Escritos de Gustavo Corção [1]

Coletânea de ensaios, artigos, crônicas e estudos de um dos maiores escritores brasileiros.

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Table of contents :
Escritos de Gustavo Corção
Sumário
Crônicas
"Sou amigo de estrelas"
A Ariano Suassuna
A cosmovisão da lagartixa
A semana do gari
Ainda as comunicações com Brasília
Alguém mentiu
Antigamente calavam-se…
As comunicações do presidente Eisenhower
Castelo Branco
Centenário de Mozart
Detalhes da Ressurreição
Disparates e contradições do tempo
Encontros com Oswald de Andrade
G.K.Chesterton
Lembrança de Bernanos
O malogro de um jovem químico
O viúvo viu a ave
Os meninos se matam
Os ofícios alheios e o meu
Reminiscências astronômicas
Rostos, roupas e paramentos
Um amigo de verdade
Um dia após o outro
Wolfgang Amadeus Mozart
Literatura
Sobre Lições de Abismo
História
A guerra civil espanhola
Estamos no século XX
Falsificações da História
O alcázar de Toledo
O mito de Guernica
Política
A Crise da Democracia
Método de Escolha dos Chefes
Filosofia
A imortalidade
Contra o Evolucionismo dos evolucionistas
Cristianismo e humanismo
Existirá a matéria?
Implicações do Evolucionismo
Tudo é pó
Pensamento
A civilização do prazer
A esperada renovação
A pátria
A vocação da mulher
A voz dos Papas canonizados
Anarquismo e progressismo
Ano novo?
Como se inventa
De profundis
Do cientificismo às sociétés de pensée
Exegese de um lugar comum
Informação e formação
Introdução a um livro
Liberais e conservadores
Meditações sobre a ruína do mundo
Mísera sorte! Estranha condição.
Mundo, mundo...
O centenário de Freud
O homem e a natureza
O jogo esquerda-direita
O método de escolha dos chefes
O mundo perverso
O padre e a menina
O pessimismo de Freud
O progresso e Chesterton
O valor da vida
Os indiferentes
Os trinta risos do moribundo
Para não ser doido...
Suicídio e martírio
Um aspecto do freudismo
Um velho leigo interroga...
Família e moral
A casa
A volta para casa
Amor, casamento, divórcio
As virtudes militares
Concepção romântica e realista do amor
Fora da realidade
O casamento e a moral segundo Bertrand Russell
O problema do lazer
O quarto mandamento
Quem pensa não casa
Espiritualidade
A fecundidade dos santos e a esterilidade de nossas obras
A irrepreensível Providência
Comunitarismo em lugar da Comunhão dos Santos
Considerações sobre o Amor Próprio
Deus marcou encontro conosco
Natal
No Sangue
O dogma da Assunção
Outubro
Preceito e amor
Regina sine labe originali concepta
Rue du Bac
Santa Teresinha
Um estudo sobre o monaquismo
Vem e segue-Me
Virgo Singularis
Apologética
A Igreja é dona da verdade
Pode-se transigir em religião?
Teologia
A criação
A esperança
A Igreja do Céu
As duas vontades
Ciência e Fé
O medo e o santo temor de Deus
O mundo, a carne e o diabo: cruéis inimigos da Igreja e da alma
Curso de Religião
INTRODUÇÃO
1. PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES
2. POSIÇÃO DO HOMEM
3. CIÊNCIA E SABEDORIA
4. A SAGRADA DOUTRINA
5. VANTAGENS DA CONEXÃO DOUTRINAL
CAPÍTULO I - CREIO...
1. A PALAVRA CHAVE
2. CERTEZAS E INCERTEZAS
3. A FÉ HUMANA.
4. A FÉ DIVINA
5. TUDO OU NADA
6. FÉ SOBRENATURAL
CAPÍTULO II - ... EM DEUS PAI TODO PODEROSO
1. O INSTINTO DE DEUS
2. A EXISTÊNCIA DE DEUS
3. AS CINCO VIAS
4. A FORÇA DE PERSUASÃO DAS CINCO VIAS
5. OS ARGUMENTOS MORAIS E PSICOLÓGICOS.
6. EXPERIÊNCIAS DA ALMA
7. NATUREZA E ATRIBUTOS DE DEUS
Vida dos Santos
Catarina de Sena
Estudo sobre Santa Catarina de Sena
I — O AMOR E O ODIO.
II — DIFICULDADES
III — FISIONOMIA
IV — O COLÓQUIO DAS CRUZES
V — IO VOGLIO
VI — O DESPREZO E O ZELO PELAS CRIATURAS
Liturgia
A mesa e a cruz
A primeira missa
A Semana Santa
E o mundo?
Marcos da eternidade
No limiar da Semana Santa
O descobrimento da Santa Cruz
O espantalho
O espírito de Quaresma
Páscoa
Quinta-feira Santa
Quinta-feira Santa!
Ressurreição
Ressuscitou!
Se Ele não tivesse vindo
Tempos de Páscoa
Vaticano II
A necessidade de explicar tudo
Dom Marcel Lefebvre fala
O valor do Concílio Vaticano II
Missa Nova e Reforma Litúrgica
A reforma litúrgica
Ainda reformas
Valerá a pena?
Crise da Igreja
"Novo Pentecostes"
A "igreja viva"
A Comunhão na mão
A descoberta da Outra
A revelação do homem
Dois e dois são quatro
Há ou não há demolição?
Humanitarismo de bastardos
Livrai-nos Deus de nossos inimigos
O esvaziamento católico
Padre Antonio
Pregação subliminal
Tribulações de um velho militante
Tudo é cinza
Um testemunho precioso
Polêmicas e Disputas
A desfiguração do Natal
Crítica à crítica da civilização científica
Desagravo
L'amor che muove il sole e l’altre stelle
Mauriac e seus críticos
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Escritos de Gustavo Corção [1]

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ESCRITOS DE GUSTAVO CORÇÃO

A presente obra é sem fins lucrativos. Todos os escritos foram recolhidos do site Permanência. Todos os direitos reservados. .

Editora Recordar. O. P. L.

Ao mestre Gustavo Corção.

SUMÁRIO Escritos de Gustavo Corção Sumário Crônicas "Sou amigo de estrelas" A Ariano Suassuna A cosmovisão da lagartixa A semana do gari Ainda as comunicações com Brasília Alguém mentiu Antigamente calavam-se… As comunicações do presidente Eisenhower Castelo Branco Centenário de Mozart Detalhes da Ressurreição Disparates e contradições do tempo Encontros com Oswald de Andrade G.K.Chesterton Lembrança de Bernanos O malogro de um jovem químico O viúvo viu a ave

Os meninos se matam Os ofícios alheios e o meu Reminiscências astronômicas Rostos, roupas e paramentos Um amigo de verdade Um dia após o outro Wolfgang Amadeus Mozart Literatura Sobre Lições de Abismo História A guerra civil espanhola Estamos no século XX Falsificações da História O alcázar de Toledo O mito de Guernica Política A Crise da Democracia Método de Escolha dos Chefes Filosofia A imortalidade Contra o Evolucionismo dos evolucionistas Cristianismo e humanismo Existirá a matéria? Implicações do Evolucionismo Tudo é pó Pensamento A civilização do prazer A esperada renovação A pátria A vocação da mulher A voz dos Papas canonizados Anarquismo e progressismo Ano novo? Como se inventa De profundis Do cientificismo às sociétés de pensée Exegese de um lugar comum Informação e formação Introdução a um livro Liberais e conservadores

Meditações sobre a ruína do mundo Mísera sorte! Estranha condição. Mundo, mundo... O centenário de Freud O homem e a natureza O jogo esquerda-direita O método de escolha dos chefes O mundo perverso O padre e a menina O pessimismo de Freud O progresso e Chesterton O valor da vida Os indiferentes Os trinta risos do moribundo Para não ser doido... Suicídio e martírio Um aspecto do freudismo Um velho leigo interroga... Família e moral A casa A volta para casa Amor, casamento, divórcio As virtudes militares Concepção romântica e realista do amor Fora da realidade O casamento e a moral segundo Bertrand Russell O problema do lazer O quarto mandamento Quem pensa não casa Espiritualidade A fecundidade dos santos e a esterilidade de nossas obras A irrepreensível Providência Comunitarismo em lugar da Comunhão dos Santos Considerações sobre o Amor Próprio Deus marcou encontro conosco Natal No Sangue O dogma da Assunção Outubro Preceito e amor

Regina sine labe originali concepta Rue du Bac Santa Teresinha Um estudo sobre o monaquismo Vem e segue-Me Virgo Singularis Apologética A Igreja é dona da verdade Pode-se transigir em religião? Teologia A criação A esperança A Igreja do Céu As duas vontades Ciência e Fé O medo e o santo temor de Deus O mundo, a carne e o diabo: cruéis inimigos da Igreja e da alma Curso de Religião INTRODUÇÃO 1. PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES 2. POSIÇÃO DO HOMEM 3. CIÊNCIA E SABEDORIA 4. A SAGRADA DOUTRINA 5. VANTAGENS DA CONEXÃO DOUTRINAL CAPÍTULO I - CREIO... 1. A PALAVRA CHAVE 2. CERTEZAS E INCERTEZAS 3. A FÉ HUMANA. 4. A FÉ DIVINA 5. TUDO OU NADA 6. FÉ SOBRENATURAL CAPÍTULO II - ... EM DEUS PAI TODO PODEROSO 1. O INSTINTO DE DEUS 2. A EXISTÊNCIA DE DEUS 3. AS CINCO VIAS 4. A FORÇA DE PERSUASÃO DAS CINCO VIAS 5. OS ARGUMENTOS MORAIS E PSICOLÓGICOS. 6. EXPERIÊNCIAS DA ALMA 7. NATUREZA E ATRIBUTOS DE DEUS Vida dos Santos

Catarina de Sena Estudo sobre Santa Catarina de Sena I — O AMOR E O ODIO. II — DIFICULDADES III — FISIONOMIA IV — O COLÓQUIO DAS CRUZES V — IO VOGLIO VI — O DESPREZO E O ZELO PELAS CRIATURAS Liturgia A mesa e a cruz A primeira missa A Semana Santa E o mundo? Marcos da eternidade No limiar da Semana Santa O descobrimento da Santa Cruz O espantalho O espírito de Quaresma Páscoa Quinta-feira Santa Quinta-feira Santa! Ressurreição Ressuscitou! Se Ele não tivesse vindo Tempos de Páscoa Vaticano II A necessidade de explicar tudo Dom Marcel Lefebvre fala O valor do Concílio Vaticano II Missa Nova e Reforma Litúrgica A reforma litúrgica Ainda reformas Valerá a pena? Crise da Igreja "Novo Pentecostes" A "igreja viva" A Comunhão na mão A descoberta da Outra A revelação do homem Dois e dois são quatro

Há ou não há demolição? Humanitarismo de bastardos Livrai-nos Deus de nossos inimigos O esvaziamento católico Padre Antonio Pregação subliminal Tribulações de um velho militante Tudo é cinza Um testemunho precioso Polêmicas e Disputas A desfiguração do Natal Crítica à crítica da civilização científica Desagravo L'amor che muove il sole e l’altre stelle Mauriac e seus críticos

CRÔNICAS "Sou amigo de estrelas" Foi num pára-choque de caminhão que li ontem estas palavras líricas. Entusiasmado, respondi com meus botões: — Também eu! Também eu! E num arroubo de saudades, sentime com cinco anos de idade, num jardim da Glória, entre outros meninos. Seria noite de janeiro e o céu resplandecia. Comecei então a dizer aos outros meninos os nomes das estrelas maiores: Aldebarã, Belatrix, Rigel, Archenar... Meu saber astronômico vinha das lições do poeta Emílio Kemp, que jantava em nossa casa todas as noites que se indispunha com a mulher. Dizia que vinha respirar um pouco, e às vezes ficava conversando conosco e falando de todas as coisas. Estava eu no jardim, a transmitir meu saber, quando ouvi um riso de homem e me senti levantado pelos braços a não sei quantos metros de altura. Eram dois oficiais de Marinha, e o que me levantava, com voz zombeteira, perguntou-me: “Quantas estrelas tem o céu?”. Escarlate, não soube responder. Até hoje me volta a cena, a voz, e a pergunta divertida. Por quê? Parece-me que estava a me gabar do que sabia e do que não sabia, mas o amor pelas estrelas era puro e verdadeiro. Aos dez anos sonhei possuir uma Astronomia Popular, de Flammarion, que vira em casa de um jornalista amigo de meus pais. Ninguém sabia meu segredo. Nesse tempo eram magérrimas as vacas: meu pai adoecera gravemente; uma noite minha mãe chegou muito tarde e, vendo-me na cama acordado, ajoelhou-se junto de mim e disseme chorando: — Estamos agora sozinhos... eu com vocês... no mundo. E passamos a viver uma gloriosa pobreza que até hoje ilumina todas as lembranças de minha infância. Como realizar as núpcias astronômicas com que sonhava?

Juntava jornais de toda a vizinhança e vendia-os na venda de “seu” Cardoso. Tostão por tostão, em três anos ou mais consegui a soma fabulosa de trinta mil réis que mamãe guardava. Não havia nessa época de nossa história a inflação que roeria meus tostões e destruiria meu sonho. Mas era tempo de exame quando consegui o total, e nesses dias, lá em casa, tudo ficava suspenso: — Mamãe, onde está a tesoura de unhas? — Depois do exame. — Mamãe, onde está o “Tico-Tico”? — Depois do exame. A Astronomia Popular ficou também para depois do exame; mas então aconteceu um milagre, hoje incompreensível. Nesse meio tempo aprendera eu o francês, e a edição original de Flammarion custava a terça parte da tradução portuguesa. Por isso, depois do exame, quando cheguei em casa, num deslumbramento indescritível, vi diante de mim, em vez de um só, três grossos volumes: Astronomie Populaire, Étoiles du Ciel, Terres du Ciel. Creio que nunca senti na vida felicidade igual. Durante três ou quatro dias passei horas perdidas no fundo do quintal, sem consegui ler, sem ao menos folhear metodicamente um só dos três livros. Largava um e tomava outro. Anos depois passei a desejar ardentemente uma luneta astronômica. Já ganhava uma libra por mês, ensinando matemática a alunos vadios. Mas não consegui mais encontrar em mim aquela força da infância. Perdi-me em outras direções, troquei as estrelas do céu pelas estrelas da terra. Foi muito mais tarde, já perto dos quarenta anos, que comprei a luneta astronômica. Estava de viagem pela Europa, quando em Berlim, numa tarde, dobrando uma esquina, vejo numa vitrina uma pequena luneta astronômica plantada em seu tripé a me fitar com seu grande olho aberto para o infinito. Veio-me uma rajada de infância, e então eu me senti na obrigação de comprar aquela luneta e dá-la de presente ao bom menino que em vão sonhara com ela nos dias de sua infância. Achei que ele merecia; mas logo depois, ai de mim, em vão procurei onde estava o menino que queria sondar os abismos da noite. O leitor, que receio estar enfadado, com estas reminiscências, aqui perguntará por que diacho não estudei eu a astronomia? Estudei. Estudei, sim senhor. Não sei se o papel dará para contar essa história. Prefiro, antes disso, contar a visita que fiz ao Observatório, com meus pais e o bom poeta Emílio Kemp. Voltemos aos dez anos de idade. Estamos num terraço onde, contra a noite escura e transluminosa, avultava o perfil regular e solene da cúpula. Em certo momento minha família ficou a um canto, e na outra extremidade do terraço eu via dois astrônomos conversando. O mais velho gesticulava e falava com vivacidade. Imaginei que estivessem a comentar a beleza das nebulosas espirais ou estrelas duplas, e aproximei-me tremendo de emoção, com receio de não entender bem aquela língua dos anjos. E quando cheguei perto, sem ser percebido, ouvi o astrônomo dizer ao outro com voz ácida e cortante: — Ele me pagará o que fez. Eu não esqueço. Hei de urinar em sua sepultura!

Recuei apavorado, e sentime profundamente infeliz como se assistisse a uma inexplicável e súbita apostasia de todos os sacerdotes de uma religião fabulosa. É claro que sentia tudo isto com outras palavras. Creio que decepcionei meus pais e o bom poeta que procurava o brilho de meus olhos. Naquele momento, as estrelas do céu perderam o interesse para mim, porque eu estava não somente magoado, como também intrigado com a descoberta bizarra, fantástica que acabava de fazer. Os astrônomos eram uns pobres homens feridos, que se indispunham uns com os outros, como o bom poeta se indispunha com a mulher. Lembro-me bem. Essa idéia de que os homens se indispunham uns com os outros esteve naquela noite, e nos dias seguintes, a me perseguir como obsessão. E foi por isso que a minha felicidade astronômica ficou toldada, e não pude apreciar devidamente os anéis de Saturno. Entre mim e o singular planeta se interpunha a figura machucada de um astrônomo que prometia urinar na sepultura de outro astrônomo. Mas não foi este episódio que me afastou da astronomia. Foi antes a necessidade de não morrer de fome, como de outra vez, se Deus quiser, lhes contarei. (04/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência)

A Ariano Suassuna Tivemos quarta-feira passada na PERMANÊNCIA1, numa sala repleta, que quiséramos mais ampla e mais repleta, uma conferência de Ariano Suassuna sobre o Romanceiro Popular do Nordeste. Depois de uma sábia apresentação de Gladstone Chaves de Melo que esboçou um resumo da vida já bem vivida do mais jovem membro do Conselho Federal de Cultura, e uma interpretação de seu último grande livro, “A PEDRA DO REINO’ (Ed. José Olimpio, 1971), Ariano Suassuna levantou-se, digo melhor, desengoçou-se e começou por dizer que era canhestro e gago, coisas que aliás logo se viram: mas creio que ao cabo de poucos minutos todas as pessoas presentes estavam a sonhar com um mundo em que a humanidade inteira, e principalmente os escritores, fossem canhestros e gagos como Ariano Suassuna; e creio também que no mesmo breve tempo Suassuna sentiu que já ganhara o coração de toda a PERMANÊNCIA — e que a nota principal daquela grande família que o ouvia com tanta atenção e alegria é a amizade, amizade começada na terra e desabrochada no céu —, e amizade na qual já se acha solidamente inscrito o rapsodo que nos trouxe ontem a notícia da maravilhosa poesia popular que são as flores e os cardos de nosso amado e sofrido nordeste.

Ariano Suassuna, numa introdução improvisada e desordenada, falou de si mesmo com graça e humildade, como só sabem fazer as almas dotadas e sofridas que têm o vivo sentimento do trágico e do ridículo da vida. Falou-nos de sua composição, de sua heteronomia, entre cujos elementos predominam o palhaço e o rei que todos somos. E aqui, para responder ao susto de uma boa senhora que me telefonara espantada de meu aviso no jornal, onde anunciava a conferência de “um comunista”, Ariano Suassuna explicou que era monarquista e que suspeitava que metade da sala o fosse sem saber, ou sem ousar confessar. Acrescentou seu horror ao marxismo que o bom povo do nordeste energicamente repeliu, como o repeliu também o bom povo camponês da Sibéria. E a demonstração, como se costuma dizer, estava na cara do homem menos pedante que em toda minha longa vida já encontrei. Nós sabemos que há duas espécies da mesma hedionda deformação do homem, manifestada no pedantismo: há o pseudo-científico e desidratado pedantismo dos marxistas, e o floreado pedantismo tão bem representado pelo professor Cândido Mendes de Almeida de que já tratamos na quinta-feira. Não logrando a síntese essencial do cômico e rei, esta casta de retórico só consegue realizar o hemisfério palhaço de nossa mísera condição. Suassuna está nos antípodas dessa raça de anões que em vão se esticam, ele é alto de pernas e de coração.

Por essa e outras, receio muito pela mantença do regime (refiro-me à vetusta e quase centenária República) se aparecerem por aí muitos Suassunas, por que na verdade verdadeira somos todos nós, e não só os incorrigíveis franceses que decapitaram sua história, temos nostalgia de um reinado. Lembro-me de um bom jardineiro português, talassa, ultramontano, que plantou flores no jardim de minha infância — flores que ainda perfumam meus sonhos — e que explicava desolado à minha mãe, depois do assassinato do Rei Dom Carlos de Portugal, que a República era o começo do fim do mundo. E quando nós o cercávamos para exigir dele uma explicação mais clara, o bom súdito perene

de Dom Sebastião e de Dom Carlos, com gestos largos e simples, que devem ser o dos cantores que Homero compendiou, meu bom português respondia com olhar iluminado:

— Ai! os meninos não sabem o que é a gente ver o Rei passar...

E o gesto reticente era a comitiva de um Rei que passa diante de todas as lendas do mundo.

“Ver o Rei passar”. Certo carnaval antigo, há cem ou duzentos anos dos mil que já vivi, andava em moda uma canção e lembra-me bem o impacto violento que recebi numa esquina quando vi caído no chão um papel com o nome da canção em grossas letras: “Que Rei sou eu?”. Deus nos fez Rei, Homem-Rei, de todas as coisas do mundo inanimado, do mundo de plantas odoríferas e animais que voam, correm ou se arrastam. Mas nós, ai de nós, aonde deixamos esquecida nossa coroa? Quisemos ser Rei do Rei, e aqui estamos nos carnavais da vida, metade-rei metade-palhaço, a indagarmos aflitos: “Que Rei sou eu?”.

*

Deixemos o regime em suas bases e agora vamos ao Romanceiro que Suassuna nos trouxe. Confesso que até ontem, talvez por ter nascido no Rocha, nesta metrópole que há muitos séculos, no tempo em que os animais não falavam, foi uma cidade maravilhosa, ou por alguma outra razão com que não atino, nunca dediquei em toda minha vida a devida atenção — agora friso o termo devida — a esta casta de cultura, de ascensão humana, de conquista, que se esconde, como o Romanceiro do Nordeste, sob o disfarce da pequenez à espera de um Homero que a transforme em espanto dos milênios. Não quero assustar a modéstia de Suassuna apontando-o desde já como o Homero das terras nordestinas que não são mais ásperas do que as daquela península espantosa que abrigou o Povo Eleito da Razão, como diz Maritain: direi que ele é o João batista de tal Homero, fazendo votos, entretanto, que sua cabeça não seja pedida por nenhuma Salomé.

Eu disse que o Romanceiro se esconde na pequenez. Suassuna reagirá contra quem num revés de não pretender afastar essa cultura como coisa menor, primitiva, infantil, ou simplesmente telúrica. Não há obra de arte que não venha do céu, como não há fruto ou erva da terra que não venha do céu. Será menor por estar mais perto da terra? Mas essa feição é um modo de estar mais perto do céu. Como tão bem frisou Suassuna, o que não convém às obras de engenho e arte é a meia altura.

Torno a dizer que é uma cultura pequena sob a condição de afastar o termo de todas as conotações pejorativas, e de aproximá-lo daquela pequenez que Santa Terezinha do Menino Jesus da Santa Face santificou, demonstrando assim que ela é uma das tantas formas da grandeza que neste mundo, aqui e ali, nas mais adversas condições como no prodigioso caso do Aleijadinho, nos é oferecida já que somos reis.

E aqui trago ao sábio estudioso que tão modestamente esconde sua grande cultura algumas cogitações que me acudiram ontem numa insônia feliz. Aquela estranha cultura, aquela misteriosa arte “popular” tem duas faces que sempre se encontram nas mais altas expressões do espírito humano: a espontaneidade e a elaboração. Suassuna mostrou num quadro-negro imaginário, com didática excelente, a elaborada e difícil estrutura do metro e rima da poética do Romanceiro do Nordeste. Não se trata de uma pura espontaneidade infantil ou imbecil, que só produz a gracinha de criança e as enchem hoje a meia altura do mundo. Trata-se de uma agilidade que vence as asneiras dos intelectuais que vence uma dificuldade. E aqui me vem o lema que Rilke e São João da Cruz se encontram: “Ao homem é mister ater-se sempre ao difícil”. O brio do homem (a lembrança de sua coroa) está nesse garbo de se ater ao difícil, de realizar proezas. E o Romanceiro, longe de ser uma cultura simplesmente menor, medida em côvados de progresso técnico, ou mesmo em unidades mais altas das culturas mais universais, tem essa marca sem a qual não mereceria efetivamente maior atenção. Tem em comum com os mais altos momentos da história humana esta invariante procura da Verdade e do Bem. Suassuna certamente preferiria, a tão ostensivas e pomposas categorias, os termos “genuíno” ou “autêntico” que são apelidos da Verdade; e não me contestará se eu disser que através de todas as desconcertantes refrações éticas o Romanceiro revela sempre a procura de um Valor, que é outro apelido do Bem. Creio que foi Gustave Thibon, o lúcido colaborador de Itineráires, e amigo de Simone Weil, que disse ser o homem um animal que valoriza, isto é, que se move em busca de um Valor, e de um supremo Valor. E assim sendo, o Romanceiro rompe os limites asfixiantes do Regional, do folclórico, e já anuncia uma grande, uma incomparável contribuição universal, trazida por nosso Nordeste.

Falei-lhes em espontaneidade e elaboração, e outra não é a composição da vida mística segundo os mais doutos: nos caminhos da santidade Deus dispôs nossa alma para trabalhar de dois modos: o modo elaborado das virtudes e o modo espontâneo dos dons. Assim também na poesia. E é por esta marca que, desde a lição ontem recebida de meu jovem amigo Suassuna, começo a desconfiar da real grandeza do tesouro ainda meio escondido no Romanceiro do Nordeste.

*

Agora peço ao meu amigo Suassuna que pondere o que vou lhe dizer sobre o que ele nos disse ontem do que pensa de Santo Tomás e da Teologia em geral. Não pretendo de modo algum convence-lo de que seja indispensável à sua vocação o estudo profundo de Santo Tomás, mas gostaria de conseguir em sua grande inteligência uma brecha que seria uma pequena janela aberta para todo um imenso mundo da vida da inteligência e da fé. De início, e como quem prega um susto, direi que Santo Tomás está muito mais perto do Romanceiro, pela espontaneidade dos dons e pela elaboração das virtudes, pela Verdade e pelo Bem, pela Autenticidade e pelo Valor, do que do pedantismo com que inundam hoje o mundo os teólogos da nova teologia que tanto falam em Povo de Deus sem saberem o que é Deus e o que é Povo.

Suassuna tratou Santo Tomás de racionalista certamente sem saber que esse termo se aplica aos Descartes, aos Kants mas não ao Doutor Angélico. Para não se alongar demais, porque meu dadá é o Romanceiro da Suma Teológica direi que é uma ilusão imaginar que Santo Tomás com a Suma pretendeu achatar o insondável mistério da Trindade. Pretendeu apenas oferecer às almas algum arrimo, que sempre precisam, em formular e esquemas que são apenas pobres arrimos. O autor de A PEDRA E O REINO e o paladino do Romanceiro também pediu um quadro-negro para traçar alguns esquemas úteis e instrutivos: certamente nenhum de nós na sala julgou que Suassuna quisesse explicar todo o mistério da alma do Romanceiro com tais esquemas. Assim também, eu diria que a Suma Teológica também foi o quadro-negro de que precisou Santo Tomás para indicar às almas, ao menos, o roteiro, a direção dos primeiros passos da ascensão da Fé nos mistérios de Deus três vezes santo.

*

Terminando esse longo arrazoado dum agradecimento ainda mais longo, peço a Ariano Suassuna que aceite como sua casa o acampamento de amizade religiosa que nos une na PERMANÊNCIA.

O Globo, 11 de dezembro de 1971.

A cosmovisão da lagartixa Hoje, para variar e para descansar o leitor, vamos falar da lagartixa. Antes disso, devo dizer que, nas meias horas de descanso depois das refeições receitadas pelo Dr. Stans Murad, costumo esticar-me num sofá, perdão, num sofanete, para ser mais exato, e então, sem saber como e quando começou, costumo deixar correr a lembrança dos dias idos e vividos ou das pessoas idas e mortas. Entrego a memória a seus caprichos e ponho-me de camarote a assistir às avessas, e de surpresa, às cenas desse teatro de amadores mal ensaiados que se chama vida. É o meu luxo, é o último regalo que os ferozes deveres de estado me concedem. Desta maneira, misturando à água da memória o vinho da ficção, invento a vida que não tive, viajo, vejo terras e mares que não vi, revivo amores que não vivi

Many and many years ago, In a kingdom by the sea... Nem sempre é ameno este exercício. Às vezes, como cobra escondida na moita, salta-me diante dos olhos um quadro vivíssimo que supunha morto ou dormido, ou vara-me o ouvido do coração uma palavra, um timbre, um grito, que me quebra o repouso com uma descarga elétrica de dor. Mas também muitas vezes logro repassar momentos de tão intensa doçura — ora no gosto fresco de um alvorecer, ora na suavidade silenciosa de um entardecer — que me dão esquecimento de todos os azedumes provados... Outras vezes, simplesmente cochilo até que toque um dos sete despertadores dos sete deveres de estado.

*

Ora, ontem, quando me punha no decúbito dorsal aconselhado pela sábia e amiga solicitude do Dr. Stans Murad, que é meu amigo pessoal, e declarado inimigo pessoal da morte, especialmente da morte súbita (A subitanea et improvisa morte libera nos, Domine), no momento em que me preparava para desatar as amarras da fantasia, vi no teto uma lagartixa a andar desembaraçadamente no seus afazeres de lagartixa, movendo-se ao arrepio das leis da gravitação, mas certamente ao saber de outras leis que desconheço, mas respeito.

Feliz animal! Lá no teto, com a maior naturalidade do mundo, a lagartixa vê tudo de pernas para o ar, vê pesados móveis grudados num teto sem nenhuma lei a favor de tal postura, e vê em decúbito dorsal uma grande pobre lagartixa humana, estendida no sofanete, imóvel, vivendo só pelo ardor dos olhos e pela angústia do semblante. Lacerta agilis, se tivesses nas tuas frias veias uma centelha daquilo que nos faz entender, e principalmente desentender, saberias lá no teu teto que o mundo cá embaixo anda ainda muito mais de pernas para o ar do que te parece. Tua tranqüilidade, ó Lacerta agilis, vem do fato de não seres absurda. És o que és, e moves-te em conformidade com o que és. Nós, não. Nós não sabemos exatamente o que somos, e quando o sabemos é para logo observarmos que certamente, certíssimamente, não vivemos segundo o que verdadeiramente somos.

Vou contar-te um segredo de homem, lagartixa, um segredo pesado. Um segredo triste. Muitos de nós, ó Lacerta, sem tua translúcida inocência, andam no teto deste século, nos seus ires e vires, sem se aperceberem que vivem num mundo de pernas para o ar. Sem sofrerem. Sem quererem trabalhar para viverem segundo o que principalmente são. Não desenvolvo esta parte de minhas meditações porque prometi hoje ao leitor um dia de descanso. E suponho que o leitor me permitiu que hoje só lhe falasse de lagartixa.

Feliz devorador de insetos, não invejo tua tranqüilidade nem tua dieta; mas devo dizer-te, ó animal inocentemente subversivo, que muito menos invejo os meus iguais que andam no teto do século, na cúpula da atualidade, alegres de viverem num mundo de pernas para o ar, e de se nutrirem de insetos. Aqui onde me vês, deitado por obediência, já que hoje nem a fantasia me deixaste, prefiro esta postura, esta consciência afrontada, esta dor: é o nosso quinhão, ó lagartixa.

*

O mesmo compassivo amigo que me receitou os descansos depois das refeições, por um dos muitos paradoxos da ciência, mandame andar 2 a 3 quilômetros por dia. O remédio é barato e agradável, só tendo a desvantagem humilhante de estar na moda. Como porém não me apraz andar pelas ruas duma cidade invadida por misteriosos inimigos que vieram não sei de onde, e vão não sei aonde (parece-me que a lugar nenhum) com uma incompreensível velocidade, inventei um estratagema simples que me permite andar os três quilômetros sem o inconveniente de afastar-me demais de meu pequeno mundo. La bête blessée cherche son trou. Tenho ao lado de minha casa uma nesga de terreno com trinta metros de fundo. Indo e vindo cem vezes tenho meus três quilômetros percorridos sem sair de casa. O método parecerá insípido às pessoas que gostem de ver coisas novas, ilhas, cidades, vulcões, ruínas e gostam de correr mundo. Tenho a impressão que este é o parecer de meu cão, um quarto ou dezesseis avos de sangue de perdigueiro. Escolhi a hora matinal, antes da missa, para meu exercício. E o fiel pseudoperdigueiro, quando me vê abrir a porta dos fundos às seis da manhã, com um bengala que para seus cromossomos seria uma espingarda, deve latir consigo mesmo: — Vamos à caça! E põe-se alegremente a andar a meu lado, o que atravanca às vezes os passos mas não deixa de alegrar o exercício.

O que o pobre falso perdigueiro não pode compreender é a minha insólita atitude diante do portão. Em vez de abri-lo, e ganharmos a floresta próxima, eu volto à garagem, marco um ponto, e volto ao portão, para voltar à garagem, e assim por diante até cem. o pobre animal vai e vem, com entusiasmo decrescente. Mantém a fidelidade, uma fidelidade sem alegria, sem sonhos de tiros e perdizes caídas, e já lhe surpreendi mais de um olhar triste que parece falar: — Meu amo enlouqueceu.

*

E agora, amado leitor, cumprido o descanso sob os olhos da lagartixa, e completada a marcha na companhia do cão, voltemos aos homens, às conferências episcopais, à atividade da Editora Vozes, inimiga de Deus e do homem. Voltemos aos sete deveres de estado que o bom Dr. Stans Murad não vê como um bom regime para um velho baleado.

A semana do gari Se o leitor imaginava que o assunto de hoje seria a Carta Apostólica de Paulo VI, enganou-se redondamente. Eu também me enganava, e acabaria escrevendo alguma coisa de meu catálogo de aflições de acaso a vista cansada não fora atraída para o canto da página 3 do mesmo “O Globo” onde começara a ler o documento pontifício. Lá estava, num anúncio discreto e encantador, uma carrocinha de lixeiro cheia de flores, e em cima estes dizeres líricos e proféticos: “... ALGUM DIA SÓ RECOLHEREMOS FLORES...” Fiquei inteirado: estamos na Semana do Gari. Sim, leitor amigo, na exígua semana de seu irmão varredor que você de longe vê na sua roupa de fogo desbotado a tentar uma façanha maior do que as famosas de Hércules: limpar os caminhos dos homens.

Assim sendo, disse eu com meus velhos botões, não posso faltar. O Papa espera. O gari é que só tem essa escassa oportunidade de cantar sua esperança. Não posso faltar.

Creio que, entre as recordações vez por outra aqui largadas, já disse qual foi o meu primeiro (e último) cargo público. Repito hoje com muita honra: fiscal de lixeiro.

Naquele tempo, lá em casa, as vacas andavam esqueléticas. Eu precisava arranjar um emprego, e arranjaram-me aquele. Assinava o ponto em São Cristóvão, às 4 horas de madrugada, e recebia do chefe o itinerário que devia percorrer a carrocinha puxada por um burro e conduzida à distância por um lixeiro maltrapilho que mandava o burro parar e andar com uns gritos especiais que só o animal entendia.

Devia eu acompanhá-los de longe. Nos primeiros dias pareceu-me odioso o ofício de fiscalizar um pobre tão pobre. Morreria de vergonha se ele me visse e soubesse que eu o espiava. Tentei seguir itinerários diferentes, mas então afligia-me a idéia de não estar obedecendo à ordem que me haviam dado. Afinal encontrei uma fórmula: em vez de acompanhá-lo de longe como fiscal, acompanha-lo-ia de perto como lixeiro suplente ou como amigo. E assim as quatro horas de serviço encurtaram para nós ambos porque íamos andando e conversando. Lembro-me bem de um que tinha a minha idade e deixara em Muriaé uma namorada chamada Emília. Abriu-se comigo: como se conheceram, quem era ela, o que diziam quando conversavam na praça da Matriz. Um dia perguntou-me se eu poderia pôr numa carta toda a saudade que fervia nele. Mas essa carta deveria começar assim: “Idolatrada Emília”. Verti na carta, a seu pedido, todas as clássicas comparações das partes do corpo com as demais riquezas do universo — alabastro, marfim, safira, asa de graúna etc. — e pedi-lhe que abrisse mão do “idolatrada”, mas ele ficou irredutível.

Outras vezes filosofávamos; e enquanto o burrico obediente ia arrastando devagar as sobras, os detritos e as sujeiras de uma longa rua adormecida, nós dois, irmãos pelo lixo, conversávamos sobre as coisas simples e luminosas que são os assuntos irresistíveis de todas as almas eternizadas pela

humildade e pela pobreza. Não me lembram hoje os nomes dos garis que fiscalizei ou acompanhei, mas de uma coisa estou certo: não é como intruso, nem como letrado discursador, que me intrometo na semana dos varredores; entro na festa como um velho gari aposentado que, mercê daquela prática adquirida, se obstina em querer ainda hoje despejar o lixo que afeia e entristece a Cidade de Deus.

E por falar em Cidade de Deus, junto os pés e num salto galgo vinte anos de vida mal vivida. Acho-me agora às portas daquela Cidade a procurar, como num pesadelo, o itinerário de um gari extraviado. Nessa procura encontrei um moço poeta que acabara de escrever um poema que começava assim:

Varredor que varres a rua, Tu varres o Reino de Deus...

E que terminava numa esperança parecida com o anúncio de hoje. Chamava-se Lauro Barbosa, tinha idade para ser meu filho, mas teve mão para guiar-me como um pai, como um padre.

Recordar ou coçar, é só começar. Se a coluna das quintas e sábados não tivesse seus limites, e não devesse eu, por vocação de lixeiro perpétuo, assinar ponto e obedecer, a recordação vadia se espraiaria, e todo o papel do jornal seria pouco para patentear a gratidão que carrego por tudo o que vi e ouvi e pelo que recebi de todos, a começar pelos humildes companheiros de perambulantes e fedorentas matinas. Cada um de nós traz em si encolhido, recolhido, um personagem de Dostoievsky. O meu já várias vezes me compeliu a beijar o chão por onde passam os pés, e a beijar os objetos, a cadeira, esta mesa, que mãos invisíveis continuam a aplainar para mim, eternamente.

Hoje, o meu Marmeladov me atira de joelhos, com um cachação, a me dizer severamente que não seja esquecediço e que reze pelos meus irmãos varredores que aqui, ou alhures, continuam a varrer o Reino de Deus.

Eu também, amigo e irmão gari de antigamente e de hoje, eu também vivo a acompanhar uma carrocinha, a recolher lixo e a sonhar um dia em que SÓ RECOLHEREMOS FLORES... Quem foi o poeta municipal, perdão, estadual que escreveu para nós garis estas palavras que soam como orações? Deus o acrescente. Deus lhe pague.

O Rei David, grande Profeta e cantor, nunca fez, que eu saiba, a experiência de lixeiro que nós fizemos, mas sua alma imensa adivinhou a dor comum de todos os peregrinos, e por isso pôde concluir na substância de seu Salmo esta esperança de lixeiro:

... vão andando, chorando, carregando lixo, mas um dia, ALGUM DIA, voltarão jubilosos, cantando e sobraçando palmas e ramos de flores...

Conversa em Sol Menor, Agir 1980.

Ainda as comunicações com Brasília Tentei ontem resumir uma explicação para o leigo, mostrando que há dois serviços em andamento para o mesmo fim: comunicações telefônicas entre Brasília, Rio e São Paulo. O primeiro é constituído por uma instalação de rádio de ondas curtas, como usam os amadores que conseguem falar com a Austrália, se as condições atmosféricas são favoráveis. Se não são, o amador fecha a estação e vai ao cinema. O outro serviço, de padrão, de padrão comparável ao que a Companhia Telefônica Brasileira usa entre São Paulo e Rio, é o chamado micro-ondas, e consiste numa série de estações intermediárias escalonadas entre os dois pontos. O primeiro serviço devia ser instalado nos inícios da obra para facilitar as comunicações e as ordens de serviço; não se entende que seja instalado agora com pretensões a fazer serviço público. Instalado agora é uma despesa a mais para puro efeito propagandístico, para demagogia, e nada mais. Nós estamos aqui para pagar tudo.

O serviço de micro-ondas deveria ter sido iniciado em 1956, e já estaria pronto, se na NOVACAP alguém soubesse que uma capital só pode funcionar bem se possuir um excelente serviço de comunicações, mormente quando a fantasia a colocou no lugar mais igualmente distante de todos os pontos habitados do país. Está atrasado. Não terá seus 120 canais (o mínimo necessário para uma capital) antes de um ou dois anos. O cronista do “Diário Carioca” que disse hoje, a propósito da conversa entre o sr. Israel e “O Globo”, que eu perdi minha aposta, está fazendo o que pode para ser promovido de posto no exército da nova classe. Ele deve saber que apostei na possibilidade de inaugurarem os 120 canais de micro-ondas, e que não sou tão idiota e tão alheio ao assunto para negar a possibilidade de ser instalado, em poucos dias, uma estação transmissora de rádio-telefonia de emergência. Ele sabe, mas finge que não sabe, e vai assim caminhando no seu jornalismo, progredindo em sua carreira numa linha que não invejo, para mim e para meus filhos.

Agora alguns pormenores sobre a situação em que se acha a micro-onda. Não tenho notícias do estado em que se acham as vinte e tantas estações que a NOVACAP deverá construir entre Belo Horizonte e Brasília. Tenho, entretanto, notícia de uma estação próxima, a que se situa em Juiz de Fora e que leva a enorme vantagem de não precisar de estradas de acesso. O colega que me telefonou de lá (vejam como é bom o telefone!) informou que as quatro paredes do prédio estão levantadas, sem piso, sem fundações para as máquinas, e sem vestígios de torre. No dia da semana passada em que recebi este telefonema, os 16 operários tinham abandonado a obra por falta de pagamento e o pobre do empreiteiro anda por aí, entre o Rio e Brasília, a procurar quem lhe pague o que ficou combinado. Como os tempos são de Carnaval, imagino o empreiteiro a cantar pelas ruas: “Me dá um dinheiro aí!”. Na semana passada saiu uma notícia de um decreto presidencial desapropriando um terreno em Paulo de Frontin para aí montar uma das vinte e tantas estações. Por onde se vê que as comunicações regulares e excelentes entre Brasília e Rio só ficarão prontas, se ficarem, dentro de um ou dois anos.

Diário de Notícias, 2002-1960.

Alguém mentiu Trata-se das comunicações telefônicas de Brasília. Antes de mais nada é preciso frisar que há dois serviços em andamento com o mesmo objetivo. O primeiro é formado por estações de Rádio de ondas curtas, com modulação chamada de single-side-band permitindo doze canais. Esse sistema tem a conhecida precariedade, que consiste na instabilidade do nível e na dependência das condições atmosféricas. É um serviço de emergência, medíocre na qualidade, escasso na quantidade de canais que mal darão para o Palácio da Alvorada. O segundo serviço, o único que merece o título de serviço público, e que permitirá 120 canais, é constituído pelo sistema de micro-ondas, com estações de recepção e retransmissão escalonadas ao longo da imensa distância, e com aparelhagem terminal em cada ponta. O primeiro pode ser feito em qualquer lugar do território brasileiro em poucos dias, e o que nos espanta é que não tenham começado as obras da NOVACAP por um posto de linha de ordem de tal tipo, e mais barata do que o atual sistema em vias de inauguração. O segundo leva dois ou três anos, e como começou meses atrás tudo indica que não ficará pronto em 1961. Amanhã, daremos alguns pormenores curiosos sobre o andamento das micro-ondas.

Ora, estando as coisas neste ponto sai em “O Globo” de ontem uma notícia sensacional: o sr. Israel Pinheiro tinha conversado pelo telefone com o repórter de “O Globo”. O espanto do repórter é um pouco ingênuo, porque a radiotelefonia está em funcionamento há meio século e o mundo está cheio de amadores que entretêm conversações entre o Brasil e Austrália, por exemplo. Eu mesmo, há trinta anos, tive o prazer de iniciar na Radiobrás um circuito telefônico intercontinental. Antes da conversa de “O Globo”, dois ex-alunos meus, um cá e outro lá tinham falado e me haviam dado notícia do feito sem que entre nós corresse um frêmito de emoção. Há entretanto na notícia de “O Globo” dois aspectos que merecem atenção. O primeiro é o do equívoco lançado sobre a opinião pública. Centenas de pessoas saudosas passaram o dia e a noite pedindo ligações para Brasília. A Companhia Telefônica Brasileira viu-se forçada a publicar um anúncio dizendo que ainda não existe o circuito em serviço normal. O segundo é mais grave. Em certa altura da conversação, o sr. Israel Pinheiro disse que a partir de 25 do corrente é só discar 01, pedir Brasília, teremos comunicações com a mesma facilidade com que temos para Petrópolis ou Ilha do Governador. Ora, isto que li me autoriza a dizer que alguém mentiu. Ou “O Globo”, ou o sr. Israel Pinheiro. O sistema precário, provisório, que estão montando e que terá no dia 25 oito canais em funcionamento, e canais de qualidade inferior, dará apenas para os favoritos da nova classe, e aí mesmo haverá disputas e contendas. O circuito Rio-Petrópolis tem 121 canais da mais alta qualidade, e além disso, Petrópolis tem rede urbana. Brasília terá em 25 do corrente oito canais precários e não tem rede urbana. Como pode o sr. Israel Pinheiro dizer que haverá a mesma facilidade de comunicações? Parece que o presidente da NOVACAP não tem seriedade, e foi isto que lhe disse na cara, três dias atrás, o deputado Adauto Lúcio Cardoso, quando visitou o seu reinado de Brasília. O dia 25 está próximo, e o leitor verá facilmente que alguém mentiu no que disse ontem “O Globo”. Diário de Notícias, 19-02-1960.

Antigamente calavam-se… Um amigo que se julga ateu ou não-católico telefonou-me outro dia, e logo me atirou pelos fios esta pergunta aflita: "Meu caro C. me diga uma coisa: a Igreja antigamente era ou não era uma coisa muito inteligente?" Ia responder-lhe com ênfase: "Era!" Mas enquanto vacilei alguns segundos meu amigo desenvolveu a idéia: "Olhe aqui. Eu bem sei que antigamente existiam padres simplórios, freiras tapadíssimas, leigos ainda mais simplórios e tapados. A burrice não é novidade, é antiqüíssima. Garanto-lhe que ao lado do artista genial que pintava touros nas cavernas de Espanha, anunciando há quarenta mil anos a brava raça de toureiros, havia dois ou três idiotas a acharem mal feita a pintura.

— Mas, calavam-se, disse eu.

E logo o meu amigo uivou uma exclamação que trazia na composição harmônica de suas vibrações todas as explosões da alma: a alegria, a angústia, a aflição de convencer, a tristeza de um bem perdido e até a cólera...

— Pois é! CALAAAVAM-SE!!!

Contei-lhe então uma história de antigamente. Teria eu dezoito ou dezenove anos, e meu heróis dezessete ou dezoito. Ele era o aluno repetente de uma escola qualquer, e eu seu "explicador" de matemática. Eu sentia a resistência tenaz que, dentro dele, se opunha às generalizações matemáticas. Ficava rubro, vexado e alagado de suor.

Recomeçava eu a explicar certo problema quando ele, numa decisão brusca, me deteve e suplicou:

— Explica devagar, devagarzinho, porque eu sou burro.

Na outra ponta do fio meu amigo de hoje explodiu:

— Que gênio! QUE GÊNIO!!

Era efetivamente genial aquele moço de antigamente. Não segui sua trajetória e não sei se ele hoje amadureceu e desabrochou aquele botão de sabedoria em flor, ou se virou idiota e portanto intelectual. O que pude garantir ao meu amigo não-católico é que antigamente a atitude média dos idiotas era

tímida, modesta e respeitosa. E isto que se observava nas ruas, nas aulas particulares, nos salões de bilhar e nos clubes de xadrez, observava-se também na Igreja. De repente, em certo ângulo da história, mercê de algum gás novo na atmosfera, ou de algum fator ainda não deslindado, os idiotas amanheceram novos e confiantes. Já ouvi e li muitas vezes o termo "mutação" surrupiado das prateleiras da genética e aplicado à história, à Igreja, ao dogma e aos costumes. Dois ou três bispos franceses não sabem falar dez minutos sem usar o termo "um mundo em mutação".

Se mutação houve, estou inclinado a crer que foi naquele ponto a que atrás aludimos: os idiotas que antigamente se calavam estão hoje com a palavra, possuem hoje todos os meios de comunicação. O mundo é deles. Será genético o fenômeno e por conseguinte transmissível?

— "Receio muito", gemeu a voz de meu amigo, "você não leu os jornais da semana passada?"

— O quê? — perguntei com a aflição já engatilhada.

— A descoberta do capim!

Não tinha lido tão importante notícia, e o meu amigo explicou-me: um sábio, creio que dinamarquês, chegou à conclusão de que o capim é um dos melhores alimentos do homem. Meu amigo não me explicou que se tratava do Homo Sapiens, do Everlasting Man, de Chesterton, ou do Homo postconciliarius. Seja como for, dentro de quatro ou cinco anos teremos a humanidade de quatro e espalhada nos pastos.

*

Estas reflexões amaríssimas, como diria o "agregado" de Machado de Assis, vieram-me hoje ao espírito depois da leitura de La Documentation Catholique, e principalmente depois da casual leitura de um volume encontrado entre outros livros de vinte anos atrás: O personalismo, de Emmanuel Mounier.

Nunca lera nada desse personagem que fundou a revista Esprit e que fez escola. Abri a página 42 da tradução editada pela Livraria Duas Cidades e li: "O homem é um ser natural". Detenho-me nesta proposição seguida desta outra: "Será somente um ser natural?" E depois: "Será, inteiramente, um joguete da natureza?" Ora, é fácil de ver que nenhuma dessas proposições têm sentido, e nenhuma conexão se percebe entre elas. Ou então, se o leitor quiser ser mais exato, diremos que todo aquele fraseado joga com a polivalência te termos equívocos pretendendo com essa confusão transmitir ao desavisado adepto do "personalismo" um sentimento de profundidade ou de rara acuidade. O que quer dizer "um ser natural"? Dotado de natureza própria todos os seres o são, desde o átomo de hidrogênio

até Deus. Tenho diante dos olhos o dorso de um livro de Garrigou-Lagrange: Dieu, son existance et sa nature. Logo, Deus é um ser natural. Se por natural se entende tudo o que pertence ao Universo criado, todos os seres, exceto o Incriado, serão seres naturais: a água, um gato, São Miguel Arcanjo. Se o termo natural se contrapõe a artificial, todos nós sabemos que um homem não é montado como um rádio de pilha, ou como uma máquina de costura. Logo, é um ser natural. Mas não se entende por que razão foi preciso fundar Esprit, lançar o progressismo, atirar-se nos braços do comunismo, comprometer Jacques Maritain, excitar tanta gente em torno de tão óbvia proposição.

Emmanuel Mounier já morreu coberto de glória há mais de dez anos. Podemos tranqüilamente dizer que era burro, apesar de tudo o que foi escrito em francês a seu respeito, como já podemos dizer tranqüilamente que Teilhard de Chardin era meio tantã. Dentro de cinqüenta anos ninguém mais saberá em que consistiu o "personalismo" de Mounier, ou o "phenomène humain" de Teilhard de Chardin. Essas obras foram o consolo e a volúpia de muitos leitores que, não entendendo nada do que liam, ao menos se aliviavam com este pensamento balsâmico: todos os livros são escritos para ninguém entender. E assim os idiotas do mundo tiveram um decênio ou dois de júbilo.

Passarão esses autores, mas se é verdadeira a descoberta das propriedades do capim, muitos novos autores surgirão a perguntar "se o homem é um ser natural". Já se houve o tropel... Mas — quem sabe — talvez o próprio capim, entre suas virtudes estudadas em Estocolmo ou Copenhague, entre duas Pornôs, traga uma espécie de calmante que nos devolva o genial tipo clássico do burro que se conhecia e que não fundava revistas católicas nem rasgava novos horizontes para a Igreja.

(O Globo, 22/08/70)

As comunicações do presidente Eisenhower “As comunicações diretas de Eisenhower com a Casa Branca serão feitos em Brasília, através do próprio avião presidencial, poderosamente equipado para isto: funcionários e técnicos em comunicações do governo norte-americano estiveram este fim de semana em Brasília, tratando do assunto; a nova capital passará por um trabalho de limpeza geral para receber o ilustre visitante; os americanos levarão teletipos para Brasília, os quais poderão ser utilizados pelos jornalistas brasileiros...”.

Estas notícias estão no “Diário Carioca” de ontem, na quarta página, na coluna assinada por Pedro Gomes. Isto não quer dizer, entretanto, que o “Diário Carioca” converteu-se à oposição ou desanimou de ver Brasília funcionar dentro dos próximos meses. Ao contrário, mais do que nunca o redator aparece entusiasmado com os progressos da NOVACAP em matérias de comunicações, e até se entrega ao prazer de atribuir parte do brio da NOVACAP aos meus pobres artigos. Deixo para amanhã ou depois, ou talvez para o dia do Juízo Final, esta estéril discussão. O sr. Pedro Gomes sabe que quem lê o “Diário Carioca” não me lê. Eu também sei. Cada um de nós explica-o de modo diferente,

mas o fato permanece. O leitor do “Diário Carioca” não lê meus artigos. Baseado nisto o sr. Pedro Gomes põe-se à vontade para uma discussão unilateral, e até esquece de fiscalizar o resto da própria coluna, tão seu é o seu leitor. Pode assim dizer que tudo está muito bem, em matéria de comunicações em Brasília, e no mesmo artigo dizer que, em véspera de inauguração, a futura Capital da República está menos equipada do que o avião presidencial americano. Pode também dizer que voltei atrás em minhas apostas, que continuam de pé, nos mesmíssimos termos em que as formulei. Mas deixemos, hoje, esta inútil discussão e admiremos as três notícias veiculadas pelo jornal mais governista que jamais foi impresso.

Admiremos na primeira notícia a passagem em que o cronista declara que o avião americano está “poderosamente equipado” para permitir um contato com a Casa Branca, sem admitir que seu leitor desconfie que Brasília devia estar um pouco mais equipada do que um avião. O avião presidencial vem a Brasília como se viesse ao Pólo Sul. Na segunda notícia admiremos a simplicidade com que o jornalista diz que haverá uma limpeza geral em Brasília: mas então quem receberá os americanos? Na terceira notícia admiremos comovidos a candura do jornalista que ao mesmo tempo está entusiasmado com o adiantamento de Brasília e declara que os jornalistas brasileiros só terão notícias dos festejos por intermédio dos aparelhos que os americanos gentilmente emprestarão.

Tudo isto prova que o redator tem uma robusta confiança em seus leitores, e até já adivinho que é por aí, pomposamente, que ele desdobrará sua próxima retórica...

Diário de Notícias, 10-02-1960.

Castelo Branco Inclina o ouvido, jovem leitor, às palavras de um velho amigo, e guarda este nome: Humberto Castelo Branco. Foi o maior Chefe de Estado, o mais decisivo, o mais significativo de todas as qualidades latentes em nosso povo, a mais importante figura da História do Brasil. Não exagero.

Nenhum outro jamais encontrou no País quadro igual de devastação, de destruição, de desmoralização e de anarquia. Uma greve por dia promovida pelo inimigo cruel e estúpido que já ocupava os postos, desde a Presidência da República; a desmoralização da autoridade sistematicamente promovida nas escolas, nos lugares de trabalho, nas repartições e na família; e um índice de inflação que no ano de 64 chegaria infalivelmente a 144%. O caos. E um caos perverso preparado para entregar a grande nação brasileira ao comunismo russo ou chinês. Foi em março de 64, quando à noite víamos nas janelas dos apartamentos velas acesas em sinal de que lá dentro rezavam pelo Brasil, e quando não víamos saída mas ainda guardávamos uma secreta confiança no bom gênio brasileiro, foi numa noite de março de 64 que um bom amigo nosso, coronel do Exército, nos disse misteriosamente: — Guardem este nome: Castelo Branco. Dias depois, Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, compadeceu-se de nós, intercedeu por nós, e o milagre se efetivou: as forças armadas se uniram em torno do homem que os céus escolheram. Os mais próximos

companheiros de armas e carreira certamente sabiam quem apoiavam, mas os mais distantes e até acaso algum dissidente só mais tarde compreendeu o alcance da escolha feita e apoiada por todos. Eu não conhecia nem de nome o general que fora estagiário da Escola Superior de Guerra num período em que fui designado para falar sobre o problema das comunicações. Foi o próprio Presidente que mais tarde me recordou o debate em que defendi a Light, coisa que naquele tempo tinha algum mérito ou loucura, porque todos os poderes estavam empenhados na depredação da grande empresa a quem tanto devemos, e para a qual o Professor Gudin, com igual coragem ou igual loucura, reclamara uma estátua em praça pública. Deixem-me falar afetuosamente, já que muitos desenvolverão a tese que meu querido amigo Mem de Sá ontem à noite nos propunha: tudo o que aí está hoje, sem nenhuma diminuição dos méritos de cada um e sem desconhecer a contribuição específica do câmbio flexível e dos incentivos fiscais e creditícios para exportação — do atual governo, tudo o que aí está foi semeado, plantado e regado pelo primeiro governo desta fase do novo Brasil. Deixem-me falar afetuosamente já que sobejam, por vários outros lados que me são tão caros, motivos para não calar a justa indignação que não calei nos tempos do Cabo Anselmo e de outros personagens que já voltaram aos ralos de onde tinham saído para a destruição do Brasil. Foi na saída da missa que recebi um primeiro sinal de amizade trazido pela irmã do Marechal Castelo Branco. Ele me pedia que lhe enviasse um livro de Maritain que continha um estudo sobre A Igreja do Céu. Outro talvez ficasse alarmado. Então diante dos escombros institucionais e da febre inflacionária que subia vertiginosamente, diante de todo um programa de reconstrução, nosso Presidente queria ler estudos sobre a Igreja do Céu? Fiquei deslumbrado e agradeci a Deus o milagre que dia a dia se tornava quase escandaloso. Foi uma divergência, manifestada num artigo meu sobre a Reforma Agrária que estavam querendo promover inadequadamente a meu ver, que me valeu um começo de amizade que hoje tem para mim um valor precioso. Estava tranqüilamente na minha mesa de trabalho quando o telefone tocou e, depois de uma breve interposição funcional da telefonista de Brasília, ouvi uma voz nordestina a me dizer com toda a simplicidade que perguntava por mim, e quando me identifiquei logo entabulou a conversação: — Aqui fala o Presidente Castelo Branco e eu telefonei para lhe dizer que meu empenho nesse projeto de reforma agrária não tem o menor intento de agradar facções e ideologias como o Sr. parece recear... E assim fez o Presidente Castelo Branco com o escritor Tristão de Athayde: telefonoulhe num sinal de desejo de entendimento. E em certo passo de ser governo teve a paciência de telefonar para 36 deputados que resistiam a um projeto, creio que de lei da Imprensa, e a cada um pedia — se o deputado não visse nisto algum inconveniente — uma entrevista, não para pedir seu apoio e muito menos para pressionar, mas para explicar as razões e intenções que não cabiam todas na fórmula apresentada. Lembro-me com especial emoção do dia em que me chamou para o convite de ser o representante do Brasil no encerramento do Concílio. Vendo-me embaraçado insistiu e perguntou afetuosamente: — É por que não tem casaca? Eu lhe empresto a minha... Quase aceitei, pelo gosto de levar à Cidade Eterna, em tão grande dia, a casaca talvez um pouco apertada ou um pouco curta, do homem que Nossa Senhora escolhera para salvar o Brasil. Prevaleceu no caso minha congênita indisposição para solenidades e pompas, e o Brasil teve finalmente melhor representante do que eu, que nessas grandes ocasiões corro sempre o risco de atordoar-me, de perder-me, ou de me achar numa situação chapliniana sem saber como lá fui parar.

Em outra ocasião em que também o Presidente me honrou com um convite que também não pude aceitar, a conversa prolongou-se e eu queria perguntar-lhe uma coisa e dizer-lhe outra: — Posso perguntar uma coisa ao meu Presidente? Ele olhou-me com aqueles olhos profundos de que não me esquecerei e, pousando a mão no meu braço, disseme: — Ao Sr. eu abrirei meu coração. E eu que dantes nunca entrara em palácios, que sou por vocação muito mais povo que fidalgo, embora admire a fidalguia dos que a sabem trazer, vi de repente naquele varão as duas coisas sem as quais não pode haver estadista: a pequenez da condição comum que nos irmanava, e a majestade de um verdadeiro Chefe de Estado designado por Deus. Saí do Palácio Laranjeiras indeciso nas minhas convicções republicanas. (O Globo 20/07/72; republicado em PERMANÊNCIA no. 194-195)

Centenário de Mozart A 27 de janeiro de 1756 — faz hoje duzentos anos — nascia em Salzburgo, de uma pequena e modesta família, o menino que teria na certidão de batismo o nome de Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart. Nasceu numa casa onde se vivia da música. Aos três anos de idade, como se houvesse diligência de bem aproveitar os poucos que a sorte lhe reservava, manifesta os primeiros sinais de vivo interesse pelas lições de cravo de sua irmã. E bem depressa se vê que não se enganavam os pais na apreciação desse interesse. O menino tem fome e sede de música. Aos cinco anos compõe um minueto em sol maior; aos seis, toca violino e cravo na corte de Viena, onde se encanta pela princesinha Maria Antonieta que trinta anos mais tarde marcará, com a cabeça decepada, o fim do século e do regime. Com oito anos, Wolfgang Amadeus Mozart domina com mestria o violino, o clavicórdio e o órgão; rege concertos; compõe a primeira sinfonia, em mi maior, e escreve a primeira ópera Apollo e Hyacinthus.

Tornou-se trivial falar da prodigiosa precocidade de Mozart. História sabida, mil vezes glosada, tornouse para nós um fato entre tantos, uma singularidade entre as muitas que a história do mundo registrou; e hoje precisamos fazer um esforço de imaginação, mobilizar capacidades esquecidas, esfregar dormências da alma, para conseguirmos a maravilhada admiração que tal prodígio merece. E antes de mais nada convém lembrar que a precocidade de Mozart difere essencialmente daquela que tantas outras crianças, com o mimetismo próprio da infância, revelam nos concertos públicos. A precocidade de Mozart é criadora. Nela se encontra a inconcebível conjugação da impressividade infantil com a

expressividade varonil da obra de criação. E é esse incrível conúbio, a meu ver, que explica a misteriosa e riquíssima transparência da obra de Mozart, e que ao mesmo tempo explica a combinação, a dialética interna dessa obra de continuação e de renovação. A precocidade de Mozart não foi um mero acidente de sua carreira, nem apenas uma espécie de compensação da outra que lhe viria pela tuberculose. Foi também, e sobretudo, o elemento integrante da substância de sua música. O “Réquiem” encomendado por um misterioso desconhecido, pouco antes de sua morte, a sinfonia em sol menor n° 40, e o admirável concerto para clarineta e orquestra, em lá maior, só podiam ser escritos por alguém que acordara muito cedo para a música, isto é, por alguém que tivesse feito a extraordinária experiência de uma infância criadora. A infância, quando se materializa no adulto, quando permanece como um quisto, dá na neurose; mas quando se dilui, quando se espiritualiza, dá nessa perenidade de transparências que se encontram na música de Mozart. E assim, o menino que tão depressa deixa de ser menino pela mestria, será sempre menino pela pureza.

Nascido numa família de músicos, numa casa onde se respirava melodias e onde até o canário cantava em sol maior — o tom de sua primeira composição — dir-se-á que Mozart tinha a seu favor todas as circunstâncias para se inserir, para ser músico. Tinha-as efetivamente, mas para ser um músico que continua o ofício do pai e à maneira do tempo. Em qualquer outra criança que não se chamasse Wolfgang Amadeus Mozart, essas condições favoráveis produziriam uma fixação e dariam apenas mais um ameno compositor do século XVIII. Mas nosso Petit Prince, gênio infantil, segue as lições do pai ultrapassando-as sem sentir; imita sem saber que está renovando; obedece sem perceber que está dirigindo; adapta-se sem consciência da revolução que inicia. Ninguém é mais século-dezoito do que esse menino que havemos de ver sempre, como viu Goethe, com os cabelos empoados do ancienrégime; mas ninguém, nem a própria Maria Antonieta na guilhotina, marcou mais nitidamente o limiar dos tempos modernos. Continua Bach e prenuncia Beethoven, mas não se pode dizer que seja um elo, uma transição, um intermediário, porque nenhum outro depois dele conseguirá ser mais integralmente completo, ser mais soi-même, do que Mozart foi Mozart.

A disjunção de personalidade, que o romantismo trouxe, e que faz Cocteau dizer por blague que “Victor Hugo est un fou qui se croit Victor Hugo”, não se encontra em Mozart que é sempre idêntico a si mesmo na imensa variedade de sua obra.

A composição de docilidade e de renovação, o paradoxo da infância criadora, e até direi o momento histórico que viveu, entre o regime protecionista da aristocracia e a ânsia de uma arte desatada, tudo isso marcou a vida e caracterizou a substância de sua música. Uma fórmula nova que estava em germe na obra de Haydn será a característica da composição e do desenvolvimento mozartiano. Já foi explicada essa fórmula em termos de dualismo masculino-feminino dos temas em contraste. A mim me ocorre o termo “complementariedade” para definir o caráter dialético da composição mozartiana.

A música do imenso Bach tem o caráter de exposição, de lição, de homilia. O incomparável mestre de Eisenbach ensina, propõe, expõe. Sua obra nos deixa sentir a hierarquia. Bach compõe ex-cathedra.

Em Mozart, ao contrário, aparece a música-diálogo, a música-composição, a música-colóquio. E a idéia que deixa, ainda que se expanda em grandiosidades, é a de convivência e de intimidade. Sua obra é uma ambiência, uma vida em comum, uma conversatio musical. Muitos críticos já salientaram a predominância do cantavel na obra de Mozart. Arrisco-me a introduzir um pequeno retoque nessa apreciação dizendo que é na palavra-musicalizada, na linguagem dialogada, no colóquio de idéias sutilizadas em música que reside a característica essencial da obra de Mozart. O contraste de temas ainda não é conflito, como será em Beethoven, nem incitamento à ação, como em Wagner. É diálogo. Conversação. Comunicação dotada de misteriosa pureza e desconcertante simplicidade.

Realmente desconcertante é a simplicidade do desenvolvimento mozartiano que parece repetir-se e que nunca incide no lugar-comum da falsa simplicidade, o da simplicidade que vem da pobreza. A transparência de Mozart vem da ordenação suprema que dá aos cristais o brilho translúcido. O “ramo de Salzburgo” de que se serve Sthendal para descrever a quinta fase do nascimento do amor, nunca se cristalizou tão claro e tão cintilante como na obra desse menino que há duzentos anos nasceu em Salzburgo.

E é por causa dessa substancial e riquíssima simplicidade, e por causa do essencial caráter de diálogo, apaixonado e contido, emotivo e discreto, contrastado e cordial, que a música de Mozart resiste às interpretações que vão do comedimento “triplesec” que o crítico Nathan Broder assinalou na execução de Walter Gieseking, até a imoderação temperamental que o mesmo crítico atribui a Lili Kraus. “But the ideal Mozart piano performances”, diz ainda Nathan Broder, “in this imperfect world, are still something we shall have to dream about”.

Também eu, apesar de leigo e bárbaro, continuo a sonhar com uma interpretação ideal do maravilhoso concerto para piano e orquestra, em si bemol maior (K 595), o último que Mozart compôs, doente, triste, esmagado pela miséria, guilhotinado em movimento lento pela estupidez do mundo e pela transição dos regimes.

Celebrei o segundo centenário de Wolfgang Amadeus Mozart ouvindo sozinho, com peso na alma, esse concerto que recentemente me deram em LP tocado por Ingrid Haebler. Tecnicamente mais bem gravado do que os meus velhos discos de Schanabel, Ingrid Haebler, sobretudo no larghetto, que executa quase em andante, deixou-me a sonhar, a desejar um “Less imperfect world” em que se possa ouvir, condignamente gravado e condignamente tocado, o vigésimo-sétimo concerto de Mozart. Mas assim mesmo, malgrado a deficiência do interprete, eu pude galgar dois séculos, e estive uma hora a conversar com o luminoso menino de Salzburgo.

Fevereiro, 1956.

(publicado em DEZ ANOS, Editora Agir)

Detalhes da Ressurreição Meu Caro,

Não lhe respondi há mais tempo por causa do meu olho esquerdo. Deu-lhe para arder e purgar, faz uma semana, obrigando-me a uma prolongada piscadela que tem muito menos malícia do que melancolia. Não consigo ler nem escrever. Se insisto, fechando o esquerdo, doe-me o direito pelo descostume de andar sozinho. Vencendo a repugnância pela medicina fui afinal ao oculista. Recebeu-me com a benevolente afabilidade do indivíduo que já viu muita desgraça começar num grão de cisco e que, por isso, resolveu adotar até o termo de seus dias uma bondosa indiferença diante das córneas injetadas. Sentou-me numa cadeira metálica, dentro de uma sala escura, muniu-se de microscópicas lanternas, e pôs-se a viajar na bola do meu olho, sabiamente, de polo a polo.

Ao cabo de alguns minutos deu-se por satisfeito e recomendou-me a imediata extração dos dentes suspeitos, insistindo que era urgente. Fui dali ao raio X; do raio à farmácia; da farmácia ao dentista. E cá estou eu sem os dentes, não me parecendo que o olho tenha melhorado.

Agora, mais dolorido do que nunca, fico a pensar na tirania da medicina moderna. A ela se aplica perfeitamente a palavra de um inglês, dizendo que cada dia o médico conhece "more and more about less and less". O especialista é o homem que conhece bem uma pequenina região desse todo que é tudo; mas, em compensação, investe-se de imensa autoridade sobre as vastas regiões ignotas. Para salvar um olho, o oculista manda arrancar meia dúzia de dentes. Haverá casos, suponho, em que se deva arrancar o olho para salvar os dentes. Nas situações mais complexas (continuo a supor) competirá ao doente a escolha do que prefere poupar, não se devendo pensar ingenuamente que entre o olho e o dente não haja margem para hesitações. São grandezas heterogêneas, e portanto de difícil comparação.

É verdade que o dente faz menos falta para ler, escrever, andar e ganhar o pão de cada dia. Para comer o pão faz falta; mas lá o cirurgião ficou de me arranjar uma máquina de mastigar. Com o tempo a gente se habitua, mesmo porque a mastigação é uma das operações mais mecânicas do corpo, não havendo muito o que variar no modo de triturar, em que tanto valem os autênticos como os falsos dentes. Concedo; mas quem me arranjará uma máquina de sorrir?

Alías, essa questão da escolha entre um e outro fica prejudicada porque é possível, em muitos casos, que o sujeito fique sem os dentes e sem o olho. Disseme o especialista, o do olho, que o número de cegos é hoje muito menor do que no tempo de nossos avós. Certamente. Estão aí as estatísticas. Não duvido. Mas, em compensação, os cegos de hoje, até chegarem à cegueira, já sofreram uma série de

mutilações. Em lugar do ceguinho dos tempos românticos, lépido e inteiro, subsistirá apenas um ser informe, aparado, um tronco vagamente liso e oval, que as pessoas da família carregarão com cuidado para aconchegar ao canto de um sofá. *

Estava eu neste ponto de minhas amargas divagações sobre a desintegração do corpo humano, essa espécie de lepra organizada em nome da ciência, quando me acudiu à mente uma idéia divertida. Meu caro, nós cremos na ressurreição da carne. Ora, este artigo de fé, que eu sempre tomara em grosso, e vagamente, aparece-me agora na nitidez dos detalhes.

Na verdade, meu caro, nós raramente sabemos opor à ciência dos especialistas, robusta pelos detalhes, uma Fé que também desça às minúcias das coisas concretas. Parece-nos muitas vezes que o melhor modo de crer seja o reticente. Pairamos, não digo no mistério que é denso de detalhes mas na névoa das generalidades. Cultivamos uma fé sem curiosidades, no firmamento das essências, além e mais alto do que o céu das existências. Ora, o que existe é o detalhe. O que existe é um dente arrancado; é um olho cansado de piscar em tão prolongada quão descabida malícia. Valha-nos pois a Fé onde o especialista mal nos vale.

Nós cremos na ressurreição. Por isso, quando me lembro de meus pobres incisivos, sangrentos em cima da mesa de vidro do dentista, tão feios e tão ridículos; e quando me vejo agora ao espelho um olho injetado e torto; eu digo de mim para mim, e de mim para Deus, que esses pedaços de mim mesmo debalde se espalharão pelos quatro cantos do mundo; que meus dentes poderão descer nas enxurradas do lixo às profundezas do mar; que a maior das bombas poderá pulverizar o menor dos meus ossos. No dia da ressurreição o Senhor dos Exércitos saberá mui exatamente qual é o meu dente e qual é o meu olho, pois nesse dia a sua misericórdia tomará a si a palavra dura de sua justiça: olho por olho, dente por dente.

(A Ordem, Maio de 1947)

Disparates e contradições do tempo O mundo freqüentemente pretende nos insinuar como boa, até como excelente, a filosofia do fato consumado, pela qual, graças à ação dissolvente ou lubrificante do hábito e da repetição, passamos a considerar com naturalidade aquela mesma coisa que nos provocaria gritos de repulsa ou de susto se não fosse apresentada de repente, nua e crua. Vejam, por exemplo, o comunismo. Querem que o aceitemos, pela simples razão de estar aí, diante de nós, os cronistas e pensadores bem inseridos no artigo do dia que a História lhes inculca, uma ausência de sensibilidade, uma ausência de reação, sob pena de sermos apontados como reacionários. O sr. Foster Dulles era um reacionário porque continuava a ver no comunismo um mal, e não um simples fato histórico.

Por outro lado, a mesma História que oficializa o comunismo e que apresenta como coisa natural a cortina de ferro, e outros fenômenos semelhantes, coloca no banco dos réus um conjunto de fatos que durante muitos anos foram considerados tão simples e naturais como o ato de beber água ou comer pão. Refiro-me ao colonialismo. Está em moda, ao mesmo tempo, ser benevolente, progressista em relação ao comunismo e intolerante em relação ao colonialismo. Um curioso exemplo desse manequim intelectual nos é dado pelo último volume de “Histoire Génerale des Civilisations” editada pelas Presses Universitaires de France, e dirigida por Maurice Crouzet, que neste último tomo, relativo à época contemporânea, é também o principal redator. No capítulo dedicado à revolta dos povos dominados pelas potências ocidentais, que ocorreu depois da guerra, o autor diz o seguinte: “A influência da URSS e, desde 1949, o exemplo chinês, não pode ser subestimada; a URSS, para o problema das relações entre os povos de desigual desenvolvimento econômico e cultural, achou uma solução fundada sobre a igualdade diante da lei, sobre a ausência de qualquer preconceito racial e de qualquer discriminação, e sobre uma política de rápida promoção econômica e intelectual que confia aos autóctones competentes as responsabilidades mais elevadas e visa a apagar todos os vestígios de relação de dominante a dominado; além disso, todas as vezes que surgiu diante da ONU um conflito entre as potências coloniais e as colonizadas, a URSS dá regularmente seu apoio aos povos de cor, enquanto as democracias ocidentais usam a coação e a força armada para manter os colonizados em obediência. Assim, para os povos dominados, a URSS e a China simbolizam a liberação, enquanto a democracia de tipo ocidental aparece como símbolo de dependência dos povos colonizados; as democracias liberais são as primeiras a confirmar esse juízo dos povos coloniais, porque os movimentos nacionalistas são sistematicamente denunciados como movimentos comunistas”.

Há nesta passagem um grosseiro erro filosófico para o qual chamo a atenção do leitor, por estar na moda e por já tê-lo encontrado em textos onde sua presença é menos justificável do que no grosso tomo redigido por um francês esquerdizante. Rata-se do emprego equívoco do termo e do conceito de liberdade. Para o autor daquela passagem, como para tantos cronistas de nossos dias, a noção de liberdade aplica-se primordialmente a nações, povos, raças, e secundariamente a pessoas. Ora, isto é

um erro, e grosseiro. O conceito de liberdade, como o da inteligência, vontade, e tantos outros, se aplica propriamente e diretamente a indivíduos humanos, a pessoas; e é somente depois de bem firmada essa prioridade, que se poderá aplicar aos grupos raciais ou nacionais, o conceito analógico, derivado daquele que diz respeito aos valores realizados na pessoa humana. O que precisa ser liberado é o Homem e não o bloco árabe ou a raça amarela. Se a libertação de algum grupo, em dada conjuntura histórica, vem servir o ideal último de elevação humana e de mais ampla liberdade, entendese que tal emancipação seja ardentemente desejada por quem tiver em alta estima os valores humanos e pessoais. Mas não se entende que um regime escravizador de seus próprios habitantes seja apontado como libertador de povos.

Além disso, cumpre notar um outro erro filosófico que também se insinua nas proposições do tipo daquela que estamos analisando, e que consiste em tomar um povo, uma nação, como uma forma substancial tão definida e tão bem arrematada como a forma de um gato ou de um homem. Fala-se hoje, nos meios nacionalistas, como se as nações fossem entidades orgânicas, monstros dotados de certa imanência vital, ou até como se fossem pessoas. E essa hipostasiação dos grupos nacionais chega freqüentemente ao nível das conversas em que se ouvem em salão de barbeiro, e em que o comentarista de política internacional diz coisas assim: “Então a Inglaterra virou-se para a França e disse...”. Há um erro filosófico semelhante a esse primarismo em quase todas as proposições em que se encontra a famosa fórmula de autodeterminação dos povos. Mas onde é que começa e onde é que acaba o contorno de um povo? E onde é que começa o monstro terrível que é o OUTRO povo? Se respeitamos o critério histórico que aponta uma unidade nacional como um fato da conjuntura, se por exemplo Brasil é o que a história fez que o Brasil fosse, então não vejo porque não seguir o mesmo critério quietista que reconheceria o direito da Inglaterra sobre as Índias.

Também não podemos definir uma nação em termos de raça sem ficarmos obrigados a denunciar quase todas as unidades políticas do mundo presente. Uma nação não é uma natureza, do mesmo modo que é um animal ou um homem. É uma forma acidental. É uma unidade política criada por um consenso, por uma unidade interna, e portanto definida em última análise em termos de consciência pessoal e de dimensões humanas. A independência de uma nação só deve ser desejada ou definida por homens sensatos em termos da independência de seus habitantes e do estado de maturidade de um unânime desejo interno dessa independência nacional. Vê-se pois, que a famosa autodeterminação dos povos só forma sentido e só pode ser pronunciada por quem crê na autodeterminação do homem, por quem preza a vertical do espírito, por quem professa a essencial liberdade da alma humana. E por aí se percebe o ridículo daquela passagem do historiador francês que, com a maior seriedade do mundo, fala na ação libertadora da URSS.

Há naquela passagem citada, e nas congêneres, uma curiosa contradição, além dos erros filosóficos já apontados: a URSS é elogiada em termos de justiça, isto é, em termos que significam a mais categórica e formal reprovação de toda a sua doutrina. Eu, se fosse comunista, ficaria furioso com que viesse atribuir-me intenções de justiça ou aspiração de liberdade. O elogio tem suas regras sutis. Quem quer elogiar o salteador deve gabar a destreza de sua mão e sobretudo a ausência de qualquer

escrúpulo. Quem deseja agradar o elegante deve escrever essas coisas que vêm nas colunas sociais e que teriam gosto de desaforo para quem não estiver bem instalado nas regras da boa vida. Os seguidores ou simpatizantes desse esquerdismo que pensam ser a regra de ouro do futuro não parecem perceber que o materialismo ateu deve ser acompanhado de certas conseqüências duras. Em um ensaio sobre o humanismo de seu existencialismo, Sartre queixava-se, e com muita razão, do ateísmo burguês que continua a usar as mesmas categorias verbais usadas no tempo em que ainda estava vivo o Criador de todas as coisas. É quase com piedade, quase graças a Deus, que esses ateus são ateus. Assim também são esses comentaristas que não gostavam de Foster Dulles, que não gostam de Adenauer e que certamente não gostaram das lágrimas de Eisenhower. A admiração deles está volta para o Oriente, de onde eles pensam que está vindo o mundo de amanhã. Olham enternecidamente para o casaco de Mao-Tse-Tung, que lá para eles deve ter força de símbolo, e símbolo de esperança.

E é nessa viscosidade intelectual que temos de viver e lutar, se quisermos praticar a teimosia de resistir, de defender os valores fundamentais que dão sentido a todas as outras palavras e frases com que se enchem as colunas de jornais e as páginas de livros.

Encontros com Oswald de Andrade Foi há dois anos, creio eu, que tive um primeiro rápido encontro na porta de uma livraria com Oswald de Andrade, e a primeira impressão que logo me assaltou foi a de estar começando uma amizade, um jogo, com um menino guloso, truculento, direito e bom. Mal me lembram as palavras que dissemos e os assuntos que abordamos. Ele mesmo procurara essa aproximação. Queria saber como eu era; queria tirar a limpo o conflito, o desajuste ou a contradição que julgava existir entre meus livros e meu catolicismo. Ou melhor, e com palavras suas, desejava verificar se eu possuía um “catolicismo de Botafogo” ou algum outro de espécie mais admissível. E verrumava-me com aqueles ferozes olhos azuis que dias depois, em conversa mais íntima, deixaram escapar reflexos de ternura.

Ficamos amigos, amigos de uma amizade absurda e incompatível que resistiu a todos choques de idéias e que, apesar do abalo produzido pelo livro “horrivelmente dogmático” que publiquei um ano mais tarde, durou até o seu último dia.

Na conversa que tivemos uma noite em minha casa, ele me ouvia com a atenção de um gato que acompanha uma presa, e de vez em quando, sem despegar de mim os olhos, fazia um gesto para a Antonieta Alkmin, que assistia silenciosa ao primeiro “round” de nossa amizade: — Olha a cara dele, Antonieta!

Não sei o que via ou o que procurava na minha cara. Sei que me embaraçava por não conseguir corresponder à generosidade de seu interesse por meu mundo. Tudo nos separava. Seus autores não eram os meus, suas admirações estavam longe de ser as minhas, e, além disso, para acréscimo de dificuldade, quase nada conhecia eu de sua história e de sua obra. Não acreditava muito na sua antropofagia, e embora pouco mais moço, nem de longe participara do famoso movimento modernista que ainda hoje me parece um jovial equívoco de uma irreverente geração. Naquele tempo eu andava pelos sertões deste desconhecido Brasil a fazer coordenadas astronômicas, e só muito raramente percebia que a cultura andava em pânico, e que os ídolos acadêmicos eram derrubados por uma dúzia de alegres iconoclastas.

No caso foi bom. Foi bom que eu não pudesse corresponder ao seu interesse, que eu não pudesse em sã consciência elogiar sua obra, que eu mal conhecesse seu passado e seus livros, porque essa embaraçosa situação me permitiu descobrir a largueza de alma de meu novo amigo, o velho Oswald de Andrade. Não é fácil para um escritor curtido no ofício, para um autor que sente passar seu efêmero momento, que vê transformar-se em sedimentos de saudade o que um dia fora uma vulcânica esperança, interessar-se por um novo autor que aparece tarde e segue itinerários tão diferentes. Oswald de Andrade suportou magnificamente essa prova, e posso afiançar que não lhe vi um só sinal de ressentimento em cada ocasião que não pude evitar a evidência do desencontro de nossas órbitas.

O incômodo foi para mim remunerador, pois não há mais grata experiência do que a descoberta de uma generosidade. E julgo estar certo se tiro dessa grandeza do homem a explicação de sua filosofia antropofágica, que mais seria uma doutrina de bom apetite, de larga abertura para o mundo e para os outros do que cruel teoria de entredevoração social.

O século dezenove foi marcado por uma concepção da sociabilidade que postula a antinomia entre o indivíduo e a sociedade e que fundamenta o convívio na luta. O essencial, o formal da convivência humana, de Rousseau a Marx, do individualismo liberal ao totalitarismo, não é a amizade cívica de Aristóteles e dos escolásticos; é antes o duelo de morte, a luta pela vida, é em suma o egoísmo, a inimizade, cruel em Nietzche, esportiva em Malthus e Darwin. O homem é o animal de rapina de Spengler, ou o mais apto sobrevivente de um torneio de símios. E para outros, na extrema esquerda, a parusia de uma sociedade perfeita tem de ser dialeticamente atingida pela luta de classes. Nesse clima cultural, que nas crises agudas produzirá o nazismo e no estado crônico constitui a disciplinação meramente extrínseca do egoísmo burguês, a antropofagia de Oswald de Andrade nada teria de original e muito menos de moderno, e sobretudo nada teria de elevado, embora, para a maioria das pessoas que vez por outra correm os olhos pelo mundo, a descoberta da ferocidade humana pareça constituir um vértice de suprema sabedoria. Penso, porém, que a filosofia de Oswald de Andrade era mais uma avidez que uma crueldade.

Estou com Antonio Cândido, no seu Prefácio Inútil a Um Homem sem Profissão (Oswald de Andrade, Ed. José Olímpio), em pensar que a antropofagia de Oswald de Andrade tem raízes numa cosmovisão, e, diria eu, numa espécie de dilatação do estômago espiritual.

Bom apetite, excelente boca, ele via o mundo como um colossal e inextinguível alimento, e atirava-se na vida, até os sessenta anos, como um faminto que se precipita sobre as iguarias de um banquete. Por isso, enquanto eu, enfastiado, afastava de mim o requentado modernismo, e apenas provara seus livros, Oswald de Andrade engolira os meus, só deixando na beira do prato os espinhos mais duros do dogma.

Vi-o pela última vez no Hospital das Clínicas de São Paulo. Depois de uma emocionante aventura, em que me parecida estar atravessando a cortina de ferro com passaportes falsos, consegui entrar na fortaleza das clínicas paulistas e graças à intervenção de um moço que... mas isto é outra história — cheguei ao quarto letra tal, número tanto, onde o velho modernista se refazia de recente e difícil operação na cabeça.

Magro, envelhecido, estava quase irreconhecível. O turbante manchado de sangue, que lhe envolvia a cabeça, tapando o olho direito, dava ao esquerdo uma redobrada ferocidade de pirata da Ilha do Tesouro. Quando entrei, a admirável Antonieta Alkmin atava-lhe ao pescoço um enorme guardanapo, e

apressava-se a servir um prato de canjica cheio até a beira, que ele reclamava com rugidos de impaciência.

Quem é você? Gritou vendo-me entrar. Pregou em mim o olho disponível sem conseguir decifrar minha identidade na penumbra do quarto. Antonieta disselhe quem era, e logo o olho duro e metálico revestiuse de uma doçura de hortênsia. Abraçamo-nos. Entre duas colheradas sorvidas vorazmente perguntava-me se estava escrevendo outro livro e interessava-se por meus projetos. Devorava a canjica, e devorava-me a mim, com a mesma grande fome, com a mesma grande boca aberta para a vida e para o mundo. Antonieta, a excelente e compassiva Antonieta, fazia-me agora por trás dele, sinais misteriosos. Apontava com insistência para a própria blusa e depois para o companheiro coroado de sangue. Entendi afinal que devia olhar para o peito de Oswald, e descobri então meia dúzia de santinhos pregados no seu pijama. Ali estavam as medalhas de nosso bravo corsário, as condecorações de suas últimas façanhas. Notando uma delas, uma humilde medalhinha milagrosa de alumínio, pedi à Virgem Santíssima que tomasse conta daquele filho voraz e que lhe ensinasse aquela passagem de seu cântico — esurientes implevit bonis1 — que é um compêndio de filosofia antropofágica do céu.

O Globo, em 4 de novembro de 1971

G.K.Chesterton Graças à vigilância de Antônio Olinto, na sua “Porta de Livraria” de O Globo, chego ainda a tempo para saudar o centenário de G. K. Chesterton, o incomparável escritor inglês que mais indelevelmente me marcou a alma nos dias em que andei perdido pelo mundo a procurar uma luz, luz de João e Maria, luz de Casa, luz de acolhimento entre as trevas de meu triste exílio. Devo a Chesterton as primeiras alegrias católicas. No seu grande livro, Ortodoxy, onde esteve mais à vontade para atirar nos braços da cruz seu jogo de inebriantes paradoxos, entre outras descobertas maravilhosas do cristianismo, ele nos diz aquilo que Cristo de si mesmo nos escondeu: “There was some one thing that was too great for God to show us when He walked upon our earth; and I have sometimes fancied that it was His mirth.” Tentemos traduzir estas palavras de ouro com que Chesterton fecha sua obra-prima: “Uma coisa houve que era n’Ele grande demais para nos ser mostrada enquanto Ele andou por este mundo, e eu penso às vezes que foi sua alegria”. Ou seu riso. Ou seu júbilo. O termo mirth é aqui intraduzível. E ouso dizer que o grande poeta da língua fechou seu livro-jóia sabendo bem que só podia encerrar com um termo impróprio, tratando-se de coisa que esteve sempre presente e todavia escondida na vida de Jesus.

Outro notável inglês deixou-nos, sobre a poesia, uma definição inesquecível: “poetry is emotion recollected in tranquility”; donde nós tiramos uma definição de liturgia: “liturgy is passion recollected in tranquillity”, cujo teor paradoxal, próprio do Mistério da Fé, parece mostrar, sob as aparências do júbilo e da festa, a dor e o Sangue de nossa Redenção. Fiel a esse espírito, Chesterton não procurou nos seus tão admirados paradoxos fazer acrobacias verbais, e muito menos procurou jogos para agradar os jovens e os imaturos. Pascal, com seu timbre de abismos, não é mais trágico nem mais sério do que Gilbert Keith Chesterton, em cuja obra, como disse atrás, eu tive a felicidade de encontrar no caminho daquilo que Jesus nos escondeu, isto é, das mais puras e vivas alegrias católicas deste mundo. Com um extraordinário vigor do Dom da Ciência, que está na linha da Fé e da Esperança, isto é, das virtudes peregrinas, Chesterton viu que o mundo, e mais fortemente os dias deste século de corrida atrás do vento, está desconcertado, subvertido, de cabeça para baixo, e então, para poder descobrir melhor seus erros e suas malícias, punha-se ele mesmo freqüentemente de pernas para o ar. Sua obra de apologia, assim condicionada, fazia função de revulsivo, de purgativo, e operava inopinadas restaurações nos desconcertos do mundo. O personagem principal de O poeta e os loucos era ágil, nessa ginástica, e, em quase todos os contos dessa série, quem diz loucuras é o sábio, o sisudo, o poeta, o sério; e quem fazia as mais desvairadas loucuras era o homem pausado, equilibrado na representação diplomática dos desvarios do tempo.

Chesterton criou, depois de Edgar Poe e Conan Doyle, o tipo de novela policial em que o genial investigador, longe de ser o esmiuçador sagaz e raciocinante, era o Padre Brown, o Padre Vicente O.F.M., seu amado confessor, que tinha os olhos lavados pela Fé e pelo colírio das lágrimas e assim conseguia, mesmo cochilando, descobrir os meandros da malícia mais pela ingenuidade do que pela sagacidade. Em A Esfera e a Cruz, espécie de romance simbólico e apocalíptico, reaparece o

personagem obsessivo de Chesterton, em luta implacável, mas por fim, cordialíssima, com o ateísmo desvairado da época. Na verdade, porém, não é o ateu Tornbull o adversário; não, em A Esfera e a Cruz, o espírito hediondo que Chesterton detesta, como detesta o Diabo, é o liberalismo que pretende evitar o confronto e a luta entre o Bem e o Mal. O personagem mais repugnante da sucessão de figuras que se levantam contra o Combate é o pacifista, contra o qual Chesterton não disfarça sua náusea extrema. Porque Chesterton foi sempre guerreiro. Em tempo e contratempo combateu o bom combate, e guardou a Fé até o momento supremo em que o Padre Vicente, depois de ministrar-lhe a extremaunção, ajoelhou-se aos pés da cama do agonizante e com piedade profunda beijou a pena que estava à mesa-de-cabeceira, como que a descansa-la também, depois de ter escrito mais de oitenta volumes a serviço de seu Rei e de sua Dama.

Grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton, que souberam desarmar, denunciar, desmascarar os ídolos, os ideais dos tempos modernos, que não passam das “antigas virtudes cristãs tornadas loucas” ou perversas.

Na falta dessa leitura saudável, tônica, fortificante, curativa, inebriante do melhor espírito, surgiu em seu lugar, a fazer um sucesso editorial que deveria ruborizar o planeta Terra e empalidecer o planeta Marte, surgiu o repulsivo impostor Teilhard de Chardin, que renega a Fé, abandona os mestre da Companhia de Jesus e da Igreja, para inventar uma gnose tola, de medíocre ciência ensopada com religião ainda pior, graças a cuja fétida composição consegue atrair os espíritos fracos.

Não me canso de agradecer a Deus o fato de ter encontrado Chesterton nos dias de desolação em que, sempre crendo em Deus-Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, das coisas visíveis e invisíveis, não conseguia, entretanto, encontrar a alameda e a porta de Sua Casa. A par de todos os defeitos e imperfeições, tenho a alma muito agradecida, porque desde cedo até tarde, na tarde da vida, deu-me Deus a ventura de sentir a dependência em que vivi, de minha mãe, de meus irmãos, de meus alunos, de meus professores, de todos os que neste longo trajeto que já se aproxima do marco assinalado pelo salmista para os vigorosos, sim, sempre tive a ventura de sentir muito melhor o bem que me fizeram e que especialmente reservo aos que me ajudaram na morte para o mundo. E entre esses reservo um especial lugar no altar que hoje adornei em meu velho coração para lembra G. K. Chesterton.

O resto desta apologia e deste estudo está no livro Três alqueires e uma vaca, que escrevi quando, graças a Chesterton, entre tantos autores e amigos, consegui passar no vestibular da Casa do Pai, isto é, consegui voltar à Fé e à Igreja de meu batismo. Ave Maria!

O Globo 06/06/1974.

Lembrança de Bernanos A Fernando Carneiro O primeiro sentimento que me veio, quando Fernando Carneiro me comunicou por telefone a morte de Bernanos, foi uma falta enorme, instantânea, brusca, como se aquele homem que apenas encontrara meia dúzia de vezes, e que se achava perdido para mim, “somewhere in France”, estivesse ligado à minha vida com os vínculos de uma antiga amizade. E estava. Realmente, estava. Sem que eu mesmo o soubesse, Bernanos tinha deixado em mim a marca inapagável de um contato verdadeiramente humano. Um minuto antes da notícia, mal me lembrava de seu vulto, de sua voz, de suas bengalas, de sua cólera pronta e de sua prontíssima ternura. Agora, pondo o fone no gancho, eu sentia crescer em mim, por todos os lados, em torno, atrás, adiante, nas recordações e nas esperanças uma falta enorme.

Desenhava-se, com a nitidez das coisas duras que se partem, os contornos do buraco que acabara de me engolir um amigo. E eu via, ampliados e detalhados, o que deveriam ter sido os nossos poucos encontros – e o que não foram. A sensação crispada de uma frustração assaltava-me lembrando cada conversa nossa, cada gesto, cada tentativa de entendimento perfeito que se havia detido em nossos duros limites. Mesmo agora, poucos dias atrás, eu devia ter escrito uma carta – e não a escrevi. Devia ter enviado umas revistas em que nós o defendíamos e que certamente lhe dariam prazer – e não as enviei. Adiara a carta, protelara a remessa das revistas, calculando, como se costuma fazer entre vivos, que o tempo é ilimitado e a vida inextinguível. A morte projeta uma luz rasante e crua que tem a esquisita propriedade de exaltar as minudências de um passado perdido, transformando a lembrança aparentemente mais clara e mais lisa numa paisagem lunar com suas montanhas e crateras. Que importância tem agora a carta que interrompi e que não enviarei hoje a um amigo distante que ainda pertence à orgulhosa aristocracia dos vivos? Nenhuma, evidentemente. Que importância tem o gesto de enfado com que hoje afasto a criança que me puxa pelas calças? Nenhuma, evidentemente. E o telefone que não toquei, e a mão que encolhi, e a visita que adiei? A vida é uma planície imensa mal varrida, cheia de quinquilharias inúteis: cacos de gestos, cacos de palavras, por aqui, por ali, dificultando os passos... quantas vezes temos vontade de proceder a uma sistemática eliminação de incômodos, e de por um pouco de ordem nesse chão cheio de escombros? Chega então a morte, e de repente, no cemitério das lembranças truncadas, corre um frêmito de vida. E as lembranças aleijadas se levantam, e tudo na vida passada nos parece abortivo e irremediável. Quem poderia adivinhar que aquele desenho de criança, representando uma casinha no alto de um morro, com um sol ingenuamente dardejante por trás, seria contemplado com religioso temor, à luz da morte, por entre a névoa das lágrimas? A mãe do menino atropelado desculpa-se de ter posto fora os outros desenhos. O irmão do menino atropelado chora de ter comido na véspera o pedaço maior da sobremesa. E tudo isto, entre nós, os vivos, os orgulhosos vivos, que não sentiram o gosto dos abismos, parece ridículo, insensato, passageiro, porque entre nós parece estar definitivamente estabelecido que essas coisas miúdas são o lixo da vida. O que no primeiro momento mais se chora no morto não é falta que se adivinha para amanhã ou depois: é a falta atroz que ele já faz no passado. É a decepção, é o sentimento agudo de uma

frustração naquilo mesmo que mais solidamente nos parecia adjudicado. A falta que o morto irá fazer dia por dia, no futuro, essa, chegará a seu tempo envolta numa tristeza que, de certo modo, é boa e harmoniosa. Imaginamos facilmente encontros perfeitos, soluções perfeitas, se o morto estivesse ali. Ao contrário, a retrospecção, diante da morte, deixa-nos o gosto amargo dos encontros imperfeitos e das soluções imperfeitas. E o peso do nunca-mais nos oprime intoleravelmente. Nós não precisamos corar da boa e humilde saudade de nossos mortos; nem precisamos pensar que a Fé e a Esperança nos proíbem as lágrimas da saudade. Mas o que não devemos permitir, de modo algum, é que se instale em nós esse primeiro dardo com que a notícia da morte nos fere. Eu gostaria de dizer a quem tenha seus mortos, à mãe do menino atropelado, ao irmão que chora hoje pelo olho-grande de ontem, e aos outros, que têm seus mortos, que a tristeza de não ter dado o que devia ter sido dado tem uma solução perfeita. O insulto que a morte nos causa não pode ser vencido pela Fé e pela Esperança, que são virtudes da peregrinação. A idéia de que o morto esteja no céu, e o consolo de esperar que lá o encontraremos, não basta entretanto para curar a ferida das faltas que ficaram para trás. Precisamos abraçar-nos à virtude que não passa, à Caridade, que é a única que vence a morte e que desconhece a separação entre o passado e o futuro. A solução perfeita desta tremenda sabatina da morte está na transferência das dívidas. Pague-se aos outros o que já não se pode pagar ao que morreu, e vem tudo a dar na mesma, e vem tudo se encontrar na mesma pirâmide de ofertas e donativos, o patrimônio da comunhão dos santos, de cuja distribuição Deus mesmo se encarrega. Valha-nos agora essa angústia passageira causada pelo invisível para que melhor sirvamos o visível, e assim o morto começa logo na eternidade o seu ofício de advogado dos vivos. * A falta que senti de Bernanos, brusca, instantânea, era dessa amarga espécie, feita de retrospecções. Não se tratava do buraco enorme, difícil de preencher. Não me lembrei de Bernanos escritor, de Bernanos grande, de Bernanos genial, senão mais tarde, no dia seguinte, lendo o jornal. Lembrei-me de Bernanos-Bernanos. No momento em que depus o fone no gancho, mal acabando de ouvir a voz perturbada de Carneiro, não me passou pela idéia escrever um artigo que começasse assim: “Calou-se uma grande voz...”. Não me ocorreu escrever artigo nenhum; e efetivamente não o escrevi; mas não me gabo disto, porque seria melhor ter escrito. O que me surgiu pela frente, naquele instante, foi o decalque, o negativo absoluto da figura de Bernanos, viva, pessoal, única, para me cobrar as oportunidades perdidas. E andei longo tempo, sentindo do morto a saudade que não sentira do vivo, até conseguir alinhavar, para os outros, para o que desse e viesse, essa meia dúzia de páginas de recordações. * Foi numa tarde de domingo, há três ou quatro anos, que recebi pelo telefone o aviso — e até diria o apelo — do amigo Fernando Carneiro: — Bernanos está aqui. Em casa de Murilo! Venha! Venha!

Larguei o jornal que estava lendo e expliquei à minha mulher a natureza e a procedência do recado, acrescentando que não me esperasse para o jantar. Desci a rua contente. Ia ver Bernanos. Mas — levado pelo péssimo costume de discutir tudo comigo mesmo, e de analisar e esmiuçar as razões dos menores prazeres, arriscando-me a achar a razão perdendo o prazer, ou levado talvez pelo comodismo domingueiro que me censurava o abandono do jornal e da poltrona — pus-me logo a criticar esse desejo de ver Bernanos, essa fútil curiosidade, como se possa haver o que mereça ser visto num autor de livros. De fato, o que ele tinha de melhor estava-me ao alcance da mão, sem por a gravata e sem tomar o ônibus. Bastava tirar um volume da estante para ter Bernanos, a melhor parte de Bernanos. Bastava abrir Journal d’un Cure de Campagne ou Lettre aux Anglais, para receber, com segurança e conforto, as golfadas de gênio do escritor que ousou dizer o escândalo da verdade, e ousou sondar o escândalo da santidade. Além disso, desde aquele tempo, embora não tanto como hoje, eu já tinha uma sadia aversão por essas reuniões de pessoas implacavelmente condenadas a só dizerem coisas interessantes. Gostava de visitar Murilo, aquele doente que a gente ia ver para sair confortado. Gostaria de conversar com Bernanos, se pudesse começar pela centésima vez. Mas a idéia daquele encontro arranjado e fugaz, que mal daria tempo para vencer as primeiras dificuldades do vocabulário, fazia crescer em mim o desejo de voltar atrás trocando Bernanos pelo livro e a caminhada pela poltrona. Felizmente — digo-o hoje, depois de saber que Bernanos morreu — o meu discurso interior durou tanto quanto a caminhada e quando chegava à pessimista conclusão sobre o valor das conversas literárias, estava diante do portão da velha casa em que Murilo morava. E, fosse pela lei do quadrado da distância, fosse pela vitória da simplicidade sobre os retorcidos meandros de minha dialética, o fato é que entrei. * Anoitecia. O casarão, recuado da rua enfronhado entre as árvores de um velho jardim de outrora, parecia esconder-se dos indiscretos, como um fidalgo arruinado que disfarçasse a pobreza. O portão era pesado e rangia. Onde e quando empurrara eu assim, faz muito tempo, um portão pesado que rangia? Indecisamente, oscilando entre as calças curtas e o despontar do bigode, ora moço, ora menino, entrei pelo jardim a dentro, sem saber se era brinquedo ou chicote queimado ou encontro de namorada. Dois patos, graves e pachorrentos como duas tias velhas de muito antigamente, passaram falando qualquer coisa de mim — do menino travesso ou do moço galante — e desapareceram na sombra, continuando a conversa, cuáh-cuáh-cuáh ..., num tom mexeriqueiro e confidencial. Abriu-me a porta uma senhora idosa, alta e magra, que trazia um gato ao colo. Fez-me um sinal misterioso; exatamente o que deveria fazer se nós dois tivéssemos saído, naquele instante, duma estampa de livro de aventuras e crimes. Atravessei uma sala de estar espaçosa e mal iluminada, onde cinco ou seis pessoas de nacionalidades indecifráveis conversavam com cicios, como se conspirassem, entre a fumaça dos cigarros. Ao pé da escada um gato preto, que lambia um pires de leite, olhou-me com maldade e fugiu, pondo ao canto desse quadro, já sombrio, uma sinuosa pincelada negra.

Subi uma escada imensa que me deixou num corredor ainda mais escuro. No fundo, à direita, uma fresta de luz, uma porta, um retrato de Mozart: era o quarto de Murilo. * Nessa noite o quarto estava cheio. Perdi-me na confusão dos boas noites, uns em francês, outros em vernáculo, e foi só depois de me instalar numa cadeira ao canto, perto da porta, e depois de me aliviar da humilhante sensação de recém-chegado, que pude reparar em Bernanos. Bernanos, no centro do quarto, sentado numa cadeira de braços, estava sendo torturado pelos quatro cavalos da amizade e da admiração. Parecia cansado e angustiado. Enquanto um senhor desconhecido, grego, rumáico ou tcheco, tentava em vão economizar Bernanos, Carneiro, do outro lado, sentado num tamborete baixo, procurava acender o misterioso pavio que fizesse explodir a mina da esperada e generosa indignação. Bernanos pareceu-me uma montanha. Estava sendo explorado. Estava sendo escalado, percorrido, sondado por mineiros ávidos de novos filões. Ou então era um navio, um enorme e velho navio de muitas viagens, que tivesse encalhado ali em país exótico, com os porões abarrotados de tesouros... * Na rua choviscava. Bernanos, apoiado em suas bengalas, recusava-se a acompanhar Carneiro, queixando-se do cansaço, da angústia, da escada imensa que mal conseguira vencer com suas pernas entropiadas, e que descera depois, a força das bengalas, com o estrépito de um centauro doente. Carneiro bem sabia como ele estava doente, como sofria, e assim mesmo fizera-o falar diante daquelas pessoas. Que dissera ele? Que dissera ele àquelas pessoas? Que esperava Carneiro que ele pudesse dizer àquelas pessoas que lá o tinham ido escutar? Mas Carneiro, esquivando-se às objurgatórias do artista inquieto de como falara, e do arauto preocupado com o que falara, puxou pelo menino escondido dentro do velho atleta, e levou-o dali, já docilmente, embora ainda a gemer, para um jantar no Recreio, sou les arbres. Escolhemos porém a mesa na varanda, por causa da chuva, que crescera. Bernanos mal percebeu a falta das árvores. Sentado diante de mim, cotovelos fincados na mesa, capa impermeável aberta no peito, chapéu do mesmo pano, amassado, e posto de qualquer jeito no alto da cabeça, ele me parecia agora um recém-chegado de dolorosa peregrinação que ainda trouxesse no rosto a agonia dos naufrágios e o susto das emboscadas. Ali estava George Bernanos. Agüentava a cabeça fatigada nas mãos, e os dedos entravam pelas carnes do rosto envelhecido, indo esmagar o olho esquerdo que tomava posições e proporções cômicas, enquanto o outro, livre da brutal trituração, guardava a serenidade e a candura de um olho azul de criança. Ali estava George Bernanos. O autor de Sous le Soleil de Satan. O francês de verbo fustigante que viera ao Brasil “cuver as honte”. O bom cristão que, pelo menos, não tinha a pesar na consciência o

crime de calar a justa indignação e a vergonha de fazer da mediocridade um estandarte e um voto. Provocado por Carneiro, pôs-se a contar que passara toda a manhã em São Bento, que conversara muito com o Père Paul, que recebera a santa comunhão na capela... e logo, num salto brusco, pôs-se a rugir contra o barroco da igreja, e contra o especial estilo de cristandade inventado pelos portugueses. E enquanto ele falava, parecia-me ver no seu olho direito (porque o esquerdo, cada vez mais macerado, parecia prestes a saltar) o itinerário daquele peregrino. Não sei por que, se pela capa mal abotoada, ou pelo fato de ser um estrangeiro, voltava-me com persistência a idéia de que era um recém-chegado. “Quelqu’un qui vient d’arriver”. E que, depois de comer com pressa, vai continuar, agarrado às suas bengalas, a jornada apenas interrompida. Bernanos, não sei porque, não me deixava pensar em coisas quietas e estáveis: em família, em casa, em jardins. Ao contrário, o panorama que obscuramente corria por trás de suas palavras, eram quilhas erguidas nas ondas, ou eram cavalos fogosos com crinas ao vento, em planícies imensas vistas num relance, da janela de um trem, e longe, lá num horizonte de sonho, as montanhas roxas, como um renque de enormes hortênsias de pedra. Mas, esse itinerário que eu via na transparência de seu olho, agora perdido num ponto do espaço, acima de nossas cabeças, era o da aventura nascida na infância, e continuada no obstinado menino que aquele hercúleo São Cristóvão carregava pelas águas. Ele diz que esse menino morreu: “Le plus mort des morts est le petit garçon que je fus...” Mas já contava com esse morto supervivo para o instante supremo, esse de que Carneiro me deu notícia há pouco pelo telefone: “... et pourtant, l’heure venue, c’est lui qui reprenda as place a la tête de ma vie, rassemblera mês pauvres années jusqu’a la dernière, et, comme um jeune chef ralliant ses veterans et la troupe em desordre, entrera le premier dans la Maison du Père”. Bernanos continuava a falar. Ora exaltado, ora enternecido. Sua indignação, aliás, não é outra coisa senão a viril manifestação de sua infantil e inesgotável capacidade de se enternecer. Como poucos, ele sente os contrastes. Sente o claro-escuro do mundo. Adivinha a tragédia de seu tempo. E debate-se entre um mundo de traficantes, e um mundo de maravilhas. Foi então que Fernando Carneiro, aproveitando um silêncio maior, e usando o quase privilégio seu de improvisar situações absurdas, perguntou: — Bernanos, você gosta deste meu amigo? Em condições ordinárias essa pergunta teria uma enorme banalidade ou uma chocante impropriedade. No caso, de absurda, tornou-se simples e natural. Em lugar de responder logo com amabilidade, ou de esquivar-se com um subterfúgio, Bernanos levou a sério a pergunta, e, detendo o discurso que ia recomeçar por cima de nossas cabeças, olhou-me demoradamente, e, por fim, com um sorriso franco e bom, declarou que gostava. Nesse momento exato nós três, Bernanos, Carneiro e eu, poderíamos ter calças curtas e blusas à marinheira, porque, no fogo de uma amizade nova, tínhamos os corações limpos dos meninos de oito anos. (publicado em DEZ ANOS, Editora Agir)

O malogro de um jovem químico Ia eu contar-lhes o resto da história da Astronomia, quando alguém trouxe à baila a estranha resistência vital ou os sete fôlegos dos gatos, e, desviado por essa consideração, fui parar na rua do Matoso, 107, em 1915 ou 1916. Trocara as estrelas pelos átomos, e a minha paixão, uma paixão espanhola, debruçou-se sobre a química. No princípio não era bom aluno na matéria por me faltar o livro... e o quantitativo, como hoje se diz no Ministério da Educação. Numa tarde que suponho dourada e outonal, para colorir a lembrança, abri-me com um colega mais velho que já estava no terceiro ano, livre das retortas. Ele teve um gesto largo e magnânimo: “Eu te empresto o meu...” (Esquecime o nome do autor que naquele tempo era clássico). No dia seguinte o colega, rapaz meticuloso, que tinha um defeito na perna e falava fanhoso, trouxe-me os dois volumes: mas daí por diante, sempre que cruzava comigo, fazia um gesto paternal, feliz, e saudava: — Como vais, químico? A paixão, como costuma aparecer, veio de repente. Até certo ponto eu estudava com aquela disposição morna de todo aluno meio-termo que quer passar nos exames. De repente entrevi uma caverna mais espaçosa e mais maravilhosa que a de Ali Babá, mas não me lembro qual foi o elemento, ou a reação que representou o papel fulminante. O caso é que de certo dia em diante eu sonhava com tubos de ensaio e acordava fazendo projetos de ter um laboratório em casa. Aos poucos fui comprando balões, tubos, lamparinas e as preciosas substâncias que deveriam depois, diante de meus olhos fascinados, dar dimensões de realidade ao que o livro abstratamente prometida. Grande coisa! Grande coisa esse exercício que consiste em debruçarmo-nos sobre o que as coisas são, e em decifrarmos os seus segredos! Mas deixemos para outra pauta as reflexões filosóficas e ouçamos o que a memória nos diz em sua linguagem modesta. Montei um pequeno laboratório no quarto dos fundos do Colégio, e comecei a ser objeto de intensa curiosidade. Na hora do recreio todos os alunos vinham ver os precipitados coloridos dos sais de cobalto e de cromo, ou vinham assistir, estupefatos, à decomposição da água por um processo eletrolítico que eu improvisara. Ganhei fama. Uma fama de duzentos metros de raio. Mas acontece que nesse círculo exíguo estava incluída a casa de duas mocinhas portuguesas, muito belas, que possuíam um gato de estimação. Precisava, para maior clareza, abrir um parêntese de cem páginas a fim de explicar aos moços de hoje como eram as moças de ontem. Na falta de tamanho espaço resumo minha demonstração: eram rigorosamente iguais, e fantasticamente diferentes. Como as igualdades, em regra geral, despertam menor interesse, vamos às diferenças. E a principal residia no fato simples de terem janelas as casas de antigamente. Digo janelas abertas para a rua pouco movimentada e por isso mesmo muito mais divertida, e também abertas para a penumbra das misteriosas salas de visitas como molduras de quadros vivos de Renoirs que se ignoravam.

Tudo isto para dizer que as minhas lindas portuguesas, ora juntas, ora alternadas, costumavam surgir no vão da janela, ao entardecer, e ali ficavam, muito tranqüilas, às vezes bordando algum paninho de pretexto, outras vezes apenas a iluminar a rua do bairro tranqüilo, onde as meninas de tranças cantavam cantigas de roda. Os namoros, freqüentemente, começavam por uma contemplação com a nota predominante da imobilidade. E os meros admiradores, como era o meu caso, passavam pelas janelas floridas tirando o chapéu, boa tarde! boa tarde!, e, sentindo ora mais densas, ora mais tênues, as linhas de força da beleza feminina enquadrada na espera. Sim, na espera. Este vocábulo explica tudo das moças daquele tempo. E nós passávamos e atravessávamos a zona, a nuvem, a atmosfera de expectação. Quantas vezes passei eu debaixo daquela sacada alimentando o sonho de ver a casa incendiar-se e eu ter de saltar o gradil para salvar em meus braços vigorosos a moça desmaiada! Terão os moços de hoje esse sonho predominante? Terão ainda as moças a disposição de desmaiar nos braços do salvador? Receio que não. Mas a verdade manda dizer que nunca tive ocasião de salvar nenhuma donzela aprisionada ou ameaçada de incêndio. A pequena oportunidade que tive de brilhar nessa época, falhou de um modo lamentável, por causa da supracitada resistência dos gatos. Foi assim: o gato de estimação das duas formosuras adoecera e agonizava de um modo espalhafatoso e incômodo. A vizinhança não conseguia dormir. Quando chegou aos ouvidos das moças minha fama de químico, faltando-lhes coragem de matar o bichano a tiro de revólver, mandaram pedir a minha mãe um veneno fulminante. E eu, felicíssimo, elaborei uma mistura terrível de cianeto de mercúrio e não sei mais o quê, que deveria ser mais mortal do que a acqua tofana da Rinacita. Enchi um vidrinho, desenhei no rótulo a caveira com duas tíbias cruzadas, e escrevi num papel as instruções para a eutanásia do gato. O resultado foi medonho: o gato não morreu e até parece que sentiu melhoras. Uivou ainda uns quinze dias desmoralizando assim a Ciência diante da Formosura. Sendo difícil na juventude manter a ciência em estado puro, desinteressada dos olhos negros e pestanudos das morenas bonitas, sentime frustrado. Pode ser que me engane, mas parece-me que foi aquele gato que me desviou da vocação química e me devolveu à astronomia. (11/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência)

O viúvo viu a ave Fiquei então convencido, nesse tempo, de que o mundo estava torto, intencionalmente torto, por malícia humana, para benefício exclusivo da detestada classe burguesa. Não havia tragédia nem mistério de iniqüidade, o que havia era trapaça. Um jeito que se lhe desse e o mundo endireitaria. O erro, sem dúvida alguma, continuaria a existir, mas com aquele caráter que tem na técnica: erro de detalhe, pequeno, estimulante, de cujo desgaste a evolução se encarregaria.

Encontrei amigos velhos e conheci novos. Em todos havia a mesma sanha antiburguesa e a mesma expectativa diante da onda de acontecimentos que engrossava a gravidez do mundo. Estávamos na época da revolução espanhola e assistíamos horrorizados às conseqüências do pacto renovado entre a política clerical, destiladora do ópio do povo, e os burgueses fardados de heróis de opereta, ávidos de poder.

Formamos logo um grupo conspirador onde havia um pouco de tudo o que fosse revolucionário: leninistas, trotskistas e fascistas. Os últimos eram minoria; não olhavam com bons olhos o falangismo por causa do clero e guardavam reservas sobre o racismo alemão. Contentavam-se esses direitistas em arvorar a bandeira da grande raça branca e em citar versos implacáveis de Nietzsche.

Passávamos as noites trocando idéias para a retificação do eixo da Terra, com alarido, gastando generosidade, vivendo uma espécie de adolescência mental, citando autores mal lidos, condenando outros absolutamente ignorados, inventando filosofias, acusando a Igreja de idealismo em nome de Marx e de Hegel. Os problemas mais diversos do mundo, desde o trigo até o sexo, teriam soluções fáceis desde que pudéssemos fazer um reajustamente de caráter plutônico na geologia social. Ninguém consentia em esperar sedimentações, porque era com essa tática que a Igreja e a Burguesia contavam.

De excitação em excitação, e certos de que todo o mal estava na direção burguesa baseada ou na mais-valia ou na mentira vital, a maior parte do grupo não fazia questão da doutrina. A mim, devo confessar que o materialismo histórico nunca me pareceu suficientemente claro. Dessa displicência surgiam discussões porque os outros não podiam suportar essa espécie de agnosticismo revolucionário, e três ou quatro rostos ansiosos de catequese viravam-se para mim. E lá vinha o Manifesto, a sociedade sem classes e tudo mais.

Mas pouco se me dava o materialismo histórico: o que eu queria era o fígado do burguês. Nesse ponto havia uma instantânea concordância. E assim ficávamos, até altas horas, espancando esse judas ausente, com entremeios de anedotas inéditas.

Para mim e para o amigo Fred, quando os marxistas não estavam presentes, o problema era mais psicológico do que econômico. Havia melhor entendimento entre nós; e, em lugar de divisão da sociedade em classes, que nos parecia simples demais e um pouco ingênua, víamos a separação dos homens pela linha meridiana da mentira. Fred queria salvar o mundo da mentira ainda que devesse ser implacável e cruel. Queria entrar nas igrejas e atravessar a nave levantando um por um, para que todos reconquistassem a glória da verticalidade comprometida pelas genuflexões.

Faltava-nos, porém, uma técnica revolucionária. Como extrair força e consentimento das multidões com a leitura dum poema de Nietzsche? Nesse sentido os outros tinham razão: era mais fácil triunfar pelo proletariado do que pela grande sinceridade que se propunha armar um ninho entre os astros. Começaríamos pois com Marx e depois veríamos. Seria um maquiavelismo necessário para a salvação da grande raça caucásica e do homem de amanhã.

A nossa grande satisfação consistia em imaginar, com detalhes e colorido, essa época radiosa em que pudéssemos, finalmente, sair pelo mundo marcando um sinal nas faces dos burgueses.

Eu já inventara um processo para a identificação dos réprobos com o emprego de certos reagentes, como na química. O principal seria a criança. Iria pelos caminhos com uma criancinha loura pela mão como aquele homem que descobre nascentes de água com um bastão. Onde houvesse ajuntamento eu empurraria a criança, fá-la-ia atravessar o grupo, e, onde o burguês estivesse, um abundante precipitado de mentira vital se alastraria pelo chão. Essa propriedade tinha para mim a força de uma definição: o burguês é o tipo que, diante de criança, segrega necessariamente a mentira.

Logo que ela acaba de nascer, a mentira, como ama-seca invisível, anda entre as rendas e as fitas do berço. A criança ainda não pode ouvir conselhos edificantes, não tem jeito de fazer pelos-sinais; só tem a boca como ponto vulnerável; então, metem-lhe na boca uma chupeta com açúcar...

Às vezes os amigos vinham a minha casa, a mesma onde moro ainda hoje, e como a amizade crescia, segundo as leis especiais desse epifenômeno, não era raro que viessem para jantar. Havia então um trégua em nosso solarismo revolucionário, porque era difícil manter essa atitude diante duma mesma posta e de uma senhora que se desculpa por causa do pudim que se partira na fôrma. Ficávamos canhestros; o meu maior receio era que os amigos percebessem o burguesismo de meu interior. Nessas noites não havia beijo em filho, e quando a mulher subia para o sobrado levava como despedida um aceno de camaradagem soviética. Um dia, já por essas razões e também pelo heroísmo de nossas conversas, minha mulher declarou-me que eu e meus amigos éramos ridículos.

Ainda era pior o constrangimento quando calhava entrar outra pessoa da família, mãe ou irmã. Enfiávamos; nossas asas de condores ficam murchas; e, como afinal éramos filhos de boas famílias, não havia remédio senão falar os pequeninos nadas de educação burguesa.

Lá pelas onze, depois que todos saíam, então sim, nós nos encontrávamos e, como desforra, entrávamos pela noite adentro, entre muitos cigarros, fazendo a vigília tumultuosa daquele natal do mundo. Nunca em toda minha vida fui tão sublime e tão estúpido...

Quantas vezes já tenho pensado em vocês, meus bons companheiros de noitadas! Apesar de tudo, nós nos queríamos bem. Hoje vocês estão longe, espalhados pelos quatro ventos, alguns exilados por terem passado da conversa fiada e inofensiva para os atos perigosos e irrefletidos. Meus bons companheiros, minha mulher tinha razão: nós éramos ridículos.

Aliás, ela repetiu-me isso um pouco mais tarde com uma linguagem particularmente clara e convincente.

*

Naquelas noites, quando meus amigos saíam, eu fechava a casa ritualmente. Verificava os ferrolhos, despejava os cinzeiros atulhados e examinava o bico do gás, ouvindo ainda na memória o eco de nossa gritaria. A propósito de bico de gás devo dizer que minha mulher tinha cisma de incêndio. Desde os primeiros dias de nosso casamento, todas as noites, ela tinha que sentir um vago cheiro de queimado, e eu, com a solicitude de noivo, lá ia examinar os recantos da casa. Depois, na crise da acomodação, recusei-me a procurar, declarando secamente que era cisma. Mais tarde vieram os sarcasmos de marido, de especialista, e quando ela falava em cheiro de queimado eu logo acrescentava que tinha visto um clarão sinistro nos lados da cozinha.

Mas naquele tempo eu inspecionava os bicos, sondava os recantos e até gosto achava nisso. Quinze anos de casamento dão sentido aos gestos mais inúteis, que se tornam coisas de nossa vida, coisas que unem, gestos-filhos...

Enquanto eu fechava a casa, em cima, no sobrado, a mulher e as crianças dormiam. Minha casa nesse tempo, mais do que hoje, tinha dois pavimentos. Embaixo, o materialismo histórico ou a grande raça branca; em cima, dormindo desde as dez horas, a mulher que tinha passado o dia discutindo com o açougueiro, cosendo roupa, lavando os filhos e cuidando do meu jantar. Eu tinha duas casas. Há indivíduos que realizam esse feito em quarteirões diferentes e sem comunicação. Eu não; tinha duas casas na mesma; e duas vidas; e duas palavras. Para conquistar ordem e unidade no mundo, eu começava assim, tendo duas casas, e duas vidas, e duas palavras.

A escada era a comunicação. Depois de tudo bem fechado, eu subia a escada. E então, para não acordar mulher e filhos, e sobretudo para não ouvir alguma reflexão infalivelmente razoável, eu parava na porta do quarto e ali no corredor, encostado na parede, com precaução, tirava os sapatos para não fazer barulho.

*

Mas no dia seguinte recomeçava a história. Voltávamos a vociferar e discutir com o Manifesto na mão. Insensivelmente íamos aumentando a solidez do grupo por afeição, pelo brio, pelas palavras dadas, mas julgávamos que era a solidez da doutrina que nos unia melhor. Insensivelmente seríamos levados a praticar imprudências decisivas, gestos sem recuo possível, mesmo porque os agentes ativos da revolução já rondavam nossa porta para colher nossos entusiasmos. As conversas já saíam das divagações e resvalavam para conseqüências práticas. Poucos dias mais e eu me alistaria, com materialismo prático ou sem ele, pela irresistível força do grupo, numa célula comunista.

Ora, foi nessa ocasião que minha mulher morreu.

*

Morreu moça. Levou dois meses a morrer. E passei esse tempo curvado sobre o meu caso particular. Alguém me dissera que aquela toxemia gravídica, com os progressos da medicina, conta somente um e meio por cento de casos fatais. Passei dois meses quase sem dormir por causa desse um e meio por cento, dando-lhe água e comida como às criancinhas, cuidando das menores coisas, passando um dia feliz por causa de um defecar e logo outro acabrunhado porque o pulso subia. Vi o médico deixar cair o estetoscópio em cima da cama e ficar olhando pela janela, pensativo. Quando me aproximei ele disse:

— Bonito flamboyant!

Olhei também: era no vizinho em frente. Era bonito mesmo. Num dos galhos mais altos estava um passarinho. Lembrei-me de minha cartilha que na segunda ou terceira página dizia assim: "O viúvo viu a ave." Durante algum tempo fiquei remoendo estupidamente esse fenômeno lingüístico pelo qual eu seria um viúvo. Achei esquisito e repulsivo o vocábulo. O médico então explicou-me, com termos caridosos, que o meu caso particular estava entrando devagarzinho naquele um e meio por cento e pondo a mão no meu braço, de leve, com cerimônia, falou-me em Deus.

Viveu ainda uns vinte dias. Uma tarde fui para o quintal e sentei-me num banco, embrutecido. Olhei o Sol que se deitava por trás da casa do coronel. Lá ia o Sol. O Sol era um milhão e quatrocentas mil vezes maior do que a Terra; a Terra, com seus quintilhões de toneladas, era um grão de poeira perdido dentro duma enorme galáxia. Acordei de meus cálculos astronômicos pensando na minha doente desenganada. Era um caso particular, um ínfimo caso particular metido no universo e no tempo. Pensei no materialismo histórico; e senti de repente um calor de vexame no rosto. Olhei em volta com receio que me tivessem visto o pensamento. Senti, como ainda hoje quando me lembro, um vexame intenso. Haverá decerto coisas mais graves, ações muito mais sérias, de piores conseqüências, mas não há nada mais persistente do que a lembrança de uma gafe. Tudo aquilo, as discussões, os sistemas, tinha sigo uma gafe. Eu bem sabia, ali sentado no banco, que voltaria depois ao meu trabalho e à vida e cada dia; que sentiria menos à medida que o tempo passasse, que tornaria a fazer meus aparelhos e ler meu galvanômetro. Mas de uma coisa estava certo: o materialismo histórico e a grande raça branca nunca mais teriam sentido para mim. A unidade de minha casa se restabelecia a preço alto, e o sobrado levava a melhor. Olhei para o sobrado, para as janelas do sobrado, e logo o Sol, com todos os seus milhões de vezes, pareceu-me pequeno, e com todo os eu luxo de elétrons e de fótons pareceume ridículo diante daquela persiana fechada.

Veio o padre. O franciscano que tantas vezes nos visitara por causa do órgão. O órgão estava embaixo, na sala de frente; e por causa de seus fios, dos osciladores, de cada peça que durante anos estudara, o padre franciscano estava em cima, no sobrado, tirando dos panos de seu hábito um pedacinho de pão. E foi assim que o Corpo de Deus entrou pela primeira vez sob o meu teto, e que eu assisti, louvado seja Nosso Senhor, ao milagre de uma boa morte. Porque ela riu no seu último dia! (A Descoberta do Outro)

Os meninos se matam A Carlos Drummond de Andrade

O moço que se matou, dizendo por escrito que era um “desajustado social”, na verdade matou-se porque se deixou convencer de que não existe na vida e no mundo lugar para a dor. Matou-se porque lhe disseram, com aquele vocábulo, e com a filosofia maldita que por trás dele se esconde, que o mundo não concede matrícula aos que choram. Insinuaram-lhe que tudo se reajusta, e acrescentaram que só depois dessa reajustagem pode uma alma se inserir. Ora, o moço viu que a primeira parte da história era falsa, porque nem tudo se reajusta, mas continuou a crer na segunda; e então, suicidou-se. Suicidou-se porque era um desajustado. Suicidou-se porque era uma excrescência na criação. Uma verruga no universo.

Ah! como eu quereria gritar aos ouvidos dos moços que há no mundo e na vida lugar para a dor!

É claro que existe o problema da inserção. Ninguém nega que o dinamismo iníquo da sociedade tende a deixar à margem os fracos, os tímidos, os perturbados. Ninguém nega que o homem deva aprender a se inserir na efervescente convivência e deva lutar pela defesa de seu lugar. Tudo isso existe, e já é bastante trágico para que ainda venham dilatar o campo do problema com essa idéia infernal de que só os felizes estão inseridos e que todas as mágoas, todas as feridas, todas as tristezas são sinais de excomunhão.

Moços! há na vida e no mundo um lugar, um enorme lugar para a dor. Há lugar para o pobre; para o doente; para o obscuro; para o aleijado; para o perseguido.

Eu li o comovente artigo de Carlos Drummond sobre o outro menino, apaixonado que um dia, que teve pressa de matar-se. Li, e creio ter compreendido a pungente aflição daquela enorme alma de poeta quando lhe passa pela mente que o menino poderia salvar-se se alguém, naquelas poucas horas de um prelúdio de dor, o tomasse pela mão, o levasse à praia, e risse com ele nas espumas do mar. Raramente senti tamanha afinidade, tamanha simpatia, como nesse artigo escrito ele todo com um nó na garganta; e lido, ele todo, no outro lado da cidade, em outra situação, em outros sentimentos, mas com o mesmo fundamental nó na garganta.

Mas discordo do poeta no remédio. Talvez desse bom resultado o mergulho na onda fria que lhe desatasse no peito as molas da infância. Mas cá fora, ali mesmo na praia, esta a Teoria à espera do menino. A teoria de que não há no mundo e na vida lugar para a dor. Muito mais do que a mocinha do

bloco, sem culpa maior do que alguma faceirice, quem deseja imolar os moços de vinte anos é essa Teoria de implacável otimismo que exige para a vida, para o ingresso na vida, condições higiênicas e psicotécnicas mais rigorosas do que as que se exigem para os aviadores. A Teoria diz ao moço que vá tratar-se e volte depois se quer emprego no mundo. A Teoria dá um prazo para que o candidato se torne decentemente feliz. Feliz no padrão, de G para cima. Feliz no sexo. Feliz nos nervos. Feliz em tudo. Decentemente feliz.

Bem sei que há os desesperos precoces que ignoram as coisas boas de que a vida é farta. Será bom dizer-lhes que existem muitos amores, que haverá muitos outros blocos e muitas, muitíssimas outras mocinhas amáveis. Que o céu é azul, que há prados cheios de flores, e que é bom mergulhar na onda fria, com os olhos abertos, para ver um mundo novo fundido em esmeralda. Que é bom deitar na grama, que é bom meter o pé no estribo, em manhãzinha brumosa, manhã de roça, sentindo o cheiro do couro e o cheiro forte do cavalo; que é bom andar de mãos dadas em rua de bairro antigo ao cair da noite confidencial e casamenteira; que é bom pisar um tombadilho molhado e sonhar com cidades de lenda; e que é bom ficar à toa, numa varanda domingueira, seguindo os passos de um inseto de rubis e safiras, que passeia num velho muro a sua microscópica riqueza; que é bom respirar; que é bom viver.

Mas não basta, ó poeta, mostrar às almas aflitas a doçura das relvas, a frescura das ondas, e a ternura dos regaços de amor. Porque isto não é toda a verdade da vida. E é preciso ser verdadeiro. É preciso, sempre, ser verdadeiro. Em toda a extensão. Em toda a profundidade. Nos dois hemisférios de luz e sombras da verdade.

O que é preciso dizer, a esses moços que por tão pouco desesperam, é que existe uma dignidade no centro mesmo da dor; que a dor não excomunga; que a dor já foi santificada para que possa santificar. O que é preciso, ó poeta de alma grande, é abrir velas ao mar, e descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida.

Ah! essa história maravilhosa, que a mim me contaram, como eu gostaria de lhe contar, longamente! longamente!

(Março, 1956. Republicado em DEZ ANOS, Editora Agir)

Os ofícios alheios e o meu A título de descanso, ou de desintoxicação, prometi aos leitores reflexões sobre os vários ofícios do homem, e, se não me falha a memória, prometi para hoje histórias de barbeiro. Devo de início confessar que, na minha vida maior que a do século, embora seja eu fiel e constante por natureza, fui inconstante em barbeiros, ao sabor das inconstâncias da vida. Recuando até os tempos em que fui engenheiro da Radiobrás, surge-me na memória o João Saraiva, português, sentencioso e profundo.

Devo, aliás, fazer uma reparação à injustiça com que costumamos contar histórias de português, como se eles fossem mais parvos do que nossos parvos. Descobri há algum tempo que a insensatez lusitana tem algo de estapafúrdio e não-euclidiano, mas nesse mesmo absurdo com que se adorna, ele roça pelo gênio. Há, por exemplo, no melhor Fernando Pessoa, coisas que são autênticas histórias de português.

Ultimamente saio pouco, e cada vez mais diminuo o raio de meu pequeno mundo, como se diminuísse com ele minha peau de chagrin, por isso tive de remexer papéis velhos para encontrar alguma crônica amarelada. O João Saraiva ficará para outra oportunidade porque a história que achei nos meus papéis velhos é de 1957 e podia intitular-se “A barba clandestina”.

Descobri um lugar onde posso achar quem me faça a barba nas manhãs de segunda-feira, coisa que é proibida, não sei se pelo Ministério do Trabalho, pelo governo municipal, ou pelo Ministro da Guerra, e que por diversos motivos, a começar por essa proibição, me assegurará doravante uma pequena e estimulante alegria nos umbrais das hebdomadárias aflições. Não digo onde é, perdoe-me o leitor esse egoísmo, porque pode acontecer que pela primeira vez, em vinte anos de jornalismo, as autoridades dêem alguma atenção ao que escrevo. Calo o número e a rua, mas sou forçado, por imperativos de meu ofício, a descrever, convenientemente camuflado, o cenário onde sinto o gosto da barba feita em atmosfera de contravenção.

É num fundo de loja. Você atravessa o salão deserto com passo cauteloso, dobra à direita, depois à esquerda, e chega a um pátio onde já se acham diversos oficiais e os fregueses iniciados no arcano. Há sorrisos de conivência e cicios de conspiração; há até quem leve o gosto da irregularidade até o corte de cabelo. A gente tem a impressão de estar tramando a volta de um rei, ou cumprindo o rito de um culto perseguido. Mas a catacumba dos barbeiros é alegre. Dá para um cortiço onde há mulheres batendo roupa no tanque e passarinhos chilreando em gaiolas de bambu. O oficial explicou-me o motivo daquela inconfidência de navalhas: a semana inglesa dos barbeiros tem a pausa da lei nas segundas-feiras em vez de tê-la aos sábados como a inglesa dos outros ofícios. Será uma semana portuguesa, disse ele piscando o olho e apontando para o patrão.

Perguntei-lhe se eram obrigados a trabalhar às segundas-feiras. Não. Não eram. Vinham por gosto e por interesse próprio. O patrão concorda porque também tem lucro nessas horas extraordinárias. Os fregueses também gostam.

— Mas então, perguntei eu, por que existe tal proibição se todos querem barbear e ser barbeados?

O oficial respondeu com um sorriso triste de cidadão que já desistiu de decifrar o enigma das leis e das posturas. Indaguei a respeito da multa e do perigo de ter minha barba interrompida num hemisfério do

rosto. O oficial tranqüilizou-me com um sorriso de outra espécie, e explicou-me que o fiscal também está interessado nas barbas clandestinas.

— Mas então, tornei eu, por que esse esconderijo? Por que não fazer a barba no salão com mais conforto?

O oficial esboçou um terceiro sorriso, mais fino que os anteriores, e parecendo penalizado com minha ingenuidade dignou-se ensinar-me que havia as aparências a respeitar.

Uma luz inundou-me o intelecto e revelou-me as coisas que o barbeiro sabia e outras que talvez ignore. E um hino de louvor brotou-me do coração. Sábias leis! Sábios e profundos decretos são esses, raríssimos no gênero e na espécie, que conseguem contentar todo mundo, e que, contentando, lá deixam nos passes da cerimônia um frêmito de aventura.

Instalei-me na cadeira proibida e assegurada. Distendi os nervos, deixando uns poucos deles esticados para os pizzicati das surpresas. Dividi-me entre os ruídos municipais que pela direita traziam-me o arquejar da rua cheia de veículos e fiscais, e o chilrear dos pássaros que, pela esquerda, me davam a impressão de estar fazendo abluções num despertar de floresta. Fechei os olhos e fui inteiramente feliz. Feliz por estar na rotina e ao mesmo tempo fora dela; por ter uma espécie de sábado mais fresco na segunda-feira, por sentir fiscais à direita e canários à esquerda. Não pode haver felicidade sem paz, mas também, ao menos neste mundo sublunar, sem algum receio de perdê-la. Fui feliz por todos esses motivos que explico e publico, e por tantos outros que estavam presos e que, libertados, me inundaram de sossego e de romance. Não digo quais são por não saber eu mesmo e por medo de perdê-los. Os sonhos não têm vida fora do sonhador.

Na hora de pagar o moço explicou-me que era mais cinco cruzeiros por ser segunda-feira. Mais fosse, amigo, mais fosse! Quem não pagaria cinco cruzeiros por barba escanhoada entre os murmúrios de uma floresta wagneriana, ou no silêncio de catacumba romana? Além disso, sejamos justos, há o fiscal. E também — sejamos sinceros — há o saldo do que me pagam por estas linhas, que não seriam tão fáceis sem a segunda-feira, sem os passarinhos e sem a contravenção.

Conversa em Sol Menor, Agir 1980.

Reminiscências astronômicas Foi no terceiro ano da Escola que voltei à astronomia. Em 1918? Creio que sim. Mas não era à poética astronomia dos anéis de Saturno ou da nebulosa espiral de Andrômeda que eu voltava, e sim à geometria e abstrata, que toma as estrelas como pontos de referência para determinar as coordenadas geográficas. O símbolo se impõe: quando queremos saber com firmeza onde pisamos, devemos erguer os olhos para o céu.

Em 1918, antes da famosa gripe espanhola, que foi uma peste medieval temporã, talvez a última, entreguei-me todo aos ângulos horários, às ascensões retas e ao jogo do xadrez. Há estações da vida mais chuvosas e outras mais secas. Naquele tempo minha paixão foi a das abstrações geométricas, mas muitas vezes, à noite, fechado no quarto, debruçava-me a arranhar o papel no baldado esforço de dizer em verso as coisas indizíveis; e também muitas vezes achei-me a chorar sem saber porquê.

Depois do jantar, com uma perseverança mutuamente reforçada, meu amigo Lacombe e eu subíamos o morro de Santo Antônio, onde estava instalado o observatório da escola, e lá ficávamos, não a ouvir estrelas, mas a medir graus, minutos e segundos.

O leitor talvez não conheça a espécie de exultação que vem do exercício da exatidão. Forma humilde da verdade, o décimo segundo de arco tem um fascínio esportivo, poético e moral. Medir é um modo de possuir, além de ser um modo de conhecer; é também um modo de se comprometer.

Às vezes nossas observações eram interrompidas pelo bom Professor Orozimbo, conservador do observatório, que me dava a impressão de estar interessado em todas as coisas, com exceção da astronomia. Para a solidão de sua ilha no alto de um monte, nós éramos o mundo, ou seríamos o que Sexta-Feira foi para Robinson Crusoé, com a diferença da regularidade com que todas as noites, pontualmente, naufragávamos no seu litoral.

O Professor Orozimbo gostava de discorrer sobre os mais variados assuntos. Uma noite, quando apontei a luneta para a primeira estrela de um par Sterneck, o Professor Orozimbo explicava ao Lacombe a incontestável superioridade dos cobertores argelianos; e quando virei cento e oitenta graus em busca da segunda estrela, descrevia ele minuciosamente a maneira de dar o ponto na goiabada campista.

Tive alunos, e creio que dois deles, ainda vivos, se lembrarão do Morro de Santo Antônio. Bons tempos! Largos tempos! Mais tarde sonhei entrar para o Observatório Nacional que para mim era a catedral da astronomia. Tive então a idéia de valer-me de um trabalho original com que me apresentaria ao Dr. Morize, sem necessidade do pistolão, que aliás eu não tinha.

Tratava-se de um método de determinação de latitude por alturas iguais, sem leitura do círculo meridiano, sendo a diferença de altura das duas estrelas determinada pela diferença de ângulo horário. Esse trabalho figurou na tese de concurso do Professor Alírio de Matos, mas não deu o resultado que eu esperava na tentativa de entrar no Observatório. Apresentei-me sozinho, com o embaraço que naquele tempo tinham os moços de vinte e dois anos. Tremendo, subi as escadas do edifício, e parei vacilante na porta do diretor. Bati. - Entre!

Entrei, e quando achei minha voz pus-me a tartamudear uma explicação do que pretendia. Meu sonho era ter um lugar no Observatório, e por isso trazia um trabalho original, sim, isto é, quero dizer um processo de determinação de latitude com o teodolito, processo que tinha a vantagem, sim, quero dizer, a superioridade sobre o Sterneck de dispensar a leitura do círculo vertical...

Abri o rolo e deixei cair no chão metade dos papéis, e, envergonhado como um réu, ouvi a sentença glacial que descia do alto do pico Everest. O professor veria mais tarde, o professor não via vantagem alguma sobre o Sterneck, e finalmente o professor traçou no ar um gesto, uma espécie de absolvição às avessas – tudo isto sem perceber que o pobre moço alourado e corado, que tinha diante de si, tentava em vão transmitir-lhe um segredo de amor. Despediu-o secamente, e o moço, no meio da escadaria de entrada, vendo que estava só diante do céu e do jardim, sentou-se no degrau, com o canudo de sua invenção embaixo do braço, e chorou amargamente.

Não imagine o leitor, pelo amor de Deus, que eu esteja aqui, meio século depois, a desforrar-me e a denegrir o professor Morize. Nem me passou pela mente, naquela manhã, que eu devia ser compreendido pelo professor. Os tempos eram outros. O professor usava sobrecasaca e o aluno usava o respeito. E isto era bom.

Para vencer a tensão superficial que separava os dois mundos, era preciso dispor de uma força maior ou de uma vocação mais invencível. Um Gauss, aos dezoito anos, em pleno século do superego e da autoridade paterna, conseguiu mudar o curso de uma Universidade alemã: o Reitor reuniu solenemente toda a congregação e alunos para comunicar que o jovem Gauss nada mais tinha a aprender ali, mas muito a ensinar. Mas os Gauss são raros, sobretudo nos trópicos.

Depois desse malogro, tive de procurar emprego, por serem poucos os alunos, e foi nesse tempo que meu padrasto conseguiu para mim um lugar de fiscal de lixeiro no serviço de Limpeza Pública. O serviço era simples: tinha de acordar às quatro da manhã para assinar ponto em São Cristóvão às cinco. E dali saíamos nós, cinco ou seis, a fiscalizar o serviço das carroças.

Durante esses meses conheci o avesso das cidades adormecidas, ou a perspectiva do mundo vista do lado da lata do lixo. Envergonhava-me um pouco o ofício de vigiar um pobre ainda mais pobre do que eu, mas admitia sem grande relutância a necessidade de tal mister. Fiz dois ou três amigos que me contavam histórias de suas necessidades, e tive o encargo de escrever cartas de amor para um colega que tinha o amor, mas não sabia como exprimi-lo. Às vezes o acaso, ou melhor, a carroça do lixo me levava para os lados de São Januário, e eu então via de longe as cúpulas desejadas do Observatório que desdenhara meu amor.

Hoje, à distância de meio século, bendigo a sorte que me deu uma juventude de luminosa e transparente pobreza, e até, lembrando-me agora do episódio, agradeço a Deus a resistência oferecida pelo bom professor Morize. Um professor é um professor, e para o razoável equilíbrio do mundo é bom que os moços encontrem algumas resistências em todos os seus amores.

(30/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência)

Rostos, roupas e paramentos Estas reflexões começaram no hall do Municipal onde me achei numa noite de bailado russo. Antes de mais nada, porém, devo dizer, para tornar mais compreensível o que se segue, que costumo passar muito tempo, anos às vezes, sem encontrar certos fenômenos da chamada vida social. Por isso, nessas circunstâncias gozo de uma vantajosa inexperiência e ainda consigo ver certas coisas de chofre, com a surpresa das crianças ou dos idiotas. Ambos esses pontos de vista são indubitavelmente superiores àquele do homem informado, do incurável adulto de visão plastronada, do homem que se habituou, que sabe como se fazem as coisas, como se entra num teatro ou se serve um chá numa tarde de irreparável elegância. Daquela inexperiência resulta, como conseqüência bastante incômoda, que vivo me espantando e me assustando. A insensatez aparece em tudo e sempre com aspecto novo; o desvario se diferencia indefinidamente. Quando se julga já ter visto bastante bizarria no mundo surge ainda uma inédita ou pelo menos sob forma inteiramente inesperada. Parece que tudo é novo nas ruas, tudo inaudito nas conversas das esquinas e tudo incrível nas escadarias dos teatros. Mas essa inexperiência, apesar de sua evidente superioridade sobre a carapaça, é apenas uma questão de sensibilidade e está longe de constituir uma sabedoria. Está no plano das sensações, é feita de impressionismo mais do que de reflexão. A experiência real da sabedoria, aquela verdadeira da inteligência, que o homem moderno pretende imitar com a insensibilidade, vê nessas manifestações do mundo sempre a mesma coisa. Se a insensatez aparece sempre nova para o impressionista imaginativo, o pecado certamente aparece sempre o mesmo para o sacerdote que passa horas por dia no confessionário. O pecado surge sempre, penso eu, com uma monotonia horrível. É sempre a mesma história que se esforça por ser uma história, a mesma penitência que ainda chega incompleta com uns restos da mesma complacência. A maior humilhação para o homem está nessa impossibilidade de ter uma história própria no pecado. O pecado é a própria banalidade. Ao contrário do que possa esperar um amador de estados de alma, creio que o sacerdote que se debruça sobre o pecado não encontra movimento e vibração, mas imobilidade e paralisia. O próprio penitente muitas vezes pensará que está ouvindo as mesmas fórmulas e os mesmos conselhos, e julga que o padre se repete, que o sacerdote não varia. Mas quem se repete é ele, porque a monotonia é a face do pecado. O pecador é o cacete, o banal, o homem desesperadamente pouco interessante, o menos divertido dos espetáculos. Mas com tudo isso, e se não estou muito errado, o aspecto exterior, a epifania do mundo se caracteriza pela diversidade vertiginosa. Para o indivíduo que se instalou o mais comodamente possível no mundo passa-lhe um fenômeno contrário que não contém a sabedoria nem requer a sensibilidade das impressões. É o contrário do poeta e do sacerdote. para esse o mundo não espanta porque tornou-se monótono, mas em compensação ele procura a diversidade no domínio próprio da inteligência. Daí nasce a angústia baseada, por assim dizer, na tolerância da sensibilidade. Procura teorias específicas para atender à insegurança dos movimentos exteriores porque para eles importa definitivamente crer na segurança do mundo. A diversidade das aparências mergulha procurando levar a fermentação do mundo para o próprio plano da inteligência. São tranqüilos nas ruas, nas escadarias, perfeitamente informados a respeito de roupas e gestos, mas desforram-se admitindo que cada um pode ter na opinião, um sistema, uma verdade.

* O fato é que fiquei assustado quando me achei de repente no hall do Municipal numa noite de bailado russo, no meio de centenas de damas paramentadas com grandes mantos vistosos. Por que aqueles mantos? De onde tinham saído? Onde os tinha eu visto, e quando? Então tive a certeza brusca que aquela gente estava chegando de pilhar as sacristias dos arredores. Os mantos, as sedas, as púrpuras, os ouros, toda aquela paramentação tinha sido arrancada dos nichos apagados. A estridência do sacrilégio não parecia espantar muito porque todos conversavam amenamente. As damas deslizavam calmamente dando jeitos nos mantos, os cavalheiros faziam curvetas, e uma incensação de cigarros finos envolvia o "decor" que amanhã o mais abjeto dos cronistas irá chamar de "ambiente de fina espiritualidade". Ainda esperei que chegassem de repente investigadores acompanhados de sacristãos excitados, que toda a quadrilha fosse convidada a amontoar ali mesmo no hall o "butin", e que por fim fosse tudo devolvido, mantos e coroas, à Rainha despojada. Há dias atrás um piedoso ladrão devolveu a coroa de Nossa Senhora da Glória mas o jornal, tratando-o por meliante, só achou explicável o fato pela dificuldade que ele tinha experimentado em fundir a peça. Realmente o ponto de fusão do ouro é elevado e nos tempos que correm é muito mais fácil acreditar num problema metalúrgico do que num arrependimento sincero. * Há poucos dias atrás (e perdoem-me o que essas reflexões tenham de pessoal e sem gosto) quando eu andava pelas ruas procurando o sentido das coisas, e olhava de longe, com melancolia, para as torres das Igrejas, a Divina Providência valeu-se duma coisa muito pequenina e muito insignificante para me empurrar e me atirar "de bruços, estatelado, dentro da casa luminosa". Julgo que seja impossível contar a história de uma conversão. Em geral é costume, nesses casos, fazer um romance encharcado de psicologia sentimental onde a fé aparece de repente como um açúcar cristalizado no fundo duma compota. Faz-se um enredo enchendo os claros, dá-se importância a um certo passeio um uma certa leitura não deixando de mencionar de vez em quando o Espírito Santo mais como fiador do que como principal autor. Nunca tentarei semelhante tarefa porque, pelo pouco que já andei considerando, conclui que iria contar a história mais estúpida do mundo1. É fácil imaginar por exemplo uma história em que somente uma palavra em dez fosse legível. No meu caso muito poucas palavras são legíveis, mas entre essas poucas ficaram alguns nomes, nomes de pessoas. E um nome já é uma formidável história. Mas voltando através àquela suposição sobre os processos de Deus, quero dizer que as coisas pequenas que encontrei no caminho foram simplesmente casacos e chapéus. A incongruidade dos chapéus, o desespero dum casaco, demonstraram-me com violência o pecado original, mas a insensatez das indumentárias pareceu-me sempre conter um elemento mais trágico do que a ofensa do

sexto mandamento. Havia qualquer coisa antes de pudor, antes da concupiscência na lenda das roupas. Haverá coisa mais trágica do que um chapeuzinho de pano verde veronense com um caco de galalite ou pedaço de fita armado em cima de dois caracóis num ângulo impossível? Haverá coisa mais fascinante do que um jaquetão? Quando tudo isso se amontoa nas esquinas ou flui nas avenidas, aos borbotões, e ainda se complica com embrulhos, gravatas e balangandans, e quando se advinha sob o disfarce o pobre corpo humano sem glória, um corpo perseguido, crivado de imperativos que a cada hora são contornados ou iludidos, e quando a gente ainda vê os rostos torcidos no sorriso sociável do bom munícipe e ouve o falar, ininterrupto como um castigo, o inesgotável e miúdo cacarejar das vozes que não têm nada para dizer, então é impossível não desconfiar que há um enorme equívoco na vida e no destino dessas bizarras criaturas. As vestimentas esquisitas que vemos nas ruas têm qualquer coisa de angustioso e de arranjado na última hora. Fazem pensar numa improvisação de pânico, num arrecadar febril de um minuto de fuga. Aquela história começou evidentemente na porta do paraíso perdido. Os homens de penitência também se vestiram quando viram que estavam nus. Mas a veste de penitência tem sentido na própria penitência, na descoberta da nudez. E também tem o sentido da salvação, isto é, da volta do Senhor. Assim o monge é uma sentinela sempre pronta, sempre na expectativa do Rei: o hábito, o cinto, as sandálias, tudo no monge está pronto para o Cristo, sob tensão escatológica. As roupas variadíssimas dos homens nas ruas, ao contrário, pela diversidade, pela variedade, pelo despropósito, são coisas apanhadas às pressas e significam justamente o contrário dessa espera: são símbolo de fuga. Na escadaria do Municipal, porém, vê-se na pompa do vestuário um elemento especial que não lembra a fuga das ruas nem a espera dos mosteiros. Aí há uma fixação, uma realização, um encontro; uma consumação, uma cristalização. O vestuário de gala não é roupa nem hábito: é paramento. Não fogem nem esperam porque já se encontram dentro deles mesmos. Não precisam da glória de Deus porque agora se cobrem com a vistosa e fantástica paramentação da própria glória. O burguês paramentado, com manto, é qualquer coisa que agride a mais elementar sensibilidade. É o homem que se glorifica a si mesmo; que coroa a própria cabeça; que se consagra; que inventa, realiza, determina a sua própria vestição, a sua própria ordenação, com os materiais de sua própria glória e a garantia incontestada de sua suficiência. É a mão que se impõe na própria cabeça e que ajeita diante do espelho uma estola inventada. E no fim dessa cerimônia de auto consagração, dando um jeito de olhos e um tapa no drapeado do manto, ele acha que ficou bem. Se o imperador Romano era um usurpador do Kirios, do único Imperador, apesar do determinismo histórico que pretende tirar o cristianismo da putrefação dos cezares, se Augusto e Tibério não passavam de macacos do Kirios, o burguês paramentado, através das dinamizações revolucionárias, atingiu o mais baixo nível de imitação subalterna.

Nem se pode dizer que é usurpador da nobreza a quem tomou as terras e os castelos: trata-se, antes, de uma orgia vulgar, duma grossa partida de criadagem embrigada que achou de se enfeitar com os mantos das castelãs assassinadas. Mas em última análise a questão ainda se reduz a um confronto decisivo entre ele, burguês, e Deus; entre o sacerdócio dele mesmo, burguês, e o sacerdócio de Deus. O sacerdote de Deus, o homem consagrado pelo Bispo que é o próprio Cristo, também recebe o paramento. O ouro, a seda, a púrpura entram no seu vestuário para o espanto do mundo que só vê nisso a "pompa" da Igreja, o alarde dos recursos financeiros da cúria. O sacerdote veste o ouro e a seda, veste a Glória por cima do hábito da penitência, realizando uma consumação terrível como aquela da cruz. O reino de Deus se encontra com o Reino de Deus, a prontidão escatológica passa no ato de Glória, vive a presença do Rei. Repete-se a experiência da cruz na pessoa do sacerdote mas aqui, lembrando a crucificação de Pedro, o que nos ombros consagrados não é a penitência, é a Glória. O paramento crucifica. A Glória de Deus pesa, esmaga. Contam que Pio XI, nas grandes solenidades sentia a tal ponto a enorme carga da Glória do Senhor que aparecia com uma palidez cadavérica. Um imenso e acabrunhante "non sum dignus" apertava-lhe o coração piedoso. Mas no burguês não. Nele o manto não pesa. Não o deve a ninguém, comprou e pagou. Vestiu-se. Consagrou-se. Casa um deles é um universo fechado, um Deus. *** Afinal, voltando à noite do bailado, sempre consegui chegar à cadeira que correspondia ao meu número. As cadeiras são todas iguais, com números e letras, em filas. Aqui a revolução democrática reconquista o terreno perdido pondo em cheque o fausto das indumentárias. Ainda não se lembraram de construir um teatro com um trono para cada dama afim de evitar o conflito estético entre o manto e a fila. É verdade que lá dentro já despiram os mantos proporcionando ao amador uma sistemática pouco interessante de espáduas fatigadas, e também que a gente começa a se sentir à vontade quando se reconhece aqui e ali algum rosto de vizinha ou parenta. Ora, justamente quando me dispunha a esticar as pernas e esperar o bailado, e já me persuadia que o melhor era considerar o fenômeno gala sob o aspecto duma grande inocência burlesca, encontrei rostos conhecidos. Depois perturbei-me com a presença de duas mil faces encravadas na concavidade do anfiteatro. Não se consegue um abrigo na banalidade porque uma face nunca é banal. Por mais que façam, que se esforcem, cada uma tem uma marca. Durante um entreato, num corredor, encontrei um velho amigo de colégio. Uma face que tinha sido de menino. Hoje está entumescida e gretada. Vê-se ainda, por baixo do entumescimento e das gretas, a luminosidade duma infância sempre presente, dum reflorescimento sempre possível. Não me lembro ao certo o que ele me disse sobre o bailado ou sobre a guerra porque eu via a sua face, e quando ele se debruçava para mim cheio de argumentos, o rosto muito próximo inchava-se e perdia os contornos. Era uma coisa enorme, uma geografia com planícies, charnecas e montes, um planeta imenso, uma vida. Lá dentro, na concha da platéia, são duas mil faces ou cinco mil, não importa, voltadas para o mesmo retângulo. Juntaram-se ali numa comunidade estilhaçada, numa reunião em que todos se ignoram, para esperar que naquele retângulo se inscrevam certas figuras estéticas. Figuras sem rosto. Aquele retângulo imprime caráter à comunidades das duas mil faces; é por causa dele, por ser ele um retângulo estético e civilizado que cada um na platéia se compenetra de finura e civilização. O bailado imanta a platéia. O espetáculo educado educa. E por isso, pela força e mérito do bailado, os cavalheiros fazem curvetas e ciciam comlicenças. Se estivéssemos noutro lugar, lá onde as bombas caem, estariam soltando imprecações e cerrando os punhos. Aqui não, por causa do bailado

as mãos tratadas manejam binóculos com gestos de oficiante. E as faces, as duas mil faces que não podem ser banais, esforçam-se, tentam imobilizar-se num êxtase de salão. *** Evidentemente com todas essas reflexões tumultuárias, erradas ou certas, não consegui ver o bailado direito. a sensação imediata que tive foi o de serem o Proteu e o Galo de Ouro coisas muito menos fantásticas do que o hall do teatro. Sempre tive, aliás, uma certa desconfiança em matéria de bailado que ainda me parece uma arte dolorida, hesitante, vagamente ridícula, que a cada instante perde o pé metafísico e mergulha no arbitrário. Sobra, nessas ocasiões, somente o sentido técnico. A elite dos "connoisseurs", como em todos os espetáculos, suponho, vive à custa de um relativismo, rememorando e comparando temporadas. Para a maioria entretanto o que importa é tirar do espetáculo dois comentários finos e sobretudo o alívio de ter vencido mais um escalão da complicada vida dos civilizados. Importa ter ido ao bailado. No fim da noite tornei a encontrar no hall a mesma multidão paramentada, mas creio ter percebido que iam embora sem entusiasmo. Um acabrunhamento medido combinado com uma impaciência flácida determinava a lenta evacuação do teatro. Então assaltou-me a mente a esperança absurda de ver aquele bando todo arrependido (decepcionado com o sem lucro da pilhagem) ir devolver nas sacristias, nos nichos apagados, as coroas e os mantos, como aquele bom ladrão de Nossa Senhora da Glória. (A Ordem, Julho de 1942) 1.[N. da P.] Felizmente, Gustavo Corção mudou de idéia quanto a esse ponto, e dois anos nos deu "A Descoberta do Outro" — talvez a mais bela autobiografia espiritual em nossa língua.

Um amigo de verdade Os artigos que andei escrevendo ultimamente sobre alguns pontos da teoria de Albert Einstein trouxeram-me à memória o nome e a figura de um outro judeu, pobre e obscuro, de que talvez nenhum de meus leitores ouviu falar, e que morreu de repente, na força da idade, sem deixar a obra que sonhava escrever. Para mim, entretanto, Nathan Neugroschel foi uma das mais curiosas e ricas personalidades que jamais encontrei. Foi, sem sombra de dúvida, um dos melhores homens que até hoje conheci.

Encontramo-nos em 1934, em torno de um aparelho destinado a proporcionar tráfego mútuo de telefonia internacional entre a Companhia Radiobras e a Companhia Telefônica Brasileira. Embora recém-chegado de Viena, e apesar dos meses perdidos no estudo da língua tupi — que um erudito germânico lhe inculcara como o idioma oficial do Brasil — Nathan Neugroschel, com a misteriosa aptidão de sua raça, já nesse tempo falava perfeitamente o português. Ficamos amigos. Almoçávamos juntos quase todos os dias, conversando de tudo. E assim, dia após dia, através de pequenas histórias contadas com um humorismo dolorido, que me lembrava o Chaplin de “Luzes da Cidade”, Nathan abria-me seu discretíssimo coração.

Sua grande paixão era a física matemática, ou mais precisamente, a teoria de Maxwell e a teoria da relatividade. Tinha em mente uma contribuição de que às vezes, vencendo a timidez machucada, e com ar de quem pede desculpas de sua superioridade, dava-me indicações na toalha da mesa, ou nos claros do maço de cigarro que cobria de fórmulas. Vejo-o diante de mim a instalar por cima do prato de azeitonas, com os dedos curtos e grossos, o sistema de referência xyz, enquanto a outra mão desfiava vetores. Chega então o garçom para indagar o que desejamos comer, e Nathan, segurando no ar suas forças e suas velocidades, formula com simplicidade o mais genérico dos cardápios.

— Boi.

Foi o homem mais integralmente sincero e verídico que já conheci. Discretíssimo, freqüentemente evasivo e reticente, era incapaz de produzir a sonora e insolente sinceridade com que se enfeita a vaidade ou se confortam os ressentimentos. Sua veracidade era invencível, mas aflita. Vinha de uma essencial submissão, seria quase uma incapacidade radical, congênita, de não ser verídico e sincero. Quando não exigiam sua opinião, quando não o provocavam, e sobretudo quando não estava em jogo a amizade, conseguia calar-se com um ar profundamente infeliz. Ou então ria-se, com o riso mudo que lhe sacudia os ombros robustos, e que até parecia choro, se não fosse o brilho infantil dos olhos claros.

No primeiro dia que veio em minha casa sentou-se numa poltrona cerimonioso, e correu os olhos pelos quadros que nesse tempo eu pintava. Por fim não se conteve, e voltou-se para mim aflitíssimo:

— Gustavo, você sabe que não é bom pintor?

De outra vez na Escola Técnica do Exército, onde ambos ensinávamos no mesmo curso de transmissões, entra um general na aula do Nathan, e faz uma brilhante preleção sobre a matéria do dia. Os oficiais alunos, de pé, ouvem a autoridade. Num ou noutro olhar vislumbra-se uma centelha de malícia, mas Nathan baixa a cabeça como se estivesse em caminho do cadafalso. Infelizmente o general fez questão de sua aquiescência. Provoca a sua opinião...

— É pena, desculpe, mas eu ensinei exatamente o contrário, murmura ele com mansidão. E logo depois da difícil saída do general volta-se para mim consternado:

— Você acha que fiz mal?

Nunca vi ninguém mais sensível à ênfase e ao exibicionismo, ninguém mais delicado do que aquele homem grosso, atarracado, bisonho, que andava como um urso e que se ria como criança que chora. Uma tarde, fomos convidados a uma conferência sobre a natureza da luz. Não conhecíamos quem ia falar. Ora, quando estamos sentados, na expectativa, com a esperança de algum lucro na palestra, entra-nos na sala o conferencista, corre pela assistência os óculos faiscantes, e desafivela com gestos majestosos uma enorme pasta de couro amarelo. Nathan mexe-se na cadeira e geme ao meu ouvido:

— Que pena! Ele é burro!

De outra vez, fui encontra-lo em pé no meio da praça, diante do imponente edifício da Escola do Estado Maior, a divertir-se prodigiosamente com a carranca daquela arquitetura. De repente, caindo em profunda melancolia, disseme em tom confidencial:

— Se ao menos eles ainda soubessem rir...

Quando foi convidado para dar um curso na Escola Técnica do Exército, Nathan alvoroçou-se com a perspectiva de uma oportunidade de ensinar as teorias de sua paixão. Deram-lhe porém um curso mais técnico e pragmático onde só seria possível remontar aos princípios teóricos forçando um pouco as exigências didáticas. Passei meses sem vê-lo porque nossos horários andavam desencontrados. Já no fim do ano dei com ele na saída de uma aula, e perguntei como se desincumbira de seu programa.

— Bem, bem... ah! consegui dar o curso sem falar as equações de Maxwell.

E ele não soube, não podia talvez imaginar que naquela manhã alguém ficara parado num corredor da Escola Técnica do Exército, pensativo, envergonhado, a ver a figura atarracada que se afastava com passo de embarcadiço, a seguir a figura esquisita, despenteada e mal vestida do homem que pudera passar um ano inteiro sem falar do que mais gostava e sem mostrar o que melhor conhecia.

Apareceu-me um dia com um enorme galo na testa. Tinham-lhe dado na Companhia Telefônica, como assistente, um jovem engenheiro que pela primeira vez se empregava. A mesa do novo auxiliar ficava ao lado da sua. Nathan começa a trabalhar e deixa cair o lápis. O moço precipita-se e apanha o lápis no chão. Nathan resmunga um agradecimento. Pouco depois deixar cair a régua, e lembrando-se da solicitude do moço dá um salto para alcança-la antes dele. Chocam-se com estrondo as duas cabeças, e Nathan pede encarecidamente ao jovem auxiliar que não contrarie seu hábito antigo de deixar cair as coisas no chão... Dias depois — agora é o assistente que conta — Nathan ouviu no lavatório uma conversa, pela qual ficou sabendo que o moço era pobre, que tinha perdido a mãe e que gastara no enterro todo o ordenado. Mete a mão no bolso (não no bolso que tinha pouco dinheiro como o Fernando Pessoa, mas no que tinha tudo) e tira um punhado de notas, pedindo ao moço como quem se desculpa, o favor de aceitar.

Eu mesmo, mais tarde, terei uma prova maciça de sua generosidade. Estava para casar-me e já tinha alugado uma casa em Teresópolis onde contava passar dois meses de férias. Mas surgira uma contrariedade: um aparelho difícil, o primeiro no gênero que produzíamos em nossa fábrica, atrasara-se na oficina e devia entrar em período de prolongadas experiências justamente na época do meu casamento. Quando Nathan teve conhecimento de meus apuros veio procurar-me e disseme só isto:

— Casa-te. Eu fico aqui.

E ficou. Deixava o escritório à tarde, jantava, e vinha trabalhar na fábrica, com os assistente escalados para esse plantão, até às duas ou três da madrugada. As experiências se prolongaram, e ele esteve nesse regime durante mês e meio, recomendando que não me dissessem nada. Na volta, informado do trabalho estafante que tivera, pedi para ele aos diretores da fábrica uma boa gratificação, que foi logo concedida, e que lhe seria muito útil porque nesse tempo chegavam da Europa, sem nada, os seus parentes que conseguiam escapar da fúria nazista.

Fui oferecer-lhe o dinheiro. Vejo-o ainda: ele está diante de mim como uma criança emburrada. Grosso, canhestro, taciturno. E bruscamente num gesto quase cômico, mostrou-me as mãos gordas:

— A m... já me sujou as mãos... mas ainda não me chegou ao coração.

Caí em mim, sentindo o absurdo da minha idéia; a tentativa de por em cifras, de indenizar, de fazer a quadratura de uma generosidade perfeita. Fomos dali para um café. Falamos de outras coisas. Nathan contou-me como conseguira simplificar uma passagem de seu sonhado livro de introdução à teoria da relatividade. E eu sentia a m..., isto é, o cheque a me pesar no bolso e no coração.

Nossas filosofias eram muito diferentes. Quando eu lhe falava em Aristóteles e em Santo Tomás (que ele, por coerência, mas sem vislumbre de gracejo chamava “o Aquino”) ouvia-me com um sorriso doloroso. Não me opunha Einstein porque era bastante inteligente para não confundir os dois graus do saber. Não eram as transformações de Lorentz que embargavam o nosso entendimento filosófico e que o acuavam numa farouche obstinação. O impedimento era outro: era a Viena perdida, era sua infância, seu sangue, seus irmãos perseguidos. Calava-me, e ele então voltava às equações para não rebentar de dor ou se envenenar de ódio.

Eu não tinha forças para convence-lo, não ousava esperar converte-lo. O desembaraço que mais tarde terei com os moços da gentilidade falta-me agora quando defronto o mistério e a grandeza de Israel. Sinto-me mais moço do que ele, Nathan. Recém-vindo. Menor. Gentio. Incircunciso. E não ouso proporlhe aquilo que lhe foi oferecido antes de me ser dado. Um dia, com voz sumida, ele me dirá que, quando lhe falam em Deus, pensa nos judeus arrastados pelas barbas... Respondo-lhe então, com voz ainda mais sumida, que eu também quando me falam em Deus, penso num judeu espancado. E ficamos parados nesse encontro, ou nesse desencontro, até que um teorema nos viesse tirar da nossa espessa realidade, de realidade com cheiro de sangue, e nos permitisse a evasão para as harmonias do mundo dos entes de razão.

