber­ dade de locomoção tendente a reduzir a superpo­ pulação prisional.

A utilização do monitoramento eletrônico é ca­ paz de, a um só tempo, diminuir a massa carcerária, o que, inevitavelmente, proporcionará a melhora das condições daqueles que permanecerem encar­ cerados, mas também de facilitar a reintegração do agente, sem a perda da capacidade de vigilância do Estado sobre os presos, permitindo que este possa trabalhar, manter seus vínculos familiares, assim como a participação em cursos e atividades educa­ tivas. Com a necessária discrição, a fim de que não haja nenhum tipo de estigmatização pela sociedade, o monitorado terá condições de circular com rela­ tiva liberdade, exercendo suas atividades regulares, ao mesmo tempo em que o Estado mantém sua vi­ gilância e a possibilidade de recaptura no caso de eventual tentativa de fuga. Enfim, diante das mazelas do sistema carce­ rário, verdadeira fábrica de reincidência, que não protege a integridade física e moral do preso, sujeitando-o a uma série de sevícias sexuais, à transmis­ são de doenças como aids e tuberculose, qualquer instrumento que venha a servir como substitutivo do encarceramento cautelar deve ser acolhido pelo sistema.550

11. CONDUÇÃO COERCITIVA Conquanto não listada no rol das medidas cautelares diversas da prisão dos arts. 319 e 320 do CPP, a condução coercitiva também funciona como espécie de medida cautelar de coação pessoal. Por meio dela, o ofendido, a testemunha, o investigado/ acusado ou até mesmo o perito são privados de sua liberdade de locomoção pelo lapso temporal neces­ sário para que sejam levados, contra a sua vontade, à presença da autoridade judiciária (ou adminis­ trativa) para participar de ato processual penal (ou administrativo da investigação preliminar), no qual sua presença seja considerada imprescindível.

É equivocado acreditar que apenas o investiga­ do/acusado possa ser objeto de condução coercitiva. 550. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique.

Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comen­ tários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 259. E ainda: Nuno Caiado. Notas sobre a admissibilidade ética do monitoramento eletrônico. Boletim IBC-

CRIM. Ano 19, n° 225, Agosto/2011, p. 5.

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De fato, uma simples leitura do nosso diploma pro­ cessual penal aponta para a possibilidade de condu­ ção coercitiva das seguintes pessoas:

d) do perito: “no caso de não comparecimento do perito, sem justa causa, a autoridade poderá de­ terminar a sua condução” (CPP, art. 278).

a) do ofendido: “se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendi­ do poderá ser conduzido à presença da autoridade” (CPP, art. 201, §1°);551

Em comparação com uma prisão preventiva (ou temporária), há uma redução do grau de coerção da liberdade de locomoção do indivíduo, que fica restrita ao tempo estritamente necessário para a preservação das fontes de provas ou para a pro­ dução do meio de prova, não podendo persistir por lapso temporal superior a 24 (vinte e quatro) horas, hipótese em que assumiría, indevidamente, as vestes de verdadeira prisão cautelar. Ou seja, ao invés de o juiz decretar eventual prisão cautelar (preventiva ou temporária), poderá determinar a expedição de um mandado de condução coercitiva sempre que visualizar a necessidade da presença dessa pessoa para a colheita de elementos de informação para a elucidação da autoria e/ou da materialidade da infração penal, hipótese em que o cidadão será pri­ vado da sua liberdade de locomoção tão somente por algumas horas. A título de exemplo, de modo a evitar a supressão ou destruição de fontes de prova, é relativamente comum a expedição de mandados de condução coercitiva no mesmo dia em que ope­ rações policiais de maior complexidade são defla­ gradas, objetivando evitar que o investigado, em li­ berdade, prejudique o cumprimento de mandados de busca em seu domicílio e/ou local de trabalho.

b) de testemunhas: “se, regularmente inti­ mada,552 a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à auto­ ridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública” (CPP, art. 218). Inserido no capítulo que versa sobre a primeira fase do procedimento escalonado do Júri, o art. 411, §7°, do CPP, prevê que nenhum ato deverá ser adiado, salvo quando imprescindível à prova faltante, deter­ minado o juiz a condução coercitiva de quem deva comparecer. Em sentido semelhante, o art. 461, § Io, do CPP, aplicável, porém, especificamente à sessão de julgamento do Júri, dispõe que na eventualidade de a testemunha intimada não comparecer, o juiz presidente suspenderá os trabalhos e mandará conduzi-la ou adiará o julgamento para o primeiro dia desimpedido, ordenando a sua condução; c) do investigado (ou acusado): “se o acusa­ do não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença” (CPP, art. 260). Isoladamente considerada, essa condução coercitiva prevista no art. 260 do CPP não se confunde com eventual condução coercitiva para fins de prisão em flagrante, preventiva ou temporária. Enquanto aque­ la é imposta ao acusado (investigado) que não tem prisão cautelar contra si decretada, esta funciona, na verdade, como meio de execução de eventual prisão processual; 551. Admitindo a condução coercitiva de vítima para depor em juízo, ainda que esta alegue não mais ter interesse em processar seu compa­ nheiro na esfera criminal: STJ, 6aTurma, AgRg no HC 506.814/SP, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 06/08/2019, DJe 12/08/2019.

552. Sem embargo do silêncio do CPP acerca da matéria, queremos crer que a testemunha deve ser intimada com pelo menos 5 (cinco) dias de antecedência em relação à audiência, aplicando-se, subsidiariamente, e com fundamento no art. 3o do CPP, o disposto no art. 935 do novo CPC. Embora o dispositivo diga respeito à intimação para a pauta da sessão de julgamento dos recursos e ações originárias dos Tribunais, não se pode olvidar que as leis processuais constituem um sistema, de forma que a ratio essendi da norma irradia seus efeitos para além da sua literalidade, passando a constituir uma baliza para o julgador. Há precedentes do STJ nesse sentido, aplicando, porém, o prazo de 48 (quarenta e oito) horas, que era o prazo previsto no antigo CPC (art. 552, §1°): STJ, 5a Turma, HC 109.967/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 02/02/2010, DJe 01/03/2010.

Em relação à autoridade legitimada para ex­ pedir o mandado de condução coercitiva,553 é in­ teressante perceber que, à exceção dos dispositivos do Código de Processo Penal que versam sobre a decretação dessa medida em relação às testemunhas - arts. 218, 411, §7° e 461, §1° -, geralmente se faz referência apenas à autoridade (v.g., art. 260). Não estabelece se se trata exclusivamente da autorida­ de judiciária ou se, na verdade, também abrange a autoridade policial (ou ministerial). Talvez por conta da redação dúbia desses outros dispositivos legais, notadamente o art. 260 do CPP, tenha con­ cluído o Supremo, em precedente isolado, que há possibilidade de a autoridade policial determinar a condução coercitiva do investigado para prestar esclarecimentos. Na visão do Relator Min. Ricardo Lewandowski, a própria Constituição Federal asse­ gura, em seu art. 144, § 4o, às polícias civis, dirigidas 553.0 mandado de condução coercitiva deve conter, além da ordem de condução, os requisitos formais do mandado de citação, nos termos do parágrafo único do art. 260 do CPR A execução da ordem deve ser levada a efeito com total respeito à integridade física e moral do con­ duzido, com proteção do conduzido contra toda e qualquer forma de sensacionalismo (Lei de Execução Penal, arts. 40,41, VIII, e 42). A utilização de algemas, por sua vez, deve se dar em fiel observância aos dizeres da súmula vinculante n° 11 do STF.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. Logo, a polícia judiciária tem legitimidade para to­ mar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos.554 A nosso juízo, a não ser que se queira retroce­ der à concepção autoritária do acusado como ob­ jeto de prova, cujo corpo pode ser coercitivamente submetido à condução pela polícia judiciária para fins de interrogatório policial, tido como verdadeiro meio de prova, somente o juiz natural da causa pode determinar a condução coercitiva do investigado, do acusado ou de qualquer pessoa. Ora, estamos diante de medida que importa em supressão absoluta da liberdade de locomoção, ainda que temporária, su­ jeita, pois, à cláusula de reserva de jurisdição. Em síntese, a função de polícia judiciária e de apuração de infrações penais atribuída às Polícias Civis e à Po­ lícia Federal, assim como a atribuição investigatória exercida subsidiariamente pelo Ministério Público, não lhes confere poderes para decretar medidas cautelares de coação pessoal, as quais pressupõem prévia autorização judicial, consoante disposto no art. 5o, inciso LXI, da Constituição Federal, interpre­ tado extensivamente, e no art. 282, § 2o, do CPP.555

Faz-se necessária, portanto, uma decisão escrita, prévia e motivada da autoridade judiciária competente, demonstrando a proporcionalidade da medida no caso concreto (CPP, art. 282, II) e a presença dos seguintes pressupostos: a) somatório da prova da materialida­ de do crime com indícios de autoria (fumus comissi delicti); b) estrita necessidade da presença física do acusado (ou investigado) em ato processual (ou ad­ ministrativo) que, sem ele, não possa ser realizado; c) prévia falta injustificada de atendimento à notificação para comparecer ao sobredito ato processual penal (ou administrativo): a doutrina processual penal556 sempre

554. STF, Ia Turma, HC 107.644/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06/09/2011, DJe 200 17/10/2011.

555. Reconhecendo a impossibilidade de o Ministério Público deter­ minar a condução coercitiva do investigado no curso de procedimento investigatório presidido pelo órgão ministerial: STF, 2a Turma, HC 94.173/ BA, Rel. Min. Celso de Mello, j. 27/10/2009, DJe 223 26/11/2009. No sen­ tido de que o Delegado de Polícia deve representar ao juiz competente com vistas à decretação de condução coercitiva: RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25a ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 163. Especificamente quanto às Comissões Parlamentares de Inquérito, o art. 3o, §1°, da Lei n. 1.579/52, com redação dada pela Lei n. 13.367/16, dispõe que, em caso de não comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que resida ou se encontre, nos termos dos arts. 218 e 219 do CPP. Como se percebe, os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais outorgados às Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art. 58, §3°) não abrange a possibilidade de decretação de conduções coercitivas. 556. Nesse contexto: MALAN, Diogo. Condução coercitiva do acusado (ou investigado) no processo penal. Boletim do IBBCRIM. Ano 23. n° 266. Janeiro/2015, p. 2-4.

impôs, como condição sine qua non para a condução coercitiva de alguém, prévia intimação para compa­ recimento à Polícia (ou ao juízo). De fato, se alguém está sendo privado de sua liberdade de locomoção, ainda que momentaneamente, para a prática de deter­ minado ato investigatório (ou processual), isso deveria ocorrer tão somente após uma tentativa frustrada de comparecimento voluntário. Especificamente quanto à necessidade de prévia intimação de testemunhas para comparecimento em juízo, tal exigência já consta in­ clusive do art. 218 do CPP. Com o advento do crime do art. 10 da nova Lei de Abuso de Autoridade (“Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”), resta claro, a nosso juízo, que a decretação de toda e qualquer condução coercitiva pressupõe o descumprimento de prévia notificação. Na medida em que a Constituição Federal e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos asseguram ao acusado o direito de não produzir prova contra si mesmo, tratando o interrogatório como meio de autodefesa, o art. 260 do CPP, que fala expressamente em possibilidade de condução coercitiva para a realização do interrogatório, pre­ cisa ser obrigatoriamente submetido a um controle de constitucionalidade e convencionalidade. Logo, reputa-se ilegal a expedição de mandado de con­ dução coercitiva objetivando a consecução das se­ guintes finalidades: a) prestar declarações perante Comissão Parlamentar de Inquérito;557 b) compa­ recer à audiência una de instrução e julgamento;558 c) participar de reconstituição simulada do crime ou fornecer padrões gráficos ou vocais para perí­ cia criminal;559 d) fazer exame pericial de dosagem alcoólica;560 e) prestar declarações em Delegacia de Polícia;561 f) participar de acareação, etc.

557. STF, 2a Turma, HC 119.941/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 25/03/2014, DJe 80 28/04/2014. 558. No sentido de que a possibilidade de o acusado não comparecer à audiência é uma expressão do direito constitucional ao silêncio (art.

5o, LXIII, da CF/88), pois "nemo tenetur se deterege": STF, 1a Turma, RHC 109.978/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 18/06/2013, DJe 154 07/08/2013. Com en­ tendimento semelhante: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 6a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2010. p. 264.

559. STF, 2aTurma, HC 99.289/RS, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23/06/2009, DJe 149 03/08/2011.

560. No sentido de que não se pode presumir a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica, porquanto a Constitui­ ção impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que,

suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo: STF, Ia Turma, HC 93.916/PA, Rel.

Min. Cármen Lúcia, j. 10/06/2008, DJe 117 26/06/2008. 561. No sentido de que o não comparecimento do investigado à delegacia de polícia para prestar depoimento não autoriza, por si só, a decretação de sua custódia cautelar: STF, 2a Turma, HC 89.503/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 03/04/2007, DJe 32 06/06/2007.

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Noutro giro, quando se tratar de meio de prova cuja realização não demande nenhum comportamen­ to ativo por parte do investigado (ou acusado), logo, não protegido pelo direito à não autoincriminação, é perfeitamente possível a expedição de mandado de condução coercitiva. É o que ocorre, por exemplo, com o reconhecimento pessoal (CPP, art. 226) e com a identificação criminal nas hipóteses previstas em lei (Lei n° 12.037/09, art. 3o). Mesmo nessas hipóteses, em fiel observância ao princípio da proporcionalida­ de, a condução coercitiva será cabível apenas quando não houver nenhum outro meio de reconhecimento do acusado (v.g., fotográfico) ou esclarecimento de sua identidade (v.g., consulta a banco de dados). A propósito, levando-se em consideração o princípio do nemo tenetur se detegere, o Plenário do Supremo, por maioria, julgou procedente o pe­ dido formulado nas ADPFs 395/DF e 444/DF562 para declarar a não recepção da expressão “para o interrogatório” constante do art. 260 do CPP, e a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disci­ plinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da res­ ponsabilidade civil do Estado. O Tribunal destacou que a decisão não teria o condão de desconstituir interrogatórios realizados até a data do referido jul­ gamento, ainda que os interrogados tivessem sido coercitivamente conduzidos para o referido ato pro­ cessual. Esclareceu, ademais, que a condução coer­ citiva objeto da decisão seria tão somente àquela destinada à condução de investigados e acusados à presença da autoridade policial ou judicial para se­ rem interrogados, é dizer, não foi analisada a condu­ ção de outras pessoas como testemunhas, ou mesmo de investigados ou acusados para atos diversos do interrogatório, não abrangidos pelo princípio que veda a autoincriminação, como, por exemplo, aquela decretada pela autoridade judiciária quando houver dúvida sobre a identidade civil do imputado (CPP, art. 313, §1°), ou aquela determinada para fins de qualificação do acusado, já que esta primeira parte do interrogatório não está abrangida pelo direito ao silêncio.

12. MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL DIVERSAS DA PRISÃO PREVISTAS NA LEGISLAÇÃO ESPECIAL Apesar da pobreza do Código de Processo Penal em relação às medidas cautelares de natureza pessoal 562. STF, Pleno, ADPF 395/DF e ADPF 444/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/06/2018.

antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, a le­ gislação extravagante já se apresentava mais rica em alternativas dadas ao magistrado para salvaguardar a eficácia do processo criminal, sem ter que recorrer à medida extrema da prisão cautelar. Em virtude do princípio da especialidade, tais medidas continuam plenamente válidas. E isso sem prejuízo da aplicação das medidas cautelares recentemente introduzidas no CPP pela Lei n° 12.403/11, nos termos do art. Io, parágrafo único, do CPP.

