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Portuguese Pages [31] Year 2000
N E M H egel, nem F reud, nem Lacan, n e m q u a lq u e r o u tro que tenha c ria d o u m sistem a o u so u apropriar-se de M e d é ia para ilu s tra r u m a de suas tese s. E u rí-
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pides, Sêneca, Pierre Corneille e seu irmão Thomas, autor do li breto da ópera de Charpentier, e ainda outros tentaram se aproximar dela, mas é ela quem se apropria deles, impondo-lhes seu enigma, aterrador desafio de uma mulher que mata seus fi lhos e sobrevive. O próprio Eu ripides se submete ao enigma de Medéia. A história é conhecida, ele não pode modificá-la. Seu contemporâneo Heródoto con ta que Medéia, ao fugir de Ate nas, refugiou-se na Ásia Menor, na região cujos habitantes pas-
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sam, a p a rtir
de então, a usar o sobrenom e M edes. A m ulher que com eteu o mais horrível dos assassinatos não só sobreviveu, como se to rn o u “ mãe” de um povo g lo rio so , riv a l e depois alia do, subm isso e depois reveren ciado, d o im p é rio persa. Eu ripides consegue c ria r uma ver dadeira h e ro ín a , um a m ulher capaz de h e s ita r e de considerar sua p ró p ria ind e cisã o como um crim e, “M in h a covardia é vergo nhosa” , capaz de estremecer de d o r a té sua m a is ín tim a fibra, mas de d iz e r, “ Chorarás mais tax-
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d e !” . A M edéia de Sêneca está mais p ró xim a da im agem cor riq u e ira de um a m u lh e r louca furiosa, mas ela p ro nu n cia essas palavras estranhas que fazem oscilar o sentido, “Medea nunc sum” . “ Lembra-te de que sou Me déia” , responde, através dos séculos, a Medéia de Charpentier ao “Agora, sou Medéia” de Sêneca. Como se cada um dos autores, a despeito do que quisesse fazer de Medéia, só pudesse repetir aquilo que im-
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pele a própria Medéia. “ Ser Medéia” não é a mesma coisa que um destino, ou talvez seja exatamente o oposto de um des tino, que suportamos, que pro curamos às vezes assumir de ma neira exemplar. Ter de “ Ser Medéia” é da ordem do aconte cimento. Será que Medéia pode ria, a qualquer momento, fugir de Corinto no dragão alado que sobrevoa o palácio em chamas? Ou será que esse dragão, que, de repente, significa sua quase di vindade, é o signo de que Me déia, a mulher, despojou —ter-
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rível carne viva —os fios que te* ciam suas ligações hum anas, e tom ou-se aquela que havia es quecido, traído, para se to rn a r grega e fêmea, e tornou-se essa verdade que leva seu nom e, Medéia? M edéia te ria m o rrid o de de sespero se não tivesse se tom a do M edéia, se não tivesse encon tra d o , n o m om ento da m aior hu m ilh a çã o que pode acontecer a um a m u lh e r, o acesso ao que nela tin h a sid o anulado para dar lu g a r à m u lh e r am orosa e leal.
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Quem será tolo em dizer que Medéia tem ciúmes! Ciúmes de uma jovem princesa ignorante e futil? Ciúmes de um homem co varde e pusilânime, mentiroso e vaidoso? Em momento algum Medéia tem inveja de Creusa por ter conquistado seu medíocre troféu. E o sentido da sua vida que está em jogo, e não a posse de um Jasão. E a vingança é uma palavra bem medíocre para de signar seu ato. Se Medéia tivesse se vingado, como nós, pobres mortais, teria pago o preço da sua vingança. Ela fez um contra-
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to com a hum anidade, e o con trato fo i ro m p id o . “Chora para sempre os males causados pela tua paixão” ela diz a Jasão, no final da ópera de Charpentier. E ninguém lhe dá a resposta que restauraria a ordem da moral, ninguém está lá para reconfortar Jasão ou, pelo menos, anun ciar que a assassina será per seguida pelo rem orso. Jasão é castigado, Medéia fica sem casti go. Jasão acreditou que seu po der de macho havia transforma do a feiticeira em m ulher que se pode enganar e abandonar. Ele
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cometeu um erro e criou a pro va pela qual a Outra, aquela que se anulou por amor, reencon trou o poder de existir. Talvez seja melhor introduzir aqui, no lugar de vingança, esse termo grego tão rico, o “pânico” . Quando Medéia compreende que Jasão vai abandoná-la, que ahistória deles, dolorosa e crimi nosa, vai ser apagada sem dei xar outros vestígios a não ser aqueles, intoleráveis, de sua própria memória, ela é invadida por um verdadeiro pânico. “Não
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é possível!”. “Que preço tenho de pagar pelo meu amor!” “E esse o resultado dos meus em preendimentos!”, canta a Medéia de Charpentier. Esses empreen dimentos, para ela, eram os laços gloriosos que proclamavam um amor na medida de seu ser. E, de repente, o mundo se torna vazio, a memória se torna a ini miga debochada, obscena. Me déia, a mulher, sabe que vai morrer por causa disso, se não chamar a Outra. “Para quem procura minha morte, posso ser cruel”. Diante do pânico, é pre-