Quando me disseram que Nathan Neugroschel acabava de morrer, que morrera de repente, do coração, eu senti o maior choque, o maior abalo, o mais vivo sentimento de absurdo que jamais senti com notícia de morte. E pedi a Deus, quase como quem reclama, quase como quem exige — em nome do sangue da descendência de Davi e em nome da Judia que reina nos céus e na terra — que abrisse de par em par as portas da misericórdia para aquele homem limpo de coração, para aquele verdadeiro amigo da verdade, para aquele extraordinário varão que foi capaz de dar todo o seu curso sem falar nas equações de Maxwell.

Dez Anos

Um dia após o outro Para lembrar as desconcertantes surpresas da vida, diz o rifão que não há nada como um dia depois do outro. E é verdade. Não há. Na semana passada, como talvez algum leitor ainda se recorde, tornei pública a alegria, e até não ocultei o proveito que tirei de uma barba feita em clima de contravenção. Ora, logo no dia seguinte, fui severamente punido. Foi assim: depois de duas aulas cansativas, e para ser pontual num encontro marcado no Centro Dom Vital, deixei meu carro ali entre o Ministério do Trabalho e o da Educação, onde, aliás, já estavam instalados outros caros maiores do que o meu. É verdade que nas redondezas havia diversos sinais e letreiros. Num deles, em torno de um P vermelho, via-se um texto longamente minucioso e enigmático. P, terças, quintas e sábados, das dezessete e trinta até tantas horas, e de tantas horas até quantas outras. Mais adiante, em torno de um P azul, anunciava-se que aquele pedaço de rua era capitania dos serventuários de não sei mais qual secretaria de não sei qual ministério. Apesar de conhecer razoavelmente a língua dos PP, nunca consegui entender o dialeto usado pela Inspetoria do Tráfego, e como ainda não pude dispor de três meses de férias para a aquisição dessa ciência, continuo afetado pela mesma incapacidade. Por isso, não dispondo, no momento, de uma equipe de assessores que me ajudassem a discernir meus direitos naquela trama complexa de proibições e privilégios, e tendo hora marcada, resolvi deixar ali mesmo o carro entregue à sorte. Na saída, encontrei Fernando Carneiro e ofereci-lhe condução para as Laranjeiras. Mas quando nos acercamos do local, demos com um espetáculo terrível: o nosso pobre carrinho, modesto, manso como uma pomba, estava sendo arrastado por um monstro escuro e medonho. Era o reboque! Dava pena, não por ser meu, palavra de honra! Dava pena, ver aquele carrinho verde-claro nas garras da máquina que o suspendia pelos queixos e que o levava assim humilhado. Carneiro correu atrás da máquina e tentou explicar que aquele automóvel era de um professor brasileiro, carioca, que se demorara no Centro Dom Vital para não desatender a dois jovens chegados de Porto Alegre. Vão foi o seu patético discurso. A máquina levou a presa e nós ficamos perdidos no centro de uma cidade que maltrata os professores cansados. Foi então que ouvi um sermão severo, que me vinha das paredes do Ministério da Educação, e que ecoava nas paredes do Ministério do Trabalho.

— Então o senhor pensa, diziam-me as paredes da Educação, que pode praticar infrações em todos os dias da semana? Pensa que pode brincar com a lei? Pois está enganado, muito enganado. Quem é o senhor? É Senador? É Deputado? É ao menos suplente? Não é. Confessa que não passa de um simples professor. Então não tem automóvel dado, nem vaga para deixar o desprezível carrinho de segunda mão, que só conseguiu comprar com o dinheiro das aulas e à custa de constrangimentos e apertos. Ora, diga-me uma coisa: o senhor será, por acaso, parente da Presidência da República? Sobrinho, pela idade que aparenta, não pode ser; será tio? Ah! Não é! O senhor mesmo confessa que não é nada, que não passa de um desses anônimos que enchem as ruas, que pagam os impostos, e que são acionistas compulsórios da Petrobrás. Então, meu caro, trate de andar direitinho, mui-to di-reiti-nho, e contente-se com as sobras de rua, porque lei é lei.

“Dura lex sed lex”, ecoou sentenciosamente a parede do Trabalho, para mostrar à outra, que também tem instrução.

Calaram-se as pedras e nós saímos à procura de um veículo. No dia seguinte, pedi a um amigo que me ajudasse a libertar o carro, porque tinha aulas a dar na parte da manhã e da tarde. Meu primeiro impulso fora o de faltar às aulas, como vingança. Tanto mais que se trata de aulas extraordinárias, não remuneradas e pedidas, durante as férias, por moços que se interessam por electroacústica. Lembreime, porém, que não dou aulas a senadores e ministros, e que entre meus jovens alunos não há nenhum sobrinho de palácio. Seria uma vingança cretina, seria até masoquismo. Além disso, a gente custa a mudar os hábitos antigos.

O fato é que até parece que eles fizeram de propósito e que leram o artigo da barba. Tenho para mim que a coincidência só não explica a coisa. Eles leram ou ouviram contar a alegria que tive e resolveram neutralizá-la, visto que este é, por definição, o ofício, a nota essencial da missão da máquina pública. E ouvindo contar o lucro que me havia dado a barba clandestina, tiraram-me o dinheiro ganho e obrigamme a escrever este artigo de hoje para cobrir a multa. Paciência. Enquanto me pagarem, irei escrevendo, ora para ter lucro, ora para cobrir o prejuízo das multas. A vida é assim. Não há nada como um dia depois do outro.

Conversa em Sol Menor, Agir 1980.

Wolfgang Amadeus Mozart Autores há que num pequeno fragmento de obra, página incompleta ou melodia esboçada, são logo reconhecidos e até saboreados, como se a alma deles estivesse toda a palpitar naquela simples amostra.

Machado de Assis é um desses autores inconfundíveis; Mozart é outro. Abrindo Memórias Póstumas de Brás Cubas em qualquer página, sente-se imediatamente o proveito e o gozo da presença bem identificada do autor. Aprende-se uma beleza que não está só na construção engenhosa, que não reside na maneira ou estilo. Sem derrogação da primeira das leis perenes que regem o universo estético — a lei da unidade — pode-se dizer que tais autores conseguem estar inteiros em cada parte da obra. Ou talvez seja melhor dizer que cumprem de maneira especial o mandamento por uma transfusão do espírito do autor na substância da obra.

Há dois modos de considerar a unidade da obra de arte. No primeiro, o modo objetivo, diz-se que há perfeição de unidade na obra em que as partes se articulam com tal excelência de harmonia que nos leva a pensar que ali, naquela obra, nada há que se acrescente ou se suprima. No segundo, o modo subjetivo, dir-se-á que existe perfeição de unidade na obra em que o autor se encontra sempre inteiro, total, em cada parcela. E onde domina essa presença contínua do autor — como se vê em três fases de Machado ou em três compassos de Mozart — a subjetividade da autoria passa a dominar a objetividade da obra. Não é Brás Cubas ou Dom Casmurro que estou lendo: é Machado de Assis. Não é a Sinfonia de Júpiter ou a Abertura da Flauta Mágica que estou ouvindo: é Mozart, o próprio Mozart em pessoa.

É claro que estou exagerando. A obra de arte é sempre um objeto autônomo, inteiro, cristalizado, solto. Sua objetividade não pode desaparecer, nem ser transformada em mero pretexto. Não posso, a rigor, dizer que seja secundário para mim o que lá diz o autor na sinfonia ou no romance; nem posso chegar à extremidade, que me seduz, de afirmar que ouço distraidamente a teoria do emplastro ou o desenvolvimento da sonata, por estar atento demais ao timbre cordial do autor querido que me visita. A conversação amorosa tem esse caráter especial: todos os assuntos são pretextos. Dentro da infinita variedade que a vida e o mundo proporcionam, o coração enamorado vê no assunto um lugar de encontro, um modo de contato. Falando de eleições municipais, de chuvas ou de incêndios, os namorados estarão sempre falando de si mesmos.

Analogamente, e guardadas as devidas proporções, a linguagem do artista é sempre a objetivação de uma subjetividade com vistas a uma outra subjetivação. Salva-se a autonomia e a inteireza do objeto se pensarmos que o autor se transubstancia nele. Aquele emplastro é Machado de Assis transformado

em emplastro: aquela sonata é Mozart evaporado em música. Por mais autônomo que seja o objeto feito, não há nunca na arte uma pura objetividade.

O artista está sempre falando de si mesmo, embora se diga, com bom fundamento, que não há nada mais detestável do que falar sempre de si mesmo. Tudo depende da “ratio formalis” ou do ângulo, como hoje se diz. Na verdade, o artista traz à tona da obra a maior profundidade de si mesmo, mas quando realiza com autenticidade essa experiência de abismos trará um segredo maravilhoso que tem, ao lado da máxima particularidade, a máxima universalidade, e que pode tornar-se o segredo de quem o ouve. E assim concluo que o artista genuíno, falando de si mesmo no objeto, estará falando de alguma coisa que me diz respeito, que me toca na máxima profundidade de mim mesmo. O encontro afetivo-estético se realiza no objeto que revela o autor e a mim mesmo me revela. E é por isso, por causa dessa força de união da obra de arte, que certos autores conseguem incutir em cada fragmento da obra a cordialidade que aproxima a experiência estética da experiência amorosa. Às vezes, basta ouvir quatro compassos de piano para que a gente sinta a presença de uma visita desejada: Mozart chegou. Está aí. Anda, senta-se, levanta-se, fala. A personalidade do autor domina a objetividade da obra.

Seria entretanto um erro bastante lamentável supor que o sentimento da inconfundível presença nos vem do estilo ou do maneirismo do autor. É claro que o contorno da personalidade se reconhece pelo estilo, mas arrisco-me a chocar algum leitor ousando dizer que ninguém é menos maneiroso do que Mozart. Se é verdade que ele tem seus vocábulos prediletos, suas construções preferidas, não é por causa delas que sentimos o autor inteiro e total no fragmento da obra, pois com tal critério não saberíamos distinguir um “pastiche” de um autêntico Mozart.

O segredo da transfusão total que se sente na obra de Mozart está na estranha, na desconcertante personalidade que se esconde de nós nos retratos e nas biografias convencionais, e que só se manifesta na música. Habituamo-nos a ver uma cabeça empoada, bem século XVIII, e esquecemo-nos de que Mozart sofreu fundo, na própria carne e na dos filhos, o preciosismo do “ancient régime”. Vemolo no brilho das cortes, com espadinha de fidalgo e mangas rendadas, mas nem sempre lembramos que foi ele, Amadeu Wolfgang Mozart, o moço altivo que preferiu a miséria à libré do Conde Coloredo, arcebispo de Salzburgo, que por castigo merecia ressuscitar hoje, para ver que seu ilustre nome só conseguiu vencer a distância de dois séculos a reboque do nome de quem tanto humilhou. Foi ainda Mozart, o manso Mozart, quem primeiro entre os grandes desejou a arte emancipada do oficialismo e dos empregos. Por derrisão suprema ficou gravada em ambiente de fausto e de aristocracia a figura do cavalheiro andante que passou frio e fome para não alugar sua grande alma cantarina.

Foi duríssima a vida de Mozart. Com exceção de poucos momentos, viveu sempre entre homens de espantosa mediocridade. Apaixonou-se por Aloísia Weber mas casou-se com a irmã, Constância, como o pastor de Labão. De sete filhos perdeu cinco. Passou fome. Foi meticulosamente humilhado. Como

porém não soltou rugidos ou gemidos românticos, contentando-se às vezes em dizer “Cosi fantutti”, nós nos deixamos pensar que sua vida foi amena, ou até leve e translúcida como sua música.

Foi entretanto difícil, dificílima, mas dentro dessa dificuldade, cercado de credores, sitiado pelos tolos, acuado, faminto e tuberculoso, Mozart possuiu ou adquiriu, ou desenvolveu a mais estranha, a mais misteriosa facilidade de compor que já se viu. Escrevia a qualquer hora, em qualquer lugar, a despeito de quaisquer circunstâncias. Cabeceando de sono, alta noite ou mal acordado de manhã, sem almoçar ou recostado na cama depois do almoço, com vagar ou com pressa, com disposição ou com febre, Mozart escrevia. Escrevia no meio da casa, ouvindo Constância contar os episódios do dia! Compunha uma abertura meia hora antes do primeiro concerto, e os músicos recebem as partituras com tinta ainda fresca. Atendia a encomendas. Fazia música italiana para italianos e alemã para os alemães, mas sempre música de Mozart. Nenhuma das exigências pitorescas, que alimentam o anedotário dos artistas famosos, se encontram no ofício de Mozart. Não trazia maçãs guardadas na gaveta como Schiller, não espalhava peças de seda no chão como Wagner, nem gritava por quem lhes despejasse água na cabeça ardente como Beethoven. Trabalhava como qualquer modesto artífice. Sentava-se e escrevia. Compunha como o padeiro amassa o pão, ou como o lavrador empurra o arado. De tal modo vivia mergulhado na música, fundido nela, que até chegava a parecer desatento. Sem calmantes ou excitantes sua composição flui como se o seu coração vivesse a se desintegrar em música. E é por isso, creio eu, por causa desse paradoxo de uma vida de espessas dificuldades a se transfigurar em música translúcida, por causa dessa total transposição de alma no objeto de sua arte, por causa, em suma, da integração ininterrupta capaz de tão maravilhosa espontaneidade, é por isso que hoje, ouvindo quatro compassos, sentimos logo a presença total e inconfundível da alma imensa que há duzentos anos vem crescendo como um sonoro universo em expansão.

Foi curta a vida de Mozart. Morreu tuberculoso, aos trinta e poucos anos, enquanto arrematava o Réquiem que lhe encomendara um personagem enigmático. Morreu na miséria e no abandono. Chovia muito no dia de seu enterro. O coche chegou sem acompanhamento no cemitério, e o corpo de Wolfgang Amadeu Mozart foi atirado na vala comum.

Fevereiro, 1956.

(publicado em DEZ ANOS, Editora Agir)

LITERATURA

Sobre Lições de Abismo

Com satisfação publicamos um escrito inédito de Gustavo Corção sobre o seu romance Lições de Abismo. O texto era na verdade uma carta enviada à escritora Raquel de Queiroz e a reproduzimos pela primeira vez na Revista Permanência 265. D. Raquel de Queiroz, Li com enorme interesse a sua nota sobre o meu livro. Vou mais longe, confesso que li com sofreguidão. A senhora que já teve seus livros me entenderá. Digam os outros que é vaidade nossa, mas não é; ao contrário, é talvez o melhor de nós, o mais puro de nós, essa avidez pela confirmação daquilo que escrevemos. Será no fundo vaidade, se quiserem, mas uma pobre vaidade, ou uma vaidade de pobre. Aquele livro, quando o soltei, deu-me mais insônias do que nos dias de trabalho. Escrevera-o com paixão, dias e dias, noites e noites. Andava com ele em mim, comigo nele. Juntara, como num cadinho, a escória de todo um passado fantástico, meio vivido e meio sonhado. Fundira o grosso minério. Cinzelara as pepitas, os lingotes, as barras. E agora, apesar de todas as reprises, da revisão esticada, da refusão dos caprichos ingratos, dos cortes, e finalmente da ortografia — porque a minha nunca se depurou dum hibridismo em que as letras da adolescência se misturam aos acentos circunflexos da velhice — apesar de todo esse nervoso apego eu tinha de largá-lo, como se larga o filho completo e maior. (Continue a ler) Ora, nesse momento assaltou-me uma angústia atroz. Coisa horrível, esses gestos sem volta, esses atos irreversíveis! Há gente que ainda discute o divórcio e a indissolubilidade por não ter observado quantos e quantos atos irreversíveis formam nossa vida. Assim o livro publicado. Cinco minutos antes podia rasgá-lo. É verdade que já não poderia anular, retirar do universo, da história invisível, as noites e os dias da composição. Não podia reter o livro. Rasgava-o, chorava em silêncio, sofria a portas fechadas, e pronto! Entregue ao editor já ficava mais difícil a volta. Houve conversas comerciais, cláusulas, estampilhas e adiantamentos em dinheiro. E dinheiro na mão que o não tem fácil, é coisa que corre com a inflexibilidade do tempo. As notas somem-se como os dias da folhinha. Depois vem a máquina. A máquina pega no livro e faz dele centenas de pacotes que se empilham num depósito. E

cada vez a gente mais sente que a coisa fugiu, escapou de seu dono, e tornou-se volume e peso do universo físico, fato do universo moral, compromisso no mundo do homem. Grave coisa! Pois aquilo que eu escrevia em surdina, mal aceitando que me lessem por cima do ombro, era agora uma estridência editorial, uma coisa de praça pública! Um dia — já estava o livro nas montras — eu vi num bonde um senhor de meia idade, entalado entre duas mulheres corpulentas, a ler o meu livro. Em que página estaria? Como estaria entrando nele a minha paixão? Com que pedaço de vida, com que acompanhamento estaria ele pronunciando as palavras que em segredo eu vira nascer e crescer? Quando o bonde chegou ao termo o meu homem desceu levando o livro embaixo do braço. Tive ímpetos de ir atrás dele para explicar, para justificar, para desculpar. Diria, antes que tomasse ele a ofensiva, que classificara o livro como Romance, depois de muito hesitar. Mas defenderia a classificação. Por que não? Não há nada mais intensamente e mais interiormente humano do que a história de uma alma. Tomado materialmente, medido pelas páginas de incidentes coloridos e exteriores, não seria romance; mas tomado, como convém, na perspectiva das experiências concretas, vividas, e particularíssimas, seria romance. Discutiria, aflito, com o homem que levava minha alma embaixo do braço. Mas os outros. Os que lêem em casa? Os que lêem na rede ou na cadeira de balanço? Os que lêem na cama? Como poderia eu cativar esse mundo de opiniões formadas, como poderia apagar as palavras gravadas na memória, as frases desencontradamente fixadas entre mil preconceitos? O meu livro estava agora em pedaços, mal ou bem digeridos, no sangue dos outros. Já não me adianta explicar as intenções onde impera a dureza do objeto. Já não me vale desculpar-me, se por abjeção quisesse dizer que escrevo em brechas de tempo, aos solavancos, numa vida estilhaçada, num ritmo interrompido. Sabes, ó fino leitor, que sou um pobre professor de eletrônica no Exército, no Departamento de Correios e Telégrafos, e na Companhia Telefônica? Sabes, ó irritada leitora, que eu vivo como o homem de que fala Isaías, isto é, circundado de mulheres? É exato. Em casa são oito contra um. O único filho homem está longe de mim. Sou o único homem em casa, cercado, às vezes abafado por esse misterioso e ilimitado mundo feminino. Tenho um amigo, o Chagas, nas mesmas condições. Contou-me ele que às vezes desce do escritório, quando ouve a tesoura do jardineiro, e vai entabular com ele “uma conversa de homens”. Que mais vos deixei eu, ó sombras exigentes? Que tenho muitos amigos? Que o telefone não me dá um descanso? Que escrevo nos jornais e que mal posso responder às cartas que recebo? Lembrarei os afilhados, e as combinações, os arranjos e permutações entre todas essas pessoas de títulos diversos, mulher, filhas, alunos, afilhados, e leitores? Ficará bem acrescentar aqui os anos, 55 bem contados, bem pesados, e sobre os anos colocar as mazelas, e sobre as mazelas as aflições? Mas um livro é um livro. Quem o escreve não tem apelo nas conjuntivites e nas saudades. Não vale a desculpa onde impera a exigência do objeto. Tive um amigo atroz, duro, retilíneo, milimétrico, que mandou pendurar na parede de sua oficina, para edificação dos operários, esse cartaz dantesco: “A melhor desculpa nunca vale um bom resultado”.

Assim também nas fábricas das coisas espirituais está pendurada a mesma frase implacável. O livro é o que é. Aplicam-se aqui, em sentido inverso, as palavras de Pilatos: “quod scripsi, scripsi”. Depois do que disse acima eu deveria guardar a pena, dobrar o papel e contentar-me com três palavras de agradecimento pela nota que a senhora publicou. Mas não me contenho. Rasgo o cartaz. Desminto as palavras de Pilatos e as regras da arte. E enveredo por uma interminável explicação, tendo por desculpa que não é absurdo escrever depois do que ficou escrito. Penduro no meu livro este longo post-scriptum. E digo longo, sem cálculos, porque nem sei até onde irá esta carta que ainda não comecei, ou este post-scriptum que começo agora. Devo dizer que a senhora me confundiu nas primeiras linhas de seu artigo. Mas logo me assustou quando diz: “Aquele homem despreza e repele os demais homens!” Quem? Eu ou José Maria? No ponto em que se acha a frase a senhora ainda está falando do autor e não do personagem. Terá havido engano, deslocamentos, ou será para mim mesmo que a senhora dirige tão severa acusação? É claro que não me compete defender-me, e que nem posso trazer-lhe aqui as provas de meus sentimentos. O mais que posso dizer, sem provas, sem argumentos, é que eu não desprezo os outros homens. Permita-me aqui o simples e infantil recurso da teimosia: não desprezo, não desprezo, não desprezo! Mas deixemos a minha pessoa e vamos ao personagem. Desde logo quero mostrar-lhe o que me parece ser uma contradição sua: a senhora impugna a classificação de romance, mas logo após entra a brigar com meu pobre José Maria como brigaria com sua prima ou sua cunhada. De seu artigo, se não fosse a peregrina beleza de muitas passagens que me deixaram inveja, eu poderia impugnar a classificação de crítica literária. É antes uma briga, uma discussão em família. A senhora tomou partido contra José Maria. Zangou-se. Ora, a gente só pode zangar-se com uma pessoa. Logo existe a pessoa, e conseguintemente, o romance. Vamos agora ao personagem. Não. Ainda tenho alguma coisa a dizer do autor, ou melhor, das intenções e dos motivos que foram empurrando o autor para aquele feitio de que se revestiu a obra. Eu não sei bem como em geral ocorre a gênese de uma composição. As confissões públicas de que tenho notícia, como, por exemplo, a racionalíssima explicação que Edgar Poe nos dá de seu poema, não me convencem. Não sei se via de regra o artista enceta seu trabalho com idéia da obra, do gênero e da espécie. O próprio Poe, movido pelos misteriosos impulsos, sentou-se um dia para fazer um poema. Mozart sentava-se para compor uma sinfonia. Balzac aparava a pena para escrever um romance. Não digo que o gênero se impunha, nesses casos, em primeiro lugar. Não. O que sempre aparece em primeiro lugar nos horizontes da inspiração é a idéia, a ponta, o mastro de uma indecisa idéia. O que o artista quer, antes de tudo, é dizer, exprimir, comunicar uma idéia. Mas como? Com que sistema de sinais? Dentro de que espécie de símbolos? Essa segunda determinação segue de perto o surgimento da idéia quando o artista tem um instrumento preferencial, bem marcado, em ligação conjunta com suas idéias. Balzac e Mozart tinham seus nítidos instrumentos de expressão, de tal sorte que à impulsão da idéia seguia-se a determinação do gênero da obra. Provavelmente, nesses casos, a idéia já aparece ligada ao meio de expressão como ao seu instrumento conjunto. No meu caso, porém, por motivos diversos, de que não me gabo, a idéia apareceu com certa nudez e certa indeterminação quanto aos meios de expressão. Fui em tempos, quando andei a me procurar,

uma espécie de monstro que detinha um bizarro título de campeonato: de todas as pessoas de meu próprio conhecimento eu era a que fazia o maior número de coisas mal feitas. Fiz música, pintura, escultura, poesia, ciência, técnica, pedagogia, esgrima, taquigrafia, xadrez, e mais outras coisas truncadas e menores. Mal ou bem fixado na nobre arte da palavra, e tendo deixado definitivamente a palheta, o florete e o tabuleiro, trouxe eu para dentro da literatura esse mau princípio da difusão e da indisciplina. Um gênero era pouco para minha tendência de poligamia espiritual. E dei um certo desligamento, um certo hiato — que reputo defeituoso — entre o surgimento de uma idéia e a escolha rápida e decisiva de seu instrumento conjunto. Seja como for — e receio que essa explicação já esteja demais enfadonha — o fato é que eu posso asseverar que não foi “para escrever um romance” que um dia me sentei diante do papel em branco. Foi para dizer, para exprimir uma experiência. E essa experiência era a da procura do sentido último da vida, e da procura da própria alma — a descoberta do eu — desenhada contra o fundo escuro dos desencontros, dos equívocos, dos absurdos, e da morte. Poderia exprimi-la de um modo teórico e especulativo, como em aulas no Centro Dom Vital já fizera. Mas a idéia que me empurrava já não era tão minha. Não. Ela queria ser dita com o calor e a particularização de uma experiência própria e vivida. Como fazer? Em meu próprio nome não poderia fazer as introspecções necessárias, mormente quando precisava da ganga dos fatos, das decepções, das aflições pessoais. Se escrevi sempre na primeira pessoa, por questão de estilo, nunca me atrevi a tomar o pronome em toda a sua palpitante substancialidade. As experiências descritas poderiam facilmente se transpor para outros eus. Ao contrário, a idéia que me puxava agora tinha exigências de personalidade e de intimidade. Como fazer? Surgiu-me então na mente a idéia de lançar mão de um heterônimo, como o Fernando Pessoa. Pus-me então a catar dentro de mim, na memória e na imaginação, a matéria com que pudesse fazer um duplo. Impregnei-me de um tipo de leitura (Rilke, Pascal, etc) que não tinha as preferências do autor de meus livros anteriores. Impregnei-me de Wagner, Nietzche, para tirar de dentro de mim um tipo de parentela romanticamente germânica, diferente, bem diferente de Chesterton que me acompanhara passo a passo no “Três Alqueires e uma Vaca”. Devo notar de passagem que tenho certa aversão a esse tipo humano que procurava tirar de mim mesmo. Mas parecia-me que era esse o tipo que mais convinha à experiência que andava a pedir expressão. Na fina ponta da idéia minha, ou quase minha, estavam os dois termos principais da mensagem de Santa Catarina de Sena: “Conhece-te a ti mesmo” e “no Sangue”. Já havia escrito algumas reflexões sobre esse tema. Já pronunciara, no Convento dos Frades Dominicanos, uma conferência sobre essa doutrina mística, e muitas páginas foram trazidas para o plano da mística natural em que transcorre a história de José Maria. Os outros motivos vieram incorporar-se à idéia. O primeiro, a Mulher, tinha uma exigência, uma força de invasão que eu não podia deter. A Mulher entrou sem pedir licença e instalouse no centro da idéia. Três rosas que por acaso morriam numa jarra, diante de mim, trouxeram a

lembrança das mulheres flores de Wagner. E a Morte, que já estava no fundo da idéia, tornou-se feminina, e revestiu-se do sortilégio de Kundry, a mulher eterna de Wagner, ambivalente, letal e salvífica, sedutora e corredentora. O meu personagem delineava-se, magro, melancólico, no caos feminino, no confuso fogo de cores e perfumes. E eu o via de costas, ombro curvado, a despedir-se, a despedir-se... Faltava a lógica mortal, o silogismo, e faltava a doença. A página de Tolstoi veio ao meu encontro — já a citara em aula — e sai então a procurar a doença. Ora, neste ponto fui servido por uma extraordinária coincidência: o amigo que me deu a doença, com seus detalhes, escolheu aquela, a única que serviu, para exprimir ao vivo o centro mesmo da idéia. Deu-me uma doença que consiste na falsificação do sangue! Nesse dia, com grande exultação senti que tinha naquela doença um dos personagens do meu drama. Porque convém aqui assinalar uma coisa: seguindo a influência de Wagner, eu levava meu personagem a mover-se entre leitmotives, espécies de símbolos, espécies de personagens, transubstanciados. As rosas são evidentemente as mulheres encantadas que Kundry comandava. A Morte, o Sangue, o Relógio quebrado, Aldebarão, outros tantos personagens, e os rubis nasceram do conúbio do sangue com a poesia. Estava eu nesse ponto, com meio-caos e meia-obra, ainda preso pelo fígado a um heterônimo comprometedor e pouco livre, quando um dia, na rua, vi passar o José Maria. Estranho personagem! Alto, magro, vestido de escuro, meio curvado, com um ombro um pouco mais alto do que o outro, braços caídos, moles e disponíveis, ele passou diante de mim, e eu notei no seu rosto de anjo falhado, ainda moço, uma mecha de cabelo apenas grisalho caído sobre a fina sobrancelha em arco interrogativo; e eu vi um olhar de sombra, ardente, agudo, a procurar ao longe alguma coisa perdida — saudade? esperança? A procurar aquela alguma coisa — Eunice? — que lhe punha no rosto a sombra de um sorriso frágil e triste. Estive para chamá-lo baixinho, pelo nome José Maria! Para travar-lhe o braço, e ir dali conversando, ouvindo a história que lhe sombreava o rosto fino. Mas a rua levou meu personagem, como um rio grosso leva baldeado, troncos, flores, e objetos roubados às margens, cadáveres de objetos roubados. Vi-o ainda uma vez, longe, ombro curvado, braços disponíveis, andar vacilante e leve... Tinha o meu personagem. Existia agora fora de mim. Somewhere. Já não era somente um fantoche composto com meus restos. Conseguiria exprimi-lo? Conseguiria traduzi-lo? Não sabia. E até hoje não sei. Digo mais, se a senhora está certa no que disse de meu personagem, então estou eu erradíssimo, estou em falta de traição. Assusta-me a idéia, D. Raquel de Queiroz, de que um de nós dois se tenha enganado de um modo tão colossal. Serei eu? Será a senhora? Terei eu fabricado moeda falsa? Terá a senhora interposto algum filtro de luz na leitura, o bastante para cortar as raias do generoso vermelho, os traços de sangue e amor — finos traços, mas vivos e palpitantes — que julgo eu ter conservado no que disse por procuração, no que atribui àquela testa clara e alta de topete grisalho àquele fino olhar perdido e ardente? Que posso eu fazer agora? Emendar, corrigir o livro? “Quod scripsi, scripsi”. Dura lei do objeto. Dura contingência das empresas editoriais que talha em guilhotinas engenhosas um tijolo de papel a que nada se pode acrescentar!

Mas posso escrever uma glosa, um post-scriptum, uma explicação que será uma retratação se não houver continuidade e proporção entre os traços de hoje e o perfil de ontem. O seu curto bilhete, D. Raquel de Queiroz, contém três ou quatro observações que, para resposta adequada, exigiria de mim outro livro. Melhor, exigiriam dez livros, exigiria uma Suma, uma viagem de circunavegação pelo hiperbólico mundo da comédia e da tragédia. Se quiser, partamos juntos para essa esquisita viagem, e na volta conversaremos para saber quem está com a razão. Houve tempo, um tempo assaz estúpido se quiser, em que se pensava que o personagem de um romance devia necessariamente ser um personagem excepcional. Mais tarde, porém, veio outro tempo, ainda mais estúpido, em que se decretou que o personagem do romance, para ser autêntico, devia necessariamente ser um personagem vulgar. Em qualquer dessas épocas fará escândalo quem afrontar as regras fixadas por decretos da moda. Ontem escandalizaria quem tomasse um simples boticário, hoje escandalizará quem escolher um descendente de Pascal. Não me passou pela idéia afrontar as normas de nosso tempo. Se o fiz foi por acaso. Mas é evidente que o meu personagem precisava ter a sensibilidade dos mais finos sismógrafos para traduzir a experiência que todos vivem, confusamente, angustiosamente, mas nem todos podem exprimir. Neste ponto precisamos firmar alguns conceitos que nos separam. Entre eles tomo em primeiro lugar o conceito de humano com que a senhora arma para maltratar meu José Maria. Que quer dizer “humano”? Estamos aqui no centro mesmo da questão. É nesse ponto, creio eu, que se situa o nosso desentendimento é nesse ponto que pode resolver-se ou agravar-se o mal-entendido entre a senhora e José Maria. De mim mesmo disse a senhora que sou mais desumanizado do que os outros, porque “mais trabalhado por outras culturas, por emoções intelectuais refinadas”. Donde se conclui que a humanização e a cultura são antagônicas, e que o homem mais se define pelos pés do que pela cabeça. Há sem dúvida um risco de angelismo quando a gente esquece os pés do homem, mas não é com o naturalismo, com a filosofia da complacência e da mediocridade, que se cortam as asas do homem. Erraria eu se atribuísse ao vulgar, ao homem humilde e ignorante, uma diminuição essencial de sua humanidade. Mas erra mais, no sentido oposto aquilo com que o homem se define, quem atribuir uma essencial diminuição ao poeta, ao filósofo, ao alpinista das idéias ermas e nevadas. O que é que nós reverenciamos no homem comum senão essa espontaneidade. Ele não a sabe exprimir. Sem dúvida. Mas será essa incapacidade, esse “não saber exprimir” que constitui o título máximo do homem comum, merecedor de nossa reverência? Seria esquisito, não acha?, que o objeto de reverência fosse exatamente essa incapacidade acidental de dizer, e não aquela realidade substancial. E o poeta? Reverenciamos nele a habilidade, a jogralidade, a custa de lhe diminuir os títulos da essencial humanidade? Seria ainda mais esquisito, não acha? Não. Dissociemos desde já, por favor, essas duas idéias de cultura e desumanização que a senhora conjugou. Serei eu o monstro que a senhora esboçou com talento. Mas então eu o serei não pela cultura, mas pelo fato de não a ter assimilado, pelo fato de a tê-la nos ombros mais do que na alma,

fardão vistoso mais do que dilatação da inteligência. Veja bem, D. Raquel de Queiroz, que não me esquivo de sua acusação. Quero-a porém mais fundamentada e mais perfeita. Porque se a cultura traz desumanização, devemos fechar as escolas, devemos soltar vivas ao primarismo populista dos governantes de fancaria, e insensivelmente devemos voltar à árvore. Há no seu bilhete um trágico sinal dos tempos: uma desconfiança da inteligência. A mulher mais inteligente que eu conheço bate com o pé no chão, envolve-se em defesas femininas e temperamentais, apega-se aos poros da carne, às gorduras, à morrinha da carne, para ferir alto, para matar a estrela que brilha nas testas dos homens. Como se explica que a inteligência choque a inteligência? Como se compreende que dois alpinistas que se encontram, com suas cordas e seus pés-ferrados nas alturas perigosas não tenham alegria do encontro, e não gritem um para o outro numa sonora saudação de fraternidade e de aventura? Ah! Bem sei que me vais falar no diabólico orgulho que mora nos anjos falhados. Sim, há o orgulho. Bem sei. Há o orgulho, esse vício capital que mais do que tudo pesa no mundo do homem. Vício geral, vício universal, apego do eu, desregrada estima de sua própria excelência, erro interior, falsa avaliação do próprio ser, afronta a Deus único e perfeito. Se nós escrevemos num papel amassado “orgulhoso” e o soltássemos dum oitavo andar da Avenida Rio Branco, ele cairia certo, em cima de rico ou de pobre, de sábio ou de néscio. Certíssimo. Luva para qualquer alma. Adjetivo para qualquer humano substantivo. O orgulho é o primeiro e último vício, o mais persistente, o mais difundido. Não há idade que lhe resista; não há condição social que dele se defenda. A concupiscência tem momentos de pacificação. Arde em desejos quando não possui, mas pacifica-se, neutraliza-se quando atinge o bem cobiçado. O orgulho, não. Quanto mais servido mais ampliado fica. É uma fome inextinguível. Quando parece estar pacificado é justamente quando está mais exasperado. O orgulho é uma coisa feia. É sobretudo uma coisa transcendentalmente ridícula. É a mais comumente merecida das acusações, mas é também a mais grave. O primeiro equívoco que a seu respeito se comete — e que a senhora cometeu — é o da sem-cerimônia com que, cortesmente, educadamente, se atribui ao outro esse vício mortal. A senhora não disse de mim, sem cuidadosas averiguações, que eu ando nos lugares de perdição. Não disse de mim, sem certeza metafísica, sem ter visto com os olhos, que eu sou um beberrão. Mas insinuou que sou orgulhoso, e de meu personagem não teve dúvida de dizer que é diabolicamente orgulhoso. Por quê? Aqui entramos noutro assunto, isto é, noutro equívoco que precisamos esclarecer: a senhora deixou-se levar por um lugar comum que atribui certa proporcionalidade entre a inteligência e o orgulho. E aqui estamos, novamente, em posição tomada contra a inteligência. E conseqüentemente aqui estamos nós, D. Raquel de Queiroz, a redigir com sua graça e seu talento um grande convite à festa da mediocridade. Ora, eu não creio que uma pessoa inteligente, com um minuto de reflexão, possa persistir nesse lugar comum. O orgulho é um movimento da vontade, e procede de um erro, de um equívoco central. Sua composição é pois em tudo contrária à luz: é uma teimosia em campo obscuro, alimenta-se de erro, e desenvolve-se na medida em que a vontade não consulta a sua regra. Tanto pode ocorrer num homem de estudo como num homem iletrado, mas é mais provável que se desenvolva naquele que se nutre de mentiras vitais e que não se examina. O que se pode sensatamente dizer do homem muito lúcido, do poeta, do filósofo, é que a sua parcela de orgulho fica mais pública, mais visível. Mas não se pode dizer

que essa parcela existe nele por causa da lucidez, da poesia e da filosofia. Não. Anda por aí muito orgulhoso calado, muito orgulhoso sem armas, muito orgulhoso que inventa seu próprio universo moral, que acha sozinho, na latrina talvez, a sua própria filosofia, a sua própria religião. Como porém esse homem é materialmente modesto, diz-se que é humilde. O bombeiro hidráulico que anda inventando o moto-contínuo é humilde. Mas o homem que esperou calado, quieto, inédito, uma religião dada por Deus e uma filosofia construída em 2.500 anos pelo gênio de seus antepassados é orgulhoso. A mocinha divorcista que chama de amor o que é comédia; que não sabe o que é casamento; o que é homem; o que é uma sociedade de homens; e quais são as exigências que decorrem da natureza das coisas, e que fala alto do que nunca pensou, e que tira argumentos das glândulas, essa é humilde. Ao contrário, quem procurou destrinchar o fio confuso da grande lei natural, quem faz de sua inteligência o espelho das coisas, quem estuda, quem lê, quem ouve, quem passa anos calado, debruçado, atento, esse é orgulhoso. E quanto mais lógico mais orgulhoso. É possível que um certo orgulho, um certo apego de si mesmo produza no homem estudioso um movimento de irritação diante da estúpida soberba que encontra na mediocridade. É possível que sua intolerância tenha um zelo amargo quando vê o alegre desembaraço com que a estultice anda no mundo. Mas será razoável tirar dessa intolerância um sinal de orgulho? Não ocorre que possa nascer do imperativo das evidências vistas, contempladas, veneradas. Para muita gente — e este é outro lugar comum que precisa ser re-examinado — a intolerância é correlata do orgulho. Ora, eu creio e afirmo, intolerantemente, que o quadrado da hipotenusa é a soma do quadrado dos catetos. Essa pequena verdade geométrica, uma vez vista, obriga, necessita a inteligência. E toda a dignidade humana repousa sobre essa docilidade da inteligência às coisas. Se vi, vi. Haja o que houver, chova ou faça sol, prendam-me, torturem-me, chamem-me de tudo: o quadrado da hipotenusa continuará a ser a soma do quadrado dos catetos, e eu trairei a minha alma se renegar o teorema. Posso tolerar que outros homens não saibam geometria; mas não posso tolerar que a ignorância deles seja uma virtude mais alta, e que reclamem o elevado direito de transformar o mundo dos triângulos. Não, D. Raquel, não é na perspicácia e na lucidez que o orgulho escolhe seu abrigo dileto. É antes na obscuridade e na estupidez. Um homem extraordinário, como por exemplo um Einstein, ou um Bérgson, poderá ser orgulhoso. Mas eu diria que o é por não ser bastante inteligente. Todos nós temos nossas zonas obscuras, todos nós, mal ou bem, pagamos o imposto da burrice, e é nessa mesma medida que seremos orgulhosos. É um lugar comum, um bom lugar comum, o que diz que o homem quanto mais estuda mais sabe o que ignora. Creio que foi Pascal que teve a idéia de representar a conquista intelectual do homem por um círculo. A área do círculo é a ciência, o perímetro da circunferência é a fronteira do ignoto e portanto a medida da ignorância. Ao contrário, o tolo que folheou um almanaque julga-se possuidor dos mais transcendentes arcanos. Torno a dizer que é possível encontrar um grande orgulho numa grande inteligência. Esse conúbio é trágico para quem o carrega, e para o mundo. Faz medo. É terrível. Tudo isto é exato, mas nunca eu diria, nem insinuaria que uma coisa acompanha outra, ou que seja nos sinais de inteligência que se deva buscar a revelação do orgulho. Hoje, na confusão, no caos de opiniões abortivas em que nos movemos, quem tiver convicções tiradas da evidência aritmética ou filosófica, será considerado intolerante e orgulhoso. A humildade, ao

contrário, nessa feira livre de idéias apodrecidas, tornou-se sinônimo de tolerância, de complacência. Tornou-se, desculpe-me a expressão, uma blandiciosa cafetina das idéias baratas. E a luz, e a luz, D. Raquel? A inteligência vive da luz, come luz, bebe luz, e tem arestos duros de diamante para espargir as cintilações da luz. Deverei lembrar-lhe que Santa Tereza, em cuja história a senhora esteve empenhada, disse que a humildade é verdade? Humildade é verdade. É claro que subsiste um modo orgulhoso de falar na verdade; mas isto só prova que existe um modo de trair a verdade usando o seu santo nome. Como também existe a estultice que chama de deus o que não é Deus. Mas humildade é verdade, o orgulho é mentira. Mentira encravada entre o eu e o eu. Mentira última, profunda, difícil. Mentira quase substancial. Mentira minha. Mentira entre a alma e a alma. Os nossos grandes mestres espirituais, que bem sabiam o que é o orgulho, o que é a humildade, deixaram a esse respeito um depoimento unânime. Veja a grande mulher que foi Santa Catarina de Sena. Veja São Bernardo, o asceta, o intolerante, o lúcido polemista, o terno comentador do Cântico dos Cânticos. Deixou-nos ele um tratado sobre os graus do orgulho. O primeiro grau é a curiosidade, a inquietação da inteligência. Poderíamos reconhecer nesse primeiro grau os insólitos gestos do meu José Maria, o curioso, o inquieto. Mas sabe a senhora qual é o décimo segundo grau do orgulho na escada do Santo Doutor? É o hábito do pecado, a insensibilidade adquirida, a tolerância, a indiferença benigna. São os inocentes do Leblon. São os homens que não fazem questão que dois e dois sejam quatro, e que admitem que cada um tenha as opiniões que quiserem. O décimo segundo grau do orgulho é o relativismo, que já não discute, que já não exige. O décimo segundo grau o orgulho é a complacência do mundo. Diz ainda a senhora em um artigo que o meu personagem está cheio de angústia metafísica, puramente metafísica, e não de sangue e de lágrimas como a nossa. Como assim? Há aí, D. Raquel, uma falsa idéia do que seja a metafísica, com alias já notei na pena de outro crítico. Quem lhe diz que suas angústias não são metafísicas? Convém precisar melhor os termos. No sentido exato a metafísica é a ciência especulativa do ser enquanto ser. No sentido metafórico, diz-se experiência metafísica, ou angústia metafísica, do que se refere ao drama vivido pela inteligência, obscuramente experimentado, e isso é comum a todos os homens. A poesia é privilégio de poucos, mas a experiência poética é comum. Assim também o que chamaríamos experiência metafísica. E essas experiências são trivialíssimas, vulgaríssimas, e surgem mil vezes por dia na mais obscura das vidas. Uma criança de seis anos já tem experiências metafísicas. Uma cozinheira quer ir ao carnaval por motivos de inteligência, isto é, metafísicos. O erro está em pensar que a filosofia não se comunica com a vida comum, permanecendo num firmamento de essências. O meu personagem, sem o menor vislumbre de ironia, ao contrário, com uma ternura quase manifesta demais, vê nos projetos de Jandira, a austera cozinheira, a mesma raiz comum, o horror ao nada. Falarei mais adiante desse problema. No momento quero assinalar, D. Raquel, que as angústias do meu personagem são, confessadamente, as mesmas, em suas raízes, que os de sua cozinheira. Foi assim, ao menos, que entendi o que disse José Maria sobre o carnaval de Jandira. E se assim é, não poderão ser suas, D. Raquel, as angústias humildes de uma cozinheira?

Um outro crítico estranhou que José Maria, depois de falar em ciúme metafísico, viesse cantar uma banalíssimo ciúme de todos os dias. Imaginaria ele que o ciúme do filósofo seja em latim ou em grego? Ou pior, pensa o crítico que não existem, atrás dos fatos mais triviais, as causas mais profundas. A rigor eu diria que meu personagem poderia convencer que não existe a banalidade. É um engano, e não pequeno, imaginar que o mundo das realidades se divide em dois, de um lado o trivial, inclusive o trivial fino dos escritores de talento, e de outro lado o profundo dos filósofos. Tudo é trivial, D. Raquel, e o nosso olhar se contenta com a pele cansada dos fatos quotidianos. Mas tudo é profundo, metafísico, religioso, se o olhar procurar o mistério. Santo Agostinho tem uma grande frase em que diz que os grandes mistérios se tornam banais pela repetição, ou pela desatenção do olhar. Pois é isto uma das coisas que o meu personagem mais procura exprimir. Tudo, tudo, absolutamente tudo, tem raízes que vão até as causas primeiras, até a mão de Deus. Foi assim que entendi o que disse José Maria, da cozinheira, das rosas, da trágica frivolidade da sombra feminina que o persegue. A experiência metafísica, que poderíamos chamar com mais propriedade de mística natural, não precisa de laboratórios como uma experiência química ou genética. Tudo o que existe é matéria para essa universal experiência. E suas repercussões vão até o sangue e à lágrima porque o homem, apesar de tudo, é um só. (Revista Permanência )

HISTÓRIA

A guerra civil espanhola O texto que se vai ler constitui uma série de excertos do livro O Século do Nada, de Gustavo Corção, que, reunidos, narram a terrível história da Guerra Civil Espanhola, "como se os erros do século ali tivessem aprazado um sinistro encontro para mortal ajuste de contas"; são estas, de fato, algumas das páginas mais tensas do grande autor. Recomendamos igualmente a leitura do artigo "O Mito de Guernica", que, relatando as descobertas de alguns historiadores, apresenta o famoso bombardeio como uma grande farsa.

A GUERRA CIVIL ESPANHOLA

«(...) mas agora acode-me a idéia de uma omissão que implica uma série de recolocações e pela qual eu estremeceria de vergonha e tristeza se, no momento de dizer o nunc dimi s, me viesse à mente o relâmpago do negrume de tão espantosa omissão. Qual? A de nunca ter escrito em minha longa vida de escritor, entre tantas páginas de louvor e de admiração, de entusiasmo e de apologia, estas poucas palavras exigidas pela mais clara verdade e pela mais límpida jus ça; sim, estas poucas palavras que já deviam ter transbordado de meu coração agradecido e deslumbrado: Honra e glória à Espanha católica de 1936 Honra e glória a Dom José Moscardó Ituarte, defensor do Alcazar, a seu filho Luis Moscardó, a Queipo de Llano e a José Antônio Primo de Rivera. España libre, España bella Con roquetés y Falanges Con el tercio muy valiente..." Honra e glória aos doze bispos már res e aos quinze mil padres, frades e religiosas "verdadeiros már res em todo o sagrado e glorioso significado da palavra" (Pio XI). Honra e glória a todos os que morreram testemunhando com sangre: "Viva Cristo Rey"!» (O Século do Nada, introdução)

1931 — Espanha Com a queda da ditadura do general Berenguer, sucessor de Primo de Rivera, e a partida de Afonso XIII para o exílio, instalou-se a República na Espanha em 12 de abril de 1931 mais tranqüila e pacificamente do que a nossa em 1889, da qual Machado de Assis teve notícia em conversa na Rua do Ouvidor. A Espanha parecia acordar do sonho das glórias magníficas para uma atualidade otimista num século de progresso; parecia disposta a uma atualização confiante e tranqüila. Houve até um Te Deum, foguetório e música para celebrar a jovem República que logo nos seus primeiros dias mereceu do povo a alcunha de “Niña Bonita”. Quem, no entanto, pudesse sobrevoar as terras de Espanha nesse mesmo ano, e com um sexto sentido pudesse perscrutar e auscultar as palpitações profundas da alma espanhola, logo saberia que

era fictícia a bonança e que, por baixo daquele lençol de otimismo, preparava-se uma espantosa tempestade de fogo e sangue. O que era a Espanha em 1931? Um país maior do que a França, mas um país um pouco esquecido dos outros e quem sabe? de si mesmo, um pouco posto á margem, quase decapitado da orgulhosa Europa. Mas nas suas entranhas, nas profundezas de sua alma trabalhava a nostalgia das grandezas perdidas, a lembrança do século de ouro e conquistas que em 1931 parecem sonhos de exaltação que não se enxertavam bem na substância de uma República que mais parecia um enorme aparelho eletrodoméstico comprado no estrangeiro. E a Espanha espanhola que pela voz de Dom Miguel Unamuno desdenhava os progressos técnicos: “ellos que inventém, ellos que inventém...”, onde estará concentrado o seu sangue?

Quem foi, se não a Espanha, que deu ao mundo outro mundo, um Novo Mundo neste mesmo mundo, glória terrestre por antecipação das glórias no céu? Quem duplicou o espaço geográfico da civilização? O solo da Cristandade? E quem mais do que Espanha teve filhos valorosos e filhas ardentes, santos e santas mais incondicionalmente santos e santas? E de onde saíram as duas gloriosas ordens religiosas, uma para cristianizar a Idade Média no princípio de sua decadência, e outra para os tempos modernos desde o início de sua soberba? Da Espanha saiu Domingos de Guzmán, o grande asceta que às noites, pelos pecadores impenitentes se flagelava e rugia de dor e de amor; e na Ordem dos Pregadores nasceu o maior “doutor do supremo saber diurno e comunicável”, Tomás de Aquino, italiano, espanhol e francês, glória da latinidade, luzeiro da Igreja. Da mesma Espanha saiu para o largo mundo novo e antigo Inácio de Loyola, soldado de Cristo mobilizado para enfrentar os contestatários que se enfeitavam com os ouropéis da Renascença, mas se sustentavam com o leite da Idade Média. E de onde saiu aquele outro “meio frade” na contabilidade espiritual e reformista de Santa Teresa d’Ávila, que também encheria a Igreja com “o supremo saber noturno e incomunicável” das ascensões místicas? San Juan de la Cruz. E de onde veio a força propulsora que atirou por cima dos mares domesticados e por cima da cordilheira dos Andes uma semente dominicana que germinou, cresceu e nos deu uma rosa, Rosa de Lima, odorífera padroeira de nossa pobre América Latina?

E quem, como a Espanha, resistiu sete séculos às pressões do Islã, defendendo palmo a palmo o solo da cristandade, e nessa mesma guerra nos legou a flor pacífica do mais gracioso amálgama de culturas, quem como Espanha?

Poderá alguém, sensatamente, imaginar uma Espanha sensata segundo os padrões de sensatez do ano de 1931? Poderá alguém imaginar a Espanha sem arroubos, sem sonhos de grandeza, sem ideal, sem rei e sem Fé? E ainda não dissemos nada dos artistas, dos museus, da cultura. Num livro de apologia dos Estados Unidos, um grande de Espanha, Julian Marías, consagrou um capítulo especial ao problema do livro nos Estados Unidos, e assinalou a peculiaridade da cultura americana, socializada, com admiráveis bibliotecas públicas que matam as bibliotecas particulares sem as quais um espanhol e um francês não saberiam viver, e que dificultam o empreendimento editorial.

Julian Marías descreve sua própria casa, onde por toda a parte “hay libros, libros, libros...”. E, por isso, o movimento editorial de Espanha é simplesmente — believe or not — maior do que o dos Estados Unidos!

O historiador Hugh Thomas [1] descreve-nos a situação da Igreja na Espanha em 1931 e conclui, em termos de sociometria religiosa, que o catolicismo da península apresenta sinais de decadência. De acordo com os dados do dominicano Fr. Francisco Peiró, somente 5% da população de Castela Nova cumprem o preceito da Páscoa. Em algumas aldeias da Andaluzia somente 1% dos homens freqüenta as igrejas. Seria então por isso, concluiu o historiador, que o Presidente Azaña em 1932 declarou que “a Espanha deixara de ser católica”, mais como quem constata um fato sociológico do que como quem decreta uma interdição. O mesmo historiador inglês reconhece que Azaña tem certa propensão de dizer frases infelizes e inesquecíveis, como aquela outra em que promete triturar a casta militar [2].

Mais infeliz ainda, na opinião do autor inglês, teria sido a pastoral inteira do Cardeal Segura, Arcebispo de Toledo e Primaz de Espanha. Diz Hugh Thomas [3]: “o primeiro tiro da luta que continuaria até a Guerra Civil foi a carta pastoral do Cardeal Segura, grave e violenta, publicava em maio de 1931. O altivo e independente prelado combinava inteligência com intenso fanatismo”.

Compreendo que um erudito inglês, no seu escritório confortável, sinta a aspereza e o vigor da carta do Cardeal Segura, mas já não compreendo nem admito que dê ao sentimento do Cardeal a qualificação de fanatismo. Além disso, parece-me que seria melhor dizer “primeiro alarme” em vez de dizer “primeiro tiro”. A verdade, porém, é que Roma também se inquietou com a veemência do Cardeal Segura. Eis como terminava a famosa pastoral do Primaz da Espanha: “Se nós ficarmos quietos e negligentes, se permitirmos que a apatia e a timidez se apoderem de nós, se deixarmos abertas as portas para aqueles que tentam destruir a religião, ou se esperarmos que o triunfo de nossos ideais seja assegurado pela benevolência dos inimigos, não teremos direito de nos lamentar quando a amarga realidade nos evidenciar que tivemos a vitória em nossas mãos, mas não soubemos combater como intrépidos guerreiros preparados para sucumbir gloriosamente”.

Os personagens do drama espanhol Para entender a sucessão de acontecimentos que logo deixam entrever sua gravidade depois do equívoco otimismo de 15 de abril, precisamos conhecer, ao menos em esboço, o quadro das várias correntes históricas que confluem na Península Ibérica como se os erros do século ali tivessem aprazado um sinistro encontro para mortal ajuste de contas. E, para começar esse esboço, tomemos a cena ocorrida na Calle Alcalá, Madri, no dia 10 de maio de 1931, poucos dias depois da publicação da pastoral do Cardeal Segura: um grupo de jovens militares e monarquistas resolvera fundar o Clube Independente Monarquista. Uma vitrola tocava a Marcha Real, e um táxi com dois monarquistas parou no meio da multidão. Os monarquistas gritavam Viva a Monarquia! E o chofer: Viva a República! Na briga que resultou, o chofer caiu e logo na multidão espalhou-se a notícia que o haviam matado. Em tumulto o povo dirigiu-se à redação do jornal monarquista ABC com a intenção de incendiá-lo. A Guarda Civil dispersou o povo. Mas na manhã seguinte a igreja dos jesuítas, na Calle de la Flor, no centro de Madri, foi arrastada e incendiada. Numa das paredes queimadas, em grandes letras de cal, lia-se a advertência: “A Justiça do Povo para os Ladrões”. Várias outras igrejas e conventos foram queimados em Madri nesse mesmo dia. Em poucos dias o fogo espalhou-se pela Andaluzia até Málaga. Um vento de alarme corria a Espanha. [4]

O novo Ministro da Guerra, Manuel Azaña, não podendo perder a oportunidade de um de seus muitos pronunciamentos inesquecíveis, disse que preferia ver todas as igrejas de Espanha incendiadas a ver uma só cabeça republicana ferida.

Dir-se-á que, neste episódio, foram os monarquistas e jovens oficiais que provocaram o tumulto. Admitamos. Mas desde já devemos assinalar uma desproporção e uma assimetria que será sempre sistematicamente afastada pelos “intelectuais” que mais adiante assinarão manifestos contra o alzamiento e contra o bombardeio de Guernica.

Os monarquistas efetivamente provocaram o tumulto de 10 de maio. Entender-se-ia a reação dos anarquistas se no tumulto entrassem em luta com os monarquistas e os matassem. Haveria luta, duelo, morte de lado a lado, e até aqui estamos dentro da larga faixa da normalidade: é normal que os homens lutem por seus ideais, e não se quebra a normalidade com a menor ou maior violência da luta. O que rompe todas as barreiras do admissível é a resposta oblíqua, que não responde ao adversário golpe com golpe, mas atinge os inocentes. Ainda não começou o terrível espetáculo de massacre de sacerdotes e violação de freiras, mas já nesta amostra começa o que Antonio Monteiro chamou de “el martírio de las cosas”. Já em 1937 a carta coletiva do Espiscopado espanhol menciona a destruição de 20.000 igrejas! Tudo isto indica que era acertado o instinto dos jovens militares e monarquistas que desejavam livrar a Espanha de tão cruéis inimigos da Igreja. E não me refiro aqui evidentemente aos republicanos. Acho perfeitamente admissível o ideal monárquico, e ainda acho mais admissível o ideal republicano já tantas vezes experimentado pela humanidade sem nenhuma necessidade de o vincular ao anarquismo.

Foram os anarquistas que em maio de 1931 incendiaram a Igreja dos Jesuítas; e foi o liberalismo ateu, maçônico e “progressista” que falou pela boca de Manuel Azaña.

Note bem o leitor que ainda não entraram em cena os comunistas nesta primeira amostra de perseguição religiosa. A Espanha tem nesse tempo, ligados à CNT (Confederación Nacional de Trabajo), cerca de um milhão de anarquistas, entre homens e mulheres de todas as idades; mas os militantes, que efetivamente atuaram nos incêndios de igrejas e conventos e nos assassinatos e violações cercadas de crueldades nunca vistas, pertenciam a uma sociedade secreta destinada a manter o ideal anarquista “em toda a sua pureza”. Hugh Thomas avalia em cerca de 30.000 esses efetivos anarquistas [5] que descendiam dos primeiros emissários de Bakunin chegados à Espanha em 1868. Em 1871, por ocasião do rompimento entre Marx e Bakunin, a Espanha foi o único país da Europa em que o socialismo ficou fiel ao puro anarquismo de Bakunin. Vítimas do curioso hibridismo de um revolucionarismo radical e absoluto, que quer voltar ao zero, e de um progressismo que vinha das sociétés de pensée do iluminismo, os anarquistas espanhóis esperavam ter brevemente instalado o paraíso terrestre. Para isso, como observa Hugh Thomas, bastava-lhes ter na mão direita uma pistola e na esquerda uma enciclopédia.

Nos tempos da monarquia costumavam dizer que não haveria paz e justiça para os povos enquanto não fosse enforcado o último rei nas tripas do último padre. Esse programa singelo fará sorrir algum

leitor, mas aconselho-o a não sorrir porque os piores cruzamentos de estupidez e perversidade podem revestir-se de uma especial singeleza.

A outra corrente que já no episódio de maio de 31 encontramos em ação é a dos monarquistas, tradicionalistas e anti-republicanos de vários matizes, entre os quais se destacavam, pelo lirismo e pela turbulência, os carlistas que, no dizer do historiador inglês, imaginavam salvar as Espanha com uma pistola na mão direita e um missal na esquerda. Lutavam por “Dios, Pátria y Rey”. Com os monarquistas ortodoxos de várias tendências, os carlistas se uniram sob a sigla TYRE (Tradicionalistas y Renovación Española).

A esses grupos acrescentamos agora um exército em que havia cerca de 20.000 oficiais, sendo 219 generais, para uma exígua tropa com menos de 200.000 homens. Essa força, desde as guerras napoleônicas, mais se destinava à segurança interna do que à defesa do país contra agressões do exterior. A tendência política da maioria era nitidamente anti-republicana. Oficialmente, a maioria das forças armadas, em 1931, aceitava e prestara juramento ao novo regime. Mas no seu interior já fermentavam conspirações em torno de três pontos: “formariam um novo e legal partido monarquista equivocamente chamado Renovación Española: fundariam a revista Acción Española, sob a direção de Ramiro Maezta, ex-anarquista da geração de 1898, com o programa de pugnar publicamente em favor de uma insurreição contra a república; e fundariam uma organização para criar o ambiente de revolução no exército. Essa organização teve o nome de Unión Militar Española”.

Em torno e no fundo dessas várias correntes, estendia-se a massa de gente mais neutra do que polarizada, a massa de povo que quer viver seu dia-a-dia com tranqüilidade e que se deixa levar pelo liberalismo da época, mas também disposta a receber esta ou aquela nova orientação, conforme ventasse o século.

Na continuação dos dias da república surgiram outras correntes mais ou menos efêmeras, e mais ou menos atuantes. A Espanha, em sua perigosa disponibilidade republicana e liberal, tornara-se caixa de ressonância dos rumores e clamores do mundo. Assim é que, desde 1931, e portanto antes da ascensão de Hitler, já uma espécie de nazismo encontrava eco na Espanha.

Como já assinalei atrás, corria mundo uma idéia de exaltação, de exultação, que na Espanha produziu vários efeitos. O primeiro foi um pequeno e turbulento grupo em torno da revista La Conquista del Estado, dirigida por Ramiro Ledesma Ramos. Mas o fundamento de exaltação espanhola, ao contrário do que fez Hitler, não era o sangue nem a raça tomado no sentido carnal, e sim a raça espiritual e cultural da Espanha tradicional e católica.

Mais notável, no mesmo quadrante dos exaltados e exultantes, característico dos anos 30 e equivocamente etiquetado com a denominação genérica de “fascismo”, foi o movimento fundado por José Antonio Primo de Rivera em 1933. Diga-se de passagem que seu próprio fundador contribuiu para esse injusto equívoco quando deu ao jornal que fundou o nome El Fascio, e não se esquivou nunca à qualificação de “fascista” que, após a vitória do Front Populaire na França e a derrota do eixo RomaBerlim, se tornara pecha infamante.

Na verdade, porém, a Falange, sendo uma das formas de exaltação da época, tinha feição e características genéticas diversas do “fascismo” de Mussolini e do “nazismo” de Hitler. Ambas as pontas do eixo Roma-Berlim tinham marcas atávicas do socialismo: eram formas atualizadas e reviravoltadas do mesmo essencial instinto telúrico. Na Falange, que quase chegou a dar cor e nome ao movimento de recuperação nacional, predominava o ideal de revalorizar as dimensões do homem, e de reafirmar a transcendência de sua vocação. Isto se tornou possível graças à bela figura de José Antonio Primo de Rivera, que em 29 de outubro de 1933, no Teatro de la Comédia, de Madri, lança, com o aviador Ruiz de Alda, o novo movimento.

... ataca Rousseau, o moderno liberalismo e o sufrágio universal que conduziram a Europa a este sistema democrático, o mais ruinoso sistema de “malgastar energias”. E, diante da estupefação dos conservadores, José Antonio exclama: “O estado liberal nos trouxe a servidão econômica e disse aos operários este trágico sarcasmo: sois livres de trabalhar ou não trabalhar; ninguém pode forçar-vos a aceitar esta ou aquela condição de trabalho; mas como somos nós os ricos, oferecemo-vos as condições de nosso agrado que vós, cidadãos livres, podeis rejeitar se não são do vosso agrado, mas sendo vós os cidadãos pobres, se não aceitais as condições que vos oferecemos, só vos resta morrer de fome com grande dignidade”. [6]

Contra esse estado de coisas será válida a solução socialista? Não, porque o socialismo é materialista, e o materialismo nada resolve nem explica. José Antonio quer devolver a pátria ao povo, como um bem e não de uma classe, e como o espírito religioso da nação. E acrescenta:

Si para alcanzar objetivos hay que recurrir a la violencia, no dudaremos. Cuando se ofende a la Justicia y la Pátria, la unica dialéctica admisible es la de los puños y las pistolas... Nuestro puesto está al aire libre, bajo la noche clara, arma al hombro y allá arriba, las estrellas. Que los otros continúem sus festines! Nosotros, en la tensión febril y segura la guardia, sentimos en el fundo de nuestra alegría el presentimento de la aurora. Em 17 de novembro de 1934 José Antonio pronunciara um discurso nestes termos: “Nesta hora solene posso muito bem fazer uma profecia: o próximo combate, que será mais dramático do que as lutas eleitorais, não se fará entre os valores caducos que se chamam esquerda e direita. Far-se-á entre a frente asiática, turbulenta, anunciadora da revolução russa em sua tradução espanhola, e a frente nacional desta geração em linha de combate”.

Três anos depois, na mesma data, 17 de novembro, José Antonio está em Alicante, nas mãos dos marxistas que o condenam à morte. Pede para falar ao juiz Federico Enjuto e lhe diz estas palavras tão admiravelmente espanholas:

Usted pensará que le he llamado porque tengo miedo de morrir. No es verdad. No temo a la muerte. Tengo 33 años. Lo mejor de mi vida y de mi obra, ahora llo he comenzado. En este instante de España hay que vivir ardientemente. Pero los fusiles no me dan miedo. Ustede puede matarme cuando guste.

Yo lo pido un favor: depués de mi muerte, haga lavar bien el suelo en el lugar de patio dondo caeré, para que mi hermano Miguel, que tambien está encarcelado en esta prisión y se paseará aún varios dias en este patio, no tenga que andar sobre mi sangre [7]. Acrescentemos aos vários movimentos já mencionados a Confederación Española de Direitos Autônomos (CEDA), fundada por Gil Robles e elevada ao poder nas eleições de 1933. Nosso historiador Hugh Thomas, neste ponto, explica a vitória de Gil Robles pelo fato de ter sido dado o voto às mulheres, que “votavam segundo as instruções de seus confessores”. Dá-me vontade de enviar a esse tão objetivo historiador uma palavra atrevida de Santa Teresa d’Ávila ao seu confessor: “Olhe lá que nós mulheres (e principalmente espanholas) não somos tão fáceis de entender”.

Pobre Espanha! De todos os lados deformam sua figura e caricaturam sua grandeza quando a querem explicar pela mediocridade de um clero que produzirá tantos mártires, e pela decadência ou subserviência de um povo que produzirá tantos heróis.

E neste esboço tão resumido, em que tentamos mostrar a disparidade perigosa, o antagonismo mortal das várias correntes, ainda não dissemos nada dos “separatismos” que afligem a Península e que parecem condenar a Espanha ao estilhaçamento de minirrepúblicas independentes. “É impossível — diz Robert Brasillach — compreender o aspecto que tomou a Guerra Civil em Barcelona se não se conhece a importância que sempre teve na Espanha o povo catalão”; e é impossível, dizemos nós, entender a repercussão dos paradoxos e contradições da Guerra Civil nos meios “intelectuais” do mundo inteiro, e especialmente da França, se não se conhece a dolorida singularidade do povo basco, e do modo como sofreram de todos os lados.

Os bascos são um estranho povo que não pertence à mesma etnia dos outros espanhóis e têm um idioma próprio, o éuskaro, que também não pertence à mesma família nascida do tronco indo-europeu, e não se parece com nenhum outro conhecido, a não ser com o de alguns grupos na Hungria. Espalhavam-se, num total de 600.000 habitantes, pelas províncias de Navarra, Alaya, Viscaya e Guipazcóa, situadas na extremidade ocidental dos Pireneus. Desde tempos imemoriais, caracterizamse os bascos pela religiosidade e pelo sentimento de independência política e econômica. Na Idade Média, durante séculos, manteve-se o costume de reunir todos os homens maiores de 21 anos em torno de um carvalho na cidade santa de Guernica. Em nosso século, e mais especialmente na época da proclamação da república, o isolacionismo e o desejo separatista dos bascos era talvez mais uma facção nostálgica do que uma força atuante, e as tendências nacionalistas eram maiores em Viscaya e Guipazcóa, enquanto em todo o Ocidente, o velho liberalismo do século XIX se achava em estado de disponibilidade, pronto a se converter em uma de suas antíteses revolucionárias e totalitárias.

É difícil dizer qual das tradições, a antiga e a isolacionista, ou a mais recente consciência de hispanidad, predominava entre os bascos; e é difícil de desempatar e dizer se Dom Miguel Unamuno, nascido em Bilbao, é mais basco do que espanhol ou mais espanhol do que basco.

Pelo sim pelo não, e com espanto dos “intelectuais” do mundo inteiro, Unamono aderiu logo ao levante de 1936. Entrevistado por Andrés Salmon em Le Petit Parisien, Unamuno respondeu:

— Por que aderi? Porque é a luta da civilização contra a barbárie. — É certo que o professor contribuiu com 5.000 pesetas para a subscrição nacional? — Completamente exato. Contribuí. É preciso salvar a civilização! E o velho liberal acrescentou: — Comunismo! Esta palavra diz tudo. Basta ver as coisas como são. Por aí afora é a pura anarquia que impera... E conclui: — Hay uma palabra española que ha pasado a muchos idiomas: desesperado. Esto es. Por desesperación quemam las iglésias! Por la desesperación de no creer en nada! A Jerôme Tharaud, que tempos depois o interrogava sobre suas vacilações e inquietações, o sempre rebelde autor do Sentimiento trágico de la vida confia: “Desde el punto de vista religioso, esta guerra civil es debida a una profunda desesperación, caracteristica del alma española que no llega a descubrir (o a re-descubrir) su fe... El desesperado ya no creía en nada, ni en Dios, ni en los otros, ni en si mesmo. Nosotros somos un pueblo de desesperados...” [8] Mas logo Unamuno se volta novamente contra “el selvagismo inaudito de las gardas marxistas”... mas não pode suportar o triunfo do que chama de “fascismo”. O “desesperado” não sabe que bem representa o mal do século: no mesmo ano do alzamiento, em novembro, conversando e gracejando com um colega, tem um infarto e morre, levando talvez no último olhar uma visão estupefata, dolorida, quiçá cruelmente divertida, de um mundo incompreensível. E eu também aqui estou com o lápis paralisado no meio deste esboço a ouvir a imensa voz feminina de toda a Espanha a me dizer: “Eu não sou assim tão fácil de compreender”.

O que logo sabemos de nosso tumultuoso século — século de desesperados — nos autoriza a dizer que mais favoráveis circunstâncias não se poderiam querer para o grande beneficiário de todas as tolices humanas nesta bacia hidrográfica da história. Refiro-me ao comunismo. E já podemos prever que será dura, terrível, crudelíssima, a luta que a Espanha terá de enfrentar para reencontrar sua identidade histórica. Como vimos, os anarquistas descendentes de Bakunin tinham na Espanha, desde o princípio do século até o ano da república, muito maior número de adeptos do que o comunismo marxista. Mas, à medida que evoluem os acontecimentos, e a despeito da teatralidade espetacular de suas manifestações — igrejas incendiadas, conventos saqueados, freiras violadas — os anarquistas serão vítimas da própria anarquia tomada como fim e como meio. Durante a guerra civil, de 1936 a 39, será cômica a tentativa anarquista de arregimentar combatentes sem hierarquia e sem disciplina, e sobretudo a tentativa de enfrentar um exército hierarquizado e disciplinado com soldados entregues à mais lírica desordem.

Soldados? Não! Buenaventura Durruti, em uma reunião de 10.000 anarquistas, fez este expressivo discurso, ouvido por Malraux:

Queremos liberar a nuestros hermanos de Cataluña. Queremos ser milicianos de la Libertad, no soldados de uniforme. El ejército se há comprobado que es un peligro para el pueblo! Milicianos si! Soldados jamás! E acrescenta este lema que lhe parecia de extraordinária clareza: um exército que combate por obrigação, isto é, que tem consciência de seu dever, está inevitavelmente levado para a derrota!!! Isto parece apenas uma das tantas majestosas tolices que se disseram desde que o mundo é mundo, mas na verdade esconde, sob o espesso manto da estupidez, a malícia profunda da rebeldia, da contestação do princípio da autoridade que as “esquerdas” espalharam pelo mundo, e principalmente na França desde o “Affaire Dreyfus” que lhes ofereceu uma oportunidade incomparável para a desmoralização do soldat, e por conseguinte para a desmoralização da França.

O comunismo, como sabemos, também é anarquista no seu ideal de uma sociedade sem classes a ser atingida no fim dos tempos revolucionários. Mas, em antítese como essa escatologia anarquista, o comunismo marxista, graças ao recurso da dialética hegeliana, é brutalmente autocrático em seus meios, e por isso, apesar do atraso inicial com que começam a ação revolucionária na Península, serão eles, os comunistas, que, a partir de 1934, dirigirão a conquista da Espanha.

A Guerra Civil começada em 1936 será principalmente polarizada pelo comunismo, como bem viu José Antonio Primo de Rivera.

As primeiras infiltrações comunistas na Espanha começaram com o estabelecimento de uma Secção Ibérica do Partido Comunista em 1920. Daí em diante evolve rapidamente a ação comunista, primeiro sob inspiração trotskysta e depois sob inspiração stalinista. Além da dialética que lhe permite, para fins ditos anarquistas, meios disciplinares eficientes e duramente hierarquizados, os comunistas absorveram todas as outras correntes revolucionárias por sua maior capacidade de programação metódica.

Em seu livro A Experiência Vermelha, Yuan Delbos, radical-socialista francês, ministro do Front Populaire em 1935, conta-nos que viu, no Museu da Revolução Universal, em Moscou, um salão especial dedicado à Espanha onde expunham fotografias de líderes, de comícios, exemplares de revistas como A Bandeira Vermelha, A Palavra, e outras. “Senti naquela sala, diz Yuan Delbos, uma estranha atmosfera de fé, de exaltação revolucionária, e um vago cheiro de sangue...” [9].

Em abril de 1931 apareceu o diário comunista El Mundo Obrero, que logo alcançou a tiragem de 35.000. Em 1932 intensificou-se maciça infiltração na U.G.T. e logo se fundou a Confederação Geral do Trabalho Unitário (C.G.T.U.). E daí em diante, até a vitória da Frente Popular, sãos os comunistas que dirigem os acontecimentos e preparam a integral realização da profecia de Donoso Cortés.

Primeiras perseguições religiosas Desprezando os tumultos e os incêndios de igrejas em maio de 1931 em comparação com o Himalaia de crueldades dos próximos anos, pode-se dizer que a verdadeira perseguição religiosa começou com os atos oficiais e aparentemente serenos de um governo deliberadamente disposto a apagar nas terras de Espanha e nas almas espanholas os últimos vestígios do catolicismo que Manuel Azaña, na sua famosa frase, julgava ou decretava que fossem extintos.

Mal instalada a república, consagra-se o regime laico, se me permitem tal aproximação verbal, numa Constituição que retoma e requenta o laicismo proclamado e arvorado em outros estados modernos ao sabor do prestígio do liberalismo republicano. Na França, foi o governo Combes que explorou a fundo o desprestígio clerical deixado pelo “Affaire Dreyfus” e que tentou realizar, com o rancor profundo dos défrocqués, a completa marginalização cultural da Igreja. Na Espanha, o laicismo temporão já não nasce e cresce na atmosfera do otimismo liberal de trinta anos atrás, mas na atmosfera que tem cheiro de sangue.

A nova Constituição, com uma brutalidade que as anteriores constituições liberais de outros países não conheceram, proclama o Estado Leigo, submete o culto público da Igreja à autorização do Estado e tira da Igreja o direito de ensinar. [10] “O primeiro semestre de 1932, sob esse ponto de vista, é um dos mais ativos do qüinqüênio republicano. Com data de 24 de janeiro, a Gaceta publicou uma lei do dia anterior que decretava a dissolução da Companhia de Jesus em toda a Espanha! Dias depois, sai o decreto de 2 de fevereiro oficializando o divórcio, e quatro dias depois a mesma Gaceta publicava o decreto que secularizava todos os cemitérios do país. Na mesma data, o diretor-geral da Instrução Primária, Rudolfo Lopis, dirigia uma circular aos professores espanhóis com ordem de retirar das escolas todos os sinais religiosos. A retirada dos crucifixos, sendo embora uma simples aplicação da cláusula constitucional, levou as famílias cristãs ao cúmulo da irritação...” [11]. E assim, neste primeiro passo, o novo governo espanhol crucifica o Cristo fora dos muros da cidade. Sim, o que está em jogo em todas essas leis, cláusulas, artigos e parágrafos, o que se condensa neste vocábulo “laicização” é algo mais do que a contestação dos direitos da Igreja. É a contestação da realeza de Jesus Cristo Nosso Senhor. E será por isto que, graças a um instinto de Fé teologal, os milhares de sacerdotes assassinados pelo simples e puro fato de serem “curas”, quando os verdugos lhes quebravam a martelo os ossos da cara, ou lhes rasgavam o ânus com crucifixos, tiveram sempre a inspiração de aproveitar o último alento de vida para responder àquela contestação com o nosso grito de guerra e de paz: — Viva Cristo Rey!

Milhares e milhares de vezes este grito subiu aos céus na Espanha com a alma de um “mártir no exato sentido do termo”, como dirá oportunamente o grande Papa reinante, S.S. Pio XI.

1933 – Roma fala...

Tocada no seu direito, na sua honra, no nervo de sua ação pastoral, a educação cristã, a Igreja solenemente protesta pela voz do Papa Pio XI, que, com a encíclica Dilectíssima nostra, de 3 de junho de 1933, inicia uma série de pronunciamentos de amorosa solicitude pelas dores de Espanha. Depois da saudação inicial e da benção apostólica, o Papa abre a encíclica:

Sempre foi por Nós sumamente amada a nobre nação espanhola por seus méritos insignes para com a fé católica e a civilização cristã, por sua tradicional e ardentíssima devoção a esta Santa Sé Apostólica, por suas grandes instituições e obras de apostolado, pois foi mãe fecunda de santos, de missionários, de fundadores de ínclitas ordens religiosas, glória e arrimo da Igreja de Deus. ....................................................................................................................... Tão evidente se mostra a inconsistência do motivo aduzido (a necessidade de defender a nova República), que nos dá o direito de atribuir a perseguição movida contra a Igreja na Espanha não à simples incompreensão da Fé católica e de suas benéficas instituições, mas ao ódio que contra o Senhor e contra Cristo é fomentado por seitas subversivas da ordem religiosa social, como por desventura vimos acontecer no México e na Rússia. O Papa Pio XI denuncia e desmascara o inimigo mais cruel e implacável que já afastou de seu caminho de subserviente, informe, indigno e repugnante liberalismo, que já fez o que pôde para relativizar a verdade e o bem, e para preparar as consciências amolecidas para a grande massificação, que será a obra específica do século XX. E não hesita em incitar os fiéis, se não desde já à resistência declarada e pública, mas ao menos desde já a enfrentar tudo nas coisas em que só à Igreja é devida a obediência.

Com todo o ânimo e coração de Pai e de Pastor, exortamos vivamente os bispos, os sacerdotes, e todos os que de algum modo tencionem dedicar-se à educação da juventude, a promover intensamente, com todas as forças e por todos os meios, o ensino religioso e a prática da vida cristã. E isto é tanto mais necessário quanto mais ousadamente profana o santuário da família a nova legislação espanhola, e assim semeia, com a intentada dissolução da sociedade doméstica, os germes de ruína da vida social.

Recuos e avanços da esquerda “As esquerdas calcularam mal o seu golpe, ou conheciam mal o povo espanhol para imaginar que aceitaria sem reagir a semi-apostasia das leis republicanas e da crescente dominação comunista. O sobressalto dos católicos foi nítido” [12]. Nas eleições de dezembro de 1933 venceu a Ação Popular católica que Gil Robles, professor da Universidade de Salamanca, acabava de fundar. Congregavamse nela diversas correntes anti-socialistas e anti-republicanas como a Acción Nacional, fundada por Calvo Sotelo.

Houve um interregno de ilusão e de confiança no “jogo democrático”, como se possível fora algum jogo com a torrente histórica que desconhece totalmente o sentido do pacto. “Poderás fazer um pacto com o leviatã?” Anos depois, diante de outro leviatã, irmão caçula do comunista, as democracias ocidentais

várias vezes tentaram fazer de conta que acreditam nos que em nada acreditam. Teremos Munique. E anos mais tarde teremos Ialta.

Mas voltemos a 1934, à acalorada Espanha. Durará menos de um ano “o engano d’alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito”. O laborioso Daniel-Rops diz que o governo da Acción Nacional de Gil Robles não se manteve porque não se realizou as necessárias reformas! Esta explicação dos insucessos democráticos e das conseqüentes subversões será repetida, sobretudo depois do Concílio, com a insistente monotonia que nosso glorioso século sempre assegurou às frases sem sentido. Todos os problemas sociais são apresentados sob o signo das “reformas” como se nada do que se fez no mundo até hoje devesse ser continuado, devesse ser mantido, ou repetido, ou retomado ou mesmo reformado no sentido próprio. O termo “reforma”, esquecido o re e a forma, tornou-se o repositório da última esperança deste século.

E aqui tocamos o nervo, o punctum dolens deste fim de civilização: tanto os arautos do socialismo bakuniniano ou marxista como os arautos de alguma forma de exaltação dos valores vitais, genericamente chamados de fascistas, apelam para um novo que é ou não sabe que é uma insolente afronta à Esperança teologal, porque é só na linha dessa Esperança que poderemos encontrar algo de novo sob o sol.

Mas voltemos à queixa que formulávamos do malogro de Gil Robles, e aqui reencontramos a bela figura de José Antonio, o toureiro dos minotauros de Espanha, belo, audaz, cheio de vida e ansioso de inventar uma centelha de heroísmo. Brasillach, o menino genial e imortal que a infinita estupidez continua a fuzilar pontual e metodicamente, tinha de estar na Espanha, não podia deixar de estar no comício do Teatro da Comédia de Madri, quando Luiz Antonio Primo de Rivera faz um apelo ao heroísmo diante da estupefação dos conservadores que prestigiavam Gil Robles. Já mencionamos atrás o discurso de Luiz Antonio que é a ata de nascimento da Falange Española, que o mundo injustamente e estupidamente comparará a outras exaltações e rotulará de “fascismo”. Antes dissesse “deseperado”, como Unamuno, que ao menos é termo mais espanhol. Será oportuno? Será inoportuníssimo? Talvez tenha precipitado a coagulação das “esquerdas”.

Para Brasillach, Gil Robles não soube aproveitar sua vitória, deixou-se enganar por Alcalá Zamora e ensejou às esquerdas esparsas a oportunidade de se unirem contra o perigo fascista. Adotando os métodos comunistas, Largo Caballero, o “Lenin español”, conseguiu agrupar todas as forças de esquerda que em setembro de 1934 contavam mais de um milhão de homens. Em fins de 1934 o vapor soviético Turqueza desembarcava nas Astúrias 70 caixas de armas e munições. E logo após a tentativa de formação de um gabinete, com Leroux e Gil Robles, que enfrentasse as inquietações separatistas, explodiu a insurreição de outubro de 1934: Madri, Barcelona e Oviedo se sublevaram no mesmo dia. No país basco e na Cataluña, o movimento tomou feição separatista. Durante dez dias os insurretos se entregam às mais incríveis violências: incêndios, pilhagens, assassinatos. Sacerdotes foram torturados, cortados em pedaços e pendurados nos açougues com este letreiro: “Carne de porco”.

A repressão, exercida pelas forças regulares de Marrocos, não foi menos cruel. “O Governo Leroux-Gil Robles — diz Brasillach — fuzilava os mineiros e perdoava aos culpados, conseguindo assim, como todo governo débil, aliar o medo à ferocidade”. [13]

E Brasillach continua: “Gil Robles não soube aproveitar a autoridade que lhe conferia a situação dramática criada pela subversão das Astúrias (...). Granjeou a impopularidade da repressão e não soube tomar as medidas que no futuro evitassem a repetição dos feitos (...). Os anarquistas da C.N.T. foram perseguidos e aprisionados, mas os socialistas da U.G.T. e os comunistas da G.G.T.U., depois de breve período de censura, reabriram os centros de propaganda, em maio de 1935, e daí por diante ganharam terreno e prepararam a retomada do poder. Em janeiro de 1936, quando Alcalá Zamora assinou pela segunda vez a dissolução das cortes, as forças da ‘direita’ estavam desarticuladas e enfrentavam a união dos anarquistas e socialistas mais fortes do que nunca. As eleições de 16 de fevereiro de 1936 deram à Frente Popular a vitória que, desde agosto de 1935, fora preparada durante do Congresso da Internacional Comunista em Moscou”. [14]

No dia seguinte à vitória “eleitoral” com que se consumava a comunização da Espanha, foram soltos todos os presos da sublevação das Astúrias, e todas as empresas particulares tiveram de readmitir os empregados demitidos. O general Franco foi deslocado para as Ilhas Canárias e o general Goded para as Baleares.

Senhores absolutos do terreno, os comunistas e anarquistas não tardaram a retornar aos atos de terrorismo de que precisavam para colocar a opinião pública, vagamente disponível e liberal, numa atmosfera de medo. Multiplicaram-se logo os assassinatos políticos, e desencadeou-se uma campanha de perseguição religiosa que, em volume e crueldade, deixou esquecidas as anteriores. De 16 de fevereiro a 13 de maio foram totalmente arrasadas 124 igrejas e incendiadas 217. [15]

Largo Caballero gritava: “Nosotros no dejaremos piedra sobre piedra de esta España, que devemos destruir para rehacer la nuestra”. E aí está, debaixo da aparência de uma simples bravata ibérica, o lema satânico da Revolução: Destruir tudo, voltar ao zero pra criar o novo mundo ex nihilo. Menos abstrata é a linguagem da deputada Margarida Nekken: “Nosotros queremos una revolución, pero no es la revolución rusa la que puede servirmos de modelo, porque nos hacen falta llamas gigantescas que puedam ser vistas desde todo o planeta y olas de sangre que enrojezcam los mares”.

1936 — Precipitam-se os acontecimentos. Os comunistas dominam a situação. Desde a vitória dos comunistas em 16 de fevereiro de 1936, avolumou-se dia a dia a revolução vermelha com todo o seu sinistro cortejo de perversidades em progressão geométrica. Em 15 de abril de 1936 o deputado Calvo Sotelo se levanta em tumultuosa sessão parlamentar e faz um resumo da obra da República e da Frente Popular. — Cuando la vida está segura en la calle, cuando por todos os lados se esgrime la amenaza de trastornos sociales y se grita como ayer se gritaba a una voz: “La Pátria no! La Pátria no!”, cuando al

grito de “Viva Espanha” se responde com el de “Viva Rússia”, cuando se ofende el honor del Ejército, cuando se vulver motivo de burla todo lo que hace Pátria, cuando todo esto dura seis, siete y ocho semanas, yo me pergunto si es posible la calma. Yo envidio a su señoria, señor Azaña, por esa prueba de magnífica tranquilidad. Yo protesto contra esta calma al igual que otros españoles que viven en este momento en la inquietud y que no saben si España está viva o está muerta. (Lo interumpen, pero continua). Desde el 15 de febrero se diria que sopla sobre España una ráfaga de fuego e de furor. Desde 16 de febrero hasta el 2 de abril han sucedido: ataques y destracciones de centros políticos, 58; de establecimientos públicos y privados, 72; de domicilios particulares, 33; y de iglésias, 36. — Es todavia my poco! Aún no os han matado! — Incendios de centros políticos, 12; de establecimientos públicos y privados, 45; de domicilios particulares, 15; de iglésias 106, de las que 56 fueran totalmente destruidas. Huegas generales, 11; agresiones, 65; ataques, 24; heridos, 345, y muertos 74. E Calvo Sotelo, o ex-ministro a quem a Espanha devia tantos serviços, o homem vigilante e lúcido que com Maurras e Bainville, que lia regularmente, sentia o hálito da Revolução, o homem vigoroso, que nenhuma ameaça fazia calar, venceu o tumulto dos apartes e repetiu bem alto as palavras de Asin no meeting de Cartagena em 5 de abril. Eis o que dizia o socialista da Frente Popular: No debemos contentarmos com quemar una o mil iglésias. Es un espetáculo que tiene algo de faustuoso, de exuberante, de más o menos magnifico, pero que no tiene base sólida para garantir nuestro bien estar futuro. E o socialista passa a explicar que a única forma de assegurar tal bem-estar é a instauração do comunismo marxista.

Em 11 de julho Calvo Sotelo pronunciou um novo requisitório, calmo, meticuloso e implacável, aparteado pela deputada Dolores Ibarruri, a “Passionária”, que disse:

— Este hombre ha hablado por última vez. E acrescentou: — Calvo Sotelo morirá con los zapatos puestos. Dois dias depois, entre vários assassinados trazidos ao cemitério Del Este, foi reconhecido Calvo Sotelo, morto com uma bala na nuca, saída pelo olho esquerdo. O mundo inteiro compreendeu que a situação de Espanha chegara ao ponto de ruptura decisiva. E o que logo a seguir aconteceu terá longas e dolorosas conseqüências, mas tem uma singela e clara motivação, que os intelectuais da esquerda passarão anatematizar com seu habitual abstrativismo: o homem que mais seguramente representava o exército terá dito com seus marciais botões alguma frase deste jaez: — É preciso pôr ordem nessa confusão. E levantou-se. E com ele toda a Espanha verdadeiramente espanhola. Começava o “alzamiento”, a Guerra Civil espanhola, guerra terrível como todas as guerras, mais cruel de ambos os lados do que as guerras convencionais e nacionais, mas evidentemente justa nas motivações dos nacionalistas.

Cabem aqui algumas amargas reflexões. Qualquer pessoa, medianamente dotada da pequena sabedoria do bom senso, saberá com límpida e sem necessidade de alongados e complicados argumentos, que aquela raça de gente que assassina, estupra e incendeia não é certamente a mais qualificada para empreender e promover o paciente e tantas vezes humilde trabalho de prover e orientar as necessidades de um povo, os programas de alimentação, comunicação, saúde pública, ensino e agricultura. Não será certamente por aqueles processos que os pobres deixarão de ser pobres e os ricos deixarão de ser gananciosos. O bom senso nos diz que a violência será necessária alguma vez para tirar do poder um governo injusto, desumano, assassino e incendiário, como é o caso da Espanha em julho de 1936; mas jamais nos dirá que a violência, o assassinato, o estupro de freiras e a tortura de sacerdotes é o método mais indicado para aumentar o produto nacional bruto, para incrementar a lavoura e para promover o progresso e o bem-estar de um povo.

A maior impostura do século XX consistiu precisamente na inculcação desta idéia que os “intelectuais saboreiam e propagam”: os tipos humanos monstrificados por toda uma constelação de distorções internas, chamados “revolucionários”, lutam pela causa do pobre. Este é o prodígio de insensatez e de impostura produzido por uma corrente histórica que nasceu na contestação do senhorio de Deus. E o que diremos nós de tal insensatez e de tal impostura quando a virmos instalada no último lugar do mundo onde esperávamos encontrá-la? 1936, setembro, o Papa abençoa os espanhóis que defendem a Igreja e a Pátria No dia 14 de setembro o Papa recebeu em Castel Gandolfo um grupo de 500 padres, religiosos e leigos espanhóis conduzidos pelos bispos de Urgel, de Vick, de Tortosa e de Cartagena, e lhes dirige uma longa e comovida alocução:

Vuestra presencia, queridíssimos hijos, prófugos de vuestra e Nuestra querida y tan atribulada España, despierta en Nuestro corazón un tumulto de sentimientos tão contrastantes e opuestos, que es absolutamente imposible darles adequada y simultanea expressión. Deberiamos a un mismo tiempo llorar por el intimo y amarguissimo pesar que nos aflige, deberíamos regocijarmos por la suave e impetuosa alegria que nos consola y nos exalta. [16] E adiante, aludindo aos sofrimentos padecidos pelo clero espanhol pro nomine Jesu, diz o Papa estas palavras inesquecíveis: Todo esto es un esplendor de virtudes cristianas e sacerdotales, de heroismo y martirios, VERDADEROS MÁRTIRES EN TODO EL SAGRADO Y GLORIOSO SIGNIFICADO DE LA PALABRA. E reitera, e reafirma, a mesma repulsa já tantas vezes formulada pela Igreja, contra aquelas absurdas e desastrosas ideologias que ameaçam a Europa e o mundo. E depois de discorrer longamente sobre a eficácia da doutrina católica, desde que ouvida e seguida, o Papa dá sua bênção solene em termos que não podem ser ouvidos e seguidos de dois modos, a não ser por interposição de espessa estultície ou grave desobediência:

A todo este Bueno y fidelissimo pueblo, a toda esta querida y nobilissima España que há sofrido tanto, se dirige y quiere llegar Nuestra Bendición, como vá e irá, hasta el completo y seguro retorno de serena paz, Nuestra quotidiana oración. E acrescenta: SOBRE TODA CONSIDERACIÓN POLÍTICA Y MUNDANA NUESTRA BENDICIÓN SE DIRIGE DE UNA MANERA ESPECIAL A CUANTOS SE HAN IMPUESTO LA DIFÍCIL Y PELIGROSA TAREA DE DEFENDER Y RESTAURAR LOS DERECHOS Y EL HONOR DE DIOS Y DE LA RELIGIÓN. E desenvolve a preocupação que tem por tudo o que já antevê de violências e crueldades desencadeadas. O Papa não precisa ler os artigos do Sr. Bidault para saber que a mais justa das guerras, por suas motivações e pela mais santa das causas, nunca estará isenta de injustiças e crueldades inseparáveis, neste vale de lágrimas, dos choques das paixões desencadeadas, e dos processos de repressão dos crimes dos homens e dos povos. Antes de ler Les Grand Cimitières Sous la Lune, e antes de ouvir todas as sinceras e falsas lamentações em torno do bombardeio de Guernica, o Papa sabe que ainda não se inventou uma guerra sem dor e sem lágrimas, como também não se inventou meio algum de evitar a guerra nos casos extremos sem uma total objeção que é muito mais danosa para o gênero humano do que todo o sangue derramado. Emprestando ao Papa o binômio bernanoseano, ele, Pio XI de gloriosa memória, sabe que entre a merda e o sangue, é melhor aceitar o sangue. E com todas essas ponderações, apelando para a Caridade e para a lei suprema do Amor, o Pai Comum não hesita em enviar de maneira especial sua benção A TODOS AQUELES QUE SE IMPUSERAM A DIFÍCIL TAREFA DE DEFENDER OS DIREITOS E A HONRA DE DEUS E DA RELIGIÃO.

Fim de 1936, o Alcazar resiste.

Nesse fim de ano o mundo inteiro, estupefato, acompanhou a resistência do Alcazar de Toledo, que mais parecia uma dessas histórias contada nos livros de estampas e lendas que o bravo mundo moderno ainda nos seus vagares gosta de ler com admiração e nostálgica incredulidade... E eis que surge, em pleno século XX, uma história de honra e heroísmo onde o que parece incôngruo são os episódios em que se entrevê um telefone, um avião, um automóvel e mais alguma das gloriosas conquistas do século em chocante anacronismo com a incendiada e bombardeada apoteose que ainda há de durar algum tempo, ao menos como eco de um nome: Alcazar de Toledo.

Essa fortaleza de guerra foi tomada nos primeiros meses pelos sublevados com cerca de mil combatentes e mais outros mil entre mulheres, crianças e velhos. O primeiro contra-ataque do governo republicano, quando soube da tomada da praça pelos sublevados, foi um telefonema ao coronel José Moscardó Ituarte, chefe nacionalista da guarnição. Quando o coronel Moscardó se encerrou no comando do Alcazar, foi tamanha a confusão que não logrou reunir sua mulher e seus filhos. Dona Maria se refugiou em casa do tenente-coronel Tuero, mas em 22 de julho sua presença foi descoberta. Conseguiu fugir com o pequeno Carmelo, mas Luís, de 17 anos, foi preso.

No dia seguinte o chefe dos milicianos toledanos chamou por telefone o coronel Moscardó, chefe da guarnição do Alcazar; e anunciou-lhe que seu filho Luís fora preso na antevéspera:

— Le damos diez minutos para capitular — disse — en outro caso le fusilaremos. — Usted no es soldado ni caballero. Si usted lo fuese, sabria que el honor de un militar no cede ante la amenaza. — Usted me responde asi porque no cree en mi amenaza. Pero hable con su hijo. Aqui Moscardó! — Oiga, papa? — Que hay, hijo mio? — Nada de particular, papá. Dicen que me van a fusilar si no te rindes. Que debo hacer? — Tu sabes lo que pienso. Si es certo que te van fusilar, encomienda tu alma a Dios, ten un pensamiento para España y outro hacia Cristo Rey. — Es muy facil, papá. Haré las dos cosas... un beso muy furte, papá. — Adios, hijo mio. Um beso muy fuerte. No dia 12 de agosto, dona Maria e Carmelo foram presos e reuniram-se com Luís. No dia 14 vieram buscar Luís. Todos sabiam para quê. Carmelo se pôs a gritar que queria ir com seu irmão. Luís abraçou sua mãe e instantes depois caía com as balas marxistas. Quem nos conta essa história está fadado a cair nove anos depois... [17].

O Alcazar resistiu 70 dias a um assédio fantástico, durante o qual choveram 3.300 obuses de 155, 3.000 de 105, 3.500 de 75. Num só dia 450 bombas de 50 quilos foram lançadas de avião. Mil e novecentos sitiados viveram dias espantosos debaixo de ruínas fumegantes. Morreram 82. Nasceram dois! No dia 28 de setembro, depois da entrega do forte em ruínas e da promoção do coronel Moscardó, e da cerimônia religiosa em ação de graças, o novo general Moscardó passou sombrio e curvado entre aclamações: certamente lembrava-se de Luís e deu a entender que muito lhe pesava entregar à Espanha a fortaleza em tal estado.

Essa era também a opinião dos “rojos” que em Madri, num tribunal simbólico, condenaram à morte José Moscardó Ituarte por crime de rebelião, “desumanidade e perversão de instintos”, e não se esqueceram de aplicar-lhe a multa de um milhão de pesetas por haver deteriorado um edifício do Estado. 1937, Roma: “Divini Redemptoris. Em 19 de março de 1937, Pio XI, gravemente enfermo, sentindo aproximar-se o fim de seu pontificado, dirige-se agora não apenas a alguns exilados espanhóis, mas à Igreja universal, para ensinar solenemente, severamente, todo o horror da Igreja pela doutrina ímpia, monstruosa, inumana e por sua inseparável prática evidenciada no martírio da Espanha. Divini Redemptoris é a encíclica que coloca em termos inequívocos e definitivos a condenação do comunismo. Começa Pio XI por lembrar os ensinamentos de Pio IX e Leão XIII, lembra pois a sua

alocução de 1924, quando a missão de socorro voltava de Moscou. Menciona depois as encíclicas Miserentissimus Redemptor, Quadragesimo Anno, Caritate Christe, Acerba nimis, Dilectissima nobis, nas quais insistentemente denuncia as perseguições comunistas na Rússia, no México e na Espanha. Apesar de tantas condenações convergentes, a nova e última encíclica de Pio XI volta a condenar o comunismo e a denunciar os horrores da perseguição religiosa na Espanha. No tópico (8) denuncia “a idéia de falsa redenção”; em (9), o materialismo marxista e a doutrina da luta de classes; em (10) analisa as conseqüências do comunismo na vida da família; em (11) descreve a “sociedade sem Deus” desejada pelos comunistas; em (15) “a crueza repugnante e desumana dos princípios e métodos” de seus adeptos; em (16) assinala “a propaganda astuta e vastíssima, verdadeiramente diabólica”; em (17) mostra “que o liberalismo preparou o comunismo”; em (18) “a conspiração do silêncio da imprensa”; em (19) as perseguições na Rússia e no México; em (20) demora-se no que acontece em nossa queridíssima Espanha, onde o furor comunista não se limitou a matar bispos e milhares de sacerdotes, religiosos e religiosas...”, e onde “se leva a cabo a destruição com um ódio, uma barbárie, e uma ferocidade que não se julgara possível em nosso século”; em (23) aponta o terrorismo metodicamente usado; em (25) até (34) resume as vantagens e a beleza da doutrina social católica, ensinada pela Igreja; em (44) a (46) lembra que só a espiritualidade e o desapego aos bens terrestres podem inspirar uma civilização; em (52) a (56) recorda os ensinamentos da Quadragesimo Anno e recomenda mais uma vez o uso e a aplicação da doutrina social da Igreja; em (57) volta a prevenir os católicos contra as insídias do comunismo e contra a sua técnica de infiltração; em (58) diz aos católicos, solenemente, que não se deixem enganar:

“O COMUNISMO É INTRINSECAMENTE PERVERSO”, e por isso “NÃO SE PODE ADMITIR QUE COLABOREM COM ELE EM NENHUM TERRENO TODOS OS QUE DESEJAM SALVAR A CIVILIZAÇÃO CRISTÔ. E daí em diante recomenda a oração, incentiva a AÇÃO CATÓLICA e o congraçamento dos católicos. Concluindo, coloca a ação da Igreja Católica contra o comunismo sob a égide de São José, poderoso protetor da Igreja. Ainda em 1937, na Espanha, os bascos... A queda de Bilbao já viera aquecer a controvérsia em torno da significação religiosa da guerra civil, quando, num domingo de maior de 1937, tudo se complicou com o bombardeio de Guernica, a cidade sagrada dos bascos. Foi um feito brutal, atroz, como todos os bombardeios de cidades pacíficas onde as crianças brincam, as mulheres se azafamam e os velhos passeiam devagar nos jardins públicos. Brevemente (ainda estamos em 1937) a humanidade sensível e delicada que tanto se emocionou com a destruição de Guernica fartar-se-á de bombardeios sensacionais e acabará perdendo a delicada sensibilidade. Guernica e Adis-Adeba depressa serão esquecidas. Em 1939, teremos o inopinado e imbecil bombardeio de Helsinque, a mais cândida e inocente das cidades abertas, e o mais cruel e inútil bombardeio. Um avião abatido pelos finlandeses revelou uma inovação da técnica soviética: o piloto era uma mulher. Daí por diante o mundo se fartará.

Demain c’est Londres qui s’allume la nuit comme un flambeau! E depois de amanhã será Bremen, Dusseldorf, Colônia, Berlim... E depois de depois de amanhã um estranho clarão nascido de um cogumelo medonho deixará escuro o sol do dia: Hiroshima e Nagasaki, cidades abertíssimas, bombardeadíssimas não apenas pela combustão elementar do fogo, do velho irmão fogo, milenar amigo do homem, mas por um “fogo novo” que despertou o entusiasmo de Teilhard

de Chardin (“la flamme a jailli!”), e que também despertou nas entranhas soviéticas uma nova atitude, uma nova energia espiritual que durante anos e anos abastecerá gerações inteiras de canalhas: dois dias depois, a U.R.S.S. corajosamente declarou guerra ao Japão.

Mas voltando à Espanha de 1937. Guernica foi bombardeada, o nervo basco foi tocado com crueldade, e só ficou de pé na cidade destruída o carvalho secular. Sim, repisemos: na tarde de 26 de abril de 1937, quando a cidade tranqüilamente se movia em torno da feira, subitamente surgem os aviões alemães: Heinkels III e Junkers 52 despejaram 1.000 libras de bombas incendiárias. Houve 1.654 mortos e 889 feridos (18). O aviador alemão Adolf Galand, que depois se alistou na Condor Legion, admitiu que os alemães eram responsáveis pelo bombardeio (19). Em 1946, Goering confirmou que Guernica fora um test da aviação alemã. 1937: Guernica No dia seguinte o mundo inteiro acusava os nacionalistas espanhóis, e especialmente o General Franco, do criminoso, desumano, inacreditável bombardeio de uma cidade aberta que, para agravo da atrocidade, era a tradicional cidade sagrada do povo basco. Curiosa rapidez da imprensa mundial de cujo silêncio sobre os horrores comunistas se queixava Pio XI na Divini Redemptoris. Mais notável ainda é a reação dos intelectuais católicos da esquerda francesa. Surgiu logo o manifesto Pro-Basco, onde se destacavam as seguintes assinaturas:

François Mauriac Jacques Maritain Georges Bidault Claude Bourget Maurice Merleau Ponty É preciso lembrar que nunca se ouviu falar de algum manifesto de intelectuais por ocasião do outubro vermelho de 1934 nas Astúrias, quando foram direta e cruelmente assassinados 35 sacerdotes pelo simples fato de serem “curas” e incendiadas 58 igrejas, sem falar no fuzilamento dos religiosos das Escolas Cristãs de Turon e dos seminários de São Lázaro e Oviedo. Também não houve manifesto de intelectuais sobre o que fizeram “los rojos” de fevereiro a abril de 1936, e portanto antes do estado de guerra. Os intelectuais de Vendredi, naquele tempo, estavam ocupados em enviar açúcar e artigos sanitários para os violadores de freiras e para os assassinos de padres. Mas tudo isto se enquadra na nova lógica simbólica do jogo esquerda-direita (20). Manifesto intelectual contra as esquerdas é uma espécie de “contramão” no curso das idéias, ou de “círculo quadrado”.

Na lógica e na moral clássica a mim me parece claro como água que os distraídos de 1934 e 1936 perderam o direito de dizer uma só frase sobre o sofrimento da Espanha, sobretudo agora quando a Igreja, por todas as vozes autorizadas, faz eco à Divini Redemptoris, e até do Arcebispo de Westminster chegavam palavras descrevendo a luta espanhola como “a furious battle between Christian civilization anda the most cruel Paganism tha has ever darkened the world” [21].

Nesta altura do ano o Osservatore Romano publica a notícia de 16.500 freiras, bispos e padres assassinados pelo terrorismo vermelho, que ultrapassa em ferocidade as experiências anteriores na Rússia e no México.

Em 1° de julho de 1937, por iniciativa do Cardeal Goma, primaz de Espanha, foi dirigida ao mundo inteiro a Carta Coletiva do Episcopado Espanhol; e todo o mundo católico respondeu ao grito da Igreja de Espanha com a mesma unânime simpatia sobrenatural. Desde os bispos das ilhas Filipinas até o Cardeal-Arcebisop de Paris, o mundo católico inteiro formulou o mesmo desejo e deu os mesmos títulos de grandeza e justiça para a causa dos espanhóis que lutavam ao lado do general Franco pela libertação da Espanha. O grito de “Arriba Espanha!” deu a volta ao mundo:

Vale a pena realçar a resposta comovida dada pelo Cardeal Verdier, Arcebispo de Paris [22]:

(...) “Que serviço prestais a todas as nações do mundo, mostrando-lhes, à luz dos fatos, a que extremidades conduzem o ateísmo prático, a degradação dos costumes, o desprestígio da autoridade e a convivência dos governos com todas essas doutrinas de destruição e de morte. A lição que nos dais, Eminência, é extraordinariamente oportuna, porque à luz de tão sangrento, espetáculo podemos melhor apreciar os perigos que nos ameaçam e vemos com mais clareza qual deve ser nossa vigilância e nossa ação. Vemos com evidência que a luta titânica e sangrenta que se desenrola na Espanha católica é realmente uma luta entre a civilização cristã e a pretendida civilização do ateísmo soviético. E é isto que dá a esta guerra uma grandeza emocionante...” (Ass.) Jean, Cardeal Verdier, Arcebispo de Paris, 7 de setembro de 1937.

1937, 1° de julho: pronunciamento dos “intelectuais” da esquerda católica francesa. No mesmo dia 1° de julho, em que o Episcopado Espanhol dirigia ao mundo católico a carta coletiva que pelo mundo inteiro seria respondida, a Nouvelle Révue Française publicava um artigo de Jacques Maritain no qual o autor dizia que “aqueles que matavam os pobres, o povo de Cristo, em nome da Religião, eram tão culpados como os que matavam os padres por ódio à Religião”, E aqui é impossível evitar uma confrontação. De um lado, temos um Papa com três encíclicas e várias alocuções, e todos os bispos do mundo, numa espécie de Concílio Ecumênico epistolar, e numa unanimidade nunca vista, e de outro lado, no mundo católico, um punhado de intelectuais que toma posições e faz declarações curiosamente autônomas e alheadas ao que diz e faz toda a Hierarquia da Igreja Católica. A segunda confrontação que faço é a seguinte: de um lado, o Papa e mais de 1.000 Bispos falam insistentemente e sistematicamente nas motivações antecedentes, no monstruoso acúmulo de crises que conduzia imperativamente a um levante não somente restaurador da ordem e da justiça na Espanha como também punidor dos crimes praticados; e de outro lado o punhado de intelectuais insistentemente e sistematicamente esquece e despreza os mártires e as freiras violadas para apresentar a guerra civil como uma luta política começada em julho de 1936 simplesmente para derrubar uma facção e colocar outra adversa e odiosamente mascarada de guerra justa ou santa.

A terceira confrontação que se impõe é a seguinte: de um lado, temos uma espantosa coleção de crueldades nitidamente marcadas pela intenção que as especifica: os padres eram mortos a marteladas pela simples e específica razão de serem padres, as igrejas eram incendiadas por serem igrejas; de outro lado, temos brutalidades de guerra, inevitáveis se a guerra se tornou inevitável. Se uma guerra só é justa quando seus dirigentes puderem ter a certeza de poder evitar qualquer excesso, qualquer crueldade acidental, então voltamos ao quadro caricato de uma guerra com espingardas de rolha, baionetas de papelão e bombas de creme. Só essa será justa. E então concluiremos que um cristão é um homem que jamais deve combater em defesa dos valores cristãos. E quanto mais cristã for a razão de sua guerra, mais odiosa e menos justa será essa guerra. Curiosa doutrina? Curioso pacifismo que contradiz toda a civilização cristã e que troca as cores violentas dos vitrais de nossa História por um cinzento budismo ou quietismo de qualquer inspiração sem sangue! Fazemos ainda uma confrontação: a de todos os feitos já sobejamente conhecidos, a do terror de Madri, a dos curas esquartejados etc. etc. e a do bombardeio de Guernica. E somos forçados a reconhecer uma coisa: em 1937, o quadro de Picasso, Guernica, exposto em Paris e hoje no Museu de Arte Moderna de Nova York, teve mais sucesso, produziu maior efeito do que toda a Hierarquia católica em coro, chefiada pelo Papa. E os “intelectuais” assumiram a triste tarefa de inculcar no mundo uma idéia prodigiosamente estúpida: a de ter sido intencionada, desejada como tal, a destruição de Guernica. Todos nós sabemos que Guernica foi uma estupidez especialmente cruel por sua irrelevância como feito de guerra. Sabemos hoje que uma real responsabilidade recai sobre o estado-maior alemão, que aprovou a experiência do bombardeio. E por aí se vê que a valorização dada a esse incidente e a responsabilidade atribuída aos brancos só se explicam por um absoluto e incondicional desejo de ver os brancos derrotados e os vermelhos finalmente vitoriosos numa Espanha definitivamente varrida de cruzados, militantes e combatentes em nome de Cristo Rei. Na perspectiva em que hoje vejo todas as devastações produzidas ou provocadas pela ferocidade das ideologias totalitárias, não posso evitar um sentimento de pungente repugnância quando penso no grupo de tolos enleados pelos manifestos das esquerdas a propósito da infortunada Guernica. E mais ridículo fica o protesto dos “intelectuais” quando hoje sabemos que nas próprias províncias bascas, cujo catolicismo era atirado em face dos brancos pelos companheiros de Merleau Ponty, desencadeou-se uma perseguição religiosa que atingiu 278 padres, 125 religiosos, dos quais 22 jesuítas, que sofreram privações, torturas, prisão e morte [23]. Tem-se a impressão, não ouso dizer a divertida impressão de que os comunistas sabem que nada lhes tirará a privilegiada posição de simpatia dos “intelectuais” definitivamente condicionados pelo binário esquerda-direita. Mas é melhor procurarmos saber o que diz o Papa, e a atenção que deu o Vaticano ao episódio de Guernica.

Roma: os enviados bascos e o Cardeal Pacelli Logo após o bombardeio de Guernica, vinte padres bascos, testemunhas visuais, escreveram uma carta ao Papa e dois padres bascos foram enviados a Roma com uma cópia da carta, e lá chegados, por intermédio de Dom Mugica, Bispo de Vitória, exilado, solicitaram a Mons. Pizzardo, Subsecretário de Estado do Vaticano, uma audiência do Papa. Pizzardo respondeu-lhes que o Papa achava a audiência desnecessária, uma vez que já recebera a carta. Dom Mugica escreve ao Cardeal Pacelli comunicando a chegada dos dois padres, mas durante muitos dias não teve resposta. Um dia, chegou um mensageiro ao Vaticano, onde estavam hospedados os dois padres, no momento em que eles tomavam a refeição da manhã. Sem tempo de terminá-la, correram à presença do Cardeal Pacelli, cujo secretário desde logo os advertiu de que seriam recebidos se nada falassem do assunto nem

mencionassem a razão da presença deles em Roma! O Cardeal Pacelli recebeu-os de pé, e quando eles falaram na carta dirigida ao Papa, friamente lhes respondeu: “A Igreja está sendo perseguida em Barcelona”, e indicou-lhes a porta de saída. [24] Este episódio que as esquerdas explorariam para provar a subserviência da Igreja às “classes dominantes” que desejavam esmagar o mundo novo que nascia na Espanha, prova simplesmente que em Roma já transbordava a taça da amargura. Para efeito de desenvolvimento lógico podemos admitir que, além do Papa, e dos Bispos do mundo inteiro, também a Secretaria do Estado do Vaticano e o futuro Papa Pio XII se enganavam sobre a Guerra Civil de Espanha, e que só estavam certos François Mauriac, Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, Merleau Ponty e os dominicanos da Sept. Uma digressão sobre os graus de perversidade. Não pretendo, de modo algum, comparar as diversas crueldades que o homem pode praticar e que este século tem produzido com magnífica eficiência, nem pretendo medir-lhes a malignidade pelo número de religiosos assassinados e de igrejas incendiadas. Não diria, por exemplo, que o Terror de Madri foi 54 ou 223 vezes mais cruel e perverso do que o bombardeio de Guernica. Uma coisa digo: há graus, dimensões de maldade, graus irredutíveis, dimensões inconvencionais. Como há graus e dimensões de bondade. E como há graus irredutíveis e incomensuráveis em todas as obras boas e más do espírito.

Péguy dizia [25] que o dreyfusismo do bom coronel Picquart “était bien, mais le dreyfusisme de Bernard Lazare était infini”. E, aqui, “infinito” quer dizer “incomensurável”. E no entanto o coronel Picquart, por honestidade, por suas virtudes militares expunha a vida e quase a perdeu. Mas Péguy, sem de longe querer diminuir o mérito do virtuoso coronel, tenta assim, com suas hipérboles, comunicar a idéia da altura, da largura e da profundidade da alma trágica de Bernard Lazare que exprimia, com a matéria fugaz de um episódio, uma dor transcendental de cinqüenta anos.

Parodiando Péguy, eu diria que o bombardeio de Guernica était mauvais, mas o assassinato de um só padre, pelo simples e específico fato de ser padre, était infini. E a violação das freiras? E o convento entregue à curra popular durante dias até a morte das freiras? E a violação? E o strip-tease dos cadáveres exumados e violados pelo simples fato de se tratar de freiras que tinham feito voto de virgindade?

Não me alongarei nem irei buscar na antologia de atrocidades as coisas que foram praticadas em nome de um “ideal”, a pretexto de um mundo melhor que só poderá ser edificado pela crueldade. A maçonaria tem práticas e já se orgulha de uma literatura luciferina; o comunismo e o anarquismo são formas práticas de satanismo. E aqui me permito um momento de assombro quando vejo grandes filósofos (vítimas da armadilha esquerda-direita) traçarem simetria e ficarem horrorizados contra aqueles que combatem, que atiram, que matam em nome de Cristo. É claro, claríssimo, que só podemos punir desde a mais leve infração ao mais horroroso crime, com a mais benigna prisão ou com a pena de morte, e que só podemos julgar, condenar e executar em nome de Deus!! Prefeririam os filósofos católicos que os brancos lutassem em nome do Diabo? Ou que, em nome de Deus, não defendessem os inocentes?

Não me alongarei nas crueldades que eram encerradas e respondidas com um “Viva Cristo Rei!” Passando aparentemente de um extremo a outro, menciono a hiperbólica ferocidade praticada contra imagens, oratórios, capelas, paramentos, igrejas que Antonio Montero [26] arrolou no capítulo intitulado “El martirio de las cosas”. E ouso dizer que essa crueldade aplicada à transcendental inocência das coisas inermes, e dirigida à Coisa por elas significada, mereceria um grau transcendente na escala que estou tentando. Tudo isto é infinito comparado a Guernica e a todas as brutalidades das guerras mais justas.

E aqui me detenho para consignar um receio: o de não ter, neste ponto, a incondicional aquiescência do leitor. E nesse caso aconselho-o vivamente a procurar outro passatempo. Porque este ponto que acabo de tocar é de incandescente, explosiva e transcendental intolerância, sendo todavia da mais transparente e aquosa simplicidade. E só admito que autores estimáveis se tenham deixado ofuscar e enrolar porque agora sei, depois de tão instrutivas experiências, que o “intelectual” afetado de sinistrite entra num estado de irrealismo e de abstracionismo graças a todo um jogo interno de censura. Como entender a posição e os manifestos de Maritain sem postular uma desarticulação entre os princípios especulativos luminosamente expostos e a aplicação dos mesmos princípios na espessa obscuridade das contingências?

Não veja o leitor, nas alusões de cunho crítico que faço aos “intelectuais”, nenhuma pretensão de afirmar uma nova filosofia anti-intelectual, e uma nova modalidade de disjunção entre a inteligência e o real, disjunção característica do idealismo filosófico que, melhor do que ninguém, Maritain combateu a vida inteira. Em resumo... Sem poder fazer retratações alheias sem procuração, e sem querer fazer psicanálise à distância, mas na ansiedade de compreender, sou forçado a tentar hipóteses e a experimentar nos fatos e nos textos sua congruência. E parto de alguns lemas que reputo incontestáveis em são juízo e reta intenção: — Não é válido, hoje, em nenhum tom e em contexto algum, dizer qualquer frase que estabeleça um paralelo do comunismo com a causa dos pobres e da justiça social; — Além disso, tudo tem limite, e é um pouco excessiva a idéia de que, assassinados os padres, estripadas as freiras, incendiadas as igrejas e mantidos nos quartéis os exércitos e internados os carlistas e falangistas nos reformatórios, então sim teria a Espanha as melhores chances de paz e prosperidade, e ninguém seria mais indicado para a consumação de tão difícil e nobre tarefa do que os incendiários, os assassinos, e os violadores de cadáveres; — Além disso, não se entende bem, com que critérios simples, a naturalidade, a plácida indiferença com que os intelectuais católicos encaram tantos horrores. Tratando-se de pessoas virtuosas, de costumes morigerados e sem nenhum antecedente de ferocidade, tais disparates só se explicam por aquela deslocação da razão prática a que atrás me referi e graças à qual o profissional dos jogos do espírito desdenha a vulgaridade das humildes evidências da “petite sagesse”. Em outras palavras, a tremenda e chocante injustiça se explica por um chocante mecanismo de desatenção e de evasão. Mas esse processo não se move, evidentemente, sem certas convivências internas que freqüentemente são mais insidiosas do que as descaradas conivências exteriores;

— Objetivamente, Mauriac, Maritain e Mounier (três M´s oferecidos à gula trinitária de Tristão de Athayde), de 1937 a 1939, foram sistematicamente rebeldes, ou sistematicamente alheados, ou tranqüilamente desatentos à orientação pastoral claramente e insistentemente formulada pelo Papa e pelos Bispos do mundo inteiro. Para a Igreja o levante de 1936 tinha motivação justíssima, e coincidia com o que razoavelmente qualquer homem de bem, e por mais forte razão qualquer católico podia desejar, e era evidentemente o melhor que se podia fazer na Espanha pelos pobres, como aliás o demonstraram 25 anos de prosperidade e de paz; — Mas, além e acima das ponderações do bom senso e da história, impunha-se à consciência dos intelectuais católicos ponderações de obediência. O historiador Hugh Thomas, que brilha pela despreocupação de brilhar, e que nunca aparece partindo um cabelo em quatro, nem demonstra especial devoção pelo general Franco, diz o seguinte, que transcrevo sem traduzir: “A núncio was despatched to the Castil’an capital. Henceforward any Catholic who sided with the Republic or who even, like Maritain, preached that the Church should be neutral, became tecnically rebels against the Pope” (op. cit., pág. 451). (Gustavo Corção, O Século do Nada, Parte II, Cap. II, Editora Record). Notas: [1] Hugh Thomas, The Spanish Civil War, Eyre & Spottiswoode, Londres, 1964. [2] Ibid., pág. 58. [3] Ibid., pág. 29. [4] Ibid., pág. 78. [5] Ibid., pág. 40. [6] Robert Brasillach y M. Bardêche, Historia de la Guerra Civil de España. [7] Ibid., pág. 168. [8] Ibid., pág. 164. [9] Antonio Montero, Historia de la Persecución Religiosa en España, B.A.C., 1961. [10] Ibid., pág. 27 e seg. [11] Ibid., pág. 31. [12] Daniel-Rops, Un Combat pour Dieu, Fayard, 1963, pág. 544. [13] Ibid., pág. 42 [14] Ibid., pág. 44 [15] Ibid., pág. 47, e para maiores detalhes ver Antonio Montero, op. cit., pág. 52 e seg. [16] Ha hablado la Iglésia, Ed. Española, 1937; ver também Jacques Marteaux, op. cit., pág. 286. [17] Robert Brasillach, História de la Guerra de España. [18] Hugh Thomas, op. cit., pág. 419. [19] Ibid., pág. 421. [20] Jean Madiran viu com grande lucidez esse aspecto da trapaça intelectual que atingiu principalmente o povo mais inteligente do mundo, e escreveu um livro (On ne se moque pas de Dieu, Nouvelles Ed. Latines, 1957, pág. 27 e seg.) que dedica todo o capítulo II a esse problema. E eis o que diz Madiran: “A distinção entre a esquerda e a direita é sempre uma iniciativa da esquerda, feita pela esquerda e em proveito da esquerda. Há uma direita na proporção em que uma esquerda se forma para designar a direita e a ela se opor: o inverso nunca se dá. Os que instauram e põem em funcionamento o jogo esquerda-direita, logo se situam na esquerda de onde delimitam a direita para combatê-la e excluí-la. Num segundo momento, a direita, assim designada e apartada, arregaça as mangas, nunca muito depressa nem com muita disposição, e então se organiza, se defende, contraataca e às vezes consegue vitórias... Por isso, será de direita aquele que a esquerda designa ou denuncia arbitrariamente como tal: o inverso não é verdade, não existe... A direita sabe ou sente que se submete sem poder fixar ou

modificar as regras do jogo... E por quê? Porque a direita não se julga com títulos nem com a possibilidade de colar o rótulo nos frascos. A esquerda, ao contrário, senhora e árbitro do jogo que inventou e iniciou, relega para as direitas quem ela acha que deve relegar, e como e quando lhe parece oportuno e conveniente” Ver mais em O Século do Nada, Capítulo II O JOGO ESQUERDA-DIREITA. [21] Hugh Thomas, op. cit., pág. 449. [22] El Mundo Catolico y la Carta Colectiva del Episcopado Español, Ed. Rayfe, Burgos, (23) 1938, pág. 159. [24] Hugh Thomas, op. cit. pág. 451 [25] Ibid., pág. 420, nota ao pé da página. [26] 3 de maio de 1932.

Estamos no século XX Parte II - Capítulo I de “O Século do Nada”

ESTAMOS NO SÉCULO XX "Não! não é por pessimismo e desespero que eu recuso o mundo moderno; eu o recuso com todas as forças da minha Esperança". Georges Bernanos, 1946. "Nunca se dirá tudo das covardias que nossos franceses praticaram e praticarão pelo medo de não parecerem bastante à esquerda". Charles Péguy As origens do século XX Podemos demarcar essas origens por quatro acontecimentos, dois com caráter de escândalo, crise ou explosão, e dois outros com feição de inauguração, ou de fonte, mas todos, cada par a seu modo, com a mesma lei da continuação, que rege a vida e a história. As explosões ou crises não são criações novas, mas apenas conseqüências de acumulações anteriores; as inaugurações ou nascimentos também têm sua genealogia nas linhas-de-história que vêm de longe. Mas se não há nada absolutamente novo “sub sole”, como diz o Eclesiastes, não se pode todavia negar certa especificidade que dá a cada época sua fisionomia particular. E eu tenho a firme convicção de que há alguma coisa de cromossômico nos quatro acontecimentos já mencionados, e que é deles que nosso bravo século tira seu ar de espanto e de desassossego. São os seguintes os marcos ou germes: a) O “Affaire Dreyfus” que culmina no ano de 1898 com o artigo J’accuse...! de Emile Zola, e com o manifesto dos intelectuais na mesma data. b) A crise “modernista” na Igreja começada nos últimos anos do século XIX e combatida por Pio X desde 1903 até 1907, data da encíclica Pascendi, que enquadrou doutrinariamente e condenou os vários erros convergentes naquilo que o próprio Pio X chamou “encruzilhada de todas as heresias”. c) No mesmo ano em que começou o processo do capitão Dreyfus, 1894, dois jovens católicos fundam a revista e o movimento chamado Le Sillon (O Sulco), que parece inspirado pelo movimento do catolicismo social, mas na verdade traz a semente de um hibridismo, da qual nascerá o itinerário ou o sulco da “esquerda católica”, com o sentido especial de que já falamos no capítulo II. d) Na mesma data, 1898, Charles Maurras escreve Enquête sur la Monarchie, com a qual nasce seu interesse e sua paixão política, e portanto nasce a Action Française, cujo crescimento e cuja crise, em 1926, terão incalculáveis conseqüências para a França, para o mundo e para a Igreja. Neste capítulo tentaremos estudar o andamento das duas linhas-de-história dinamizadas pelo jogo “esquerda-direita”, mas inicialmente devemos abrir um tópico para o estranho “Affaire” que parece ter

uma função genética decisiva no mundo cujo nascimento foi festejado com o que hoje poderíamos chamar de cômico otimismo.

Uma sinistra explosão de “sinistrite” Revelem-me o quase trocadilho que já é um mau começo de uma história que foi para a história do século um mau começo; e até digo um mau “negócio”. Tudo partiu de um erro judiciário e de uma criminosa falsificação que em outras circunstâncias — sim, em outro ponto da história e em outro país — seriam arrastados pela onda de acontecimentos e se corrigiriam sem tanto alarde, ou mesmo sem se corrigirem desapareceriam nos ralos da história ou da des-história, que de minuto em minuto escoam os erros, as injustiças, e as variadas mesquinharias e baixezas que todos nós vivemos a produzir neste mundo sublunar. Sem duvidar da generosidade desta pobre humanidade já tão caluniada, diria que é um erro pensar que todo o colossal arruído em torno do “Affaire Dreyfus” teve como causa principal a justa indignação desencadeada por uma estúpida injustiça quase acidental, agravada pela inépcia das autoridades, elevada ao cubo pela descoberta de uma intenção teimosa de não corrigir o erro para não abalar as instituições, e finalmente exponencializada pela evidência de uma falsificação criminosa. Fossem outras as ressonâncias e implicações, bastariam o suicídio do coronel Henry, a heróica honradez do coronel Picquart e a reabilitação do inocente capitão Dreyfus para encerrar o assunto. E não estaríamos aqui a remexer essas lembranças que têm a minha idade, e portanto mais três ou quatro anos do que o próprio século. Mas o turmoil que envolveu o desventurado e medíocre capitão Alfred Dreyfus não tem nenhuma proporção com os fatos interligados, nem se explica cabalmente pela indignação dos que apostavam na inocência de Dreyfus, nem pela desconfiança dos que suspeitavam sua culpa. Contribuiu muito para o apaixonado interesse do mundo inteiro a descoberta sensacional do petit bleu em 1896. O capitão Dreyfus já comparecera em conselho de guerra sob a acusação de haver vendido à embaixada alemã documentos secretos. Toda a acusação repousava, ou tentava repousar sobre um documento, o famoso bordereau, que atribuíram ao capitão Dreyfus. Já vários indícios deixaram entrever a imperfeição do processo, mas a condenação à degradação do oficial e sua deportação para a Ilha do Diabo foram acolhidas friamente pelo público. E até Jaurés, que ninguém suspeitara de militarismo e de excessivo apego aos valores que começavam a estremecer, lamenta publicamente que aquele traidor não tenha sido fuzilado. A descoberta do petit bleu, encontrado numa cesta partido em 32 pedaços, dificilmente reconstituídos, evidenciou a presença de um personagem até então alheio ao processo: o coronel Esterházy. Cresce rapidamente a suspeita e espalha-se a notícia. A 14 de setembro de 1896 L’Eclair publica um “histórico do processo Dreyfus”. Alguns dias mais tarde a Revue Blanche publica a primeira edição de uma brochura intitulada Une erreur judiciaire, de Bernard Lazare. E nesse dia começou propriamente o “Affaire” em todas suas prodigiosas dimensões. A partir desse dia, em qualquer ponto de Paris, onde estivessem três ou mais pessoas sentadas bebendo um refresco, passeando num jardim, ou reunidas num salão, poderíamos apostar que

estavam discutindo interminavelmente o “Affaire”. Quem quiser maiores detalhes sobre o processo, poderá encontrar nas Oeuvres Complètes de Roger Martin du Gard, ed. Pléiades, um excelente resumo feito por Jean Bloch Michel, nas páginas CLI e seguintes o tomo I, à guisa de introdução ao romance Jean Barois, que gira em torno do “Affaire”. O que não se vê nesses resumos objetivos, por falta de conexões históricas, é a razão profunda de tão pasmoso abalo produzido na estrutura da nação francesa. Péguy e seu amigo, o judeu Bernard Lazare, foram talvez, na época, as únicas pessoas do mundo que sentiram, digo melhor, que adivinharam os abismos místicos eclipsados pelas aparências políticas. É Péguy, em Notre jeunesse, quem contrapõe esses dois termos para explicar que o “Affaire” tem uma forma visível, real, verdadeira mas superficial, e outra forma, profunda, só perceptível para uma alma profundamente cristã e profundamente francesa ou para uma alma profundamente francesa e profundamente israelita. Péguy tem a dolorida simplicidade de afirmar que eles dois, Bernard Lazare e Péguy, foram heróicos. “Nós fomos heróicos...”. e explica que pode dizer isto porque mais ninguém no mundo o dirá, ninguém saberá que ele foi heróico, que Bernard Lazare foi heróico, o que é verdade para Bernard Lazare que morreu na total obscuridade, pobre e desprezado pelos próprios judeus, mas estava reservada para Charles Péguy outra morte e outra sorte, que viriam dar um sentido novo e antigo às virtudes militares de que tanto falou o poeta sem saber que falava de si mesmo, e que falava para purificar a França ferida na honra militar. Péguy tornou-se, e permanecerá, enquanto permanecerem resíduos da França, o arquétipo do francês que não sofre contestação. Poeta admirável, herói admirável, Péguy tornou-se a hipótese de uma França ideal que deve ter um mapa moral no céu das essências. O clamor que circundou o “Affaire” e o sofrimento indizível que Péguy tenta dizer provam a existência de todo um tremendo processo sísmico por baixo do erro judiciário. O que o mundo ouvia eram os estalos, os rumores subterrâneos de toda uma civilização concentrada naquela nação que é a “file ainée de l’Église” e “le plus beau royaume après le royaume de Dieu”. Não é em vão, nem por pouca coisa que um país carrega tão esmagadores títulos. E tenho para mim que Bernard Lazare, apesar de judeu e de se dizer ateu, sentia, através de Péguy, toda a tragédia de desmoronamentos de valores cristãos; e que Péguy sentia, através de Bernard Lazare, as dimensões maiores da tragédia que, sem o Antigo Testamento, teria uma parte velada. Em termos mais tranqüilos, estavam em jogo, nesse misterioso “Affaire”, categorias que transcendem a história e as dimensões superficiais da vida humana. Estava em jogo o princípio da autoridade, mal servido pelos que tinham mandato para representar a honra militar. E contra esse princípio, acobertados pelo “pretexto” da injustiça praticada, levantaram-se os ateus, os inimigos da Igreja, os inimigos da ordem em nome de um ideal de Revolução. Foi terrível e irreversivelmente desastroso para a França o fato de terem razão os Emile Zola e os Anatole France, não apenas contra os culpados de criminosa falsificação mas contra os princípios que esses homens traíam, e que aqueles desprezavam. Parece pouco generoso e até ilegítimo duvidar da pura generosidade de todos aqueles que criaram um alarido na defesa de um inocente injustamente condenado e degradado. Mas, meus queridos, a pura generosidade não sendo matéria tão abundante, nem tão disseminada entre os homens não é injusto duvidar de sua presença neste ou naquele caso. Acontece que os personagens em questão escreveram muitas outras coisas além de J’accuse...! e de Île des Pingouins. E o mundo católico alfabetizado sabe perfeitamente que espécie de testemunho da verdade deram esses mesmos

escritores em outras circunstâncias. Os parentes espirituais de Renan tinham no erro judiciário uma excelente ocasião para golpear as instituições e os princípios com que Ernest Psichari, o neto do Renan, conseguira salvar o seu tesouro1. Outro elemento em jogo no “Affaire” é Israel. Nem mais nem menos. Acontece que o incriminado era judeu, e isto bastava para que toda “uma família espiritual” se apoderasse da circunstância para clamar contra o anti-semitismo dos franceses tradicionais. Porque o francês é tradicionalmente anti-semita, não pela estúpida razão dos nazistas, mas pelo fato de constituir a comunidade judaica um nacionalismo enxertado em outro vigoroso nacionalismo. O processo de rejeição da biologia verifica-se também na sociologia. O francês não considera o judeu uma raça inferior, poderá até admitir que os judeus constituem uma nação especialmente apta, inteligente e diligente. Mas custa a ver um francês num judeu. Esse anti-semitismo não leva ninguém a cometer nenhuma injustiça, mas conduz as pessoas a escolherem livremente suas dileções. Escrevo estas coisas com desembaraço porque me sinto pessoalmente livre delas. Como brasileiro, e suponho que razoavelmente bom brasileiro, não tenho a menor dificuldade de admitir que um judeu seja brasileiro. O mecanismo de rejeição cultural e racional, em mim não funciona. E até funciona ao contrário. Passei toda a vida entre amigos judeus, como se eu fosse um deles. Espero que o leitor, que acaso tenha chegado até aqui, seja suficientemente sábio para compreender que, por isso mesmo, por minha absoluta e total incapacidade de rejeitar uma nação, eu compreendo o mecanismo da rejeição de um católico francês do tipo dos membros da Action Française. Trata-se apenas de uma irritação cultural parecida com a anglofobia dos mesmos franceses. Como estamos cansados de saber, o francês é periodicamente inimigo do alemão, em termo militares; mas é anglófobo em termos culturais, eu até diria é fraternalmente e constantemente anglófobo. E é essa espécie do chamado anti-semitismo da “Action Française” — Brasillach, o admirável Robert Brasillach, fuzilado em 6 de fevereiro de 1945 como colaboracionista, quando a guerra já acabara, seria anti-semita dessa espécie; mas, por acaso?, foi o único escritor francês que, durante a ocupação alemã, escreveu em Je suis partout contra a prisão dos judeus e especialmente contra a diabólica crueldade com que os nazistas, nas prisões de judeus, separavam os pais dos filhos! O fato de ser judeu o capitão Dreyfus foi um atrativo a mais para os dreyfusards que ostentavam estandartes da justiça a serviço do ódio, do ceticismo, da inimizade, do socialismo. Com o “Affaire” começou em França o jogo “esquerda-direita” em toda a sua crueldade, e em sua intrínseca falsidade. Além disso, ofereceu-se uma excelente oportunidade de humilhar e confundir os católicos, que estavam habituados, secularmente habituados, a viver, a não separar sua fé católica de um sentimento de brio, de cavalheirismo, e sim, de um sentimento de honra que só se encontra com essa especial feição na França de São Luís e na Espanha de Santa Teresa. As outras nações do mundo terão suas maravilhosas qualidades específicas, e por isso suas específicas vocações. Duvido de que alguém, mais do que eu, tenha admirado o humour heróico com que os ingleses, em 1941, salvaram a Inglaterra e o mundo. E valho-me deles, não me lembra se de Belloc ou Chesterton, para admirar a maravilhosa e comunicativa “humanidade” do povo italiano. Na Itália, dizia o inglês, sente-se o humano como se sente o cheiro de queimado. E os russos, os russos de Tchekhov, de Puchkine, de Dostoiewski? E os russos de Mussorgsky?

E nós? Modéstia à parte, eu também acho que o povo brasileiro tem uma insubstituível vocação, e já deu provas disso na maneira sui generis com que expulsou e expeliu a mais cruel enfermidade social e política do século. Mas, voltando ao povo francês e à composição de Fé e sentimento de honra que caracteriza a parte mais sólida de seu catolicismo — a parte que mais tarde será chamada de “droite” e de “integrista” — preciso fazer um reparo: todos os homens, e por igual motivo todas as nações têm os defeitos de suas qualidades. No sólido, vigoroso e brioso catolicismo francês as desfigurações, representadas pelos personagens de Mauriac, ou por um Oscar Thibault, são especialmente aberrantes. Mas os católicos que sofreram com o “Affaire” foram os melhores, foram aqueles que de repente, inexplicavelmente, viam escarnecidos todos os valores essenciais a propósito de um suposto erro judiciário em que se achava envolvido um judeu, e em que seriam os piores inimigos da Igreja que tinham razão. Esses mesmos católicos franceses que Yves Simon diz terem sido “a quase totalidade dos católicos franceses”, sofreram vinte e cinco anos mais tarde a crise da Action Française, e até o ano de 1941 serão apontados, por um francês, como capazes de uma desonrosa e brutal injustiça. Eis o que diz Yves Simon: O “Affaire Dreyfus” foi também uma crise religiosa, porque a quase totalidade dos católicos, cegos pelas paixões dos grupos com os quais tinham insensatamente ligado sua sorte, se pronunciaram pela culpabilidade do capitão Dreyfus. Ora, era uma questão de fato: o capitão Dreyfus era inocente de traição cometida por outro capitão chamado Esterházy. (Yves Simon se enganou no posto. Esterházy era de fato coronel). Mas Dreyfus era judeu, Estérhazy não era judeu; era preciso então que o culpado fosse Dreyfus. Mas a causa de Dreyfus era defendida pelo partido republicano, por numerosos maçons, pelo partido socialista: logo era preciso que Dreyfus fosse culpado. Entre os partidários de Dreyfus havia grande número de inimigos da Igreja, do exército e da ordem política: logo era preciso que Dreyfus fosse culpado. Pouco importava a realidade dos fatos (...) Com poucas exceções, os católicos franceses se engajaram a fundo na campanha anti-dreyfusarde contra a justiça. A justiça triunfou; mas esse triunfo acarretou a desonra daqueles que tinham combatido contra ela. (...) Em 1937 um grande católico me dizia que, se se reproduzisse um novo “affaire”, não seria possível obter esse escândalo devastador: O mundo católico se levantando em bloco (ou pouco menos) em favor de um erro judiciário”. Dificilmente encontraríamos um documento que melhor exprimisse o trágico equívoco do “Affaire” que esta página de uma espantosa, de uma apavorante infelicidade, escrita por um filósofo católico que deve saber o que é justiça, que deve saber o que é honra, que deveria respeitar o foro interno nas argüições de pecado contra a justiça, e que deveria saber distinguir os vários graus de certeza ou de crença antes de escrever esta frase monstruosamente falsa: “o mundo católico se levantou como um bloco em favor de um erro judiciário”. Nunca vi mais leviana acusação levantada contra milhões de irmãos na Fé por um prestigiado pensador católico, no mesmo passo em que abre todos os créditos para as retas intenções dos piores inimigos da Igreja. Analisemos esse expressivo tópico; mas antes disso declarar que desde que me entendo sempre me pareceu pacífico este ponto: todos os homens de bem tinham sido dreyfusistas, como Péguy e Bernard Lazare; mas acrescento: nunca me passou pela idéia que fossem desonestas todas as pessoas que tinham sido antidreyfusistas. Essa idéia não me aparecia jamais como aceitável, mesmo nos tempos em que, simples engenheiro e não-católico, jamais lera uma página de Santo Tomás.

E agora abordemos o problema de “psicologia da crença ou do assentimento” dos católicos franceses em face do “Affaire”. A primeira coisa a criticar na página de Yves Simon é a simplicidade com que diz: “ora, era uma questão de fato; o capitão Dreyfus era inocente, e a traição tinha sido cometida por outro, o coronel Esterházy”. Mas esse fato só se impôs como um fato depois de todas as provas, e depois de serenada a atoarda ensurdecedora, e estonteante, criada em torno dele. Durante a evolução do processo os católicos não estavam diante de uma coisa evidente, nem mesmo de uma coisa fortemente provável e parecida com a evidência. Em relação ao objeto “Affaire”, inacessível a cada cidadão francês, a não ser pela leitura de jornais e pelas conversas e comentários, o cidadão médio francês só podia formular um juízo de fé humana, ou de certeza moral sujeita a todas as revisões. O bordereau e o petit bleu não foram nem podiam ser examinados por cada francês; e ainda que os jornais reproduzissem todos os documentos, não poderiam os leitores não-especialistas decidir com firmeza o veredicto final. Estamos dentro de uma explosão de opiniões formuladas com uma desproporcionada veemência, em inteira desproporção com as possibilidades de averiguação direta. Qual era então a razão de tamanha veemência, de parte a parte, onde faltava a evidência e onde todos se moviam em termos de certeza moral? Era simplesmente esta que formulamos sem nenhum trêmulo de indignação, porque faz parte do modo social de apreciar os acontecimentos: na verdade o colossal debate, desde o início (e excetuadas as pouquíssimas pessoas em contato mais direto com o caso, como por exemplo o heróico Coronel Picquart), se deslocara para um debate de idéias, de valores abstraídos, por assim dizer, da atoarda nascida em torno de um caso. Tendo os católicos diante dos olhos a notícia de um caso turvo, como tantos ocorrem todos os dias, começaram a se inquietar quando observaram que todos os inimigos da Igreja tomavam posição a favor da inocência de um judeu condenado por um tribunal regular, degradado, deportado, e apontado como traidor da Pátria. Os mecanismos psicológicos da Fé humana são conhecidos: onde nos faltar um critério próprio de certeza, valemo-nos do que dizem aqueles em quem temos confiança, e também, antiteticamente, valemo-nos do que dizem aqueles em quem não temos confiança, e até suspeitamos interesses ideológicos. Se esse processo for impugnado, torna-se impraticável não apenas a vida social como também a vida religiosa, onde a Fé divina que vulnera os corações é sempre encaminhada, ajudada e agasalhada pela fé humana. O filósofo Yves Simon faz a caricatura de um processo psicológico normal, e logo acrescenta o valor moral negativo, sem nenhuma necessidade a não ser a de denegrir seus correligionários, quando diz: Entre os partidários de Dreyfus havia grande número de inimigos da Igreja, do exército e da ordem política: logo, era preciso que Dreyfus fose culpado. Pouco importa a realidade dos fatos. Essa afirmação, prodigiosamente caluniosa na sua forma desastrada, eqüivale a esta outra: A quase totalidade dos católicos franceses em 1898 era composta de patifes capazes de condenar um inocente (ainda que tivessem a evidência dos fatos) só porque era judeu, e defendido por materialistas, maçons e socialistas). Mas então, meu Deus! o catolicismo, a religião, a distribuição do corpo e do sangue de Nosso Senhor é definitivamente uma monumental invenção da tolice humana, muito mais ineficaz do que a filantropia dos rotarianos e dos maçons. O que me parece sobremodo esquisito é o fato do filósofo francês (falecido anos atrás) não ter desconfiado em 1941 que estava cometendo contra milhões de compatriotas e correligionários uma injustiça mais grave do que aquela que lhes atribui. E só trouxe até aqui esses comentários em torno do texto de Yves Simon para mostrar a perturbadora gravidade do

famoso “Affaire”. Este prestou-se admiravelmente para o primeiro impacto da Revolução às portas do século XX. O fato deu ganho de causa às forças sabotadoras da Autoridade, da Ordem e da Igreja. É triste observar que em 1941, com quase meio século de distância, ainda se vê um filósofo católico afirmar: 1) que a quase totalidade dos católicos se pronunciou formalmente a favor da injustiça;

2) que os inimigos da Igreja se bateram e se pronunciaram formalmente a favor da justiça.

Mas, meu Deus!, será preciso explicar que os revolucionários, os contestadores, os anunciadores de um mundo novo sempre poderão encontrar neste pobre mundo alguma boa e sólida injustiça praticada por católicos, por pais de família, por militares, por homens de governo, em cima da qual, vingadores, justiceiros e eloqüentes, possam denunciar a inutilidade dos governos, a perversidade dos exércitos, a decadência da Família e o ridículo anacronismo da Igreja? E com estas considerações cremos ter justificado o título deste parágrafo. O “Affaire” foi efetivamente a primeira explosão ou erupção de “sinistrite” do século.

Le Sillon, Marc Sangnier Nesses mesmos anos de agitação e de uma vitória inicial do revolucionarismo ateu e anarquista, travestido aqui e ali de liberalismo, nasceu o movimento e a revista Le Sillon, com todas as marcas do democratismo e de certo anarquismo que se dizia muito evangélico e fraternal. É um movimento católico, na direção geral do catolicismo social, mas dotado de uma condimentação especial que o distingue das atividades de um De Mun ou de um Ozanam. É paradoxal a feição dos grupos formados em torno de Marc Sangnier. De um lado, predomina o espírito de camaradagem fraterna que vem dos tempos de Crypte, formada no colégio Stanislas, e que dá ênfase à igualdade, sem nenhuma distinção de idade ou de classe, tratando-se todos, uns aos outros, de “tu”, ainda que um seja jovem estudante e outro um sacerdote; de outro lado, nota-se um tal ascendente de “Marc” sobre seus companheiros que, sem nenhum exagero, se pode dizer que “o Sillon tornou-se uma monarquia absoluta submetida à autoridade de Marc Sangnier” 2. A dedicação, ou melhor, a submissão dos companheiros a “Marc” chegava ao dom total, à renúncia de carreira, e até de casamento3. Estranho personagem esse Marc Sangnier, cujo caráter Maurice Vassard esboça com sua imperturbável objetividade: “ O movimento que apregoa uma alma comum não possui todavia senão um chefe, Marc Sangnier, humilde e egocêntrico ao mesmo tempo, desejoso de expansão e rebelde a qualquer forma codificada de organização, pródigo de seu tempo e de afeto para a conquista dos corações, e capaz de quebra-los, numa brusca indiferença, quando já não sente passar a corrente que alimentava a flama” 4. Tem toda a razão Manuel Zurdo Piorno quando diz que “la silueta espiritual de Sangnier, creador del movimento democrático, ofrece um extraño parecido con la del fundador del Espirit” 5.

Ainda mais sugestivo é o retrato esboçado por Adrien Dansette sem sombra de desconfiança: Sim — suspira com saudades esse amigo sillonista, — sua dominação era feita de um olhar belo, esse olhar puro do amante casto e entretanto dominador (!!!), era feita de gestos ternos — braços oferecidos ou apertados nos ombros do amigo — e do calor de uma voz com ressonâncias profundas e familiaridades de linguagem — o tratamento fraterno, o “tu” e o emprego exclusivo do pronome possessivo antes do prenome, “meu Carlos”, “meu Paulo”, e sobretudo a compreensão dos tormentos e dos impulsos da juventude... 6 O grupo de Le Sillon se propunha uma atividade social, democrática, que levasse aos meios mais diversos e mais humildes o fermento evangélico. A tônica do movimento é “o pobre”, o homem da humildade comum, e o objetivo era não somente a evangelização mas também a elevação social e temporal. Não era muito difícil prever os deslizes de um movimento que ousava abordar o mais penoso dos problemas temporais com mais vibração e calores da sensibilidade do que firmeza de doutrina. Estamos num ponto da história do Ocidente marcada pelo otimismo. Há na manhã do século uma brisa de liberalismo e de democratismo. Leão XIII, com a encíclica Graves de communi (18 de janeiro de 1901), erguera uma barreira aos transbordamentos da “democracia cristã” e das correntes que, com as melhores intenções, e sempre invocando o interesse das classes desfavorecidas e as injustiças dos dirigentes, tomavam essa direção da história que segue a lei da matéria, da entropia crescente, mais do que a lei da vida e do espírito. Os famosos abbés democrates, que anunciavam a democracia como termo da evolução social, já naquele tempo diziam coisas que se tornaram triviais dentro da confusão ideológica e doutrinária da seita chamada “progressista”. Diziam, por exemplo, que a Igreja é essencialmente democrática, ou estruturada de baixo para cima, coisa que todos os papas até Paulo VI condenaram; e viam no caráter institucional e hierárquico da Igreja algo que se opunha ao ardente zelo evangelizador e igualizador de que se sentiam possuídos. Com exceção do italiano Muri, que apostatou, os demais “padres democratas” se submeteram. Contam que foi edificante essa submissão, e que o padre Naudet, “que ia ao povo já que o povo não ia ao padre”, lera de joelhos a encíclica que vinha por água na excessiva fervura. Algum dos modernos, creio que no tempo dos padres-operários, já observou que sempre que surge um ardoroso movimento de evangelização, a Igreja entrava e o bloqueia. E faz bem, porque na maioria dos casos o ardor de novas iniciativas mais se nutre de amor-próprio inquieto e ávido de sucesso do que se inspira de pura e casta caridade. A grande calamidade que aflige a Igreja de nosso tempo tem origem, ou fator dominante, numa inversão de atitude que levou a Igreja, aí pela década dos 40 e dos 50, a ver as efervescências sem a antiga e sábia reserva. Estamos ainda no começo do século; Le Sillon no berço mereceu todas as bênçãos de Pio X e depois “cresceu nos joelho dos bispos”, como dizia Marc Sangnier numa imagem de gosto discutível. Mas logo, com o crescimento, começou a extravasar, a tornar-se o grand Sillon que recaía nos erros apontados por Leão XIII. Começou por contatos tolerantes demais com os protestantes, prosseguiu na direção do democratismo, e enveredou pelo caminho que leva à negação do princípio de autoridade. Em 25 de agosto de 1910, Pio X dirige uma carta ao episcopado francês lembrando “os bons tempos do Sillon” e lamentando os desvios que, sem trair o seu dever, o Papa não podia deixar sem

advertência e sem censura. E logo no primeiro parágrafo o grande e santo Papa toca o nervo inflamado: “O Sillon pretende escapar à direção da autoridade eclesiástica quando seu fim, seu caráter e sua ação pertencem ao domínio moral, que é o domínio próprio da Igreja”. E mais: “Levado por um mal norteado amor pelos fracos, resvalou no erro” e, “tomando como ideal o nivelamento das classes”, os “sillonistas andam ao arrepio da doutrina católica”, e desconhecem as exigências de uma civilização cristã. Mais adiante diz o Papa que “o Sillon deixou-se ir na esteira da quimera socialista”. Censura ainda o Papa a influência exercida pelo Sillon sobre seminaristas e sacerdotes, subtraindo-os à autoridade dos bispos. Na verdade, a idéia central do Grand Sillon, ou de “Marc”, era a exaltação do homem, da dignidade humana que só é possível, como tão bem assinala Manuel Zurdo Piorno7, onde a consciência autônoma estiver liberada de qualquer vassalagem e obediência, e onde puder reger-se a si mesma sem exigências externas de governantes, patrões ou superiores hierárquicos8. E aí está o princípio nuclear do anarquismo, que está no centro de gravidade da “Esquerda”. E é fácil ver, desde já, que Sangnier, prolongado, passa por Mounier e chega à escatologia marxista: a sociedade sem classes. Marc Sangnier submeteu-se filialmente, e procurou novas direções para seu fidelíssimo rebanho. Deixou assim o exemplo de perfeita e suave submissão, mas insensivelmente evolui, “progride” e mais tarde, num mundo católico desembaraçado da presença de Pio X, e numa França católica afastada da Action Française, vamos encontra-lo na onda esquerdista elevadora e sustentadora do Front Populaire, que derrotou a França. E com eles multiplicam-se os casos e alarga-se a esquerda católica, que desonrou a França. Com seu jornal La Democratie, e mais tarde no seio das Ligas da Jovem República, Marc Sangnier continua, diz Charles Lédré 9 , mais ou menos conscientemente, a obra que o Papa Pio X condenara. Em 1936, diz Jacques Marteaux, não hesitará em se aliar, no Front Populaire, aos piores inimigos da Igreja10.

Duas reflexões sobre o caso Le Sillon A primeira se refere ao límpido desembaraço com que Pio X dizia: “levado por um amor dos pobres mal norteado, resvalou no erro”. Hoje anda completamente esquecida a doutrina que exige a retidão do amor e que não se dá por vencida diante de qualquer declaração sentimental. E por causa do esquecimento da sã doutrina todos se intimidam, e se rendem quando um Dom Hélder, ou outro demagogo da mesma espécie, atira os braços, olha para o teto e gargareja: “os pobres! os pobres!” A segunda coisa digna de reparo é a força do empuxo telúrico que vem da corrente revolucionária que, como já dissemos, segue a lei da matéria inerte e não a lei da vida e do espírito. Passou por cima das comportas traçadas por Leão XIII, transbordou as represas de Pio X, contornou Pio XI e Pio XII e veio inundar nosso tempo. Dirão os marxistas que isto decorre do determinismo histórico geológico ou infrahistórico, já onde impera a lei da matéria pode haver evolução, mas história só há onde impera, ou procura imperar, a lei da razão.

“Action Française”, Charles Maurras A enorme vantagem publicitária capitalizada pelos socialistas, liberais e revolucionários de vários matizes no rumoroso e desastroso “Affaire Dreyfus” despertou logo, nas consciências mais apuradas para as necessidades vitais da França, o desejo de uma organização que militasse na defesa dos valores e ideais ameaçados. Com esse ânimo formou-se uma efêmera Liga da Pátria Francesa, da qual permaneceram dois grupos: os “Patriotas”, guiados por Paul Deroulède e Maurice Barrès, e a “Action Française”, fundada por Charles Maurras e Henri Vaugeois. Com a morte de Vaugeois, ficou Charles Maurras na direção do movimento e do jornal L’Action Française. Começava na França, quase imperceptivelmente, o jogo “esquerda-direita”, como uma espécie de guerra civil latente, mas logo marcada com sangue. Em setembro de 1923, a anarquista Germaine Berton, com a intenção de matar Maurras, entra na redação do jornal e atira em Marius Plateau, que cai mortalmente ferido. Dias depois, uma enorme multidão, com mais de vinte mil royalistes, acompanha o enterro de Plateau até o cemitério Vaugirard. Nesse mesmo dia os dois movimentos fundiram-se num só, e Charles Maurras não só liderou mas identificou-se com a Action Française, sem todavia exercer nenhum superiorato sobre os principais colaboradores, que se contavam entre os maiores valores intelectuais da França: Léon Daudet, Jacques Bainville, Henri Massis, Georges Bernanos, Jacques Maritain. Apoiavam o movimento e o jornal os mais reputados teólogos e vários bispos e cardeais, e grande maioria do povo católico. Podemos dividir em dois planos o programa que já se vê condensado na denominação. O primeiro é um programa de ação bem definido e particularizado no espaço e no tempo: servir a França, concretamente encarada e muito concretamente amada. Ora, essa França, na inabalável convicção dos militantes das A.F., tinha profunda identidade marcada pela monarquia e pela Igreja. O movimento e o jornal de mesmo nome, l’A.F., existiam para lutar por um “nacionalismo integral” e para não permitir que as forças de dissolução do internacionalismo socialista, maçônico, revolucionário, desviassem a França de sua verdadeira vocação. Quem quiser, poderá hoje sorrir dessa mística, sobretudo quando considerar os caminhos percorridos desde então pela França. Já se disse muitas vezes que Maurras era um empirista, o que é verdade em certo sentido, porque não “doutrinava” em termos universais mas em termos imediatamente aplicados, experimentados, ou percebidos no caso particular francês graças a uma conaturalidade, a uma identificação que lhe deu uma extraordinária lucidez que só costuma nascer dos grandes amores. Se, por exemplo, era monarquista, de modo algum pretenderia demonstrar que o regime monárquico era exigido pela lei natural. Sua “doutrina” era válida para a França, que ele conhecia por dentro e com a conaturalidade que só o amor pode dar. O segundo plano em que se desenvolvia a programação da A.F., quase à revelia da violenta paixão de Maurras, era mais universal e por isso de interesse geral. Em sua curta e turbulenta existência da A.F. defendeu, contra a torrente revolucionária, os valores universais por ela ameaçados: a autoridade, a ordem, a tradição, e de um modo geral todos os valores que a Igreja difunde e defende. A Charles Maurras e aos homens da A.F. é que se aplicaria bem a frase que Maritain, em Le Paysan..., dedicou às esquerdas: “em matière politique et sociale leur instinct les pousse vers la bonne doctrine”.

E aqui se arma um curioso problema que deve ter parecido misteriosíssimo para os homens daquele tempo, muito mais do que para nós, que temos já desenvolvidas as conseqüências do drama, e quase podemos dizer que já conhecemos a chave do enigma. O fato é que Charles Maurras, dizendo-se um homem sem fé, e depois de uma literatura ostensivamente pagã e às vezes quase blasfematória, põese à frente de um movimento que defende a Igreja de todos os sucessivos ultrajes sofridos dos governos da república, e congrega em torno de si os católicos mais sérios de França. O mundo católico inteiro sentiu a irradiação dessa alma poderosa, e aqui no Brasil Jackson de Figueiredo, fundador do Centro Dom Vital, foi um maurrasseano fervoroso. Mais adiante veremos que esse homem terrivelmente sacudido por Pio XI foi na verdade sempre misteriosamente marcado pela solicitude da Igreja e pela comunhão dos santos. O fato é que esse “homem sem fé” teve sempre uma total e nunca desmentida confiança na doutrina da Igreja e nunca molestou a Fé dos mais lúcidos católicos que a seu lado viveram longos anos, até as vésperas da crise de 1926, sem nenhum sinal de atrito motivado por questões doutrinárias. E aqui torno a lembrar os filósofos e teólogos que apoiaram ou fizeram parte da A.F. Jacques Maritain, por exemplo, ingressou no movimento a instâncias do Père Clerissac e nele se manteve durante 15 anos sem dar o menor sinal de inquietação até as vésperas da ruptura e da “condenação” de Pio XI. O conhecido lema “politique d’abord” não significava de modo algum uma afirmação doutrinária do primado do político sobre a religião e os demais planos da vida humana, mas apenas especificava o caráter temporal e não-confessional da A.F., e marcava, isto sim, o primado do político nessa ordem. A A.F., dizia Maurras, não se intitula Ação Católica, nem Ação Social, nem Ação Popular, embora trabalhe para o povo e sustente as teses sociais de Albert de Mun, de La Tour du Pin e de Le Play, e embora seja ardentemente católica (no sentido de defender todo o ensinamento e todos os interesses da Igreja). Além da atividade doutrinal e jornalística com que a A.F. fazia ato de presença todos os dias na pulsação da vida política da França, havia ainda a ação física: sempre que a honra do país o exigisse, a A.F. estava presente nas ruas por seus mais jovens militantes, os Camelots du Roi. “A.F. tem a palavra, mas também tem braços”, e nos casos mais quentes tinha punhos. Nos tempos mais amenos, os Camelots du Roi angariavam assinaturas e faziam cobranças. Um desses jovens Camelots du Roi, que certamente não era o mais calmo nem o mais timorato, chamava-se George Bernanos. Tomada como “movimento histórico”, que realizava o mais vigoroso engajamento numa realidade nacional em movimento jamais visto, A.F. surgiu como adversário implacável da corrente revolucionária, que evoluiria rapidamente em direção ao marxismo. Concretamente, Charles Maurras opunha-se, atravessava-se no caminho de Marc Sangnier e dos sillonistas com a disposição marcial de Pétain em Verdum: “ON NE PASSE PAS”. Mas a enxurrada avolumou-se, os rancores eclesiásticos deixados pela enérgica repressão de Pio X se coligaram para derrubar o movimento que naquele tempo se opunha a ISTO que hoje devasta a Igreja. Conseguiram em 1926 como adiante veremos, uma condenação (pastoral e não doutrinal) de Pio XI, que depois deu sinais visíveis de reconhecimento do erro em que caíra, erro para o qual contribuíram a agressiva e descomedida reação da A.F. e seu incontido non possumus. E mais tarde os descendentes do Sillon, de braço dado com os comunistas, conseguiram o resultado prático que mais pesará na história da França: ao soldado da Igreja e da França, ao último soldado da França, ao patriota

infatigável, lutador de todas as horas, no fim de sua enorme vida, como prêmio de tão longo e constante amor foi dada — por aqueles que não tinham combatido ou tinham combatido combates oníricos ou simbólicos — a prisão perpétua por crime de traição à Pátria!

Os homens da Action Française A A.F. foi o que foram seus homens. Para compreender a grandeza da tragédia desencadeada em torno da A.F. é preciso considerar que a A.F. ousava opor-se, o ponto mais concentrado, digamos até mais estrangulado da Civilização Ocidental, à onda que nascera do desmoronamento da Civilização Cristã e durante quatro séculos se avolumara; e também é preciso levar em conta que nenhum dos combatentes principais, Maurras, Léon Daudet, Bernanos, Barrès, Bainville, Massis, jamais recuou diante de alguma ameaça, e jamais hesitou em receber, em posição de combate, un enemi de plus! Mas também não se entenderia a A.F. sem conhecer a espécie de gente, obscura, humilde mas tenazmente apegada à sua Fé e à sua Honra, que a condenação de Pio XI deixou “condenada à morte” como ainda ontem me dizia o artista pintor Bernard Bouts, pensando em seu país, na Bretanha. Num livro injustamente esquecido11, Robert Brasillach injustissimamente condenado à morte em 1945, quando já não havia mais guerra, pelo crime de não haver participado da Resistance, Resistance que aliás resistiu a coisa alguma, deixou-nos uma página inesquecível: Mas, do interior, chegavam-nos notícias penosas (sobre a condenação da A.F.). Velhos monarquistas (royalistes) que no tempo dos inventários se tinham arruinado pela Igreja, viam-se privados de sacramentos na hora da morte. E o enterro civil dessa pobre gente fazia escândalo nas aldeias, onde nunca se vira tal coisa. Os padres estavam dilacerados pelo conflito. Num livro admirável12, Jean Varende deixou-nos um pungente testemunho dessa crise imensa que foi certamente a maior crise espiritual de uma época. Varende pintou, magistralmente, as cenas dos pobres velhos despojados de sua fé nacional, perturbados na sua fé religiosa, e o desamparo enorme em que fora atirada a consciência católica dos franceses (...). Nada mais duro do que uma perseguição eclesiástica. Viram-se passar enterros sem padres, caixões que os humildes membros da fulminada A.F. depunham no chão diante da porta fechada da igreja, enquanto o povo do lado de fora, em voz alta, recitava salmos e rezava terços. E atrás daquela porta fechada muitas vezes o padre estava mais atormentado e mais comovido do que o povo diante do qual era obrigado a fechar a porta.

Léon Daudet No mesmo livro Brasillach lamenta a falta de um talento literário igual ao de Léon Daudet para nos deixar o retrato de Léon Daudet, que encheu um quarto de século com o fulgor de sua bravura e o estentor de seu riso de ciclope. Quando Daudet e Maurras se encontraram, os amigos vaticinaram uma efêmera união, de um mês no máximo, dada a violência de transbordamento vital de um e a violência de intransigência do outro. Durou trinta anos a inalterável amizade e o inalterável respeito mútuo, e essa maravilhosa estabilidade

atravessou todas as tormentas exteriores sem abalo interior. “No termo da viagem, quando se sentia desapegado de tudo, e os olhos se fixaram sobre a face de um outro mundo, Daudet concentrava seus últimos empenhos de viver neste condensado programa: ‘Minha oração à noite... e minha vida por Charles Maurras’” 13. Para Maurras, surdo desde os quatorze anos, murado na “tragicomédie de ma surdité”, Daudet surgira como um mundo de exultação nova que se abria, a começar pela quase milagrosa possibilidade de ouvi-lo: “Aquela voz portentosa, meio clarim, meio trovão — dizia Maurras — que ele não precisava forçar para que eu ouvisse, foi para mim, em nossos primeiros encontros, a mais deliciosa de todas as surpresas, que na continuação sustentaram a força de nossa coletividade, e o vigor e a continuação de nossa amizade. Seria ridículo imaginar que disto tudo dependeu; mas tudo ficou facilitado, aplainado a simplificado” 14. “Ao som de sua voz, que dava ao que Daudet dizia uma fascinação espantosa, somava-se o riso, aquele riso homérico, um desses risos que imaginamos ser o dos deuses divertidos com o espetáculo da estupidez dos homens”. E, adiante, Massis descreve uma sessão da Câmara: Quando Briand, com sua sinuosa melodia, pensava ter enfeitiçado toda a Assembléia, e contava assim arrebata-la até as nuvens, enquanto a oposição adormecida pela carícia, à direita e à esquerda, desmaiava vencida aos pés da tribuna de onde se evolava a música sedutora... de repente estoura uma trovoada, um riso, uma gargalhada de potência sobre-humana que parecia descer de um céu encolerizado pela impostura e pela mentira! Rompido o encantamento, as cabeças se levantavam, as espáduas se endireitavam, os contínuos acordavam, os estenógrafos se aprontavam, as conversações retomavam seu curso e o público, nas galerias, se divertia e os jornalistas, no alto, se contorciam de prazer. Briand, sentindo fugir o chão, curvava-se olhando de soslaio com olho mau, e esperando com os ombros arqueados. A réplica de um adversário fez o discurso ricochetear, mas um riso?! Muitas vinganças futuras se explicam... 15 Tempos depois, no dia 24 de novembro de 1923, os deuses sequiosos se vingaram. O filho de Daudet, Filipe, de 14 anos, foi encontrado morto num táxi, com uma bala de revólver na nuca. Dias depois elucidou-se o caso, o menino fora atraído por uma armadilha anarco-policial. Léon Daudet, depois de levar o caixão de seu filho até a sepultura no Père Lachaise, ergue-se como um leão ferido e dardeja denúncias sem mediar as conseqüências. E o mundo estupefato recebe a notícia do processo e da condenação de Léon Daudet a 5 anos de prisão. Mas, logo depois, com a notícia da fuga espetacular de Daudet, Paris inteira se ri do governo, como se as tremendas energias sísmicas de Daudet se tivessem espalhado por todo. Mas a dele próprio estava quebrada. Maritain escreveu a Massis: “Acabo de ler l’A.F. que me dá a notícia... Que tragédia atroz! É apavorante o contato com esses abismos de ódio imundo...”.