Um primeiro exemplo de medida cautelar de natureza pessoal distinta da prisão cautelar ou da liberdade provisória é o afastamento do Prefeito do cargo nos crimes de responsabilidade. Em relação aos crimes comuns listados no art. Io do Decreto-Lei n° 201/67, o art. 2o, inciso II, do mesmo Decreto-Lei, prevê a obrigatoriedade de o órgão fracioná­ rio do Tribunal de Justiça (lembre-se que Prefeitos, por força da Constituição Federal, são processados e julgados, em regra, pelo Tribunal de Justiça, ex vi do art. 29, inciso X, da Carta Magna), ao receber a denúncia, manifestar-se motivadamente sobre a prisão preventiva do acusado, nos casos dos crimes previstos nos incisos I e II do art. Io, e sobre o seu afastamento do exercício do cargo durante a instrução criminal, nas hipóteses dos demais incisos do mes­ mo artigo. Tratando-se, o afastamento do exercício do cargo, de medida de natureza cautelar, é evidente que só poderá ser decretada se presentes os pressu­ postos do fumus comissi delicti e do periculum in mora, sob pena de evidente afronta ao princípio da presunção de inocência. Outro exemplo de medida cautelar de natureza pessoal está previsto no art. 294 do Código de Trân­ sito Brasileiro (Lei n° 9.503/97). Segundo o referido dispositivo, “em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a garantia da ordem pública, poderá o juiz, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Públi­ co ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção”. Como toda e qualquer medida cautelar, a aplicação do art. 294 do CTB também está condicionada à presença do fumus boni iuris e do periculum in mora. O periculum in mora a que se refere o art. 294 do CTB está rela­ cionado única e exclusivamente à garantia da ordem pública, a ser aqui compreendida como o cuidado de se evitar que o agente volte a praticar novos delitos de trânsito, pondo em risco a segurança viária e a incolumidade pública, em virtude de sua acentuada impru­ dência, negligência ou imperícia. Com base no art. 294 do CTB, em caso concreto atinente a homicídio

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

na direção de veículo automotor, concluiu o STJ que, ausente a demonstração concreta da necessidade da segregação cautelar do paciente, deve-se permitir que o acusado aguarde o julgamento em liberdade me­ diante o compromisso de comparecer a todos os atos do processo, além da necessária entrega ao juízo da carteira de habilitação para dirigir veículos.563 A fim de se preservar a homogeneidade da medida, a apli­ cação desse dispositivo só poderá ocorrer nos casos em que o preceito secundário da conduta delituosa praticada pelo agente preveja a suspensão ou proibi­ ção de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor como pena. É o que acontece com os crimes do art. 302 (homicídio culposo na direção de veículo automotor), art. 303 (lesões corporais cul­ posas no trânsito), art. 306 (embriaguez no trânsito), art. 307 (violação da suspensão ou da proibição de se obter a permissão ou habilitação) e art. 308 (racha no trânsito), todos do Código de Trânsito Brasileiro. Por força da Lei n. 13.804/19, foi acrescenta­ do ao Código de Trânsito Brasileiro o art. 278-A, cujo §2° dispõe que no caso do condutor preso em flagrante na prática dos crimes de receptação, des­ caminho e contrabando - arts. 180, 334 e 334 do Código Penal, respectivamente -, poderá o juiz, em qualquer fase da investigação ou da ação penal, se houver necessidade para a garantia da ordem pú­ blica, como medida cautelar, de ofício ou a reque­ rimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção. A nosso juízo, ante a nova sistemática adotada pelo Pacote Anticrime no tocante à vedação de decretação de medidas cau­ telares ex officio (CPP, arts. 282, §§2° e 4o, e 311), seja durante a fase investigatória, seja durante a fase processual da persecução penal, o ideal é concluir que a medida em questão só pode ser decretada pelo magistrado mediante provocação. Além das medidas cautelares previstas no De­ creto-Lei n° 201/67 e no Código de Trânsito Brasi­ leiro, não podemos nos esquecer das medidas protetivas de urgência introduzidas no ordenamento pátrio por força da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06).

De acordo com o art. 22 da referida lei, “cons­ tatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou 563. STJ, 5a Turma, HC 162.678/MA, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 18/11/2010, DJe 13/12/2010.

separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n° 10.826/03; II - afastamento do lar, domicílio ou local de con­ vivência com a ofendida; III - proibição de deter­ minadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofen­ dida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos de­ pendentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios”.

À exceção da medida protetiva prevista no art. 22, inciso V, referente à prestação de alimentos pro­ visionais ou provisórios, que tem caráter patrimo­ nial, as demais medidas previstas no art. 22 da Lei n° 11.340/06 possuem nítida natureza cautelar pessoal, pois relacionadas à pessoa do suposto agressor. A título de exemplo, no tocante à medida protetiva do art. 22, inciso III, alínea “b”, da Lei n° 11.340/06, é bastante comum que o autor da violên­ cia doméstica contra a mulher passe a incomodá-la por meio de ligações telefônicas, prejudicando-a durante seu horário de trabalho e/ou descanso. A fim de se evitar esse tipo de conduta, pode o juiz impedir qualquer comunicação do agressor com a vítima.564

Também merece especial atenção a medida cautelar de natureza pessoal prevista no art. 56, § Io, da Lei de Drogas (Lei n° 11.343/06): “Tratando-se de condutas tipificadas como infração do disposto nos arts. 33, caput, e § Io, e 34 a 37 desta Lei, o juiz, ao receber a denúncia, poderá decretar o afas­ tamento cautelar do denunciado de suas atividades, se for funcionário público, comunicando ao órgão respectivo”.

Referida medida cautelar, cuja decretação está condicionada à presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, somente poderá recair sobre o funcionário público que tiver se aproveitado de suas funções para a prática de tráfico de drogas, ou seja, deve haver um nexo funcional entre a prática do delito e a atividade funcional desenvolvida pelo agente. O periculum in mora, por seu turno, deve se 564. Nesse sentido: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batis­ ta. Violência doméstica (Lei Maria da Penha): Lei 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2007. p. 90).

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basear em fundamentação que demonstre que a ma­ nutenção do agente no exercício da função pública servirá como estímulo para a reiteração delituosa.565

Além dessas medidas cautelares, a Lei Orgânica Nacional da Magistratura também prevê que, quan­ do, pela natureza ou gravidade da infração penal, se torne aconselhável o recebimento de denúncia ou de queixa contra magistrado, o Tribunal, ou seu órgão especial, poderá, em decisão tomada pelo voto de dois terços de seus membros, determinar o afastamento do cargo do magistrado denunciado (LC 35/79, art. 29). Acerca do referido dispositivo, o Supremo considera tratar-se de medida aconselhável de resguardo ao prestígio do cargo e à própria res­ peitabilidade do juiz. Em tal hipótese, não há falar em ofensa ao princípio da presunção de não culpa­ bilidade (CF, art. 5o, LVII).566 A Lei de Improbidade Administrativa tam­ bém prevê a possibilidade de afastamento cautelar do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual ou para evitar a iminente prática de novos ilícitos, a qual poderá perdurar por 90 (noventa) dias, pror­ rogáveis uma única vez por igual prazo, mediante decisão motivada (Lei n. 8.429/92, art. 20, §§1° e 2o, incluídos pela Lei n. 14.230/21). Antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, os Tribunais Supe­ riores entendiam que a aplicação dessa medida se limitava aos casos de improbidade administrativa, não sendo viável sua adoção no seio do processo penal.567 Com a entrada em vigor da referida Lei, verifica-se que, doravante, será possível a adoção da medida cautelar da suspensão do exercício de função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais com fundamento no inciso VI do art. 319 do CPP.

13. PODER GERAL DE CAUTELA NO PROCESSO PENAL Ao tratar das medidas cautelares, a legislação prevê várias providências cautelares, que são defi­ nidas de forma expressa na lei. São as medidas cau­ telares nominadas. Todavia, a despeito das diversas medidas cautelares previstas no ordenamento jurídi­ co, o legislador não é capaz de prever providências 565. Nessa linha:THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. p. 292. 566. STF, Pleno, Inq. 2424/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 26/11/2008, DJe 55 25/03/2010.

567. Com esse entendimento: STJ, 6a Turma, HC 128.599/PR, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 07/12/2010, DJe 17/12/2010.

cautelares para toda a gama possível de situações fáticas. Por esse motivo, havendo concreta possibilida­ de de esvaziamento do exercício da função jurisdi­ cional, em virtude de situação de perigo que possa comprometer a eficácia e a utilidade do processo principal, deve o magistrado servir-se de medidas cautelares atípicas ou inominadas, as quais derivam do denominado poder geral de cautela do juiz, pre­ visto expressamente no art. 297 do novo CPC. O poder geral de cautela é um poder atribuído ao Estado-juiz, destinado a autorizar a concessão de medidas cautelares atípicas, assim compreendidas as medidas cautelares que não estão descritas em lei, toda vez que nenhuma medida cautelar típica se mostrar adequada para assegurar, no caso concreto, a efetividade do processo principal. Esse poder geral de cautela deve ser exercido de forma complemen­ tar, pois se destina a completar o sistema, evitando que fiquem carentes de proteção situações para as quais não se previu qualquer medida cautelar típi­ ca. Portanto, havendo medida cautelar típica que se revele adequada ao caso concreto, não poderá o juiz conceder medida cautelar atípica.568

Se o poder geral de cautela é admitido e ampla­ mente utilizado no processo civil, sua aplicação no âmbito processual penal desperta certa controvérsia na doutrina.

De um lado, parte da doutrina e da jurispru­ dência entende que, no processo penal, não existem medidas cautelares inominadas e tampouco possui o juiz criminal um poder geral de cautela, sobretudo em se tratando de cautelares pessoais, que de algu­ ma forma restrinjam o direito de ir e vir da pessoa. Assim, se tais medidas cautelares não estão previstas em lei, não se pode permitir sua adoção a título de poder geral de cautela, sob pena de evidente afron­ ta ao princípio da legalidade, em sua dimensão da taxatividade.569 568. Nessa linha: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4a ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 260-261. Na mesma linha: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, v. III. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001. p. 43. 569. No sentido de que, em sede processual penal, inexiste o po­ der geral de cautela dos juizes, notadamente em tema de privação e/ ou restrição da liberdade das pessoas, daí por que é vedada a adoção

de provimento cautelares inominados ou atípicos — em detrimento de investigado, acusado ou réu —, em face dos postulados constitucionais de tipicidade processual e da legalidade estrita: STF, Segunda Turma, HC 188.888/MG, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06.10.2020. No sentido de que o poder geral de cautela é aplicável ao processo penal, só havendo restrição

a ele, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 444/DF, no que diz respeito às cautelares pessoais, que de alguma forma restrinjam o direito de ir e vir da pessoa: STJ, 3a Seção, REsp 1.568.445/PR, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 24/06/2020, DJe 20/08/2020.

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O princípio da legalidade vem expresso no art. 5o, inciso II, da CF, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tendo em conta que o po­ der tende ao abuso, e que este só é evitado, ou, ao menos dificultado, quando o próprio Estado deve obediência à lei, afigura-se de notável importância o princípio da legalidade, “instrumento mais apro­ priado e seguro para definir os regimes de certas matérias, sobretudo dos direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado”.570

Não por outro motivo, a Constituição Federal condicionou o cerceamento da liberdade de loco­ moção ao princípio da reserva de lei. De acordo com o art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal, e livre a locomoção no território nacional, em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens’. Determinou-se, portanto, que restrições à entrada e saída do país somente podem ser determinadas por lei.

A taxatividade é um fenômeno que exterioriza o princípio da legalidade, desempenhando dupla função na regulamentação de situações que impli­ cam afetação de direitos fundamentais e liberdades públicas: a uma, assegura que todos os direitos que a Constituição Federal confere aos cidadãos não sejam afetados por ingerências estatais não auto­ rizadas por lei (nulla coatio sine lege); a duas, que os juizes atuem adstritos ao império da lei. Logo, qualquer decisão judicial que esteja em condições de afetar a liberdade de locomoção deve estar balizada por limites impostos pelos legítimos representantes da soberania popular, o que confere previsibilida­ de e segurança jurídica. Portanto, cabe unicamente à lei estabelecer de maneira clara as modalidades, os pressupostos, as finalidades, o procedimento e a extensão do exercício de um poder. Somente assim dar-se-á segurança jurídica ao cidadão contra even­ tuais arbitrariedades cometidas em detrimento de sua liberdade de locomoção.571

Em outras palavras, segundo essa primeira cor­ rente, o Estado só pode agir consoante o ordenamen­ to jurídico impetrante, isto é, per legem terrae. Daí concluir Gomes Filho que, no caso de limitação de liberdade, é obrigatório expresso permissivo legal, 570. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6a ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 371. 571. CABIEDES, Pablo Gutiérrez de. La prisión provisional - a partir de lasleyes 13-2003, de24deoctubrey 15-1003, de 25 de noviembre. Navarra: Editorial Arazandi, 2004, p. 64-66. Apud LANFREDI, Luís Geraldo Sant'Ana. Prisão temporária: análise e perspectivas de uma releitura garantista da Lei n° 7.960, de 21 de dezembro de 1989. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 168.

porquanto o princípio da legalidade dos delitos e das penas não cuida apenas do momento da cominação, mas da legalidade de toda a repressão, que coloca em jogo a liberdade da pessoa desde os momentos ini­ ciais do processo até a execução da pena imposta.572 Para tais doutrinadores, admitir o emprego do poder geral de cautela do juiz, previsto no art. 297 do novo CPC, também não é possível. Funcionan­ do o processo penal como instrumento limitador do poder punitivo estatal, não se pode admitir a utilização de medidas cautelares atípicas, sob pena de violação ao princípio do devido processo legal. Qualquer restrição que se queira estabelecer à liber­ dade de locomoção deve obrigatoriamente constar de texto expresso de lei, não sendo admitida, pois, indevida interpretação extensiva, ou aplicação ana­ lógica de dispositivo legal previsto no Código de Processo Civil.573

Em que pese tal entendimento, parece-nos que a legalidade, na sua função de garantia, impede que se imponha uma medida restritiva de direito fun­ damental mais gravosa que não tenha previsão le­ gal. Entretanto, considerando sua função precípua de garantia de direitos fundamentais, ela autoriza, para cumprir tal função, a alternatividade e a redutibilidade das medidas cautelares, objetivando uma medida alternativa menos gravosa. Ou seja, ao fazer uso do poder geral de cautela no processo penal, o juiz poderá ter uma alternativa não prevista em lei para se evitar uma desproporcional decretação da prisão cautelar que, assim, passa, inclusive, a ser uma opção de aplicação de hipótese cautelar mais benéfica ao acusado. A título de exemplo, suponha-se que determi­ nado auditor da Receita Federal, com infração de seu dever funcional, esteja facilitando a prática de contrabando ou descaminho (CP, art. 318). As in­ vestigações em andamento demonstram que, caso o agente permaneça em liberdade, e no exercício de sua função, irá continuar praticando tais delitos. À primeira vista, poder-se-ia cogitar da possibilidade 572. Presunção de inocência eprisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 57. Da mesma forma: DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. Medi­ das substitutivas e alternativas à prisão cautelar. Op. cit. p. 27. E também: GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e medidas cautelares: co­ mentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 46. No sentido da taxatividade das medidas cautelares: BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas cautelares no processo penal: prisões

e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordena­ ção: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011. p. 228.

573. Nessa linha, acerca da impossibilidade de determinação de re­ tenção de passaporte: STJ, 5a Turma, HC 42.994/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 21/11/2005 p. 264. No mesmo sentido: KEHDI, André Pires de Andrade. A retenção do passaporte como medida cautelar alternativa à prisão provisória. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 14, n° 172, p. 15-16, mar. 2007.

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de decretação da prisão preventiva com base na ga­ rantia da ordem pública (CPP, art. 312). Não obstan­ te, considerando que o delito em questão tem pena mínima de 3 (três) anos de reclusão, a segregação cautelar do agente no curso das investigações e do processo poderia se apresentar como medida des­ proporcional, haja vista ser possível que, ao final do processo, sua pena privativa de liberdade fos­ se convertida em penas restritivas de direitos. Por que não se admitir então o afastamento provisório do servidor como medida adequada a resguardar a coletividade da reiteração da conduta delituosa? É óbvio que hoje, com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, a medida cautelar típica da suspensão do exercício de função pública está expressamente prevista no art. 319, VI, do CPP, do que se conclui que sua adoção não seria feita com base no poder geral de cautela. Porém, mesmo antes da vigência da referida lei, já entendíamos que era possível a decretação do afastamento provisório do servidor de suas funções com base no poder geral de caute­ la. Deveras, em tal exemplo, prender cautelarmente o funcionário público poderia representar afronta ao princípio da razoabilidade. Por outro lado, não afastá-lo de suas funções significaria a abdicação de tutela a um interesse processual, que é o de garantir a ordem pública. Daí a possibilidade de adoção do poder geral de cautela no processo penal: a fim de se evitar a decretação de uma medida mais gravosa, in casu, a prisão cautelar, o magistrado poderá se valer do poder geral de cautela para buscar alternativa menos gravosa, que também seja idônea a assegurar a eficácia do processo penal.574

Nessa linha, segundo Nicolas Gonzáles-Cuellar Serrano, afigura-se possível a adoção do poder geral de cautela, desde que sejam observadas três condições, a saber: 1) idoneidade e menor lesividade da medida alternativa; 2) cobertura legal suficiente da limitação dos direitos que a medida restrinja; 3) exigência da infraestrutura necessária para sua aplicação.575 A primeira condição já foi amplamente ana­ lisada quando abordamos o princípio da propor­ cionalidade, versando sobre a adoção de medida que seja capaz de atingir o fim proposto, e que não se mostre, por um lado, excessiva ou, por outro, insuficiente para a preservação do direito protegi­ do pela providência cautelar. A segunda condição

demanda a previsão legal para o sacrifício de direito fundamental do indivíduo (princípio da legalidade). Refere-se à possibilidade de adoção de medidas não previstas em lei, porém menos danosas em relação às normativamente positivadas. Em síntese, a medi­ da alternativa menos gravosa assegura a consecução do fim cautelar mediante a restrição daqueles direi­ tos que a medida excluída limita de forma excessiva. Logo, sendo certo que a medida mais danosa - a prisão preventiva - já se encontra prevista em lei, a restrição do direito limitado pela medida alterna­ tiva dispõe de cobertura legal, já que a lei autoriza a limitação em um volume maior que o finalmente ocasionado pelo meio substitutivo menos gravoso. A terceira condição aponta para a existência de meios materiais e humanos a serem providos pelo Poder Público para a execução e fiscalização do cumpri­ mento das medidas adotadas.