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ciso, não restituir de maneira medíocre golpe por golpe, mas poder recriar um mundo dife rente, em nada parecido com aquele que falta. “Ser cruel” . “Ser Medéia”. Pânico, para os gregos, não significa um estado psicológico, mas sim um momento mítico. O Deus Pan, senhor do pânico, é aquele através do qual a ordem social pode desmoronar, uma coletividade tranqüila pode se tornar uma horda bárbara e de sumana. De uma só vez, tudo se
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desequilibra., como se tudo aqui lo que estabelecesse uma ligação entre os humanos se revelasse, repentinamente, suscetível de fazer emergir um coletivo com pletamente diferente, de en gendrar aquilo que a ordem so cial parecia excluir, por natu reza. 1
A crise de pânico seria então uma espécie de fase de transição, como entre líquido e cristal, uma mudança de identidade. A crise de Medéia, quando ela hesi ta, quando ela duvida, quando
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irã o r e fle tir . N o s e n tid o e m q u e e la n ã o é m a is “ u m d o s n o s s o s ” , p a ra n e g o c ia r, a n a lis a r, in te rp re ta r, m as o n d e a O u tra que ela se to r n o u n o s constitui, a nós mes m o s , aterrorizados, em pólos de reflexão, enviando uns aos o u -
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tros, de século em século, como um raio luminoso —impassível, através das difrações suscitadas pelos meios atravessados por eles - a pergunta: o que ela se tomou?
Medéia é uma heroína, mas nada tem de exemplar. Ela não é grega. Ela não é um dos nos sos, humanos civilizados. Através de Heródoto, através de Eu ripides é um outro mundo que persiste, lembrança ou obsessão, um mundo bárbaro talvez, mas temível, um mundo onde os
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próprios deuses seguem outras leis. Medéia se diz descendente
do Sol e, na ópera de Charpentier, é o vestido que ela conser vou do Sol, seu Ancestral, que Jasão ousa lhe pedir, pois ela despertou a inveja de Creusa, egoísta e demasiado humana. As negras filhas do Estige lhe devem obediência. As Eumênides furio sas que perseguiram Orestes, pedindo justiça para o matricídio, nada podem contra ela. O inferno está submetido a ela e o Céu para ela está aberto. Com a tragédia de Euripides, a cidade
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Grega celebra uma estranha ex terioridade, ameaçadora, inalcançável, que parece r ir de suas Leis e só se submeter as suas normas segundo suas próprias condições: vencida, mas sempre e irrefutavelmente ameaçadora.
De que exterioridade se trata, então? Que significa Medéia? Para alguns, existe aí o testemu nho histórico de um mundo es quecido. Um mundo “matriar cal” que os gregos aqueus des truíram mas ainda temem. Um mundo onde as mulheres reina-
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vam, sacerdotisas de uma Deusa temida. Mãe e Morte ao mesmo tempo. Medéia traiu sua pátria, Cólquida, entregando o Velo de Ouro a Jasão e matando seu irmão mais moço, cujos mem bros dispersou pelo mar para retardar seus perseguidores. Mas agora é chegado o momento em que vai, talvez, ser realizada a maior, a única e verdadeira traição, o momento em que va mos poder ter pena dela, dizer que, para Jasão, ela foi apenas um troféu a mais, signo do tri unfo de Afrodite, a grega, sobre
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a Mãe arcaica. O Jasão de Eu ripides afirma isso: “Para ti seria difícil confessar que o amor te coagiu, que não pudeste te pro teger de suas flechas, e é por isso que me salvaste” . É o momento mais difícil, momento em que a história fica em suspenso. Medéia, simples mulher, escrava do amor? Mas quando Medéia se torna Medéia, a ordem divina dos gregos desmorona. O Sol não é mais Apoio, tem parte com a morte, a luminosa fonte de vida se mostra, de repente, unida à escuridão infernal. E as leis da
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culpabilidade, do remorso e da justiça caem por terra. Num só ato, Medéia, infanticida, é expur gada da sua traição. Ela volta a ser a Mãe, reencontra a sobera nia que renegou para se tornar grega. Trata-se aí de lembrança, ou será a expressão por excelência do medo do homem diante da mulher, da mãe? Mãe devoradora que deve ser submetida, com toda a força, aos laços do amor conjugal e da maternidade respeitável. Para os freudianos,
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Medéia pertence à ordem do fan tasma, pois para eles a mulher não é assim, ela pede a submis são, pede ao homem aquilo de que o nascimento a privou irre mediavelmente. O medo, o ódio da mulher toda poderosa, castradora, que une vida e mor te, em nome da qual tantas feiti ceiras foram mortas, não designa as mulheres como tais, mas sim o enigma que persegue o peque no macho, desesperadamente agarrado aos símbolos da sua diferença.