Um belo defensor da Fé

Pelo que até aqui trouxe, penso ter inclinado o leitor à compreensão de duas coisas que compõem a tragédia da A.F.: a admiração e dedicação que seus dirigentes despertavam nos meios católicos cristalizados nas mesmas convicções profundas, e a irritação terrível que produziam, e da qual Léon Daudet já neste ponto pagou seu tributo. Depois das intrigas urdidas pelos militantes da “corrente” que hoje inunda e suja o mundo, e depois da desastrada reação colérica da A.F. contra o pronunciamento de Pio XI interditando a leitura de l’A.F., e do lamentável non possumus de que Charles Maurras em seguida se arrependeu, mas tarde demais, todos gritarão que Maurras é um pagão, e que sua filosofia política levava ao naturalismo. Mas, para entender o drama da A.F. em toda a sua extensão, largura, altura e profundidade, como hoje podemos melhor do que nos tempos de crise, é preciso começar pelo pontificado de Pio X, para ouvir do grande Papa canonizado por Pio XII o elogio de Charles Maurras, trazido de Roma, como uma jóia fabulosa, por Camille Bellaigue, nos últimos dias de 1914. Camille Bellaigue pedia ao Santo Padre que se dignasse abençoar o escritor que muitos queriam condenar, e cujo processo de condenação o próprio Papa, seis meses atrás, mandara arquivar. — Nossa benção?! — exclamou o Papa. — Todas as nossas bênçãos! E diga-lhe que ele é um belo defensor da Fé16. O primeiro a admirar-se foi o próprio Maurras. Confuso e emocionado, perguntou se o Papa não teria dito “de la Chiesa”. Isto, ele entenderia, mas “de la fedde...”. Bellaigue entretanto confirmava a palavra do Papa: “belo defensor da Fé”. Pobre Maurras. Aos quatorze anos, tão cheio de vida, de projetos, tão faminto de tudo, de repente, no decurso de uma aula, sentiu desaparecer quase totalmente o mundo dos sons. Desesperado, concentrou-se todo no imenso desastre que atingia, talvez mortalmente, uma vocação impetuosamente dirigida para a grande lei da tradição viva, com elos de palavras ouvidas e de palavras transmitidas. Maurras surdo é um contra-senso tão brutal como Beethoven surdo. Desesperado, o jovem Maurras concentrou-se todo na procura de um reequilíbrio ou na compensação do imenso desastre que atingia a razão de ser de sua vida, isto é, a comunicação de um ideal. E, nessa vigorosa convergência de todas as potências da alma, deu-se acordo de uma desatenção para os objetos, valores, idéias e crenças de sua vida de adolescente. Um bloqueio brutal empurrou e sepultou nas profundezas da inconsciência todas as aflorações e emergências que nos dão clara consciência de nossa fé profunda. Parecia-lhe que perdera a Fé de seu batismo e de sua infância. Além disso, e por um ingente esforço de compreensão, agarrou-se, crispou-se nas experiências empíricas, e compôs, em torno do núcleo aristotélico-tomista que nunca perder, uma ganga de positivismo político. Além disso, cumpre notar que, a despeito de sua prodigiosa capacidade de estudo, Maurras é mais militante do que filósofo, mais soldado do que monge. Foi o último soldado de la France des Boubons, de Mesdames Marie, Jeanne d’Arc et Therèse, et Monsieur Saint-Michel. Sua obra literária de juventude é marcada por uma espécie de insolência pagã. Chemin du Paradis e Anthinea têm páginas intoleráveis para uma alma cristã, e certamente não faltaram zelosos para destacar frases antigas na hora do encaminhamento a Roma da denúncia levantada contra a Action Française.

Em 1898, dentro da atmosfera do “Affaire Dreyfus” nasce em Maurras o militante político e desde logo se evidencia sua envergadura, seu sistema profundo de convicções, do qual A.F. tirará uma figura homóloga, e na qual em lugar de destaque, e como pedra angular, estava a Igreja. A França era o que era, e o que devia ser, pela Igreja e por seus reis. Filosoficamente, o esquema parecerá simples demais, particularizado demais se tomarmos o termo Igreja como pura instituição exterior, moralizadora e civilizadora; e até parecerá errado se pensarmos que nele a monarquia é apresentada em termos universais e como exigência da lei natural. É preciso lembrar que Maurras não quer universalizar; quer apenas, e tenazmente, lutar pela realidade concreta, palpável, pela qual dará seu sangue e sua vida. E se aqui prevalece um empirismo, que é dever de ofício do soldado, mas no homem de letras e de memoráveis lides verbais não deixa de ser uma fraqueza, é preciso não esquecer que Charles Maurras foi ininterruptamente poeta e grande poeta. Todas as madrugadas, depois de doze ou dezesseis horas de trabalho, Maurras, já idoso, saía da redação com passo leve, busto altivo de espadachim — e pelas ruas adormecidas, sem sinais de cansaço, ia compondo poemas ou recitando ao acaso da lembrança seus autores fundamentais: Lucrécio, Virgílio, Mistral. Num homem assim feito é difícil imaginar que se contentasse com um pragmatismo, dentro do qual a Igreja não excedia as dimensões culturais que harmoniosamente modelaram a história da França. Ele não podia dizer aos outros sua Fé teologal na Igreja una, sancta, catholica et apostolica, por não achar como dize-lo a si mesmo, ou por não saber como livrar-se do despotismo das potências exteriores que lhe davam, para compensar a surdez para a paisagem dos sons exteriores, uma outra surdez para os gemidos interiores. Hoje, com o que sabemos da história inteira de Charles Maurras, podemos tranqüilamente pensar que a Fé sobrenatural andou nele oclusa, a se filtrar nos subterrâneos da alma, mas nunca esteve morta. Naquele tempo, e sobretudo nos dias tempestuosos de revolta contra um ato da Igreja, que lhe pareceu incompreensível, era plausível ver em Maurras um descrente, e ver na sua filosofia política “tendências para o naturalismo”. “Mas os santos vêem mais longe” — diz-nos ainda Henri Rambaud no mesmo artigo17. Os santos vêem mais longe... Meio século passou-se desde aquela benção de Pio X, e se ainda parece paradoxal o título de defensor da Fé dado a um homem dela afastado desde a adolescência, e a um homem que mais adiante ficará doze anos em conflito violento com Roma, e só reatará a comunhão dos fiéis nas últimas horas de sua longa e poderosa vida, a verdade desse paradoxo é para nós muito mais perceptível desde que se tornou evidente o imenso empreendimento de subversão que hoje devasta a Igreja, e que Pio X vigorosamente combateu na sua origem... De que lado estão hoje, no atual dilaceramento dos cristãos, os espíritos que Maurras ajudou a formar? Em vão os procuraremos entre os promotores das novidades que, sob pretexto de tornar a fé mais acessível e mais pura, substituem o culto de Deus pelo culto do homem. No campo adverso não somos tão pouco numerosos, e não é política, aliás desigualmente distribuída, que explica nosso congraçamento.

Forçoso é reconhecer que a ação daquele “descrente” não foi nociva para as próprias crenças que ele não partilhava e que mais lutou por preservar sua integridade do que para abalar seus princípios. E foi isto que Pio X viu meio século antes. Mas não só ele. Como adiante veremos, o próprio Pio XI, logo depois dos primeiros anos da crise, também viu, e com extraordinária solicitude procurou corrigir o catastrófico mal-entendido.

O que a surdez de Charles Maurras nos revelou Ainda duas palavras sobre a figura de Charles Maurras, ou até sobre o segredo de sua grande alma. É coisa sabida que a surdez, embora menos grave, predispõe mais do que a cegueira à irritação e à amargura. Mas a “tragicomédie de la surdité” produziu em Maurras efeitos e reações que só se explicam pela incomum grandeza d’alma. Pierre Gaxotte, que foi seu secretário, comentando a extraordinária paciência com que Maurras atendia os mais importantes visitantes na redação, disselhe um dia: — O senhor é a Providência dos maçantes. E logo Maurras explicou-lhe. — Eu tenho necessidade de ouvir, me informar. Todas as pessoas que recebo me ensinam alguma coisa que vocês podem ouvir de longe. Eu as ouço de perto... Nunca saiu alguém de meu escritório sem me deixar enriquecido... 18 E em outra circunstância, mais liricamente, ele explicava que ademais os “importunos” lhe traziam um consolo especial. Os amigos, os companheiros de luta, especialmente na redação, já se haviam habituado a lhe falar num estilo condensado e reduzido ao essencial, mas os “raseurs” lhe traziam o supérfluo; ora, o supérfluo era o que importava, era o que lhe trazia a notícia deliciosa do modo comum com que os homens não murados conversavam. Henri Massis19 descreve maravilhosamente a atenção com que Maurras ouvia os moços, e a delicadeza... ah! quem poderá dizer o que era a cortesia, a polidez incansável desse homem que muitos só conhecem pelas furibundas manifestações de cólera! E assim, por toda a sua longa vida, sofrendo todas as espécies de injustiças e perseguições, o pletórico, o vulcânico Charles Maurras sempre guardou intacta uma reserva de profunda doçura para a cortesia e para a amizade, essas antigas virtudes dos franceses da antiga França. E é assim que lá adiante, no auge do sofrimento, no topo dos arcabouços da mais cruel injustiça, é assim que o encontraremos quando a Fé recalcada, murada, ensurdenizada, misteriosamente emerge, aflora, e o velho soldado pode dizer...

Mas não antecipemos, que ainda é preciso percorrer um grande lanço de estrada.

Os sinais de Deus Registremos o primeiro sinal, que não é de espécie muito vulgar. O homem que centraliza um movimento vigoroso e exposto a todos os perigos é elogiado e encorajado por um Santo que sabe muito bem o que é heresia e o que é defesa da fé. O segundo sinal é mais misterioso e pode ser desdenhado pelos incrédulos. Ocorreu poucos anos depois. O mundo está em guerra, a França está perdendo sua mocidade não contaminada pelo desespero de nosso século. Em fins de junho de 1918, quando a guerra se aproximava de seu termo, caiu morto, numa nesga de terra de França recentemente arrancada ao inimigo, o moço Pierre Villard, que Maritain vira uma ou duas vezes, e com quem se correspondia regularmente. Julgava-o desamparado e pobre. Foi com vivo espanto que recebeu a carta de um tabelião de Nancy com a notícia de que Pierre Villard o instituíra legatário universal, conjuntamente com Maurras. E, assim, Maritain e Maurras, que nesse tempo já se achavam unidos na Action Française, estão agora unidos no sangue de Pierre Villard. Tudo indicava que deviam permanecer unidos a vida inteira... Deixo para outro tópico as considerações sobre a condenação da A.F. e a ruptura entre Maritain e o grupo de Maurras. Neste tópico quero ainda registrar uma observação, antes de prosseguir a enumeração dos “sinais de Deus”. É a seguinte: aproximamo-nos do ano de 1926 sem que Maritain, Garrigou-Lagrange e os demais freqüentadores dos Cercles de Meudon nada dissessem que indicasse sinal de inquietação sobre o andamento geral da A.F. Tenho à mão o Dictionaire des Connaissances Catholiques de J. Bricout, que na sua edição de 1925 dedica, nas páginas 70 e 71 do vol. 1, um espaçoso verbete para a Action Française sem o menor vestígio de restrição. O verbete é assinado pelo próprio Bricout. Estranho silêncio! Estranha inadvertência de teólogos como Pe. GarrigouLagrange, Pe. Charles Journet, Pe. Lavaud, Pe. Philippon, e de filósofos como Jacques Maritain! Adiante voltaremos a consignar a esquisita subitaneidade da condenação que ninguém previra e contra a qual ninguém se acautelara. Agora saltemos por cima do ano de 1926 e da condenação. Três anos depois, em 1929, encontramos o Papa Pio XI a pedir ao Carmelo de Lisieux, por intermédio do Cardeal Gasparri, orações instantes dirigidas “todos os dias com um só coração e uma só alma” a Santa Teresinha a fim de que, por sua intercessão, viesse a cessar “la grande pitié” que a questão da Action Française criava para a Igreja de França. Esse recado do Papa ao Carmelo de Lisieux, três anos depois da condenação da A.F., parece indicar claramente uma disposição benevolente e não se lê na carta nenhuma referência ao erro de que se deveria corrigir a A.F20. Em fevereiro de 1937 Charles Maurras, preso pelo governo de Léon Blum, é visitado em La Santé por Henri Massis que, desde a entrada em sua célula, percebe uma doçura nova, um ar de felicidade profunda no semblante de Maurras. O que lhe teria acontecido de novo e tão maravilhoso? Maurras toma o amigo pelo braço, leva-o até o refeitório da prisão, e aí sentando-se, pergunta-lhe se imaginava

de quem recebera uma carta... E Maurras estendeu-lhe uma carta marcada com um sinete amarelo, uma carta de três páginas com a assinatura: PIUS P.P. XI21. Sim, uma carta do Soberano Pontífice. E então, diz Massis, naquela prisão, Maurras diante de mim, Maurras que tanto sofrera nossas próprias dores, Maurras com o rosto inundado de alegria, explicoume: “A conselho do Carmelo de Lisieux, eu escrevera ao Papa, por ocasião da luta heróica que sustentou contra a enfermidade... Exprimi-lhe a impressão comovida que experimentava, a respeitosa admiração que inspirava sua coragem, e os votos que todos fazemos por sua cura. Na verdade, sentime embaraçado. Sabia que em 1936, dirigindo-se a Laval, Pio XI lhe falara de minha pobre querida mãe, aproveitei a ocasião para agradecer-lhe. No mais, que diria eu? Achei, entretanto, que era meu dever assegurar-lhe a gratidão de todos os franceses que têm a paixão da ordem pela bela cruzada que ele pregava contra as ameaças da dupla revolução comunista e germanista que pesam sobre nosso Ocidente. Acrescentei que, no que me diz respeito, quanto mais avanço na vida mais se afirma em mim o invariável entusiasmo e a piedosa gratidão que sempre me inspiraram os benefícios do catolicismo. Se tais sentimentos tivessem algum valor, achava-me feliz de depositar essa renovada homenagem à Igreja no leito de dor de Sua Santidade... Sentia-me pessoalmente muito indigno, mas já que Lisieux insistia... E ademais na vida tudo é graça. “Não ousava esperar esta honra que não mereci e que me enche de alegria... Desde que li e reli estas páginas, de que sou indigno destinatário, uma idéia se forma em mim: logo que me liberara, tomarei o caminho de Lisieux a fim de lá ajoelhar tudo o que tenho de sede de luz intelectual e tudo o que me eleva de gratidão pelo Santo Padre, no túmulo da pequenina e tão grande Santa Teresa do Menino Jesus”. Assim falava Maurras naquela tarde de abril de 1937 na prisão de La Santé. E Massis reproduz as primeiras palavras com que Pio XI respondeu à carta de Maurras: “Quero dizer-lhe meu profundo agradecimento pelo consolo que sua carta me trouxe, e dizer-lhe também que, como sempre tenho feito até hoje, continuarei, mais intensamente e mais paternalmente o pouco, Hélas!, que posso fazer pelo senhor, isto é, continuarei a rezar, e agora, de tempos para cá posso unir às minhas pobres orações minhas não menos pobres dores, podendo assim imitar o Divino Salvador e Senhor, que também quis unir suas divinas orações a suas não menos divinas dores, sua Paixão e Morte, pela salvação de nossas almas...”. E essa carta de Pio XI terminava assim: “É com uma particular intenção que lhe envio também uma grande bênção neste dia aniversário de minha eleição, já hoje tão distante, quando a bênção do velho Pai comum é em toda a parte e por todos os filhos da grande família mais desejada e mais invocada. PIUS P. P. XI”. Três meses mais tarde, Maurras recebe de Lisieux a sugestão, o pedido de escrever ao Papa no dia 12 de maio, seu aniversário. Essa carta só foi conhecida muito mais tarde, quando foi suspenso o interdito de dezembro de 1926 por um decreto do Santo Ofício, dado em 10 de julho de 193922. Sabemos agora também que as freiras de Lisieux não se limitaram a obedecer ao Papa. Não ofereceram somente as orações pedidas, mas acrescentaram mortificações e sofrimentos na mesma intenção. Em 1935, Madre Agnés, priora do Carmelo, comunicava ao Papa Pio XI a morte de uma jovem religiosa, cuja família conhecia Charles Maurras. Essa religiosa oferecera todos os sofrimentos de sua vida e de

sua agonia pela pacificação dos espíritos. Em 1936, o Papa dirigira à Madre Agnés uma carta emocionada em que dizia também oferecer suas próprias enfermidades e sofrimento pela paz das almas e do mundo. Em 1937, Lisieux escreve a Maurras. Maurras escreve ao Papa, o Papa escreve a Maurras, Maurras intimidado, mas disposto a obedecer às inspirações de Lisieux, escreve a carta que envia à Madre Agnés, que por sua vez a transmite para Castel Gandolfo. Eis a carta de Maurras: Eu não saberia jamais exprimir a Vossa Santidade minha admiração pelo assalto que Vossa Santidade empreende contra as forças do mal23. Esta bela cruzada contra o comunismo abre um arco-íris sobre o céu do mundo e a alta bênção de Vossa Santidade sobre as forças da ordem e da paz causa desde já um pânico bem sensível no campo dos espíritos que massacram, incendeiam e matam. A Igreja certamente sempre esteve na linha contra o mal; mas sua incomparável ofensiva de benefício e de caridade atua poderosamente sobre os homens de boa vontade a quem Vossa Santidade se digna dirigir. Eles sentem renascer a esperança, e aquecer-se a razão no fundo do pensamento comovido. Mas, Santíssimo Padre, entre esses homens de boa vontade, muitos de seus filhos sofrem e choram por estar separados do Pastor comum. Não me sinto capaz de falar em nome deles. Mas eu os conheço, vejo-os, vi muitos que na hora da agonia gritavam, apelavam para o tribunal de um juiz supremo, e todos, sim, todos acusavam seus acusadores, acusavam-nos de haver indignamente enganado Vossa Santidade. E um deles, um bispo que sempre tenho por mestre e amigo, Mons. Penon, bispo de Moulins, dizia-me alguns meses antes de sua morte, que uma coisa era certa — e ele sabia por experiência pessoal: “Se algum dia Sua Santidade o Papa Pio XI pudesse descobrir que fora enganado (e por qual maquinação!) nada no mundo se poderia comparar à cólera santa do Pai comum, que faria imediatamente a mais exemplar justiça”. Assim falava aquele espírito generoso e lúcido, verdadeiro santo. Parece-me, Santíssimo Padre, que os tempos amadureceram e que se tornou possível a Vossa Santidade afastar todos os véus insidiosos que cobrem a verdade injuriada. Se Vossa Santidade se dignasse abrir um inquérito, talvez pudesse verificar que os católicos franceses (...) mais reputados por uma apaixonada ortodoxia foram literalmente, corporalmente empurrados para longe do coração e do espírito da Vossa Santidade”. (...). Ouso falar livremente, porque é a verdade que liberta. E ouso dizer a Vossa Santidade que o mal feito outrora veio dos mesmos que hoje fazem o maior mal. Sim, aqueles que, na França, agiram para difamar meus amigos aos pés de Vossa Santidade são os mesmos que, mais ou menos conscientemente, entretém a causa da mentira e da confusão universal, os mesmos que caluniam insidiosamente o nobre esforço da resistência espanhola, os mesmos que se empenham, às vezes sem o querer, mas diretamente, em fazer germinar na França toda a semente da revolução canibal de que a Espanha é hoje o teatro! De longe as pessoas podem-se enganar, mas nós estamos no próprio campo de ação. Nós vemos! Ah! não se deixe enganar por esses informantes pérfidos ou fanatizados! Os inimigos da Action Française são os inimigos da ordem, da Pátria, da Igreja, e do Papado. Esses inimigos ganharam a primeira vaza e já causaram muitos males em 1926. Que 1937, pela vontade vitoriosa de Vossa Santidade, seja o ano da debandada e do castigo desses inimigos. Pai Santíssimo, o apelo de Vossa Santidade sobre o perigo da França e do mundo me encoraja a escrever tais pensamentos, que têm duas desculpas: são sinceros (ah! e profundamente!) e estão em conformidade com tudo o que sei de meu país, isto é, são verdadeiros. E não são menos desinteressados. No que me diz respeito, nunca contestei que certo número de minhas idéias são heterodoxas. Jamais neguei, e sempre preveni abertamente a meus leitores católicos a fim de que ninguém se surpreendesse. Mas essas idéias aparecidas em publicações pessoais, jamais, não, jamais tiveram caráter de ensinamento ou de propaganda. Tenho o dever de

afirmar e reafirmar que l’Action Française, o seu jornal e o seu Instituto, jamais, jamais abordaram essas questões pessoais. O ensino da A.F. foi sempre puramente político, e de uma política experimental que não engajava nenhum dos princípios superiores aos quais, de fato, os católicos poderiam referir-se, e de fato, se referiam livremente, e constantemente, regularmente, sob o controle de religiosos, prelados e padres, entre os mais famosos por sua fidelidade ao dogma católico e à mais intransigente ordem romana. E isto é tão verdadeiro que — também, sempre de fato — nossa pregação política teve a virtude de reconduzir muitos protestantes, livres-pensadores e agnósticos à fé da Igreja. Faz oito dias — porque o que existe há trinta anos ainda hoje continua — escrevia-me um francês (...) que acabava de batizar-se aos vinte anos, em conseqüência da impressão lógica e moral recebida em nossos trabalhos e estudos. Vossa Santidade sabe certamente que o caso não é único. Há centenas de outros. O dossier foi remetido ao Vaticano. E eu não tenho o direito de calar-me. E também não tenho o direito, Santíssimo Padre, de deixar dizerem que tive algum papel na ruína da fé católica de um só de nossos adeptos. Já pedimos que nos citassem um só caso sério dessa calamidade que sempre me causou horror. Nunca nos responderam. É claro, Santíssimo Padre, que nem a qualidade inofensiva de nossas doutrinas políticas, nem o que elas tiveram de benefício no plano espiritual ou moral constituem sombra de mérito em meu favor. Isto se faz sem mim. Pela simples virtude de idéias que eram verdadeiras. Mas isto aconteceu e é preciso não acreditar que foi o contrário que aconteceu. E Maurras terminava assim: Pai Santíssimo, nada peço para mim. Mas a situação moral da França é apavorante. Tudo está minado, dividido, perturbado. Os melhores se perdem em incertezas; os piores concebem e ousam tudo. Uma decisiva intervenção de Vossa Santidade pode fazer tudo entrar nos eixos e pode criar as condições de possível união e de ação da unidade moral tão necessária. Não estarei autorizado, pelos recentes sinais de benevolência, a suplicar que Vossa Santidade considere com um espírito de misericórdia e de paz a dor de alguns de seus filhos, vítimas infelizes da mais infame das manobras de calúnia e dolo urdidas pelo inimigo do gênero humano? Esses fiéis e dedicados filhos de Vossa Santidade formam, em nossa pátria, o batalhão mais coeso, mais decidido, e a mais corajosa e resoluta das tropas da ordem; por sua inteligência na ação, pelo conhecimento exato que têm dos pontos fracos inimigos, por seu espírito de combate, pela decisão e resolução heróicas; sempre prontos para os sacrifícios mais belos, com a história marcada pelo sangue deles, esses filhos são por excelência os homens de boa vontade nos quais pensou o coração de Pai de Vossa Santidade. Eles estremeceram, comovidos, empolgados, vivificados pelo sopro ardente desse apelo tão paternal ainda que pontifical. Suplico-lhe, Santo Padre, que esses nobres soldados sejam por Vossa Santidade recolocados em condições que lhes permitam restabelecer o combate. Ou teremos de nos resignar a ver, em nosso chão, os rios de sangue e pus que correm no solo magnânimo da Catalunha e de outros lugares da Espanha? Santo Padre, foi a alegria de seu aniversário que me inspirou palavras tão audaciosas, mas tão pungentemente verdadeiras. Suplicando a Vossa Santidade dignar-se receber meus mais profundos agradecimentos pelas bênçãos sucessivas com que me quis cumular, ouso insistir desde já e

agradecer o augusto benefício que imploro, não para mim, mas para os ignorados, e sou com todo o respeito, ajoelhado a seus pés, o muito humilde, muito dedicado e obediente servidor de Vossa Santidade. Prisão de La Santé, 10 de maio de 1937. (a.) Charles Maurras. Logo que saiu da prisão, Maurras foi em peregrinação a Lisieux, no dia 13 de julho de 1937. Em 13 de julho de 1938 voltou a Lisieux, como peregrino e enviou ao Papa Pio XI o telegrama: “O peregrino de Lisieux conhecido de Vossa Santidade agradece a bênção especial fielmente transmitida, e ajoelhado junto à urna de Santa Teresa, ousa dirigir homenagem profundo respeito e confiança”. Pio XI, que parecia acompanhar de longe os passos de Maurras, sabia de antemão a data dessa segunda peregrinação. Em 15 de julho o cardeal Pacelli, Secretário de Estado, enviava à Rev. Madre Superiora do Carmelo de Lisieux este telegrama: “Sua Santidade recebe com vivo agrado homenagem peregrino enviando-lhe bênção paternal”. Em 13 de julho de 1939 Maurras, acompanhado de Robert de Boisfleury, indo a Lisieux, pela terceira vez, envia ao Papa, agora Pio XII, esta mensagem: “Os dois peregrinos de 13 de julho, conhecidos de Vossa Santidade, ajoelhados diante dos despojos de Santa Teresa, enviam homenagem respeitosa de veneração e de humilde esperança”. Por que sempre 13 de julho? Porque foi nessa data, em 1935, que morreu a irmã Maria Teresa do Santo Sacramento oferecida como vítima em favor de Maurras e da Action Française. No mesmo dia o novo Papa envia à Priora do Carmelo este telegrama: “Sua Santidade abençoa paternalmente dois peregrinos pedindo nossa cara santa de Lisieux atender e cumular suas esperanças”. E algumas semanas mais tarde Madre Agnés, Priora do Carmelo, recebia de Sua Santidade Pio XII a carta que depois se tornou pública: As cartas e artigos que, por intermédio da caridade de nossos filhos Charles Maurras, Robert de Bloisfleury e Havard de la Montagne, os transbordantes sentimentos de suas almas. Nos enchem da mais viva gratidão para com o Pai do céu. É para Nós muito doce assumir não somente o reconhecimento desses caros filhos recuperados como também suas esperanças relativas ao imenso benefício da paz que acha na reconciliação e na união dos espíritos um aliado tão poderoso. Confiamos pois à tua solicitude filial o cuidado de transmitir Nossos sentimentos a esses homens cujos talentos são ainda uma bela promessa para a causa de Jesus Cristo. É também através da tua caridade que Nós lhes enviamos de todo o coração, assim como a todas as Religiosas do caro mosteiro do Carmelo de Lisieux, a Bênção Apostólica. Dado no Castelo Gandolfo, em 18 do mês de agosto de 1939. — PIUS P. P. XII. Encerrou-se assim dentro da comunhão dos santos, pelos bons ofícios de duas pequenas Teresas, o dramático incidente produzido pelas maquinações do mundo. Mas não se detinha aí a onda de conseqüências, nem se resolvia o drama da alma angustiada de Charles Maurras. Começava no mundo a guerra no termo da qual, graças a maquinações ainda mais espantosas do que todas as anteriores, Charles Maurras, o último soldado da França, será pelos franceses condenado à prisão perpétua como “traître”. E é nessa prisão, com mais de 83 anos, que Charles Maurras se converte à fé de seu batismo e sem sombra de amargura dá contas de sua vida nestes simples versos que Gustave Thibon ouviu de sua própria boca:

Seigneur, endormez-moi dans votre paix certaine Entre les bras de l’Espérance et de l’Amour. Ce vieux coeur de soldat n’a point connu la haine Et pour vos seuls vrais biens a battu sans retour. Le combat qui’il soutint fut pour une Patrie, Pour um Roi, les plus beaux qu’on ait vus sous le ciel, La France des Bourbons, des Mesdames Marie, Jeanne d’Arc et Thérese, et Monsieur Saint-Michel.

“Une tenebreuse affaire” O romance de Balzac que tem esse título apavorante é um ameno conto de fadas comparado à trama de intrigas, à combinação de baixezas e misérias que produziu inesperadamente, como “um raio em céu de azul tranqüilo”, a tão falada “condenação” da Action Française. Não é minha intenção tentar aqui sequer uma aproximação de todo o “Affaire”. Intencionalmente inverti a ordem dos tópicos, saltando por cima da crise que culminou no Decreto do Santo Ofício condenando certas obras de Charles Maurras e o jornal L’Action Française, dado em Roma, em 29 de dezembro de 1926. O que procurei mostrar nos tópicos anteriores é que nada, em um quarto de século, anunciava a tempestade e o “raio” de dezembro de 1926, e que a atitude posterior do Papa Pio XI evidencia um mal-estar de quem já não estava tão convencido de ter determinado uma drástica medida para o bem da Igreja universal e especialmente para o bem da Igreja de França. Dois anos depois da condenação, quando seria razoável esperar que passasse a natural efervescência e que os bons frutos aparecessem, Pio XI escreve a carta ao Carmelo de Lisieux pedindo instantes orações pela “grande pitié” da Igreja de França. A ulterior benevolência transbordantemente manifestada na carta escrita a Maurras prova que nada tem de fantasiosa nossa interpretação da carta escrita à Ver. Madre do Carmelo de Lisieux em 19 de fevereiro de 1929. O que reforça a idéia da evolução do estado de espírito de Pio XI é a carta que escreveu a Charles Maurras em 6 de fevereiro de 1937. Mas o que realmente prova a completa mudança de juízo que o Papa forma de Charles Maurras e da Action Française e do bien fondé do decreto de 1926, é a reação que demonstra depois da carta que Maurras, a conselho ainda do Carmelo de Lisieux, escreveu por ocasião de seu aniversário, em 12 de maio de 1937. Como vimos atrás, nessa carta, em harmoniosa mistura com o mais profundo e ardente respeito, Maurras escreveu a Pio XI, lembrando as palavras de Mons. Penon, e dizendo por conta própria que o Papa em 1926 foi envolvido numa diabólica maquinação. Releiamos estas palavras da carta de Maurras: Não estarei autorizado, pelos recentes sinais de benevolência, a suplicar que Vossa Santidade considere com um espírito de misericórdia e de paz a dor de alguns de seus filhos, vítimas infelizes da mais infame das manobras de calúnia e dolo urdidas pelo inimigo do gênero humano?

Qual é a resposta que Pio XI dá a essa carta em que Maurras afirma vigorosamente e respeitosamente que o Decreto de condenação foi resultado de maquinação e de manobras de calúnia e dolo urdidas

pelo Inimigo do gênero humano? É evidente que, fosse a de 1926 a disposição do Papa em 1937, a carta de Maurras agravaria a situação e tornaria mais difícil do que nunca a reconciliação. O Papa não responde à carta de Maurras, mas na primeira oportunidade, quando Maurras, dois meses depois, sai da prisão e vai a Lisieux como peregrino, com a intenção de ajoelhar-se diante da urna funerária de Santa Teresinha, já encontra uma bênção do Papa. Em 1938, na mesma data repete a peregrinação e torna a encontrar a bênção que agradece comovido. E desta vez o cardeal Pacelli já está envolvido, como atrás vimos. Em 13 de julho de 1939 é Pio XII quem envia a bênção e quem, pouco depois, escreve à Priora do Carmelo uma carta que é uma iniciativa de reconciliação e um encorajamento: “Confiamos a tua filial solicitude o cuidado de transmitir Nossos sentimentos a esses homens cujos talentos são ainda uma bela promessa para a causa de Jesus Cristo”. Haverá em toda a história da Igreja um sinal mais claro de reconhecimento de um erro pastoral praticado anos atrás em turvo ambiente de paixões e intrigas? O Decreto de suspensão de interdito, de 16 de julho de 1939, atende a uma súplica formulada pelos membros dos comitês diretores do jornal L’Action Française, que exprimem a sincera tristeza das demasias irrespeitosas para com a Santa Sé e para a hierarquia eclesiástica publicadas no calor das controvérsias, e se submetem inteiramente à autoridade da Igreja. No que diz respeito à doutrina e aos erros doutrinais, essa respeitosa petição diz apenas o seguinte: “No que concerne em particular à doutrina, todos aqueles dentre nós que são católicos, reprovando tudo o que tenham escrito de errôneo, rejeitam completamente qualquer doutrina e qualquer teoria que sejam contrárias aos ensinamentos católicos, pelos quais nós professamos unanimemente o mais profundo respeito”. Não há em toda a petição uma só linha em que os signatários, em atitude de súplica respeitosa, reconheçam os erros doutrinais com que em 1926 o cardeal Andrieu iniciou o ataque à Action Française. Não foi mais inexpressivo, e portanto mais expressivo, o texto do decreto de 5 de julho de 1939, com que a Sagrada Congregação do Santo Ofício suspendeu a interdição do jornal L’Action Française. Eis o texto integral, onde apenas três ou quatro linhas se referem vagamente aos motivos do decreto de 1926, e a maior parte trata das normas e princípios gerais que a Igreja recomenda a qualquer jornal: Por decreto desta Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício, com data de 29 de dezembro de 1926, o jornal L’Action Française, tal como era então publicado (grifo nosso) foi condenado e posto no Index dos livros proibidos, em vista do que se escrevia no dito jornal, sobretudo nessa época, contra a Sé apostólica e contra o próprio Soberano Pontífice Pio XI, de santa memória, na data de 20 de janeiro de 1938, o comitê diretor24 desse jornal fez ato de submissão e apresentou, para obter a suspensão do interdito do jornal, uma petição que foi submetida ao exame desta Sagrada Congregação. Além disso, recentemente, esse mesmo comitê, reiterando a petição, fez uma profissão aberta e louvável da veneração em relação à Santa Sé, reprovou os erros e ofereceu garantias sobre o respeito do magistrado da Igreja por uma carta de 19 de junho de 1939 do Papa Pio XII gloriosamente reinante, carta cujo texto consta do anexo n° 1, junto a este. A datar do dia da promulgação do presente Decreto, a proibição de ler e guardar o jornal L’Action Française é suspensa, continuando proibidos os números postos até esse dia no Index dos livros proibidos, sem todavia pretender esta Suprema Sagrada Congregação formar juízo sobre o que concerne puramente às coisas políticas e sobre os fins visados pelo jornal nesse domínio — contanto, é claro, que não sejam contra a moral — e ad mentem a saber: de acordo com o que tem sido, muitas

vezes, inculcado pela Santa Sé seja sobre a distinção entre as coisas religiosas e as coisas puramente políticas, e a dependência da política em relação à lei moral, seja sobre os princípios e deveres estabelecidos em vista de promover e defender a ação católica, esta Suprema Sagrada Congregação recomenda instantemente aos Ordinários de França a vigilância em vista de assegurar o cumprimento do que já foi instituído na matéria pela Assembléia dos cardeais e arcebispos de França no ano de 1936 e que consta do anexo n° 2. Na quinta-feira seguinte, dia 6 do mesmo mês e ano, nosso Santíssimo Padre Pio XII, Papa pela Divina Providência, na audiência habitualmente concedida a S. E. o Reverendíssimo Assessor do Santo Ofício, aprovou a resolução dos eminentíssimos cardeais que lhe foi submetida, confirmou-a e ordenou sua publicação. Dado em Roma, no Palácio do Santo Ofício, em 10 de julho de 1939. E aí está o decreto que, não exigindo retratações e não mencionando erros doutrinais ou errôneas e perversas filosofias políticas, é por isso mesmo mais expressivo e significativo do reconhecimento, pela Igreja, de uma medida disciplinar infeliz. Mas aqui imagino um leitor a me fazer dois reparos. O primeiro se refere à extensão e à interpretação que dei aos atos e fatos que ocorreram depois da condenação; o segundo se refere ao que eu disse atrás: antes da condenação nada a anunciava. E o dossiê organizado no tempo de Pio X? e todas as manobras feitas para arrancar de São Pio X uma condenação da Action Française? É verdade. Nós já vimos atrás que uma dessas tentativas obteve resultado oposto. Pio X enviou a Charles Maurras o título de “belo defensor da Fé”. Vale a pena agora trazer outros depoimentos relativos ao que Pio X, até a hora da morte, pensou da Action Française, por um motivo que adiante se evidenciará:

TESTEMUNHO DO PE. PÈGUES Numa carta dirigida a Charles Maurras, o Pe. Pègues testemunhou o seguinte: Recebido por Pio X em 15 de janeiro de 1914, dia de reunião de Congregação preparatória do Index, falara de Maurras e declarara que ele defendera o Papa contra imputações inexatas de um artigo não assinado numa revista de Toulouse. E quando Pio X o felicitava por isso, o Pe. Pègues disse: — Mas parece, Santo Padre, que Maurras tem inimigos poderosos aqui mesmo na Congregação. — Sim, — disse o Papa, — eles estão unidos contra Maurras. Ma faranno niente... Antes de se retirar, o Pe. Pègues pediu ao Santo Padre uma benção especial para Charles Maurras, que lhe foi logo concedida e que Maurras recebeu com a carta de Pe. Pègues de 17 de janeiro de 1914. Uma outra carta do mesmo religioso figura nos papéis deixados por Maurras. Nessa carta dizia o Pe. Pègues que o Papa, nesse mesmo dia, assinara sem dificuldade o decreto que condenava outro escritor (Maeterlink). Quando lhe trouxeram o decreto que condenaria Maurras, ele o deixou de lado.

Três vezes o Secretário da Congregação voltou à carga; três vezes o Papa repeliu o libelo, e quando o Secretário ainda insistiu, o Papa tomou a folha e meteu-a numa gaveta de seu bureau25.

TESTEMUNHO DE CAMILLE BELLAIGUE — Ver atrás esse testemunho que contém o famoso título de “belo defensor da Fé” 26.

TESTEMUNHO DE MONS. CHAROST Nos últimos dias de julho de 1914, conversando com Mons. Charot, Bispo de Lille, e entreabrindo a gaveta de sua secretária, Pio X lhe diz: — Nós temos aqui, meu caro filho, tudo o que é preciso para condenar Maurras. Mas temos a convicção que as pessoas que nos documentaram tão bem agiram menos por amor e zelo da Santa Religião do que por ódio das doutrinas políticas sustentadas pela Action Française. E, fechando a gaveta com um gesto seco, Pio X acrescentou: — Enquanto eu estiver vivo a Action Française jamais será condenada. Ela defende o princípio da autoridade, defende a ordem. Uma carta publicada em Aspects de la France de 20 de julho de 1951 confirma esta declaração. Era dirigida a Mons. Fontenelle: “Quando morava em Reinnes, nas primeiras semanas de 1927, fui visitar meu arcebispo e amigo o Cardeal Charost. Falando da Action Française, exprimi minha surpresa ante os rumores que corriam sobre a parte que Pio X teria tomado na origem das medidas disciplinares que em 1926 fulminaram a Action Française. O Cardeal Charost me disse que esses boatos eram falsos e que ele podia testemunhar alto e bom som: “Quando bispo de Lille, visitei o Papa nos últimos dias de julho de 1914. Fui o último bispo francês que o viu. Falamos da Action Française e Pio X me disse: ‘Fique tranqüilo, caro monsenhor, eu vivo a Action Française não será condenada’”. TESTEMUNHO DO CARDEAL CABRIÈRES Em 18 de junho de 1914 o Cardeal Cabrières escreveu a um amigo — que guardou a carta e a mostrou a Maurras — sobre a audiência que tivera com Pio X: “Falamos de Maurras e vi o Santo Padre muito resoluto e muito feliz de o ter protegido”. Era 3 de agosto de 1920, depois da guerra, esse prelado escreveu a Maurras, a propósito da morte de Dom Besse: “... até a vista, meu caro Maurras, e uno-me ao senhor muito respeitosamente em memória de Pio X, cuja vontade o protegeu durante a guerra para a salvação de nosso país”.27

A esses acontecimentos antigos, que provam exuberantemente que Pio X nunca externou a nenhum interlocutor insuspeito a menor intenção de condenar Maurras, e nunca escondeu sua determinação inabalável de apoia-lo, como também nunca dissimulou a irritação que lhe causavam aqueles que vinham como cães raivosos pedir-lhe: “condenai-o! condenai-o!”28 acrescentemos os mais recentes: a tranqüilidade de todos os grandes teólogos e filósofos que até às vésperas da explosão serenamente dormiam sem pesadelos. O próprio Maritain que a seguir mudará de opinião quatro vezes, escrevera Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques, opúsculo que será aproveitado com seu consentimento durante a crise. Não exagera, pois, o historiador que nos diz que a crise da Action Française estourou como um raio num tranqüilo céu azul.

Da carta do Cardeal Andrieu até a condenação No caso o raio foi a carta do Cardeal Andrieu, publicada no Aquitaine de 27 de agosto em Bordéus. Essa carta se apresentava como resposta de S. Emª o Cardeal-Arcebispo de Bordéus a uma consulta feita por um grupo de jovens católicos a respeito da Action Française. Esta carta, lida hoje no contexto agora estendido num planisfério isento das distorções de perspectiva da época, parece-nos simplesmente inacreditável. Detenhamo-nos, por enquanto, nesse adjetivo que para aquele tempo já é severo. Entre outras coisas, transcrevamos um tópico desta carta: Os dirigentes da Action Française se ocuparam da Igreja. Que idéia têm eles? Repelem todos os dogmas que ela ensina. A Igreja ensina a existência de Deus, eles a negam porque são ateus. A Igreja ensina a divindade de Jesus Cristo e eles a negam porque são anticristãos. A Igreja ensina que foi fundada por Cristo, Deus e Homem, e eles negam a instituição divina porque são anticatólicos etc. etc. O investigador que quiser ter o trabalho de investigar e reler todos os números do jornal L’Action Française, em lugar algum encontrará um só tópico que contenha as contestações dos dogmas da fé católica inventadas pelo cardeal Andrieu. Na verdade, o movimento e o jornal que tiveram a árdua missão de combater a horda revolucionária saída dos ralos da história, que tiveram a gloriosa missão de defender a Igreja e todos os valores cristãos nas épocas de perseguição religiosa na França republicana, tinham no seu centro um paradoxo que Maritain assinala muito bem no seu Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques; o chefe e inspirador da ação política, o gênio que mais lucidamente entender e previu todas as catástrofes do século, e que viveu para lutar por uma França católica, por um desses misteriosos segredos de Deus, não tinha a fé, ou tinha-a recalcado para um nível de inconsciência e de incapacidade de expressão. Não podemos, evidentemente, saber se Charles Maurras, na “tragicomédia de sua surdez”, era realmente o ateu que parecia ser quando gemia sua impotência de crer. O que hoje sabemos é que ele viveu a vida inteira procurando essa fé perdida numa confiança total na Igreja, e sabemos que, maltratado por essa Igreja que venerava profundamente, e maltratado pela pátria que amou ardentemente, em vez de se amargurar, no fim da vida fez o ato de humildade e mansidão que o colocou na mão de Deus, onde seu coração adormeceu em paz.

O cardeal Andrieu sabia que Charles Maurras dizia não ter fé, e sabia que ele era homem combativo como poucos de seu tempo. Terá então concluído que logicamente Maurras devia combater os dogmas em que não cria? Esta explicação com recurso a um cruel e estúpido abstracionismo não se sustenta porque poucos anos atrás, 31 de outubro de 1915, acusando o recebimento de um livro L’Étang de Berre, enviado com autógrafo por Charles Maurras, o mesmo “Paulin, cardinal Andrieu” escreve uma carta dizendo, entre outros rasgados elogios: O senhor defende a Igreja com tanta coragem quanto talento. O que há de admirar? Ela representa princípios sem os quais tudo mais se desorganiza e desmorona. A Igreja deu à França, que não nasceu em 89, quatorze séculos de grandeza e prosperidade, e o senhor contou, numa página deliciosa, a propósito de uma sagração episcopal, que lhe deve, à Igreja, “votre salut intellectuel”. Não terá o senhor contraído em relação a ela outras dívidas, de ordem mais elevada? Estou tentado, inclinado a crer que o senhor manifesta essa nobre ambição — e ninguém mais do que eu deseja que ela se realize — quando escreve, no prefácio do hino à Provença: “A noite sublime de Agostinho e de Mônica”. 29 Como conciliar esta carta de 1915 com aquela outra de 1926? Nesta última, além dos tópicos citados, há frases atribuídas a Maurras: “Défense à Dieu d’entrer dans nos observatoires” que, apesar dos repetidos apelos, desmentidos e desafios, nunca foi devidamente localizada, pela simples razão de ser falsa. É escusado dizer que L’Action Française respondeu imediatamente ao intempestivo ataque. O leitor que quiser ver claramente todas as várias etapas da intriga urdida pelo Inimigo do gênero humano encontrará no livro de Lucien Thomas a mais completa e irrefutável exposição do affaire. E desde já adivinho que não deverá emitir nenhum juízo sobre essa matéria quem se apegar aos comentários da época, e às sumárias e truncadas (como as de Daniel-Rops) explicações dos que fazem das tripas coração para dar razão aos cardeais e ao Santo Ofício contra a evidência dos fatos. Sem nenhuma outra documentação além da que inserimos neste estudo, já poderíamos concluir o seguinte: a ser verdade o que nos diz esse Cardeal Andrieu, de que só conhecemos hoje o nome por causa da infeliz carta de 25 de agosto (festa de São Luís!), então somos forçados a dizer que Pio X se enganou gravemente, e que teólogos como o Cardeal Billot, o Pe. Garrigou Lagrange, o Pe. Clerrissac (que induziu Maritain a entrar na A.F.) eram todos analfabetos em matéria de doutrina cristã. Aliás, teríamos que incluir na enorme lista de cegos o próprio Cardeal Andrieu de 1915. Como se explica então a carta do Cardeal Andrieu de 1926? Não se explica, porque, para princípio de conversa, essa carta não era dele. No livro já citado, de Lucien Thomas, vemos na página 333 o Annexe III, onde se faz uma comparação entre os termos da carta do Cardeal Andrieu com os da brochura de um aventureiro, Fernando Passelecq, advogado da corte de Bruxelas e mais de uma vez vigorosamente atacado pela Action Française. A trama começa sua urdidura em Bordéus. Ficou provado que outros bispos de França foram procurados por Passelecq para o mesmo fim. Por que aceitou o Cardeal Andrieu essa empreitada? Maurras, com os demais dirigentes da Action Française, se empenha a fundo na defesa de sua honra e seu direito, sem todavia azedar-se o tom da controvérsia, apesar da violenta paixão que facilmente imaginamos em lutadores que todos os dias davam a vida por sua causa. O respeito mantido é

admirável. Mas a urdidura prossegue. Agora é o Papa Pio XI que escreve uma carta ao Cardeal Andrieu aplaudindo seu zelo. Multiplicam-se as manifestações. Em 16 de setembro os estudantes da Action Française e os Camelots du Roi escrevem uma carta ao Papa30; Bernard de Vesins, presidente da Ligue d’Action Française, dirige também um filial apelo ao Papa. Mas o Papa já está indisposto contra A.F. Desde quando? Talvez desde as eleições de 1924, em que as esquerdas se beneficiam das démarches do Núncio. — Vossos franceses votaram muito mal — disse Pio XI ao Cardeal Billot, que logo respondeu: — Santo Padre, votaram mal por culpa do Núncio de Vossa Santidade... — Meu Núncio, — exclamou o Papa, dando socos na mesa, — meu Núncio fez minha política! minha política! minha política! 31 O Cardeal Billot se solidariza com Maurras e Daudet em carta que a Action Française não publicou, mas que mais tarde foi publicada em outro jornal32. Precipitam-se os acontecimentos. A 20 de dezembro Sua Santidade Pio XI pronuncia uma alocução consistorial, onde, embora ainda não explicitamente, já se entrevê a condenação em preparo. O jornal L’Action Française, segundo a expressão de Robert Harvard de la Montaigne, estava acuado, estava compelido a abandonar uma luta de 25 anos em defesa da Pátria e da Igreja. Os dirigentes da A.F. não podem discutir com o Papa seus direitos de defender a Igreja em tais e tais termos, mas julgaram, Maritain inclusive, que podiam defender o direito de defender a Pátria numa linha que em nada feria a lei natural. Acuados, escreveram o Non Possumus, que Maritain achou “humanamente legítimo”, e que Maurras se declarou mais tarde arrependido. Mas a urdidura da intriga em torno do Papa, a habilidosa exploração de seus pontos sensíveis e das demasias dos combatentes da Action Française conseguiu seu resultado final: o decreto do Santo Ofício condenando certas obras de Maurras e o jornal L’Action Française. E é aqui neste arremate que se condensa o que já a carta do Cardeal Andrieu anunciava com seu extraordinário desembaraço em relação à verdade dos fatos. Hoje que já estão mortos todos os personagens desse drama que fez um mal enorme à França, já temos os dados e a liberdade de analisar o decreto do Santo Ofício e de dizer dele o que outros, com muito menos fundamento, dizem do Santo Ofício que condenou Galileu. Num livro recentemente publicado33, Jacques Maritain desenvolve uma distinção entre a “Pessoa” da igreja, e o seu “pessoal” (bispos, cardeais, papas) age ou fala em causa própria (com toda a humana falibilidade) e os casos em que age ou fala como instrumento do agir e do falar da “Pessoa” da Igreja. A primeira parte desse livro escrito por um quase nonagenário que não perdeu sua luminosa acuidade poderá aqui e ali ser discutida pelos estudiosos. Na segunda parte do livro, Maritain dá uns exemplos clássicos de falhas do “pessoal” da Igreja agindo em causa própria. Entre esses o filósofo coloca o tão falado caso Galileu. Guardarei para outra oportunidade, se Deus ma der, a discussão do approach adotado por Maritain neste caso. Mas, enquanto Deus me permite correr no papel estas mal traçadas linhas, quero formular aqui um desejo retrospectivo, um desejo colocado no imperfeito do subjuntivo que, além dessa ineficaz colocação no fluxo da vida e da história, contém tal teor de inverosimilhança e de abusurdité que certamente despertará o riso até das cariátides de pedra.

Explico-me. Eu desejaria que o exemplo mais vivo, mais próximo, mais real, e mais doloroso de mancada do personnel da Igreja, tomado por Maritain, pelo Maritain de 88 anos, fosse o decreto do Santo Ofício que condenou a Action Française! Eis aqui o texto do decreto: DECRETO DO SANTO OFÍCIO CONDENANDO CERTAS OBRAS DE MAURRAS E O JORNAL L’ACTION FRANÇAISE. Em 29 de janeiro de 1914 e 29 de dezembro de 1926. Para atender a muitos pedidos de um diligente inquérito sobre o pensamento e a intenção desta Sé Apostólica e sobretudo sobre as de Pio X (grifo nosso) de saudosa memória, concernentes às obras e escritos de Charles Maurras e o periódico L’Action Française, S. S. o Papa Pio XI ordenou-me, a mim abaixo assinado, assessor do Santo Ofício, que procurasse com cuidado os atos e os dossiers da Sagrada Congregação do Index — que, como todos sabem foi anexada e incorporada ao Santo Ofício — e que lhe fizesse um relatório. Terminado o inquérito, eis o que foi encontrado: I — Na Congregação preparatória de 15 de janeiro de 1914: todos os consultores foram de unânime parecer que as quatro obras de Charles de Maurras: Le Chemin du Paradis, Anthinéa, Les Amants de Venise e Trois Idées Politiques eram realmente más e portanto mereciam ser proibidas; a essas obras, declararam que deveriam acrescentar a obra intitulada l'venir de l'nteliggence. Muitos consultores opinaram que se acrescentassem também os livros intitulados Politique religeuse e Si le coup de force est possible. II — Na Congregação geral de segunda-feira 26 de janeiro de 1914: o Eminentíssimo Cardeal Prefeito declarou que havia tratado esse assunto com o Soberano Pontífice, e que o Santo Padre, em razão de numerosas petições que lhe foram dirigidas de viva voz e por escrito, algumas das personagens consideráveis, tinha na verdade hesitado um momento, mas enfim tinha decidido que a Sagrada Congregação tratasse a questão com plena liberdade, reservando-se o direito de publicar ele mesmo o decreto (grifo nosso). Os Eminentíssimos Padres, entrando então no mérito do assunto, declararam que, sem dúvida possível, eram verdadeiramente muito maus e mereciam censura os livros designados, tanto mais por ser muito difícil afastar os jovens desses livros, sendo o autor tido como mestre e chefe daqueles de que se devem esperar a salvação da pátria. Os Eminentíssimos Padres decidiram unanimemente proscrever, em nome da Sagrada Congregação, os livros enumerados, mas deixar a publicação de decreto à sabedoria do Soberano Pontífice. No que concerne à periódica L’Action Française, revista bimensal, os Eminentíssimos Padres acharam que merecia igual decisão tomada para as obras de Charles Maurras. III — Em 29 de janeiro de 1914: O Secretário, recebido em audiência pelo Santo Padre, prestou contas de tudo o que tinha sido feito na última Congregação. O Soberano Pontífice se põe a falar (sic) da Action Française e das obras de Maurras, dizendo que de muitos lados recebeu pedidos para não deixar interditas essas obras pela Sagrada Congregação, e afirmando que essas obras estão

entretanto proibidas e assim devem ser consideradas desde agora, quanto ao conteúdo da interdição feita pela Sagrada Congregação, o Soberano Pontífice se reservou, todavia, o direito de indicar o momento em que o decreto deve ser publicado, e se se apresentar nova ocasião de o fazer, o decreto que proíbe esse periódico e esses livros será promulgado na data de hoje. IV — Em 14 de abril de 1915: O Soberano Pontífice (Benedito XV), de feliz memória, interrogou o Secretário a respeito dos livros de Charles Maurras e do periódico L’Action Française. O Secretário relatou minuciosamente a Sua Santidade tudo o que a Sagrada Congregação tinha feito nesse assunto, e como seu predecessor Pio X, de santa memória, tinha protelado para o momento mais propício (grifo nosso) a publicação do Decreto. Ouvindo isto, Sua Santidade declarou que o momento não tinha ainda chegado (grifo nosso), porque em tempo de guerra as paixões políticas impediriam o juízo equitável do ato da Santa Sé. Relatadas cuidadosamente por mim, abaixo assinado, Assessor do Santo Ofício, todas essas coisas a Nosso Santíssimo Padre, Sua Santidade julgou oportuno publicar e promulgar esse decreto de Pio X (sic) e decidiu efetuar a promulgação, com a data prescrita (grifo nosso) por seu predecessor de feliz memória Pio X. Além disso, em razão dos artigos escritos e publicados, sobretudo nestes últimos dias, pelo jornal do mesmo nome L’Action Française, e principalmente, por Charles Maurras e Léon Daudet, artigos que todo homem sensato é obrigado a reconhecer que são escritos contra a Sé Apostólica e o próprio Pontífice Romano, Sua Santidade confirmou a condenação pronunciada por seu predecessor (grifo nosso) e estendeu-a ao quotidiano L’Action Française, tal como hoje se publica, de forma que esse jornal deve ser tido por condenado e proibido e deve ser inscrito no Index dos livros proibidos, sem prejuízo, no futuro, de inquéritos e condenações para os trabalhos de um e outro escritor. Dado em Roma no Palácio do Santo Ofício, em 29 de dezembro de 1926. Por ordem do Santo Padre. Canali, Assessor. Com todos os dados que o desenrolar dos acontecimentos nos proporciona hoje, e principalmente com a evolução da atitude de Pio XI e os termos que prepararam e que formaram o decreto que ao cabo de doze anos levantou o interdito, podemos tranqüilamente dizer que o assessor da Sagrada Congregação do Santo Ofício, em dezembro de 1926, demonstrou um desembaraço excessivo em colar, à condenação que o Papa XI já estava decidido a decretar, e que por si mesma bastava para o fim visado, um decreto e uma condenação que Pio X “talvez” (?) assinasse, se sobrevivesse, mas realmente não assinou, e deixou dito a várias pessoas da mais alta categoria que jamais assinaria. Posso ainda acrescentar, com plena convicção, que esta condenação foi desastrosa para a França, para o mundo e para a Igreja, sem que isto se interprete como uma acusação de erro, falha ou intriga, lançada à conta do Santo Ofício já tão abundantemente caluniado, e sem que isto possa ser compreendido como uma diminuição do respeito e da veneração que tenho pela memória do grande pontífice que foi Pio XI. Não podemos formar nenhum juízo sobre tão intrincada questão se não soubermos cuidadosamente discernir as circunstâncias intransferíveis de uma para outra época, de uma para outra experiência pessoal.

De início é preciso não esquecer, como tão bem assinalou Maritain no ensaio Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques, publicado em 26, em defesa de Maurras, nas vésperas da condenação, que Charles Maurras constituía, para quem o conhecia de longe, e mesmo para quem com ele conviveu, um paradoxo, um enigma indecifrável, um mistério perturbador. Vale a pena reler o que dizia Maritain dois meses antes da condenação. Como poderia eu, de início, não dizer minha admiração por Charles Maurras? Sua grandeza, a mola interior profunda de sua atividade é, a meu ver, antes de tudo, o senso do “bem comum” da cidade... Maurras purificou, limpou a inteligência dos falsos dogmas liberais — e este é o benefício capital de sua obra, é o que explica o fato de tantos moços o tomarem por mestre. E por que razão tantos católicos deixaram para um outro (um não católico) a tarefa que lhes incumbia, e que não exigia somente os tesouros de doutrina que superabundantemente possuem, e perto dos quais dormem tão freqüentemente, mas a audácia, a força, a coragem intelectual de usar a fundo esses tesouros, e o gênio de saber aplica-los ao real? 34 Assinalemos e frisemos esta especial queixa que Maurras tem dos católicos, e que é o reverso de um elogio de Charles Maurras, o mais desconcertante e merecido dos elogios: o gênio de saber aplicar à situação real os tesouros de doutrina católica concernentes ao bem comum da cidade. Maritain continua, reconhecendo a inquietante singularidade de tal situação: Do ponto de vista religioso, é perigoso considerar a Igreja pelos bens que ela distribui por acréscimo, sendo como é a melhor protetora do bem social, mais do que por seu fim, sua função e sua dignidade essencial que é a de dar aos homens a verdade sobrenatural... 35 Em face do paradoxo criado pelo gênio de Charles Maurras, não é justo nem razoável querer que Pio XI tivesse em Maurras e na Action Française a confiança que tinha Pio X, confiança bem fundada nos admiráveis serviços prestados à Igreja nas horas da cruel perseguição, e nos dias em que inúmeros católicos da A.F. se arruinaram para socorrer as casas religiosas perseguidas pelo governo Combes e sucessores. Pio X sabia que Maurras, a despeito de suas obras literárias de mocidade — obras realmente condenáveis, e certamente mais condenáveis do que as do pobre Maeterlinck que teve um papel providencial na conversão de Jacques Maritain (!)36 — era um soldado de Cristo. Pio X adivinhava que Maurras defendia a Igreja não apenas pelos bens que ela distribui por acréscimo, e deixou na memória de numerosas testemunhas de mais alta categoria a lembrança dessa convicção que o levava a reafirmar que jamais condenaria Maurras apesar da insistência de alguns purpurados. Daniel-Rops, no seu livro Un combat pour Dieu, atribuía a clemência e a boa vontade de Pio X a razões de conveniência política. Mas esse mesmo historiador, no mesmo livro à página 274, diz de Pio X: Quando ele julga que os interesses de Deus estão ameaçados, esse homem maravilhosamente bom e benevolente torna-se de uma dureza de ferro. Lucien Thomas aceita a maior assim formulada e desenvolve o silogismo que desarticula o comentário de Daniel-Rops:

Ora, é notório que, em relação a Charles Maurras Pio X não se mostrou de uma dureza de pedra. Ao contrário. Concluímos pois que, no espírito desse grande Pontífice, Maurras não ameaçava os interesses de Deus37. Mas a “convicção” e a “confiança” de Pio X não são transferíveis. Assim como sabemos que errar por etnocentrismo quem quer julgar e apreciar outra cultura com os dados e critérios daquela que tem ao alcance de sua experiência, erraremos também se quisermos deslocar as convicções, experiências, afetos, pressentimentos do pontificado de Pio X para o pontificado de Pio XI. Todos esses numerosos fatores circunstanciais que condicionam o juízo prudencial não são transferíveis por uma simples operação da razão. Em 1926 Pio XI não pensa em Charles Maurras como em um soldado de Cristo, ou mesmo apenas de Sua Igreja. Por infelicidade, desde as eleições de 24 em que a política do Núncio Apostólico favorece o famoso Cartel des gauches, e desde as violentas reações da Action Française, ferida em sua carne, pode-se dizer sem nenhuma injustiça que Pio XI está disposto ou predisposto contra Maurras. Além disso, em 1926 falta a Pio XI uma experiência que ele brevemente adquirirá à custa de terríveis sofrimentos: a experiência mais próxima da malignidade da corrente revolucionária que desde a explosão do affaire avolumou-se e prepara-se para inundar o Ocidente. Os inimigos de Maurras e os inimigos da Igreja souberam bem aproveitar o momento favorável para quebrar seu mais vigoroso adversário. A redação do decreto de condenação e a invocação de um suposto decreto e de uma suposta condenação de Pio X mostram que os intrigantes desta ténébreuse affaire estavam muito próximos do Santo Ofício e muito próximos do Papa. Objetivamente, e com os dados que tinham na mão, os membros do Santo Ofício podiam julgar efetivamente perigosa a situação da Action Française, e realmente condenáveis os livros de Charles Maurras. Mas hoje, com os dados de que dispomos, é impossível evitar a penosa impressão de um ato em que o Papa e a Sagrada Congregação do Santo Ofício foram arrastados a uma intervenção desastrosa. No tópico anterior, nós vimos um maravilhoso exemplo de como a Comunhão dos Santos e a Pessoa da Igreja, como diz hoje Maritain, corrigem os erros e tropeços do personnel de l’Église quando esse personnel age em causa própria. Em dois anos Pio XI começou a desconfiar do equívoco a que fora levado, e começou a estimar Maurras. E, à medida que o comunismo se desmascarava na Espanha, Pio XI mais se aproximava daquele lutador que tão bem compreendia sua aflição (ao contrário do que acontecia com os que, na França em 1926, aplaudiram, obedeceram e até explicaram “por que Roma falou”); e mais começava a desconfiar que o devoto de Santa Teresinha não podia ser tão ateu e tão surdo à Fé como ele próprio dizia. Durou doze anos o equívoco. Hoje, nós que não sofremos na hora a condenação, mas sofremos agora as conseqüências — hoje diríamos que foi rápida a reconciliação, que foi rápido o progresso pessoal de Pio XI na visão do tenebroso momento histórico. Foi mais rápido do que o tempo que Maritain

gastou para descobrir o contrário, como veremos no capítulo seguinte. Não deixa de ter algo de extravagante, de quase cômico, de fantástico, esse desencontro de homens admiráveis. À medida que Pio XI se aproxima de Pio X e culmina na Divini Redemptoris, a “intelligentzia” francesa, beneficiandose do tempo em que esteve dona do hexágono, corria vertiginosamente para as esquerdas. Pio XI lutou como um atleta, Maurras lutou como um gigante e morreu no seio da Igreja que tão apaixonadamente e tão misteriosamente defendera. Mas a Revolução satânica, que hoje devora milhões de almas batizadas, teve uma batalha ganha na condenação da Action Française! No próximo capítulo veremos como evolui e engrossa a torrente. Bibliografia sobre a Action Française: Além do livro de Lucien Thomas, abundantemente citado, recomendamos ainda os seguinte: Charles Maurras et Léon Daudet: L’Action Française et le Vatican (Flammarion 1927); Charles Maurras: Le Bienheureux Pie X, sauveur de la France (Plon, 1953); Robert Havard de la Montagne: Histoire de l’Action Française (Amoint-Damont, 1950); Robert Havard de la Montagne: Chemins de Rome et de France (Nouvelles Ed. Latines, 1950); Henri Massis: Maurras et notre temps, 2e édition complète (Plon, 1961); Marie de Roux: Charles Maurras et le Nationalisme de l’Action Française (Grasset, 1928); Maurice Pujo: Comment Rome est Trompé (Flammarion, 1929); Robert Brasillach: Notre Avant-Guerre (Plon, 1966); Lucien Thomas: L’Action Française devant l’Église de Pie X à Pie XII (Nouvelles Editions Latines, 1965). 1. 1.Yves Simon, La Grande Crise de la République Française, ed. l’Arbre, Montréal, 1941, págs. 83-4. 2. 2.Maurice Vaussard, Histoire de la Démocratie Chrétienne, ed. du Seuil, 1956, pág. 74. 3. 3.Ibd., pág. 74. 4. 4.Ibd., pág. 73.

5. 5.Manoel Zurdo, Piorno, De Mounier a la Teologia de la Violencia, Madrid, 1969, pág. 156. 6. 6.Adrien Dansette, Histoire du Catholicisme Français, Flammarion, 1957, pág. 414. 7. 7.Ibid. pág. 163. 8. 8.Joaquim Azpiazu, S. J., Direcciones Pontificias, pág. 177. M. Charles Ledré, Un Siècle sous la Tiare, ed. Amiot-Dumont. 9. 9.M. Charles Ledré, Un Siècle sous la Tiare, ed. Amiot-Dumont. 10. 10.Jacques Marteaux, L’Église de France devant la Révolution Marxiste, La Table Ronde, Paris, 1958, pág. 197. 11. 11.Robert Brasillach, Notre Avant-Guerre, Plon 1941 pág. 28 e seg. 12. 12.Jean de La Varende, Les Manants du Roi. 13. 13.Henri Massis, Maurras et notre temps, Plon, 1961, pág. 234. 14. 14.Ibid., pág. 237. 15. 15.Ibid., pág. 137. 16. 16.H. Rambaud, Le Defenseur de la Foi, Itinéraires, abril, 1968. 17. 17.Ibid. 18. 18.Ibid. 19. 19.Ibid. 20. 20.Annales de Sainte Thérèse de Lisieux, agosto-setembro, 1939. 21. 21.Henri Massis, op. cit., pág. 286. 22. 22.Ibid., págs. 283 e 433. 23. 23.Refere-se à recente publicação de Divini Redemptoris. 24. 24.Registre-se aqui um pequeno erro deste texto: a carta dirigida a Pio XI era assinada pelos “membros dos Comitês Diretores” e não por um “Comitê Diretor”. 25. 25.Esses e outros depoimentos que hoje pertencem à história e não à discutível intriga mundano-eclesiástica estão publicados por Lucien Thomas, L´Action Française devan l’Église, Nouvelles Editions Latines, 1965. 26. 26.Ibid. 27. 27.Ibid. 28. 28.Ibid., pág. 81. 29. 29.Ibid., págs. 130-131. 30. 30.Ibid., pág. 139. 31. 31.Charles Maurras, Le Bienheureux Pie X, pág. 132. 32. 32.Lucien Thomas, op. cit., pág. 148. 33. 33.J. Maritain, De l’Église du Christ, Desclée de Brouwer, 1970. 34. 34.Jacques Maritain, Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des catholiques, outubro 1926, citado por Lucien Thomas, op. cit., págs. 212-213. 35. 35.Lucien Thomas, op. cit., pág. 213. 36. 36.Raissa Maritain, Les Grandes Amitiés, cap. V. 37. 37.Lucien Thomas, op. cit., pág. 85.

Falsificações da História A história em todos os tempos tem mais nódoas do que brancuras, ou mais buracos do que queijo, como o suíço; mas pode-se dizer que a mais falsificada das histórias é justamente a dos anos em que o mundo dispõe do aparatoso instrumental de comunicações, com que tanto se empolgam hoje os religiosos. Conhecemos melhor a história da Grécia de Péricles do que a história da última guerra mundial. Já dei vários exemplos. Trago hoje novos, e não serão certamente os últimos. Para início de conversa devo confessar que caí no "conto" de Presses Universitaires de France e comprei sua Histoire Générale des Civilizations publicada sob a direção do sr. Maurice Crouzet que era na época, 1957, Inspecteur général de l'instruction publique; e é autor do último volume, que justamente versa sobre a história contemporânea. A coleção, composta de vários volumes, tem alguns razoavelmente bons, e até posso dizer que o volume do século XVI e XVII de Roland Mousnier é muito bom. Mas o volume escrito pelo próprio Maurice Crouzet é da mais deslavada e cínica inspiração comunista. Alguém talvez ache que essa inspiração é habilmente disfarçada. Nem isto, acho eu; e provo. Vamos aos pontos nevrálgicos. Como é que esse falsificador conta a história da guerra II? Abrigado atrás de uma prestigiada metodologia que dá realce especial às causas materiais, o autor começa por tratar paralelamente e simultaneamente das duas guerras mundiais, para comparar e salientar as diferenças de concepções estratégicas e de armas. Na página 319, e com um tranqüilo cinismo, o autor descreve a fraqueza da Wehrmacht e fala no "bluff" de Hitler, sem lhe ocorrer que a França foi esmagada por essa fraqueza e por esse bluff. Mas o mais espantoso é o seguinte: o leitor vê de repente que está numa guerra sem saber onde e porque começou. Não há nenhuma menção ao pacto germano-soviético para a partilha da Polônia e para o assassinato de milhões de judeus. Todos os velhos se lembram das sinistras figuras de Molotov e Ribentropp selando esse pacto infernal; mas os moços estão proibidos de saber que houve esse pacto e que a guerra começou pela invasão da Polônia, assaltada quase simultaneamente pelos demônios do comunismo e pelos demônios do nazismo. Sim senhores, o volume de quase 1.000 páginas da história contemporânea não explica como começou a Guerra II e oculta a maior monstruosidade do século. Mas não se detém aí o cinismo do sr. Maurice Crouzet. Tendo de dizer alguma coisa sobre a Polônia, já que esse povo ainda existe e se acha acorrentado à Rússia soviética, o Inspecteur de l'instruction publique tem uma idéia genial: diz que foi a Polônia que quis agredir a Alemanha nazista e a Rússia comunista. É incrível mas aqui está o dolo, a falsificação na página 340: "Na Polônia, onde se forma desde 1939 um exército secreto dirigido ao mesmo tempo contra os alemães e contra os russos, as divisões são profundas entre comunistas e anticomunistas". E da Rússia de 1920 a 1930 não diz uma palavra sobre a fome espantosa provocada pela coletivização da propriedade agrícola; e muito menos sobre os socorros prestados por Pio XI e pela American Relief Association que salvou da morte milhões de russos. No caso da Espanha o autor francês usa a mesma prestidigitação: põe-nos diante do levante militar e "fascisant", menciona o apoio dado pela Itália e pela Alemanha pela falange de Franco, mas não dá um pio sobre as razões que levaram os militares espanhois a essa extremidade. E essas razões não são microscópicas. O que houve na Espanha, num dos mais belos países católicos do mundo, foi simplesmente o seguinte: os vermelhos incendiaram todas as igrejas; e não podendo infiltrar

esquerdismo nas ordens religiosas como fizeram na França, os comunistas chegaram a esta límpida conclusão: "los curas? hay que matarlos". E mataram fartamente; violaram freiras, violaram mortas, expuseram cadáveres de carmelitas nuas e festejaram tal exibição de múmias de virgens oferecidas a Cristo. Tudo isto e muitíssimo mais. Pois bem, o volume VII da Histoire Générale des Civilizations não tem uma palavra para apresentar um fato que durante alguns anos cobriu de sangue um dos mais nobres e belos países do planeta. Ah! esquecia-me. De todos os horrores praticados contra as mais indefesas criaturas as Presses Universitaires de France, só mencionam o bombardeio de Guernica, e reservam uma bela estampa de página inteira para o quadro de Picasso1. Disse que não mencionaram a fome de Moscou e da Rússia inteira? Esquecime de acrescentar: em compensação reservaram uma página inteira para a fome da Índia. Essa obra canalha e falsificadora está traduzida e provavelmente muitos moços já firmaram suas convicções a respeito do que aconteceu no mundo nestes últimos anos. Daí o elevado número de pessoas que me atribuem excessiva contundência e exagerada indignação. * Falou-se muito do dia da Vitória. Que vitória? Ah! Sim, vitória das "democracias" sobre Hitler. Rio-me ou choro? Naquele tempo acompanhei com paixão todos os lances da guerra e tive horror à brutalidade nazista com toda a força de minha mocidade. Chorei quando vi num filme documentário alemão, UFA, a cena do estupro ritual da Polônia. Diante de uma porteira os tanques invasores estacionavam, e eu vi um oficial graduado avançar e violar a porteira com o passo de ganso. Rangi os dentes de ódio. E daí por diante era raro o dia sem lágrimas e ranger de dentes. Mas agora, tantos anos depois, vejo que caí no mesmo erro geral em que o mundo inteiro caía. E qual era esse erro? Era simplesmente o de só ver um lado da guerra. No mesmo filme que anunciava o martírio da Polônia, não me veio à mente a idéia do outro lado. O monstro URSS esteve constantemente eclipsado pelas caretas de Hitler, pela encenação wagneriana do nazismo. O mundo inteiro só pensava, só falava numa guerra, a guerra convencional de Hitler, a guerra superficial que em 1941 já estava ganha pela Inglaterra; e todos deixavam de ver a verdadeira guerra: a guerra revolucionária, e o verdadeiro inimigo: o "ideal" socialista. A União Soviética, depois do bombardeio de Helsinque, saiu completamente do noticiário e mergulhou na escuridão. E o tolo mundo inteiro, e eu dentro dele, pensava que o que importava era vencer Hitler. É curioso, é estranho, e sobretudo é humilhante pensar que as façanhas fulgurantes de um louco tenham despistado totalmente o mundo dito democrático. Em 1940 cai a França e os alemães entram em Paris. Pois bem, durante um ano e meio, quando ainda funcionava o pacto germano-soviético, os patriotas franceses da "Resistance" só viam o inimigo alemão e por uma inexplicável derrisão já começavam a ver nos comunistas o aliado. Subitamente, em junho de 41, Hitler ataca a URSS, num lance de loucura e desespero. E então a URSS sai da obscuridade e vem para a boca da cena como vítima e como aliada!!! Passaram todos a ver na URSS uma vítima e uma aliada. E aí está a supremíssima estupidez em que todos caímos, e que hoje tem uma dolorosa evidência. O mundo ocidental dopado, mal armado de critérios, ENGANOU-SE DE INIMIGO. Churchill, o sagaz, o genial Churchill deixou confissão pública de sua total obnubilação. Ele só pensava em Hitler, Churchill, um inglês de pura raça, inteligentíssimo, ficou hipnotizado pelas caretas de um sinistro Carlitos. E no dia da invasão da URSS disse estas

palavras aos seus pares para justificar o imediato apoio dado aos soviéticos: — Se Hitler invadir o inferno eu faço um pacto com satã. E fez um pacto com o comunismo. Precipitaram-se todos a ajudar a URSS quando já se tinham boas razões para crer na vitória angloamericana. Em 1942 os ingleses, primeiros inventores do radar, revidam os raids aéreos. Em ataques noturnos que se repetirão até o fim da guerra, destroem a Alemanha Ocidental. Tudo indicava que quanto mais longe afundavam na Rússia as tropas de Hitler mais próxima estava a vitória, sem necessidade de enviar 11 bilhões de dólares para o cúmplice da tragédia mundial, ou melhor, para o principal inimigo. Os alemães entraram Rússia adentro e chegariam ao estreito de Bhering se não fosse a estúpida idéia de ajudar os soviéticos. E até hoje estariam perdidos na Sibéria os farrapos da bandeira nazista. O país que invadia facilmente a Rússia era mais um país em fuga do que um exército vencedor. Foi um regime agonizante que penetrou até Stalingrado, e o mundo inteiro, para glorificar o Inimigo Número Um inventou o apelido: vitória de Stalingrado. Na continuação dos disparates temos em Ialta uma capitulação infinitamente mais grave do que a de Munique. O inimigo vencido recebe as honras de vencedor e ganha muito mais do que pretendia ganhar antes da guerra. A guerra começou porque os franceses e ingleses acharam que, depois de várias humilhações deviam honrar a palavra e não permitir a invasão da Polônia; termina a guerra com a entrega total da Polônia!!! Mais tarde os anglo-americanos têm a idéia de armar o tribunal de Nuremberg para punir os crimes de guerra. A primeira sessão é presidida por um general soviético que trata logo de extraviar o processo do massacre de Katina. Nesse meio tempo os franceses também querem proceder à epuration, também querem castigar seus traidores. E o que fazem? Procuram os comunistas e inventam o amálgama democrata-cristão para fuzilarem sem processo 105 mil franceses. * Perguntei: Que vitória? A resposta é clara: vitória da guerra revolucionária, subterrânea, que vem minando a civilização desde a Reforma e da Revolução Francesa, e que esteve eclipsada por um efêmero anormal. Agora o inimigo espalhou-se e já se infiltrou no último lugar que esperava alcançar: a Igreja Católica. Não me canso de pasmar diante de tamanho disparate. (Permanência, Maio de 1970) 1.[N. da P.] Alguns anos depois, janeiro de 1973, foi publicado um estudo chamado "The Great Guernica Fraud", na revista National Review, no qual se provava que o famoso bombardeio de Guernica é apenas um mito.

O alcázar de Toledo Nos dias de abril e maio que andei pelo Velho Mundo, vi muita coisa que me encheu os olhos e a alma de admiração. Não discorda Platão das Sagradas Escrituras, quando diz que a admiração é o princípio da sabedoria, porque o temor filial, segundo São Gregório e Santo Tomás, é um estremecimento da alma agradecimento que permanece e resplandece no céu. Torno a dizer: vi muita coisa que me encheu os pulmões da alma de gratidão e admiração. Deus é grande e todo-poderoso, e o homem, esse quase-nada, espécie de mofo nascido nos desvãos de um planeta, quando se ergue para louvar a Deus torna-se gigantesco e admirável, e é capaz de gravar nas pedras o sorriso dos anjos, e de construir catedrais, rosáceas, vitrais que nos enchem de estupefação. "Passou por aqui uma raça de gigantes...", dizia eu com meus botões na Sainte-Chapelle ou no Alcobaça. Era sempre diante de um passado mais lendário do que histórico, e por isso mais verdadeiro, porque as lendas cuidam das coisas essenciais que escapam aos historiadores perdidos na imensa feira de superfluidades. "Passou por aqui uma raça de gigantes..." "Passou..." Mas num lugar do Velho Mundo pude ver o prodígio da permanência e da sobrevivência da raça de gigantes, até os dias deste século, até ontem. Refiro-me ao Toledo. Toledo é uma cidade, hoje pequena, regada pelo Tejo, o mesmo Tejo de Camões e o mesmo rio de minha aldeia de Fernando Pessoa. A sudoeste de Madri, distante uma hora. Toledo é um prodígio sem igual. Sua preciosidade começa por imemorial antiguidade. Já dois séculos antes de Cristo, Toledo foi colônia cartaginesa e depois colônia romana. E logo nos primeiros dias do cristianismo Toledo se torna centro de irradiação, foco de difusão e núcleo de estudo e de doutrinação. Desde o primeiro século até o oitavo da era cristã reuniram-se em Toledo 18, sim, dezoito concílios, sendo os mais importantes os de 396, 400 e 589 com o triunfo da Igreja Católica na Espanha contra a heresia ariana. Além disso, convém lembrar que foi em Toledo que durante toda a Idade Média se forjaram as melhores espadas com que a Cristandade defendia seu território como defendera sua doutrina. Saltando por cima dos visigodos e dos mouros, temos em Toledo a capital da Espanha até Filipe II. No século XVI temos em Toledo o pintor El Greco, cuja maravilhosa casa até hoje exibe o ainda mais maravilhoso Enterro do Conde de Orgaz. Tudo isto se inscreve no patrimônio de grandezas deixadas pela raça de gigantes que passara pelas terras da Cristandade; mas o que me deixou sufocado na visita que fiz a Toledo foi uma cripta do Alcázar restaurada, e nesta cripta com um altar o que me fascinou foi a dupla lápide aos pés do altar, com os seguintes nomes: José Moscardó Ituarte Luis Moscardó Eu não sabia que ia ali encontrar seus túmulos e seus nomes, e por isso fui tomado por uma surpresa que me prostrou de joelhos. O mundo inteiro, digo mal, o mundo inteiro que não fechou os olhos à evidência e não se recusou à admiração dos feitos admiráveis, sabe o que foi a resistência do Alcázar, em 1936. Sitiado voluntário na fortaleza de Toledo, com 1.000 combatentes — e mais mil mulheres, crianças, velhos — Moscardó organizou-se para resistir e para sustentar seus dois mil habitantes. De início teve de entregar seu filho. A história é conhecida. Estão lá ainda a mesa de trabalho e o telefono que naquele dia tocou. Era o Chefe de Milícia dos Rojos que chamava Moscardó para intimidá-lo a render-se em 10 minutos, sem o que mandaria fuzilar seu filho Luis, em poder dos 12.000 milicianos que cercavam o Alcázar. A resposta de Moscardó foi seca e instantânea: — Você não sabe o que é a honra de um soldado, e por isso me faz essa proposta.

— Você fala assim porque pensa que estou blefando. Venha cá, Moscardó. Fale com teu pai. Luis: — Oiga, papá? José Ituarte: — Que hay, hijo mio? Luis: — Nada de particular, papá. Dicen que me van a fusilar si no te rindes. Que debo hacer? José Ituarte: — Tu sabe como pienso; tu padre no se rinde. Si es cierto que te van a fusilar, encomienda tu alma a Dios y muere como español: da un Viva España! y Viva Cristo Rey! Luis: — Es muy facil, papá. Haré las dos cosas... Un beso muy fuerte, papá. José Ituarte: — Adios, hijo mio. Un beso muy fuerte. E foi depois desse começo que José Ituarte desenvolveu uma sobre-humana energia para organizar a defesa, com um mínimo de armas, e organizar a subsistência de seus dois mil filhos adotivos. O que realmente espanta nessa epopéia de nossos dias não é a bravura, é sobretudo a força de resistência, a força de paciência com que se transformou o forte bombardeado dia e noite, por muito mais bocas de fogo do que The Light Parade de Tennyson, porque sobre o Alcázar, além das quatro rosas do vento, chovia fogo do céu. Aviões despejavam bombas, e José Ituarte ocupava-se com a moenda das reservas de trigo, com um motor de automóvel, e a organização de um circo para divertir as crianças... Não cabe aqui a centésima parte da epopéia do Alcázar de Toledo. Cabe ainda um reparo. Estas coisas aconteceram neste século de tantas degradações. Eu vivia, respirava, comia, dormia e trabalhava nos meus esquemas eletrônicos, enquanto a Espanha, Toledo, o Alcázar, Moscardó defendiam o cristianismo, a civilização, a honra, e tudo o mais que dá à vida o valor de ser vivida. Por um conjunto de bloqueios e conjurações, em que este século é fértil, passou-me despercebido o feito no momento mesmo em que eu poderia ter respirado em sincronismo com os heróis do Alcázar. Estupidamente perdi essa oportunidade de ser contemporâneo de uma raça de gigantes. Convertido à Fé Católica, ainda mais estupidamente perdi a oportunidade de agradecer a Deus tanta grandeza humana. Por um triz tive a sorte de sobreviver, e de ainda poder admirar, e de ainda poder agradecer. parte dessa história está no meu livro O Século do Nada.

O mito de Guernica Em artigo anterior referime a um sensacional estudo do professor Jeffrey Hart publicado em National Review de janeiro de 1973 com o título "The Great Guernica Fraud", no qual se vê que o famoso bombardeio de Guernica não houve. Simplesmente, não houve. E o famosíssimo quadro com que Picasso impingiu a todo o mundo a impostura, passa a ser um quadro comemorativo de um brutal feito de guerra que não houve. E eu, que escrevi um livro inteiro para apontar o itinerário de imposturas deste século de escavadores do nada, engoli esta de Guernica. Já escrevi uma pequena nota para a 2a. edição de O Século do Nada, que está saindo, na qual digo que a desmitização do bombardeio em nada altera a linha de argumentação do Capítulo, mas vem tornar evidentemente mais cômica a posição dos intelectuais de esquerda que em julho de 37 assinaram o manifesto pró-basco que lhes foi inculcado por Moscou. Como era de se esperar, surgiram reações positivas e negativas do mundo inteiro ao artigo do professor Jeffrey Hart. O número de agosto de National Review publica alguma dessas cartas, e o breve comentário que Jeffrey Hart volta a fazer. Fica evidente que houve empulhamento e que era falsa a versão transmitida por Hugh Thomas no seu já clássico The Spanish Civil War, pela qual "o próprio Goering teria admitido, em 1946, que Guernica fora um teste de seus aviões bombardeios". Vale a pena ler as cartas do conhecido historiador inglês Brian Crozier, e de Alfredo Maurice de Zayas, dirigidas ambas à National Review como reforço de desmitização. Transcrevemos abaixo a primeira, que é a mais concisa e tem autor mais reputado: "Prezado Senhor: surpreendi-me de ver sua nota sobre Picasso (Economist, abril 1) ainda dar destaque ao encanecido mito Republicano sobre a destruição de Guernica por "bombardeio a serviço do General Franco". A verdade completa sobre Guernica talvez nunca seja sabida, mas já se tornou evidente que os Nazis, além das muitas atrocidades praticadas, não são autores desta que lhes atribuem. Algumas das provas ditas estão mencionadas no meu livro sobre Franco (1967). Mas depois disso outras provas chegaram ao meu conhecimento. Parece ter havido algum bombardeio alemão que causou algumas vítimas. Os documentos alemães capturados na época (que evidentemente não se destinavam à publicação) registraram surpresa e indignação pelo que lhes imputavam (Documens on German Foreign Policy, 1918-1945, Séries D, vol. III, London HMSO, 1951; Nos. 249 and 251). "O Estado Maior Nacionalista (na Espanha de 1937) registrou (também em documento que não se destinava à publicação) em 29 de abril de 37 — três dias depois do alegado bombardeio aéreo de Guernica — que a cidade tinha sido encontrada incendiada pelos Vermelhos antes de abandoná-la. Louis Bolin cita esses documentos em seu livro Espanha — Os anos vitais 1967 e eu também os li. Quando o meu livro Franco foi publicado, algumas testemunhas o apoiaram. O Comandante da Aeronautica Sir Archibald James com muita gentileza registrou um relatório de que me enviou cópia assinada. Ele percorreu a região atentamente, e com a autoridade de um oficial aviador observou, poucos dias depois da queda de Guernica, que a cidade tinha sido incendiada e arrasada sistematicamente, com exceção do quarteirão central que contém a catedral, a prefeitura e a Árvore Sagrada dos Bascos que permaneceram intatas. Encontrou meia dúzia de pequenas crateras dentro de cem metros de perímetro. Conclui-se que, no estado em que se achava a técnica de bombardeio aéreo em 1937 (e mesmo em 1973) seria impossível destruir quarteirões importantes. Visitei Guernica recentemente — diz ainda o historiador inglês Brian Crozier — para ver com os próprios olhos que a destruição não podia ser imputada aos ataques aéreos nazistas". A carta de Alfred Maurice de Zayas é mais extensa e mais enfática na desmitização. Mas o que mais me impressionou no tom do historiador inglês e no tom de Maurice de Zayas foi a frieza da objetividade com que corrigem um erro histórico cometido pelo scholar Hugh Thomas, sem demonstrarem nenhuma emoção diante da monstruosidade histórica criada pela impostura que produziu o quadro de Picasso, e na França provocou o lamentável manifesto pró-basco assinado por intelectuais católicos do mais alto renome — tudo isto enquanto os "nacionalistas" espanhóis se esforçavam por livrar sua pátria dos inimigos que perseguiam cruelmente a Igreja e a civilização cristã. Fico muito agradecido aos

historiadores que desmontaram o empulhamento, mas chego à melancólica conclusão que ninguém mais é tão insensível ao sentido da história. No caso, o fleugmático inglês Brian Crozier deixa aberta a hipótese de algum outro bombardeio alemão para explicar o erro do colega, sem lhe passar pela idéia, aparentemente, a existência de todo um caudaloso sistema de imposturas visíveis em outros fatos, affaire Dreyfus, condenação da Action Française, Ialta, Katim etc. que explica muito mais veementemente o caso Guernica do que um outro eventual bombardeio alemão. Ao próprio professor Jeffrey Hart a quem devemos a publicidade do desenvolvimento parece escapar a conexão que insere o episódio num largo estuário de uma corrente histórica que quer exterminar o cristianismo e a civilização, para recomeçar a história da estaca zero, ex-nihilo. (O Globo, 6 de Outubro de 1973).

POLÍTICA

A Crise da Democracia Num interessante inquérito promovido pelas revistas norte-americanas U.S. News and World Report, e publicado com grande destaque pelo O GLOBO, desde os dias 18 e 19 do corrente, vem sendo abordado problema da crise, do malogro ou do futuro da “democracia”. Numerosos intelectuais norteamericanos e ingleses, de alto prestígio, como: Professor Samuel P. Huntington — Cientista Político, Professor Charles Frankel — Filósofo, Professor Robert L. Heilbroner — Economista, Professor Max Beloff — Cientista Político, Professor William H. McNeill — Historiador, Professor Michael J. Crozier — Sociólogo, Professor Friedrich A. Hayek — Economista e Professor René Dubos. Cientistas, trouxeram sua contribuição ao debate que, para esses intelectuais, parece assentado em claros postulados aceitos por todos e motivado por mais uma inquietação do mundo moderno, ou pelo menos, do ocidente moderno. Em primeiro lugar observo que o termo “democracia” sempre demarcado com o artigo “a” que reforça sua determinação designa um conceito quase tão claro e tão unívoco como o de “quadrado”. Ora, desde aqui me parece que esse inquérito aceita, sem sinais de relutância, todos os movediços equívocos que formam a atmosfera cultural de nosso tempo. Leia mais. Efetivamente, o termo “democracia”, no tumulto provocado por guerras, revoluções, reformas de coisas irreformáveis e mise en question de todos os princípios morais e religiosos, o termo “democracia”, embora pretenda ter permanecido imóvel no mercado das idéias baratas, sofreu deslocamentos semânticos denunciados pelos adjetivos que lhe são anexados: democracia-liberal, democracia-cristã, democracia-popular etc. Mas também sofreu deslocamentos metafísicos mais profundos e mais perturbadores. Na sua primeira e clássica acepção o termo “democracia” significava forma de governo caracterizada pela mais ampla participação do povo — como “monarquia” significava forma de governo de mais concentrada autoridade. No processo revolucionário que, nos últimos quatro séculos, corre nos subterrâneos da História, o termo “democracia” passou a significar uma filosofia de vida, e não apenas uma especial forma de governo. Seria melhor dizer que passou a ser um humanismo, que pretende marcar os eixos essenciais de uma nova civilização que deixara de ser essencialmente cristã, mas ainda tolera ou respeita o cristianismo subsistente como uma opção individual. Voltaremos a abordar este provocante problema de nosso tempo. No momento quero apenas assinalar a tranqüila simplicidade com que todos os depoimentos colhidos toma o termo “democracia” no sentido amplo tomado por Jacques Maritain em seu livro Cristianismo e Democracia, e que para nós mesmos, durante a Guerra e em nossa ingênua Resistência Democrática, se transformou em bandeira. Quase em religião. Uma das vozes gravadas no inquérito da U. S. News resumiu seu pensamento nesse ato de Fé: “Fora da democracia não há salvação”. Assinalo até aqui apenas este aspecto ingênuo do inquérito, cuja leitura me traz uma curiosa sensação de haver remoçado quarenta anos, da qual sensação, em vez de tirar e saborear as partes positivas como dizem os boletins da CNBB, eu sinto ânsias de vômito. Sim, em lugar de uma indulgente saudade dos “bons tempos”, sinto vergonha e tristeza de tudo o que engoli naquele mundo brutalmente simplificado pela guerra. Mas, depois de haver sofrido a mais humilhante decepção jamais sentida por um cidadão do Planeta habitado, desde a pré-história, sim, depois de ter sido esbofeteado por Satanás no dia da chamada “vitória das democracias”, e depois de ter sofrido as conseqüências de todos os equívocos da falsa guerra, da falsa vitória, da falsíssima paz, e mais falso reformismo e progressismo religioso, posso

admirar, sem nenhuma inveja, a imobilidade dos intelectuais que viraram estátua de sal e tranqüilamente ignoram a existência de vozes que, desde um Donoso Cortês, até um Pio X, e até os mais ardorosos defensores do cristianismo, responsabilizam com justa severidade esse mito de origem maçônica, como um dos principais corrosivos de uma civilização que se desagrega em todas as suas partes. Não sendo possível alhear-se inteiramente ao espetáculo apocalíptico que até as crianças já começam a perceber, esses professores, economistas e sociólogos do mais fracassado dos mundos descobertos e civilizados por homens de outra têmpera e outra fé, esses capitalizadores de erros se assustam diante do avesso da democracia. Seria o caso de dizer-lhes que, neste himalaia de erros acumulados pelo novo humanismo que se afastou de Deus, esses pobres herdeiros de imposturas e de enganos enganam-se tão perfeitamente, que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem. Na verdade, a grande tragédia “desse humanismo do homem-exterior” é aquele vínculo vicioso do amor-próprio que na vida individual prende a alma à mentira com que ela mesma se exalta e se envenena. Em termos de Teologia da História, e de transcurso dos valores de uma civilização que já foi cristã, podemos dizer que a mentira da exaltação do homem-exterior — do homem-autônomo, isto é, do homem que é a sua própria lei, do homem que se declara adulto e que culmina na ascensão de imposturas quando anuncia uma fraternidade nos mesmos dias em que proclama seu desprezo pelo Pai — chegou ao máximo de seu trágico ridículo quando foram badaladas dentro das cúpulas de uma Igreja que reformava, deformava e transformava o cristianismo num exaltado humanismo. O Globo, 29 de abril de 1976

Método de Escolha dos Chefes Nas vésperas das eleições, mergulhados na poluição fedorenta de todo esse sistema espúrio e corrupto capaz de levar o Brasil a estabelecer no poder pessoas que deveriam estar na cadeia, respiremos algum ar fresco do pensamento reto, luminoso e profundo de Gustavo Corção Alguém do Jornal do Brasil telefonou-me perguntando se eu poderia responder a duas perguntas simples: 1° — Quem seria no novo presidente? 2° — Que pensa o senhor do regime e sobretudo desse método de escolha dos chefes? Esquivei-me da primeira pergunta por falta de informações exatas. Mas não hesitei em responder à segunda: depois do movimento de 64, que considero providencial, o Brasil achou-se com um regime de governo que, a meu ver, é o melhor, mas ainda não tem denominação feliz. Usando a clássica qualificação dos regimes, deixada por Aristóteles, o governo atual do Brasil e do Chile não é monárquico nem democrático: é o governo que Aristóteles chamou aristocrático, deixando o termo oligárquico para designar sua depravação. É hoje evidentíssimo que nenhum desses dois nomes pode ser convenientemente proposto. Mas também torna-se cada vez mais evidente que é esse o melhor regime. Ouçamos algumas palavras de Santo Agostinho que, como sempre, bem responde aos problemas de hoje: “Se um povo é sério e prudente, zeloso pelo interesse público, é justo que se faça uma lei que permita a esse povo dar a si mesmo os magistrados. Entretanto, se tornado pouco a pouco depravado, esse povo tornar venal seu sufrágio entregando o governo a celerados e infames, é justo que se lhe retire a faculdade de conferir os cargos públicos, e se volte ao sistema de sufrágio limitado a algumas pessoas idôneas” (Santo Agostinho, Tratado do livre arbítrio, Vol. I cap. VI, citado por Santo Tomás). Eis aí uma citação que convém como uma luva a recente história do Brasil. Depois das graves contribuições trazidas pelos últimos governos ditos democráticos, que já entregavam o Brasil ao comunismo, achamo-nos diante de uma situação singular: todos os brasileiros, nas famosas Marchas

com Deus e pela Família, demonstraram a aceitação do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, escolhido por indicação de seus companheiros das Forças Armadas. Lembro aqui também o grande Papa Leão XIII na sua encíclica Immortale Dei, mais de uma vez citada nestas colunas. No tópico n° 10, essa encíclica formula o mais enérgico repúdio dos novos direitos trazidos pela Revolução do século passado, e não dissimula sua condenação à filosofia política que se funda na soberania nacional e no princípio de igualdade para fazer finalmente do sufrágio universal um dos famosos direitos do homem. Que nome daremos nós a esse novo regime em que providencialmente se achou o Brasil? Eu não costumo me prender demais aos nomes desde que li os versos de Shakespeare onde o poeta atribui a Julieta essas palavras relativas ao nome da família de Romeu: “What is a name?” Teria a rosa menos perfume se tivesse outro nome? Há porém um abismo entre o diálogo amoroso de dois namorados e as exigências do bem comum. No plano das atividades políticas os nomes inculcados às multidões têm funcionado com força mágica. Nossos adversários, os comunistas — que militam dentro da mais dura e desumana de todas as oligarquias, apelidada democracia popular por escárnio — tornaram-se exímios no uso e abuso das palavras mágicas. Reação, fascismo, democracia, marcadas umas com o labéu da execração pública e outras com o halo dos idealismos puros, tornaram-se hoje impraticáveis, se quisermos escrever algumas linhas que sejam entendidas por mais de 10 pessoas. Sabemos de episódios em que jovens se entregaram aos comunistas só para fugir ao terrível anátema do termo “fascista”. Como já me dispus a tudo nessa matéria não hesitei em denunciar a impostura que tinha a democracia como único regime condizente com os direitos do homem. Dou hoje mais um passo, depois de lembrar que Aristóteles considerava impraticável (e eu diria: sobretudo em regime democrático) a Polis que tivesse mais de 100.000 habitantes. Repito o jogo de palavras que já empreguei nestas colunas: nos tempos modernos aumentou a tal ponto a densidade demográfica que se tornou temerário, mais do que nunca, o uso da forma democrática. O governo e a designação dos chefes não podem ser, por sufrágio universal, entregues ao povo, cada vez mais desumanizado. Sim! Não podem e não devem jamais ser entregues a esse monstruoso soberano que é onipotente (já que todo o poder dele emana) e nihilciente (já que tal coletivo se torna irresistivelmente diminuído e subumanizado). Um modesto homem do povo pode ter a sabedoria de um Sócrates; mas cem milhões de pessoas tornam-se irresistivelmente um ídolo que tem olhos e não vê, orelhas e não ouve etc. De uma só cajadada abato dois nomes mágicos: democracia e povo. Agora, já que estamos com a mão na massa, aproveito para desaprovar, tarde demais, o nome dado ao movimento de 64: “Revolução”, que é o mot d’ordre de toda a esquerda revolucionária e anarquista. Nossos bravos e bons soldados, chamados por Deus à salvação da pátria, assumiram o poder cerimoniosamente, encabulados, e até com certo sentimento de culpa. Por isso até hoje se prendem às idéias políticas de 1789, quando vivemos o ano novo de 1978. O nome de nosso movimento deveria ser este: Reação Nacional. Corajosamente. E que nome daremos ao regime recomendado por Santo Agostinho? Fica aqui o desafio a quem tiver talento de títulos melhor do que o meu. Mas enquanto não acharem o nome, olhemos a “coisa” de face e sem nenhum constrangimento. O movimento de Reação Nacional de 64 veio acabar com o prestígio e a superstição do sufrágio universal. E deve manter-se firme nesta obra de purificação prestada ao país. Não! Nem prestígio nem superstição. O termo que convém melhor é o de “mentira vital”. Porque aqui entre nós dois, meu caro Fulano, desabafemo-nos. Na verdade, na verdade, não creio que ninguém, em são juízo, fora do torpor causado pelo ópio, possa acreditar na pureza e num mínimo de racionalidade do sufrágio universal. Eu votei em Jânio Quadros, e quem teve razão foi o cronista David Nasser, de “O Cruzeiro”, quando estampou com enorme destaque esta frase: “Seis milhões de loucos votaram em Jânio Quadros”. E aqui, como derradeiro argumento, trago os dados da história do Brasil republicano. Os melhores governos que o país teve foram os dos três presidentes paulistas, Prudente de Morais, Campos Sales e

principalmente Rodrigues Alves. Ora, como estamos cansados de saber, as eleições nesse tempo eram feitas a bico de pena, eram dirigidas por uma minoria. Quando Getúlio Vargas trouxe o sufrágio universal em 34 (para logo liquidá-lo em 37), passamos a ter os governos catastróficos que culminaram em Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, que fizeram no Brasil obra semelhante à de Allende no Chile. Vocês se lembram de março de 1964? Lembro-me eu. E mais não digo por hoje. O Globo, 14/01/1978

FILOSOFIA

A imortalidade A imortalidade de que se fala nas academias, ou nos comentários tecidos em torno de um grande morto, como acontece agora com Hemingway, é aquela que Augusto Comte chamava de imortalidade subjetiva, e que consiste na sobrevivência, não da pessoa, mas das obras e dos passos. Essa imortalidade comporta graus, conforme seja maior ou menor o rumor que o finado tenha feito em torno de si. Há nomes sonoros que ficam na lembrança dos povos por séculos e séculos, enquanto outras vidas mais leves, mais silenciosas e cinzentas logo se apagam, às vezes no próprio mundo familiar. Lembra-me aqui um amigo que morreu deixando um magro legado de ressonâncias. Tão obscuro, tão pouco conseqüente fora que até um dia aconteceu-me, encontrando a viúva, abrir a boca para perguntar notícias do Belmiro, já morto, mais morto do que um prego de caixão de defunto como dizia Dickens. Calei-me a tempo quando recapitulei rapidamente a história póstuma do amigo. Deixara filhos e viúva, mas por uma ironia da sorte a viúva recebeu uma herança, empregou-se num desses cargos em que se ganha muito e pouco se faz, como tantos há nesta República, e assim a família conheceu melhor padrão nos dias de luto. Um ano depois a viúva namorava um guapo peruano que acabou de apagar na memória de todos a lembrança fugaz do pobre Belmiro. Lembro-me de um pormenor curioso da história do apagamento do Belmiro: um dia, trazendo os filhos para o colégio, de automóvel, entrou de mau jeito, como aliás freqüentemente o fazia, e tirou um pedaço, um pequeno pedaço do pilar do portão. Ficou aquela marca discreta, de que, ao cabo de algum tempo, suponho, só eu conhecia a causa. E sempre que passava por ali, e que via o arranhão na alvenaria, evocava a figura de Belmiro. Um dia, veio um pedreiro, recompôs o pilar, e com essa pá de cal desapareceu o último vestígio interessante de uma vida vivida meio século. Creio que a ninguém escapa o ridículo que sempre acompanha esta tal imortalidade subjetiva, mesmo quando a figura imortalizada é imponente e o traço deixado na casca do planeta é um pouco maior do que um risco na cal. Ainda outro dia estive a ruminar meditações deste tipo diante de uma estátua que o escultor concebera e realizara em atitude oratória e que, exposta ao aguaceiro, tinha um aspecto lamentável. Entretanto, apesar dessa carga de ridículo, a humanidade se obstina em guardar as lembranças dos mortos, e nós mesmos, se nos sondarmos com lealdade, descobriremos um esquisito desejo de sobrevivência na memória dos outros. De que nos vale isto? De que me vale meu nome pronunciado aqui ou acolá, com tais ou quais atributos, se eu não estou aqui ou acolá, pessoalmente, sobrevivente? O fato é que apesar dessa pobreza de significação pessoal, desse caráter acidental, a sobrevivência pelas obras corresponde a um profundo desejo de nosso ser. Ninguém quer passar a vida em branca nuvem. Ninguém quer morrer como o poeta disse que morrem os pássaros. Mas a verdade é que é esse instinto de sobrevivência, digamos horizontal, que nos impede a visão da outra imortalidade, a vertical, a que tem dimensões de eternidade e não dimensões de história, à qual também corresponde um grande anseio de nossa alma, que tem horror à morte, à idéia do aniquilamento da pessoa, e que se insurge em cada caso, diante de cada defunto, como se estivesse vendo um espetáculo de espantosa raridade. O caso é que a alma humana tem profundidades de inconsciência em dois sentidos. Diria até dois hemisférios, um voltado para a terra e outro voltado para o céu. Num desses hemisférios a idéia de imortalidade da alma brilha como uma estrela; no outro, entretanto, levantam-se obstáculos erguidos pelas exigências da sensibilidade. É por isso que nos parece fria e distante a consideração filosófica em torno do asssunto. Disse Edgar Poe que não custou muito a ver que jamais se convenceria de sua própria imortalidade se tivesse de aceitar as demonstrações filosóficas. Pagando o seu tributo ao empirismo triunfante na atmosfera cultural de seu tempo, Edgar Poe diz brutalmente: «... he (the man) will never be so convinced by the mere abstractions which have been so long the fashion of the moralists of England, of France, and of Germany».

Que quer isto dizer? Será assim tão inoperante, tão pouco convincente a demonstração filosófica? Será a razão tão pobre ou tão fria diante da vida? Na verdade, estamos diante de um problema típico, ou melhor de um tratamento típico dado a um problema espiritual pelo empirismo, podendo ser este da espiritualidade e decorrente imortalidade da alma, ou o da existência de Deus. Quando alguém diz categoricamente que as demonstrações filosóficas não convencem intelectualmente, ele quer dizer que tais demonstrações não satisfazem à sensibilidade. Quer dizer que não sacia a fome, não apazigua o sexo, não tranqüiliza os nervos, não atende em suma a exigências que vêm de todo o dinamismo da sensibilidade. Seria pueril zombar de tais exigências e fazer parada de espiritualidade alambicada e inteiramente despreendida daqueles laços. Mas também é pueril pedir à inteligência um tipo de alimento que não lhe compete preparar. É claro, claríssimo, que ninguém se lembrará de ler uma página filosófica para o pai que chora diante do cadáver do filho. Mas também é claro que nesta mesma hora o pobre pai não entenderia uma demonstração de geometria. Será defeito da geometria? Ou será mais fácil pensar que a situação emocional, sensibilizada, responde pela momentânea incapacidade? A filosofia é mais difícil do que todas as geometrias juntas, e para se tornar operante e convincente numa alma é preciso que essa alma trabalhe longamente para se desobstruir do empirismo. Assim, a idéia de imortalidade da alma, que vale a pena ser desempatada, tem de ser apresentada ao espírito muito antes da emoção, da perturbação, para que na hora oportuna ela tenha algum valor vital. Vale à pena desempatar esse problema, e procurar entrever, através de nossos obstáculos, as novas dimensões da eternidade. A imortalidade verdadeira, pessoal, essencial, não se distribui pelas pessoas em graus proporcionados ao sucesso da vida. É ao contrário um atributo da alma espiritual, e portanto um denominador comum de toda a humanidade. E se assim é, segue-se que a sorte do homem, referida aos eixos da eternidade, deveria dominar todas as cogitações da vida terrena, e não estar relegada à categoria de assunto que serve para consolo nas câmaras ardentes e logo em seguida é esquecido. Vale à pena desempatar este problema que nada tem de relativo. Ou somos dotados de alma espiritual ou não somos. Ou somos criaturas com vocação de eternidade, ou não somos. Uma das mais inacreditáveis contradições da condição humana é justamente a do pouco caso com que tratamos as coisas mais relevantes; mas ainda mais espantosa atitude é a daquele que se alegra com a divisão de opiniões em todos os assuntos, inclusive nesses de máxima relevância. E ainda mais incompreensível, nessa progressão geométrica de disparates, é o fato de passar por muito inteligente quem relativiza todas as categorias intelectuais e alegremente desiste de pensar. Vale à pena tirar a limpo o x da sorte do homem; mas para isto temos de seguir um caminho inteiramente diverso do experimentalismo procurado por Edgar Poe, no conto de onde tiramos a passagem acima transcrita. O caminho da descoberta dos valores de eternidade é o da purificação e o da ascensão da inteligência e da vontade espiritual, e até o da renúncia de qualquer perpetuidade na memória do mundo. Na mente do santo, o mais vertical dos homens, tudo se refere à vida eterna que por sua vez se refere a Deus. Nós outros, por nossos pecados, por nossa gulodice de instantes de vida, pela impureza de nossos critérios, temos apenas lampejos, e às vezes nem a isso damos uma pequena parte de nossa atenção. (Diário de Notícias 16/7/1961)

Contra o Evolucionismo dos evolucionistas “Parece-nos indispensável marcar bem a intolerância em relação à Evolução dos evolucionistas, que tira o mais do menos, que faz passar a potência ao ato sem nada que esteja em ato, o que consiste precisamente em ser um processo autocriador que torna sub-repticiamente aceitável a criação “ex-nihilo” sem um Deus Todo Poderoso, desde que essa criação se torne infinitesimal e suficientemente lenta para que as inteligências tardas não percebam o mecanismo do absurdo, e fiquem, de tantos em tantos metros, ou de tantos em tantos séculos, diante de uma situação de fato.

É preciso denunciar a absoluta inaceitabilidade do evolucionismo dos racionalistas e dos empiristas”.

Gustavo Corção

- Trechos selecionados de "As Descontinuidades da Criação" –

[Recomendamos a leitura prévia do artigo "Implicações do Evolucionismo" do mesmo Gustavo Corção. O leitor que quiser se aprofundar no tema, tirará imenso proveito da leitura de seu artigo sobre as contradições do materialismo, "Tudo é Pó".]



A Variedade dos Seres Consideremos agora o conjunto da criação, os reinos da natureza, os seres espirituais, visíveis e invisíveis, pois nos resta percorrer os demais degraus que formam a escala ascendente de perfeições nos diversos seres vivos, para tentarmos mostrar que eles são também dispostos em níveis ontológicos irredutíveis. As descontinuidades da criação virão reforçar a impossibilidade metafísica de uma evolução que levaria a ameba a virar peixe, o peixe a virar réptil, este passando a mamífero para chegarmos ao homem. Podemos aqui evocar a idéia de dimensão nascida na geometria e alargada para abranger as entidades físicas mensuráveis. Dizemos que uma entidade tem uma só dimensão quando é expressa por uma só medida, que só tem um modo de ser: assim, por exemplo, o comprimento é unidimensional, a corrente elétrica, medida em ampéres é também unidimensional, enquanto que a área na geometria e a potência (em watts ou outra unidade) na física têm duas dimensões e podem ser realizadas de uma infinidade de modos que são produtos de dois fatores. O produto pode manter-se constante com fatores variáveis: 1x10 = 2x5 = 4x2,5 = 0,1x100 etc. O volume na geometria e o trabalho ou energia na física têm três dimensões. Dois princípios governam a disciplina chamada análise dimensional: o da homogeneidade, pelo qual só podemos equacionar grandezas da mesma natureza e mesma dimensão e o da irredutibilidade, pelo qual uma entidade de “n” dimensões não pode passar para o nível “n+1” por gradativa e continua elevação, embora as entidades de nível mais alto contenham em suas partes entidades de nível mais baixo. Exemplifiquemos: a área de um triângulo pode ser igual à de um pentágono, mas não pode ser sequer comparada ao volume de um tetraedro. Por outro lado, por mais complicada que seja a figura desenhada num plano, jamais terá três dimensões, jamais será volumétrica. Do mesmo modo, jamais passarei de uma entidade volumétrica para uma plana por menor que seja uma das dimensões. É uma idéia falsa dizer, por exemplo, que um paralelepípedo tende para uma superfície (de duas dimensões) quando sua altura ou espessura se tornam muito pequenas. A idéia da continuidade vale em cada nível, mas é falsa quando se estabelece entre níveis irredutíveis. Matematicamente, geometricamente, e enquanto nos mantemos fiéis à abstração própria dessa ciência, não há nenhuma diferença essencial entre um paralelepípedo de um bilionésimo de espessura

e um outro de um quilômetro, mesmo porque o matemático não sabe (matematicamente) o que é um milímetro ou um quilômetro; essas unidades pertencem ao mundo físico. E o que se passa com entes matemáticos ocorre também com os físicos; apenas aqui a “dimensão” é uma perfeição nova, uma qualidade específica, ou um nível substancial como o que “mede” o ser corpóreo e o distingue irredutivelmente do ser espiritual. Proponho essa imagem, emigrada do mundo geométrico, por me parecer que a algum leitor ela será sugestiva e impulsionadora; mas devemos deixá-la se quisermos galgar abstrações metafísicas mais elevadas. Consideremos o universo no seu quadro atual, e percorramos os vários níveis com os recursos que a ciência atual nos proporciona, e com os critérios e princípios que temos da filosofia perene. Eis o quadro de gradativas dimensões das coisas que compõem o universo criado: DEUS ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Forma Espiritual = Anjos M + Forma (vida + sensibilidade + razão) = Homem M + Forma (vida + sensibilidade) = Animal M + Forma (vida) = Vegetal Matéria + Forma = Inanimado ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------M = Matéria Prima

Antes de mais nada convém lembrar que as sucessivas perfeições, de baixo para cima, se acrescentam à forma compondo uma nova forma. Nossa representação algébrica não deve ser tomada ao pé da letra. A dupla barra superior separa absolutamente o criado do Incriado: esta descontinuidade máxima é a transcendência de Deus e a infinita superioridade do Ser Necessário sobre o contingente, do Incausado sobre o causado, do Imutável sobre o móvel. A criação, abaixo da dupla barra superior está submetida, em todos os patamares, a Deus Causa Primeira criadora e sustentadora de todos os seres visíveis e invisíveis. Abaixo da dupla barra inferior está a “matéria prima”, em sentido aristotélico. Não é um ser, mas princípio potencial de todos os seres corpóreos que só emergem na existência sob alguma determinação ou “forma”. Entre as duas barras arrumam-se os diversos degraus de seres criados que compõem os reinos da natureza. É fácil constatar que cada degrau se distingue do outro por um acréscimo de perfeição. Porém, antes de aproximarmos nossa lupa de cada reino para examinarmos de perto o comportamento de seus habitantes, acrescentemos aqui algumas considerações sobre a diversidade dos seres.

O problema que armamos neste tópico, como o da origem do universo, não encontrará jamais na ciência, e mesmo na filosofia, uma resposta adequada. Temos de buscar outro grau de saber, que aliás é o que norteia todo este capítulo. E este grau de saber mais alto não depende, senão “per accidens”, das pesquisas e das descobertas científicas. Não é de admirar, então, que consultemos Santo Tomás, como já consultamos Santo Agostinho, que tem dobrada antiguidade. Santo Tomás: “A multidão das coisas e sua variedade vêm de Deus? Os filósofos atribuíram a diversas causas a distinção dos seres. Atribuem-na uns à matéria, isolada ou associada a um agente. Demócrito e todos os antigos filósofos da natureza não admitiam outra causa além da material. No dizer deles, a distinção dos seres era fortuita e provinha do movimento da matéria.” (Ia/47/1). Como se vê, o probabilismo e a civilização do acaso são antigos como o mundo. Anaxágoras, que Aristóteles dizia ser um único sóbrio andando no meio de embriagados, exigiu uma Inteligência que tivesse a função de filtrar, selecionar o que a matéria produzisse. A “Inteligência” de Anaxágoras quer ter função análoga à do demônio de Maxwell, que conseguia, graças a uma filtragem de moléculas lentas, desmentir a irreversibilidade térmica. Ouçamos o que diz Santo Tomás a respeito da idéia de Anaxágoras: Santo Tomás: “... mas isso não se pode sustentar, por duas razões. Primeiro porque já provamos que a própria matéria foi criada por Deus, e por conseqüência, se alguma distinção vem da matéria, mesmo assim deve ser referida a uma causa mais alta. E segundo porque a matéria é ordenada para a forma, e não inversamente, e como a distinção das coisas se faz pelas formas que lhe são próprias, essa distinção não se pode explicar pela matéria; ao contrário, é preciso dizer que as disposições variadas foram criadas na matéria a fim de que ela possa receber formas diversas.” “Outros atribuíram a distinção das coisas a agentes secundários. Para Avicena, por exemplo, Deus, tomando consciência de si mesmo, produziu a Inteligência Primeira que, pelo próprio fato de não ser sua existência, é necessariamente composta de potência e ato, como se verá adiante. Essa primeira inteligência, na medida que conhece a Causa Primeira, produz a Inteligência Segunda; e na medida em que ela se conhece a si mesma como estando em potência, produz o corpo do céu, causa do movimento, e na medida em que se conhece em ato, produz a alma do céu”. Mas isto não se pode sustentar, por duas razões. Primeiro, nós vimos que só Deus pode criar, e por conseguinte só pode ter Deus por autor o que se produz por via de criação. É o caso dos seres estranhos à geração e à corrupção [1]. Além disso, em tal hipótese, a universalidade dos seres não proviria de uma intenção do primeiro Agente, mas do concurso duma pluralidade de causas agentes, e é isto que dizemos vir do acaso. Concluiríamos assim que a perfeição do universo, que se funda na diversidade de seres, seria fruto do acaso, o que é impossível”. “É preciso então, dizer que a distinção das coisas e sua multidão provêm da intenção do primeiro agente, que é Deus. Deus deu ser às coisas por sua bondade, que ele quer nelas comunicar e representar. Já que uma só criatura não bastava, produziu múltiplas e diversas, a fim de que o que falta a uma para representar a divina bondade seja por outra suprida. Assim, a bondade que em Deus é simples e uma, nas criaturas é múltipla e fracionada. De tal sorte que o universo inteiro participa e representa a bondade divina mais perfeitamente do que uma só criatura. E é por isso, por ser a distinção das coisas causada pela sabedoria divina, que Moisés atribui ao Verbo de Deus, concepção de sua Sabedoria. Lê-se no capítulo I do Gênesis: “Deus disse: que a luz seja. E Ele separou a luz das trevas”. (idem)

A variedade das coisas criadas é assim o reflexo que a criatura pode proporcionar da simplicidade de Deus. E esse reflexo não surgiu, digamos assim, por via de conseqüência, como se dos próprios seres nascesse tal virtude. Como Santo Tomás assinala, essa diversidade e esse modo de chamar a si esta criação, que por assim dizer Ele projeta longe de si, estavam na intenção do primeiro Agente.

Ainda o Primeiro Degrau Poderíamos, para maior clareza, agrupar os diversos seres do primeiro degrau de nossa escala no que chamaríamos de quadros de dispersão por caracterizarem eles a crescente possibilidade de os elementos naturais se combinarem entre si. No primeiro quadro de dispersão encontramos os elementos químicos: hidrogênio, hélio, lítio, boro, centúrio... Sabemos que são mais de cem os elementos conhecidos e que diferem entre si pelo número crescente dos elétrons e dos equivalente prótons nucleares, ou seja, pela diferença de peso atômico principalmente. Varia neles a quantidade: estado físico, aspecto, cor, densidade, gosto, cheiro, e principalmente varia o comportamento das substâncias ao longo da escala dos pesos atômicos. Os diversos elementos terão maior ou menor capacidade combinatória segundo o estado de sua última órbita de elétrons. Assim, o hidrogênio tem uma capacidade de combinações só menor que a do carbono. Ele perfaz mais de 90% da massa total do universo. Ao contrário, o hélio é raro e refratário, com sua órbita ocupada por dois elétrons enquanto o hidrogênio só tem um. Acrescentemos um elétron e o correlato próton e encontraremos no lítio um metal de extrema leveza e com grande facilidade em se oxidar. Já o Néon, tendo preenchido a segundo órbita, que no lítio é incompleta, será um gás inerte e fechado sobre si mesmo. Pulemos até o carbono, com quatro elétrons na sua camada exterior. Sua disposição combinatória é incomparável. Para dar uma pequena idéia de tal sociabilidade química, basta lembrar que o lítio, o berílio e o flúor só formam combinação com átomos de hidrogênio. O oxigênio tem dois compostos, o boro e o nitrogênio têm sete. O carbono tem mais de dois mil compostos com o hidrogênio. Nosso primeiro quadro de dispersão abre-se assim, como um leque que acrescenta uma coleção progressiva na razão aproximada de 1 para 100. Todos nós sabemos que na realidade os corpos físicos das substâncias simples não são formados de átomos isolados e sim de átomos agrupados em moléculas, que assim constituem a menor porção do corpo dotada da mesma composição, ou seja, de átomos iguais. O segundo quadro de dispersão será formado pelas combinações, isto é, pelas substâncias resultantes das trocas recíprocas dos átomos das diferentes substâncias simples. Este resultado, chamado substância composta, terá sua molécula formada de átomos desiguais. Assim é que o hidrogênio e oxigênio formam a água; o cloro combinado com o sódio forma o sal de cozinha. E daqui por diante o leitor facilmente imaginará a variedade possível de combinações. Não contando os compostos de Carbono que merecem um quadro à parte, passam de dez mil os compostos possíveis e aqui temos neste segundo quadro, a razão de 100 para mil. O quadro de compostos até aqui considerados pertence à categoria das chamadas substâncias inorgânicas. A partir da síntese da uréia, realizada em 1828 pelo químico alemão Wohler, a chamada

química orgânica alcançou avanços espantosos. Este feito, realizado pela reação térmica de uma substância inorgância, o cianato de amônia, e sobretudo os trabalhos de Liebig e Berthelot levaram o número de compostos orgânicos conhecidos a mais de um milhão. É o terceiro quadro de dispersão. Não somente constatamos aqui a grande facilidade e diversidade de combinações dos compostos orgânicos, como também admiramos a complexidade dos imensos edifícios moleculares com milhares de átomos, perto dos quais a molécula de cloreto de sódio faria figura de um tijolo ao lado do Empire State Building. Já o quarto e último quadro de dispersão dos seres inanimados será formado pelas misturas várias de todas as substâncias homogêneas em várias proporções. É o caso das amostragens brutas da natureza. Um punhado de terra, um seixo, um graveto, uma pétala de rosa realizam um prodígio de mistura de substâncias diversas. Se nos laboratórios encontram-se substâncias de apurada homogeneidade, cá fora o regime é o da mistura, ou melhor, é dos aglomerados, com formas acidentais e resultantes de cruzamentos acidentais nos itinerários das coisas. Os geólogos procuram nas rochas certos elementos que as caracterizem, que as diferenciem, que as “especifiquem” a seu modo, mas uma rocha não passa de um amontoado sem regra, ou com umas poucas regras que só funcionam depois do encontro acidental. E o planeta inteiro, e o sol e as galáxias outra coisa não são. E aqui neste quarto quadro de variedades e dispersões falta-nos o critério, escapa-nos o cálculo, e o leque dos seres se abre numa prodigiosa variedade. Como passar daí para o degrau seguinte? Ora, o degrau seguinte é o ser vivo vegetal, ou seja, dotado já de uma perfeição ontológica inexplicável. Já vimos que essa perfeição ontológica faz do ser vivo um ser uno. Vimos que esta unidade formal segue um curso oposto ao da matéria inerte, que tem tendência a se desagregar, a se decompor. É a lei da entropia crescente. Vemos agora por esses quadros de dispersão, que um novo abismo separa o não vivo do vegetal. Aquele se dispersa, se combina, varia, mistura-se. Este é uno, fecha-se, se preserva, é sempre o mesmo. Mas na verdade há um só abismo nesta descontinuidade da criação. O que fizemos foi apenas iluminá-lo sob dois ângulos diferentes. Primeiro, quanto à tendência energética de cada elemento em si mesmo. Agora, quanto às interações destes mesmos elementos com vizinhos: sua sociabilidade. E se quisermos arrematar esta descontinuidade e fechar este tópico devemos concluir de novo que só uma causa rica da nova perfeição seria capaz de atravessar o abismo. Só um ser possuindo a vida por excelência poderia comunicar à matéria uma tal ruptura com suas tendências inatas.

Operatio Sequitur Esse Em termos de probabilidade, o ser vivo é um escândalo. Se quiséssemos calcular suas chances a partir da idéia do puro acaso, chegaríamos a números completamente loucos. Lecomte de Nouy, reagindo contra a filosofia do probabilismo, e valendo-se de cálculos feitos por C. E. Guye “Les Frontières de la Physique et de la Biologie”, Ed. Hermann et Cie. mostra que uma simples molécula de proteína, dotada de um grau de asimetria igual a 0,9 e constituída (para simplificar os cálculos) de 2.000 átomos de duas espécies, tem uma probabilidade de surgir, por acaso, espantosamente pequena. Lecomte de Nouy — “Com efeito, se supomos quinhentos trilhões de jogadas por segundos — o que corresponde à ordem das periodicidades luminosas — acha-se que o tempo necessário para que se forme, em média, uma molécula semelhante de dissemetria igual a 0,9 num volume material igual ao do globo terrestre, é de cerca de 10243 anos. Lembremos que a idade da Terra, a partir do começo de seu

resfriamento, é certamente inferior 2x109 anos, e observemos que este “acidente” teve de ocorrer forçosamente no primeiro bilhão de anos, pois tudo indica que a vida existe no globo há mais de um bilhão de anos” (“L’Homme Devant la Science”, Flammarion, 1956, pg. 137 ss). Neste ponto da discussão tudo é favorável para o defensor do criacionismo; e tudo parece extremamente desfavorável aos materialistas que queriam ser rigorosamente coerentes. O rendimento apologético que se pode tirar desses números de fantásticas improbabilidades de coisas que todavia nasceram e estão diante de nós, sem falar no que está dentro de nós, é tão grande que deveria despertar desconfiança. Pobre quando vê muita esmola desconfia... E na verdade, nós somos pobres na visão das coisas espirituais, e paupérrimos na evidência de Deus. É bem verdade que desde o nível do senso comum o homem sempre teve a crença teísta; mas é também verdade que a demonstração cabal da existência de Deus constitui o mais alto e difícil problema metafísico. A maior parte dos pensadores e filósofos de outras escolas não hesita em negar valor apodítico às famosas Cinco Vias de São Tomás, e por aí se vê que, ressalva feita da certeza sobrenatural da Fé, nós somos efetivamente míopes, quase cegos para as coisas espirituais. Nossos “olhos de coruja”, como já dizia Aristóteles, são proporcionados para a meia luz, ou para a penumbra do fenômeno sensível. Em termos filosóficos, o objeto conatural da inteligência humana é o inteligível das coisas sensíveis. E é por isto, torno a dizer, que devemos desconfiar da apologética clara e convincente demais. No caso vertente Lecomte de Nouy reage contra o materialismo probabilístico, com argumentos do materialismo probabilístico. Seu raciocínio será bom “ad hominem”, mas não é bom em si mesmo, e sobretudo não é bom para deixar, como única e última reserva para o problema da origem da vida, o milagre puro, a criação sem nenhum contexto do universo já criado. Em outras palavras, a argumentação probabilística nos acua num criacionismo maravilhosamente incoerente nas partes. Jules Charles, no seu excelente opúsculo da coleção “Que sais-je” que citamos atrás, viu muito bem o defeito das “simplificações” dos cálculos de Guye, usados por Nouy: Jules Charles — “Nós pensamos que esta conclusão, a impossibilidade do surgimento da vida por acaso, é exata; mas temos o direito e até o dever de perguntar se essas bolas pretas e brancas podem ser comparadas aos átomos. É preciso não esquecer que os átomos têm valências desiguais e nunca passam indiferentes perto dos outros” (op. cit. Pg. 69). Mais exatamente, o que os físicos costumam esquecer mais depressa do que os químicos, e o que Lecomte de Nouy também esqueceu para rebater os físicos com suas próprias armas, não é apenas a “valência”, não é a maior ou menor “stickness” desta ou daquela molécula, é a forma, princípio de operação dos átomos, das moléculas, e de todos os seres corpóreos em todas as escalas. Nas experiências das duas câmaras de gases com uma comunicação, onde a probabilidade de assimetria é praticamente infinita, ainda podemos comparar as moléculas rápidas e lentas, as bolas brancas e pretas em agitação absolutamente aleatória; mas aí mesmo é preciso ter consciência da quase abstração, do esquecimento-limite em que se tem a forma, a natureza e as inclinações dos átomos. “Operatio sequitur esse”. O ser opera segundo sua natureza ou segundo sua forma, já que no composto corpóreo é na forma que se encontra o princípio de sua operação. Por onde se vê que todo o

monismo materialista, que está subjacente à filosofia da natureza dos cientistas modernos, é uma escamoteação semiconsciente, ou uma “tricherie” do mal. O jogo das bolas brancas e pretas em regime de pura “randomness” é um ente de razão, ou um jogo de espírito, que corresponde ao mais profundo mergulho que a inteligência pode fazer na direção da matéria. Ou é um modelo limite sem correspondência ontológica com o real. No mundo real, em qualquer milímetro cúbico de espaço do universo, o que temos sempre é uma composição de acasos e necessidades: as coisas operam segundo suas inclinações, e nesta linha percorrem itinerários de causalidade; mas também as coisas se cruzam, se interceptam, se chocam, se magoam, sem que tais intercessões das linhas de causalidade sejam exigidas por esta ou aquela natureza. É conhecido o exemplo que dá Aristóteles: um homem que morava perto de um rio e de uma estrada come comida salgada, esgotando a provisão de água, vai se abastecer no rio; uma quadrilha de salteadores que passava, mata-o para roubar-lhe as roupas e os utensílios. Será lícito dizer que o sal da comida foi a causa da morte? Há lineamento de causa e efeito entre o sal e a sede, entre a sede e o ato de ir ao rio; há linha causal entre o ato de os salteadores verem o homem e de o matarem; há linha de causalidade entre a facada e a morte. E assim por diante. Mas cada uma destas linhas de leis necessárias se cruza com outras, estando tal cruzamento desligado de ambas, como cruzamento e como efeito. A imagem da intercessão é fraca, porque duas linhas que se cruzam têm um ponto comum. No caso das linhas de causalidade o ponto de encontro não pertence, como tal, a nenhuma das linhas. É um acaso que só terá causa na Causa Primeira; mas é preciso acrescentar que, a partir desse acaso, novas linhas de causalidade se articulam na rede geral. Todo o universo é uma trama urdida de necessidades e de acasos, ou de natureza e aventura como diz Maritain. A tentativa de isolar uma das faces do real contingente será sempre malograda. Na história da Ciência moderna começou-se por pretender totalizar leis necessárias, e a Astronomia, ou mais precisamente a Mecânica Celeste, foi o ponto alto, o modelo excelente de tal epistemologia; hoje é a Física corpuscular, a micro-astronomia que nos pretende inculcar um modelo de universo feito somente de acasos. Não acredito que um físico como Boltzmann, Born, Heisenberg, pensem realmente que a realidade cósmica seja essencialmente estatística. Parece-me antes que a atitude mental desses físicos é a de uma renúncia de real realismo. Contentam-se com o jogo remunerador, e vingam-se do senso comum com os resultados espetaculares da técnica. * Tomemos um exemplo de operação ou valência que invalida uma supercósmica improbabilidade. Uma das modernas hipóteses cosmogônicas sugere a explicação da formação dos astros e dos planetas pela condensação da poeira cósmica. Imaginemos o espaço imenso de uma nuvem de poeira cósmica. Se admitirmos que os grãos de poeira se movem desordenadametne, sem nenhuma lei, concluiríamos que a probabilidade de uma assimetria apreciável e fecunda seria desprezível. Quando porém se considera a nuvem de poeira na sua realidade física, somos forçados a admitir algumas decorrências dessa realidade, sem o que estaremos manipulando entes de razão. O primeiro dado que se impõe é a existência da massa, isto é, da capacidade operacional que tem cada grão e que se traduz num campo de gravitação. O menor desequilíbrio que se processar na suposta assimetria igual a 0,5 ou na suposta uniformidade da distribuição de grãos, resultará numa zona de maior densidade. A zona de maior densidade passará a ser imediatamente um centro de atrativos para os grãos de pó vadios, e então a assimetria crescerá provavelmente segundo uma lei parabólica, isto é, crescerá aceleradamente podendo outro episódio da “entourage” interromper ou ajudar o processo de concentração. Verifica-se assim no espaço cósmico a mesma coisa que se verifica no campo econômico: as regiões pobres

tendem a ficar mais pobres, as regiões mais concentradas tendem a se tornar mais concentradas. E isto acontece porque as partículas em jogo não são neutras, não são puramente passivas, mas operam segundo a forma que têm. “Operatio sequitur esse”.

Não há efeito sem causa Não temos uma objeção principal de ordem probabilística a opor aos cientistas que emendam hipóteses em hipóteses com o intuito de mostrar um progresso de crescente multiplicação de formas; não nos opomos à sopa quente progressivamente engrossada dos oceanos da Terra primitiva; nem mesmo nos escandalizamos com o facilitário um pouco excessivo oferecido às moléculas de proteína. Tudo pode ter acontecido aproximadamente como sugerem Prenant, Haldane, Oparin. Note bem o leitor que não nos apegamos demais ao “milagre da improbabilidade” do ser vivo; nem tiramos as subseqüentes reflexões daqueles números que ultrapassam em espaço e tempo as dimensões de um milhão de universos armados, a partir do nosso, em progressão geometria igual à relação entre U1 e o átomo de hidrogênio. Devemos notar de passagem, que a improbabilidade de uma molécula de proteína não é mais espantosamente grande do que a improbabilidade de um próton, ou de um nêutron. Sejam o que forem estas partículas, se existem de algum modo, existem com matéria e forma, e se tentássemos explicar a forma como um acontecimento estatístico surgido de assimetrias dos componentes do corpúsculo, ou melhor, se tentássemos explicar o surgimento da forma pelo lado da matéria, chegaríamos aos mesmos números fantásticos que só significam uma coisa: a pista errada que seguimos. Acabamos de fazer um jogo muito franco, quando poderíamos ficar no deleite da perplexidade dos materialistas. De certo modo vimos em socorro dos probabilistas: não será tão grande assim a improbabilidade das moléculas de proteína ou melhor, não é legítimo calculá-la com aquela simplificação que é uma indevida abstração. Será possível ter idéia da ordem de grandeza de tal improbabilidade? Receio muito que seja impraticável. Mas torno a dizer que não faço nenhuma questão de regatear improbabilidades. Se em lugar de 10-321 chegarmos a uma improbabilidade um trilhão de vezes maior, teríamos 10-309, que está muitíssimo longe de nos consolar. Mas não é nesta direção que contamos confundir definitivamente o pensamento materialista neste problema; é noutra direção, e é com recursos muito mais decisivos, mas também muito mais finos que contamos mostrar que é verdadeiramente milagrosa a aparição da vida no planeta. O que falta de um modo alarmante em toda aquela descrição, mesmo hipotética, da origem da vida, é a noção mais justa e mais profunda de causa. Os cientistas que muito meritoriamente se esfalfam em pesquisar o que terá acontecido na Terra há três ou quatro bilhões de anos, e conseguem organizar uma engenhosa concatenação de hipóteses, de verosimilhança aqui e ali apoiada em alguma experiência famosa, não parecem perceber um equívoco filosófico colossal: eles estão procurando entender a ocorrência feliz de vários fatores que convergem todos para as circunstâncias favoráveis, para a “conditio sine qua non”; e de repente, sem dizer água vai, eles dão um pulo infinito, sim, o pulo que separa as condições favoráveis, ou até as condições indispensáveis, da causa eficiente capaz de produzir a forma em questão. Senão vejamos. Achamos uma razão para o planeta ter tido uma atmosfera de hidrogênio, vapor d’água, metano e amônia, à semelhança da atual de Júpiter, já que a atmosfera de oxigênio e azoto

seria mortal para a formação dos depósitos prévios de proteína; achamos relâmpagos e raios que o cientista Miller mui engenhosamente reproduz no seu laboratório, e com os quais se precipitam nos mares primitivos as primeiras moléculas do grupo dos aminoácidos; engendramos hipóteses para passar do aminoácido para a proteína mil vezes mais complexa; e depois disto inventamos (agora o russo Oparim) a hipótese dos coacervados, que são coágulos ou condensações de matéria orgânica já delimitada, já dotada de unidade quantitativa. E daí pulamos a infinita distância que separa esse aglomerado de um ser misteriosamente, majestosamente centrado numa nova unidade, numa totalidade, numa inaudita perfeição até aqui desconhecida no universo físico. Esse salto que parte da condição, ou até da causa material, para dar a razão de ser de uma forma é uma cambalhota cômica freqüentemente apresentada no circo da cultura moderna. Imaginemos um viajante que, visitando as regiões polares, encontrasse lá um iglu, e lá dentro vestígios de peixe e de fogo, além de outros objetos. Como explicaria ele, com o método materialista, aquela construção? Muito simplesmente pela matéria de que é feita, e que não falta nas cercanias. O gelo, o vento, as chuvas, a rotação da Terra, e mais dez ou doze fenômenos explicam o iglu sem necessidade de lembrar o esquimó. Creio que seria um pouco mais difícil explicar a catedral de Chartres pela existência de pedra a distâncias acessíveis. A natureza, ou se quiserem, a Natureza é mestra em fazer amontoados com formas bizarras. A nossa Guanabara é protegida por um gigante de pedra, que tem o nariz e queixo perto do Andaraí e pés na entrada da barra. Mil fenômenos convergiram nessa “forma acidental”. O coacervado de Oparin, por mais engenhoso que seja, pertence à ordem dos amontoados, mais múltiplo do que uno; ora, o ser vivo é mais do que um múltiplo. Sim, a pesquisa do primeiro vivo foi feita, nessa linha de hipóteses que chega ao coacervado de Oparin, na direção de uma reunião de matéria de complexidade crescente; diríamos, como adiante repetiremos, que a pesquisa foi feita na direção da complexidade, ou então, na direção de uma dispersão de elementos quando muito trazidos para uma unidade de volume. Temos ali, protegidos por películas de matéria coloidal, todos os ingredientes da vida. Mas a vida nos traz uma perfeição nova que nenhum daqueles ingredientes possui; não apenas uma qualidade nova, mas um nível de ser jamais antes realizado. O ser vivo é um todo em que cada parte está interessada na perfeição do todo; o ser vivo é complexo, sem dúvida, é riquíssimo de elementos, mas só é vivo enquanto é capaz de manter uma atividade imanente que assegure a vitória da unidade sobre a diversidade. Se nos permitem, diríamos que antes mesmo de possuir a ciência sensível, ainda no vegetal cego, surdo e insensível, antes portanto da ciência, o ser vivo inaugura um modo de ser que se caracteriza por uma consciência de si. Ora, esta perfeição é nova, surpreendentemente nova. É descontínua e irredutível. Cabe pois a indagação: De onde veio? A idéia de que surgiu por gradação muito lenta não explica coisa nenhuma, já que não é uma complexidade, uma soma que nos espanta, é uma unidade que, para ser feita, exige uma descontinuidade, e portanto uma ação instantânea. Se eu chegar ao delírio de querer fazer um gato, e no delírio mantiver intacto um mínimo de bom senso, afastarei resolutamente a idéia de fazer o meu gato aos poucos; terei de me entregar ao desatino de querer fazê-lo de uma só vez. De onde vem a perfeição nova do ser vivo? A resposta trivial que os livros dão é que veio do encontro feliz de vários fatores e da lenta elaboração desse encontro. O leitor inteligente perceberá que minha pergunta não foi respondida. Responderam-me, sim, que o ser vivo se originou dentro de tais e quais circunstâncias pelo encontro feliz de vários e numerosos fatores; mas não me disseram de onde vem a “perfeição nova” do ser vivo, ou de onde lhe foi comunicado esse novo modo de ser.

Vejam bem: o ser vivo, que a experiência abundantemente nos proporciona, é o modelo excelente de causalidade com todas as grandes exigências de tal convicção: só o ser vivo produz o ser vivo. Ainda mais, dentro de pequenas flutuações genéticas, que serão talvez as gradações que explicam as lentas transformações da espécie, a geração de vivo por vivo se enquadra dentro dos limites da espécie: só um cão gera outro cão, só um homem gera um homem. E ainda mais, dentro dos quadros da espécie, como a ciência moderna nos revela, há ainda uma transmissão de forma mais estrita: o código genético pelo qual, por assim dizer, o pai transmite ao filho, como primeira lição, o modo de estruturar suas proteínas. A vida aparece assim como o domínio exuberante da causalidade eficiente e da causalidade formal. E ainda não falamos da causa final, na perigosíssima idéia que o materialista terá de evitar cuidadosamente para não encontrar algum ser transcendente na curva do caminho. Como tão bem assinala Dominique Dubarle O.P., a noção do saber, isto é, do conhecimento ordenado e mais alto do que o conhecimento espontâneo do senso comum, está mais diretamente ligado à idéia da causalidade: o saber é um conhecimento pelas causas, e mais precisamente pela causa adequada. Em Aristóteles, II Phys, cap. 3, 194b, 18-20 lemos: “Nós não cremos saber algo antes de haver apreendido o porque de cada coisa em detalhe, o que é, a bem dizer, o mesmo que conhecer a causa adequada”. É o próprio dominicano acima referido que traduz o grego την πρωτηυ αιιαυ por “causa adequada”. Em cada nível do saber impera, por assim dizer, uma causa adequada. Na matemática tudo se reduz à causalidade formal: os seres de razão são concebidos como puras formas despojadas da materialidade mas não despojadas da categoria quantitativa que só tem existência extramental nos seres materiais. Como já assinalamos em outros lugares, a matemática, sobretudo em suas formas mais modernas, tem duas faces, uma que corresponde à clássica definição da ciência do “ens quantum”, e outra que mais se configura como linguagem, lógica de símbolos esvaziados de sua procedência genética por via de abstração. Nas ciências físicas predomina ainda a causa formal na medida em que ela se matematiza; não apenas como quem usa o funcionamento matemático, mas como quem inverte seus critérios. A física matemática dos tempos modernos constitui uma realização epistemológica desconhecida dos antigos. É tão profunda a assimilação da alma matemática da física-matemática moderna que tornou possível a descoberta de um ente físico-matemático, o positron, um elétron positivo, por meios matemáticos. A descoberta de Dirac é, nesse sentido especial que aqui abordamos, profundamente diferente da famosa descoberta de Netuno por Le Verrier. É bem verdade que Le Verrier não saiu de seu escritório e não chegou a colar o olho à ocular de um telescópio; descobriu Netuno pelo cálculo, mas por um cálculo de perturbações físicas observadas na órbita de Urano. A descoberta de Dirac foi puramente matemática, e só posteriormente traduzida em conveniência física. Nas ciências físicas propriamente ditas impera a idéia de movimento, de devenir, de transformação, e por conseguinte impera, queiram ou não queiram seus praticantes, a idéia de causa eficiente. Nas ciências da vida, enquanto atendemos mais às transformações, ou enquanto não vemos o ser vivo em todo o seu fulgor, ainda predomina a causa adequada produtiva, geradora; mas logo emerge com singular realce a majestosa causa final.

Metafisicamente, sabemos que “tudo o que age, age em vista de um fim”. Mas o mundo físico inanimado é por demais obscuro em seus processos para o discernimento da finalidade. O espetáculo do universo físico, dos átomos às galáxias, nos parece desprovido de propósito. Ordenado será, se quiserem, seus mecanismos de órbitas, massas, valências, mas ordenado para que? A fenomenologia no nível do ser inanimado obscurece a idéia de causa e obscurece especialmente a causa final. No ser vivo, ao contrário, além da causa eficiente de que falamos atrás, surge a causa final. E de dois modos se vê o finalismo, a presença do “para que” no ser vivo. Primeiro assinalaríamos o finalismo funcional que explica os órgãos à maneira que explicamos os artefatos. Garrigou-Lagrange O.P. (Le Sens Comum, La Philosophie et l’étre; Desclée, Paris) pergunta ao senso comum: Para que temos olhos? E o senso comum lhe responde: Para ver. E aqui o verdadeiro e elaborado saber, que é o conhecimento pelas causas, confirma rigorosamente o que diz o senso comum, obrigando o afinalista a esta bisonha sentença: Não. Nós não temos olhos para ver, nós vemos porque temos olhos. Prefiro exemplificar com o ouvido que nos proporciona um maravilhoso exemplo de finalidade funcional. Na audição do homem e dos animais superiores há um pequeno problema de engenharia e outro de tecnologia. Por uma razão que diríamos tecnológica, a parte interna do ouvido, chamada órgão de Corti recebe as vibrações do som em meio líquido. A energia sonora tem de passar do meio aéreo para o meio líquido; e para realizar essa transmissão com o máximo de rendimento, a energia tem de ser configurada com outra impedância. Expliquemo-nos: a energia da vibração é um produto de força F por velocidade V, mas o mesmo produto, e portanto a mesma energia pode ser realizada com uma infinidade de fatores diferentes. Suponhamos que a energia de 10 unidade seja o produto F x V; é claro que podemos ter F=1 e V=10, F=2 e V=5, ou até F= 1.000 e V= 0,01. Todos os produtos são iguais. Chama-se impedância acústica, em cada caso, a relação F/V. A experiência acústica mostra que a impedância do ar é muito menor do que a do líquido do ouvido interno. Digamos que seja 100 vezes menor, de onde se segue que a força F deve ser 10 vezes maior e a velocidade V 10 vezes menor, para que a boa transmissão de energia do meio externo para o ouvido interno. E como poderemos realizar praticamente esse ajuste de forças e velocidades, ou melhor, esse ajuste de impedância? Qualquer estudante de física responderá: com uma alavanca calculada com aquela redução de velocidade 10:1 e aumento de força 1:10. Ora, é exatamente essa alavanca que encontramos no ouvido médio. Poderá alguém mostrar razoavelmente o conteúdo inteligível de tal fato, deixando-o explicado por uma série de acasos filtrados pela sobrevivência do mais apto? Mas não é só nessas finalidades de instrumentos que se vê, como acima dissemos, o fulgor da causa final. A principal feição do ser vivo, como atrás dissemos, é a inteireza, a unidade que se traduz numa espécie de consciência vital, análoga inferior da consciência racional. O ser vivo tem em sua imanência, em todas as suas atividades, uma experiência de si mesmo que se traduz imediatamente num comportamento de defesa orgânica (e num correlato comportamento de agressão) que pode ser visto como uma inclinação, uma procura veemente de seu próprio bem. Ora, esse bem próprio, esse

bem intrínseco que movimenta todo um feérico processo de defesas, de astúcias, de táticas, tem evidentemente caráter de fim. Creio que foi Gustave Thibon quem disse que o homem é um ser que se valoriza. Podemos estender a definição até a ameba: o ser vivo se valoriza com essa consciência vital, na proporção em que o homem se valorizará com a consciência racional. Acho melhor dizer que o ser vivo é o que se finaliza de um modo ostensivo e fulgurante, e nisto ele se separa infinitamente do inanimado. São conhecidas as perfeições com que os vivos defendem a integridade do indivíduo e a bandeira genética da espécie que poderia ter, contra um fundo azul celeste, o emblema de cromossomos, e de moléculas de proteínas. A “inteligência” das flores, descontado todo o entusiasmo apologético de Maeterlinck, ainda é bastante para nos espantar. De onde vem a astúcia da planta que fabricou cápsulas de petardos que explodem arremessando o mais longe possível as sementes? De onde a idéia de prender a semente a um paraquedas para deixar que o vento a leve, “menina e moça a longes terras...” Um dos recursos de que se vale instintivamente o materialismo é o de deslocar a aptidão para a espécie, ou melhor, para o Gênio da Espécie, e assim, pela porta da mitologia foge-se à teologia que já começa a se impor

Notas [*] Os fragmentos aqui apresentados não estão em sua ordem original. Diante da impossibilidade de reproduzir aqui o livro integralmente, nos vimos obrigados, por razões didáticas, a adotar esta disposição da argumentação

Cristianismo e humanismo Em artigo intitulado Humanismo Cristão, e publicado no GLOBO de 23-11-1975, o Ministro Júlio Barata referiu-se a meu nome e a minha obra em termos extremamente lisonjeiros que exigem meu agradecimento, mas que não me podem dispensar de mais algumas palavras de penosas retificações. Foi nos idos de 1952 que conheci, de longe, o professor Júlio Barata, quando tive o prazer de assistir à sua aula e defesa de tese no concurso para a cátedra de Filosofia do Colégio Pedro II. Era sem sombra de dúvida o mais competente dos candidatos, mas a banca examinadora, com uma grosseira e escandalosa injustiça, deu as mais altas notas a um Centauro, que da Filosofia só conhece os honorários. Embora em campos políticos opostos, fiz questão de homenagear o injustiçado, com meu inútil protesto publicado dias depois nas colunas dos jornais. Trago à lembrança do professor Júlio Barata este remoto testemunho para reforçar a cordialidade e o respeito em que coloco hoje meus agradecimentos e minhas inevitáveis discordâncias. Eis a passagem do artigo em que o Ministro Júlio Barata me coloca ao lado de Maritain numa homenagem lisonjeira que, entretanto, me impõe o dever de uma retificação: “Para esclarecimento do que seja humanismo cristão, nada melhor do que as obras de Jacques Maritain sobre vários aspectos da Filosofia Moral, e, em nossa língua, o livro Dois Amores — Duas Cidades de Gustavo Corção, no qual o grande escritor nos mostra como a praga do nominalismo devastou a seara da Filosofia e confundiu o homem exterior com o homem integral, implantando no ambiente cultural e político a impostura do humanismo marxista e quejandos”. Ora, desde nossos últimos livros e artigos, e desde a fulgurante evidência dos efeitos causados por posições tomadas nos anos 30, e sobretudo depois do que já escrevi no O Século do Nada, tornou-se clara a necessidade de optar entre os autores de Humanismo Integral e Dois Amores — Duas Cidades. São dois livros que se opõem no que têm de principal, e por isto são inconciliáveis nas questões colocadas no elevado plano em que se estudam as relações entre a Igreja e o Mundo, e o sentido da História visto não em termos do êxito temporal humano, mas em termos das relações da História com a sorte do homem. Escrevi Dois Amores — Duas Cidades não somente para situar na infiltração nominalista toda a causa da crise do cristianismo, mas principalmente para mostrar que, no apogeu do milagre da Idade Média, uma misteriosa reprise do pecado original levou os homens da cristandade a um levante coletivo, mais gravemente caracterizado pelo “humanismo” do que pela reforma. Com apoio nas mais luminosas lições da IIa IIae de Santo Tomás, esbocei um pequeno tratado sobre o amor-próprio, sem o qual nada se entende desta civilização do homem exterior que nega a praticabilidade do cristianismo em nossos tempos, sem a interposição de um humanismo que amoleça as durezas da doutrina cristã e arredonde as arestas da Cruz. Por incrível que pareça, Jacques Maritain no Humanismo Integral começa por atestar a impraticabilidade do tomismo nos problemas modernos. Releia, leitor, o Avant-Propos dessa obra que em 1936 causou pasmo no mundo católico. Mas releia-o com a inteligência da Fé e com a amarga ciência da moderna experiência. Eis a estranha declaração feita em 1936 pelo mesmo filósofo que seis anos antes escrevia Le Docteur Angélique, onde todo o capítulo III é consagrado para provar que é sempre Santo Tomás o doutor dos tempos modernos. Mas agora estamos em 1936, que, em seu admirável Notre Avant-Guerre, Robert Brasillac denuncia como ano de loucuras e disparates. E na convivência de Emmanuel Mounier, com quem se corresponde durante dez anos, Jacques Maritain escreve no Avant-Propos de Humanismo Integral estas linhas que todos nós engolimos sem sentir seu esquisito sabor: “Nous ne prétendons pas engager Saint Thomas lui-même dans des débats ou la plupart des problèmes se présentent d’une façon nouvelle. Nous n’engageons que nous, encore que nous auyons conscience d’avoir puisé notre inspiration et nos principes aux sources vives de sa doctrine et de son espirit”.

Ora, apesar da reserva das últimas linhas, o que fica patente é que Maritain achou necessário despirse da armadura de tomista, ou de católico como diria Henry Bars, para tratar “d’une façon nouvelle” os problemas dos “Tempos Modernos”. Santo Tomás é assim declarado inadequado para tais estudos. Maritain não quer engajar “Saint Thomas lui-même” (!), e depois escrever essa frase sem sentir a chocante impropriedade do termo lui-même, que invoca não a obra, mas a pessoa de um santo morto há sete séculos, diz que nesta obra de “recherches” só se engaja a si mesmo. Sem a menor intenção de equacionar os valores das obras, lembro que escrevi Dois Amores — Duas Cidades para desenvolver a idéia de Santo Agostinho desenvolvida e utilizada por Santo Tomás, pela qual o vivere secundum carnem de São Paulo deve ser entendido como vivere secundum seipsum, coisa que constitui a essência do amor-próprio, fonte e origem de todos os pecados. O grande Pe. Berto, morto há dois ou três anos, deixou a melhor e mais arrasadora crítica contra Teilhard de Chardin na observação de seu isolacionismo. Todas as suas moderníssimas recherches, ele as faz sem engajar a Companhia de Jesus, sem citar um mestre, um doutor, um irmão. E note-se que o admirável Pe. Berto escreveu estas linhas contra a impiedade de Teilhard de Chardin, para contrasta-la com a fidelidade de Jacques Maritain, que, vindo de caminhos tão tortuosos, senta-se aos pés de Santo Tomás. Na época em que escrevi Dois Amores — Duas Cidades não tive clara consciência de estar escrevendo um livro oposto ao Humanismo Integral de Maritain. Hoje a evidência é solar e dolorosa. Maritain, dizendo em seu Avant-Propos, que coloca sua obra no plano da filosofia prática, na verdade despoja a matéria tratada de toda a seiva Mística e teológica, e com isto tenta afirmar a praticabilidade de um mundo que se afastou de Deus graças a um humanismo que é o pseudônimo do grande pecado desta civilização apóstata. Em muitos pontos nossas obras se opõem, porque não faço outra coisa todos os dias, senão reafirmar minha confiança no cristianismo dos Santos, dos santos papas, santos doutores, santos mártires — no cristianismo de Jesus, Maria e José. E a par dessa renovada e reafirmada confiança no cristianismo da Cruz e do Sangue, monotonamente reafirmo minha aversão por essa civilização que se gloria no homem exterior. E a todas as divergências que marcam as duas obras e os dois autores em questão, não posso deixar de assinalar uma curiosa e significativa oposição. Enquanto minha obscura obra termina numa glorificação do Papa São Pio X, e até transcreve grande parte da admirável encíclica que encontrei no Antimoderne de Maritain de 1922, a sensacional obra de Jacques Maritain, que fez sucesso em 1936 e em cujas páginas seria esdrúxula a simples menção do nome de Pio X, estava fadada à glória de ser traduzida pelo Cardeal Montini e tida como livro de cabeceira de Paulo VI. (O Globo, 17/01/76)

Existirá a matéria? O leitor que não costuma freqüentar com assiduidade os textos deixados pelos filósofos, embora já tenha descoberto que esse coro de vozes é o mais discordante e desafinado que jamais se ouviu, e embora já tenha notado que não há coisa que algum deles não tenha afirmado ou negado, talvez não saiba que houve um filósofo para provar que a matéria não existe. Pois houve. Nasceu em 1685, morreu em 1753, foi inglês e chamou-se George Berkeley.

No seu The Principles of Human Knowledge, seguindo a tradição empirista de seu meio, Berkeley levaa até as suas últimas conseqüências. Contestando a distinção traçada por Locke entre as duas espécies de qualidades sensíveis, distinção que de certo modo se assemelhava à da tradição aristotélica-tomista, Berkeley diz: “Alguns autores fazem uma distinção entre as qualidades primárias e as secundárias. Por primárias entendem eles a extensão, a figura, o movimento, a solidez ou impenetrabilidade e o número; por secundárias designam todas as outras qualidades sensíveis tais como gosto, cor, timbre, etc. As idéias que temos sobre essas últimas são reconhecidas como não tendo semelhança alguma com qualquer coisa que exista fora da mente; mas esses mesmos autores consideram as qualidades primárias como modelos ou imagens de coisas que existem sem a mente, numa substância não pensante que eles chamam Matéria. Por Matéria, então, devemos entender uma substância inerte, desprovida de percepção (senseless) na qual a extensão, a figura e movimento atualmente existem. Mas é evidente – continua Berkeley – pelo que já mostramos, que extensão, figura e movimento são somente idéias existentes na mente e que uma idéia só pode ser semelhante a outra idéia, e que portanto nem elas nem os seus arquétipos podem existir em uma substância desprovida de percepção. Logo, é claro que a própria noção do que chamam Matéria ou Substância Corpórea envolve nela mesma uma contradição.” Como se vê, Berkeley parece negar a existência daquilo que todos entendiam por Matéria; e é fácil imaginar a celeuma levantada no século XVIII que justamente pode ser imputado como o tempo em que o materialismo ganhava consistência e entusiasmo na cultura ocidental. O doutor Johnson, saindo da Igreja após um ofício dominical, conversava sobre assuntos filosóficos com Boswell, que acreditava, pessoalmente, na existência da matéria mas confessava que não sabia como provar sua existência. “I shall never forget – diz-nos Boswell – the alacrity with which Johnson answered, striking his foot with mighty force against a large stone, till he rebounded from it, I REFUTE IT THUS”. O doutor Johson repetia, a dois mil anos de distância, a mesma sensata indignação de um grego quando Zenon pretendia provar que não existia o movimento. Mais severo ainda foi o médico conhecido de um amigo de Berkeley, chamado J. Percivel, que mandou dizer ao filósofo que ele certamente estava doido e era urgente que tomasse remédios. Hoje recomendaríamos choques elétricos até que o filósofo desse sinais daquela sadia alacridade do doutor Johnson; ou então daríamos ao filósofo uma cátedra para ensinar aos meninos do curso secundário... Mas agora creio que vou inquietar o meu leitor habitual dizendo que concordo com a conclusão de Berkeley. Não acompanho os passos de seu raciocínio nem tenho suas premissas, mas como modestíssimo ouvinte da tradição aristotélico-tomista, digo também que não existe matéria, se por matéria devo pensar uma substância extensa, móvel, etc. Quem concebia a Matéria como um ser atualizado (em ato), como uma espécie de encarnação da extensão, eram os filósofos da nova civilização: Descartes, Hobbes, Locke; e era contra eles que Berkeley proclamava aos quatro ventos a sua doutrina imaterialista. O aspecto curioso desse debate é a concordância profunda que existe entre os que discordam tão asperamente, ou é a discordância profunda dos que concordam nas conclusões. Berkeley sentia o aspecto grosseiro da concepção mecanicista, que não repugnou ao genial e piedoso Descartes, e tentou corrigi-la. Não parece que tenha escrito obra para demonstrar, pela redução ao absurdo, as premissas nominalistas e empiristas. Berkeley parece querer realmente corrigir a filosofia de Locke, mas nessa tentativa usa os mesmos critérios empiristas, o mesmo descaso pela esquecida tradição escolástica, e vai parar comicamente no extremo oposto, dando ao bravo velho mundo inglês do século dezoito o espetáculo de um imaterialismo construído com critérios materialistas! Uma das coisas mais difíceis, no panorama geral da história da filosofia, é saber quem está contra e quem está a favor. Em cada caso é mister determinar bem o ângulo em que este concorda com aquele ou discorda daquele outro. Se tivéssemos aqui um quadro negro eu desenharia a figura que passo a

descrever apelando para a imaginação do leitor. Tracemos um triângulo ABC com a base BC horizontal e o vértice A no topo do quadro. No vértice A escrevamos Aristóteles-Santo Tomás; no vértice B, à esquerda, Berkeley; no vértice C, à direita, Descartes, Hobbes e Locke. O problema a que o diagrama se refere é o da matéria. Temos de um lado os que afirmam a matéria como um ser atualizado na extensão e no movimento, e de outro o que nega a existência de tal ser e por conseguinte a inexistência da matéria. Aristóteles e Santo-Tomás, lá do púlpito em que os colocamos, diriam a Berkeley: -- Tens razão de estares chocado com a conclusão a que chegaram seus colegas, mas não tens razão – e até admiramos que tenhas tido a coragem de dizer tal coisa aos teus concidadãos – quando negas a existência de algum substratum e de alguma semelhança entre a sensação e as qualidades existentes fora da mente. A Descartes, Hobbes e Locke, nossos sábios fariam outro discurso, talvez mais severo: -- Assim não! Atualizais e dais corpo de ser em ato ao que existe como princípio dos seres corpóreos, mas EM POTÊNCIA. Se tiverdes a paciência de reestudar a doutrina da potência e do ato, e a correlata doutrina da matéria e da forma, evitareis a continuação dessa cômica oscilação do pensamento entre dois extremos errados ambos. Na filosofia escolástica, efetivamente, afirma-se que há em todas as substâncias corpóreas dois princípios substanciais, a matéria (matéria-prima) e a forma, o indeterminado e o determinante, o ser em potência e a forma atualizadora. Matéria, aquilo de que são feitos os seres materiais, levando ao mais puro estado esta noção “aquilo de que são feitos”, mas tomando-a como um princípio de ser corpóreo, como uma potência, um quase não ser como diziam Platão e Plotino, essa existe. Voltemos agora ao nosso triângulo. A concorda com B quanto à existência do substratum material, mas discorda vivamente da atualização da extensão substancializada; com “C” a concordância de “A” é mais sutil, mas a discordância mais nítida. Entre si, “B” e “C” concordam e discordam; ou talvez fosse melhor dizer ao contrário, porque o que aparece ao primeiro exame é a discordância. Berkeley diverge dos mecanicistas, dos pais do materialismo moderno, por não ver nenhuma necessidade de distinguir as qualidades sensíveis que Locke chamava de primárias das outras chamadas secundárias. Dava a todas o mesmo tratamento; e como o tratamento das chamadas qualidades primárias era o que condizia bem com a doutrina vigente, ou melhor, com os princípios nominalistas inconscientemente possuídos, que cortam a linha de comunicação entre a inteligência e o ser e que se firmam nesse pessimismo de um divórcio irreconciliável entre o cognoscente e o conhecido, Berkeley se viu compelido a negar a objetividade do substratum material. Uma intuição fina lhe dizia que o modelo da extensão substancializada e atualizada era grosseiro demais; não possuindo porém os instrumentos mentais da tradição escolástica, confinada nos seminários e aí mesmo maltratada, o bravo inglês não teve outro remédio senão negar a objetividade do que em nossa mente é movimento, extensão, etc., sem todavia negar a existência do mundo exterior, notem bem. O que Berkeley negava, como todo bom descendente de Ockam, era a semelhança e a união de conhecimento entre os dois mundos, o da mente e o das coisas. Tracemos no quadro negro imaginário um triângulo simétrico àquele, com a mesma base BC mas com um vértice voltado para baixo, ao qual damos a letra “N”. Assim como o vértice superior simboliza a síntese do que há de verdadeiro em cada um dos outros, o vértice inferior simbolizará a soma eclética, a soma-ajuntamento dos erros de ambos, e sobretudo simbolizará as raízes inconscientes que unem no mesmo fundamental nominalismo as duas filosofias que brotam na história do pensamento com cores complementares. Berkeley, com seu impertinente imaterialismo, é irmão gêmeo de Descartes, de Hobbes, de Locke, e seus antepassados se chamam Demócrito, Lucrécio e Epicuro, e seus descendentes são os materialistas dos séculos dezoito e dezenove. Em filosofia, convém notar, importa mais o critério usado na argumentação do que a conclusão atingida. Usando uma expressão derivada por analogia da teoria da matéria e forma, dizemos que

importa mais o objeto formal do que o material na valorização de uma tese. Nesse sentido, falando com precisão filosófica, e sem nenhuma antipatia pelo inglês George Berkeley, podemos dizer que seu imaterialismo é muito mais materialista do que o hilemorfismo Aristotélico.

(Diário de Notícias, 31 de janeiro de 1960)

Implicações do Evolucionismo O século XIV foi o sombrio e tumultuoso século da peste negra, da guerra de cem anos e da fragorosa ruína da civilização cristã. Nosso bravo século XX, em lugar da sombria nuvem pestífera que pairou cem anos sobre a cristandade agonizante, está sendo flagelado por uma outra nuvem, não menos sombria: a da estupidez satisfeita e otimista. Os físicos, matemáticos, biólogos e astrônomos que operam no nível de saber mais acessível e mais próprio para os trabalhos coletivos, e também para o efeito acumulativo dos resultados, por seus sucessos dificultam a exata apreciação do imenso progresso da burrice humana nas coisas que concernem a vida espiritual. A multiplicação dos meios de informação em prejuízo dos meios de formação permite uma ilusão de saber, que é uma das formas mais impertinentes da tolice. Todo mundo pensa que sabe o que leu nas notícias ou viu na TV. Lendo a ida do homem à Lua, engolindo o fato, o farelo, a cinza, qualquer um se sente participante da coragem dos astronautas, quando na verdade ele não passa de um espectador que, de chinelo e pijama, engole voluptuosamente a informação que em nada eleva a sua inteligência nem purifica a sua vontade. Nessa categoria de ineptos satisfeitos estão os milhões de pessoas que usam palavras filosóficas ou tecnológicas com a tranqüila convicção de que entendeu, e até esgotou todos os meandros do conceito designado por aquele termo. Ontem, por exemplo, ouvi no barbeiro a conversa entre um oficial e um barbeado. Dizia o oficial barbeiro que era evolucionista, provavelmente para com isto dizer que acolhe com sábia benevolência todas as transformações federais, municipais, militares ou religiosas. Porque tudo evolui. O barbeado, ou porque partilhasse a mesma fé, ou porque preferisse não discutir com quem tinha uma navalha à altura de sua carótida, grunhia de tempos em tempos em sinal de aprovação. Mas no termo de sua submissão, sacudindo o casaco e erguendo a cabeça com um olhar satisfeito de soslaio para o espelho, o nosso homem abriu-se: ele também era evolucionista. E ia desenvolver suas convicções quando o barbeiro desdobrou sua toalha ou alva no novo freguês que queria cabelo aparado. Eu também terminava minha dose de tranqüilizante, que é o barbeiro, principalmente quando ele arremata, com uma tesoura carinhosa, os pelos subversivos do pescoço e das orelhas. Na rua voltou-me a idéia do evolucionismo professada em dois tons por dois bravos habitantes do século XX. E pus-me a interpelar barbeiros e barbeados invisíveis e evolucionistas. Saberão vocês todas as implicações, todas as conseqüências, todos os corolários e todas as decorrências da fé tão imprudentemente afiançada e concentrada num vocábulo? Provavelmente o que todos vocês já observaram, com admiração e veneração, é o comesinho e antiquíssimo fenômeno da transmutação das coisas: abertura do grão de semente, surgimento de um caule entre dois cotilédones, alongamento do dito caule e mais tarde a flor, o fruto e em torno desse digno mundo vegetal que se move com a vagareza recomendada por Aristóteles aos reis, o mais quieto e trepidante mundo animal empenhado no entredevoramento. No céu o Sol e a Lua, para os observadores superficiais que não prestam atenção às estrela, também se movem. A Lua muda de fase, mas o movimento dos corpos celestes mais convida a pensar na regularidade do que na evolução. Mas vejam os homens. Ah! Ah! e vejam as mulheres, porque a elas é que se bem se aplica o verbo ver, já que, enquanto nós homens perdemos tempo em catar palavras sábias, elas, na maioria dos casos, contentam-se em serem vistas. E os padres? Em resumo: tudo muda. Será que os evolucionistas do salão de barbeiro imaginam que todas essas variações passam despercebidas ao resto da humanidade? Saberão eles que o evolucionismo, levado às últimas conseqüências, incide não somente sobre as variações de vestidos e penteados de suas esposas, mas também traz uma suspeita sobre a existência delas. Saberão eles que nunca, duas noites seguidas, se deitam ao lado da mesma mulher, como dizia Heráclito, ou, o que ainda é mais inquietante, nunca elas se deitam duas noites ao lado do mesmo homem? Saberá o evolucionista de rua que, a rigor, se quiser ser coerente, deverá deixar sua religião, se é católico, e abordar qualquer outra mais vaporosa? E Deus? É a origem da vida? Nesse ponto bem sei que eles dizem

tranqüilamente que os seres vivos surgiram por evolução. Pronto, que mais é preciso dizer? Mas em que consiste esse processo? Suponhamos a pergunta formulada. A resposta será imediata: o negócio passou-se devagarzinho, devagarzinho, imperceptivelmente, de pai para filho. Com o tempo, o que era terra úmida, virou minhoca. Ou então foi no fundo do mar que aconteceu o primeiro surgimento da vida. Estava eu neste ponto quando uma lembrança obsessiva começou a perseguir-me. Quem foi a pessoa que ainda ontem me dizia quase aos gritos: sou evolucionista! sou evolucionista! o invisível locutor escondia-se, talvez pela astúcia da memória que queria poupar-me o dissabor de mais uma controvérsia nesta idade. Idade. Ah! já sei. Foi o professor Alceu Amoroso Lima no seu livro Memórias Improvisadas, recentemente publicado. Na página 183 diz o seguinte: «A importância do catecismo holandês, tão mal recebido pelos conservadores, reside nas novas perspectivas que abre. Quaisquer que sejam as restrições ou condenações que lhe sejam impostas, continuarei a achá-lo digno de admiração e de estudo. O catecismo tradicional era baseado no ponto final. O holandês é baseado muitas vezes num ponto de interrogação. (sic) Há uma série de coisas que ele deixa em aberto, fora do que é tido como dogmático. Mas o que é o dogma? É apenas uma verdade que está para lá de nossa compreensão puramente racional. Ninguém pode discutir o Mistério da Santíssima Trindade, porque ninguém sabe o que é, está além de nossa compreensão. Então é dogma». E depois dessa algaravia que está além de minha compreensão, sem ser dogma, o Professor Alceu aventura-se a falar na sua evolução: «A minha evolução se processou através da passagem do evolucionismo espiritualista tipo bergsoniano à aceitação das bases fixistas antievolucionistas. Mais tarde, por influência da leitura da obra de Teilhard de Chardin, deu-se a minha volta ao evolucionismo mas já não de tipo naturalista nem de tipo espiritualista vago, mas de tipo teocêntrico». O professor Amoroso Lima não explica que evolucionismo é esse, e tudo me leva a crer, pela leviandade com que apregoa sua nova religião, não mais católica, sem talvez se aperceber disso, que também como o barbeiro, o professor Alceu Amoroso Lima ignora todas as implicações de seu evolucionismo. Saberá ele que já não pode crer na origem do homem a partir de Adão? Saberá ele que não pode admitir para o homem o que os teólogos chamam geração unívoca, já que cada alma humana é criada por Deus e não pelos pais? Saberá o professor Alceu que a origem da vida pelo evolucionismo biológico implica problemas de improbabilidades expressas por números tão fantásticos que um Borel e um Boltzman não hesitaram em usar os termos de improbabilidades extracósmicas? Saberá o doutor Alceu que a obra científica de Teilhard de Chardin é de quinta ou sexta classe e não aparece em nenhum tratado sério de Antropologia, a não ser no grupo organizado para explorar editorialmente a obra do jesuíta que morreu em desobediência, já que deixou para uma senhorita a obra que a Companhia interditava? Saberá o professor Alceu o que é a lei de Clausius? Lembrar-se-á que Pio XII, numa alocução, recomendava a difusão do conceito de entropia que mostra a evolução do Universo físico num sentido oposto ao dos evolucionistas que pensam na ortogênese? Imagina o doutor Alceu que poderá manter razoavelmente a sua convicção na imortalidade da alma dentro da salada filosófica e teológica do fantasioso jesuíta? Esquece o doutor Alceu que Teilhard foi condecorado como pioneiro do diálogo com os comunistas pelo infortunado Roger Garaudy? Conhecerá o doutor Alceu o princípio metafísico: «nada passa de potência ao ato se não por algo que esteja em ato» que se opõe ao evolucionismo? Volto à minha convicção. Se o doutor Alceu ainda tem fé, será a do carvoeiro; e seu evolucionismo não é muito melhor que o do meu barbeiro.