Portanto, em virtude do princípio da propor­ cionalidade, notadamente por força do subprincípio da necessidade, quando cabível uma medida caute­ lar mais gravosa, poderá o juiz impor medida cau­ telar alternativa mais branda não prevista no CPP, caso tal medida também seja idônea a assegurar a eficácia do processo. Com base no art. 3o do CPP, é cabível a aplica­ ção subsidiária do poder geral de cautela previsto no art. 297 do novo CPC, sendo possível, assim, “a alternatividade (imposição de medida cautelar al­ ternativa mais branda não prevista na lei processual penal) e a flexibilidade ou redutibilidade (imposi­ ção de medida cautelar mitigada com redução de aspectos da medida cautelar cabível para que fique mais branda) das medidas cautelares pessoais do direito processual penal, se a medida alternativa ou mitigada tem idoneidade equivalente”.576

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, há precedentes de ambas as Turmas Criminais no senti­ do de que a ausência de expressa previsão no rol do art. 319 do CPP não impede que o julgador aplique providências menos restritivas atípicas, quando en­ tendê-las necessárias, a fim de se coibir, de maneira proporcional e adequada, os riscos ao processo ou ao meio social.577 A propósito, em caso concreto ati­ nente a suposto crime de estupro de vulnerável co­ metido por indivíduo que desempenhava a docência com crianças e adolescentes, mas que praticou o 576. FEITOZA, Denilson. Op. cit. p. 884.

574. Nessa linha: ALVES, Rogério Pacheco. O poder geral de cautela no processo penal. In: Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro: PGJ, n° 15, p. 229-245, jan.-jun., 2002, p. 241. 575. Proporcionalidady derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990. (apud MACHADO CRUZ, op. cit. p. 179).

577. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, HC 534.095/RJ, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 06.10.2020, DJe 09.10.2020; STJ, 6a Turma, HC 469.453/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 19.09.2019, DJe 01.10.2019; STJ 6a Turma, RHC 97.516/ RS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 21.03.2019, DJe 27.03.2019; STJ, 6a Turma, HC 114.734/ES, Rei. Min. Paulo Gallotti, DJe 30/03/2009.

TÍTULO 7 * MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

delito fora de suas atividades funcionais - durante um voo, ele teria encostado a mão nas pernas de uma menor que viajava ao lado dele a 6a Turma do STJ admitiu a fixação de cautelar atípica de li­ mitação da sua atividade docente ao ensino médio, onde é menor o risco de abuso pela idade mais ele­ vada dos adolescentes que o frequentam.578

Mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, o Supremo Tribunal Federal já vinha admitindo a uti­ lização do poder geral de cautela no processo penal, com a consequente imposição de medidas cautelares inominadas tendentes a garantir a instrução crimi­ nal e também a aplicação da lei penal. Na dicção da Ministra Ellen Gracie, não há direito absoluto à liberdade de ir e vir (CF, art. 5o, XV) e, portanto, existem situações em que se faz necessária a pon­ deração dos interesses em conflito na apreciação do caso concreto. Desde que a medida adotada tenha natureza acautelatória, não há falar em violação ao princípio constitucional da não culpabilidade. Cuida-se de medida adotada com base no poder geral de cautela, perfeitamente inserido no Direito brasileiro (NCPC, art. 297 c/c art. 3o do CPP), não havendo violação ao princípio da independência dos poderes (CF, art. 2o), tampouco malferimento à re­ gra de competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22,1).579

CAPÍTULO X

DA LIBERDADE PROVISÓRIA 1. CONCEITO O direito à liberdade provisória tem fundamen­ to constitucional no art. 5o, inciso LXVI, segundo o qual ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Como consectário lógico da regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência, cuida-se de verdadeiro direito subjetivo do cidadão preso frente ao Estado, quando ausentes razões de cautela, e não de um poder discricionário

atribuído ao juiz, que não pode impor uma prisão cautelar sem a necessária motivação judicial.580

Antes do advento da Lei n° 12.403/11, a liberda­ de provisória, com ou sem fiança, funcionava ape­ nas como uma medida de contracautela que subs­ tituía a prisão em flagrante - nunca a preventiva e a temporária, com as quais era incompatível -, se presentes determinados pressupostos e sob deter­ minadas condições de manutenção da liberdade. Funcionava, pois, tão somente como sucedâneo da prisão em flagrante. Nessa hipótese, em que a liberdade provisória funciona como medida de contracautela, que ainda subsiste com o advento da Lei n° 12.403/11 (CPP, art. 310, III), o acusado posto em liberdade fica submetido a certas obrigações que o vinculam ao processo e ao juízo, com o escopo de assegurar sua presença aos atos do processo sem a necessidade de que permaneça privado de sua liberdade. Daí se di­ zer que é provisória, pois a liberdade não é definiti­ va, encontrando-se sujeita a condições resolutórias, que podem acarretar sua revogação. Como anota Weber Martins Batista, “a liberdade vinculada do acusado denomina-se provisória, portanto, porque sujeita-o a deveres que, descumpridos, podem acar­ retar sua prisão ou sua volta à prisão. A medida não é provisória porque quem é colocado em liberdade ainda está sujeito a ser condenado, e, portanto, a ser preso. A provisoriedade se liga à situação durante o processo, e não ao fim do mesmo”.581 Quando a liberdade provisória funciona como medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante, é errado dizer que a revogação da liber­ dade provisória acarreta a restauração de anterior prisão em flagrante. É evidente que o descumpri­ mento das obrigações a que o agente ficou subme­ tido acarretará a revogação da liberdade provisória. Mas isso não significa dizer que haverá o necessário e obrigatório recolhimento à prisão. Na verdade, no caso de descumprimento das obrigações impostas, cabe ao juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 282, § 4o). Destarte, descumprida a obrigação assumida pelo agente por ocasião da concessão da liberdade provisória, não há falar em restauração de flagrante, até mesmo porque o próprio art. 310, inciso II, do CPP, demonstra que a finalidade cautelar do flagrante esgota-se precisa­ mente na sua função probatória.

578. STJ, 6a Turma, AgRg no HC 527.078/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j.

26.11.2019, DJe 03.12.2019. 579. STF, 2a Turma, HC 94.147/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe107 12/06/2008. E também: STF, 1aTurma, HC86.758/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 02/05/2006, DJ p. 22, 01/09/2006; STF, 1a Turma, HC 86.758, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 01/09/2006, p. 22.

580. Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Regimes constitucio­ nais da liberdade provisória. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 99.

581. BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 38.

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Como se percebe, antes das modificações produ­ zidas pela Lei n° 12.403/11, nosso sistema processual não admitia submeter alguém ao regime de liberdade provisória sem que estivesse previamente preso em flagrante. Ou seja, se alguém estava em liberdade desde o início da persecução penal, não poderia ser submetido ao regime de liberdade provisória - que importa obrigações processuais -, pois esta deman­ dava que o acusado tivesse sido preso em flagrante. Não era correto, então, apontar a liberdade provisória como sucedâneo da prisão decorrente de pronúncia ou de prisão decorrente de sentença condenatória recorrível. Em primeiro lugar porque, como visto anteriormente, tais prisões foram expres­ samente abolidas pela reforma processual de 2008 e pela Lei n° 12.403/11. A duas porque, mesmo antes da vigência das Leis 11.689/08 e 11.719/08, quando o juiz deixava de decretar a prisão preventiva no momento da pronúncia ou da sentença condena­ tória, não estava concedendo ao acusado liberdade provisória; significava, na verdade, que não via no caso concreto hipótese que autorizava a decretação da prisão preventiva do indivíduo. Destarte, mesmo antes da vigência da Lei n° 12.403/11, não era pos­ sível apontar-se a liberdade provisória como substi­ tutivo da prisão decorrente de pronúncia ou de sen­ tença condenatória recorrível. Liberdade provisória, então, somente nos casos de prisão em flagrante.

Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória deixa de funcionar tão so­ mente como medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante. Isso porque, apesar de o le­ gislador não se valer dessa expressão no art. 319 do CPP, fica evidente que a liberdade provisória agora também pode ser adotada como providência caute­ lar autônoma, com a imposição de uma ou mais das medidas cautelares diversas da prisão ali elencadas. Veja-se que tais medidas cautelares são alternativas à prisão, podendo ser impostas mesmo se o acusado estiver em liberdade desde o início da persecução penal, como condição para que assim permaneça. Essa liberdade provisória, aliás, pode ser convertida em prisão preventiva, ex vi do art. 312, §1°, em caso de descumprimento de qualquer das obrigações im­ postas ao acusado. Tal modificação da natureza jurídica da li­ berdade provisória é confirmada pela própria colocação da fiança dentre as medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319, VIII). Isso con­ firma que, doravante, a fiança pode ser concedida independentemente de prévia prisão em flagrante, enquanto não transitar em julgado a sentença con­ denatória (CPP, art. 334), quando o juiz verificar sua necessidade para assegurar o comparecimento

a atos do processo, evitar a obstrução do seu an­ damento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial.

A nova redação do art. 321 do CPP também comprova essa nova natureza emprestada à liber­ dade provisória. Inserido que está no Capítulo VI - “Da liberdade provisória com ou sem fiança” -, o art. 321 prevê que o juiz deverá conceder liberda­ de provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e ob­ servados os critérios constantes do art. 282 deste Código, quando considerar que tais medidas são suficientes para produzir o mesmo resultado que a prisão preventiva - garantia de aplicação da lei pe­ nal, tutela da investigação ou da instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.582

Em síntese, por força das mudanças produ­ zidas no CPP pela Lei n° 12.403/11, a liberda­ de provisória deixa de ser tratada apenas como medida de contracautela, substitutiva apenas da prisão em flagrante, e passa a ser dotada também de feição cautelar, desempenhando o mesmo pa­ pel que é atribuído à prisão cautelar, porém com menor grau de sacrifício da liberdade de loco­ moção do agente. Sua aplicação pode se dar de duas formas:583 a) poderá o juiz tanto condicionar a manuten­ ção da liberdade do acusado ao cumprimento de uma das medidas elencadas no art. 319, sob pena de decretar a prisão preventiva, quer originalmente (art. 311/c/c art. 312), quer como sanção processual, justificada pela verificada insuficiência da medida menos gravosa para proteção do interesse ameaça­ do, decorrente do descumprimento da providência cautelar alternativa (CPP, art. 282, § 4o);

b) poderá o juiz substituir a situação de pri­ são em flagrante, ou mesmo a prisão preventiva ou temporária, por uma das medidas menos gravosas arroladas no art. 319, que funcionarão como alter­ nativas para obviar a providência extrema, somente justificada ante a constatação de que essa medida seja igualmente eficaz e idônea para alcançar os

582. Mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, Antônio Scarance Fernandes já criticava a natureza jurídica de contracautela atribuída pela doutrina majoritária à liberdade provisória: A fiança criminal e a

Constituição Federal, Justitia, Revista da Procuradoria-Geral de Justiça em convênio com a Associação Paulista do Ministério Público. São Paulo: s.e., n° 155, 1991, p. 30. Com entendimento semelhante: ROCHA, Luiz Otávio de Oliveira; BAZ, Marco Antônio Garcia. Fiança criminal e liberda­ de provisória. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2000. p. 18.

583. Nessa linha: CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 146.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

mesmos fins, porém com menor custo para a esfera de liberdade do indivíduo. Diante dessa nova natureza jurídica empresta­ da à liberdade provisória, especial atenção deve ser dispensada ao art. 413, § 2o, do CPP, com redação dada pela Lei n° 11.689/08, segundo o qual, por ocasião da pronúncia, se o crime for afiançável, o juiz arbitrará o valor da fiança para a concessão ou manutenção da liberdade provisória. Antes do advento da Lei n° 12.403/11, a interpre­ tação desse dispositivo gerava controvérsias. De fato, considerando-se que a prisão não funciona como efeito automático da pronúncia, e tendo em conta que, à época, a liberdade provisória era apenas uma medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante, como se explicar que a fiança pudesse ser arbitrada por ocasião da pronúncia?

Na verdade, o disposto no art. 413, § 2o, do CPP, encontrava justificativa pois se entendia à época que a prisão em flagrante era modalidade autônoma de custódia cautelar, podendo justificar, de per si, a ma­ nutenção do indivíduo no cárcere durante todo o curso do processo, independentemente de sua con­ versão em prisão preventiva no momento da análise da homologação do auto de prisão em flagrante. Assim, como era possível que o acusado permane­ cesse preso durante todo o processo pelo fato de ter sido preso em flagrante, sem que fosse obrigatória a análise da presença dos pressupostos que auto­ rizam a preventiva, compreendia-se o dispositivo no art. 413, § 2o, do CPP, como a possibilidade de se conceder liberdade provisória com fiança àquele que permanecia preso em flagrante até o momento da pronúncia em virtude do desaparecimento do periculum libertatis.584 Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, dando nova redação ao art. 310 do CPP, essa pos­ sibilidade de alguém permanecer preso em fla­ grante durante todo o processo chega ao fim. De fato, o dispositivo deixa claro que, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fun­ damentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Destarte, ainda que a persecução penal em relação a crime doloso contra a vida 584. Era nesse sentido a opinião de Gustavo Henrique Righi Ivahy

tenha tido início a partir de prisão em flagrante, a manutenção do agente no cárcere estará condi­ cionada à demonstração da presença dos pressu­ postos que autorizam a preventiva, ex vi do art. 310, inciso II, do CPP.

Isso, no entanto, não significa dizer que o art. 413, § 2o, do CPP, tenha sido tacitamente revoga­ do. De modo algum. Deveras, apreendida a ideia de que, por força da Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória, com ou sem fiança, também passa a funcionar como medida cautelar autônoma, in­ dependentemente de prévia prisão em flagrante, é fácil deduzir que, por ocasião da pronúncia, é perfeitamente possível que o magistrado arbitre determinado valor para a concessão ou manuten­ ção da liberdade provisória, de modo a assegurar o comparecimento do agente aos demais atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judi­ cial (CPP, art. 319, VIII). Em outras palavras, ao proferir a decisão de pronúncia, é perfeitamente possível o arbitramento da fiança, seja como subs­ titutivo de anterior prisão preventiva, seja como medida cautelar autônoma para aquele que estava em liberdade plena, quando o juiz entender que referida medida cautelar diversa da prisão é neces­ sária e suficiente para produzir o mesmo resultado que o cárcere ad custodiam, porém com menor sacrifício à liberdade de locomoção do agente.

2. DISTINÇÃO ENTRE RELAXAMENTO DA PRI­ SÃO, LIBERDADE PROVISÓRIA E REVOGAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR Não se pode confundir relaxamento da prisão com liberdade provisória, nem tampouco com re­ vogação da prisão cautelar: 1) O relaxamento da prisão está previsto no art. 5o, inciso LXV, da Constituição Federal: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”;585

2) A revogação da prisão cautelar ocorre quando não mais subsistem os motivos que legi­ timaram a segregação (CPP, art. 282, § 5o, c/c art. 316).586 Somente podem ser objeto de revogação a prisão temporária e a prisão preventiva, ou seja, aquelas prisões que só podem ser decretadas pela autoridade judiciária. Não há falar em revogação 585. Para mais detalhes acerca do relaxamento da prisão, remetemos o leitor ao Capítulo referente aos direitos e garantias constitucionais re­ lativos à liberdade de locomoção.

Badaró: As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos

586. Para mais detalhes acerca da revogação, remetemos o leitor ao

de reforma. Coordenação Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo:

Capítulo I deste Título, que trata das premissas fundamentais e aspectos

Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 81.

introdutórios, e também ao Capítulo referente à prisão preventiva.

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da prisão em flagrante, na medida em que esta espécie de prisão independe de prévia autorização judicial. Em relação a esta, somente é possível o relaxamento da prisão e a concessão da liberdade provisória. A competência para revogar a prisão preventiva recai, originariamente, sobre o órgão jurisdicional que decretou referida medida cau­ telar. Destarte, mesmo que um determinado Tri­ bunal tenha atuado em sede recursal, ao apreciar um habeas corpus impetrado contra a decretação da prisão cautelar, caberá ao magistrado de pri­ meiro grau decidir, inicialmente, acerca do pedido de revogação da prisão preventiva decretada, sob pena de supressão de instância. Cabe a ele, assim, levar em consideração a subsistência (ou não) dos motivos que autorizaram a decretação da prisão cautelar. Caso esse magistrado conclua pela ne­ cessidade de manutenção da prisão preventiva, aí sim será considerado autoridade coatora para fins de impetração de habeas corpus-,

3) A liberdade provisória está prevista no art. 5o, inciso LXVI, da Carta Magna. Com as mudan­ ças produzidas pela Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória continua funcionando como substitu­ tivo da prisão em flagrante, logo, como medida de contracautela. É nesse sentido, aliás, que o art. 310, inciso III, do CPP, prevê que, verificada a legalidade da prisão em flagrante, e a ausência dos pressupostos que autorizam a prisão preven­ tiva, deverá o juiz conceder ao agente liberdade provisória com ou sem fiança. Porém, conquanto o legislador não tenha se utilizado da expressão liberdade provisória no art. 319 do CPP, fica evi­ dente que esse instituto agora também pode ser adotado como providência cautelar autônoma, com a imposição de uma ou mais das medidas cautelares diversas da prisão ali elencadas. Veja-se que tais medidas cautelares são alternati­ vas à prisão, podendo ser impostas mesmo se o acusado estiver em liberdade desde o início da persecução penal, como condição para que assim permaneça. Essa liberdade provisória, aliás, pode ser convertida em prisão preventiva, ex vi do art. 312, §1°, em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas ao acusado.

2.1. Quadro comparativo entre relaxamento da prisão, revogação da prisão cautelar e liberda­ de provisória Relaxamento da prisão

Revogação da prisão cautelar

Liberdade provisória

Incide nas hipó­ teses de prisão ilegal.

Incide nas hipó­ teses de prisão legal.

Incide nas hipó­ teses de prisão legal.

Cabível em face de toda e qual­ quer espécie de prisão, desde que ilegal.

Cabível em face da prisão tempo­ rária e da prisão preventiva.

Por força da Lei n° 12.403/11, passou a ser ca­ bível em face de qualquer prisão.