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Entretanto, o enigma de Me déia não pertence apenas aos machos. Ele também atrai as mulheres, que vibram com seu pânico, com seus urros de revol ta, que reconhecem bem, muito bem, o que pode ser a covardia do homem que, de repente, es quece. Talvez seja essa verdade, embaralhando as cartas do fan tasma, que fez Freud e seus su cessores recuarem. Medéia fala demais às mulheres para ser imobilizada em uma interpre tação vienense. Ela suscita um possível presente excessivo,
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aquele talvez desse “continente negro” que o próprio Freud não pôde deixar de reconhecer, como por um lapso, embora o conjunto da sua teoria parecesse garantir a semelhança da mulher com o indígena respeitoso que deseja a lei do homem branco, a submissão à sua marca civilizadora. O enigma de Medéia per siste, atravessa a psicanálise, que não o resolve.
Qual é, então, o saber atesta do por Medéia? Por que, entre todas as heroínas trágicas, sua
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dor, sua cólera, seu pânico têm ecos tão atuais, atravessando os milênios que nos separam do mundo grego? Por que, princi palmente, seu ato horrível nos é compreensível de maneira ime diata, como se a fonte da qual ela se alimenta, a Outra Medéia impassível e terrível que ela faz surgir, lá onde havia uma mu lher, nós conhecêssemos em sur dina, soubéssemos quem ela é? Como se ela suscitasse um eco, criasse em nós uma reflexão que repete seu enigma. O enigma se refere menos ao ato do que ao
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devir ao qual esse ato dá lugar. Talvez seja preciso ousar pensar que Medéia gelada, purificada, liberada, “impessoal e introspectiva, sentimental e supra sensu al”, não mais tivesse, ao se tor nar a Outra, ódio de Jasão, “que ela não nos odeia, nem mesmo na morte, mas que ela nos es tende sempre essa tripla face fria, maternal, severa” . As palavras que acabam de ser citadas não foram criadas para falar do enig ma de Medéia, são as palavras de Gilles Deleuze, ao apresentar o ideal masoquista, “fria aliança
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entre o sentimentalismo e a cru eldade feminina, que fazem o homem refletir” . Fazer refletir, não no sentido de fornecer um objeto de reflexão, como Des cartes toma um pedaço de cera para a partir daí refletir a iden tidade, mas no sentido em que sofremos uma reflexão, em que repercutimos um enigma, que, frio, faz de você seu espelho. Lembra-te de que sou Medéia. Medéia não é uma mediterrânica, é uma mulher vinda do leste e que, segundo Heródoto,
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voltará para o leste, para aque les povos que podemos imaginar ainda nômades, os únicos onde posso a partir de agora vê-la vi ver, da maneira como ela se tor nou “Medéia” . E é para lá tam bém, para uma estepe que é ao mesmo tempo verdadeira, míti ca e presente, oculta em nós, que Deleuze se volta para dar exis tência à figura ideal e cruel da mulher carrasco que singulariza o masoquismo. “Na identidade da estepe, do mar e da mãe, tra ta-se sempre de fazer sentir que a estepe é, ao mesmo tempo,
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aquilo que enterra o mundo grego da sensualidade e aquilo que deixa aparecer o mundo moderno do sadismo, como uma potência de resfriamento que transforma o desejo e transmuta a crueldade. É o messia nismo, o idealismo da estepe. Não vamos acreditar, por causa disso, que a crueldade do ideal masoquista seja menor do que a crueldade primitiva ou a cruel dade sádica, menor do que a cru eldade do capricho (a de Creusa e Jasão?) ou a crueldade da maldade... O que define o ma-
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soquismo e seu teatro é, mais exatamente, a forma singular da crueldade na mulher carrasco: essa crueldade do Ideal, esse ponto específico de congela mento e idealização” . 2
Ponto de congelamento, cuja questão persiste através da trêmula fluidez de nossas emo ções. Não falemos aqui de histe ria ou de empatia. Ninguém so nha imitar Medéia, não se imita o acontecimento, não se pode antecipá-lo, não se pode vivê-lo por procuração: ele produz seu
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presente, a cada vez singular e, no entanto, a cada vez repetido. Ninguém pensa em consolar Medéia, cercá-la de uma afeição que repara e reconcilia. N in guém deveria nem mesmo ousar expressar qualquer tip o de soli dariedade com Medéia. Ela não pode fazer mais nada, não nos pede nada, não pede mais nada a ninguém. Ela é Medéia.
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Notas
1 Sobre isso, ver Jean Pierre
Dupuy, La Panique, coll.
empêcheurs depenser en rond. Editado por Laboratoires Delagrange, Paris, 1 9 9 1 . 2 Gilles Deleuze, Presentation
de Sacher-Masoch, Paris, Minuit,
1967, p . 49.
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