(1974)

Tudo é pó

Abordando o problema da matéria sob o ponto de vista do Uno e do Múltiplo, que para William James, acompanhado de Paul Grenet, é um dos testes cruciais do pensamento filosófico, chegaremos à conclusão de que o materialismo fica embaraçado, não diante da hipótese de Deus e de anjos, mas justamente diante da mobilidade do ser que, nos dizeres dessa filosofia, tem a hegemonia do Universo. É o próprio ens mobile que deixa o materialista tonto e que o obriga logicamente a seguir o caminho do mecanicismo, que nega a mudança intrínseca e profunda, concedendo apenas a mobilidade extrínseca, enquanto, no lado extremo do problema o espiritualista Bergson, que libertou Maritain e Raissa da opressão do empirismo, afirma que a mudança completa e profunda é a principal e até a única realidade.

O materialista coerente, como já vimos em conversas anteriores, é obrigado a pensar num elemento fundamental que produziria todas as formas do Universo pela multiplicidade e pela variedade das posições dos grãos de matéria, e assim explicará as mudanças extrínsecas pela variação de arranjo das mesmas partículas, resolvendo destarte o antigo paradoxo do devenir, pelo qual tudo muda ou pelo qual da mesma coisa se diz que não mudou e no mesmo momento se diz que mudou. Quando um dia apareceu no limiar da minha porta um cidadão barbado, meio calvo, que no decorrer da conversa revelou-se adepto do marxismo e que, após a primeira hesitação, identifiquei como o menino deixado trinta anos atrás num pátio de colégio, o meu primeiro pensamento foi este: Como o Inácio mudou! Mas o primeiro elemento da proposição diz que Inácio é Inácio e continua a ser Inácio; mesmo porque se não houvesse identidade do sujeito que mudou eu não poderia dizer que mudara. O caso seria de substituição e não de modificação. Qualquer estudante de Filosofia sabe que foi esse o grande problema que Aristóteles resolveu com a famosa fórmula da composição de todos os seres criados em potência e ato; e não ignora também que essa composição de todos os seres, para ter sentido, deve estar pendurada no Ser sem composição e sem vicissitudes, que os filósofos chamam de Ato Puro e os crentes chamam de Deus. Assim, na linha filosófica aristotélico-tomista a potência exprime a pobreza, a indeterminação, um ser que ainda não é o que será ou pode ser, uma espécie de nada relativo, enquanto o ato exprime a riqueza e a plenitude do ser. Será, portanto, na direção oposta às puras potencialidades da matéria que encontraremos, segundo aquela escola de pensamento, o Ser pleno explicador e garantidor de todos os seres. O Materialista segue o trajeto oposto e vai buscar na própria matéria a imutabilidade e a simplicidade fundamentais que devem dar a razão de ser de cada coisa e de suas transmutações. E o materialista mecanicista, que é o mais coerente e sincero dos materialistas, em face do problema das mudanças, explicará todas as transformações do universo pelo movimento das partículas que o compõe e pelas posições que tomam em determinado instante. Mas para tal pensamento ter consistência terá de se deter diante de tais elementos fundamentais ou de tais átomos, que serão átomos, indivisíveis e inquebrantáveis, e sem nenhuma composição. Digo que terá de se deter por achar indispensáveis esses grãos de matéria pura, explicadora por suas potencialidades de todas as formas observadas e garantidora de todos os seres pela imutabilidade, pela eternidade, pela infinita dureza e indestrutibilidade dos grãos. Será preciso dizer ao leitor que esse atomismo, o dos antigos e dos modernos materialistas, nada tem com a Física corpuscular, onde os corpúsculos, na medida em que são alguma realidade corpórea, continuam a ter matéria e forma como qualquer ser da escala humana? A rigor, e filosoficamente, opõe-se o átomo etimológico e filosófico ao átomo composto e explosivo que assusta o mundo de hoje. Mas não deixa de ser estranho o destino do pensamento que chega a ver no mesmo elemento fundamental a pura potencialidade e ao mesmo tempo o ato puro. Sim, esses grãos indecomponíveis e imutáveis que são o ser potencial de todo o universo seriam, para si mesmos, na sua própria existência inevitável, indiscutível, o ser em ato puro. Essas considerações um tanto áridas nos levam à conclusão já anunciada em outra conversa. O materialismo, sobretudo o materialismo mecanicista, parecendo ser uma visão mais fácil, uma

aproximação mais tranqüila de todas as coisas, é na verdade uma desordenada extravagância que vai encontrar um deus uno e infinitamente múltiplo nos átomos. Ao contrário do que geralmente se pensa — desde que se ultrapasse a linha do grosso bom-senso destorcido, que mais deveríamos chamar mau-senso — cabe o ônus da prova aos que negam a espiritualidade de Deus. As provas positivas, arduamente elaboradas pelo pensamento filosófico, são títulos de nossa nobreza e mais servem para provar a largueza da alma que conhece do que a grandeza do objeto conhecido, porque esse objeto — alma espiritual, anjo, Deus — já era conhecido, em termos de profundas intuições ou de fé, antes de terem a existência demonstrada. Têm também para nós as demonstrações filosóficas, ou valor próprio de claridade intelectual que confirma as intuições crepusculares. Seja porém como for, se o problema se coloca em termos polêmicos é indiscutível que o ônus da prova cabe aos materialistas. E se não possuíssemos o compêndio de disparates já publicados pela intemperança intelectual de tais pensadores, poderíamos imaginar a estranha aventura do espírito que parte para a cruzada que consiste na sua própria negação. Convém lembrar aqui o grande paradoxo histórico: foi na corrente cientificista e racionalista derivada de Descartes que tomou corpo a doutrina que nega a espiritualidade da alma humana e a filosofia que reduz a pó o filósofo em plena atividade de filosofante: tudo são partículas que se movem ou mudam de posição ou de velocidade. Tudo é pó. * Esta conclusão aparentemente coincide com aquela que a Igreja faz na Quaresma, para lembrar ao homem que é pó e ao pó volverá. Na verdade, porém, o Verbo de Deus só nos lembra nossa miséria para avivar em nós a humildade diante do Senhorio de Deus, e a gloriosa convicção que somos muitíssimo mais do que o pó de nossa carne. (O Globo, 19/05/73)

PENSAMENTO

A civilização do prazer Qualquer pessoa medianamente dotada e ainda não dopada pelo imperativo de um otimismo que é julgado hoje virtude máxima, e máxima lucidez, qualquer pessoa, em suma, que ainda não esteja possessa pelo Sistema, já percebeu que vive dentro de uma decomposição civilizacional cuja característica principal é a de um furioso hedonismo. Todos querem sentir, o minuto que passa, a golfada de ar que respira, a curva que faz a sessenta ou oitenta quilômetros numa rua movimentada. A fisionomia da juventude em tal clima é curiosamente apática, em contradição com o frenesi das reações, e quase se pode garantir que nunca houve em toda a história do mundo uma humanidade tão destituída de gosto e de prazer. Este paradoxo é aliás a bem conhecida contradição moral do prazer: o primeiro de seus malogros é a perda do prazer. Seria, porém, um engano tirar daí uma conclusão tranqüilizadora firmada na suposição de que tal malogro corrigirá o extraviado. Ao contrário, exasperao. De onde vem esse extravio moral. Em cada indivíduo a moléstia procede de pequenas e primárias opções subversivas em que, por uma antiga dolência, essa alma volta sua preferência para as coisas exteriores e inferiores; e, deixando-se dominar, torna-se depressa escravo delas. A conquista das coisas inferiores nos afaga ao mesmo tempo o orgulho e a concupiscência, ao contrário do alcance das coisas do alto que nos aprimoram a humanidade e o gosto da sabedoria. O praticante da moral do prazer se torna grosseiro, embotado, às vezes enganosamente aprimorado na conquista de tais bens, e inevitavelmente, como já vimos, se torna exigente de doses maiores, de prazeres mais violentos. Dias atrás dizia-me alguém com bem fundado estupor: “Quando a onda do sexo passar, e os impotentes de amor descobrirem a enjoada monotonia do sexo sem amor, sem grande amor, passarão a matar. A matar em grupos. Comunitariamente. Haverá cursilhos para ensinar a matar sem ódio, como hoje se ensina o sexo sem amor”. Como terá começado o fenômeno coletivo, civilizacional, que hoje tornou o Juízo Final assunto de caféem-pé? Creio que já abordei este assunto aqui e ali dúzias de vezes. É uma de minhas obsessões em resposta ao obsessivo rumo do mundo. Pode-se dizer que a história sofreu esta trágica deflexão no século em que os homens afirmaram um novo humanismo afrontosamente autônomo, como se fossem deuses, e afrontosamente afirmou uma nova religião de seu invento, onde Deus entrará somente como objeto indireto e remoto. Neste tempo que apenas trouxe a eclosão de uma longa e misteriosa carga de ressentimentos acumulados, o orgulho do homem foi espicaçado pelo dilatado domínio das coisas exteriores e inferiores trazido pelas ciências. Muita gente até hoje não aprendeu que a Astronomia é um conhecimento inferior à Sabedoria: seu objeto, pelo fato de serem sóis e galáxias a dançarem numa distância de trinta milhões de anos-luz, ou mais, nem por isso é ontologicamente superior, à entomologia, que estuda formigas, cigarras e demais insetos prodigiosamente dotados de vida. Certamente espantarei alguém, ou confirmarei em alguém a hipótese já alimentada de minha insensatez, se disser que o cientificismo pós-renascentista foi um dos primeiros afluentes desta subversão torrencial cuja pororoca já se ouvem os rugidos. A especulação sobre as coisas inferiores, mas facilmente saborosa que a especulação sobre as coisas do alto, que pedem virtudes e dons, trouxe consigo o domínio efetivo, sobre as mesmas coisas materiais. A austera Ciência brindou-nos com a Técnica. A Técnica presenteou-nos com o delírio das sensações fortes , matar 200.000 habitantes de Hiroxima num segundo, ou ir à Lua como programa de televisão.

Eu já escrevi em Fronteiras da Técnica que a técnica é uma das glórias do homem, e que o domínio dos elementos é um direito de seus títulos. Racionalidade. Imagem e Semelhança de Deus. Mas também já escrevei e torno a escrever que certa catástrofe da história, como a querer repetir coletivamente o Pecado Original, nos trouxe a subversão cujos efeitos hoje nos afligem. Não a todos; evidentemente, se a aflição consciente fosse geral esse temor assim difundido já seria o começo de uma sabedoria convalescente. Infelizmente, estamos muito longe de tal difusão. Entre os homens simples, ainda não deformados pela radioatividade da explosão nuclear do eu humano na Renascença e na Reforma, encontram-se muitos que já são sensíveis ao temor e tremor que andam nas almas sensíveis. Mas a maior aberração de nosso tempo não está nas exposições de pornografia , não está na busca desenfreada do prazer sob todas as formas, não está no alastramento do ateísmo que ganhou título de mentalidade oficial em mais da metade do mundo. Não, a maior aberração de nosso tempo está no entusiasmo com que os homens de Igreja aplaudem o dito mundo moderno e ainda censuram à Igreja a falta de tato de não ser atraente para os moços que correm atrás do prazer. Não invento, nem li tal disparate em discurso de algum vigário de Mato Grosso. Li essa queixa em Le Monde, que, com isto, exaltava o queixoso: o Cardeal Alfrink. Eis as palavras aladas do Cardeal holandês: “Como explicar que a Igreja se mostre tão pouco atraente para os homens de nossa época? Os moços que andam à procura de Deus raramente se dirigem à Igreja? Por quê? Que fazer? Não deveríamos nós indagar se não somos nós que obscurecemos a mensagem evangélica?” Respondo ao Cardeal holandês e a todos os outros que dizem coisa parecida, com o atrevimento de atribuir à Igreja verdadeira, à Tradição, aos Santos, à Nossa Senhora, ao Sangue de Cristo a fisionomia que os homens de nossa época acham pouco atraente. E respondo dizendo: a Igreja verdadeira parece ter-se apagado como a estrela dos Magos, e em lugar de sua santa visibilidade vê-se um Sínodo, e dentro dele vêem-se e ouvem-se os senhores cardeais e arcebispos que se inculcam como Igreja, e que publicam, difundem, com grande aparato, tamanho e tão repulsivo amontoado de asneiras. Acrescento ainda uma resposta especial à pergunta: “Que fazer?” O programa mínimo que o pobre homem de nosso tempo ainda espera é a lealdade de dizer que a Igreja não é isto que fala pela boca dos Alfrinks, dos Arns, e outros duzentos. Como ninguém diz, e estou velho demais para fazer tais cerimônias, digo-o eu: eles mesmos dizem aos berros que já não são católicos e se envergonham de um dia terem pertencido a uma Igreja que não acompanha as orgia dos moços e dos velhos; eles querem agradar aos homens, ainda que isto os leve ao desprezo de Deus.

A esperada renovação O mundo moderno nos oferece, em todos os seus variadíssimos quadros, um espetáculo de assustador envelhecimento, como se a humanidade houvesse esgotado toda a alegria de viver e toda a esperança de progredir. Um ceticismo profundo, atacando as raízes das mais adiantadas e orgulhosas culturas, manifesta-se à superfície dos acontecimentos de um modo paradoxal que desnorteia os observadores e que os leva a ver, nessas mesmas manifestações profundas do abatimento e da descrença, sinais de vitalidade e ânimo. Tomemos por exemplo o revolucionarismo que abrange as contestações juvenis, as rupturas vitais dos terroristas e as conspirações dos derrubadores de regimes. Todos eles rejeitam apaixonadamente o passado e desejam furiosamente o terreno aplainado, vazio, pronto para a estaca zero de uma nova

criação, tentada agora pelo Homem em novas direções. O sinal mais evidente dessa paixão suicida, ou esse desejo do nada, se encontra na tumultuosa corrente socialista, engrossada pelos afluentes do democratismo. Ao contrário do que pensam os agitados e os tolos, essas correntes, ao invés de subirem segundo a lei moral que devia reger a História, descem segundo a lei física do desmoronamento. A sociedade sem classes é o modelo perfeito de um mundo morto. Sim, falam tanto da morte de Deus mas na verdade o espetáculo a que assistimos é o da morte do Mundo. Mas o coração do homem, que só em Deus encontrará paz e alegria, na própria inquietação das experiências suicidas põe um ferimento que recebeu do alto: daí os aspectos paradoxais de que se reveste o fenômeno que desnorteia os agitados e os tolos. Palavras de surgimento, de nascimento, de começo, de esperança, são postas nos alto-falantes de uma civilização agonizante. Mas, por favor, não imagine o leitor que eu esteja fazendo como alguns que, para não parecerem radicais buscam sempre o lado positivo ou a mensagem das piores abominações que o mundo inventa. Não. O que quero dizer, quando me refiro aos paradoxos do revolucionarismo ou de outras formas de suicídio cultural, é que neles se vê o vestígio do que seria positivo, ou do que tem o vigor e o fulgor das coisas boas, negativados porém e postos aos serviço da morte do Mundo. Somente alguém pode salvar o mundo: o Salvador do Mundo. Somente o cristianismo pode trazer à velhice de um mundo exausto o fermento de renovação: «Quem está em Cristo é uma nova criatura: as coisas antigas passaram, vede! Tudo é novo» (2 Cor. 17). Esse grito do Apóstolo se refere a uma renovação profunda e essencial que consiste em ter, já aqui e agora, a vida eterna começada. A coisa nova entrevista é mais um clarão do céu da nova criação do que um brilho de coisa terrestre. É essa mesma essencial descoberta do Novo Mundo que se vê no Apocalipse: «Depois eu vi um céu novo e uma terra nova, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido; e o mar deixou de existir. E eu vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, descer do céu, de perto de Deus, vestida como uma noiva preparada para seu esposo. E ouvi uma foz forte que dizia: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens: Ele habitará com aqueles que serão o seu povo; e Ele mesmo será o Deus deles. E Deus enxugará cada lágrima e não haverá mais morte, nem luto, nem grito de dor, pois as primeiras coisas já terão passado. E aquele que está assentado no trono diz: Eis que renovo todas as coisas» (Apoc. XXI). Se nos perguntarem o que é o cristianismo, numa só palavra, podemos responder: renovação. Se nos perguntarem que renovação é esta, tão profunda e essencial, podemos dizer: conversão, metanóia, mudança de vida, penitência, transfiguração. Ou, então, outra vez em uma só palavra: Páscoa. Ou, mais uma vez, em discurso mais claro podemos dizer que esta renovação consiste em mergulharmos na morte de Cristo para emergirmos em sua Ressurreição. Mas além dessa dimensão vertical de eternidade, o Cristo traz ao mundo que o aceita, à História, à civilização, à estalagem que o recebe, uma renovação horizontal. Vimos imensas civilizações morrerem para que se espalhasse no mundo uma civilização cristã que durou pouco mais que um milênio, e que foi para a história uma espécie de Domingo de Ramos, com seus equívocos humanos, com sua divina beleza. Depois disto o homem se inebriou de egoísmo e recaiu no velho mundo. Para exaltar-se pretendeu construir o Paraíso Terrestre do qual, com as armas coruscantes da Tecnocracia, Deus será expulso. Quando se anunciou o Concílio Vaticano II, todos nós pensamos que seria esta a porta de uma rajada de renovação e de vida que o mundo estava a pedir. «Une nouvelle chretiente demande à naitre» dizia Charles Journet, e nós repetimos. Sim, uma nova civilização menos egoísta, menos orgulhosa, só poderia nascer se a Igreja conseguisse dar ao mundo uma parte de sua riqueza espiritual. Todos nós, que sempre ensinamos o dever de progredir e que sempre esperamos um mundo mais divino, fomos forçados a reconhecer que até agora não se viu, em termos de história e de civilização, a tão esperada renovação. Ao contrário, o que vimos com estupor que até agora não se dissipou, foi o espetáculo de toda uma tentativa de secularizar a Igreja em lugar da esperada cristianização do século. E esse empreendimento sinistro foi realizado por gente da Igreja, por membros do Concílio. Torno a dizer: em

vez de santificarem a vida temporal, querem horizontalizar a Igreja, copiar o mundo pelas rugas de sua incurável senectude e despedir um Deus tornado inútil e anacrônico. Até quando, Senhor? Pode-se dizer sem nenhum exagero e nem sombra de injustiça que a renovação do mundo e da Igreja até agora não se fez porque se desencadearam os furiosos progressistas que obstruíram os caminhos do verdadeiro progresso. Na ânsia de dobrar a Igreja às exigências de um mundo frenético e velhíssimo, os inovadores apresentam aos homens e aos anjos o espetáculo da mais cruel caricatura do cristianismo jamais vista. Os antigos, isto é, os renovados dos primeiros séculos propunham aos crentes os exemplos dos mártires; os renovadores chamados progressistas propõem aos crentes o exemplo dos revolucionários. Realizemos nós a santa conspiração da Páscoa do Senhor já nos vestíbulos das nossas catacumbas. O GLOBO Sábado, 1/4/78

A pátria A idéia de pátria e a correlata de patriotismo vêm sendo sabotadas, há séculos, pelas correntes históricas que nas últimas décadas formam o enorme estuário de equívocos que constituem o néctar, o uísque escocês dos “intelectuais” das chamadas esquerdas. A corrente anarco-socialista, bem como a marxista, sempre anunciaram em canto e prosa a Internacional, sem nunca suspeitarem que deste modo pretendiam combater uma exigência da alma humana tão profunda como a de querer constituir família.

À primeira vista, e numa análise sem vigor, parece que o amor da pátria exclui o resto da humanidade e assim se opõe ao mandamento de Deus. Na verdade, todo amor exclusivo será egoísta e defeituoso, já que o próprio do amor, ainda que inclua as mais densas dileções, é ser difusivo. E se não for difusivo não é amor; será quando muito egoísmo ou amor próprio. Vejamos como se entende, dentro do imperativo de universalidade, o bom fundamento do amor da Pátria. É sabido que nenhum homem esgota em sua vida e com suas aptidões todas as virtualidades da alma humana. Para bem manifestar toda a grandeza e toda a beleza da alma humana, em todas as suas possibilidades, foi preciso que os homens se multiplicassem e se diversificassem. A perfeição do homem se vê na humanidade desdobrada. Mas não basta essa multiplicação. Para bem exibir diante do universo e das galerias angélicas toda a riqueza do animal-racional, ou da alma feita à imagem e semelhança de Deus, foi preciso ainda recorrer ao curso da história e ao contraponto das civilizações. E além dos desdobramentos e dos alongamentos individuais, foi preciso diferenciar os agrupamentos humanos em tipo, com línguas, costumes e cultura diversificados. E este é o fundamento natural da pátria. Faz parte da grande e inebriante aventura humana esse tipo de experiência que consiste em viver, num dado território e ao longo de uma história, uma vocação comum, uma cultura comum, que se exprime não apenas pela língua comum mas por todo o jogo de símbolos, de significações multiplicadas que resultam das alegrias comuns e dos sofrimentos comuns expressos na profundidade das almas por sinais comuns.

Quando eu penso com simplicidade no objeto do amor pátrio, eu penso numa grande comunidade que acabou de chegar na ponta de uma grande história e que acampou, se instalou numa imensa geografia. Tudo isso me envolve numa cercadura enorme, e tudo isso nos diz que somos portadores duma vocação, de uma parte, de uma tarefa na grande aventura humana. Toda essa cercadura, esse envoltório humano, cultural, sociológico, histórico, geográfico é um campo de forças que nos penetra, e que se cruza dentro de nós, e nos faz o que somos, o que sentimos e amamos. Curioso processo psicológico que sempre se repete para as coisas mais amplas e mais próximas. Nossos envoltórios, a família, o bairro, a pátria, são obras emanadas de nossas almas, e são elas que refluem e modelam nossas almas. Há por fora de nós um enorme Brasil exterior; há dentro de nós um Brasil interior de sentimentos e de virtudes que devem ser cultivadas e apuradas para que o Brasil exterior seja melhor e mais Brasil, e mais e melhor para formar as almas de seus filhos. Precisamos cultivar essa piedade, esse respeito pelo grande quinhão que nos coube na prodigiosa aventura do gênero humano, não para nos excluirmos e nos fecharmos, mas para que nosso amor pátrio seja difusivo e se transforme em amor universal. Precisamos sentir e agir como se o mapa-mundi a cosmografia e a história fossem inconcebíveis sem a nossa presença. Não há nenhum espasmo de eloqüência convencional nem sombra de orgulho nesse reconhecimento de nosso valor: haverá até um ato de humildade acompanhado de um sentimento de responsabilidade. Aprendi essa lição do valor de cada ser dentro da Criação com um pobre cego, a quem uma senhora bondosa queria confortar e de quem lamentava a triste sorte. Agradecendo a bondade, o ceguinho confortou-a com estas palavras: — Sem eu o mundo não estaria completo. Faltaria minha cegueira... Tudo tem valor. Que valor tremendo, terrível, não terá essa comunidade pátria? Que aleijão enorme faria no mundo a falta desse jeitão coletivo, nosso, meu, seu, vosso, que chamamos Brasil! Esse modo de sermos, de falarmos, de sentirmos, essa esparsa alma comum: Brasil. E para não desmerecermos em tal tarefa (a de completar o universo!) precisamos friccionar nossos sentimentos e nossas virtudes, e para isto precisamos de comemorações, de sinais e símbolos já que nesta vida terrena, como disse o apostolo Paulo, vivemos entre sinais e enigmas. Daí a utilidade das bandeiras, dos hinos e das festividades cívicas que todos os povos normais sempre amaram. Mas a necessidade mais imperiosa e contínua que decorre da consciência patriótica é a do serviço prestado no dia a dia da vida profissional. Festejemos os dias da pátria, mas essas festividades seriam vazias e até falsas se não fossem sinais do desejo de servi-la. * E peçamos a Nossa Senhora da Aparecida, à onipotência suplicante da Mãe de Deus, que nos proteja sempre como recentemente nos protegeu. (Este artigo foi publicado durante a semana da Pátria, em “O Globo”, de 05/09/1970.)

A vocação da mulher Transcrição parcial da conferência do mesmo nome incluído no volume As Fronteiras da Técnica Agir, 1955, republicada na Revista Permanência n° 150-151 Maio-Junho 1981

No meu tempo de rapaz houve uma época em que, cansado de estudar as crateras da lua e os anéis de Saturno, passei a interessar-me pela avicultura. E, como sempre misturei às coisas mais práticas um pouco de teoria, comecei por munir-me de um tratado. Ora, esse tratado que então adquiri, começava por essas inacreditáveis palavras: «A galinha e as aves domésticas em geral, tanto podem ser cuidadas por um homem como por uma mulher». Naquele tempo o autor do tratado pareceu-me doido. Assentei comigo mesmo que o era, e que não oferecia grande segurança nos finos problemas de alimentação, do choco e da gosma, um livro que começava com tão colossal quão inútil distinção. Deixei o livro, e poucos meses depois deixei os ovos. Hoje, entretanto, não sei por que misterioso trabalho da memória, voltou-me aquela primeira frase do avicultor e de repente, descobri-lhe a sabedoria que me escapara na mocidade. Ou então, usando da relatividade, eu diria que o deslocamento de tempo, a modificação das idéias e costumes, acabaram por transformar em sábio o que naquele tempo era insano. Senão, vejamos. Dizia aquele autor que a galinha pode ser cuidada por um homem ou por uma mulher. Ora, quem diz isto, é porque sabe, e deixa subentendido, que há outras coisas outras atividades, em que não é indiferente o sexo. Ainda mais, o que parece hoje digno de nota naquele texto é o ar, digamos assim, de surpresa, de quase admiração com que o autor reconhece a existência de um gênero de atividade em que a mulher e o homem possam se desempenhar com igual proficiência. Em outras palavras, o que ele dizia lá no tratado de avicultura, podia ser formulado assim: «A mulher e o homem são terrivelmente diferentes; mas apesar disto podem ambos cuidar de galinhas». É claro que a sabedoria que existe naquele texto, ou que eu porventura lhe empreste, está toda contida na primeira parte da proposição: a mulher e o homem são de fato diferentes. Ambos podem fazer certas coisas, como por exemplo criar galinhas, mas vou agora mais longe que aquele sutil avicultor, e começo a pensar que, mesmo nessa simples atividade, o homem e a mulher não terão o mesmo estilo em avicultura. Ao contrário, na menor das coisas que façam, ficará a marca dos dedos que a fizeram, e como a diferença do sexo vai até a ponta dos dedos, resulta que ficará na coisa cuidada a marca de quem cuidou, homem ou mulher. O ponto onde quero chegar, com essas considerações que roçam pelo delírio, é o seguinte: devemos acentuar a diferença, ao menos como tática de argumentação, porque um dos vícios de nosso tempo consiste precisamente em procurar a simplificação da uniformidade. A desordem de nosso tempo consiste em tender para o amálgama, para o informe, para a massa, para a sociedade sem classe, para um mundo sem limites, para uma vida sem regras, para uma humanidade sem discriminações. Ao contrário disto, a sociedade que desejamos construir é uma sociedade ricamente diferenciada, e nitidamente hierarquizada. Só é possível pintar um belo quadro porque o vermelho é diferente do azul; só é possível tocar uma bela música porque há certa consonância nos acordes de quinta e certa dissonância nos acordes de sétima. E só é possível uma bela e boa sociedade de homens se as

diferenças de natureza forem levadas até suas últimas conseqüências: quando se admitir, por exemplo, no unânime consenso que a mulher e o homem são diferentes. A tendência moderna é de atenuar as diferenças. Imaginem o que seria de nós se, por exemplo, os bombeiros hidráulicos resolvessem tornar-se, o mais possível, semelhantes aos avicultores; ou reciprocamente, se os avicultores tentassem trazer para os galinheiros a técnica da solda e do desentupimento. É claro que ao cabo de poucos meses não teríamos nem ovos nem água. Uma sociedade humana não pode dispensar o bombeiro hidráulico, nem o avicultor. Uma sociedade humana, passavelmente organizada, não pode sequer tolerar a idéia de que um cano de chumbo e um ovo sejam aproximadamente a mesma coisa. Há circunstâncias muito especiais em que todas as pessoas de uma certa comunidade são chamadas a tarefas semelhantes. Nessas circunstâncias triunfa uma certa uniformidade. Trata-se, por exemplo, de um incêndio generalizado? Todos devem acorrer com mangueiras, extintores, areia. Trata-se agora de uma devastadora epidemia? Todos devem trazer sua contribuição de emergência para debelar o flagelo. Trata-se enfim de uma guerra? Todos devem oferecer seus préstimos para a mais breve e decisiva vitória. Quanto mais nítido e mais próximo é o fim, mais homogênea se torna a necessária contribuição de todos. Mas mesmo nesses casos de fins próximos e nítidos, mesmo na fome, na peste e na guerra, a cooperação verdadeiramente eficaz tem o cunho de organicidade que se constitui pela unidade na diversidade. O concerto dos atos humanos só tem verdadeira ordem e harmonia quando realiza a união de coisas diversas. Vejam na guerra como é bom que existam homens com aptidões diferentes. Vejam no incêndio que os bombeiros, apesar dos uniformes, não são uniformes. Seus gestos, suas atitudes, seus instrumentos, variam tanto como se ali estivessem representando um feérico e harmonioso bailado do fogo. Vejam também na peste que os homens se dividem, tratando estes dos vivos enquanto aqueles cuidam dos mortos. Ora, o funcionamento normal de uma sociedade, que inscreve todas as vidas e todos os problemas de todas as vidas, é mil vezes mais complexo do que o incêndio, a peste e a guerra, a normalidade é mais rica e mais difícil do que a anormalidade; e o problema social, nas mais intrincadas situações, deve ser tratado com os métodos, os resguardos, as atenções, a harmonia que a normalidade exige. Por isso, mais do que nas situações anômalas, o problema social dos tumultuosos tempos de paz devem ser conduzidos dentro do concerto das aptidões diferentes. E, quanto mais infantil for a criança, e quanto mais mulheril a mulher, e quanto mais varonil o homem, tanto melhor realizaremos em cada situação concreta a ordem, cambiante mas verdadeira, que é o fundamento da felicidade dos povos. O bem, a perfeição da sociedade, está na infantilidade da infância, na feminilidade da mulher, na masculinidade do homem. O concurso que as mulheres têm trazido ultimamente, lamento dizê-lo, tem mais a marca da uniformidade do que o cunho autêntico da organicidade. Elas vieram ao nosso encontro. A última guerra viu mãos femininas nos tornos mecânicos e no controle dos aviões de bombardeio. E essa situação ainda continua. Elas vieram ao nosso encontro, mas o seu concurso tem sido apenas numérico, quantitativo, mecânico. Vieram ao nosso encontro como pessoas, como braços, como cabeças, mas não vieram como mulheres. O coro das vozes engrossou, mas não se tornou mais harmonioso. O conjunto de gestos se multiplicou, mas não se tornou mais ordenado. Vieram ao nosso encontro para fazer as mesmas coisas. Com os mesmos gestos. E, se vieram fazer o que nós fazemos, é forçoso convir que se declararam derrotadas naquilo que as diferencia de nós. Se adotaram os nossos gestos, forçoso é convir que uma tal capitulação não

merece, senão à custa de uma ginástica verbal o nome de emancipação. Lembro aqui uma passagem de Chesterton em que ele dizia que o tigre pode emancipar-se das barras da jaula, mas não pode emancipar-se das barras da sua pele tigrina. O mundo, com essa contribuição da mulher, arrisca-se ao mais terrível dos cataclismas: a ficar reforçado na quantidade, e mutilado na qualidade. Imaginem que pobre música seria aquela em que as flautas andassem constantemente uma oitava acima dos fagotes a lhes imitar todos os contornos melódicos. Seria justo falar na grande emancipação das flautas? Pois o que eu quero dizer é que a famosa emancipação da mulher é qualquer coisa como andar sempre uma oitava acima de nossos timbres masculinos. Dizem as nossas mesmas frases, mas em falsete. *

É evidente que estou desagradando. Mas por favor não imaginem que eu deseje prender as mulheres em casa ou recusar-lhes o concurso na batalha do mundo. Não é esta a minha idéia. O que reclamo não é a impertinência; é a verdadeira contribuição. Há uma mobilização que se torna urgente, e que deve abranger a todos. Mas essa mobilização é essencialmente diferente daquela dos tempos da guerra. Todos são chamados. Mas são chamados a ficar onde estão, sendo o que são. É uma esquisita mobilização em que cada um deve ficar exatamente onde está. E nesta esquisita mobilização, que quase seria melhor chamar de imobilização, o que é pedido à mulher é que seja mulher. Na verdade, o que estamos precisando urgentemente é de uma chuva de santos. A liturgia dos tempos do Advento anuncia o Salvador que virá do céu como uma chuva. O que nós precisamos, no ressequido chão de nossa cultura e de nossos costumes, é de um bom sistema de irrigação que espalhe na terra das almas essa água do céu. Precisamos de muitos santos. Ora, está provado que a mulher, nessa divina aventura, vai mais longe do que nós outros, os fátuos conquistadores do mundo; e está provado também, por Leon Bloy, que a mulher, quanto mais santa, é mais mulher. *

Um romancista medíocre escreveu há tempos a história do que ele chamava As Mulheres sem Homens. Hoje num sentido diverso, pensando mais no problema cultural do que nos desajustamentos sexuais, poderíamos escrever a triste história dos Homens sem Mulher. Esse é o traço que infelizmente se acentua em nossa civilização, e quem o diz, e muito bem dito, é uma mulher. Gertrud Von Le Fort, no seu pequeno livro, A Mulher Eterna, diz que o mundo moderno está fazendo a dolorosa experiência de uma cultura de valores masculinos. Eis as suas palavras: «A cultura exclusivamente masculina não se contenta de excluir todos os traços femininos para caracterizar as épocas em que impera. Pior do que isto, tal cultura substitui a fé nas potências escondidas pela confiança exclusiva no que se vê: a força, no domínio da matéria; a publicidade, no domínio do espírito. E ainda mais, ela exagera as propriedades masculinas e deforma os traços do homem-sem-mulher. A

ausência de uma das partes da realidade provoca sempre – e isto é muito importante! – uma alteração da imagem da outra». E quais são esses traços deformados? Perguntamos nós. Eu diria que, entre muitos, são dois os principais. O primeiro, como diz a mesma autora, é o gosto predominante pela visibilidade, a luta cruel pelo prestígio, as torvas manobras em busca do sucesso. O segundo, digo-o eu, é a recusa da doação, a incapacidade, cada dia maior, de se descobrir que há realmente mais alegria em dar do que em receber. Mas vejam bem – e isto é muito importante!– que não pretendo dizer que esses traços de cabotinismo e de egoísmo sejam característicos da psicologia masculina normal. Não. O que digo é que esses são os traços cavados no mundo masculinizado negativamente, isto é, privado da necessária componente feminina. Serão, digamos assim, os indícios da nossa avitaminose. Num sentido um pouco diferente do que sugere Gertrud Von Le Fort, eu diria que esta cultura está masculinizada, não pela predominância do masculino, mas pelo desfalque do feminino. Importa muito acentuar esse aspecto de carência para compreender bem que o retrato do homem-sem-mulher é uma triste caricatura do homem... Apesar do medíocre romancista, estou inclinado a crer que mais depressa vive a mulher sem homem do que o homem sem mulher. Qualquer das duas situações é horrorosa, e para lhes dar exemplos históricos eu lhes apresentarei dois. A situação dos fiéis da Igreja Católica no Brasil, até poucos anos atrás, é um exemplo convincente de uma comunidade de mulheres-sem-homens. Numa das suas admiráveis Cartas de Inglaterra, Rui Barbosa descreveu-nos esse tempo como o de uma generalizada incredulidade beata. Do outro lado, como exemplos de culturas de homens-sem-mulher, temos o nazismo alemão e o comunismo russo. E também, cumpre notar, a sociedade burguesa capitalista que tende vertiginosamente para uma daquelas formas totalitárias. Volto pois a dizer que o homem não pode viver sem a mulher. Transpondo para outro plano essas considerações, lembro que fora da Igreja não há salvação. Ora, a Igreja é feminina. Logo, sem a mulher não há salvação. E quando eu digo que a Igreja é feminina, não creiam, por favor, que esteja explorando indevidamente uma pura metáfora. É claro que há uma analogia, mas uma analogia que é mais do que uma metáfora. A Igreja é realmente feminina. Nos seus atributos, na sua virginal maternidade, a Igreja acompanha, na quarta dimensão de sua realidade mística, os traços da figura de Maria. Descendo novamente ao plano da cultura, eu me atreveria a dizer que há um certo paralelismo e que aí também, como na vida das almas, o homem não pode viver sem a boa vitamina dos valores autenticamente femininos. Privado desse elemento o mundo se transforma num quartel ou num hospício. Disse há pouco que a sociedade de nosso tempo tem a marca de uma carência: a dos valores femininos. Ocorre logo perguntar de quem é a culpa e como se operou esse desequilíbrio. De quem é a culpa? Imaginem o tumulto que ocorreria se eu cometesse a imprudência de convocar uma reunião para o debate desse problema.

Esse tumulto, aliás, existe. Existe lá fora. Existe, aberto ou disfarçado, confessado ou engolido. Existe a desconfiança. A luta dos sexos. Existe a hostilidade. Existe a incompreensão de que se valem e com que engordam os psiquiatras, o mágico dos tempos modernos. Chego mesmo a imaginar que foi essa a primeira discussão entre o homem e a mulher nas portas do paraíso perdido. O fato é que as mulheres, emancipadas de sua feminilidade, passaram de boca em boca a mais monumental descoberta dos últimos tempos: «A vida dos homens é mais interessante do que a nossa» – o que praticamente pode ser enunciado assim: «arrumar um fichário é mais interessante do que arrumar uma gaveta». É possível que os homens tenham dado abundantes motivos para tornar a casa um lugar de desterro; é possível que as mulheres, levadas pela curiosidade, tenham querido tirar a limpo as tais coisas interessantíssimas que os homens fazem nas oficinas e nas repartições. É possível que ambos tenham partes iguais, disputando cada um o seu direito de disparatar. Para Gertrud Von Le Fort o caso parece ser o de uma vitória masculina, pelo abuso da força. Mas eu não sei... eu me perco em conjeturas,porque nessa questão de vitória é bem sabido que a da mulher, muitas vezes, consiste precisamente em ser vencida. Existirá sempre esse problema, essa tensão entre os dois sexos. Como diz Chesterton, o homem e a mulher são de fato incompatíveis. Viverão sempre em dificuldades. Serão sempre dois estrangeiros cada um a falar mal o idioma do outro. Prolongarão indefinidamente esse duelo que leva as maiores santas a nos tratarem, pobres de nós, ora com astúcia, ora com provocação. Santa Escolástica, para iludir o rigor monástico de seu santo irmão, rezou pedindo uma chuva torrencial. Santa Teresa d’Ávila, espanhola e atrevida, dizia, pensando num diretor espiritual que fora injusto com uma de suas filhas: «Olhe que nós outras não somos assim tão fáceis de compreender». E a história de Heloísa e Abelardo não foi outra coisa senão uma contínua e ininterrupta esgrima de provocações. Essa tensão entre os dois pólos da humanidade não é um mal. O homem e a mulher podem viver, em honroso convívio, uma civilização, discutindo e brigando – como no matrimônio – desde que mantenham a honra do combate. É claro que o bom entendimento recíproco é bom. No casamento o bom entendimento, o paralelismo de gostos e opiniões, é uma coisa maravilhosa, mas não creiam que seja, como se diz, o elemento mais importante. No casamento, o decisivo é compreender bem, em tempo e contratempo, a natureza mesma do ato matrimonial, e a honra do novo estado. Enquanto essa bandeira estiver no mastro da nau familiar, pode chover e ventar, podem as ondas avolumarem-se em montanhas e cavarem-se em abismos, que a arca portadora desse casal, que Deus prefere a todos os outros casais, chegará ao monte da salvação. Não serão muito felizes os viajantes dessa tormentosa travessia, sem dúvida, mas chegarão. E numa travessia é isso o que importa. Mas não insistamos mais neste insolúvel e antipático problema de saber quem tem a culpa, se o homem, se a mulher, na situação de nossa atual cultura. Ambos provavelmente; cada um a seu modo; como no paraíso. Analisemos agora aqueles dois pontos principais que nos parecem característicos da cultura privada de valores femininos. O primeiro é, como já vimos, o excessivo pendor para a visibilidade, para o brilho, para o sucesso. Eu diria mesmo o despudor.

O homem moderno só crê no que vê, mas nisto ele crê demais, nisto ele chega a ser supersticioso. O homem moderno constrói sua vida, sua cidade, sua civilização com esse critério estridente e multicolor da vanglória. A vida interior, a vida da alma e a vida da família entre quatro paredes vai perdendo dia a dia a sua organicidade, e vai cedendo terreno à vida devastadora das ruas. Faz-se hoje tudo em público. Desde o sorvete lambido nas calçadas de Copacabana pelo indivíduo de blusão azul, que anda com um ar bonzão e felizardo de quem acabou de se aliviar, até as mais extremadas manifestações amorosas dos casais curados dos antigos preconceitos pela moderna psiquiatria, tudo hoje tende a tornar-se público e ostensivo. Eu diria, citando mais uma vez Gertrud Von Le Fort, que o mundo moderno precisa de um véu, símbolo do invisível e paciente mundo feminino. Mas com essa idéia de reclamar o véu, eu não quero dizer simplesmente que se deva apenas promover uma campanha para conseguir que as mulheres se vistam com mais modéstia. Nestes últimos tempos as saias, que estavam acima dos joelhos, desceram ao nível dos tornozelos e quase se adivinha uma tendência para as anquinhas que me permitem ver na moça que passa a silhueta da minha bisavó. Deveremos nós considerar com alvissareiro otimismo esse acréscimo de pano que parece vir ao encontro do símbolo do véu? Poderemos nós esperar que esse palmo de babado reestruture a nossa civilização? Não o creio. A moda tem suas astúcias. Essa descida das saias não me parece ser um sinal de contrição, antes me parece ser uma manobra de valorização como as que se fazem nos títulos das bolsas e nas queimas de café. Além disso salta aos olhos que o pano que sobeja nas saias foi tirado das blusas. Não quero absolutamente dizer que esse problema da toilette feminina não tenha importância. Não pretendo ridicularizar as campanhas que têm sido organizadas para obter um pouco mais de decoro nas praias, nas ruas e até nas igrejas. Não subestimo esse problema do vestuário feminino, mesmo porque se eu o subestimasse, se eu dissesse que ele não tem importância, eu estaria aquém do b-aba, em matéria de psicologia feminina. Mas a idéia do véu, como vitamina mulheril para o escorbuto de nosso tempo, deve ser compreendida de um modo mais geral. Não é somente o corpo que urge velar, é a própria vida íntima, o próprio coração. E não é somente nas pessoas, uma por uma, que se aplica essa dieta, mas na própria civilização. O homem moderno precisa efetivamente recuperar o gosto da invisibilidade e da interioridade. Se há na vida das cidades uma atividade pública, e se há na vida da Igreja um culto visível e público, é preciso que a essas coisas corresponda uma componente de vida interior, na família e na alma. Faltando essa componente, como é o caso, pode-se dizer com aquela autora, já muitas vezes citada, que faltará o elemento especificamente feminino. A publicidade é um dos grandes ideais modernos. Quem não aparece, quem não é visto, sofre dessa invisibilidade como se duvidasse de seu próprio existir. Apalpa-se, duvida-se de si mesmo, sente-se desencarnado, alma do outro mundo, e só se tranqüiliza quando os outros, os olhos dos outros, a atenção dos outro, vêm confirmar aquela existência em crise.

A propaganda é um dos aspectos mais repulsivos dessa cultura estridente. A última guerra, como todos sabem, foi uma guerra de propaganda, e só pôde ter a horrível feição que teve, porque os homens perderam o recato. Vejam por exemplo na política os despudorados esgares da demagogia. Vejam o que se entende hoje por bem-comum. Quando os governantes querem dar boa impressão de seu mandato, o que fazem eles? Obras monumentais. Obras visíveis. Palácios. Estádios. Obeliscos. E mal lhes ocorre, a esses hierofantes do sucesso e da vanglória, que o bem comum é uma coisa obscura que se espalha, que se subdivide pelos homens, que se esconde, para ser verdadeiramente o que é, sob os tetos dos homens. A idéia do véu, como componente essencial de uma civilização, é muito mais geral do que o simples problema do vestuário. Há um pudor das sociedades, como há um pudor das pessoas. Ora, o pudor, a modéstia, está para a mulher como a coragem está para o homem. Por isto eu lhes digo que esta vida de rua e de cartazes é qualquer coisa como uma sociedade despida. A idéia do véu tem alcance muito maior do que a regulamentação de vestidos e maillots; aplica-se ao nudismo e ao mundanismo, à falta de panos e ao excesso de plumas, à publicidade das pernas e à publicidade do crime. Aplica-se ao monumentalismo e às pompas dos casamentos vespertinos; às expansões amorosas dos casais que se libertaram dos preconceitos burgueses, e às expansões demagógicas dos caçadores do poder. Trata-se pois, como vêem, de coisa mais ampla e mais grave do que à primeira vista parecia, e, se estou certo, depende muito da mulher, de sua atitude, de sua fidelidade, diria até do seu heroísmo, a possibilidade de uma recuperação do espírito de simplicidade e de pobreza (e portanto de obscuridade) sem o qual não podemos falar em civilização cristã. Tenho a intenção de voltar um dia a esse assunto, com mais vagar; mas agora já é tempo de dizer alguma coisa a respeito do segundo elemento de nossa avitaminose cultural. O segundo traço, que deforma a imagem de nossa civilização, é o reconhecimento oficial dos direitos do egoísmo. «Não dar» é a divisa escrita no estandarte do nosso tempo. Mas esse traço não parece provir de uma carência do feminino. Realmente, nós outros, os masculinos, costumamos afagar a fátua presunção de que a generosidade seja virtude de nosso sexo, que só em segunda mão possa estar nas mulheres. Há um certo fundamento para esta fatuidade. É fácil observar, e até provar com estatísticas, que as mulheres são em geral mais mesquinhas do que nós. Os salários que pagam são mais disputados, as esmolas que dão são mais contadas. Ora, o que eu pretendo demonstrar aqui é o contrário: que a generosidade nasce na mulher; que o dom de si mesmo é o mais feminino dos impulsos; e que a nossa presunção se origina numa confusão, muito do nosso estilo, entre o que nós entendemos e o que elas entendem por dar. Para isso permitam-me abrir aqui um parêntese para uma série de considerações preparatórias a partir da história de uma moça que, com grande espanto de sua família, resolve tomar o hábito de religiosa. *

Ninguém na família viu a coisa com bons olhos. É claro. Entre as perspectivas normais para o futuro da moça, essa incongruidade vinha trazer confusão e desassossego. Entre as classificações sociais possíveis, a freira é quase um escândalo. É uma nódoa escura no álbum da família. Todos estimam, evidentemente, a civilização cristã. Todos a desejam, desde que os padres e as freiras, já que são necessários, segundo parece, venham de outros planetas por panspermia, ou produzam-se por geração espontânea. E claro que se entende perfeitamente a mágoa dos pais sem fé que vêem a filha afastar-se de casa, abandonar o conforto e o afeto, para a loucura de correr, com véu e grinalda, ao encontro de um noivo invisível. Enquanto ela ia à Missa e em certos dias do ano recusava o bife na mesa, andava tudo muito bem. Não deixava de ser esquisita a relação entre o filé e um Deus todo-poderoso, mas enfim, já que a civilização cristã deve existir, é justo exigir de seus mais fiéis participantes o cumprimento de certas regras. Tudo é assim no mundo. Se o indivíduo é acadêmico, há dias e circunstâncias em que é de preceito o fardão com as insígnias da imortalidade. Se é militar, há outros dias e outras circunstâncias em que o verde-oliva cotidiano se transfigura nos esplendor do uniforme de gala. São regras. E sem regras não há civilização. Ora, se é deveras desejável que adornem nossa sociedade os ditames do suave Nazareno, como diz o Sr. Matos Pimenta, é inevitável que existam regras. Sejam elas embora esquisitas, e às vezes francamente incompreensíveis, nem por isso nos chocam em demasia, porque há também muitas regras incompreensíveis fora da religião. Quem será capaz de explicar, por exemplo, a sentinela nas portas dos quartéis? E o selo de educação: quem seria capaz de explicar cabalmente a misteriosa conexão entre a estampilha e o descalabro do ensino? E o costume de ir na sacristia, em Missa de sétimo dia, assinar um papel? E esse outro hábito de dizer em discurso, no dia da posse, que tal ministério rendoso ou folgada sinecura são postos de sacrifício? E o telegrama? E a pluma? E a gravata? E a estátua portátil de Pedro Álvares Cabral cantando a ária final da Tosca? E o zebu: Quem será capaz de explicar o zebu e a estátua do zebu? Tudo isto são regras da vida civilizada, como também é regra da vida não civilizada, na Nova Guiné, sair o viúvo inconsolável para caçar na floresta próxima um canguru-fêmea, e atar-lhe depois ao pescoço um colar de dentes de cão, e deixar-se então persuadir, já consolado, que a falecida encarnou-se naquele esquisito quadrúpede. Na verdade o homem é que é esquisito, e não o canguru. O homem é que tem mania de inventar dificuldades e cerimônias. Até aqui vamos pois muito bem. Estamos no respeito das regras. Mas quando a moça vem dizer que resolveu entrar no Carmelo ou na Abadia Beneditina, e que entre os noivos possíveis escolheu o invisível, e que entre todas as vidas escolheu uma morte – dizendo que é vida! – e que entre todas as festas escolheu a festa obscura, a núpcia do mistério e do silêncio, em que não se vê o noivo, como se ele tardasse dentro da noite, devendo ela esperá-lo ali, de ouvidos atentos, hoje, amanhã, depois, dentro da noite, sozinha (sim sozinha), na espera do noivo, sozinha num deserto, na aridez da espera de um noivo que tarda, mas que virá (porque prometeu), mas que virá não se sabe quando, até quando? Até quando?... então sim, então eu compreendo bem que os pobres pais sem fé se aflijam e se lamentem. E não me levem a mal o riso que mal disfarço, envolvendo na tristeza de um vazio quarto de moça, de um armário com vestidos inúteis, de um par de sapatos esquecidos a um canto, essas grotescas histórias de zebus, estátuas, jornalistas e cangurus.

Não me levem a mal, porque rio-me aqui como lá se ria aquele monge moribundo do padre Manuel Bernardes, com a diferença que o meu riso é por procuração, antecipando-me ao bom riso final desses pais amados por Deus. Chorem hoje, embora, chorem adiantados. E antes assim, que o riso é sempre melhor que chegue atrasado. Quando porém a família é católica, integrada naquela já muitas vezes mencionada civilização cristã, o nosso espanto, diante do espetáculo de oposição às vocações, se torna perfeitamente justificado. De onde querem essas pessoas que saiam as freiras e os padres? De onde querem que nasçam os santos? O que me parece bem claro é que não querem santos na família. Não digo porem que os não querem deliberadamente, positivamente, que sejam capazes de sufocá-los. Não. O modo de não querer é antes evasivo e negativo: uma espécie de anticoncepcionalismo espiritual. Na maioria dos casos ainda é mais brando e disfarçado esse não querer santos em casa, não chegando a ser uma frustração. É apenas um espanto, uma perplexidade, um problema que nunca fora sequer armado. Aquela menina nunca passou pela idéia de ninguém que ela acabasse no claustro. A novidade é chocante porque sempre nos parecera que padres e freiras existem, como outras coisas existem em torno de nós, sem que nós contribuíssemos para isto de algum modo. A chefatura da polícia, o prefeito, o observatório astronômico, e muitas outras instituições existem sem que ninguém nos venha buscar os filhos em casa. São coisas que sempre vimos, inevitáveis, indiscutíveis e quase tão naturais como os lagos e as montanhas. Agora, aparecer-nos casa a dentro uma dessas coisas é tão fantástico e subversivo como se devêssemos nós doravante, amassar o pão que comemos ou tecer o pano com que nos vestimos. Tudo isto, normalmente, vem de fora. Quem traz o pão é o padeiro. O Tesouro da Juventude explica às crianças que o pão é feito de trigo, e que o trigo se planta e se colhe, mas essa história nos parece uma lenda remota. Dizem também os livros que a água vem dos rios, e que os rios nascem da chuva, mas para nós a água vem do cano. O que eu quero dizer com esses esdrúxulos exemplos, é muito simples: nós outros,os baluartes da civilização cristã somos uma raça secularmente habituada a receber a água da bica, o pão do padeiro, e os padres das misteriosas usinas onde eles se fabricam. Ou melhor, somos uma raça pouco habituada a dar. Por isso, os diversos processos de produção nos parecem alheios, e sobretudo devidos, indiscutivelmente devidos. Se escasseia o pão, nós dizemos: «Há poucos lavradores! Há falta de braços! Nós precisamos de mais padeiros!» Se há falta de padres, nós bradamos com severidade: «Há falta de padres! Precisamos de padres!» O que eu quero dizer, em suma, é que a nossa raça, ou classe, ou lá o que seja, tem a finíssima sensibilidade dos sismógrafos de precisão para registrar aquilo de que precisamos. Dias atrás, num de nossos suplementos, a grande escritora Rachel de Queiróz, que freqüentemente não acha o que fazer e o que dizer com seu talento, estampou uma carta curiosa de um cavalheiro que procurava a verdade e que, de passagem, reclamava a falta de heroísmo dos católicos. Precisamos de heroísmo! A descoberta que mais nos assusta fazer é que nós precisamos dar.

Reclama-se abundância, pureza e heroísmo, dos outros, como se essas coisas fossem tão devidas como um regular serviço municipal. Uma das causas dessa mentalidade está na complexidade do mundo moderno (o que é inevitável), combinada cm a falta de unidade moral própria da sociedade burguesa. Nossas atividades são pouco produtivas, ou muito indiretamente produtivas. Somos burocratas, funcionários, intermediários, citadinos, professores, dirigentes, conferencistas. Esta situação, faltando-lhe a retificação, inculca o hábito de não estabelecer a necessária ligação entre o trabalho e os seus frutos. O burocrata, mesmo na mais útil das funções, é um pobre sujeito que se move numa atmosfera de valores abstratos. Passa o dia escrevendo relatórios ou exposições de motivos; vive registrando nomes de coisa que nunca viu. No fim do mês recebe uma certa soma de dinheiro. Com esse dinheiro no bolso ele sai e compra manteiga, por exemplo. Vejam como é diferente o caso do sujeito que tem uma vaca, que a ordenha, e que levando o leite à batedeira, obtém a mesma manteiga. Este homem vê o encadeamento das causa: o leite saiu da vaca, a manteiga saiu do leite. No caso do burocrata, porém, as relações parecem acidentais. Não há uma linha de causalidade essencial ligando o relatório ao ordenado e o ordenado à manteiga. Neste esquema as linhas de causalidade são fortuitas, caprichosamente cruzadas, dando a impressão de um mero jogo. É claro que a inteligência do problema se restauraria se, a par da crescente e inevitável complexidade social, crescesse também a consciência da fraternidade política e do bem-comum. Faltando esse elemento resulta nas pessoas que vivem longe do trabalho imediatamente produtivo, o vício mental de não apreender a conexão entre o seu trabalho e o seu ordenado. O seu trabalho parecerá de um arbitrário que toca a demência; o seu ordenado passa a ser considerado como um indefinido direito sem outra regulação a não ser a resistência do meio. Agravando-se, esse vício – não saber que precisa dar – penetra os recantos mais íntimos da personalidade e chega às fontes da vida natural, com a recusa de gerar filhos, e às fontes da vida espiritual com a mais categórica recusa de gerar santos. *

Pretendo agora mostrar que nesse crime da frustração das fontes da vida a responsabilidade feminina é maior do que a nossa. É inevitável o desagrado que estas palavras causarão, embora eu me esforce em provar que nessa acusação está contida uma homenagem. As mulheres são muito suscetíveis a esse tipo de reivindicação ainda que nos esforcemos para lhe adoçar as arestas. Enquanto o processo dos costumes e da política era feito em torno do Homem com H maiúsculo, elas se sentiam alheias, consentindo em crer que toda essa história se passa entre os homens com h minúsculo. Mas logo que começamos a dizer: «as mulheres...» cada uma se considera logo atingida. Enquanto nós outros temos a propriedade, talvez ainda mais assustadora, de raramente nos sentirmos atingidos, as nossas queridas companheiras deste vale de lágrimas são facilmente desconfiadas e vêem, quase sempre, em nossas generalizações uns oblíquos propósitos de alusões pessoais.

Mas é fácil provar que, havendo coisas em que o mundo masculino é mais responsável, não é injusto pensar que para outras coisas seja mais responsável o mundo feminino. Estou que a recusa de dar é mais grave na mulher do que no homem. Sob esse ponto de vista pareceme que o emburguesamento da mulher é ainda mais repulsivo do que o nosso. E digo isto como corolário do adágio: a corrupção do ótimo é péssima. A mulher, efetivamente, tem na sua natureza, na sua alma, nos seu corpo as fontes da vida. Ela mesma é uma fonte viva, que dá seu sangue normalmente, numa espécie de ensino, de treinamento, de exercício periódico de sacrifício cruento. Resulta daí uma aparente contradição logo nas primeiras conseqüências: ela nos parece mais guardadeira, mais absorvente e mais mesquinha do que nós. Mas até aí está certa. Ela tem de ser assim pela força de sua natureza e de suas próprias virtudes. Se um de nós, por exemplo, quer dar a bicicleta do filho ao garoto da rua que veio ingenuamente pedi-la, a mulher se interpõe com violência – Você está doido! Se queremos deixar que o amigo traga uma camionete para levar mais depressa nossa biblioteca, a mulher se atravessa no caminho, mesmo que não estime demais a biblioteca. E marca os livros. E lembra-se dos que não foram devolvidos. Se a gente, num arroubo, quer dar cem mil réis ao pobre, ela dá dez mil réis e olhe lá! Mas um dia, essa mesma mulher que reduziu a dádiva e limitou o empréstimo, dá sua vida, toda, sem discutir, e sem admitir que se discuta, para não frustrar a vida que possa nascer de sua morte. Isto é um fato. É claro que existem damas que sufocam a criança que acabou de nascer: os jornais estão cheios dessas coisas. Nem quero eu levar minha polidez ao ponto de romantizar as realidades. Mas é um fato verificável, experimentável, que aquela mesma senhora que um dia nos pareceu mesquinha – aquela mesma! – foi capaz de dar sua vida, toda inteira, pela vida de um outro... Dir-se-ia que ela desdenhava um pouco essa nossa generosidade masculina que se exprime por bicicletas, livros e notas de cem cruzeiros; dir-se-ia que ela precisava aquela retenção, aquela coesão, aquela força estranha de guardar, reter, reduzir, economizar para a explosão final de uma generosidade perfeita. O que a mulher entende por dar, no dicionário de seu sexo, na clave de fá de sua pauta, é diferente do que nós outros entendemos, e é quase sempre traduzido por um sinal concreto, muito substancial, muito próximo de nossos olhos, de nossas bocas, de nossas mãos. Tinha razão o infortunado Werther quando descrevia o mais belo espetáculo que jamais avistara: a cena em que Carlota distribuía a merenda das crianças. O exaltado romântico tinha mais bom senso do que muito realista, sabendo ver ali, naquela cena familiar e simples, a chave do eterno feminino, o mistério da mulher eterna que o mesmo Goethe procurará em vão nas outras situações, que Wagner procurará em vão na magnífica duplicidade de Kundry, e que Gertrud Von Le Fort procurou também, um pouco em vão, a meu ver, entre os mais autênticos símbolos cristãos. Werther tinha razão em dizer que aquela partilha de um bolo entre as crianças era o mais belo espetáculo do mundo. E Michelet, um outro grande desvairado, que também escreveu sobre a mulher um livro quase completamente insensato, tinha razão de ver a figura da perfeita caridade num quadro de Andrea del Sarto, em que o pintor representava uma mulher moça e robusta, cercada de pequeninos mendigos. E adivinhem que esmola lhes dá essa mulher compadecida? Que moedas lhes distribui? De que bolso profundo as arranca? Lá está ela, a mulher caridosa que tirou lágrimas de nosso bom adversário; lá está ela fixada na tela na penumbra do museu, a nos ensinar como é que a mulher dá, a dizer-nos como é próxima, quente, substancial, a caridade perfeitamente feminina. Ela toma nos braços os meninos pobres, ergue-os, pendura-os em seu seios, e dá-lhes o seu leite, esse vinho de doce e branca ebriedade, esse sangue de paz. *

Deus que sonda os nossos rins, escolheu uma mulher para que o Verbo descesse à humanidade do homem; e escolheu-a virgem, isto é, econômica, guardada, retida. E foi essa mulher a primeira criatura que por si e por todos disse: «Faça-se em mim segundo a vossa palavra!» Deus, que sem nós nos criou, sem nós não nos pôde salvar. No momento decisivo da redenção, quando estava suspensa a salvação de todos nós e de cada um de nós, Ele precisou – atrevo-me a dizer – do concurso da criatura. E escolheu-a mulher, para que ela dissesse por si e por nós, com sua força, com sua voz, na clave misteriosa de seu sexo: «Faça-se em mim segundo a vossa palavra». Depois cantou o Magnificat. E depois calou-se, guardando o grande segredo de dor e glória, debaixo do véu e dentro do coração. Perdão. Ela não se calou até o fim. Houve um dia em que tornou a falar, e nesse dia, que era um dia de festa, por pouco não deixou escapar o amoroso e doloroso segredo de seu Filho. Isto passou-se em circunstâncias que lembram o espetáculo que Werter achou ser o mais belo do mundo; apenas em vez de pão tratava-se de vinho. Foi no terceiro dia, durante as bodas de Caná da Galiléia que a Mãe de Deus, que se achava entre os convivas, tornou a falar. E eis o que ela diz ao seu Filho: «Eles estão sem vinho...» A boa dona de casa, a boa mãe, inquieta-se porque os vasos chegaram ao fim antes do fim da festa, no terceiro dia. É o amor da ordem que a leva a pedir a intervenção de seu Filho. É o instinto econômico que lhe dita aquelas palavras. Quisera talvez poupar, distribuir melhor, reter um pouco. Mas agora, já que os vasos se esvaziam, o instinto guardador se subverte. Já é tarde para reter, agora é tempo de dar. E então apela para seu Filho: Eles estão sem vinho. O mistério virginal desabrocha no mistério maternal. Diz eles. Eles, somos nós. Nós somos os filhos. E a mãe que se inquieta pelos seus filhos, quando lhes falta o vinho ou o pão, é bem diferente do homem impulsivo que quer dar a bicicleta e os livros. Ela também quer dar, mas no fim de contas o que ela quer é guardar. Guardar os filhos. Por isso se inquieta e intercede: Eles estão sem vinho... Mas depois, como sabem disse para os criados: «Façam o que Ele lhes ordenar». Ora, é aqui, nesta palavra que parece menos generosa do que a outra, que reside a verdadeira e essencial generosidade. Reclamando vinho, ela mais queria guardar do que dar; ensinando a obediência perfeita, agora sim ela ensina a perfeita oblação. Eis como se invertem as coisa, ou pelo menos como nos parecem elas invertidas, em relação aos eixos usuais dos valores masculinos, quando é uma mulher que fala. Em cada um dos termos daquele binômio aparece o paradoxal mistério da virgindade maternal que concilia, numa harmonia de alto nível, a humildade que retém e a generosidade que entrega. Mas nós passamos em silêncio o que Jesus disse quando sua Mãe chamou-lhe a atenção para a falta do vinho. Ouçam, ouçam agora a estranha palavra que Ele disse: «Mulher, o que temos nós dois a fazer juntos? Minha hora ainda não chegou».

É curioso notar que todos geralmente se espantam que Nosso Senhor tenha dito «mulher» a sua Mãe. Dois sábios exegetas que consultei apressam-se a explicar, antes que o leitor pense mal, que os gregos e os orientais empregavam esse termo, em relação às pessoas da mais alta honorabilidade, em sinal de respeito dobrado de ternura. E fazem bem em explicar depressa porque parece que na linguagem e nos costumes dos ocidentais, o termo «mulher» tornou-se um desaforo. A mim me parece entretanto, com todo o respeito que os ignorantes devem tributar aos sábios, que os exegetas, na precipitação de uma interpretação que quase parece uma desculpa, deixaram escapar a chave desse misterioso diálogo. Eu creio que a palavra forte e nítida está ali, no texto, para bem assinalar que as duas declarações de Maria, a do vinho e a da obediência, estão inscritas e devem ser compreendidas sob a clave da mulher. O texto dispensaria aquela palavra sem sacrifício da clareza; seria mesmo mais claro, como se depreende do esforço dos exegetas. A sua presença, entretanto, parece ter a intenção de bem marcar que aquele diálogo se passa com uma mulher que pede. O resto da frase ainda mais obscuro e difícil se nos afigura: «Que temos nós dois a fazer?» ou «Que temos nós dois, tu e eu, com isto que acontece?» O filho parece afastar a súplica. Diz que a sua hora ainda não chegou, e que ainda não há entre os dois, ou ainda não atingiu sua plena medida, alguma coisa que dê a Maria o direito de pedir mais vinho. No decorrer dos séculos os teólogos tentarão explorar em toda a sua profundidade o direito de Maria pedir, interceder e cooperar com seu Filho. Haverá choques de escolas, desvios de doutrina, novas teologias que pretendem violentar as posições clássicas da Igreja. Haverá milagres, aparições, curas de cegos e de paralíticos, longe de nós e perto de nós, para avivar nos homens orgulhosamente masculinos a idéia dos direitos de Maria. Haverá debates, discussões, investigações, mas agora, agora naquele terceiro dia das bodas de Caná nós estamos ouvindo o rumor nascente das águas da vida na sua própria fonte. E as palavras são muito simples, mas muito misteriosas também. Diz a mulher: «Eles não têm mais vinho...» Diz o Filho: «Mulher, o que temos nós dois a fazer? Minha hora ainda não chegou». E a mulher retorna: «Façam o que Ele lhes mandar». E o Filho que parecia recusar, obedece àquela que é a própria obediência. Nesse texto, penso eu, não é preciso muita erudição para descobrir que mulher quer dizer mulher. Exatamente, literalmente. Nosso Senhor está marcando com esta palavra a clave feminina em que transcorre o diálogo. Como na música, se não temos a clave não sabemos que valores e que relações exatas têm as notas. Quanto à dura observação que até parece uma recusa: «O que temos nós dois a fazer... minha hora ainda não chegou», além da linha nítida traçada entre o Criador e a Criatura não seria possível descobrir, no tom, no conteúdo mesmo, uma espécie de admiração e até, digamos assim, de susto, se é possível tal sentimento na Pessoa divina? Eu por mim, não acho impossível essa surpresa e essa admiração, porque em outra passagem do Evangelho, diante da confiança do Centurião, está claramente escrito que Jesus admirou-se. Ora, nesta passagem das bodas de Caná, parece-me que ele tornou a admirar-se, a quase assustarse, diante do pedido de sua Mãe. E a surpresa do Filho, quando ouve dizer que «eles estão sem vinho» explica-se na clave da palavra Mulher. Deus que sonda os nossos rins, sabe como é feita a mulher; sabe que sua dedicação não se manifesta, como a nossa em dádivas fragmentadas de uma extrínseca filantropia; sabe que sua maneira de dar é dar-se toda, até a vida, até o sangue.

Por isso, imagino eu, quando ela lhe fez aquela súplica de vinho, como mulher, Jesus viu, pela primeira vez, antecipadamente, o vinho transformar-se em sangue. Dir-se-ia que ela, Mãe de Deus e dos homens, se adiantava, que ela tinha deixado escapar, ali na festa, naquele terceiro dia das bodas de Caná, antes do tempo o segredo dos dois. Ela pede vinho. Ele diz: a minha hora (do sangue) ainda não chegou. A Mãe adiantava-se, evidentemente. Intercedia antes do tempo. E não ficava como saída para a misericórdia de Deus, assim assaltada de surpresa, senão duas coisas quase contraditórias em relação ao pedido: detê-lo, e obedecê-lo. Foi o que Ele fez. E todos os convivas se admiraram que o dono da casa tivesse deixado para o fim o seu melhor vinho, não sabendo que o verdadeiro dono e a verdadeira dona da casa, naquele curto e esquisito diálogo, tivessem deixado para o fim um outro vinho infinitamente melhor. *

Deixamos para trás, aparentemente, o problema da missão cívica da mulher. Muitas pessoas estarão talvez decepcionadas com o desenlace deste estudo. Que o estejam com a feitura, com a má arrumação das partes no todo, com os defeitos de lógica e de ritmo é perfeitamente justo. Deus sabe de que reservas pude eu tirar este trabalho que aqui lhes trago. Desculpem-me de tudo. Mas do nexo que existe entre a missão cívica da mulher e as bodas de Caná eu não lhes peço desculpas. Permitam-me, para terminar, um breve alinhavo das principais idéias. Começamos pela missão da mulher. Assinalamos o estado atual da nossa cultura: uma espécie de carência do elemento feminino. Apontamos as duas grandes vitaminas: o véu, símbolo da vida interior; e a doação, o dom de sim mesma, sinal de generosidade perfeita. Vimos que a mulher, quando dá, dá coisas muito próximas e muito vitais. Vimos pelos olhos admirados de Werther, o grande romântico, a cena em que Carlota divide o pão pelas crianças. Vimos o leite, que continua a correr, lá no quadro de Andrea del Sarto, na penumbra do museu. E vimos o vinho que abundou nas bodas de Caná, ou melhor, traduzindo-o com o dicionário de Maria, que nisto se mostrou mais solícita e mais apressada do que Marta, vimos os primeiros sinais do sangue de Jesus. Tudo isto, se estou certo, nos ensina que faltam em nossa civilização burocratizada esses dois elementos vitais, o gosto da obscuridade e o dom de sim mesmo, e que está nas mãos da mulher, sob esse ponto de vista, a sorte da nossa civilização. Tragam-nos pois esse pão e esse vinho, em mãos de mulher, com gestos de mulher. Quem ainda duvida que nós precisamos do socorro e da ajuda feminina? Nós precisamos da mulher. Não somente em casa, como as vezes se diz. Mas na cidade, no mundo, na civilização. Precisamos que venham, mas que venham realmente como mulheres, isto é, com a paciência do véu e com a impaciência do amor.

A voz dos Papas canonizados A Igreja — diz Santo Agostinho — peregrina no mundo entre as aflições dos homens e as consolações de Deus. Nos dias que correm tornaram-se tão graves e cruéis as aflições trazidas pelos homens que mais imperiosa do que nunca se tornou a procura das consolações de Deus.

São várias as fontes onde podemos receber o alívio e o conforto para a nossa Fé. O principal é sem dúvida o Santíssimo Sacramento do Altar onde Jesus está conosco, como prometeu, até a consumação dos séculos. Aí de nós se, em torno deste calvário de cada dia, deste Sacrifício incruento, os homens da Igreja trouxerem a atoarda do mundo que impede nas almas o contato do grande e decisivo mistério de nossa salvação. Outra fonte de grandes consolações, sem as quais a alma católica não pode viver, não consegue perseverar é a do exemplo dos Santos, que são elevados pela Igreja à glória do altar, não para acrescentar alguma coisa à glória que já tem no Céu, mas para nos trazerem o esplendor de esperança irradiado por seu exemplo. A Igreja Católica é a Igreja de Cristo, e, por conseguinte a Igreja dos Santos. Mais salutar e vivificante se tornará a fonte de consolação procurada quando nela se encontram cruzados esses valores excelsos: o mistério da Santa Eucaristia e o mistério da santidade. Quando, por exemplo, pensamos num São Tarcísio, nossa meditação encontra um doce exemplo de conúbio dos dois mistérios. Mais forte ainda será o exemplo trazido por um São Pio V que nos é apresentado como exemplo de santidade pela obra principal que nos legou, e que precisamente consiste no resguardo que a codificação litúrgica o seu santo pontificado ergueu em torno da Santa Missa. Neste caso o exemplo de santidade nos é oferecido na figura de um Papa. De certo modo seria razoável esperar em tal cargo tal perfeição já que a boa doutrina nos diz que Deus assiste com especial abundância de graças aqueles que sobrecarrega com excepcional peso de cuidados. Seria de esperar — se os homens respondessem a Deus como Ele deve ser sempre ouvido — que todos os papas fossem santos ou deixassem sinais de ardente busca de perfeição. Mas a Igreja de Cristo, neste mundo, milita asperamente contra três cruéis inimigos: o Demônio, o Mundo-mundo e o Amor próprio. E é por isto que se vê uma assustadora diminuição de papas canonizadas, isto é, apontados pela própria Igreja como exemplo de seguidor de Jesus, na proporção em que, ao longo da história, o humanismo obscurece o cristianismo, o amor próprio é tido por dignidade humana, e o mundo-inimigo (Jo XV) é recebido como se coubesse à Igreja a função de se adaptar a ele, contrariando o que tão energicamente disse o Apóstolo. “Nolite conformari huic sæculo” (Rom 12, 2). Corramos os olhos pela história da Igreja. Até o ano 530 todos os papas são santos; até o fim do século XIII contam-se mais 19 papas canonizados. A partir deste século grandioso, século de São Tomás e São Luís de França, século que nos aparece hoje envolto numa névoa como se fora mais sonho do que realidade, em toda a enorme distância que nos separa somente dois são os papas elevados aos altares: Pio V († 1572) e Pio X († 1914). Impõe-se desde já uma conclusão evidente, sobretudo quando contraposta à sombria realidade dos espetáculos de impiedade que a tantos arrastam para perdição eterna: a criteriosa atenção que merecem as vozes desses dois papas na atoarda que ultimamente se inculca como magistério católico. Se alguém, com fino escrúpulo, quer atender à virtude da santa obediência em matéria sagrada, aproxime-se desses exemplos que, embora afastados na cronologia do mundo, estão mais perto de nós do que a hierarquia atual. Estando colocados no altar, pela autoridade infalível da própria Igreja, estão perto de Cristo que no sacrário está perto de nós. Este número de PERMANÊNCIA, motivado pelo que acabamos de dizer, oferece ao leitor matéria de estudo, meditação e devoção, principalmente em torno de questões que concernem ao Papado, e especialmente de questões que se referem ao Mistério do Santíssimo Sacramento do Altar. Veementemente exortamos: leitor, procure compreender bem em que consiste o drama de nosso tempo, procure aguçar a inteligência da Fé, sem a qual corremos o risco de não ver as mais monumentais pedras de tropeço. Abra os olhos da Fé, alargue o coração para amar a Deus com a verdadeira Caridade que Ele mesmo nos entregou como um “talento” de inestimável valor.

Para a melhor compreensão de teu “Credo”; para maior amor de tua Cruz, aproxima-te daqueles exemplos magníficos que a Igreja nos oferece. Para isso trabalhamos com fervor escrevendo, traduzindo e rezando neste número especial que colocamos aos pés da Virgem Santíssima, pedindo para nossos leitores a graça da lucidez sobrenatural. (Editorial da Revista PERMANÊNCIA, Nov/Dez de 1975, n° 84/85 Ano VIII)

Anarquismo e progressismo A crise de nosso tempo poderia ter este título que encerra uma grotesca contradição, e que tem seu tipo representativo mais cômico nos descendentes de Bakunin que começaram na Espanha a infiltração e a perseguição religiosa antes dos comunistas marxistas. Romanticamente se apresentavam como militantes de um mundo novo munidos de uma pistola na mão direita e da enciclopédia na esquerda. O programa era sucinto: beber o sangue dos últimos padres na cabeça craniana do último dos reis. Lembrando a alta que os títulos dos revolucionários tiveram na convulsão de 1789, que nos foi inculcada como feito de glória universal, seria melhor, naquele retrato do herói anarquista, trocar a pistola pela guilhotina, mas a imagem que já me parecia insustentável com a enciclopédia na mão esquerda, fica decididamente inimaginável se na direita quisermos colocar a aparatosa guilhotina. Mas, sob o ponto de vista do valor simbólico, insisto na guilhotina, e quem quiser se apegar à figura romântica desenhe na imaginação um Robot gigantesco portando na mão direita uma guilhotina, e na esquerda a Britânica ou a Barsa. E insisto na guilhotina porque o supremo ideal do anarquista é a decapitação, e não a morte qualquer produzida por uma bala nas partes baixas, ou nas obras mortas do corpo humano. Não foi por mero acaso que nos primórdios da Revolução Francesa o doutor Guillotin inventou a guilhotina, e até submeteu-a à apreciação do rei Luis XVI que tinha pendores para a mecânica e para a serralheria. Não sei se é apócrifa a anedota; mas a Guilhotina tornou-se uma sólida realidade. E tornou-se o símbolo da democracia liberal que contesta o princípio da autoridade em nome de “virtudes cristãs enlouquecidas”. Autoridade está para a cabeça como a idéia para a imagem ou para o símbolo. Chefe quer dizer “pessoa investida de autoridade”, e quer dizer cabeça. Em francês a primeira e direta significação do termo é a de cabeça: “Le chef de saint Jean-Baptiste...”, e a significação derivada é a de autoridade moral. E enquanto permanecemos na consideração de termos e de imagens aproveitamos para assinalar o curioso aspecto do ideal democrático baseado no igualitarismo. Não podendo evitar um mínimo de organização social ou de hierarquia, tal regime, para não ser autocrático, tem de ser dirigido por decapitados ou por acéfalos. A segunda solução, ao longo da história, pareceu mais prática e já houve um espirituoso, não me lembra quem, que chegou à fórmula do regime anarco-democrático: um povo de decapitados dirigido por uma dúzia de acéfalos. (continue a ler) Até aqui o jogo de imagens e de palavras, mas não apenas um passatempo e muito menos um divertimento. Esse jogo resulta da emergência de símbolos que os homens, sempre que os agitam,

queiram ou não queiram, produzem. Símbolos que revelam e escondem. E agora procuremos sondar essa estranha, diria até essa inacreditável corrente histórica que é o anarquismo. O pretexto, comum a todas as correntes socialistas, é a má distribuição de bem-estar e de felicidade que vai pelo mundo. Os homens sofrem, há felizes e infelizes, sadios e doentes, ricos e pobres. Até aqui o pretexto do anarquismo coincidiria com os que animaram o estilete de Sófocles ou de Eurípides. Mas o anarcosocialismo, ou a anarco-democracia define com contorno geométrico toda a tragédia da condição humana: o homem sofre porque há abuso de poder e exploração econômica. Uma coisa, porém, é o pretexto, e outra é a causa profunda. O anarquismo vale-se dessas aflições superficiais, explora-as a serviço da intensa e profunda paixão de rebeldia absoluta contra a idéia de hierarquia, contra a idéia de autoridade -– contra o Senhorio de Deus. Metafisicamente o anarquista é um materialista, não no sentido habitual do monismo que nega a existência de seres espirituais, mas num sentido que eu diria oposto a “gestaltismo”, ou num sentido que mais se traduz num comportamento e num desejo do que numa cosmovisão. O anarquista tem aversão às formas e quereria a revolução, o champardement geral, o aplainamento de todas as excrescências, a pulverização de tudo, do mais diferenciado para o menos diferenciado, como quem sonhasse com uma apoteótica e demente oposição ao Gênesis, graças à qual devolvesse ao nada este mundo mal feito, e irreparável com retoques gradativos, remendos, pespontos e cerzideiras. O anarquista é materialista, não por descrer de Deus e do espírito, mas por cumprir a lei da matéria, por estar a ela entregue, por ela arrastado graças a uma ruptura interna com que se engana a si mesmo, e a si mesmo proclama que cortou alienações, e que agora é livre para construir da estaca zero um novo mundo, um novo humanismo, um novo... E é aqui que se articula o anarquismo com o progressismo, a pistola com a enciclopédia. Mas essa ambição de enfrentar a obra de Deus não pode ser feita por um só poeta, ainda que ele tenha o gênio de Nietzsche. Tal empreendimento precisa de uma concentração de toda a esparsa essência humana. Em Adão essa essência já esteve uma vez concentrada; e por essa singularidade que se explica, ou se encontram linhas inteligíveis, pistas acessíveis à razão natural, para uma quase visão do mistério do pecado original e de sua transmissão a todos os homens. Há na teologia mariana um princípio que nos orienta nas especulações e nas conexões entre os artigos de fé: é o princípio da singularidade, pelo qual dentro da pluralidade de seres especificados pela mesma essência, e individuados em matéria pluralizada, Deus quis criar alguns homens em situação de especial e única singularidade que, em vez de romper sua união com a multidão que povoa a espécie, ao contrário une-os a todos de um modo que só nele se realiza. Assim Adão é o primeirohomem, vértice absoluto singular e único do ângulo que abrange toda a humanidade. Maria também é a primeira e única concebida sem pecado. Voltemos ao ponto: em Adão realizou-se uma concentração única e singular que só por isso teve a inimaginável capacidade de ser depositário e legatário de tão espantoso patrimônio. Mas para tamanho pecado precisou do fraco apoio da mulher, e do forte estímulo do demônio. E os anarco-socialistas? Já respondo esperando que o leitor entenda, antes de mais nada, que sua posição, deles, antes de ser política, sociológica ou econômica, é religiosa, é teológica. O anarcosocialista sonha com a revolução mundial, que congregue toda a humanidade numa condensação capaz de um ódio contra Deus que inutilize toda a obra de Cristo que a Igreja ousar contar com o atrevimento de gloriar-se na cruz e de dizer felix culpa. Mas para essa congregação e essa condensação explosiva, os militantes precisam invocar todas as categorias do afeto humano, precisam falar muito em amor, precisam contorcer os braços dizendo que chora pelos pobres, e para tudo isto precisam de uma organização, de uma anti-Igreja. E à frente de todo esse movimento o anarquismo precisa de bandeiras e hinos concitando ao progresso. A multidão de imbecis, de apóstatas, de novidadeiros, de esclerosados, e de invertidos ou subvertidos não se detém para considerar o sentido das frases e muito menos para ponderações metafísicas.

Os que se detiverem e consultarem as noções simples do senso comum verão logo que há uma contradição entre os dois ideais propostos, porque progressismo, seja qual for a sua linha, sua definição, ou o número de aspas que coloquemos para advertir os transeuntes, não pode nunca fugir a uma noção a menos que renunciemos universalmente a acreditar no sentido das palavras. Progresso será sempre, nesta ou naquela linha, uma procura do melhor, uma busca de formas mais perfeitas; seu tropismo, mesmo nas aberrações e nos desvios, será o do espírito, e portanto contrário ao tropismo da revolução e da anarquia * O conúbio observado na crise da Igreja, entre a tendência anarquizante e a dita “progressista” é apenas uma colossal impostura com que se atordoam os espíritos fracos. Na verdade, o que chamam de avanço e progresso é um desmoronamento de tudo, um movimento regressivo, ou uma evolução sim, mas evolução que segue a lei da matéria e da morte, e não a lei da vida e do espírito. * Trazendo para o plano da cultura as considerações atrás tecidas, eu diria que a crise da Igreja não é, nem pode ser, endógena. Não vem de dentro da Igreja, porque o “dentro”, eclesial, ou o eclesial propriamente dito é santo, sem mancha e sem ruga. Vem do que há de exterior, mundano ou carnal nos membros da Igreja, e vem do que há de exteriorizante, de mundanizante e de materializante no envoltório cultural em que a Igreja está imersa para o serviço dos homens que Cristo na cruz veio salvar. É na civilização apóstata, hedonista e soberba de nossos dias que se entrecruzam todas as contradições, e a “crise” da Igreja consiste na volúpia, no entusiasmo, no sinistro prazer com que os maus eclesiásticos, ou os eclesiásticos imbecis de todos os níveis, querem trazer para os seminários, para as casas religiosas e para o culto, todas as misérias da civilização. Admiremos, se quiserem, todas as conquistas técnicas do mundo moderno, que são conquistas do espírito. Sim, são o “exercício do domínio das coisas exteriores e interiores” que é uma glória do homem, glória que no Paraíso recebeu com os dons preternaturais infusos. Começa a loucura da civilização no ponto em que os homens não sabem, não desconfiam, ou esqueceram que: QUANTO MAIOR FOR ESSE PROGRESSO SOB O SIGNO DA QUANTIDADE, E DIRETAMENTE APLICADO À MATÉRIA, MAIOR É O IMPERATIVO DE AFIRMAÇÃO, DOS VALORES E DO PRIMADO ESPIRITUAL. E essa afirmação se faz principalmente no reconhecimento humilde e adorante do Senhorio de Deus, e na busca de um progresso na direção da perfeição suprema que é Deus. Insisto: quanto mais vezes atingirmos a Lua, e quanto mais poderosos e variados forem nossos engenhos, mais essa pesada matéria-segunda de uma espessa, brutal e engenhosa civilização precisará da Igreja-Igreja presença visível de um mundo que não é deste mundo, segregação ostensiva que se nega ao nivelamento, que se recusa à secularização para não trair sua tarefa e para servir aos homens, e oferecer aos pobres atarantados um abrigo de paz e uma sombra de luz. É errônea, e tangencia a imbecilidade a idéia de ser como o mundo, de não querer parecer outra coisa, quando justamente Cristo sofreu para deixar essa glória de paradoxo e de expectação na esperança teologal e quando salta os olhos, para os que têm olhos, que outra coisa não quer esse atormentado mundo senão uma Igreja contrastante, reduto primeiro e último do primado espiritual. Mais uma vez: a Igreja não tem de atender “às exigências do mundo moderno” porque o século não tem cabedal nem direito de exigir coisa alguma do que lhe é infinitamente superior, mas a Igreja deve, como sempre fez, atender às súplicas mal expressas pela cacofonia universal. Se Ela, para isso, devesse se transformar em botequim, em boate, em supermercado, então poderíamos torcer os braços de desespero e gritar ao crucificado: fomos enganados, Senhor! As portas do Inferno prevaleceram!

Mas se o mundo desacertar em guerras, conflitos e ganâncias, e multiplicar o número de infelizes, não podemos nos queixar da Igreja, da Tradição, dos Apóstolos, de Cristo: porque essas coisas nunca foram prometidas como gratificação de bom comportamento religioso, nem jamais constituíram função primeira, principal e até secundária da Igreja. A Igreja é uma presença de criação sobrenatural engastada na criação natural; ou não é nada. Insisto: mais do que nunca, e justamente por causa dos astronautas que transtornam as poucas idéias de tantos eclesiásticos, precisamos de oração, de contemplação, de mosteiros silenciosos entregues às primícias da eternidade. Precisamos desses catalizadores espirituais, e é nesta linha que devemos progredir e, tanto quanto Deus quiser é nesta linha, com o muro de nossos trabalhos, de nossas aflições, de nossas pedras de tropeço -– tudo cimentado com o Sangue -– que devemos resistir à onda crescente de afronta ao Senhor. * Aplicadas as mesmas idéias aos regimes políticos, não nos apeguemos aos nomes e às bandeirolas. Não nos embaracemos nas ambiguidades pérfidas, mas procuremos tenazmente defender os bens de uma estrutura política vivificada pela filia, orientada pela eunomia, e finalizada na eleuteria. Esse regime, para ser um regime, um REGIME, tem de se firmar no princípio da autoridade; tem de promover a participação do maior número na promoção do bem-comum, e tem de cuidar com especial zelo do melhor aproveitamento das verdadeiras elites, para que a quantidade não afogue a qualidade, e para que as populações crescentes tenham pequenos salvadores nos múltiplos episódios da vida: bons médicos, médicos excelentes, médicos de 1º time, sem as quais a Medicina inteira mergulha num processo regressivo; bons engenheiros, bons militares, bons cronistas, bons tudo, porque é somente com esse conjunto de primores que a humanidade se manterá erecta. O regime que despreza as elites, que despreza o chefe, e sonha com um igualitarismo popular já provou o que vale, já faliu, já estourou; e de seu ventre viu-se sair o mais monstruoso dos regimes, que hoje quer inundar o mundo. Sempre, em todos os tempos, prevalecerá o estilo evangélico que Churchill tão bem aplicou à batalha aérea de Londres que a RAF venceu: “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”. Mas a quem imaginar que mudei de 180º minha filosofia democrática, direi energicamente que mudei em alguns pontos, que abri os olhos para descobrir os falsos ideais do mundo da Lua. Mas não esqueço a regra de ouro que Santo Tomás ensina: que tudo –- elite, hierarquias, povo -– seja para servir. Que tudo coopere para o bem-comum, e que a preocupação amorosa e ardorosa dos mais altamente colocados seja a dos mais desprovidos. E não recue nenhum dirigente, nenhum titular, diante do termo “paternalismo” lançado pelos anarquistas como sinal de torpeza e abominação. Não há sociedade sem muitas correntes de paternalismos. O professor é pai, o governador é pai, o superior é pai, o abade é pai, o padre é pai, e o pai é pai — e todas essas paternidades procuram imitar a do Pai nosso que está nos céus... A proscrição da idéia e da palavra “paternalismo”, ou o sentido necessariamente pejorativo dado a esse “ismo”, traduz o estado de anarquia de uma civilização que ousa ainda falar em fraternidade. Dentro desse monstro seremos quatro bilhões de bastardos, filhos de pais desconhecidos.

Ano novo? À meia-noite do dia 31 acordei sobressaltado com o foguetório que festejava, a seu modo grosso e ruidoso, o nascimento da coisa nenhuma que se dá o nome de Ano Novo. Confesso que meu primeiro sentimento foi o de uma justíssima irritação, mas logo sobreveio um segundo sentimento de admiração diante de tão comovente e estúpida obstinação. Quê? Então ainda esperam alguma coisa das folhinhas e das órbitas planetárias? Ou inventaram mais uma vez um modo de fingir que inventaram? Porque na verdade fingidor não é só o poeta, nem é ele que quase merece este título como definição de seu absurdo modo de ser, não; fingidor é o mundo inteiro. Finge tão ruidosamente que chega a fingir que espera do Ano Novo o que ainda já dos dias só desespera. Pobre gente. Naquela meia-noite de 31, acordado pelo ruidoso foguetório, pensei no planeta que, nos seus trinta quilômetros por segundo (se não me trai a memória aposentada do astrônomo que não cheguei a ser) acabava de traçar seu arco habitual de eclipse onde só existe marca ou sinal de estremecimento na cabeça dos homens. Nada é mais uniforme, mais liso, mais plácido, mais impávido do que as órbitas dos astros. Em torno da forma delas e sobretudo de suas inter-relações houve muita querela de que nunca participaram o sol, os planetas e as estrelas distantes, porque essas sonolentas criaturas mal acordadas do nada, ex nihilo, nada sabem dizer de si mesmas, de suas excelências e de suas prevalências. Mal sabem balbuciar seus nomes sendo o que são. Imagino o espanto de Messer frate il Sole se lhe fossemos dizer que ele tinha sido nomeado por Copérnico, ou por seus maus discípulos, centro imóvel em torno do qual descreviam os planetas suas insípidas órbitas circulares. E, se o astrorei tivesse mais apurada capacidade de se espantar, imagino sua apiedada estupefação quando lhe dissessem que aquela demarcação trouxera aos homens da Renascença uma euforia maior do que a dos pobres 31 de dezembro convencionais e fatigados. Na minha infância, alegremente astronômica, aprendi com o bom Flammarion que o sistema planetário, guiado pelo sol, não fechava suas elipses, não voltava jamais ao ponto de partida: num cortejo que hoje me parece sinistro, despencávamos todos na direção da constelação de Hércules. Hoje sabemos que é tão acertado ou tão estúpido dizer que o sol anda ao redor da terra como dizer que é a terra que gira ao redor do sol. Na física pós-einsteineana não há referenciais absolutos no universo. Quem quiser pensar em centro, ou em ponto referencial, terá que procurar fora e acima da física outra linguagem: a do senso-comum e a da mais apurada filosofia: em ambas eu volto a dizer que o centro é o observador e portanto é ainda aqui mesmo, e não no sol, que podemos fazer alguma demarcação sensata. A própria constelação de Hércules deixou de ser o objetivo, ou a estação para a qual nos dirigimos porque, a rigor, esse conjunto de estrelas a que associaram o nome mitológico de Hércules só existe por invenção nossa, e só existe enquanto, apesar do caminho já feito, ainda permanece praticamente constante a figura do conjunto estelar. Quando lá no meio delas nós chegarmos, veremos que as Alfa, Beta, Gama etc. debandaram, e que o Hércules do céu evaporou-se em todas as direções. Volto a admirar a tenacidade com que a humanidade inventa suas demarcações, como esta sucessão dos anos e a outra dos séculos. Já não diria o mesmo da demarcação das horas que mais diretamente nos é imposta pela natureza das coisas. Nesta estação do ano durmo com a janela aberta, e quando o despertador às seis horas me acorda, a primeira coisa que me surpreende, ou que me agride, é aquele retângulo lívido a me dizer um bom-dia que soa como um escárnio. Estremunhado, pergunto ao monstro: — Estou vivo? Cada manhã acordo como um sobrevivente... E aqui me acode a lembrança de Rubem Braga, nosso gracioso cronista que desapareceu. Terá emigrado para Marte? Creio que seu gênero mais se inclinaria por Vênus do que pelo rubro Mavorte dos guerreiros. Sento-me na cama olhando os meus pés sem nenhuma admiração, apesar do incitamento do profeta que clama: “Como são belos os pés dos que anunciaram pelos montes a vinda do Senhor...” Isaías? Creio que sim, mas agora a memória me salta para Dimitri Karamazov, preso sob suspeita de parricídio, e para maior de suas desgraças, sentado na cama, vê que tem os pés nus — e no

espetáculo miserável dos artelhos dados em espetáculo do mundo, Dimitri sente tamanha humilhação que logo, para todos os policiais presentes, se transforma em evidência de culpa. Agora é um verso de Guerra Junqueiro que emerge de minha adolescência. O piedoso autor de A Velhice do Padre Eterno, devendo pagar os dízimos da estupidez da época, não podia ficar omisso à injustiça social: descreve o despertar do lavrador como um coice do monstro que em outro contexto será docemente chamado “rosicler da aurora”. Mas esse rosicler é um luxo capitalista. O lavrador é sacudido da enxerga nestes termos: “Levanta-te, animal! Tens fome e não tens pão”. Quando meu desgosto de acordar se prolonga, e sobretudo quando me chegam aos ouvidos os rumores dos “sete deveres de estado” de que me queixei a Manuel Bandeira — but that’s another story — costumo me sacudir com o alexandrino de Guerra Junqueiro: “Levanta-te, animal! Tens fome e não tens pão”. Na verdade não preciso trabalhar para o pão já que mais sofro de inapetência do que de fome, mas tenho carro e preciso pagar a gasolina no preço em que está para que os reis da Arábia tenham mil mulheres e automóveis de ouro — coisas que me irritam mas não me trazem a mais tênue inveja. No dia 1° de janeiro acordei assim cercado e disposto a continuar a caminhada que neste dia começa meu octogésimo ano. Neste ponto perdi a vista e a possibilidade do gosto da leitura, mas os pés conservam a mesma disposição de me levar pelos vales e montes no serviço do Senhor. Vão calçados, e assim pode ser que não desmintam a profecia. Chego assim a este ponto da vida “comme un vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin”. Como Mauriac, sinto-me levado dia a dia, pouco a pouco, até a hora em que Deus me quiser arrematar por inteiro. No regaço da Mãe da Misericórdia, ensaio não sei quantas vezes por dia o que devo dizer naquela hora: — Eis aqui o servo do Senhor, faça-se em mim segundo a Vossa Palavra. O Globo, 8/1/1976

Como se inventa Visa o presente estudo investigar o processo e a natureza das faculdades especiais que caracterizam o inventor, esse singular indivíduo que consegue combinar, de um modo novo, os elementos antigos, criando um objeto novo como um abridor de latas ou um Radar. Convém, entretanto, antes de prosseguir, esclarecer melhor a distinção entre o inventor e o descobridor. O primeiro tipo de atividade pertence ao campo do fazer e define-se pelo ato de imprimir uma forma nova à matéria já conhecida; o segundo pertence ao campo do conhecer e consiste em descobrir e formular novas propriedades e relações já existentes no objeto, mas escondidos à inteligência. A emissão eletrônica constituiu uma descoberta; a válvula eletrônica, foi uma invenção. As leis do pêndulo — esse antiqüíssimo objeto — foram descobertas; o relógio baseado no isocronismo pendular foi inventado. Andam geralmente combinadas as duas coisas; a descoberta, na maior parte dos casos, não prossegue sem o auxílio de novos instrumentos que constituem invenções auxiliares; a invenção também muitas vezes se detém porque as propriedades de algum dos elementos não estão suficientemente conhecidas. O técnico distingue-se do cientista por ser um indivíduo em que o fazer prevalece sobre o conhecer, e o inventar sobre o descobrir. Os dois grandes resultados da ciência moderna — o Radar e a Bomba — são resultados muitos característicos da distinção que aqui estou tentando. A bomba é sobretudo uma descoberta; o Radar é uma invenção. No primeiro caso o elemento predominante é a propriedade de um corpo, e o elemento secundário é a aplicação dessa propriedade; no segundo caso é curioso notar que nenhum princípio científico novo foi usado, sendo entretanto novo o arranjo desses elementos e novo o objeto.

O técnico, como seu irmão o poeta, é mais inovador do que o cientista e o descobridor. Quem descobre um satélite de Júpiter ou uma nova propriedade do oxigênio está apenas pronunciando pela primeira vez, com verbo humano, o que já estava escondido no céu ou na terra; quem faz um saca-rolhas ou um poema, esta fazendo um objeto que antes dele não existia. O que vou dizer a seguir do homem que inventa, se aplica de certo modo ao homem que descobre, porque, como já encareci, as duas atividades têm muitos elementos comuns e andam quase sempre entrelaçadas. Por uma questão de método, entretanto, tratarei do inventor sem voltar às inevitáveis relações que fazem dele, acidentalmente, um descobridor. Vejamos agora quais são as faculdades principais que caracterizam o inventor. * A primeira que me ocorre é um certo "grau de loucura" que sob melhor exame nos aparecerá como semente de sensatez. É uma espécie de coragem da razão prática que não esmorece quando o que a imaginação lhe propõe tem aparências de subversão. Essa faculdade pode ser definida como uma insubordinação à praxe. O técnico, é facílimo prová-lo, tem uma elevada estima pela norma, pela regra, e até pela rotina, sendo o tipo de homem que mais se preocupa com a boa garantia das repetições. Neste ponto ele se distingue do poeta: o principal mérito de seu trabalho está na garantia de repetição. Por outro lado, entretanto, ele se assemelha ao artista, possuindo uma impulsiva virtude de renovador. É tão avesso à praxe como o poeta, e não se diga que há paradoxo nisto que estou dizendo agora depois de ter dito que o técnico aprecia a norma e a rotina. O grau de loucura do inventor é uma virtude que distingue veementemente entre a norma e a praxe. Para tornar isto mais claro vou esboçar o retrato do homem-que-não-inventa, do homem-praxe. Ele é de tal modo feito que cada coisa em que esbarra, ou cada objeto que fita, atingem instantaneamente uma irremissível senectude. Racionalista que nem sequer raciocina, ele inscreve fatos e contrai hábitos ligados quase mecanicamente aos fatos classificados. Se nasce uma criança, esse fato que, por mais que se repita, é sempre uma coisa prodigiosa, o homem praxe, no limiar da porta da parturiente, ouvindo os primeiros vagidos, vendo ainda o sangue da mãe venturosa, encontra frases automáticas que convenham à ocurrência. E alegra-se com esse confortável Universo onde os fenômenos se repetem como os dias da semana, tornando inofensivos os nascimentos e as agonias. As crianças nascem; os doentes morrem; depois do dia vem a noite; depois da noite, o dia. A alegria do homem-praxe não tem condimentos de admirações, mas de conforto. As circunstâncias, natividades e mortes, servem para confirmar o perfeito funcionamento desse relógio monumental que bate as horas da vida: Parabéns! Pêsames! Estimo melhoras... Se a mãe está nos transes da agonia, ele encontrará um prazer intelectual em dizer com voz cava, como convém: "estamos esperando o desenlace em qualquer momento"; ou então, "os prognósticos são sombrios". A construção de uma destas frases dará ao homem-praxe uma compensação intelectual à mais sincera dor moral porque o seu enunciado põe em boa ordem esse universo onde as mães, a certa idade, costumam falecer. Na ordem prática, o homem-praxe é a própria negação da aventura; e, por conseguinte, da invenção. Assisti faz tempo, em portão de casa rica, a uma pequena cena que completará o retrato de meu personagem. No momento em que eu passava, um vendedor de bilhetes de loteria acabava por convencer o dono da casa a guardar um bilhete que tinha o final do avestruz, fato este que constituiria o obscuro argumento a favor do bilheteiro. É possível que o avestruz não tivesse relação alguma com os sonhos do rico proprietário, e não me custa admitir que o meu vizinho se decidira à compra movido pela caridade. O fato é que o meu homem ficou com o bilhete, e já ia tirando a carteira, com monograma de ouro, quando o rapaz declarou: "A

sorte grande está nas suas mãos doutor, amanhã venho buscar meus dez por cento..." Voltou-se então o doutor, rápido, exato, preciso: "Não senhor! Cinco por cento! É a praxe". Por aí se vê que a loteria, a absurda probabilidade, a incrível aventura, o desafio à sorte, a aposta com o destino, já estava, para o meu vizinho, vigorosamente inscrita na agenda das coisas que se fazem conforme os preceitos rigidamente consagrados. Ora, o inventor é o inverso daquele homem. Poderá ter menos caridade com um pobre rapaz metido dentro duma roupa de riscadinho, mas não pecará por essa terrível falta de generosidade contra a amplidão da vida. Sua loucura poderá levá-lo a atos estapafúrdios, como de pregar um rabo de papel num senador ou jogar malabares com os talhares num jantar de cerimônia. Sua irreverência, sua sede de novas combinações, se não encontrar equilíbrio no adequado objeto, transvasará em incongruências. Mas a praxe, morta e seca, é a coisa que mais lhe repugna. * A segunda faculdade indispensável ao inventor posto que pareça contrária da primeira, é a que a equilibra e completa. É uma crença fortíssima na estabilidade das coisas. Há uma enorme diferença entre essa confiança do inventor na estabilidade, e a idéia de praxe. O inventor deseja a estabilidade como um alpinista. Ele inventa e inova somente porque é capaz de desejar que um objeto dure. A idéia do progresso e da evolução contínua é a que mais depressa faria desanimar o pesquisador de uma forma nova. Essa idéia, que gera a verdadeira loucura, é a primeira a ser afastada pelo homem que durante meses e anos é capaz de permanecer fiel à sua obra. De um modo geral o homem sensato só muda de situação porque lhe apetece permanecer noutra situação. Essa nova permanência será longa ou curta sem que a questão se modifique essencialmente; mas se a idéia de permanência não estiver agarrada àquele grau de loucura do inventor, então ele enlouquecerá de fato. A mais brilhante perspectiva que anima o inventor, como a mais alegre promessa que encoraja o indivíduo que muda de casa, é a nova estabilidade, a casa nova. Quem inventa, como quem se casa, sonha com longos dias de fruição e certamente se estancaria seu trabalho se um filósofo do devenir lhe viesse demonstrar a efêmera fragilidade de sua obra. Fora da invenção, em horas de pessimismo, ele dirá que a obra humana é fugaz e que o mais engenhoso aparelho, ao cabo de alguns anos, é objeto de museu; na invenção, porém, ele crê na duração das obras. Há quem diga que o poeta (e o inventor também) é o sujeito obrigado ao exercício dos dons. Deita no papel seus poemas como a galinha põe um ovo. Não lhe importa o objeto, mas somente o ato de se aliviar dele. Não lhe importa a duração do objeto, mas somente a transição de fora para dentro. Daria eu à essa doutrina o nome de filosofia espasmódica da arte, e provaria, se aqui tivesse mais vagar, que ela não é verdadeira. Talvez esteja em torno dessa idéia a explicação da esterilidade em muitos sujeitos bem dotados. Desligar a arte (ou a técnica) do interesse pelo objeto, pela sua concretude e duração, é qualquer coisa que me lembra prática do anticoncepcionalismo. Parece-me pois, não somente malsã, essa filosofia do espasmo, mas sobretudo falsa e estéril. O próprio da arte é tender para o termo de um objeto, e se é exato que todo dom pede exercício, é ainda mais completamente exato que o exercício pede a satisfação de um termo. Diz-me um jovem amigo que à sua vocação poética não importa que os versos sejam publicados ou mesmo apenas conhecidos entre duas pessoas. A única coisa que importa é o momento vivido naquela milagrosa transição em que se alivia de um ovo mágico. Eu creio nesse alívio que todas as aves do universo, inclusive os poetas, sentem quando põem um ovo; mas o ovo é um termo, um definido objeto, e serve como símbolo de fecundidade. E creio, por isso, que todas as aves do universo, inclusive o poeta, gostem de ver a maravilhosa forma nova que branqueja no fundo do ninho.

Creio que foi Rilke que teria dito a algum jovem inquieto que o poeta se conhece quando sente que morreria se não se sentasse para escrever o poema. Não tenho o texto à mão. Mas se Rilke queria dizer que o impulso característico do poeta é o que impele ao ato de escrever, discordarei dele. Para mim, o artista verdadeiro conhecerá sua vocação quando sente, de modo inconfundível, que deve terminar sua obra. O ímpeto de começar um poema, não há quem o não tenha sentido. O ímpeto de acabá-lo é muito mais raro e decisivo. Chegar ao termo é a fórmula principal do artista ou do inventor. Muitas vezes tem sido feito o paralelo entre a elaboração de um livro e uma gravidez; em ambos os casos deseja-se um termo, mas a diferença é maior do que a semelhança pois o termo do parto é na verdade uma origem. A poesia, desprendida do poeta, continua uma história, mas só podemos dizer que ela continua uma vida abusando das palavras. A obra feita é realmente um termo: em lugar de compará-la a um nascimento eu prefiro compará-la a uma boa morte; e o poeta, nessa nova ordem de idéias, seria o homem que não se cansa de fazer testamentos, parecendo-lhe sempre, cada um que faz, um novo testamento. O que eu quero dizer, nessa longa digressão, é que o artista deseja um objeto premiado com uma unidade, profunda e real. Se é escritor, o mais legítimo e sensato de seus desejos é o de ver o livro pensando desde já no formato, na grossura, no número de páginas, e na figura que fará, em pé, real, concreto, palpável, entre os outros livros da estante. Ora, ao inventor o mesmo se aplica. Sua recompensa, ou melhor, a razão de ser de todos os seus esforços é o objeto terminado e dotado de uma robusta permanência. Digam-lhe embora que amanhã ou depois seu engenho será um trambolho na sucata, ele não crerá. Suas virtudes o impedirão de crer na usura, como à maternidade premiada também não pode ocorrer a idéia do que será o filho aos setenta anos. A criação é uma vitória sobre o tempo. Sem esse elemento, sem essa forma nova de loucura tranqüila, complemento da outra, irreverente, o inventor não inventará. Ele é o único a não crer no progresso técnico, justamente quando está imprimindo um impulso a esse progresso. Para ele, esse progresso não é uma rampa. Quando muito será uma escada. Os arquitetos sabem que a harmonia e a facilidade ascensional duma escada dependem da relação entre a altura e a largura do piso. Assim é também o progresso técnico, carecendo cada obra, cada novo impulso, pelo menos, o espaço para um pé. O inventor é um teimoso alpinista que acredita em platôs, e que também crê nos modestos patamares da imensa escadaria que muitas vezes ele tem a paciência e a obstinação de galgar de joelhos. Contarei a pequena história de um curioso invento que apesar do malogro, ou talvez por causa dele, serve para ilustrar o que ficou dito e o que ainda conto dizer. Foi em Paris no ano de 1782, quando a Revolução rondava as portas da Tulherias, que o monge beneditino Dom Gouthey teve a idéia de falar a grandes distâncias por meio de canos de ferro. O rei Luís XVI, benévolo para coisas mecânicas, encorajou e subvencionou a primeira experiência num percurso de oitocentos metros. O resultado foi bom. Gritava o monge numa das extremidades do cano, ouvia o rei na outra. Quis então o inventor estender a experiência à distância de cento e cinqüenta léguas, mas o rei, com a inconstância dos poderosos, ou talvez porque não pudesse comprar tamanha quantidade de canos, abandonou o projeto e esqueceu-se do inventor. Dom Gauthey, muito mais inventor do que monge, não se considerou vencido. Abre uma subscrição pública, desenvolve durante seis meses uma enorme atividade, e, não logrando alcançar a centésima parte da necessária quantia, embarca para os Estados Unidos, onde desaparecem seus traços. Não se sabe se ele voltou à estabilidade prometida, segundo a Santa Regra monástica, ou se até a morte permaneceu na estabilidade técnica. Seja como for, aí neste exemplo as duas faculdades complementares que deixamos atrás assinaladas: a coragem de enfrentar um absurdo, e a paciência de permanecer nele e de crer na duração de seu pesado telefone. Se tivesse recuado diante do ridículo de gritar entro de um cano, ele não seria um inventor, mesmo malogrado. Mas também não o seria se lhe acudisse à mente que alguns anos mais

tarde seus encanamentos seriam completamente irrisórios porque um outro inventor conseguiria falar a enormes distâncias por um fio mil vezes mais fino. Os biógrafos costumam apresentar o inventor bem sucedido como um homem voltado para o futuro, ou como um indivíduo atormentado com a idéia de ser um benfeitor da humanidade. Esta é uma das muitas idéias admitidas que não tem o menor fundamento. Nada é mais desanimador para o homem em geral, e para o inventor em particular, do que a idéia do futuro. Se Dom Gauthey, no sossego de seu claustro beneditino, tivesse meditado longamente sobre os séculos vindouros, o progresso, a humanidade, outras quejandas, estou certo que abandonaria seus canos e voltaria ao ofício divino; o que, neste caso, seria melhor para ele. Pensar nos séculos vindouros, para o inventor, equivale, guardadas as proporções, a pensar uma jovem mãe, em doce enlevo, nas barbas brancas, no fardão acadêmico, ou mesmo no esqueleto de seu bebe. Às vezes acontece que o século vindouro estuga o passo e vem pisar os calcanhares do inventor. A história torna-se então sombria, como a daquele pobre vienense que há cerca de cinqüenta anos teve a idéia de montar num dos alegres cafés de Viena uma monumental orquestra mecânica. Vinte ou trinta instrumentos, de corda, sopro e percussão, seriam comandados por um disco perfurado, onde a música em conserva se libertaria do intolerável capricho dos virtuoses. Ora, estava o infortunado mecânico a dar seus últimos retoques nos recalcitrantes arcos de violino, ou a graduar o inanimado sopro das clarinetas, quando apareceram os primeiros aparelhos de rádio. Foi preciso remover o monstro, desmontando as enormes alavancas, que tomavam o espaço de oito ou dez mesas de consumidores. O inventor assistia ao precipitado advento do século que numa só pisada esmigalhava sua obra e sua vida. Foi visto todas as tardes na calçada fronteira, sombrio, acabrunhado; e, quando o pequeno rádio tocou a primeira valsa — segundo contam — atirou-se no Danúbio. * Vimos até aqui as duas faculdades complementares que constituem, a bem dizer, as disposições prévias para o invento. Apertando o cerco da questão, vamos agora tocar o ponto que me parece central. A inteligência do homem (do homem comum, e não somente do poeta ou do inventor) é dotada da estranha faculdade de aproximar o que é separado e distante. Em virtude dessa faculdade, que consiste em procurar o semelhante do dessemelhante, existe em todos os idiomas humanos o fenômeno das palavras iguais com significações diferentes, de que Aristóteles se ocupou no primeiro capítulo de seus Predicamentos. Exemplo: asa de xícara, asa do pássaro, asa do avião. Em virtude dessa mesma faculdade, que consiste também na procura de um termo comum de proporção, os poetas de todos os tempos usaram metáforas para dizer, por exemplo, que os olhos da bem amada são dois lagos. Com enunciado mais preciso, podemos dizer que essa faculdade provém do paralelismo entre as leis da inteligência e as leis do ser. Há em tudo que é uma solidariedade de existência, ou de possibilidade de existência, na qual a inteligência se banha sabendo que é seu esse mar por mais longínquos que sejam seus limites. O homem é naturalmente poeta, falando por metáforas; naturalmente metafísico, aderindo embora nem sempre com precisão consciente a um conceito universal análogo do ente; naturalmente teólogo, atribuindo nomes a Deus. Em todas essas situações ressalta, como fato principal, que a inteligência humana é particularmente ávida de analogias, o que lhe permite romper o terrível isolamento em que sucumbiria se estivesse presa, circunscrita, em cada instante, entre os objetos que defronta. Por essa faculdade do espírito humano cada coisa é dotada de superabundância e de misteriosas repercussões. Ora, considerando agora os processos psicológicos que decorrem da natureza da inteligência humana, é claro que varia, entre enormes limites, a agilidade mental capaz de tirar partido da riqueza das coisas.

No caso do inventor, eu diria que ele precisa ter, em medida invulgar, um tipo de inteligência que, embora por precisão ou agudezas, se caracteriza por um rico e flexível sistema de associações. Há pessoas que falando em vacas, só tem presentes e prontas para entrar em jogo na mente, as idéias correlatas mais próximas: leite, manteiga, problemas de pecuária ou de dieta. Outras, porém, dispõem de milhares de coisas que viu, que ouviu, em que pensou, tudo pronto para cruzar rapidamente o céu do pensamento, produzindo na passagem colisões, explosões, cintilações de onde saem outros com órbitas. Prontamente soltará dentro do círculo luminoso a lembrança do deus Osíris, o Egito inteiro, um quadro e pedaços de um discurso demagogo ouvido na véspera. O inventor, como o poeta, é o homem que procura o novo na colisão das coisas distantes. E não há perigo que se esgote um dia no mundo a invenção e a poesia porque haverá sempre novas intersecções que podem ser procuradas no firmamento da inteligência que espelha a inexauribilidade do ser. Examine o leitor, detidamente, o seu receptor de rádio e admire a confluência de coisas que ele representa. A caixa veio da floresta; o ferro e o alumínio, o vidro e o cobre, das quatro partes do mundo; a resina, as fibras, a borracha, que tinham seu emprego em milhares de outros objetos, encontram-se finalmente dentro do receptor; a cera das abelhas que Virgílio cantou, e que há séculos e séculos ilumina os altares, serve agora para revestir as bobinas. Abra agora um livro de versos, e pasme diante de uma outra confluência de coisas que o vento da poesia reuniu numa folha de papel. Aí estão novamente as árvores, as pedras e as abelhas numa prodigiosa convocação em cujo centro se vê um olho, um braço, um campanário de igreja, ou um riso de criança. Ouçamos John Keats: "Where's the Poet? show him, show him Muses nine, that I may know him! "Tis, the man who whit a man Is equal, be he King. Or poorest of the beggar-clan, Or any other wondrous thing A man may be "twixt ape and Plato; Wren or Eagle, finds his way to All its instincts; he hath heard The Lion's roaring, and can tell What his horny throat expresseth And to him the Tiger's yell Comes articulate and presseth On his ear like mother-tongue." Voltando a Dom Gauthey, que algumas páginas atrás deixei perdido em alguma cidade da Nova Inglaterra, consideremos atentamente a esdrúxula idéia que ele teve de gritar no ouvido de um rei a oitocentos metros de distância por meio de um grosso encanamento de ferro. Na cabeça de qualquer cidadão em 1872 o cano de ferro era adjacente à idéia de água, sede, banho ou repuxo. Um homem de idéias localizadas e circunscritas dificilmente aproximaria do cano a idéia de conversar. Para o monge, que era inventor, posto que malogrado, não foi difícil associar o peso do ferro à leveza da palavras; e daí o resto da história. *

Notemos agora uma outra faculdade complementar da que acabamos de tratar e que pode ser definida assim: uma especial capacidade de fixar o pensamento no mesmo objeto. A aparente contradição desaparece se considerarmos que a fixação da idéia central não impede o tumultuoso movimento das associações, mas subordina-o, nos seus mais caprichosos epiciclos, àquele centro. As duas faculdades juntas ganham porque a riqueza de uma se apóia na organização da outra. A abundância das associações sem a capacidade de fixar um centro daria o imaginoso erradio, anárquico, bom conversador, xistoso e trocadilhista. Ao contrário, a fixação sem a riqueza de associações dá o obstinado erudito ou o paciente colecionador. Somente do encontro harmonioso dessas duas virtudes pode resultar um poeta ou um inventor. O enamorado é sempre poeta e um pouco inventor. Seu pensamento central, que às vezes se torna uma idéia fixa, é a bem amada, em torno de quem, prontos para a galanteria, os acrósticos e os ciúmes, gira tudo o que brilha, cheira ou move-se dentro do universo. Às vezes predomina no namoro a invenção a ponto de se tornar a dama concreta uma espécie de suporte material para uma criação. Esses casos geralmente acabam mal, porque o sonho se dissipa e a corpórea dama subsiste com suas reivindicações. Em matéria de invenção é muito mais recomendável dedicar-se a um sacarrolhas do que a uma mulher. * Agora consideremos o momento em que as virtudes do inventor entram em movimento. Até aqui falamos das faculdades, resta agora dizer alguma coisa do exercício. O ímpeto para o exercício não constitui a bem dizer uma virtude nova, mas a própria virtude das virtudes. Todas as faculdades, por sua natureza, são inclinadas dinamicamente para a ação. Em moral há hoje, por uma estranha degradação dos conceitos, a idéia de que as virtudes são coisas negativas. Quando se diz que um sujeito é prudente, por exemplo, somos inconscientemente levados a pensar no que ele não faz. Ora, a prudência, reta razão do agir, é muito mais ímpeto do que reserva. É essencialmente ímpeto; acidentalmente uma força que se guarda mordendo os freios. Assim também as virtudes do poeta e do inventor. Desenvolvidas até a plenitude elas tendem irresistível à ação fazendo do seu possuidor um sujeito especialmente sensível às solicitações. Dir-se-ia que todas as coisas o desafiam, não existindo uma pedra, um fruto, uma ave, de onde não venha um "decifra-me ou devoro-te". Muitos desses desafios são abandonados; muitos são apenas respondidos em breves escaramuças; mas de repente vem uma solicitação de um certo tipo, bem enquadrada num conjunto de expectativas semiconscientes, ou inconscientes, e então, a partir desse momento, o homem criador se empenha a fundo, resolvido a ir até o fim. É um mistério a natureza dessa escolha, ou melhor, desse encontro. Por que irá este até queimar a mobília para conseguir o esmalte da porcelana? Por que irá aquele outro se atirar do alto da Torre Eiffel com duas asas de lona? Não creio que vence a idéia simplesmente por ter prolongado o inventor o seu convívio com ela; antes, creio que o prolongou porque a idéia já era vencedora. Seja como for, nesse momento em que o desafio é violentamente aceito, começa o processo da invenção. Com o desenvolvimento cresce o interesse e refluem sobre as virtudes, fortificando-as, as experiências que vem do objeto. Crescem o inventor e a invenção. E pode-se descrever esse processo a custa de duas coisas complementares que são outras tantas virtudes características do inventor, que entram agora em função. Trata-se, nesse processo (ou melhor nessa tática de combater pela solução) de uma capacidade de ficção aliada a um forte senso de realidade. Para explicar melhor a natureza desse novo conjugado de virtudes — a ficção e o realismo — consideremos o indivíduo que se entretém em imaginar o que vai fazer se tirar a sorte grande na loteria. Se não comprou o bilhete, não se apoiando então a ficção num elemento real, depressa se perde o sonhador no arbitrário. Uma vez

que tanto lhe faz pensar em um milhão como em dez milhões, acaba não podendo se fixar em cifra alguma, e o sonho se esvai por falta de chão. O bom ficcionista compra o bilhete para ter uma espécie de direito de pensar no prêmio. Todo rapaz de vinte anos, medianamente imaginoso, passando à noite diante das janelas da bem amada, deseja um brusco incêndio com vítimas anônimas, que faça a dama em desalinho aparecer na janela e pedir-lhe socorro. Num caso destes o importante é que o moço esteja realmente diante da janela da namorada. Em caso diverso, estando por exemplo diante do portão do Ministério da Fazenda, o sonho não teria nenhuma fecundidade, e logo se extinguiria depois de duas ou três tentativas canhestras. O homem de imaginação inventiva é o explorador dos possíveis. Em seu pensamento, as mil coisas que se agitam em torno da idéia central e que ele agora dirige, como um romancista, nunca chegam a perder a espessura ontológica. Ele sente a fecundidade das essências. Sente a pressão rica e viva das coisas, como se tivesse na mão um pássaro fremente. E um pássaro na mão vale mais do que dois voando. Passando diante da casa da namorada vem ao seu encontro um pacto de possíveis. Desdobram-se, enlaçam-se e solto no ar, mas enraizado no chão, cresce a árvore mágica que esse faquir rega com seus desejos. Assim, tateando as essências, conduzindo-as e sentindo-lhes as resistências, vai o inventor experimentando aproximações até que descubra, num desses choques, uma fecundação. Aí se imobiliza, crispado, atento, como um felino e demora-se o quanto pode no deslumbramento da presa apetecida. Nesse momento acode-lhe ao espírito uma impressão extremamente ingênua: ele vê o objeto, numa antecipação, como se já estivesse pronto. Não no detalhe, problema por problema, mas inteiro embora indeciso como desenho de criança. Ele vê a forma da coisa que pela primeira vez na história do mundo se desenha em sua inteligência, oscilante, líquida, como se estivesse surgindo no fundo de um lago. * Desse momento em diante, já com o sabor das primícias, ele volta atrás, aos detalhes, aos problemas, tendo porém o passo mais firme porque já viu pronto, num sonho, o objeto de seus sonhos. Se foi uma miragem apenas ele irá tragicamente até as últimas conseqüências porque entre essa miragem e o universo inteiro, com suas pedras, árvores e metais, ele crê e prefere a miragem. Vestirá suas asas de lona e se esborrachará diante dos parisienses atônitos porque num certo minuto se viu voando em imaginação, tão vivo e leve como se fosse um albatroz. * Nem sempre é necessário, ou possível, tirar conclusões de um estudo. Nunca é obrigatório. Um fenômeno qualquer, sendo bem observado e cuidadosamente relatado, já constitui um estudo autônomo de que não se pode reclamar uma conclusão. Poderia deter-me neste ponto, inquietar apenas a respeito do valor e da veracidade das observações, sem que ninguém me pudesse exprobrar a ausência de conclusões. Será possível, por exemplo, educar para inventor? Será possível desenvolver sistematicamente o dom da poesia e o da criação técnica? Aí estão outros tantos problemas. Há entretanto uma pequena conclusão que eu tiro logicamente das observações feitas. Se o estudo está certo, certa será também esta conclusão: o inventor técnico precisa de um ambiente rico de poesia, de filosofia, de formas diversas, onde enriqueça sua capacidade psicológica de explorar analogias. Em outras palavras: numa sociedade tecnicalizada a técnica ficaria rapidamente estacionária, e logo depois regrediria. Há um mistério de vida vivida, em casa, nos jardins, nos teatros, em cada parafuso do Radar e em cada peça de um abridor de latas.

Os russos ainda dançam e cantam. O feitor deles imagina que esses atos são necessários ao descanso, como ao burro que trabalhou o dia inteiro é necessário espojar-se de costas, com as patas no ar. Não lhe passa pela idéia que o pouco que eles puderam fazer em técnica (como a guerra demonstrou) tem as minguadas fontes nessa dança e nesse canto racionado que o Estado lhes permite. Se descobrissem esse fenômeno deixariam de ser comunistas continuando a ser russos. Ou melhor, voltariam a ser russos, e na próxima vez não passarão pelo vexame de combater os invasores de seu solo com armas emprestadas, inventadas e fabricadas numa Ilha pequena, por um esquisito povo que, durante os mais cruéis bombardeios de suas cidades, prosseguia na tarefa de editar as mais perfeitas reproduções de Rafael. (A Ordem, Fevereiro de 1947)

De profundis Sempre desejei escrever um estudo, um ensaio, um livro, para mostrar, aos que se escandalizam com os desconcertos do mundo, que é esse turbado espetáculo o melhor encaminhamento para uma demonstração da existência de Deus. Não pretendo ter achado uma nova via demonstrativa além das clássicas cinco vias da Escola. Penso apenas que aquele caminho, contraparte ou avesso do argumento baseado na harmonia do mundo, é o mais indicado para nossos tempos de paradoxos e crises. Talvez seja um remédio bom para todas as épocas, a julgar pela ênfase com que a idéia aparece no Antigo e no Novo Testamento. o livro do Eclesiastes, por exemplo, é uma longa demonstração, por absurdo, da transcendência da sorte humana e da existência de Deus, pois se ficamos nos limites traçados "sub sole", nos limites dos horizontes terrestres, a vida se torna inteiramente absurda. os grandes salmos, as grandes antíteses paulinas, tudo nos leva a crer que talvez seja a estrada real para Deus o escuro caminho das tribulações que desemboca no fundo dos abismos.

Olha em volta de ti, alma atribulada e triste. O mundo, com todas as suas montagens, com todos os seus prestígios, tem o ridículo das coisas frágeis que se julgam enormes. Olha em volta de ti, alma cansada, e considera as farsas, as máscaras, os espetáculos, as galas, os príncipes, as cúpulas, os demagogos, os dirigentes em todos os escalões, e os dirigidos, ah! os pobres dirigidos que se extasiam de admiração diante de quem os desfalca, diante de quem os oprime. Mundo, mundo, triste mundo... É bem verdade que sempre andamos a servir um Deus invisível, um Deus mergulhado nas coisas, um Deus escondido nas aulas que damos, nos artigos que escrevemos. Quando combatemos isto ou aquilo, estamos sempre procurando servir a exatidão e a veracidade das coisas, e assim sendo é sempre Deus, nos seus inúmeros pseudônimos, que estamos servido, consciente ou inconscientemente. Pode ser que nesta ou naquela circunstância o amor próprio tenha entrado com suas amargas exigências, e a doce e santa verdade tenha sofrido o ultrajante eclipse de nossa própria glória. Pode ser. Mas na media em que podemos aquilatar o que dissemos de todos os problemas provocantes que o mundo tem armado como um desafio, talvez nos possamos gabar — se nos permitem um momento de loucura — de termos sempre procurado servir a Deus, servindo o bem e a verdade nas suas difusas, minúsculas e efêmeras manifestações. Chega entretanto a hora em que toda essa luta se transforma numa espécie de pesadelo, ou numa espécie de loucura. Um cansaço mortal esmaga o coração. um coro de zombarias parece dizer que tudo é vão neste mundo absurdo e submerge a alma, matando não só as esperanças como também aquelas flores do passado que pareciam tão solidamente plantadas no fato de terem existido. E o mundo então nos parece mau. Mau e estúpido. Errado. Incôngruo. Abortado. Ora, é nesse momento,

nessa exata hora de acabrunhamento total e de total escuridão, que Deus nos surge e nos diz, não mais escondido, não mais disfarçado, mas presente e quase sensível, presente e quase visível, nos diz que sem Ele o desconcerto do mundo seria um gracejo das essências, ou uma insuportável piada produzida ao acaso pela matéria menor do que por nós e nossa autoria. Nos diz Deus, no fundo dos abismos, que sua existência é exigida pela ordem do mundo, pela harmonia das órbitas, das causas, dos seres, mais ainda mais urgentemente exigida pela desordem, que não pode ser a razão de ser do universo, a lei do mundo, sem nos forçar a uma loucura decidida, sem nos rebaixar à mais completa e humilhante capitulação. Sem Deus, o Mal vira Deus. E a alma cansada e triste fica sem saber de onde lhe vem a força de ficar triste, e a força de se sentir cansada. E de onde lhe vem a fatigada força de julgar o mundo. "De profundis clamavi ad te, Domine". Das profundezas de nossa aflição e das profundezas de nossa miséria. E é nesse momento, em que pelos critérios do mundo estamos mais rebaixados, nesses momentos indescritíveis, intransmissíveis, incomunicáveis, a não ser em gemidos, em imprecações, em frases de dor entrecortadas e sem sentido, é nesses momento de humilhação, de irritação, de quase desespero, que Deus está próximo de nós, descido pelos degraus que o Cristo carnalmente desceu, tornado opróbrio como ele carnalmente e visivelmente se tornou. Basta para isto um movimento da alma. Um pequeno movimento. Um movimento de pequenez, uma atitude inversa de tudo aquilo que os impérios prestigiam. "De profundis clamavi..." Mas nesse assunto em que a miséria e a glória se interpenetram e se confundem, é melhor buscar no Novo Testamento os textos mais convincentes, mais próximos de nossa aflição. E é a voz ardente do Apóstolo que nos contará as aflições que também experimentou. "Três vezes pedi ao Senhor que as afastasse de mim. Mas Ele declarou: — Minha Graça te basta, pois é na fraqueza que triunfa o meu poder. E então eu passei a me glorificar de minhas fraquezas a fim de que desça até mim a força de Cristo. Sim, eu me comprazo nas minhas fraquezas, nos meus ultrajes, nas angústias, nas perseguições sofridas pelo Cristo, porque quando estou na máxima fraqueza é que estou forte. Estou ficando louco? Sois vós que me compelis a me gabar..." Considera em volta de ti o mundo, alma ferida. Passam os bem-sucedidos e atrás deles o cortejo dos que esperam as sobras do prestígio, e atrás deles os fotógrafos, os jornalistas, os oradores, a humanidade de cabeça levantada no próprio engrandecimento. Passam depois os mal-sucedidos, e atrás deles os aproveitadores de misérias, os que tiram juros da miséria, votos da miséria, bem-estar da miséria, renome próprio, honra e glória, da miséria, da miséria, da miséria. E atrás deles passam os marcados pela cruz que sentem nostalgias dos valores que desfilam nas passarelas do mundo. Vêemse cristãos, padres, bispos, todos querendo ter ouro no bolso ou na auréola. E em volta de todo esse espetáculo de Dolce-Vita que transcorre no limiar do Purgatório ou do Inferno, vemos uma negra nuvem de espessa tolice a eclipsar a pregação evangélica. Sim, essa é a grande, a máxima desordem do mundo... Considera e reza. Considera, e imita a loucura do Apóstolo. E basta um movimento, assim como quem se volta, como que olha para o vulto que está a seu lado, basta um quase nada para sentir as pancadas do sagrado coração, do "Tell Tale Heart" do poeta. Na fraqueza é que sou forte! Porque é só na fraqueza que consigo, pouco que seja, silenciar as estridências do amor próprio, e ouvir as pancadas do coração do meu Senhor. (Transcrição do "Diário de Notícias", reproduzido na revista A Ordem em Agosto de 1962)

Depravação do corpo: "eles" começam pelas crianças

Muitas vezes aludimos à crise que envenenou o Ocidente cristão, e que hoje se tornou universal graças ao movimento histórico da ocidentalização que, por paradoxo, se volta contra o Ocidente. Mais de uma vez tentamos percorrer os marcos históricos e as correntes de idéias que animaram a chamada civilização moderna e que agora deságuam pelo imenso estuário de mil disparates num oceano de sombrias perplexidades. A Renascença e a Reforma, debaixo de seus aspectos progressistas, e a par dos reais progressos trazidos pelas ciências da natureza, que asseguraram ao homem o conhecimento e o domínio das coisas exteriores e inferiores, foi o primeiro degrau do itinerário em que o homem se extravia de si mesmo, e para ganhar o mundo hipoteca a própria alma. Depois, na Revolução Francesa temos outro marco onde começa a grande impostura moderna das histórias mal contadas. Poderíamos dizer, embora nos repugne o neologismo, que a história recente é uma sucessão de estórias mal contadas. Num processo de sucessivo empulhamento que começou nos primórdios da Revolução Francesa, com as famosas societés de pensée denunciadas por Augustin Cauchin, seguiu-se a história do socialismo, a ascensão do liberalismo, a Revolução Russa, e as duas grandes guerras. Até hoje se conta a história da 2ª Guerra como se a Rússia tivesse desempenhado nela papel decisivo, papel de vencedor. Agora temos a super-impostura do progressismo “católico”, como uma síntese de todos os erros cometidos pela humanidade nestes últimos séculos. E qual é a direção geral, o efeito principal desses movimentos históricos? Ninguém negará, evidentemente, a ocorrência de um progresso de que se gloria a moderna civilização: o homem inventou o telégrafo, a máquina a vapor, os computadores eletrônicos, o raio laser e finalmente chegou à Lua. Mas dificilmente se contestará outra evidência: o homem se distancia do humano, do espiritual, do sagrado. Os imbecis, evidentemente, pensarão que o homem só se reaproximará do humano na medida em que se afastar do espiritual e do sagrado. Em nossa reta doutrina nós sabemos que o homem, de dois modos e em dois níveis, transcende ao mundo físico e à história. Por sua natureza racional, o homem possui uma dimensão que ultrapassa todo o universo; por sua elevação à ordem da graça e por sua ordenação à glória da visão de Deus três vezes santo, o homem ultrapassa o próprio nível de sua natural humanidade. Ora, o movimento histórico a que nos referimos parece ter o objetivo principal de negar e de destruir esses títulos de nobreza que nos vêm da razão e da graça de Deus. Nas correntes filosóficas nascidas da mesma raiz nominalista, temos o chamado idealismo que desnatura o conhecimento, deixando o espírito humano encerrado em si mesmo; e o chamado empirismo que só abre para o exterior a janela da experiência, do fenômeno e da medida. Progridem as ciências físicas com essa mutilação; regridem as ciências propriamente humanas, que só podem viver centradas no primado do espiritual, que o empirismo resolutamente desconhece. Nessa direção será tanto mais avançado, tanto mais evoluído o homem quanto mais materializado se mostrar. Pervertidas as ciências humanas, por falta de centro e de referência a Deus, pervertem-se as tentativas de convivência política e social. No mundo de hoje temos os dois volumosos resultados de tal crise: de um lado o liberalismo dissolvente da dignidade humana, por ceticismo, tolerância e capitulação; de outro lado o totalitarismo socialista que degrada o homem por achatamento e escravização.

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Não diríamos que os homens estão sempre em guerra com os homens, como disse o perverso Hobbes, mas diremos que, a partir da grande apostasia histórica, os homens estão em guerra contra o homem. Dispensamos a maiúscula, mas não dispensamos a referência à essência, à natureza do homem. Há na história dos últimos séculos uma visível intenção de rebaixar e degradar o bizarro ser que ousou crer-se a imagem e semelhança de Deus. A Igreja lutou tenazmente contra as duas correntes corruptoras. Tornou-se hoje um lugar comum nas rodas progressistas dizer que a Igreja, antes de sua comunização, nada fez pelo mundo, pela sociedade e pelo homem. Diante do insucesso — critério que bastaria para ridicularizar o Cristo na hora da Cruz —, a primeira idéia que ocorre aos católicos progressistas é a de culpar a Igreja de ineficiência, e não a de argüir o mundo de indocilidade. O fato bruto é este: a Igreja, sobretudo no tumultuoso século XIX, não se cansou de apontar os erros do liberalismo, do modernismo e do socialismo. Ora, o liberalismo cobriu a metade do planeta, enquanto a outra metade vestiu-se de socialismo; e o progressismo católico está aí. Logo... a Igreja falhou. E se falhou é porque errou; é porque não havia compreendido o mundo. Agora estamos diante da obra-prima daquelas correntes históricas que trabalharam juntas para achatar a dignidade do homem. Estamos diante da depravação do corpo humano erigida em “momento histórico”. Cobre o mundo inteiro, nos seus hemisférios antagônicos, mas nisto concertados, a maré de pornorréia que pretende amortalhar a última veleidade de pureza inspirada pela idéia da Encarnação do Verbo, e constantemente iluminada pela figura da Senhora que apareceu às crianças de Portugal e da França no seu manto de Rainha e de Imaculada. A Igreja afrontou todos os ridículos, todas as finesses dos intelectuais que queriam ver no seu zelo germes de neo-maniqueísmo. Lembremos a voz de Pio XI que ainda trovejava contra o impudor. Em 1930, ontem!, o Papa se preocupava com os decotes e com o comprimento das mangas. E como nós todos nos rimos da pruderie do bom velhinho! E como evoluímos desde então! Pio XII, já com melancolia gritava: “Ó mães cristãs, se soubésseis o porvir de angústia, de perigos e vergonhas que preparais para vossos filhos e filhas, acostumando-os a viver tão despidos...”. Em vão gritou. Como assinala Luce-Quinette, “Itineraires” n° 139, outro poder, outra Autoridade do mundo dirige os costumes. E quando essa Autoridade comandou: “joelho!”, um bilhão de joelhos se descobriram; e quando a Autoridade decretou: “coxas!”, um bilhão de coxas se mostraram com docilidade, e nas mais variadas circunstâncias. Tudo isto parece pueril, dirão os inteligentíssimos progressistas que desaprenderam tudo o que o Cristianismo nos ensinou sobre a alma humana. E atrás dessa docilidade bocó com que todas as mulheres do mundo se afastaram do seu modelo, do figurino da única “grande Dame”, veio o dilúvio de impurezas, a maré de pornorréia que hoje nos afoga. Em Fátima, a Virgem também trovejou como trovejaram ex-catedra os papas. E eis o que Jacinta nos deixou poucos dias antes de morrer: “Os pecados que atiram no Inferno o maior número de almas são os da impureza. O mundo lançará modas que ofenderão Nosso Senhor...”.

Dirão os evoluídos que Nosso Senhor não irá perder tempo em tais futilidades, mas acontece que Ele tem uma estima infinita por esse nosso machucado e tão mal servido Corpo. Ele levou para o Céu o frêmito de divina alegria que sentiu no seio de sua Mãe, cumprindo a profecia: ela, a Sabedoria de Deus, se alegrará no meio dos homens. E nós, herdeiros desse júbilo divino, devemos compreender que a dignidade humana mais depressa começa pelo decoro da veste do que pela conquista da Lua. Não compreendemos. Rejeitamos as profecias, os sermões de Cristo, os conselhos dos Apóstolos, dos Papas, e deixamos invadir o mundo a maré de pornorréia que já começa a inquietar os mais adormecidos católicos. (...) A lepra inundou os costumes, envenenou os espetáculos públicos, ganhou as instituições oficiais, e conquistou lugar de honra nos institutos católicos. Sob o eufemismo de educação sexual o que se faz é erotização precoce e infinitamente perversa. Degradam-se as mulheres, maculam-se as consciências infantis, e com essas duas pontas de lança da ofensiva dos infernos, não se vê como será possível a reconquista da dignidade do Homem. Será sempre possível, com a graça de Deus, mas tememos muito que somente através de sofrimentos inconcebíveis poderá a humanidade lavar-se em um novo dilúvio. O ponto a que chegamos é sinistro: eles começam pelas crianças. Os novos pedagogos que nas Américas e na Europa querem libertar o sexo do universo moral, começam pela dessensibilização dos inocentes. Esse horror tem valia apologética, por tornar menos repulsiva a idéia de Inferno. Por aí, por um primeiro temor, por uma leve e inicial desconfiança talvez comece a onda de repressão. E nós podemos meditar nestas palavras que não passarão com as modas: “O que escandalizar porém a um destes que crê em Mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço a pedra da mó e que lançassem no fundo do mar”. (Mateus, XVIII, 6).

Editorial Permanência, n°18, Ano III, Março de 1970.

Do cientificismo às sociétés de pensée O Cientificismo Com o objetivo de apontar, na bacia hidrográfica a que nos referimos atrás, os principais afluentes que convergem todos na caudalosa Revolução que faz de nosso século um estuário de contestações e recusas, comecemos por este “ismo” que, no livro anteriormente citado (Dois Amores, Duas Cidades, Agir, 1967), foi apontado como uma das primeiras conseqüências da poluição nominalista. Cremos que vale a pena transcrever algumas linhas dessa obra: “Como atrás já dissemos, o termo cientificismo não designa o maior incremento de pesquisas nem o maior ardor de estudo nos domínios das ciências naturais. Tudo isto, em si, é bom. O que não é bom é o estado de espírito que coloca a ciência da natureza na presidência de uma civilização, depois da expulsão da Sabedoria. “Uma vez que a inteligência não alcança as coisas superiores — diz o homem moderno — apliquemola no trabalho de apalpar o fenômeno para dele tirar uma nova confiança em nós mesmos, e para ordenar a nosso gosto a imensa mãe telúrica, brutal, que às vezes, no seu sono pesado, mata os próprios filhos.

“Esse estado de espírito nos primeiros tempos produzirá grande euforia. A humanidade, depois de descobrir a pólvora, o movimento dos astros, a força do vapor, o poder mágico da eletricidade, terá, como teve nos séculos XVII, XVIII, XIX, momentos de inebriado otimismo. “A cândida idéia que logo ocorrerá nos espíritos fracos é a de que, na continuação dos tempos, a Ciência do fenômeno polirá todas as arestas do Velho Homem, iluminará todas as trevas, resolverá todas as dificuldades. Ora essa idéia, comicamente falsa, extravagante, delirantemente falsa, foi difundida e tornou-se o ar que respiramos e a água que bebemos, e isto aconteceu porque a Civilização Ocidental moderna já não tinha à sua presidência os dados da antiga Sabedoria. Se os tivesse, ouviria a censura clara [...]: a ciência dos elementos exteriores dilata o campo do domínio do homem sobre as coisas exteriores e inferiores, mas nada acrescenta ao domínio do homem sobre si mesmo. Uma civilização [...] não pode ser governada pelas ciências da natureza, que é cega, surda e conseqüentemente muda para os problemas mais comuns e mais profundos de nossa vida. Como já disse em outra obra1, a ciência pode-nos dizer que nossos pulmões estão anormais e devem ser tratados desta ou daquela maneira, mas é inteiramente incapaz de nos dizer, de nos sugerir o que podemos ou devemos fazer de nossos pulmões normais.” Hoje eu não diria que o cientificismo, isto é, a falsíssima idéia que espera da ciência inferior a solução para os problemas superiores, difundiu-se depois da desmoralização e do destronar da Sabedoria; antes diria que essa tentação foi um dos fatores que contribuiu para a rejeição da Sabedoria. E, assim dizendo, estarei apontando o “cientificismo” (e não a legítima glória das ciências) como um dos fatores do revolucionarismo evacuador da civilização. O Cientificismo e o Senso Comum Para entender bem o processo demolidor da subversão cientificista, é preciso compreender a imensa significação que teve nesse drama a desmoralização do “senso comum” promovida pelos “intelectuais” a partir do século XVIII, sempre em nome da “Ciência”. Todo o drama cultural que no século XVIII capitaliza explosivos para a Revolução Francesa começou pelo repúdio do senso comum, que eu chamaria de petite sagesse e que foi a primeira vítima da torrente nominalista que inundou os tempos modernos. E para compreender bem a gravidade e a infinita conseqüência desse processo precisamos saber o que não é e o que é o “senso comum” neste contexto. Poderia remeter o leitor à citada obra (Dois Amores, Duas Cidades, Agir, 1967, vol. II pp. 57 e seg.) ou recomendar o profundo estudo de R. Garrigou-Lagrange, Le Sens commun (Desclée de Brouwer, Paris, 1936); mas cremos prestar bom serviço avivando e condensando aqui as noções principais. De início lembremos que todo homem já nasce com todos estes dons de sua natureza racional: a) a alma espiritual ou forma específica pela qual o homem é homem; b) as potências da alma: a inteligência e a vontade racionais; c) as inclinações inatas determinadas pelo condicionamento (incluindo o corpóreo e o sensível), que favorecerá ou desfavorecerá a sorte ulterior dos “hábitos” adquiridos; d) os primeiros princípios, que são dons da natureza. A partir desse núcleo essencial começa a história das aquisições intelectuais e morais. O senso comum se situa na zona dos primeiros acervos da razão especulativa e da razão prática, é uma primeira metafísica rudimentar, e uma primeira filosofia moral. Situado entre a cercadura dos primeiros princípios e a cercadura maior e mais confusa do consabido cultural de cada época, ouso dizer que o senso

comum, de importância vital para todo o desenvolvimento ulterior do homem, está muito mais próximo dos primeiros princípios do que do firmamento das coisas sabidas por todos num momento histórico, e portanto participa mais da perenidade da metafísica (digo da reta metafísica) do que da fluência e da mobilidade do consabido, que anos atrás ignorava totalmente os raios laser, o código genético, a existência de um planeta transnetuniano e outras coisas desse tipo. O senso comum é um acervo das primeiras elaborações dos primeiros princípios e poderá ser enriquecido ou deformado pelo envoltório cultural. Gostaria de me estender longamente sobre a transcendental importância do senso comum tanto na vida temporal, particular ou pública, como na vida da Fé, que se torna dificilmente praticável numa sociedade que perde a docilidade ao real, e o instinto racional quase espontâneo, que levaria a razão a bem considerar as coisas se não houvesse perturbações culturais trazidas pela enxurrada da história. Sem o senso comum sadiamente começado e alargado sem estorvos, dificilmente pode o homem começar a fazer filosofia e teologia, dificilmente pode ser vivida a sabedoria. Este é o drama dos tempos modernos, desde a Renascença e a Reforma, que na obra anteriormente citada chamei “civilização do homem exterior”. E nesta “civilização”, mal nascida de imensos dramas intelectuais, morais e religiosos de toda a Cristandade, e marcada com sinais genéticos do nominalismo, um dos fatores mais nocivos para o senso comum, e portanto para todo o edifício da civilização e de seu relacionamento com a Igreja, foi o cientificismo. Torno a dizer: não foi em si o progresso da ciência das coisas exteriores e inferiores — a física, a astronomia etc. — que é razoável e constitui uma glória para o homem, e sim o preço filosófico e religioso que custou esse progresso, por ter sido orgulhosamente armado em forma de rejeição de mais altos graus de saber, isto é, em forma de revolução. Até hoje a pestilência do cientificismo continua a produzir seus frutos, como se vê no prazer sádico com que Bertrand Russell, sob pretexto de filosofia matemática, tentou desmoralizar o senso comum, e como se vê no próprio nível vulgar da estupidez moderna, que é, toda ela, tecida de pedante e asmático cientificismo. Creio poder afirmar que um dos grandes pioneiros desse espúrio subproduto das ciências foi Galileu — ou, mais exatamente, o “affaire Galileu”, em que o próprio foi um dos agentes, mas não o único. É pena que Jacques Maritain não tenha introduzido este d’Artagnan entre os Três Mosqueteiros da Revolução (Trois Réformateurs), que na verdade foram quatro. Para maior aflição nossa, o grande tomista teve a infelicidade de abordar o caso Galileu pela outra ponta, o que só vem servir os interesses da grande Rejeição. No seu livro recente De l’Église du Christ (Desclée de Brouwer, 1970), Maritain aborda o caso mais explorado dos últimos quatro séculos como se estivessem em jogo os direitos da Ciência feridos pelo Santo Ofício, e não como efetivamente estava em jogo a pretensão do “cientificismo” e a injúria feita ao senso comum em nome do “progresso da Ciência” 2 . Em vista do papel de destaque que esse caso desempenhou no afluente revolucionário que nos trouxe a este estuário de erros, não resisto à idéia de inserir, com a maior condensação possível, algumas considerações que, de início, têm o picante do desafio, porque levam a mostrar que, no caso, certo estava o Santo Ofício e errado Galileu. E antes que clamores de asneiras escandalizadas cheguem ao meu tugúrio, apresso-me a explicar o problema em termos de exemplar moderação. E desde logo observo que só entenderá alguma coisa do imbroglio quem tiver, razoavelmente claras, meia dúzia de noções.

Entre essas noções dou lugar de destaque ao senso comum, que é, por assim dizer, uma primeira trincheira onde temos de defender o humano. Forçado pelo espaço, contento-me com o que disse no tópico anterior, e com a leitura a que remeto de Garrigou-Lagrange (Le Sens commun), passo a ocupar-me da segunda, que diz respeito à estrutura e aos métodos das ciências da natureza: física, química, biologia, astronomia etc. O “Depósito Observado” e as “Teorias” Desde a Idade Média, e principalmente desde Santo Tomás, sabemos que convém distinguir, no cabedal científico a que damos vários nomes, conforme seus objetos materiais, duas coisas: a) O acervo dos dados observados e trazidos por observações e experimentações à prova da evidência sensível. Demos a este principal patrimônio, e principal critério das ciências, o nome de “dado fenomênico” ou de “fenômenos observados”, ou ainda lembremos o nome que davam os escolásticos: “apparentia sensibilia”, onde o termo “apparentia” não quer dizer “o que parece ser” nem, muito menos, “o que parece ser mas não é”, e sim “o que é evidente para o conhecimento sensível”. b) A segunda coisa é a síntese interpretativa feita de teorias destinadas a propor uma explicação conexa aos vários elementos dispersos do dado observado. E aqui cabe um reparo importante: a teoria interpretativa, apesar de seu talhe imponente, é cientificamente sujeita ao observado, aos fenômenos, e só se mantém enquanto suas articulações e a costura de seu tecido de hipóteses explicativas conseguem dar conta dos dados observados. Santo Tomás, na questão relativa à possibilidade de prova metafísica da Trindade (S. T. Prima, Qu. 32), chega à conclusão de que seria possível sem a Revelação adivinhar, propor a idéia de um Deus Trino refletido em todas as coisas, mas não é possível prová-lo como provamos a existência de um Ato Puro ou de um Ser A-se. E então, para o ilustrar genialmente com um exemplo astronômico, Santo Tomás diz que é evidentemente provado o movimento dos astros, que naquele tempo se enquadravam para cálculos de eclipses etc., na teoria dos epiciclos que viera do Almagest de Ptolomeu e durante quatorze séculos conseguira enquadrar os “dados observados”; mas logo o Doutor Angélico acrescenta com o mais lúcido discernimento científico (além dos outros, mais altos) que isto não provava a teoria dos epiciclos, e que amanhã ou depois outra teoria interpretativa poderia dar uma explicação mais simples. O que importava era a salvaguarda do “depósito observado”. Digamos como os escolásticos: “opportet salvare apparentia sensibilia”. Dois Exemplos de Ruptura de uma Teoria Interpretativa Há nos tempos modernos dois exemplos curiosos e curiosamente cercados de circunstâncias e ressonâncias diversas. Comecemos pelo segundo: a saturação e os primeiros estalos de uma das teorias interpretativas mais gloriosas da ciência moderna: a síntese newtoniana. Durante mais de dois séculos o mundo ocidental viveu tão solidamente agarrado à gravitação universal formulada por Newton, que muitos, mesmo nos grêmios mais científicos, chegaram a esquecer a essencial distinção, isto é, chegaram a esquecer que a teoria interpretativa pode ter as costuras rompidas pelo advento de um fenômeno observado que nela não consiga encontrar explicação cabal. Tal era a convicção, mais cientificista do que científica, que milhões de pessoas não hesitariam em dizer que estava matematicamente provado que os corpos se atraíam na razão direta das massas etc. etc. Ora, essa afirmativa era errônea (filosoficamente), porque nada se pode demonstrar matematicamente de coisas físicas. Pode-se observar, pode-se medir, mas essa não é uma operação matemática, e sim

física. Hoje sabemos que a grande síntese newtoniana não dava boa conta, por exemplo, do movimento do periélio de Mercúrio, nem conseguia enquadrar bem o eletromagnetismo depois de Maxwell. Por essas e outras, e sobretudo depois de Plank e Einstein, operou-se uma transformação do sistema de síntese explicativa para cumprir o preceito escolástico: salvaguardar o depósito observado. Não se trata pois de reformar, de revolucionar, e sim de procurar novos meios de sistematização que continuem o acervo adquirido e crescido. Não creio que tenha passado no espírito de Einstein ou de Plank que Newton fosse um trevoso medieval deixado para trás a babar na gravata, ou na gargantilha, que era o que se usava naquele tempo em que também se usava a ação à distância como vitória sobre o aristotelismo. Aliás, convém lembrar que Netuno, descoberto com cálculos de Lavoisier do mais ortodoxo newtonismo, até a 6a. ou 7a. casa decimal do logaritmo, não tornou a mergulhar no ignoto, nem os eclipses, que ainda se calculam na mesma honrada mecânica celeste, que tão bons serviços prestou, deixam de comparecer, com a prevista pontualidade. Mas o fato incontestável é que a Física newtoniana, assim chamada por seu lado hipotético-explicativo, cedeu lugar a outra Física, que ainda se debate perdida numa excessiva soma de dados que andam à procura de nova roupagem. O segundo exemplo de mudança de teoria interpretativa para a mantença do “depósito observado” foi cronologicamente anterior à transmutação Newton-Einstein e ocorreu num clima de euforia já revolucionária. Refiro-me ao “caso Copérnico”, que merece um tópico especial, mais por seu alarido do que por seu valor epistemológico. A “Revolução” Copernicana A contribuição de Copérnico, por causa do ponto histórico em que ocorreu, produziu no mundo um ataque de estupidez que dura até hoje. Até então o sistema de Ptolomeu permitia prever a posição dos astros e o comparecimento dos eclipses, com uma precisão que só dependia do aperfeiçoamento dos aparelhos de medida (isto é, do instrumental de observação física), e todo ele se firmava em referenciais que estavam na Terra e eram tidos por imóveis. Da escolha desse sistema referencial fixado no observador terrestre resultavam os famosos epiciclos para a adequada, e tão rigorosa quanto possível, previsão do movimento dos astros. Durante quatorze séculos esse majestoso sistema deu conta dos “dados observados”, ou salvou os fenômenos, como dizia Santo Tomás. Copérnico fez a experiência placidamente prevista por Santo Tomás; imaginou outra escolha de eixos coordenados com o centro no Sol e viu que toda a geometria do movimento se simplificava se colocasse o Sol no centro do sistema planetário e se partisse do puro postulado (sem nenhuma base na observação) de serem circulares os movimentos dos planetas em torno do Sol. É inegável a intuição que teve Copérnico nessa escolha de novos referenciais, mas há um colossal exagero no valor que passa o mundo inteiro a atribuir-lhe. Na verdade, esse cientista na possuía sequer o instrumental matemático; este lhe foi dado por um matemático alemão, Georg Rheticus (15141516), que, ouvindo falar em sua teoria, veio trabalhar dois anos com ele. Com os dados observados retomados no século XV por George Burlach (1423-1461), da Universidade de Viena, e sobretudo por seu discípulo Johannes Müller (1436-1476), que haviam estudado na Itália as versões gregas do original de Ptolomeu, puderam ambos elaborar a obra principal que Copérnico publica: De revolutionibus orbium coelestium. Morre poucos anos depois (1543) sem ser incomodado por ninguém e talvez sem imaginar que lançava outra “revolução”, diferente do giro circular dos planetas. A chamada revolução copernicana é realmente uma revolução no sentido que hoje dou a este termo. Sem culpa nenhuma do autor, a mudança de eixos de uma cinemática trouxe fortes abalos culturais, e muita gente

sentiu efetivamente um abalo no nível do senso comum, e até hoje as vítimas do cientificismo exageram o feito, ignoram as controvérsias, ignoram que a estrepitosa “revolução copernicana” nada descobriu na natureza física dos astros, mas pouco mais fez do que rearrumar os eixos de uma geometria do movimento, isto é, de uma cinemática. E sobretudo ignoram que, facilitando embora os cálculos astronômicos de previsão da ascensão reta e da declinação dos planetas, e das datas dos eclipses, o sistema de Copérnico “não trazia melhor aproximação do que os cálculos feitos com os epiciclos de Ptolomeu”, e até de certo modo se arriscava a trazer erros maiores, porque, enquanto os astrônomos tradicionais se apegavam aos dados observados que extrapolavam, Copérnico apegava-se a priori, e sem base física, à idéia antiqüíssima, pitagórica, de órbitas circulares. Há, assim, na festejada novidade um divertido anacronismo que vem precisamente do fato de ser mais imaginoso do que cientista o autor de De revolutionibus..., e do fato de não ter sido dócil ao observado como ensinava Santo Tomás: “opportet salvare apparentia sensibilia”. É curioso notar que o conhecido autor da revolução copernicana, além de apriorista em matéria de física, era rigidamente tradicionalista quando censurava Ptolomeu por ter-se afastado demasiadamente de Pitágoras. E eis aqui um divertido paradoxo, resultante da mistura do cientificismo com uma espécie de mística, ou de “gnose”, com que Copérnico é ao mesmo tempo abridor de portas do século XVI e o fiel pitagórico de vinte e dois séculos atrás. Kepler (1571-1630), quando descobrir a forma elíptica das órbitas planetárias e as famosas três leis do movimento planetário, dirá que Copérnico não soube aproveitar a riqueza que tinha nas mãos. Cumpre porém notar que, mesmo depois do apuro trazido pelas leis de Kepler ao movimento dos planetas, se aplica à astronomia do tempo a mesma queixa formulada por Francis Bacon contra Galileu e Copérnico. “Adversário do método elaborado por Galileu, que consiste em isolar os fenômenos do contexto natural, para estudar somente os aspectos mensuráveis, e para desenvolver depois vastas teorias matemáticas sobre a base dos resultados, Bacon reclama a consideração dos fatos que tenham relação com a matéria tratada: em astronomia, por exemplo, a natureza física dos corpos celestes, que Copérnico desprezava, e a resistência do ar na queda dos corpos, desprezada por Galileu...”3. Na verdade, a astronomia até Kepler, e antes de Newton, reduz-se a uma cinemática baseada em medidas de ângulos: era uma trigonometria esférica em movimento, com duas dimensões angulares, e uma 3a. dimensão de duração t. Exagerei dizendo em outro lugar 4 que se reduzia a uma cinemática colocada no 2º grau da abstração matemática. Onde há medida experimentalmente feita, com régua e transferidor, por exemplo, já há uma espécie de topografia do espaço físico. O que se pode dizer, sem exagero, é que aquela astronomia era de uma magreza física esquelética, que não tinha o direito de passar dos entes de razão, ou da teoria interpretativa para a matrícula no acervo fenomênico, a não ser com prova física, isto é, reduzida experimentalmente a uma evidência sensível, e uma “apparentia sensibilia”. Mesmo depois de Newton (1642-1727) é ainda prematuro dizer que está fisicamente provado o movimento de rotação da Terra, e fisicamente justificada a escolha do centro do sistema planetário no astro que condensa a maior massa. É somente depois da medida da constante g de gravitação, realizada em laboratório por Cavendish (1731-1816), que a chamada lei da gravitação universal pode ser provada, medida, e assim enquadrada no acervo fenomênico. Mas ainda é cedo para dizer que está cientificamente provado que o Sol atrai os planetas na razão direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias, porque o verbo atrair implica toda uma teoria interpretativa. Na física moderna ainda não se solidificou uma tranqüila teoria da gravitação, mas a tendência parece ser a de procurá-la mais numa “forma” do espaço-tempo em torno de uma massa do que numa ação à distância.

Ainda depois de Kepler, Newton e Cavendish é prematuro falar em prova física do movimento diurno da Terra, que só ingressa no patrimônio do “dado observado” com as experiências do pêndulo de Foucault, na cúpula do Panthéon de Paris, em 1850. Reflexões sobre Ciência Autônoma e Heterônoma Apesar do título rebarbativo, o que queremos dizer neste tópico é simples e relevante: sendo as ciências empíricas (a astronomia, a física, a biologia etc.) compostas de duas partes, um acervo fenomênico ou um “dado observado” de um lado, e uma “teoria interpretativa” de outro, é fácil adivinhar a soma de equívocos que advirá quando tomarmos uma coisa pela outra. E aqui cumpre notar que, embora não pareça, a primeira parte é muito mais inacessível e impopular do que a segunda, porque são poucos os que entram em confronto direto e fraterno com o irmão-fenômeno, e muitos são os que lêem as notícias das sínteses teóricas, quase sempre em formas vulgarizadas e brutalizadas. Tomemos por exemplo o movimento diurno da Terra. Muito poucos são os que fizeram ou refizeram a experiência de Foucault, e os que, com o olho colado à ocular do círculo meridiano, puderam verificar com aproximação cada vez maior a uniformidade do movimento angular dos “pontos no infinito” que cruzam os fios do retículo. Todos os outros que falam da rotação da Terra, de oitiva falam. De ouvir dizer e não de coisa vista ou diretamente ouvida. Essa grande e respeitabilíssima maioria dos não-astrônomos o pouco que sabem de astronomia não o sabem com ciência adequada e autônoma, sabem-no por informação, por fé humana, ou por ciência pobre, inadequada e heterônoma. A mais lúcida inteligência do mundo, digamos por exemplo Jacques Maritain, fala com toda a simplicidade do acerto de Galileu, da mancada do Santo Ofício, sem se dar conta de que a verdade “científica” do movimento da Terra só é por ele conhecida em nível colegial de ciência heterônoma, colada por informação. Arma-se aqui um problema filosófico interessante e indispensável à compreensão dos equívocos tecidos em torno do “caso Galileu”. Será hoje o movimento diurno da Terra um simples dado do consabido, uma ciência realmente heterônoma de pura informação, ou será hoje um dado do senso comum e, portanto, sob certo título, uma ciência muito mais densa do que uma simples informação? “Respondeo dicendum” que, nos tempos de Galileu e Copérnico, a rotação da Terra era um dado da teoria interpretativa, sem prova física para os próprios autores e defensores da idéia, que abusavam de seus dons intuitivos, divinatórios, ou de suas faculdades oníricas quando a apresentavam como fisicamente provada. Galileu chegou a dizer, sem direito de fazê-lo, que o sentia (ao movimento da Terra) como se o tocasse com as mãos. O glorioso florentino, nesse passo, abusava de seus talentos e cometia fraude epistemológica. E aqui não me venham dizer — pelo amor de Deus e das verdades menores — que o futuro deu razão a Galileu e provou que era verdade o que afirmava, porque a honra e dignidade do cientista não consiste em ter intuições de que outros mais tarde darão a prova adequada a esse grau de saber. Não, mil vezes não. A honra e dignidade da ciência não consiste em “acertar” como na loteria (que só mais tarde comprova o acerto), consiste essencialmente em dar as razões do que assevera, ao demonstrar o que diz com os recursos adequados a esse grau de saber. Foucault poderia dizer, metafisicamente, que sentia o movimento diurno da Terra como se o pegasse, mas Galileu, sem fraude ou abuso, não podia. Mas não é ainda aí que se situa o nó da questão para o qual abrimos este “respondeo dicendum”, é na posição do problema em relação ao senso comum. Perguntávamos se hoje o movimento da Terra é um simples dado do consabido, ou do dilúvio de informações, ou se já ganhou lugar no senso comum. E agora respondo dizendo que “hoje” o

movimento da Terra se incorporou aos dados periféricos do senso comum, porque entre os dados mais nucleares da petite sagesse está a confiança no que se tornou opinião universal e incontrovertida apesar da minguada minoria dos astrônomos. Diferente era a situação no tempo de Galileu: a influência do consabido da época no senso comum tornava-o pouco acolhedor de uma transposição de eixos que colocasse o observador no Sol, a menos que se atribuísse ao Sol uma imutabilidade e outros atributos cientificamente desnecessários para salvaguardar o “depósito observado”, mas psicologicamente necessários para amolecer as resistências do senso comum e predispô-lo a novidades fantásticas de caráter gnóstico em que se misturavam dados de ciência e de religião, entremeados. O Heliocentrismo e o Culto do “Deus-Sol” A História é sempre composta de uma face clara, consciente, superficial, onde se demarcam as datas, se travam as batalhas e se mudam os regimes, e de outra, subterrânea, por onde correm os vasos capilares do mistério, irracionalismo e perpétua conspiração que os homens inventam nas profundezas da alma com a ilusão de conjurar assim as variadas aflições da vida. O claro e estridente século da Renascença e da Reforma, com toda a sua presunção cientificista, ou por causa dela, não escapou à regra geral e até se pode dizer que a confirmou com certo exagero. Assim é que, no próprio domínio da ciência que produzirá o cartesianismo e o culto das idéias claras, se vê o lado sombra formado pelo culto religioso do Sol, que vigorava na era das pirâmides, no Egito e na Mesopotâmia. Num recente artigo 5 Lewis Mumford assinala a estranha composição do “progressismo” do século XVI, metade mecanicista, metade gnóstica, sendo de notar que a parte gnóstica, esotérica ou mágicosupersticiosa não era trazida pelas classes mais ignorantes, mas pelos mesmíssimos “filósofos” que enaltecem a ciência e que no século seguinte começarão a preparar a revolução. Vale a penas inserir aqui algumas passagens de Mumford: “Se algum ponto da História pode ser assinalado como o início da moderna concepção do mundo, concepção mecânica, expressão de uma nova religião e base de um novo sistema de poder, esse ponto está na quinta década do século XVI. Nesse tempo não foi apenas o sensacional De Revolutionibus Orbium Coelestium, de Copérnico, que veio a lume; foram também o tratado de anatomia De Humani Corporis Fabrica, de Vesalius (1543), a Ars Magna, álgebra de Jerônimo Cardano (1545), e a teoria da bacteriologia patogênica por Fracastor em De Contagine et Contagionis Morbis (1546). Cientificamente pode-se dizer que foi a década das décadas. “A maneira usual de interpretar a chamada revolução copernicana é a que considera como principal efeito a ruptura de uma teológica e assentada concepção, pela qual Deus colocara a Terra no centro do universo, e fizera do homem o objeto último de sua atenção. Se o Sol é efetivamente o centro do universo, então toda a estrutura da teologia dogmática cristã — com seu único ato de criação e a alma humana tida como interesse central de Deus, e a provação moral do homem neste mundo como preparação para a vida eterna em conformidade com a vontade de Deus — toda essa estrutura está ameaçada de colapso.” Observo eu que não é a Sagrada Congregação do Santo Ofício que está dizendo essas coisas em Roma nos idos de 1616, é o atualíssimo e muito lúcido autor de The History of Utopies que nos

descreve o impacto cultural, o impacto teológico e, conseqüentemente, o impacto na fé católica trazido pelo “heliocentrismo”, e nos prepara o espírito para a divertida surpresa de ver o refluxo desse impacto sobre os próprios autores das descobertas, invenções, utopias ou sonhos. Continua Mumford: “Visto através das novas lentes da ciência, o homem encolheu. Em termos de escala astronômica, o gênero humano totaliza pouco mais do que um efêmero e inquieto mofo deste planeta. A ciência, que realizou esta impressionante descoberta pelo simples exercício das naturais faculdades humanas e não pela divina revelação, tornou-se a única fonte de autêntico conhecimento digno de crédito. Tudo isto, porém, embora nos pareça hoje tão claro, não foi imediatamente reconhecido por aqueles que estavam mais profundamente cativados pela nova religião...” Cabe aqui um reparo: esse encolhimento do homem não ocorreu logo no século XVI, após a formulação do heliocentrismo por Copérnico, porque a “escala astronômica” só ganhou divulgação depois da medida da distância do Sol, a qual, não podendo ser feita por método puramente trigonométrico com base na Terra como a distância da Lua, foi efetivada pelo astrônomo Halley em 1631 por um processo mais indireto, que envolvia a observação de uma passagem de Vênus sobre o disco solar observada por dois astrônomos muito afastados. Essa distância, que orça por 149.000.000 quilômetros, passou a ser o metro da nova escala astronômica, que somente no século XIX (1840), quando Bessel mediu a primeira paralaxe da estrela 61a. do Cisne, ganhou as dimensões de anos-luz, que logo passaram de 4,3 (da estrela mais próxima, Alfa do Centauro) para milhares, milhões e bilhões de anos-luz com os sucessivos progressos da espectroscopia, da fotometria e da atual radioastronomia. Como porém, tudo isto foi descoberto pelo simples exercício natural das faculdades humanas, segundo observa Lewis Mumford, o conseqüente encolhimento do homem esmagado pela escala astronômica foi alternativamente seguido de momentos de narcisismo idolátrico: o próprio homem, em vez de passar de pulga a Napoleão, como na cabeça de Raskalnikoff, oscilava vertiginosamente entre Deus e Nada. Nunca chegara a tão delirante amplitude a oscilação psicológica a que Oliver Brachfeld 6 denominou “complexo de Guliver”. E nunca se descurou tanto do conselho de Pascal: não é bom falar na glória humana sem evocar sua miséria, mas também não é bom demorar-se em sua miséria sem lembrar sua glória. Outro reparo: Mumford diz que todas as exorbitâncias do cientificismo, que hoje nos parecem claras, não foram imediatamente percebidas por aqueles que estavam profundamente cativados pela nova religião. Ora, isto que parece tão claro hoje a um dos mais argutos observadores da atualidade continua obscuro para os “progressistas” da nova religião, e o que disse ele ter passado despercebido aos “progressistas” da nova religião do século XVI não passou despercebido ao Santo Ofício, cujos juízes no caso de Galileu sentiram, no nível do senso comum vivificado pela Fé, ou graças aos dons do Espírito Santo, não apenas uma tese ousada e mal fundada, mas todo um intrincado processo de cientificismo e de gnose que divinizava o Sol, no século XVI, como nos mostra Lewis Mumford, que mais adiante escreve: “O efeito imediato da nova teologia foi o de reviver concepções que datavam do tempo das pirâmides no Egito e na Mesopotâmia.” Alongando-se, no referido artigo, em considerações que merecem ser lidas e meditadas, em certa altura Mumford cita Battersfield, que diz: “Copérnico se torna lírico e chega quase à adoração do Sol quando escreve a respeito de sua natureza monárquica e da posição central que ocupa”. Tyllyard assinala que o Sol, na era elisabetana, era geralmente considerado como contraparte material de Deus.