Não se trata de medida cautelar, mas sim de me­ dida de urgên­ cia baseada no poder de polícia da autoridade judiciária.

Não se trata de medida cautelar, mas sim de me­ dida de urgên­ cia baseada no poder de polícia da autoridade judiciária.

Trata-se de me­ dida de contra­ cautela, em que se sub-roga o carcer ad custo­ diam decorrente da prisão caute­ lar (CPP, art. 310, III, c/c art. 321), e também de medida cautelar autônoma, que pode ser aplicada com a imposição de uma ou mais das medidas cau­ telares diversas da prisão (CPP, art. 321).

Acarreta a resti­ tuição de liber­ dade plena. To­ davia, na hipóte­ se do relaxamen­ to da prisão em flagrante, pre­ sentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, é pos­ sível a imposição de medidas cau­ telares, inclusive a própria prisão preventiva ou temporária.

Acarreta a resti­ tuição de liber­ dade plena. To­ davia, presentes o fumus comissi delicti e o pericu­ lum libertatis, é possível a impo­ sição de medidas cautelares diver­ sas da prisão.

Acarreta a res­ tituição da li­ berdade com vinculação.*

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Relaxamento da prisão

Revogação da prisão cautelar

Liberdade provisória

Cabível em re­ lação a todo e qualquer delito.

Cabível em re­ lação a todo e qualquer delito.

Há dispositivos legais de duvido­ sa constitucio­ nalidade que ve­ dam a liberdade provisória, com ou sem fiança, em relação a al­ guns delitos, o que, todavia, não impede a aplica­ ção das medidas cautelares diver­ sas da prisão.

Só pode ser decretado pela autorida­ de judiciária competente.**

A competência para revogar a prisão recai, originariamente, sobre o órgão jurisdicional que decretou a medi­ da cautelar.

A liberdade pro­ visória pode ser concedida tanto pela autoridade policial (CPP, art. 322), como pela autoridade judiciária.

*. Como será visto com mais detalhes abaixo, para que se possa falar em liberdade provisória, é indispensável que o agente fique sujeito ao cumprimento de certas condi­ ções. Logo, as hipóteses em que o agente se livrava solto (CPP, antiga redação do art. 321) não eram consideradas propriamente uma espécie de liberdade provisória, pois, nesse caso, não havia qualquer espécie de vinculação ao processo e ao juízo. **. Como visto acima, há doutrinadores que entendem que é cabível o relaxamento da prisão pela autoridade policial. Assim, interpretando-se a contrario sensu o art. 304, § 1°, do CPP, quando não resultar fundada suspeita contra o conduzido, poderá a autoridade policial deter­ minar o relaxamento da prisão em flagrante. Dispositivo semelhante é encontrado no arts. 246 e 247, § 2o, do CPPM.

3. ESPÉCIES DE LIBERDADE PROVISÓRIA Com as mudanças produzidas no Código de Processo Penal pela Lei n° 12.403/11, afigura-se possível a seguinte classificação quanto às espécies de liberdade provisória: a) quanto à fiança:

l) liberdade provisória sem fiança (CPP, art. a. 310, §1°, eart. 350). a. 2) liberdade provisória com fiança (CPP, arts. 322 a 349);

b) quanto à possibilidade de concessão: b. l) liberdade provisória obrigatória;

2) b.

liberdade provisória proibida.

c) quanto à sujeição ao cumprimento de obrigações: l) c.

liberdade provisória com vinculação;

2) c.

liberdade provisória sem vinculação.

4. LIBERDADE PROVISÓRIA SEM FIANÇA 4.1. Revogada liberdade provisória sem fiança nas hipóteses em que o conduzido livrava-se solto De acordo com a antiga redação do art. 321 do CPP, o conduzido se livrava solto, independente­ mente do pagamento de fiança, no caso de infração a que não fosse, isolada, cumulativa ou alternativa­ mente, cominada pena privativa de liberdade, ou quando o máximo da pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou alternativamente cominada, não exceder a 3 (três) meses. A concessão de tal be­ nefício não era cabível nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade, se o réu já tivesse sido condenado por outro crime doloso em senten­ ça transitada em julgado, ou se houvesse prova do preso ser vadio (antiga redação do art. 323, incisos III e IV, respectivamente).

Sempre prevaleceu o entendimento de que, a rigor, essa hipótese do antigo art. 321 do CPP não era uma espécie de liberdade provisória, mas sim de liberdade definitiva. Isso porque uma das caracterís­ ticas da liberdade provisória consiste exatamente na possibilidade de sua revogação, restabelecendo-se a prisão, caso ocorra o descumprimento das vinculações a que o agente ficou submetido. Nos casos em que o agente se livrava solto, sua liberdade era tida como definitiva, sem a necessidade de recolhimento de fiança, e sem a imposição de qualquer vinculação. Portanto, não podia ser revogada. O antigo art. 321 do Código de Processo Penal teve seu âmbito de aplicação reduzido em virtude do art. 69, parágrafo único, da Lei n° 9.099/95, se­ gundo o qual, em relação às contravenções penais e crimes a que a lei comine pena máxima não supe­ rior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa, submetidos (ou não) a procedimento especial, não se imporá prisão em flagrante, que será substituída pela lavratura de termo circunstanciado de ocor­ rência, desde que o agente assuma o compromis­ so de comparecer ao juizado ou a ele compareça imediatamente.

Não obstante o quanto disposto na Lei dos Jui­ zados, daí não se podia concluir pela ab-rogação do dispositivo do art. 321 do CPP. Isso porque, como se percebe pela leitura do art. 69, parágrafo único, da Lei n° 9.099/95, a não lavratura do auto de prisão em

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flagrante em relação às infrações de menor potencial ofensivo estava e está condicionada ao compareci­ mento ao juizado, ou à assunção do compromisso de a ele comparecer. Logo, imaginando-se hipótese inusitada em que o conduzido se recusasse a assu­ mir tal compromisso, a autoridade policial devia proceder à lavratura do auto de prisão em flagrante, colocando o preso em liberdade logo em seguida nas hipóteses em que se livrava solto (CPP, art. 309). Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, o art. 321 do CPP, que dispunha sobre essa hipótese de liberdade provisória sem fiança, passou a tratar da concessão de liberdade provisória cumulada (ou não) com as medidas cautelares diversas da prisão, quando o magistrado considerá-las suficientes para produzir o mesmo resultado que a prisão preventi­ va. Destarte, com a nova redação do art. 321 do CPP, pode-se concluir que foi extinta a antiga hipótese de liberdade provisória sem fiança em que o conduzido se livrava solto, após a lavratura do auto de prisão em flagrante. Destarte, é de se concluir que o art. 309 do CPP foi revogado tacitamente, já que refe­ rido dispositivo era aplicável às hipóteses em que o conduzido se livrava solto.

4.2. Liberdade provisória sem fiança nas hipó­ teses de descriminantes De acordo com o art. 310, §1°, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19, que reproduz, ipsis litteris, a redação do antigo parágrafo único do mesmo dis­ positivo, se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato acobertado por uma das excludentes da ilicitude listadas no art. 23, incisos I, II e III, do CP - estado de necessida­ de, legítima defesa,587 estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito -, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Por meio de interpretação extensiva, também há de se admitir a concessão dessa liberdade provi­ sória nas hipóteses de exclusão da ilicitude previstas na Parte Especial do Código Penal (v.g., art. 128, incisos I e II; art. 142, incisos I, II e III; art. 146, § 3o, incisos I e II; art. 150, § 3o, incisos I e II, etc.) ou na legislação especial. Apesar de o dispositivo legal usar a expressão o juiz poderá, não se trata de mera faculdade do juiz,

mas sim de direito público subjetivo do acusado, a ser concedido se presentes os pressupostos legais.588 Na mesma linha, conquanto o art. 310, §1°, do CPP, use as expressões acusado e atos processuais, o que estaria a apontar para a concessão da liberdade pro­ visória apenas no curso do processo, se o exame da verificação da presença de causas excludentes da ilicitude é feito a partir da análise do auto de prisão em flagrante, conclui-se que, na verdade, essa liber­ dade provisória é concedida já na fase preliminar de investigações.

Noutro giro, a despeito de o art. 310, §1°, do CPP fazer menção à expressão “se o juiz verificar”, não é necessário que o juiz tenha absoluta convicção de que o agente tenha praticado o fato acobertado por uma causa excludente da ilicitude. Por se tratar de medida de contracautela, com relação ao fumus boni iuris, não é necessário um juízo de certeza, bastando a probabilidade de que a descriminante esteja pre­ sente. Somente ao final do processo condenatório é que o juiz irá acertar a certeza da ocorrência ou não da excludente de ilicitude. De mais a mais, com a nova redação do art. 386, inciso VI, do CPP, a dúvida fundada quanto à existência de causa excludente da ilicitude autoriza a absolvição do acusado. Ora, se a dúvida autoriza a prolação de um decreto absolutório, deve igualmente permitir a concessão de liberdade provisória prevista no art. 310, §1°, do CPP. O art. 310, §1°, do CPP, limitou a concessão da liberdade provisória às causas excludentes da ilicitu­ de, silenciando, todavia, quanto às causas excluden­ tes da culpabilidade. Esse silêncio, no entanto, não deve ser compreendido como um silêncio eloquente, a significar que, em hipótese alguma, a liberdade provisória sem fiança possa ser concedida diante de causa excludente da culpabilidade. A nosso ver, ressalvada a hipótese de inimputabilidade do art. 26, caput, do Código Penal,589 essa liberdade provisória sem fiança do art. 310, §1°, do CPP, também é apli­ cável quando o juiz verificar pelas provas constantes do auto de prisão em flagrante ter o agente prati­ cado o fato acobertado por uma causa excludente da culpabilidade, como a obediência hierárquica, a coação moral irresistível, a inexigibilidade de conduta diversa, etc. Ora, se o próprio Código de

588. Carlos Maximiliano observa que, às vezes, as palavras pode e deve nem sempre são entendidas na acepção ordinária."Se ao invés do proces­ so filológico de exegese, alguém recorre ao sistemático e ao teleológico, atinge, às vezes, resultado diferente: desaparece a antinomia verbal, pode

587. Consoante disposto no art. 25, parágrafo único, do Código Penal, também incluído pela Lei n. 13.964/19,"observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes".

1008

assume as proporções e o efeito de deve" (Hermenêutica e aplicação do direito, Freitas Bastos, 1961, p. 336).

589. Quanto à situação do inimputável do art. 26, caput, do CP, o ideal é cogitar na aplicação da medida cautelar de internação provisória prevista no art. 319, VII, do CPP.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

Processo Penal autoriza a absolvição sumária do agente quando o juiz verificar a existência manifes­ ta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade (CPP, art. 397, II), seria de todo desarrazoado negar-se a concessão de liberda­ de provisória em tal hipótese. Ademais, admitindo a legislação processual penal comum o emprego da analogia (CPP, art. 3o, caput), afigura-se possível a aplicação do art. 253 do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual é cabível a concessão de li­ berdade provisória sem fiança nos casos de coação moral irresistível e obediência hierárquica (CP, art. 22, caput). Se o art. 310, §1°, do CPP, estabelece que o juiz pode conceder a liberdade provisória quando verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato acobertado por uma causa excludente da ilicitude, conclui-se que, à autorida­ de policial, no momento da prisão em flagrante, reserva-se apenas um juízo de tipicidade formal, sem poder avaliar a presença (ou não) de excluden­ tes da ilicitude (ou da culpabilidade). Em outras palavras, se a lei preceitua que o juiz deve conceder liberdade provisória ao agente que praticou o fato acobertado por uma excludente da ilicitude, sig­ nifica dizer que a autoridade policial é obrigada a prender aquele que for encontrado em situação de flagrância de conduta aparentemente típica, mes­ mo que haja indícios de ter o agente praticado o fato delituoso sob o amparo de alguma descriminante (ou exculpante).590

Por fim, atente-se para o indispensável cotejo do art. 310, §1°, com o disposto no art. 314 do CPP, segundo o qual a prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato ao abrigo de uma causa excludente da ilicitude. Da comparação entre os dois dispositivos, conclui-se que, mesmo que o agente deixe de comparecer a determinado ato do processo, a liberdade provi­ sória concedida com fundamento no art. 310, §1°, do CPP, não poderá ser revogada, pois incabível a prisão preventiva. A rigor, então, diante da impossi­ bilidade de revogação da liberdade provisória do art. 310, §1°, do CPP, já que incabível a decretação da preventiva, não estamos diante de regime cautelar de liberdade provisória, porquanto ausente qualquer força coercitiva a impor o comparecimento do agen­ te aos atos processuais. 590. No mesmo prisma: NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Proces­ so Penal Comentado. 4a ed. rev„ atual, e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 574. E ainda: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Regimes constitucionais da liberdade provisória. Op. cit. p. 117.

4.3. Revogada liberdade provisória sem fiança pela inexistência de hipótese que autorizasse a prisão preventiva (antiga redação do art. 310, parágrafo único) A antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, tratava de hipótese de liberdade provisória sem fiança, por meio da qual o juiz, após ouvir o Mi­ nistério Público, podia conceder ao preso liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação, quando verificasse, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que auto­ rizam a prisão preventiva (CPP, art. 312).

Essa hipótese de liberdade provisória sem fian­ ça foi inserida no Código de Processo Penal por meio da Lei n° 6.416, de 24 de maio de 1977, e aca­ bou por reduzir o instituto da fiança a uma quase absoluta inutilidade. Ora, se o autor de um crime afiançável ou inafiançável podia ser beneficiado pela liberdade provisória sem fiança prevista na antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, com a única obrigação de comparecer a todos os atos do processo, a fiança servia apenas para os crimes em que tal benefício era vedado (CPP, revogado § 2o do art. 325), e para que o autuado em flagrante delito pudesse ser posto em liberdade com maior rapidez nas hipóteses de arbitramento da fiança pela própria autoridade policial, eis que, nesse caso, não havia necessidade de participação prévia do juiz e do Ministério Público. A antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, não estabelecia qualquer requisito quanto à infração penal suscetível de liberdade provisória sem fiança. Logo, tal benefício era cabível tanto em relação a infrações afiançáveis quanto em relação às inafiançáveis.

Exemplificando, imagine-se a hipótese de al­ guém preso em flagrante pela prática de um crime de roubo simples (CP, art. 157, caput), cuja pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. An­ tes das mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11, esse delito era inafiançável, por força da antiga reda­ ção do art. 323, incisos I e V. No entanto, conquanto o delito fosse inafiançável à época, ausente hipótese que autorizasse a segregação preventiva do acusado, era em tese cabível a liberdade provisória sem fiança prevista na antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP. Em outro exemplo, se um indiví­ duo fosse preso em flagrante pela prática do delito de furto simples (CP, art. 155, caput), cuja pena é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e mul­ ta, logo, afiançável, também seria cabível a mesma (1009

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liberdade provisória sem fiança. À primeira vista, pode-se pensar que, se o crime era afiançável, so­ mente seria cabível a concessão da liberdade provi­ sória com fiança. No entanto, a circunstância de ser o crime afiançável não possuía o condão de obrigar o arbitramento da fiança, porquanto, nessa hipóte­ se, ter-se-ia configurada situação desproporcional em relação aos crimes que, embora inafiançáveis, admitiam liberdade provisória sem o pagamento de fiança (exemplo anterior). Daí ser também pos­ sível, à época, a concessão de liberdade provisória sem fiança do art. 310, parágrafo único, do CPP, ao cidadão preso em flagrante pela prática de furto simples.591 Na verdade, diante dessa liberdade provisória sem fiança do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP, as vantagens da liberdade provisória com fiança ficavam bem restritas: 1) a autoridade poli­ cial pode conceder liberdade provisória com fiança (CPP, art. 322, caput), o que impede a privação da liberdade de locomoção do indivíduo mesmo que por um curto lapso temporal, evitando, ademais, seu contato com o cárcere; 2) a lei não prevê a oitiva do órgão do Ministério Público nos casos de liberdade provisória com fiança, o que acaba por tornar mais célere a apreciação do pedido; nos casos do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP, a lei impunha a prévia oitiva do órgão ministerial, tornando mais morosa a tramitação do pedido.

Como se percebe, embora a inserção desse parágrafo único ao art. 310 do CPP pela Lei n° 6.416/77 tenha sido imprescindível em face da nova ordem constitucional, essa alteração fez com que a fiança passasse de instituto central no regime da liberdade provisória a servir apenas para pouquíssi­ mas situações concretas, ficando superada, e para al­ guns inclusive tacitamente revogada, pela liberdade provisória sem fiança do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP. Essa incongruência e desproporcionalidade fica ainda mais patente quando se verifica que os vínculos a que o agente ficava submetido com tal liberdade provisória eram menores que aqueles a que fica submetido o agente afiançado (CPP, arts. 327 e 328).

Por esses motivos, e objetivando valorizar a fiança, a Lei n° 12.403/11 pôs fim à liberdade pro­ visória sem fiança do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP, outrora cabível quando o juiz verifi­ casse a inocorrência das hipóteses autorizadoras da

prisão preventiva. De fato, a nova redação do art. 310, parágrafo único, refere-se à liberdade provisó­ ria sem fiança apenas para as hipóteses em que o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições dos incisos I a III do art. 23 do CP. Fica claro que houve uma preocupação por parte da Lei n° 12.403/11 em encerrar a absurda contradição de o indiciado por crime menos gra­ ve ser posto em liberdade mediante o pagamento de fiança, enquanto que o acusado por crime mais grave era solto sem fiança, com a única obrigação de comparecer a todos os atos do processo, quan­ do ausentes os requisitos da prisão preventiva. Bas­ ta ver, nessa linha da revitalização da fiança, que houve uma diminuição das hipóteses de crimes inafiançáveis - nova redação do art. 323 do CPP -, significando que, doravante, a intenção é fazer da liberdade provisória com fiança, cumulada (ou não) com medida cautelar diversa da prisão, a regra.

Portanto, com as modificações produzidas pela Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória sem fiança, e apenas com a obrigação de o acusado comparecer a todos os atos do processo, volta ao regime anterior à vigência da Lei n° 6.416/77, ou seja, de aplica­ ção exclusiva aos casos em que o juiz verificar ter o agente praticado o fato sob o amparo de uma das causas excludentes da ilicitude.592 Para as demais hipóteses, o juiz poderá con­ ceder liberdade provisória, impondo as medidas cautelares previstas no art. 319, observados os cri­ térios de necessidade e adequação do art. 282, I e II, do CPP, quando considerar que tais medidas são suficientes para produzir o mesmo resultado que a prisão preventiva (CPP, art. 321, com redação de­ terminada pela Lei n° 12.403/11). Em caso de des­ cumprimento injustificado de alguma das obriga­ ções ou medidas cautelares impostas, o juiz poderá substituir a medida, impor outra em cumulação ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, desde que presentes os pressupostos do art. 312 do CPP.

De todo modo, à luz do direito intertemporal, a extinção da liberdade provisória sem fiança prevista na antiga redação do parágrafo único do art. 310 do CPP é exemplo de novatio legis in pejus. Logo, a norma anterior mais benéfica ao agente continuará a regular os fatos delituosos ocorridos durante a sua vigência, mesmo depois de sua revogação (ultrativi­ dade da lei processual penal mista mais benéfica).

591. Nessa linha: STJ, 6a Turma, HC 96.516/PR, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada doTJ/MG, DJ 14/04/2008 p. 1.E ainda: STJ, 5a Turma, HC 62.790/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 06/11/2006

p. 355.

1010

592.Com esse entendimento: DELMANTO, Fabio Machado de Almei­ da. Medidas substitutivas e alternativas à prisão cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 287.

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Portanto, em relação aos crimes praticados até o dia 03 de julho de 2011, data anterior à entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, ainda que a persecução penal tenha início após essa data, o agente continuará a fazer jus à antiga liberdade provisória sem fiança quando verificada a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.

4.4. Liberdade provisória sem fiança por mo­ tivo de pobreza De acordo com o art. 350, caput, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória sem fiança, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 e a outras medidas cautelares, se for o caso.

Essa hipótese de liberdade provisória havia perdido muito de sua importância diante do surgi­ mento da liberdade provisória sem fiança do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP, criada pela Lei n° 6.416/77. Ora, essa última era muito mais van­ tajosa, pois sujeitava o agente tão somente ao com­ parecimento a todos os atos do processo. Subsistia a utilidade da liberdade provisória do art. 350, caput, do CPP, apenas nas hipóteses em que a liberdade provisória do antigo parágrafo único do art. 310 era vedada - crimes contra a economia popular e de sonegação fiscal (CPP, revogado § 2o do art. 325). Réu pobre não é necessariamente o mendigo ou o indigente. O conceito de miserabilidade pode ser extraído do art. 32, § Io, do CPP: “Considerar-se-á pobre a pessoa que não puder prover às despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família”. O ônus da prova quanto à situação de pobreza é do requerente.

de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em últi­ mo caso, decretar a prisão preventiva. Comparando-se a antiga redação do art. 350, caput, do CPP, com a nova, dada pela Lei n° 12.403/11, percebe-se que o legislador não fez menção expressa no referido dispositivo à prática de nova infração penal como causa de revogação do benefício. Esse silêncio não deve ser tido como um silêncio eloquente, no sentido de se entender que, doravante, a prática de outra infração penal não acarretará a revogação do benefício. Em que pese o esquecimento do legislador, se o beneficiado posto em liberdade por força do art. 350, caput, do CPP, volta a praticar nova infração penal, fica evidente que a concessão do benefício da liberdade provisória sem fiança não está sendo suficiente para tutelar a eficácia do processo, daí por que deve haver a subs­ tituição por outra medida cautelar, ou, em último caso, a conversão em prisão preventiva, nos termos do art. 312, §1°, do CPP.

5. LIBERDADE PROVISÓRIA COM FIANÇA 5.1. Conceito e natureza jurídica da fiança De acordo com Julio Fabbrini Mirabete, “a pa­ lavra fiança vem àefidare, corruptela de fidere, que significa ‘fiar-se’, confiar em alguém’. Nesse sentido, fiança é a fidejussória, isto é, prestada por pessoa idô­ nea, que se obrigava a pagar a determinada quantia se o réu, ao ser condenado, fugisse, furtando-se ao pro­ cesso e à execução da pena. Nos termos legais, porém, fiança é caução, de cavere, que quer dizer acautelar’, servindo para designar qualquer meio que sirva para assegurar o cumprimento de uma obrigação. Destar­ te, fiança é uma garantia real de cumprimento das obrigações processuais do réu. É garantia real porque tem por objeto coisas (art. 330), não existindo mais a fiança fidejussória no processo penal comum”.593

Logo, por força do art. 350 do CPP, desde que o crime seja afiançável, e o agente não possa prestar a fiança por motivo de pobreza, pode o juiz, e somen­ te ele, conceder ao preso liberdade provisória sem fiança, mas com as mesmas obrigações da fiança: a) comparecer perante a autoridade, todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da ins­ trução criminal e para o julgamento; b) o acusado afiançado não poderá, sob pena de quebramento da fiança, mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante; c) o acusado afiançado não poderá ausentar-se por mais de 8 (oito) dias de sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado.

Consoante o Código de Processo Penal, a fiança pode ser conceituada como uma caução real desti­ nada a garantir o cumprimento das obrigações pro­ cessuais do réu. Já não existe mais a chamada fiança fidejussória, consubstanciada em garantia pessoal do preso, pelo empenho de sua palavra, de que ia acompanhar a instrução e se apresentar, em caso de condenação. Pode ser prestada de duas maneiras: por depósito ou por hipoteca, desde que inscrita em primeiro lugar. O depósito pode ser de dinheiro, pe­ dras, objetos ou metais preciosos, e títulos da dívida federal, estadual ou municipal (art. 330, CPP). Já os

Se o beneficiado descumprir, sem motivo justo, qualquer das obrigações ou medidas impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público,

São Paulo: Atlas, 2006. p. 414-415.

593. Processo Penal. 18a ed. rev. e atual, até 31 de dezembro de 2005.

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bens dados em hipoteca estão definidos no art. 1.473 do Código Civil. Efetuada a prestação da fiança em moeda corrente, deverá a autoridade fazer seu reco­ lhimento nas Agências da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, em nome de quem a prestou e à disposição da autoridade judiciária competente.

13.869/19, constitui abuso de autoridade deixar a autoridade judiciária, dentro de prazo razoável, de conceder liberdade provisória, quando manifesta­ mente cabível.

Com as modificações produzidas pela Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória com fiança deixa de ser apenas uma medida de contracautela (CPP, art. 310, III), e passa a funcionar também como me­ dida cautelar autônoma, podendo ser determinada pelo juiz nas infrações que admitem a fiança, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial (CPP, art. 319, VIII).594

Segundo o art. 334 do CPP, a fiança pode ser concedida enquanto não houver o trânsito em julgado de sentença condenatória, podendo ser concedida independentemente de prévia oi­ tiva do Ministério Público. Obviamente, uma vez prestada a fiança, o Parquet terá vista do proces­ so, podendo interpor Recurso em sentido estrito quando discordar da decisão (CPP, art. 581, V).

Portanto, seja como medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante, seja como medi­ da cautelar autônoma, a fiança tem como finalidade precípua assegurar o cumprimento das obrigações processuais do acusado, na medida em que este, pelo menos em tese, tem interesse em se apresentar, em caso de condenação, para obter a devolução da cau­ ção. Na prática, todavia, diante da defasagem do valor da fiança que vigorou durante anos e anos, não havia, pelo menos até o advento da Lei n° 12.403/11, qualquer estímulo ao acusado para que permane­ cesse vinculado ao processo.

Outro objetivo importante da fiança é o de ga­ rantir o pagamento das custas, da indenização do dano causado pelo crime e também da multa. Trata-se, a liberdade provisória com fiança, de direito subjetivo constitucional do acusado, a fim de que, mediante caução e cumprimento de certas obrigações, possa permanecer em liberdade até a sentença condenatória irrecorrível. Seu fundamen­ to constitucional encontra-se no art. 5o, LXVI, se­ gundo o qual ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança. Não por outro motivo, quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a permite, caracteriza-se hipótese de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, autorizando-se a impetração de habeas corpus com fundamento no art. 648, inciso V, do Códi­ go de Processo Penal. Ademais, de acordo com o art. 9o, parágrafo único, inciso II, in fine, da Lei n. 594. Segundo João Gualberto Garcez Ramos (op. cit. p. 225), "por se tratar de medida fundada na urgência, caracterizada pela sumariedade material e formal, decretada com base na aparência, referível à pretensão condenatória subjacente ao processo penal, temporária e incapaz de gerar coisa julgada material, é medida cautelar protetiva da liberdade do imputado".

1012

5.2. Momento para a concessão da fiança

Antes do advento da Lei n° 12.403/11, a liberda­ de provisória funcionava apenas como substitutivo da prisão em flagrante. Sempre entendemos que, diante do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP, não era possível que alguém permanecesse preso em flagrante até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, pois, ao ser comunicado da prisão em flagrante, era obrigatório que o juiz analisasse o cabimento da liberdade provisória. Então, se pre­ sentes os pressupostos dos arts. 312e313do CPP, deveria converter a prisão em flagrante em prisão preventiva. Se ausentes tais pressupostos, deveria conceder ao acusado a liberdade provisória sem fiança do antigo parágrafo único do art. 310 do CPP.

Não obstante, já foi dito que não era essa a posição dos Tribunais. Antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, prevalecia na jurisprudência o entendimento de que o juiz não era obrigado a se manifestar de ofício quanto ao cabimento da liber­ dade provisória. Diante dessa posição, era possível a compreensão do disposto no art. 334 do CPP, pois, se o juiz não estava obrigado a se manifestar de ofí­ cio quanto à concessão de liberdade provisória - e desde que não houvesse qualquer pedido formulado pelo MP ou pela defesa -, era possível que alguém permanecesse preso ao longo de todo o processo em virtude da prisão em flagrante’, pleiteando, en­ tão, a concessão de liberdade provisória com fiança enquanto não houvesse o trânsito em julgado de sentença condenatória (CPP, art. 334).

Com a nova redação dada ao art. 310 do CPP, a análise judicial acerca do cabimento da liberdade provisória, com ou sem fiança, passa a ser obriga­ tória. Isso porque, ao receber o auto de prisão em flagrante, o magistrado deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se re­ velarem inadequadas ou insuficientes as medidas

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cautelares diversas da prisão; ou III - conceder li­ berdade provisória, com ou sem fiança. Como se pode perceber, será mais difícil a vi­ sualização da concessão da fiança como medida de contracautela em momento posterior ao da prisão em flagrante, já que a análise por parte do juiz acer­ ca do cabimento da liberdade provisória, com ou sem fiança, deve ocorrer tão logo seja comunicado da prisão em flagrante. Isso, todavia, não significa dizer que o art. 334 do CPP não tenha qualquer validade. Afinal, por força da Lei n° 12.403/11, a fiança não é mais apenas uma medida de contra­ cautela substitutiva da prisão em flagrante, o que significa dizer que pode ser concedida de maneira autônoma. Logo, como espécie de medida cautelar diversa da prisão (CPP, art. 319, VIII), é evidente que a fiança pode ser arbitrada para o acusado solto durante todo o curso da persecução penal, enquanto não transitar em julgado a sentença pe­ nal condenatória (CPP, art. 334).

5.3. Concessão de fiança pela autoridade policial Antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, caso a infração penal fosse punida com pena priva­ tiva de liberdade de detenção ou prisão simples,595 e desde que não se tratasse de crime contra a eco­ nomia popular, ou crime de sonegação fiscal (CPP, art. 325, revogado § 2o), o art. 322 do CPP permitia que a própria autoridade policial concedesse fiança. Nos demais casos, somente a autoridade judiciária poderia concedê-la. Com as mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11, a autoridade policial passou a ter atri­ buição para conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Para tanto, deverão ser levadas em consideração qualificadoras, privilé­ gios, majorantes, minorantes e eventual hipótese de concurso de crimes (material, formal ou con­ tinuidade delitiva). Ademais, em havendo demora ou retardamento da autoridade policial no tocante à concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, peran­ te o juiz competente, que terá 48 (quarenta e oito) horas para proferir sua decisão (CPP, art. 335), sob pena de acionamento das instâncias superiores por habeas corpus. 595. Nos termos do art. 6o da Lei de Contravenções penais (Decreto-Lei n° 3.688/41), a pena de prisão simples deve ser cumprida, sem rigor penitenciário, em estabelecimento especial ou seção especial de prisão

comum, em regime semiaberto ou aberto.

Sob a ótica do art. 322 do CPP, poder-se-ia con­ cluir, à primeira vista, que o Delegado de Polícia po­ deria conceder fiança em relação ao novel crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência previsto introduzido no art. 24-A da Lei Maria da Penha pela Lei n. 13.641/18, já que a pena cominada ao referido delito é de detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. Ocorre que o legislador fez questão de afastar essa possibilidade ao introduzir um §2° ao art. 24-A da Lei Maria da Penha, nos seguintes termos: “Na hipótese de prisão em flagrante, ape­ nas a autoridade judicial poderá conceder fiança”. Por consequência, falece atribuição ao Delegado de Polícia para conceder liberdade provisória com fiança ao flagranteado pela prática do crime do art. 24-A. Isso significa dizer que o indivíduo deverá ser preso em flagrante e, na sequência, conduzido a uma audiência de custódia, quando, então, o juiz competente deverá proceder à convalidação judicial do flagrante (CPP, art. 310).

Tratando-se de prisão em flagrante, a autori­ dade policial com atribuição para arbitrar a fiança é aquela que presidir a lavratura do auto, pouco importando que a prisão tenha se verificado em comarca diversa daquela onde o processo deva tra­ mitar. Sobre o assunto, o art. 332 do CPP estabelece que, em caso de prisão em flagrante, será competen­ te para conceder a fiança a autoridade que presidir ao respectivo auto, e, em caso de prisão por man­ dado, o juiz que o houver expedido, ou a autoridade judiciária ou policial a quem tiver sido requisitada a prisão. Em se tratando de processo da competên­ cia originária dos Tribunais, a competência será do Relator, nos termos do art. 2o, parágrafo único, da Lei n° 8.038/90.

Nos casos em que a fiança for cabível, a auto­ ridade judiciária que a denegar poderá, inclusive, responder por crime de abuso de autoridade, nos termos do art. 9o, parágrafo único, inciso II, infine, da Lei n. 13.869/19. Essa negativa de concessão da fiança também é apta a gerar constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, à luz do art. 648, inciso V, do CPP, ensejando concessão de ordem de habeas corpus. Caso a autoridade policial se recuse a conceder fiança nas hipóteses do art. 322 do CPP, nada im­ pede que a autoridade judiciária a conceda, valen­ do-se do permissivo constante do art. 335 do CPP. Portanto, ao invés de se impetrar um habeas corpus com fundamento no art. 648, inciso V, do CPP, po­ derá o preso ou terceiro prestar a fiança por simples petição perante o juiz competente. Recusando-se o magistrado a conceder a fiança, apesar de o art. 581,

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V, do CPP prever o cabimento de recurso em senti­ do estrito, a medida mais pertinente e célere será o habeas corpus, a ser impetrado perante o Tribunal competente.

5.4. Valor da fiança Um dos principais objetivos da Lei n° 12.403/11 foi o de revigorar o instituto da fiança. De fato, há muitos anos já se fazia necessária a atualização de seus valores, a fim de que a cifra arbitrada fosse algo mais razoável, de modo que a possibilidade da perda da sua metade (quebramento) ou da sua totalidade (perdimento) seja capaz de exercer uma coação indireta sobre o beneficiário, obrigando-o a respeitar as condições que lhe forem estabelecidas.

Assim, para que a fiança não se torne ilusória para os ricos e impossível para os pobres, a nova redação do art. 325 do CPP dispõe que, atento aos critérios estabelecidos no art. 326, a autoridade deve fixar o valor da fiança nos seguintes termos: a) de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos; b) de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos. A fim de adequar o valor da fiança, e levando-se em consideração a situação econômica do preso, é possível que a fiança seja dispensada, reduzida até o máximo de 2/3 (dois terços) ou aumentada em até 1.000 (mil) vezes. Ao se referir à dispensa da fiança, o art. 325, § Io, I, faz menção ao art. 350 do CPP, o qual estabelece que somente o juiz poderá dispensar a concessão de fiança. Portanto, tanto a autoridade policial quanto a judiciária podem reduzir o valor da fiança até o máximo de 2/3, assim como aumentá-la em até 1.000 (mil) vezes, nos termos do art. 325, § Io, incisos II e III, mas somente o juiz pode dispensar a caução (CPP, art. 350, caput). O art. 326 do CPP, que não teve sua redação modificada pela Lei n° 12.403/11, estabelece que, a fim de se estabelecer o valor da fiança, a autoridade deverá levar em consideração: a) a natureza da in­ fração; b) as condições pessoais de fortuna do preso; c) a vida pregressa do acusado; d) as circunstâncias indicativas de sua periculosidade; e) a importância provável das custas do processo, até final julgamen­ to. Deve a autoridade policial ou o magistrado fi­ xar seu valor em quantia apreciável, sob pena de o valor não exercer qualquer caráter coercitivo sobre o agraciado. Some-se a isso o fato de que a caução servirá, também, para o pagamento das custas, da 1014

indenização do dano ex delicto, da prestação pecu­ niária e da multa, em caso de condenação.