O Caso Galileu Creio que agora temos, na condensação que nos foi possível, as várias noções e os vários dados que permitem uma abordagem do caso Galileu que permitirá, assim o espero, desanuviar mais uma das tantas histórias mal contadas com que se tece a história. Eis os termos em que o Santo Ofício, sob o pontificado de Paulo V, foi consultado em Fevereiro de 1616. Duas proposições foram apresentadas: 1a.) O Sol é o centro do mundo e por conseqüência imóvel de movimento local. 2a.) A Terra não é o centro do mundo nem imóvel, mas move-se ela toda por um movimento diurno. Poucos dias depois a resposta é dada: “a) A primeira proposição é insensata e absurda em filosofia e formalmente herética, por contradizer expressamente muitas passagens da Sagrada Escritura, conforme a propriedade dos termos, segundo a interpretação comum e o sentido dos santos padres e dos doutores da teologia. b) Quanto à segunda proposição, ela merece a mesma censura filosófica, e em relação à verdade teológica é pelo menos errônea na fé.”7 Dois dias depois, o comissário do Santo Ofício notifica a Galileu a censura lavrada contra a opinião segundo a qual o Sol está no centro imóvel do universo, e a Terra se move. Essa opinião não deve ser sustentada nem defendida. Galileu é advertido das penas a que se expõe e promete obedecer. Aqui termina a primeira parte do caso Galileu, e desde já se escandalizam os que vêem em tais condenações do Santo Ofício um crime de lesa-majestade contra a Ciência. Ora, por incrível que isto pareça aos que se deixaram conscientizar pelo culto da “libre-pensée” (que na verdade, como veremos, é um culto da pensée vide), ouso dizer que essa reação é errônea. O próprio Maritain [..] diz mais adiante 8 que: “Se os juízes do Santo Ofício se enganaram tão gravemente foi porque, por um errôneo princípio ainda mais perigoso (por ser de alcance geral), julgaram que a ciência dos fenômenos estivesse sob a jurisdição da teologia e de uma interpretação geral da Sagrada Escritura. Pode ser — digo eu a título de hipótese — que os juízes do Santo Ofício acreditassem nesse falso juízo epistemológico, mas o que é certo, e duvido que algum filósofo ou teólogo possa contestar-me, é que, se a teologia e o Magistério da Igreja não podem julgar as ciências dos fenômenos nos seus processos intrínsecos e próprios, podem e devem julgar o uso que o cientista faz das intuições e teorias interpretativas do fenômeno. Não ignoro que essa jurisdição da Igreja é hoje negada e recusada em todo o nosso bravo novo mundo gloriosamente pluralista. Mas é preciso lembrar que, no tempo de Galileu, a Igreja e o Santo Ofício ainda se sentiam responsáveis por todos os passos em que a prudência pastoralmente recomendava moderação nos domínios da ficção e do sonho científico. Além disso, explica-se certa brutalidade na sumária condenação do Santo Ofício, que parece efetivamente colocada em termos dogmáticos, pela consciência que tinha de representar ainda a paternal proteção de uma civilização cristã.”

Podemos admitir que os assessores e juízes do Santo Ofício, não sendo todos geniais e santos com Santo Tomás, tenham confundido a censura pastoral que as proposições de Galileu bem mereciam com a censura dogmática que só mereciam efetivamente os erros formalmente contrários à Revelação e à Fé; mas não podemos deixar de assinalar que tais proposições, lançadas num contexto cultural despreparado, em que os próprios astrônomos, como Tycho Brahé, reclamavam provas convincentes, afligiriam a cristandade nos costumes intelectuais, no nível do senso comum, que, além da Fé e dos costumes, também está sob a salvaguarda da Igreja. Além disso, notemos que a Igreja seria impraticável, e que a Civilização Cristã seria impraticável, se os juízes do Santo Ofício devessem todos ter a estatura de Santo Tomás. O próprio Maritain (na página 357 da mesma obra citada) diz encolerizado que: “[...] se era verdade — e é efetivamente verdade — que (como diz o Cardeal Journet) todos os contemporâneos tinham como evidente ‘que essa condenação doutrinal atingia matéria revogável por uma autoridade falível’, eles, os juízes, eram certamente os primeiros a saber que poderiam estar enganados.” É o caso de perguntarmos: E daí? Se os juízes do Santo Ofício podiam proibir e censurar infalivelmente, concluo eu que o erro não está no personnel mas na Personne da Igreja, que tanto tempo admitiu a possibilidade de governar, que necessariamente inclui a possibilidade de decisões gravíssimas em matéria revogável, e fora do domínio estrito da infalibilidade. Se o Santo Ofício além de uma grave mancada (bourde) cometeu um “abuso de poder”, então concluímos que é impraticável o governo da Igreja, já que o exercício da infalibilidade deve ser poupado preciosamente para as questões extraordinárias, e diretamente contrárias à Fé, e já que o governo exige medidas pastorais em todas as matérias ordinárias. E volto a dizer, com a consciência de estar afrontando de um lado um himalaia de opiniões amontoadas durante quatro séculos, e de outro um autor que em filosofia sempre tive por mestre, que o pronunciamento do Santo Ofício quis dizer que aquelas proposições eram perigosas contra a fé, nocivas à fé no nível do senso comum, que é uma sabedoria (rústica embora), e como tal superior e mais merecedora de cuidado do que as ciências das coisas exteriores e inferiores, que nada perderiam por esperar um pouco o sinal verde nos cruzamentos da história, e que põem em risco toda a civilização se querem ser elas as infalíveis. Além disso, nunca é demasiado insistir neste ponto: o erro do genial Galileu, no seu próprio campo científico, foi mais grave e mais petulante do que o excesso de formulação dogmática com que o Santo Ofício o advertiu. A idéia de um Sol imóvel no centro do mundo é mais grotesca, mais fantástica, mais insensata do que a tradicional idéia que colocava o centro na Terra em que surgiu o homem e se encarnou o Verbo de Deus. O Santo Ofício, sem o saber, sem sequer fazer questão de provar as sucessivas revoluções da Física, dizendo que o “heliocentrismo” era insensato e absurdo “filosoficamente”, diz o mesmo que diriam os físicos modernos: a proposição que diz estar o Sol imóvel no centro do universo é meaningless para um físico, “e mesmo para um não-físico”, como disse Einstein em situações semelhantes. Mais acertada é a proposição filosófica ou teológica que coloca o centro do mundo onde está o observador capaz de medir paralaxes e anos-luz, ou onde esteve a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em sua condição carnal. Sim, em 1611 como em 1971, e como em 2611 e até o fim do mundo, só terá sentido a noção de centro do universo na ordem do conhecimento e do amor. O Sol será, se quiserem, centro imaginário (ente de razão matemática) da órbita percorrida pelos centros de gravidade dos planetas, circular para Galileu,

elíptica para Kepler, e complicadamente helicoidal quando se descobriu, depois que a análise espectral revelou, o deslocamento de certas raias K na direção do vermelho ou na oposta conforme se observavam estrelas nas cercanias da constelação de Hércules, ou na oposta. Desde essa observação ficou sabido que “messer frate il sole”, longe da majestática imobilidade que lhe atribuíram Copérnico e Galileu, é um globo incandescente caindo, ou melhor, errando no espaço, mais erradiamente do que Parsifal sem elmo nem lança. Desmanchou-se num novelo caprichosamente desenrolado o pomposo “heliocentrismo”, que sempre foi uma pobre verdade de fraca compleição, como dizia Ibsen, porque já no tempo de Kepler o Sol passou do centro do círculo para o foco da elipse, e hoje não passa de um dos trepidantes e incertos grãos de nosso “restless Universe”, como diz Maz Born. Na verdade, a proposição apresentada ao Santo Ofício por Galileu, ligada à presunção de uma prova física de que lhe parecia “evidente como se a tocasse com as mãos”, constitui um monstro epistemológico, onde se misturam os graus de abstração e onde a hipótese explicativa se transforma em dado observado, ligado a uma fraude pelo empenho com que tentou, na divulgação, inculcar a idéia de uma “prova científica”. Parece-me indubitável que nesse episódio Galileu, como cientista, errou mais gravemente na formulação de sua comunicação do que os juízes do Santo Ofício erraram como teólogos; porque para defender cabalmente o enunciado da condenação nos basta colocá-lo no plano pastoral de defesa do senso comum barbaramente agredido, não pelas pesquisas e observações dos satélites de Júpiter, não pelas teorias explicativas apresentadas prudentemente com caráter de hipóteses, mas pela fraude com que se pretendia inculcar como provado o que teria de esperar muito estudo para ganhar direito a um enunciado decentemente científico. E aqui me parece especialmente infeliz a nota (a) de Maritain (op.cit., p. 393): “Que Galileu não tenha realmente demonstrado o movimento da Terra nada tem que ver aqui. Realmente foi somente depois de Newton que o heliocentrismo se impôs a todos os homens de ciência. As provas invocadas por Galileu não eram demonstrativas e pouco valiam. Mas, antes de mostrar e sem estar ainda em condições de fazê-lo, há no espírito do grande sábio uma percepção intuitiva que basta [grifo nosso] para lhe dar uma convicção de que — certo ou errado [grifo nosso], isto é outro assunto, que diz respeito ao progresso da ciência — ele absolutamente não duvida. Tal foi o caso para o gênio intuitivo de Galileu.” Nesta nota infelicíssima, onde se evidencia o empenho de glorificar um dos motoristas do progresso da ciência, em detrimento do obscurantista Santo Ofício, não reconhecemos o autor de Théonas, de Antimoderne, de Trois Réformateurs, de Reflexions sur l’Intelligence et sa vie propre, não reconhecemos o severo e exigente filósofo que nos ensinou, entre mil coisas, esta lição que já escrevi atrás e agora repito: a honra e dignidade do cientista não consiste em ter acertado (ou quase acertado) a proposição que outros demonstrarão, e que ele mesmo, dizendo que a sente como se a tocasse, não sabe provar; não, mil vezes não: a honra do cientista, do filósofo e do teólogo não é de natureza esportiva ou lotérica, não consiste em acertar à tort ou à raison, mas consiste essencialmente em dar as razões de sua proposição. Os tomistas, e com toda a razão, costumam ficar irritados quando os franciscanos lhes dizem, ou melhor, lhes diziam com garbo que Duns Scotus acertara na questão da Imaculada Conceição da Virgem Santíssima, enquanto Santo Tomás perdera o ponto. Volvendo com saudades aos bons tempos em que dominicanos e franciscanos discutiam essas coisas, lembro-me de um O.P., não sei se Garrigou-Lagrange ou Gardeil, que chegava a asseverar que no encaminhamento da proclamação do

dogma valeram mais os argumentos refutadores de Santo Tomás do que os surtos intuitivos com que Duns Scotus, à tort ou à raison, afirmava. No caso Galileu, para terminar, direi que hoje, melhor do que nunca, estamos em condições de apreciar a real e profunda intuição com que o Santo Ofício sentiu a presença do monstro — o cientificismo e não a ciência — que arrombava as porteiras e se precipitava para devastar uma civilização. Mas nossa constatação não é triunfalista, porque são muito poucos os que participam dela; é antes melancólica, e tem todo o travo de uma batalha perdida. A Inteligência em Perigo Tomamos para este tópico o título de um belo livro de Marcel de Corte, em perspectiva em pouco diferente, para desenvolver um pouco mais a questão que atrás abordamos, e que agora se torna mais oportuna (estamos no século XVIII), porque, enquanto na superfície da história os amadores do nada, que o tomam pelo tudo, se entretêm em ler a letra F ou H da Enciclopédia nos salões de Madame Geoffrin, e a atualidade se enfeita com nomes de luz, iluminismo, enlightehment, aufklärung, nos subterrâneos do nada cavam os alicerces da civilização e preparam a Revolução. Vimos atrás que as coisas de qualquer ciência podem ser possuídas com ciência própria e autônoma, adquirida e assimilada profundamente, ou com ciência heterônoma, ou informação transmitida e recebida apenas com fé humana. Na filosofia e na matemática só há real conhecimento quando o mestre ou o informante podem ser despedidos e o estudioso se apodera da verdade compreendida e demonstrada, que se torna sua, esposa de sua inteligência, sem nenhuma interposição. Nas ciências dos fenômenos, a rigor, também só possuem a certeza menor de suas correlações aqueles que observam e experimentam diretamente, e conduzem todas as suposições à certeza dos sentidos, vista, apalpada, medida. Mas esse acesso à experiência, à exaustiva prova experimental em que se consumiu parte da vida de Pasteur para desfazer a ilusão da geração espontânea da vida, ou o acesso ao círculo meridiano e ao espectroscópio sideral é difícil, e muito escassa será sempre a parte de um povo que lá chegará. A maioria saberá quase tudo de oitiva; e o mais assustador é que, crescendo o campo das coisas sabidas nesta espécie de saber, como começou a crescer vertiginosamente desde a Renascença, crescerá na mesma proporção o número de homens que falarão nessas coisas com grande entusiasmo, sem todavia as saberem com ciência própria e autônoma, mas apenas com fé humana ou por terem lido no jornal. E entre esses faladores da ciência, que só a possuem por uma espécie de “cola”, incluo os intelectuais que falam no movimento diurno da Terra sem nunca terem aplicado um olho à ocular de uma luneta de círculo meridiano. Receando que o leitor não tenha ainda apreendido o perigo em toda a sua profundidade, sou forçado a entrar em considerações sobre a vida da inteligência e suas exigências próprias. Assim como o olho foi dado para ver a luz, e o ouvido para apreender o som, a inteligência nos foi dada para, de início, em sua primeira operação, apreender os inteligíveis, isto é, para ver por si mesma e não pelos outros o que as coisas são, e daí passar aos juízos que predicam alguma coisa de um sujeito, e aos raciocínios que tecem e tramam as conexões do saber. Tudo isto a inteligência quer fazer por si mesma, a partir dos inteligíveis vistos nas coisas sem nenhuma interposição. Esse relacionamento autônomo com o objeto constitui propriamente a liberdade da inteligência, e se separa por um abismo da chamada “liberdade de pensamento”, que consiste no suposto e arrogante direito de dizer que pensa o que quer, ou de pensar que pensa o que não chega a pensar. A inteligência quer tornar-se o objeto conhecido numa união muito íntima, muito perfeita e muito casta, e sofre quando as regras da convivência lhe pedem que aceite como verdadeiro aquilo que como tal ela própria não pode ver. Sofre, mas compreende que a vida em sociedade é própria do homem, e que

essa feição essencialmente política do homem acarreta uma divisão no trabalho e uma divisão no saber. As humilhações impostas à inteligência se transformam em cordialidade, em amizade cívica, em filia, e neste transpasse a alma se conforta e aprende a conformar-se com um grande número de saberes possuídos por fé humana. O perigo da inteligência se contorna e até se transforma em riqueza na ordem do amor enquanto a sociedade consegue manter a inflação do consabido controlada e submetida a uma sabedoria, e enquanto a sociedade consegue manter laços de amizade cívica. Quando se rompem os dois equilíbrios, quando a soma crescente de dados enciclopédicos sabidos por toda a humanidade se agigantam e se desprendem de qualquer sapiência mais alta, e quando se instila na Polis, em lugar da filia, a regra da competição ou a luta de classes, então a inteligência desvaria, se avilta, desespera, e passa a encher-se de gases, e indigestar-se de um milhão de nadas que, somados e multiplicados, dão noves fora nada. E os hospícios se povoam; e ao cabo de algum tempo o mundo se transformará no grotesco e sinistro conto de Edgar Poe em que os últimos sensatos estarão nas camisas-de-força, e os loucos na direção e administração do planeta. Em palavras mais sóbrias, o cientificismo, e o conseqüente enciclopedismo, é uma violação, uma curra da inteligência, que não pode ser praticada em dimensões civilizacionais sem as conseqüências de uma inimaginável massificação do homem, porque cada vez mais a inteligência renunciará à sua vida própria, em favor da tirania do sabido pelo homem coletivo. No século XVIII os “escavadores do nada” começaram a difundir a “libre-pensée”, começaram a praticar com entusiasmo o regime de esvaziamento da inteligência: no glorioso século XX em que temos a honra de lacrimejar e de nos debater, já as conseqüências inimagináveis se vão tornando rotinas sem espanto nem nojo. E quem já está demasiado idoso para habituar-se a andar de quatro, sofrerá uma pungente nostalgia da posição ereta, mas em compensação sofrerá menos tempo e melhor aprenderá assim a desprender-se deste mundo, cujo ofício é ser vagamente absurdo, e passar.

As Sociétés de Pensée e a Revolução Ninguém até hoje analisou melhor do que Augustin Cochin esse processo de esvaziamento da inteligência que se operou na ação capilar das sociétés de pensée do século XVIII, o qual, para os historiadores superficiais, continua a deter o campeonato do verniz. “É no declínio do reino de Luís XV que o fenômeno se difunde na França. O Grande Oriente se constitui em 1773. As sociedades secretas e ordens diversas: Escoceses, Iluminados, Swedenborgeanos, Martinistas, Egípcios, Amigos Reunidos, disputam adeptos e correspondentes. Vê-se enfim, de 1769 a 1780, sair da terra centenas de pequenas sociedades semidescobertas, autônomas em princípio, como as lojas, mas agindo em comum, como também as lojas constituídas à semelhança delas e animadas pelo mesmo espírito ‘patriota’ e ‘filósofo’, que escondia mil objetivos políticos semelhantes, sob pretexto oficial de ciência, beneficência ou divertimento [...]. O reino dos salões da maledicência espirituosa e elegante passou. Começa agora o das sociedades do livre pensamento.”9 E adiante Cochin nos apresenta com incisiva configuração o objeto, ou melhor, o não-objeto dessas academias: “Elas não são apenas agência de notícias, mas sociedades de encorajamento ao patriotismo, tribunais de espírito público. Para atingir esse fim, criam uma república ideal à margem e à imagem da verdadeira, tendo sua constituição, seus magistrados, seu povo, suas honras e suas lutas. Ali se estudam os mesmos problemas políticos, econômicos etc. Ali se trata de agricultura, de arte, de moral,

de direito. Debatem-se as questões do dia, julgam-se os homens eminentes. Em resumo. esse pequeno Estado é a imagem exata do grande, com uma só diferença: não é grande, não é real. “Seus cidadãos não têm interesse direto nem responsabilidade engajada nos negócios de que falam. Seus decretos não passam de desejos ou votos, suas lutas são meras conversações, seus trabalhos são jogos. Nesta cidade das nuvens, faz-se a moral longe da ação, a política longe dos negócios: é a cidade do pensamento.”10 Augustin Cochin grifa o termo pensée, que melhor do que a tradução portuguesa exprime o vazio desse processo mental em que a inteligência se “libera” — se podemos empregar esse verbo ainda carregado de certa nobreza para exprimir tão degradante capitulação — do conhecimento real ou da reflexão, para comprazer-se numa efervescência verbal que mal recobre a indigência do espírito que à exigente procura da verdade e do bem prefere essa liberdade que relativiza tudo exceto seu próprio vazio. O liberalismo, que na Inglaterra, com Locke, começa numa depravação do conhecimento que todavia ainda se apega à experiência e ao conhecimento, no país que tem a vocação da inteligência haveria de começar e de se estender ainda mais baixo, desprendido da própria experiência e reduzido ao livre jogo de opinião, à doxia que não faz questão de ser ortho nem hetero, coroado ou paramentado este pouco ou quase nada com o termo mágico: “pensée, libre-pensée”. “Há aí um fato geral que é preciso estudar em si mesmo se quisermos compreender os efeitos do início da Revolução. Todas essas Sociedades têm o mesmo caráter: são Sociedades ‘igualitárias’ de forma, e filosóficas de objeto, o que hoje chamaríamos Sociedades de ‘livre-pensamento’. Formavam o arcabouço material da ‘república da letras’ e deram à ‘filosofia’ uma consistência, um vigor, um império sobre a opinião sem exemplo até então. “Com efeito, embora ideal, o novo Estado, a ‘república das letras’ ganhou, entre 1760 e a Revolução, uma prodigiosa extensão [...]. Ora, não está aí um fato capital, e desprezado por demais, no fim do século XVIII? “Este estado de coisas, a própria existência das Sociedades de Pensamento, da casta de opinião que nelas se desenvolvia, das condições especiais em que punham os autores e o público, tudo isso teve efeitos muito graves sobre o movimento das idéias: porque impunha de início, e sem apelo, aos autores e ao público o ponto de vista ‘intelectual’, irreal. “Nunca talvez a corrente geral das idéias, da literatura esteve tão afastada das realidades, do contato com as coisas, como nesse fim de século. Basta mencionar filósofos políticos como Rousseau e Mably, historiadores como Raynal, economistas como Turgot, Gocernay, e a escola do laisser-faire, homens de letras como La Harpe, Marmontel e Diderot. “É assim que nasce o filosofismo. A prática da “libre-pensée” tem graves conseqüências, desde logo, para começar, na ordem intelectual. Os privilegiados esquecem seus princípios; poderíamos citar, do mesmo modo, o cientista a esquecer-se da experiência e o religioso a esquecer-se da fé. O fato da experiência, o dogma religioso, tais são com efeito as duas ordens de fato impostas brutalmente de fora à nossa inteligência, e dispostas a deter o impulso da ‘filosofia’, ou, como se diz hoje, do pensamento livre. A ‘filosofia’ (ou livre-pensamento) derrubará estes entraves à liberdade: a experiência, a tradição, a Fé.”11

Sem pretendermos reduzir a este veio todo o sistema fluvial de causas históricas, podemos talvez afiançar que Augustin Cochin, no que se refere à preparação da Revolução Francesa, nos dá a fortíssima impressão de estar acertando nos pontos mais feridos e doloridos de uma civilização em processo de niilização. E eu diria que é en creux que se prepara a Revolução. Os “horríveis trabalhadores” vistos por Rimbaud, numa espécie de retrovisor, não erigem, cavam. São os “escavadores do nada” vistos por Bloy. E a maior impostura da história, a ser ultrapassada pelo comunismo, não é uma explosão — é antes uma implosão.

(O Século do Nada,Rio de Janeiro, Record, pp. 119-138) 1.Gustavo Corção, A Descoberta do Outro, AGIR. 2.Jacques Maritain, De l’Église du Christ, Desclée de Brouwer, 1970, pp. 345 e segs. 3.S. J. Mason, Histoire de la Science, Armand Colin, 1956, p. 10. 4.Revista Permanência, número 41, p. 22. 5.Lewis Mumford, The Megamachine, em The New Yorker, 10-17 de outubro de 1970. 6.Oliver Brachfeld, Los Sentimientos de Inferioridad, Luiz Mirade, Barcelona, 1959, pp. 24 e segs. 7.Jacques Maritain, op. cit. 8.Ibid. 9.Augustin Cochin, La Révolution et la Libre-Pensée, Plon, 1924, p. XXIX (“Introduction”). 10.Ibid., p. XXX. 11.Ibid., p. XXXIII.

Exegese de um lugar comum Há certas frases que todo o mundo pronuncia sentenciosamente e todo o mundo ouve com respeito, sem que ninguém se dê ao trabalho de examinar a sua significação. Pode ser que constitua um desses lemas de universal e anônima sabedoria; mas também pode ser que não passe de um lugar comum ou de uma meia verdade, que, como sabemos, é a mais insidiosa espécie de mentira que o "homo mendax", consegue produzir neste vale de lágrimas. Uma dessas meias verdades, ou um desses sentenciosos lugares comuns que encontra o mais benévolo acolhimento entre as pessoas graves é o seguinte, que já vi impresso centenas de vezes, atribuído a todos os personagens importantes do planeta: "O verdadeiro modo de combater o comunismo é o trabalho por uma ordem social mais justa". Apesar do volumoso consenso que poderia nos intimidar, ouso dizer, apoiado na translucidez do raciocínio lógico, que essa proposição é falta e portanto, em vista de sua difusão, perigosíssima. Vejamos: há em relação a todos os males dois tipos de combate ou dois tipos de resistência, o preventivo e o curativo. Se estamos pensando em ladrões que ameaçam nossas casas, posso dizer que o melhor modo de evitar o assalto é o do reforço das portas e dos aparelhos de vigilância. Se, porém, já se acham dentro de casa os ladrões e malfeitores, dispostos a roubar e matar, creio que seria comicamente inoportuna a sentença de alguém que dissesse pausadamente: os ladrões não se combatem; evitam-se, e o modo melhor é o de fortificar as trancas. Na medicina também se encontra o mesmo paralelo: há a medicina preventiva, que trata da higiene, da profilaxia, das recomendações gerais que robustecem o corpo e que afastam o espectro da doença; mas há também a medicina curativa, e até podemos dizer que é esta que constitui a parte mais nítida e mais característica da nobre profissão. Creio que ainda não houve bispo, reitor ou paraninfo que

tivesse a coragem de dizer que toda a medicina deve reduzir-se à forma preventiva, e que há certa deselegância moral, ou reacionarismo em pretender curar energicamente uma tuberculose, ou em pretender, ainda mais antipaticamente operar um apêndice inflamado. A boa alimentação, o ar livre, a ginástica, e outras coisas podem contribuir para aumentar as defesas orgânicas e para a neutralização dos fatores nocivos à saúde que em alguma proporção sempre existem por toda a parte. A boa fechadura e o zelo vigilante também podem afastar o salteador. Mas a ninguém lembraria, creio eu, afirmar que essas medidas esgotam toda a coleção de recursos para o combate dos males. Ora, a proposição acima mencionada, sobre o verdadeiro modo de combater o comunismo, não é menos insensata do que seria a pregação de uma nova medicina que se concentrasse toda nas medidas preventivas, e que se recusasse à ação direta contra o mal. Numa sociedade em que o comunismo ganhou um índice de infiltração que se manifesta em desordens públicas, em subversão, em difusão da doutrina, parece-me evidente que o combate de tipo preventivo não é suficiente, e que a ação direta se impõe. Torna-se mais aflitiva a situação e mais urgente a ação direta quando se vê um segundo erro nascer daquela meia verdade. Eles dizem que o "verdadeiro modo de combater o comunismo é a luta pela implantação de uma ordem social mais justa"; mas depois disso passam a trabalhar em favor de uma ordem social que ainda mais nos aproxima do comunismo; espicaçam a luta de classes por um processo chamado de conscientização, despertam sentimentos nacionalistas contrários aos interesses dos países democráticos que lutam contra o comunismo e ao mesmo tempo despertam simpatias pelos países comunistas. E então eu concluo que àquela meia verdade é preciso acrescentar uma segunda parte, nos seguintes termos: "O verdadeiro modo de combater o comunismo é o de promover uma ordem social semelhante à recomendada pelos comunistas". É exatamente isto o que acontece no Brasil, especialmente nos meios agitados pelos chamados católicos de esquerda. Apertados, eles dirão que também combatem o comunismo com esse verdadeiro modo de combatê-lo. Recentemente, a propósito de uma explosão publicitária em torno do nordeste, multiplicaram-se declarações desse tipo. Seria mais nobre, mais decente, admitir logo que não se deseja combater o comunismo; que se deseja, ao contrário, imitá-lo. Mas a esquerda católica ainda não chegou a essa perfeição e ainda vive dos juros abundantes dos equívocos, das meias verdades colocadas a mais de cinco por cento ao mês. Parece-me evidente, e ofereço uma bonificação — nome no jornal, elogio, ou até algum brinde de valor — a quem provar o erro de meu raciocínio, parece-me evidente que é uma tolice dizer que o verdadeiro modo de combater o comunismo é o preventivo. Admito que se discuta em cada caso a oportunidade de um ou de outro modo de ação. Ficaria feliz, morreria feliz, se ao menos essa pequena verdade elementar conseguisse difundir: a de que, em certos casos, o ladrão tem de ser combatido diretamente, e a doença tem de ser curada. E morreria feliz se lesse nos jornais o deslocamento do problema para essa análise da circunstância que pede um ou outro tratamento. O que entristece, e receio morrer sem consolo, é ver espalhadas, nos mais altos lugares, proposições, lugares comuns, meias verdades que só servem para fortificar o inimigo e para incrementar o mal, além de servir para enfraquecer e estupidificar a vítima. No ponto em que chegamos no Brasil tenho a firme convicção de que a proposição certa é a seguinte: "O verdadeiro modo de estabelecer a ordem social justa é o que começa por combater o principal fator do mundo moderno que se opõe a essa ordem". Esse fator é o comunismo. E a vergonha máxima do planeta, a meu ver, é a triste necessidade em que se acha um velho militante católico de escrever coisas tão óbvias. (4.9.66. Publicado em PERMANÊNCIA, Maio-Junho de 1990)

Informação e formação Ninguém pretenderá negar o papel relevante que a informação representa na densa e complexa problemática social do mundo moderno. O aumento populacional e o decorrente aumento ao quadrado das combinações sociais armam freqüentemente situações em que o primeiro passo na promoção do bem-comum consiste no conhecimento dos fatos, dos dados numerosíssimos que constituem as variáveis e parâmetros de um sistema complexíssimo de equações. O conhecimento desses dados e das possibilidades combinatórias exige todo um saber e toda uma apurada técnica: a ciência e a técnica da informação. A concatenação de numerosos dados de um determinado programa de ação ou a logística operacional de um empreendimento, sem a qual o dito empreendimento em cada momento recairia na perplexidade de vacilações infecundas, como o raciocínio enxadrístico que perdesse o pé em relação às variantes já percorridas pela análise, é hoje uma disciplina tão fortemente exigida, tão imprescindível que não exageraremos se dissermos que ela constitui a marca de nossa era. Houve um momento na história do mundo em que uma verdadeira transmutação civilizacional se efetuou graças ao progresso mecânico e às descobertas das fontes de energia. A chamada “revolução industrial”, que marcou a história e que além do conforto material trouxe o desconforto das crises sociais e ideológicas, foi provocada pelo carvão e pela máquina a vapor. Pouco depois desenvolveu-se o campo da energética com a descoberta da eletricidade, e mais tarde ganharam relevo o petróleo e a energia nuclear. Tudo isto pertence, por assim dizer, ao século XIX ou século da energia. O nosso tormentoso século XX será o das comunicações ou das informações: a eletrônica e a cibernética são as ciências e técnicas do novo mundo que se caracteriza principalmente pela densidade e pela complexidade dos dados que, em cada situação, tem de equacionar. * E aqui já se entrevê qual é a fraqueza, a rigidez, a opacidade deste espesso mundo moderno em que vivemos. Diríamos que essa fraqueza está justamente na força em que o mesmo mundo se gloria, isto é, na mecanização do conhecimento, ou na robotização do homem. A tendência de valorizar as causas materiais, os dados, os fatos, e de supervalorizar a informação leva o homem, irresistivelmente, a pretender impor essa técnica a todos os grandes problemas humanos. Ora, hoje no século XX, como ontem no XIX, e anteontem no século de Péricles, o homem é sempre o mesmo incôngruo ser que depende imediatamente de coisas materiais mas aspira sempre às coisas que transcendem o mundo inferior onde tem o pé e onde aplica as mãos. A vida humana é uma longa procura e uma longa conquista. E qual é o objeto dessa ansiosa indagação? Responderíamos como Santo Agostinho a si mesmo respondeu: quero conhecer Deus e a minha alma. O saber tem muitos graus, desde os mais baixos onde o homem procura a ciência das coisas inferiores de que depende, até os mais altos em que procura a sabedoria que lhe diz o que é ele, de onde vem e aonde vai. E nesse grau de saber não é por um somatório de informações que o homem progride, e sim por uma integração de princípios, de valores, de normas que se incorporam à alma dando-lhe os habitus com que saberá atender com facilidade e firmeza aos difíceis desafios da vida.

A sabedoria dá ao homem uma formação interior, um modo global e íntegro de ser, e uma aptidão pronta e segura para as mais altas exigências do espírito. Tomemos aqui um exemplo: diz-se que um católico tem boa formação moral quando possui a disposição habitual e firme de agir bem em face dos múltiplos desafios da vida. Diz-se que tem boa formação mental quando possui a doutrina integrada num corpo com conexões vivas, e não apenas formada pela justaposição de informações desconexas. É próprio da especulação teológica o aprofundamento do dado revelado como conexo. A boa formação mental católica não exige copiosa informação sobre todas as coisas que no momento se imprimem,mas se caracteriza por um instinto seguro que vem dos dons do Espírito Santo e que lhe permite reconhecer bem a voz que ressoa in médio Ecclesiae, e que também lhe dá um rápido, vigoroso instinto para repelir o clamor que sempre há de existir extra Ecclesiam. A boa formação é o senso da verdade de Deus, em sua profundidade e em sua singeleza. Ao contrário, a má formação se caracteriza por uma tendência à excentricidade, por um gosto de fossar bolotas com os porcos longe da casa do pai. Combinada com o orgulho, que é o seu escudeiro, a má formação doutrinal toma logo a forma mais característica da infidelidade, que é o gosto pela novidade. “A infidelidade”, diz Santo Tomás (IIa, IIae, q. 10, a. 1), “como todo pecado, tem sua origem no orgulho. Pelo orgulho não queremos submeter o espírito às regras de Fé e à santa inteligência que tiveram os Doutores. Daí a observação de São Gregório: “da vanglória nasce o atrevimento das novidades” (31 Moral, Cap. 45). Se o leitor me perguntar o que deve fazer para ter boa formação, eu direi o que a Igreja diz há séculos. De início precisa desejá-la com a sede da humildade e com a força da caridade; e para desejar a casta sabedoria, tem de aninhar-se in sino Ecclesiae, e beber um leite que não é outra coisa senão o Sangue de Cristo, tornado branco e doce para a enfermidade de nosso paladar. Sem piedade e vida interior, não temos em nós a forma que receberá os impulsos de Deus, como a vela do barco recebe o vento. E agora, em termos mais práticos: a boa formação se obtém no estudo e na especial dileção dada àqueles que abrem a boca in médio Ecclesiae. Ao contrário, para se tornar excêntrico, moderno, basta dedicar-se a coprofagia da atualidade. Há por exemplo um catecismo do Cardeal Fanfani, um catecismo do Concílio de Trento, um catecismo de Pio X. Quem quer estar bem informado do colunismo social do pensamento teológico extra Ecclesiam, quem prefere a atualidade, a fofoca, o gosto de ler um livro contra-indicado pela Igreja, escrito em clima de fervilhante heterodoxia, então precisa ler o famigerado novo catecismo holandês ou alguma coisa de Teilhard de Chardin. * Há uma relação entre a formação e informação. Rigorosamente nós só sabemos o que sabemos depois de recebermos alguns dados algumas notícias que têm caráter de informação. A mais alta e santa doutrina foi primeiro uma comunicação, um anúncio. A formação depende da informação como o conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas não consiste nele. O problema de

hierarquia que aqui nos interessa é aquele que se arma em torno dos critérios e da disciplina com que fazemos em cada caso a formação ter a primazia e de certo modo medir e julgar a informação. É claro que em cada dia de nossa vida precisamos de informações que nos ajudem a progredir em nossa formação. O mal da época, mal derivado da atmosfera nominalista e de informações, que deixa no esquecimento o gosto e o desejo da sabedoria. * Criticando a epistemologia dos nominalistas, que já no seu tempo começaram a depredar a escolástica, Santo Tomás disse que eles querem conhecer uma por uma as pedras do rio. O autor inspirado do Eclesiástico, também contrapõe à ciência das informações a sabedoria formadora por informação com o Verbo de Deus: “Toda a sabedoria vem do Senhor Deus”. ............................................................................................................... “Quem pode contar os grãos de areia do mar e as gotas da chuva de todos os dias?... A sabedoria foi criada antes de todas as coisas... O Verbo de Deus nos céus (sabedoria incriada) é a fonte da sabedoria”. * Foi o furor de excentricidade, de atualidade e de informação que levou os progressistas que atuaram nos Institutos Pastorais a recomendar a alunos de medíocre formação toda a excrementícia teologia produzida pelos Robinsons, Harvey Cox, Bultman e outros que abrem o bico e pipilam extra Ecclesiam. E depois desse malbaratamento da doutrina todos se admiram de ver religiosos associados a bandidos da pior espécie. Os tolos que entraram na quadrilha porque ouviram dizer que aqueles salteadores, seqüestradores e assassinos estavam do lado dos pobres. Deus pedirá contas aos autores de tamanha impostura.

Na perspectiva deste trabalho, só nos resta insistir a tempo e contratempo: precisamos formar em nós a santa doutrina que se consubstanciou no Cristo Jesus Nosso Senhor, precisamos apurar o paladar e o olfato das coisas de Deus até para não pecarmos contra o valor das horas da vida com leituras espantosamente inúteis.

Revista Permanência, N° 14, novembro de 1969, Ano II.

Introdução a um livro O ÚLTIMO CAPÍTULO1

Há cerca de trinta anos um bom e velho amigo tentou me inculcar, como excelente, o método de ler os livros de traz para diante, alegando que o modo vulgar de leitura tem o inconveniente, entre outros, de afrontar a liberdade o leitor. Na seqüência forçadas dos números, ficamos nas páginas como nos dias. E já nos basta a vida — dizia meu velho amigo com melancolia — já nos basta a vida, esse folhetim de abstrusa composição e gosto duvidoso, onde a única independência que nos fica é a de remexer à vontade nos números já publicados. Esse amigo era um pobre vendedor de manteiga. Na continuação de nosso convívio, por afeição desinteressada, esforçou-se ainda por me incutir os princípios do liberalismo ateu, os segredos do comércio, e as primeiras regras do jogo do xadrez. Perdi-o de vista durante o tempo que levei a crescer, amadurecer e envelhecer, indo encontrá-lo, há poucos meses, no último capítulo de seu folhetim: moribundo, indigente, mas alegremente reconciliado com Deus. O que não agradecera nos dias de saúde e muita manteiga, agradecia agora nos dias de pouco pão e muitas dores. Morreu assim, como pretendia ler os livros; acabou por onde devia ter começado, isto é, pelo Princípio. Passando desse obscuro personagem a Pascal, fiquei sabendo que geralmente a última coisa que o autor de um livro encontra é o que deve dizer em primeiro lugar. Este capítulo dá razão a Pascal e ao vendedor de manteiga, porque foi o último que escrevi, sendo o primeiro para o leitor. Dei-lhe o título abstruso mas adequado, não para espantar alguém, mas para pagar àquele velho amigo um tributo de saudade. Aliás, eu creio que as páginas introdutórias são sempre assim. Só posso dizer o que vou escrever depois de o ter escrito; a introdução, de certo modo, é uma explicação que o autor se dá a si mesmo. Meses atrás teve um plano; tem agora uma obra. Entre essas duas coisas, o plano e o livro, há uma apreciável divergência, que pode ser considerada sob dois aspectos: um animador, outro deprimente. O lado desagradável da questão consiste em pensar que o melhor de um livro é aquilo que não se escreveu; que as mais finas idéias ficaram suspensas no longínquo firmamento das coisas indizíveis. O lado bom consiste em pensar que a obra saiu mais rica do que o plano, e que as divergências apareceram na libertação do objeto, em conseqüência de suas próprias reações durante o processo da fabricação. De fato é isso que aconteceu na composição de um livro, ainda que seja árido e insípido, como talvez julgue o leitor o que lhe estou apresentando. À medida que vai tomando forma, vai também ganhando independência, vida própria, realidade em contato com as realidades, enchendo-se assim de uma substância ponderável e resistente, que não tinha enquanto era um simples diagrama mental. Eu imagino que na construção de um romance, e principalmente no que se refere aos personagens, esse fenômeno tenha uma importância decisiva. Há certamente um momento em que o romancista sente que seus personagens estão se tornando reais e livres, e por conseqüência indóceis e absurdos como seus modelos vivos. Já não obedecem facilmente aos fios; já não se deixam empurrar pelos capítulos afora como bonecos de pano. Um pacto misterioso se estabelece então entre o autor e a obra: ele já não está sozinho, e importa, soberanamente, que esse pacto sutil não seja desrespeitado, pela tirania do autor, para que o tênue alento que se esconde nas palavras escritas não se apague de súbito. Há um princípio de inércia, na física e na arte. A parcela de verdade, mínima embora, que penetre o objeto, terá seu próprio movimento, e resistirá, como uma flecha, como uma bala, às mudanças de direção. O autor se sentirá arrastado. Nesse momento, a posição do autor é muito delicada: se resiste ao movimento, preso ao plano prévio, jugula a obra; se relaxa a direção, fiado na realidade cósmica da obra e pensando que o objeto em

curso de fabricação tem uma atividade imanente que se basta, a composição de desgovernará, e a obra morrerá no arbitrário e no incoerente. Evidentemente, se eu fosse um pintor de retratos, não poderia começar uma figura pelos traços de um comendador e acabá-la com os traços de uma dançarina. Mas poderia começar o retrato de um comendador, e conseguir finalmente o retrato de um homem. Neste livro, eu comecei a fazer uma figura, e acabei desenhando uma multidão. Não posso dizer, por mais que a modéstia ou a convenção obriguem, que estou descontente com o resultado2. Comparando o projeto com o livro feito, eu prefiro, francamente, o livro. Se o leitor achar mau o livro, fique sabendo que o projeto ainda era pior. OS PERSONAGENS O principal personagem, em torno de quem giram os debates contidos neste livro, é o homem que faz coisas como aparelhos de rádio, aviões, locomotivas, e que, na perfeição desses objetos aplica o melhor de seus dias e de suas faculdades. O leitor já prevê, se é perspicaz, que esse indivíduo, atendo demais aos objetos que fabrica, será forçosamente um distraído em relação às pessoas da família, aos aniversários, e às eleições presidenciais. As anedotas que correm a seu respeito são inquietantes. Ora nos aparece aqui a queimar toda a mobília da casa para conseguir o esmalte da porcelana; ora, acolá mais inquietante ainda, nos surge no alto da Torre Eifel, com duas asas de lona. Em outras circunstâncias, entretanto, vamos encontrá-lo paciente, rotineiro, a repetir com regularidade e pela milionésima vez o mesmo objeto, dando as maiores provas de satisfação dentro da monotonia. Esse personagem é o Técnico: inventor, engenheiro, tool-making-man. Não sei qual é a opinião do leitor a seu respeito; a minha, digo-a sem hesitar, é excelente. Guardo afeição por esse pequeno herói dos feitos exatos; e até hoje o vejo, apesar dos anos e das decepções, como há trinta anos o vi nos meus sonhos de adolescente. Vejo-o no campo, ao sol, em mangas de camisa, pernas bem fincadas, límpido olhar alongado pelos contornos e relevos da terra, que sente submissa e possuída. Seu lápis traça nas cadernetas figuras simples, onde aparecem rios e casas, figuras mal feitas, como as paisagens que dez anos atrás fazia num canto de papel de embrulho, deitado de bruços no chão. Agora, porém, ao lado do singelo esboço, há uma página eriçada de números (ângulos verticais, ângulos horizontais, distâncias, correções), por cuja virtude os rios serão galgados e perfuradas as cordilheiras. O segundo personagem, que aparece com menos freqüência, para lembrar o parentesco com o primeiro, ou para acentuar a dessemelhança que os separa, é o homem que faz coisas como poemas, sonatas, iluminuras, e que concentra, tanto ou mais do que o primeiro, todas as suas faculdades na perfeição do objeto que faz. Sua crônica, também não é tranqüilizadora. Suas experiências são mais íntimas; os incêndios que ateia ou os vôos em que se mata têm lugar num mundo diferente; mas nem por isso deixa ele de apresentar algumas anomalias exteriores. Muitas vezes, por exemplo, foi visto diante do absinto, noite a dentro, perdido num bar tumultuoso, como se estivesse — o mais solitário dos homens — perdido no centro de uma paisagem polar. Também, e apesar das mais engenhosas conjecturas, nunca se conseguiu apurar com exatidão o motivo que o levou, um dia, a pintar os cabelos de verde; ou a razão que depois o impeliu a deixar bruscamente a poesia, para ir negociar marfim com os muçulmanos. Esses dois personagens se tornam facilmente ridículos, e muitas vezes atravessarão assim nossas páginas, como atravessam nossas vidas; um com suas asas de lona, outro com seus cabelos verdes; ambos com modos esquisitos e palavras incoerentes. Devemos, entretanto, lembrar com boa vontade,

e até com gratidão, que isso acontece porque eles carregam dons especiais para o bem dos outros. Aliás, quem reconhece esse fato com reto julgamento é o terceiro e mais extraordinário personagem desta história. Não possui dons especiais; a rigor pode-se dizer que nada sabe fazer, ou, pelo menos, que não é na feitura das coisas que mora sua principal virtude. Para ele, o uso das coisas é um problema mais grave do que o fabrico; porque é segundo esse uso que o homem se torna o que é, e tende para seu fim verdadeiro. Interessa-lhe o que fazem o técnico e o poeta, porque é homem e sensível. Tem bons olhos, bom paladar e reta razão prática. Esse extraordinário personagem é o Homem Comum. Raramente, porém, consegue dar seu testemunho inteiro, por causa de um outro personagem que anda atrás dele, puxando-lhe a aba do casaco, pisando-lhe os calcanhares e importunando-o com suas opiniões. Este é o Homem Vulgar. Pretende, em cada circunstância, se apresentar como o autêntico representante da espécie humana, mas invariavelmente se equivoca sobre a significação e o gosto das coisas. Intrometido, tendo a seu favor os articulistas modernos, ele exibe seus títulos por toda parte e vale-se do avultado número de seus semelhantes. O autor deste livro, porém, usando de uma incontestável prerrogativa, procurou poupar a seus leitores a facúndia desse indivíduo. Mostra-o aqui e ali, sobretudo nas situações em que esse personagem quer falar com técnico e, equivocado sempre, olha as coisas do mundo, as aves, as margaridas e as crianças, como supõe que o técnico as veja, isto é, como se ele as tivesse feito. Devo mencionar agora dois personagens muito respeitáveis, que o leitor descobrirá na penumbra de uma modéstia monacal. São o Teólogo e o Filósofo. Esses personagens mereceriam maior evidência, e todos nós lucraríamos se eles pudessem comunicar-se melhor com o Homem Comum. Não estou absolutamente seguro de ter interpretado com fidelidade a palavra substancial desses dois discretos indivíduos. No plenário um pouco tumultuoso em que se desenrolaram os nossos debates, o filósofo e o teólogo contentaram-se em colocar, aqui e ali, algumas sábias ponderações, que essas mesmas só me chegaram aos ouvidos através do vozerio dos outros personagens. E foi pena. Tivéssemos todos nós, a começar pelo autor, maior docilidade à palavra da verdade, e o livro sairia mais exato e mais suculento. Consolo-me pensando que a variedade de registros, e as notas cômicas introduzidas pelos personagens menores, compensarão a falta de ciência por um acréscimo de amenidade. Esses personagens menores são numerosos e variados. Desempenham papeis secundários e passageiros, como a criada, o polícia ou o bêbedo do teatro. Correndo rapidamente os meus apontamentos, vejo entre eles um ministro de estado, a sombra de um ditador, diversos amigos, dois industriais, um pobre leproso, meia dúzia de filósofos materialistas, três ou quatro idiotas disfarçados em sociólogos e pedagogos, e finalmente uma multidão de anônimos, que enche as ruas, as praças, as casas, esperando de nosso debate um resultado, pequeno embora, pequeníssimo até, mas um resultado que tenha o genuíno gosto da verdade. Se o leitor tiver boa vontade, descobrirá que procurei dirigir os debates nesse sentido. Por esse motivo, e por um sentimento de responsabilidade, fui obrigado a opor certos obstáculos à desordenada loquacidade dos personagens idiotas que se fazem passar por sociólogos e pensadores: pois sem essa precaução, eles encheriam o livro todo. O direito que me reservei de dirigir os debates, pedindo a palavra a uns, cassando-a a outros, é certamente legítimo. Dirá o leitor de má vontade que houve de minha parte uma espécie de tirania, e que meu livro não passa de um espetáculo de marionetes com mal disfarçados fios. Direi eu então, a esse leitor, que faça o mesmo. O papel é paciente, e a palavra escrita não é privilégio de ninguém. Faça-o, e melhor. Fale sozinho, se quiser, ao longo do volume inteiro; passe quatorze meses debruçado sobre duzentas e tantas páginas, a razão de três ou quatro horas por dia; escrever sete

vezes o mesmo capítulo; raspe o fundo da memória; roube mil horas ao sono e outras tantas às mais legítimas e simples alegrias; suporte, dez vezes ao dia, por mais de ano, a tristeza de verificar que trocou um enorme e substancial pedaço da vida por uma resma de papel — e venha depois dizer-me se achou cômodo. Não veja, porém, nessa confidência que me escapou, um apelo à benevolência, que além de indecoroso seria estúpido. Um livro é o que é. Minhas conjuntivites, meus cansaços e minhas tribulações, com certificados estampilhados, não fariam de um mal livro um bom livro. Quem se mete a fazer livros jura submissão à lei implacável que rege as atividades do técnico e do artista: a lei do objeto. A COMÉDIA (OU TRAGÉDIA) Onde há personagens há comédia; ou tragédia. E isto mais se acentua quando os personagens se enganam sobre as atitudes que devem tomar ou se equivocam a respeito do fim que os espera. Um espetáculo, em si mesmo, não se define como comédia ou tragédia senão depois que o espectador escolheu o olho com que o vê. Mudado o olho, muda a peça; e apesar da etiqueta, e da intenção do autor, a cena mais trágica se prestará ao riso; ou a mais cômica, à lagrima. Predomina o cômico quando consideramos as cenas de um modo puramente intelectual, observando os enganos de atitudes e posições; predomina o trágico quando consideramos as cenas com interesse pelo destino dos personagens. A comédia é essencialmente feita de meios, de detalhes, de situações; a tragédia é essencialmente feita de atitudes em relação aos fins. Esquecidos os fins, o destino, a missão, a vocação do homem, tudo ficará desesperadamente cômico. Toda comédia é uma Comédia de Erros, quer envolva dois irmãos gêmeos, como em Plauto; ou quatro, como em Shakespeare. As cenas deste livro chegarão a um cômico excessivo, e portanto de gosto duvidoso, quando aparecem milhares de personagens que, à luz de certa filosofia, são gêmeos sem serem irmãos. Tal filosofia tende a destruir a diferenciação dos personagens, transformando o mundo numa insuportável comédia; como também, por estranha derrisão, tende a destruir a fraternidade, transformando o mundo numa insustentável tragédia. Devo dizer, entretanto, em meu favor, que a comédia, se comédia há, não foi composta por mim. Esforcei-me, ao contrário, por esclarecer a identidade de cada figurante. Fiz o que pude para determinar as fronteiras da técnica e para indicar a posição correta que compete ao técnico. Procurei mostrar, por exemplo, que o político ou o pai de família que adotem atitudes e métodos técnicos, seriam tão incôngruos como um conselheiro de estado escondido no armário de uma corista. Quem faz um vaudeville, acha gosto em meter o conselheiro naquela delicada e imprópria situação; dei provas de não gostar desse gênero de intrigas procurando desembaraçar meus personagens. Se o leitor encontrar uns restos de farsa ao longo do ato de desmontar a farsa, ou perceber no desalinho e na confusão dos personagens uns vestígios de vaudeville, a culpa não é minha. * Há uma tarefa que se impõe no cenário do mundo: a restauração das atitudes e das identidades. O problema importa não somente para a harmonia geral do conjunto, como também para a perfeição de

cada parte. Traçando as fronteiras da técnica, ou procurando corrigir o braço e o olho do técnico, visei duas coisas igualmente importantes: aliviar os outros personagens de um importuno e evitar que o técnico se torne ridículo, perdendo suas próprias virtudes. Limitar é dar forma e força. Creio que ninguém põe em dúvida o valor e a utilidade das paredes e das fronteiras. Quanto à questão da posição correta, talvez não sejam inúteis algumas reflexões. Sabemos que existe uma posição correta do sujeito para cada tipo de atividade. Qualquer professor, de piano ou caligrafia, sabe que a posição tem uma importância decisiva. Esse fato, que ninguém por certo contestará, se evidencia de um modo particularmente claro, entra pelos olhos a dentro; bastando olhar um jogador de bilhar no momento em que pega o taco e se debruça no pano verde, para se ter a impressão de estar vendo, no seu braço, nos seus dedos, no seu ombro, a virtude de carambolar. Há uma concordância, uma convergência harmoniosa em vista de um ato, uma inteligência visível, que nos sugerem um completo domínio do sujeito sobre o objeto. Há uma elegância, que é a prévia manifestação de destreza. Ao contrário, quando um principiante pega no taco, vê-se logo que entre ele, o instrumento e a operação a ser feita, ainda não se estabeleceu a harmonização necessária. O resultado desse desacerto é cômico. O cômico, na maioria dos casos, vem de um erro de posição. Não é o contrário do sério, mas o contrário de um desembaraço e elegância. Neste ponto tomo a liberdade de discordar de Bergson quando diz que "as atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano provocam o riso na medida em que esse corpo nos dá a idéia de um simples mecanismo". A aparência mecânica provoca o riso, sem dúvida; não pelo fato de ser mecânica, mas pelo fato de parecer inadequada. Creio que Bergson chegou a aquela conclusão por nos parecer mecanizado o gesto observado em desacordo com a função. Insisto porém num ponto: o cômico, a meu ver, reside mais no desacordo do que na mecanização. Mais adiante em seu estudo, Bergson me satisfaz completamente quando afirma que o problema do cômico está na maneira puramente intelectual de ver um espetáculo. E chega a dizer: "Numa sociedade de puras inteligências ninguém choraria, mas o riso existiria". Realmente, o cômico é detectado como um erro; erro prático, erro de atitudes ou de limites. Cômico é o sujeito que não sabe fazer e que o proclama, antes mesmo do ato, por seus gestos e atitudes. É também aquele que parece estar aprendendo, como Carlitos, que anda como se estivesse aprendendo a andar, fuma como se estivesse aprendendo a fumar. Seu inimitável e cândido cômico torna-se ainda mais vivo pelo contraste com suas veleidades de elegância. O desembaraço nunca é cômico, ainda que os gestos sejam mecanizados. Um operário adestrado, que sincroniza o braço com a máquina, nunca provoca o riso. Ele sabe fazer, e isto é o bastante para imprimir à sua figura uma harmonia que pode ser trágica, mas que nunca será cômica. Cômica é, decididamente, a falsa posição revelada pela razão prática. Ri-se o espectador como quem julga. E como quem reprova. O público de uma comédia tem vaga semelhança com uma banca de examinadores; o candidato lembra o palhaço; a platéia é um tribunal; o riso, uma vaia. E ainda mais, de acordo com Bergson, e agora com Baudelaire, o cômico só existe onde há público, e onde existe da parte do espectador um forte sentimento de superioridade. Não conseguimos imaginar um palhaço particular, com a facilidade com que imaginamos um professor particular. Cômico é pois o erro, o erro prático, previamente anunciado e publicado pela posição imprópria. Vale mais, neste caso, a posição do indivíduo do que o próprio erro do ato, porque é mais ao sujeito do que ao objeto que o riso se dirige. O indivíduo que erra uma bola nem sempre se torna ridículo. O erro acidental, que não estava anunciado na posição, não provoca o riso. Ao contrário, o sujeito que acerta por acaso, quando tudo indicava que devia errar, torna-se duplamente cômico.

As cenas de equívoco que o leitor encontrará neste livro são produzidas por erros de atitude num sentido mais largo, que são menos visíveis do que os trejeitos de um patinador principiante. Nem por isso, a meu ver, são menos cômicos; ou menos trágicos. O técnico tem uma atitude clássica diante dos objetos que faz, derivado das próprias regras do fazer. Caracteriza-se pela facilidade de medir os elementos parciais e de prever, em função dessas medidas, a perfeição mecânica do total. Adquire assim o técnico um vício: ele considera todas as coisas como se as tivesse feito. É fácil prever o sem número de intrigas e de quiprocós que esse personagem causará entre os homens se sair do laboratório sem deixar sua atitude; isto é, se andar pelas ruas e pelas casas sem se lembrar que, antes de ser técnico, é um homem comum. Os disparates que esse perigoso indivíduo produzirá podem ser considerados sob dois aspectos: erro de oportunidade ou de local, e erro de atitude ou posição. Uma canção de amor é a mais admissível das coisas; mas o sujeito que, por distração, a entoasse na fila do ônibus, seria certamente cômico, ainda que cantasse bem. O campeão olímpico de saltos é homem que merece admiração, porque a destreza é admirável; mas, se por equívoco começasse a pular por cima das cadeiras e das damas, numa sala de visitas, seria certamente cômico; ainda que pulasse bem. Ou seria trágico. Procurei mostrar que o técnico comete às vezes erros de atitude e de conveniência que merecem vaia. Mas procurei mostrar também um inconveniente maior do que a vaia, e que vem a ser a deformação das próprias virtudes do técnico diante do aparelho de rádio. O cantor que por toda parte solte a voz acabará não sabendo cantar no teatro. O campeão de saltos, se pula sem propósito acabará confundindo proporções e perdendo seus títulos. O pianista que viver dedilhando sobre os móveis que encontra, ao cabo de poucos anos não saberá dedilhar sobre um teclado. A força principal de um especialista consiste em reconhecer que suas atividades, por isso mesmo que são especiais, devem se ater às circunstâncias especiais. O cientificismo é adversário da ciência; o tecnicismo, adversário da técnica. O mundo moderno, por lamentável engano, pensa que o mal e o sofrimento humano vêm da diversidade. Procura então destruí-la, arrasando limites e paredes, e fundindo numa grossa pasta, onde serão trituradas, todas as coisas que constituem o esplendor da civilização. Não é justo dizer que isto seja uma idéia de bárbaro: um bárbaro nunca teria uma idéia tão prodigiosamente estúpida. Não podemos imaginar um selvagem a fundar doutrina para simplificar seu "boomerang" ou a composição do seu curare. Mas posso dizer que essa idéia conduz à barbárie: o primeiro que a formula é geralmente um indivíduo muito civilizado, que num certo ponto de sua história toma nojo da sua condição; o segundo, que a repete, é geralmente um tolo; o terceiro, um idiota; o quarto ou o quinto será então um bárbaro, e esse já não se dará ao trabalho de formular idéias. A propósito de simplificações desse tipo, ouvi contar, recentemente, que em Moscou, graças à proletarização, chegou-se à conclusão que tocar piano é aproximadamente a mesma coisa que carregar piano. Um jornalista americano, de ótimo humor, contou-nos esta cena incrível: num concerto, depois de duas horas de grande desempenho artístico, tocado o último acorde e recebidas as últimas palmas, a pianista sai da sala de espetáculos empurrando o piano (que tem rodas apropriadas) diante de um público que já não sabe rir. Ou chorar.

Em cenas assim, há comédia ou tragédia; conforme a perspectiva. Escolha o leitor, à vontade, o olho que mais lhe agrade. Ria-se ou chore, como dizia Machado na última página de Quincas Borba. Ria-se ou chore, digo também. Não porque seja isso indiferente, ou porque esteja o Cruzeiro do Sul longe demais de nossas aflições. Digo-o porque ambos são legítimos: o riso e a lágrima. Ninguém, certamente, se lembrará de nos contestar o direito às lágrimas; mas muitos, pelo que tenho visto, querem nos contestar o direito ao riso. O apupo é certamente uma pesada manifestação, e muitas vezes cruel. Baudelaire irritava-se diante dessa convulsiva e estridente maneira de opinar, vendo nela uma obra do demônio. Exagerava. Escrúpulos de homem muito sensível, arrepios de poeta, faziam que ele visse no riso cômico um sinal satânico. Além disso, ele não tinha experiência da opressão moderna, da taciturna tirania, que procurou suprimir nas faces dos homens as legítimas manifestações de oposição e de livre opinião. O riso que apupa é certamente pesado, mas é um direito do homem. As ditaduras, aqui ou em Portugal, na Alemanha ou na Rússia, foram comédias em que o riso se tornou proibido3. Não admira pois que tão depressa se tenha transformado a comédia em tragédia. Represado o riso, rebentaram as lágrimas. Ria-se, pois, leitor antes que seja tarde. Ou então, ajude-me ao longo dessas páginas, a desmontar a comédia tirando o conselheiro de estado do seu ridículo esconderijo; reconduzindo o técnico aos seus instrumentos; convencendo o campeão de saltos que uma dama pode ser um obstáculo em nossa vida, mas não no sentido esportivo; internando num manicômio os personagens impostores que se fazem passar pelo que não são; e tornando mais silencioso o mundo para que se possa ouvir a voz da Sabedoria. Ajude-me, ó leitor amigo, a evitar que o homem se torne cada dia mais ridículo, e que uma vaia atômica nos venha estragar a peça. Desmontemos juntos a comédia dos erros. O mundo, apesar de tudo, não é teatro; e mais vale um bom entendimento do que uma boa comédia. (A Ordem, Janeiro de 1947) 1. 1.[N. do Autor] Esses três capítulos, a começar pelo último, fazem parte da Introdução de um livro que talvez nunca seja publicado. 2. 2.[N. do Autor] O autor, nesse meio tempo, mudou de opinião; agora está a parecerlhe que o projeto era melhor. 3. 3.[N.da P.] Corção refere-se à ditadura de Getúlio Vargas. Quanto ao governo Salazar, mudou de opinião mais tarde.

Liberais e conservadores Quais são realmente as mentalidades que se defrontam na Igreja de nossos dias, e mais especialmente no Sínodo? Já vimos que as denominações usadas no noticiário não nos parecem adequadas. Que denominações proporíamos nós em lugar daquelas? Parece-nos mais verdadeira esta outra divisão: De um lado estão os católicos sem adjetivos, ou então os católicos-católicos que, mal ou bem, apresentam os seguintes traços: eles crêem na Igreja, e crêem que a Igreja, no patrimônio de sua sabedoria e na riqueza de sua vida interior e de seus ensinamentos, dispõe de mais recursos para ensinar e conduzir o mundo do que toda a cultura da humanidade dispõe para conduzir-se a si mesma e para conduzir a Igreja. Sem deixar de reconhecer e de admirar os esforços dos homens, os católicoscatólicos sabem que a cultura acumulada e prestigiada pela ida à Lua não tem unidade, nem tem profundidade para resolver os mais humanos e portanto os mais graves problemas do homem. O mundo, em seus registros, não sabe como é feito o homem. Possuirá mil informações preciosas a respeito das estruturas exteriores, mas não sabe de ciência certa o que convém ao homem, na vida de família, no convívio político e principalmente não sabe o que mais convém à alma humana. A Igreja sabe como o homem é, e sabe ainda mais o que Deus quer do homem. Com esta convicção, e com esta certeza de fé, os católicos-católicos se habituaram a procurar na Igreja de todos os tempos, no depósito de sabedoria acumulada pelos apóstolos, pelos santos Padres, pelos doutores e pontífices e por todos os santos, as respostas às mais altas indagações sobre os problemas humanos. Por mais forte razão, o católico-católico, colocado em situação de influir e de contribuir para os negócios do Reino de Deus procurará na própria Casa de Deus, nos próprios registros da Igreja, e sempre à luz da Fé, as soluções para todas as dificuldades. Ninguém melhor do que a Igreja poderá conhecer as delicadezas dos problemas eclesiais, e nenhuma ciência do mundo poderá trazer mais do que uma subalterna ciência exterior e menor, que só será proveitosa na medida em que puder ser assimilada e norteada pelos critérios espirituais. O católico-católico sabe que a Igreja deve estar atenta ao mundo, mas não como quem está atento ao mestre, e sim como o mestre que deve às vezes aprender com o aluno, para melhor conhecer suas deficiências e para melhor ensinar, ou como o médico que ausculta, não para ser curado pelo doente, mas às vezes ser por ele informado e para curá-lo. O católico-católico que estivesse sentado no Sínodo prestaria ouvidos ao clamor de um mundo enfermo, não para tirar deste clamor a ciência e o remédio. E para os grandes problemas da Igreja, só à Igreja pedirá critérios e normas. E em todos os rumores que lhe viessem do mundo saberia sempre vigiar, bem sabendo que haverá sempre no mundo uma corrente de ira e de inimizade que quer a destruição da Igreja. De outro lado estão os avançados, os modernistas, os progressistas ou liberais, que crêem mais no mundo do que na Igreja, e que, para o suposto bem de uma nova Igreja que julgam ainda estimar, preferem não ouvir a velha antes de ouvir os jornalistas, os economistas, e demais estudiosos da casca do mundo. Acreditam mais na Ciência, na História, no Progresso, no Mundo, do que na Igreja fundada por Jesus Cristo, vivificada por seu Espírito. Daí a espantosa facilidade com que desdenham a obra de um Pio X, recentemente canonizado, e precisamente canonizado como Papa exemplar.

O progressista, o avançado, o historicista, o liberal, acredita mais em Karl Marx do que em Santo Tomás, e vê valores mais apetecíveis em um Guevara do que em um Santo Cura d’Ars, porque toda a sua confiança está sempre posta no lado do mundo, e toda a sua desconfiança está sempre dirigida para este espantalho da história que é a Igreja de Cristo. Queixam-se dela com medidas e critérios pedidos ao mundo; e querem até salvá-la dela mesma, querem servi-la contra o que ela sempre quis, e para isto nada lhes convém mais do que os critérios da História, do Progresso, da Ciência e da Técnica. A convicção central desse personagem é a de que o homem está se saindo muito bem de todas as empresas, inclusive a de se salvar, enquanto a Igreja não fez outra coisa senão tropeçar nas próprias vestes e desacertar. Debalde lhe dirá o católico que a Igreja tem sua vitória no céu, e que Jesus Cristo Nosso Senhor deixou bem claramente dito que Seu Reino não é deste mundo. Debalde lhe dirá o católico que o mundo está condenado, e que a Igreja vive e sobrevive para colher os sobreviventes do naufrágio final. Jamais se entenderão esses dois homens, a não ser que o católico apostate ou que o progressista ou liberal se converta. E a obra comum que apresentarem será tanto pior quanto melhor imaginarem que é. Dois católicos podem divergir de mil modos em questões que se referem às coisas da Igreja, podendo ainda essa divergência ser aproveitada em benefício das almas. O entendimento torna-se impossível e inaproveitável o desentendimento quando o católico-católico percebe que esperam dele a renúncia de seu critério central, que é o próprio mistério da Igreja. Temos a firme convicção de que só haverá lucro real para a Igreja se em tais eventualidades, os católicos souberem repelir os critérios progressistas, cientificistas, historicistas, seculares, com a mesma energia que Jesus repeliu a secularização esboçada por Pedro: "retro Satana!" Realmente o que está em choque na Igreja de nossos dias é o lado católico, que tira da Igreja todos os seus critérios, e o lado progressista ou liberal, que acredita mais no Século do que na Revelação. Ainda há homens na Igreja que crêem na Igreja, e crêem na absoluta superioridade da Igreja sobre o mundo que precisa dela para salvar-se; mas cremos que já são mais numerosos os homens que acreditam na absoluta superioridade do Século, e que, na melhor das hipóteses, ainda desejam recuperar a vetusta organização filantrópica, se essa veneranda recalcitrante se corrigir de suas antigas intransigências e resolver aceitar a mãozinha estendida da mundanização. (Publicado em O GLOBO de 25/10/69; republicado em PERMANÊNCIA No. 232/233, Março-Abril de 1988)

Meditações sobre a ruína do mundo Qual será a causa profunda da doença mortal que corrói a civilização e que, por derrisão depois da leitura da página de Ibsen no artigo de quinta-feira, poderíamos chamar de fé na mentira vital? Tomando o problema na perspectiva da causalidade formal, e renunciando por enquanto à pesquisa da causa eficiente e de sua localização histórica, diríamos que com a estranha subversão observável em qualquer fenômeno social, e mais claramente visível nos meios religiosos onde a corrupção do melhor se torna péssima, defrontamo-nos com uma forma de causação circular que podemos tomar pela subversão interior ocorrida no próprio centro de nossa personalidade onde se decide a opção de dois amores de si mesmo: o belo amor de si mesmo que se volta para Deus e nele se perde até o esquecimento de si mesmo e de todas as coisas do mundo que se oferecem ao nosso senhorio, e ao deleite de nos sentirmos sicut dii; ou então, o falso amor de si mesmo, que, voltado para as coisas exteriores e para o prazer sensível de sua dominação, nos leva até o esquecimento e o desprezo de Deus.

Já disse que esse amor de si mesmo é falso e, com esta qualificação irresistivelmente formulada, já formulamos a natureza e a forma da subversão, isto é, da falsificação fundamental da alma humana; o esquecimento de Deus produzido pela dispersão das virtudes e dons no múltiplo espetáculo das coisas do monumental mercado que nos inebria. Fundamentalmente, essencialmente, a alma que se afasta de Deus se volta para uma progressiva mentira. Perdida a luz que ilumina a verdade em cada coisa, a alma se compraz em inventar valores tirados da vontade própria que, num primeiro ato fundamental, deixa-se crer que se ama a si mesma, justamente quando a alma não sabe realmente o que ela é. Esta implicação de uma mentira no processo interno com que o homem afastado de Deus se contempla e julga amar-se quando trabalha por sua perdição, está magistralmente formulada por Santo Tomás de Aquino na questão em que pergunta “se os pecadores se amam a si mesmos de um vero amor”. Depois da habitual exposição das dificuldades e erros vigentes, Santo Tomás chega ao centro de gravidade do problema da integridade moral e psicológica do EU: “Unde non recte cognoscentes seipsos, non vere diligunt seipsos, sed diligunt illud quod seipsos esse reputant”. (lla llæ. q. XXV, a. 7) Poderíamos, com inevitável perda de sua admirável concisão, traduzir assim: “... então, não se conhecendo retamente a si mesmos, não podem verdadeiramente se amar a si mesmos, mas amam aquilo que eles mesmos pensam que são”. Todos os tragicômicos equívocos da moderna “psicologia profunda” que, limitada ao subterrâneo das emoções é o menos profundo de todos os conhecimentos da alma, giram em torno dessa questão fundamental, que lhes escapa, ao psiquiatra e ao paciente, porque todos estão mergulhados na mesma mentira vital. Mas até aqui estamos ainda no ponto de partida pessoal. Como passar daí para a multiplicação que nos dá, não apenas a subversão de uma alma, mas a subversão erigida em sistema, e tornada a forma de toda uma civilização? O caso pessoal pela repetição e pelo contágio, em vez de achar nessa multiplicação uma advertência e um princípio de cura, acha precisamente uma intensificação da mentira e até um certo entusiasmo por uma bandeira de congraçamento. E então, passando a mentir e a falsificar em proporções planetárias, e em movimento acelerado, temos os últimos quatro séculos de civilização humanista. E agora, por um reflexo de ambiente circundante sobre cada contribuinte de tão espantoso patrimônio, processa-se em cada alma um reforço, uma confirmação de mentira que então se intensifica em movimento acelerado. Cabe aqui realçar uma analogia entre os movimentos espirituais e os movimentos materiais. Há na ciência física uma lei menor, dita também de Newton, que se exprime nesta singela fórmula: f = m.a e que, em linguagem vulgar se traduz assim: uma força constante (f) aplicada a uma massa (m) produz nela um movimento em que a velocidade cresce progressivamente segundo a aceleração (a). Na mesma grande obra citada quinta-feira (Les Trois Ages de la vie Intérieure) e recomendada a todos os católicos que se acham sem direção espiritual porque seus pastores se inebriam de mentira abundantemente fabricada nas Conferências Episcopais, nas Conferências dos Religiosos, e nas demais usinas da falsa religião do homem que se fez Deus, Garrigou-Lagrange nos oferece uma bela passagem de Santo Tomás onde ele, antes de Newton, descobriu a mesma fórmula: quando o princípio atuante se mantém constante, o movimento que produz é acelerado, e por mais forte razão se acelera o movimento quando o móvel se aproxima da força que o atrai. Em comentário à Epístola aos Hebreus (X, 25) Santo Tomás (citado por Garrigou-Lagrange na página 173, tomo I) diz que, ao contrário do que vulgarmente se pensa, o processo de santificação se torna mais vivo e mais acelerado à medida que a alma se eleva e mais se aproxima do Fim tão perseverantemente amado e desejado. Mas a mesma lei de aceleração também se aplica àqueles que são perseverantemente movidos pela atração da terra. E isto nos faz tremer porque são abismais as expectativas que já se delineiam num mundo em que a gravitação de um falso princípio se mantém constante: as quedas de almas se processarão em movimento acelerado, e vertiginosamente acelerada será a decomposição de agremiações que se entregaram a falsos princípios todos os dias reafirmados em todos os tons. E os personagens envolvidos no turbilhão da mentira vital saem risonhos de suas reuniões, e publicam documentos falsíssimos onde pretendem convencer que lutam pelo mais puro amor pelos direitos do homem. Que poderemos fazer para frear, ou até para deter e retificar este vertiginoso processo de causação circular acelerada? Evidentemente, o primeiro e imperativo dever que se impõe é o de não contribuir

com sua quota de disparate e de iniqüidades. Na verdade, o problema é mais grave e mais exigente, e não basta abstermo-nos dos dízimos da mentira. Deus espera de nós não apenas a denúncia dos erros alheios, mas principalmente a purificação própria porque somente do Céu e da Cruz de Nosso Senhor poderá vir a energia capaz de salvar as almas do turbilhão comandado por Satã. Trabalhemos em nossos corações, ou melhor, deixemos obedientemente que Jesus nele trabalhe, e procuremos, com a graça de Deus, glorificar a beleza de seus dons à revelia de um mundo que se gaba de autonomias e suficiências. Sim, o que falta principalmente no mundo é um milagre de humildade coletiva, multiplicada, contagiada, propagada contra a peste negra da soberba que envenena as almas, as instituições e os regimes. Até quanto, meu Deus! devemos esperar esse milagre? O GLOBO, de 26/02/1977.

Mísera sorte! Estranha condição. O gemido está no quarto canto de Os Lusíadas e quem o pronuncia é um ancião de “aspecto venerando” que não vê com bons olhos o esplendor da nova civilização que os varões da ocidental praia lusitana querem inaugurar. “Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama!”

Todas as almas afinadas, um Pascal, um Péguy, a seu turno, e cada um com seu modo, dirão que o homem é um incôngrua criatura, “un monstre de contradictions, un puits d’inquietude”. O próprio Camões, mais de uma vez volta à obsessiva idéia do “desconcerto do mundo” trazido pela mesma conturbada condição humana. Nós sabemos pela Fé que tais desconcertos e contradições são conseqüências do pecado de nossos primeiros pais, e Chesterton dizia que, de todos os dogmas e mistérios da fé, o mais claro, o mais evidente é sem dúvida o do pecado original. Basta efetivamente olhar em torno de si com alguma atenção para descobrir que o animal racional é o menos razoável dos seres, e para começar a crer que algum grave mal-entendido está na origem do homem, e perdura em sua condição ao longo dos séculos. O Concílio de Trento nos diz majestosamente: “Adão perdeu para si e para seus descendentes a inocência e a santidade de seu primeiro estado ficando assim sujeito à morte e ao cativeiro do Diabo”. No mesmo contexto o Concílio de Trento nos ensina que, além da perda da justiça original que lhe assegura a Vida Eterna, os descendentes de Adão ficaram privados dos dons preternaturais, e da natural integridade, ficando assim decaída a natureza humana: a inteligência torna-se obnubilada para as coisas mais altas, e o livre-arbítrio se torna fraco, vacilante e com certa inclinação para o mal. Além disso, nas profundezas da alma decaída, o pecado original deixará o veneno do amor-próprio, que o Catecismo de Trento, mantendo a fórmula paulina, chama de “carne”, e que está na origem de todos os pecados, a começar especialmente pelo orgulho e pela cupidez. Não podendo o Homem, por sua própria força, salvar-se para a Vida Eterna, dada a infinita eminência da pessoa ofendida pelo pecado, Deus nos enviou seu próprio Filho, que nasceu de Maria Virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi morto na cruz para nossa salvação, e deixou-nos em sua Igreja as fontes de graça que nos vêm de seu Sangue. Assim é que desde a pia batismal a água nos cura e nos lava a culpa do pecado original mas não restaura a natureza decaída nem nos liberta do amor-próprio. Nos dias da vida, se quisermos firmemente chegar com Jesus à Casa do Pai, teremos de lutar incessantemente contra três cruéis inimigos: o demônio, o mundo e o amor-próprio; e só os venceremos se nos arrimarmos na graça de Cristo. Já aqui, em termos de catecismo elementar, percebemos os aspectos paradoxais de nossa condição: somos criaturas resgatadas, mais ainda somos criaturas decaídas e cercadas de inimigos, a começar pelo amor-próprio.

A graça divina, que mana da Cruz, é remédio específico de nossa salvação sobrenatural. O homem por suas próprias forças naturais poderá fazer muitas coisas proporcionados à sua natureza; mas é preciso não esquecer que essa natureza está decaída de sua perfeição própria, e por isso o homem precisa do arrimo da graça, principalmente quando a obra a que se dedica tem dimensões morais elevadas, como por exemplo a política e a civilização. Santo Tomás na Iª., IIæ., q.109, a.2 restringe severamente e quase ironicamente o âmbito das coisas que por si mesmo os homens sem o socorro da graça podem fazer: construir casa, plantar vinhas e coisas desse gênero. Creio que poderemos conceder muito mais, e o prodigioso progresso técnico e científico autoriza certo otimismo. O entusiasmo eufórico despertado por aquele progresso científico e técnico se abala e até desaparece quando consideramos o outro lado das maravilhosas conquistas do homem. Há efetivamente o lado do inventar e do fazer, e o outro lado, aparentemente mais fácil mas realmente mais difícil, o lado do usar, quando abordamos o problema do ponto de vista político ou civilizacional. É no lado do uso dessas maravilhas que surge o problema moral, às vezes tragicamente difícil.

Ainda devemos fazer outra subdivisão e outras distinções, antes de chegarmos ao problema da condição humana no mundo contemporâneo. Para começar, tomemos o caso de um homem católico, mas acidentalmente privado da graça santificante por haver caído em pecado grave. Ainda assim, o trabalho desse pecador não está inteiramente privado de qualquer auxílio da graça. Se a graça não o ajuda diretamente nas operações de seu ofício natural, esse homem, na medida em que ainda vive conscientemente na comunhão dos santos é membro da Igreja, será sempre indiretamente, mas fortemente, ajudado pelo envoltório sobrenatural em que vive. Muito mais lamentável seria a condição de nosso personagem católico pecador se os ventos da vida o levassem a um deserto espiritual em que ele não visse os sinais da santa visibilidade da Igreja, nem convivesse com nenhuma família católica. Pior ainda seria a sua situação se na sociedade em que vive, herdeira de uma civilização cristã, multiplicam-se os pecados, e o indiferentismo religioso é visto como largueza de idéias e o deserto espiritual é chamado de progresso moral. O mundo ocidental que nasceu cristão manteve uma civilização cristã durante um milênio. Hoje essa prodigiosa realização é objeto de escárnio para aqueles que trazem na alma o obscurantismo que atribuem ao mundo medieval. Não pretendo fazer a apologia da Idade Média com critérios políticos, sociológicos e científicos. Poderia dizer e provar que os famosos progressos científicos e técnicos têm suas raízes históricas na Idade Média e no Cristianismo. Basta lembrar a coincidência das duas geografias: a Europa inteira, que durante um milênio se mantém cristã, coincide com a Europa que a partir do século XIV é indubitavelmente a pátria do grande progresso técnico e científico. Não insisto nesta nem em outras apologias da Idade Média, mas para a inteligência destas linhas devo insistir num ponto. Naquele tempo, não somente a Igreja mostrava ao mundo seus sinais que são fontes de graça, como também na própria vida temporal os homens iam e vinham, pecavam ou se santificavam, mas todos respiravam o mesmo ar que vinha de um firmamento espiritual católico como também, no rez do chão, na sua atividade temporal, sentiam-se cercados de gente que vivia e morria com os mesmos critérios e valores. Sob o ponto de vista da realização prática e da viva consciência da necessidade da graça, direta ou indiretamente, para a salvação da alma ou para estímulo e purificação da vida temporal, a

Idade Média não é uma realização histórica nem um weltschauung que se pretende retomar. Em termos de teologia da história eu prefiro dizer, simplesmente, que foi um milagre. E hoje, de todos os pontos do mundo os homens vêm admirar as obras forjadas no ferro ou lavradas na terra por essa raça, por uma raça extinta de gigantes que reconheciam a realeza de Cristo, e que interrompiam o trabalho para rezar, quando o sino da igreja mais próxima anunciava a hora do Angelus.

O Globo

Mundo, mundo... Entre os belos Cantos Eucarísticos do grande poeta místico que foi Santo Tomás de Aquino, vêm-nos à memória estes versos. Solum expertus potest scire quid sit Jesum diligere Traduzimos, sem sabermos traduzir o sabor original: “Somente aqueles que o experimentaram podem saber o que seja o amor de Jesus”. Ou, “somente os que por experiência sabem...”. Todos os mestres místicos ensinaram que a contemplação infusa é uma “quase experiência de Deus”. Por que “quase”? Este termo parece restritivo, e portanto impróprio para definir a mais alta de todas as aventuras da alma humana, a subida do Carmelo ou do Calvário, nas pegadas de um Deus que por nós se deixou crucificar. É por isso mesmo, aliás, que nunca poderemos encontrar termos próprios para exprimir a sobrenatural aventura. A linguagem dos místicos é inevitavelmente hiperbólica, antitética e metafórica; e é aqui, mais do que na poesia, que se aplica o que disse Rimbaud: que tentava dizer o indizível. No caso em questão, Santo Tomás ousa empregar o termo “experimentar” quando canta, mas seus discípulos, quando tentam explicar o canto de maior linguagem especulativa, recuam diante do termo que traz sobre si uma pesada carga de conotações empíricas e carnais. E até ensinam que na subida do Caminho da perfeição o desejo de experiências sensíveis, sejam elas embora feitas do mais piedoso afeto, constituem pedras de tropeço, e até às vezes atrasos e retrocessos, porque nelas a alma se demora e se compraz no sabor e nas consolações de tal afeto. Ora, não foi este o exemplo que Jesus nos deixou na subida do Calvário. A subida mística só se fará se deixarmos para trás o lastro de terra e de carne, e se, corajosamente, aceitarmos a purificação da noite dos sentidos. Daí se explica a reserva dos mestres quando falam mais na pauta especulativa do que naquela da “experiência” ou “superexperiência” vivida na união com Deus. * Mas agora, caído em mim de tais alturas que tanto desejara ter alcançado, e das quais só ouso falar com ciência de empréstimo e de desejo, imagino o leitor a interpelar-me: — A que vêm todas essas considerações em torno da experiência mística, e dos cantos eucarísticos de Santo Tomás, quando falávamos da agonia da Espanha, e esperávamos comentários das efervescências nacionais em torno da denúncia em boa hora levantada por Dom Sigaud sobre a infiltração comunista na CNBB? * Na verdade, leitor, tudo o que toca nossa Santa Religião tem aquela marca antitética da Cruz. O belo canto eucarístico de Santo Tomás nos veio por antítese da matéria ingrata que se impõe à nossa consciência como dever de testemunho. O fato é que daquele canto de amor (somente quem o provou sabe o sabor que tem o amor de Jesus) veio-nos, num contraste abismal, a idéia horrível da “experiência” que o mundo vem fazendo, e a cujas infinitas conseqüências o mundo dia a dia se entrega com uma apavorante submissão: a experiência do mal erigido em sistema ou se quiserem, a

experiência do ódio de Satã. É verdade que somente no inferno terão as almas perdidas a ciência mais exata do que seja o ódio de Satã. Mas o fato é que aqui, na terra, neste belo planeta azul que talvez seja o único habitado por seres racionais, capazes de louvar a Deus, e capazes de recusar seus dons, a humanidade já teve várias amostras daquele ódio, e várias vezes já assistiu ao espetáculo da maldade erigida da glorificação. O mundo encheu-se de saber, de saborear os horrores de que recentemente foram capazes os nazistas em torno de uma idéia; o mesmo mundo encheu-se de saber, de experimentar os horrores praticados pelos anarquistas e comunistas em torno de uma idéia. Houve tempo em que, com raríssimas exceções, o mundo inteiro julgou que Hitler e seus companheiros tinham atingido a máxima crueldade jamais praticada oficialmente e sistematicamente por um regime; atrás da aparatosa e triunfal crueldade do nazismo, seu cúmplice monstruoso esteve agachado, eclipsado, taciturno e ignorado. Tenho para mim que tais maldades organizadas e coletivas ultrapassam as forças humanas e não são praticáveis sem a ajuda de Satã; não dispondo, porém de um meio de medir, em unidades satanométricas, o grau de satanismo em cada caso, não sei qual dos dois monstros foi em si mesmo o pior, mas hoje não hesito em declarar que, para o mundo, e para o desenrolar do século o comunismo foi e continua a ser a pior das experiências políticas feitas e ainda descaradamente proposta aos homens. Como se explica então que tal hedionda evidência não seja reconhecida universalmente? A razão de tal cegueira, que é cômica numa nação rica, forte e engenhosa, como os Estados Unidos, e que é trágica sem deixar de ser cômica nas hierarquias eclesiásticas, talvez esteja nos quatro ou cinco séculos de humanismo liberal, mais ou menos integral, que afastou de Deus uma humanidade voltada e fechada sobre si mesma. Ora, os homens que se afastam e se tornam insensíveis às “experiências” do amor de Deus, no mesmo passo se tornam insensíveis àquelas do Demônio: e por isso serão capazes de abrir os braços ao comunismo com o entusiasmo que se observa nas Conferências Episcopais, e são capazes de aplaudir o humanismo ateu com a ardorosa e declarada simpatia que, para nossa infinita tristeza, ficou registrada entre os pontos notáveis deste brilhante século em que os homens demonstraram tão extraordinária faculdade nas experiências dos átomos... E é em nome dessa Ciência que dia a dia se acelera a desintegração de um mundo que já foi cristão. O GLOBO — 23/04/1977

O centenário de Freud O século vinte será marcado na história como um período de profundas subversões. Comparado com os três anteriores, que por contraste chamaríamos de cartesianos, o nosso glorioso e doloroso século é confuso, contraditório, tumultuoso e trágico. Em todos os domínios da cultura houve ganho, mas o crescimento da humanidade esteve sempre envolvido numa angústia crepuscular que é a antítese da claridade ou da pretendida claridade dos dias em que triunfava um insolente racionalismo. Vejam a física. A herança newtoniana, com sua admirável construção, onde a nitidez de seus conceitos — ponto material, sólido indeformável, equações diferenciais — que faziam da física uma espécie de geometria de massas e forças, achou-se em poucos anos transformada num inquieto probabilismo, numa espécie de drama de incertezas equacionadas, onde os principais personagens se ocultam, um apenas se manifestam por um sinal indireto entrevisto na câmara de Wilson. Vejam a biologia. Cai por terra o esquema bem ordenado, bem arrumado, arrumado demais, do evolucionismo darwiniano e lamarquiano; e onde se via, nos quadros seculares da paleontologia, a natureza a trabalhar aplicadamente na ortogênese dos eqüídeos, como se fora um técnico das coudelarias inglesas, vê-se agora a genética a produzir transformações caprichosas, lotéricas, que não parecem seguir nenhum ideal zootécnico. Na política, o mundo que assistiu à festa da Exposição Universal de Paris, em 1900, onde se anunciava o século da concórdia promovida pelas luzes da ciência, vê agora a ruína de duas guerras totais com todo um cortejo de horrores promovidos pela mesma ciência. No panorama da vida das nações domina a insegurança e o medo da liberdade, como assinala Erich Fromm, por onde se vê que o claro otimismo que vinha da renascença deu lugar à mais obscura das humanas paixões — o medo. Mas nenhuma dessas transformações foi mais radical e mais caracterizadora da atual cultura do que a revolução psicológica trazida por Sigmund Freud. Agora, depois de Freud e da resposta que ele deu ao antigo enigma proposto pela esfinge de Tebas, não é somente a substância de minha mesa que se perde num enxame de elétrons e de prótons, não é somente o mundo material que se move por forças escondidas na obscuridade dos corpúsculos e somente manifestadas aos nossos olhos sob disfarces; nem é apenas a origem das espécies que se torna confusa, ou a sorte das nações que se torna incerta: agora é o próprio homem que aparece mais enigmático do que nunca, e que já não pode ir e vir inocente e despreocupado, parar numa vitrine, esquecer um encontro, assobiar, coçar o queixo, sem que esses mínimos gestos tenham significação na câmara de Wilson da psicanálise e se inscrevam no que o sábio judeu chamou de psicopatologia da vida quotidiana. Como disse Joseph Nuttin (Psicanálise e Personalidade, Agir ed.), "estamos longe da clara psicologia das obras clássicas e das paixões transparentes e bem ordenadas de um Racine. O fatum das tragédias antigas, essa potência misteriosa e trágica que do exterior conduzia o homem, tornou-se uma potência interior do indivíduo, a própria força de sua vida psíquica inconsciente." Antes porém de formularmos qualquer restrição a sua filosofia, agradecemos a Freud, como já o fez Maritain (Creative Intuition in Art and Poetry, Pantheon), o golpe de morte que deu na psicologia cartesiana que limitava a vida psíquica ao domínio do consciente, e que assim interrompia a tradição da psicologia profunda. Desde Platão, como se vê no segundo discurso de Sócrates sobre o amor e a poesia (Fedro), a cultura estava encaminhada no sentido de aceitar a existência de processos intelectuais e afetivos que ultrapassavam o iluminado cenário da consciência. Para Platão, o apaixonado e o poeta eram homens que não se possuíam a si mesmos e que não seguiam os assentados ditames da clara razão. Mas, a quem pretendesse dizer que não há verdade no discurso desses homens possuídos de transcendente loucura, Platão respondia que "de todos os nossos bens, os maiores são aqueles que nos vêm de um delírio". Esse delírio platônico, mania em grego, tinha entretanto uma exteriorização, uma procedência transcendente que era exigida pela metafísica platônica e por seu excessivo transcendentalismo. Foi Aristóteles que trouxe para a imanência do humano psiquismo as forças delirantes que escapam ao consciente, quando assentou o conceito de razão intuitiva, distinta e complementar da razão discursiva. E em toda a escolástica, na análise do dinamismo do conhecimento intelectual, e sobretudo no papel

atribuído ao intelecto agente, havia lugar para a psicologia da profundidade inconsciente da alma humana. Depois da decadência da escolástica, do nominalismo, e principalmente do cartesianismo, interrompeuse a tradição da psicologia profunda. E foi por causa desse encolhimento da cultura filosófica, dessa atrofia da pesquisa psicológica, que a humanidade teve a má sorte de dever a um materialista, a um homem de deformada filosofia, a genial redescoberta das dimensões da alma. Na verdade — e isso é uma das mais dramáticas contradições do freudismo — a derrocada da psicologia racionalista foi feita por Freud, em termos de uma metafísica racionalista e cartesiana. Negando os abismos do espírito, Freud tentou explicar a vida humana com um esquema quase mecânico, quase geométrico, de forças inconscientes. E assim, por estranha e curiosa derrisão, ao mesmo tempo que fornecia matéria para uma renovada psicologia, dava-lhe limites metafísicos mais estreitos do que nunca. Qual é então o resultado do balanço que os séculos futuros levantarão? Foi benéfica ou maléfica a resultante final da obra de Freud? É difícil responder. Tudo dependerá do modo, da simpatia lúcida e generosa com que a cultura presente e vindoura puder assimilar os elementos de verdade deixando na beira do prato as espinhas do erro. O que se pode dizer desde já é que Freud não respondeu de modo inteiramente satisfatório à esfinge, e que seremos todos devorados por ela se engulirmos sem o necessário discernimento o anti-cartesianismo de Sigmund Freud. ("Diário de Notícias", 20/05/56)

O homem e a natureza A julgar pelos vestígios que deixaram e pelas amostras de humanidade dispersa e degradada que os portugueses encontraram nas terras do Brasil, o homem paleolítico vivia num nível cultural de quase exclusiva e obsessiva preocupação de seu relacionamento com o mundo exterior e inferior. Vivia em luta com o meio. Não é fácil reconstituir e imaginar essa situação em que um ser dotado de dimensão racional, da mesmíssima espécie que hoje nos diferencia dos animais, estava obrigado a curvar a razão ainda impotente no domínio dos elementos, sem o socorro dos instintos que os animais possuem para adequar-se ao meio de mesmo nível ontológico. O homem não se espiritualizou gradativamente, isto é, não passou do ser não-espiritual para o ser espiritual por etapas contínuas ou discretas como pensam que pensam os evolucionistas ou como sugeriu o festejado Teilhard de Chardin que, infelizmente para a Companhia de Jesus e para a Igreja, não foi internado e metido numa camisa-deforça em momento oportuno. Tal transição do não-espiritual para o espírito, como se o espírito fosse uma fina emergência da matéria, é um disparate metafísico. Aliás, o evolucionismo, em que todos os habitantes deste século pensam que pensam, é um disparate físico e metafísico: físico porque contraria a lei fundamental do mundo físico que é a da entropia crescente; metafísico porque contraria o lema: «nada passa da potência ao ato a não ser por algo que já esteja em ato». É uma alucinação pensar (ou pensar que pensa) que os átomos de hidrogênio, por acaso, e vencendo improbabilidades fantásticas que Borel e Boltzman chamaram de extracósmicas, como apelido de impossível, se encontrem numa rosa ou num gato; e ainda mais alucinatório é pensar que aqueles átomos, a mesmo título que uma célula primeira tem no genotipo todas as virtualidades do fenotipo, tenham um encaminhamento necessário finalizado e já no elétron solitário ou no próton, possuam em ato um germe e uma intenção de se incorporar, mais tempo menos tempo, num grão de areia, numa estrela, num cabelo de uma criança ou numa lágrima de santo. Tudo viria do hidrogênio. Deixemos a evolução e reconsideremos os nossos pobres antepassados que tanto lutaram para dominar a pedra e para vencer o urso. Sabemos que, após longo esforço horizontal, o homem começou a imprimir na matéria do mundo as formas pensadas no espírito. Emergem as civilizações e multiplicam-se prodigiosamente as marcas impressas na matéria pela racionalidade do homem. Peço ao leitor que se demore em imaginar esse grandioso espetáculo que foi a ascensão dos homens. Muito antes de ouvir a notícia da próxima descida do Espírito de Verdade, que no Domingo passado ouvimos, a humanidade usou fartamente o espírito do homem, imagem e semelhança Daquele, e fartamente espalhou no mundo obras e feitos que ela mesma, com toda razão, admira. Mas, ai de nós! Em certa curva da história, marcada pelo falso humanismo da Renascença e pela Reforma – cujos malefícios sabemos hoje apreciar muito mais vivamente e muito mais dolorosamente do que no século XVI – a humanidade passou a admirar-se a si mesma de um modo vertiginoso e idolátrico. Estamos repetindo em quatro séculos o mito de Narcisus; ou estamos, depois de milênios, tentando uma reprise do Pecado Original. E agora vejam o estranho resultado: depois de tão maravilhosas conquistas científicas e técnicas, e pelo fato de se ter inclinado obsessivamente para as coisas inferiores e exteriores, o homem submete o espírito ao serviço delas, transubstancia a soberba em concupiscência e produz o monstruoso mundo tecnocrático que tem, no movimento helicoidal da história assim traçado, o mesmo meridiano do homem das cavernas, a mesma submissão ao mundo material, mas em nível fantástica e alucinatoriamente mais elevado. O senso comum e a reta teologia nos advertiam de que tamanho desenvolvimento tecnocrático seria letal para o homem sem o proporcionado desenvolvimento civilizacional, e portanto espiritual. Infelizmente para nós, habitantes deste século, Satã ganhou a batalha desses quatro séculos. A guerra, não ganhou nem ganhará; mas a batalha, o episódio, a etapa, ele contabilizou e nos deixou estupefatos diante desse mistério dos mistérios: o mal e o consentimento de Deus. Em torno da Igreja, os maus levitas recém-egressos, ou semi-apóstatas, querem desespiritualizar a Igreja de Cristo e do Espírito Santo, como pensam que os homens já desespiritualizaram o mundo. Assistimos a essa tragédia desenvolvida em dois planos: um assalto à Igreja, uma crise in sino Ecclesiae e a disputa pela hegemonia de uma civilização deformada e deformadora do homem. E aqui

já não se divide o mundo em dois hemisférios, o da dureza totalitária e o da moleza liberal. Na dissolução do humano andam os adversários de mãos dadas. Na marcha acelerada que a tecnocracia imprimiu ao progresso material, a humanidade cada vez mais se dobra e mais se inclina para a terra. Alguns mais alvoroçados não escondem certa impaciência de atingirem o ideal de andar de quatro. A maioria evolui numa espécie de tabes dorsalis, cujos primeiros sintomas neurológicos se manifestam pela dificuldade da genuflexão. De um modo ou de outro está em perigo a postura ereta do homem, que só se mantém quando a espinha dorsal da alma é sustentada pela virtudes teologais. (1972)

O jogo esquerda-direita Um Começo que Não Promete Grandes Coisas Comecemos por um jogo falseado, ou melhor, pela realidade que se esconde sob aquela falsidade, ou ainda melhor, ou talvez irremediavelmente pior, comecemos pelo anúncio de trágicas conseqüências da falsificação tomada como critério de valor ou de verdade. E qual é essa falsificação? É o esquema, ou o jogo Esquerda-Direita. A origem desse binômio, como ninguém ignora, foi a divisão das poltronas no parlamento francês. Os termos que definiam bancadas e índoles partidárias subiram para o céu das essências e passaram a designar certos arquétipos, ou, em linguagem mais aristotélica do que platônica, tornaram-se abstratos; mas ao mesmo tempo que perdiam densidade telúrica ganhavam estranhas energias. No princípio do século XX, com a explosão do “Affaire Dreyfus”, mais violenta do que a explosão de Krakatoa na Polinésia, os termos do binômio ganharam uma carga histórica imprevista. Mas é depois de 1930 que o jogo — falseado em suas regras — ganha um vigor que bem traduz o enfraquecimento da inteligência do século. Numa primeira tentativa de definição dos termos em confronto, tomemos uma página de Maritain em “Le Paysan de la Garonne”, página esta exumada de um artigo opúsculo, “Lettre sur l’Independance” (Desclée Brouwer, 1935), e na qual o autor tem clara consciência da ambigüidade em que flutuam os termos empregados, mas nem por isso toma o partido de denunciar o falso utensílio mental. Começa por dizer que “num primeiro sentido alguém é de direita ou de esquerda por uma disposição de temperamento”. Nesse sentido seria vão querer ser isto ou aquilo, já que nascemos ruivos, biliosos ou sanguíneos. O que se pode fazer, diz ainda Maritain corrigir seu temperamento para evitar as monstruosidades dos limites extremos: o puro cinismo da “direita” e o puro irrealismo da “esquerda”. Aqui, evidentemente já se percebe que um do mais inteligentes filósofos do século caiu no erro de querer modelar matéria muito ingrata. Desde logo se levanta em nosso espírito uma idéia que merece reparo: se podemos corrigir os temperamentos para evitar as monstruosidades extremas, por que não

corrigi-los desde logo no nível das monstruosidades medianas que certamente todos nós gostaríamos de evitar? Além disso, nota-se no raciocínio do filósofo uma quebra de homogeneidade entre os conceitos definidos como temperamentos e cada um desses limites extremos que, de um lado, pertence à ordem moral (já que ninguém é cínico por temperamento), e do outro lado pertence à ordem intelectual. Este pequeno tropeço poderia ser evitado se o autor considerasse o vigoroso, ou até o violento dualismo que caracteriza o jogo esquerda-direita, e que se coaduna mal com a caracterologia. Se quisermos caracterizar os homens por seus temperamentos, não há razão nenhuma para limitar a dois tipos essa espécie de variedade. Hipócrates foi mais pluralista do que o autor de “Humanisme Integral”, porque abriu a rosa dos quatro ventos para os humores predominantes e os conseqüentes temperamentos humanos: o sanguíneo, o fleumático, o melancólico e o colérico. O dualismo do esquema já nos induz a procurar sua colocação no plano ético, ou mesmo no plano da cosmovisão, ou da ideologia, onde os termos esquerda e direita poderão significar tipos de personalidades marcadas por parâmetros morais e por concepções intelectuais. Numa segunda tentativa, contra seus hábitos e seu gênio, o autor prefere a ilustração à definição e toma dois personagens representativos: Jean Jacques será o “puro homem de esquerda” que prefere “o que não é ao que é”, isto é o homem a quem repugna o “ser”; e para representar o puro homem de direita “que detesta a justiça e a caridade” (!!) o autor toma Goethe, não a pessoa de Goethe, é claro, mas a abstração ou hipóteses de pessoa que levasse às últimas conseqüências uma frase atribuída ao autor de Fausto, pela qual “ele preferia a ordem à justiça”. Aqui estamos novamente fora do campo neutro da caracterologia: de um lado temos um monstro intelectual ou uma espécie hiperbólica de demência, e de outro lado um monstro moral, ou um demônio, porque só os demônios podem detestar justiça e caridade. Além disso não há homogeneidade entre os dois termos do binômio e portanto não há possibilidade de contraposição. Detenhamo-nos um pouco na frase atribuída a Goethe e freqüentemente utilizada para estigmatizar os conservadores, os tranqüilos, os bons pais de família com o mediano egoísmo que constitui o “niveau de l’humanité”, como dizia Péguy. Esses homens, a acreditarmos no binômio que reaparece na página 236 de “Le Paysan de la Garonne”, preferem a ordem à justiça. Que sentido terá essa frase? Receamos que não tenha sentido nenhum. Rigorosamente, “formaliter loquendo”, não há ordem social sem justiça, nem justiça sem ordem. As duas coisas pedem integração e não oposição, e opção. A frase só recupera a mínima dignidade verbal a que aspira qualquer proposição se admitirmos que os termos confrontados, ordem e justiça, são tomados equivocamente, ou pelo menos com certa frouxidão. Assim, um dado homem é de direita porque prefere “o que ele chama de ordem” à justiça, ou prefere apegar-se ao “que ele chama de ordem” ao que ele mesmo sabe que é justiça. Mas esse mesmo homem acusado de ser de direita, nesses termos, poderia dizer que ele prefere “o que sabe ser ordem” ao que você, de esquerda, chama de justiça. E não se diga, depressa demais, que é só a idéia de ordem que se presta à equivocidade, enquanto a idéia de justiça, com refulgente nitidez, se impõe a gregos e troianos. Creio que, se promovêssemos um inquérito sobre o uso equívoco dos dois termos nos tempos que correm, a equivocidade do termo justiça ganharia por dois corpos da equivocidade do termo ordem. Estamos evidentemente em pleno delírio se insistirmos

em dar algum valor de utensílio mental a frases que contrapõem dois termos equívocos, e se admitirmos que o valor de tais fórmulas depende do teor de equivocidade de cada termo. O que até aqui já vimos nos inclina a concordar com Jules Monnerot1 que chama de “solecismos políticos fundamentais” o conjunto de fórmulas postas debaixo do título genérico Esquerda-Direita. Quando Maritain emprega em “Le Paysan” o mesmo binômio “ordem-justiça” duas vezes, para caracterizar a direita e a esquerda, podemos imaginar a presença do fantasma de Maurras, e de outros fantasmas menores, nas zonas obscuras de sua memória. Nas paredes da “Action Française” o termo “ordem” tinha sonoridades de clarim ou de trovões do Sinai. Mas Charles Maurras não era tão cartesiano ou tão positivista como o pintam: nos dias de mais ardorosa paixão política, nos momentos em que o jornal mais precisava de seus golpes de soldado, ou nas horas em que a “vermine rongeait la France” e em que os inimigos mais mereciam o que Jean Madiran, com certa impiedade, chamou de psitacismo de Maurras, jamais deixou de ser poeta o último soldado francês. Certa ocasião em que os amigos reunidos na “Action Française”, em conversa animada, passaram da notícia do dia à Grécia de Eurípedes, houve quem dissesse que o rei Créonte representava a “ordem”, e com surpresa geral Maurras caiu a fundo sobre o infeliz: Não! Não! Quem representava a “ordem” era “Antígona”. Nos tempos modernos a delirante equivocidade do termo “justiça” produziu variadíssima flora onde poderíamos colher os mais variados ramalhetes antiespirituais. Para começo de conversa, não deixa de ser divertida a simplicidade com que os “intelectuais” de esquerda concedem ao comunismo intenções de justiça. Poderíamos dizer aqui, sem nenhum malabarismo, em termos menos equívocos do que as frases aplicadas a Maurras ou a Garrigou-Lagrange, que são os esquerdistas que preferem a ordemestrutura à justiça-virtude2. E com esse equacionamento teríamos no comunismo a extrema direita! Exemplo ainda mais delirante da variedade de sentidos atribuídos ao termo “justiça” nos é hoje proporcionado por um arcebispo católico que encoraja os terroristas, os seqüestradores, os assassinos de reféns, apontando-os como heróis que lutam pela implantação da “justiça”. Essas afirmações ditas “corajosas” apesar da absoluta inexistência de qualquer risco, a não ser o de um tropeço nos palcos apinhados de fotógrafos e operadores de TV, podem ser discutidas em vários planos. Certamente não acham lugar nenhum no edifício da sabedoria católica; certamente não se inscreverão no patrimônio da glória das civilizações; certamente destoam de todos os códigos penais desde Hamurabi até nossos dias; mas o que é indiscutível é que com aquelas afirmações o arcebispo tem todos os títulos para merecer a gloriosa qualificação de extrema esquerda. Os Vários Binômios do Jogo Esquerda-Direita Os resultados colhidos com a tentativa de explicar o binômio Esquerda-Direita com o binômio JustiçaOrdem já bastam para nos indicar que a contraposição procurada nesse jogo é mais complexa e envolve maior número de categorias contrapostas. Tentemos esboçar um quadro dos vários binômios que o jogo Esquerda-Direita, promovido e ativado pelos “intelectuais” deste nosso glorioso século, nos recomenda. Ei-lo: ESQUERDA DIREITA Igualdade Aristocracia Liberdade Autoridade

Anarquia Hierarquia República Monarquia Democracia Autocracia Anarquia Ditadura Revolução Tradição Internacionalismo Nacionalismo Justiça Ordem Justiça social Segurança nacional Virtudes revolucionárias Virtudes militares Ação social Ação política Reformismo Conservantismo Comunismo Reação anticomunista etc. etc. Vê-se logo que não há correspondência bi-unívoca entre os termos “E” e os termos “D”. Assim com já opusemos “ordem” e “justiça”, poderíamos agora contrapor sem menos infelicidade: ESQUERDA DIREITA Anarquia Ordem Revolução Ordem Igualitarismo Ordem Liberalismo Ordem etc. etc. A primeira coisa notar nesses vários binômios é a variedade de espécies. Creio que são três as espécies possíveis. Em primeiro lugar temos os binômios formados de termos opcionais, válidos ambos, e ambos moralmente aceitáveis. Exemplo: República — Monarquia Em segundo lugar temos os binômios formados de termos complementares, aparentemente opostos. Exemplos: Justiça — Ordem Ação social — Ação política

Justiça social — Segurança nacional E finalmente temos os binômios formados por termos realmente opostos e antagônicos. Exemplos: Anarquia — Ordem Comunismo — Regime de dignidade da pessoa humana Liberalismo — Princípio da autoridade No primeiro caso, o dos termos opcionais, podemos e devemos escolher um deles conforme as exigências de uma dada conjuntura apreciada por nosso sistema de convicções. Em princípio, é moralmente neutra esta ou aquela forma de governo que não contrarie a lei natural. O calor de nossas convicções poderá, acidentalmente, valorizar demais a república ou a monarquia, poderá até chegar a excessos de radicalização, como chegaram os monarquistas da “Action Française”. Posso entretanto admitir que Maurras, Bernanos e outros, por uma acuidade especial, empírica, para o caso concreto da lamentável experiência francesa do princípio do século, tivessem razão no paralelismo que estabeleciam entre república (ou democracia) e anarquia. Posso até admira-los sem necessidade de retocar minhas pacatas e assentadas convicções republicanas. Mesmo nos casos em que nenhum preceito moral determine uma escolha e a correlata recusa, resta ainda a margem para a ponderação de qual das duas soluções será melhor em relação aos mil e um vasos capilares do caso concreto. A experiência da história mostra que os homens são capazes de se empenhar com o mais afogueado fervor nos desempates onde não há nenhuma indicação nítida de princípios morais. Talvez para compensar a insegurança ou a obscuridade da percepção dos contingentes, criamos em nós uma ênfase calorosa que muitas vezes mais se destina ao uso interno do que ao proselitismo exterior. Mas deixemos essas digressões e voltemos ao nosso esquema E-D. No segundo caso estão os termos em falso antagonismo que pedem complementação. É curiosa a tendência com que o jogo E-D, que Monnerot chama de “solecismo político”, tem de introduzir antagonismos falsos e desconhecer a necessidade de conjunção dos opostos; coisa que prova a tendência de tal jogo à inimizade. No caso lembramos o binômio justiça e ordem que, pelo senso comum, antes de grandes especulações, pede complementação aos gritos. Veremos no tópico seguinte um eloqüente exemplo do mau funcionamento do jogo E-D, que mais parece ter sido inventado para confundir do que para aclarar as idéias. No terceiro caso estarão os verdadeiros antagonismos que, a rigor, constituem o assunto da imensa polêmica interna de nosso fim de civilização, de que tentamos fazer em todo este livro, uma condensação. Mais adiante, no tópico que se refere ao revolucionarismo, voltaremos a considerar este assunto na pauta especial do jogo esquerda-direita; mas antes disso precisamos desenvolver um pouco mais as conseqüências desse jogo falso e falseador em que tantos “intelectuais” se deixaram envolver. A Estranha Cegueira dos “Intelectuais” no Jogo E-D O exemplo seria irrelevante e desprezível se o fôssemos buscar em algum dos “progressistas” católicos de nossos dias que se distinguem pela fecundidade na tolice. Para provar o intrínseco defeito do utensílio, coloco-o nas mãos de um homem honesto e competente: o filósofo Yves Simon, discípulo de

Maritain e autor de livros sérios como por exemplo, “L’Ontologie du Connaitre”, Desclée de Brouwer. Mas é no livro escrito no exílio e publicado em 1941 3 , no meio de tempestades de emoções trazidas pela queda de Paris, que nós melhor apreciaremos o que o “intelectual” Yves Simon diz quando utiliza o aparelho E-D. Na página 128, a propósito da guerra da Abissínia, lemos: Os adversários de Mussolini eram os homens do nascente “front Populaire” e mais um grande número de católicos. Quanto à direita, quanto aos conservadores e reacionários, quanto ao partido nacionalista, quanto àqueles que chamei “guardiães da cidade” — esses se levantaram como um só homem contra a Sociedade das Nações, contra o direito internacional, contra o tratados assinados pela França, e apoiaram a agressão italiana. Ao pé da página, arrependido de ter escrito “como um só homem”, Y.S. admite algumas raras exceções. Não sabemos se em algum lugar definiu o que entende por “homem de direita” e agora nos diz que essa espécie de homem comportou-se da maneira acima descrita, ou se é precisamente nesse comportamento que devemos ver uma definição de “homem de direita”. Na verdade, em cada texto onde aparece esse tipo baixado do arquétipo tem-se a penosa impressão da mesma recorrência: “Aqueles homens que chamo de direita (e que todos nós sabemos como são feitos) comportaram-se como homens de direita”. Não consigo ver no mesmo saco, com o mesmo cheiro e mesmo gosto os reacionários, os conservadores e os fascistas que apoiaram o feito de Mussolini “avec un enthusiasme fievreux”. Se queremos definir os homens “de direita” como os defensores da “ordem”, da “tradição” e da autoridade, ou como os homens apegados à segurança pessoal e ao seu padrão de vida, não vejo como equiparar esse tipo de homem com os inquietos e efervescentes fascistas, descendentes de Sorel e de d’Annunzio, que só se propunham viver na constante exaltação dos valores da vida, realçados pelo constante perigo. Ora, por uma dessas aberrações culturais de nosso bravo século, é justamente esse exaltado, quase diria que desordeiro ou esse aventureiro por sede e fome de vida, que será apontado como extremadireita. Reciprocamente, não haverá para os homens ditos de esquerda, melhor título do que antifascista. Em seu “opus magnus”, traduzido em várias línguas4, J.Monnerot descreve muito lucidamente “as variáveis e constantes do fascismo” (pg.589). E na página 593 diz: O fascismo, para contornar a carência de uma oligarquia política em posse de um estado, promove uma elite sobressalente, aparentemente improvisada, e toma emprestado os processos subversivos do adversário principal, o comunismo, com o qual está sempre num processo de osmose: muitos homens em pouco meses passam de um para outro desses supostos extremos. (...) O fascismo é característico de uma sociedade predominantemente industrial de mobilidade social fraca. E deriva o caráter revolucionário (rápido e violento) dos fatos de circulação das elites que constitui. Os liberais e os marxistas propagaram ou deixaram propagar a idéia de que o “parti” fascista é um partido conservador, um partido de direita (sic). Convém proceder à constatação contrária. Voltemos ao livro de Yves Simon na página 85, onde o autor se refere ao motim de 6 de Fevereiro de 1934, que deixou vinte e dois mortos na noite gelada da Praça da Concórdia. Diz Yves Simon que a situação parecia favorável ao restabelecimento do “fascismo” em França. Essa afirmação soa-me como

um irrealismo de delírio, ou como de alguém que me explicasse as guerras do Peloponeso em termos direita-esquerda, e me dissesse que os espartanos eram homens “de direita”. Mas o mais bizarro é o que diz depois: Teria sido vantajoso conseguir que os católicos marchassem “como um só homem” (grifo meu) em favor de um golpe de estado projetado (?) contra as liberdades democráticas, e era possível esperar que se realizasse facilmente a unanimidade católica, já que se oferecia uma oportunidade de comer o maçom, como no tempo do “Affaire Dreyfus”. Mas alguns católicos tinham compreendido que o prazer de comer o pedreiro-livre não devia sobrepujar o bem comum da pátria. Um manifesto, “Pelo Bem Comum”, assinado por 52 escritores católicos... Não, digo eu: assinado por 52 “intelectuais” católicos. ...bastou para demonstrar que a França cristã não permitiria que sua causa de identificasse com o fascismo5. E aí está, nessas poucas palavras de um honrado filósofo tomista transmudado em “intelectual” assinador de manifestos, um dos mais fantásticos exemplos do irrealismo político, ideológico e histórico a que se deixaram levar os intelectuais que viveram numa perpétua “journée des dupes”. O que realmente aconteceu em 6 de Fevereiro de 1934 foi o seguinte: a exaltação de umas cabeças quentes (algumas das quais pagaram com a vida esse delírio), ativada com o escândalo Stavisky, ofereceu uma oportunidade realíssima que logo se concretizou no “Front Populaire”, que é nem mais nem menos, o começo da derrota da França de 1940. E é o próprio Yves Simon, santo Deus!, quem nos diz das nuvens estas palavras verdadeiramente aladas, embora num sentido um pouco afastado do que lhe dá Rapsodo: Mas o mais importante dos resultados políticos imediatos do 6 de Fevereiro foi a formação do “Front Populaire”. Antes dessa jornada trágica, o perigo fascista nunca tinha sido levado a sério. Em 6 de Fevereiro as ligas fascistas se mostraram capazes de tentar um golpe de estado, e até de efetiva-lo. Em presença de uma ameaça tão clara, todas as forças antifascistas de França compreenderam que era tempo de cessar suas dissensões e de realizar a unidade de ação que as forças antifascistas da Alemanha não conseguiram6. É espantoso o ilogismo de Yves Simon, que nos fala como se a França, que teve a felicidade de reunir as forças antifascistas, tivesse invadido e vencido a pobre Alemanha, que não conseguira a mesma salutar união. Na realidade — realidade espessa, áspera, pegajosa e vagamente fétida, realidade que escapa sempre à percepção dos intelectuais católicos de esquerda — o que aconteceu foi o seguinte: capitalizando, como de costume, a exaltação (fascista?) de 6 de Fevereiro, os socialistas e comunistas se coligaram para a desgraça da França e do mundo com o apoio dos 52 ingênuos que julgavam salvar a França no momento exato em que contribuíram para abrir as comportas da torrente revolucionária, e assim liberar o monstro que tem a singularidade de se nutrir de fantasmas, de esquemas irreais e de categorias de delírio.

Um notável filósofo tomista não consegue ver o óbvio, o fulgurante, porque usa uma álgebra política com sinal negativo (—) diante do parêntese que encerra os fatos. Tudo muda de sinal, e o filósofo gaba a sagacidade de uma França idealmente vencedora em face da parvoíce de uma Alemanha idealmente derrotada. E quando cai em si e esbarra na grossa e dura notícia do dia, então “bon sang de bon sang!”, sente-se obrigado a procurar nos socavões da História quem desarmou a França e quem a precipitou na catástrofe de 40. Quem Desarmou a França? O mesmo filósofo confessa seu estupor diante do resultado que vê em 40 e 41, quando relembra os trunfos que a França tinha poucos anos atrás, e perdeu. ...A França tinha ainda sobre a Alemanha uma esmagadora superioridade militar. Tinha aliados poderosos e fiéis, possuía instrumentos jurídicos necessários para tornar impossível o rearmamento alemão. Bastava-lhe “querer”. A menor resistência francesa encontraria poderosos apoios na Alemanha. Para que o nazismo tivesse a mínima chance de impor à Europa e ao mundo sua “nova ordem”, era preciso que a vontade do povo francês fosse tomada de estupor. Esta tarefa parecia irrealizável (...). Os acontecimentos provaram que era possível enfraquecer a resistência moral dos franceses até conseguir que abandonassem uma por uma todas as garantias de segurança que os tratados lhes haviam dado7. Perguntemos: de que quadrantes vieram as correntes que enfraqueceram a resistência moral dos franceses? Na página seguinte o próprio Yves Simon, abrindo um parêntese para formular um lema de filosofia política, deixa entrever a dialética interna da tragédia da França. A França morrera de “sinistra mielóide aguda”. Eis o que diz o filósofo, agora em tom especulativo e teorizante: É inevitável, e até certo ponto normal, que as pessoas que mais se interessam pela segurança nacional sejam as que menos se interessam pelo progresso social, e reciprocamente. (...) Esta divisão de trabalho não resulta apenas de uma diferença de temperamentos: é fundada num conflito real entre os fins perseguidos8. Ora, não há nenhum conflito real entre as duas perfeições exigidas por qualquer corpo político que, em vez de antagônicas e inconciliáveis, são complementares. Os alunos de nossa Escola Superior de Guerra sabem, há mais de vinte anos, que o conceito de “segurança nacional” inclui necessariamente o cuidado da interna justiça social. Por outro lado, não haverá boa estrutura de justiça social onde faltar o sentimento e a virtude do patriotismo e, principalmente onde, para os operários, o sentimento de classe prevalecer sobre o sentimento pátrio. Yves Simon fez a clivagem entre os dois termos mais conjuntos do que opostos, porque se deixou levar pelo jogo E-D, que conduz invariavelmente a esses antagonismos por razões profundas que mais adiante veremos. O que é curioso, no caso, é o fato de tão ilustre filósofo não desconfiar de que, com este pseudo-lema de filosofia política, ele tem a resposta para o enigma do estupor que paralisou a vontade francesa. Disse Yves Simon que à França “bastava-lhe querer”. Mas num corpo político, como Yves Simon sabe

melhor do que nós, o “querer” se diz mais diretamente e mais propriamente dos que governam. Ora, o governo que acaba de “salvar” a França de um “golpe fascista” em 1934, é um governo de pura esquerda. Cabia-lhe querer a salvação nacional, em face do ameaçador e febril rearmamento alemão; mas, por uma congênita impotência proclamada por seus próprios mandarins, há entre as esquerdas e a segurança nacional um real conflito, e um invencível antagonismo. Por aí se vê que, na sua própria lógica — se lógica há nesse jogo de binários que mais se presta para computadores do que para filosofia — Yves Simon cooperou com outros 51 “intelectuais” franceses para unir as forças antifascistas, isto é, para entregar a França àqueles “que não podem querer salvála”. O resultado é conhecido. Como porém Yves Simon faz uma inexata referência a Henri Massis9 (de quem estava separado pelo oceano, pela guerra e pela condenação da “Action Française”), valho-me aqui do próprio Massis para trazer mais um esclarecimento sobre quem foi ou quais foram os homens que desarmaram a França desde 1934. É na revista Esprit de Abril de 193510 que encontramos esse esclarecimento impressionante, diria até inacreditável. É o próprio fundador da revista, Emmanuel Mounier que, sob o título “Corrida Armamentista”, apresenta uma “Carta da Alemanha” de seu correspondente em Berlim. Na sua introdução, Mounier declara que, diante da aproximação da tempestade, “sentiríamos um intolerável mal-estar se não levássemos este testemunho, diante da mentira universal”. Eis aqui o testemunho: Há, sem dúvida na Alemanha, quem queira a guerra e muitos que a preparam pacientemente. Pode-se entretanto afirmar, sem otimismo ridículo, que os alemães em massa aclamam o Führer porque ele lhes devolveu o sentimento de honra (!!!) e porque “soube impor ao universo as mais legítimas exigências da segurança e da igualdade jurídica do povo alemão”. Releiam a proclamação do governo. Nem uma ameaça ao estrangeiro, nenhum apelo ao imperialismo, à expansão, à desforra. Hitler não invoca, em todo o caso, nenhum conceito obscuro e se coloca resolutamente “no plano do direito puro”. (!!!) As exclamações são nossas. O enviado de Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit (1932) e universalmente apontado como uma das colunas do neocatolicismo progressista, insiste em proclamar a sinceridade de Adolf Hitler, que chama de Führer: “E por que recusar sempre o crédito à boa fé humana?” E assim, patético, roçando o sublime, o expoente do catolicismo francês de esquerda de 1935, continua: Quem nos dará um novo São Luís que, enfrentando o mundo, e confiando na justiça de Deus acima de tudo, ousasse abrir crédito à paz e, diante do rearmamento alemão, respondesse sempre com a única arma eficaz, isto é, com o desarmamento integral e sem restrições. (...et sans arriére pensée). (...) E, se preciso fosse, se um dia, em conseqüência de tal gesto, ou pela simples conseqüência aritmética de seu maltusianismo, a França (que nada tem de eterno) viesse a desaparecer da face da terra, quem, sim quem não preferiria essa responsabilidade à mais direta cumplicidade no crime de direito comum que seria uma nova guerra?

Nesse meio tempo, Robert Brasillach vai também a Berlim, entusiasma-se com as manifestações nazistas, impressiona-se com a figura insignificante e “triste” de Adolf Hitler e volta à França convencido de que aos franceses é que competia exaltação. “Et pourquoi pas nous?” No jornal “L’Action Française”, Charles Maurras não se cansou de gritar: “Armons! Armons!” Mas em 1944, quando a França resolver punir seus “traidores”, os colaboradores de Esprit e os comunistas estarão com a balança e o gládio; Maurras, o último soldado da França, será condenado à prisão perpétua com mais de 80 anos; Robert Brasillach será fuzilado como “colaboracionista”... Mais adiante voltaremos a falar na “Épuration”. No momento queremos frisar a cegueira de honestos intelectuais católicos que se deixaram envolver no jogo E-D e perderam a rudimentar capacidade de ver um palmo adiante do nariz. Ainda a Cegueira dos “Intelectuais” Católicos Franceses Envolvidos no Jogo E-D Voltemos a “Le Paysan de la Garonne” e retomemos, na página 45, a tentativa que faz Maritain de definir o binário tipológico, agora ilustrado alegoricamente por dois arquétipos, os “Carneiros de Panurge” e os “Grandes Ruminantes da Santa Aliança”. Não vejo nessas figuras nenhuma ajuda à imaginação, e muito menos à inteligência, e por isso volto à denominação “esquerda” e “direita”, que ao menos tem a vantagem da concisão. Vejamos agora o que nos diz Maritain além do que já disse em páginas antigas, atrás comentadas. Note-se de início, que as denominações alegóricas se aplicam declaradamente aos extremismos de direita e de esquerda. Maritain demonstra visível mal-estar diante de um e de outro, sem dizer qual dos dois mais detesta. Mas logo abaixo, lemos esta quase declaração de simpatia, derivada de uma caracterização que vale a pena analisar: “Os moutons (extremistas de esquerda) fazem geralmente triste figura em matéria filosófica ou teológica, mas em compensação, em matéria política e social, seu instinto os empurra na direção da boa doutrina, que a seguir eles estragarão ora mais, ora menos”. Com os “extremistas de direita” dá-se o contrário; e Maritain acrescenta “que se sente menos longe dos primeiros quando se trata das coisas de César, e menos longe dos segundos (hélas) quando se trata de coisas de Deus”. Consideremos antes de mais nada a tonalidade, a configuração geral da dialética desta passagem revelada por esse curioso “hélas” encaixado entre parênteses. A página como está escrita, nos autoriza a concluir que afastam mais de Maritain as discordâncias nas coisas temporais do que as discordâncias nas coisas religiosas. Ou, se quiserem, que mais o aproximam e o atraem as concordâncias nas coisas de César do que as concordâncias nas coisas de Deus. Mas nós todos sabemos, abundantemente, por todos os livros que escreveu e por muitas coisas da vida que viveu, que esta conclusão seria falsa, não porque estejamos a raciocinar mal, mas porque sabemos que é o próprio Maritain que se compromete no uso de um esquema infeliz, ou melhor, de um esquema que foi posto em circulação para confundir os espíritos. A lógica se restabelece quando no “helás!” descobrimos uma espécie de sinal remissivo que mais adiante, na hora de definir o “integrismo”, nos traz o esclarecimento dessa página. O termo “helás!”, encaixado como um muxoxo nessa comparação de esquerda e direita, já nos deixa entrever que Maritain atribui algo de falso — um apego aos interesses ou à segurança — à ortodoxia das “direitas”.

Mas então quebra-se o esquema, rompe-se o falso equilíbrio entre duas detestações, e o que sobra é uma inadmissível simpatia, nas coisas de César, voltada para as esquerdas; e numa razoabilíssima simpatia, nas coisas de Deus, reservada para uma outra amostragem humana da qual não se possa dizer “helás!”. Concentremos agora nossa atenção para esta fantástica proposição: “Os extremistas de esquerda são medíocres filósofos ou teólogos, MAS EM MATÉRIA POLÍTICA O INSTINTO OS EMPURRA NA DIREÇÃO DA BOA DOUTRINA”. Ao pé da página temos esta citação de Claude Trtesmontant: “A esquerda católica, em França, tem entranhas evangélicas, mas não tem cabeça teológica”. E aí estão duas afirmações paralelas, colocadas na mesma ambiência e ambas inclinadas para as esquerdas... Dirá o leitor: “Para as coisas da terra!”. Sim, mas acontece que são somente essas que interessam aos extremistas de esquerda. Quando Mounier mais tarde disser: “Com os comunistas nos negócios da terra, e com minha fé católica nos negócios do céu”, ninguém duvidará um só instante de uma coisa deslumbrantemente óbvia: os comunistas não se aborrecerão com as reservas que Mounier lhes fará para as coisas do céu. O importante, para os comunistas, é “que Mounier marche; et il a marché”. Teilhard de Chardin também inventou um esquema : “O Deus para cima dos cristãos, e o Deus para a frente dos marxistas, eis o único Deus que doravante deveremos adorar em espírito e verdade”. E aqui Roger Garaudy foi obrigado a dizer “non possumus” porque admitia que o jesuíta se entretivesse com suas idéias alienantes de um Deus, mas não podia admitir que trouxesse essas idéias para a linha horizontal da colaboração católico-comunista. Mas deixemos o alto da página, onde vemos que o termo “mouton” foi escolhido para designar o arquétipo de extremismo de esquerda. E agora, nas últimas linhas, relemos: os “moutons”, isto é, a extrema-esquerda não tem boa cabeça filosófica e teológica, “mas em matéria política e social o instinto os empurra na direção da boa doutrina”. Eliminando o termo “mouton” entre as duas proposições, e deixando de lado a inaptidão para especulações filosóficas e teológicas, temos esta proposição: “A extrema-esquerda pende por instinto para a boa doutrina”. Desde logo notemos estes “solecismos”: se são inaptos para especulações filosóficas e teológicas, como? com que instrumento? por que via podem tender para a boa doutrina? Entenderíamos a proposição se ela dissesse: “Embora maus filósofos e teólogos, por instinto praticam atos e tomam posições práticas que se coadunam com a boa doutrina que só é perceptível para quem tem retina filosófica ou teológica”. Ou então “... por instinto tomam posições e fazem coisas que nós, filósofos e teólogos obedientes à Igreja, ou dotados de “habitus” especiais, reconhecemos como bons, segundo a boa doutrina”. Corrige-se assim a forma, mas o conteúdo de tais proposições perece-nos dificilmente conciliável com o tomismo, com o cristianismo e, sobretudo, com os ensinamentos do Magistério. Analisemos mais detidamente o conteúdo da página em questão. O termo “extremismo de esquerda” só pode significar, dentro do conjunto de várias e gradativas esquerdas, uma perfeição no gênero, um máximo, um ponto limite. Se admitirmos que o termo “esquerdas” designa uma coisa homogênea em todas as suas gradações, admitiremos “a fortiori” que as esquerdas medianas e tímidas já satisfazem a norma de pertinência do grupo. Ao contrário, se concluirmos que a denominação é equívoca, e não se

refere à mesma coisa realizada em graus diversos de perfeição, deveremos renunciar a qualquer digressão que use o termo “esquerda”, ou então deveremos exigir uma definição para “esquerda” e outra para “extrema esquerda”. No uso corrente, “extrema-esquerda” significa comunismo ou socialismo marxista, e nesse caso fica esquisitíssimo para um católico qualquer, e por mais forte razão para um filósofo tomista, dizer que “os comunistas tendem por instinto para a boa doutrina”. Estritamente, já que realiza a extrema perfeição do gênero, o comunismo só poderá tender para o esplendor de suas virtualidades. Afrouxando um pouco o rigor lógico, concederíamos que o autor de “Le Paysan” queira apenas dizer que a “esquerda” (e não a extrema-esquerda) penda por instinto para a boa doutrina. Mas ainda assim estamos num impasse porque não vemos bem para que lado pende por instinto o possuidor das entranhas evangélicas. A nenhum de nós, evidentemente, ocorrerá a fantástica idéia se que os franceses “de gauche”, por instinto, ou pelos intestinos, tendem para posições sempre mais nitidamente anticomunistas. A história dos últimos 40 anos prova, ao contrário, que a coisa chamada “gauche catholique” precipitou-se, numa enxurrada catastrófica, na direção daquilo que nós aqui no Brasil, e em Portugal, chamamos comunismo. Será isso a “boa doutrina”? Estará nos comunistas realizada com maior perfeição o que Tresmontant chamou de “entrailles évangéliques”? Achamos difícil imaginar que toda uma zona de cultura católica possa pronunciar discursos, escrever revistas e livros sobre o fenômeno designado “esquerda” sem ter presente no campo visual a brutalidade que ocupa a metade do mundo e que foi objeto de inúmeras advertências e condenações dos últimos Papas. Como explicar que em 1965 um dos filósofos católicos mais inteligentes do século tenha dito, contra a lógica contra a evidência dos fatos e contra o ensino da Igreja, que os homens da esquerda tendem por instinto “vers la bonne doctrine”? Como explicar esse lapso espantoso? O mundo inteiro sabe hoje que a infiltração marxista nos meios católicos foi um dos principais fatores que produziram a desastrosa crise que o Papa já qualificou de “autodestruição da Igreja”. Como explicar que em 1965 Jacques Maritain e Claude Tresmontant ignorem o que qualquer pessoa no Brasil sabe, e conservem a candura de atribuir às esquerdas generoso instinto político e entranhas evangélicas? Como explicar que em 1965, na hora de interrogar sobre o terremoto e incêndio que vêem, esses dois intelectuais não se lembrem do que fez Emmanuel Mounier, fez a revista Sept, e a seguir o que fizeram os Montuclard, os Mandouze, os Lebret, os Desroche, e o que fizeram os comunistas e católicos “de gauche” na “Résistance” e depois na “Épuration”? Aqui no Brasil nós sabemos que a pregação de “Economia e Humanismo” do Pe.Lebret, e dos dominicanos contaminados, levou o Pe. Francisco Lage ao marxismo e ao comunismo militante. Sabemos que foi essa infiltração que transformou o Convento de Perdizes, dos frades dominicanos, em quartel general do guerrilheiro Marighela. Sabemos que moças egressas de tradicionais colégios católicos se transformaram em salteadoras de bancos, amantes de comunistas e culpadas de assassinatos de inocentes policiais. E para maior estridência do escândalo, e para maior evidência da fonte de inspiração, temos um arcebispo a esvoaçar pelo mundo inteiro a pregar uma espécie de socialismo em favor do qual é belo e meritório o ato de seqüestro e assassinato de reféns. E agora sabemos que todas essas monstruosidades começaram principalmente na monumental impostura da “gauche catholique”, escorada na não menos monumental candura de pensadores e filósofos que até 1965 ainda ignoram e ainda prestigiam as famosas “esquerdas”. Como explicar tão prodigioso equívoco?

Cremos que o mistério se elucida, ao menos em parte, quando começamos a entrever as conseqüências produzidas pelo jogo, ou pelo “solecismo cultural” E-D, numa civilização predisposta para as “filosofias da inimizade” 11. O efeito produzido, sobretudo nos “intelectuais”, é o da censura psicológica denunciada por Jules Monnerot12. Para entendermos melhor o mecanismo desse processo, precisamos aprofundar um pouco mais o sentido psicocivilizacional do jogo E-D. Convido o leitor a esse trabalho, fastidioso, mas indispensável. Um Símbolo Profundo Escondido Todos nós sabemos que os termos “esquerda” e “direita”, com conotação de antagonismo político, tiveram origem histórica na disposição das bancadas parlamentares. Daí em diante, por um conhecido processo semântico, os termos desligaram-se das significações primeiras e passaram a denotar mentalidades, comovisões em forte antagonismo. O fenômeno lingüístico não é raro, nem mereceria maior atenção, se não estivesse associado à mais apaixonante controvérsia ideológica do século, atuante como gerador de equívocos e molas de censuras, na cultura mais orgulhosa de sua lucidez em todo o Ocidente. Este fato de estar uma metáfora tão vigorosamente ligada a um drama de dimensões planetárias no leva a desconfiar da gratuidade ou da casualidade da escolha dos termos. Sabemos hoje que há metáforas leves, destinadas a produzir aproximações inesperadas, centelhas poéticas que nos induzem a apreciar a maravilhosa solidariedade de todas as existências, e outras metáforas densas, maliciosas, inventadas para ocultar algum símbolo profundo com que entretemos algumas de nossas “mentiras vitais”. Desconfiamos que o jogo E-D esteja nesse caso, e em vez de dizer “cherchez la femme”, diremos “cherchons le symbole”. Os termos “esquerda” e “direita” são adjetivos aplicáveis a qualquer par de coisas simétricas, destinados a significar, cada um deles, mais uma relação do que uma coisa. A primeira reclamação que Jules Monnerot faz do abuso do binário é justamente a da coisificação do que só se deveria entender como uma pura relação13. E qual será e razão desse “solecismo político”? Parece-me que descobriremos a pista do segredo se lembrarmos que os termos posicionais, significadores de uma simetria no espaço, muito antes de existirem bancadas parlamentares, têm sua primeira e direta significação adjetiva aplicada às duas mãos do homem. E tão unidos estão esses substantivos, tão profunda é essa primeira associação. tão imediata é a adjetivação que logo facilmente se substantivam os dois adjetivos e, assim sustantivados, absorvem totalmente o nome da coisa, ou com ela se identificam. “Direita” não será então apenas a qualificação posicional “desta mão”, é o seu nome, é ela própria. No dicionário de Aulete o termo “direita” é logo, primeiramente, apresentado como substantivo feminino. Em latim e em grego observa-se a mesma forte tendência à substantivação dos termos “dextera” e “sinistra” ou “dexiós” e “aristerós”. Ora, em todos os nossos dualismos nenhum há em que, pela força de sua simetria, tão veementemente e tão visivelmente se oponham e se componham as duas partes; nenhum há que tão instrutivamente nos inculque as vantagens e a necessidade de uma integração. A mão esquerda e a mão direita, como todas as formas simétricas, são formas geométricas iguais mas de incompatível

superposição. Não posso na mão esquerda calçar a luva da direita a menos que faça meu braço girar cento e oitenta graus dentro de uma quarta dimensão do espaço. Que quer isto dizer? A frase “... girar o braço pela quarta dimensão” não tem nenhuma significação física; é apenas generalização lógica de uma propriedade dos entes de razão matemáticos. Se o leitor quiser entender melhor essa idéia, trace num pedaço de papel a figura de dois triângulos simétricos, recorte-os com a tesoura e verá que não conseguirá superpô-los enquanto mantiver esses dois entes geométricos de duas dimensões no seu espaço de duas dimensões, o plano. Para conseguir a superposição, a identificação posicional, será preciso tirar um deles do plano e, graças à terceira dimensão de que dispomos, deitá-lo sobre o plano com a outra face sobre o triângulo que permaneceu no plano. Generalizando, direi que duas formas simétricas de “n” dimensões só se superporão graças a um rebatimento por um espaço de “n+1” dimensões. Deixemos o mundo fantasioso dos entes de razão e voltemos à nossas mãos. Ei-las: sua igualdade simétrica é um desafio e um convite. Estamos diante de uma contraposição feita para composição, ou de uma disjunção que pede conjunção. A diferença na igualdade é um incentivo para a união, para a complementação e para a colaboração. Nós sabemos, nas profundezas de nossa alma, que nosso eu está sempre ameaçado de uma disjunção, de um mal-estar, de uma inimizade interna, semente e modelo de todas as inimizades exteriores. O mais profundo de nossos instintos é o da unidade pessoal reforçado e aguçado pelo sentimento da unicidade do eu. A vida nos solicita, nos desafia, e em cada uma de suas arestas nos fere e nos quer dilacerar, e os outros nos chamam, nos pedem, nos comem. Aprendemos com a vida e com os outros, se alguma coisa aprendemos, a lição paradoxal, a lição quase absurda das leis do amor. Cabem em duas palavras: integridade difusiva. Só é difusivo, capaz de plena vida de conhecimento e amor, só é capaz de entrega, dom de si mesmo, difusão de seu ser e de seus dons, quem em si mesmo e consigo mesmo estiver bem integrado. Em outro lugar14 já vimos que nosso relacionamento com os outros é homólogo do relacionamento que temos em nosso próprio eu: amamos e desamamos o próximo conforme nos amamos e desamamos a nós mesmos. É do supremo mandamento: “Amar a Deus, e ao próximo como a si mesmo” que Santo Tomás (IIa IIae, q. 26, a. 4), tira a ordem da caridade, e que tiramos nós a lei de sua difusão em conformidade com a integração. Mas a perfeita integração que capacita a alma para a perfeita difusão de amor só se obtém se nosso próprio eu procura em Deus, e não no seu eu-exterior, a fonte de todo o verdadeiro amor. O amorpróprio, ou egoísmo, cicatriz do pecado original, cisão do eu, está na raiz de todos os descomedimentos humanos, de todos os pecados. Nosso tempo, por causa de sua atmosfera civilizacional, é especialmente marcado por uma terrível abundância de “eus” em avançado processo de desintegração. E as energias liberadas por essas desintegrações atômicas enchem de letal egoísmo, de essencial inimizade, a atmosfera de nossa civilização. O mundo morre de desamor. E as filantropias que inventa, são a mais cruel forma desse desamor. Ora, está em nossas mãos, nesta, naquela, na direita, na esquerda, duas, duais, diversas, iguais e inconciliáveis no espaço, simétricas — está em nossas mãos a figura exterior mais eloqüente de nosso drama interior. Separadas, alheias, diversas, duas, duais, devem complementar-se diligentemente para a obra comum: vede o artífice como sabe bem explorar e conjugar o bom dualismo quando a esquerda segura a peça enquanto a direita busca o instrumento; vede o pianista como distribui as partes da mesma música nas duas mãos espalhadas, ora afastadas como se desconhecessem, ora aproximadas como se quisessem na obra comum encontrar a tão desejada integração. Vede como se afastam ou se juntam nos sinais de amizade. Mas é no rebatimento que realiza numa espécie de quarta dimensão que nossas pobres mãos divididas, duas, duais, conseguem docemente realizar o gesto perfeito de súplica e de adoração. Mas devem afastar-se, abrir-se, ignorar-se, esquecer-se cada uma de si mesma, na hora de dar: “nesciat sinistra tua quid faciat dextera tua.” (Mat.VI, 3).

E o símbolo do jogo E-D? O símbolo escondido na persistente e difundida metáfora, que tulmutua um século, está agora desvendado. Denunciemo-lo. O sucesso da metáfora e a violência de sua aplicação e sobretudo sua capacidade de confundir, mentir e falsear se explicam pelo humanismo que Maritain em “Humanisme Integral” chamou de “humanismo antropocêntrico”, e nós (na mesma linha de idéias) preferimos chamar de “humanismo antropoexcêntrico” 15. Ou se explicam por todo um processo civilizacional aberrantemente afastado de Deus e gerador de inimizades. Os homens quiseram-se bastar, pretenderam desvincular-se de todas as “alienações”, e nesse ato de suprema soberba produziram um humanismo que só tem consciência de sua interna inimizade, e fabricaram um mundo novo que rapidamente se aproxima do modelo dos institutos para alienados. O símbolo da antítese esquerda-direita está no secreto desejo de rasgar o homem. O século disputa a hegemonia da nova civilização e disputa com a Igreja a posse do filho, preferindo-o rasgado em dois como a falsa mãe desvendada pelo rei sábio. E aí está. O binário E-D pertence ao léxico das filosofias da inimizade que vêem no homem, de Hobbes a Marx, o irredutível, o inconciliável inimigo do homem. Não contestarei, evidentemente, a valides de esquemas no domínio da caracterologia, e até, se quiserem, a valides de binômios tipológicos que indiquem oposições e inclinações temperamentais. Poderíamos, por exemplo, colocar na Esquerda as pessoas que por índole se dedicam a obras social, à enfermagem, ao ensino primário, etc. e colocar na Direita as pessoas que, por índole ou feitio do corpo, se dedicam à cirurgia, à carreira militar ou ao Corpo de Bombeiros. Esse esquema tipológico poderia ser desenvolvido por algum estudioso, mas duvido de que alcançasse o sucesso e o vigor do jogo E-D, que encheu todo um século de equívocos e ódios. E por que? Porque o jogo E-D tem seu motor naqueles elementos intrinsecamente bons, dependendo todavia do uso que deles fazemos. Voltemos atrás e reconsideremos as categorias confrontadas nas colunas Esquerda e Direita. Há no lado E um elemento: o anarquismo, que é intrinsecamente perverso por ser, não apenas a contestação das sociedades de direito natural que não se sustentam sem o princípio da autoridade, como também a contestação disfarçada da Autoridade suprema. Ao lado do anarquismo vemos o revolucionarismo, que é a dinâmica do anarquismo. A mística do revolucionarismo é essencialmente uma mística de inimizade, de contestação, de ruptura com o passado, de recusa de qualquer paternidade. O revolucionário místico, como já vimos em outro lugar16, não é apenas o espírito ferido pelas injustiças sociais e desejoso de um mundo “aperfeiçoado”; é essencialmente um negador que quer a estaca zero, o recomeço de um mundo “mal venu”, como dizia Van Gogh a seu irmão. No mesmo lado E, representando a realização histórica em vigor da mística anarquista e revolucionária, está o comunismo marxista, sem o qual o jogo E-D perde o seu princípio interno de inimizade, e logo perderia sua força externa de perturbar, mentir e confundir. E é a presença desse jogo E-D na atmosfera cultural de nosso século que explica, de um lado a censura e a cegueira para as coisas concretas de filósofos do nível de Maritain e Yves Simon, e de outro lado a enxurrada de secularização e de apostasias. Mais adiante voltaremos, com apoio em Henry Bars, ao problema dos “Dois Maritain” mas desde já quero frisar que há uma enorme injustiça na equiparação e no paralelismo que os próprios “progressistas”, como Adrien Dansette traçam entre Maritain e Mounier. O segundo foi realmente um dos precursores de tudo isto que aí está. Sua vida concentrou-se toda no sinistrismo

católico, enquanto Maritain só acidentalmente, e descontinuadamente, interrompeu sua grande obra de permanente tomismo, e teve atuação nos meios de esquerda. Atuação infeliz, para a qual faltou-lhe tantas vezes a pequena sabedoria do bom senso familiarizado com as obscuridades inteligíveis do contingente e do efêmero. O Jogo E-D foi um Jogo Falseado e Falsificador Sim, um jogo falseado, e posto em circulação pela torrente do anarquismo revolucionário. Não há nos binômios que fazem parte do jogo a simetria de peças e regras como no xadrez, ainda que umas sejam brancas e outras pretas. A rigor não há “esquerda” e “direita”. Historicamente, como feixe de linhas-dehistória, só há “esquerda”. A “direita” não existe como corrente histórica. Ela passa a existir como coisa designada e apontada à execração pela “esquerda” Abstratamente podíamos imaginar a possibilidade de existir na civilização sumeriana, na Gália ou na Islândia primitiva, tipos humanos temperamentalmente e espiritualmente divididos em torno de alguns daqueles binômios. Sempre houve, certamente, tipos mais inclinados a conservar do que a reformar, e tipos opostos; e sempre existiram, certamente, tipos propensos a acentuar o valor e a necessidade da autoridade, e tipos opostos, propensos a ver na autoridade mais os defeitos da miséria humana do que as perfeições que são reflexos das perfeições de Deus. Admitamos que na Suméria e na Islândia o desgosto da autoridade, em certos indivíduos, chegou a ver nela um mal, e na anarquia um ideal. Mesmo assim eu não diria que houve na Suméria, ou entre os Incas, o binômio E-D. Porque não é somente a presença de tais idéias e valores, e o seu uso por algumas pessoas, que faz existir o jogo ED. Esse jogo de binários, como abundantemente o tivemos, só começa a existir quando aquelas idéias e valores “formam corrente histórica”. Enquanto permanecem avulsas e raras, o jogo não começa, porque o jogo E-D não pode ser jogado entre 2 ou 20 pessoas. Ele se processa e só pode processar-se quando ganha dimensões de disputa civilizacional. No século em que vivemos não são 3 ou 3.000.000 de pessoas que formam a “E” inicial que dá a partida do jogo: é todo um estuário de erros, desatinos e desacertos de quatro séculos que produziu certas “formas históricas” particularmente virulentas e capazes de pôr em movimento o perturbador binário. Jean Madiran viu com grande lucidez esse aspecto da trapaça intelectual que atingiu principalmente o povo mais inteligente do mundo, e escreveu um livro17 que dedica todo o capítulo II a esse problema. Eis o que diz Madiran: “A distinção entre a esquerda e a direita é sempre uma iniciativa da esquerda, feita pela esquerda e em proveito da esquerda. Há uma direita na proporção em que uma esquerda se forma para designar a direita e a ela e opor: o inverso nunca se dá. Os que instauram e põem em funcionamento o jogo esquerda-direita, logo se situam na esquerda de onde delimitam a direita para combatê-la e excluí-la. Num segundo momento, a direita, assim designada e apartada, arregaça as mangas, nunca muito depressa nem com muita disposição, e então se organiza, se defende, contra-ataca e as vezes consegue vitórias...

Por isso, será “de direita” aquele que a esquerda designa ou denuncia arbitrariamente como tal: o inverso não é verdade, não existe. A arbitrariedade do processo se explica, ou se impõe, já que o jogo esquerda-direita, que mais exatamente devia chamar-se “esquerda-contra-direita” é inventado, conduzido e julgado sempre pela esquerda, jamais pela direita. A direita sabe ou sente que se submete sem poder fixar ou modificar a regras do jogo. A própria extrema-direita, quando não está contente com M. André Tardieu ou com M.Paul Reynaud, dirá que eles cedem às esquerdas, que aplicam seus programas, ou até dirá que traem. Jamais dirão que M. Tardieu ou M. Reynaud se tornaram homens de esquerda. E por quê? Porque a direita não se julga com títulos nem com a possibilidade de colar o rótulo nos frascos. A esquerda, ao contrário, senhora e árbitro do jogo que inventou e iniciou, relega para as direitas quem ele acha que deve relegar, e como e quando lhe parece oportuno o conveniente”. Duas páginas adiante, no mesmo livro que teríamos a tentação de transcrever inteiro se não estivéssemos nós comprometidos com o nosso próprio livro, Madiran aborda o problema da correlação entre as esquerdas e as injustiças, e aí nossa concordância não é perfeita. Estivéssemos um diante do outro, para prazer maior meu, e ambos na Idade Média, a exuberante palavra de Madiran seria interrompida por mim nos moldes escolásticos: “nego”, “concedo” “distingo”. Madiran chega a conceder que a esquerda se constitui para combater a injustiça, mas logo adverte que não é bom o seu método de combater as injustiças. Na página 31 lemos: A esquerda e o cristianismo lutam ambos contra a injustiça, mas nunca da mesma maneira, ressalvada a hipótese de uma contaminação do método cristão pelo método da esquerda. Eu hoje posso dizer que conheço bem o vigor com que Madiran defende a Igreja e a Civilização contra o Monstro, e sei perfeitamente que ele não é inclinado a concessões e a meios-termos emolientes. Mas neste caso não concedo o que ele concede. Não, a esquerda propriamente dita jamais lutou contra a injustiça ou pela justiça; mas freqüentemente lutou contra os que, por assim dizer, lhe fazem o favor de praticar certas injustiças. É melhor usar o termo próprio: as esquerdas aproveitam as injustiças, vivem das injustiças, para manter em movimento os dois cilindros da motocicleta do progresso na direção da luta de classes. Mas, antes que o leitor grite que assim eu exagero, corro a prestar um esclarecimento: há nas esquerdas definidas como corrente histórica de inspiração anarco-socialista, ou comunista, duas espécies de membros: os positivos e os negativos. E “honni soit qui mal y pense”. Os positivos são os da esquerda propriamente dita; os negativos são os simpatizantes, os incautos, os cândidos, “ceux qui sont dupes”. E esses, efetivamente, entram na caravana com a vaga e mole ilusão de estarem combatendo uma injustiça; mas esses mesmos, na maioria dos casos, estão buscando “ser alguma coisa”, ou tentando acalmar algum ressentimento familiar. Os outros, os positivos de esquerda, usam as abundantes injustiças, mas o que os move é sobretudo uma paixão de impor ao mundo uma forma nova, uma Idéia. É a vontade de poder. E não há mais violenta paixão do que essa de ver realizada, materializada, e funcionando, uma Idéia emanada de nossa mente criadora. Eu, que já inventei órgãos eletrônicos, e outras coisas de meu primeiro ofício, posso imaginar a violência da paixão que deseja realizar uma Idéia, quando essa idéia em vez de envolver resistores, capacitores e transistores, envolve gente, crianças, mulheres, velhos, instituições, edifícios e todo o vistoso trem de uma civilização.

É ingênuo estabelecer qualquer paralelismo entre o ideal desses ideólogos e a cálida justiça tão apetecida pelos corações normais. Os agregados, os negativos, freqüentemente ingênuos e até imbecis, podem ser levados ao sinistrismo por algum anseio de justiça, embora seja hoje difícil admitir a ingenuidade nessa matéria. Estou pensando aqui em dois personagens de Roger Martin du Gard, Jacques Thibault e Meynestrel. Relendo as páginas do grande romance, lembrei-me de uma carta de Marcel de Corte, publicada anos atrás, onde o filósofo belga dizia que nada há de mais cruel do que esse amor abstrato dos socialistas. Tolstoi e Henri Troyat, em “Ana Karenina” e “Tant que la Terre Durera”, também souberam dar realce a essa dualidade de tipos revolucionários, o positivo, possuído pelo cruel amor abstrato, e o negativo que adere à Revolução por um vago sonho de justiça, ou por algum desejo de ferir o pai. Retocando uma frase de Jean Lacroix, poderíamos dizer “la gauche est le meurtre du pére”. E aqui, neste tópico que trata dos que são atraídos pela “Esquerda” por um real embora perturbado anseio de justiça, não posso esquecer a admirável figura de Simone Weil que vejo, levada pelo mais monstruoso dos equívocos, fazendo a mala e tomando o trem para lutar ao lado dos “rouges” na Espanha. Durou pouco seu entusiasmo e sua febre, que mais se alimentava de 50 séculos de dor de todo um povo do que de 1 século de disparates franceses. Pobre grande judia! Na primeira expedição organizada para matar um “cura” pela simplíssima razão de ser “cura”, Simone Weil se dispõe a dar sua própria vida pela do cura, mas não chegou a realizar o sacrifício porque a expedição punitiva não encontrou a vítima. Simone Weil volta à França, amargurada, e escreve uma carta a Georges Bernanos que também não suportara as experiências da guerra civil, mas jamais procurou consolo disto nas “esquerdas”, que ninguém detestou com tão perfeita galhardia. Outro grande amigo com quem Simone Weil se conforta é o admirável Gustave Thibon, que recolheu o último poema recitado com lágrimas por Charles Maurras, e que ainda hoje, não menos galhardamente, colabora na revista Itinéraires. Simone Weil já terá encontrado no Céu a justiça e o amor que, por um prodigioso equívoco do século, andou procurando entre os “possessos”. O Espírito de Esquerda e o Espírito de Direita Gustave Thibon, que hoje milita ardorosamente contra a Onda, ao lado dos companheiros de Itinéraires, não consegue escapar ao estranho fascínio que o jogo E-D exerce sobre os franceses. No seu último livro, “Diagnostics” 18, dedica um capítulo inteiro a esse problema, e começa com estas palavras: É fácil definir o homem de esquerda como um invejoso ou um utopista, e o homem de direita como um satisfeito ou um “realista”. Essas fórmulas nos ensinam pouca coisa sobre a verdadeira diferença interior entre esses dois tipos de humanidade. Tentemos ver melhor. Se evocarmos em cada campo algumas personalidades superiores (só elas serão capazes de nos fornecer a amplificação necessária à descoberta das essências), a seguinte conclusão se imporá: o grande homem de direita (Bossuet, de Maistre, Maurras, etc.) é profundo e

“estreito”, o grande homem de esquerda (Fénelon, Rousseau, Hugo, Gide, etc.) é profundo e “confuso” (trouble). Uns e outros possuem toda a envergadura humana: em suas entranhas se misturam o mal e o bem, o real e o irreal, a terra e o céu. O que os distingue é isto: o homem de direita, dilacerado entre uma visão clara da miséria e da desordem do mundo e o apelo de uma pureza impossível de se confundir com qualquer coisa a ela inferior, tende a separar com força o real e o ideal; o homem de esquerda, cujo coração é quente e o espírito menos lúcido, mais depressa se inclina a confundi-los, a baralhá-los... 19 E por aí adiante, o lúcido Gustave Thibon (ora homem de “direita”, ora de “esquerda”, segundo sua própria definição) se deixa levar pelas equivocidades do jogo inventado precisamente para produzi-las. Voltando às primeiras linhas do tópico citado, onde o autor se refere à “diferença interior entre esses dois tipos da humanidade”, eu começo por negar aquilo que o autor de início aceita sem nenhum espírito crítico: a existência desses dois tipos da humanidade. É curioso que todos os autores até aqui citados falam de “direita” e “esquerda” como se houvesse um unânime consenso na existência dessas duas coisas e até um unânime consenso de uma diferença em primeira aproximação; sim, falam como se desejassem analisar melhor, mais a fundo, duas coisas que todo o mundo conhece. Ora, esse pressuposto é falso. As únicas coisas que preexistem são os termos, mas na verdade a límpida conclusão a que se chega é que ninguém sabe quem é de direita e quem é de esquerda. Guastave Thibon, colaborador de Itinéraires, deve ser visto hoje como “un homme de droite”; mas ontem e anteontem o grande amigo de Simone Weil e dos pobres era visto como um homem de esquerda. E o que dizer de Frederico Ozanam, o admirável amigo dos pobres, autor da famosa frase que podia ser explorada um século depois pelos padres-operários: “allons aux barbares”? É um homem de esquerda e quase diríamos de extrema esquerda; mas quando nos lembramos da atitude que tomou em 1848 e das páginas candentes e proféticas com que denunciou o socialismo, mais depressa diríamos que é um irmão de Donoso Cortés e até ousaríamos traçar uma extrapolação em que seu pensamento viria passar na área da “Action Française”, e a léguas de distância do Sillon de um Marc Sangnier. Insisto neste ponto: o binômio esquerda-direita é falso e falseador, e o melhor que dele se pode dizer é a denúncia de sua equivocidade tantas vezes posta a serviço da impostura. Para tornar mais claro o meu pensamento direi que uma tipologia só pode ser “dual” à custa de um brutal tratamento ou de uma escamoteação. Podemos, sem dúvida, aplicar à humanidade várias análises tipológicas, segundo várias linhas de comportamento, e podemos tirar de cada linha de comportamento definida por dois contrários (reais ou aparentes) dois tipos opostos E e D. Se nos entregássemos a essa fastidiosa ou divertida análise, mas nunca esclarecedora, veríamos com surpresa que muitos indivíduos classificados como “E” numa linha de comportamento, são classificados como “D” em outra. O próprio Maritain, que tanto usou o esquema tipológico E-D, quando se sente embaraçado, usa o recurso de uma divisão do esquema E-D em dois: um temperamental e fisiológica e outro político. No opúsculo “Lettre sur l’Independance”, Maritain desenvolve a idéia e chega a admitir que: as coisas se embrulham quando os homens de direita (no sentido fisiológico) fazem uma política de esquerda, e reciprocamente. Penso que Lenine é um bom exemplo do primeiro caso. Não há mais terríveis revoluções que as revoluções de esquerda feitas por temperamentos de direita; e não há mais fracos governos que os governos de direita conduzido por temperamentos de esquerda (Luis XVI). Tudo isto hoje me parece um jogo de espírito e quase “un jeu de mots”. É com mal-estar que leio a atribuição de governo de direita à monarquia de Luis XVI, e de temperamento de esquerda ao próprio Luis XVI. Também li com penoso sentimento a oposição feita por Gustave Thibon entre o “calor de

coração” dos homens de esquerda e a lucidez fria dos homens de direita; e estou inclinado a crer que foi esta a taxa de imposto mais pesada que Gustave Thibon teve que pagar à tolice universal. Estou pensando na rapaziada de nossa extrema esquerda e no terno calor com que decidiram, no aniversário da morte de Guevara, o assassinato “justiceiro” de um oficial norte-americano que saia de casa com seu filho de onze anos. Deveremos usar o recurso proposto por Maritain, dizendo que esses moços se acharam na mesma trágica situação de Lenine e que são moços de direita engajados numa guerrilha de esquerda? Parece-me decididamente mais razoável abandonar esse binário equívoco e gerador de equívocos e procurar em cada casos a adjetivação apropriada que tanto a língua portuguesa como a francesa possuem fartamente. Mas antes disso, e pelo menos uma vez no século, é preciso denunciar a impostura que está na base de todos esses equívocos. A Impostura do Jogo E-D Em qualquer época da História e em qualquer parte do mundo, por isso mesmo chamado de vale de lágrimas, é possível demarcar vários “conjuntos” de homens cuja norma de pertinência seria uma das várias aflições da vida. Haverá o conjunto dos carecas, o conjunto dos desdentados, o conjunto dos cardíacos, o dos neuróticos e o largo e denso conjunto dos pobres de cada pobreza. Dada a conhecida tendência que o homem tem de atribuir a outrem a culpa de sua miséria ou de sua dor, é fácil imaginar e correlata tendência de explorar essa tendência de inculpar os outros. Ora, uma das características de nossa civilização, como já vimos em outra obra20, consiste precisamente na exacerbação dessa filosofia da inimizade, de Hobbes e Marx. É então fácil imaginar que o largo, denso e doloroso conjunto dos pobres será assediado por solícitos advogados que requererão: primeiro, explicar toda a pobreza de uns pela riqueza de outros; segundo, corrigir esse erro por um levante dos pobres, ou por uma Revolução. Para isto os “advogados” dos desfalcados, dos oprimidos, contando com os bons sentimentos e a imaturidade da maior parte do mundo, erguem o punho, impostam a voz e declaram: “Nós somos os amigos dos pobres! Nós somos os que combatem pela justiça!” E quem não concordar com eles, na explicação da origem da pobreza ou no método de sua eliminação, sentir-se-á tolhido, vagamente apontado como mau, como insensível à causa dos pobres. Hoje, qualquer honesto estudante de economia e de sociologia sabe que as desigualdades econômicas se explicam por várias causas, entre as quais a exploração injusta está longe de ocupar os primeiros lugares. Numa sociedade qualquer, imaginariamente tratada por um processo de pasteurização igualitária, ao cabo de poucos meses apresentar-se-ão diferenciações e, no fim de poucos anos, verse-ão nela milionários e pobres. Alguns desses enriquecimentos serão injustos e feitos à custa do empobrecimento de muitos, mas nem todos. Há casos de enriquecimento de um ou de poucos, que contrariam essa aritmética estática dos marxistas e que, ao contrário, produzem o enriquecimento geral e, por conseguinte, a melhora da vida dos pobres. Não é difícil encher um volume com exemplos. Tomemos um, no domínio da medicina: quem descobrisse um remédio eficaz para a gripe, ficaria rico. Para os socialistas ele só poderia ficar rico à custa do empobrecimento alheio; mas para a economia do bom senso, a riqueza desse homem se explica melhor pela riqueza de todos. É claro que em determinado instante da história do dinheiro possuído por uma comunidade, houve um fluxo favorável a

esse químico bem sucedido e uma diminuição no bolso de cada gripado. Mas logo no momento seguinte, na suposição da real eficácia do remédio, verificar-se-á que todos ganharam mais com a cura do que perderam com o custo do remédio. Houve portanto enriquecimento geral, mas não igual, que não é exigido pela justiça. O inventor e o produtor ganharam mais do que os operários da fábrica. Será justo esse prêmio dos que souberam criar valores que seus operários apenas sabem materialmente fazer? O fato incontestável é que todos, operários e burgueses se beneficiaram. Quererão os reformadores do mundo inventar um sistema em que o aumento de produtividade e de riqueza geral não beneficiasse em primeiro lugar seus próprios criadores, e não criasse por conseguinte desníveis de riqueza? Então terão de inventar outro homem, outro coração, outra alma insensível aos proveitos pessoais e desinteressada do progresso. O que há de especialmente estúpido nas utopias socialistas é a contradição dos que ao mesmo tempo desejam o progresso, sem o qual não se pode proporcionar bem-estar material a uma multidão, e reivindicam um igualitarismo, com o qual não se vê como se dará partida ao motor do progresso. Se os socialistas fossem ardorosos apóstolos de um hiperespiritualismo desinteressado dos bens materiais, entender-se-ia que fossem também ardorosos apóstolos de um igualitarismo que não faz questão de progredir materialmente. Sim, o que há de grotesco, de supremamente impostor, no ideal socialista é a contradição entre o brutal materialismo dos fins propostos e o delirante e falso espiritualismo dos meios imaginados. Além disso, e em vista das experiências que o planisfério do século nos exibe, temos todos os fundamentos para duvidar da sinceridade de bons sentimentos que tão facilmente se transformam em ferocidade de demônios. Em outras palavras, e admitindo a realidade da entredevoração humana e da exploração dos mais pobres pelos menos pobres, o que se pode dizer de todas as experiências socialistas é que revelaram uma requintada perversidade, parecida com a de todos os exploradores das misérias humanas: os capitalistas exploram o trabalho dos operários; os socialistas exploram o sofrimento, a lágrima do pobre. Uma das grandes imposturas das esquerdas foi esta: ostentaram bons sentimentos escondendo cuidadosamente a vontade de poder que os levava a aproveitar-se da sofrida massa humana, tornaram-se donos dos bons sentimentos e logo denunciaram a dureza, o egoísmo de todos aqueles que discordavam de sua panacéia social. Se discordavam dela, não era porque apenas discordassem da droga, mas porque desprezavam a justiça e até a caridade. Cabe ainda aqui outra reflexão. Qualquer pessoa medianamente iniciada nas ciências da humana convivência sabe que o bem comum é arduamente promovido por um rico concurso de fatores. Numa sociedade complexa, densa, como a de nossos dias, a melhor divisão de bens em cada conjuntura, a mais razoável política de atendimento dos pobres, não pode ser direta, uniforme, imediata, sem se tornar catastrófica. Trabalha diretamente para os pobres todo aquele que trabalha em obras assistenciais, em obras de misericórdia, e todo aquele que dá diretamente seu tempo e seus bens aos mais necessitados. Mas trabalha socialmente para os pobres — e às vezes mais eficazmente — aquele que indiretamente traz sua contribuição para o bem comum. Todos os professores que ensinarem bem o que sabem, todos os pesquisadores que se debruçam sobre problemas de engenharia ou medicina, todos os profissionais que cumprirem seu dever de estado, trabalham para todos e portanto também para os pobres. Os que mais alegam serviços prestados nessa matéria são os que menos fizeram, mas são efetivamente os que exploram a miséria humana. Os comunistas, na Rússia, constituem o mais espantoso exemplo da impostura e do equívoco socialista. É preciso lembrar que esta corrente se compõe quimicamente de 1 perverso para 100 ou 1.000 ingênuos. O fato brutal que no princípio deste século deveria ter definitivamente vacinado o planeta para o socialismo foi a revolução russa seguida de um governo que quis aplicar num povo traumatizado três ou quatro idéias de uma primária economia política. O genial Lenine, cercado de outros ideólogos, imaginou e decretou uma reforma agrária que matou, entre 1920 e 1930, mais de oitenta milhões de camponeses russos. Para encobrir esse total e colossal fracasso, desencadeou um jogo de chicote-queimado: o jogo esquerda-direita, que consistiu essencialmente em cobrir a evidência dos fatos com a ideologia. E

como em toda a parte do mundo havia pobres, e especialmente na Europa havia a aceleração do progresso material que proporciona o confronto capital-trabalho, tornou-se fácil manter a repetição do binômio E-D. Os intelectuais ditos generosos prestaram-se admiravelmente a esse jogo por causa da tendência que têm à levitação. Pairam nas nuvens. E então Emmanuel Mounier pôde tranqüilamente dizer esta frase: “Nós, que a vida inteira lutamos pela justiça...”