5.5. Infrações inafiançáveis O Código de Processo Penal não estabelece quais infrações penais admitem fiança. Estabelece, sim, os casos que não admitem fiança. Portanto, a fim de se estabelecer quais infrações são afiançáveis, deve-se fazer uma interpretação a contrario sensu dos arts. 323 e 324 do CPP. Quando se compara a antiga redação do art. 323 com a nova, fica evidente o quanto o legislador quis revigorar o instituto da li­ berdade provisória com fiança. Tanto é verdade que houve uma diminuição dos crimes inafiançáveis, o que reforça o entendimento de que, doravante, a regra será a concessão da liberdade provisória com fiança, cumulada (ou não) com as medidas cautela­ res diversas da prisão do art. 319 do CPP. Vejamos, então, as hipóteses que não admitem fiança:

a) Racismo: de acordo com o art. 5o, XLII, da Constituição Federal, a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor estão previstos na Lei n° 7.716/89. Com a Lei n° 12.403/11, o legislador or­ dinário procedeu à adequação do Código de Proces­ so Penal à Constituição Federal de 1988, inserindo o delito de racismo dentre os crimes inafiançáveis (CPP, art. 323,1);

b) Crimes hediondos, tráfico de drogas, ter­ rorismo e tortura: consoante disposto no art. 5o, XLIII, da Constituição Federal, a lei considerará cri­ mes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os man­ dantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. Com a Lei n° 12.403/11, o legislador ordinário procedeu à adequação do Código de Pro­ cesso Penal à Constituição Federal de 1988, inserin­ do referidos delitos dentre os crimes inafiançáveis (CPP, art. 323, II). c) Ação de grupos armados, civis ou mili­ tares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático: nos exatos termos do art. 5o, inciso XLIV, da Carta Magna, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, constitui crime inafiançável e imprescritível. Com a Lei n° 12.403/11, o legisla­ dor ordinário procedeu à adequação do Código de Processo Penal à Constituição Federal de 1988, in­ serindo dentre os crimes inafiançáveis referidos de­ litos (CPP, art. 323, III), os quais estavam previstos,

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originariamente, na revogada Lei n° 7.170/83, que definia os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, e que, atualmente, foram deslocados para o Código Penal sob a rubrica crimes contra o Estado Democrático de Direito (CP, arts. 359-1 a 359-R, incluídos pela Lei n. 14.197/21); d) Anterior quebramento de fiança no mes­ mo processo ou descumprimento das obrigações dos arts. 327 e 328 do CPP: de acordo com a nova redação do art. 324, inciso I, do CPP, não será con­ cedida fiança aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida. As hi­ póteses de quebra de fiança estão previstas no art. 341 do CPP, segundo o qual julgar-se-á quebrada a fiança quando o acusado, regularmente intima­ do para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo, deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo, descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança, resistir injustificadamente a ordem judicial ou praticar nova infração penal dolosa. O quebra­ mento injustificado da fiança importará na perda de metade do seu valor, cabendo ao juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva. Ainda se­ gundo a nova redação do art. 324, inciso I, do CPP, não se concede fiança aos que, no mesmo processo, tiverem infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 do CPP: comparecimento perante a autoridade, todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da instrução criminal e para o julgamento, im­ possibilidade de mudança de residência sem pré­ via permissão da autoridade processante, além da proibição de se ausentar por mais de 8 (oito) dias de sua residência sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado.596 e) Prisão civil ou militar: de acordo com anti­ ga redação do art. 324, inciso II, do CPP, não seria possível a concessão de fiança em caso de prisão por mandado do juiz do cível, de prisão discipli­ nar, administrativa ou militar. Com a nova reda­ ção dada pela Lei n° 12.403/11, o art. 324, inciso II, passa a dispor que não será concedida fiança em caso de prisão civil ou militar. Quando o legislador se refere à prisão militar como espécie de infração inafiançável, refere-se tanto à prisão nos casos de transgressão militar, como também nos casos de 596. No sentido de que o cometimento de nova infração penal na vigência de fiança anterior é causa de quebramento de fiança, impossi­ bilitando a concessão de liberdade provisória: STJ - HC 16.562/PE - 5a Turma - Rel. Min. Gilson Dipp - DJ 17/09/2001 p. 178. Com raciocínio semelhante: STJ, 6a Turma, HC 36.203/SP, Rel. Min. Hamilton Carvalhido,

DJ 05/02/2007 p. 384.

crimes propriamente militares. Se tais prisões fun­ cionam como instrumentos coercitivos de tutela da hierarquia e da disciplina, seria de todo desarrazoado admitir-se a concessão de fiança quanto a elas. Como se percebe, o art. 324, II, do CPP, deixa de fazer menção à prisão administrativa e à prisão dis­ ciplinar. Quanto à prisão administrativa, já foi dito anteriormente que, desde a Constituição Federal de 1988, grande parte da doutrina entende que tal modalidade de prisão deixou de existir, tese esta que ganhou reforço com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, a qual, ao dar nova redação aos arts. 319 e 320 do CPP, pôs fim à antiga prisão administrativa prevista em tais dispositivos. Logo, se não é cabível a prisão administrativa, não há necessidade de dizer que tal prisão não comporta fiança. Daí o porquê da nova redação do inciso II do art. 324 do CPP. f) Presença das hipóteses que autorizam a prisão preventiva: de modo a emprestar coesão ao sistema, caso esteja presente um dos motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva, não será cabível a concessão de liberdade provisória com fiança (CPP, art. 324, IV). Assim, ao ser comuni­ cado da prisão em flagrante, quando presentes os requisitos constantes dos arts. 312e313do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, deverá o magistrado, fundamentadamente, converter a prisão em flagran­ te em preventiva (CPP, art. 310, II).

5.6. Obrigações processuais Uma vez concedida a liberdade provisória com fiança, deverá o afiançado assumir os seguintes de­ veres (CPP, arts. 327, 328):

1) Comparecimento perante a autoridade to­ das as vezes que for intimado para atos do inqué­ rito e da instrução criminal e para o julgamento, reputando-se quebrada a fiança em caso de não comparecimento;

2) O réu afiançado não poderá, sob pena de quebramento da fiança, mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante, ou au­ sentar-se por mais de 8 (oito) dias de sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado; 3) Se o réu praticar nova infração penal dolosa, julgar-se-á quebrada a fiança.

Segundo o art. 329 do CPP, nos juízos criminais e delegacias de polícia, haverá um livro especial, com termos de abertura e de encerramento, nume­ rado e rubricado em todas as suas folhas pela autori­ dade, destinado especialmente aos termos de fiança. O termo será lavrado pelo escrivão e assinado pela

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autoridade e por quem prestar a fiança, e dele extrair-se-á certidão para juntar-se aos autos. O réu e quem prestar a fiança serão pelo escrivão notifica­ dos das obrigações e da sanção previstas nos arts. 327 e 328 do CPP.

5.7. Incidentes relativos à fiança 5.7.1. Quebramento da fiança Reputa-se quebrada a fiança quando o acusado: I) regularmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo;

II) deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo: a doutrina tem citado como exemplos a hipótese em que o acusado tenta se evadir da citação ou da intimação do oficial de justiça ou quando apresenta atestados falsos visando à redesignação de atos processuais;

III) descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança: o descumprimento injustificado da outra medida cautelar terá como efeito cumulativo o quebramento da fiança. Assim, além de autorizar a substituição da medida, a im­ posição de outra medida cumulativamente ou, em último caso, até mesmo a decretação da prisão pre­ ventiva (CPP, art. 282, § 4o), também implicará a perda da metade do valor dado em fiança, em razão de seu quebramento.

IV) resistir injustificadamente a ordem judi­ cial: somente dará ensejo ao quebramento da fiança a recusa injustificada à ordem judicial. Assim, na hipótese de o acusado recusar-se a produzir prova contra si mesmo, com fundamento no princípio do nemo tenetur se detegere, não há falar em resistên­ cia injustificada. Por isso, o ideal é compreender que essa hipótese de quebramento do art. 341, IV, do CPP, funciona como reforço de fundamentação quanto à necessidade do comparecimento obrigató­ rio do acusado a todos os atos do processo, sempre que a tanto intimado, nos termos dos arts. 327 e 328 do CPP.

que possa se justificar, nos termos do art. 282, § 3o, do CPP.

Consoante dispõe o art. 343 do CPP, do que­ bramento injustificado da fiança deriva: a) perda de metade do valor caucionado;597

b) imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva. Como se percebe pela própria redação do dispo­ sitivo, o recolhimento ao cárcere não deve ser au­ tomático, devendo o magistrado antes verificar a possibilidade de substituição da medida, imposição de outra medida cautelar em cumulação, ou em últi­ mo caso, a decretação da prisão preventiva. Cabe ao magistrado, nessa última hipótese, aferir a presença dos requisitos dos arts. 312e313do CPP, não sen­ do possível a revogação da liberdade provisória e a decretação da prisão preventiva quando se tratar de infrações penais para as quais não seja cabível a prisão preventiva (CPP, arts. 312 e 313), diante do juízo de improbabilidade de aplicação final de sanção privativa de liberdade. Há de ser demonstra­ da, pois, a indispensabilidade do cárcere, não mais como restauração de anterior prisão em flagrante, mas sim com a demonstração da presença do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, pressupostos inafastáveis para a decretação da prisão preventiva, associada à ineficiência das medidas cautelares di­ versas da prisão. c) impossibilidade, naquele mesmo processo, de nova prestação de fiança (art. 324,1, CPP).

A decisão pela quebra da fiança comporta re­ curso em sentido estrito (art. 581, VII, CPP), que terá efeito suspensivo apenas quanto ao perdimento da metade do valor prestado em fiança (art. 584, § 3o, CPP). Este recurso pode ser interposto até mes­ mo pelo terceiro que prestou fiança em favor de ou­ trem. Com o provimento do recurso, a fiança volta a subsistir, colocando-se imediatamente o agente em liberdade, nas mesmas condições anteriores (art. 342, CPP). Se a decisão relativa ao quebramento da fiança se der em sede de sentença condenatória

V) praticar nova infração penal dolosa. O descumprimento dos deveres processuais previstos nos arts. 327 e 328 do CPP também acar­ reta o quebramento da fiança.

O quebramento da fiança só pode ser determi­ nado pela autoridade judiciária, haja vista dispor o art. 581, inciso VII, do CPP, que cabe recurso em sentido estrito em face da decisão que o decretar, ob­ viamente referindo-se o caput do art. 581 à decisão do magistrado. Antes de decretar o quebramento, é plenamente possível que o juiz intime a parte para 1016

597. SegundoTourinho Filho,"uma vez quebrada a fiança, se não hou­ ver recurso desse despacho, ou, havendo-o, for ele mantido, aguarda-se o trânsito em julgado da sentença final. Se condenatória, e desde que o réu tenha se apresentado à prisão e sido preso, dessa metade que ficou depositada deduzem-se as despesas processuais e outros encargos a que estiver obrigado o afiançado, e, se houver saldo, será devolvido a quem a prestou. Caso não se tenha apresentado à prisão, o restante daquele saldo será recolhido ao Tesouro Nacional, por meio de depósito no Banco do Brasil ou Caixa Econômica Federal. E se vier a ser absolvido? Pensamos que somente será devolvida a metade a quem a prestou, a despeito da regra contida no art. 337. A outra metade será perdida e recolhida aos cofrer públicos, conforme vimos, como sanção ao descumprimento das obrigações a que se sujeitara o afiançado". (Processo penal. Vol. 3.33a ed.

São Paulo: Saraiva, 2011. p. 644).

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recorrível, o recurso cabível será o de apelação, que tem o condão de absorver o RESE, ex vi do art. 593, § 4o, do CPP.

execução, nos exatos termos do art. 197 da Lei de Execução Penal.

5.7.2. Fiança definitiva

A fiança deverá ser cassada em qualquer fase do processo nas seguintes hipóteses:

Dispõe o art. 330 do CPP que a fiança será sempre definitiva. Explica-se: até 1871, a fiança era sempre definitiva, mas sua concessão ficava subme­ tida a um procedimento moroso, o que acarretava a permanência do cidadão preso por vários dias. Com o objetivo de pôr fim a esse formalismo exagera­ do, surgiu em 1871 o instituto da fiança provisória, que, no entanto, foi extinto pelo atual Código de Processo Penal, tendo o legislador do CPP de 1942 tomado a cautela de fixar previamente o quantum a ser atribuído a título de fiança (CPP, arts. 325 e 326).

5.7.3. Perda da fiança Transitada em julgado a sentença condenatória, não pode o condenado frustrar a efetivação da pu­ nição, esquivando-se da apresentação à prisão, ou evadindo-se para não ser encontrado pelo oficial ou outra autoridade encarregada de levá-lo ao cárcere. Se o fizer, a fiança será julgada perdida. Segundo o art. 344, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, entende-se perdido, na totalidade, o valor da fiança se, proferida sentença condenatória com trânsito em julgado, o acusado não se apresenta para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta. Após as deduções (pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa), o que restar será destinado aos cofres federais (CPP, art. 345).

Na redação antiga do art. 344, como o dispositi­ vo fazia referência apenas à “prisão”, caso o acusado não se apresentasse para dar início ao cumprimen­ to de uma pena restritiva de direitos ou a pena de multa, não haveria o perdimento da fiança. Com a nova redação do art. 344, fica evidente que a perda irá ocorrer quando o acusado, condenado irrecorrivelmente, não se apresentar para o início do cum­ primento da pena, aí incluída qualquer espécie: pri­ vativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa. De acordo com o art. 581, inciso VII, do CPP, a decisão que decreta a perda, privativa do magis­ trado, comporta recurso em sentido estrito, o qual é dotado de efeito suspensivo quanto à destinação do valor remanescente (art. 584, caput, CPP). Não obstante, como o perdimento da fiança é decretado, em regra, pelo juízo da execução, porquanto ocor­ re após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o recurso cabível será o agravo em

5.7.4. Cassação da fiança

a) quando for concedida por equívoco (CPP, art. 338): exemplificando, suponha-se que a auto­ ridade policial conceda fiança em relação a delito com pena máxima superior a 4 (quatro) anos. Nesse caso, a autoridade judiciária, e somente ela, deve determinar a cassação da fiança, de ofício, ou por provocação;

b) quando ocorrer uma inovação na tipificação do delito, reconhecendo-se a existência de infração inafiançável (art. 339, CPP): esta inovação poderá ocorrer no próprio oferecimento da peça acusatória, em comparação com a tipificação provisória do auto de prisão em flagrante, pela decisão de recebimento da denúncia ou queixa, em razão do recebimento de aditamento da denúncia, ou, ainda, em face de nova classificação por ocasião da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível; c) se houver aditamento da denúncia, acarre­ tando a inviabilidade de concessão de fiança. A tí­ tulo de exemplo, suponha-se indivíduo no gozo de liberdade provisória com fiança acusado da prática de homicídio simples. Durante o curso do processo, porém, surge prova de qualificadora não contida na peça acusatória, acarretando o aditamento da denúncia, com fundamento no art. 384, caput, do CPP. Nessa hipótese, recebido o aditamento, como o crime de homicídio qualificado é hediondo e, por­ tanto, inafiançável (CPP, art. 323, II), a fiança deve ser cassada.

Cassada a fiança, diz-se que a mesma foi jul­ gada inidônea ou sem efeito. O quantum da caução será devolvido a quem a prestou, devendo o juiz verificar a necessidade da decretação de uma ou mais das medidas cautelares diversas da prisão, ou, se for o caso, a imposição da prisão preventiva. A decisão de cassação da fiança comporta recurso em sentido estrito sem efeito suspensivo (CPP, art. 581, V). Com o provimento do recurso, a fiança será res­ taurada. Se a decisão relativa à cassação da fiança se der em sede de sentença condenatória recorrível, o recurso cabível será o de apelação, que tem o condão de absorver o RESE, ex vi do art. 593, § 4o, do CPP.

5.7.5. Reforço da fiança De acordo com o art. 340 do CPP, cuja reda­ ção não foi modificada pela Lei n° 12.403/11, será exigido o reforço da fiança:

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I) quando a autoridade tomar, por engano, fian­ ça insuficiente;

II) quando houver depreciação material ou perecimento dos bens hipotecados ou caucionados, ou depreciação dos metais ou pedras preciosas;

III) quando for inovada a classificação do delito.

Caso não haja o reforço da fiança, a fiança será considerada sem efeito e o réu poderá ser recolhido à prisão, desde que presentes os pressupostos que autorizam a prisão preventiva (CPP, arts. 312 e 313). Advirta-se, mais uma vez, que esse recolhimento à prisão não pode ser tido como automático, devendo antes o magistrado verificar a possibilidade de im­ posição de medida cautelar diversa da prisão. Em face de situação de pobreza, o agente po­ derá ser dispensado do reforço, permanecendo em liberdade, com pleno efeito da fiança prestada. A decisão que julga sem efeito a fiança compor­ ta recurso em sentido estrito, sem efeito suspensivo (CPP, art. 581, V). Se a decisão relativa à fiança se der em sede de sentença condenatória recorrível, o recurso cabível será o de apelação, que tem o condão de absorver o RESE, ex vi do art. 593, § 4o, do CPP.

5.7.6. Fiança sem efeito (inidoneidade da fiança) O Código de Processo penal trata da fiança sem efeito em dois dispositivos. De acordo com o art. 340, parágrafo único, do CPP, quando não houver o reforço da fiança, esta ficará sem efeito. Por outro lado, o art. 337 do CPP dispõe que se a fiança for declarada sem efeito ou passar em julgado a sentença que houver absolvido o acusado ou declarada extin­ ta a ação penal, o valor que a constituir, atualizado, será restituído sem desconto, salvo o disposto no parágrafo único do art. 336 deste Código. Além dessas hipóteses, a fiança também será considerada sem efeito quando houver sua cassação. Portanto, a fiança também ficará sem efeito quando for cassada, ou seja, quando for concedida por equí­ voco, quando ocorrer uma inovação na tipificação do delito, reconhecendo-se a existência de infração inafiançável, e quando houver aditamento da de­ núncia, acarretando a inviabilidade de concessão de fiança (CPP, arts. 338 e 339).

Perceba-se que o art. 581, V, do CPP, não fala em fiança sem efeito, mas sim em inidoneidade da fiança. Por sua vez, como aquele dispositivo se refere à cassação da fiança e a sua inidoneidade, não fazen­ do menção à fiança sem efeito, conclui-se que fiança inidônea é aquela que, não reforçada, tal como exige

o parágrafo único do art. 340 do CPP, ficou sem efeito. Destarte, para o legislador, fiança sem efeito é aquela não reforçada.598

5.7.7. Dispensa da fiança O art. 350 do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, dispõe que, nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação eco­ nômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações dos artigos 327 e 328 do CPP e a outras medidas cautelares, se for o caso. Se o beneficiado descumprir, sem motivo justo, qualquer das obrigações ou medidas impos­ tas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do quere­ lante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, desde que presentes os pressupostos e requisitos dos arts. 312e313do CPP. A dispensa da fiança não é uma discricionariedade do magistrado, mas sim direito do beneficiário.

5.7.8. Conversão da liberdade provisória com fiança em liberdade provisória sem fiança Se o indiciado já estiver em liberdade me­ diante fiança, nada impede que solicite ao juiz sua conversão em liberdade provisória sem fiança, nos termos do art. 310, §1°, do CPP. A título de exem­ plo, suponha-se que, por ocasião da lavratura de auto de prisão em flagrante em relação à infração penal com pena máxima não superior a 4 (quatro) anos, a autoridade policial tenha concedido fiança ao agente. Todavia, como a conduta delituosa fora praticada sob o amparo de excludente da ilicitude, é bem mais vantajoso que o agente pleiteie ao juiz a concessão da liberdade provisória sem fiança do art. 310, §1°, do CPP. Seria desarrazoado permitir que esse agente continuasse a suportar os ônus da fiança e as vicissitudes por que ela passa: quebramento, cassação, inidoneidade. Nesse caso, como a autoridade policial não pode conceder a liberdade provisória sem fiança do art. 310, §1°, do CPP, é possível que o agente peça ao magistrado a conver­ são de sua liberdade provisória. Em tal hipótese, o valor da fiança deve ser restituído a quem a prestou, e o indiciado, ou acusado, ficará, apenas, obrigado a comparecer a todos os atos do processo, assinando, nesse sentido, o respectivo termo, que será juntado aos autos. 598. Com esse entendimento: TOURINHO FILHO, op. cit. p. 617.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

5.7.9. Destinação da fiança Se o réu for condenado e se apresentar para cumprir a pena imposta, ser-lhe-á devolvido o valor dado em garantia, atualizado, abatendo-se o valor das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa (restituição parcial). Se ab­ solvido, o valor que a constitui será restituído sem desconto, devidamente atualizado. Declarada ex­ tinta a punibilidade, perderá a fiança seu objetivo, impondo-se a restituição dos valores dados a título de caução. No entanto, se a extinção da punibili­ dade se der em virtude da prescrição da pretensão executória, não há falar em restituição, como deixa entrever o art. 337, c/c art. 336, parágrafo único, do CPP. Há uma aparente contradição entre o art. 337, que prevê que o valor da fiança será restituído se passar em julgado a sentença que houver absolvido o acusado ou declarada extinta a ação penal, e o art. 386, inciso II, do CPP, que prevê que, na sentença absolutória recorrível, o juiz deverá ordenar a ces­ sação das medidas cautelares. Esse conflito aparente deve ser resolvido com a prevalência do art. 386, inciso II, do CPP. Afinal, diante da absolvição do acusado, desaparece o fumus comissi delicti, pres­ suposto inerente à decretação de toda e qualquer medida cautelar, inclusive a fiança. Logo, diante da absolvição do acusado, ainda que não tenha havido o trânsito em julgado, o valor da fiança já deve ser restituído ao acusado, corrigido monetariamente, pouco importando a possibilidade de reforma da decisão absolutória pelo Tribunal competente. As fianças quebradas ou perdidas serão desti­ nadas ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), instituído através da Lei Complementar n° 79/94, que foi regulamentada pelo Decreto n° 1.093, de 23 de março de 1994. O art. 3o da referida Lei Com­ plementar dispõe acerca da destinação dos recursos do FUNPEN (v.g., construção de estabelecimentos penais, manutenção dos serviços penitenciários, etc.).

Por fim, especial atenção deve ser dispensa­ da ao art. 7o, I, da Lei 9.613/98, com redação dada pela Lei n° 12.683/12, que prevê, dentre os efeitos da condenação pelo crime de lavagem de capitais, a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indi­ retamente, à prática dos crimes previstos na referida Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a finaça, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé. Perceba-se que, ao contrário do que ocorre no regime normal do Código de Processo Penal, que prevê a perda da totalidade do valor dado em fiança,

se o acusado for condenado e não se apresentar para cumprir a pena (art. 344), e a perda da metade do valor dado em fiança, no caso de seu quebramento (art. 343), a nova regra firmada pela Lei n° 12.683/12 em relação aos crimes de lavagem de capitais prevê a perda do valor dado em fiança como um efeito da condenação, independentemente de o acusado ter ou não quebrado a fiança ou apresentar-se ou deixar de se apresentar para cumprir a pena.599

5.7.10. Execução da fiança Com o advento do trânsito em julgado da sen­ tença condenatória, os bens dados em garantia de­ vem ser convertidos em dinheiro, para propiciar o pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e quitar eventual multa (CPP, art. 336, caput). A novidade desse dispositivo fica por conta do acréscimo da hipótese de prestação pecuniária, pena restritiva de direitos inserida no Código Penal pela Lei n° 9.714/98, após a elabora­ ção do Código de Processo Penal. O disposto no art. 336, caput, também terá aplicação no caso de prescrição depois da sentença condenatória (CP, art. 110). De acordo com o art. 348 do CPP, cuja reda­ ção não foi modificada pela Lei n° 12.403/11, nos casos em que a fiança tiver sido prestada por meio de hipoteca, a execução será promovida no juízo cível pelo órgão do Ministério Público. Lado outro, segundo o art. 349, se a fiança consistir em pedras, objetos ou metais preciosos, o juiz determinará a venda por leiloeiro ou corretor. Não consta do art. 336 do CPP a ordem de preferência para o pagamento, no caso de conde­ nação. Há quem entenda que, diante do silêncio, a destinação preferencial deve levar em consideração o disposto no art. 326, que estabelece os fatores que o juiz deve levar em conta ao estabelecer o valor da fiança, sendo que há menção expressa às custas em tal dispositivo. A nosso ver, a analogia deve ser buscada com o art. 140 do CPP, que prevê que as garantias do ressarcimento do dano alcançarão tam­ bém as despesas processuais e as penas pecuniárias, tendo preferência sobre estas a reparação do dano ao ofendido. Portanto, deve ser dada preferência ao pa­ gamento da indenização do dano causado à vítima. 599. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique;

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e pro­ cessuais penais - comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2012. p. 337.

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6. LIBERDADE PROVISÓRIA OBRIGATÓRIA Cuida-se de direito incondicional do acusa­ do, não lhe podendo ser negado em hipótese al­ guma. Antes das alterações produzidas pela Lei n° 12.403/11, a primeira espécie de liberdade provisó­ ria obrigatória era aquela em que o preso se livrava solto (redação pretérita do art. 321 do CPP). Parte da doutrina também costuma apontar a hipótese do art. 69, parágrafo único, da Lei n° 9.099/95, como espécie de liberdade provisória obrigatória, na me­ dida em que, se o cidadão assumir o compromis­ so de comparecer ao Juizado, ou a ele comparecer imediatamente, não se imporá prisão em flagrante ao autor de infração de menor potencial ofensivo. Dispositivos semelhantes a este também são en­ contrados na Lei de Drogas (Lei n° 11.343/06, art. 48, § 2o) e no Código de Trânsito Brasileiro (Lei n° 9.503/97, art. 301). Diversamente do disposto no art. 69, parágra­ fo único, da Lei n° 9.099/95, no caso do delito de porte de drogas para consumo pessoal, ainda que o agente se recuse a assumir o compromisso de com­ parecer ao Juizado, a ele não se imporá prisão em flagrante, haja vista que o próprio delito não mais prevê pena privativa de liberdade de locomoção, mas tão somente advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e me­ dida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Daí prever o art. 48, § 3o, da Lei n° 11.343/06, que, “ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2o deste artigo serão to­ madas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente”.

7. LIBERDADE PROVISÓRIA PROIBIDA Inúmeros dispositivos constitucionais e legais vedam a liberdade provisória, ora com e sem fiança, ora apenas com fiança: a) o art. 31 da Lei n° 7.492/86 veda a concessão de liberdade provisória com fiança aos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional;

b) a prática do racismo, previsto na Lei n° 7.716/89, constitui crime inafiançável e imprescri­ tível, sujeito à pena de reclusão (CF, art. 5o, LXII, c/c art. 323,1, do CPP); c) a lei considerará crimes inafiançáveis e in­ suscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (CF, art. 5o, XLIII, c/c art. 323, II, do CPP);

d) a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Demo­ crático (CF, art. 5o, XLIV, c/c art. 323, III, do CPP); e) o art. 2o, inciso II, da Lei n° 8.072/90, em sua redação original, vedava a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, aos crimes hedion­ dos e equiparados. Posteriormente, a lei dos crimes hediondos foi alterada pela Lei n° 11.464/07, pas­ sando a vedar tão somente a concessão de liberdade provisória com fiança (art. 2o, inciso II, da Lei n° 8.072/90);

f) o art. 7o da revogada Lei n° 9.034/95 vedava a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa: a propósi­ to, a nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13) não traz nenhum dispositivo expresso quanto à vedação da liberdade provisória; g) o art. Io, § 6o, da Lei n° 9.455/97, veda a concessão de liberdade provisória com fiança ao crime de tortura;

h) o art. 3o da Lei n° 9.613/98, em sua redação original, vedava a concessão de liberdade provisó­ ria com e sem fiança aos crimes de lavagem de ca­ pitais. Ocorre que a Lei n° 12.683/12, com vigência em 10 de julho de 2012, revogou o art. 3o da Lei n° 9.613/98. Logo, referido delito passa a admitir, em tese, a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada ou não com as medidas cautelares diversas da prisão (v.g., suspensão do exercício de atividade de natureza econômica ou financeira); i) os arts. 14, parágrafo único, 15, parágrafo úni­ co, e 21, todos da Lei n° 10.826/03, vedavam a con­ cessão de liberdade provisória em relação a certos crimes previstos no Estatuto do Desarmamento;600 j) o art. 44, caput, da Lei n° 11.343/06 veda a concessão de liberdade provisória, com ou sem fian­ ça, aos crimes previstos nos arts. 33, caput, e § Io, e 34 a 37 da referida lei;601

k) nos exatos termos do art. 12-C, §2°, da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), incluído pela Lei n. 13.827/19, nos casos de risco à integridade física ou psicológica da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso; l) consoante disposto no art. 310, §2°, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19, se o juiz verificar que 600. Vide adiante comentário quanto à ADI 3.112/DF. 601. Vide abaixo comentários acerca da decisão proferida pelo Plená­ rio do Supremo no HC 104.339.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.

A questão tormentosa acerca de todos esses dis­ positivos é a seguinte: pode a lei ordinária vedar, de maneira peremptória, a concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança? Pode o legislador ordinário, independentemente de verificação pelo Poder Judiciário da necessidade de manutenção da prisão cautelar, estabelecer de forma genérica e absoluta que determinado delito é insuscetível de liberdade provisória, estabelecendo verdadeira pri­ são ex lege para aquele que foi preso em flagrante? Em relação aos crimes inafiançáveis listados pela própria Constituição - racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, os definidos como crimes hediondos e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático -, não há maiores discussões quanto ao não cabimento de fiança, o que foi inclusive reforçado com a nova redação do art. 323, incisos I, II e III. Em relação a esses delitos, não cabe liberdade provisória com fiança, por imposição do próprio legislador consti­ tuinte originário.

Mas e a liberdade provisória sem fiança, cumu­ lada, se for o caso, com as medidas cautelares diver­ sas da prisão? Poderia o legislador ordinário vedá-la peremptoriamente? Ao longo dos anos, sempre pre­ valeceu o entendimento de que não haveria qual­ quer inconstitucionalidade nos citados dispositivos, sobretudo em virtude do teor da própria Constitui­ ção, segundo a qual ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (CF, art. 5o, LXVI). Assim, se a lei vedava a concessão de liberdade pro­ visória, fazendo uso do permissivo constitucional, não haveria razão para se questionar a validade do dispositivo legal.602 Ademais, havia quem dissesse que, nas hipó­ teses em que a própria Constituição Federal veda a concessão de fiança, também estaria vedada, por consequência, a concessão de liberdade provisória sem fiança. A título de exemplo, no julgamento do 602. É essa a posição de Luiz Otávio de Oliveira Rocha e Marco Antônio Garcia Baz: Fiança criminal e liberdade provisória. São Paulo/SP: Editora Revista dosTribunais, 2000. pp. 72-73. Com raciocínio semelhante: BATIS­ TA, Weber Martins. Direito penal e direito processual penal. Rio de Janeiro:

Editora Forense, 1996, pp. 235-236. No sentido de que a vedação à con­ cessão do benefício da liberdade provisória prevista no art. 2o, II, da Lei 8.072/1990 é fundamento suficiente para o impedimento da concessão do benefício ao paciente: STF, 2aTurma, HC 86.814/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU 26/05/2006, p. 38.

HC 93.302/SP, a Ia Turma do Supremo concluiu que a proibição de liberdade provisória nos casos de crimes hediondos e equiparados decorre da pró­ pria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (art. 5o, inc. XLIII). Logo, seria irrelevante a existência, ou não, de fun­ damentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados, considerando-se suficiente para impedir a concessão da liber­ dade provisória a menção ao art. 5o, inc. XLIII, da Constituição da República, e ao art. 44 da Lei n° 11.343/06.603 Esse entendimento, todavia, foi sendo grada­ tivamente modificado. Isso porque o inciso LXVI do art. 5o da Constituição Federal não pode ser interpretado de maneira isolada dos demais dispo­ sitivos constitucionais que cuidam da prisão cau­ telar. Em outras palavras, apesar de o inciso LXVI do art. 5o da Carta Magna parecer deixar nas mãos do legislador ordinário a discricionariedade para vedar (ou não) a concessão da liberdade provisória, não se pode perder de vista que a mesma Consti­ tuição contempla o princípio da presunção de não culpabilidade (art. 5o, LVII), bem como a regra de que toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória tem natureza cautelar, ficando sua decretação condicionada à ordem escrita e fundamentada de autoridade ju­ diciária competente (art. 5o, LXI).

Em outras palavras, ao se restringir a liberda­ de provisória em relação a determinado delito, estar-se-ia estabelecendo hipótese de prisão cautelar obrigatória, em clara e evidente afronta ao princípio da presunção de não culpabilidade. De mais a mais, ao se vedar de maneira absoluta a concessão da li­ berdade provisória, tais dispositivos legais estariam privando o magistrado da análise da necessidade da manutenção da prisão cautelar do agente, impondo 603. STF, 1a Turma, HC 93.302/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 83 09/05/2008. Com posição semelhante: STF, 1a Turma, HC 97.883/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 152 13/08/2009; STF, 1a Turma, HC97.463/MG, Rel.

Ricardo Lewandowski, DJe 21819/11 /2009. No sentido de que a vedação de liberdade provisória em relação a crimes hediondos e equiparados es­ tabelece caso de prisão cautelar de necessidade presumida iuris et de iure, na hipótese de prisão decorrente de flagrante delito: Informativo n° 349 do STJ: 6a Turma, HC 93.591/MS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 27/03/2008. Com posição semelhante: STF, 1a Turma, AgReg no HC 85711-6/ES, Ia Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; STF, 1a Turma, HC 86118-1/DF, Rel. Ministro Cezar Peluso; STF, 1a Turma, HC 83468-0/ES, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; STF, 2aTurma, HC 82695-4/RJ, Rel. Ministro Carlos Velloso; STJ, 5a Turma, HC 85.682/RO, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 18/02/2008 p. 50. Na mesma trilha, segundo o informativo n° 387 do STJ (HC 124.535/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 17/03/2009), a 5aTurma do STJ vinha considerando que a proibição da concessão do benefício de liberdade provisória para os autores do delito de tráfico de drogas está prevista no art. 44 da Lei n° 11.343/06, que é, por si só, fundamento suficiente por se tratar de norma especial em relação ao antigo parágrafo único do art. 310 do CPP.