Arimã e Ormuz Esta frase, escritas por Mounier e abundantemente repetida com variações nos discursos de um Dom Helder, constitui um modelo de novo farisaísmo, que só se tornou possível pela aplicação do jogo E-D repetido durante mais de um século. Seu pretendido dualismo tipológico na verdade inculca uma outra espécie de dualismo, que só pode ser moral, mas que se apresenta mais como um dualismo substantivo, um dualismo de entidades, um dualismo de mal e de bem tornado fisicamente delimitado com muito mais nitidez e brutalidade do que no confronto de pretos e brancos. Surge assim, no século XX, um maniqueísmo imprevistamente organizado às avessas daquele que Maritain aponta no “Le paysan ...”, quando nos fala no “maniqueísmo larvado” anterior que explicaria a crise de nosso tempo. Graças ao jogo E-D avalizado pelos mais prestigiados intelectuais, pôde um Emmanuel Mounier escrever tranqüilamente esta frase: “Nós que a vida inteira lutamos pela justiça”, para significar “nós fizemos tudo o que pudemos para instalar na França um governo de “Front Populaire”, e para instalar na “Resistance” e na “Epuration” uma casa de tolerância onde os católicos se tornaram comunizantes, como diz o Pe.Bigo, citado por Adrien Dansette21. E graças ao mesmo jogo, ficou universalmente admitido que seria de “droite”, e portanto contrário à justiça, quem discordasse da “idéia” que o diretor de Esprit formara de Justiça e dos meios que julgara ter descoberto para alcançá-la — meios que discordavam singularmente da doutrina moral ensinada pela Igreja durante mais de um século. O jogo E-D, por iniciativa das “esquerda”, como tão bem mostrou Madiran, forneceu critérios que superaram os do Magistério, e que concomitantemente, tranqüilizaram os que sem nenhuma hesitação se valiam de tal superação. No caso da Guerra Civil espanhola, ou melhor, no caso do “alzamiento” do exército, dos patriotas e dos católicos espanhóis contra o horror do terrorismo comunista e anarquista, o grande filósofo Jacques Maritain, engajado no jogo E-D, pôde tranqüilamente discordar e contrariar todos os pronunciamentos de Pio XI; pôde ficar indiferente à maior unanimidade católica de toda a História, provocada pelo apelo do Episcopado Espanhol, que foi respondido pelo apoio veemente e patético do mundo inteiro; e pôde explicar com estranha tranqüilidade a singular incapacidade que impedia o Pe.Garrigou-Lagrange de ver o erro colossal cometido por toda a Igreja e de compreender as luminosas razões que dava aos homens de “gauche” tão especial direito de ignorar o Magistério, o Episcopado mundial e a preocupação de um grande teólogo que até então fora respeitado como mestre e diretor espiritual do “Cercle de Meudon”. Tudo se explica com estas frases de espantosa simplicidade: “Le Pére Garrigou était un homme de droit”... mes positions sur la guerre d’Espagne étaient décidément trop pour lui...”22 Estas frases de inconcebível impertinência, escritas em 1964 com o estado de espírito voltado para 1937, como aquela de Mounier, servem para ilustrar o grau de obnubilação a que podem chegar os mais lúcidos espíritos quando se deixam envolver por um jogo de equívocos criado e alimentado por uma corrente histórica maligna e devastadora.

É incrível que um filósofo, como Jacques Maritain, não tenha percebido em 1937, e continue a não perceber em 1964, que obstinadamente apregoa a impossibilidade de apreciar racional e prudencialmente uma grave situação histórica, já que o fato de pertencer ao grupo tipológico dito de direita torna fisicamente impossível a percepção daquilo que o elemento oposto, pelo fato de pertencer à torrente histórica dita de esquerda, tem a liberdade (e o estranho privilégio) de chamar de “mes positions”, à revelia do que diz o Papa e do que clamam os bispos do mundo inteiro. Graças a esse totemismo, a essa pertinência quase mágica a um grupo, pode o praticante das esquerdas, sacerdote de um dualismo de tipo religioso, apresentar-se como dono da “justiça”, que contrapõe à “ordem”, valendo-se das ressonâncias de irracional antipatia que cercam o vocábulo e o conceito. Poderá então o grupo mais representativo das esquerdas, o comunismo vitorioso depois da revolução de 1917, ostentar seus mais estridentes fracassos, seu massacre de milhões e milhões de camponeses, sua fome monumental, sua incomparável ferocidade, seus operários aprisionados nas fábricas, o massacre de Katym, a “Épuration” na França, o muro de Berlim, os horrores praticados contra as freiras e os padres no México e na Espanha tudo isto, julgado com os critérios da moral comum de que em vão se vale o Ocidente, para mostrar o malogro total da Revolução Russa, esbarra num novo dualismo místico que divide toda a criação em dois hemisférios inconciliáveis. Ormuz e Arimã se defrontam e proporcionam critérios absolutos e irredutíveis àqueles com que até hoje o mundo do homem viveu. Durante a desastrosa experiência dos padres-operários, os militantes da mística revolucionária chegaram à enormidade de apregoar que “o operário é puro pelo simples fato de pertencer à classe que não explora, que é explorada”. Estamos evidentemente na paisagem lunar ou onírica de um, mundo que “recusa o ser”, com diz Alfredo Lage23, ou num mundo de jogo em que “o sinal toma o lugar da coisa significada”, como diz Marcel de Corte24. Uma pessoa sensata que acordasse nesta altura do século, depois de uns quatrocentos anos de sono, relutaria muito em compreender a continuidade, o nexo dessa corrente histórica que, em nome da “justiça” e do “interesse pelos pobres”, produziu o monstrificado mundo socialista; e não saberia o que mais admirar, se volvesse a considerar a flácida tolerância com que o mundo liberal se deixou estuprar. Solecismos Políticos Fundamentais: a Direita e a Esquerda Como atrás disse, Jules Monnerot também se preocupou com esse jogo falseado, dedicando-lhe um capítulo inteiro no livro25 em que denuncia a já quase secular “journée des dupes” dos “intelectuais” franceses. Nesse capítulo, o autor da famosa “Sociologie du Communisme” começa por citar uma passagem de um livro de René Rémond26, na qual o historiador, tomando as “esquerdas” e as “direitas” por coisas subsistentes, cai na armadilha do jogo e passa a provar que todas as “direitas” enumeradas naquele período da História da França têm uma coisa comum: são antigas “esquerdas”. Ou melhor, foram esquerdas vencidas, superadas, por outra formação situada mais à esquerda, que as suplantou. Diz então Monnerot: Direita e derrota (ou envelhecimento) são sinônimos. Uma formação passa da direita à esquerda quando é vencida, e porque foi vencida. É o sentido da História; a História “mantém-se à esquerda” (ao

contrário dos automobilistas). Mas isto só se aplica à História em maiúscula, porque a história em minúscula não autoriza de modo algum tais generalizações. Na verdade, esse “sinistrismo” não pertence à História, e sim à ideologia. Mas qual é a ideologia que, na França e na data em que foi publicado o livro de Rémond, antes de qualquer outra, decreta que a direção da História é “sinistra” e também que todos os governos, todos os partidos na França, desde 1815, passaram da direita à esquerda, todos, menos um? Qual é esta ideologia e este partido? É claro que só há uma palavra para responder a essas duas perguntas: comunista. E assim é que esse postulado comunista, aliás anticientífico e anti-histórico, é ministrado “ex cathedra” na França de hoje, aos jovens de hoje, sem nenhum antídoto crítico, e aparentemente com toda a sinceridade. Explicitemos o postulado implícito: “o partido comunista é a esquerda realizada. A distância em relação ao partido comunista basta para medir, em dado momento, o grau de sinistrismo de uma formação política”. O partido comunista, nesse jogo, é a esquerda em “ato-puro”; é o referencial absoluto trazido à força para a política e para a História numa física antieinsteineana e anticoperniciana. E o curioso paralelismo está em pretender que tal concepção, tão brutalmente fixista, seja o modelo perfeito do progressismo. Desaparece a incoerência, ou coleção de solecismos, se lembrarmos que na metafísica e na teologia sobrenatural explicam-se os movimentos das coisas pela imobilidade de Deus. E concluímos: o comunismo é deus, ou é para seus crentes uma encarnação do verbo divino na realidade histórica do PC. Monnerot termina seu capítulo, que gostaríamos de transcrever na íntegra: O efeito desse jogo e dessa denominação afetiva é o de transferir, por contigüidade, o ódio que o propagandista espalha (...) de um ser a outro ser, e finalmente, de transferência em transferência, é o de aplicar a Guy Mollet a aversão inicial que o homem de esquerda tem pelo rei Carlos X. A identidade de denominação tem por objetivo estender e aplicar a dois seres, artificial e abusivamente identificados, o mesmo sentimento hostil. Nesse sentido, a mágica — trata-se efetivamente de operações mágicas — produz efeitos reais. Porque, se for bem sucedida, e isto depende dos meios empregados (e os “mass media” aqui são dominantes), essa transferência de ódios passará a motivar os atos. Se conseguirmos, por condicionamento de reflexos, ligar um epíteto a condutas hostis, bastará uma circunstância favorável para que um indivíduo, apontado como fascista, seja linchado por uma multidão previamente condicionada. O caso já se registrou mais de uma vez. O inevitável desgaste do epíteto fascista, a despeito das maldições rituais repetidas pelos “mandarins”, levou nossos publicistas sob controle “Intelectual” à substituição progressiva do epíteto fascista, por “extrema direita” Mas este vitupério só se manteve por decreto. Abstrato demais, não pôde ser suficientemente mágico. Eles poderiam sempre achar quem os ajudasse a linchar um homem dom o grito: “fascista!” Mas dificilmente conseguirão comoção pública com gritos: “Extrema direita!” E é assim que o mau lógico acaba por conseguir ser um bom “publicitário”. Na rampa do declive da inteligência intelectual, procura-se em vão uma “linha de parada”. E não resisto ao prazer de terminar este penoso e trabalhoso capítulo, com as mesmas palavras que Monnerot escolhe para terminar o seu. O leitor certamente já percebeu que este livro não tem um só autor. Sem chegar à mania dos Congressos, dos Sínodos, das Conferências que não caberiam na minha pequena sala de estudo, convidei vários amigos vivos e mortos, enquanto eu mesmo ainda

pertenço a “esta orgulhosa aristocracia dos vivos”. Mas calemo-nos, porque Monnerot já deu sinais de impaciência. Ouçamo-lo: Essa bipartição mágica em direita e esquerda acarreta, pelo jogo de uma espécie de inércia psicológica, uma classificação dualística de categorias opostas, cada uma a cada outra, a qual classificação poderá, por contágio paranóico, estender-se no espaço e no tempo. Já vi um conhecido intelectual aplicar-se a dividir os heróis de Homero e os profetas do Antigo Testamento em direitistas e esquerdistas. O alarmista Jeremias, em particular, homem de direita disfarçado em homem de esquerda, por suas profecias derrotistas para o seu próprio campo, aparecia ao nosso intelectual como um “social-democrata típico”. E o sacrifício de Efigênia, em que se prefigura o proletariado, desmascara em Agamenon o “fascista” não menos típico. O Otimismo das Esquerdas Estava decidido a encerrar, com o tópico anterior, este fastidioso capítulo, quando deparei com um livro da coleção “L’Univers des Connaissances”, editado pela Hachette e publicado simultaneamente na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Espanha, nos Estados Unidos, na Itália e na Suécia. A excelente iconografia, a ótima impressão e o largo internacionalismo, logo me convenceram de que o livro intitulado “Qu’est-ce que la Gauche”, muito provavelmente era mais uma contribuição para o dilúvio de estupidez que inunda o mundo moderno. A rápida leitura confirmou o prognóstico. Efetivamente, depois de abundantes solecismos assinalados por Monnerot, o livro chega onde eu esperava. Começando por assinalar o inicial “handicap” das direitas nas Sagradas Escritura, onde se vê, em Mateus XXV-33, que as direitas são chamadas benditas e as esquerdas malditas, e onde se poderia tirar mais um argumento favor da tese que mostra a Igreja comprometida com os interesses da classe dominante, o autor anuncia o termo da secular injustiça. Mas no mundo contemporâneo, os maçons, os radicais e os socialistas inverteram, as posições: desde algum tempo a esquerda adquiriu, no plano sentimental, uma significação nitidamente favorável, que implica progresso e enriquecimento do espírito. A partir daí a dita esquerda, subsistente, quase hipostasiada, passa a ser apontada como confiança, OTIMISMO em relação ao homem e a seu futuro, desde que esse futuro, evidentemente seja atingido pela Revolução que tudo promete, sob a condição de tudo rejeitarmos. Jean Madiran disse em 1968 que sentiu nas ruas de Paris o hálito da Revolução. Eu acabo de sentir nas páginas desse livro internacional e otimista o “hálito do nada” que perseguiu Frederico Nietzsche e não resisto ao desejo de agora encerrar este árido capítulo com a pergunta de Léon Bloy estampada como epígrafe desta obra: “De que futuro nos falam ‘eles’, então esses esperantes às avessas, esses escavadores do nada?” O que realmente se vê neste mundo moderno modelado “pelos maçons, radicais e socialistas” é uma mortal desEsperança — e não há mais lúgubre do que o otimismo desses desesperados. (Gustavo Corção, O Século do Nada, cap. II)

1.Jules Monnerot, La France Intellectuelle, Raymond Bourgine, ed. 1970. 2.J. Maritain, in De L’Eglise du Christ, Desclée de Brouwer, 1970, pág. 203, e G. M. M. Cottier, in Horizons de l’Atheisme, ed. du Cerf 1969, pág. 113, assinalam ambos o amoralismo de Marx, atenuando-o todavia com o eufemismo de contradição. Maritain chega a sentir, à distância de século e meio o « coração » de Karl Marx arder de um « fogo devorante », mas o que nós conhecemos objetivamente de Karl Marx, pelo que deixou escrito, é o seu furor sagrado contra quem pretendesse dar conteúdo moral à sua revolução científica. 3.Yves Simon, La Grande Crise de la République Française, ed. L’Arbre, Montral, 1941, pág. 128. 4.Jules Monnerot, Sociologie du Comunisme, Fayard, 1969. 5.Yves Simon, op. cit., pág. 85. 6.Ibid. pág. 109. 7.Ibid. pág. 116. 8.Ibid. pág. 118. 9.Ibid. pág. 107. 10.Citada por H. Massis, Maurras et notre temps, Plon, 1961, pág. 295-7. J. Maritain, Le Paysan.., pág. 45. 11.Gustavo Corção, Dois Amores, Duas Cidades, Agir, 1967. 12.Jules Monnerot, La France Intelectuelle. 13.Ibid. pág. 118-9 14.Gustavo Corção, op. cit., t. II, pág. 85 e seg. 15.Ibid. pág. 154. 16.Revista PERMANÊNCIA, outubro 69, n°13. 17.Jean Madiran, On ne se moque pas de Dieu, Nouvelle, Ed. Latines, 1957, pág. 27 e seg. 18.Gustave Thibon, Diagnostics, ed. Genin-Paris, 1945. 19.Ibid. pág. 56. 20.Gustavo Corção, op. cit., pág. 285 e seg. 21.Adrien Dansette, Destin du Catholicisme Français, Flammarion, 1957, págs. 225-6. 22.J. Maritain, in Carnet de Notes, Desclée de Brouwer, 1964, pág. 231. 23.Alfredo Lage, A Recusa do Ser, AGIR, 1971. 24.Marcel de Corte, L’Incarnation de l’Homme, ed. Universitaires, 1942, pág. 164. 25.Jules Monnerot, La France Intelectuelle, pág. 117. 26.René Remond, La Droite en France de la Première Restauration à la Cinquième Republique, 1963, pág. 257.

O método de escolha dos chefes Alguém do Jornal do Brasil telefonou-me perguntando se eu poderia responder a duas perguntas simples: 1° — Quem seria no novo presidente? 2° — Que pensa o senhor do regime e sobretudo desse método de escolha dos chefes? Esquivei-me da primeira pergunta por falta de informações exatas. Mas não hesitei em responder à segunda: depois do movimento de 64, que considero providencial, o Brasil achou-se com um regime de

governo que, a meu ver, é o melhor, mas ainda não tem denominação feliz. Usando a clássica qualificação dos regimes, deixada por Aristóteles, o governo atual do Brasil e do Chile não é monárquico nem democrático: é o governo que Aristóteles chamou aristocrático, deixando o termo oligárquico para designar sua depravação. É hoje evidentíssimo que nenhum desses dois nomes pode ser convenientemente proposto. Mas também torna-se cada vez mais evidente que é esse o melhor regime. Ouçamos algumas palavras de Santo Agostinho que, como sempre, bem responde aos problemas de hoje: “Se um povo é sério e prudente, zeloso pelo interesse público, é justo que se faça uma lei que permita a esse povo dar a si mesmo os magistrados. Entretanto, se tornado pouco a pouco depravado, esse povo tornar venal seu sufrágio entregando o governo a celerados e infames, é justo que se lhe retire a faculdade de conferir os cargos públicos, e se volte ao sistema de sufrágio limitado a algumas pessoas idôneas” (Santo Agostinho, Tratado do livre arbítrio, Vol. I cap. VI, citado por Santo Tomás). Eis aí uma citação que convém como uma luva a recente história do Brasil. Depois das graves contribuições trazidas pelos últimos governos ditos democráticos, que já entregavam o Brasil ao comunismo, achamo-nos diante de uma situação singular: todos os brasileiros, nas famosas marchas com Deus e pela Família, demonstraram a aceitação do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, escolhido por indicação de seus companheiros das Forças Armadas. Lembro aqui também o grande Papa Leão XIII na sua encíclica Immortale Dei, mais de uma vez citada nestas colunas. No tópico n° 10, essa encíclica formula o mais enérgico repúdio dos novos direitos trazidos pela Revolução do século passado, e não dissimula sua condenação à filosofia política que se funda na soberania nacional e no princípio de igualdade para fazer finalmente do sufrágio universal um dos famosos direitos do homem. Que nome daremos nós a esse novo regime em que providencialmente se achou o Brasil? Eu não costumo me prender demais aos nomes desde que li os versos de Shakespeare onde o poeta atribui a Julieta essas palavras relativas ao nome da família de Romeu: “What is a name?” Teria a rosa menos perfume se tivesse outro nome? Há porém um abismo entre o diálogo amoroso de dois namorados e as exigências do bem comum. No plano das atividades políticas os nomes inculcados às multidões têm funcionado com força mágica. Nossos adversários, os comunistas — que militam dentro da mais dura e desumana de todas as oligarquias, apelidada democracia popular por escárnio — tornaram-se exímios no uso e abuso das palavras mágicas. Reação, fascismo, democracia, marcadas umas com o labéu da execração pública e outras com o halo dos idealismos puros, tornaram-se hoje impraticáveis, se quisermos escrever algumas linhas que sejam entendidas por mais de 10 pessoas. Sabemos de episódios em que jovens se entregaram aos comunistas só para fugir ao terrível anátema do termo “fascista”. Como já me dispus a tudo nessa matéria não hesitei em denunciar a impostura que tinha a democracia como único regime condizente com os direitos do homem. Dou hoje mais um passo, depois de lembrar que Aristóteles considerava impraticável (e eu diria: sobretudo em regime democrático) a Polis que tivesse mais de 100.000 habitantes. Repito o jogo de palavras que já empreguei nestas colunas: nos tempos modernos aumentou a tal ponto a densidade demográfica que se tornou temerário, mais do que nunca, o uso da forma democrática. O governo e a designação dos chefes não podem ser, por sufrágio universal, entregues ao povo, cada vez mais desumanizado. Sim! Não podem e não devem jamais ser entregues a esse monstruoso soberano que é onipotente (já que todo o poder dele emana) e nihilciente (já que tal coletivo se torna irresistivelmente diminuído e subumanizado). Um modesto homem do povo pode ter a sabedoria de um Sócrates; mas cem milhões de pessoas tornam-se irresistivelmente um ídolo que tem olhos e não vê, orelhas e não ouve etc. De uma só cajadada abato dois nomes mágicos: democracia e povo. Agora, já que estamos com a mão na massa, aproveito para desaprovar, tarde demais, o nome dado ao movimento de 64: “Revolução”, que é o mot d’ordre de toda a esquerda revolucionária e anarquista. Nossos bravos e bons soldados, chamados por Deus à salvação da pátria, assumiram o poder cerimoniosamente, encabulados, e até com certo sentimento de culpa. Por isso até

hoje se prendem às idéias políticas de 1789, quando vivemos o ano novo de 1978. O nome de nosso movimento deveria ser este: Reação Nacional. Corajosamente. E que nome daremos ao regime recomendado por Santo Agostinho? Fica aqui o desafio a quem tiver talento de títulos melhor do que o meu. Mas enquanto não acharem o nome, olhemos a “coisa” de face e sem nenhum constrangimento. O movimento de Reação Nacional de 64 veio acabar com o prestígio e a superstição do sufrágio universal. E deve manter-se firme nesta obra de purificação prestada ao país. Não! Nem prestígio nem superstição. O termo que convém melhor é o de “mentira vital”. Porque aqui entre nós dois, meu caro Fulano, desabafemo-nos. Na verdade, na verdade, não creio que ninguém, em são juízo, fora do torpor causado pelo ópio, possa acreditar na pureza e num mínimo de racionalidade do sufrágio universal. Eu votei em Jânio Quadros, e quem teve razão foi o cronista David Nasser, de “O Cruzeiro”, quando estampou com enorme destaque esta frase: “Seis milhões de loucos votaram em Jânio Quadros”. E aqui, como derradeiro argumento, trago os dados da história do Brasil republicano. Os melhores governos que o país teve foram os dos três presidentes paulistas, Prudente de Morais, Campos Sales e principalmente Rodrigues Alves. Ora, como estamos cansados de saber, as eleições nesse tempo eram feitas a bico de pena, eram dirigidas por uma minoria. Quando Getúlio Vargas trouxe o sufrágio universal em 34 (para logo liquidá-lo em 37), passamos a ter os governos catastróficos que culminaram em Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, que fizeram no Brasil obra semelhante à de Allende no Chile. Vocês se lembram de março de 1964? Lembro-me eu. E mais não digo por hoje.

(O Globo, 14/01/1978)

O mundo perverso “Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro ele Me odiou. Se vós lhe pertencêsseis o mundo vos amaria, como ama os que são seus; mas vós não sois do mundo, fui Eu que vos apartei do mundo, e é por isso que ele vos odeia”. (Jo 15, 18; Mat 10, 22; Mc 13, 13; lc 6,22; Jo 17, 14; Jo 3, 13; 17, 14-16; IJo 4, 5; 13, 16; Mat 10, 24; Lc 6, 40). Essas palavras ditas por Nosso Senhor pouco antes da Paixão, e registradas em todos os Evangelhos, não podem ser deformadas: são duras demais; nem podem ser ignoradas: são claras demais. Quem quiser fazer de conta que não vê a inimizade do “mundo”, e quem pretender que é aqui mesmo neste mundo que o homem atinge a plenitude de sua sorte, quem quiser em suma pertencer a esse “novo humanismo” que recusa, como alienante, essa transcendência sobre o mundo, tem de começar por apartar-se de Cristo para persegui-lo e odiá-lo naqueles que o seguem, e que durante esta vida completam no seu Corpo Místico a sua Paixão. Já de sobejo sabemos que o termo “mundo” nesses textos terríveis e incontornáveis não designa a natureza criada nem a vida temporal com todas as implicações da natureza humana; designa as organizações criadas pelo orgulho humano ao longo da história, para afastar de Deus os homens inebriados de seus sucessos, e esquecidos de sua miséria. Esse mundo, que hoje é formado de várias correntes históricas e organizações sociais como o comunismo, a maçonaria, o liberalismo e as várias formas de pseudo-cristianismo, arranca as almas à Igreja, afasta-as da Salvação, separa-as de Cristo. O Concílio de Trento definiu claramente os três cruéis inimigos das almas e da Igreja Militante, e ai de nós! Se desprezarmos tão salutar doutrina, e dando ouvido às fábulas seguirmos os falsos mestres, inimigos de Jesus, que dele se afastaram para se realizarem no mundo. Perguntará algum leitor desatento ou aturdido por tantos falsos ensinamentos: — de que modo nos persegue o mundo se não vemos nenhuma clara perseguição religiosa? — Ó galata pouco inteligente! geme São Paulo. Ó leitor desatento! Gememos nós. Consideremos o espetáculo dos costumes que aflige tantas famílias, lembremos os casos de tantas e tantas moças que se transviam, que se perdem, que se prostituem, e que ainda respondem aos pais “que eles estão por fora e não entendem nada”. Pergunto eu: qual é o critério principal que norteia a vida dessas pobres moças embrutecidas? Todos proclamam: “é o hoje” é a “atualidade” unanimemente afinada pelo diapasão do orgulho que esmaga o 4° Mandamento, despreza Deus e diz aos moços que só eles são juizes de seus atos, como, com todas as letras, já foi dito num “catecismo” editado pela Sono-Viso, aprovado pela CNBB e evidentemente inspirado pelo Diabo. O inimigo evidente das pobres moças que se perdem é “o que todo mundo faz”, é o que se vê nos filmes, nas TV’s, ora, é esse gênio mau que Jesus chama “mundo”. E os jovens idiotas, quando pensam que estão sendo movidos por sua esplêndida e brilhante soberba, quando pensam que estão agindo livremente, COITADOS !!!, é justamente nesses arrebatamentos que estão sendo arrastados, puxados, levados para a sarjeta e para o prostíbulo pelo aparelho da perdição que Jesus chama “mundo” do qual Ele nos veio apartar, do qual nos veio salvar. O “mundo” tem flutuações de malignidade ao longo da história. Podemos hoje asseverar que esse inimigo tornou-se mais perverso do que nunca porque desarmou aqueles que tinham o dever de ensinar e propagar as palavras duras de Jesus, mas seduzidos pelo mundo, ao contrário espalham as palavras neles de tolerância, que chamam de reconciliação, e de indiferença diante de Deus, que chamam de ecumenismo.

Tenhamos nós a coragem de permanecer ao lado de Jesus na hora sombria em que nos diz: o mundo vos odeia, o mundo quer prostituir vossas filhas, degradar vossos filhos, vos levar até o extremo cansaço, até o desânimo extremo porque a Mim mesmo levou até à morte, e morte de cruz. Meditemos a fundo esta palavra infinita do próprio Filho de Deus: vós não sois do mundo, e fui Eu que vos apartei. O grande desafio de nossa época é claro: o mundo ou Deus? a novidade do aggiornamento ou a eternidade de Cristo? A Beatitude ou o Prazer? Agarremo-nos às armas santas, à oração, à penitência, ao santo desejo de perfeição, e veremos que não é tão difícil como parece fugir ao visgo do “que todo mundo faz” por submissão de vencidos e não por escolha livre. Obedecemos a Deus e seremos os mais livres dos homens. (Editorial da Revista Permanência, n° 76-77, Março-Abril de 1975.)

O padre e a menina Na semana em que estavam reunidos bispos e frades, e até no mesmo dia em que foi publicado um “documento base” a ser debatido na II Conferência geral do episcopado da América Latina em Bogotá, saiu publicado num canto de jornal, sem nenhum destaque, um pequeno tópico de faits-divers a que quase ninguém deu atenção, embora também envolvesse um padre, que, como ninguém ignora, é hoje o mais jornalístico dos personagens, como já o previra o Apóstolo Paulo: “somos dados em espetáculo ao mundo”. No episódio a que me refiro, o padre não dirigia nenhuma passeata nem conscientizava os camponeses. Passava pela praia quando viu ao longe no mar uma menina a se debater. Atirou-se na água e, nadando em direção à menina, conseguiu segurá-la quando já se afogava, e levou-a até um barquinho pequeno que remava em sua direção. Ergueu a menina, colocou-a no barco pequeno demais para três e tentou voltar a nado para a praia. Faltando-lhe as forças, foi levado pelas ondas do mar. E assim morreu para salvar a menina o padre jesuíta que se chamava Flodualdo, nome tão liricamente brasileiro que me lembra a Vila Isabel de antigamente. E assim morreu o padre, realizando uma tarefa de seu ofício, morreu salvando ... É a tal coisa, dizia eu outro dia a outro bom padre que me falava das dores da Igreja, é a tal coisa, basta aparecer um padre assim, um padre salvador, um padre padre, e logo se revolvem em nós as entranhas de ternura e respeito. Como gostaríamos de beijar aquelas mãos docemente ungidas para o ofício de salvar! Depois de ouvir a história, cheia de lacunas e imprecisões, fixei-me na cena que vejo e torno a ver com obsessiva admiração: duas mãos que erguem uma hóstia viva por sobre as ondas do mar. “O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. O bom padre Flodualdo deu a sua vida moça e plena para salvar a menina desconhecida que se afogava. E não terá sido por mera coincidência que isso aconteceu na mesma semana do “documento base”, com que seus redatores pretendem salvar abstratas estruturas sócio-econômicas à custa de uma conivência com a revolução mundial que virá tirar definitivamente do altíssimo valor que ainda hoje damos a uma vida de menina. Uma menina não é uma molécula social, uma parte, uma unidade numérica: uma menina é uma pessoa inteira, maior do que o mundo e diretamente ordenada a Deus, através de todas as

comunidades e estruturas. É uma pequena coisa imensa que só um coração cristão pode entender ou adivinhar, porque o cristianismo consistiu e sempre consistirá essencialmente nesse jogo de Deus, em que as coisas grandes se tornam pequenas para que as coisas pequenas se tornem grandes. Jesus-menino, em sua terrível e humílima encarnação, é o Deus recém-nascido que veio salvar os homens um por um. A figura do padre que salvou a menina, e assim cumpriu bem uma tarefa de seu ofício, evocou-me logo outra figura de padre que, dias atrás, vi no batistério da paróquia a salvar outra menina. Os personagens principais são os mesmos, o padre e a menina, e mesmíssimo é o elemento, a água; mas agora, em torno da pia, o rito tem a majestosa tranqüilidade da liturgia: “Liturgy is passion recollected in tranquility”. A cena que temos diante dos olhos é assaz conhecida e completamente destituída de qualquer suspense. Basta porém uma fresta de imaginação vivificada pela fé para vermos de repente, atrás do rito monótono, um relâmpago de eternidade. E então, sem perder sua mansa pequenez de rés-dochão, a cerimônia ganha um destaque novo, e o padre nos aparece, quando estende a mão sobre a cabeça escura da criança, humilde como um escravo, majestoso como um rei, poderoso como Deus. Quem pode perdoar os pecados? Haverá no mundo inteiro coisa mais bela do que a mão ungida que pode apagar os pecados? E logo me voltam à lembrança as mãos do padre Flodualdo a elevarem uma hóstia viva por sobre as ondas do mar. Não esperem do padre serviços sociais portentosos, nem queiram que ele batize as “estruturas”, e muito menos que dê a comunhão à “realidade brasileira”. Nestas coisas eles poderão trazer os grandes princípios morais que a Igreja elaborou através dos séculos. Mais do que isto não saberão fazer melhor do que os outros homens. Ao contrário, se se empenharem demais só poderão trazer desordem e confusão. Parece pouco o que lhes fica e todavia é imenso: pregar o Evangelho e batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Posso ainda acrescentar um serviço que o padre pode trazer ao mundo: o de desprendimento do mundo. O mundo se perderá se os homens quiserem avidamente salvá-lo e se deixarem prender no visgo temporal; o mundo se salvará na medida em que os homens aprenderem a viver mais de leve, vivendo como quem não faz muito empenho, possuindo como se nada tivessem. Creio na comunhão dos santos, na interligação de todos os atos humanos, na única e verdadeira socialização dos méritos e deméritos. Por isso creio no valor da oração, na transcendental utilidade da contemplação, e no imenso valor de tantos atos escondidos. Dentro deste dogma infinitamente espaçoso, creio na fecundidade ramificada e sobrenatural do gesto daquelas duas mãos consagradas que arrancaram a menina das ondas do mar. Haverá assim, em Bogotá, vinda do Brasil, alguma coisa a contrapor ao “documento base”.

(01/08/1968, A Tempo e Contratempo)

O pessimismo de Freud Referime, em artigo anterior, ao pessimismo intelectual, inerente ao analismo e à hipertrofia da investigação das causas materiais, que levava Freud a ver o mundo psíquico como um mecanismo de disfarces e de ilusionismos. Na extensão de sua concepção construiríamos uma metafísica em que o ser, em vez de ser objeto adequado à inteligência, é o enganador, o despistador. Teríamos uma espécie de deslealdade metafísica do ser, e um novo transcendental de perfídia. Daí não é de admirar que o genial investigador, de tanto considerar os fenômenos, tenha perdido a lucidez de ver as naturezas; e por isso não saiba mais distinguir a anormalidade da normalidade. Tratando das aberrações sexuais, eis o que conclui Freud: “Somos levados, diante dessa freqüência da perversão, a admitir que a disposição para a perversidade não é rara e excepcional, mas é parte integrante da constituição normal”. (Introduction à la Psychanalyse, p.424). A primeira coisa que choca nesse trecho é a impropriedade dos termos. Se ele conclui que tais ou quais fenômenos, pela freqüência com que ocorrem, devem ser considerados normais, como se explica que ainda os chamem de perversões? A segunda coisa que produz espanto é o conceito que esse médico tem da normalidade. Normal, na sua definição, é aquilo que ocorre freqüentemente. Então, se houver uma epidemia que atinja a quase totalidade de uma população, os médicos poderão ficar em casa descansando, porque todos estão normais. Ou deverão talvez procurar os poucos não atingidos pela peste normalizadora para providenciar o enquadramento deles na norma fornecida pelas estatísticas. Já abordei esse problema, há tempo, a propósito de certos sociólogos que, seguindo as lições de Durkeim (Les Régles de la Methode Sociologique), definiam como normal aquilo que mais freqüentemente ocorre. Há erros filosóficos que se explicam pela sutileza dos elementos postos em equação; mas este é tão grosseiro, tão prodigiosamente estúpido que só se explica por uma colossal obliteração da inteligência, ou por uma espécie de fatalidade que leva os homens mais inteligentes a pagar um tributo à burrice universal. Disse atrás que esses analisadores, atentos demais aos fenômenos, não vêem as naturezas. O conceito de normalidade é correlato ao de natureza. Só posso saber, de uma coisa, que está em condições normais quando sei o que ela é. As essências entretanto não se concretizam, não existem em estado puro. Inseridas nas outras existências, sujeitas aos choques, às interseções, elas nos aparecem machucadas, feridas, amassadas. Na medida que sofrem esses acidentes que lhes subtraem alguma perfeição devida à sua natureza, as coisas se afastam da normalidade. A anormalidade é, portanto, definida pela presença de um mal físico ou moral que desfalca uma perfeição exigida por natureza. No compacto universo criado, a anormalidade pode ser muito mais freqüente do que a normalidade. Há mais automóveis arranhados do que ilesos; há mais dentaduras incompletas que perfeitas. E assim, não será por via estatística que poderemos decidir a questão. Nem sempre o cientista está habilitado a se pronunciar sobre a normalidade em que se acha uma coisa, porque nem sempre sabe defini-la, ou nem sempre vê a sua essência. Num caso desses pode lançar mão do que os filósofos chamam “abstração total”, e que consiste na consulta da coleção de coisas da mesma espécie; para ter uma descrição mediana que toma provisoriamente o lugar da definição. Mas tem a obrigação de saber que não pode generalizar esse critério. Na maioria dos casos não podemos dizer que a estatura de um homem é anormal, a não ser por uma comparação com o valor médio. Mas é evidente que o médico, diante de uma apendicite supurada ou de um câncer, não seguirá esse mesmo critério. Como também eu sei que devo procurar um lanterneiro ainda que todos os sociólogos da escola de Durkeim me provem que o automóvel-médio no Rio de Janeiro tem um ou dois pára-lamas amassados.

Se eu me convencesse de que é impossível conhecer uma natureza para poder formar juízo do estado em que tal natureza se concretiza, então, por amor à propriedade do termo e à lógica, eu deixaria de usar as expressões “normal” e “anormal”, substituindo-as por “encontradiço” e “raro”. E, se fosse médico, fecharia o consultório. É triste ter de repetir coisas tão óbvias. Mas o mundo é assim, cheio de anormalidades. No caso de Freud, dirão que não se pode incriminar o psiquiatra por suas deficiências filosóficas. É exato. Talvez seja mais justo incriminar os filósofos que possuíam a melhor tradição, os mais sólidos critérios, a mais gloriosa herança intelectual, e que, por uma terrível mediocridade, não conseguiram dar o tom à cultura contemporânea. Há, entretanto, um mínimo de bom senso e de saúde de espírito que podemos reclamar em qualquer cientista, e que falta de um modo impressionante em Sigmund Freud. Atrás daquele erro filosófico, e daquela impropriedade de termos, escondem-se complexos de um radical e profundo pessimismo. Freud pertence a uma família espiritual que traz na alma um certo rancor do ser, um pessimismo infeccioso que vê o mal nas essências, ou que, por fim, já não vê o mal onde ele existe. Se tudo é perversão, alegremo-nos com riso amarelo, e cantemos o cântico novo que anuncia a extinção da secular e incômoda diferença entre o bem e o mal, entre o mórbido e o saudável, entre o reto e o torto. Neurotics, be glad! Amanhã ou depois, pela generalização crescente, será a vez de se alegrarem os homossexuais. E desde já podem aprontar o foguetório de ingresso na normalidade os peculatários, os aproveitadores do poder, os funcionários que ganham pelo que não fazem, porque o padrão de comportamento deles, pela freqüência, está se tornando “parte integrante da constituição normal” de nosso país. ("Diário de Notícias", 3 de junho de 1956)

O progresso e Chesterton Léon Bloy fez na "Exegese des lieux communs" a perseguição impiedosa dessas expressões amoedadas que andam por aí, nas ruas e nas cátedras, como restos ensebados duma sabedoria que a preguiça e a conveniência prostituíram. Bloy não escolhia muito, nem perdia muito tempo em olhar mais de perto os frangalhos que impetuosamente desbaratava. Numa linguagem viva e desesperada, sem medida, sem precauções, ele fazia um chicote estalar em cada frase... Chesterton não foi menos inimigo do lugar comum, nem menos tenaz, mas especializou-se numa certa espécie, naqueles que contém verdades de pernas para o ar. Passou a vida invertendo os quadros que o jornalismo moderno pendura com o Céu para baixo. Fez isso escrupulosamente e corretamente, com a satisfação que um bom inglês deve ter em corrigir as desordens de seu interior. Foi um D. Quixote gentleman e conseguiu sempre inscrever uma ardorosa combatividade no recato britânico, no horror ao impróprio; mas foi sempre, fundamentalmente, um "redresseur des torts". Por isso, a cada instante, o leitor comum, habituado às sentenças de Carrel e ao jornalismo moderno, estaca desconfiado na Ortodoxia ou em A Esfera e a Cruz. Mas um sorriso vagamente divertido resolve a dificuldade daquele leitor que acha afinal uma saída, ainda e sempre por um lugar comum, decretando que aquilo tudo que o Chesterton diz é paradoxo. Já ouvi essa apreciação em meia dúzia de tentativas que fiz de tornar lido um daqueles livros por diversos amigos, engenheiros, negociantes, dentistas, todos homens de boas roupas e ótimas familias.

Dizem que é paradoxo, assim como que diz que certo indivíduo cego de nascença, com escamas nos olhos, ficou vendo de repente, por sugestão. Dizendo assim uma palavra ávida de definição, sedenta de exegese, parece que o assunto está definitivamente encerrado e que é melhor falar noutra coisa. Paradoxo tem dois sentidos, muito diferentes. Pode ser o sinal de crucificação, o emblema da dialética divina que criou as coisas atravessadas pelas coisas, pode ser a vida da inteligência, pode ser todo o cristianismo. Mas para aqueles leitores o paradoxo é um truc de salão, uma escamoteação engraçada, um tirar ovos do nariz, e seguramente pensam que Chesterton escreveu a Ortodoxia "for fun". Para responder a essa opinião é preciso buscar inspiração no próprio Chesterton e dizer que, naquele sentido, não há um só paradoxo em todos os seus livros, e que o riso da ortodoxia é extremamente sério. Por isso tudo e principalmente pensando nos leitores católicos, tive a idéia de tentar aqui uma modesta propaganda. Recomendo o Chesterton como se recomenda o quinino, principalmente para aqueles que por dever de ofício freqüentam os mangues da inteligência, as paragens encharcadas de lugares comuns, as baixadas do pensamento: para aqueles que possam confundir catolicismo com sisudez e cultura com academias. Quando por exemplo, em roda de intelectuais, um senhor bem vestido dissesse pausadamente que a Igreja tem feito resistência ao Progresso, algum de nós, católico, antigo aluno distinto de apologética, seria capaz de aceitar uma educada controvérsia, tentando improvisar uma advocacia da Igreja, toda ela miudamente construída com fatos e interpretações. Iria discutir o caso de Galileu, citar Copernico, lembrar que também a revolução se opôs a Lavoisier, e que Einstein foi desterrado pela cruz gamada. Ficaria tudo cristalizado num ambiente acadêmico, tudo impregnado da mais educada idiotia. Seria uma marcação de pontos como no bridge, a saber quem tinha encarcerado mais astrônomos ou queimado mais químicos. Ora, quem tivesse o Chesterton na mão, como um vidro de sais, poderia simplesmente responder que, pensando bem, a Igreja é a única coisa que realmente tem progredido. A maior parte dos católicos presentes a tal reunião, ficaria assustada, a tal ponto nós os católicos nos educamos no hábito de defender, de justificar, de desculpar a Igreja, e a tal ponto receamos espantar o adversário com palavras cristãs demais. Parece que numa discussão inteligente é preciso calar o amor ao Pai para não ficar como testemunha suspeita, e por isso às vezes se nos afigura, a nós católicos, preferível adotar um tom mais mundano do que cristão. Já ouvi turbulentas gritarias cosmogônicas em que cada um tem sua idéia para as origens e para as leis, e numa dessas gritarias lembro-me que um transbordante católico, no auge do entusiasmo, tão fácil lhe pareceu atacar o darwinismo que chegou a gritar: — Para isso nem preciso de Deus... Esses católicos costumam praticar a contabilidade da Verdade. Julgam meio caminho andado quando os seus oponentes acabam concordando que são a favor de Jesus. Julgam que a Igreja cresce subitamente e o Cristo ressuscita quando se consegue apurar uma safadeza de Rousseau; julgam que é um verdadeiro apostolado contar que Diderot ensinava o pelosinal à filha como se toda a Verdade, todo o Cristo, estivesse à espera de Diderot. Preferem em presença dos adversários e dos indiferentes não cheirar demais a incenso, e, sempre que possível, se colocar no próprio plano fazendo um miúdo inventário de fatos e anedotas a favor dos

Papas. Têm satisfação em citar Psichiari, não por ele mesmo, mas especificamente porque Psichiari responde a Renan e assim, numa espécie de intriga em família, desfaz a má impressão da vida desregrada do avô. Por isso tudo Chesterton aparece um pouco bruscamente perturbando a diplomacia filandrosa que julgam necessária para salvar os restos da Igreja. É como se na mais solene sessão de Júri alguém se lembrasse de se perguntar ao réu se o Juiz era culpado. Depois do susto vem o alívio, o sorriso e a classificação de paradoxo. E o julgamento do Cristo pelos jornalistas continua para a delícia das galerias... Será preciso ler algumas páginas da Ortodoxia para mostrar que aquele aparente paradoxo não foi feito com propósito. O autor vinha perseguindo a idéia de progresso, vinha cercando o conceito, invertendo aqui e ali os lugares comuns que são os monumentos da cultura moderna, quando subitamente a apologia da Igreja apareceu, sozinha, explodiu por assim dizer, sem ser preparada, como chave de ouro de soneto. Prefiro citar aqui algumas passagens mais características: O Progresso deveria significar que estamos sempre querendo mudar o mundo para adaptar a uma visão definida. Realmente, hoje, significa que estamos mudando constantemente de visão. Deveria significar que conseguimos devagar, mas de modo seguro, a justiça e a piedade entre os homens: significa na verdade que estamos prontos a duvidar se a justiça e a piedade são desejáveis; uma página louca de um sofista prussiano qualquer faz os homens duvidarem. O Progresso significaria talvez que estamos sempre em marcha para a nova Jerusalém. Significa que é a nova Jerusalém que está em marcha longe de nós. Não modificamos o real para o adaptar ao Ideal, modificamos o Ideal: é mais fácil. Exemplos vulgares são sempre mais simples. Suponhamos que um homem queira um certo mundo, digamos um mundo azul. Não teria nenhuma razão de se queixar da lentidão ou rapidez da tarefa; poderia se fatigar nessa transformação, poderia se esgotar até que tudo ficasse azul; passaria por aventuras heróicas, nos últimos retoques de azul sobre um tigre. Haveria sonhos feericos de um lugar azul... Mas se ele trabalhasse com afinco, esse reformador cheio de altas idéias deixaria, segundo seu ponto de vista, um mundo melhor e mais azul do que tinha encontrado. Se cada dia ele pintasse uma folha de erva, avançaria lentamente. Mas se cada dia modificasse sua cor favorita, então não adiantaria absolutamente. Se, depois de ter lido um novo filósofo, ele se pusesse a pintar tudo de amarelo, então o seu trabalho estaria perdido: nada teria a mostrar senão aqui e ali algum tigre azul, lembrança desagradável de sua primitiva maneira [...] [...] senti mais uma vez que uma coisa estava presente na discussão: como um homem ouve um sino de Igreja dominar o tumulto da rua. Alguma coisa me dizia: — Meu ideal está fixado, ele foi fixado antes da fundação do mundo. Vocês todos podem mudar o lugar para onde querem ir, mas não aquele de onde vieram. Para o ortodoxo deve existir sempre um motivo para revolução, porque no coração dos homens Deus está sempre sob os pés de Satã. No mundo do alto o Inferno se revoltou contra o céu, mas neste mundo o céu se revolta contra o inferno. Para o ortodoxo pode sempre haver uma revolução que é uma restauração. A cada instante podemos fazer para a perfeição um progresso tal que nenhum homem viu, desde Adão." É muito fácil falar em progresso quando se pensa unicamente, com uma concentração demente, num modelo de escarradeira, fazendo uma momentânea abstração de todo o Universo e toda a história. Vêse nitidamente um progresso de escarradeiras, mas quando se torna a admitir a presença de tudo, do universo e dos homens, é preciso convir que a escarradeira é insuficiente, é forçoso convir também

que, falando em Progresso, subentende-se um mundo ora mais azul ora mais amarelo. É fácil gritar que é paradoxo, mas realmente só pode progredir o que permanece, o que é fiel a si mesmo, o que não se destrói. Só vale a pena usar esse termo, pensar nele, como um equivalente de crescer. E somente em cima de um chão que permanece, que fica, que é desde o princípio et semper et nunc, poder realmente crescer a árvore da Igreja. E cresce. Cresce em torno d'O que não muda, d'O que era antes de Abraão ser. Cresce na vertical da liturgia e na fronde do apostolado. Está em todos os tempos. Preocupa-se com Marx ou Nietzche nas cartas paternais de Pio XI que previnem os povos contra os excessos de azul ou de amarelo, e guarda na Missa o grito de um soldado romano. Vem de sempre. Já era desde o princípio. Traz todos os profetas e todos os salmos; surge de repente na Incarnação emergindo de um oceano de prefigurações e promessas; absorve tudo na passagem: a palavra do soldado, uma impaciência de Marta. Dá flores prodigiosas de aroma e suco para um vinho que há de correr por todos os séculos. É a árvore do pão e do vinho; o tronco se simplifica; os galhos se simplificam; um se atravessa no outro e o pão e o vinho se prendem na cruz. E a Igreja cresce conosco, apesar de nós, espalha em torno, quando floresce, as auréolas dos eleitos, sofre todos os golpes, todos os doutores, todos os Papas. E cresce, e progride, porque é sempre a mesma. (A Ordem, Janeiro de 1940)

O valor da vida O jornal de anteontem anunciava aos berros: ABOLIDA A PENA DE MORTE NOS ESTADOS UNIDOS, e logo após enumerava os grandes criminosos beneficiados pelo penúltimo espasmo de permissiveness da grande nação agonizante. Lá estava o assassino do Senador Robert Kennedy. E demais homicidas. Quinhentos. É fácil imaginar o dilúvio de pronunciamentos filantrópicos e humanitários que produzirão no mundo inteiro os amolecedores das consciências; como também é fácil imaginar o sagrado horror com que um deles leria, se as lesse, nossas mal traçadas linhas. Na verdade não me parece muito difícil provar que os verdadeiros defensores do transcendental valor da vida humana são mais aqueles que reconhecem o direito que têm as sociedades de rejeitar com a máxima energia os homicidas de superlativa e intolerável crueldade do que esses outros que, em nome de uma gelatinosa complacência com os perversos, desarma e desprotege os inocentes. Além disso cumpre notar as dimensões maiores do problema, tornadas hoje imperceptíveis por causa da universal depressão. A consciência católica, dirigida pelo Magistério, sempre aceitou a idéia de pena capital, e até sempre viu nela um recurso extremo graças ao qual os homens mais perversos recuperaram a dignidade perdida e o direito ao respeito de todos. Mais extremada ainda, dirá eu até mais provocante, parecerá aos amolecedores do mundo a idéia de que graças à pena de morte muitas almas perdidas se salvaram. E ainda mais extraordinária, para os humanitários de nosso tempo, é a coragem simples com que os santos vêem na pena de morte algo que misteriosamente os aproxima dos pobres monstros humanos que, por essa via extraordinária, ganharam infinitamente mais do que lhes oferece a filantropia. Santa Catarina de Sena, doutora da Igreja e padroeira da Itália, tendo notícia da condenação do jovem Tuldo, que na prisão se revoltava e desesperava, corre à sua cela, senta-se no chão ao lado do moço e põe-se a falar de um céu que se abre, e de um palácio de amor, de fogo e sangue, onde a alma purificada corre ao encontro de seu Senhor e seu Pai, que corre também ao seu encontro e o cobre de beijos. Durante horas a moça Catarina Benincase, 25ª filha do tintureiro, ajuda o jovem Tuldo a desprender-se deste mundo e a desejar ardentemente ver a glória de Deus. Quando Catarina quer levantar-se suplica, como os peregrinos de Emaús: “Fica mais um pouco comigo dolce mamma, porque escurece”. E ela: “Amanhã cedo, filho, espero-te no santo lugar da Justiça”. No dia seguinte, de manhã, Catarina esperava o moço Tuldo no cadafalso. Quando ele a viu alegrou-se e correu a ajoelhar-se com a cabeça no cepo; Catarina, ajoelhada diante dele, estendeu sua veste de mantellata, e quando viu o braço do carrasco erguer no ar o machado, gritou para o céu: “Io voglio!” E recebeu no regaço a cabeça a jorrar sangue. E temos a certeza de que Jesus — “Gesù dolce, Gesú amore”, terá feito a vontade daquela que sempre seguira Sua santa vontade. * Menos medieval, mas não menos católica, é a história da menina Therèse Martin que um dia, aos 13 ou 14 anos, vê em cima da mesa um jornal com a notícia da execução do feroz e desumano Pranzini que degolara duas mulheres e matara uma criança com requintes de maldade. Teresa só pensa, instantaneamente, numa coisa, quando lê a notícia: o valor infinito de uma vida, sim, mas da vida eterna. E atira-se impetuosamente ao encontro de Jesus para reclamar, para apostrofar, quase para

interpela-LO. Como, mais tarde, muitas vezes disse Gema Galgani em favor dos pecadores, Teresa não quer admitir que tenha sido em vão para aquele Pranzini o Sangue derramado desde o Jardim das Oliveiras até a Cruz. Nenhum de nós faz idéia do jato de amor, do ímpeto de misericórdia, da heróica generosidade com que Teresa se oferece como fiadora de tão graves e hediondos crimes; nenhum de nós faz idéia da explosão de fogo e da transfusão de sangue místico operada nesses instantes entre Teresinha e Jesus. O que sabemos, porque foi registrado, é que no trajeto da carreta Pranzini praguejava e blasfemava com furor. Chegou assim ao cadafalso, e era arrastado para a guilhotina quando subitamente acalmou-se, e de repente voltou-se para o padre que atrás trazia um crucifixo. Chorando ajoelhado, o pobre monstro humano beijou três vezes as santas chagas de Jesus, e nesse ato instantâneo e infinito tornou-se irmão ou afilhado primeiro de uma das mais belas santas do céu. Mais tarde a doce carmelita Teresinha aludiu uma vez a este primeiro filho que na terra andara praticando “quelques mauvais tours”. * Contei essas historias, amigo leitor, não para inculcar a idéia fantástica de querer que as instituições do bem comum temporal possam revestir-se de tão extraordinárias feições, mas apenas para dizer, aos filantropos que ousam falar no valor da vida, estas poucas e simples palavras: eles realmente — esses amolecedores de tudo — não fazem a menor idéia do verdadeiro e infinito valor da vida humana. * Agora acudiu-me à lembrança a figura de Léon Bloy, o peregrino do Absoluto. Em 1908 preparava-se Blériot para atravessar a Mancha. Entusiasmo. Euforia. O acadêmico Gabriel Hanotaux, traduzindo e condensando em bom francês o creme de mediocridade de todo um século que nascia, pronunciou um discurso que anunciava uma era de paz e concórdia, da qual aquele aeroplano, com um ramo de oliveira em suas rodas, seria o precursor. Lendo a notícia, Leon Bloy registrou no seu Journal o rugido profético: “Preparem os ataúdes”. Diremos nós, hoje: Ampliem os necrotérios.

Conversa em Sol Maior, Agir 1980.

Os indiferentes "Uma espécie de teósofo me disse: "O bem e o mal, a verdade e a mentira, a loucura e a sanidade, são apenas aspectos do mesmo movimento ascendente do Universo". Já nessa época me ocorreu perguntar: "Supondo que não exista diferença entre o bem e o mal, ou entre a verdade e a mentira, qual é a diferença entre ascendente e descendente?" G.K.Chesterton Para encontrar esse incomparável fenômeno, o indiferente da cruz, não é preciso nenhum empreendimento particularmente audaz. Não se trata de exemplar precioso, de coisa rara como um eclipse do sol que leva o astrônomo entusiasta a climas exóticos com seus óculos e sua tábua de

logaritmos. Nenhum colecionador se deterá um minuto só diante dessa coisa que julgamos incomparável e incompreensível, porque o indiferente, o homem para quem o sim e o não tanto fazem, que se equilibra onde parecia impossível o equilíbrio, esse assombro enfim, tornou-se a coisa mais banal do universo. Está em todos os lugares e seu nome é legião. Para encontrá-lo basta abrir uma porta, atravessar uma rua, debruçar-se numa janela, atender um telefone. Apesar disto, porém, ainda paramos muitas vezes, espantados diante da indiferença. Com todas as explicações clássicas sobre o assunto, tiradas da história dos últimos séculos, esclarecidas pela laicisação progressiva de todos os países cristãos, apesar da maçonaria, da economia política, do industrialismo, das guerras, da renascença e das revoluções, apesar de tudo o que se diz, seria sempre razoável esperar que os homens se dividissem e tomassem posição diante de Deus. Seria compreensível, digamos romanticamente, insensatamente, (como quem não pode compreender o contrário) que uma agitação se perpetuasse, que ao menos houvesse sempre um furor de negar lutando contra a loucura de crer. Os descendentes de Caim continuariam a assassinar os descendentes de Abel, mas a luta teria lugar em torno de um ofertório. Sob esse ponto de vista nada é mais compreensível do que essas boas e nítidas perseguições que Deus consente para que num plebiscito urgente, nervoso, os homens se separem ficando uns à direita e outros à esquerda. Tudo é compreensível, menos o indiferente. Esse problema aflige-nos todos os dias e em todos os lugares, produzindo um estado de espírito muito mais propenso às conferências do que às orações. Um escrúpulo contínuo que se espalha numa gradação insensível desde as raias do respeito humano até os limites do ativismo frenético, se insinua em nossas ações. Cada um tem um programa, cada oportunidade que parece surgir logo se demonstra perdida. Quem cala é individualista e quem fala é energúmeno. * Então, quando estamos suficientemente aturdidos, aparecem-nos sugestões singulares propondo, como um remédio para nossos escrúpulos, uma técnica especial para agitar as indiferenças, para propagar a notícia da Salvação, pelas esquinas, com os recursos da física e da química, com os sons dos alto falantes e as cores das anilinas nos cartazes vistosos. As últimas experiências humanas, nos cadinhos das políticas efervescentes, trouxeram contribuições preciosas na arte de convencer. Todo mundo sabe que meia dúzia de especialistas, dispondo de certos aparelhos, tendo um orçamento folgado e contando com o apoio da polícia, pode forçar o sincronismo de cinqüenta milhões de encéfalos complacentes. A técnica marxista baseou-se nesse fato elementar, a nazista também. São táticas de vida, no sentido spengleriano, fáceis, primárias, a serviço de certas ambições, baseadas na fome e no medo. Então, parece que o caminho está aberto para nós, os aflitos da indiferença, com esses processos de tão comprovada eficiência. Dêem-nos uma rede de estações de rádio, dois ou três jornais, uma brigada de choque para responder às objeções, e faremos o país inteiro crer. O mesmo processo que foi utilizado para que os homens fugissem dos altares poderá servir para fazê-los voltar cabisbaixos e mansos. Desde já adivinhamos o rápido desenvolvimento desse apostolado técnico. Teremos especialistas, escritórios, datilógrafas, agentes em todos os Estados, aparelhos, laboratórios, amplificadores, retortas, e por cima de tudo isso uma técnica para as técnicas, destilação de recursos psicológicos, formando um quintacolunismo infiltrante, com o Cristo a socapa, disfarçado com óculos escuros, para não escandalizar o descrente, para que o interessante e sensitivo indiferente não abotoe o casaco num gesto de resguardo!

Mas no fim de poucos dias, se a volúpia da atividade pela atividade nos permitir um minuto de reflexão, descobriremos com desânimo que toda essa técnica aplicada às massas não passa de uma imitação. Estaremos imitando o "imitador", e, como é regra, imitando o mal. Nunca os católicos poderão organizar uma propaganda, um congresso, com o impressionante aparato das cerimônias nazistas. Qualquer parada cívica deixará numa sombra de mediocridade as nossas passeatas de apostolado técnico. Realmente essa idéia de por ao serviço de Deus os processos da queda está cheia de erros de fácil demonstração. Em primeiro lugar há um equívoco nas palavras, uma espécie de calembourg, quando se diz que uma propaganda faz alguém crer. Equipara-se a Fé com um estado psicológico que pode ser obtido pela hipnose ou pela sugestão. Em segundo lugar (se ainda é preciso) aquela idéia de utilizar os recursos da queda para a salvação contém o que poderíamos chamar o fundamento de uma teologia algébrica, uma doutrina do menos por menos dá mais, pela qual a queda e a salvação seriam reversíveis. Ora, o plano de Deus (se somos católicos!) nos parece essencialmente, fundamentalmente irreversível por isso que a Encarnação trouxe aos homens a Salvação, não pelo voltar atrás, pelo passar uma esponja em cima da culpa (e não se fale mais nisto), mas ao contrário, pela transição. A salvação exige que atravessemos o Cristo, liberta do pecado sem extinguir o pecado, e volta-se como a ponta duma agulha imantada para o pólo escatológico que contém a consumação de tudo e a chave dos mistérios. A reversibilidade, o algebrismo das essências, parece impossível ao próprio Deus porque contém em si o sentido do nada; o Logos é irreversível pela força do Ser, do Ego-sum. Por isso, e por mais outras dez mil razões, não será uma tática, um truque, que poderá resolver o que Deus só pode fazer com uma crise, com um paradoxo, com a cruz. * A indiferença é um clima, é o ambiente do admirável "A esfera e a Cruz", de Chesteton, em que nem se admite o duelo entre o sim e o não. A Inglaterra da época vitoriana estava digerindo um império, tinha tudo, os navios chegavam carregados de todos os produtos do mundo para que as usinas inglesas tocassem a matéria bruta com a vara mágica do seu industrialismo. E os produtos voltavam para os países exóticos, enobrecidos, talismãs do progresso, para que certos baronetes pudessem ter os melhores cavalos do mundo. Mas, mesmo assim, nessa atmosfera parada, quando menos se espera, arma-se uma revolta e no meio do ambiente de ricaços surge o fenômeno Newman e o fenômeno Chesterton. Hoje o mistério inglês toma um aspecto mais nítido, as toneladas de bombas exigem uma decisão. Na Alemanha nazista também a indiferença é quase impossível. Quando lemos nos jornais as notícias das perseguições contras as Igrejas da Alemanha ou da Rússia, julgamo-nos melhores, mais civilizados, porque resolvemos o problema religioso na inofensiva moleza do indiferença. Os alemães ou os russos, ao menos se definem, se colocam, e muitos deles, na urgência da vocação, levantam-se, acham-se, recebem de Deus a marca oficial, tornam-se documentos vivos selados com o martírio. Aqui, ao contrário, por um insondável mistério, gozamos o ar condicionado das igrejas de Laodicéa. Na tepidez de nosso clima e na amenidade de nossos costumes preferimos oficializar o desejo de um grande prêmio publicando, como um apoftegma nacional, que a vida assim é melhor...

Afinal, que poderemos fazer pelos indiferentes, por esses que enchem as ruas, que não querem ser amolados? Talvez nada. Talvez seja razoável pedir em nossas orações a atenção da cólera divina. Doutro modo não se vê nenhum proveito, porque, em definitivo, procurar convencer os indiferentes equivale a dizer que a mediocridade é melhor do que a indiferença. Em qualquer caso a decisão última, a transição que atravessa o Cristo, não tem lugar nessa pequena mudança de situação que só poderá servir para estatísticas. Transformar indiferentes em medíocres, que não sejam quentes nem frios, se reduz apenas em afirmar uma questão de gosto, uma distinção sutil, a saber que a recusa é pior do que o vômito. (Publicado em “A Ordem”, Setembro de 1941)

Os trinta risos do moribundo Estivesse eu em artigo de morte, como o religioso Padre Manuel Bernardes, teria trinta e não apenas três razões de rir-me apiedado dos que acaso cercassem com lágrimas o meu leito derradeiro. E não precisaria para tais tristes risos invocar as mais altas alegrias da Esperança divina, nem lembrar-me dos grandes místicos que souberam dizer “muero por que no muero”. Poderia rir-me a primeira vez, a segunda, a terceira, a quarta, a décima, e talvez mais, em sinal de agradecimento pelas largas e claras alegrias idas e vividas, mas ainda retidas na lembrança, sim, em sinal de agradecimento, pelo mundo que ainda alcancei, pela água não clorada que bebi, pelo ar virginal que ainda cheguei a tempo de sorver e por muito mais coisas no céu, na terra e no mar, cujos merecidíssimos elogios não caberiam em todos os livros que em vão se escrevem para dizer mal das coisas boas, ou dizer bem das coisas más. Em vão chamaria mais papel, meu tão certo secretário de queixumes que sempre ando fazendo, porque todo o papel do mundo seria pouco para conter o extenso ou mesmo resumido o mérito do mundo. Como poderia eu exprimir as claras manhãs em que a gente acorda feliz sem nenhuma razão a não ser a razão essencial de estar, de ser, de acordar, de viver? Como poderia eu exprimir o prazer castíssimo dos músculos que vivem a dançar de alegria na cercadura dos corpos moços? E como exprimir a quase interminável mocidade que tanto tempo se alongou? Em que capítulo contaria o gosto que dão as gotas d’água que correm pela pele, e o gosto mais fino que dão as estrelas, gotas do céu, que correm pelos olhos como que no sentido inverso do correr das lágrimas? E a alegria calma e profunda das longas conversas amigas, como poderia contá-las sem transformá-las em penoso sentimento de perdê-las. Rindo-me num breve riso de despedida agradecida posso evocá-las sem contá-las e sem perdê-las. E nestas considerações já dou conta dos dez primeiros risos.

* Os dez seguintes teriam, esses sim, certo travo de ironia e piedade e até certa mofa pelo apego que visse nos vivos mais vivos do que eu no meu crepúsculo. Porque, na verdade, e feitos todos os descontos da saudade que temos de nós mesmos, o mundo que estou deixando está exagerando um pouco a liberdade de desfigurar a imagem do homem, feita à semelhança de Deus. E não preciso sair de meu reduto para descobrir o somatório de poluições com que se enfeita o século agonizante: o supramencionado mundo por engenho e mágica do mesmo homem que ele difama entra-me por debaixo da porta, pelas frestas das janelas, ou desce pelos cordões das cortinas como os sonhos de Homero. Com todos esses rodeios quero simplesmente referir-me ao jornal que tenho diante dos olhos,

estatelado, descomplexado, despoliciado e só não acrescento despudorado com receio que o leitor imagine que passei a escrever em sânscrito. Na folha pela metade cheia de fotografias de hotéis de luxo leio este letreiro: HOTÉIS DÃO À BARRA DA TIJUCA TOQUE DO TURISMO COM ROMANCE, onde todas as palavras são falsas, com exceção do nome do Bairro. Porque nesse anúncio tranqüilamente aberto num chão dominical de casa de família, onde entrou o matutino, hotel não é hotel, turismo não é turismo e romance é pseudônimo de lenocínio ou prostituição. Abaixo das atraentes fotografias o texto ainda é mais despoliciado e descomplexado. “Na verdade o edifício será sede do mais novo hotel de trânsito rápido ou alta rotatividade...”. Seguem-se detalhes do luxo dos quartos, do preço da... rotatividade e da beleza da paisagem: “Banheiros de mármore com ferragens douradas; paredes cobertas de veludo vermelho; painéis eletrônicos ao lado da cama controlam a intensidade da luz e permitem a opção por três tipos de música: clássica, moderna ou sexy. Vista para o mar sem levantar a cabeça do travesseiro”. Concluo eu que na erosão de tudo o que achei belo no mundo e na vida, conforme agradeci na página anterior, nem a inocentíssima “vista para o mar” escapou. Entrego ao meu admirado companheiro Nelson Rodrigues a defesa da dignidade do Poente do Leblon, e atenho-me a considerações mais prosaicas: quase todos esses hotéis “de alta rotatividade” estão registrados na EMBRATUR como empresa de turismo, o que lhes garante isenção de Imposto de Renda e outras vantagens fiscais... O redator dessa reportagem, que também não é reportagem, diz a certa altura: “Mas em três anos houve uma evolução (sic como diria Tristão de Athayde) nos costumes que se refletiu no projeto do novo hotel. Terá restaurante panorâmico e uma piscina grande permitindo atividade social aos hóspedes menos preocupados com o anonimato”. No canto direito inferior da página, como fecho de ouro, temos também despoliciado e descomplexado um psiquiatra que “acha bom as pessoas se encontrarem”, e começando pelo nome publicado por inteiro se propõe como “especialista no estudo do comportamento social”. E por aí vai o matutino de alta rotatividade a anunciar hotéis com vista para o mar, sem necessidade de levantar a cabeça. Na verdade tudo se condensa nestas poucas palavras: o homem de nosso bravo fim de século já não tem necessidade de levantar a cabeça, e por mais forte razão não terá necessidade de baixá-la. Bastam-lhe os botões eletrônicos e as opções também sem necessidade de maior esforço. Tudo isto, e mais o resto que deixo ao leitor insatisfeito e curioso, é o resultado da “evolução” destes últimos três anos. Meus últimos dez risos de moribundo da página de antologia do Padre Manuel Bernardes, deixo-os aqui resumidos para a evocação do que será em trinta anos de evolução o novo e próximo século que eu, moribundo, não terei, caríssimos amigos, o menor prazer de conhecer. E agora permitam-me guardar meu último riso para a mesma puríssima alegria do religioso em artigo de morte. (O Globo 06/07/1972).

Para não ser doido...

Para encontrar na obra de Chesterton a primeira idéia-mestra ou o primeiro sol ao centro de um sistema planetário, tomemos como ponto de partida a triste e fantástica mansão "onde brilha a estrela fixa da certeza, e onde os homens crêem em si mesmos mais colossalmente que Napoleão ou César, e onde podemos chegar junto aos degraus do trono do super-homem." Comecemos, pois, pela casa dos doidos. A idéia que procuramos diz respeito à saúde do espírito, e por isso é perfeitamente lógico que iniciemos nossa investigação onde falta essa saúde. Sentiremos assim mais vivamente, graças à parte de saúde que porventura ainda nos reste, a que extremidades sombrias nos poderá conduzir a parte que por desventura já nos falte. O primeiro confronto de Chesterton, para lançar um desafio a uma opinião geralmente admitida, é entre o poeta e o louco. Em muitas outras páginas, em numerosas novelas, esse confronto é aproveitado sob variados, figurados e coloridos aspectos. Um livro inteiro The Poet and the Lunatics tem origem nessa chispa produzida pelo choque entre duas coisas tão diferentes que um vulgar preconceito considera tão semelhante. Mas é no segundo capítulo de Orthodoxy que encontramos a primeira e mais nítida apresentação da questão. Fala-se geralmente dos poetas como de pessoas em quem não se pode depositar muita confiança, sob o ponto-de-vista psicológico, mas os fatos e a história contradizem completamente esse preconceito. Muitos dos poetas verdadeiramente grandes foram, não somente equilibrados, mas também dotados de senso prático; e, se Shakespeare foi realmente guardador de cavalos, é de crer que o julgaram um dos homens capazes disso. A imaginação não gera a insanidade; o que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem, mas os jogadores de xadrez, esses, sim, enlouquecem. Os matemáticos e os contadores muitas vezes ficam doidos; os artistas criadores muito raramente. Não pretendo, como se verá adiante, atacar a lógica: quero apenas frisar que é aí, na lógica, e não na imaginação, que está o perigo. A paternidade artística é tão salutar como a paternidade física. Deve-se notar, além disso, que os poetas realmente mórbidos foram os que tiveram algum ponto fraco de racionalismo. Poe, por exemplo, era de fato um mórbido; não por ser poeta, mas por ser excessivamente analítico. O próprio jogo de xadrez era poético demais para ele; desgostava-se por estar cheio de torres e peões, como um poema. Confessadamente, ele preferia o jogo de damas que melhor lhe sugeria a idéia de um diagrama com pontos pretos. Homero é completo e bastante calmo: são os seus críticos que o dilaceram em muitas extravagantes criaturas. Shakespeare era bem ele mesmo: foram seus críticos que descobriram que ele era somebody else. E São João Evangelista, embora tenha visto muitos monstros estranhos, nunca chegou a ver criatura tão medonha como um de seus comentadores. O fato geral é simples. A poesia é sã porque flutua à vontade num mar infinito; a razão, porém, procura atravessar o mar infinito, tornando-o finito. O resultado disso é um esgotamento mental, como o esgotamento físico de Mr. Holbein. Aceitar todas as coisas é um exercício, mas compreender todas as coisas é um frenesi. O poeta procura apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo onde se possa distender. Pretende ele, simplesmente, enfiar a cabeça nos céus, ao passo que o lógico se esforça por enfiar os céus na cabeça. E é a cabeça que estala. Mais adiante, seguindo a mesma ordem de idéias, encontramos o tipo especial de raciocinador que aplica aos atos humanos um determinismo rígido. Um deles, o Sr. R. B. Suthers, marxista por convicção e ofício, diz que o livre arbítrio seria uma loucura, porque levaria o homem a agir sem causas, isto é, como louco. Chesterton passa rapidamente sobre a falta de lógica determinista desse discípulo de Marx: realmente, se os loucos pudessem agir sem causas o determinismo estaria perdido. Mas o ponto principal da questão é outro: o Sr. Suthers pode perfeitamente ignorar o que seja o livre arbítrio, mas é pouco razoável que a tal ponto ignore o que seja um louco, porque a última coisa que dele se pode dizer é que age sem causas. O louco é, ao contrário, o único determinista rigoroso: Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, são os pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido não pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas ele é capaz de descobrir uma significação conspiratória.

Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse ficar um só instante descuidado ficaria curado. Aqueles que tiveram a infelicidade de privar com uma pessoa mergulhada ou mesmo na orla da desordem mental sabem que a mais sinistra qualidade desse estado é uma horrível clareza nos detalhes; é a conexão de uma coisa com outra numa espécie de mapa mais elaborado do que um labirinto. Se um de nós quiser discutir com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso, não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento. Ele não se embaraça com o senso de humour, com a caridade, ou com algumas certezas de experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de certa fraquezas saudáveis. Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão. Suas explicações de cada coisa são sempre completas, e muitas vezes num sentido puramente racional, satisfatórias. Ou então, mais exatamente, a explicação do louco, se não é convincente, pelo menos é irrespondível. E isso se pode ver em dois ou três dos casos mais comuns em loucura. Se um homem diz, por exemplo, que o resto da humanidade conspira contra ele, não podemos discutir senão dizendo que todos os homens negam unanimemente que sejam conspiradores; ora, se eles o fossem, diriam exatamente isso. A explicação do doido, portanto, está de acordo com os fatos tão bem como a nossa. Se um homem diz que é o legítimo rei da Inglaterra, não será satisfatório dizer-lhe que as autoridades existentes o consideram doido; porque se ele fosse o rei da Inglaterra as autoridades usurpadoras não teriam melhor coisa a dizer. Ou então, se um homem diz que é Jesus Cristo, não adiante responder que o mundo nega sua divindade, porque o mundo nega a divindade de Cristo. A seguir, ainda no mesmo extraordinário capítulo, Chesterton apresenta as duas características da demência: uma completação e uma retratação. Uma completação pequena. Uma exaustão. Um círculo. Ele bem sabe que a inteligência humana tem seus limites e que a liberdade que ela possa gozar tem, digamos assim, o prêmio (ou o preço) de uma limitação. Esse ponto constitui a cúpula de todo o arcabouço de idéias. Mas antes de chegarmos a ele observemos que a filosofia materialista é mais limitadora e impõe mais restrições do que qualquer religião. O cristão tem plena liberdade de crer que existe no Universo uma ordem estabelecida e um inevitável crescimento, mas ao materialista não é permitido admitir dentro de sua imaculada máquina a mais ligeira nódoa de espiritualidade ou milagre. O pobre materialista que é o Sr. McCabe não tem permissão de crer no mais minúsculo diabinho escondido numa pimpinela. O homem normal sabe que tem em si um pouco de animal, um pouco de demônio, um pouco de santo e um pouco de cidadão. Ainda mais, o homem realmente normal sabe que tem em si um pouco de doido. Mas o mundo do materialista é perfeitamente sólido e simples; como também o doido está perfeitamente convencido de que é normal. Os materialistas e os doidos nunca têm dúvidas. Mais adiante, referindo-se ainda à libertação de que se gaba o materialista: É absurdo dizer que estamos progredindo em liberdade quando só nos utilizamos do livre pensamento para destruir o livre arbítrio. Os deterministas vieram para amarrar e não para afrouxar. Fazem bem em chamar à sua lei "cadeia" da causalidade, pois nunca houve pior cadeia do que essa para acorrentar um ente humano. Podem usar a linguagem da liberdade, se quiserem, na doutrina materialista, mas é claro que ela é tão inaplicável a essa doutrina como, de um modo geral, ao homem aferrolhado no hospício. Podem dizer, se quiserem, que o homem é livre de se considerar um ovo cozido. Ma o fato mais maciço e mais importante, seguramente, é que, sendo um ovo cozido, ele não terá liberdade de comer, beber, dormir, passear ou fumar um cigarro. Do mesmo modo eles podem dizer, se quiserem, que o ousado pensador determinista tem a liberdade de descrer na realidade da vontade; mas o fato mais importante e mais maciço é que, nesse caso, ele não é livre para louvar, maldizer, agradecer, justificar, implorar, punir, resistir às tentações, promover arruaças, formar bons propósitos no Ano-Novo, perdoar os pecadores, apostrofar os tiranos ou até para dizer um simples "obrigado" a quem lhe passar a mostarda. Agora, deixando esse tipo de materialista que troca todas as liberdades pela liberdade de descrer, encontramos um personagem ainda mais sombrio: Há um cético mais terrível do que aquele que acreditava que tudo começou na matéria; há um que acredita que tudo começou nele mesmo. Já não é dos anjos e dos demônios que este duvida, mas dos homens e das vacas. Para ele, os próprios amigos não passam de uma mitologia que ele próprio

construiu. Criou seu pai e sua mãe. Essa horrível fantasia contém qualquer coisa atraente para o egoísmo mais ou menos místico de nossos dias. Aquele editor que pensava que os homens vencem quando crêem em si mesmo; aqueles que andam em busca do Super-Homem e o vão procurar no espelho; aqueles escritores que falam em modelar a própria personalidade em vez de criarem vida para o mundo; toda essa gente está realmente a dois dedos desse vácuo horroroso. E então, quando todas as coisas boas desse mundo estiverem enegrecidas como uma mentira; quando os amigos se esvaírem em fantasmas e os alicerces do mundo ruírem; então, o homem que não crê em nada e em ninguém, sozinho em seu pesadelo, deverá ser marcado com a vingadora ironia da divisa individualista. As estrelas serão meros pontos no negrume de seu cérebro; a face de sua mãe será somente um esboço de seu insano lápis nas paredes de seu cárcere. Mas em cima da porta de sua cela deve ser escrito, com terrível verdade: "Ele crê em si mesmo". Agora, depois de uma longa caminhada pelos infernos da demência, onde encontramos as diferentes perturbações que afligem o espírito, sob as formas das filosofias materialistas e idealistas (que nem sempre, aliás, se revestem dos aspectos clínicos oficialmente estabelecidos, e muitas vezes conduzem, não ao manicômio, mas aos altos postos da política racionalista), agora é justo que façamos um inventário e que perguntemos: "Se é isso que enlouquece o homem, o que será que mantém a saúde do espírito?" E aqui responde Chesterton: É a idéia do mistério que conserva o homem são. O mistério é a saúde do espírito; sua negação é a loucura. E aqui chegamos ao núcleo principal do seu pensamento e da sua mensagem. Esta é a delicada e esquisita linha que separa o lúgubre Hanwell [*] daquele outro país da imaginação, da poesia e da Fé, daquele "ensolarado rincão do senso comum" que vamos encontrar no admirável capítulo A Ética do País das Fadas. E esta é a primeira idéia-mestra de Chesterton: ou o mundo conserva a noção do mistério, ou se transforma num imenso pátio de hospício. E essa idéia, como as outras, não é sua. É antiga como o mundo; e é no plano sobrenatural a idéia central da liturgia católica: o Sacrifício da Missa é o centro da vida cristã, e o "mistério da Fé" (mysterium fidei) é o centro do sacrifício do altar. O autor, que mais de uma vez confessou ter descoberto o que já havia sido descoberto, tem entretanto um mérito, o único, aliás, a que pode pretender um autêntico pensador: não foi ele que descobriu o sol, não foi ele que inventou a luz que banha sua rica palheta fazendo o cobalto ser azul e o cádmio amarelo; mas foi ele, em larga medida, que soube aceitar essa luz, servir-se dela como de uma dádiva, e que soube olhar em volta, maravilhado, para descobrir e redescobrir a beleza oferecida de todas as coisas. Cedo-lhe mais uma vez a palavra para que ele termine este capítulo como terminou seu magistral capítulo O Maníaco: O lógico mórbido procura tornar tudo lúcido, e consegue tornar tudo misterioso. O místico admite que uma coisa seja mistério, e tudo se torna lúcido. O determinista constrói a teoria clara da causalidade, e descobre então que não pode dizer um "faça o favor" à sua arrumadeira. O cristão permite que o livre arbítrio seja um sagrado mistério, e por isso suas relações com a arrumadeira ganham uma cintilante e cristalina claridade. Ele coloca a semente do dogma numa escuridão central; mas os ramos brotam e crescem em todas as direções com a natural pujança da saúde. Como já tomamos o círculo para o símbolo da razão e da loucura, tomamos agora a cruz para o símbolo do mistério e da saúde. O budismo é centrípto, mas o cristianismo e centrífugo: ele explode. Pois o círculo, sendo embora perfeito e infinito em sua natureza, está fixado para sempre no seu tamanho: nunca poderá ser maior ou menor. Mas a cruz, apesar de ter em seu centro uma colisão e uma contradição, pode estender sempre os seus quatro braços sem que a forma se altere. Porque tem um paradoxo em seu coração, pode crescer sem mudar. O círculo gira sobre si mesmo e está atado. A cruz abre os braços aos quatro ventos como um indicador de caminhos para os viajantes livres. Somente os símbolos podem ter algum valor neste profundo assunto; tomarei, pois, um outro símbolo, tirado da natureza física que exprimirá suficientemente bem o verdadeiro lugar do mistério perante o gênero humano. A única coisa criada que não podemos olhar é aquela em cuja luz vemos todas as coisas. Como o sol ao meio-dia, o mistério esclarece todas as coisas pelo fulgor de sua vitoriosa invisibilidade. O intelectualismo isolado é como o luar, porque é uma luz sem calor, uma luz secundária refletida por um mundo morto. Os gregos tinham razão quando tomaram Apolo como deus da imaginação e da saúde, fazendo-o igualmente patrono da poesia e da medicina. Falarei mais adiante

de um credo especial e dos dogmas necessários. Mas esse transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem tem, primariamente, algo da posição do sol no firmamento. Temos consciência dele como de uma esplêndida confusão; é qualquer coisa brilhante e informe, ao mesmo tempo clarão e mancha. Mas o círculo da lua é tão claro e tão inequívoco, tão recorrente e tão inevitável, como um círculo de geômetra no quadro-negro. Porque a lua é completamente racional; a lua é mãe dos lunáticos, e todos eles deu o seu nome. (G. C., in Três Alqueires e um Vaca, 6a. edição, Agir, 1961, Rio de Janeiro. Título original do capítulo: Apolo)

Suicídio e martírio Nos últimos dias de agosto, como se não bastassem os acontecimentos desse mês que nos pareceu ter trezentos dias, correu entre nós um boato que nos deixou sacudidos entre o gáudio e a tristeza: as irmãzinhas do Père Foucald, que se achavam no sertão de Goiás, vivendo entre os índios o obscuro esplendor da virgindade e da paciência, como Santa Rosa de Lima, teriam sido trucidadas pelos tapirapés ou por seus ferozes inimigos. A morte horrível das duas moças, cujas irmãs tantas vezes visitamos na casinha do morro de São Carlos, parecia-nos um sinal do céu, uma réplica que o sertão do Brasil dirigia à capital do Brasil, nesse diálogo de violências que nos encheu o mês de agosto, uma réplica de Deus a nos dizer que seu pendão orvalhara a nossa terra com o sangue dos mártires... Ora, revolvia eu esses pensamentos de tristeza e de júbilo, quando ouvi alguém dizer, com pena das moças, que aquela missão em Goiás era um suicídio. Lembrei-me que dias atrás ouvira dizer, de um homem que se matou, que era um mártir. E quedei-me a pensar que a desordem política e econômica que nos infelicitara era ainda maior do que supunha, a julgar por essa desordem do vocabulário. Admito que aproximem o suicídio do martírio. Há realmente entre os dois casos um ponto de contato: ambos evidenciam um certo desdém pela vida. Mas esse ponto de contato marca oposição e não semelhança: suicídio e martírio opõem-se com dois ângulos de vértice comum. “Obviously a suicide is the opposite of a martyr”, diz Cherterton. E acrescenta: “O mártir é um homem que de tal modo cuida de uma coisa exterior que chega a esquecer-se de cuidar da própria vida. O suicida é um homem que de tal modo despreza todas as coisas que deseja exterminá-las”. E ainda: “O suicídio não é só um pecado, é o pecado. É o definitivo e absoluto mal, a recusa total de interesse pela existência, a recusa de cumprir o pacto de lealdade com a vida. O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens. De certo modo, e na medida que está ao seu alcance. Ele passa uma esponja em todo o universo. Seu ato (considerado simbolicamente) é pior que o estupro e a destruição por dinamite, porque destrói todos os edifícios e insulta todas as mulheres. O gatuno tem grande interesse por pedras preciosas. O suicida não: e este é o seu crime. Ele não se deixa tentar, nem pelas corruscantes pedrarias da Cidade dos Céus. O gatuno homenageia as coisas que rouba, embora seja descortês com o seu dono; o suicida, ao contrário, injuria as coisas, uma por uma, até por não querer roubá-las. Profana as flores dos bosques com a recusa de viver, ao menos por amor delas. E assim, não há em todo universo uma criatura, ínfima que seja, para a qual a morte do suicida não soa como um escárnio. Quando um homem se enforca numa árvore, as folhas deveriam cair em sinal de reprovação, e as aves deveriam abandonar seus ninhos em sinal de indignado protesto, porque cada folha e cada pássaro sofreu uma afronta pessoal”. Há coisas terrivelmente desiguais que se assemelham, que tem um ponto em comum. O fariseu se assemelha ao piedoso. O impostor que distribui copos de leite em vésperas de eleição tem um ponto comum com o caridoso que visita os pobres. Assim também o suicida e o mártir. Encontram-se, mas o ponto de encontro é um cruzamento, um sinal de contradição. E o cristianismo que trouxe um novo gume para separar o bem do mal nas suas mais terríveis aderências, marcou sempre com ênfase, com exagero que toma às vezes formas espetaculares e chocantes, o abismo que separa o dócil testemunho cristão do insolente pagão. O mártir, o verdadeiro mártir, não dá seu sangue por achar que a vida não vale a pena ser vivida, não se entrega ao carrasco por desgosto ou por enfado. Perpétua e Felicidade são moças cheias de vida e de alegria. Gostam de flores e de frutos. Cantam e riem.

Perpétua tem um filhinho recém-nascido; é moça; é rica. Mas não pode fazer o que dela exige o tribunal pagão: não pode renegar seu grande amor, seu Senhor e seu Deus. Não pode pronunciar uma palavra de negação e fazer um gesto de idolatria. Ela é testemunha de Cristo. Sê-lo-á até o sangue, com um gesto que faça ou palavra que diga os juizes mandam-na embora com prazer. Mas Perpétua, amando a vida, não pode renegar o Autor da vida. Se cobram tão alto preço por seu testemunho ela o pagará, aproximando-se mais d’Aquele que por ela pagou preço ainda mais alto. Dará ao Pai do céu seu rubro sangue, como ao filhinho da terra deu seu níveo leite — com alegria e com amor. Na verdade, o mártir não despreza a vida. Ao contrário, valoriza-se de tal modo que a torna digna de ser oferecida a um Deus. Martírio é oblação, oferecimento, dádiva; suicídio é subtração e recusa. O mártir é testemunha de Cristo; o suicida será testemunha de Judas. No sentido estrito, martírio é testemunho de fé com preço de vida. Não constitui vocação universal, a não ser que se alargue a significação do termo, conforme a passagem do Evangelho onde o Senhor nos diz: “sereis minhas testemunhas”, que em grego equivale a dizer: sereis meus mártires. A via normal de santificação é uma valorização sobrenatural de todos os atos da vida, e, por conseguinte, uma supervalorização das pequenas coisas quotidianas. O martírio será uma especial e extraordinária condensação, uma espécie de resumo densíssimo, que Deus exige de alguns que Ele mesmo designa. Por causa da singularidade dessa vocação, e para bem marcar sua procedência sobrenatural a tradição cristã que sempre teve horror ao suicídio, manifestou repetidamente sua aversão à temeridade e à imprudência. Cipriano que mais tarde terá glorioso martírio respondendo à acusação que lhe fizeram de fugir à perseguição, ensina que o autêntico testemunho de sangue é um dom de Deus. Adverte contra o que também Tertuliano chamava a “jactatio martyrii” e escreve que “a disciplina proíbe entregar-se por si mesmo” (Ep. LXXXIII, 2). São Gregório Nanzianzeno (Or. XLIII in laudem Basilii)) ensina também que o cristão não deve exporse à perseguição tanto para poupar um crime aos infiéis como por considerar sua própria fraqueza. Na mesma linha se encontra a advertência contida na Carta Circular à Igreja de Smirna onde Santo Irineu conta o martírio de São Policarpo (A Ordem, Outubro de 1941). Depois de louvar Germânico, diz assim a epistola: “Um apenas, chamado Quinto, que era frígio e recentemente chegado da Frigia ao ver as feras acovardou-se. Este, justamente, tinha desafiado espontaneamente o poder público e incitado outros a fazerem o mesmo. E, não resistindo às instâncias repetidas do procônsul, fez juramento e ofereceu sacrifício aos ídolos. Eis porque, irmãos, não louvamos aqueles que se entregam espontaneamente, de mais a mais, não é isso que ensina o Evangelho (cf. Mat. 10-23; Jo. 8-59; 10-39). Por esses exemplos, que poderíamos multiplicar, vê-se bem o cuidado que a tradição católica teve nos dias mais difíceis para esclarecer uma nítida diferenciação entre o manso e humilde mártir e o voluntarioso ou fanático que, por si mesmo, ou até por virtude natural, corre ao encontro do perigo. Por mais forte razão evidencia-se o abismo que separa o suicida do mártir. Há exemplos de temeridade e de aparente suicídio, como o de Sansão que morre com seus inimigos; e até exemplos de virgens mártires que preferiram a morte à perda da virgindade, como Santa Pelágia e Santa Sofrônia. Julgada boa a intenção dessas virgens, nem por isso a tradição católica reprova com menos insistência a temeridade. Santo Agostinho, no Livro I da Cidade de Deus, tece longos comentários em torno do suicídio, e entre outros escolhe o exemplo da pobre dama Lucrécia da antiga Roma. Profanada no corpo pela luxúria do filho de Tarquínio, ela revelou o fato a seu marido Colatino e a seu parente Brutus, exigindo deles um julgamento de vingança. Mas não esperou a punição do criminoso e matou-se. Aos que exaltavam a virtude de Lucrécia, Santo Agostinho responde dizendo que a casta e inocente Lucrécia foi assassinada. “Que castigo vossa severa justiça reserva então para o assassino? Mas esse assassino é Lucrécia, essa tão enaltecida Lucrécia; foi ela que derramou o sangue inocente da virtuosa e casta Lucrécia. Na Cristandade medieval o horror ao suicídio toma formas que podemos julgar brutais, mas que revelam o grau de aversão por essa prática tão afastada da moral cristã. A memória do suicida era proposta à execração e o seu cadáver era arrastado pelas ruas e depois pendurado pelos pés. Na

Inglaterra o suicídio era considerado uma felonia. O cadáver era deixado sem sepultura “at the crossroads and a stake driven through the body”. Os bens do suicida eram confiscados em proveito da Coroa. Na França, conforme as leis de Luís XI de 1270, art. 88, deviam também ser confiscados os bens do suicida: “Si il avenait que aulcun hons se pendist, ou noiast, ou s´occist em alcune manière, si müeble seraient au baron et aussi de la fame”. O artigo 586 do antigo costume bretão diz que “si aulcun se tue à son escient, Il doit être pendu et trainé comme meurtrier”. Eram sem dúvida brutais os legisladores da Idade Média, mas essa brutalidade serve para mostrar o horror que uma civilização cristã tem pela insolência de quem usurpa um direito de Deus. Convém notar, entretanto, que a moral cristã, embora sem aquelas violentas manifestações exteriores, guarda a mesma proporção que tinha na Idade Média. O suicídio é apontado como um dos mais graves pecados que um homem pode cometer. Esse juízo, evidentemente, versa sobre o dado objetivo e exterior deste. O julgamento em última instância que supõe o conhecimento das disposições interiores pertence a Deus. Pode acontecer que o suicida se arrependa no seu último instante, como foi revelado num caso especial ao Cura d’Ars. Pode ser, e esse deve ser o caso mais freqüente: que o suicida seja um louco, um doente, e portanto, um irresponsável. Essa é a hipótese mais favorável a tamanho desatino, e o melhor que se pode dizer de um suicida, nessa suposição é que morreu de doença como morreria de um enfarto. Glória nunca há em se matar. Ou fica nulo o ato, sem nenhum teor moral, ou fica terrivelmente negativo, o mais negativo dos atos humanos. * O boato da morte das petites soeurs foi desmentido. Elas estão vivas e continuam o incruento testemunho entre os bons e caluniados tapirapés. Dispostas, sem dúvida, a imitar o Cristo na cruz, elas continuam a imitá-lo obscuramente na Sua vida escondida em Nazaré. (Diário de Notícias, 12 de setembro de 1954.)

Um aspecto do freudismo Roland Dalbier, num livro que se tornou clássico (O Método Psicanalítico e a Doutrina de Freud, tr. José Leme Lopes, Agir) começar por uma distinção entre a parte científica e experimental da descoberta de Freud, e a parte filosófico-doutrinária, que não chega a ser uma filosofia por sua espantosa falta de coesão racional, mas que os chamados "ortodoxos" (como se houvesse na ciência lugar para ortodoxia!) acompanham com religiosa fidelidade. "O freudismo — diz o mesmo Dalbier — é uma dogmática." Na verdade Freud pretendeu filosofar. Malgrado suas repetidas declarações em contrário, onde até se advinha um certo desprezo pelas especulações metafísicas, Freud fez metafísica. E nessa parte de sua obra revelou uma incapacidade que muitas vezes tangencia o domínio da vulgar inépcia. Consideremos, por exemplo, o processo da "sublimação" pelo qual a energia sexual desviada dos obstáculos da censura se manifestaria disfarçada, transformada em atividades psíquicas superiores chamadas culturais ou espirituais. O mestre vienense, depois de ter descoberto os jogos de força que explica os tiques e os atos falhados, pretende estender o diagrama até a zona dos mais altos feitos humanos, como se houvesse homogeneidade de natureza e de causas entre o homem que coça o bigode e o homem que compõe os concertos de Brandenburgo. O pensamento de Freud, nesse capítulo, não tem a tranqüila nitidez que se encontrará mais tarde entre os discípulos ortodoxos. É sempre assim. O gênio que tem o vigor para descobrir coisas até então escondidas, e que se entrega à tentação das generalizações grandiosas, salva-se pela incoerência. Corrige-se. Hesita. Desdiz-se. Mas o medíocre que o segue não tem a mesma sensibilidade: seu vigor consiste em ser coerente e nítido no erro. O medíocre tem a capacidade de ser lógico no desacerto, o brio de ser fiel ao disparate. Assim são os marxistas e freudianos ortodoxos. Mas aqui, sem intenção de cultivar paradoxos, eu direi que os seguidores medíocres são sempre os que têm razão, isto é, são os que interpretam melhor os erros do mestre, forçando-os até as últimas conseqüências. O pensamento de Freud, dissemos, é hesitante no que concerne ao mecanismo da sublimação, mas através das reprises e das ressalvas, subsiste o bastante para nos autorizar a dizer que ele considerava homogêneas com o instinto sexual as manifestações psíquicas superiores. Se em algumas passagens o processo é descrito como uma ativação ou estimulação de funções psíquicas préexistentes, noutros lugares, mais brutalmente, o processo é apresentado como se a energia primitiva engendrasse, sob disfarce, as formas de atividade superiores. No livro em que estuda as reminiscências infantis de Leonardo Da Vinci, diz assim: "A observação da vida cotidiana nos mostra que a maioria dos homens consegue derivar partes consideráveis de suas forças instintivas sexuais em favor de sua atividade profissional. O instinto sexual se presta muito para essas contribuições, pois é dotado da faculdade de sublimação, isto é, capaz de abandonar seu fim imediato em favor de outros fins não sexuais e eventualmente mais elevados no conceito dos homens". (Un souvenir d´enfance de Léonard De Vinci, trad. M. Bonaparte, pg. 52). A parte por mim sublinhada mostra que Freud quer evitar o julgamento de valor deixando-o por conta do consenso. Não é ele, cientista, psicólogo, que reconhece a superioridade real, a superioridade metafísica daqueles fins, são os homens, é a cultura, será até, digamos assim, a força de um preconceito que estabelece a tal superioridade. Com essa pequena cautela o psicólogo tem as mãos livres para homogeneizar o efeito com a causa. É aliás inerente ao pensamento freudiano a idéia de um abismo entre a manifestação das coisas, visível ao homem comum, e a fisionomia das causas, visíveis somente para os doutos. O mundo dos fenômenos é um mundo de disfarces onde nada é o que parece ser. Todo analitismo, ou toda investigação polarizada pela hipertrofia das causas materiais, chegará a esta mesma óbvia conclusão: há entre a fisionomia do todo e os aspectos das partes uma diferença prodigiosa. O físico dirá — como já disse o Edington — que sua mesa só é mesa, sólida, estável, para o olho vulgar. Para o cientista ela é uma nuvem de elétrons e prótons. A idéia de chocar o sensocomum e de mostrar que a face dos fenômenos tem uma epiderme diferente dos nervos e ossos que a

sustentam não é de Freud, nem é nova. Em geral, todos os cientistas, e principalmente os tolos, gostam muito de chocar o senso-comum com a exibição das vísceras dos fenômenos. Em Freud, porém, o vezo tem significação mais profunda e revela o pessimismo radical de sua metafísica disfarçada também, já que tudo é disfarçado. Em Freud eu diria que há uma exorbitação do erro nominalista que trouxe a cisão entre a inteligência e o ser. O ser, para o psicólogo vienense, é algo que tem um novo transcendental de perfídia e de deslealdade. É essencialmente enganador. Mas o que mais espanta na filosofia freudiana é a grosseria com que é tratada a noção de causa. O exemplo da sublimação é frisante. Se a observação dos fatos demonstra, no campo do microscópio psicanalista, a presença de matizes, de lembranças marcadas de sexualidade, o psicólogo, com imperdoável precipitação, afirma a causalidade. Um estudante de filosofia de alguma universidade do século XIII que ouvisse tal raciocínio, piscaria o olho para o colega próximo e diria: "cum hoc ergo propter hoc". Com isto, logo por causa disto, é o que traduz essa fórmula cunhada para denunciar o erro elementar de julgamento que confunde concomitância com causa. Todos os casos que ilustram o fenômeno da sublimação só provam que o homem tem a capacidade de elevar o potencial, o nível ontológico de uma experiência primitiva e que a manifestação em nível elevado traz certas marcas do nível inferior. E daí? Concluirei que o maior sai do menor, ou que um ser possa sozinho por sua própria capacidade potencial, galgar o nível entitativo superior? "Nada pode passar da potência ao ato, a não ser por algo que já seja em ato", murmuraria ao nosso ouvido, e em latim, o estudante medieval. Os mesmos fenômenos descritos por Freud seriam salvos com uma explicação infinitamente mais lógica: o que se passa na sublimação é um processo de erguimento ontológico, um processo de espiritualização semelhante àquele que no dinamismo do conhecimento, por ação do intelecto agente, espiritualiza o conteúdo da imagem dotando-a de inteligibilidade e de universalidade. Como empirista, Freud não podia atinar com esse processo de espiritualização promovida por energias espirituais em ato e capazes de produzir a elevação da experiência primitiva. Situa-se pois em pólo oposto a causa verdadeira do processo, e não é de admirar que no resultado da sublimação subsista o gosto, a cor da matéria informada. Basta dizer que a energia transformadora é sexuada e não sexual, uma vez que provém de um espírito vivendo em condição carnal. Salva-se assim o fenômeno sem ser preciso agredir o bom-senso e assassinar a razão. ("Diário de Notícias", 27/05/1956)

Um velho leigo interroga... “Pode alguém ignorar a doença profunda e grave que nestes tempos, muito mais do que no passado, devasta a sociedade humana e que dia a dia agravada, a corrói até a medula e a arrasta à ruína? Essa doença é o descaso de Deus e a apostasia; e nada, sem dúvida alguma, leva mais depressa à ruína, segundo esta palavra do Profeta: “Eis que perecerão os que se afastam de Vós”. São Pio X, “E Supremi Apostolatus”, 1905. CAPÍTULO I DE "O SÉCULO DO NADA" UM VELHO LEIGO INTERROGA... (Sim, um velho leigo, olhando em volta de si, sai pelo espaço e pelo tempo a fazer interrogações). Num dos seus últimos livros, Jacques Maritain vestiu-se de camponês, e passou a interrogar-se, como diz na epígrafe que adotou: “Un vieux laic s’interroge à propos du temps présent”. Proporções guardadas, minha situação pela idade, pela condição de leigo, e pela perplexidade, é semelhante a do grande filósofo. Assinalo, porém, duas diferenças. A primeira refere-se à caracterização com que compareço diante do respeitável público: em vez da blusa e do tamanco de campônio, visto-me de engenheiro, o que vale dizer que me visto do que nunca me despi inteiramente. Talvez tenha esboçado o “strip tease” profissional, mas sempre conservei, a tempo e contratempo, minha qualidade de engenheiro que agora invoco para oferecer ao leitor as garantias de objetividade e de indefectível docilidade ao real, que os intelectuais de nosso tempo dificilmente podem oferecer. De início eu poderia dizer que a docilidade ao real deve ser apanágio dos sábios, dos teólogos ou filósofos; mas acontece que vários abalos de terra, incêndios e inundações de nosso “brave new world” trouxeram grande desprestígio para os altos níveis da grande sabedoria, de onde desalojaram a supracitada docilidade, deixando em seu lugar um estranho e desdenhoso desembaraço em relação ao também supracitado “real”. Daí o garbo com que aqui compareço com meu título de engenheiro, e mais especialmente de engenheiro que sempre soube usar suas mãos com as diversas ferramentas dos vários ofícios. Sei serrar, limar tornear e aplainar. Até hoje ainda sou eu que mudo os fusíveis e efetuo em casa os pequenos consertos que não exijam de mais de minhas velhas coronárias. Esse modesto diploma que aqui apresento vale para provar que longamente cursei a escola da pequena sabedoria na qual aprendemos que não só com a cabeça pensa o homem, mas com os pés para tê-los no chão e com as mãos para sentir a primeira verdade das coisas. Nesta escola aprendi que o pilriteiro só dá pilritos, e insiste em só dar pilritos ainda que o chamemos de “Crataegus oxyacantha”; como também aprendemos que a água molha, o sol alumia, o fogo queima, e daí, por duas ou três ilações, facilmente descobrimos que o marxismo, além de ser uma estupidez que só produz marxistas, é a maior impostura da história do sistema planetário. E, além disso, a pequena sabedoria presta-se a ser estribo para outra maior, e nos ensina que Deus é Deus, e de Deus não zomba, ou então, caprichando diríamos: “Deus non irridetur”. Tempos atrás, escrevia eu um artigo sobre vários pronunciamentos do robusto Cardeal Suenens, e afligia-me com os disparates do purpurado quando ouvi da sala contígua os rumores que fazia um eletricista na perseguição de um insidioso curto-circuito em nossa instalação. Honrado eletricista! Pensei eu com meus botões, você sabe que tem de obedecer à natureza das coisas, sabe que deve tratar o cobre de uma maneira, o chumbo de outra, e o plástico isolante de uma terceira maneira. Cada

coisa é o que é, e o bom eletricista sabe, por outras palavras mais singelas que deve ser dócil ao real, que deve ser atento, e sobretudo sabe que os equívocos têm conseqüências. Se trocar os fios, se ligar errado, ele logo verá o clarão e ouvirá o estrondo do curto-circuito, e logo terá de mudar os fusíveis. O Cardeal Suenens, pelo que se depreendia facilmente de sua entrevista, não parece saber que os erros têm conseqüências, e que há clarões e estrondos muito mais graves do que o do curto-circuito caseiro. Devo agora assinalar a segunda diferença prometida nas primeiras linhas deste tópico. É a seguinte: o camponês do Garona é um velho leigo que se interroga sobre os tempos que correm. Minhas interrogações não são reflexivas. Pode ser que nas últimas páginas desta obra eu também entretenha com meus botões o diálogo de perplexidade; mas antes disso, o meu propósito é sair por aí formulando interrogações, perguntando, aos vivos e aos mortos, o que é que houve? Como? Por quê? Quem? Onde? E para isto, para tirar ainda a tempo o enorme atraso em que estive a vida toda sobre o que estava acontecendo nos vários compartimentos da história recente, para recompor toda uma coleção de histórias mal contadas, de que este século é particularmente fértil, eu precisava entrevistar centenas de autores e ler centenas de livros fora da fremente e estonteante atualidade. Precisava, por exemplo, saber que cartas Charles Maurras escreveu a Pio XI e que paternais cartas Pio XI escreveu a Charles Maurras. E muitas outras coisas. Ora, para esse trabalho tive a sorte de entrar em regime de meiaaposentadoria (digo meia-aposentadoria porque ainda estou na ativa para boa parte dos deveres de estado) com um capital de disposição e de saúde que me permite manter há quase dez anos a média de oito e dez horas por dia de estudo e de redação. Creio que nunca estudei tanto em minha vida. Se com tudo isto a obra não sair a contento de quem a encomendou, não posso queixar-me de nada e de ninguém, a não ser de meus pobres limites. E aí vai o estudo que ofereço ao leitor: nem sempre será ameno e fácil, às vezes parecerá fastidioso, sobretudo nos tópicos em que procurei mais exata concatenação de idéias. Feitas todas as contas, apego-me ao provérbio dos pilriteiros: fiz o que pude. Entrevistando o Velho Camponês do Garona Tendo professado, ao longo dos quarenta anos de luta e pregação, uma fidelidade de discípulo à obra de Jacques Maritain, a quem tanto devo, e a quem me sinto ligado por laços muito afetuosos e muito desligados dos jogos de interesses deste mundo, tenho, de começar as retratações prometidas no subtítulo desta obra pelos pontos em que hoje me desligo, não no pensamento tomista do autor de “Dégres du Savoir” e de “Trois Réformateurs”, mas das posições tomadas em várias circunstâncias; não tanto de sua filosofia política, mas do uso prático que dela fez, ou de sua “política filosófica”, como diz Henry Bars. Depois de ler o que li, e de reler “Le Paysan de la Garonne”, um de meus sonhos, desvairadamente sonhado, foi o de procurar Maritain na sua última estação para entreter com ele mil e duzentas conversas sobre todas essas coisas. E não escondo o lado mais fantástico do sonho: o de conseguir na milésima duocentésima conversa, à feição de circunstâncias especialmente favoráveis, do mestre tão admirado e tão amado, algumas importantíssimas retratações. Considerando que a vida neste vale de lágrimas mais separa do que une, ou bem compreendendo que meu sonho nem no Céu se realizará, porque, se a misericórdia de Deus lá nos unir, estaremos ocupadíssimos em admirar e louvar Deus três vezes santo e totalmente livres dos cuidados e retratações, reafirmações e interrogações; e sobretudo considerando a brevidade desta vida, concluo que devo eu fazer em meu próprio nome as retratações que julgo exigidas pela verdade. Mas bem sei que tudo o que eu disser é intransferível como retratação; e não me custa muito imaginar o brio gaulês com que Maritain repeliria tal impertinência.

Preocupa-me, ademais, o fato de estarmos ambos, como também Alceu Amoroso Lima, com o tempo muito medido. Para que eu pudesse desafogadamente escrever o que planejei, no tom habitual de minha argumentação, seria preciso que todos sobrevivêssemos ainda alguns anos. Indo eu primeiro, desaparece o problema; morrendo Maritain amanhã ou depois, ser-me-á difícil, por algum tempo, prosseguir esta obra. Mas deixemos esses cuidados na mão de Deus, e cuidemos nós da tarefa de hoje. Voltemos, pois, a “Le Paysan de la Garonne”, que é um livro quase heterogêneo com a restante grande obra escrita do filósofo, e que de certo modo revela e realça as posições tomadas em face da crise da “Action Française”, da guerra civil espanhola e da infiltração marxista na esquerda católica francesa a partir da década de 30. Começo por lembrar, como já o fez Alfredo Lage em excelente artigo1 que todos nós nos alegramos, e até publicamos nosso júbilo quando apareceu, com grande sucesso, o livro que gregos e troianos esperavam. Pareceu-nos na primeira leitura uma obra vigorosamente “anti-progressista” ou anti-ISTO. E todos os dispositivos de “infalibilidade” de que dispomos logo confirmaram nossa primeira impressão. Tristäo de Athayde, por exemplo, logo escreveu um artigo2 no qual, armado de um curioso diploma de “Amador de idéias gerais”, passava a criticar em Maritain o “tomista de estrita observância”, como se Maritain só tivesse rejeitado o teilhardismo por motivos disciplinares. Naquele tempo, 1965, Teilhard de Chardin passava pelo zênite de nossa cultura tropical. As livrarias estavam abarrotadas do “pointomega”, “noosfera”, “amorização”, e outras tantas invenções. Creio que todo o debate em torno dessa obra e desse sucesso poderia reduzir-se a este sucinto diálogo: — Teilhard de Chardin? Que tal? — Vende-se muito. E a mágoa de Tristäo de Athayde se explica no próprio artigo: em 1962 escrevera ao filósofo, então em Toulouse, enviando-lhe um artigo seu em que punha Teilhard de Chardin como continuador e alargador de Tomás de Aquino. Recebeu do mestre uma carta com um P.S. no qual Maritain rejeitava categoricamente a validez de tal aproximação e explicava a Amoroso Lima que Teilhard de Chardin não era um autor sério. Sua obra não passava de “fábula e moeda falsa”. Dois anos antes, e sem necessidade de incomodar o mestre, eu já escrevera vários artigos dizendo por extenso a mesma coisa e até usando a imagem paulina “cócegas nos ouvidos” que Maritain três anos depois usou em “Paysan de la Garonne”. Parecia, pois, que o livro vinha ao encontro de nossos desejos e aborrecia os progressistas. Entusiasmado, escrevi um longo artigo em “O Estado de São Paulo” aplaudindo incondicionalmente o velho camponês.

Maritain Analisa a Crise Católica

Como convém a um filósofo, Maritain antes de procurar entender a Coisa na linha da causa eficiente, ou das correntes históricas, procura aprender o que a coisa é, como é, na linha da causalidade formal. De início, e depois de uma ação de graças por todas as “novas” riquezas trazidas pelo Concílio, Maritain assinala a extensão da “febre neomodernista”, muito contagiosa, pelo menos nos meios “intelectuais”, perto da qual o modernismo do tempo de Pio X foi apenas uma “simples gripe alérgica” (pgs.16 e seg.). Logo depois (pg.25) fala nos pruridos auriculares a que se refere São Paulo (II Tim. IV, 3) e que nós tantas vezes invocamos em nossos artigos sobre Teilhard de Chardin. Abre então um belo capítulo sobre a idolatria da atualidade ou “cronolatria epistemológica”. Estamos tocando a medula do “progressismo”. No capítulo III, “O Mundo e seus Aspectos Contrastantes”, tenta alguns “approaches” do grande problema Igreja-Mundo, e depois de vários parágrafos sobre a ambivalência do mundo e sobre vários equívocos a que mais tarde voltaremos, chega no parágrafo 5 à grotesca e idolátrica subserviência dos novos católicos diante do mundo que o filósofo descreve como um “agenouillement devant le monde”. Sim, a “brave new Church” nos aparece de joelhos diante do mundo. E Maritain observa: “Que vemos nós por toda parte? Em amplos setores do clero e do laicato — mas é o clero que puxa o cordão — se acaso alguém pronuncia o termo “mundo”, logo se acende um fulgor de êxtase nos olhos do auditório”. E com boa cólera o velho camponês exclama: “Em resumo, só existe a terra. Completa temporalização do cristianismo” (pg.88). Estamos diante do constitutivo formal da grande heresia do século, como dirá Madiran. Convém lembrar que toda a essência do cristianismo, que toda a honra do Cristo Senhor, se possa usar tal expressão, reside na transcendência de sua obra, ou da “nova criação” sobre a “velha criação”, ou na especificidade dimensão nova de sua missão neste mundo; e que é sempre nas passagens em que seus discípulos “secularizam”, ou puxam para baixo a força de seu ensino, que Nosso Senhor mais duramente lhes fala. A mais instrutiva passagem é aquela em que Pedro, o papa Pedro I, pronuncia a primeira definição da Igreja: “Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mat.XVI, 16) e ouve um elogio que mais parece uma advertência: “Bem-aventurado és, Simão filho de Jonas, porque não foi o sangue nem a carne que te revelaram isto, mas meu Pai que está no Céu”. Mas dez passos adiante, quando Jesus anuncia a paixão, Pedro entrou a secularizar, a querer providenciar e ouve, certamente surpreso, esta violenta reprimenda: “Para trás Satã, tu me és escândalo, porque (agora) tu não tens o sentir das coisas de Deus, mas o das coisas dos homens” (Mat. XVI, 24). Poderíamos multiplicar as passagens que nos levam a esta conclusão: nada é mais anticristão do que essa tentativa abominável de rebater sobre as horizontais do mundo as forças e os ensinamentos apontados para o Céu. Nada é mais anticristão do que a filantropia e do que todas as formas de solidariedade humana que desprezam o sentido exato da fraternidade no sangue de Cristo, e no amor do Pai que está no Céu. Ora, é esse horror que está bem condensado na exclamação: “Completa temporalização do cristianismo!” Ninguém poderá ver nestas páginas de Maritain a menor concessão à “heresia do século” ou ao “neomodernismo”, e dificilmente poderá alguém se gabar de ser mais vigorosamente “anti-progressista” do que Maritain. Em 1965, data da publicação de “Le Paysan...”, a “secularização” ou a “prosternação diante do mundo” não produzira ainda a safra de asneiras e torpezas que hoje conhecemos. Imagino o sofrimento do velho filósofo em Toulouse e tremo de pensar na comunidade que o cerca. Sim, a “heresia do século” cresceu, alargou-se e aprofundou-se, e o problema da relação Igreja-Mundo tem sido apresentado sob os mais exóticos aspectos. Num certo momento divulgou-se uma descoberta sensacional: os adeptos da nova seita protestante descobriram que a Igreja está no mundo para servir! Houve uma explosão atômica de besteira em torno dessa idéia que tem exatamente, do Lava-pés até

hoje, cerca de 2000 anos. Podemos, com certo método, dividir o dilúvio de tolices em gêneros, espécies, raças e tipos. Dois grandes gêneros logo me parecem evidentes: 1º o dos “indóceis” que descobriram maravilhados que então, sendo servidora, a Igreja não poderá ensinar, já que ensinar e servir, para esses parvos, são coisas incompatíveis; 2º o dos “anárquicos” que deslumbrados descobriram que a Igreja não pode governar, já que, para esses, servir e governar são coisas incompatíveis. Li nestes dias um livro3 de Louis Boyer em que o autor, sem nenhuma ação de graças, diz que Vaticano II “foi seguido de uma demissão geral da Igreja ensinante”, e aborda o fenômeno da subserviência da Igreja em relação ao mundo: “Mas o pior está na idéia que se difundiu sobre o serviço que a Igreja deve ao mundo. Traduzida em linguagem clara, essa idéia diz que a Igreja já não deve converter o mundo, e sim converter-se nele. Ela nada mais deve ensinar; deve contentar-se em escutar o mundo...” Escutá-lo e segui-lo para pegar o curso da história. Louis Boyer continua: “Dias atrás me dizia um de nossos novos teólogos que a simples idéia de salvar o mundo é um insulto para o mundo, como obra de Deus: o homem de hoje, não pode aceita-la!” Creio que Maritain se tivesse escrito o seu “Le Paysan” três anos mais tarde, em vez de prosternação ou genuflexão diante do mundo, poderia dizer agachamento. Louis Boyer insiste: “Servir o mundo não é mais do que agradá-lo, adulá-lo como ontem adulávamos o vigário em sua paróquia, o bispo em sua diocese, e como hiperadulávamos o Papa na cátedra de São Pedro”. Não acompanho todas as idéias do Pe.Louis Boyer sobre a decomposição do catolicismo, nem apenas sobre o que ele chama de catolicismo. O velho companheiro de Pius Parch e de Odo Casel, do velho movimento litúrgico do eixo Roma-Berlim, que provocou a “Mediator Dei” de Pio XII, parece-me amargurado demais para nos trazer algum conforto, ou alguma diretiva na tempestade que ele descreve e comenta com talento. Além disso, como quase todos os franceses, Louis Boyer entra no jogo do progressismo versus integrismo sem parecer dar-se conta da falta de homogeneidade do esquema que de um lado tem uma heresia, todo um processo de apostasia em massa, e de outro lado, na pior das hipóteses, teremos pessoas que defendem mal valores bons, sem por isso formar um sistema, um “ismo”, simétrico do monstro que ameaça toda a civilização. Mas voltemos a Maritain, que para nós é muito mais significativo do que Boyer, e continuemos a saborear a análise feita no mesmo “Le Pay-san...” no capítulo V, sobre a “Liberação da Inteligência”, onde o filósofo parece dirigir-se ao fantasma do Pe.Lebret: “Minha terceira observação diz respeito à eficácia e à verdade. No capítulo III deste livro falei longamente do mundo e dos sentidos contrastantes do termo. Conhecendo bem o valor, a dignidade e a beleza do mundo que Deus fez, a Igreja quer seu bem temporal e seu bem espiritual. Ela o envolve no divino “ágape” que recebeu do alto, e de todo o coração se esforça por ajuda-lo e progredir na direção de seus fins naturais, e na linha de seu progresso terrestre, na medida em que o mundo tende para melhores e mais elevados estados da humanidade, e põe a serviço dos homens os tesouros de

luz e compaixão, cujo depósito lhe foi confiado. A Igreja não está a serviço do mundo. Defende-se de se conformar com as cobiças, os preconceitos e as idéias fugazes do mundo. Nesse sentido tinha toda razão o velho Chesterton quando dizia: ‘A Igreja Católica é a única coisa que poupa ao homem a degradante servidão de ser um filho de seu tempo’. E São Paulo: ‘Nolite conformari huic saeculo’ (Rom.XII, 2). O século de que falava São Paulo, e como se viu no andamento de seus negócios tem sua norma suprema na eficácia, ou no sucesso. A norma suprema da Igreja é a verdade. (...) Falam-nos de eficácia?! O resultado será finalmente a defecção de uma grande multidão. No dia em que a eficácia prevalecesse sobre a verdade, as portas do inferno teriam prevalecido sobre a Igreja” 4. E mais adiante, depois da clássica e sempre vigorosa crítica do idealismo filosófico, que foi o objeto constante de sua grande luta, e que agora chama de ideosofia, para bem distinguir os sistematizadores de idéias dos verdadeiros amigos da verdade, chagamos ao tópico intitulado. “A necessidade de fábulas e moeda falsa” que é uma marca de depressão cultural de nosso tempo, e que já anuncia “Teilhard de Chardin e o teilhardismo”. Logo de início confessa seu espanto diante “do completo isolamento” em que Teilhard de Chardin conduziu sua pesquisa. Mais tarde, num número de Itinéraires dedicado inteiramente a Le Paysan de la Garonne, o Pe. Berto, o insubstituível colaborador de Itinéraires, falecido há dois ou três meses em plena batalha, desenvolve essa idéia do “isolamento” de Teilhard num artigo em que justamente faz o paralelo entre o filósofo tomista e o famoso jesuíta paleontólogo. Vale a pena transcrever algumas páginas desse artigo: “Não podemos deixar de assinalar aqui o violento e enigmático contraste que se observa entre esses dois homens quase da mesma idade. Ei-lo: O primeiro é um convertido, casado antes da conversão, leigo por condição e por gosto livre, completamente livre de ler ou não ler a encíclica Aeterni Patris5, livre de filosofar ou não filosofar, e de filosofar com Santo Tomás ou, como Georges Dumesnil e Peguy, de filosofar longe de Santo Tomás. Na hora em que Jacques, Raissa e Vera recebem o batismo (1906). O Pe.Teilhard, que só teve o trabalho de nascer para logo renascer da água e do Espírito Santo, já é um jovem escolástico da Companhia de Jesus. Submeteu-se, não apenas à mais enérgica disciplina da vontade jamais vista, mas também a um regime de estudo muito intenso, muito sério, muito austero, rigorosamente ortodoxo, e muito tomista. (...) Naquele dia de São Barnabé de 1906, Pierre Teilhard de Chardin não podia não ter lido a “Aeterni Patris” que Jacques Maritain não podia ter lido. Maritain, naquele dia desconhece “le premier mot” da história da Teologia na Companhia de Jesus; Pierre Teilhard aprende-a, respira-a, vive imerso nela. Nomes ignorados no mundo em que se movia Maritain, são familiares para Pierre Teilhard de Chardin. Não falando dos antigos, que no entanto ele freqüenta, Teilhard vive a par de tudo o que ilustrou a Companhia ao longo do século que há seis anos terminara. Taparelli nasceu em 1793, Perrone em 1794, Liberatore em 1810, Kleutgen em 1811, Franzelin em 1816, Tilman Pesch em 1836, Billot em 1946, Christian Pesch em 1853, d’Alés em 1861. Que linhagem! Pertencendo ao último terço do século, como o próprio Teilhard, a geração dos Grandmaison, dos Grény, dos de la Taille, dos Lebreton se engajou, unanimemente com a Companhia (...), no combate contra o modernismo, e conduziu-o com clarividência e espírito de justiça. Que ambiente! Se o anjo da guarda de Pierre Teilhard de Chardin se abriu com o anjo da guarda de Jacques Maritain, com sinais de inquietação sobre o futuro teológico de seu protegido, é bem provável que o outro o tenha mandado passear: ‘Meu caro colega, que mais

quereria você? Entregaram-lhe um rapaz que tem tudo a seu favor, batizado logo depois de nascer, e ainda por cima religioso, e jesuíta de quebra. E você não está satisfeito? Que direi eu então a quem as Três Divinas Pessoas acabam de entregar um jovem casado que veio sei lá de onde e chega ao seu batismo nu como um verme, com o perdão da palavra, e mal raspado por fora e por dentro de idéias, cada qual menos Angélica do que as outras, e todos muito mal arrumadas para se casarem com as idéias do Doutor Angélico. Se ele não tivesse o padrinho que tem, eu teria pedido outro cliente. Guardo-o por causa do padrinho, mas de nós dois, não me venha dizer que é você o mais mal servido’. Vejam agora o enigma; apesar da enorme desproporção de chances na partida, foi Jacques Maritain que se tornou, não apenas tomista, mas um dos príncipes da filosofia tomista contemporânea, e foi Pierre Teilhard que se tornou, se já não o era em 1906, não um antitomista, mas um atomista; ou melhor, o enigma não está no tomismo de Maritain, está antes no atomismo de Pierre Teilhard. (...) Falta-nos tempo de consultar “Les Grandes Amitiés”, e não temos à mão as Atas da Semana Tomista de 1923. Mas nossa memória deve ser exata porque estávamos atentos e com cuidado de não perder uma só sílaba do orador separado de nós por muitas filas de poltronas e cadeiras, cujas duas primeiras, pelo menos, eram ocupadas por cardeais, e outras pelos mais altos dignitários da Cúria, pelos reitores e professores das universidades e seminários pontifícios e por todas as espécies de personagens que só deixavam, no fundo da Aula Magna, um espaço apertado onde a arraia-miúda se apinhava como podia. Jacques Maritain já passara dos quarenta, mas parecia muito mais moço. Falava sem pressa e sem lentidão, com uma voz abafada mas distinta e cativante, e passava, de vez em quando, pelos cabelos alourados e já grisalhos a mão que era pálida e transparente como o rosto. Foi assim como o vi que maravilhosamente o fixou seu amigo pintor Otto van Rees, e que M.Gonzague Truc teve a idéia, digna de toda a gratidão, de reproduzir no seu livro “La Pensée”, muito antes de ser reproduzido em “Les Grandes Amitiés”. Nós o ouvimos com o coração batendo e o fôlego suspenso. Na peroração de sua conferência, não! Não estamos inventando! Foi assim mesmo: Jacques Maritain rendeu homenagem à Igreja por sua adesão ao tomismo. ‘Não era — disse ele em substância, pois infelizmente não gravamos palavra por palavra — não era de um doutor qualquer que tínhamos necessidade no desamparo em que estávamos, era daquele mesmo que a Igreja nos propõe, era de Santo Tomás de Aquino’. Não sabemos se o leitor avaliará bem a força com que tais palavras, ditas em tais circunstâncias, por um homem tão excepcional, atingiram e impressionaram um seminarista de 22 anos, deixando-o numa espécie de êxtase. Ó beata Roma, que com profusão dispensas essas jóias incomparáveis, como é verdade que só tu ultrapassas todas as belezas do mundo! Essa conferência foi certamente um grande exemplo de tomismo praticado, mas o que mais nos transmitiu foi admiração por um homem que, tendo a estatura e o estofo de um chefe de Escola, tivera a magnânima humildade de sentar-se aos pés do Doutor Comum”. E o Pe. V.–A. Berto continua:

“Por contraste, em que estranha luz aparece o enigma do que somos forçados a chamar a impiedade, objetivamente horrível, de Pe.Teilhard! Não entramos em sua consciência, dizemos objetivamente. Muitos filhos, desde que o mundo é mundo, já se ergueram contra sua mãe para odiá-la. Viu-se acaso algum desses para quem a mãe tenha sido por ele mesmo tão reduzida ao nada? De tantas recomendações da Igreja, de tantos elogios por Ela atribuídos a Santo Tomás de Aquino, de tantas incitações e recomendações para que não nos afastemos dele, nada, nada, nada, nem vestígios, nem sombra de uma sombra de vestígio se encontra nos escritos de Teilhard de Chardin. Tudo isto, para ele, jamais existiu, ou só existiu para recair instantaneamente nas profundezas do nadir. E o mesmo se observa em relação à Companhia: nem um sinal de filiação, nem um gesto, uma palavra, um traço em que se reconheça o jesuíta, nem um aceno de gratidão por seus mestres ou indício de troca de idéias com seus irmãos, ou de espírito de colaboração ou de camaradagem. Nada. Com ele só sabemos o que ele pensa, ele só. Não tem referências, dependências ou conexões. Como Melquisedeque, ele nos surge “sine patre, sine matre, sine genealogia”. Já transformaram essa impiedade em seu louvor. Já se disse, creio que foi o Pe.Danielou, que ele olhava o mundo com um olhar novo de “pré-socrático”. Não somente negamos a possibilidade de ser um pré-socrático no século XX, não somente negamos a vantagem de sê-lo, mas também, ainda que vantagem houvesse, negamos o direito à legitimidade de tal atitude num cristão, num padre, num religioso, num jesuíta. O Pe.Teilhard trabalhou na mais alta preterição das intenções da Igreja, e basta esta (horrível) impiedade para desacreditá-lo sem apelação. É tão isolado que seus admiradores só têm um único objeto de admiração: em torno dele, ninguém. Nem se diga que está num deserto. Não, ele flutua no vácuo. Para admirá-lo é preciso rejeitar até o 4º mandamento” 6. Grave bem o leitor estas linhas que condensam a reprovação da obra de Teilhard de Chardin como nenhum de seus críticos logrou fazer, com tanto vigor: “TEILHARD DE CHARDIN TRABALHOU NA MAIS TOTAL PRETERIÇÃO DAS INTENÇÕES DA IGREJA; BASTA ESTA HORRÍVEL IMPIEDADE PARA DESACREDITÁ-LO SEM APELAÇÃO”.

A Gratidão e a Mágoa do Pe. V.A. Berto

O artigo do Pe. V.A. Berto, publicado em Itinéraires, começa por uma declaração de gratidão e de mágoa que o autor condensa nesta epígrafe: “Il m’a fait trop de bien pour en dire du mal; Il m’a fait trop de mal pour en dire du bien”.

Da gratidão já demos na longa transcrição anterior uma prova comovente e ao mesmo tempo instrutiva no que se refere ao teilhardismo. E a mágoa? No artigo em questão a mágoa principal do Pe. V.A. Berto refere-se ao “integrismo”, e ao jogo da falsa simetria “progressismo”–“integrismo” em que Maritain se deixou envolver, como há pouco observamos que Louis Boyer também se enredou. Esse binômio deriva diretamente do jogo esquerda-direita, jogo falseado como veremos no capítulo seguinte, jogo quase especificamente francês. Por quê? Talvez por causa do “esprit de géometrie” que será sempre o defeito da qualidade do povo mais inteligente do mundo. O próprio Pascal não escapou inteiramente a esse obsessivo cartesianismo que arma esquemas vetoriais nas mais lúcidas mentes inscritas no glorioso hexágono. Mais adiante voltaremos ao assunto e transcreveremos o que diz Pe. V.–A. Berto das considerações tecidas por Maritain, em “Le Paysan de la Garonne”, sobre o “integrismo”. Desde já recomendamos a leitura de Alfredo Lage7, que foi o primeiro, em nosso meio, a sentir a impropriedade do conceito esquematizado por Maritain, e a exprimir a mágoa que também nós sentimos a par da imensa gratidão. Creio que valha a pena antecipar algumas reflexões nossas sobre esse falso esquema que pretende contrapor duas coisas de espécies diferentes, como se se tratasse de dois sistemas de qualidade efetivamente simétricas. Mas a verdade é que de um lado temos um “neomodernismo” muito maior do que o que Pio X combateu, e portanto uma monstruosa “heresia” que Jean Madiran já chamou de “heresia do século XX”; e a do outro lado? Do outro lado temos pessoas que podem ser acusadas de defender mal a ortodoxia, de testemunhar mal, por todos os vários motivos que compõem o espectro das várias radiações da miséria humana, idéias e valores bons, mas isto, meu Deus!, é a própria condição do cristianismo de todos os tempos, e somos todos integristas, com exceção dos santos, que possuem e praticam as virtudes em grau heróico. Tentemos especificar alguma coisa dentro da genérica mediocridade do povo de Deus. Só vejo um possibilidade de especificar o integrismo que permita a oposição vetorial e o esquema “progressista”—“integrista”; é aquele que concede aos “progressista” a iniciativa do jogo e da designação. “Integristas” serão, nessa linha, os que efetivamente, e mais ou menos vigorosamente, combatem o “progressismo”. No próximo capítulo veremos que este é o jogo “esquerda”—“direita” em que se deixaram enredar tantos “intelectuais” católicos. Mas agora voltemos ao Camponês da Garona.

Como o Camponês vê o Teilhardismo

A apreciação de Maritain sobre o teilhardismo não é menos severa do que a do Pe. V.–A. Berto. E bastava este tópico do livro, na página 173 e seguintes, para marcar sua posição contra a onda de estupidez que desfigura a Igreja. Apesar disso, não posso esconder uma pequena decepção. Maritain pareceu-me desesperado, alheio aos melhores trabalhos escritos sobre a moeda falsa do teilhardismo, que não chegando a ter nível de heresia mais nos parece uma grotesca ficção. Escorou-se num artigo de Etienne Gilson, muito sensato mas superficial e desdenhoso. No Anexo II, pg.383, em que volta a apertar um pouco mais os parafusos, escora-se em Claude Tresmontant, que não está ainda suficientemente purgado das tolices que escreveu com certo entusiasmo em 19568, num livro cujo título já é uma apologia, ou pelo menos uma concessão. No primeiro capítulo desse livro de juventude,

Tresmontant começa com esta frase: “O ponto de vista em que se coloca Teilhard de Chardin é o ponto de vista científico, fenomenológico”. Ora, essa é uma frase que bem merece a qualificação de “faux départ” porque, se é verdade que Teilhard de Chardin se coloca no ponto de vista científico (de que ciência?), já é preciso distingui-lo do ponto de vista filosoficamente fenomenológico, e já o desautoriza de falar em Point-Omega, e em qualquer outra coisa que não sejam ossos, fósseis, camadas geológicas, instrumentos de sílex, carbono-14, etc. etc. O jovem Claude Tresmontant, em 1956, parece ignorar que a obra “científica” de Teilhard de Chardin é de 5ª classe. Na melhor das hipóteses é insignificante. E o velho filósofo tomista parece ignorar que seu ponto de apoio na crítica ao teilhardismo é um recém-convertido ao bom senso. Escrevi, nesse tempo, a Jacques Maritain, chamando sua atenção para os livros do Pe.Philippe de la Trinité9, e lembrando que anos atrás ele, Maritain, Monsenhor Ch. Journet e o Pe. Philippe de la Trinité tinham trabalhado juntos, creio que em “Etudes Carmelitaines”, sobre “O Pecado do Anjo”, que lhes valeu na época a alfinetada de um bravo progressista: “Ils ont du temps à perdre”. Lembro-me agora de que também sugeri a mesma idéia atribuída ao Pe.Danielou (hoje cardeal) pelo Pe. Berto, mas em ângulo diferente. O Padre Teilhard — dizia eu — é um curioso pré-socrático que teria feito, entre os jônios e os eleatas, ao contrário do que fez Aristóteles, a síntese dos erros: será mais evolucionista do que Heráclito, e mais unitarista e panteísta do que Parmênide. Não recebi resposta dessa carta que provavelmente se perdeu, e não se perdeu jóia nenhuma. O principal, entretanto, estava feito em “Le Paysan de la Garonne”: um pensador com o imenso valor de Maritain, conhecido no plano dos pronunciamentos políticos e nos meios intelectuais como homem inclinado a assumir coisas novas, aplicara o ferro em brasa em cima do teilhardismo. E agora? Examinando o conjunto de apreciações que cercam o monstro poliédrico, saboreando cada um desses parágrafos que esperávamos do velho mestre, neomodernismo, cronolatria, logofobia, prosternação diante do mundo, completa temporalização do cristianismo e finalmente teilhardismo, que mais esperávamos? É curioso. Há no livro em questão uma enorme omissão, uma lacuna colossal, um lapso gigantesco que no entanto nos passou despercebido na primeira leitura. Entre as diversas faces que configuram o “monstro” ou os diversos ingredientes que compõem a “salada” houve um prodigioso esquecimento que só foi percebido numa segunda leitura. Mais adiante voltaremos a fazer alguns reparos relativos à causa eficiente, às correntes históricas com que o autor explica a formação de tão grave e volumoso fenômeno. Desde já quero transmitir ao leitor o constrangimento com que me atrevo a criticar tão grande filósofo, e o sofrimento com que escrevo estas páginas — e ai de mim se as não escrevesse. Ligado demais a Maritain, só posso efetivar minhas retratações e reafirmações em termos que inevitavelmente incluem críticas e desligamentos. Transcrevi a bela página do Pe. Berto para fundir com ele a minha gratidão. Digo até veneração . E tranqüilizo o leitor, ao menos em certa perspectiva. As críticas e as correlatas retratações não atingem a grande obra filosófica, nem de longe significam um arrefecimento de nossa confiança em Santo Tomás. A obra filosófica de Maritain permanece para mim inalterável, com reservas na filosofia política contida em “Humanismo Integral” e “Democracia e Cristianismo”. Afasto-me aqui do artigo de Alfredo Lage, admirador como eu da grande obra de Maritain, que se associa a Gaston Fessard para perguntar se em 1936 seria possível fazer melhor do que fez Maritain em “Humanismo Integral”, e que depois acrescenta: “Depois da publicação de Le paysan de la Garonne a nossa posição é diferente”, como se

fosse agora, nessa obra, que surgiram as “posições” de Maritain hoje inaceitáveis para nós. Ao contrário, foi em torno de 1936 que Maritain tomou várias “posições” que hoje nos obrigam a retratações porque nós é que não podíamos, em torno de 1936, fazer coisa melhor do que acompanhar Maritain. “Le Paysan” é um livro revelador dos erros da década dos 30, e é precisamente o documento que nos prova que, em 1936, Maritain podia ter feito o que não fez, e podia não ter feito o que fez. E por aí já se vê que “Le Paysan” não é o objeto principal de nossas investigações, é antes um livro revelador de todo o drama cultural de que nos ocuparemos nas demais páginas deste livro. Valho-me desde já de uma divisão proposta por Henry Bars, um dos mais fiéis seguidores de Maritain, mesmo, ou sobretudo em sua filosofia política10. Diz Henry Bars11 que é preciso distinguir em Maritain, além da obra especulativa, 1º—Uma filosofia política; 2º—Uma filosofia da história e da cultura; 3º—Tomadas de posições temporais, que são atos de filósofo, mas não de puro filósofo, atos de filósofo que se inspiram numa filosofia (e talvez a inspirem sob certos aspectos), que não são completamente separáveis mas não entram a título de ingrediente nessa filosofia, mas procedem diretamente da prudência política (ou de imprudência, diriam os adversários). É principalmente do terceiro ponto, e das “imprudências” que me ocuparei a partir de algumas revelações de “Le Paysan”, e da leitura de muitos livros e revistas da época, não como “adversário” mas como discípulo que naquele tempo se comprometeu nas mesmas posições e que se sente na obrigação de se retratar. Perguntará o leitor com que títulos me apresento para tão ousado empreendimento. Respondo com a simplicidade de engenheiro: um dos principais títulos que hoje tenho é simplesmente o planisfério das conseqüências. De duas maneiras podemos nós aquilatar as posições tomadas na vida, ou em termos de “princípios” nem sempre facilmente conversíveis em prudência pratico-prática, como diz Maritain; ou em termos de análise das conseqüências desenroladas no chão das existências. Hoje, diante do supramencionado planisfério de erros e disparates, podemos traçar linhas, remontar às causas, e facilmente descobrir que tais e tais posições foram erros de trilhos que nos levaram aos abismos por onde hoje rolam alegremente cardeais, bispos, religiosos e religiosas... E Maritain? Não verá ele a mesma coisa que nós vemos? E, assim, não manterá ele sempre a mesma superioridade que nos desnivelava? Todas essas perguntas que agora atribuo ao leitor, já muitas vezes as formulei comigo mesmo e com os amigos de sofrimento. E chegamos a uma curiosa e aflitiva conclusão que será desenvolvida em vários tópicos deste livro. E desde já precisamos voltar a “Le Paysan de la Garonne” para resolver um “suspense” que deixamos atrás.

Camponês ou “Intelectual”?

Voltemos a “Le Paysan...”. Trata-se de uma obra escrita com certo relax, em tom coloquial, onde sentimos que o filósofo, habitualmente tão duro para as arestas de cristalização da verdade, acha-se a conversar entre amigos, e onde quase adivinhamos que não está suficientemente só, resguardado, como conviria para a inquiriçäo profunda que se propôs com sua própria alma. O tom coloquial, a começar pelo provérbio chinês que não é provérbio nem chinês: “Ne prenez jamais la bêtise trop au sérieux”, não me parece adequado para a consideração da tempestade ou barafunda de erros e malícias em que se aventura. Parece-me que nunca, em toda a história, foi preciso levar a sério, como hoje, a divertida matéria que deixa totalmente de ser divertida quando ganha dimensões de calamidade planetária. Vivemos dentro de um dilúvio de estupidez. E na Arca, onde nos refugiamos, parece que ainda é mais torrencial a chuva do que lá fora... Mas esse caráter de obra mais espontânea, e menos censurada no nível do “consciente”, nos permitirá talvez algumas descobertas úteis, entre elas a dos mecanismos de censura no nível do “inconsciente” que nos expliquem a razão de tão colossal omissão. Qual? Qual é afinal a lacuna, a ausência, a omissão de que já falamos duas ou três vezes. É a seguinte: num livro de 400 páginas em que um grande filósofo francês, em 1965, se interroga, e por via indireta nos explica a crise da Igreja em nossos dias, sem disfarçar sua gigantesca proporção, não há um capítulo, um parágrafo, uma frase, uma só palavra para o fenômeno que largamente contribui para a onda de estupidez que aflige a Igreja, e que além disso cobre, molesta ou injuria a metade do globo terrestre. Esse fenômeno chama-se: comunismo. Qualquer beata do Apostolado da Oração no Brasil sabe que o comunismo é um dos venenos que transtornou tantos padres; sabe que é o ópio do clero. Ora, o grande filósofo não toca nesse assunto. Em duas leituras atentas, e numa terceira dinâmica, não encontrei uma só vez o vocábulo “communisme”. Estarei enganado? Peço ao leitor que me ajude, e que de lente em punho, procure o monstro ciclópico acaso reduzido à condição de infusório. O termo “marxismo”, e a filosofia designada por esse termo, merece destaque em duas páginas12, mais para enaltecê-la do que para criticá-la. Num mundo em que a inteligência se degradou pela ruptura trazida pelo idealismo (racionalista ou empirista) subsistem apenas dois realismos: “O realismo marxista e o realismo cristão. (...) Eis aí um ponto de encontro entre o cristianismo e o marxismo que M.Garaudy teria a boa inspiração de assinalar se sua atenção não estivesse desviada pelos autores com que se informou para no oferecer esta piedosa humanização de uma velha fé desmitizada, convertida finalmente às esperanças da terra...” E ao pé da página uma referência ao livro de Garaudy13: “Se bem que li M.Garaudy, só vi o nome de Santo Tomás aparecer uma vez...” E o comunismo? A realidade histórica, única pela qual o marxismo seria um “realismo”, a encarnação de erros e perversidades que mereceram advertências e condenações de tantos papas, não figura entre os ingredientes da grande salada, nem entrou na fila das interrogações que o velho leigo a si mesmo dirige. Como se explicará tal ausência? Acresce que a atenção dada ao teilhardismo conduzia facilmente ao comunismo. Em outro lugar14, depois de enumerar os vários componentes do chamado “progressismo” católico, que não é progressista, e já deixou de ser católico, dizia eu o seguinte: “Esses diversos fatores formam um

sistema. Assim é que no famoso ‘diálogo’ os teilhardistas e marxistas andaram sempre entrelaçados, como tão bem demonstra o Pe. Philippe de la Trinité15. No 10º aniversário da morte de Teilhard de Chardin, em 1965, o jornal Le Monde como era de esperar, promoveu uma edição especial para homenagear o famoso jesuíta que viveu alheio à Companhia e à Igreja, como evidenciou o Pe.V.—A. Berto. Entre os colaboradores de Le Monde estava Roger Garaudy, líder do P.C. francês com um artigo intitulado ‘Pionnier du Dialogue’, onde entre outras amabilidades, dizia que “Teilhard tinha a incontestável glória de ter tornado possível o diálogo entre comunistas e católicos’”. Mais adiante entretanto, Roger Garaudy confessa que, como marxista, e apesar da simpatia que tinha pelo falecido, não podia aceitar a fórmula com que Teilhard de Chardin tão generosamente se oferecia aos comunistas: “A síntese do Deus cristão para-o-alto, e o Deus marxista para-a-frente, eis o único Deus que doravante poderemos adorar em espírito de verdade”. Por onde se vê que coube ao comunista o testemunho de um apego doutrinário. Garaudy, diante das ofertas de Teilhard de Chardin, sentiu-se no dever de pronunciar o “nom possumus”. Se Maritain tivesse lido o Pe. Philippe de la Trinité sobre Teilhard de Chardin, em vez de se ter apoiado em Claude Tresmontant, inevitavelmente teria de dizer alguma coisa sobre a infiltração comunista no clero e sobretudo na esquerda católica francesa. Admitamos que Maritain evitasse o Pe. Philippe de la Trinité, a quem se atribui a redação do famoso “Monitum” do Santo Ofício de que tão se riu o mundo católico. Qualquer outra leitura, da década dos 60, dos 50, dos 40 ou dos 30 irresistivelmente atrairia sua atenção para as “liaisons dangereuses” entre católicos e comunistas. Qualquer brasileiro sabe que o convento dominicano em São Paulo foi transformado em quartel de guerrilheiros do líder comunista Marighela, sabe que o Pe. Francisco Lage Pessoa desde o princípio da década 60 ensinava marxismo em Ferros e foi preso como conspirador comunista, sabe que os padres assuncionistas de Belo Horizonte ensinavam marxismo na Faculdade de Filosofia, sabe que o Pe. Wauthier de Osasco teve parte no incitamento à greve dos operários e principalmente sabe que tudo isto começou aqui com a transfusão do sangue francês trazido pelo Pe. Lebret em 1947. Os mais atentos e lidos sabem que o Pe. Desroches, companheiro do Pe. Lebret e co-fundador de Economia e Humanismo, deixou a Igreja e tornou-se comunista puro, limpidamente ateu, dois ou três anos depois da fascinante experiência que teve um filho bastardo no movimento dos padres-operários, que também se comunizaram... Que mais? Tenho diante dos olhos, ao acaso da desarrumação de minha mesa, um livro mais recente de G.Cottier O.P. “Chrétiens et Marxistes”, Mane, Paris 1967. Nesse livro corro os olhos, com tristeza enjoada, pelo prefácio de M.D.Chenou O.P., que irresistivelmente me lembra “Mr.Trouhadec saisi par la Debauche” de Jules Romain. Nesse prefácio, o velho dominicano ou ex-dominicano, ou ex-tudo, ou antidiluviano, cita Ricoeur, que hoje é obrigatório, e exuma Camus com sentenças que agora sugerem a figura do Conselheiro Acácio: “O contrário do diálogo é tanto a mentira quanto o silêncio. Só há diálogo possível entre pessoas que são o que são e que não mentem”. Exemplo: entre os que traem a Igreja e os que obedecem cegamente às diretrizes do Partido que é o maior gasômetro de mentira do mundo. O Pére Chenu termina seu prefácio com um suspiro: “Difficile dialogue! à la mesure de la dureté des objets en cause. C’est le cas ici. Mais, comme dit le Pe.Cottier, ce cher dialogue (sic) est-il sans doute une école de liberté”. “Ce cher dialogue!?” Agora o que vejo em imaginação é um velho dominicano com o “cher dialogue” no colo, como um gato de estimação.

Perdoe-me o leitor esse curto delírio. Volto ao tema: é racionalmente inexplicável a ausência do “comunismo” nas interrogações do camponês. E onde se vê que é difícil falar da “crise” e principalmente de Teilhard de Chardin, sem dizer alguma coisa do “diálogo” que o Pe.Chenu afaga, é no livro de Etienne Gilson, “Les Tribulations de Sophie”, VRIN, Paris 1967, escrito num tom parecido com o “Le Paysan”, mas com uma diferença: Quase metade do livro de Gilson se aplica ao vergonhoso conúbio que tanto entusiasma o Pe.Chenu. Na página 135 encontramos esta melancólica conclusão: “Poderemos dialogar proveitosamente com um ateu? Duvido, se ele é comunista; receio as conseqüências se esse diálogo se estabelece entre um marxista bem informado de sua doutrina, como o Sr.Garaudy, e o teólogo tão mal informado da sua, como o Pe.Teilhard de Chardin. Num caso assim, o comunista devora o teólogo com a maior facilidade, e nutre-se dele com proveito. E só nos resta o ridículo da aventura”. Voltamos à obsessiva pergunta: como se explica a omissão de Maritain em “Le Paysan...? Muita gente hoje, levada pela evidência de certos fatos e pela simplificação brutal das idéias, julgará que a explicação reside na inclinação esquerdizante ou comunizante do grande tomista. Ora, não se vê na obra do filósofo, digo na obra de especulação filosófica, seja no plano metafísico, seja no plano da filosofia da cultura ou da história, nada que de longe se pareça com um Mounier, que desabusadamente dizia querer trabalhar com os comunistas para as coisas de César, e com sua fé católica para as coisas de Deus. Tal afirmação, ou tal outra do léxico “progressista”, é inconcebível num livro de Maritain. Sobre o comunismo ele sempre foi muito nítido e duro, quando escreveu como filósofo. Tomemos dois depoimentos do filósofo colhidos em pontos extremos de sua obra e de sua vida: o primeiro em “Antimoderne” (Paris, 1922) e o segundo em “On the Philosophy os History”, (Scribner’s Sons, N.Y. 1957). E insisto em assinalar a separação dos dois depoimentos, separação em vários sentidos: “Antimoderne” é escrito no período de 15 anos em que Maritain esteve na Action Française, no fim do pontificado de Pio X e no princípio de Pio XI. O segundo livro mencionado, escrito em inglês, nos Estados Unidos, doze anos depois da tormenta européia e da catástrofe francesa, está por assim dizer, além e por cima de todo um período de inquietações e de grandes paixões: depois da crise da Action Française, 1926, e de um período de transição, Maritain passa a freqüentar os meios ditos de esquerda. Em 1932 colabora com Mounier na fundação da revista Esprit, e depois com os dominicanos de Sept, e depois com a extrema-esquerda de Vendredi e de Temps Présent que sucedia a Sept, fechada por decisão de Roma. Resistindo e contrariando os conselhos de Garrigou-Lagrange, que durante tantos anos tivera por mestre nos “Cercles de Meudon”, Maritain se inclina para a filosofia política e escreve “Humanismo Integral” em 1936, livro marcado pelo “otimismo” da época que exercia a ultracorreção sobre a quadra anterior de depressão e desespero. Para os franceses, mais sujeitos às oscilações e contrastes políticos do que ninguém, porque a França corre ao longo da história entre espasmos revolucionários (ou euforias democráticas) e arroubos monárquicos (ou nostalgias autocráticas), o novo livro de Maritain representava, na obra do filósofo, uma guinada para a esquerda. Não nos deteremos demais neste ponto porque logo depois entram em cena acontecimentos mais significativos e marcantes para a vida e para a “política filosófica” de Maritain, como diz Henry Bars. Em 1936 desencadeiam-se na Europa duas revoluções de incalculáveis conseqüências: uma visível, ruidosa e sangrenta; outra invisível e com mais derramamento de tinta do que de sangue. Refiro-me à revolução ou contra—revolução espanhola que terminou com a derrota dos comunistas; e à revolução ou infra-revolução francesa, ocorrida no plano das idéias e em forte antítese à revolução da Espanha, que terminou com a fragorosa derrota da França, e depois com a monstruosa vitória do comunismo, principalmente nos meios católicos. Ora, em todo esse drama Maritain tomou posições, assinou manifestos, escreveu prefácios, incentivou revistas, tudo isto inequivocamente com as esquerdas,

contra os brancos da Espanha, e dia a dia mais engajado com as esquerdas francesas, contrariando nisto uma feição de sua personalidade, resistindo aos conselhos de Garrifou-Lagrange e desconhecendo com estranho desembaraço os pronunciamentos normativos e preceptivos do Papa Pio XI sobre a Guerra Civil Espanhola. Nos capítulos subseqüentes deste livro volverei a esta tragédia da França, mais grave do que a episódica derrota infligida pelos nazistas. No momento quero consignar estes fatos que nos preparam para admitir, com o próprio Henry Bars, fidelíssimo amigo, a idéia de certa duplicação na vida, senão também na personalidade de Maritain. Passado aquele período tumultuoso, instalado na América, de certo modo desligado da seqüela da “Épuration” e da efervescência crescente das esquerdas católicas da França, bem cercado por dois admiráveis representantes do mundo feminino, Maritain se reencontra, se recompõe, e arriscar-me-ia até a dizer que se restabelece de uma segunda ruptura mais grave e decisiva do que a primeira. E então consegue escrever em “On the Philosophy of History”, sobre o comunismo, páginas que se cosem facilmente ao que escrevia em 1922, e que serão vistas pelos “progressistas” franceses como uma espécie de traição, ou de regressão. E é significativo o fato de escrever em inglês esse livro, e seu grande livro “Creative Intuition in Art and Poetry”. E ainda mais significativo é seu afastamento dos amigos com que em 1932 (grave bem esta data, leitor) fundava a revista “Esprit”. Quando em 1950 morreu Emmanuel Mounier, que ganhara na França um enorme prestígio, todos os jornais de Paris noticiaram o falecimento com destaque. Não se vê, entretanto, nos diários de Raissa, ou no “Carnet de Notes” do próprio Maritain um só comentário. O intenso sofrimento da guerra trouxera um dilaceramento, ou um despertar na vida de Maritain. Mas a marca interior da tempestade de paixões certamente ficou a comandar os conhecidos aparelhos de censura psicológica. Agora, em 1965, reintegrado na França, mas exausto e mutilado, embora ainda senhor de uma maravilhosa lucidez, Maritain é solicitado a escrever, e a escrever justamente sobre as conseqüências de tudo o que se preparou em França desde o início do século. E aqui vai a explicação daquelas omissões. Não digo que está “na cara”, como se diz na gíria; mas digo, em boa língua, que está na capa: “Le Paysan...”. Não, não é um camponês que se esquece de nos dizer o mal enorme que o comunismo fez à sua pequena propriedade, nem é o camponês quem nos serve aquela hiperbólica definição de “Integrismo” que irrita o bom Pe.V.—A. Berto. Não é também o grande filósofo tomista que sabe, melhor do que o camponês, que o comunismo é intrinsecamente perverso. Vale a pena aqui transcrever os dois textos, o de 1922 e o de 1957. Ei-los: “O que a história, ‘julgamento do mundo’, mais severamente denunciará no comunismo não será certamente sua falta de ideal, é ao contrário, precisamente seu ideal, isto é, o princípio espiritual que o comanda. A lembrança dos crimes cometidos pode-se apagar, e passar depressa, não me custando muito imaginar os netos de Turelure sob os aspectos de pacatíssimos cidadãos. Um regime fundamentado sobre a violação do direito natural, depois de algumas experiências devoradoras de carne humana, pode atenuar-se e, na continuação dos dias, pela necessidade de viver, pode renegar na prática os dogmas que invoca em teoria. Mas o princípio espiritual que desempenha a função de ‘forma’ animadora, este só se atenua ou se perde quando desaparece. Deste ponto de vista parece claro que as forças de destruição que ameaçam a atual ordem social, simbolizadas nos termos ‘bolchevismo’ e ‘ditadura do proletariado’, são uma forma nova e mais

virulenta (a única, a bem dizer, que ainda é virulenta) do velho fermento da Revolução Anticristã. Dizem-nos que os comunistas russos, continuando embora a proclamar que ‘a religião é o ópio do povo’, já não perseguem crenças religiosas16. Acredito que no momento estejam ocupados em tarefas mais urgentes. Mas o esforço deles é anticristão, essencialmente, no seu próprio princípio. Com uma decoração ideológica capaz de comover ao mesmo tempo os sete pecados mortais e as transviadas generosidades, é sempre um esforço inteligente, o mais ativo que até hoje já se viu no mundo, para ‘estabelecer praticamente’ a humanidade no ateísmo, instaurando realmente a ‘cidade sem Deus’, sim, uma cidade, uma civilização que enquanto tal ignore de modo absoluto qualquer outro fim que não seja uma perfeição humana exclusivamente terrestre e faça do Homem e da Ciência humana, segundo a grande idéia hegelianizante de Karl Marx, o Senhor todo-poderoso da Humanidade” 17. A este magnífico texto, onde se ouvem as ressonâncias majestosas de uma consciência católica sensível às trágicas afrontas de uma civilização apóstata, acrescentaria duas observações. A primeira refere-se à consideração dos meios e dos fins do comunismo: em nossos dias muita gente está inclinada a pensar que o que nos separa do comunismo são os meios violentos e amorais, e que o que nos aproxima é o fim comum. Ora é justamente no fim proposto, no ideal visado, como tão bem explica Maritain, que reside a virulenta oposição ao cristianismo e à lei natural. Ouso dizer que o comunismo seria ainda pior, mais desumano e mais satânico, se sua expansão se efetuasse “sans larmes”, por processos suaves e insensíveis. A segunda nota refere-se à “perfeição humana exclusivamente terrestre” que depressa se transformará numa explosão de sub-humanismo que tornará a pobre vida terrestre mais imperfeita do que nunca. Já temos sinais à vista. Agora uma observação sobre o autor da página transcrita. Em 1922 Jacques Maritain já tinha mais de 40 anos, e já era conhecido e admirado em todo o mundo católico. A “Aula Magna”, a que assistiu o Pe. V.—A.Berto, foi dessa época e bem mostra o enorme prestígio do filósofo em Roma. Já publicara os seguintes livros: La Philosophie Bergsonienne, M.Riviére, 1913. Art et Scolastique, ed. Les Lettres, 1919. Elements de Philosophie I: Introduction Générale à la Philosophie,Téqui, 1921. Théonas, Nouv. Lib. Natio., 1921. Antimoderne, 1922. Sem contar os numerosos artigos publicados em revistas diversas. Dois anos depois publicará: Reflexions sur l’Intelligence et sur sa Vie Propre, N.L.N., 1924. Trois Réformateurs, Roseau d’or, 1925. E agora, depois de trinta e dois anos de crises, revoluções, revisões manifestos, guerra, mudança para os Estados Unidos, temos em 1957 este outro texto que se articula perfeitamente no de 1922, mas não se solda bem com a “sinistrite” delirante dos intelectuais franceses, a partir de 1932. Escrevendo em inglês, vivendo num meio completamente diverso daquele em que escreveu “Antimoderne” e “Trois Reformateurs”, Maritain de certo modo se alija da carga de esquerdismo, que a devastação de todo um mundo ajudou a levar, e se reencontra. “Charles Péguy, que fora um revolucionário proudhoniano, dizia que a revolução social haveria de ser moral, ou não haveria de ser. Agora houve a revolução; e não foi moral” 18.

E pouco adiante: “O que os cristãos têm agora a fazer não é sonhar com uma revolução social cristã, é antes trabalhar para que os ideais cristãos prevaleçam nos graduais ajustamentos, através dos quais o mundo nãocomunista (cuja estrutura social e estilo de vida, ao menos nos Estados Unidos, já ultrapassaram o capitalismo e o socialismo) realizará as mudanças exigidas pela justiça social ‘que a revolução comunista, por sua ideologia bloqueou, chegando até a proibir sua simples menção’” 19. É difícil ser mais anticomunista. Maritain vê na revolução comunista não apenas o seu próprio fracasso, mas a abismal e apavorante desmoralização de um ideal autêntico e perene. E com estas seis ou sete linhas demonstra a impossibilidade, a ilegitimidade, e intrínseca imoralidade de uma colaboração com os comunistas. Em outras palavras, nesse momento, Maritain esquece-se do Pe.Chenu e “son cher dialogue”, esquece-se de Mounier, de “Vendredi”, de “Sept”, e esquecendo-se de que se esquecera de Pio XI durante toda a guerra civil espanhola, volta à “Divini Redemptoris” que esqueceu de mencionar na alocução que fez pelo rádio na noite da morte de Pio XI20. Voltemos a “Le Paysan...”. Maritain está em Paris e considera em torno de si o espetáculo da “completa temporalização do cristianismo”. Há na composição desse livro todo um drama. Quem o escreve é o filósofo tomista Jacques Maritain, o autor de “Trois Reformateurs” e “Dégrés du Savoir”, é o homem de Deus, o afilhado em quem Bloy, em 1913, adivinhou um braço poderoso e uma grande voz de lamentador. O filósofo procura arrimar-se no ombro do camponês que nunca pôde ser, e cuja presença mal pôde entrever entre as várias instâncias psíquicas de sua grande e riquíssima personalidade. Teoricamente, e graças às memoráveis lições de Garrigou-Lagrange (que mais próximo esteve sempre do rústico camponês), Maritain sabe que sua “grande sagesse” emenda na “petite sagesse” do senso comum; mas no período tormentoso de sua vida (naquele em que se separa de Garrigou-Lagrange para freqüentar Mounier) esse convívio consigo mesmo esteve prejudicado pela intromissão de um terceiro personagem. Quem? Qual? O mesmo que agora em “Le Paysan”, faz o filósofo e o camponês se desavirem, e fá-los ambos esquecerem o simples termo “comunismo” que atrás dele traz uma torrente de dolorosíssimas recordações. Esse personagem é o “intelectual” no sentido exato que lhe dá Jules Monnerot quando conta “a história sucinta dos intelectuais” e diz: “Outro traço próprio dos intelectuais é o de nunca tirarem lição dos acontecimentos, porque eles os censuram” 21. Gostaria muito de transcrever todo o excelente e saboroso capítulo do autor de “Sociologie du Communisme”, mas detenho-me e deixo ao leitor a recomendação, porque se me estendo a transcrever os livros que já estão escritos certamente malograrei no intento de escrever o meu próprio, com que já tenho uma espécie de compromisso. 1.Alfredo Lage, “Hora Presente”, Maio de 1970, nº 6. 2.Jornal do Brasil. 3.Louis Boyer, “La Décomposition du Catholicisme”, 1968. 4.Jacques Maritain, “Le Paysan de la Garonne”, Desclée de Brouwer, 1966, pg.141.

5.Encíclica de Leão XIII, 4 de Agosto de 1879, em que o Papa dirigindo-se aos bispos do mundo inteiro, e em continuação da apologia deixada por seus predecessores, Inocêncio V, Clemente VI, Urbano V, Nicolau V, São Pio V, Bento XIII, Inocêncio XII, Clemente XII, Bento XIV e outros, remenda a doutrina do incomparável Doutor de todos os Doutores da Igreja, Santo Tomás de Aquino. 6.“Itinéraires”, Abril de 1969, nº132. 7.Alfredo Lage, “A Recusa de Ser”, AGIR 1971, pg. 284. 8.Claude Tresmontant, “Introduction à la Pensée de Teilhard de Chardin”, ed. Du Seuil, 1956. 9.Philippe de la Trinité, “Dialogue avec les Marxistes?” Les Ed. du Cedre 1966; “Rome et Teilhard de Chardin”, Arthême Fayard, 1964. 10.Henry Bars, “La Philosophie Politique selon Jacques Maritain”, les Ed. Ouvriéres, Paris 1961. 11.Henry Bars, “Maritain et notre temps”, Grasset, Paris 1959, pg. 130. 12.Jacques Maritain, op. cit. pg. 154. 13.“Un Marxiste s’adresse au Concile”. 14.Gustavo Corção, “Dois Amores, Duas Cidades”, AGIR 1967, vol. II, pg. 362. 15.Philippe de la Trinité, op. cit. 16.Ao pé da página, Maritain refere-se a recentes informações de novas perseguições. 17.Jacques Maritain, “Antimoderne” Revue des Jeunes 1922, pgs.241-42. 18.Jacques Maritain, “On the Philosophy of History”, Scribner’s Sons, N.Y. 1957, pg.66. 19.Ibid. pg. 67. 20.Jacques Maritain, “Raison et Raisons”, LUF, Paris 1947, pg. 199. 21.Jules Monnerot, “La France Intellectuelle”, Borgine 1970, pg.63.

FAMÍLIA E MORAL A casa Só pode ser na casa. Na casa de família. Na casa que se fecha, não para isolar-se da cidade, mas para abrigar da chuva e do vento a boa sementeira da amizade.

Em relação aos muros da casa de família há porém um problema semelhante ao das fronteiras das nações. Há casas patrióticas e casas nacionalistas. Poderíamos também mencionar as casas internacionalistas, onde entra e sai quem quer, onde todo o mundo faz o que lhe passa pela cabeça, e onde, em suma, impera tamanha tolerância que não seria impróprio chamá-las casas de tolerância.

As nacionalistas são aquelas que mais abrigam uma quadrilha do que uma família. Não porque sejam os seus membros ferozmente desunidos; antes porque são unidos ferozmente. Unidos contra as outras casas.

Nesse ambiente, por mais educados que sejam os hábitos, conspira-se contra a cidade. Nesse reduto, nesse covil, em lugar da sementeira cívica, o que se prepara é o favoritismo, o que se manipula é o pistolão. Nessa casa, o de que se cuida é de arranjar empregos e vantagens para todos, desde que um tio ou um cunhado logrem atingir uma altitude de poder que lhes permita a distribuição privada da coisa pública.

É também postulado nosso que uma sociedade é o que são suas famílias. Ora, é inútil disfarçar a situação em que hoje nos encontramos sob esse ponto de vista. De um lado vê-se a vertiginosa decomposição de nossas melhores tradições. As famílias se desmancham. Os casamentos são cada vez mais efêmeros. E as casas funcionam apenas como plataforma de estação, como ponto de baldeação entre as correrias do dia e as correrias da noite.

É de um importância capital a compreensão do estreito nexo entre os sentimentos familiares e os cívicos, e é essa compreensão que falta em todas as teorias, da direita e esquerda, que pretendem resolver o problema da reestruturação da sociedade sem a amizade cívica e portanto sem a casa que é a oficina dessa amizade.

Voltemos a nossa idéia de um mundo humano formado de zonas concêntricas. Em contrações sucessivas chegamos à casa de família que é (ou deve ser) o lugar onde se destila a amizade cívica. O ar da amizade está ali (ou deve estar) em densidade maior e mais alta pressão. Por isso a casa se

fecha. Escola, sala de armas onde se exercita a difícil esgrimagem da justiça, a casa tem o recato necessário a esse aprendizado que não deixa de ter o seu ridículo, como todo aprendizado. Lá dentro entre as quatro paredes bem opacas — contra as idéias arquitetônicas do Sr. Niemeyer — a família aprende e exercita, entre as alegrias e aflições, as regras dos atritos humanos.

Há muito esbarro no vaivém apertado da vida familiar, muitos cachações, como dirá Machado de Assis — mas é nesses mesmos choques cotidianos, e eu direi até nesse atrito contínuo, que cada um encontra as mais ricas oportunidades de exercer as virtudes. E quem diz exercer, nessa matéria diz adquirir.

A luta moral tem uma característica que vale a pena encarecer. Enquanto nas lutas físicas, como nas guerras, o vencedor sai mutilado, ferido, exausto, mal se distinguindo do vencido; nas batalhas morais o vencedor sai sempre mais forte do que entrou. Não é troféu, botim, prêmio material o que ai se conquista mas um novo vigor. Nas lutas morais, ao contrário das físicas, quem vai resistindo e vencendo, vai se tornando cada vez mais forte, mais armado, mais ágil, mais pronto. Daí a imensa utilidade desse exercício em ambiente fechado onde são múltiplas as oportunidades de lucro. E daí o terrível inconveniente de se armar a chamada harmonia familiar em termos de evasão.

Os moralistas de convenção referem-se freqüentemente às doçuras da vida familiar e ao suave remanso do lar. É mentira deles. São ufanistas da casa. Mentem como os idólatras da Vitória Régia, ou como locutores de rádio pagos para dizer ao microfone, em sete de setembro, que o país inteiro, de norte a sul, está vibrando de ardor cívico.

É certo que a casa tem doçuras de mel; como é certo que tem agruras de fel. Tem tudo o que é do homem em mais espessa e densa realidade. Às vezes a atmosfera fica tão sufocante, dentro de casa, que a rua se torna um paraíso apetecido. Saímos a respirar um pouco, para gozarmos o descanso das multidões indiferentes, da humanidade neutra, dos vultos que não nos cobram nada, dos rostos que não nos dizem respeito. E às vezes tem-se a impressão de uma irreparável destruição, de uma incompatibilidade sem remédio. Parece inútil lutar, tempo perdido insistir. É esses pensamentos uma vez que se instalem, vão corroendo em nós aquelas mesmas reservas em que deveríamos buscar a recuperação.

A fragilidade do matrimônio decorre de uma desmedida exigência de felicidade, ou melhor, da aplicação dessa exigência a uma coisa que não suporta tal pressão. Há um insolência nossa nessa impaciente cobrança de ventura, e há sobretudo um equívoco, porque pretendemos tirar da casa, do matrimônio, do amor humano, um infinito rendimento, quando é finita e sempre muito exígua a nossa própria contribuição. Depositamos com mesquinharia e queremos juros generosos, infinitamente generosos. E no desejo desse absurdo balanço nós somos injustos com o próximo, e injustos com Deus. Realmente, por mais esquisito que isto pareça, se alguém imagina que a sua noiva, e mais tarde

a esposa, lhe possa dar plena felicidade, não terá direito de queixar-se nos dias de decepções, porque foi ele, inicialmente, o primeiro culpado de injustiça.

Só se restabelece o equilíbrio desse problema em que se põe num dos termos um desejo aberto para o infinito, quando no outro termo se coloca a lembrança muito consciente, muito reverente, do depósito de sangue infinitamente precioso que um Outro colocou à nossa disposição, e quando, conseqüentemente, para esse Outro orientamos todos os nossos anseios de felicidade perfeita.

Mas voltemos ao nosso ponto de partida, à casa, à casa fechada para o exercício da amizade. Disse que a casa é um segredo. De fato o é. Ou deve ser. Deve ser uma interioridade. Uma intimidade. Uma intimidade de afeições e uma intimidade de aflições. Um mundo de recato. Uma história escondida. Mas dentro desse segredo que abriga uma família há um outro segredo que se esconde da família. Naquela gruta de pedra há uma concha fechada e dentro dessa concha um segredo maior, escondido na intimidade e no segredo da casa. Os esposos se escondem. Escondem-se da casa, dentro da casa. Fecham-se dentro do que já é fechado. Abrigam-se no interior do que já é abrigado. E assim é que, nesse último reduto, nesse último porto, nesse abrigo, nessa concha, preparam não só o amor e a justiça, mas também o fruto dessa justiça e desse amor.

Vejam, vejam senhores como o mundo do homem é feito de sucessivas e concêntricas fronteiras que vão, desde aquelas que vemos no mapa com rios e cordilheiras, até a porta fechada da câmara conjugal. Mas agora apreciam o reverso do fenômeno: cada uma dessas muralhas é sucessivamente superada, como barragem de açude que se quer cheio para que transborde em serviço. O dinamismo das fronteiras está voltado para fora. E agora, vejam, vejam nessa nova direção como se expande o mundo do homem.

De fato, se é verdade que os esposos se escondem, em compensação não há nada menos escondido do que o fruto do seu segredo e não há nada mais apregoado, mais publicado do que a criança que nasce. Toca cem vezes o telefone, esse pequeno sino familiar do natal dos homens. É menino ou menina? Expedem-se cartões. Abrem-se janelas. Como se chama? Quanto pesa? Com quem se parece? As vizinhas comentam; as criadas, esquecidas de tudo, enternecem-se, e varrem melhor, lavam melhor, como se o filho, sendo da casa, fosse como pouco delas também; e as tias e as avós emitem vaticínios, ou confirmam profecias de que aliás ninguém mais se recorda.

O segredo tornou-se público. A porta misteriosa foi arrombada por um ladrão recém-nascido. E o aroma de alfazema que sai pelas frestas da casa, que se dilui no ar, no ar da rua, da paróquia, da cidade, já é a primeira suave emanação da amizade cívica, o oxigênio das almas.

A casa nesse dia deu o seu fruto. Fez a sua entrega.

Nasceu hoje uma criança. Nem é preciso telefonar para saber que naquela casa nasceu hoje uma criança. Vê-se de longe. Quem estiver acaso à janela pelas cercanias logo verá que alguma coisa aconteceu naquela casa, naquele navio ancorado: porque no seu exíguo convés, em sinal de festa, tremula uma carreira de fraldas ao vento — bandeiras brancas de júbilo e de paz.

O Globo, 03/01/1976.

A volta para casa O mundo moderno, marcado pelo achatamento do cristianismo, pela traição dos clérigos, completarmente, pela exaltação de um “humanismo do homem exterior”, tem irresistível tendência a pensar num sentido vetorial da história, pelo qual todas as perfeições estão num avanço e num progresso, e todos os erros seriam irreversíveis e incorrigíveis, a não ser por superação e substituição.

Ora, a observação dos singelos vaivéns da vida quotidiana mostra que já neste nível e nesta escala tão próxima de nós paira um equívoco cheio de riscos. O mundo moderno, acometido de avidez de coisas exteriores, é levado a valorizar tudo o que o homem faz quando parte para o trabalho em detrimento do valor e da significação da volta para casa. Ora, isto que parece sobrepor o social ao individual, e o universal ao caseiro, já é um começo de subversão porque a ida para a função produtiva tem caráter de meio, enquanto a volta para casa tem caráter de fim. O homem não vive para trabalhar, trabalha para viver e foi isto, em termos simplíssimos e elevadíssimos, que Jesus ensinou a Marta quando lhe disse que “uma só coisa é necessária”.

É claro que esta poliédrica questão poderá acidentalmente, pousada sobre uma de suas faces, reclamar certo primado acidental do trabalho e da função, no qual a Casa, símbolo de repouso, vida interior e contemplação, seja relegada à função subalterna de um posto de recuperação e reabastecimento; mas uma civilização que tornasse esta acidental posição por lema essencial terá o defeito mortal da subversão que escorre para o nada. Daí a necessidade de bater nesta tecla e de arvorar mais esta bandeira: a do dever de lutar pela volta à casa.

Nós sabemos que em nosso século são os próprios homens, um por um, e não alguma força oculta ou algum tirano que dificultam a volta para casa. É cada um habitante do planeta que anda perdido de si mesmo, esquecido de seu endereço e até esvaziado da nostalgia que constantemente o levasse a ter saudade de um paraíso perdido. A casa deixou de ser a casa e a volta deixou de ser a mais desejável das coisas humanas. Pobre gente, essa raça que mal chegada à casa é condenada a ricochetear e a voltar para o mundo dos programas pelas ruas, sim, voltar para a rua, isto é, voltar para a ida, já que

ninguém sabe o que fazer de si mesmo e da simples companhia de seus familiares. Pobre gente condenada a procurar até em casa a anticasa multiplicada pela televisão, azulada ou policrômica.

Em outro contexto, em que estudei com agradecimento e admiração as idéias-mestras da obra de G. K. Chesterton (Três alqueires e uma vaca, AGIR) o problema da casa se impôs à minha atenção. Desde esse segundo livro, publicado em 1945, o tema da casa própria, da terra possuída e não socializada, e o correlato tema da volta para casa se tornaram pontos de honra na constelação das idéias simples em cuja defesa quero viver e morrer.

Não resisto ao desejo de transcrever estas linhas antigas e tão atuais:

“Agora, deixando de lado a fantástica enumeração de volumes, que já se tornava fastidiosa, consideremos a volta para casa no seu aspecto mais trivial e mais diretamente ligado à vida cotidiana. Servindo-nos do mesmo método negativo adotado para descobrir a utilidade social da casa, perguntemos o que é que o homem gasta na rua e que precisa ser restaurado em casa. Na rua, no emprego, no convívio com os companheiros de trabalho, o homem se fragmenta em funções. Aqui é o passageiro, logo adiante o pedestre, mais tarde o dentista ou o carpinteiro. Acidentalmente, num encontro de esquina, é um ex-colega; nas bancadas é um companheiro; no barbeiro, um freguês; no médico, uma ficha. Visto do alto de uma sacada ditatorial, ele torna-se um infinitésimo átomo social, uma célula, entre milhões, desse monstro informe e fluido, que hoje tem o nome de povo.

Desde que sai de casa, seu trajeto o expõe a todas as transmutações: vai mudando de título, vai mudando de nome, e em algumas repartições mais eficientes, muda também de casaco. Nada existe no mundo que tanto mude e transmude como um pobre cidadão. E o problema que se arma é o seguinte: ou o homem é alguma coisa antes de servir para alguma coisa; ou não é. Minha filosofia afirma a primeira proposição quando fala em pessoa humana e na sua dignidade; a filosofia socialista afirma a segunda. E, na minha filosofia, é a casa que restitui ao homem o que ele é.

Na rua, na função, o homem espalha a sua própria substância, gasta-se no que é, aflige-se em sua unidade, sofre em sua liberdade; em casa, todas as funções sociais, as maiores e as menores, ficam no capacho da entrada, e o homem que chega, que toma posse de seus domínios, é um homem inteiro e livre. Em casa ele recupera, com o chinelo, a personalidade e o nome de batismo. E ele precisa de todas essas coisas para elaborar o fermento da amizade capaz de levedar uma cidade verdadeiramente humana.

E aí está, completo, o ciclo dos dias e das noites, o ritmo em dois tempos, que é a dança da vida e do amor, e que é também o ritmo dos peregrinos. A casa é portanto o lugar onde o homem se torna o que

é. A casa é portanto uma clausura para aumento de liberdade e reconquista da unidade. E daí eu tiro conseqüências sobre a natureza do material e sobre a divisão das salas e dos quartos”.

Tiro muitas outras conseqüências e lembro, como já disse em artigo anterior, que a casa tem que ser feita como um porto seguro, como um abrigo, como um esconderijo. E volto a uma citação com o trecho seguinte, com que hoje arremato o artigo:

“As crianças também gostam de brincar de esconder, mas quando são encontradas no perigoso esconderijo, correm a se abrigar no pique que muitas vezes é o regaço da mãe. Ora, a casa, mais uma vez, se relaciona com todos os fenômenos que passam à maioria dos arquitetos e filósofos. É o lugar certo de se esconder. É um pique. É também um regaço. É ainda a cela murada para a santificação. O abrigo do nu, como extensão de uma veste, ou então, se quiserem, a veste é uma casa que o homem carrega, como um caracol.

Aí estão algumas boas razões para convencer que a casa deve ser defendida. Tornei-as num monte de cinqüenta ou sessenta, ou acaso, sem planificar uma conexão, confiante em que o próprio objeto ligaria os argumentos. Vejo agora que foi bom terem saído essas razões diversas e disparatadas, porque o depoimento se reforça quando as testemunhas são muito diferentes. Concluo pois, enfaticamente, que a casa é um ponto de honra e que, mais do que qualquer outra coisa, serve para aquilatar uma civilização.

A cidade que não tenha casas para todos os seus habitantes ou não tenha meios de transportes para facilitar a volta; ou cujos habitantes se espalham pelas ruas porque não amam suas casas, ou não voltam porque não querem voltar; ou não se revoltam somente porque não sabem, ou não querem saber, que estão diminuídos, frustrados, ofendidos; ou ainda por cima se alegram por não poderem voltar para casa, e logo que voltam e engolem um sanduíche reviravoltam para a rua, porque não têm como ficar em casa, não sabem ficar em casa, não sabem o que é casa, não sabem mais o que são eles mesmos — essa cidade não é uma cidade de homens livres; é um ajuntamento de escravos.

O Globo, 10/01/1976.

Amor, casamento, divórcio Se eu asseverar que existem muitos casais infelizes, e que o número deles tende a crescer, tornandose uma componente considerável de nossa crise social, creio que ninguém exigirá de mim as estatísticas comprovantes. Há certas coisas que saltam aos olhos; e tenho para mim que a maioria dos inquéritos e dos levantamentos estatísticos só serve para mostrar, com o adorno das cifras, o que todo o mundo está cansado de saber. Chego até a pensar que muitas dessas pesquisas sociológicas são movidas por um gosto semiconsciente de desvalorizar o bom-senso, ou de levar ao descrédito os mais

elementares princípios. No caso vertente, e para descobrir que as famílias estão funcionando mal, eu não preciso andar de porta em porta com um impertinente questionário. Basta-me observar a rua, os bondes, os cafés, para poder concluir que as casas já não retêm as pessoas. A febre nas ruas prova a agonia das casas. E como a felicidade conjugal está vinculada à casa, ao equilíbrio, ao poder de retenção da casa, posso deduzir do aspecto publicado nas ruas as infelicidades escondidas nas casas. Além disso, temos dados mais convincentes nos casos mais próximos. Realmente, salta aos olhos do mais descuidado observador que o número de casais infelizes cresce dia a dia, e que esse problema já pesa na sociedade com graves repercussões no econômico e no político. Diante de um fenômeno desta natureza, e de tão sérias conseqüências, o problema que logo se impõe é o da pesquisa das causas. Mas nem todo o mundo pensa assim. Há pessoas, animadas de excelentes intenções, que não crêem na utilidade dessa pesquisa, ou não têm tempo a perder nessas ponderações. Chegam correndo, nervosos e filantrópicos, com a primeira maravilha curativa que encontraram para as contusões de amor, sem considerar o perigo de agravar a causa do mal com o tratamento do sintoma. Se há pessoas infelizes é preciso socorrê-las com urgência. Se há casais desajustados, é preciso proporcionar-lhes, o mais depressa possível, uma nova combinação de pares mais harmoniosos. A idéia que preside essa terapêutica matrimonial é a seguinte: os casamentos se fazem por acaso, numa espécie de movimento browniano de encontros fortuitos, em que não pesa a razão. E assim sendo, para libertar o homem dessa tirania do acaso, é preciso conceder-lhe sucessivas oportunidades até que possa encontrar a boa solução. Ora, o que pretendo mostrar nesse estudo é que a causa principal desse estado de coisas é justamente essa negligência das causas; ou melhor, é o clima de futilidade e de irresponsabilidade em que se fazem os casamentos. Poderíamos aqui invocar os inquéritos organizados nos Estados Unidos. Eles provam insistentemente que a maioria dos divórcios é motivada por coisas de uma espantosa futilidade; e provam também, como era de esperar, que se uniram levianamente os que levianamente se desunem. Esta é a causa principal dos muitos casamentos infelizes: a falta de preparação, a leviandade com que se casam, a atmosfera de frivolidade, de imprudência e de imaturidade que cerca o mais grave dos atos humanos. É claro que o homem é extraordinariamente engenhoso na arquitetura de sua infelicidade. Ainda que os fatores extrínsecos sejam seguros e bonançosos, o homem traz em si a borrasca. Ainda que os elementos econômicos, afetivos e temperamentais sejam favoráveis, o homem se encarrega freqüentemente de inventar sua desventura. As causas da infelicidade são pois numerosíssimas. São entrelaçadas, combinadas, variadas, convergindo todas para o mesmo epílogo de lágrimas. Não pretendo deixar aqui uma receita de paraíso conjugal, nem pretendo que o problema seja fácil. A vida conjugal sempre foi difícil; e sempre o será. Mas o que se pode dizer sem erro, e sem ridículo otimismo, na atual conjuntura em que vivemos, é que o desvario ultrapassou seus razoáveis limites, e que alguma coisa pode e deve ser tentada no

sentido de uma recuperação. E para isto cumpre isolar, no emaranhado de causas, aquela que mais influi na aceleração do mal. Torno a dizer que é a imaturidade, o despreparo. As outras causas são todas tributárias dessa imensa bacia hidrográfica da frivolidade. As pessoas se casam por motivos oblíquos; se casam sem saber o que é o casamento; fundam família sem conhecer o que é a família; mudam de estado com ponderações menores do que os motivos de escolha de uma carreira, e às vezes tão leves como as que determinam a escolha de uma gravata. Ignoram a natureza do novo estado; desconhecem-se mutuamente os que se propõem viver unidos; e se ignoram a si mesmos, seus próprios recursos, seus novos deveres, suas responsabilidades novas. Ora, o divorcista começa por conceder que esse desatino é normal, e nos traz um remédio que ainda o tornará mais desatinado. Seu remédio virá pois incrementar as causas do mal. Se já existe uma alarmante falta de seriedade no regime da indissolubilidade, é fácil imaginar o delírio a que se chegará no regime do divórcio. E essa é a primeira contradição intrínseca do divorcismo: pretende curar alargando as fontes do mal, pretende remediar com sua pomada de emergência dez infelizes, à custa de cem outros que já se colocam na fila da infelicidade. Mas o divorcista — seja dito em sua homenagem — não percebe essa contradição; e não a percebe justamente porque renunciou, de antemão, usar aquilo com que se evidenciam as contradições. Para ele, como já disse, o casamento é casual, essencialmente irrefletido, e não pode deixar de ser assim uma espécie de loteria onde pesa mais a sorte do que a razão. Dizem por exemplo que o amor é cego, e que é impossível, em meses de noivado, conhecer perfeitamente a pessoa com quem se delibera fundar uma família. Concedo que é impossível, em meses, conhecer perfeitamente o outro. Vou até mais longe. Se é preciso conhecer perfeitamente o outro em todos os seus recantos psicológicos, a vida inteira não basta, e deveríamos adiar todos os casamentos par o dia do juízo final. Ou então, para atender às flamas do mais impaciente amor, deveríamos estipular que os noivos esperassem a provecta idade dos senadores. O que é evidente, nesse pessimista irracionalismo, é que a incapacidade de conhecer o outro, se destrói o casamento indissolúvel, destrói também o divórcio. Porque o divórcio se baseia justamente nessa idéia insensata de que, num certo ponto da vida conjugal, a gente esgota completamente o conhecimento do outro, a ponto de lhe recusar a mínima possibilidade de recuperação. Concedamos pois que o noivado é curto para a exaustiva análise dos noivos. Mas daí a recusar a possibilidade de um certo conhecimento, e a necessidade de uma certa preparação, vai um abismo. Essa idéia se reduz a afirmar que o homem está completamente desarmado para os atos mais graves de sua vida. Sua razão lhe serve para instalar um aparelho de rádio, mas é incompetente para fundar família. Sua inteligência lhe basta para demonstrar que a soma dos três ângulos internos de um triângulo é igual a dois retos, mas é deficiente para apreender a natureza desse outro triângulo em cujo vértice nasce uma criança.

É claro que a vida está cheia de imprevistos. A própria criança é um destes, e dos mais terríveis. Mas dizer que a vida é somente formada de imprevistos, diante dos quais o homem é impotente, equivale rigorosamente a denunciar toda a validez da moral. Convém firmar este ponto: a pessoa que admitir a incompetência da razão nos atos mais graves da vida está admitindo tacitamente a falência total dos princípios de moralidade. Bem sei que já muita gente admite essa falência, e que seria preciso deslocar a origem das coordenadas, e escrever um outro livro para discutir esse problema. Neste que agora escrevo [1] suponho no leitor esse mínimo — a confiança na ordem moral. E já me declararia satisfeito se conseguisse convencer algum divorcista de seu radical amoralismo. Seria um progresso para ele se largasse o equívoco e enfrentasse com lealdade o niilismo moral. Aliás, se isto acontecesse, o divorcista deixaria de pleitear o divórcio, e passaria a defender o amor sem regras. Dizer que o amor é cego equivale a afirmar a radical incompatibilidade entre o amor e a razão. O caloroso amor será cego; a lúcida razão será gélida. Divide-se então o homem em si mesmo de um modo irremediável, e o fogo do amor será uma loteria com poucos prêmios e muitos bilhetes brancos. A razão virá mais tarde, quando esfriar o amor, para passar um pito no apaixonado; ou para se rir amarelo da ilusão dos que ainda vivem nos amorosos torpores. É claro que, se chamamos de Razão essa mesquinha faculdade de passar pitos ou de achar sorrisos de gélido escárnio, haverá uma absoluta incompatibilidade entre a Razão e o Amor. Se a Razão é apenas cálculo e mesquinharia, já está implícita nesta definição a incompatibilidade e a cegueira do amor. Neste caso, a moça que se casa com um rapaz padrão O para ter um caso de peles, estará fazendo um casamento de razão. o moço que se casa com uma velha rica também estará fazendo um casamento de razão. Ora, no meu vocabulário, esses dois estão consumando os menos razoáveis, os mais insensatos casamentos. Estão, inclusive, fazendo um cálculo errado. Estão cegos. No meu vocabulário, isto é, no vocabulário do bom-senso e da reta filosofia, o único casamento razoável é o casamento de amor. A razão é intrinsecamente generosa, e é vivificada e dilatada pelo amor. Procurarei explicar-me melhor, apelando para as mais profundas ressonâncias das almas. E começo por perguntar: Quem quererá ser amado sem ser compreendido? Realmente, os mais humildes, os menos filosóficos namorados sabem que a compreensão é uma nota essencial do verdadeiro amor. Nos seus delírios, nos seus românticos arroubos, o mal-atendido namorado se queixa de ser incompreendido. Vai nessa queixa, evidentemente, muita estultice, porque às vezes a amada se afasta do seu suplicante por lucidez. Seja como for, usada com justiça ou com insensatez, o fato é que a nota de compreensão é inseparável do conceito que todo o mundo tem do amor. De onde se conclui que no unânime consenso, e de acordo com os mais profundos instintos do homem, o amor não pode ser cego. Ao contrário, o amor é lúcido. O amor, o verdadeiro amor é ardentemente compreensivo. Só quem ama verdadeiramente, conhece verdadeiramente. Se é verdade que o conhecimento precede o amor, é verdade também que o amor precede a dilatação do conhecimento.

O amor, o verdadeiro amor tem um conhecimento penetrante, candente, fino, lúcido; tem um conhecimento de ressonância profunda, de identificação, de conaturalidade. O amor, o verdadeiro amor advinha, penetra, descobre, simpatiza, faz suas as aflições do outro, dá ao outro suas próprias alegrias. É compreensivo. Mas não é compreensivo no sentido que se dá a esse vocábulo, quando quer significar uma tolerância que fecha os olhos. Não. O amor verdadeiro é compreensivo num sentido maior, que não fecha os olhos, mas que também não fecha o coração. Vê as falhas do outro, vê as misérias do outro, com uma generosa inquietação, com uma piedosa solicitude. Mas vê. Vê com amor. Mas vê. E é nessa visão que ele encontra as forças de paciência para os dias difíceis, e que se defende das amargas decepções. A miséria, o defeito, a falha, apresentados pelo amor, conservam sempre a dignidade do contexto em que foram apreendidos, sem sacrifício da veracidade. Porque o amor é veraz; é verídico; é essencialmente amigo da verdade. E como compete à razão guiar a alma nos caminhos da verdade, segue-se com lógica irresistível que a razão é o piloto do amor. Mas há um amor que é efetivamente cego; um amor que não é verídico; um amor que não é compreensivo; um amor que não é transformante, e que não ressoa, que não simpatiza, que não advinha, que é inimigo da verdade. É o amor-próprio. Cegueira voluntária, o amor-próprio se compraz nas mentiras que agradam as paixões. Princípio de divisão interna, o amor-próprio divide o homem de si mesmo. A maioria dos dramas consiste no equívoco com que se rotula de amor a triste pantomima do amorpróprio. Esses romances de amor são comédias de erros em que cada um engana o outro, e a si mesmo se engana, com o jogo gracioso que se convencionou ser próprio da juventude e da esgrimagem dos sexos. O centro de todos os disparates é o amor-próprio, a divisão do eu, o divórcio interno entre a vontade e a inteligência, em torno do qual se forma a constelação de tendências que Karen Horney chamou de pride system. O rapaz que descobre, um ano depois do casamento, que foi pescado por causa do padrão O, e que sua mulher casou-se efetivamente com o casado de pele, dificilmente poderá alegar a obnubilação produzida pelos encantamentos do noivado. Sua decepção é injusta. Não viu porque não quis ver. Cegou-se por amor-próprio. Enganou-se a si mesmo, e por conseguinte faltou com a devida veracidade, isto é, com o verdadeiro amor. Estenda pois a si mesmo a decepção, e procure dar-lhe os nomes de humildade e paciência. E sobretudo procure, agora em bases mais autênticas, recuperar a lealdade ferida pela comédia do amor. Conceder plenos direitos à amarga decepção da vaidade ferida, equivale a conceder direitos ao egoísmo, e a negar as verdadeiras possibilidades de recuperação na base da verídica humildade. Este é o ponto de soberana importância. Por mais generalizado que esteja o disparate, o equívoco, o malentendido, não é possível estruturar a sociedade na base de um irracionalismo que proscreve a razão, e que anula todas as oportunidades de restauração dos valores genuínos. Daquele pobre casal de ludibriados, eu diria que a verdadeira oportunidade de amor começa nessa ferida, justamente nessa hora magoada em que a humildade pode vencer o egoísmo. E é nessa

oportunidade única que lhes pretendem roubar, para que recomecem indefinidamente, sem progresso, sem lucro, sem dor, a insípida comédia de erros. Torno a dizer que o amor é lúcido, que a razão é o piloto do amor, e que o casamento exige de cada um a exata tomada de consciência, que de modo algum significa uma ducha gelada na incandescência do amor. E volto a asseverar que a causa principal da crescente instabilidade conjugal está na leviandade e na falta de preparação. A preparação para o casamento pode ser considerada em três partes: 1o. — Conhecimento da natureza do ato, e do novo estado. O que é o matrimônio? O que é a família? Qual é o fim principal do casamento? 2o. — Conhecimento mútuo no amor. 3o. — Conhecimento de si mesmo, preparação material e moral de cada um, tendo em vista as exigências do novo estado. Vou aqui abordar somente a primeira parte, que poderíamos chamar de preparação remota, porque deve ser anterior, para ser mais eficaz, ao encontro de amor. É claro que essa tomada de consciência da natureza do matrimônio será benéfica em qualquer momento da vida conjugal; mas é claro também que sua anterioridade trará um acréscimo considerável de garantia para a felicidade conjugal. Não é demais insistir na importância dessa tomada de consciência. A sociedade inteira, com seus múltiplos problemas depende da concepção de casamento e família, que se respira. A sorte do mundo depende, em primeira linha, da compatibilidade entre as instituições e o amor. Se o amor for banido das estruturas; se o amor ficar reduzido a uma entidade vadia e desclassificada; ou se o amor só tiver um lugar de repouso fora das categorias sociais, ainda que seja um trono romanticamente instalado acima das vicissitudes da vida comum — a sociedade humana conhecerá uma espantosa degradação. O amor precisa casa. O amor quer morar nas casas dos homens, nas instituições dos homens. E é esse o principal objetivo de nosso estudo: traçar a planta baixa e os cortes principais da Instituição conjugal, isto é, da Casa do Amor.

As pessoas que se casam levam escondidos no enxoval os seus múltiplos defeitos. Se fosse preciso ser perfeito para casar-se o casamento só conviria aos santos. Ou então, como desejam os defensores do individualismo divorcista, só conviria para os poucos felizardos que encontrassem um perfeito encaixe das recíprocas imperfeições. O casamento, nesse caso, não teria nenhuma eficácia sobre os cônjuges, podendo até servir para os confirmar no satisfeito egoísmo. Ao contrário, em sã doutrina, nós afirmamos que as instituições bem fundadas na natureza das coisas, exercem uma influência benéfica, que reverte sobre as pessoas, em analogia com o que se chama "graça de estado", no plano da vida sobrenatural. A casa ajuda os casais. As imperfeições das pessoas são socorridas, e de certo modo compensadas, desde que exista uma boa compreensão da estrutura em que estão engajadas. E no casamento isto é de capital importância. Saber o que é o casamento, o

que é uma família, é a meu ver o primeiro e imprescindível fator da felicidade conjugal. Faltando essa clara consciência do ato e do estado, ainda que haja amor, igualdade de fortuna, paridade de gosto, de educação e de temperamento, o casal dificilmente se equilibrará nos dias de tormenta. A firmeza da casa está na tomada de consciência do casal, na exata compreensão da natureza da instituição e do novo estado. É desse aspecto do problema que trata o presente estudo, e cumpre advertir que aqui nos colocamos na perspectiva da razão, e não na luz da fé. O casamento é aqui considerado na sua natureza como instituição humana; e a crítica que fizermos ao divórcio tem a mesma perspectiva do direito natural. (A Ordem, Fevereiro de 1952)

As virtudes militares A expressão é de Charles Péguy, que o mundo inteiro, por um monumental equívoco tomava por socialista, e que, para dar desmentido, morreu como herói na defesa da Pátria. Trago-a à tona da atualidade por causa do Chile, e da necessidade urgente que o mundo moderno tem desse precioso antibiótico. Na semana passada assisti à missa celebrada pelo Cardeal D. Eugênio Salles na Igreja da Santa Cruz dos Militares, cuja irmandade festejava seu 350° aniversário. Quem fez a belíssima homília foi D. Antônio de Almeida Moraes, Arcebispo de Niterói, que, depois de uma preliminar alusão à efeméride festejada, ressaltou o papel de especial destaque representado nos evangelhos por um soldado romano. Todos conhecem a passagem (Mt. VIII,8 e Lc. VII,1) em que se aproxima de Jesus um centurião pedindo-lhe a cura de seu servo que estava paralítico, e quando Jesus promete ir, responde-lhe então o centurião: — “Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e meu servo se curará. Porque eu sou um subordinado, mas abaixo de mim tenho soldados e quando digo a um destes “—Vá”, ele vai, e quando digo a outro: “—Vem”, ele vem ; a outro: “—Faça isto”, ele faz. Ouvindo Jesus estas palavras, admirou-se e disse aos que o seguiam: — Em verdade vos digo que em todos os israelitas não encontrei quem falasse com tanta fé”. Note-se antes de mais nada estas simples palavras: “E Jesus admirou-se”. No subseqüente elogio vê-se esta coisa que a muitos modernos parecerá assombrosa: o personagem que em todos os evangelhos recebeu o mais alto elogio de Jesus foi um militar romano, isto é, um militar da potência estrangeira imperialista que ocupava a Palestina. Além disso, cumpre ainda lembrar que a profissão de Fé do centurião se incorporará à Sagrada Liturgia, e será repetida em todas as missas do mundo até o fim dos tempos. Quem jamais terá merecido tamanha honra? Para bem frisar o agrado com que Deus vê os soldados que encarnam na profissão a santa virtude da obediência, Dom Antônio lembrou ainda outro testemunho de um soldado romano. Estamos no momento em que culmina a obra de Jesus, mas para o mundo parece, ao contrário, consumar-se o seu fracasso: “Era a hora sexta (12 horas) e as trevas cobriram toda a Terra até a hora nona. Escureceu-se o Sol, rasgou-se ao meio o véu do templo, e Jesus clamou: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito. E dizendo isto morreu.” (Lc. XXIII, 44). Ora, neste instante em que talvez algum dos discípulos duvidassem da vitória de Cristo, nesse momento que convidava à descrença e à idéia de um malogro total, ergue-se a voz de um soldado romano que, glorificando a Deus, disse: “Verdadeiramente este homem era justo. (...) Todos os seus conhecidos, e as mulheres que o haviam seguido desde a Galiléia, estavam à distância e contemplavam tudo isto.” Imaginemos a cena: no centro da escuridão a Cruz entre as cruzes do bom e do mau ladrão; ao longe as mulheres fiéis, perto da Cruz, Nossa Senhora, e do outro lado com os olhos volvidos ao céu o centurião da potência estrangeira é incumbido por Deus para nos representar com seu testemunho, e para os encorajar quando na vida nos parecer que o Sol escureceu, que a cortina do Templo se rasgou, e que, perdidos na escuridão, nós somos as mais desgraçadas das criaturas. Valha-nos nesta hora o santo soldado desconhecido que creu precisamente na escuridão da Fé.

É conhecida a história da conversão do santo Charles Foucauld, e sabida a influência instrumental regeneradora das virtudes militares na sua salvação e na sua santificação. É narrada por Jacques Maritain, numa de suas mais belas páginas, a conversão de Psichari, o neto de Renan, inimigo declarado do Cristianismo. Também esse transviado nas trevas do mundo, como Charles Foucauld, compreendeu, por uma fulgurante graça de Deus, que devia enquadrar-se numa casa de obediência, onde o centurião diz vai! e o soldado vai; diz vem! e o soldado vem! Com a cabeça raspada, nos serviços da cantina, no exercício da obediência, Ernest Psichari compreendeu que salvava o depósito da Fé de seu batismo. Agora é numa revista ilustrada francesa (Paris Match, junho, 23,73) que vemos três belos moços na capa a nos sorrirem como os heróis das Cruzadas e os anjos das catedrais, e a nos dizerem para dar o sangue e a vida pela pátria”. ...Um desses moços, na entrevista dada à revista, disse que a decisão firme de escolher Saint-Cyr, e de tornar-se soldado da França, foi a desordem de 1968. Quando maior era a escuridão, quando todos sentiam desânimo, viera-lhe aquela inspiração: ele escolhia uma vida, um testemunho que enfrentasse aquela onda. Vive-se uma vez só. Vivamos dignamente, vivamos com pureza, e assim ofereçamos todos os bens particulares, saborosos e legítimos, pelo serviço as Pátria, que é um símbolo do serviço de Deus. Compreende-se assim o horror, o ódio que a torrente revolucionária e inimiga de Deus e do homem tem do soldado. Compreende-se o empenho com que sempre procuraram destruir e desmoralizar as virtudes militares. E também se compreende que, nesta hora de trevas em que vivemos, só se salvará a civilização, a decência e a grandeza da vida humana se se multiplicarem os moços capazes do testemunho da verdade dado pelo centurião diante da Cruz. Precisamos de moços que militem com votos monásticos ou com virtudes militares. Precisamos de opções vigorosas e verdadeiras. E é por isso que senti um calor de animação nova quando li as notícias do Chile, quando ouvi o sermão na Igreja da Santa Cruz dos Militares, e quando vi o sorriso dos moços de Saint-Cyr.

Revista Permanência, Novembro de 1973, N° 61

Concepção romântica e realista do amor Quando a pedagogia católica nos ensina que o fim primário do casamento é a prole, e que daí se deduz a indissolubilidade do vínculo, temos geralmente uma impressão penosa. Parece-nos biológico demais o raciocínio que começa por considerar a natureza genérica do homem. Parece-nos que a prole, apresentada severamente pelo Código de Direito Canônico como fim primário do casamento é uma exigência da espécie, heterogênea com a experiência do amor que é personalíssima. Parece-nos que os casais humanos, aprisionados nas surpresas do amor — que seria um engodo — são oferecidos em holocausto ao Moloch da espécie. Por mais amados que sejam depois os filhos, não é pelo amor deles, nem pelo desejo deles que começa a história do amor humano. Ao contrário, salvo exceções que até se nos afiguram esquisitas, é por um encantamento recíproco, onde só existem dois, que começa a história de uma família. Observando dois namorados, é difícil discernir nos seus gestos, nas suas atitudes, alguma coisa de institucional que de longe lembre o que diz Santo Tomás e o que severamente preceitua o Código de Direito Canônico. Que quererá isto dizer? Á primeira vista chega-se a pensar que há realmente uma espécie de malícia com que o gênio das espécies pega os namorados desprevenidos. Namoro e família são opostos pelo vértice. O namoro é anti-social; mais parece conspiração do que edificação do bem-comum. O namoro foge à família, fisicamente e psicologicamente. Por mais que a acabrunhante experiência prove que os noivos se transformam sempre na pacata espécie de ser que parece realizar a lagarta depois da borboleta, os namorados tiveram, desde que o mundo é mundo, a impressão de ser única, inédita, inteiramente nova a história de seus amores. Que quererá isto dizer? Será falsa a experiência do amor nascente ou será artificioso e forçado o que os doutores dizem do casamento? Ou então, quem sabe se não estarão mais certas as vozes que recentemente se levantaram para afirmar o primado da completação mútua, em oposição ao ensinamento tradicional? Estamos aqui diante de duas concepções do amor e do casamento: uma que acentua a ordenação à prole; outra que acentua o caráter individual, a mútua completação. A primeira, como já disse, deixa-nos embaraçados diante de certas dificuldades. O próprio vocábulo “prole” é assaz antipático. E a idéia de uma total subordinação do indivíduo aos interesses da espécie — como às vezes é apresentada esta doutrina — tem uma intolerável ressonância totalitária. A segunda concepção é geralmente apresentada com vocabulário mais persuasivo. Um autor recente fala em completação ontológica, e em comunidade de amor; o que parece mais elevado e convincente do que a “prole” dos tradicionais. Ora, nós vamos ver, no decurso deste trabalho, se me não faltar o engenho, que é a primeira concepção que está certa. E farei o possível para provar também que é naquela direção, e não na outra, que nós encontraremos o que há de verdadeiramente bom e belo no amor humano. Para responder às dificuldades que nos apareceram convém analisar um pouco mais detidamente o encadeamento das experiências amorosas desde o primeiro encontro até as núpcias. Variam muito essas experiências, mas nas suas linhas gerais há qualquer coisa de essencial e de constante nos mais diversos itinerários de amor. A primeira fase do amor é a da surpresa feliz diante de uma descoberta. Precede geralmente a mútua declaração. É uma iluminação na vida, um encantamento de quem, de repente, acha mais rico o universo. Ela existe! Dir-se-ia que faltava alguma coisa no mundo, para ele ser um mundo razoável e que agora se preenche a lacuna. Essa primeira experiência é uma espécie de contemplação, é mais metafísica do que moral. A bem amada (ou o bem amado) nos parece como um arauto da riqueza do ser. Não é em si mesmo que o homem, no limiar desta experiência, sentia a falha. Era antes no cosmos. O homem, apesar de todas as carências, apesar da brecha sexual, sente-se substancialmente inteiro. Malgrado todas as deficiências que o aguilhoam, ele projeta para fora de si a idéia de incompletidão, e responsabiliza o universo. É o universo, é a inação, é o ser das coisas que está empobrecido para os olhos do solitário. As existências estão rarefeitas, o ar das realidades é irrespirável.

Esse sentimento de um cosmos opressivo e avitaminado pode agravar-se a ponto de se tornar o homem metafisicamente pessimista, inimigo pessoal do ser. E essa inimizade, chegando às últimas conseqüências pode levar à neurose e ao suicídio. É pela afetividade, por um sentimento que eu chamaria de cordialidade metafísica, que o homem se equilibra no universo; e são as pessoas, as relações de amizade que mantém essa saúde da alma. Ora, a primeira notícia de amor é uma explosão luminosa no quadro das afetividades cinzentas. Ela existe! Uma luz nova brilha no mundo. E assim começa o amor humano por uma Visão. A primeira grande notícia que nos traz o amor é pois a da superabundância do ser. O universo, não só está completo, como também excedeu às expectativas. Existe o amor, existe o desejado! E dessa notícia o homem deslumbrado tira um agradecimento atirado às estrelas. Antes de entrar na fase do isolamento e da conspiração, o namorado de um dia é expansivo, tem vontade de abraçar as pessoas que passam, tem desejo de ver em torno de si uma universal felicidade. Ao contrário, e ainda que já tenha alcançado os pontos mais avançados do itinerário, inverte-se a experiência nos dias de malogro. Volta tudo atrás, passando em sentido oposto pelos mesmos pontos. O universo torna-se pérfido, emagrecem as existências, fica tudo cinzento, sem perfume e sem gosto. A decepção amorosa diminui o brilho das estrelas. Resseca o cosmos. Encolhe o mundo. Ninguém ignora como é fútil propor derivativos aos decepcionados do amor. Não há em todo o universo riqueza capaz de obturar aquele buraco produzido pela falha do amor, porque a falha do amor empobrece todo o universo. Há então, na ordem criada, no oceano do ser, um refluxo, um baixa-mar que o filósofo chamou de a “revanche de l’être”. Prosseguindo o exame das etapas do amor, eu diria que ele vai descer agora do plano da contemplação metafísica para a ordem prática; ele vai produzir uma certa atividade: os namorados se procuram, se isolam, como se para cada um bastasse o outro, ou como se toda a riqueza do universo estivesse cristalizada na pessoa do outro. Nesse momento, o bom e o belo descem do firmamento transcendental do ser, e se realizam em analogados. A visão, tocando os sentidos, como uma centelha, põe em movimento as forças criadoras que têm raízes profundas no sexo. E os namorados começam a fase do bailado do amor. Dançam. Cantam. Vivem a intensa poesia do deslumbramento encarnado. O amor desceu do céu e toca a terra, a boa terra do grão e da uva, e firma sua tenda de aventura no domínio da poesia. Viverão doravante os namorados num jardim de delícias. Exultação espiritualizada dos sentidos, tensão ascencional que subtiliza o sexo com a reminiscência do belo e do bom transcendental, o amor-idílio é engenhoso na confecção dos instantes em ninho, é harmonioso nos gestos, é gracioso nas atitudes e nas palavras. Estamos agora na fase do amor-poético. A mais universal experiência através das mais caricatas deformações ou das mais sublimes realizações, comprova essa estação do amor nos domínios da poesia. A namorada desses dias é para o namorado um ser poético, essencialmente destacado e diferente dos outros seres prosaicos que ele vê em casa na hora do jantar. Não é por mero acidente, espécie de sarampo da alma, que o namorado de todas as épocas sempre tentou fazer versos, para exprimir de modo adequado a sua experiência. Como porém a poesia-expressão é um dom especial de uns poucos, resulta em humilde aborto, algum acróstico ou algum soneto, a maioria das tentativas que não conseguem exprimir a poesia-experiência do homem comum. O amor de um Dante ou de um Petrarca não é maior, não é necessariamente melhor, mais amplo e mais vivo do que o obscuro amor de um funcionário padrão L que se apaixonou por uma comerciaria padrão K. O namorado comum vive a sua própria poesia; o namorado das grandes lendas exprime a sua experiência. E exprimindo-a empresta a lira a todos os namorados que não tenham o mesmo dom. Mas essa contribuição, a rigor, não é indispensável, porque o namorado quer mais viver do que dizer sua amorosa poesia. A primeira conseqüência dessa fase do amor é a contração do universo, não num sentido de empobrecimento e de miséria, mas num sentido de aconchego. Toda a ordem criada passa a ter para os namorados uma significação emoldural. As estrelas e as rosas são magníficos supérfluos para o adorno do amor. Os namorados sentem uma angústia dos grandes espaços, fogem da luz, evitam o convívio que põe em risco a unidade magnífica do poema que vivem. A obra de arte, a composição, tem sempre esta característica essencial: é qualquer coisa arrancada ao confuso e desarrumado reservatório comum; é um cristal. Fazer uma estátua é arrancar o mármore que sobra; é tirar a forma escondida no informe. O artista é o homem que mais agudamente escolhe, e que

portanto mais resolutamente recusa. A obra de arte é sempre uma exceção, uma ablação, um protesto, uma espécie de greve. Ora, é com todas essas características de isolamento, de retraimento, de recusa heróica que se reveste o amor-poético. E é nesse ponto, nessa especial atitude, que um par de namorados mais se diferencia de um casal cercado de filhos. Ou melhor, é neste ponto que família e namoro se opõem, e que não parece aplicado aos namorados o que os doutores dizem do fim primário do casamento. Realmente, a nota dominante, o fim desse par em idílico enlevo é a mútua completação, a harmoniosa, diria até poética completação. O par se fecha, se basta, se define por si mesmo, se completa como as partes de uma obra de arte de completam. Diremos nós então que existe realmente uma contradição entre o amor e o casamento, ao menos como o definem os doutores? Aqui é que tocamos o nervo de um grande problema: e aqui é que bifurcam duas concepções do amor radicalmente diversas. Nós responderíamos afirmativamente àquela pergunta se o amor-poético fosse para nós todo o amor. E esta é a concepção do romantismo. Mas responderemos negativamente se amor para nós tem outra significação mais ampla. Ou melhor, diremos assim: o amor-poético tem realmente uma certa contradição com o casamento e com a família; mas o amor-poético é apenas uma estação do amor. Nesse ponto de seu itinerário, efetivamente, o par de namorados nada tem de matrimonial. Diria até que há no idílio poético alguma coisa de anti-matrimonial que resiste, que se arma em tensão contra as conseqüências fecundas do amor, que defende o especial caráter dessa união, querendo perpetuá-lo, sentindo talvez um certo horror de se reintegrar na vida comum, preferindo às vezes a morte harmoniosa, lírica, exaltada, às humildes conseqüências do amor fecundo. O poeta, ao contrário do que pretendem certos insensatos que pretendem viver a poesia, é alguém que morre abraçado à obra que termina. Cada obra de arte tem arestas que recusam à promiscuidade e ao destino comum; cada obra de arte contém em tensão uma condenação de vida, e por conseguinte um princípio de morte. O amor-poético quando não tem seu normal dinamismo transformante, pretende também essa condenação de vida, e encerra também o mesmo princípio letal. No amor-cortês, em que essa tensão é levada ao máximo, nós vemos associadas intimamente as idéias de amor e de morte. “Quereis ouvir uma bela lenda de amor e de morte?” pergunta-nos o trovador medieval. Tristão e Isolda serão para sempre os enamorados perfeitos desse perfeito amor-poético, que procura eternizar a flor e recusar o fruto. O amor-cortês proíbe a fecundidade, a conseqüência, a reintegração na vida comum. Prefere a morte. E nós, que nos gabamos de reagir contra essa estranha concepção do amor, facilmente nos deixamos levar por seu encantamento. Todos nós, realmente, custamos a admitir o desenlace ordinário da extraordinária lenda do amor fulgurante. Parece-nos uma concessão à mediocridade, uma capitulação. E não podemos, sem ironia, pensar numa Isolda cansada, numa Isolda que tivesse o título de madame Tristão. Uma outra característica essencial da obra de arte é a ficção. Se é verdade que o artista se abastece na natureza, não é menos verdade, que introduz uma novidade de forma impressa no antigo material. O artista é essencialmente criador, inventor, inaugurador. Mas, essa ficção que o artista põe em sua obra conserva uma ligação de verdade profunda, mas uma ligação indireta, obscura, que foge aos sentidos e se perde no mistério do ser. “Truth is poetry, poetry is truth”, dizia Shelley. A arte não pode viver sem a lâmpada da verdade, dizia Ruskin. Assim também, no amor-poético, há uma composição, uma invenção, uma ficção que é própria da natureza poética dessa experiência, mas que entra em choque com a vida comum dos personagens. Os namorados, quando namoram, estão num palco sem platéia. Dançam, brincam, representam. Mas quando se separam, e voltam à vida comum, sentem a descontinuidade, como atores que acabassem de representar Tristão e Isolda e voltassem para casa num ônibus superlotado. Direi que há uma mentira nos jogos do amor-poético? A resposta aqui é mais difícil do que no caso próprio da poesia. Haverá mentira na medida em que o amor-poético resiste ao seu efêmero mandato, e recusa a reintegração na vida comum. Mais adiante voltarei a esse problema do romantismo, que situa no amor-poético toda a essência do amor. Veremos então de que aberrações pode revestir-se essa paixão que tem nome divino. Agora, neste capítulo, para dar alguma inteireza à breve análise que estou fazendo dos itinerários do amor, imagino uma evolução normal.

Mas essa evolução normal não se processa com um encadeamento necessário, como a flor se transforma em fruto. O namorado não vira noivo, e o noivo não vira marido. Há em cada uma dessas transições um ato livre, uma tomada de consciência, uma escolha. É essa tomada de consciência, essa livre decisão que introduz na história do amor a disposição propriamente matrimonial que faltava no clima do amor-poético. O erro dos autores que abordam esse problema, admirando-se da heterogeneidade que se observa entre as primeiras experiências do amor e as exigências do matrimônio, é o erro do naturalismo. Abordam um problema dessa magnitude e dessa intensidade humana, como se devesse existir um encadeamento necessário, um determinismo rigoroso decorrente da natureza física do homem. Ou melhor, como se o amor não se movesse no universo da liberdade. Se a atração dos sexos estivesse no homem ordenada irresistivelmente à procriação, como parecem ensinar alguns outros autores que apresentam deste modo desumano o problema do casamento, não haveria solução para explicar cabalmente a aparente contradição que existe entre o idílio e a instituição da família. Ou, pelo menos, para explicar a consciência que temos dessa contradição. É o ato livre, a tomada de consciência, o conteúdo moral dessa decisão que concilia as duas fases do amor, e que introduz a nota essencial que doravante se orientará para os fins do matrimônio. Dir-se-ia que a estação do amor no domínio da poesia tem o sentido de valorizar ao máximo a disposição generosa voltada para a fecundidade e para a sociabilidade. É o mais alto desafio lançado à alma humana: o jardim de delícias deve ser abandonado, voluntariamente abandonado, para a grande missão social da família. Por si mesmo o amor pede continuação de entrega e generosidade. Os namorados do paradisíaco amor-poético são solicitados por duas forças a seguir o ímpeto conseqüente de seu mútuo afeto. De um lado as forças do sexo pedem união mais completa do que as que proporcionam as carícias superficiais do jogo idílico. Resistem a essa solicitação física que viria toldar a pureza do bom amor. Por virtude moral, e por sentimento poético, defendem-se desse impulso dos sentidos. Por outro lado, em nível mais alto, o amor quer ser difusivo, quer ser fecundo em toda a sua extensão, quer, digamos assim, retornar à atmosfera da abundância do ser. É nessa linha de inflexão que evolui normalmente o amor humano, com plena consciência dessa inflexão, dessa volta à intersolidariedade universal, que é tanto mais generosa quanto mais deleitoso é o jardim fechado que é preciso deixar para a aventura do amor fecundo. Nesse momento, o amor que havia acampado no domínio da poesia, por um “rebondissement” procura um bem mais alto, mais substancial do que o bem deleitoso do puro amor-poético. E os namorados agora se voltam resolutamente para esse bem maior, que é belo e bom como diziam os gregos, mas de uma beleza obscura e humilde. Em outras palavras, os namorados inscrevem seus mútuos afetos, seus dias felizes, seu reservatório de poesia, e mais ainda seus apetites sensíveis, tudo enfim, sonhos, aspirações, sexo, na pauta ampla do universo moral que abrange o homem todo, desde a mais fina ponta da alma até as impaciências do sexo. E é aí, no universo moral, no país do belo e do bom, ou do bonum-honestum, como dizem os filósofos, que o amor está no seu verdadeiro domínio. O amor humano, configurado à vida física do homem, tem esse estranho itinerário: parte do paraíso para o mundo; começa na claridade de uma visão e aceita a inflexão com que se torna aparentemente menos fulgurante, e menos belo. Troca o brilho pela obscuridade, a delícia pela dedicação; e deixando guardada a beleza com que se compõem as óperas e as baladas, reveste-se da obscura, da paciente, da humilde bondade — da pura bondade que é apropria essência do amor. E é neste ponto que começa a verdadeira e inenarrável história do verdadeiro amor. E é neste ponto de inflexão que inicia uma nova e invisível ascenção em que o amor rastejante espera o dia em que a crisálida se liberte, e as asas vivas da alma tornem a encontrar a grande luz, o grande fogo, que é a fonte viva de todos os genuínos amores. (A Ordem, Junho de 1952)

Fora da realidade

— Mamãe, você está fora da realidade!... exclamou com admiração e carinho a boa filha que ainda entretém sentimentos afetuosos por sua mãe, mas não esconde o pasmo que lhe causa seu espantoso alheamento às “realidades”.

Este grito de toda uma geração contra tudo o que encontrou já feito, já preparado e já servido nas mamadeiras é essencialmente um grito de ingratidão organizada, a serviço da onda de desordens que se avolumam contra o IV mandamento e, portanto, contra seu Autor. Mas antes, tal gravidade é uma proclamação universal da tolice, da bobice que dá o nome de “realidade” às coisas, aos fatos, aos acontecimentos, aos procedimentos que querem se impor por suas “existências” ao mesmo tempo que se furtam a qualquer juízo de valor em termos de bem e de verdade. Diante desse ídolo — “o que todos fazem” — a quase totalidade dos moços de nosso tempo ficam possuídos de um critério infalível que lhes dá uma coisa de um brutal determinismo físico que eles confundem com liberdade, por lhes parecer que estão sempre fazendo o que querem, quando, na verdade, nunca estão propriamente fazendo nada, mas fazendo o que todos fazem. Pobres vitimas de uma perversa tradição, julgam-se herdeiros opulentos, quando não passam de portadores de taras acumuladas por uma corrente histórica que, em nome de uma categoria denominada “liberdade” e desde a denominação ambígua, passa a relativar e a contestar a verdade e o bem.

O liberalismo produziu este fruto que passa de verde a podre, sem amadurecer. O melhor exemplo deste século está no amontoado de assombros disparates produzidos principalmente pelos povos de língua inglesa que, sempre em nome dos mais filantrópicos princípios, e dos mais desumanos erros, fizeram de nosso triste século este estuário de desordens de incalculáveis conseqüências. Vimos em poucos anos desmoronar-se o maior império de nossa historia. E por quê? Que fizeram os ingleses para em tão pouco tempo perderem o Império? Combateram heroicamente, quando uma conjuração de traições alheias e próprias os deixaram isolados diante da máquina de guerra alemã que se tornara superpoderosa, não apenas pelo enérgico trabalho dos alemães, mas pela enérgica obstinação do mundo liberal no consentimento e na promoção da anarquia. Depois desse combate heróico, venceram os alemães e russos, mas nessa hora de vencer, ingleses e norte-americanos fizeram prevalecer a obstinação da desordem, da anarquia liberal sobre as virtudes patrióticas e militares. Como resultado dessa atitude, viu-se este assombro: o inimigo, já vencido, é admitido como vencedor. E a Rússia constrói o seu imenso império ainda mais depressa do que a Inglaterra perdeu o seu. E hoje vemos o desmoronamento dos Estados Unidos acelerar o processo de desmoronamento universal da civilização.

Sob as frágeis categorias políticas e sociais com que os espíritos fracos analisam este limiar do Apocalipse, o instinto cristão sente a presença de correntes históricas profundas dirigidas pelos inimigos de Deus e do gênero humano. A Igreja de Cristo é invadida pelos piores malfeitores saídos de sua própria hierarquia, e uma anti-igreja se ergue contra ela, a lhe gritar que ela, a Mãe, a Mestra, está fora da realidade.

Voltemos ao princípio: a idéia de soberanizar a “realidade” que se impõe por sua própria existência, deixando o homem fora da possibilidade de atuar, de reagir em termos de verdade e de bem, é o mais vergonhoso erro metafísico e moral de toda a história. Se nós conseguíssemos gritar aos moços: — Reajam! Sejam homens! — acordem, porque vocês estão imersos numa realidade que está fora da Verdade e do Bem! — se conseguíssemos o aparelho acústico ou publicitário para tal grito, receio que logo, em poucos minutos, o perdêssemos, arrancados de nossas mãos por uma sinistra maioria que hoje existe no mundo, e logo usaria o dito aparelho para denunciar nossa alienação: — Eles estão fora da realidade!

Deve ser isto que hoje impede a verdadeira Igreja de falar, de aparecer ao mundo em sua santa visibilidade, decorrente do Verbo Encarnado; deve ser este dilúvio de erros que dá à caricatura da Igreja, dirigida pelos inimigos da Una e Santa, a força publicitária de se impor como sendo a válida, a Igreja da “Realidade” que usurpa o lugar da Igreja de Verdade e do Bem, denunciando-a aos berros: “Ela está fora da realidade”.

A mocinha que discute com a mamãe, em termos de “realidade”, se acaso conseguisse ler estas linhas, e chegar até este ponto, se tivesse mantido em sua alma profundidades capazes de tão tremendo espanto, seria capaz de desmaiar, com a tomada de consciência de sua abismal alienação. Imaginemos que choque produziria nas profundezas da alma este simples pensamento: — Então, na verdade eu vivo tão imersa numa “realidade” imposta por sua simples existência que não me sobra nada para ser eu mesma, um ser capaz de negar e capaz de adorar uma Verdade que seja a sua própria existência e que realmente, por tudo que em mim tenho de melhor, se me impõe com exigência de conhecimento e de amor.

O fato é que a passividade moral diante do quadro de costumes que se impõe tiranicamente é uma das formas mais repugnantes de aversão a Deus que coletivamente a história já produziu. Os sedutores, contestadores do IV mandamento, que tanto exaltaram os “jovens”, conseguiram deprimi-los a uma extrema chatice. Nunca, em tempo algum, foram tão pouco alegres, tão pouco sérios, tão pouco ardorosos, tão pouco jovens.

Imagino, com pavor, que nas formas extremas de degradação, que a época generosamente oferece, os pobres massificados, os pobres desossados, nos vislumbres de nostalgia moral, lá se consolem, com este pensamento lúgubre: — estou presente na realidade de meu tempo.

A esperança que me dão todas as vozes verdadeiramente católicas é a de que Deus não permitirá que a vitória de Satã seja total. Já nos assombra a paciência com que Ele suporta a insolência de sua criatura que ousa esticar-se para injuriá-lo, para negar-lhe obediência. Temos vontade, às vezes, de incitá-los: depressa! depressa! mais! coragem!

E ao mesmo tempo, de mistura com o temor e com a impaciência, nos invade, quando pensamos na iminência do fim, o mesmo sentimento que Leon Bloy confessou, na hora da agonia: uma imensa curiosidade.

08/08/1974

O casamento e a moral segundo Bertrand Russell No quinto capítulo do livro escrito sobre casamento e moral, Bertrand Russell faz da ética cristã um resumo que, por sua singularidade e pela importância do autor, merece um comentário. Começa por dizer: "O Cristianismo, e mais particularmente São Paulo, introduziu um ponto de vista inteiramente novo sobre o casamento, pelo qual o casamento não existe primeiramente para a procriação, mas para evitar o pecado da fornicação". Ora, como sabemos, a doutrina católica, desde Santo Agostinho, ensina explicitamente, e insistentemente, que a procriação é o fim principal do casamento. Como se explica que o famoso pensador (que para muita gente é o maior filósofo vivo) tenha tido a coragem de abordar tema tão grave, e tenha tido o desembaraço de expor o pensamento que pretende criticar, sem o prévio cuidado de compulsar os mais autorizados e divulgados textos? Por mim, não sei explicar. Sei que o pensador se apega à idéia que em diversas passagens de seu livro reaparece. Pouco adiante, no mesmo capítulo, lemos: "O reconhecimento de que os filhos são um dos propósitos do matrimônio é muito parcial na doutrina católica". Ora, torno a dizer que na doutrina católica, desde o De Bono Conjugali de Santo Agostinho, até a encíclica Casti Connubii de Pio XI [1], a prole é apontada como fim principal do casamento. Abordando o problema do divórcio, com sua peculiar desenvoltura, o autor inglês assinala, com ar de quem está descobrindo uma coisa nova, que entra em jogo uma ética completamente diferente (da de São Paulo) quando o casamento é concebido em função dos filhos. Ora, como fartamente sabemos, é principalmente em torno da salvaguarda dos filhos que os católicos costumam argumentar para provar a malignidade do divórcio. Em apoio de sua esquisita interpretação do pensamento católico, o autor se vale de uma passagem paulina (I Cor. VII, 1 a 9) onde efetivamente o apostolado aborda o problema sob o ponto de vista do remédio da concupiscência. Em outras epístolas, como por exemplo naquela que é lida na missa do matrimônio (Ef. V, 22 a 33), o Apóstolo apresenta o aspecto mais positivo, o companheirismo sobrenatural ou a procriação mútua, mas é inegável que naquele tópico aos Corintios cuida de uma aspecto negativo. Esse ponto de vista (remédio contra a concupiscência) existe também dentro do corpo de doutrina, mas não é ele que dá a nota essencial da questão. Ignorará o laureado filósofo que uma mesma coisa pode ser abordada sob ângulos diversos, conforme o problema proposto, e que é mister, entre as várias perspectivas, discernir aquela que fornece os traços positivos e característicos da coisa estudada? Se Bertrand Russell tivesse lido o Gênese ou Santo Agostinho com a mesma atenção que leu Havelock Ellis e Albert Londrés, teria encontrado passagens como esta: "O casamento também tem a vantagem de remediar a juvenil incontinência". Mas logo a seguir leria: "Nós não dizemos que o casamento é um bem relativo, ou um bem em comparação com a fornicação. Teríamos assim dois males, e o casamento seria um mal menor". Ao longo de muitas páginas, onde se vê a preocupação de combater os maniqueus, Santo Agostinho apregoa enfaticamente a intrínseca bondade do casamento. Cita o

mesmo São Paulo (Tm. I, V, 16) para dizer que é bom casar, e logo acrescenta: "porque é bom ter filhos e ser mãe de família". Convencido de haver achado o tutano da doutrina católica, Bertrand Russell dá mais um passo e descobre no mesmo São Paulo ( I Cor. VII, 32 a 34) que mesmo no casamento a relação sexual é obstáculo no caminho da salvação. Ora, isto não é somente, como no caso anterior, um erro de quem toma uma nota acidental por definição essencial. O erro agora é mais grave. O pensador britânico, talvez por não haver compreendido o texto, inventa uma interpretação em conformidade com seu preconceito. Na referida passagem, São Paulo se dirige aos que buscam a vida religiosa mais direta (que hoje chamamos vida contemplativa ou monástica) e diz que o casamento tem a desvantagem de dividir e dispersar os movimentos da alma. Mas de modo algum ensina que o casamento seja obstáculo à salvação. Será preciso mostrar ao famoso filósofo que aqui se aborda o problema dos meios e não do fim? O mesmo fim, o céu, pode ser atingido por diversos caminhos. Todos os católicos, por preceito, têm de orientar a vida para aquele fim; mas nem todos terão de seguir o mesmo itinerário. A recomendação paulina tem, como se diz em teologia, caráter de conselho e não de preceito, e baseiase, evidentemente, na idéia de que um estilo de vida é superior ao outro, sendo ambos bons. E note-se que, na referida passagem não há a menor alusão ao sexo, e sim aos múltiplos cuidados que a vida doméstica exige. Tudo isso pode ser constatado e detestado. Uma pessoa pode achar ridícula a fé católica, mas se quer criticá-la deve conhecer os seus artigos. E se não quer ter esse trabalho, deve então falar de outra coisa, que assuntos não faltam. Mais adiante, e com crescente desembaraço, Bertrand Russell ensina que, na moral católica, "o ato sexual só é legítimo dentro do matrimônio, e além disso, passa a ser pecado, mesmo no matrimônio, se não houver esperança de provocar gravidez". E acrescenta: "Com efeito, segundo a Igreja Católica, o único motivo que pode justificar o ato sexual é o desejo de procriar". Ora, a parte grifada nunca, jamais, foi ensinada pela Igreja. Aquilo não existe. O filósofo sonhou. Não há pecado algum, nem sombra dele, nos atos sexuais entre pessoas estéreis ou entre cônjuges durante o período de gravidez. Ao contrário do que imagina o maior filósofo dos tempos modernos — e qualquer cozinheira católica sabe disto — a Igreja só proíbe os atos que contrariam o curso da natureza e ensina que também se ordena à alegria dos cônjuges o uso dos corpos. Não sei bem conciliar tamanha leviandade com os títulos do autor e com o Prêmio Nobel. Como disse atrás, admito perfeitamente que um festejado filósofo deteste nossa doutrina. Já me custa um pouco mais admitir que um grande pensador a tal ponto ignore os detalhes de um Fato que há dois mil anos incomoda os pensadores. E muito menos aceito que se aventure a discorrer sobre alguma coisa tão exuberantemente ignorada. No que concerne à idéia de um certo pessimismo católico em relação ao sexo, e até em relação à vida, compreendo que se engane um jornalista apressado, ou um dos que, com o lançamento dos satélites, passaram a entender de balistica e de mecânica celeste. Há realmente uma certa burrice em nosso meio, como em todos, que pende na direção de uma moral sexocêntrica. Muito católico saboreia, como creme da mais autêntica procedência evangélica, aquilo mesmo que o inglês ridiculariza. Poderíamos discorrer longamente a esse respeito, e não seria difícil mostrar que esse tipo de pessimismo foi sempre visto pela Igreja como falsificação da verdade. Foram os maniqueus, e depois os albigenses, e depois os jansenistas — todos denunciados como herejes — que pretenderam introduzir na ortodoxia o rigorismo e o infecto pessimismo. A marca desses assaltos ficou, e manifesta-se na burrice piedosa. Compreende-se pois que o ignorante, que identifica o pensamento da Igreja com os sermões, com as opiniões literárias ou políticas dos eclesiásticos, ou com as conversas de algumas freiras, seja capaz de concluir que é inerente ao cristianismo a aversão ao sexo. Mas de um letrado, de um laureado em Filosofia, temos o direito de esperar pensamentos um pouco menos elementares. E sobretudo, temos o direito de exigir um pouco mais de cuidado com os textos, e de amor pela verdade.

Com o mesmo humorístico desembaraço, lembrando textos que não entendeu, e citando um que nada tem de católico, conclui Bertrand Russell que a ética cristã contribuiu "para degradar a posição da mulher". É bem verdade que alguns personagens de nossa história deixaram por escrito consignado um sagrado terror pela mulher, coisa que considero muito sensata, porque estou pessoalmente convencido de que a mulher é realmente terrificante. Mas esse sentimento é mais de admiração do que aversão. E se houver aversão, será por motivos puramente táticos. Se não me falha a memória, há um episódio na história de Pickwick em que diversas mulheres acham um homem atrás da porta e se põem a gritar apavoradas: "A man! A man behind the door!" Devo eu concluir que as mulheres inglesas têm acentuada aversão ao mundo masculino? Ou quem sabe se não ganharia o Prêmio Nobel em Filosofia se desenvolvesse em doze volumes tão original trouvaille? Na verdade, amigo leitor, salta aos olhos que não há nos evangelhos e na tradição a menor má vontade com o casamento, e muito menos com a mulher. Podemos admitir que as antigas civilizações, que colocavam a mulher em situação de inferioridade, tenham resistido e não tenham assimilado com rapidez o fermento de emancipação contido nos evangelhos. Mas é inegável que foi o cristianismo que trouxe a primeira contribuição de dignificação da mulher, e isso o próprio Bertrand Russell foi obrigado a reconhecer, depois de ter dito o contrário. Quanto ao casamento, basta lembrar a dileção que Jesus tinha pela idéia de núpcia, que freqüentemente tomou como símbolo do amor divino. Basta lembrar o seu comparecimento às bodas de Caná, que certamente não foi ditado pelo respeito às convenções sociais. E basta lembrar que foi nesta festa que Jesus realizou seu primeiro milagre, que era um prenúncio de seu futuro sacrifício. São Paulo, o severo e monástico São Paulo, firmava pé nas boas casas de família, que chamava de igrejas. São Pedro era casado. Quanto a mulheres, para mostrar a extensão do âmbito que o mundo delas tem nos evangelhos, lembremos que Maria Madalena, a prostituta, foi uma das mais diletas amigas de Jesus, e é considerada uma das maiores santas da Igreja. E lembremos também aos grandes filósofos dos tempos modernos que é uma mulher, esta agora sem mancha de pecado que reina e reinará sempre no Céu e na Terra. No mesmo livro Bertrand Russell diz que o "sexo é uma necessidade natural, como o comer e o beber". Quero crer que não sejam frases assim que tenham trazido para o autor inglês sua imensa popularidade e seus elevados títulos. Trata-se efetivamente de uma proposição que tem sido formulada em muitos idiomas sem que possamos descobrir, na mais exaustiva das pesquisas, quem foi o felizardo que, pela primeira vez, num momento de iluminação, a enunciou com todas as silabas. Daí para cá tem sido repetida a frase e todos nós já tivemos ocasião de observar a satisfação e o ar de finura que geralmente acompanha o enunciado. Nós outros, que afirmamos a terrível diferença que existe entre o sexo e a alimentação, costumamos às vezes trair um certo acabrunhamento, como se nos pesasse a singularidade, a peculiaridade do sexo; mas o emancipado, que assevera a semelhança, que equipara o sexo ao comer e ao beber, ostenta sempre o ar jubiloso e superior de quem acabou de descobrir uma verdade libertadora. Tudo se passa como se quiséssemos fugir da realidade do sexo, como freqüentemente queremos fugir das implicações da racionalidade ou das obrigações da cidadania. Há na fragilidade da natureza humana uma tendência à fuga, não somente à fuga das prisões formadas pela palissada de preconceitos que nos ferem as asas da alma, mas à evasão daquilo mesmo que somos. O homem é o único ser que tem a estranha volúpia de evadir-se, não das grades externas, mas dos eixos internos. Na verdade, aquela proposição, como todo lugar comum solidamente estabelecido, é falsa. De dois modos podemos comparar duas coisas que não sejam idênticas: pelas semelhanças, ou pelas diferenças. De início observemos que há um traço de semelhança entre todas as coisas. De Deus ao átomo há um denominador comum que os filósofos — não os da escola do sr. Bertrand russell — chamam de analogicidade de ser. Além desse denominador comum transcendental, existem analogias menores, mais superficiais, mais visíveis, e de certo modo mais aproximadoras. Posso dizer, por

exemplo, que uma borboleta se parece com uma flor, que certos homens são como montanhas, e outros como juncos ao vento. Posso jurar que vi passar uma mulher ao fogo; e posso asseverar, como o poeta, que existem as lágrimas das coisas. De analogias se alimentam os metafísicos e os poetas, porque existe um vínculo de parentesco real entre todos os seres. Considerada sob o largo ângulo da analogia, a frase do autor inglês é inatacável. O sexo é realmente uma coisa natural como natural é o estômago. Mas nesse caso o autor inglês poderia ter construído assim a sua frase: "Os homens e as mulheres têm sexo, como têm pernas, braços, esôfago, imaginação, etc." Creio que nenhum de nossos autores jamais pretendeu que o sexo fosse no homem um acidente sobrenatural. Sexo é natural. Estamos todos de acordo. Ainda mais: tanto o sexo como o comer, segundo Bertrand Russell, geram desejos que são ampliados pela abstinência e temporariamente apaziguados pela satisfação. Creio também que ainda não houve no mundo um filósofo tão desvairado e tão mal informado que tenha chegado a negar que o sexo produz desejo. Além disso cumpre notar que não se reduz àquele esquema tão simplificado o misterioso aparelho dos desejos humanos. O homem é um ser extravagante, sob esse ponto de vista, e capaz dos mais variados desejos. Tem desejo de comprar um disco de Bach, e desejo de passear livremente na praia. Sendo contrariado, pelas leis cambiais do país num caso, ou por interferência da polícia no outro, o desejo pode se ampliar e tomar proporções inquietantes. Não é portanto o desejo que especifica o sexo e que o aproxima daquelas outras funções naturais. Nem me parece que valesse a pena escrever um capítulo de um livro para provar que o sexo gera desejos. Os psicólogos modernos provaram que existe um entrosamento interno entre os instintos de conservação da vida, pela nutrição, e o instinto sexual; e todos nós sabemos que há certas polarizações ambíguas no corpo humano, que tanto funcionam numa direção como em outra. É antigo como o mundo o gosto dos beijos amorosos, por onde se vê que a mesma boca, que já servia para falar e para comer, serve também para beijar. Tudo isto prova a existência de interações muito íntimas enfeixadas pela imanência vital, mas não prova que os desejos de falar, de comer ou de beijar sejam da mesma espécie. E muito menos prova que, sendo todos eles desejos naturais, devam ser atendidos com o mesmo grau de naturalidade. Consultando agora o lado exterior da questão, isto é, o objeto que especifica aqueles desejos; e depois ponderando a finalidade de cada uma das funções, começaremos a ver a diferença, bastante apreciável, que separa o amar do comer. O objeto da fome é o alimento que pode ser vegetal, ou eventualmente animal. O homem tem fome, como sabemos, tem atração por uma maionese ou por um bife. Em certos casos pode ter preferência por um bife de carne humana, mas não é essa espécie de alimento que especifica a fome humana. No caso do amor físico, o homem sente atração por um corpo humano. Concluiríamos então, se quiséssemos insistir no aparelho, que o amor é mais particularmente parecido com a antropofagia do que com um jantar trivial. Quanto à finalidade, o homem come para se manter vivo; mas não é para isto , por mais veemente que seja o impulso, que o homem procura mulher. Tão imprudente é às vezes, que até chegamos a pensar que mais se parece com suicídio como acontece com as abelhas, do que com sustento. Objetivamente, esquecendo os ímpetos da paixão, todos nós sabemos que o sexo tem por finalidade principal a geração de vida. A essa orientação produtora, diríamos nós, corresponde um instinto de morte, ou de despedida, já que plantamos aquela nova árvore da vida. Seja como for, esteja a razão com Freud ou com os poetas românticos que sempre viram no ato de amor uma espécie de morte, há uma profundíssima diferença entre a finalidade da boca que come e da boca que beija. Aliás, buscando agora nos moralistas uma contribuição, veremos que há uma chocante diferença entre as duas coisas que o autor inglês aproxima. Todo o homem tem direito à existência, e por isso, segundo os mais austeros moralistas, pode roubar para comer, para salvar a vida. O faminto tem direito de roubar um pão sem cometer sombra de pecado. O padeiro, de seu peculiar ponto de vista, não poderá distinguir os casos autênticos dos falsos e tem todo o direito de chamar a polícia. Mas suposto o conhecimento perfeito do ato interior, o moralista católico dirá que não há culpa, nem merece o nome de roubo, o ato daquele faminto. Transpondo o problema para o lado do sexo, teríamos que admitir o estupro se admitirmos a equivalência de naturalidade entre sexo e fome. E então, para atender a uma parte da humanidade que quer se alimentar, teríamos de achar natural que a outra parte da humanidade não se opusesse a servir de alimento. O próprio Bertrand Russell, páginas adiante, reconhece a necessidade de impor alguns limites ao uso do sexo, mas então, pergunto eu, se nós

admitimos, depois de todas essas considerações, que o uso do sexo deva se inscrever num universo ético, por que começar por aquela equiparação entre o sexo e o comer? A tendência do autor inglês é tirar, daquela sentença, que mostra o sexo tão natural quanto o comer, uma norma de maior naturalidade no uso do sexo. Ele quer o amor livre, quer a libertação dos preconceitos que exasperam os problemas do sexo, quer derrubar os tabus, os dogmas, as práticas ascéticas, mas não ousa dilatar até o infinito os domínios da naturalidade. Subsistem os limites; subsiste portanto uma ética reguladora. Não se vê bem qual seja, porque esse mesmo autor que procura o máximo rigor nos problemas da matemática, tem uma impressionante imprecisão de linguagem nos problemas de filosofia prática. Nesse campo, o laureado filósofo fala como qualquer orador político. Não se embaraça com a preocupação da nitidez, e por isso ficamos ignorando quais são as novas fronteiras, e sobretudo, quais são os novos eixos de sua filosofia moral. Aceito o universo ético, sabemos que doravante a naturalidade dos atos humanos tem nova significação. Para nós passa a significar espontaneidade adquirida no exercício das virtudes, e não espontaneidade instintiva. Para Bertrand Russell não sei o que quer dizer naturalidade, amor livre, etc. Sei apenas que ele admite a idéia de uma regulação do uso das coisas, ainda que se trate de atos tão naturais como o amar ou o comer. A rigor, posso dizer que Bertrand Russell fala todo o tempo como um moralista, sim, como um moralista que está irritado com o sistema que encontrou mas não nos diz exatamente e que consiste o novo sistema que apregoa. Negando o direito de estupro, o pensador parece ter descoberto uma coisa enorme, que no ato de amor estão envolvidas duas pessoas, enquanto que, numa merenda, há uma só pessoa versus um sanduíche. Há duas pessoas, ao menos nos atos normais, e por conseguinte haverá aquilo que deve regular as relações entre duas pessoas, e que os antigos chamavam de justiça. Mas recomendando o amor livre, onde haja mútuo consentimento, o autor inglês parece não ter ainda descoberto uma coisa muito trivial mas muito importante, que é a sociedade humana com todas as suas dimensões e complicações. Em outras palavras, nós sabemos, há séculos, que duas pessoas não logram jamais se isolar do grande conjunto humano. De onde se conclui que o livre consentimento das duas não deve bastar, em nosso sistema ético, para legitimar o que juntas fizerem. É verdade que nosso autor afiança que o mundo será melhor, na base do amor livre e da emancipação sexual. Afiança, mas não prova, nem sequer encaminha o raciocínio nessa direção. O que se pode prever do hedonismo, que está na base da moral de Russell, ao contrário do que ele anuncia, é um mundo muito mais egoísta e muito mais feroz do que este que já possuímos. Há portanto uma incoerência entre a generosa aflição de Bertrand Russell diante das ameaças tremendas que pairam sobre o mundo, e a sua pregação de emancipação sexual.

O problema do lazer É este o mais curioso, e talvez o mais significativo dos problemas sociais de nossos tempos. O que fazer do saldo disponível de horas? Como vadiar? Psicólogos, economistas, políticos e sociólogos americanos já prevêem que o crescente desenvolvimento técnico trará, inevitavelmente, uma dilatação do ócio; e já se preocupam com tal perspectiva, pois parece admitido por todos que os mesmos homens que sabem fazer bombas e satélites, não sabem o que fazer de si mesmos nas horas de folga. Arma-se então "o problema do lazer". E aí está um argumento a mais para os moralistas que vêem na técnica uma força de desumanização. Já foi dito que a máquina produz desempregos. Um trator é capaz de substituir dez ou vinte homens. É portanto, concluem, capaz de despedi-los. E o fenômeno realmente se verifica. Mas, por mais que se verifique a conclusão, não é menos falso o argumento que o anuncia. A concomitância não basta para determinar uma causalidade. O fato de haver desempregos onde surge a mecanização não prova que a causa do desemprego seja a máquina. A técnica, em si mesma, é essencialmente benéfica e libertadora. E é essencialmente humanizadora, ao contrário do que dizem alguns moralistas. A técnica imprime no mundo a marca da razão, que é o traço específico do homem. Uma planície com moinhos é mais humana do que uma planície atapetada de flores. Um mar com caravelas é mais espiritualizado do que um mar vazio de navegantes. E se isto é verdade para o moinho e para a caravela, verdade será também para a chaminé e para o avião. Não é a técnica que desumaniza o homem, é a filosofia errônea que o guia. Não é a máquina que produz o desemprego, é a defeituosa estrutura social que a utiliza. A máquina, por definição, é a racionalização do mundo físico, e portanto é aquilo que torna efetivo o senhorio do homem sobre as forças da natureza. Muitas vezes se observa um resultado a contradizer uma definição: o erro estará no modo de usar, e não na intrínseca natureza da coisa usada. A polícia, por definição, é um instituto montado para promover a ordem da sociedade, mas já temos observado circunstâncias em que é a própria polícia que traz a desordem. Um exército, por definição, é um órgão destinado a garantir a segurança de uma nação; mas existem exércitos aparelhados para sua finalidade própria, que só funcionam como piramidal organização destinada a dar prestígio político a um oneroso mandarinato de generais. Tudo isso são sinais de enfermidade social, e não provas da malignidade daquelas instituições. Agora a técnica dos países superdesenvolvidos traz um curioso problema. Liberta efetivamente o homem. Permite alta produtividade com menos horas de trabalho humano. Mas em vez de bater palmas o psicólogo coça a cabeça. Preocupa-se. O que irá toda essa gente fazer do tempo que sobra? O problema é real. O psicólogo tem razão de ficar preocupado. Mas isto — o fato de existir o motivo de preocupação — isto prova que a sociedade está padecendo de uma estranha enfermidade. Mais razoavelmente eram as ponderações sobre o desemprego, porque naquilo havia a estranheza de uma contradição. Os homens se preocupavam porque a máquina, que parecia um elemento de auxílio, mostrava-se como inimiga. Agora os homens ficam perplexos porque a máquina realmente liberta. No fundo desse problema há um profundo e instintivo medo da liberdade. E esse medo, na superfície dos conceitos conscientes, aparece com os postulados de uma filosofia que é respirada, que é possuída e vivida pelos americanos e pelos russos. Segundo essa filosofia, o homem é essencialmente produtor. Realiza a plenitude de sua essência quando está produzindo. É homem, pleno homem, nas horas de eficiência. E daí se tira o conceito negativo de ócio e lazer. Ora, por escandalosa que possa parecer tal afirmação é no ócio, no lazer, no descanso ou na vadiação que o homem atinge, ou pode atingir, a plenitude de sua condição. O trabalho, em outras palavras, não tem caráter de fim. É um meio. A vida humana está condicionada para o trabalho. Metafisicamente, é mais importante chegar à casa do que chegar ao local do emprego; é mais elevado, mais plenamente humano, levar o filho ao jardim zoológico, ouvir um quarteto de Bocherini, conversar com os amigos, do

que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. Todos os títulos extrínsecos são inferiores ao título fundamental que todos possuem em casa, quando encontram o cerne de sua personalidade e recuperam o nome de batismo. O pragmatismo que tornou maquinal o ilustre inventor de todas as máquinas, e que pretende tecnicalizar a própria vida do glorioso criador das técnicas, dá ao lazer um valor negativo, como o do sono, ou como o do repouso das máquinas. Mas o repouso humano não se define como interrupção do trabalho. Ao contrário, é o momento em que a vida ganha nova dimensão e recupera a plenitude da dignidade. E sobretudo é o momento em que a alma humana conquista a liberdade para o mais alto, para o mais humano tipo de atividade: o convívio afetivo, o exercício lúdico, a contemplação da beleza e da verdade. Completa-se o quadro, em pauta de ordem mais elevada, com a vida de contemplação e de oração. A dignidade do trabalho não se mede com escala tirada do próprio trabalho, não se mede pela eficiência e pela produtividade. Mede-se pelos frutos que proporcionam, isto é, pela paz e pelo repouso que dão aos homens. É bom explorar as jazidas de petróleo para que em maior número os homens possam gozar os benefícios desse mineral, isto é, possam voltar para casa com conforto, ou levar a criançada ao jardim zoológico. Ver a zebra, ou passar a noite conversando com amigos, é a finalidade última que dá às refinarias e aos demais maquinismos sua verdadeira importância. Mas os dirigentes americanos têm razão. O lazer é um problema, ou melhor, tornou-se um problema numa sociedade que respira pragmatismo. São bem fundados os receios dos dirigentes que não vêem com bons olhos o saldo de liberdades. É preciso, desde já, preparar os povos para um regime de vida mais folgada... Veja o leitor como é estranha a vida e como é esquisito o mundo. Se há apertos, haverá o problema do aperto; se há folga, o problema será o da folga. Outro dia, aparteando um conferencista que gabava os prodígios dos "cérebros eletrônicos", que resolvem mil e um problemas, lembrei uma frase impaciente do grande Einstein. "Esta máquina — disse o sábio — resolve todos os problemas, mas não é capaz de armar um só". Em outras palavras: a máquina responde, mas não é capaz de uma coisa maior: não interroga. Em compensação, nisto o homem é exímio. É capaz de armar problema sobre o que não parecia ser problemático. E não se diga que o problema do lazer é só dos abastados. Será dos povos abastados, mas aí a todos interessará. Não é do ócio dos ricos que estão cuidando os dirigentes americanos; é do ócio de todos. Mas o que entrevi do problema não me tranqüilizou. Ou melhor, me trouxe outro problema: o problema dos psicólogos, políticos e sociólogos que estão abordando o problema do lazer. A tendência geral, ao sabor da mentalidade americana, é a de promover os recursos e meios para encher o tempo disponível. Eles querem organizar, ao lado da máquina da produção, a máquina do passatempo. A solução verdadeira, a única a rigor, está no desenvolvimento espiritual que deve acompanhar o desenvolvimento técnico. Se isto não for feito nós veremos um mundo em que a força espiritual dos homens, numa espécie de magia como a do "Retrato Oval" de Edgar Poe, se transferirá para as máquinas. Mas não é esse caminho o da valorização do lazer, que estão tomando. Ao que parece, a solução procurada está na linha do divertimento e do passatempo. E não há maneira mais imprópria, mais anti-humana de resolver o problema das horas livres. A rigor, o modo correto de resolver o problema é o de providenciar para que não haja técnico. Se isto não for feito no esquema pragmático, o lazer será sempre, definitivamente um problema, um medíocre e triste problema. Onde iremos hoje? E amanhã? Consultemos o cardápio oficial, tiremos para o caso peculiar de nossos nervos e de nosso orçamento, uma dieta de prazeres que nos escamoteiem as horas que sobram. Ao leitor que porventura, ou por desventura, supõe que o divertimento e a atividade lúdica são a mesma coisa, eu direi, com ênfase, que está enganado. A experiência lúdica tem qualquer coisa de uma experiência poética, e assim possui um alto teor de realização; o divertimento, ao contrário, é

evasão. É claro que na linguagem comum, o termo "divertimento" muitas vezes se emprega para significar os mais legítimos e puros atos lúdicos, ou as mais genuínas experiências poéticas, mas em geral significa aquilo mesmo que aqui definimos como evasão e massacre de tempo. E se o leitor quiser saber o que penso desse esquema de matar o tempo, releia o seu Pascal. Lá verá, num denso e definitivo resumo, toda a filosofia do divertimento; e então se convencerá que não há pior receita para um povo e para uma civilização do que esta que está em vigor nos países superdesenvolvidos: produzir e divertir-se.

O quarto mandamento Uma desordem total invadiu o nosso século. Em proporções gigantescas e com indomável força ela, dia a dia, conquista os núcleos básicos da comunidade humana. A característica principal da forma moderna da desordem é a inversão dos valores do convívio humano, que começa cortando os laços que ligam os diversos escalões da hierarquia social e termina no desentendimento total dos homens. Na família, os filhos estão surdos para o timbre da voz paterna. Os pais estupefatos temem os filhos. Temem principalmente perdê-los. Com cabisbaixa fraqueza cedem às suas imposições, para não perderem aqueles que de há muito perderam. Congrega-os o lar apenas por laços de um certo instinto gregário e os interesses monetários dos filhos. Mas o filho já é um estranho na casa. Na escola, a professora condicionada por uma pedagogia que nega a tendência da criança para o mal (tendência que é um claro indício do pecado original) e o valor educativo das punições, docilmente cede a todos os caprichos infantis. Nos ginásios, os adolescentes agrupados na promiscuidade da co-educação, iniciam-se nas “viagens do fumo” e dos tóxicos, preparam-se para o amor nas “inocentes” práticas sexuais, sob os olhares estimulantes e compreensivos dos orientadores educacionais. Nas universidades, os representantes do mais tolo mito do século, o mito do JOVEM, elaboram os programas, impõem e depõem os mestres e dirigentes, sob o pastoral treinamento, nas universidades católicas, de sacerdotes mais imaturos que eles e que os orientam conforme a moral permissiva e a linha subversiva. As nações, na desarvorada corrida para a tirânica democratização, já atingiram, ou estão prestes a atingir, o mais que perfeito regime da desordem institucionalizada de um Chile, de um Argentina ou dos ensaios brasileiros pré-64. Entre os católicos o vírus do desconcerto infiltrou-se em proporções alarmantes. Os detentores do poder sagrado, por pusilanimidade, por irresponsabilidade, por comodidade, por estupidez, ou, o que é mais provável, por tudo isso junto, entregaram de mãos beijadas o governo às conferências episcopais, às comissões de peritos, que funcionam como imensas máquinas manipuladas pelos técnicos da pastoral. Um poder invisível, onipresente e onipotente, age como um rolo compressor, esmagando o doce e paterno cuidado dos pastores. Estes, submissos e silenciosos, no clima asfixiantes dos diálogos, assinam tudo o que os secretários das linhas pastorais 1, 2, 3, etc. lhes enviam para que livremente não deixem de aprovar. O resultado do funcionamento dessa burocracia eclesiástica é, além

das estatísticas e das verbas astronômicas dispendidas, a orientação para uma vida cristã onde em moral vale tudo e, em doutrina, nada vale a verdade transmitida há dois mil anos. O princípio norteador da Grande Revolução é a quebra da ordem pela destruição da hierarquia, da imagem do pai, do sacerdote e do príncipe. A subordinação livre e consciente do homem ao homem na família, na cidade e na religião, força propulsora da ordem e da paz, é uma continuação da subordinação ao Criador, ao Pai Eterno. Se tudo no Universo a Deus se subordina e a Ele se relaciona como ao Criador, desde as suas origens a criatura humana a Deus se liga como ao Pai. Porque Deus concedeu ao homem algo do seu próprio ser, da sua própria vida: a inteligência, pela qual penetra no mistério da essência das coisas; a graça, num plano mais alto, que permite ao homem pela fé, nesta vida, e pela visão, na outra, perscrutar as profundezas de Deus. Deus é Pai porque gerando o homem pelo sêmen da graça fá-lo ser de um modo ainda mais pleno a sua imagem e semelhança. O nome que mais convém a Deus, enquanto fonte dessa vida divina em nós, é o de Pai. Pai que está sempre a nos lembrar as nossas humildes origens do nada e as nossas grandiosas origens no amor e na misericórdia divina; a nossa dependência, a nossa fraqueza. Em piedoso reconhecimento dessa paternidade divina, que nos tirou do nada para o ser, de criatura, para filhos de Deus, na qual se encontra o sentido último de toda autoridade humana, exclama S. Paulo: “Eu dobro os meus joelhos diante do Pai, do qual toda paternidade no céu e na terra tira o seu nome”. (Ef., 3, 14). A Grande Desordem que contemplamos, conseqüência natural da Grande Revolução que o “inimigo do homem” declarou contra o Filho do Homem nos tempos modernos, tem por força motriz a desobediência. Mas desobediência qualificada por um novo aspecto, pois quem promove agora a subversão é a própria autoridade, como que pressionada por um inevitável impulso suicida. Os pais pelas atitudes de fraqueza, educam os filhos para a desobediência. Os governos tolerantes de um Frei, no Chile, de militares fracos, na Argentina, levaram essas duas nações à desordem total. Pela tática renúncia dos governantes ao poder, muitas outras nações caíram nas mãos da desordem organizada dos regimes marxistas. Quem entre os católicos fala oficialmente pregando a revolta do filho ao pai, do povo ao governo, não são os fiéis, são os próprios membros do corpo docente consagrados para ensinarem aos homens a piedade, a paciência, a submissão e a paz. O processo revolucionário dirigido pelo “pai da mentira” contra o Pai Eterno só poderá ser detido pela contra revolução dos filhos de Deus que contemplam no superior a imagem do Pai. A mais terrível arma do “filho das trevas” contra o Pai das Luzes é ter conseguido arrancar dos corações o sentimento de piedade, de respeito e de amor aos pais. As palavras de S.Paulo dirigidas para a comunidade familiar, onde a ordem social encontra a sua fonte, poderão, com as devidas transposições, ser aplicadas a todas as esferas da sociedade dos homens. “Filhos, obedecei os vossos pais no Senhor, porque isso é justo. Pais, não exaspereis vossos filhos, mas educai-os na disciplina e na correção conforme o Senhor”. (Ef., 6. 1;4). Editorial da Revista Permanência, no. 57, Julho de 1973

Quem pensa não casa O encontro com uma doutrina, mesmo com uma doutrina que é Pessoa e que se fez Carne, ainda não resolve os nossos problemas. Um encontro não se transforma em núpcias gradativamente e inevitavelmente; entre uma coisa e outra é preciso inserir um elemento decisivo. Há um provérbio de aparência imbecil que diz assim: “Quem pensa não casa.” É costume ver nesse provérbio um encorajamento para se ficar, durante a vida inteira, fechado numa prudência burguesa. Pensar, nesse caso, quer dizer: calcular despesas, prever doenças, avaliar a liberdade perdida em confronto com os novos encargos contraídos. Quem pensar assim não casará; resta-lhe a sabedoria negativa do provérbio para consolo. Não casa, mas pensa. É livre e pensa; é uma espécie de livrepensador. Atrás desse sentido comodista, o provérbio encerra uma advertência e sugere que é melhor casar do que ficar pensando. Quando um sujeito, nos caprichos da vida, encontra moça que acha de sua afeição e que lhe corresponde, tem essa alternativa: escolher ou pensar. O escolher é precedido, evidentemente, de um certo pensar; é de toda prudência que se conviva com a moça, que se converse, que se observem umas tantas coisas, antes de decidir a escolha. O homem é dotado de razão também para casar e deve aplicá-la na justa medida. A tarefa não é fácil. A moça se esconde atrás de certas manobras que, no dizer de muitos autores, lhe moram nas glândulas. O pretendente pode estar certo que ela mudará enormemente; não é assim como agora se ri que ela vai rir; não é disso que hoje chora que vai chorar. Seus gestos serão diferentes, sua forma se alterará, e sua própria voz, que tanto agrada hoje, será mais cheia e mais dura no difícil cotidiano. O mais atento leitor de um Bourget ou de um Montherlant se enganará redondamente se quiser fazer previsões psicológicas sobre a esposa escondida na noiva. Assim sendo, é justo que se pense e razoável que se cogite. Mas num certo ponto do conhecer é preciso decidir. Ou escolhe, abrindo mão nesse único ato de todas as outras moças, entregando-se totalmente, correndo todos os riscos, agüentando todas as conseqüências, querendo desde já no seu coração agüentá-las, tendo confiança, pelo pouco que sabe, no muito que desconhece, trocando generosamente o pouco pelo muito, empenhando a vida inteira a vir em cima de alguns meses que já passaram; ou então continua pensando. E se pensa não casa. Não casa porque pode passar a vida inteira pensando. Sondando; sopesando; excogitando. Conheço diversos casos assim, de namoros tristes que duraram mais de vinte anos: o noivo pensava. Num caso desses, em vez de festa de núpcias houve luto, porque o noivo morreu pensando ... * Na cataquese antiga, conforme o texto da Doutrina dos Doze Apóstolos, havia menção de dois caminhos: o caminho da Vida e o caminho da morte. Terminava um em núpcias; outro em luto. Era preciso escolher. Mas não devemos de forma alguma pensar que uns escolhiam o caminho da Vida e outros o da morte, como talvez se possa depreender que aconteceu nas margens do Ipiranga. Ninguém efetivamente escolhe o caminho da morte; mas entram por ele os que não querem escolher. Morrem por não quererem morrer; perdem a vida porque a querem guardar. Foi o que aconteceu com aquele noivo infeliz que morreu pensando; pensando e guardando; e tanto guardou que perdeu. O encontro, por si só, não dá noivado. O tempo traz a confiança que é a dilatação do encontro; mas a confiança só também não se resolve em noivado. A decisão final cabe um ato de amor, a uma entrega;

e como é ato de entrega parece morte, mas é vida. Depois do encontro, começa o pretendente a considerar, se possui um robusto senso comum, que é mais razoável casar com uma moça do que viver e morrer por uma causa, ou cair apaixonado pela humanidade inteira. Em seguida, precisa ter um certo senso lúdico para namorar com ingenuidade e sem complicados cálculos psicológicos. Nada disso porém resolve seu caso, se aquele senso do outro não estremece com amor e com fome, se não é um pobre na sua carne e um pobre de espírito, isto é, se não precisa da carne do outro e do espírito do outro, se não é, em suma, capaz de dar e de receber, se não decide, uma vez por todas, morrer, para viver nos braços amorosos de uma noiva feliz. Não adianta ficar pensando indefinidamente, porque a pessoa do outro é inesgotável diante do cogitar. Por mais que faça, não é possível entrar na equação do outro, totalmente, com o sinal do conhecer. A pessoa só pode somar-se à pessoa com o sinal da cruz; conhece-a de modo eminente amando-a e crucificando-se nela. * Há uma escolha mais decisiva do que todas: um noivado que importa mais do que nenhum, que exige muito, porque promete uma esposa sem mancha e sem ruga. Tudo pode concorrer para o encontro; mil vezes se renova esse encontro, crescendo em insistência e em significação. Nossa pobre natureza tem, no mais fundo dos abismos, os recursos fundamentais para desejar e reconhecer, para anelar por esse encontro. Tem sede de eternidade; tem inteligência configurada para a Pessoa; tem a pobreza profunda do namorado. A confiança cresce à medida que cresce o conhecimento; a noiva chama; todos os santos rezam em coro; um dilúvio de méritos vem, do céu e da terra, molhar as raízes ressequidas de nosso cogitar. Tudo isso será perdido se de nossa parte recusamos a escolha. Há um momento, entrando pela eternidade, que resolve se haverá festa ou luto. Ou casamos ou pensamos. Ou fazemos penitência, ato de reconhecimento e de amor, ou prolongamos indefinidamente nossa prudência. E por mais que estudemos, experimentemos e analisemos, por mais que cresça a confiança, se não fizermos ato de amor, não haverá núpcias. Haverá estudo; confiança boa, mas seca; razoável, mas não amorável. Podemos ficar neste conflito vinte anos, quarenta anos, anotando num diário a interessante evolução de nossa personalidade. Mas não haverá festa; e morreremos evoluindo. Poderemos passar a vida inteira experimentando a doutrina em cima dos enigmas da natureza; do sol, dos insetos, das glândulas, para ver se não há falha; mas como essas coisas são muitas, e breve é a vida, morreremos fazendo a última experiência. E não haverá núpcias; e nem sequer assistiremos aos seus preparativos com o milagre do pão e do vinho. Ninguém poderá esgotar com o conhecimento o fundo da doutrina que é Pessoa, e dificilmente poderá conhecer a milésima parte da obra humana escrita sobre a doutrina, que é imensa. Seria loucura aguardar, para ulterior resolução, a leitura das obras completas de São Tomás ou dos textos patrísticos. Mal temos tempo para ler uns poucos antigos e meia dúzia dos autores modernos e mal podemos compreender os textos em toda a profundidade. Será evidentemente um grande benefício para qualquer pessoa ler com boa vontade a obra de Maritain, de Karl Adam, de Guardini, de Amoroso Lima, de Dom Vonier, de Dom Columba Marmion1; seria ainda melhor ler São Tomás, Santo Agostinho, São Cipriano, Santo Inácio, Santo Irineu; seria ainda melhor ler as Sagradas Escrituras. Mas ainda melhor do que tudo é pedir perdão a Deus e rezar um simples Padre-Nosso pedindo para a secura da alma o socorro da Fé, da Esperança e da Caridade.

Porque quem quiser ler tudo, ler mais e mais ainda, quer ficar pensando: e não se converte. O que ele deseja, pelo direito, vem depois da opção, e é uso do convívio com a noiva. Parece círculo vicioso, mas não é círculo, é cruz. Pareceu mau raciocínio; mas é amor. Parece que o livre e indefinido exame é a maior dignidade humana, mas não é, porque a maior é a Caridade. Num certo ponto de seu conhecer ganhou confiança; então precisa escolher. Ninguém ganha a Fé por um aperfeiçoamento progressivo da discriminação, nem ganha a Esperança pela ginástica metódica do nervo lúdico: essas coisas são dons de Deus, temos de pedir o que de antemão já é dado. E não basta pensar: temos de pedir falando, levando nosso corpo, nossa voz viva ao ouvido consagrado. Temos de entrar na objetividade de Deus. Depois do encontro, em que Deus e toda a Comunhão dos Santos o ajudou, o chamou, o procurou, é a vez dele, desse ajudado, desse chamado. É a sua vez de jogar, cabe-lhe agora o lance. Um escritor irônico, cujo nome me escapa, disse uma vez que “ce qu’il y a d’embêtant dans le catholicisme, c’est qu’on n’a jamais du mérite.” A frase pode ter alguma graça, se quiserem, mas não é verdadeira porque o catolicismo é a doutrina do nosso único mérito. Merecemos a imagem e semelhança de Deus; e merecemos uma terrível liberdade. Deus nos chama e nos ajuda, mas de repente ficamos numa situação inaudita, porque nos compete responder. Quase se pode dizer que nesse instante incrível há um silêncio de Deus. Todos os santos calam-se. Há um silêncio, uma espera, um frêmito de impaciência, em que somente ecoam, nas almas dos eleitos, os últimos gemidos inefáveis. E, nesse silêncio augusto e terrível, estamos subitamente sós, sós e livres, terrivelmente sós e terrivelmente livres. Nós, as criaturas, você, leitor, eu, o Edmundo, fomos chamados e inundados de misericórdias; mas de repente estamos sós e livres, e temos de fazer um pequeno ato, uma insignificância, um ato de penitência, um gesto de amor, uma coisa de nada que tem a capacidade de encher um silêncio de Deus. Capítulo de "A Descoberta do Outro"

ESPIRITUALIDADE

A fecundidade dos santos e a esterilidade de nossas obras Se há uma coisa que impressione na vida de certos santos, mormente daqueles que no seu tempo foram obscuros, ou cujas obras pareciam pequenas e limitadas, é a sua extraordinária fecundidade. Santa Teresinha do Menino Jesus viveu uma curtíssima vida enclausurada. Fora dos muros do Carmelo não se sabia que ela existia. Dentro dos próprios muros, tão pouco assinalada era sua presença que uma das irmãs, no dia de sua morte, conversava com as outras dizendo: “A madre vai ficar bastante embaraçada para dizer alguma coisa sobre a irmã Teresinha...”. São Bento também foi um grande obscuro. Quem no seu tempo visitasse sua casa monástica, e visse na sala do capítulo os manuscritos da Regula Monacorum, nunca imaginaria o enorme papel que estava reservado para aquele obra, tanto na vida espiritual como no plano da civilização. Ninguém por certo diria que daquela casa sairiam monges a conquistar para o estandarte de Cristo as terras dos anglos e dos germânicos. Ninguém diria que num país remoto, ignorado, insuspeitado, perdido lá do outro lado dos mares, em selva densa, em clima inóspito, iriam as pedras crescer, em paredes, em colunas, em arcos para responderem, com a fidelidade própria das pedras, às salmodias dos monges, filhos do mesmo patriarca, discípulos do mesmo mestre. Esses santos, aliás, não fazem outra coisa senão imitar a obra do Santo que em três anos, vivendo entre gente ínfima, num esquecido recanto do mundo submetido a Roma, plantou na terra a semente da mostarda que em vão quiseram os poderosos espezinhar. E qual é o segredo dessa misteriosa fecundidade? Qual é a força dessas obras que brotam tão humildes e tão pujantemente se ramificam? Transportemos nossas cogitações para um outro plano onde uma outra espécie de fecundidade, de mais fácil apreciação, se manifesta aos nossos olhos. Pensemos nos homens, que perscrutaram o segredo das coisas. Muitos há que não saíram da obscuridade. Mas outros, como um Newton e um Pasteur, deixaram um imenso testamento. Qual foi a força especial desses homens cuja obra transborda os séculos? Por que motivo a descoberta deles prolonga, se estende, se desdobra, mais do que as descoberta dos outros? A resposta é extremamente simples: esses homens tocaram mais profundamente a verdade das coisas. E é nessa verdade maior, mais larga, mais alta, mais profunda, é na força dessa verdade tocada, sentida, transmitida, é no ímpeto desse acerto, dessa concordância entre a inteligência e as coisas, na explosão desse encontro, desse enlace, dessa conjugação que reside o segredo da fecundidade. O que vale para esse domínio restrito, para esse torneio entre o homem e o mundo da matéria, vale muito mais para o domínio maior da vida do espírito. Com uma diferença, entretanto. Aqui, nesta nova ordem, não basta o olhar frio do cientista que domina o segredo da matéria. Aqui não é só na pureza do olhar que mora a verdade. É também, e sobretudo, na pureza do coração.

Este é o segredo dos santos. Esta é a receita da fecundidade de suas obras: a verdade e a pureza de coração. Já que estamos falando da fecundidade dos santos, será bom considerarmos agora a esterilidade de nossas obras e empreendimentos. O fato é positivo. O resultado é irrecusável. Todos os movimentos, grupos e associações em que nos empenhamos ficam raquíticos e impotentes diante da onda que dia a dia vemos crescer. Alguns abortam, outros prolongam-se numa subvida sem difusão mais sustentada pelo hábito rotineiro de ir em certos lugares em tais dias da semana do que alimentada por uma corajosa perseverança. De onde nos vem essas insuficiências? Podemos dizer sem ferir a modéstia que nossas intenções são boas, e temos a certeza, vinda de autoridade maior, que a orientação, de um modo geral, está de acordo com a realidade das coisas e com a grande expectativa de nosso tempo. De onde vem pois os obstáculos? Disse que nossas intenções são retas. Realmente, nenhum de nós rouba, nenhum de nós assassina, nenhum de nós ludibria, bajula, engana, trapaceia como tantos com tamanho desembaraço o fazem. E daí? Poderemos nós dizer, como o fariseu, que não somos iguais aos outros? E se o dissermos, como explicaríamos então o péssimo rendimento de nossas obras, sem desmentir os evangelhos no ponto em que diz que a boa árvore se conhece pelo frutos? A explicação não é muito difícil de compreender embora continue difícil de aproveitar. Nós temos, de fato, uma certa retidão, um certo desinteresse que nos autoriza dizer que os nossos grupos são realmente melhores do que as quadrilhas que parecem se preparar para tomar conta do Brasil. Mas essa purificação é ainda exterior, tão exterior que muito nos arriscamos se dele tirarmos um grande contentamento. Não sei se o meu leitor faz idéia do que seja o rendimento de um maquinismo. Feito para produzir um determinado serviço, o seu rendimento se mede pela proporção entre o serviço prestado e as dissipações internas de energia. O mau maquinismo põe para fora pouca coisa, gastando-se todo em atritos internos, em choques, em solavancos inúteis que degeneram em calor. Ora, os nossos grupos embora montados segundo as boas regras dessa peculiar mecânica funcionam assim também, com grandes atritos e às vezes com choques inúteis. Desculpem-me a imagem mecanicista. Bem sei que há um abismo entre os nossos desatinos e os rangidos de um mecanismo enferrujado. Mas a semelhança existe. Existe essa dissipação interna, esse desperdício de generosidade em atritos, em choques, em cachações, como dizia Machado. E de onde vêm esses atritos? Vêm da falta de uma purificação mais profunda e mais penetrante. Não adianta muito não roubarmos, não matarmos, se não levamos até às raízes escondidas de nosso “eu” essa purificação. Em palavras mais singelas: o amor-próprio, a vaidade, o orgulho secreto são a morte do grupo mais bem orientado, são as causas dos atritos, as explicações da esterilidade.

Este é o ponto de fundamental importância, e é neste sentido que nós devemos aplicar nossos esforços em correspondência aos dons de Deus. E aí, nesse último reduto, na fortaleza do eu, no vértice, na fina ponta da alma que se trava a batalha decisiva do homem. E aí, no segredo do coração, que devemos renunciar, não somente à vanglória dos cargos e ao conforto das riquezas, mas também, e sobretudo, a essa vontade própria que a cada instante conspira para nos isolar, de Deus e dos homens, e para nos aprisionar num “eu” de pedra. Nossas obras são estéreis por isso. Por causa dessa convexidade que faz refluir e gastar-se por dentro, o calor com que deveríamos abrasar o mundo.

A irrepreensível Providência De todas as coisas duras e difíceis que Deus nos propõe no grande torneio de amor — o dogma de Seu Corpo, a porta estreita de Seu reino, a imitação de Sua cruz — nenhuma é tão árdua e tão desconcertante como a compreensão e a aceitação de Seu governo no mundo. O acontecimento, isto é, aquilo que vem à tona do presente, que se realiza no tempo, que se torna visível nessa fugaz travessia de um raio de sol, aquilo que ocorre, que nos cruza o caminho, aquilo que “é” em suma, embora do mais fraco e efêmero modo de ser — eis o grande, o supremo desafio de Deus. Ah! Se pudéssemos voltar atrás! Se pudéssemos recompor e recomeçar a partida! Mas o que acontece só acontece porque Deus consente. Não cai um só fio de cabelo, como não cai um Império, sem o divino beneplácito. E nesse sentido tudo o que acontece é bom, essencialmente bom, adoravelmente bom. E nesse sentido nós devemos aceitar os acontecimentos como propostas às vezes enigmáticas de nosso Pai. Mas a aceitação, nessa ordem de idéias, não significa conformidade acabrunhada; não quer dizer que devemos nos entregar à onda dos fatos, ou que nos deixemos “devorar pelo Minotauro da história”. Não. Somos nós que devemos devorar a história. Se agora são repelentes as iguarias que descem do céu numa grande toalha aberta, como os quadrúpedes e répteis que Pedro viu em Joppe, nem por isso podemos fugir, repetindo a palavra do apóstolo que se gabava de não tocar coisas imundas, e impuras. O acontecimento que nos é proposto agora é terrivelmente impuro. Mas Deus quer que o aceitemos. Não para saborear as impurezas, não para aderir, não para chamar de branco o preto e de bom o mau. Deus quer que o aceitemos como ponto de partida, porque está combinado entre Ele e nós que todos os minutos de nossa vida, sejam quais forem as circunstâncias são pontos de partida. Deus quer que o aceitemos como matéria a ser trabalhada, substância a ser transformada, arrumação de peças a ser adotada para uma nova partida nesse grande jogo de amor entre Pai e filhos. E é nesse sentido dinâmico e corajoso, impaciente na obediência e pacientíssimo nas compensações, é nesse sentido forte e espiritual, submisso e altivo, humilde e impetuoso, que nós devemos aceitar os acontecimentos. Porque tudo, tudo o que acontece, tudo o que é empurrado pelo tempo para a festa do real, por mais desagradável que pareça, por mais repelente que seja o amontoado de répteis e quadrúpedes, tem o selo da irrepreensível Providência.

Comecemos pois hoje mesmo a nossa aceitação, isto é, o nosso combate. Outubro de 1950

Comunitarismo em lugar da Comunhão dos Santos Creio na Comunhão dos Santos, dizemos no Símbolo dos Apóstolos, que foi o primeiro compêndio de Sagrada Doutrina produzido pelo magistério infalível da Igreja de Cristo. Neste nono artigo do Credo, o objeto da fé revelada é a Comunhão dos Santos, união sobrenatural que existe entre todos os membros da Igreja. Pelos dons de graças que nos vêm do Pai, que para nós transbordaram na Paixão de Cristo, e que em nós operam pelo Espírito Santo, somos todos santos, vocatis sanctis (Rom. I, 7), e unidos formamos um povo santo (I Ped. II, 9). Fomos eleitos por Deus para sermos santos (Ef. I, 4). Ainda que não tenhamos chegado à união transformante que nos dá o direito pleno de dizer, como Paulo, “vivo eu? não! vive o Cristo em mim”, somos desde já participantes desse dinamismo do Corpo Místico, e desde já atuantes na Comunhão dos Santos como operários e como usuários. O primeiro e principal efeito da Comunhão dos Santos é o de tornar os bens espirituais da Igreja comuns a todos os seus membros, e consequentemente o de nos tornar responsáveis em vista do bem comum do povo santo. Unidos pelos vínculos da caridade, vivificados pelo mesmo Sangue, devemos ter bem presente em nossa consciência a idéia da reversibilidade dos méritos e deméritos que decorre da associação em que Deus entrou primeiro com o Sangue de Seu Filho. Devemos saber constantemente que tudo o que fizermos em consonância com a vontade de Deus será lucro comum cuja misteriosa aplicação se realiza dentro da Igreja por ministério dos homens e dos anjos, e tem dimensões de eternidade que ultrapassam todas as cronologias humanas. Podemos assim imaginar, sem sombra de fantasia, que a oração de uma contemplativa que ainda não nasceu, estará diretamente associada aos favores de Deus na vitória de Lepanto, ou no relâmpago de contrição que num segundo, entre o bordo e o abismo, salvou a alma de um suicida; e também podemos pensar que alguma alma desgarrada hoje se salva por intercessão de um grito de Santa Catarina: Gesú dolce, Gesú amore. Mas também, ai de nós, devemos saber conscientemente, constantemente, que cada pecado nosso é um desfalque que cometemos contra todos. E assim como nos apraz pensar que possamos estar direta e pessoalmente associados a uma salvação, convém temer e tremer pela possibilidade de estarmos direta e pessoalmente associados a uma perdição. Terrível e maravilhosa é essa organização sobrenatural que eleva à máxima potência a troca de favores, e à máxima potência a responsabilidade das faltas. Na verdade, para sermos dignos membros do Corpo que se anima com a Graça de Deus devemos ser perfeitos, isto é, devemos ser santos no sentido mais estrito que damos ao termo, quando nos referimos, por exemplo, à necessidade e ao valor do culto de veneração pelos santos que estão no Céu, e que a Igreja nos oferece como modelos mais próximos, e como intercessores que, mesmo na Glória, guardam transfiguradas a ciência e a lembrança de toda a humana miséria.

Esta especial atividade da Comunhão dos Santos, o culto de veneração daqueles que a Igreja nos propõe como exemplos da praticabilidade da grande aventura divino-humana, prende-se diretamente ao primeiro Mandamento de Deus, e longe de constituir um obstáculo e até um culto idolátrico como dizem os insensatos protestantes, mais nos condiciona a alma para a adoração que só a Deus é devida. Nós sabemos que desde o Antigo Testamento Deus quer nosso louvor e nossa admiração por sua obra. O Benedicite, que os três moços hebreus cantaram entre as chamas, é o hino de louvor de toda a criação, e por suas palavras inspiradas nossa alma é convidada à festa de uma maravilhosa multidão

das mais variadas criaturas — as águas suspensas no céu ou fluentes na terra, o fogo, os raios e as nuvens, as árvores e as sementes na terra — que nos ensinam a admirar, em sua obra, as grandezas de Deus. Ora, não há obra mais admirável no céu e na terra, do que as almas santas, que no áspero decurso desta vida, conseguiram obedecer de modo perfeito a vontade do Pai, como Cristo mesmo nos ensinou no Jardim das Oliveiras. “Ó Deus que maravilhosamente nos remistes”. Inscreve-se pois o culto de veneração dos santos entre os primeiros deveres conexos ao Mandamento de Deus, e será temerário, ímpio e anticristão o movimento que nos aparta dos santos a pretexto de nos vincular mais diretamente a Cristo. Esse Cristo do protestantismo será sempre, enquanto os protestantes perseverarem em seus erros e sua impiedade, ou um Cristo abstrato a diluir-se no irrealismo, ou um Cristo secularizado a dissolver-se no humano. Desde os primeiros séculos da Igreja nascente implantou-se no costume, e no magistério ordinário da Igreja a sadia preocupação de trazer bem viva a lembrança dos que nos precederam no Céu, e de cultivar, pela iconografia e pelas relíquias a normal motivação de tal culto. Deus assim quis sua Igreja: é a Igreja de Cristo, é a Igreja do Espírito Santo, mas é também — Deus assim o quis — a Igreja Filha de Maria... E será também legítimo dizer, na ternura sobrenatural de Comunhão da Igreja, que nossa Santa Igreja é a Igreja de Maria, a Igreja dos Santos Anjos, dos Santos Mártires, dos Santos Confessores, dos Santos Virgens, dos Santos Doutores, dos Santos Pontífices: é a Igreja de Todos os Santos. * Um dos sinais mais lúgubres da Igreja de nossos dias, e do processo de protestantização que se opera aceleradamente diante da Hierarquia impassível, ou apenas preocupada, é a covardia com que nos inclinamos diante da brutal e demente heresia, e a impiedade com que desprezamos a solicitude, o trabalho, sim, o trabalho dos Santos na Igreja do Céu. A Igreja do Céu, apesar do esplendor da Glória, não é um lugar de repouso e muito menos um departamento de hibernados. Antes será a maravilhosa expansão da oficina de Nazaré. Os santos trabalham por nós. Santa Terezinha de Lisieux disse na sua agonia com atrevida simplicidade “Je veux passer mon ciel à faire du bien sur la Terre”. E a própria Virgem Santíssima quer ainda, de maneira mais solícita, trabalhar para nós, e para isto obteve de Seu Filho a permissão de imita-lo, e de descer do céu para, em Lourdes, Fátima, e outros lugares, estar com seus filhos da Terra, na Terra, e até chorar como eles aqui choram in haec lacrimarum vale. Tenhamos pois todos nós, associada a nossa vida religiosa, in sino Ecclesiæ, a devoção pelos santos de nossa preferência, desde que nenhum usurpe o lugar da Rainha. E onde houver algum exagero na proporção dos nossos atos de piedade, não se diga que essa deformação seja simétrica ou equivalente à impiedade da iconoclastia espiritual de nossos dias. Por estranha derrisão, a que Satã não está alheio na época em que mais se fala de comunidades e comunitarismos mais se deixa no olvido a Comunhão dos Santos; e na época em que mais se fala de Povo de Deus, Povo, povo, povo, com ressonância de revolução, mais se deixa no silêncio a maravilhosa idéia de sermos a Família de Deus. *

O mês de novembro comemora o dia de Todos os Santos e o dia dos Mortos: a Igreja Triunfante e a Igreja Padecente. E tornamos a dizer que, antes do dia Final, em que “Aquele que está no trono diz: Eis que faço novas todas as coisas”, o próprio Céu é ainda lugar de santo trabalho. É sumamente oportuno, diante dos descalabros que devastam a Igreja, gritarmos por socorro a todos os santos do céu, e a todas as almas do purgatório que também clamam por nós. E ao próprio Senhor gritemos: Exurge Domine! Editorial da Revista PERMANÊNCIA, no. 49, novembro de 1972.

Considerações sobre o Amor Próprio Retomamos aqui o fio das considerações tecidas em torno da irreligiosidade de nosso tempo e bem arrematadas, queremos crer, pelas vigorosas palavras do glorioso concílio ecumênico Vaticano I. Seguindo outra direção começaremos hoje pelas vicissitudes humanas na porta fechada do paraíso perdido pelo pecado de nossos primeiros pais. Inventariemos a herança que nos vem pelo pecado original: a primeira e principal conseqüência do pecado de Adão é o próprio pecado original em nós. Atingida em seu vértice, ponto singular que a integra e a totaliza, a humanidade inteira foi atingida em cada um de seus membros. Nascemos com essa tara terrível que coloca o mais inocente e atraente dos recém-nascidos, segundo todos os padrões humanos, fora da comunhão dos santos e da amizade divina. À primeira vista parece pesada demais para o recém-nascido a tara do pecado original. Freqüentemente a nossa religião parecerá, aos espectadores do mundo, antipática e desumana. Para responder a esse eventual espectador de nossos passos e de nossos testemunhos, diríamos que, pela misericórdia de Deus e pela obra de Jesus, nada é mais leve e mais fácil do que a água do batismo que, pela força salutar do sangue de Jesus, apaga e extirpa da alma recém-nascida a pesada herança. Nos dias de sua passagem pelo mundo, Jesus disse que seu jugo era leve e suave; e disse bem, porque, para isto, Ele tomou sobre si todo o peso dos nossos pecados; não foi para Ele, leve a cruz que lhe puseram no ombro previamente flagelado, nem foram suaves para suas mãos e pés os pregos que o pregaram na Cruz. Para nós homens, e para nossa salvação, nada nos compete fazer na ordem sobrenatural; mas muita coisa teremos de fazer em nossa vida natural para que, no último dia possamos dizer como Paulo que “em mim não foi vã a graça de Deus”. O leitor, evidentemente, não espera de nós um resumo, um comprimido do preciosíssimo Sangue, numa dúzia de mal traçadas linhas. Nossa intenção, hoje, é outra. Queremos estudar e transmitir alguma coisa sobre as conseqüências do pecado original em nossa natureza. Comecemos por dizer que as águas do batismo não apagam em nós as marcas naturais do pecado original. Mas é doutrina assentada, e muito densamente formulada no glorioso Concílio de Trento que, todos nós, descendentes de Adão, ainda que em estado de graça e em via de santificação, carregamos uma natureza decaída, em conseqüência do pecado original e por isso não podemos realizar nossos trabalhos naturais em todo o esplendor de nossa bela natureza feita à imagem e semelhança de Deus. (Vale a pena ler e reler os decretos do Concílio de Trento, especialmente o Decreto sobre o Pecado Original e Suas Conseqüências). Temos em nossa atual natureza decaída, a inteligência obnubilada e a vontade vacilante e enfraquecida; e para ainda mais nos fustigar, trazemos em nós uma natural tendência de fazer mal feitas as coisas que fazemos, e de nos afastar de Deus. Essa raiz de todos os pecados, terrível e traiçoeiro inimigo que, em conseqüência do pecado original, trazemos dentro de nós nos torna, segundo Santo Agostinho, mais semelhantes ao diabo que a Deus. Essa concentração das

conseqüências do pecado original tem recebido ao longo da tradição católica vários nomes. Em São Paulo, o termo “carne” e a expressão “viver segundo a carne” são traduzidos por Santo Agostinho (Cidade de Deus) como desregrado amor de si mesmo, ou vontade de ser a sua própria lei. Assim, quando São Paulo nos diz “viver segundo a carne”, o autor de “Cidade de Deus” nos propõe a fórmula “vivere secundo seipsum” que bem exprime a fome de autonomia de nossa vontade própria que quer ser a sua própria lei, autonomia. Essa expressão e também esta outra “desregrado amor de si mesmo” são assumidas por Santo Tomás (I, IIae, Q. 25, a 4). Alguns autores medievais usaram a curiosa expressão fomes peccati, mas a grande tradição dominicana, principalmente em Santa Catarina de Sena, consagra o termo “amor-próprio” para designar este inimigo de nossa alma que tantas vezes confundimos com nossa virtude e nossa honra. Eis algumas amostras da doutrina de Santa Catarina: “O amor-próprio que destrói a caridade e o amor do próximo, é o princípio e fundamento de todo mal”...“É o amor-próprio que envenenou todos os homens e feriu o corpo místico da Santa Igreja”. Convém lembrar a exceção singular que devemos abrir para a Imaculada Conceição. O Catecismo de Trento quando ensina que são três os cruéis inimigos da Igreja e da alma, volta ao termo Paulino e assim diz que esses três inimigos são “o mundo, o diabo e a carne”. Hoje parece-nos que é mais didático o trinômio “o mundo, o diabo e o amor-próprio”. A rigor podemos dizer que as purgações e as purificações tão usadas pelos grandes autores espirituais designam o combate da alma com seus cruéis inimigos e especialmente a luta com o amor-próprio, o mais próximo e o mais traiçoeiro inimigo da alma que tantas vezes, com a colaboração do diabo e do mundo, tomamos como nossa virtude e nossa honra, e assim fazendo, a alma se crispa e se agarra ao inimigo que toma como o melhor de si mesmo. Gostaríamos de escrever ou reescrever as páginas de Dois Amores e Duas Cidades, sobre esse fascinante problema que o mundo moderno e principalmente “a moderna Igreja” tão crassamente ignora. Cheguei mesmo a sonhar com um estudo mais alargado e aprofundado que trouxesse um subsídio para a moderna psicologia, e para o estudo da alma humana que hoje se desviou da tradição católica para procurar nas instâncias freudianas uma explicação do paradoxo que faz do animal racional o mais absurdo e menos razoável de todos os bípedes implumes. O amor-próprio, nosso demônio interior, é o principal agente de todas as contradições humanas. Chesterton dizia que o dogma do pecado original é o mais patente e visível dos mistérios cristãos. Inimigo pessoal e, diríamos, diabólico da virtude da santa humildade, que é a base de todas as virtudes, “o amor-próprio” é a base de todos os vícios, e é o intrigante que, em nós mesmos, nos torna inimigos de Deus e conseguintemente, inimigo primeiro de nossa alma. O mundo moderno, nas pesquisas de psicologia profunda, desviou-se de toda a riqueza da tradição cristã, e por isso se extraviou numa fenomenologia do homem exterior. Erick Fromm no seu livro Sane Society, mais uma vez, depois de Man for Himself, distingue os dois amores de si mesmo, com os termos “self love” e “selfshness”. Não conhecendo as doutrinas trazidas por Santo Agostinho e Santo Tomás, Erick Fromm, depois de umas felizes aproximações se extravia e volta ao empirismo em que se atola toda a moderna pseudoprofunda psicologia. Não tendo força, tempo e vida para tão grande empreendimento, estamos à espera de que outro retome com mais vigor o estudo do “amor-próprio” e da verdadeira psicopatologia dos atos quotidianos; e assim consiga reencontrar a verdadeira psicologia profunda, que é impossível sem o apoio teológico desprezado por todos os modernistas.

O GLOBO, 01-07-1978.

Deus marcou encontro conosco

O texto de Gustavo Corção que publicamos aqui é parte de um ciclo de conferências realizadas em Belo Horizonte na década de 1950. Apesar de não estar completo, não deixa de ser um exemplar importante das atividades do grande escritor católico, numa época em que Corção era requisitado para constantes palestras, entrevistas e artigos. Depois o mundo girou, os polos foram deslocados, os homens tornaram-se cúmplices da Revolução num mundo evolutivo e estagnado no nada. Já não lhes interessava a firmeza da verdade e da fé que Gustavo Corção guardou e ensinou até a morte. Editora Permanência

DEUS MARCOU ENCONTRO CONOSCO VI Conferência de Belo Horizonte

Como ninguém aqui ignora, creio eu, a Igreja preceitua que os seus filhos, ao menos uma vez por ano, confessem e comunguem, isto é, que ao menos um dia em trezentos e sessenta e cinco dias se lembrem de usar o Sangue de Cristo, derramado para a nossa salvação. Esta é a condição, é o mínimo que Deus, por sua igreja, exige de nós, para que sejamos contados entre os membros vivos do Corpo Místico do Cristo. Para quem está habituado à vista da Igreja, e usa de seus bens com assiduidade, esse mínimo se afigura esquisito. Como é possível amar a Deus e somente uma vez, em trezentos e sessenta e cinco dias, procurar o socorro de seus sacramentos? Como é possível amar de tão longe, e com tão descuidado dever? E, sobretudo, como é possível agüentar a pressão do mundo, a atração das pompas, a sedução do pecado sem o socorro particularmente eficaz da Penitência e da Eucaristia? Na verdade, se me perguntarem, eu direi que não acho possível tão extraordinário equilíbrio. Atrevo-me a dizer que esse mínimo me parece insuficiente, e que eu tremeria pela sorte de minha alma se deixasse correr tamanha distância entre mim e o meu Salvador. Mas como se explica então esse empenho que todos nós, em obediência à Igreja, temos de conquistar mais um irmão para esse mínimo que nos parece insuficiente e até temerário? A essa dificuldade responderemos de três modos. Em primeiro lugar, diremos que atrás dessa pequena exigência todos nós escondemos — segredo de polichinelo! — a malícia de uma esperança: o mínimo poderá frutificar em generosidade, e o fiel que viveu distraído, embora ainda fiel, poderá neste encontro

que hoje preparamos, render-se à centelha divina, e tornar-se mais assíduo e mais amigo de seu grande Amigo do Céu. Em segundo lugar, com uma esperança ainda maior, nós pensamos que esse mínimo, para muitos, seja uma reconciliação, uma conversão, um renascimento para a vida cristã: e nesse caso já não admira que o passo seja mínimo porque tudo o que nasce, nasce pequenino. O próprio Jesus nasceu pequenino; e como cresceu nos braços de Maria poderá crescer também nos vossos corações. E neste caso, alegremse os que renascem, exultem os que se reconciliam, porque haverá maior alegria no céu por essa primeira confissão, por essa primeira comunhão, do que pelas nossas trezentas e sessenta e cinco. Em terceiro lugar eu direi que esse mínimo é um máximo, uma espécie de máximo. Mas para bem entenderem esse paradoxo nós vamos começar por torná-lo ainda mais forte. Diz-nos o Evangelho que nós devemos amar a Deus de toda a alma, de todo o entendimento, de todo o coração. Diz-nos também o Cristo que nós devemos ser perfeitos como nosso Pai celestial é perfeito. Como conciliar então estes preceitos tremendos com aquela pequenina exigência da Igreja? Como entender que, fazendo tão pouco, já estaremos cumprindo aqueles enormes mandamentos? Tentarei explicar-lhes isto por meio de uma definição e de uma figura. A Sagrada Doutrina nos ensina que o pecado mortal é aversão a Deus e conversão aos bens do mundo. Estar em pecado mortal é, portanto, o mesmo que estar de costas para Deus. É uma atitude total, que marca uma preferência e uma aversão. Converter-se, ao contrário, é voltar-se para Deus, e é começar a caminhar nesta nova direção que aponta para o pólo da vida. Há portanto, na vida religiosa, esse primeiro ato, essa primeira escolha de uma direção, esse primeiro passo que é mínimo como avanço, mas que já tem em si um máximo de resolução, de revolução, de orientação, de escolha. E é nesse sentido que eu lhes dizia há pouco que a comunhão do preceito, sendo um mínimo, já era de certo modo um máximo. Mas não termina aqui, nessa reviravolta, o problema da vida religiosa. O pecado mortal foi vencido por essa mudança radical de atitude, por esse infinito de escolha que depende de um pequeno gesto humilde. Amanhã ou depois, se ficarmos parados, teremos novas distrações e novas seduções. É preciso caminhar na boa direção escolhida, e é preciso caminhar depressa e com firmeza. Já temos a direção, mas o caminho está cheio de obstáculos, e nós mesmos, às vezes, voluntariamente retardamos os passos; e voluntariamente procuramos um obstáculo que nos atrase. Estamos então fugindo de Deus por retardamento consciente e voluntário, embora sem voltar-lhe as costas. E é nisto que consiste o pecado venial, essencialmente diverso do pecado mortal, mas infelizmente, e quase sempre, o seu introdutor e preparador. Hoje, porém, eu quero aqui encarecer a importância infinita dessa pequena reviravolta de amor que Deus espera dos que se afastaram de seus sacramentos. E torno a dizer — amigos — que quase invejo esse grande e perigoso privilégio que fará de vós os festejados recém-nascidos do céu. Deus marcou encontro conosco. Já muitas vezes vos disse que os homens usam sinais para os encontros aprazados. Nós costumamos dizer assim: estarei à sua espera na esquina da Ouvidor com a Avenida, às tantas horas. E observem que as coordenadas humanas são geralmente marcadas num cruzamento, isto é, num lugar que tem a marca da cruz. Deus também espera por nós na sua grande encruzilhada, isto é, nos sinais derivados da cruz. Ele está à nossa espera, no lugar e na hora da Igreja. E chega sempre primeiro. E espera que nós nos dignemos a voltar o rosto, a girar o coração e converter a alma.

Ele espera por nós, no seu banquete, na sua festa, mas primeiro nos adverte que estejamos vestidos com a túnica branca da sua graça. E é Ele mesmo, ainda Ele, que nos espera para os preparativos do perdão. Deus marcou encontro conosco no sacramento do perdão. Pensai um pouco nesse primeiro convite. Quem haverá por aí, tão duro de coração, que não tenha fome e sede de perdão? Quem haverá por aí, tão certo de si mesmo, que possa viver sem a necessidade do perdão? Ah! A nossa vida... Nós vamos andando, andando, e deixamos para trás nossas faltas. Assim como as vamos esquecendo, elas nos parecem menores. Mas por quê? Se eu hoje matar um homem, e amanhã esquecer, estarei perdoado? Nós vamos andando, e enterramos as nossas faltas. Mas hoje vos pergunto, como há doze anos a mim mesmo perguntei: de que me vale o enterro de minhas culpas? Nem o famoso cemitério de Genova, com seus magníficos mausoléus, seria bastante espaçoso para o luxo funerário de minhas faltas. Onde iria eu buscar a paz, se trazia um monturo em mim mesmo arquivado? Esquecendo? Mas a memória brinca dentro de nós: quando a buscamos é nuvem; quando a evitamos é pedra. A memória é um quisto. E eu andava com o fibroma na alma? Não vou aqui contar-vos meus desconcertos, não vos assusteis. Imaginai que estou apenas explicando ou falando de um outro. E torno a vos perguntar quem me aliviará desse peso, do que fiz, do que não fiz? Quem me livrará das sombras que me perseguem chorando? E aquele pobre homem que num certo dia, num certo lugar, eu devia ter ajudado e abraçado, quem mos devolverá, o dia, o lugar, o pobre? E aquela velhinha dormindo enroscada como um bicho, no chão, na rua, e que eu não levantei, e que eu não socorri, porque não era a minha mãe, embora pelos cabelos brancos parecesse, sim, pelos cabelos brancos espalhados nos trapos? E aquele menino Jesus que um dia eu vi passar no colo de uma mendiga, imagem suja, miserável, e que me olhou, a mim!, com os olhos de abismo, e que me sorriu, para mim!, lá do fundo, do fundo da sua inocência? Quem me devolverá esse menino, quem me dará a força de um São Cristovão, para carregá-lo no meio das águas? Grande coisa essa paz de consciência de quem toma juízo e se aposenta na carne! Fresca tranqüilidade esta que está mais na caiação do que no conteúdo do sepulcro! Há gente que diz assim: eu faço isto e aquilo, pago minhas dívidas, cumpro meus compromissos, para andar de cabeça erguida. E a velha? E o pobre? E o menino Jesus? E a coleção de horrores em que nem me atrevo a tocar? Quem? Quem me desembaraçará deste corpo de morte? A quem hei de chamar, do fundo do despenhadeiro, para dizer que meus ossos me consomem, que não há nada na minha carne que não doa, que meus dias fogem como sombras que se alongam, que caem cinzas no que como e no que eu bebo? A quem pedir a pureza que perdi e a brancura de neve que manchei? Quem poderá entre os vivos dizer-me palavras de alegria que me penetrem a medula dos ossos doloridos? Quero um auxílio, um auxílio para me levantar, e tenho pressa, pressa da mão estendida, da face atenta, do hissopo que lava, da palavra de perdão e de alegria... Os homens também perdoam. Eu deveria então sair por aí afora pedindo perdão dos transeuntes espantados, na esperança de encontrar os ofendidos por mim. Mas o perdão dos homens, que já é uma grande coisa, não dissolve as pedras que eu carrego. Quando muito apago neles o ressentimento, o rancor, o que já é uma grande coisa; mas não destrói a culpa, não penetra, não lava, não queima. E na maior parte das vezes o pedido de perdão se perde no deserto, ou ecoa nas paredes do quarto. E se nós sairmos por aí, com essas brasas na mão, quem quererá recebê-las? Quem quererá pagar por nós, a fundo, até o sangue, até a morte? Ora, Deus marcou encontro conosco no Sacramento do perdão, que corre diretamente da Cruz e do Sangue do Salvador. O que é mais fácil, dizer a um paralítico “levanta-te e anda” ou dizer “perdoados são os teus pecados”? Nosso Senhor respondeu a essa pergunta mandando o paralítico levantar-se, provando assim como é fácil, para Ele, o perdão dos pecados. Realmente fácil. Extraordinariamente

fácil. Divinamente fácil. Porque a misericórdia, segundo Santo Tomás, é o que há de mais divino em Deus. Poderíamos talvez dizer que a misericórdia é o lado exterior, voltado para nós, do que há de mais interiormente divino em Deus — e que é a Sua alegria. “Há mais alegria no céu para um pecador que se converte do que para noventa e nove justos que perseveram”. O perdão de Deus é a fonte escondida de nossa alegria, dessa alegria cristã, dessa alegria guardada, dessa alegria profunda que ninguém nos pode roubar. E assim fica provado que aquele pontual indivíduo que faz da cabeça erguida uma norma está enganado; o grande mistério, de vida, de alegria, é justamente o da cabeça curvada. O perdão de Deus é efetivo, enquanto o dos homens é somente afetivo. É penetrante. É calcinante. É dissolvente. Basta um gemido sincero. Basta uma disposição mínima, para que o padre trace em nossas cabeças o mais fácil dos gestos, e Deus opera em nós a mais fácil de suas obras. Já no Batismo recebemos o perdão da água. Recebamos agora no confessionário o perdão das lágrimas e do sangue, para que não nos fique somente — na melhor das hipóteses — o perdão do fogo no purgatório. * Vou falar-vos da morte. E porque não? Falei-vos da tristeza e da alegria, porque não falarei também do temor. Nossa alma tem paixões que nos são próprias, que fazem parte da riqueza de nosso ser. Não podemos viver sem paixões. Por mais que façam os inventores de um novo paraíso terrestre feito de prazeres, nós não podemos viver sem tristezas, sem temores, sem cóleras. Essas paixões, em si mesmas são neutras, moralmente neutras. Há boa e má alegria. Boa e má tristeza. E assim como há um temor degradante — que se chama covardia — há também um temor bom, um temor salutar, que é o princípio da sabedoria. Para educar, para aconselhar, para servir, nós devemos apelar, em justa medida e em momento oportuno, para as paixões da alma. Vou, pois, falar-vos da morte, esse fato trivial e terrível. Freqüentemente esquecemos que somos mortais. De tal modo vivemos divididos de nós mesmos, exteriorizados, distraídos, que chega a ser preciso um dom de Deus para despertar em nós a idéia da morte. E, no entanto, não passa mês, ou semana, ou dia que não se veja passar na rua o triste e ridículo aparato funerário. Agora mesmo, enquanto aqui estamos, há milhares de agonias pelo mundo. Em cada palavra que pronunciamos morre um homem. Morreu um. Outro. Outro. Se pudéssemos ver numa janela essa goteira de corpos tombados, um por um, monotonamente, teríamos talvez uma impressão mais viva de nossa fragilidade. Conhecem talvez a história que aconteceu com S. João Bosco. Estava ele pregando a diversas pessoas, de todas as idades e condições, quando de repente parou de falar, e após um silêncio recolhido explicou: “Nosso Senhor acaba de me dizer que um de nós morrerá hoje”. E morreu, efetivamente, o mais moço. Não vou anunciar-vos o mesmo. Não recebi nenhum aviso de Nosso Senhor. Mas quem nos garante, ao contrário, que todos nós aqui presentes estaremos vivos amanhã. A morte chega de repente. Às vezes dá um prazo mais ou menos longo. Mas às vezes não concede um segundo. E o corpo que ia andando cheio de projetos de futuro cai como um fardo. E então? E então nós nos queixamos, se ao menos temos um segundo para nos queixarmos. Queixamo-nos que fomos pegos desprevenidos para esse encontro com a morte. E teremos, ai de nós, a amargura de pensar que a justiça divina foi pérfida conosco, esquecendo que foi longa a paciência da divina misericórdia. Ele

chega de repente como Juiz, é verdade; mas não é verdade também que esperou a vida inteira como amigo? Deus marcou encontro conosco. Vamos pois ao encontro da misericórdia que está à nossa espera, no lugar e na hora marcada, no santo tribunal do fácil perdão. Quando a justiça chega de repente poderá alguém queixar-se? Não. Não poderá, porque a presteza e a rapidez são próprias da justiça. Nós mesmos somos os primeiros a reclamar quando ela tarda, nos casos em que nos parece que ela nos seja favorável. Como então estranhar que seja súbita e inesperada a justiça divina, se é tão demorada a misericórdia?

Natal “Mudei eu ou mudou o Natal?” — perguntou Machado a seus botões que deixaram a pergunta famosa mas sem resposta. Por eles, ao longo do tempo sugeriram respostas várias em torno do eterno tema da não-eternidade das coisas, e creio que ninguém deu a única resposta aceitável: Não mudara o Natal nem mudara o homem. O Natal continua a ser o invariável, o inoxidável mistério da natividade de Jesus, o Natal embora engatado nas engrenagens das órbitas e dos calendários permanece imóvel, idêntico a si mesmo. Também o homem não mudou na sua frágil versatilidade e assim permanece no incerto não permanecer, correndo atrás da própria sombra ou do próprio vento. E é aqui nesta coincidência de duas tão diversas permanências que reside toda a aflição do homem e todo o incompreensível mistério do Natal. Porque o Natal não muda para que o homem mude. Sim, esta é a primeira e fundamental mensagem do Natal trazida pelo Percursor. João Batista anunciava o advento do constante, do Permanente, do Imóvel, e chamava para que os homens mudassem. Como assim? Então é preciso o profeta clamar para que o inquieto coração do homem mude de ritmo, de direção, de desejo? Não, em verdade ninguém precisa aconselhar o homem a ser cambiante e instável, por si mesmo ele não pára de dançar e mudar. Mas o que o Natal veio ensinar foi justamente a mudança do mudar. Sim, veio ensinar que não podemos parar, que não podemos interromper a conversão, a mudança de vida, a penitência ou metanóia ensinada pela voz que clamava no deserto. A permanência que o natal nos ensina é a permanente ascensão, a permanente conversão. Ou é a permanente e progressiva gestação do Menino Jesus que quer nascer em nós como nasceu no seio da Virgem sempre Virgem. A verdadeira participação do Natal é essa em que, de uma incomparável maneira, realizamos no mesmo ato uma imitação de Cristo e uma imitação de Maria. Tudo o mais, ainda que multipliquemos todos os recursos da humana ternura, será de festa de solidariedade humana, será data planetária, será efeméride, mas não é Natal. Sem a dócil obediência de Maria não há receptividade para o nascimento de Jesus em nós. O solene Natal cantado pela Igreja, com ressonâncias de todos os séculos, com ecos dos brados de João Batista e do cântico de Maria, só deseja de nós o trabalho, a conversão que nos torne mais humildes e mais puros, ou mais filhos de Maria, para termos com ela parte do prodigioso mistério que nos torna de algum modo mães de nosso Pai. Tudo isto resolve as arrumações habituais do mundo, e é para revolvê-las, para trazer a mais revolucionária notícia de uma outra ordem, de uma nova dimensão, que a Igreja anuncia a vinda do Senhor como outrora, João Batista anunciou. É terrível pensar que o mundo inteiro, em grossa e maciça maioria, mesmo nos povos que se dizem cristãos, fizera do Natal de Jesus e Maria uma festividade espessa e grosseira. Por isso mesmo o clamor litúrgico de nossa Mãe tem, nos tempos que correm, o patético timbre do grande anunciador da mudança essencial, da única que entre tantas e tantas reviravoltas, não queremos fazer. “Quem és?” perguntaram a João, filho de Zacaria. Disselhes ele: “Eu sou a voz que clama no deserto, endireitai os caminhos do Senhor”. E aí está: o Natal não muda, para que nós mudemos o nosso vão mudar.

PERMANÊNCIA, N° 62, Dezembro de 1973

No Sangue O último artigo entregue por Gustavo Corção ao GLOBO foi publicado com o noticiário sobre sua morte. O texto a seguir, embora estivesse concluído, só foi encaminhado à redação após a morte do escritor, por seus colaboradores. Desde os primeiros anos de sua peregrinação na terra, "entre as aflições dos homens e as consolações de Deus", a Igreja sempre marcou uma especial devoção pelo Sangue de nossa salvação. Já o Apóstolo em Hebreus IX, 22 diz: "É com sangue que quase todas as coisas se purificam e sem efusão de sangue não há salvação". Mas foi no tormentoso século XIV que Catarina de Sena, nas cartas e nas lições ditadas aos seus discípulos, pôs uma singular ênfase na riqueza de significações do Sangue, sim, uma ênfase marcante no Sangue! Transcrevemos a seguir algumas amostras de sua pregação colhidas ao acaso no livro Sainte Catherine de Sienne vous parle do Pe. S. Bezin O.P., ed. L´Abeille, Lyon, 1941: "Corramos, então, corramos todos cristãos fiéis, atraídos pelo odor do Sangue" (pág. 251). "Inebriemo-nos do Sangue de Jesus crucificado já que o temos ao nosso alcance. Não nos deixemos morrer de sede. Não nos contentemos com pouco, mas tomemos muito para nos embriagarmos e nos afastarmos de nós mesmos". "Nós não fomos resgatados por preço de ouro, nem somente por amor mas pelo Sangue". "Não há outra maneira de saciar o homem: somente neste Sangue poderá alguém se desalterar". "Este Sangue é nosso, foi derramado para nós, ninguém nô-lo pode tirar a não ser nós mesmos" (pág. 252). Folheando o epistolário de Santa Catarina de Sena em seis volumes (Le Lettere di S. Catarina de Siena, Casa Editrice Marzocco, Firenze 1947) não resistimos ao desejo de transcrever mais este grito da Dolce Mama: "Caminho sobre o sangue dos mártires, o sangue dos mártires ferve e convida os vivos a serem fortes". Tenho a firme convicção de que Santa Catarina de Sena falava com esta obsessiva insistência por uma razão muito simples e muito extraordinária: a vigésima terceira filha do tintureiro Benincasas via o Sangue do nosso Salvador em todos os sinais sagrados da Igreja. Quando por exemplo ela procurava seu confessor Frei Raimundo de Capua costumava dizer: "Vou-me ao Sangue". De bom grado ficaria aqui a contar histórias da dolce mama Catarina; mas o encontro marcado deste artigo me obriga a seguir o roteiro que deixa quinhentos anos para trás a santa padroeira da Itália. * Foi efetivamente no século XIX, no longo e glorioso pontificado de Pio IX, que o preciosíssimo Sangue de Jesus teve no calendário da Igreja o lugar que merecia. Pio IX, caro leitor, foi o grande Papa que sempre combateu os graves erros de seu tempo sem nenhuma transigência e acomodação à mentalidade contemporânea. E não somente denunciou os erros de uma "civilização" apóstata, como também nos ensinou o modo de combatê-los. Em 9 de novembro de 1846 Pio IX lançou com a encíclica Qui Pluribus, seu primeiro brado de alerta; mais tarde, em 8 de dezembro de 1864, publicou a encíclica Quanta Cura, à qual anexou o famoso Syllabus que catalogava as proposições errôneas que a Igreja condenava, e que ainda hoje, onde ela estiver, una e santa, continua a condenar. Todas essas publicações foram firmadas na santa intolerância, sem a qual não há nem pode haver catolicismo fiel a Deus e marcado pelo Sangue de nosso Salvador. Essa pregação desencadeou a fúria dos anarquistas italianos (carbonários) que, comandados por Garibaldi e Mazzini, conseguiram expulsar de Roma o Papa para júbilo de todos os revolucionários da época, e de todos os liberais que, desde então, fizeram tudo para lançar à execração pública até hoje as encíclicas de Pio IX, principalmente o Syllabus. Os soldados franceses e pontifícios conseguem dominar a fúria dos carbonários, e com o apoio deles o Papa volta a Roma.

Em ação de graças por essa vitória contra os inimigos da Igreja, Pio IX teve a idéia de marcar no calendário católico uma data litúrgica que ficou até anteontem fixada no dia 1o. de julho, sendo o mês inteiro consagrado ao Preciosíssimo Sangue. Até anteontem a festa do Preciosísismo Sangue era considerada "duples de primeira classe". Será preciso dizer aos nossos leitores que no atual calendário da liturgia alterada, reformada ou deformada "para se acomodar à mentalidade contemporânea" da Igreja pós-conciliar, foi suprimida a festa do Preciosíssimo Sangue? E por quê? Primeiro, por alguma razão que comandou todo o conjunto frenético das reformas. Creio eu entretanto que a "Igreja Conciliar" e "Pós-conciliar" sente uma aversão sistemática pelo caráter de luta, de vitória e de sangue que destoa, para eles, de todas as aberturas e de todos os ecumenismos. Ocorre-me a idéia de associar a supressão do culto do Preciosíssimo Sangue, ao silêncio sepulcral da Hierarquia na data do quarto centenário da miraculosa vitória de Lepanto. Que eu saiba, em 7 de outubro de 1971 só manifestou júbilo nessa data, aqui no Brasil, a excelente publicação o Catolicismo. Para caracterizar ainda melhor esse silêncio, tivemos uma notícia singular: por ordem superior a Santa Sé, com certo alarde, devolveu os troféus, digo melhor, as relíquias daquela vitória, aos turcos. "Que turcos?" perguntou-me aflito e divertido Ariano Suassuna a quem contava eu a história de tão cômica e trágica devolução. Decididamente a "nova Igreja" que pretende eclipsar a Igreja Católica, não gosta de soldados, não gosta de lutas e não gosta de sangue e também não gosta de odiar o mal como Santa Catarina recomendava: "Deveis odiar o mal com os dentes". Daí o frenesi de concessões e de ecumenismos agora adotados pelas hierarquias em contradição formal com a Doutrina imutável da Igreja. Ao menos restanos um proveito nesta supressão da data litúrgica escolhida para a comemoração do Preciosíssimo Sangue. Que proveito? O de tornar cada dia mais evidente que a chamada "Igreja pósconciliar" opõe-se sistematicamente à Tradição Católica, colocando os fiéis numa alternativa estapafúrdia: recusar as "novidades" que vêm de Roma ou acatar todos os atos, ditos e feitos do Papa reinante e para isto renegar o Depósito sagrado e os ensinamentos que a Igreja por seus 254 papas nos legou como tão bem disseram os Cardeais Ottaviani e Bacci no Breve Exame Crítico do Novo Ordo dirigido ao Papa Paulo VI no dia de Corpus Domini, em 1969. Eles disseram que as reformas litúrgicas pós-conciliares "... põem cada católico na trágica necessidade de escolher". Eu já escolhi. O Globo, 13/7/78

O dogma da Assunção A 15 de agosto, como todo o povo católico sabe, a Igreja comemora a Assunção de Nossa Senhora. Esta festividade litúrgica se situa, no ano eclesiástico, na grande planície que fica entre as grandes festas do Cristo e do Espírito Santo. De Pentecostes até natal há uma espécie de campo juncado de santos mortos que um dia ressucitarão e terão um corpo de glória. Ora, o que a Igreja ensina cantando, neste dia 15 de agosto, é que a Mãe de Deus, por favor especial, pelo fato de ter sido escolhida para a consumação do mistério da encarnação, e pelo fato de ter sido isenta do pecado original, mereceu entrar na glória, de corpo e alma, antes do grande dia em que todos os santos verão Deus com sua carne e seus ossos, como reclamava o paciente e impaciente Jô. Desde 1o. de novembro de 1950, a crença na Assunção da Virgem Santíssima está incorporada à dogmática católica. Embora tenha sido sempre um hábito difundido, uma convicção digamos assim oficiosa da tradição católica, foi naquela data que o Papa Pio XII definiu o dogma da Assunção, e proclamou que a crença na subida de Maria aos céus, em corpo e alma, tem fundamento na revelação e portanto na fé divina. O Papa absteve-se de determinar o modo, as circunstâncias, os pormenores de tão misterioso e importante acontecimento, limitando-se a proclamar o dogma da Assunção no seu aspecto central e principal. A Sagrada Congregação dos Ritos, na mesma data, deu ao dogma, à verdade teológica que constitui o enunciado do dogma, uma roupagem de sinais litúrgicos, de referência escriturísticas, de imagens que formam o atual texto da festa máxima que glorifica a Rainha dos Céus e da Terra. A Mulher glorificada pelo Apocalipse, a Filha do Rei vestida de ouro do salmo 44, a Mãe que com seu Filho será inimiga vitoriosa do Demônio segundo o Gênesis, a cantora do Magnificat, todas essas imagens que se aplicam semelhantemente à Virgem Santíssima e à Igreja, esposa de Cristo, procuram tornar visível, na luz da fé, (que é um começo, um lampejo da luz da Glória), esse mistério que passa a medida de nossa inteligência natural. O mundo descrente, diante da proclamação do dogma, que foi um dos mais belos atos do grande Papa Pio XII, mostrou-se escandalizado e houve até manifestações grosseiras de homens tidos por muito inteligentes. Parecia-lhes que a Igreja, com essa proclamação que se lhes afigurava inteiramente inoportuna, lançava um desafio às modernas luzes da moderníssima cultura. E agora permitam-me dizer uma coisa. Eu acho que eles tiveram razão de se escandalizarem. Realmente, para o mundo que anda entretido com as coisas da hora que passa, com as idéias em voga, com os problemas efêmeros, respeitáveis uns, menos respeitáveis outros, para o mundo que só é mundo, que só cuida do que não permanecerá, que só pensa em fumaça, que só ama o que é inconsistente e frágil – para esse mundo a palavra da Igreja, interpretação e tradução da palavra de Deus, deve ter uma estranha dureza. Todos os dogmas são duros; mesmo o dogma que é pão teve para os ouvidos descrentes dureza de pedra. “Essas são palavras duras...” murmuraram os fariseus no dia em que Jesus lhes ensinou que Ele era comida, que Ele era pão. E nós mesmos, em nossa imperfeitíssima fé, freqüentemente achamos esquisita a palavra de Deus e freqüentemente temos medo de encarar de frente um de nossos artigos de fé. E é por isso que a Igreja nos incita a estudarmos a doutrina revelada e a meditarmos sobre as suas conclusões. A teologia, sob certo ponto de vista, é uma especialidade para os doutos; mas, tomada no sentido mais amplo, deve ser estudada por todos; e o estudo do dogma é gerador de piedade, isto é, tonificador da alma; é fortificante espiritual e, sobretudo, integrador intelectual. Que quer dizer isto? Que sentido vital terá essa palavra? Como devemos fazer para pensarmos no dogma da Assunção, com as luzes da fé, mas também com as luzes naturais da razão, e não apenas com a inclinação afetiva que é boa, mas que só

é boa quando estiver submetida à razão e à fé? Se o leitor tiver um pouquinho de paciência, já lhe darei um resumo da idéia contida naquela expressão. O estudo teológico da sagrada doutrina é diferente do estudo do puro catecismo por ser mais desenvolvido e mais orgânico. Enquanto o catecismo nos dá uma lista, por assim dizer, de artigos de fé, a teologia nos ensina a ligar, a tomar como conexos os ditos artigos, a contemplar o grande corpo luminoso da dogmática conjunta e global. E quem estudar a doutrina com tal orientação verá uma coisa maravilhosa: os artigos que pareciam estranhos e dificilmente aceitáveis enquanto vistos isolados, destacados, tornam-se luminosos, claros, belos, invencíveis, inevitáveis, inegáveis, quando são vistos no grande conjunto, no grande corpo que é uma das formas do próprio Corpo de Deus.

É certo que mesmo assim não temos ainda, no que concerne aos mistérios de Deus, a luz plena que só teremos no dia da Glória. Por enquanto vivemos de fé, do lumen Christi, que tem algo de noturno, e vemos tudo em sinais e enigmas; depois, no céu, teremos o lumen gloriae, que é o fulgor do próprio Deus desvendado e visto face a face. Antes disso, estamos um pouco no escuro, no deserto, no mundo cuja figura passará. Mas aqui mesmo, na caminhada e na obscuridade, já teremos uma estrela de Belém, com luz mais viva, se estudarmos e meditarmos nas verdades religiosas, e se pouco a pouco conseguirmos descobrir os lineamentos, os contornos, do grande conjunto doutrinal. Então teremos uma estranha, uma curiosa sensação: antes do estudo e da meditação, cada artigo de fé era esquisito em seu isolamento, cada palavra do catecismo era uma palavra disciplinar e dura; depois do estudo, o conjunto se impõe de tal forma, com tal força, com tal remuneração para as aflições do espírito, que agora o que nos parece esquisito, estranhíssimo, bizarro, é o fato de existirem pessoas que não crêem em Cristo Jesus, nos seus mistérios, na sua Igreja, nos seus dogmas, na Assunção da Maria Virgem. O dogma da Assunção, na verdade, não tem nada de especialmente repugnante ao bom senso, como andaram dizendo. Para começo de argumentação devo dizer que devia repugnar ao bom senso a idéia mesquinha que pretende reduzir toda a Realidade aos fenômenos sensíveis e à rotina dos dias que passam diante de nossa observação. E o resto? E as origens de tudo? E o fim de tudo? Será sensato não pensar nessas coisas? Não creio que alguém se possa gabar de ter na vida a famosa atitude do avestruz. Além disso, o dogma da Assunção não é tão bizarro, tão novo, tão incôngruo como parece a quem só tem notícia da doutrina católica por alguns boatos esparsos. Não. O dogma da Assunção se prende teologicamente ao dogma do pecado original, e ainda mais diretamente, ao dogma da encarnação. A descida de Deus à humana condição pôs no mundo da Carne um princípio de levitação divina com todas as suas numerosas conseqüências. Uma delas é a própria Ascensão do Senhor. Outra, que vem com a superlógica dos divinos mistérios, é a Assunção de Maria. Prende-se a Assunção a Pentecostes, à vida da Igreja com sua coroa de sacramentos, que são por assim dizer estilhaços da divina explosão, ou que são o Cristo socializado; e prende-se à estrutura psíquica sobrenatural da piedade individual, pela qual imitamos Maria sendo gruta para o Cristo que nasce em nós, e sendo um corpo que sobe de claridade em claridade, como dizia o apóstolo. Prende-se à Liturgia, que é uma espécie de assunção, todos os dias e horas realizadas na missa e no ofício divino. E finalmente se prende a Assunção de Maria ao grande dogma da Ressurreição da Carne. Maria é uma antecipação, e todos nós sabemos que nas coisas eternas uma antecipação no tempo não traz modificação profunda. Se já era crença nossa a ressurreição da carne, porque se admira alguém do fato de proclamarmos uma ressurreição da carne? No fundo, a esperança do mundo descrente, do mundo que só é mundo, a esperança dos desesperados é que nossa religião seja apenas um hábito de falar e de gesticular. E um hábito de falar palavras vazias e inconseqüentes. Enquanto falamos na ressurreição em termos vagos, e ainda não verificados, o mundo nos deixa falar com complacência. Mas quando o dogma recentemente definido e proclamado, ou melhor, quando o dogma que já existia implícito, adormecido como a bela do bosque no castelo das verdades de Deus, se torna explícito, concreto, referindo-se a um fato ocorrido com uma pessoa... então o mundo se irrita, ou descobre espantado que não eram tão inconseqüentes e tão estéreis e tão estéreis como pensavam os outros artigos já conhecidos.

Assunção de Maria e ressurreição dos mortos são verdade articuladas como a mão no pulso e no braço, e ambas se prendem à encarnação como o braço se prende no tronco, e todas se nutrem do mesmo sangue e do mesmo sacratíssimo coração de Jesus. Quando se diz que a Igreja é Una, Santa, Católica, também se diz que é Una, Santa, Católica, a doutrina composta de muitos artigos de Fé. A divisão deles, a tendência e o perigo do despedaçamento, vem de nossa fraqueza mental, de nossa condição carnal. Por causa da natureza humana ser o que é, temos de aprender a doutrina ponto por ponto, andando, caminhando, somando, colecionando; mas só aprendemos bem e só começamos a tirar forças do dogma, quando começamos a aprender a grande lição da unidade. E então, maravilhosamente, a inteligência se alegra com a proclamação de um dogma que vem completar, que vem tornar explícito o que já estava implícito. E então a alma agradece a Deus que a engrandeceu, como engrandeceu Maria. O Magnificat torna-se nosso, oração nossa; e a Assunção de Maria torna-se nossa, assunção nossa. Já no Cristo tínhamos no céu a nossa pobre e amada carne. Agora temo-la de um modo que, por ser menos divino, se torna mais próximo de nós, resultando em nos tornar por isso mais divinos. Assumpta est Maria in caelum. Os anjos alegram-se e bendizem o Senhor. E o salmo cantado nas Vésperas acrescenta: “Iremos atrás de ti levados pela recendência de teus aromas...” Além disso, o dogma da Assunção, com toda a sua aparente incongruência, responde aos instintos mais profundos gravados em nossa natureza. Deus não nos fez para a morte e para a corrupção. Não só o espírito, mas a própria carne humana grita por vida eterna e clama contra a morte. Maria é a mulher vitoriosa. É a mãe que se debruça em nosso sonho de angústia, em nossas insônias de desespero, e nos diz, como quando éramos pequeninos e tínhamos medo do escuro: “Sou eu...” repetindo a palavra de seu Filho naquela noite em que os discípulos se assustaram quando o viram chegar por sobre as águas. Maria repete Jesus. “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que guardam as minhas palavras” disse Jesus aos discípulos e ao povo que queria reduzir a maternidade de Maria ao nível das coisas naturais, e, por conseguinte, queria esquecer a transcendência de sua divina missão. Mas é a própria Maria quem melhor guarda as palavras de seu Filho. Repete Jesus nas palavras de verdade, nas palavras de misericórdia. E repete Jesus na subida aos céus.

Alegremo-nos, porque o nosso mais profundo susto, o nosso mais terrível medo, o nosso mais angustiado anseio é atendido por esse sinal maravilhoso que apareceu no céu: Signum magnum apparuit in coelo. Uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés, e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Cantai um cântico novo. Cantemos. Alegremo-nos. A humanidade geme sob a ameaça da morte. Nem sempre se fala nisso. Na maior parte das vezes a gente acha melhor desconversar, fingir que ela não existe, esquecer. De repente ela aparece e rouba uma pessoa amada, e então a gente grita, como Jó, que não quer morrer, que quer ver Deus estando em sua carne e seus ossos; ou chora como o bom pai que quer ver de novo, belo, jovem, resplandecente, o filho que um dia lhe trouxeram frio e despedaçado... Lembrai-vos, ó piedosíssima Virgem Maria, dos que a morte e a frágil vida separaram, consolai os aflitos, intercedei pelos que sofrem injustiças, abrigai os pecadores. Rainha assunta ao céu, rogai, rogai por nós! Roguemos também à Santa Mãe de Deus que interceda pela sorte do mundo e pela sorte de nosso infortunado país. Roguemos que a Misericórdia Suplicante obtenha de Deus a confusão de seus inimigos e a purificação de nossos costumes, de nossas instituições, e de nossos homens públicos. Há

muito sofrimento nestas terras maltratadas, Santa Mãe de Deus; rogai por nós, vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste desterro mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. (revista A ORDEM, out. 1960)

Outubro Trechos de artigos publicados em "O Globo" de 10 e 17 de Outubro de 1970. Mês de ressonância revolucionária, mas para nós na PERMANÊNCIA, para nós na Igreja, mês de santos admiráveis, mês do Rosário, mês de Nossa Senhora. Ontem (escrevo no domingo) festejamos nosso terceiro aniversário de PERMANÊNCIA, que precisa permanecer, e ouvimos o Pe. D'Elboux falar-nos de Santa Teresinha do Menino Jesus, "mignone de Dieu, matrone du Christ", composição de magnanimidade e de humildade que só se encontra nas almas que se entregam incondicionalmente aos trabalhos de Deus e assim conseguem possuir o que o Pe. Petitot, a propósito da mesma Teresa de Lisieux, chamou de virtudes antinômicas. Em geral, nós outros, que mal e devagar caminhamos para a perfeição, temos as virtudes que se coadunam e se configuram pelas tendências naturais com que nascemos. E quando conseguimos o progresso de alguma virtude sobrenatural favorecida por inclinação natural, não conseguimos o mesmo progresso naquelas outras, simétricas, necessárias à integridade e à beleza do todo -- e não o conseguimos porque elas contrariam nossa índole natural. Na alma dos santos, Deus consegue este belo triunfo, o de sua vontade sobre a vontade própria e o do padrão de Cristo sobre o nosso feitio natural. E assim consegue este primor da criação marcado de paradoxos provocantes. Santa Teresinha, tão "tinha", tão minúscula, pela humildade, e pelo gosto da pequenez, foi trabalhada, treinada e transformada numa atleta de tal força que o mundo inteiro, logo após sua morte, adivinhando sua santidade e sua força, ergueu súplicas de intercessão daquela, que na terra morreu esvaída em fraqueza. E a Igreja, para essa pequena Teresa, não achou título mais apropriado do que padroeira das missões. Notem bem a extravagância do paradoxo: a padroeira dos padres que correm mundo, que deixam casa, conforto, comunidade fraterna, para semear o Cristo nos lugares mais distantes, é uma menina carmelita que nunca saiu de seu convento e que aos vinte e quatro anos, sem obra nenhuma vistosa para as próprias irmãs, morre de fraqueza... E hoje, no dia em que escrevo, peço a Francisco de Assis, o companheiro de Domingos de Guzmán no sonho de Inocêncio III, licença para falar de Catarina de Sena [...] Catarina, filha do tintureiro Benincasa, e vigésimo parto da gloriosa Mona Lapa, mãe que levou tempo a entender a filha, até tornar-se filha da dita filha, Catarina era moça do povo, simples e analfabeta. Mas, além dos dons naturais já muito acima do niveau de l'humanité, como diz Péguy, além da admirável lucidez natural e do prodigioso discernimento, Catarina recebeu ciência infusa das coisas de Deus. Era dominicana, terceira dominicana, e tudo o que aprendeu de ouvido vinha da fonte da doutrina de Santo Tomás. Ao contrário de Santa Teresinha, Catarina de Sena teve uma vida movimentadíssima e influiu poderosamente no seu tempo, tempo de crises graves na Igreja. Foi conselheira, guia espiritual de papas vacilantes, foi testemunha do papado nos dias do grande Cisma, e foi também conselheira e guia espiritual de muita gente, de muitos padres, de muitos dominicanos, a começar por seu diretor espiritual Frei Raimundo Cápua. Deixou um enorme epistolário, que hoje enche seis grandes volumes; e deixou ditado em arroubo espiritual, nos últimos dias de vida o Diálogo em que fala na primeira pessoa a Divina Providência, em resposta às súplicas da santa que pede misericórdia para o mundo. Antes do pronunciamento da Igreja já muitos dominicanos se haviam sentado aos pés da Douce Mamma Catarina. Lembra-me entre outros um livro de Pe. Lamonier O.P.; e lembra-me também a

influência de Santa Catarina no Pe. Garrigou-Lagrange e em Jacques Maritain que recomendou a Peirre Villar o Diálogo. Catarina morreu com trinta e poucos anos, e nos últimos dias de vida, depois de ditar quase interruptamente o Diálogo a seus fiéis secretários, dizia sentir-se esmagada pelo peso da Igreja, da Navicella, e no último alento de vida elevou a súplica que inspirou toda a sua doutrina: Miserere, miserere... * Amanhã, 5, é dia do menino São Plácido e seus companheiros. A austera ordem fundada por nosso pai São Bento comparece no mês de outubro com o mesmo espírito de infância espiritual, praticado por Plácido e ensinado quatorze séculos depois por Teresinha do Menino Jesus. E depois de amanhã [7 de Outubro] temos Nossa Senhora do Rosário, devoção trazida ao mundo por Domingos de Guzmán o fundador da gloriosa Ordem dos Dominicanos. Grande mês! a criançada, os jograis, os poetas brincam em torno de Nossa Senhora, que em outubro vejo sentada, não sei por que, aos pés do Cristo-Rei. * Nossa ameaçada América Latina tem de agarrar-se à devoção do Rosário, e à força do Cristo-Rei. Aproveitemos o mês de outubro e a estratégia organizada pela Igreja para entrarmos nós na Revolução dos Santos comandada por Cristo-Rei. E assim confundiremos as manobras dos homens que cogitam coisas vãs, e de quem o Senhor se rirá. * Quando o vigário, no sermão do domingo, aludiu à festa do dia Seguinte, Nossa Senhora de Aparecida. Padroeira do Brasil, tive o sobressalto de quem de repente se lembra de um esquecimento cometido. E que esquecimento! Escrevi sobre os gloriosos santos de outubro, discorri sobre o dia do Santo Rosário e sobre a proteção que todos esperamos da Senhora Rainha dos Céus e da Terra, e nada disse do dia 12, dia da Padroeira do Brasil. Cheguei a tempo para a devoção e ainda ouço as ressonâncias da voz de abismo que anuncia: "Eis que apareceu no céu um grande sinal: uma senhora vestida de Sol, calçada de Lua e coroada com doze estrelas. Estava grávida e gritava no trabalho das dores do parto. Um outro sinal apareceu no céu: viu-se de repente um Dragão vermelho, com sete cabeças e dez cornos, e sete diademas nas cabeças. Sua cauda varreu um terço das estrelas do céu atirando-as por terra. E ergueu-se diante da Senhor para devorar o filho que ia nascer... Houve um combate no céu: Miguel e seus anjos guerrearam contra o Dragão... e então a serpente antiga lançou pela gorja a água de um rio, para que o rio arrastasse a mulher. Mas a terra veio em socorro da mulher..." (Apoc. XII).

Preceito e amor O drama religioso de nosso tempo consistindo essencialmente numa infiltração vinda das correntes de anarquismo revolucionário, apresenta diversos aspectos de desordem entre os quais destacaria dois de incalculáveis conseqüências: 1°) negação do princípio de autoridade por aqueles que deveriam exercêla para a proteção dos fiéis e salvação das almas: essa negação é feita em nome de uma falsa bondade como se viu no caso da Espanha, e em tantos outros; 2°) negação de obediência à santa doutrina e à tradição: essa recusa é praticada em nome de uma evolução e de reformas que pretendem transformar a Igreja Católica em “outra”. Nesta atmosfera poluída de erros, as mais extravagantes idéias surgem ou ressurgem nas mais variadas circunstâncias. Assim é que a contestação do preceito

é feita em torno da missa dominical por um bispo, ou é retomada como “contrária” ao “puro amor de Deus” ou em nome da dignidade do homem. Digo retomada, porque constitui a mais grave e cruel heresia da Idade Média que reaparece sob as mais surpreendentes formas e chega a cativar as pessoas que julgávamos mais preparadas para repelir tão funesto erro. O velho mestre que há quase trinta anos ensina que a perfeição cristã consiste no preceito e não no conselho, e que esse preceito é a mais verdadeira e pura forma de amor, tentará nestas páginas retomar textos antigos e esquecidos que merecem recordação atenta. Num primeiro contexto, o do verdadeiro progresso sobrenatural, apresentamos páginas escritas no volume “Progresso e Progressismo”, AGIR, que escrevi ao lado de Chesterton, Christopher Dawson, Marcel de Corte, Jacques Maritain e Alfredo Lage. Ei-las:

“O PRECEITO DA PERFEIÇÃO” Não há idéia mais cristã do que a de progresso, nem há menos cristã do que a de fixismo e estagnação. A vida cristã, efetivamente consiste na obediência do preceito máximo que nos deixou o Senhor: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento, e ao próximo como a ti mesmo”. E, com a mesma inspiração, diz assim o Apóstolo: “Como escolhidos de Deus, santos e bem amados, revesti-vos de entranhas de misericórdia, de bondade, de humildade, de doçura, de paciência... Mas acima de tudo revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição”. (Col. III, 14). Esta proposição: “A caridade é o vínculo da perfeição” nos indica o que, por muitas outras vias, a palavra de Deus nos confirma a saber: o preceito da caridade não tem limite, e a vida da caridade é essencialmente dinâmica em busca sempre da caridade maior. Todo o amor tem esse dinamismo que o leva sempre a querer mais amor. Na vida sobrenatural da caridade divina o impulso do amor está expresso em outro preceito de Deus que nos parece excessivo e hiperbólico: “Sede perfeito como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt. V, 48). Que quererá dizer este mandamento? A primeira idéia que se depreende é a de conexão entre noções que não pareciam vinculadas: a de amor, a de perfeição e a de obediência ao preceito. A vida de caridade só responde bem ao mandamento de Deus se é desejo de perfeição, e se é progressivo, isto é, desejo cada vez maior. Nos caminhos de Deus quem não progride, regride, disseram todos os Santos Padres, e repetiram todos os doutores e santos. Pode-se até dizer que toda a vida mística, que não é privilégio de alguns nem consiste no cumprimento mais rigoroso dos conselhos evangélicos, e sim na apaixonada observância do preceito, poderia condensarse nesta fórmula que pôs em marcha todas as almas sequiosas de vida eterna: quem não progride, regride. Como se explica a universalidade do preceito da perfeição, e como se conciliar tão formidável enunciado com as nossas fraquezas e com a misericórdia de Deus? O impossível Deus não exigirá de nós e para o difícil ele tomou a iniciativa primeira de montar, no Monte Calvário, uma usina de energias espirituais que nos capacitam para a vida de caridade, começo de vida eterna. Ouçamos o que nos diz Santo Tomás a este respeito. Santo Tomás — “Pode alguém ser perfeito nesta vida? A perfeição da vida cristã consiste, com efeito, na caridade, e implica uma certa universalidade ou totalidade, já que perfeito se diz daquilo a que nada falta. Deste ponto de vista pode-se considerar uma tripla perfeição: a perfeição absoluta consiste em amar a Deus tanto quanto ele é digno de ser amado; essa perfeição não é possível à criatura, pois só Deus pode se amar assim, isto é, infinitamente. A segunda perfeição é a que consiste em amar a Deus de todo o nosso poder, de tal modo que nosso amor tenda sempre atualmente para ele. Esta perfeição só é possível no céu”.