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verdadeira prisão ex lege. Criar-se-ia, então, um juí­ zo prévio e abstrato de periculosidade, feito pelo Legislador, retirando do Poder Judiciário o poder de tutela cautelar do processo e da jurisdição penal, que só pode ser realizado pelo magistrado a partir dos dados concretos de cada situação fática.

Ora, como dito acima, se o ato de prender em flagrante delito, constatada a situação de flagrância, está autorizado pela Constituição Federal, a manu­ tenção da prisão em flagrante se baseia em necessi­ dade cautelar, cuja análise deve ser feita pela autori­ dade judiciária competente (CF, art. 5o, LXI, c/c art. 310, II). Daí ser impossível se deferir ao legislador a análise da necessidade da prisão cautelar, afastando do Poder Judiciário o poder geral de cautela que lhe é inerente. Não é dado ao legislador ordinário legitimidade constitucional para vedar, de forma absoluta, a liberdade provisória. A manutenção da prisão em flagrante deve, necessariamente, ser cal­ cada em um dos motivos constantes dos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal e, por força do art. 5o, XLI e 93, IX, da Constituição da República, o magistrado, ao negar a liberdade provisória, está obrigado a apontar os elementos concretos que dão legitimidade à medida.604

Com efeito, quando o art. 5o, inciso LVII, da Constituição Federal, estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, de modo algum afir­ ma que o acusado deva, ao longo da fase investi­ gatória e judicial, permanecer em liberdade e que nenhuma tutela cautelar possa recair sobre ele. Afi­ nal, a própria Constituição Federal permite a prisão cautelar nos casos de flagrante delito, bem como por ordem escrita e fundamentada de autoridade judi­ ciária competente (CF, art. 5o, LXI). Na verdade, o que se pode extrair do princípio da presunção de inocência é a premissa básica de que a liberdade do acusado, ao longo do processo penal, configura a regra geral; a permanência do acusado preso, a exceção. Outra premissa que decor­ re do citado princípio é a de que as prisões cautelares não são com ele incompatíveis, desde que preservem seu caráter excepcional, não percam sua qualidade instrumental, estando a necessidade da segregação cautelar devidamente demonstrada em decisão fun­ damentada da autoridade judiciária competente, à luz das hipóteses listadas nos arts. 312e313do CPP. Não se pode admitir, pois, que medidas de cautela percam seu caráter instrumental, transformando-se

em mecanismos de coerção pessoal a funcionar como cumprimento antecipado de pena.605 Na verdade, dispositivos que vedam peremptoriamente a concessão de liberdade provisória a quem foi preso em flagrante, sem determinar ao mesmo tempo uma prisão preventiva obrigatória para aqueles que estão respondendo ao processo em liberdade, criam uma situação no mínimo inusitada. Isso porque aquele que praticou o crime e foi preso em flagrante, quiçá inclusive porque não tinha a intenção de se esquivar à aplicação da lei penal, irá permanecer preso ao longo do processo em virtude da vedação à concessão da liberdade provisória. Por outro lado, se o mesmo agente tivesse fugido para evitar o flagrante, poderia responder ao processo em liberdade, caso o juiz entendesse que não ha­ via hipótese que autorizasse sua prisão preventiva. Parece-nos incompreensível essa desigualdade de tratamento. A se admitir que a lei vede peremptoriamente a liberdade provisória, independentemente de qual­ quer análise pelo poder judiciário da necessidade de manutenção da prisão cautelar, restaurar-se-á, de maneira transversa, a famigerada prisão preventiva obrigatória, revogada do Código de Processo Penal com a edição da Lei n° 5.349/67. Do mesmo modo, infirmar-se-ia a natureza cautelar da prisão provisó­ ria, pois a negativa de concessão da liberdade provi­ sória resultaria na manutenção de alguém no cárcere sem que houvesse qualquer necessidade. Em síntese, em um Estado Democrático de Direito, que assegura o princípio da presunção de não culpabilidade, já não há mais espaço para decisões como “indefiro a liberdade provisória com fundamento no art. 44, caput, da Lei n° 11.343/06”. Definitivamente não. Se o juiz entende que o acusado deve ser mantido preso, deve demonstrar a necessidade da privação cautelar de sua liberdade de locomoção.606

Exatamente por tais motivos, o Supremo Tribu­ nal Federal tem se manifestado no sentido de que o fato de o crime ser hediondo, por si só, não impe­ de a concessão da liberdade provisória, na medida em que qualquer prisão imposta antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, por ser dotada de natureza acautelatória, só pode ser determinada excepcionalmente, e, quando estiver demonstrada sua necessidade a partir de dados concretos constantes dos autos. Em caso concreto no qual o jornalista P.N. era acusado de matar sua 605. Nessa linha: STF, 2a Turma, HC n° 80.379/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 25/05/2001.

604. Nessa linha: STJ, 6a Turma, HC 32.706/SP, Min. Paulo Medina, Jul­ gamento: 03/06/2006, DJ 14/08/2006, p. 333.

606. STJ, 5a Turma, HC 38.466/SC, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 13/12/2004 p. 400.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

namorada, também jornalista, concluiu o Supremo que a privação cautelar da liberdade individual re­ veste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade, e não por conta do clamor social provocado pelo delito. Para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, a prisão preventiva impõe, além da satis­ fação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria), que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraor­ dinária medida cautelar de privação da liberdade do acusado.607

Outra decisão importante acerca do assunto foi proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.112/DF, cujo pedido foi julgado procedente, em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos pa­ rágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do art. 21, todos da Lei n° 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Em relação aos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 da Lei n° 10.826/03, que proibiam o estabelecimento de fiança para os crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e de disparo de arma de fogo, respectivamente, considerou o Supremo desarrazoada a vedação, ao fundamento de que tais delitos não poderíam ser equiparados a terrorismo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou crimes hediondos (CF, art. 5o, XLIII). Asseverou-se, ademais, cuidar-se, na verdade, de crimes de mera conduta que, embora impliquem redução no nível de segurança coletiva, não podem ser igualados aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade. Quanto ao art. 21 da Lei n° 10.826/03, que previa serem insuscetíveis de liber­ dade provisória os delitos capitulados nos artigos 16 (posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo), entendeu-se haver afronta aos princípios constitucionais da pre­ sunção de inocência e do devido processo legal (CF, art. 5o, LVII e LXI). Ressaltou-se que, não obstante a interdição à liberdade provisória tenha sido estabe­ lecida para crimes de suma gravidade, liberando-se a franquia para os demais delitos, a Constituição não permite a prisão ex lege, sem motivação, a qual viola, ainda, os princípios da ampla defesa e do con­ traditório (CF, art. 5o, LV).608 607. STF, 2a Turma, HC 80.719/SP, Rel. Min. Celso de Melo, DJ

28/09/2001 p. 37.

608. STF, Pleno, ADI 3.112/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU 26/10/2007, p. 28.

A 2a Turma do Supremo trilhou o mesmo cami­ nho ao apreciar o disposto no art. 7o da revogada Lei n° 9.034/95. Em que pese o referido diploma norma­ tivo ter sido editado em decorrência da Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), cláusulas inscritas nos textos de tratados internacionais que imponham a compulsória adoção, por autoridades judiciárias na­ cionais, de medidas de privação cautelar da liberdade individual, ou que vedem, em caráter imperativo, a concessão de liberdade provisória, não podem pre­ valecer em nosso sistema de direito positivo, sob pena de gravíssima ofensa à garantia constitucional da presunção de inocência. Independentemente da gravidade do delito, a vedação apriorística de con­ cessão de liberdade provisória é incompatível com a presunção de inocência e a garantia do due process, vez que o legislador não pode se substituir ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal. O magistrado, no entanto, sempre poderá, presente situação de real necessidade, evidenciada por fatos que deem concreção aos requisitos previstos nos arts. 312e313do CPP, decretar, em cada caso, quando tal se mostrar imprescindível, a prisão cautelar da pessoa sob persecução penal.609 Como desdobramento natural dessa posição jurisprudencial que vinha se firmando nos Tribu­ nais Superiores, foi editada a Lei n° 11.464/07, que, ao modificar a Lei dos Crimes Hediondos, passou a admitir expressamente a concessão de liberdade provisória sem fiança (antiga redação do parágrafo único do art. 310 do CPP) aos crimes hediondos e equiparados.610 Apesar do inconformismo de diver­ sos setores da sociedade e da mídia diante da nova redação da lei dos crimes hediondos, a modificação foi extremamente salutar. Isso porque, ao se permitir em tese a concessão de liberdade provisória sem fiança aos autores de crimes hediondos, de modo algum se está afirmando que todo e qualquer autor de crime hediondo e equiparado será colocado em 609. Medida cautelar deferida no HC94.404/SP: Informativo n°516do STF, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 26/08/08.Também no sentido de que a prisão preventiva só pode ser decretada se expressamente justificada sua real indispensabilidade para assegurar a ordem pública, a ordem econô­ mica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal: STJ, 5a Turma, REsp 772.504/PR, Rel. Min. Felix Fischer, j. 12/09/2006, DJ 20/11/2006, p. 357.

610. A Lei n° 11.464/07 limitou-se a reproduzir entendimento que já vinha se consolidando perante os tribunais, in verbis: "h simples alega­ ção da natureza hedionda do crime cometido pelo agente do delito não é, de per si, justificadora do decreto de segregação cautelar, devendo, também, a autoridade judicial devidamente fundamentar e discorrer sobre os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal". (STJ, 5a Turma, HC 51,438/MG, Rel. Ministra Laurita Vaz, j. 12/06/2006, DJ

01/08/2006, p. 479).

MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

liberdade. Na verdade, admite-se a análise da imprescindibilidade da manutenção da prisão cautelar do indivíduo, devendo o juiz apontar de maneira fundamentada a hipótese do art. 312 do CPP que justifica sua segregação, ou, caso contrário, que seja concedida ao preso a liberdade provisória sem fiança, cumulada, se for o caso, com as medidas cautelares diversas da prisão.

Diante da nova redação da Lei dos Crimes He­ diondos pela Lei n° 11.464/07, dispositivos como os do art. 7o da revogada Lei n° 9.034/95, art. 3o, caput, da Lei n° 9.613/98 - hoje revogado pela Lei n° 12.683/12 -, e art. 44 da Lei n° 11.343/06, foram derrogados no tocante à vedação à concessão de liberdade provisória sem fiança. De fato, se, pelo menos em tese, admite-se liberdade provisória sem fiança para um crime hediondo de homicídio qua­ lificado, latrocínio, ou estupro, como se justificar a negativa da concessão de tal benefício a crimes menos graves, como, por exemplo, o tráfico de dro­ gas? Reiteramos o quanto foi dito acima: de modo algum está se dizendo que todo e qualquer agente preso em flagrante por um desses delitos será ne­ cessária e automaticamente posto em liberdade. Afirma-se na verdade que, pelo menos em tese, será cabível a concessão da liberdade provisória, ficando a manutenção da prisão do agente con­ dicionada à existência de decisão judicial devida­ mente fundamentada, que aponte a necessidade de sua segregação cautelar.

Com o advento da Lei n° 11.464/07, em vigor desde 29 de março de 2007, foi suprimida a proibi­ ção de concessão de liberdade provisória sem fiança aos crimes hediondos e equiparados, então prevista no art. 2o, inciso II, da Lei n° 8.072/90. Mas a Lei n° 11.464/07 também derrogou em parte o art. 44 da Lei n° 11.343/06, seja porque com ela é incompa­ tível, seja porque cuidou inteiramente da matéria. O princípio a ser aplicado à hipótese é, portanto, o da posterioridade, segundo o qual lei posterior revoga a anterior. Não se pode aplicar o princípio da especialidade, porquanto este pressupõe a vigência concomitante de duas ou mais leis, aparentemente aplicáveis ao caso concreto.611 Também não se pode concordar com o argu­ mento de que a proibição de liberdade provisória nos processos por crimes hediondos e assemelhados 611. Nessa linha: GOMES, Luiz Flávio. "Para Primeira Turma do STF os "inimigos" devem ser processados sem garantias". Disponível em http:// www.iuspedia.com.br. Consulta feita em 11 abril de 2008. Com enten­ dimento semelhante: PACELLI (2008, p. 452). E ainda: BADARÓ, Gustavo

Henrique. Medidas cautelares no processo penal:prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 268.

decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição à legislação ordinária. Quando a Cons­ tituição se refere à inafiançabilidade para determi­ nados delitos, a única conclusão que se pode extrair é a vedação da concessão de liberdade provisória com fiança. Não há falar em proibição de aplicação da liberdade provisória sem fiança, cumulada, se for o caso, com as medidas cautelares diversas da prisão, na medida em que não houve referência expressa na Constituição - e é a própria Constituição que reconhece a também existência do regime de liber­ dade provisória com ou sem fiança (art. 5o, LXVI). A impossibilidade de concessão de fiança a que se refere a Constituição Federal quer significar apenas que a lei infraconstitucional não pode prever como condição suficiente para a concessão da liberdade provisória o ínero pagamento de uma fiança. Por isso, a prisão em flagrante não pré-exclui o benefício da liberdade provisória, mas, tão-só, a fiança como ferramenta da sua obtenção. Há de se considerar inválida, portanto, homolo­ gação de prisão em flagrante na qual o juiz se limite a negar a concessão de liberdade provisória com base, apenas, no art. 44 da Lei n° 11.343/06, sem demonstrar, concretamente, situações de fato que, vinculadas aos arts. 312e313do CPP, justifiquem a necessidade da custódia cautelar.612

Um último argumento em favor da concessão de liberdade provisória ao crime de tráfico de dro­ gas não pode ser ignorado: em recente decisão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da ex­ pressão vedada a conversão em penas restritivas de direitos, constante do § 4o do art. 33, e do art. 44, ambos da Lei 11.343/2006. Sob o argumento de que a vedação, em abstrato, da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por res­ tritiva de direitos é incompatível com o princípio 612. STF, 2a Turma, HC 101,505/SC, Rei. Min. Eros Grau, j. 15/12/2009, DJe 27 11/02/2010. Com raciocínio idêntico: STF, 2a Turma, HC 97.579/ MT, Rei. Min. Eros Grau, j. 02/02/2010, DJe 86 13/05/2010; STF, 2a Turma, HC 96.041/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 02/02/2010, DJe 67 15/04/2010; STF, 2a Turma, HC 98.966/SC, Rei. Min. Eros Grau, j. 02/02/2010, DJe 76 29/04/2010. Admitindo a concessão de liberdade provisória à cidadã pre­ sa em flagrante com pequena quantidade de maconha quando visitava o marido na penitenciária, por se tratar de acusada primária, de bons antecedentes, com emprego e residência fixos, acometida de doença contagiosa (AIDS), sendo dela economicamente dependente uma filha: STF, 2a Turma, HC 94.916/RS, Rei. Min. Eros Grau, j. 30/09/2008, DJe 236 11/12/2008. Com raciocínio semelhante: Informativo n° 566 do STF: 2a Turma, HC 100.742/SC, Rei. Min. Celso de Mello, 03/11/2009. No sentido de que a simples invocação do art. 44 da Lei n° 11.343/2006 e a menção à quantidade de droga apreendida não são suficientes para o indeferimen­ to do pedido de liberdade provisória, quando ausente a demonstração dos requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP e, principalmente, se duvidosa a autoria do crime: STJ, 6a Turma, HC 170.005/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 30/06/2010, DJe 16/08/2010.

TÍTULO 7 • MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

da individualização da pena (CF, art. 5o, XLVI), foi concedida a ordem em habeas corpus não para assegurar ao paciente a imediata substituição, mas para remover o obstáculo da Lei n° 11.343/06, de­ volvendo ao juiz da causa a tarefa de aferir a pre­ sença das condições objetivas e subjetivas listadas no art. 44 do Código Penal.613

Ora, se a Suprema Corte entende que, mesmo em relação ao tráfico de drogas, as penas restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos traumáticos, estigmatizantes e onerosos do cárcere, conferindo ao juiz natural da causa poderes para que, em tese, verifique se, no caso concreto, a pena alternativa se apresenta como a reprimenda su­ ficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado, além de inibir condutas de igual desvalia, como não se lhe deferir, também, a possibilidade de conceder liberdade provisória ao acusado? Sob pena de manifesta violação ao prin­ cípio da proporcionalidade, porquanto alguém seria mantido preso (ante a negativa de liberdade provi­ sória) durante o processo para, ao final, ter sua pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos, há de se concluir pela possibilidade, em tese, de concessão de liberdade provisória em rela­ ção ao delito de tráfico de drogas.

Pondo fim a toda essa controvérsia, em julga­ mento realizado em data de 10 de maio de 2012 no HC 104.339/SP,614 o Plenário do Supremo de­ clarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do art. 44 da Lei n° 11.343/06. Daí, aliás, a Tese de Repercussão Geral fixada no tema n. 959: “É inconstitucional a expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do artigo 44 da Lei n. 11.343/2006”.615 Perceba-se que essa nova orientação não garante a liberdade provisória ao acusado em toda e qualquer hipótese. Na verdade, limita-se apenas a devolver os autos ao juiz natural para, afastada a vedação legal, examinar a presença (ou não) dos requisitos descritos nos arts. 312 e 313 do CPP.616* 613. Informativo n° 598 do STF: Tribunal Pleno, HC 97.256/RS, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 1