Há enfim uma terceira perfeição que consiste em amar a Deus, não de modo infinito e tanto quanto ele merece, nem também sempre tendendo para ele atualmente, mas em excluir tudo o que se opõe ao amor de Deus. “O veneno que mata a caridade, diz Santo Agostinho, é a cupidez; quando ela é destruída tem-se a perfeição”. Na terra esta perfeição pode existir, e de duas maneiras: “Ou exclui o homem de seus afetos tudo o que é contrário à caridade e a destruiria, como o pecado mortal, e isto é necessário para a salvação; “Ou então exclui de seus afetos, não somente o que é contrário à caridade, mas tudo o que impede o seu amor de se dirigir totalmente para Deus. Sem esta perfeição, a caridade pode entretanto existir nos principiantes e nos que começam a progredir” (S. T. IIa, IIae, qu. 184, a. 2). Todos os cristãos, diz Garrigou-Lagrange, cada um segundo sua condição, devem tender à perfeição da caridade. Deus não preceitua um atingimento, mas uma tendência, um esforço de busca, um desejo de perfeição, ou ao menos, como dizia São Francisco de Sales, um desejo de um desejo de perfeição. Sem esse fundamental dinamismo não há vida cristã. Em outra obra, “Dois amores e duas cidades” (pág. 101 — Vol. II) encontramos considerações que julgamos merecer atenção:

“NO PROGRESSO DA VIDA RELIGIOSA” No progresso da vida religiosa é mais nítida e mais exaltada a idéia de docilidade crescente. Enquanto o homem natural cresce fazendo progresso de autonomia, o homem sobrenatural cresce no sentido de maior heteronomia. A pedagogia do Espírito Santo usa um método que é contrário ao da pedagogia natural. Nesta, o mestre tende a se tornar ausente, e a deixar o discípulo entregue à própria iniciativa. Naquela, ao contrário, quando a alma evolui e se deixa cada vez mais guiar pelo Espírito, passando do “modo das virtudes” ou da fase purgativa, para o “modo dos dons” ou fase iluminativa, cada vez mais presente e atuante se torna o Mestre. A perfeição do homem se medirá assim por um misterioso produto de autonomia e de obediência. Quando se desequilibra o binômio, quando se eclipsa o critério da obediência, a alma se precipita e cai, não querendo obedecer senão a si mesma, ou querendo obedecer a qualquer ídolo. Tocamos agora aqui um ponto que nos põe novamente em contato com os textos de Santo Tomás do parágrafo anterior: por que será que nesse desequilíbrio o homem é levado àquela situação em que passa a valorizar, como principal de si mesmo, o “homem exterior” ou a “natureza sensível”? Faça o leitor a seguinte experiência: saia pelas ruas e vá entrevistando as pessoas, a fim de saber o que é que elas consideram realmente e verdadeiramente seu próprio. Ou não saia de casa e se examine a si mesmo. Na ânsia de procurar em si mesmo o gosto próprio dos frutos da árvore da Ciência do bem e do mal, começará por ver que tudo isto lhe veio de fora. Veio de fora a notícia das ciências, das artes, das religiões. Quem sabe se a moral, como dizem, não vem da sombra do pai, ou da superestrutura social? Numa dessas horas de procura do autêntico, Giovani Papini descobriu que

devia ao café a página que escrevera. Onde está o meu eu próprio, incontestável, puro autêntico, centro de todos os meridianos, de minha perfeita sinceridade? Eu mesmo, diferenciado, próprio, único, incontaminado, isento, soberanamente imparcial e livre, onde estou? Para afastar-se das categorias que lhe parecem superimpostas (e que muitas vezes realmente o são) o homem que busca o eu absoluto e não violado, o eu secreto, põe-se a descer a escada em caracol, e a afundar no subterrâneo da irracionalidade, a se agarrar nas notas individuantes de costas para a luz. Por quê? Porque a luz lhe traz uma notícia de fora, e o convida a alguma alienação. Para evitar qualquer sugestão, qualquer postiço que de fora o vento traz, e se cola em nosso coração para descobrir a raiz última da individualidade, a alma se inclina a valorizar o lado escuro, como se aí, longe de qualquer heteronomia, estivesse escondido o núcleo da incontestável e inimitável individualidade. O surrealismo tentou levar a arte para esse mundo das espontaneidades subterrâneas que, na opinião de seus líderes, seria a verdadeira atmosfera de Arte. É nessa direção, nessa procura do centro de gravidade de si mesmo, de costas para a luz, no termo dessa extraviada e orgulhosa autonomia que está “a tentação eterna do homem”. Curiosa soberba! O homem prefere nesse momento, nesse ato, ser ele mesmo na argila, no limo escuro, a ser ele mesmo, por favor de outro, ainda que esse outro seja seu próprio Criador; e ainda que esse outro, depois de tudo o que aconteceu, seja o seu Salvador! E o outro que saiu a obedecer ao primeiro ídolo que passou? Os dois itinerários, o da desobediência e o da subserviência são parecidos. Aqui também o homem mergulha no irracional da força coletiva, do movimento fisicamente contagioso. Aqui também o que funciona é a valorização do sensível, do exterior, do lado escuro. É o “amor sui usque ad contemptum Dei”. A moderna psicologia profunda, principalmente na doutrina freudiana do superego, trouxe ao mundo um reforço de desconfiança em relação ao que recebemos de nosso pai, que passou a ser o mais suspeito dos personagens. Tudo o que vem do pai, do mestre, da tradição, de Deus, é visto como coação, como pressão, como imperialismo psicológico. Para cortar esse vínculo, atiramo-nos para o lado da mãe escura que devora os seus filhos. Terá acontecido alguma coisa assim na origem de nossa história. Não temos a pretensão de esboçar aqui uma psicanálise de nossos primeiros pais; mas temos a convicção de que é impossível tratar do problema e do mistério do amor próprio sem socorro da teologia. No caso, sem lembrar o pecado original. Marca, estigma, ferida deixada pelo pecado original, mesmo depois de sua total extinção pelo batismo, o amor-próprio será o que os teólogos chamam fomes pecati. E àquele que vai procurando algo que seja seu, absolutamente seu, sem sombra de alienação, sem sociedade dos homens e de Deus, podemos responder com toda a tradição católica que só temos de nosso, puramente nosso, a miséria de nossos pecados e de nosso amor-próprio”. — Ora, tornamos a dizer pela centésima vez: os mestres da vida espiritual nos ensinam que a perfeição consiste no preceito, em obediência à mais bela forma de amor que podemos oferecer a nosso Pai.

30/10/1975.

Regina sine labe originali concepta [Nota da Permanência] Dentro das comemorações dos 150 anos da proclamação do dogma da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1854), reproduzimos aqui um editorial da Revista Permanência (que eram escritos por Gustavo Corção). A espiritualidade mariana é sempre a mesma, católica, eterna. Já os desmandos e invenções dos modernistas estavam, naquela época, em sua fase de "destruições". Tudo o que era católico, tudo o que "cheirava a incenso", tudo o que era da Tradição, era simplesmente dilapidado, destruído, chutado, desprezado. Tábula rasa, era o lema dos progressistas. Depois virão outras fases que nos conduzirão à construção do monstro que hoje tenta nos devorar. Porque os modernistas instalados no Vaticano, quando toda a Tradição já estava destruída, construíram uma nova religião que tem uma carapaça pintada com "catolicismos", mas cujo conteúdo, tirado de Vaticano II, já não é mais católico. Este editorial pode parecer defasado na sua crítica aos progressistas, mas não é. O monstro cresceu mas é o mesmo daquela época. "Eis que o diabo, como um leão rugidor, vos cerca querendo vos devorar. Resisti-lhe fortes na Fé" (Ep. de S. Pedro)

Regina sine labe originali concepta Rainha concebida sem pecado original

In medio sæculi. Cento e tantos anos atrás, no meio do século, sim, no patamar do orgulhoso século XIX em que o homem, além da máquina a vapor e das máquinas elétricas, inventou os “ismos” com que pretendia se erguer contra seu Criador, e mais especialmente contra o seu Salvador, a Igreja Militante, no meio do mais turbulento mundo, no aceso da mais áspera luta, fez uma pausa de silêncio e brancura, e pela voz de um grande pontífice reafirmou o dogma da Imaculada Concepção de Maria Santíssima. E o mundo estupefato, crendo ou descrendo, teve a notícia de que a própria Rainha, Regina Angelorum, Regina Patriarcharum, Regina Prophetarum, Regina Apostolorum, Regina Martirum, Regina Confessorum, Regina Virginum, Regina Sanctorum omnium, Regina sine labe originali concepta, descera dos céus para dizer à mais ignorante, à mais pobre, à mais humilde menina de uma aldeia, em língua do povo, o misterioso e glorioso título que lhe dá uma posição singular, única, sem lhe tirar as entranhas de mãe: — Que sou er’ Immaculada Conception. Ninguém terá inteligência aberta para a fé dos mistérios marianos, sem os quais é morta ou vazia nossa fé salvadora, se não tiver esta primeira percepção da existencial unicidade, ou da essencial singularidade deste “bendita entre as mulheres” em quem o arcanjo Gabriel saudou a plenitude de graças que é possível numa criatura. É revelada pelo próprio Verbo de Deus a simetria entre Adão e Cristo, ambos colocados num vértice de absoluta singularidade. Adão, na sua singularidade, era a humanidade: Cristo, por sua unicidade, é a nova humanidade, resgatada e desde já, aqui e agora, proposta à transfiguração eterna. Semelhante, Maria e Eva têm na história da Salvação igual simetria: se pela intercessão de uma só primeira Mulher o pecado desordenou a humanidade inteira, no espaço e no tempo, por uma só primeira e única “sine labe originali concepta” a humanidade tem ao alcance do coração o princípio sobrenatural da reordenação da natureza decaída. Quem salva é Deus; quem nos põe na alma o germe do princípio da salvação é Deus sem nenhuma criatura intermediária. A Fé que nos vem de Deus e nos salva não admite nesse sagrado conúbio nenhuma intercessão. Cremos

nisto, nisto e naquilo porque Deus revelou e não porque um anjo, arcanjo, os apóstolos e a Igreja nos revelaram. Nessa união inicial e terminal entre eu e meu Criador, nada há de permeio, nada há de intermediação: nihil aliud quæm veritas prima. Nisto consiste o absoluto e o formal de nossa Fé. Mas entre a negação de qualquer tertius na divina intimidade do ato de Fé teologal, e a negação de qualquer condicionamento intercessor, e favorecedor da união realizada na fé divina, há um abismo de equívocos, de rebeldia que, com o protestantismo ganhou proporções catastróficas. Deus mesmo compôs sua obra de redenção deixando sua revelação instrumentalmente condicionada por uma sociedade santa, regida por Cristo e animada pelo Espírito Santo. E assim como o mestre não constitui obstáculo ou intermédio pelo fato de ter sido o encaminhador, o ministro, o aproximador da verdade que a inteligência do discípulo faz sua, sem intermediários, no momento em que a vê; assim também não há Magistério e não há intercessões que constituam espessuras separadoras entre a alma e Deus. Deus mesmo quis assim construir e ordenar sua obra de re-criação, e entre todas as criaturas que, de modo acidental e instrumental, participam desta obra e são co-redentoras, Deus quis que uma única e singular Mulher tivesse, com título único e singular, essa função de Mãe de Deus, Mãe dos homens, e Mãe da Igreja. E para isto quis Deus que essa Mulher de início se singularizasse por um privilégio que é coroa de Rainha no céu e na terra: Regina sine labe originali concepta. * Novamente in medio sæculi, no meio de nosso tumultuoso século, a Igreja, pela augusta voz do Papa Pio XII, proclamou o dogma da ascensão corporal de Maria ao céu: “assumpta est Maria in cœlum”. E a nossa doce consolação de cada dia é saber que, no Céu, Maria é mais diligente do que Marta na terra. Ave Maria. * “O dragão se enfureceu contra a Mulher e se pôs a fazer guerra contra toda sua descendência, contra os que observam os preceitos de Deus e dão testemunho de Jesus” (Ap. XII, 17). A nenhum observador, que não queira enganar-se a si mesmo para depois enganar os outros, pode escapar a figura da “heresia do século XX” que devasta o redil de Cristo. Esta figura é a de uma moderna e mais insolente forma de protestantismo com todas as suas características: secularização, democratismo, rejeição do primado de Pedro, dessacralização, horizontalização de todas as transcendências, pluralização, negação de todas as hierarquias, abandono do latim que até o Concílio Vaticano II, num clima de reformismo febril e alucinatório, foi ainda reafirmado como língua oficial da Igreja, rejeição da batina e das insígnias demarcadoras de hierarquia da ordem e de hierarquia de jurisdição. E dentro desse ecumenismo às avessas em que os eclesiásticos, em vez de procurarem formas novas de reconquistar os irmãos separados se precipitam cambaleantes de neo-latria e de alegre apostasia nos braços protestantes que não fizeram o menor sinal de reconhecer o erro de quatro séculos. Ao contrário! ao contrário! a julgar pelo que dizem os “teólogos franciscanos” que hoje parecem surgidos por geração espontânea, e pelo que dizem alguns abades beneditinos evidentemente entediados da stabilitas, somos nós que devemos reconhecer nosso erro, nossa pirraça, nossa estreiteza de vistas. Somos nós que devemos, em procissão imitar o arcebispo nordestino que entrou no templo luterano arquejante de humildade e de contrição. Ia pedir perdão aos protestantes! Os protestantes são convidados a pregar nas missas católicas, e são convidados a colaborar nas reformas litúrgicas. E atrás de todas essas dez mil capitulações se esconde, ou melhor não conseguem eles esconder o que o vidente de Pathmos revelou: “O dragão se enfureceu contra a Mulher e se pôs a fazer guerra contra toda sua descendência, contra os que observam os mandamentos de Deus, e dão testemunho de Cristo Jesus”. Sim, o que essas torrentes de insensatos chamados “progressistas” ou “avançados” fazem hoje, com agudíssima modernidade, com maior atualidade do que o campeonato de xadrez, que brevemente terminará e começará a entrar na névoa do esquecimento, o que eles fazem dia a dia, nos seus jornais, no seu vai e vem publicitário, nos seus congressos de comediantes que querem salvar a América Latina, o que na verdade eles fazem, assim ou assado, sabendo ou não sabendo, é aquilo que em outro versículo do Apocalipse está escrito: — Adorarão a Besta dizendo “quem como a Besta?” (Ap. XIII, 4). E entre as rubricas dessa liturgia tem lugar de destaque o repúdio do nome e do coração de Maria. *

O ômega e o alfa se encontram no verbo de Deus, e à perseguição descrita no último livro, O Apocalipse, se contrapõe, no primeiro, o anúncio da vitória final da Mulher sobre a serpente: “Ponho uma inimizade entre ti e a Mulher, entre a tua e a sua descendência, e ela esmagará tua cabeça”. (Gen. III,15). Antes do triunfo final, e enquanto estamos em caminho, convém desagravarmos todas as injúrias feitas a nossa Mãe do céu, e sobretudo, nas horas de desânimo, e de supremíssimo cansaço, convém-nos levantar ao seu regaço todos os nossos cuidados. O doce pé de Maria que Bernadette teve o privilégio de ver em sua puríssima e imaculada carne, e que voltou a pisar nosso áspero chão depois da festa da Igreja que a proclamava sine labe originali concepta, tem a força invencível da humildade. Armado com sua franqueza, vestido com pétalas de rosa, o pé da Santíssima Virgem, que no meio deste século teve de seus filhos na terra a festa da Assunção ao céu, há de vencer e esmagar os adoradores da Besta que hoje — diante de nossa consciência boquiaberta — parecem capitalizar as vitórias de todas as batalhas. * Uma das grandes crises de nosso tempo, especialmente dolorosa em meio católico, é a crise moral que se traduz no amolecimento chamado “falta de caráter” que parece ter-se tornado o novo caráter do homem mutacionado de nosso século. Ora, o melhor exercício espiritual para ganharmos a virilidade evanescente, para recuperarmos a coragem e o vigor de amar o bem e detestar o mal é o de tomar viva consciência de nossa linhagem sobrenatural, e das armas com que venceremos o mundo sob o signo da cruz de Nosso Senhor, que “já venceu o mundo”. E entre as armas do céu, especialmente eficazes contra os demônios que devastam as almas, é oportuno lembrar o santo rosário, cuja festa instituída por São Pio V em 1571 em agradecimento pela vitória de Lepanto, hoje esquecida e desdenhada pelos católicos que invocam a paz da carne e do sangue, por já não terem fibra e fé para pelejarem pela paz de Cristo. Regina sacratissimi Rosarii, ora pro nobis Regina pacis, ora pro nobis. (Editorial da Revista PERMANÊNCIA n° 48, Outubro de 1972)

Rue du Bac Num recanto de Paris, margem esquerda, quase escondida atrás do Bon Marché, onde trepida toda a variedade do efêmero, há uma rua estreita, um portão abrindo para um pátio que, no fundo, por uma porta à direita também quase escondida abre para uma sombria capela espaçosa onde, em todas as horas, encontramos um permanente contraste: a multidão e o recolhimento. Estamos na Capela das Irmãs da Caridade, 140, Rue du Bac, permanentemente cheia e permanentemente imersa no mais profundo e silencioso recolhimento. Num belo livro publicado há poucos meses, Jean Guitton escreve estas linhas que atribuí ao caderno de apontamentos de algum marciano descido num disco voador nas cercanias da Rue du Bac: “Vi ontem em Paris um fenômeno bastante raro. Que nome lhe darei? Oração em estado puro, oração constante, ou imploração mais ainda do que oração — a adoração misturada à imploração. Difícil definir. Há ali silêncios, murmúrios e gestos desconcertantes: homens e mulheres de todas as raças, de todos os níveis, ajoelham-se diante de uma cadeira de braços colocada no fundo, à direita: beijam o rebordo, os pés, os braços, ou deixam bilhetes enrolados sobre o assento”. Guitton desenvolve a estupefação do marciano, que registra em seu caderno o “fenômeno regressivo”. Não precisava ir buscar em Marte, a mais de cinqüenta milhões de quilômetros, a testemunha de tal estupefação. Basta interpelar o abundante e acessível homem moderno, no outro lado da rua, ou no Bon Marché, para encontrar o espanto e a reflexão relativa ao caráter regressivo do fenômeno. Bastava talvez entrevistar algum dos sacerdotes acaso escalados para uma das missas da Capela da Rue du Bac, 140, porque hoje, como sabemos, a estupefação causada pelo catolicismo se encontra especialmente nos meios ditos católicos, e não creio que a Rue du Bac consigo isolar-se absolutamente do mundo, que aliás escorre, ou pinga continuamente, para vir buscar naquele recanto um lugar que esteja no mundo sem ser do mundo. Mais precisamente, mais concretamente, o que vem fazer tanta gente nessa rua, nessa Capela, diante dessa cadeira de braços? Sim, tanta gente. Muito mais do que jamais imaginara. Na mesma página 23 do livro de Jean Guitton lemos que em 1957 o número de visitantes do Louvre foi de 631.000 e do Panthéon 150.000. Ora, o número de visitantes da discreta e recolhida Capela foi 900.000! E por quê? Porque na noite de 18 de julho de 1830 a Irmã Catarina de Labouré, noviça do seminário da Rue du Bac, depois de ouvir da mestra de noviças instruções sobre a devoção aos santos e em particular à Virgem Santíssima, “adormeceu com a idéia de que São Vicente obteria para ela a graça de ver a Virgem”. Ora, às onze e meia da noite “ouvi que me chamavam por meu nome: ‘Irmã Catarina! Irmã Catarina!’ e acordando puxei a cortina do lado da passagem e vi um menino vestido de branco, 4 ou 5 anos de idade, que me dizia: ‘Levanta-te depressa e vamos à Capela, porque a Virgem Santíssima te espera’. Logo me veio a idéia de que eu seria ouvida, mas o menino disse: ‘Fique tranqüila porque são onze e meia e todos dormem, vem!’ E eu me apressei a vestir-me, e acompanhei o menino que me esperava, e que espalhava raios de luz por onde passava. As luzes estavam acesas por onde passávamos, o que me espantava muito, mas ainda mais surpresa fiquei à entrada da Capela cuja porta se abriu logo que o menino a tocou com o dedo. E minha admiração chegou ao cúmulo quando vi as luzes e os círios acesos como para a missa de meia-noite. Mas eu não via a Virgem. O menino me conduziu no Santuário até junto da cadeira de braços em que se sentava o Sr. Diretor. Ajoelhei-me e o menino ficou todo o tempo de pé (...). Enfim a hora chegou e o menino me disse: ‘A Virgem está chegando, ela vem...’. E eu ouvi um frufru de saia de seda (...). Eu ainda duvidava mas o menino disse: ‘Eis a Virgem Santíssima’. (...) Então dei um salto para junto d’Ela e fiquei de joelhos com as mãos apoiadas em seus joelhos. E aí passei um momento o mais doce de toda a minha vida. É impossível dizer tudo o que eu sentia. E a Virgem começou a falar-me...”.

* Diante dessa singela narração é minha vez de dizer que é impossível transmitir o que eu também, pobre velho tão carregado de complicações, senti, não apenas a primeira vez mas cada dia mais, diante daquela cadeira onde várias vezes sentou-se a Rainha dos Céus e da Terra para falar e chorar na companhia de uma alma simples e santa. Creio que posso dar uma aproximação simples do que sentia se disser que, aos pés daquela cadeira, eu e minha mãe do céu estávamos sós, sem ninguém na Capela apinhada de gente. E eu podia encostar a cabeça no braço da cadeira, esquecido de tudo, de todos, e especialmente de mim mesmo. E imagino que deva ser a sede desse confronto que leva um milhão de pessoas por ano ao santuário da Rue du Bac. Mas então você não pediu a Nossa Senhora que te melhorasse um pouco o princípio de cegueira que te molesta tanto? Não pedi nada para mim nem para os outros. De longe quando via alguém chegar-se, ajoelhar-se, deixar no assento da cadeira um bilhetinho de súplica, eu me torcia de súplicas por aquela pessoa desconhecida ou conhecida; mas o fato é que quando eu mesmo me ajoelhava e beijava os bordos da cadeira esqueciame de tudo para só querer aquela doce proximidade que Nossa Senhora já me dava, no silêncio, no recolhimento, no isolamento criado naquele recanto de Paris, atrás do Bon Marché. Trago ao pescoço a medalhinha milagrosa que ressaltou do pedido simples de Catarina de Labouré, que em 18 de julho de 1830, depois das orações da noite, adormeceu dizendo a São Vicente que desejava ver Nossa Senhora. Conversa em Sol Menor, Agir 1980.

Santa Teresinha “Eu temia que o bom Deus depressa a levasse para si”.

A irmã mais velha de Teresa Martin assim exprimiu sua admiração e seu temor quando, aos oito anos, a irmãzinha lhe pedia mais oração, como quem tem sede. E tinha razão de admirar e tremer, porque na vida de Teresinha tudo — a infância precoce, a adolescência abreviada, a licença especial de entrar no Carmelo com 15 anos, o noviciado, os sete anos de vida consagrada, o tempo escasso de escrever por obediência sua história pequenina, a morte rápida e devorante — tudo na vida de Teresinha parece acelerado, abreviado, como se Deus efetivamente tivesse pressa de levá-la para si. Ou tudo parece espicaçado e exigido por um Senhor impaciente como há quatro séculos aconteceu com outra grande pequenina de França, a quem o próprio São Miguel veio soprar: — Va fille de Dieu! Va!

A Igreja também teve pressa de a reclamar para si, para nós.

Em outubro de 1897, quando a Europa se aprontava para encerrar pomposamente o século das luzes e das glórias do homem, e se preparava para entrar no ainda mais estridente século XX, Teresa do Menino Jesus e da Santa Face morria no silêncio e na obscuridade. Mas ela mesma anunciara que seu

céu seria trabalhoso, e que lá cumpriria o que seu Amor não permitira que fizesse na terra em tão curta vida. “Je veux passer mon ciel à faire du bien sur la terre”. Para isto, porem, de algum modo ela teria de voltar. E foi isto que anunciou: “Eu descerei” (Nov. verba 12-julho-97); e mais: “Depressa percorrerei todo o mundo” (carta a Sr. Geneviève, set. 97). O prodígio se efetua com a aparição de História de uma alma que de mão em mão dá a volta ao mundo, transforma vidas, salva almas, converte corações endurecidos, chega ao Extremo Oriente, traduz-se em chinês e japonês, e chega a Roma. E aí, aonde a rotina e a prudência, ora uma ora outra, aconselham a lentidão dos processos, faz-se sentir novamente o ímpeto de Teresinha e a pressa de Deus. Pio X maravilha-se com o que lê e manda apressar o processo de beatificação que ele mesmo assina dois meses antes de morrer. Benedito XV, não menos impressionado que Pio X, promulga solenemente o decreto com que a Igreja reconhece a herocidade das virtudes da Serva de Deus, faz o panegírico da “via de infância espiritual”, e isenta dos cinqüenta anos de espera impostos pelo Direito Canônico o processo de canonização; mas foi Pio XI que teve a gloriosa solicitude de assinar o decreto de canonização da “maior santa dos tempos modernos”, “estrela de seu pontificado”, e que teve a confiante pressa de colocar sob sua proteção o México e a Rússia que padeciam sob o comunismo desumano e ateu. Indo mais longe, Pio XI declara a nova santa padroeira de todas as missões. Como se não bastassem, em resposta à impaciência de Jesus que logo a levou, a impaciência do povo de Deus e a pressa de três papas, registremos agora um fato que só pode ser atribuído a uma especial solicitude dos anjos; e é o mesmo São Miguel que inspirará a Pio XII a idéia de associar Santa Teresinha a Santa Joana d’Arc na proteção da França, em 1944, “nas horas mais sombrias de toda sua história” como diz muito bem o Pe. Philipon. Seja-nos dado agora o direito de imaginar todo esse entrecruzamento de linhas visíveis e invisíveis, entre o céu e a terra, e seja-nos permitido ver duas meninas vestidas de luz se entreolharem e se sorrirem quando ouvem a voz sonora do arcanjo ressoar por cima dos séculos: “Va fille de Dieu! Va! sem saberem a qual das duas se dirige o grito de guerra, ou bem sabendo, ambas, que estão irmanadas no mesmo trabalho do céu, no mesmo trabalho na terra. “Tenho sede!” diz Teresa. “Tenho sede!” diz Jesus.

Com treze anos Teresa tinha a vocação religiosa decidida, firmada, mas creio que André Combes (Introduction à la Spiritualité de Sainte-Thérèse de l’Enfant-Jésus) tem razão de dizer que “nessa vocação que ainda não chegara à seu máximo de generosidade se enxertará, de modo manifestamente sobrenatural, um apelo ao apostolado” uma espécie de refluxo do amor de Deus sobre os homens, para amor de Deus ainda maior, que o ano de 1887 será um marco na história espiritual de Teresinha, e por conseguinte na história da Igreja. Certo domingo depois de Pentecostes, em 1887, no fim da missa e no instante exato em que fechava seu missal, Teresa viu a ponta de uma imagem a sair de entre as páginas. Essa imagem que se acha reproduzida em Novíssima Verba representa Cristo crucificado. No primeiro momento Teresa só viu uma das mãos perfurada e sangrando. Experimentou um sentimento que ela qualifica de “novo” e de “inefável” (H. A., cap. V): “Meu coração rasgou-se à vista desse sangue precioso que caia no chão sem ninguém para recolhê-lo. Resolvi então estar continuamente em espírito ao pé da cruz para receber o divino orvalho da salvação e logo espargi-lo sobre as almas”. Neste primeiro instante o Espírito Santo vulnera-lhe o coração com o zelo da salvação das almas que logo se tornará sede ardente. Ela mesma nos descreve esse momento infinito: “Desde esse dia o grito de Jesus moribundo: tenho sede! Ressoava sem cessar em meu coração para nele acender um ardor desconhecido e muito intenso. Queria dar de beber ao meu Bem Amado, e eu mesma me sentia devorada pela sede das almas. A todo custo queria arrancar os pecadores às chamas eternas”.(Ibid.).

E aqui o Pe. Combes deixa transparecer uma emoção vivíssima quando se imagina a mergulhar um olhar fraterno e sacerdotal naqueles dois grandes olhos glaucos que acabavam de contemplar, pela primeira vez, um jato de sangue espalhado na Cruz e que ninguém sonhava recolher, e sente um frêmito de esperança ao descobrir naquela menina transtornada e cândida a graça das graças de uma espécie de ordenação personalíssima por cima dos ritos, dos símbolos, das cerimônias comemorativas e do hieratismo da Liturgia, por cima das espécies sacramentais e dos véus dos santos mistérios, para atingir, além do espaço e do tempo, a realidade viva do Calvário, e para dar a Jesus crucificado a consolação de ver a seus pés uma alma capaz de compreender o preço de seu sangue no próprio momento em que ele corria. “A partir desse dia Teresa se torna contemporânea do Crucificado”. No contato com a Cruz aprende instantaneamente o amor das almas pelas quais Jesus padeceu, e esse novo e mesmo amor se integra sua vocação de amor fazendo da contemplação e da sede das almas o mesmo ardor de heroísmo e de loucura que a abrasará e depressa a consumirá. “Tenho sede!” dirá ela a vida inteira com febre de amor. Ainda antes de tentar a entrada no Carmelo, e incendiada pela dimensão nova de suas vocação contemplativa e ativíssima, Teresa ousa pedir a Deus um sinal. Deus lhe concede o sinal que tantas vezes se repete na história da Igreja: um sinal do cadafalso. O criminoso Pranzini, que praguejava e blasfemava a caminho do cadafalso, de repente, no último momento se volta para o padre que o acompanhava e beija três vezes o crucifixo. Teresinha lera por acaso a notícia da condenação e do dia marcado para a execução, e depois lera a notícia do sinal: “Eu obtivera o sinal pedido. Não fora diante das chagas de Jesus, vendo correr seu sangue divino que penetrava em meu coração a sede da salvação das almas? Quisera dar-lhes a beber esse sangue imaculado que lhes lavasse de todas as impurezas, e eis que os lábios ‘de meu primeiro filho’ vieram se colar às chagas divinas. Que resposta inefável! Ah! desde essa graça única, meu desejo de salvar as almas cresce dia a dia. Parecia-me ouvir Jesus falar-me como à Samaritana: ‘Dá-me de beber’. Era uma verdadeira troca de amor: às almas eu servia o sangue de Jesus, à Jesus oferecia essas mesmas almas refrigeradas no orvalho do Calvário, e assim eu pensava desalterar Jesus, mas quanto mais lhe dava a beber mais crescia a sede de minha pobre pequenina alma, e eu recebia o ardor dessa sede como a mais deliciosa recompensa” (H. A., cap. V). Salvar as almas, sofrer e se oferecer pelos padres, eis as razões aparentemente contraditórias, as razões de amor divino, que levaram Teresinha a se enclausurar nove anos no Carmelo para “passar seu céu” trabalhando pelas almas. Jesus e Teresa tinham pressa; Jesus e Teresa tinham sede. A alma sacerdotal de Teresinha, como tão bem notou o Pe. Combes, tinha sede especial das almas sacerdotais, e não cessava de dizer: “Celina, rezemos pelos padres, Jesus me faz sentir todos os dias que espera de nós duas essa vida consagrada aos padres”. “A Igreja vos apresenta um novo e admirável modelo de virtudes que deveis incessantemente contemplar”.

Todas as variadas e mais ou menos sábias tentativas de esboçar o retrato espiritual de Teresa se comprimem e se atrofiam em esquemas ou se perdem e se diluem em análises psicológicas desconcertantes por seus paradoxos. O que mais se sabe de Teresinha é o que ela mesma nos diz no livro em que praticamente só fala de si mesma, e no qual, dirigida por três papas sucessivos, Pio X, Benedito XV e Pio XI, a Igreja viu sinais incontestáveis de heróica humildade. Esse livro não tem a beleza poética dos poemas de São João da Cruz nem a vivacidade de ensino de Teresa d’Ávila. O estilo é aplicado, convencional, e bem se vê que foi escrito por obediência, o que já seria um dado para esfriar o interesse de qualquer leitor. O Pe. Petitot O.P. (Saint Thérèse de Liseux, une renaissance religieuse) começa seu proveitoso estudo pela enumeração de quatro ausências, na obra e na vida de Teresinha: ausência de “mortificações

violentas” ou de enfática ascese, ausência de método de oração, ausências de favores extraordinários e ausência de obras múltiplas. Na segunda parte do livro o Pe. Petitot se aplica em mostrar o equilíbrio e a coexistência das virtudes antinômicas, simplicidade e prudência, humildade e magnanimidade, força e sentimento de seu nada, que se encontrava em grau heróico na Santa de Lisieux, mas o próprio Petitot, com Santo Tomás e São João da Cruz, é o primeiro a nos advertir que “tal é a regra das virtudes sobrenaturais: onde há uma haverá outra, onde esta fraqueja faltarão as outras” (São João da Cruz). Estamos pois diante de uma exigência de equilibrado esplendor da santidade, sem nenhuma singularidade que nos autorize a falar numa “nova via” ou num “novo estilo de espiritualidade”. Nem por isso o Pe. Philipon O.P. (Sainte Thérèse de Liseux) hesitou em anunciar Teresinha como “criadora de uma nova via de espiritualidade”. Mas o mesmo autor, na Conclusão de seu estudo nos tranqüiliza a respeito da nova via que hoje, diante da pavorosa inflação de coisas novas, nos assustaria, e diz: “O toque de gênio de Teresinha foi o de ter trazido a santidade à sua pura essência, e de ter mostrado o ideal e a perfeição acessíveis a todos pela via comum”. Não vejo nenhum inconveniente grave no uso das expressões “a escola da pequena via”, a “espiritualidade” ou a “doutrina” de Santa Teresinha, desde que sejam usadas no sentido amplo que não implique nenhuma pretensão de lhe darmos, antes da Igreja, um título de doutora. Os melhores autores e os próprios papas usam essas expressões que implicam a idéia exata de que temos muito a aprender com Teresinha. Mas aprender sobretudo pelo exemplo. Sem se propor como mestra ou como fundadora de uma “nova via”, Teresinha nos deixou o legado de uma experiência singular, concreta, vivida deixou-nos, por obediência, a singela narração, hora a hora, da experiência a que se entregou totalmente. E é essa experiência, esse modelo, mais exemplo do que lição, que a Igreja, pela voz calorosa de Pio XI, nos apresenta na Bula de canonização “Fiéis de Cristo, a Igreja vos apresenta hoje um novo e admirável modelo de virtudes que todos deveis contemplar incessantemente”. “Novo” aqui não quer dizer “novo” por originalidade, por novidade, por oposição aos antigos: quer apenas dizer “mais um” modelo, exemplo, que tem a singularidade de ser uma experiência pessoal e que tem a garantia de ser exemplar por ser configurada pelo nosso único e eterno Modelo. E aqui me permitam uma audácia: creio que, como escola de espiritualidade ou como fundadora Teresinha talvez tivesse na memória da Igreja vida mais curta do que simplesmente como exemplo, pequenino modelo que teve o atrevimento de dizer que, na sua pequenez, ficaria conosco até o fim do mundo. Diz muito bem o Pe. Philipon (conclusão) que o “furacão de glória” que logo após sua morte tornou Teresinha popularmente amada, não somente nos meios católicos, como também em todo o mundo e até nos meios maometanos, deve ter um sentido, uma significação. Cremos, com Philipon, que ela reside no fato de ter conseguido Teresinha, a imensa Teresinha, tornar-se pequena para ganhar as pequenas almas, ou de ter apresentado o ideal de santidade não como coisa fácil e barateado, mas como dom de Deus realmente acessível a todas as estaturas: “O bom Deus não nos pede grande coisas, mas simplesmente o abandono e o agradecimento” (H. A. XI). Não nos iludamos com a simplicidade das palavras: as coisas que Deus nos pede são enormes, se as medirmos com os padrões de nossos complicados critérios, e sobretudo se as aquilatarmos pelas resistências de nossa carne (amor próprio), do mundo e do demônio — Tornaram-se maravilhosamente acessíveis quando vemos – como neste maravilhoso exemplo de Teresinha — que Deus já percorreu todo o caminho ao nosso encontro, e que só falta o pequenino e imenso abandono de nosso nada no Tudo de Deus. Seja como for, seja qual for o mérito da obra de Teresinha vista como “petite voie”, vista como novo estilo, ou como escola, o que realmente ela nos traz na sua experiência canonizada pela Igreja é um frêmito novo de esperança: o cristianismo é praticável. Apesar de todas as arrogâncias de uma civilização apóstata, que tudo apostou na autonomia do homem e que hoje se prosterna diante da própria figura do homem-que-foi-à-lua, apesar de todas as glórias da máquina a vapor e da eletricidade, Teresinha traz a notícia sensacional, a notícia que produz um frêmito no mundo das almas machucadas e sedentas: a notícia da vitória da humildade que libera, porque a “humildade é a verdade” (Sta. Teresa d’Ávila).

“Sede perfeitos como vosso Pai celes al é perfeito”.

A espiritualidade de Teresinha é nova e antiga, é própria para nossos tempos e é clássica. Pensando na escola que Teresa freqüentou e na linhagem de mestres que teve, ocorre-me dizer, contradizendome, que foi um curso de vinte séculos, e a primeira mestra espiritual que teve foi aquela outra menina de quinze ou dezesseis anos que foi ao encontro de Isabel para cantar o Magnificat, onde tão bem se encontram as antinomias do Pe. Petitot. Mas o Mestre dos Mestres é e só pode ser aquele que certamente veremos se, com a pupila da Fé, atravessarmos a figura de Teresa e chegarmos à Santa Face. Depois vêm os mestres de todas as épocas, especialmente o da Imitação de Cristo, o da Subida do Monte Carmelo e a das Moradas. Haverá linhagem mais clássica e menos nova? Vale a pena agora meditarmos um pouco no “lado de Deus” dessa maravilhosa experiência. Já dissemos atrás que Deus tem sempre a primeira iniciativa, e a parte total de nossa santificação. Segundo os doutos, nosso processo de santificação, para ser adequado ao homem, há de ser progressivo como é todo o crescimento humano. Observe-se porém uma curiosa simetria, e uma oposição de itinerários da pedagogia humana e o da pedagogia do Espírito Santo: a primeira progride na direção da crescente autonomia do educando; a segunda, ao contrário, progride na direção da crescente heteronomia, do crescente abandono, da crescente obediência. E esta linha clássica traçada por todos os mestres espirituais, pode ser descrita assim: nas primeiras estações o progresso espiritual tem o modo das virtudes que, mesmo as teologias, guardam certa feição das virtudes naturais. Esse modo das virtudes, é geralmente comparado à uma força que o homem tem de fazer para progredir: assim o remador tem de fazer força para impulsionar o barco. À medida que a alma progride sua marcha ascensional dia a dia mais se entrega, ao modo dos dons com que o Espírito Santo, como vento que sopra nas velas da alma, torna mais ágeis, mais prontas e mais filiais as virtudes. Todo o organismo espiritual se aprimora nessa direção da espontaneidade e do pronto instinto das coisas de Deus. De baixo para cima, do dom do temor que “é o princípio da sabedoria” e que aprimora a humildade, constrói-se o edifício cuja cúpula está a perfeição suprema do amor divino, que é o dom de sabedoria. Nesse estado de perfeição a alma está toda abandonada e entregue ao Espírito Santo que nela esculpe a Santa Face do Filho e assim se veste e prepara para a festiva e definitiva volta ao Pai. E nesse jogo das quatro causas, em que podemos atribuir ao Pai a causa final, ao Filho a causa formal, e ao Espírito Santo a causa eficiente, o papel da causa material deixa a alma na condição quase inerme e passiva das criancinhas. E assim vemos que a “infância espiritual” é uma árdua e longa conquista, e é uma idéia clássica entre os Evangelhos: “Se não fordes como um desses pequeninos não entrareis no Reino de Deus”. Aplicada a doutrina dos grandes autores espirituais a Teresinha descobrimos que Deus operou nela grandes coisas, e a abreviou rapidamente a sua subida. “O vento sopra onde quer”.

Depressa achou-se Teresinha abandonada e entregue aos dons do Espírito Santo, na sétima morada descrita por Teresa d’Ávila, a doutora. Na homilia da missa de canonização, 17 de maio de 1925, Pio XI disse solenemente que o mesmo Deus que se esconde dos sábios e orgulhosos agradou-se “em sua Divina Bondade de enriquecer a pequena Teresa com um excepcional dom de sabedoria”.

Ora, é precisamente esse dom dos dons que dá à alma a experiência da presença de Deus, e da habitação da Trindade Santíssima. E é também esse dom dos dons que do alto impera e governa todos os dons e virtudes e que, da mais alta forma de contemplação desce aos vasos capilares das mais pequeninas atividades de cada minuto. Sob o sopro poderoso dos dons, e sobretudo do Dom de Sabedoria, a oração espontaneamente transvasa na ação e então o espectador maravilhado — se tiver olhos de fé para tal espetáculo — verá uma pequenina vida toda bordada de pontos de cruz, verá o que viram as almas agradecidas no que puderam ver atrás da espessura de um livro. Mas o melhor dessa vida exemplar escapou às próprias irmãs, e a todos nós escapa, como se a misericórdia de Deus continuasse a cobrir com um véu o brilho ofuscante daquela alma para que assim não nos assustemos, e continuemos a ver na doce irmãzinha um modelo ao nosso alcance. E para terminar, o que com gosto prolongaríamos anos e anos, façamos nossa a suprema súplica de Teresa, tornada súplica da Igreja na homilia de canonização de Pio XI: “Ó JESUS SUPLICO-TE QUE ABAIXES TEU DIVINO OLHAR SOBRE A MULTIDÃO DE ALMAS PEQUENAS. SUPLICO-TE QUE NESTE MUNDO ESCOLHAS UMA LEGIÃO DE ALMAS PEQUENAS VÍTIMAS, DIGNAS DE TEU AMOR”.

(Revista PERMANÊNCIA, Jan-Fev 1973, no. 51-52, ano VI)

Um estudo sobre o monaquismo I - A FISIONOMIA DO MONGE 1. Si vis perfectus esse... Em Mateus (XIX, 16-22), lemos a primeira definição do monge: “E eis que alguém, abordando-o, disse: Mestre, que devo eu fazer de bom para ter a vida eterna? E ele lhe diz: Por que me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Se queres entrar na vida, observa os mandamentos. E ele lhe diz: Quais? Jesus responde: São estes: não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não pronunciarás falso testemunho, honrarás pai e mãe, e amarás o próximo como a ti mesmo. Diz-lhe o moço: Observei-os todos, que me falta ainda? Jesus lhe diz: Se queres ser perfeito, vai, vende o que possuis, dá tudo aos pobres, e terás um tesouro nos céus: depois vem, e segue-me. Quando ouviu estas palavras, o moço afastou-se contristado porque era muito rico”. E aí está uma primeira definição ligada a uma primeira recusa. O moço que Jesus amou, conforme está escrito em Marcos (X, 17-22) recuava diante do chamado mais premente, porque era muito rico. Foi por isso que Nosso Senhor, logo a seguir, acrescentou que era mais difícil um rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Cumpre notar, entretanto, que o moço rico do evangelho não se negava à perfeição. Ele mesmo dissera, com impulsiva generosidade, que vinha cumprindo os preceitos desde a juventude, o que se explica, segundo o Pe. Lagrange, pela tendência enfática que os moços têm de falar no seu passado recente. Desde a juventude, quer dizer desde sempre. Ou desde os dias em que havia despertado no moço uma consciência moral. Desejara e procurara a perfeição, quisera sempre orientar-se para um verdadeiro fim, mas assustou-se e fugiu quando o Senhor lhe apontou o caminho mais curto que lhe pareceu difícil demais. Como dirá depois o teólogo, o moço rico do evangelho cumprira o preceito, mas recuara diante do conselho. Ora, duzentos e cinqüenta anos mais tarde, um outro moço, nobre e rico, ouvindo numa igreja a leitura do mesmo texto evangélico: “si vis perfectus esse...”, tomou para si o convite de Deus, saiu a vender suas terras e seus bois, distribuindo tudo pelos pobres, e foi viver no deserto da Tebaida, o mais pobre dos pobres, entre orações, jejuns e espantosas mortificações. Esse moço foi Antão, o monge. 2 . Preceito e conselho Não devo, entretanto, dizer que o monge se define simplesmente pela escolha da perfeição. “Diz-se de uma coisa que ela é perfeita quando atinge seu próprio fim, que é a sua última perfeição”. (Suma Teo. II-II, Qu. 184, art. 1). Ora, a beatitude eterna é o fim último do homem. Logo, não somente os monges, mas todos os cristãos procuram a mesma perfeição. Explica Santo Tomás (Qu. 184, art. 3) que a perfeição consiste essencialmente no preceito e “secundariamente, a título de meio, no conselho”. Assim, o que caracteriza o monge, por enquanto, não é a escolha do fim, mas a dos meios; é a coragem de tomar o caminho mais curto e mais difícil; é a aventura de levar a obediência até os extremos do conselho. Não se contenta em evitar o que contraria a caridade, mas em evitar também o que não a acrescenta. Mas escolhe os meios de um modo especial, isto é, por já ver neles o fim, e faz dessa escolha um estado. Não foi o gosto de se desfazer dos deleites da fortuna e dos regalos da vida, mesmo os legítimos, que lhe pesaram no espírito. Não por estoicismo que vendeu suas terras e seus bois. Antes daquelas palavras sobre os meios disse Jesus: “um só é bom”. Depois delas, acrescentou: “segue-me”. Tudo o mais então se torna acessório – rebanhos e vinhas – se um só é bom. Todas as coisas da terra serão reflexos de uma só bondade; e, assim sendo, mais vale seguir a luz do que demorar-se nos reflexos ou correr no encalço das sombras. O moço rico do evangelho, cuja franqueza foi amada pelo Senhor, não seguiu a superabundância do conselho, mas tendo amado o preceito está certamente no céu. O bom Mestre, segundo Marcos, fixou seus olhos nos dele, e amou-o. Está escrito. O que absolutamente não está escrito é que Jesus tenha

amado naquele moço rico todos os moços ricos que, pelos séculos afora, irão pensar que o preceito consiste na magra pontualidade, e na mesquinha observância das condições mínimas exigidas pela Igreja. Cumpre lembrar que a alma do preceito é a caridade. Amar a Deus e ao próximo, eis os principais mandamentos. Lendo as distinções de Santo Tomás, poderíamos acha-las murchas e sem vida (porque são sóbrias e discretas), sobretudo se não lhe apreendermos o sentido completo. Preceito, no vocabulário corrente, tornou-se uma coisa seca, estrita, suficiente, parcimoniosa, como um negócio que se regateia. Ir à missa aos Domingos e comungar uma vez por ano: eis um preceito da Igreja. Mas é bom saber que esse mínimo, oferecido por Deus, será inútil e vão se faltar aquele máximo que é a caridade. Admite-se a liberdade de não usar a abundância dos meios santificantes; mas o que não se admite dentro da Igreja é o desprezo pelo fim. E é deste que cuida o preceito. Há enormes mistérios dentro da Igreja. Um deles, e dos mais terríveis, a meu ver, é o preceito do mínimo. O homem do mundo, vendo a Igreja por fora, aprecia a enorme sabedoria de sua tolerância no que concerne à prática, mas acha esquisitíssima a vida dos monges. Ora, um pouco de convívio na Igreja, modifica radicalmente essa apreciação, mostrando-nos que esquisitíssima é a vida de quem crê e não usa aquilo em que crê senão uma vez por ano. Na verdade, a Igreja concede que pratiquemos essa singular economia de meios; mas não transige quanto ao fim. Exige o máximo, mas tem a imensa e maternal paciência de levar a sério a presunção dos que se julgam suficientemente aparelhados para dispensar o quotidiano auxílio de sua maternidade. Diria até que ela sorri de nós, com essa história de comungar uma vez por ano, reservando seu riso franco e desvendado para o dia de suas núpcias. O monge, nessa ordem de idéias, é o homem que entendeu por meias palavras o conselho do evangelho, e que decifrou o misterioso sorriso de sua mãe. Por isso vai muito além do preceito. Ou melhor, adivinha a verdadeira profundidade do preceito. 3. O máximo e o mínimo Vimos atrás que está armado o problema de saber o que é o mínimo e o que é o máximo. O moço rico que veio ao encontro do Senhor queria a perfeição, a mesma a que Santo Antão se oferece; mas desejava-se equilibrar entre a riqueza na terra e a riqueza no céu. Não digo que ele fosse um calculador, dessa espécie ridícula que julga ser possível enganar a Deus. Lá diz S. Marcos que Jesus o amou depois de o ter olhado dentro dos olhos. Enganar ele não quis. O que ele vinha buscar era a mesma vida eterna dos santos. E certamente alcançou o que buscava, porque Jesus o amou. Mas, naquele momento de sua vida terrena e carnal ele foi um calculador, sim, um mau calculador, porque não soube distinguir a nova luz que subverte todos os valores, transformando o mínimo em máximo, e o máximo em mínimo. O monge, ao contrário, é o homem para quem começa, a partir de sua opção, a vida subvertida das bem-aventuranças. Ouve e obedece. Vê o máximo no mínimo. Decifra a cruz. As terríveis palavras cruzadas do evangelho. Segue a Cristo. Segue-o passo a passo, de perto, deixando pai, mãe, terras, bois e vinhas, porque um só é bom. 4. Ida e volta Aliás, nessa impetuosa partida, sob a claridade de um novo dia, o monge descobre que está trilhando um caminho de volta. “Redire ad Deum”: eis aí um resumo da vida monástica. É uma volta a Deus pelo caminho mais curto da forte obediência. É uma aventura, como aquela a que o bom humorista alude muitas vezes, glosando a seu modo as palavras evangélicas.

E agora vejo que cometi uma imperdoável omissão. Lá no capitulo de um livro, em que enumerei alguns dos oitenta volumes que era possível escrever sobre a simples idéia de volta, não mencionei o “Redire ad Deum” do monge que, permitam-me a imagem, é rápida e fogosa como a do cavalo que sente aproximar-se a paisagem familiar que circunda a casa do senhor. 5. As promessas de Deus Acrescento mais um traço a esse esboço que estou tentando, valendo-me da continuação daquele texto de São Mateus. Nos versículos 27 e 29 do mesmo capitulo lemos: “tomando Pedro a palavra, disselhe então: Eis que tudo deixamos para seguir-vos; e agora, o que acontecerá conosco? Jesus lhe diz: Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem sentar-se em seu trono de glória, vós que me haveis seguido, vos sentareis também em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel. E quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, pai e mãe, filhos e campos, por causa de meu nome, receberá o cêntuplo, e possuirá a vida eterna”. De onde eu concluo, nesta face que agora lhe vemos, que o monge é o homem que leva muito a sério as promessas de Deus. Em outras palavras, sua vida se desenrola perto e diante das últimas coisas. Seu caminho de perfeição é um estado, seus meios têm as marcas nítidas do fim, transformando-se o conselho em preceito, e sendo esse novo preceito uma regra, como se pode verificar nas primeiras linhas da Regra de São Bento: “Escuta, ó filho, os preceitos de um mestre...” Os descendentes de Bento, Basílio e Pacômio são homens escatológicos que vivem “em pé diante do Senhor”, atentos, vigilantes, de cintos amarrados, lâmpada acesa, prontos para correr ao encontro do Esposo. De todas as palavras da Sagrada Escritura as que mais lhes concernem são as últimas: “Vinde, vinde Senhor Jesus”. Ou então, as palavras da esposa no Cântico dos Cânticos: “Eu durmo, mas meu coração vigia. É a voz do bem amado. Ele bate...” 6. Vida nova O que ficou dito até agora não basta para marcar uma diferença essencial entre o estado do monge e o que a Igreja preceitua para todos os batizados. O moço do evangelho, fugindo embora ao caminho do conselho, já escolhera o bom caminho. Não se pode dizer, creio eu, que desobedecera ao Senhor, mas que não largara as rédeas ao ímpeto da forte obediência. E é em torno deste ponto que se estabelece uma diferença entre ele e o monge. Antão, Paulo, Macário, foram monges, porque ouviram melhor, descobriram a nova lei do máximo e do mínimo, levaram a sério as promessas, viveram as bemaventuranças e voltaram a brida solta para a casa de Deus. É evidente pois que o monge, a partir de sua decisão, passará a viver uma vida nova. Uma nova conversatio, como diz a Regra de São Bento. Seus costumes, suas atitudes, seus julgamentos, sofrerão profundas modificações sob a nova luz que torna transparentes as coisas do mundo para a expectação da última realidade. E, como o característico desse estado consiste mais nos meios do que no fim, é fácil prever que as tentativas feitas através dos tempos, pelos eremitas e cenobitas (não falando nos sarabaitas e nos girovagos), serão diversas e por vezes esquisitas. Este, ouvindo dizer que tomasse sua cruz, vai corta duas traves, passando a andar pelos caminhos com uma concreta cruz a lhe pesar nas costas. Aquele outro irá para o deserto. Muitos praticarão macerações prodigiosas. Mas debaixo dessa variedade de métodos vê-se que a nova vida, a conversatio dos monges, tem um centro bem marcado: um só é bom. A própria esquisitice dos meios serve para realçar a constância do fim; e daí tiramos um traço a mais dizendo que o monge procura, na confusão do mundo, aqui e agora, o que somente no céu se pode desfrutar de modo perfeito: a unidade.

Etimologicamente monge vem de monos, um, no sentido de solitário. Podemos agora tomar a raiz do vocábulo em sentido mais espiritual dizendo que monos é unidade, e que o monge, como Maria, procura centrar a nova vida em torno do único necessário. 7. Integridade Quem diz unidade diz não-divisão. Ora, o casamento é uma divisão (I Cor. VII, 33). O homem casado é dividido, tendo de cuidar das coisas do mundo e de agradar a sua mulher. O “único necessário” não pode pois ser realizado no casamento senão indiretamente, através de recíprocas dificuldades e por meio da santificação mútua. Os cônjuges não podem sequer dispor dos próprios corpos, nem estão livres de formular promessas porque, no vínculo que os prende, mesmo um juramento a Deus seria um perjúrio. Ou, se liberta, por outro lado embaraça; se completa, também divide; se satisfaz, também satura. Mas não são essas desvantagens que impedem o casamento dos monges. Não se trata aqui de uma questão de conveniência ou de legislação, como no caso do celibato dos padres. A discussão sobre as vantagens ou desvantagens da divisão só tem algum valor nos momentos que precedem a escolha. Depois, já não cabe dizer que o matrimonio é desvantajoso para o monge, porque sua escolha exclui essa possibilidade. Há duas doações possíveis e uma exclui a outra, pois de outro modo não seria uma doação. E, se a vida de família, fundada no amor humano, tem agasalhos e doçuras; se é bom muitas vezes ser dois; se é reconfortante mirar-se a gente no espelho de um rosto amigo, que tem seguranças de mãe, mimos de filha e ternuras de esposa; se é bom ter um corpo prolongado, destacado, que anda pela casa, e vai, e vem, separado e distante, seu e outro; se uma das maiores alegrias do mundo, legítima, abençoada, desejada, exigida por Deus, é a de ver ao redor, pela casa, uma porção de carinhas parecidas, nariz de um, olhos de outro, como se nossa divisão se transformasse numa subdivisão, e andassem assim, vivos, inteiros, em torno de nós, a nos puxar pela roupa, rindo, chorando, falando, as esquisitas somas de nossas semelhanças, reflexos tornados carnes, e carnes nossas, nossas e reflorescidas; se é possível, através da noite do mundo, um pouco de calor e luz nesse acampamento em que o homem e a mulher se entendam, gravemente, profundamente, santamente – mesmo assim – admitida a mais perfeita compatibilidade e a mais harmoniosa compreensão – mesmo assim o casamento, isto é, a convivência conjugal, exclui a convivência monástica. Aqui dividem-se os caminhos. Dividem-se as vidas. E o monge escolhe a vida nova da unidade, sendo íntegro na sua doação, indiviso na sua entrega, virgem no seu amor, uno, monos, e verdadeiramente solitário. Não pelo gosto da privação e do sacrifício; mas pelo gosto de seguir o Cristo Jesus. 8. Voto e consagração Mas a idéia de nova vida sugere logo a de um novo nascimento. Haverá pois um ato, um feito, um gesto, que marquem de modo inconfundível o momento dos primeiros passos. Volta ou partida, ou um pouco ambas as coisas, o caminho do monge será marcado nitidamente em seu início. Não podemos imaginar uma transformação gradativa. Se o moço do evangelho quisesse ser monge aos poucos, vendendo um boi por semana, ou um alqueire de terra por mês, é pouco provável que levasse a empresa a bom termo. Se é vida nova, novo é o nascimento. É preciso nascer de novo, como disse Jesus a Nicodemus.

Mas o cristão já nasceu de novo, para a vida eterna, pela água do batismo, não podendo assim a entrada na vida monástica ser um segundo batismo senão alegoricamente. O batismo é um só. Que caráter terá então esse limiar que o monge atravessa para a sua nova conversatio? Entre Antão e o moço que voltou contristado não pode existir a mesma diferença que separa um pagão de um batizado, um sacerdote de um leigo. Os sacramentos são sete. Não há outro sinal, que opere o que significa, e que sirva para marcar a transição para a vida monástica. Não há diferença de caráter entre um secular e um monge. Por outro lado, porém, o estado do monge difere profundamente da atitude de um cristão que formula bons propósitos. E difere, justamente porque é um estado. Para Santo Tomás, o que marca esta transição é a solenidade dos votos, pela qual se distingue o simples voto (que é uma promessa, isto é, qualquer coisa de potencial) do voto solenizado que é uma entrega total (II-II, Qu. 88, art. 7). E esta solenidade não consiste somente nos gestos visíveis dos homens, mas em “algo de espiritual em que Deus mesmo se empenha, isto é, numa benção ou numa consagração espiritual”. Dir-se-ia que o voto solene é maior e mais decisivo do que a simples promessa pelo fato de ser, não apenas um compromisso a ser cumprido um dia (como um noivado), mas uma atual e plena doação (como um casamento) que a Igreja recebe e em que ela mesma determina as condições. Para Santo Tomás a consagração ou a benção solene não é a causa do estabelecimento no estado monástico. É o sinal. Mas um sinal espiritual com que a Igreja designa aquele que, por ela, se entrega a Deus definitivamente. Este problema está longe de ser uma questão encerrada. Disputa-se ainda em torno do conceito de voto, solenidade e consagração, não estando ao meu alcance desenvolver agora as sutilíssimas dificuldades em jogo. Seja porém qual for o constituinte formal do estado religioso, resulta sempre que o monge, a partir da profissão solene e da consagração, está totalmente entregue a Deus. E cumpre notar aqui, para bem apreendermos a importância desta doação, que o monge, de tal modo crê nas promessas de Deus que se antecipa a elas, digamos assim, atualizando suas próprias promessas, trocando o invisível pelo visível, e o prometido pelo possuído. Por outro lado, porém, Deus não se deixa vencer em generosidade por ninguém. Se o monge avança é porque a graça de Deus o move, sendo sempre do Espírito Santo a primeira moção; e também, se o monge abandona o possuído, recebe no mesmo momento, não o cêntuplo que o espera no céu, mas as abundantes bênçãos que o amparam na terra.

II - INTERMEZZO ANGUSTIOSO Nas linhas que ficaram para trás andamos a perseguir uma definição. Sentindo que ela ficou imperfeita, discutível e abstrata, e que nem de longe recobre o mistério da vida monástica, debruçamo-nos agora sobre os textos que contam as histórias extraordinárias dos monges antigos. Corremos os olhos pelos feitos de um Basílio ou de um Macário; pasmamos diante de um Simeão Stilita no alto de sua coluna; detemo-nos a considerar a luta de um Hilário que durante vinte e tantos anos fustiga as paixões de sua mocidade. Acompanhamos Crisóstomo na sua caverna; Atanásio, no seu exílio; e Marcela, e Paula, e Fabíola as grandes matronas de Cristo; e Jerônimo que impressiona tanto pelo que faz quanto pelo que conta; e tantos outros cujas histórias nos empolgam, nos espantam e – por que não dizer? – nos assustam e nos entristecem. Se muitas vezes essa leitura revigora a alma, noutras vezes, quando menos se espera, por causa de nossa fadiga, ou por termos apostado demais nos recursos da imaginação, sentimos que nos invade uma sufocante tristeza. A julgar por aqueles exemplos, a separação entre o conselho e o preceito nos parece um abismo. O evangelho se parte em dois, como se aqueles loucos tivessem esgotado toda a seiva deixando-nos a

palha. O fio da tradição parece partido, pela falta de nexo entre a vida extraordinária dos Padres do Deserto e a vida ordinária que vivemos. Tão grande é a diferença dos meios que nos assalta a desesperada idéia de uma profunda diferença entre os fins. “Muitos serão chamados e poucos os escolhidos”. Como poderá um de nós, na vida familiar, na profissão, na política, - na vida quotidiana apagada e monótona – correr na mesma pista daqueles atletas? Como poderemos aspirar ao mesmo prêmio? Como poderá a mãe de família desejar a mesma coroa de uma Paula, que deixa pátria, família e filhos, para procurar o chão da Terra Santa os traços da passagem de Deus? Como poderá ser medida a perfeição, isto é, o fim, com o mesmo côvado, se é tão desigual a medida dos meios? O monge, a bem dizer, nos assusta ainda mais do que o mártir. O extraordinário deste está na morte; o daquele na vida. O martírio violento e rubro dos perseguidos se nos afigura mais razoável, mais acessível, mais possível, do que o martírio lento e incolor dos solitários. Um circo com leões é mais compreensível do que uma caverna sem leões. Os apupos de uma platéia selvagem, mais suportáveis do que a acabrunhante ausência do contato humano, que até mesmo no ódio nos ampara. Essas reflexões são insensatas. Os evangelhos têm respostas para cada situação da vida; o preceito é santo; os caminhos são vários; as moradas são muitas na casa do Senhor. Mas o fato de lá nos evangelhos estar escrito o convite premente ao caminho mais curto, e o fato histórico e incrível de muitos o terem palmilhado, deixa-nos n’alma uma pesada angústia. Que? Não estaremos nós aqui, com essa escolástica distinção entre preceito e conselho, tecendo sofismas para fugir ao chamado de Deus? Não estaremos nós aqui, como os moços ricos de todas as épocas, a imaginar uma desmesurada agulha ou um microscópico camelo? Ademais, a Igreja instituída por Deus estava completa com os bispos e o povo. Onde inserir o monge na escada de Jacob? Há os pastores e as ovelhas; a hierarquia e os fiéis. Onde meter o monge? De que lado? Em que linhas? Se não têm ordens, é conosco, com os leigos, que estão. Mas, logo reaparece a dificuldade quando observamos que a vida extraordinária dos Padres do Deserto tem tudo, dir-se-ia intencionalmente, para nos separar. O caminho deles nos assusta, não somente por ser íngreme e rápido, mas por sugerir – tamanha é a diferença – um termo diferente. A violência do conselho ataca a essência do preceito, e tudo se afigura como se a perfeição, a caridade, Deus, só pudessem ser atingidos pelas cinzas e pelas macerações e pelas santas extravagâncias dos eremitas. A palavra dos evangelhos, insistentemente gravada em Mateus, em Marcos e em Lucas, soa em nossos ouvidos distantes e vaga como as vozes em sonhos: “si vis perfectus esse...”. E nós – que temos casa, família, filhos, livros, vitrola, etc. – nós voltamos contristados. III - SÃO BENTO 1. Fulgens radiatur Ora, em meio dessa angústia, obscura, fulge radiosa a obra conciliadora de São Bento. Antes de Santo Tomás, o mais tomista e sensato dos santos vem mostrar praticamente a firme conexão entre o extraordinário e ordinário, entre a aventura e a estabilidade, entre os horizontes do deserto e as paredes do mosteiro. E essa paradoxal proporção do que parecia desproporcionado, essa audaciosa analogia ele a realiza em sua própria vida. Entre a caverna de Subiaco e o mosteiro de Monte Cassino, São Bento traça com mão robusta a linha da tradição. Entre os espinheiros do monte e a Santa Regra, São Bento liga numa só linha o caminho da perfeição. A violência torna-se discreta; os instrumentos adaptam-se ao homem; o mosteiro, sem nenhuma diminuição de sua austeridade, reconcilia-se com a cidade cristã.

Foi por ouvir os homens que Bento desceu de sua solidão, e Deus quis provar a caridade do eremita consentindo na dura decepção de sua primeira experiência entre os homens. No dia em que os maus filhos de Vicovaro planejaram o parricídio, e concertaram os detalhes, e deitaram veneno no vinho que ofereceriam ao pai, houve certamente, como na história de Job, um tremendo diálogo entre Deus e o Príncipe das trevas. Uma aposta entre os céus e os infernos. E Deus aceitou o desafio. E agora ali está o Judas tonsurado, que se curva pedindo a benção, e que oferece ao abade a bilha de vinho envenenado. A história é conhecida: o sinal da cruz vence as forças do inferno e, diante dos lívidos assassinos, a bilha se quebra. Mas o desejo de Satã não visava simplesmente a morte de Bento. Que lucraria ele com a morte de um santo? Que parte poderia ter o condenado nas alegrias do céu? Outro era seu plano. Outro era o objetivo de seu desafio. A dúzia de almas que já colhia naquele motim de monges era um detalhe, um nada, um palito para a sua insensata fome de almas. O que ele queria, creio eu, era que Bento descresse definitivamente dos homens. Não de Deus. Isto, eu penso que ele não ousava esperar. Mas que desanimasse do homem, por causa dos homens; que desprezasse a condição humana, a essência do homem, a humanidade do homem que o Cristo aceitara e com seu sangue resgatara. Este era o plano do Demônio. Em outras palavras, ele queria destruir no germe a obra que já farejava. Queria destruir Monte Cassino. Planejou adiantado; mas chegou atrasado. Gastou mil e quatrocentos anos. Teve de mobilizar todos os seus grandes recursos: animando Lutero, inspirando Hitler, inventando a cruz quebrada (em desforra da bilha quebrada pela cruz), propagando no mundo uma filosofia que descrê do homem, em nome do super-homem, endurecendo com o ruído das metralhas os ouvidos dos soldados, que vinham de outras terras, arrancar a swastica das terras da Itália, arregimentando as traições, as insatisfações, os recalques e todas as muitas espécies da imbecilidade e da felonia. Conseguiu derrubar as paredes do mosteiro. Monte Cassino já não existe. Monte Cassino foi reduzido a escombros. Mas duas coisas sobraram: a cripta onde os despojos do santo esperam a ressurreição; e a obra imorredoura que, mais do que nunca, fulge radiosa. 2. A obra civilizadora Chamado novamente por outros discípulos, depois da sombria experiência de Vicovaro, São Bento torna a obedecer à voz de Deus pronunciada pela penúria dos homens. E com o claro gênio, somente igualado por seu filho adotivo Tomás, que ele cede a Domingos e retoma na hora da morte, Bento traça as bases singelas e robustas do monaquismo estável sem imaginar talvez que, na superabundância de sua abadia, estava incluído o que hoje chamamos civilização ocidental. O que ele fundava era uma casa de família, ou uma escola do serviço de Deus. O que ele fundamentava era um estado de perfeição em que a ousadia e a discrição se adaptavam aos arroubos do espírito e às fraquezas do corpo. Mas indiretamente, sem o querer, pela difusiva força do que é bom, São Bento amarrava fortemente as duas pontas quase partidas da tradição, ligando a vida prodigiosa dos santos do deserto às capacidades de nossa vida quotidiana. E, em conseqüência disto, sua obra foi fortemente civilizadora. Pela simples presença, mais do que por uma série de operações calculadas, o mosteiro fertilizava e civilizava. Como o cristal de arestas rígidas e faces límpidas faz com que tudo, dentro da água salgada, se ordene e cristalize, assim também, pelo exemplo da forma, pela dureza das arestas perdidas, o cristal de Monte Cassino precipitou as salinas do mundo ocidental. Por acidente, evangeliza enormes regiões. Batiza os anglos. Converte os germânicos. Enche o mundo de heróis. Povoa a Igreja de santos. Pela simples presença, sendo o que é, uma abadia, casa de orações, statio de perfeição, família, escola de serviço de Deus, sem planos de conquista e sem planos de expansão, sendo o que

é, Monte Cassino acende um farol que orienta as hordas bárbaras, mostrando àqueles violentos o caminho da menos defendida das fortalezas: a casa de Deus. E os bárbaros se tornam monges, mansos como cordeiros. E os romanos de fina estirpe ombreiam na salmodia com os hirsutos e rudes germanos, cujo olho azul viera buscar, através de léguas e léguas de caminho, por florestas e montes, por travessias de torrentes furiosas, por neves e calmarias, a luz de uma vela sobre o altar. 3. Ser, estar, ter e fazer Se alguém tivesse dito a Bento, no dia em que ele tomou o caminho de Monte Cassino, para fugir com seus filhos à inveja de Florêncio, que sua obra se destinava a salvar a cultura clássica e a fundamentar uma nova civilização, o santo ficaria muito espantado. E assustado. O que ele tinha em mente era uma obra simples que se destinava primordialmente a ser o que era. Das operações e das aplicações extrínsecas desse patrimônio, que assim formava, o patriarca certamente não cuidava. E foi justamente por isso, pela solidez de sua própria natureza, e pela ausência de qualquer programa prévio de apostolado e civilização, que as abadias beneditinas tiveram sempre disponíveis enormes forças de fecundação para cada época. Quando um grande papa, filho de Monte Cassino, planeja e organiza nos mínimos detalhes a expedição evangélica à terra dos anglos, lá estavam os monges para servi-lo, menos por alguma aptidão especial às viagens do que pelo simples fato de lá estarem. E não terá sido por mera coincidência que Tomás saiu de Monte Cassino, para buscar no itinerário traçado por Domingos, uma prodigiosa aplicação do patrimônio beneditino. O ser que o monge é, Santo Tomás o aplicará, suberabundantemente, mugindo através dos séculos; e quando tiver espalhado todas as sementes recebidas, voltará ao ponto de partida, ao monte santo, e morrerá como uma criança de quatro anos no regaço duma abadia. E não será também por mera coincidência que Francisco, o mais atraente e convincente doido de Nosso Senhor, foi procurar nos espinheiros do Subiaco o antigo segredo para vencer a rebeldia da carne. E hoje, graças a obra de São Bento, que continua, e que se articula na multiplicidade de outras obras, tendo atravessado a obscuridade medieval, e a claridade medieval, sob o agudo olhar de Santo Tomás, e sob o ardente olhar de São Francisco, continuando sempre, transbordando sempre, com fortes oscilações de nave que atravessa mar grosso, jogando nas ondas, entre Cluny e Clairvaux – hoje, graças a essa obra continuada e mantida, nós podemos ler sem sustos as vidas dos padres do deserto, porque está aberto e desbastado o imenso campo das analogias, que veio enriquecer a obediência ao conselho evangélico. São Bento, com seu incomparável exemplo prático, libertou-nos do univocismo, aproximando o que parecia distante e irreconciliável. O extraordinário é inserido no ordinário. Ao quotidiano monástico, substancia da nova conversatio beneditina, corresponde o nosso quotidiano na vida familiar e profissional. A “petite voie” do grande monge refloresce na santidade moderna de Santa Teresinha; e a pedra transforma-se em rosas. E nestes tempos angustiados, em que todos procuram o segredo do homem no ter e no fazer, volta São Bento a ensinar nos seus montes santos multiplicados pelo mundo, que o segredo fundamental do homem está no ser e no estar. O grande problema do trabalho, em torno do qual se enrola hoje um torvelinho de falsas doutrinas, como assinalou o Santo Padre em sua encíclica, em nenhuma obra humana está mais dignificado do que na legislação beneditina. E creio não me enganar dizendo também que a Ação Católica só poderá produzir bons frutos na medida em que a participação no apostolado da hierarquia imitar a grande linha tradicional dos monges. Penso, em suma, que o mundo cristão de nossos dias, se não compreender o que é o monaquismo, ou não apreender o sentido do ser

e do estar, perder-se-á num ativismo insensato. Já pairam sombrias dúvidas acerca do que o homem é, tornando-se dia a dia o que tem e o que faz, como se essa infeliz criatura se tivesse tornado tão excêntrica que andasse a correr no encalço do próprio coração. 4. O exemplo do abade Sobre as possíveis aplicações do patrimônio no mundo moderno poderíamos escrever muitos volumes. É impossível, creio eu, pensar numa re-cristianisação dos povos sem esse elemento, que nas situações mais criticas da história firmou a Igreja. Não digo isso somente por causa do benéfico exemplo de vida austera e pobre, que os monges trazem à cidade. Nem tampouco me refiro à invisível ação da chuva de orações que caem sobre os nossos telhados. Entre a ação puramente moralizadora, e aquela devida à reversibilidade dos méritos na comunhão dos santos, há uma ação mais específica que consiste na reestruturação da sociedade. Abrindo a Regra de São Bento, no segundo capítulo, onde trata do Abade, encontramos duas vezes uma misteriosa expressão que ilustra bem a nossa idéia. “O abade – diz a Regra – deve se lembrar sempre do nome que lhe dão”. Esse preceito estruturador, trazido para fora da clausura, aplica-se a cada um de nós, ao presidente da república e a mim, como uma advertência de responsabilidade, e como um fundamental artigo de fidelidade à condição humana. 5. O oblato Neste ponto quero apresentar um personagem obscuro, e de esquisito nome, que poderá ter grandes préstimos de apostolado, enquanto souber imitar o mosteiro e o abade, lembrando-se sempre do nome que dão. Refiro-me ao oblato. Não é propriamente um monge. Não veste o hábito nem pronunciou os votos solenes. Ou melhor, usa no peito um pedaço do hábito; e guarda na memória o que prometeu, diante do abade: realizar na cidade e na família uma conversatio análoga à dos monges; sendo assim um pedaço do mosteiro, espécie de diástase espiritual, que leva pelas ruas da cidade, não somente o exemplo moral, mas a semente do ser monástico. É um pequeno mensageiro. Um modesto colonizador. Sua ligação concreta e freqüente com a abadia facilita a circulação da seiva que pode vivificar a cidade. Ele desce e sobe a ladeira do monte santo, num ritmo mais rápido do que os monges, indo e vindo, trazendo e levando, como um pobre cão de pastor no meio de um rebanho anarquizado. Ladra às vezes com raiva; uiva às vezes com melancolia; mas procura, o pobre coitado, ser fiel ao nome que lhe dão. E, como aquele cachorro pintado nos anúncios das vitrolas, conhece a voz de seu Senhor.

IV - MILES STATARIUS 1. A Regra Não foi São Bento o inventor do cenobitismo. Muito antes dele, no tempo de Santo Antão, já era costume reunirem-se os discípulos em torno de um mestre a fim de procurarem o caminho da perfeição na vida comum. Nos Atos dos Apóstolos encontramos um quadro de singelo cenobitismo: “Todos os que tinham fé viviam juntos e possuíam tudo em comum; vendiam seus bens partilhando (o produto) entre todos conforme a necessidade de cada um. Todos os dias, com o mesmo fervor, assíduos no templo, e partindo o pão em casa tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração, louvando

a Deus e tendo o agrado de todo o povo. E o Senhor acrescentava à massa, cada dia, aqueles que estavam salvos” (Atos, II, 45-47). Não foi também São Bento o primeiro a escrever uma Regra para os monges. Antes dele, São Pacômio e São Basílio já haviam legislado para comunidades religiosas. Mas foi São Bento, certamente, que firmou o cenobitismo nas bases em que até hoje se mantém. O comentário da Regra Beneditina publicado sob os auspícios da abadia de Maredsous assinala três elementos que para o comentador são características da obra de São Bento. O primeiro é a precisão. Sua regra é clara e nítida. O postulante, desde os primeiros dias, conhece “sob que lei vai militar”, e sabe muito exatamente que compromissos toma a fazer a profissão. O segundo elemento é a discreção. São Bento, com efeito, não exige nenhuma austeridade extraordinária, prevê o alimento e sono suficientes, divide as horas entre a oração, o trabalho manual e a leitura, não sendo sua Regra concebida, nem para os heróis da penitência, como a de São Columbano, nem para uma elite intelectual, como a de Cassiadoro. Em suma, ele espera não prescrever nada de rude nem de penoso em demasia. O abade deve levar em conta a fragilidade terrestre, dispondo as coisas e distribuindo os trabalhos com moderação e discernimento, de modo que as almas se salvem, que os fortes desejem fazer mais do que se lhes pede, e que os fracos não desanimem. Mas é o terceiro elemento assinalado por aquele comentador, a estabilidade, que marca de modo decisivo a obra de São Bento. Logo no primeiro capitulo da Regra, ele analisa as quatro espécies de monge e faz o elogio da forte raça dos cenobitas, isto é, dos que vivem em um mosteiro, militando sob uma regra e um abade. E nesta definição já estão contidos os elementos que constituirão os objetos de voto: estabilidade (no mosteiro): conversatio morum (regra); obediência (abade). Pode-se entretanto dizer que é no voto de estabilidade que está a chave do monaquismo ocidental. 2. Sto, stare, stans No sentido literal, estabilidade quer dizer permanência no mosteiro. Significa fixidez, incorporação para sempre numa família. Mas o sentido espiritual dessa palavra deve ser bem apreendido para podermos avaliar, em toda a extensão, a obra do patriarcado do ocidente. Hoje, quando se diz estabilidade, a primeira idéia que nos acode à mente é a de um modelo mecânico. Pensamos numa ponte, num edifício, numa pedra solidamente assentada sobre sua base. Se tomarmos um livro, por exemplo, direi que ele fica estável quando o coloco deitado, de modo que o centro de gravidade esteja amplamente inscrito no polígono de sua projeção horizontal. É estável quando não pode cair. Ora, a raiz daquele vocábulo tem uma origem com sentido diverso e quase oposto. Essa palavra, que hoje tiramos da pedra para aplica-la figuradamente ao homem, foi na origem tirada do homem e aplicada às vezes, figuradamente, à pedra. Realmente, se pedirmos à ciência dos filólogos alguns dados de empréstimo, veremos que o termo latino stabilitas vem do sânscrito stâ, que significava estar em pé. Segundo F. Bopf (Grammaire comparées de langues indo-européennes, trad. frac.) o verbo sânscrito era da 1ª conjugação principal, sendo tistâmi a primeira pessoa do indicativo presente, de onde, provavelmente, deriva o latim testis, testemunha, lembrando o sujeito que se levanta para depor. No “Tostius Latinitatis Lexicon” de Forcellini, colhemos no verbete sto o seguinte: stare ritto, o in piedi... opondo-se a sedeo e iaceo, e com os sentidos figurados de ficar firme, permanecer, durar, etc. Nota-se pois que o sentido próprio estava ligado à posição erecta do homem e que o sentido figurado incluía atitudes morais de firmeza e vigilância. Escolhendo uns poucos exemplos entre mil, temos no sentido próprio, em Plauto: “Hos quos videtis stare hic captivos duos, hi stant ambo, non sedent” (Cpt. Prol. v. 1) - “Estes dois cativos que vedes aqui em pé, ambos estão de pé, e não sentados”. Em Cícero: “Qui ausi aliquando sunt, stantes loqui...” (Bruto c. 77) – “Que às vezes ousaram falar de pé...”. No sentido

figurado temos em Virgílio: Apud memores veteris stat gratia fact” – Mantêm-se gratos pelos benefícios recebidos. Em Cícero: “Stare in fide” – Permanecer fiel. E num sentido duplo, físico e moral, temos Suetonio: “Imperatorem ait statem mori oportere” – O imperador deve morrer em pé. E em Tito Lívio “miles statárius” é o soldado que combate em pé, ou que não arreda do posto. Vê-se pois que stare está ligado estreitamente à posição do homem, derivando daí, quer no sentido moral aplicado ainda ao homem, quer na designação de coisas que imitam a posição vertical do homem. Estátua, por exemplo, deriva do mesmo radical, mas aplicava-se somente à figura do homem de pé. Estátua eqüestre não podia ser dito em latim, a não ser que se tratasse do Iniciatus que era ao mesmo tempo cavalo e senador. A posição vertical do homem foi sempre sentida como um glorioso paradoxo, símbolo da excepcional situação desse misterioso ser dentro da criação, resultando disso a enorme fecundidade desse radical e sua imensa repercussão no campo das questões espirituais. Entre os gregos o fato de ficar de pé era tão importante que justificava a invocação de um deus especialmente propício às crianças que pela primeira vez se firmam nos pés. Encontramos em Santo Agostinho (Civ. Dei. lib. IV, 21) uma alusão aliás sarcástica, a esse pluralismo dos deuses pagãos: “Que necessidade há de recomendar à deusa Opis aos recém-nascidos, ao deus Vaticanus a criança que chora, à deusa Cunina a criança que adormece, à deusa Rumina a que mama, e ao deus Statilinus o que se firma nos pés?” Estou com Santo Agostinho que eram deuses demais, os que rondavam a vida de um garotinho em Atenas, mas de todos aqueles o que mais se justificava era, sem dúvida, o que trazia no nome o antigo radical que simboliza a atitude maior do homem. Aliás, consultando a Table des Racine do Dictionnaire Grec-Français de Bailly, encontramos o mesmo radical stô para ter-se em pé, com uma série de derivações semelhantes às latinas. Coluna, por exemplo, é stéle ou stylos, porque a coluna não somente é vertical como de certo modo lembra a nobre função humana de firmar e agüentar. Mais tarde voltará ao homem o símbolo dele saído, quando Paulo dirá que os apóstolos são as colunas da Igreja, provando assim que, para os antigos, a força das coisas mecânicas era, em última análise, uma força do homem. Mas é nas Sagradas Escrituras que os derivados de stô ganham um especial relevo e um forte sentido espiritual. São Paulo aos Coríntios (I, XV) diz : “Stabiles stote, et immobiles”. Acrescentando também: “Itaque qui se existimat stare, videat ne cadat” – Aquele que se julga em pé, olha lá que não caia. E São Pedro, na primeira epístola (V, 8) aconselha a vigília nestes termos: “Sobrii estote et vigilate...” que a Igreja adotou para a oração da noite, num curioso paradoxo que convida o homem a stare justamente quando vai se deitar. E com estes exemplos, depois de uma aventura penosa pela ciência que não é de nosso ofício, descobrimos que estável, no sentido clássico e escriturístico, dá ao mesmo tempo idéia de firmeza e de possibilidade de queda; ou melhor, sugere a firmeza própria do homem, sua condição, a verticalidade de seu corpo e de seu espírito, que é uma empresa com suas glórias e seus riscos. Dirá Santo Tomás a respeito do conceito de estado (no sentido de situação humana): “nomen status videtur ad quandam altitudinem pertinere” – a palavra estado sugere a idéia de elevação. E no grego dos evangelhos encontramos o mesmo radical num objeto que marcou a atitude vertical do homem de um modo particularmente significativo. Refiro-me à cruz, que em grego é staurós. 3. Uma nova definição de monge É mais que provável que, no tempo de São Bento, a palavra stabilitas tivesse ainda vivas todas essas ressonâncias que lembram a contradição do homem e da cruz. E, se estou certo, o voto de estabilidade, ao mesmo tempo que significava a permanência física no mosteiro, abrangia também o

forte sentido da atitude escatológica pela qual a vida monástica era um estar de pé diante de Deus como se lê em Jeremias (XXXV, I-10): “Porque guardaste os mandamentos de Jonadab, vosso pai, a raça de Rechab não cessará de produzir homens que permanecerão sempre diante de pé de mim, disse o Senhor”. E aí está uma bela definição para o monge, trazendo-nos à mente o nome daqueles soldados que combatiam de pé, e não arredavam de seus postos: o “miles statarius”. 4. Uma lição de Santo Tomás Voltando ainda uma vez à Suma descobrimos que as lições de Bento e Tomás se harmonizam perfeitamente; e ainda uma vez verificamos que esses dois santos possuíram a virtude do bom senso em grau heróico. De fato, se Bento, na ordem prática, propõem como primeiro objeto de voto a estabilidade, Tomás, na ordem especulativa, começa o estudo do monaquismo pela consideração “De officiis et statibus hominum in generali”. (II-II, Qu. 183, art. 1-4); e começa por dizer que status evoca a idéia de estar de pé, citando Ezequiel: “Fili hominis, sta super pedes tuos”. E logo acrescenta que dessa noção deriva a de retidão e elevação. Mais adiante ensina: “Estado, no sentido próprio, é uma posição particular, não qualquer, mas conforme a natureza do homem”. Deste modo a escolástica, mostrando que a vida do monge é um estado de perfeição, confirma este sentido do voto de estabilidade da Regra de São Bento, que se refere não somente às pedras do mosteiro, como também à vigilância e à prontidão. Mas, a atitude de vigília não é própria do monge. Não é exclusiva dos mosteiros; sendo, antes a clássica atitude de todo o cristão. No caso do monge, porém, ela se constitui em estado, tendo sido solenemente prometida e solenemente aceita pela benção consagratória da Igreja. E é neste ponto que o monge se separa de nós para melhor guardar o tesouro da estabilidade e seus derivados. Adaptada e aplicada à cidade, a lição beneditina e tomista é esta: o homem não pode descuidar-se de seu prumo, não lhe convindo adormecer nos sarcófagos das fórmulas de equilíbrio mecânico que são o ópio do povo. O regime do direito e da justiça, a eqüitativa distribuição de riquezas, isto enfim que chamamos democracia de inspiração evangélica, é uma situação que deve procurar constantemente o antigo stô da verticalidade humana, e aferir todos os seus valores pelo prumo da cruz. 5. A sonolência Pode-se dizer, de um modo geral, que a sorte da civilização – desta arriscada civilização que desceu um dia de Monte Cassino – depende da capacidade de vigilância dos homens. Temos uma certa tendência ao sono. Em todos os sentidos. As pálpebras de nossas pobres virtudes são pesadas. A terra, com seu zelo multiplicado de mãe devorante, atrai-nos. Convida-nos ao torpor. Oferece-nos o premio do nada. Prepara-nos um tálamo nupcial à sombra dos ciprestes. Convence-nos, com todas as forças da matéria, que a posição horizontal é mais estável que a vertical. Diz-nos que o fatigante stare dos santos e dos soldados não merece o esforço que custa. Que durmamos, e que deixemos a vida correr. Nas suas mais modernas propostas, o materialismo político, confessado ou disfarçado, incita-nos a um completo abandono de nossas prerrogativas de verticalidade, estendendo-nos no chão um lençol que será um sudário, sob as ramas venenosas de um Estado que chama a si, absorvendo-o em si, o status do homem. Despojam-se todos os seus prumos, e no piramidal e estável monumento das demissões humanas, o Estado Total concentra em si as forças que os antigos punham nas suas colunas, nos mastros dos navios, e na cruz de Nosso Senhor.

Os fenômenos lingüísticos acompanham muito de perto os fenômenos sociais, e não é de estranhar que o mais desumano dos monstros modernos tenha guardado o nome, a palavra, a raiz, pela qual os homens até hoje se distinguiram das bestas e das serpentes. E isto aconteceu porque os homens se cansaram da fatigante vigilância. A liberdade obriga à vigilância. A salvação obriga ao revezamento do plantão, porque o leão ruge em torno de nós. Num magistral estudo sobre a crise da civilização, Belloc assim se refere ao profundo desespero da sociedade pagã greco-romana: “Quanto mais avança esta civilização pagã em seu desenvolvimento – um rápido desenvolvimento que a transformará e a envelhecerá num lapso de três séculos – mais profundamente penetra nela esse desespero. Sentimos isto na progressiva letargia que entorpece os homens, na esterilização de seu poder inventivo e sobretudo no refrão contínuo de sua literatura (...) Entre mil trechos magníficos que poderíamos escolher para ilustrar a profundidade desse abandono, recordemos estes versos escritos pelo mais patético dos poetas latinos: Soles occidere et redire possunt Nobis cum semel occidit brevis lux Nox est perpetua una dormiunda “Devemos notar particularmente este ‘dormiunda’ – diz ainda Belloc – com suas lúgubres vocais. O grito é de Catulo. A sociedade greco-romana agonizava. Mas isto é a metade, e a menos importante metade da verdade, pois é preciso acrescentar que ela morria de desesperança. E foi então que apareceu no mundo uma força que teve a virtude de transforma-la”. Esta esplendida passagem de Belloc tem entretanto um defeito, a meu ver: o de sugerir, pelo menos assim isolada do contexto, a falsa idéia de que o cristianismo venceu definitivamente a sonolência do espírito humano, ou melhor, a funesta idéia de que a ação civilizadora do cristianismo tem uma eficácia própria, necessária, mecânica, que dispensa nossa vigilância. O homem continua sob o peso do pecado original, e continua a encher os séculos com seus bocejos, e às vezes com os estertores de seus pesadelos. Não é em Catulo, nem em outro poeta pagão, mas num moderno que encontramos esta pequena quadra citada por Unamuno: Cada vez que considero Que me tengo de morir Tiendo la capa al suelo Y no me harto de dormir. 6. Dois cochilos terríveis Aliás, falando em sonolência, convém lembrar que os apóstolos dormiram em duas ocasiões inauditas. Na transfiguração, segundo Lucas, e na paixão, segundo o depoimento de três evangelistas. No momento em que Cristo quer mostrar aos discípulos um fulgor de sua glória, “Pedro e seus companheiros estavam acabrunhados de sono”. Mais tarde, em Getsemâni, diz o Senhor aos seus discípulos: “Ficai aqui enquanto vou adiante orar”. E começando a sentir tristeza e angústia diz aos seus discípulos: “Minha alma está triste, mortalmente triste: ficai aqui; vigiai comigo”. E tendo avançado um pouco, prostou-se com a face em terra, rezando e dizendo: “Meu pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não como eu quero; e sim como Tu queres”. Voltando aos discípulos encontrou-os a dormir e disse a Pedro: “Então, não pudeste velar uma hora comigo?” Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito, em verdade, é ágil, mas a carne é fraca”. E retirando-se pela segunda vez tornou a rezar: “Meu pai, se não pode este cálice desviar-se sem que eu o beba, faça-se a Tua vontade”. E

voltando a eles, achou-os ainda a dormir porque seus olhos estavam pesados de sono. (Mat. XXVI, 43). É terrível imaginar-se esse momento em que o Filho de Deus clama ao Pai e suplica aos homens: “Fiquem aqui, velem comigo, pois minha alma está mortalmente triste”. Mas, de certo modo, este mistério doloroso lança uma luz sobre o mistério da incarnação, ajudando-nos a compreender que Deus se fez homem para melhor suplicar aos homens, como um homem. “Então, não pudestes velar uma hora comigo?”. 7. Sentinelas do Cristo Ora, o monge, no seu estado, na sua estabilidade, é aquele que ouve o conselho de Deus Homem na súplica do Homem Deus. Sentinela do Cristo, propõe-se suprir e resgatar a sonolência dos outros, velando e orando. No voto de estabilidade física no mosteiro está portanto incluída a idéia central de estabilidade no coro, em pé, atento, expectante, pronto para correr ao encontro do esposo que tarda, e que virá em meio da noite. O Ofício Divino é portanto o centro da vida do monge, pois é aí, nesse momento e nessa atitude, que ele melhor realiza seu estado. O sentido da vigília transcende agora, no coro, o ascético cuidado de não cair em tentação, e desabrocha, para além da paixão, no louvor que à glória de Deus é devido. Entre o horto e as núpcias, entre os terríveis jejuns de Clairvaux e o laus-perenne de Cluny, o monge paga uma dívida e canta. Ele é o “amigo do esposo, que fica em pé” na estabilidade da vigília e do louvor. 8. A civilização Disse atrás, a propósito do radical stô, que o homem viu sempre na sua vertical um símbolo de dignidade. Os diferentes fenômenos lingüísticos – que apenas esbocei por me faltar o hábito do ofício – mostram singular concordância com os sentimentos de exaltação e angustia que, em todos os tempos, preocuparam o homem a respeito de sua condição. Disse também, se não me engano, que a vida moral é vigilância contínua, não havendo nunca, enquanto há vida, um termo perfeito, uma conclusão, um arremate, um repouso. Cada problema resolvido é um novo problema aberto; cada situação atingida é uma nova situação iniciada; cada fim é um principio. Freqüentemente, fatigados, mortalmente fatigados desse rosário ininterrupto de problemas, atitudes e situações que só acabam para começar, e recomeçar, e continuar, como as águas de um rio – freqüentemente tentamos trazer para a vida, isto é, para esse plano dos atos morais, o critério e os métodos próprios dos atos artísticos ou técnicos. Metemos as mãos nessa massa espalhada e fluida numa insensata tentativa de esculpir momentos de vida, que se imobilizem num termo, como se quiséssemos erguer uma encruzilhada dos tempos a nossa própria estátua. Ou tentamos trazer para os minutos da alma os ritmos da poesia e da música. E esse esforço, que parece provir de uma transbordante vivência, porém, na verdade, de uma sonolência. A vida conjugal, por exemplo, começou numa festa que marcava o termo de uma vida e o começo de outra. A festa é um patamar da vida. É uma estação. Mas a vida continua e a festa fica para trás, num álbum, num véu guardado, numa flor murcha. E a vida continua, com seu desafio quotidiano, fastidioso, minucioso, num desgaste terrível das reservas de amor que o noivado acumulou. Ou, pelo menos, das reservas desse amor que parece tecido de poesia e de música. E a fatigada impaciência procura substituir a ininterrupta vida conjugal por uma série de romances, inda que esses volumes formem as obras completas da infidelidade. E, se ainda maior é a impaciência, não possuindo sequer capacidade para a literatura de fôlego, será a vida conjugal substituída por uma série de anedotas.

O que é difícil, na vida, é não substitui-la por coisa nenhuma. O que é difícil, na vida, é manter-se o homem de pé, consciente sempre de seu estado, atento sempre aos ventos do mundo que tentam verga-lo, esse pobre junco. Na política, que também exige do homem a mesma verticalidade vigilante, e fatigante, quando o sono pesa nas pálpebras, procura-se uma solução técnica e cômoda, uma nova estrutura que funcione, desde que se lhe dê corda, como um maquinismo fabricante de bem-estar. Projeta-se na prancheta de desenha a épura de uma sociedade humana ou pensa-se transformar a confusa massa de atores indisciplinados numa apoteose wagneriana. Ou então, passa-se quinze anos a fazer da vida política uma série de anedotas. Muita gente tem a ingenuidade de crer que a civilização é uma inabalável conquista garantida pelas invenções da mecânica. Temos, por exemplo, o automóvel, logo estamos definitivamente senhores das distâncias. Temos a geladeira elétrica, logo estamos definitivamente senhores do calor. Temos o radar, logo não haverá mais trevas para nossos olhos. E assim por diante. Ora, Civilização é uma coisa muito menos garantida do que parece. O que possuímos, podemos perder. O que sabemos, podemos esquecer. E, se estamos de pé, podemos cair. Nossos sucessos são precários e constantemente disputados pelo Príncipe que tenta impor ao mundo um direito de conquista. Revendo os últimos acontecimentos salta aos olhos a fragilidade da civilização. Bastou um cochilo, para transformar o mundo num monte de escombros; bastou, entre nós, um colapso de vigilância política, para que a vida pública de nossa terra se transformasse num prolongado Joujoux et Balangandans, em que nos furtaram o que nós e nossos pais havíamos conquistado: o pão, a carne, o açúcar, e o direito de voltar para casa dignamente. Bastou para isso que altiva a raça dos batizados se curvasse muito baixo diante daquilo que o homem de Deus aprendeu, com a igreja de Cristo e dos santos, a sempre considerar com desconfiança: o Estado. Porque essa entidade, como seu nome indica, facilmente se torna monstruosa, e dificilmente resiste à tentação de absorver em si toda a capacidade humana de stare, isto é, de ser vertical e digna. Civilização, na verdade, é estar em pé. Em cada momento histórico o futuro do gênero humano depende da atenção vigilante e consciente de cada homem. E por aí se vê que o monge é um elemento civilizador sendo um campeão de vigília. Transferindo analogicamente a estabilidade beneditina para o domínio da vida política, teremos a força indispensável a esse regime que chamamos democracia cristã, e que se caracteriza por uma viva consciência da realidade moral e do primado da justiça. O mundo moderno padece de um singular escurecimento. Já o disse, diversas vezes, e torno a dizê-lo. O homem não se lembra mui exatamente o que é. Não se lembra sempre, como o recomenda a Santa Regra beneditina, o nome que tem. E é por isso, principalmente por isso, que nossa civilização corre um grave perigo. Estamos ainda dormindo tendo apenas passado, no fragor das batalhas, da modorra tranqüila para um sobressaltado pesadelo. A ciência que o homem tem de si mesmo está em crise. A pergunta da esfinge é respondida com uma coleção de disparates. O homem não sabe mais o que é. Ora, entre outras coisas surpreendentes, e diria até chocantes, que nossa fé nos ensina, temos esta: se quisermos saber mais exatamente o que é um homem, devemos erguer os olhos para uma mulher. 9. Stabat Mater dolorosa... Em verdade, a Virgem Santíssima, em cujos pés deponho este pequeno trabalho, que andei compondo e escrevendo durante o mês de maio, o seu mês, é a coroa da criação. Primeira remida, e mais

perfeitamente remida, ela abriu com seu assentimento os caminhos do preceito e do conselho. Foi ela, a bem dizer, a primeira virgem consagrada e o primeiro monge. E é nela que encontramos realizada de modo perfeito a estabilidade monástica. Para nos convencermos disto, basta abrir o missal na Festa das Sete Dores de Nossa Senhora. Logo no Intróito, a primeira palavra que nos salta diante dos olhos é esta: “Stabant...”. Estavam em pé junto da cruz, sua mãe, a irmã de sua mãe, etc. Vejam bem o diálogo tremendo destas duas atitudes: o filho da cruz, de pé, pregado no madeiro que tem aquele mesmo radical misterioso, a raiz do homem, da sua vertical; e a mãe, e mais as outras três mulheres, de pé, formando por assim dizer o primeiro coro, diante da cruz. Na coleta, a palavra reaparece para designar os santos que se mantém de pé, ao lado da cruz:...“e pelas preces de todos os santos que estavam fielmente em pé junto da cruz”. Fideliter astantium. No Gradual, com uma nota de dor, pela terceira vez encontramos: “Dolorosa et lacrimabilis es, Virgo Maria, stans juzta crucem Domini Jesu, Filii tui Redemptoris”. No Tractus: “Stabat Mater dolorosa...”. No Evangelho, novamente, a primeira palavra que lemos é: “Stabant...”. E no Ofertório: “Recordare, Virgo Mater Dei, dum stéteris in conspectu Domini...”. Vê-se assim que as Sete Dores de Nossa Senhora aparecem no Missal sete vezes ligadas aos derivados do vocábulo que se encontra nos mais remotos documentos do mundo, sempre que está em jogo um problema fundamental do homem. Há, porém, nas Dores de Nossa Senhora, uma atitude especial que merece muita atenção. Passa-nos despercebida primeiro; espanta-nos depois. E é esta: a mais dócil e obediente das criaturas humanas não deu um só passo e não pronunciou uma só palavra no sentido de interceder por seu filho junto ao poder de Roma. Quem intercedeu foi a mulher de Pilatos, por causa de um sonho. Não a Mãe de Deus. Dócil e obediente à vontade do Pai, a mulher forte, a criatura erecta por excelência, o cedro do Líbano, não quis nunca submeter o sacrifício de seu Filho aos decretos do Estado. Em cada statio da via-crucis a Virgem Santíssima afirmou a isenção da Igreja e a primazia espiritual. Sua atitude vale um tratado. 10. As filhas de Santa Escolástica Gostaria de abrir um largo capítulo para falar nas virgens consagradas ao serviço do Senhor. Muita coisa do que já disse se aplica tanto aos monges como às virgens, na medida em que ambos imitam a atitude de obediência da Virgem Santíssima. Mas a entrada da virgem no estado religioso parece-nos conter um elemento a mais do que na profissão monástica dos homens. A magnífica dramaturgia com que a Igreja cerca a consagração virginal, mais do que no caso dos monges, se assemelha a uma festa de núpcias. Dir-se-ia – não sei – que a união mais forte, mais íntima, mais livre de qualquer função, mais próxima do céu. O pontífice fala à monja com a voz do esposo: “Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum...”. E depois da imposição do véu insiste, no tom premente dos noivos: “Desponsari dilecta veni...”. “Vem, ó bem amada, vem para a festa de núpcias; já passou o inverno, a rola canta, recendem as vinhas em flor”. Se o monge é “o amigo que fica em pé, ao lado do esposo”, a monja se apresenta como a própria esposa: “Estou desposada com Aquele a quem os anjos servem, e cuja beleza o sol e a lua admiram”. Digo por isso que as virgens consagradas desfrutam já, aqui e agora, uma união mais perfeita do que os monges. Mas digo-o sem provas. Não tenho certeza; e que Santa Escolástica me perdoe se deixo tão mal esboçado o problema de suas filhas para voltar a São Bento, terminando esta modesta homenagem que, a par a canseira e das decepções experimentadas pelos esbarros em meus próprios limites, trouxe-me já a recompensa de um acréscimo de veneração.

11. Conclusão Tentei mostrar nas páginas anteriores o sentido, a extensão, e o campo das aplicações analógicas da estabilidade, que constitui o principal característico da Regra de São Bento. Focalizado nos seus diferentes planos, explorando sob ângulos diversos, o conceito revela uma riqueza enorme que se estende da fidelidade aos compromissos humanos à fidelidade dos votos pronunciados diante de Deus; que diz respeito à abadia, à casa de família e à cidade; que vai do homem à pedra e da pedra ao homem; que se refere à posição erecta de Nossa Senhora e à posição vertical da cruz. A figura do monge, nesta tentativa de um esboço, surge-nos como um marco. Vemo-la como o profeta viu: aquele que fica em pé diante do Senhor. Apreciamos a profundidade e o alcance do humanismo beneditino, tão semelhante ao humanismo tomista, compreendendo que a atitude que verdadeiramente convém ao homem é aquela que o eleva. E aprendemos, com São Paulo, que assim sendo não pode haver descuido, pois esta atitude por si mesma implica a idéia de queda. E a rigor, podemos dizer que a lição dos monges, não foi perdida. Apesar de tudo, a estabilidade beneditina ajudou o mundo a se firmar, justamente nos momentos em que parecia perdido. Competenos agora continuar. Exploremos e usemos o patrimônio de São Bento, para bem servir à sociedade e à Igreja, nestes tempos perturbados em que os falsos salvadores nos querem arrebatar o status para formar um monumental monólito, uma nova pirâmide egípcia que será, não o túmulo de um rei, mas o sarcófago de um povo. Firmemos pois nossos pés; sejamos mastros de vigilância; colunas de dignidade; torres de justiça. Contra o materialismo que nos quer prostrar, e contra o falso espiritualismo que tem a pretensão insolente de interceder por nossa Igreja, saibamos ser monges, firmes, inabaláveis, como os soldados romanos que combatiam de pé, sem arredar do posto. 12. “O imperador deve morrer em pé”. (Suetonio) Mas vejo agora – um pouco tarde talvez – que posso ser acusado de ter andado a fazer jogo de palavras. Dirão que tirei de um verbete de dicionário, e de uma mera coincidência de palavras, abundantes conseqüências, emprestando aos vocábulos mais do que realmente contêm. Bem sei que isto é perigoso, e que, mesmo em relação às Sagradas Escrituras, não convém fugir demais do sentido literal para procurar sentidos ocultos e simbólicos. No caso presente, porém, a abundancia de provas parece demonstrar que a idéia de aproximar o voto da estabilidade do estar em pé, em coro e diante da cruz, é verdadeira; e que é impossível supor que no espírito de São Bento não escoassem todas essas ressonâncias quando ele fez da estabilidade o objeto de um voto. Mas eu deixei para o fim dois argumentos que me parecem especialmente convenientes. Alias, a verdade é que só agora me vieram elas à mente, quando no capítulo anterior – como se vê pelo tom de peroração que lá ficou – tencionava encerrar este estudo. E não oculto que tive uma grande alegria quando os encontrei. O primeiro argumento é este: São Bento, ao sentir aproximar-se a hora de sua morte, fez questão de ser levado para o Oratório, fez questão de ser sustido pelos braços de seus filhos, e morreu em pé. Eis como São Gregório Magno, em seus Diálogos, narra os últimos dias do patriarca: “Seis dias antes de sua morte mandou abrir a sepultura. Logo a seguir foi atacado de febres e começou a sofrer de seus ardores violentos. Como a enfermidade se agravasse dia a dia, fez-se levar no sexto dia por seus discípulos ao Oratório, onde se prevenia para sua partida deste mundo com o Corpo e o Sangue do Senhor; depois, amparando seus débeis membros nos braços de seus discípulos, ficou em pé, com as mãos levantadas para o céu, e exalou seu último suspiro murmurando uma oração”.

Agora vejamos o segundo argumento. Este vem dos evangelhos e tem um certo sabor, que nos faz pensar numa coisa que está constantemente e cuidadosamente velada nas escrituras: o sorriso de Nosso Senhor. Voltemos ao texto de São Mateus que nos serviu para definir a obediência do monge e que se refere mais diretamente à obediência dos apóstolos. Depois da partida do moço rico, e das palavras de Deus sobre o camelo e a agulha, eis que Pedro (a quem competia sempre fazer tais perguntas) interroga o Senhor: E nós? E Jesus lhes diz: “Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glorias, vós também, vós que me haveis seguido, vos sentareis em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel”. E aqui está a chave final de nosso problema. O prêmio oferecido àqueles peregrinos, àqueles vigilantes, que ficaram de pé no coro, ao lado do esposo, ao pé da cruz, nos caminhos da vida e na hora da morte, o prêmio do cêntuplo e da vida eterna está ligado a essa atitude final, de repouso, de termo atingido e de bem conquistado: os apóstolos e os monges, no fim dos tempos, estarão sentados em torno do Rei. (A Ordem — Julho, Agosto e Setembro de 1947)

Vem e segue-Me Parte destas linhas já foram publicadas; posso mesmo dizer que elas giram em torno de uma idéia insistentemente transmitida há 30 anos de pregação, ensino e polêmica. Giram em torno do PRECEITO de ouro que Jesus nos deixou nestas palavras: Vem e Segue-me. Desde o chamado dos discípulos nas páginas do Evangelho, Jesus marca com estas palavras o tesouro de amor que nos traz.

Nesses textos, em que Jesus arrola seus discípulos, o termo segue-me complementa o termo vem, e explica as renúncias: “larga tudo, vem, segue-me”. Em Mateus, tanto para os primeiros apóstolos chamados, a quem Jesus prometeu fazer pescadores de homens, como no versículo 25 do mesmo capítulo IV, os seguidores de Jesus percorriam um curso, uma caminhada ou uma preparação em vista de um fim próximo. No Evangelho de S. Mateus os textos são mais concisos e o termo seguir se apresenta desligado de qualquer idéia de curso ou percurso. No Evangelho de S. João VIII, 12, Jesus diz que é a luz do mundo, e quem O seguir não caminhará nas trevas: o termo seguir tem aí um sentido de fidelidade a um ensino e a uma doutrina sem a qual os homens se perderão nas trevas. No capítulo XV a união fiel a Cristo se afasta do termo que sugere marcha, e adota um vigoroso termo que dá idéia de imobilidade. Nesta passagem Jesus se diz a vinha do Pai e nós seremos seus ramos, que devem produzir seus frutos, senão o vinhateiro os podará. E Jesus insiste na imagem de tal união — “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós”. A idéia insistente é a de glorificar o Pai por essa identidade vital com o Filho. “Assim como o Pai me amou vos amarei Eu: permanecei no meu amor”. O mandamento novo do amor do próximo nos ensina que só é novo e só é amor pela união no tronco da videira. Por essa união com Ele estaremos unidos ao Pai. E aqui neste veemente amor do próximo, Nosso Senhor nos ensina insistentemente que não podemos tecer com vínculos naturais, de um para outro esse belo amor que nos leva ao Pai. É nele, na selva da videira, que todos nos encontramos como irmãos e nos devemos amar. E também é n’Ele e por causa d’Ele que o “mundo” nos odiará, porque a Ele odiou primeiro. Nessas densas páginas do Evangelho de S. João está contida uma idéia de capital importância para a nossa salvação: Jesus Cristo é a causa exemplar, o modelo que devemos seguir e aqui a palavra seguir tem sua mais vigorosa significação, em todas as páginas do Evangelho, e o Modelo se apresenta em toda a majestosa imobilidade e elevação: na Cruz. O apóstolo Paulo, para bem exprimir o júbilo de sua maravilhosa transformação, diz aos gálatas: “Vivo

eu? Não, vive o Cristo em mim”. Em todos os demais pontos dos Evangelhos onde o termo aparece, o sentido principal será sempre este da imitação do Cristo. Em Mateus XVI, 24, lemos: “Se queres seguir-me, renuncia-te a ti mesmo, toma a tua cruz e segue-me”. Este é o caminho da perfeição, onde a renúncia de si mesmo é a conditio sine qua non, o meio, mas a perfeição consiste formalmente na união com o modelo divinamente imutável. Foi-nos dado o preceito da busca da perfeição: “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito.” Mateus V, 48, e para nos encorajar nos primeiros passos dessa aventura excessiva Deus nos enviou um modelo pequenino, nascido da humildade de Maria Virgem, e proposto sempre como um jugo suave, manso e humilde de coração. Em Mateus (XIX, 22) o moço rico que já cumpre os mandamentos, procura Jesus para pedir-lhe uma orientação. E Jesus dá a resposta conhecida: “se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá tudo aos pobres, e depois vem e segue-me”. O leitor superficial pensará que a perfeição consiste no desprendimento das riquezas e na esmola dada aos pobres, mas Santo Tomás nos ensina (II a.e.q. 184) que estas coisas chamadas “conselhos evangélicos” são os meios, nem sempre preceptivos, e que todo o Preceito está condensado na parte final “segue-me”, isto é, toma-me como modelo. O segredo simples de nossa vida, se queremos dar a Deus o doce nome de Pai e um dia voltarmos à sua casa, consiste em seguir o Filho; ou melhor, consiste, mais precisamente, em deixarmos que o Espírito Santo, que procede do Pai et filioque procedit trabalhe em nós, com gemidos inefáveis, para nos modelar, segundo o Filho que nos levará à casa do Pai. É curioso notar que entre tantos textos mais claros e incisivos onde o chamado de Jesus, vem e segue-me, não pode se prestar a equívocos, Santo Tomás tenha escolhido o texto de Mateus XIX, 22, do moço rico que busca a perfeição o qual, como dissemos acima, certo realce dado aos conselhos, induzirá as almas superficiais a equívocos mais ou menos graves. Dir-se-ia que escolheu-o exatamente por isto, para mais energicamente formular a doutrina católica muito claramente desenvolvida por Garrigou-Lagrange, em Perfection Chrétiene et Contemplation. Nesta grande obra de Teologia Ascética e Mística, inspirada em Santo Tomás e São João da Cruz, ensina Garrigou-Lagrange, que seguimos há trinta anos, que naquele ensinamento de Jesus, a PERFEIÇÃO consiste no PRECEITO “vem e segueme” e não nos conselhos “vai, vende, dá, etc.” Além disso Santo Tomás mostra que está no preceito, no seu adorável chamamento e na obediência da alma o verdadeiro amor de caridade que extraviado da sã doutrina, sente certo gosto de miséria no preceito e na idéia de obedecer, preferindo “o puro amor de Deus” com o que não sabe que está repetindo uma das mais graves heresias da Idade Média, e que, em vez de Jesus, tomar por guia o seu lírico amor próprio que inventa fórmulas tão afastadas de Jesus, que foi “obediente até a morte e morte de cruz”. Quanto a nós, não queremos outra doutrina senão esta que faz do amor de caridade um esplendor de obediência. Seja nossa vida um caminhar orientado pelo chamado que nos acompanha e que nas horas mais difíceis nos incita: “vem, segue-me”. E nos lembra que o Pai nos receberá com alegria e, correndo ao nosso encontro, nos cobrirá de beijos. 01 de novembro de 1975

Virgo Singularis Passando por uma porta de Igreja vi, entre diversos cartazes da moderna religião, um que me chamou a atenção pelo nome do autor a que se atribuía o texto. Aproximei-me e pude ler: «Maria é a concreta realização do perfeito cristão. Maria é como nós. Jesus Cristo é outrossim um como nós. Mas ele também é Deus. Maria é que é inteiramente uma entre nós. O que ela é nós devemos ser. É por isto que Maria é-nos tão familiar. É por isso que nós a amamos». Karl Rahner Mais abaixo lemos o nome da Organização que seleciona, compõe e distribui esses cartazes: «Missionários da PIME sob os auspícios do diretor da obra Pontifícia da Santa Infância. São Paulo. Com aprovação eclesiástica. Assinatura: Cr$...». Comecemos nossas reflexões de baixo para cima: por x cruzeiros, e com aprovação eclesiástica, difunde-se pelas Igrejas, outrora destinadas ao culto católico, o nome de Karl Rahner, e a «doutrina» desse Doutor Comum da Igreja Pós-conciliar que sistematicamente rebate todas as dimensões sobrenaturais da nossa salvação sobre o plano do chamado antropocentrismo. Um protestante poderia dizer tudo aquilo em melhor português, mas não conseguiria, melhor do que esse religioso alemão, reduzir a figura singular da Mãe de Deus ao denominador comum de nossa mediocridade orgulhosa, e especialmente da orgulhosa mediocridade dos que vêem em Karl Rahner o substituto de Santo Tomás no mundo pós-conciliar. Voltaremos a falar nesta revolução, e nesta nova religião que ostenta triunfalmente a bandeira da mediocridade. O divino reduz-se ao humano, mas levado pela energia cinética da queda, o humano se esborracha no sub-humano, com aprovações sub-eclesiásticas. O que diz de Maria Santíssima a Igreja? Refiro-me evidentemente à Santa Igreja Católica, à singular e única Igreja cuja maternidade virginal se configura pelas incomparáveis perfeições da Virgem Santíssima. O que diz a Igreja? Como falam os Papas, os Doutores, os Confessores, os Mártires, as Virgens? Como falaram os anjos? E como devemos nós, seus pequeninos filhos, exprimir nosso culto de especial veneração quando rezamos o Rosário e meditamos nos mistérios de Maria Santíssima? Desordenadamente, como que tomados de surpresa, esbocemos algumas amostras da verdadeira devoção à Santíssima Virgem; e comecemos pelo admirável livro de São Luiz Maria Grignion de Monfort que tem este título: Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Abrindo ao acaso na página 30 lemos a passagem em que o autor desenvolve a idéia de Santo Antonino nestes termos: «Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria». Santo Antonino de Florença, discípulo de Santa Catarina de Sena, grande teólogo do século, na sua Suma P. IV, Tít.XV, Cap.IV,parag. 2, diz: «appellavit eam Mariam quasi mare gratiarum». O mesmo Santo Antonino falando, agora da altitude hierárquica de Maria, nos diz: «A Virgem Santíssima está, pois, acima da hierarquia dos anjos, como um Chefe está mais distante do servidor do que um servidor está acima de outro. Todos os anjos são espíritos servidores e, entretanto, suas hierarquias são diferentes». Ainda na mesma pauta, lemos de passagem as reflexões de um contemporâneo de Santo Antonino, o sábio Jean Charlier, mais conhecido pelo nome do lugar em que nasceu: Gerson. No seu famoso tratado sobre o Magnificat, diz: «A Virgem Santíssima constitui uma segunda hierarquia abaixo de Deus Trino e Uno. Primeiro Soberano Hierarca, perto do qual a humanidade do Filho foi a única admitida, e pôde sentar-se à direita da Majestade de Deus».

Ainda no mesmo tema da singular altitude de Maria Santíssima, Garrigou-Lagrange em Les trois Ages de la Vie Intérieure, nos cita o cardeal Cajetanus, grande comentador de Santo Tomás, que ousa dizer, a propósito da maternidade divina de Nossa Senhora, que essa maternidade «levou-a a atingir as fronteiras da divindade». Santo Tomás (IIIa, Q.30, a.1) nos traz esta bela contribuição: «Deus esperou o consentimento da humanidade. Pelo fiat livremente pronunciado por Maria, ela cooperou no sacrifício da Cruz, já que foi ela que nos deu o sacerdote e a vítima». No comentário sobre Ave et Pater, tão oportuna e generosamente editado pela Nouvelles Editions Latines, e encorajada pela Collection Docteur Commum da revista Itineraires, colhemos este precioso comentário sobre os termos gratia plena (p.163): «Antes de tudo a Virgem Santíssima ultrapassou todos os anjos por sua plenitude de graça. Para manifestar esta preeminência, o arcanjo Gabriel se inclinou diante dela e lhe disse: — Vós sois cheia de graça. Estava aí subentendida esta declaração: — Eu vos reverencio por estardes acima de mim por vossa plenitude de graças». Estamos no Século XIII ouvindo o Doutor máximo da Igreja. Saltemos por cima de toda a Idade Média e pousemos no ano 431 em que se reuniu em Éfeso o IIIº Concílio Ecumênico motivado principalmente pelas heresias de Nestorius, para quem Maria seria apenas mãe de Cristo (Christotókos) e não mãe de Deus (Theotókos). Respondendo a Nestorius, São Cirilo, Bispo de Alexandria, pronunciara na Páscoa do ano 430 um sermão em que defendia a maternidade divina, sendo condenado pelo Papa Celestino; mas no ano seguinte, o Concílio de Éfeso, ao qual o Papa enviou dois delegados, deu ganho de causa a São Cirilo e condenou Nestorius. Registrou-se nesse episódio uma bela participação do povo de Deus, como no caso do arianismo. Enquanto os Bispos e os delegados do Papa debatiam a questão, o povo, homens e mulheres, certamente mais mulheres do que homens, gritava na rua: Theotókos! Theotókos! O sucessor de Celestino, o Papa Sixto III, dedicou uma basílica sob a invocação de Maria, Mãe de Deus — a conhecidíssima Basílica Romana de Santa Maria Maior. E agora, para reunir e sintetizar todos os milhares de textos e de pronunciamentos feitos em louvor de Maria, a quem devemos um culto de singular veneração acima do que devemos aos Santos e aos Anjos, lembremos a ladainha de Nossa senhora, onde, em forma de oração, proclamamos seus dez títulos de Mãe, seus dez títulos de Rainha, seus títulos de excelsa perfeição, seus títulos de Virgem, seus títulos de refúgio e protetora — e com estas cinco prerrogativas a reconhecemos como Rainha dos céus e da terra. Recomendamos aqui o opúsculo do saudoso Pe.Calmel O.P., Le Rosaire de Notre Dame, editado por Dominique Martin Morin Editeurs. Quando pensamos em toda a maravilhosa beleza da obra sobrenatural que Deus compôs para a nossa salvação, e principalmente quando nos detemos na especial veneração daquela que é chamada «causa nostræ lætitiæ», aperta-nos o coração um sentimento de opressiva tristeza: dessa legião de humanistas que se deixam levar pelas reviravoltas antropocêntricas e que saboreiam o vômito de um Karl Rahner só nos resta dizer e repetir o tristíssimo estribilho: eles não sabem o que fazem, eles não sabem o que dizem, e sobretudo — meu Deus! — eles não sabem o que perdem. Revista Permanência N°100 Março 1977

APOLOGÉTICA

A Igreja é dona da verdade Muitas vezes vemos estampada em revistas da revolução dita “progressista” esta sentença: “A Igreja não é dona da verdade”, com a qual, quem a enuncia demonstra uma secreta vergonha de pertencer a uma Igreja de vinte séculos que ainda acredita em coisas que o mundo moderno julga inacreditáveis; ou então pensa estar fazendo um gesto de apreciável humildade quando reconhece as manchas e as rugas de tão antiga instituição. Outros sentimentos ainda menos nobres poderão ditar a mesma sentença. Cardeais, arcebispos, bispos, padres e leigos dizem “que a Igreja não é dona da verdade” dentro de uma faixa de intenções que se estende do simples respeito humano até o repúdio apóstata. Ninguém, evidentemente, jamais pretendeu ou pretenderá atribuir à Igreja a posse das verdades astronômicas, ginecológicas, paleontológicas, econômicas e sociológicas. Alias são justamente os ditos “progressistas” ou “novos bispos” que desembaraçosamente sentenciam sobre esses vários assuntos, e outros mais, em que possuem o que o professor Gudin costuma chamar de “ignorância especializada”. Mas esses personagens, ainda que não tenham apostatado, não são a Igreja: são o que Maritain chamou “son personnel”. Há, porém, um registro em que é preciso dizer que a Igreja Esposa de Cristo, a Igreja-Igreja, única depositária do Sangue de Cristo (nos sacramentos) e das palavras de Deus (na Sagrada Doutrina da Salvação), é guardiã e distribuidora, Mãe e Mestra de todas as verdades que concernem à Salvação e à união com Deus. Nesse registro, que os homens costumam usar para ostentar uma pseudosabedoria que foge de qualquer absoluto, nesse sentido nós podemos e devemos dizer que a Esposa de Cristo, em comunhão de bens com o Esposo, é dona da verdade que liberta e que salva. O que não se pode dizer é que a Igreja seja a causa primeira e autora dos artigos de Fé. Não se pode dizer, por exemplo: “Creio na ressurreição da carne porque a Santa Madre Igreja ensina”. A maneira acertada é esta outra: “Creio na ressurreição da carne PORQUE DEUS REVELOU e porque a Santa Madre Igreja ensina”. No primeiro PORQUE está a razão, o objeto formal da Fé: a Revelação de Deus; no segundo porque está o condicionamento (conditio sine qua non) de nossa adesão, porque Deus, no plano da Redenção, não quis confiar a cada um diretamente o dado revelado, mas preferiu confiá-lo à Mãe e Virgem: mãe que distribuirá e o ensinará; virgem que não tocará, que não será espessura, obstáculos, nem destruidora da mínima parcela do tesouro que guarda e distribui. Nesse sentido podese dizer energicamente com Santo Tomás, que nada e ninguém traz qualquer adição ou restrição ao dado revelado, nem os doutores, nem os anjos, nem a Igreja — “nihil aliquid quam Veritas Prima”. (II, II, 1.1). Mas na pauta das circunstâncias concretas do plano de Deus, para nós, “quod nos”, não é somente errôneo negar que a Igreja não é dona da Verdade, é ímpio, é malícia contra a fé que devemos ter na santidade, sem mancha e sem ruga da Igreja de Cristo. Os chamados “progressistas” inverteram os termos da questão abordada magistralmente por Maritain na primeira parte de seu livro “De L’Église du Christ”. Os “progressistas” flagelam desembaraçosamente a Pessoa da Igreja, mas não admitem que lhes pisem os purpurados calos do personnel, que são para eles mais sagrados do que as cinco adoráveis chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso dizer por cima dos telhados, aos gritos, com cólera ou com dor, que nós não precisamos dos conselhos e da colaboração dos protestantes para decidir a feição de nosso culto de adoração, isto é, para observar e apartear o que temos de mais íntimo na vida da Igreja. Esta falsa modéstia, esta falsa humildade, este falso ecumenismo é que clamam aos céus e a nós nos ferem em nossa honra e no nosso amor.

Editorial Permanência, n°56, Ano VI, Junho de 1973.

Pode-se transigir em religião? O tema que me foi dado, nesta série de conferências, é o da transigência ou dos limites de tolerância em matéria religiosa. Antes porém de aplicá-lo à religião, creio que será útil esclarecer o próprio conceito de tolerância ou transigência, porque, pelo que tenho ouvido, muita gente atribui a esses vocábulos um sentido absoluto e simplificado. A maioria das pessoas, ou melhor, a maioria dos brasileiros, considera a tolerância uma virtude moral, e às vezes a maior das virtudes. Diz-se que Fulano de Tal é tolerante, em tom de elogio, como se diz de outro que é honesto, justo ou temperante. E acusa-se Cicrano de intolerante em tom repreensivo, como se diz de alguém que é injusto ou desonesto. Há outra raça de gente que inverte o tom daquelas proposições, e que vêem a virtude na intolerância. Para começar devo dizer — e nisto conto com a simpatia dos ouvintes — que não simpatizo de modo algum com o intolerante absoluto. Acho-o desagradável e enfatuado. Digo melhor: acho que esse tipo de intolerante é intolerável. Mas sou forçado a acrescentar — e nisto certamente desagradarei a muitos ouvintes — que o tolerante sistemático não é menos errado do que o outro, embora seja mais simpático. Diria até que é simpático demais. E em certas circunstâncias, quando por exemplo reclama a intransigência de alguém, o tolerante é incoerente com seu credo, porque, sendo intolerante em tudo, deveria tolerar também a intolerância; e se não tolera é porque sabe que nem tudo se tolera, e por conseguinte em alguma coisa é intolerante. É preciso, pois, estabelecer que aqueles termos têm valor moral relativo e que ora designam virtude ora vício. A dificuldade em que se encontra o homem de reto agir é a de distinguir bem o caso em que se aplica a transigência e o caso em que se obriga a intransigência. A educação da prudência ou do senso moral consiste precisamente na fina discriminação da atitude que se deve tomar diante da atitude dos outros; ou, no caso vertente, consiste no discernimento da reação diante do erro dos outros. Que fazer ou que dizer quando esbarramos no erro alheio? Corrigir? Nem sempre é recomendável. Silenciar? Nem sempre é generoso. Imaginemos um caso concreto. Um velho amigo meu vem dizer-me que a nossa república foi proclamada por Pedro Álvares Cabral em 1° de abril. Não posso, decentemente, responder-lhe: “Você pode estar com a razão” ou então “vá lá, esse é o seu ponto de vista”. A verdade histórica bem assentada não permite essa capitulação. Que devo então fazer? Tentarei mostrar ao amigo que ele se engana no herói e na data; ou que foi vítima de alguma pilhéria de 1° de abril. Se entretanto não conseguir demovê-lo, posso desistir da retificação porque há muitos casos em que o esforço de convencer é inútil. Há nos livros sapienciais da Sagrada Escritura uma passagem que nos autoriza e até nos aconselha a deixar o tolo andar com sua tolice. Diz lá o autor inspirado que ensinar ao tolo é o mesmo que tentar a cola de um vaso quebrado em muitos pedaços; e é o mesmo que falar a um indivíduo que dorme e que, acordando estremunhado, pergunta: hein? como? Quem vive de ensinar sabe que há casos de irremediável indocilidade. É triste, mas nesses casos, como diz agora o próprio Senhor Jesus, é melhor sacudir o pó das sandálias e ir pregar em outras

freguesias. Mas nem por isso — no caso concreto imaginado — deixo eu de manter boas relações com o obstinado indivíduo que se aferra ao seu erro histórico. Seu erro não me impede de visitá-lo, de jantar com ele, de passar telegrama em seu aniversário, etc, etc. Se, como professor não posso capitular, como amigo não posso abandonar o outro somente porque ele se obstina em deslocar uma data nacional. As regras de convivência são mais apertadas, nesse ponto, do que as regras da pedagogia. Pondo em linguagem abstrata o caso anterior, teremos uma primeira aproximação: “Em relação ao erro, e por amor da verdade, sou intolerante; em relação à pessoa que erra, e por amor dela, serei tolerante”. Imaginemos agora que aquele meu amigo se candidata à cátedra de História do Brasil no Pedro II. Já não posso manter a mesma tolerância com ele. Devo adverti-lo. Estou obrigado, em consciência, a prevenir meu amigo que não vejo com bons olhos seu insensato propósito de tornar oficial a perturbação das datas e dos heróis nacionais. Imaginemos finalmente que a banca examinadora — como já tem acontecido em outros concursos — dê grau dez à tese, e entregue a cátedra, e consequentemente os ouvidos dos meninos, ao desvairado historiador. Sendo eu jornalista, e sabendo pertinazmente que a nossa república não foi proclamada por Pedro Álvares Cabral, devo escrever artigos denunciando a impostura do concurso e a estridente injustiça do resultado. Vejam bem que agora modificou-se a situação. Continuo a ser intolerante em relação à verdade histórica; mas já não tenho a mesma tolerância com a pessoa que erra, por causa dos meninos, isto é, por causa da maior significação social e moral do erro. Se em vez de mau historiador o indivíduo de nosso exemplo se mostra um mau cidadão, ou melhor se seu erro é moral e político, então a minha reação deverá ser ainda mais viva e poderá chegar até o rompimento de relações pessoais. Se na qualidade de jornalista eu denuncio um Fulano de Tal como ladrão, eu não posso mais jantar com ele no Jockey Club, ou abraça-lo quando o encontrar no salão de barbeiro. O adversário do bem comum não pode ser meu amigo particular. Eu devo aos outros essa nitidez de atitudes; e, por incrível que pareça, eu devo principalmente ao ladrão, por amor de sua alma, a sanção de minha intransigência. O Brasil se perde porque os melhores são complacentes com os piores. Os brasileiros se abraçam demais, sem que essa cordialidade sem normas signifique virtude. O jornalista João denuncia o patife José. Mas João abraça Pedro que abraça José. Com poucos elos intermediários, e às vezes sem nenhum, o mais eloqüente denunciador de desordens se encontra, em abraços ou jantares, com os mais indignos aproveitadores das mesmas desordens. Quem fizer o contrário, isto é, quem sair da sala em que é bem recebido um autor de escândalo público, é apontado como intransigente. Quem denuncia a gritante injustiça de um concurso de filosofia é tido por fanático. Espero ter mostrado que a tolerância com a pessoa que erra não se pode manter quando mudam as circunstâncias e quando a persistência no erro tem grave alcance social. E por quê? De onde nasce essa exigente intolerância? Onde se origina esse imperativo novo? Espero que meus

ouvintes já tenham descoberto que essa intolerância nasce da justiça e do amor. Concluiremos então que só será incondicionalmente tolerante, que só será sempre amável, cordato, benigno, compreensivo, simpático, o indivíduo que não dá valor à Verdade, que não serve à Justiça e que não ama o Amor. * Li dias atrás, numa folhinha, esta sentença: “o segredo da felicidade conjugal está na mútua tolerância”. Há nessa frase uma boa parte de verdade. Nos casais, para uma razoável convivência, é indispensável que cada um seja tolerante com os defeitos do outro. A regra é boa, mas não pode ser elevada a norma suprema e absoluta. No jogo da convivência a disposição à tolerância deve ser acompanhada da disposição complementar à correção mútua. É difícil, em cada caso concreto, decidir qual dos dois elementos terá a primazia. Muitas vezes o desejo de correção é impertinente e inoportuno; mas muitíssimas vezes a tolerância significa apenas comodismo e capitulação. A grande doença de nossa época, e principalmente de nosso país, é a da insensibilidade moral travestida em bondade. Todos toleram tudo, e depois se espantam com o antinômico resultado dos vagões de gases. Na vida familiar, onde é mais denso o campo de forças afetivas, é difícil manter o equilíbrio entre a salutar exigência e a salutar transigência. Esquecido um dos componentes, desmorona a família. E se todos resolvem seguir à risca a sentença da folhinha, isto é, se todos, na casa de família, resolvem ser tolerantes, a casa de família se transforma em casa de tolerância. * A dificuldade de discernir, na situação concreta, e determinar os justos graus de tolerância ou intolerância, cresce com a gravidade dos elementos em jogo. E chega a um máximo de tensão no mais importante dos problemas humanos: a religião. Aqui, mais do que em qualquer outra questão, os erros extremos são catastróficos. E esses erros têm sido cometidos. Há na constituição vital da Igreja Católica uma intransigência moral e uma absoluta intolerância dogmática de que falaremos a seguir, mas desde já convém assinalar que essa dupla intolerância se aplica à vida interna da Igreja. Para ser católico é indispensável aceitar a Igreja como ela é, e aderir aos mandamentos e aos dogmas. A Igreja espera de nós uma nitidez de opção que é anterior a qualquer programa de perfeição. Antes de sermos plenamente católicos pela santidade, devemos sê-lo pela aceitação de sua doutrina e de seu governo. Esse tipo de intransigência não pode molestar os espíritas e os protestantes porque começa por nós mesmos e a nós mesmos interessa. Há porém um problema mais difícil para nós; o das relações entre a Igreja e a sociedade, sobretudo no que concerne aos outros cultos. Certos autores, julgando interpretar o pensamento da Igreja, querem estender a intransigência, que livremente aceitamos, à sociedade civil. Dizem que em país de maioria católica os outros cultos não devem ser permitidos. E sonham reprimir o erro religioso com medidas policiais. Eu não acredito muito em país de maioria católica. Faltam-me dados para julgar com exatidão o que se passa na Espanha, que tem servido de exemplo aos autores que praticam esse tipo de intolerância. Admiro-me, se admitir a tal maioria naquele país, que uma sociedade tão piedosa precise ser governada como um presídio. Acho também muito esquisita a necessidade de ofender a dignidade natural do homem para conseguir dele uma dignidade sobrenatural.

Não é esse, aliás, o pensamento de Pio XII. Em recente alocução dirigida aos jornalistas católicos. Sua Santidade ensina que nem sempre constitui dever a repressão positiva ao erro religioso e moral e que, ao contrário, em certas circunstâncias, a tolerância e o convívio com outros grupos religiosos é ensinamento evangélico: “Deixai que no campo do mundo cresçam juntos o joio e o trigo”... (Mat. XIII, 24 a30). E logo em seguida diz o Papa: “Não pode, portanto, ser norma última de ação, o dever de reprimir os desvios morais e religiosos. Cumpre que esse (dever) se subordine a normas mais altas e mais gerais que, em algumas circunstâncias permitem e até recomendam, como melhor solução, não impedir o erro, para promover um bem maior”. Não afina, pois, com o pensamento oficial da Igreja, a idéia de fazer incondicional apelo a medidas repressivas contra as práticas religiosas erradas. Não representam bem o sentimento da Igreja os autores que invocam o caso da Espanha para sonhar com uma Igreja Policial, mais madrasta do que mãe. Outra coisa entretanto, errada em sentido oposto, seria imaginar que a Igreja tolera o erro religioso e o erro moral. Esse tipo de intolerância, dogmática e moral, que muitos, de fora, vêem como um anacronismo ou como uma dureza, é o mais alto apanágio da Igreja, que deriva de sua intrínseca santidade. Mas não devemos confundir a intransigência moral que repele o divórcio, o aborto, o anticoncepcionalismo, etc. com a idéia de ser preciso ser perfeito para pertencer à Igreja. Essa idéia seria insensata porque a Igreja não é um fim, não é uma sociedade para exclusivo abrigo dos puros, e sim um instrumento de salvação. Santa por seu Fundador, santa por seu Espírito, santa por seus membros que vivem na Glória, e santa pelo princípio de divinização participada que em nós opera, a Igreja, na sua peregrinação pelo mundo, envolve membros dignos e indignos, justos e pecadores. Intolerante no seu estatuto salutar, a Igreja é solícita e acolhedora de todos os que , malgrado todas as humanas fraquezas, querem aceitar os mandamentos e procuram na eficácia de graça um divino remédio. A Igreja, na sua passagem histórica, é uma arca. É uma enorme Casa de Saúde. Ora, se é verdade, pelo nome e pelo fim, que as casas de saúde são feitas para dar saúde, é também verdade que nelas se encontram numerosos enfermos. É pueril admirar-se que existam doentes nos hospitais; mas é insano pensar que só existam doentes. Não. Em nossa grande e santa Casa de Saúde existem médicos, e existem almas robustíssimas que dia e noite renovam o plantão da enfermagem. Ainda mais insano, porém, seria a idéia de uma casa de saúde em que, por espírito de tolerância, os médicos resolvessem abrir mão dos estatutos e passar a ver na própria doença uma coisa admirável e tolerável. Só é possível curar acolhendo doentes para expulsar as doenças. E isto só é possível quando se une à solicitude do acolhimento a intransigência em relação ao mal. Moralmente, podemos distinguir o pecador e o mau católico. O primeiro, por mais grave que seja seu ato, quer curar-se, quer obedecer, e do fundo do abismo clama pela misericórdia de Deus. O segundo, ainda que não cometa atos muito reprováveis, recusa os estatutos, e pretende em sua estultícia ter um pronunciamento próprio sobre o divórcio ou sobre o jejum. E esse orgulho, que se encontra nos católicos liberais, é certamente pior do que a pobre miséria do pecador que não pretende dar nomes diferentes na lama em que escorregou.

* Quanto à intransigência dogmática, permitam que lhes avive a memória para alguns dados essenciais de nossa doutrina. Como sabem, a nossa Fé teologal é uma virtude infusa, que Deus nos dá, e que nos capacita para ver com nova pupila e aderir com a vontade à Revelação. Nossa Religião é essencialmente constituída de Graça e Revelação. Deus mesmo nos dá a virtude sobrenatural para ver e aderir ao fundamento divino de sua Revelação. E é dessa Revelação divina que nos vêm os dogmas, que são o tesouro guardado pela Igreja. Um resumo desses dogmas está no Símbolo dos Apóstolos: “Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Criador do céu e da terra, em Jesus Cristo, um só seu Filho, Nosso Senhor; o qual foi concebido pelo Espírito Santo; nasceu de Maria Virgem, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, etc”. Nós cremos em cada um dos artigos desse credo por causa de seu motivo central: porque eles vêm de Deus; porque Deus revelou; e porque Ele mesmo nos deu o princípio sobrenatural, a Graça, que nos capacita a esse ato de sobrenatural confiança. Creio em cada um e em todos os artigos, porque Deus disse. Se desprezar um só, se duvidar de um só, então não é só esse que perde para mim o teor divino. São todos. Pois se duvido de um, é do critério central que duvido. Para quebrar a confiança não preciso descrer de tudo o que uma pessoa me diz; basta duvidar de algumas coisas; basta descrer de uma só. Se eu disser: “nisto eu creio, naquilo não”. sou eu então que estou escolhendo, sou eu que estou julgando. E nesse momento deixou de ser, para mim, divina, a revelação e passou a ser opinião pessoal, minha, escolhida por mim, julgada por mim. Não é Deus que me diz que é Senhor do Céu e da Terra; sou eu que lhe dou esse título. Sou eu que nomeio Deus para o alto cargo de governar os astros do céu, os peixes do mar, as flores do campo, e as almas do mundo. E, se sou eu que decido o que é e o que não é verdade a respeito de Deus, então eu sou maior e mais divino do que Deus. Salta aos olhos o ridículo dessa atitude. Entende-se bem que os índios e os pagãos, que não receberam a Revelação, tenham procurado, cada um com os recursos de sua cultura, um modo de pensar em Deus e de honrá-lo. A religião natural vem do homem, da natural inclinação da alma humana para seu fim. Nesse estado, pré-religioso, o homem faz um Deus à sua imagem, e tira de si mesmo a religião. Entende-se a variação, e diria até a falta de certo rigor lógico nessa religiosidade natural. Mas para o cristão que recebeu a Revelação, que conhece o preço do seu selo, é ridícula qualquer atitude que fuja à intransigência dogmática. Uma coisa lhes digo. Se me viessem oferecer, anos atrás, quando eu procurava a notícia de Deus, uma religião em cujo credo eu pudesse escolher os artigos de minha simpatia, e em cujos livros santos pudesse dar a interpretação que bem entendesse, eu recusaria indignado tal religião e tal Deus sem exigências de verdade. Meus antigos professores de geometria ou de física eram maiores do que esse deus da tolerância dogmática, pois haviam ensinado que a verdade da geometria ou da física não dependem de minha interpretação e sim da natureza dos corpos e das definições das figuras. E se me oferecessem uma religião em cujo culto se pudesse tirar, acrescentar ou modificar, eu a recusaria enfadado, porque esse culto seria inferior a uma partida de futebol onde as regras são regras.

Ninguém me obrigou a aceitar o cristianismo. Eu também não posso obrigar ninguém a correr atrás de Jesus Crucificado e a entrar nesse jogo de amor e justiça cujas regras nos foram dadas por Deus e por sua Igreja. Admito que alguém não queira sequer examinar essa doutrina e experimentar esse jogo, alegando, por exemplo, que tudo isso foi inventado pelos papas. No momento em que encontrei o Fato, a Coisa católica eu tive pelo menos uma grande tranqüilidade: essa religião tinha uma imensa vantagem: não fora inventada por mim. Mais tarde, vi que também não fora inventada pelos papas, e então a idéia de origem divina se impôs e me forçou a dobrar o joelho endurecido. Torno a dizer: eu poderia ter recusado em bloco o Símbolo dos Apóstolos; mas nunca me passou pela idéia a estupidez de aceitá-lo em parte. Bem sabia que se fizesse tal discriminação seria eu o fundador dessa variante cristã. Com material cristão eu estaria fabricando uma seita e um deus de minha invenção. Felizmente nunca me ocorreu essa cômica idéia; e continuo a admirar-me que ela possa ocorrer a alguém. O protestantismo consiste precisamente nisto. À Igreja Católica, única, global, maciça, os protestantes opõem mais de mil glosas que apareceram ao sabor da livre interpretação e do relativismo dogmático. E essa multiplicação de seitas, em confronto com a unidade católica, é a prova da decomposição de um corpo sem alma. Mas não vim aqui para me esgrimir com os protestantes, nem para apontar os erros internos do espiritismo que considero uma forma de materialismo com todos os seus fluidos que nada tem de espiritual. Transijam eles, protestantes ou espíritas; tolerem todas as variações que em suas doutrinas complacentes surgirem; nós acharemos razoável essa tolerância interna de doutrinas frouxas que confessadamente não fazem questão absoluta da verdade. Transigiremos nós com eles, e com outros, no que concerne ao convívio humano, nos termos ensinados por Pio XII; mas não transigiremos com a estrutura dogmática e moral de nossa Igreja. Se nos julgam loucos ou tolos por aceitarmos as arestas traçadas por Deus, toleraremos que assim nos julguem e que não queiram partilhar da mesma loucura. Mas não toleraremos que um católico, continuando a dizer-se católico, queira ser divorcista, ou queira inventar uma explicação sua para o mistério da Trindade. O católico que escolhe seus dogmas e seus mandamentos não é católico, é protestante. O católico que freqüenta sessões espíritas, ou utiliza médicos fantasmas, comete pecado contra a virtude da religião, ou contra a Fé, e sobretudo demonstra um insensato orgulho ou uma intolerável falta de caráter. Como Fr. Boaventura lhes mostrou abundantemente, e como poderão ler no seu artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, o espiritismo nega a transcendência da Revelação, nega o milagre, nega a inspiração divina da Sagrada Escritura, nega a autoridade do magistério eclesiástico, nega a instituição divina da Igreja, nega o mistério da SS. Trindade, e nega a divindade de Cristo. Como pode um católico pactuar com qualquer cerimônia dessa crença sem trair a doutrina que custou o sangue de nosso Salvador? Um espírita pode negar tudo aquilo continuando a ser credor de nossa respeito como homem. Ele tem, ao menos, a coerência de desprezar as coisas que julga não serem verdadeiras. Mas o católico-espírita é uma espécie de monstro que desobedece a Igreja em que crê e colabora nas práticas do que diz não acreditar. É incoerente na doutrina e incoerente nas atitudes práticas. Há certamente torcedores de futebol que são mais fiéis ao seu clube do que esses católicos à sua Igreja. Querem transigir? Por que não começam pelo futebol? Por que não praticam a livre interpretação dos sinais de tráfego? Porque não toleram, antes dessa amálgama de religiões, a amálgama das relações

conjugais, trocando maridos e esposas? Vamos, vamos transigir? Sendo professor, pouco me importará que o aluno aproveite ou não; pouco me interessará, ao examiná-lo, que ele conheça ou não a matéria. Admitamos que ele é protestante em geometria e espírita em química. Sendo médico, não irei zangarme com a enfermeira por causa de uma troca de injeções. Sendo engenheiro, transigirei com os fornecedores que roubam nas medidas e nas especificações. Por que deverei ser zeloso nos negócios dos homens se sou tolerante nas coisas de Deus? Vamos transigir em tudo se podemos transigir em religião. Agora mesmo, se eu aqui me pusesse a cantar, ou a recitar poesias, todos diriam severamente: — O conferencista fugiu ao tema. Se eu chegasse atrasado meia hora, diriam: — o homem não é pontual; será verídico? Se eu desandasse a falar num idioma inventado por mim, comentariam: — Ele está zombando de nós ou ensandeceu... E teriam razão. Há regras. Há compromissos. Há convenções a que não se pode fugir sem tornar possível a convivência. Que dizer então das verdades, que dizer então da natureza das coisas que são o que são? Posso eu, usando o privilégio da livre interpretação, dizer que o cão mia e que o gato ladra? É claro que não. Todos concordam que não podemos transigir com o tema, com o horário, com o idioma, e com o miado dos gatos. Mas parece que se pode transigir com a Santa Doutrina que foi arrematada com o grito de dor de um Deus crucificado. Dirijo-me aos católicos-liberais, e digo-lhes que a sua transigência doutrinária prova simplesmente que, para eles, a Religião é a coisa menos importante do mundo. Ora, o catecismo nos ensina, ao contrário, que a Religião é infinitamente mais importante do que o mais alto dos negócios humanos. Nós outros que em tempo e contratempo procuramos ser fiéis à doutrina, e que levamos a sério a nossa religião, seremos necessariamente intolerantes. E seremos lógicos, porque uma religião-sem-importância é um absurdo impensável! Na verdade, a inconsistência moral do catolicismo complacente se explica por uma espantosa subversão: o que se procura nesse tipo de religião é um deus vantajoso, um deus que nos sirva, que acorra aos nossos caprichos. Ora, mal ou bem, às vezes indignamente, nós outros professamos uma religião e procuramos um Deus como os magos de Belém: para adorá-lo e para servi-lo. Não podemos, por isso, parar nas esquinas mais próximas, para oferecer nosso incenso aos ídolos mais acessíveis, porque o nosso Deus é um Deus de absoluta intransigência que disse: “Eu sou aquele que sou”; e logo acrescentou: “Não terás outros deuses diante de minha face”. Nosso Deus quer ser amado sem erro de pessoa. Quer ser louvado e adorado como Ele próprio, pela santa humanidade de seu Filho, nos ensinou. Quer ser seguido. Quer ser ouvido e obedecido: “O meu discípulo é aquele que ouve e guarda os meus preceitos”. * A tradição católica sempre comparou a tolerância religiosa a um adultério. No Livro dos Provérbios (VI, 20-35) encontramos passagens como estas: “Meu filho guarda os preceitos de teu pai e não recuses os ensinamentos de tua mãe. Fixa-os no teu coração. Amarra-os ao teu pescoço. Eles te preservarão da mulher perversa, da língua sedutora da estrangeira...”. E também: “Meu filho, sê atento à minha

sabedoria e inclina o ouvido à minha inteligência, a fim de conservares a reflexão e para que teus lábios guardem a ciência. Porque os lábios da estrangeira destilam o mel e o seu paladar é suave, mas no fim ela é amarga como o absinto e aguda como a faca de dois gumes. Seus pés conduzem à morte...”. Essa mulher perversa é a heresia; é a sedução que faz cócegas nos ouvidos como dirá mais tarde o Apóstolo. Todos conhecem, ao menos vagamente, as perseguições sangrentas que os cristãos sofreram nos primeiros séculos de nossa história. Os católicos complacentes terão visto talvez o filme “Quo Vadis”, e na falta de melhor informação já terão uma pequenina idéia do tratamento que era ministrado aos cristãos daqueles tempos. Ora, querem agora saber o que exigiam os juizes romanos dos réus que lhes traziam? Muito pouco. Queriam apenas que os cristãos incensassem os ídolos, ou que pronunciassem uma palavra negando o Cristo. Bastava um gesto insignificante, uma palavra sem grande importância — diriam hoje — para que o acusado salvasse a vida. Ora, milhares e milhares de cristãos recusaramse e foram supliciados. Com o preço da vida a jovem Perpétua, moça, mãe de filhos, esposa amada, e Inês, quase adolescente, e Lourenço, e Sebastião, e tantos, tantos outros pronunciaram essa palavra formidável que, nós aqui repetimos hoje, sem perigo imediato de vida, mas pedindo a Deus que a grave em nossos corações: Não podemos transigir! Essa é a intolerância católica, a santa intolerância dos mártires. Agora consideremos o catolicismo complacente que faz vista grossa aos mandamentos. A atitude de seus praticantes é outra: por uma dor de cabeça procuram tendas espíritas, amuletos, curandeiros desencarnados, caboclos do astral ou não sei que mais. Para reatar um namoro eles fazem o que os mártires recusavam fazer para fugir ao dente dos leões. No fim de contas o que querem é uma religião que nada queira deles; o que exigem é uma religião sem exigências; o que procuram é uma coisa vaga e mole que combine com a falta de caráter de seus adeptos. Muitos desses católicos são divorcistas porque a simples idéia de um compromisso sério lhes causa horror. Acham então que a Igreja precisa evoluir, nessa matéria, sem perceberem que justamente foi por evolução moral que o casamento chegou à forma monogâmica e indissolúvel. Querem o divórcio, que Ruy Barbosa chamou o “sacramento do adultério”; como querem praticar a superstição curandeira que é o adultério do sacramento. Aos católicos mais conscientes de seus deveres eu diria que precisamos redobrar nosso trabalho de esclarecimento e de doutrina. Discordo nesse ponto, com o devido respeito, das vozes que apontaram no espiritismo o maior flagelo religioso do Brasil. Será, na linha das conseqüências. Mas na consideração das causas o número um, a triste primazia, deve ser dada ao catolicismo liberal, ao catolicismo complacente, ao catolicismo tolerante, ao catolicismo que traz a Igreja a moleza, a falta de caráter, a esperteza, que são os vícios de nossas virtudes, o modo brasileiro de deteriorar o que seria bondade e magnanimidade se lograsse retificação e purificação. Mais do que em qualquer outro ponto do planeta, nós, aqui no Brasil, precisamos aprender a dura e viril arte de não transigir.

E para isso temos de lutar em duas grandes frentes: na formação moral, e na difusão da Doutrina. Em fórmula mais vulgar e concisa eu diria, parodiando Capistrano de Abreu, que no Brasil católico o que falta é catecismo e vergonha na cara. * Volto a dirigir-me agora aos não-católicos, às pessoas mal informadas que nos acusam de intolerantes e que confundem, às vezes por culpa nossa, a santa intolerância com a intolerância política dos que vêem na Espanha um ideal católico. A essas pessoas, se têm boa vontade, eu peço que não meçam a Igreja pelos nossos desatinos, mas pela doutrina de Cristo e pelo sangue dos mártires. E se querem ler autores modernos que exprimam o pensamento e o sentimento da Igreja eu lhes pediria que começassem por ler Pio XII. 1 Considerem a Igreja no seu conjunto, no seu grande itinerário. Mesmo sem fé é impossível não ver o milagre visível da Igreja. É impossível não ver a grandiosa confusão que através dos séculos vem trazendo intato o seu grande tesouro que seria frágil se fosse apenas humano. Dizem que ela é rígida demais, anacrônica e intolerante. Como se explica então a maravilhosa plasticidade que garantiu sua sobrevivência através dos tempos, dos choques de raças, das transformações dos costumes? Nascida entre asiáticos ignorantes ela passa à Roma imperial. Penetra o que parecia inacessível. Converte escravos e fidalgos. Pobres e ricos. Explode o Império Romano. E logo, em meio da latinidade culta chega a onda dos bárbaros. Parece um fim de mundo! A Igreja está em perigo, diziam os assustados cristãos do Mediterrâneo. Mas os bárbaros se convertem. A mesma doutrina que triunfara nas famílias romanas vai agora plantar-se entre hordas de bárbaros. E nasce o mundo medieval, saldo dessa combinação estranha de selvagens com o apuro romano e com o requinte bizantino. Chega a Renascença, época de audácias, e a Cruz singra os mares e vem cravar-se em novos continentes. Tornam-se orgulhosos os homens por causa das conquistas e da ciência. Alguns deles profetizam o fim próximo da Igreja, mas quando menos se espera, em pleno século XX, vê-se no mundo inteiro o ressurgimento do cristianismo. E aqui no Brasil já ninguém ousará, como há 50 anos, contrapor a ciência à Fé ou inculcar-nos como imbecilizados pela água benta. Já são muitos, louvado seja Deus, os que poderão confundir nos seus próprios domínios os cientificistas pedantes que no séculos passado pareciam triunfantes. Como se explica que a dureza e a intransigência tenham realizado tão prodigiosa adaptação e tão extraordinária conquista? Terá a Igreja transigido para comprar adeptos? Terá alargado sua tolerância dogmática e moral? Os próprios adversários nos prestam essa homenagem: não transigimos. Como se explica então esse misterioso resultado? Responderíamos muito simplesmente: explica-se tudo pela Verdade da doutrina, e pela presença de Deus na sua Igreja. Mas para completar essa resposta eu acrescentaria que a Igreja não é pura e simplesmente intolerante. Dissemos no princípio desta conferência que a tolerância aqui é virtude e ali é vício. Que

em certas coisas devemos transigir e noutras não. Ora, é na Igreja que se realiza, ao máximo, esse duplo aspecto, esse complementarismo que conjuga a santa intolerância com a santa tolerância. Há na Igreja um mistério semelhante ao de Maria Santíssima: o mistério da maternidade virginal. Pela maternidade ela é solícita e conquistadora; pela virgindade é zelosa e intransigente. Onde pode adaptar-se, ela se adapta, se debruça, com generosidade de mãe; onde não pode transigir, ela se firma com castidade de Virgem Santa. Pela boca de seu ardente apóstolo a Igreja mãe diz aos seus inquietos gálatas: “Ó filhinhos meus por quem sofro as dores do parto até que o Cristo Jesus esteja formado em vós!” (Gal. IV, 19). Mas na mesma Epístola fala a Virgem intolerante: “Eu me espanto que tão depressa tenhais abandonado o Evangelho de Cristo para buscar um outro Evangelho (...). Ah! Quando vos aparecer alguém anunciando um evangelho diferente — ainda que seja um anjo do céu — rejeitai-o!”. Ouçam agora, na mesma voz, os inconfundíveis acentos da maternidade católica: “Sendo livre, fiz-me servo de todos, a fim de conquistar um número maior. Com os judeus, fiz-me judeu para ganhar os judeus. Com os que estão sob a Lei, eu que não estou sujeito, fiz-me sujeito para ganhar os que estão sob a Lei. E com os gentios, que não estão sob a Lei, eu que não estou isento, fiz-me livre para ganhar os que estão fora da lei. Com os fracos fiz-me fraco para ganhar os fracos. Fiz-me tudo de todos para salvá-los todos. E eu faço isto por causa do Evangelho, e a fim de cumpri-lo” (I Cor. IX 9 e seg.). Em outra Epístola (II Cor. XI, 26 e seg.) temos um pequeno e dramático resumo da história da Igreja, isto é, do seu zelo missionário: “Labores, fadigas, vigílias numerosas, fome, sede, jejuns freqüentes, frio, desamparo! E antes de tudo o mais, meu cuidado de todos os dias, e a solicitude por todas as igrejas. Quem é fraco que eu também não seja fraco? Quem tropeça sem que eu me consuma de febre?”. * Há, pois, na vida da Igreja, em vez de uma tolerância mediana, a complementar exaltação de dois máximos: o zelo máximo para adaptar o que pode ser adaptável; e o zelo máximo, levado até o sacrifício da vida, de não transigir no que não pode admitir transigência. Sem a insaciável maternidade não se explicaria a história da Igreja. Sem a intransigente virgindade, não se explicaria a unidade da Igreja e a integridade da doutrina. * Sendo apostólica e missionária, como podem julgar que seja ela em tudo intolerante? Sendo depositária da palavra de Deus, como podem esperar que ela transija? A maternidade virginal da Igreja, pela qual a figura do Corpo Místico de Cristo se assemelha à de Maria, exalta a solicitude de adaptação para a conquista das almas, e exalta ao mesmo tempo o rigor, a dureza adamantina, a santa intransigência daquilo que não passará ainda que passem os regimes e as civilizações. Nós outros que vivemos na Igreja, com a Igreja, para a Igreja, e que da Igreja vivemos, temos de afinar nossas vidas por esse dualismo feito de uma forte intransigência e de uma larga transigência. Temos de ser tudo de todos; servos dos que procuram o Evangelho; perdigueiros do bom Pastor; pacientes na espera das almas; impacientes na busca; ressonantes com as aflições. Quem chorará que não choraremos com ele? Quem cairá sem que a febre nos abrase? Quem se alegrará sem que nos

alegremos? Ah! bem quiséramos nós agradar a todos para trazê-los todos! Mas se nos pedem agrados dos homens que são desagrados de Deus, não podemos, não queremos transigir. Se esperam negociar conosco propondo cem mil adeptos novos pelo preço de um iota, nós não podemos e não queremos negociar. Aliás, permitam-me um reparo: aquela concessão seria errada até sob o ponto de vista da esperteza e do cálculo. Não são os transigentes, os moles, os simpáticos, os afáveis, os mundanos, os maneiros que conquistam as almas. Pela flacidez de seus instrumentos são maus pescadores. Ao contrário, os grandes pescadores de corações foram homens severos e duros. Duros e severos consigo mesmos e com a Doutrina. De São Paulo, por aquelas amostras, já vimos que sua imensa ternura pelos discípulos não anulava a severidade moral e a absoluta intransigência pela integridade do Evangelho. Sua alma era um enorme cristal líquido. Seu ímpeto era o que Maritain chamou “un ouragan docile”. Em São Bento, o patriarca do Ocidente, notamos a mesma nitidez inflexível e ao mesmo tempo o zelo discreto, a sabedoria pastoral, a brandura de exigências “para que os fracos não desanimem e os fortes possam ser generosos”. São Bernardo, o asceta terrível que misturava cinza na comida, enche as salas de Claraval, enche a Igreja de Deus. São Domingos, Santo Inácio, São Francisco com seu rigor na pobreza, Santa Catarina de Sena com seu ódio ao pecado, Santa Teresa D’Ávila, a reformadora, eis aí as almas de cristal e os corações de fogo, que não transigiram, e que atraíram a Deus milhares de almas perdidas! A Igreja é, como seus santos, virgem na inteireza de sua Verdade, casta na custódia de sua doutrina. Mas é mãe dos homens. Debruça-se. Corre atrás dos que se extraviam, chora os que perde, ri com os que ganha. É dona de casa que varre o chão, o grande chão do mundo, à procura da dracma perdida. É pastora que anda pelos montes no encalço da ovelha tresmalhada. É mulher que vive curvada, debruçada, atenta, na posição clássica das mães. Abaixa-se. Faz-se criança com as crianças; é índia entre os índios; amarela entre os amarelos; negra entre os negros. Se o tempo é propício para gravar em pedra as orações, levantam-se as catedrais. Mas se é preciso espalhar-se, branca e humilde, constrói capelinhas de roça, caiadas de branco, nos lugares ingênuos e pobres. É tudo de todos. Universal. Católica. Estuda com os estudiosos. Canta, se é tempo de cantar. Brinca, se é tempo de brincar. É a mulher forte que retém o grande riso venturoso do seu dia definitivo. No meio tempo, enquanto espera, multiplica seus cuidados e providencia o agasalho de seus filhos. Mas agora vejam o que acontece quando cai um coração novo nas malhas da incontestável pescadora. Observem: a Igreja que correu mundo, que debruçou-se, que tolerou, que foi tudo para todos, espera agora o catecúmeno na porta da Casa de Deus. Espera-o imóvel, de pé, implacável, quase como se fora ele um inimigo, e só lhe abrirá as portas do Batismo se ele pedir, se ele insistir, se ele renunciar à vida do mundo. A mãe é agora virgem intolerante. Noiva castíssima. E o zelo de conquistar transmutouse em zelo de guardar. * Nós, que vivemos da Igreja, devemos afinar nossos gestos por seu Espírito. Ela nos ensina onde devemos ser tolerantes, e onde não podemos transigir. Ela nos dá o exemplo da fome de almas e nisto, no fogo da caridade, não nos traça nenhum limite. Venham, espíritas, protestantes, indiferentes, venham como homens, criaturas de Deus, corações desejados, e saibam todos que nós temos o santo dever de recebê-los e de encaminhá-los. Estamos oferecidos aos dentes que procuram a verdade. Não podemos economizar. Não podemos negar. Não podemos fugir. Vejam! Vejam que imprudente propaganda fazemos de nosso suor e de nossas lágrimas, para seguir de perto a propaganda que o Cristo fez de seu sangue. “As raposas têm as suas tocas, as aves têm os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde descansar a cabeça”. E como

pode o discípulo ser maior que o mestre? Estamos expostos. Oferecidos. Qualquer pessoa, em nome do Cristo Jesus pode fazer de um de nós um servo. Venham pois. Fomos dados em espetáculo do mundo! Venham, peçam pregação, canseira, vigília, compreensão, suor e até lágrimas. Devorem-nos. Se, porém, nos pedem o cancelamento de um iota; se nos convidam a tomar parte de uma sessão espírita; se querem discutir conosco em mesa-redonda ou quadrada as verdade de Deus; se esperam que concordemos com o divórcio ou com o aborto; se nos oferecem, para nossas cólicas, uma consulta médica com almas do outro mundo; então, nós não poderemos transigir; porque, se transigimos, daríamos prova de que não fazemos caso da Verdade, não servimos à Justiça e não amamos o Amor.

Conferência pronunciada em 26 de novembro de 1953, no programa organizado pela J.F.I. da Paróquia de São José.

Revista A Ordem, fevereiro de 1954.

1. 1.Nota da Permanência: Corção só vai conhecer os massacres dos comunistas na Espanha mais tarde. Ele fará as retratações necessárias em O Século do Nada. Também nesse livro escreveu um admirável capítulo sobre a Guerra da Espanha

TEOLOGIA

A criação Dois autores espirituais de índoles tão diversas, como Santo Tomás de Aquino e São Francisco de Sales, tiveram ambos a idéia de colocar a mesma consideração no pórtico de duas grandes obras: a Introdução à Vida Devota e a Summa Contra Gentes, IIª Parte. Ambos os autores, um em termos mais universais e grandiosos, e o outro em termos mais particulares e adaptáveis a cada alma, propõem a consideração do Universo, da Criação, como útil ao progresso da Fé. O Doutor Angélico, invocando as palavras do salmista: “medidatus sum in omnibus operibus suis”, abre o seu segundo capítulo com estas palavras: “A meditação das obras divinas é necessária ao homem para a edificação de sua Fé em Deus.” E logo adiante acrescenta que o primeiro proveito é o de deixar a alma admirada e maravilhada, porque, como já mil e tantos anos antes dissera Platão, não pode haver sabedoria sem essa inicial disposição de louvor. Nessa perspectiva poderíamos dizer que o princípio da sabedoria é a admiração. O que Santo Tomás deseja de nós é que descubramos, na meditação das obras de Deus, que Deus é causa primeira de tudo, causa eficiente segundo o seu poder, causa exemplar segundo sua sabedoria, e causa final segundo sua bondade; ou que cheguemos a vislumbrar, na essencial bondade de todas as coisas, o reflexo daquela Bondade que é o próprio Deus. Em tom menor, com uma graça infinita, e com uma língua de fazer inveja a qualquer escritor de qualquer idioma, São Francisco de Sales, com a maior amabilidade do mundo, quer que vejamos na meditação das coisas criadas a fragilidade, a miséria e o quase nada do ser contingente: “Considerez qu’il n’y a que tant d’ans que vous n’etiez point au monde, et que votre être était um vrai rien. Où etions nous, ô mon ame, en ce temps là? Le monde avait dejá tant duré, et de nous il n’en était nulle nouvelle.” E o salmo que invoca é o XXVIII, onde o cantor compungido e agradecido diz: “Senhor, eisme diante de Vós como um verdadeiro nada, como tivestes lembrança de mim para me criardes?” E mais adiante, compondo dois salmos num só grito de agradecimento, escreve o santo doutor: “Ó minh’alma, saibas que o Senhor é teu Deus; foi ele que te fez, e não tu mesma que te fizeste; somos obra de Suas mãos.” Ora, é por essa mesma pauta, e seguindo tão altos exemplos, que procuramos orientar nossas aulas, que colocamos sob os auspícios e proteção de São Pio X. A Criação pode ser admirada e louvada de muitos modos, como nos ensina o Benedicite. Um desses modos, que escolhemos, é o que envolve e atualiza a pesquisa científica sobre as origens de tudo. Há tanta beleza e maravilha nos átomos, no contraponto da chamada série periódica, nos enlaces moleculares, nos monumentais edifícios das proteínas, no intrometimento eficacíssimo das enzimas, no mistério da origem da vida como no espetáculo das constelações, ou como no espetáculo ainda mais maravilhoso do sorriso de amizade com que telegrafamos tantos segredos aos nossos irmãos de planeta. Posso, entretanto, garantir ao leitor que a linguagem usada nas aulas é mais comedida, e busca ser sempre instrutiva e construtiva do Reino de Deus. É o melhor que podemos fazer de nós mesmos: e ainda melhor faríamos se nos ajudassem a dar a esses cursos um caráter mais institucional. (1967) (PERMANÊNCIA, 1990, julho/agosto, números 260/261)

A esperança Meditemos diante de Deus, e demoremo-nos na consideração de Seus dons.

Pelo leite e pelo sangue da Sagrada Doutrina, sabemos que para vivermos cristãmente, isto é, para nos entregarmos totalmente aos trabalhos do Espírito, que opera em nós a modelagem do divino exemplar, para assim podermos voltar ao Pai, precisamos possuir órgãos, forças, faculdades espirituais que só Deus pode dar, e sem as quais todos os nossos esforços se perderiam em disparates e confusão. Sabemos que esses dons e virtudes infusas que nos vêm de Deus são três teologais: Fé, Esperança e Caridade, e quatro morais: prudência, justiça, força e temperança. Sabemos que a essas sete virtudes a Sagrada Doutrina acrescenta os sete Dons do Espírito Santo, e que a esses dons faz corresponder às bem-aventuranças e os frutos. E é com esse equipamento que lutaremos para chegar ao Reino de Deus, que já está entre nós germinalmente, e que desabrochará um dia na Glória. No capítulo XIII da 1ª Epístola aos Coríntios, São Paulo nos fala das três virtudes teologais nestes termos que serão repetidos pela Igreja até o fim do mundo: “Agora vemos por um espelho, em sinais e enigmas, mas depois veremos face a face; no presente conheço apenas parcialmente, mas um dia conhecerei como sou conhecido. Agora possuímos estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior é a caridade”. A fé e a esperança passarão, porque são virtudes de peregrino, mas a caridade não passará, porque já é, aqui e agora, o mesmo santo amor. Há, portanto, entre a caridade e as outras duas virtudes teologais uma essencial diferença de modo: enquanto aquelas passam por ser instrumentos da obscura peregrinação, a caridade é idêntica, homogênea e constante, no exílio e na pátria. Lá será mais perfeita e mais livre, mas será a continuação da mesma virtude que agora nos polariza a vida pela vontade de Deus. Há, porém, entre a Fé e a Esperança, ambas peregrinas, uma diferença na maneira de passar ou de transmutar-se. Toda a tradição católica ensina que a Fé é uma visão, um lumen fidei, é, seminalmente, o mesmo lumen gloriæ com que, no céu, veremos Deus face a face. A visão no céu é a mais refulgente das evidências, e por isso independe absolutamente do ato de confiança. Nesse sentido difere da Fé e até se pode dizer que se opõe ao que há de obscuro e enigmático nos sinais e no ato de confiança da Fé, mas as verdades de Deus, vistas pela fé em sinais e enigmas, ou vistos face a face, são as mesmas. E nisto pode-se dizer que algo da fé não passará. Ao contrário, é mais desconcertante e mais provocante, em sua descontinuidade, o ato de esperança em relação à beatitude dos bens finalmente possuídos em toda a plenitude. Enquanto o ato de fé, na sua obscuridade, consiste desde já numa antevisão, num lampejo do mesmo lumen gloriæ, o ato de esperança, ao contrário, se choca com todos os desejos de felicidade deste mundo. Os mais legítimos, os mais honestos desejos de felicidade, antes mesmo de se tornarem crispações obsessivas de alma humana, já contrariam a esperança teologal que só se nutre de renúncias. É verdade que o mesmo apóstolo nos disse que devemos viver alegres na esperança, mas logo acrescenta: e pacientes na tribulação. “Spe gaudentes: in tribulatione patientes”. (Rm 12, 12). É fácil dizer convencionalmente que o cristão deve ser alegre, mas essa alegria convencional que se propõe como atitude cristã antes de atendidas as primeiras exigências da santidade são um disfarce da alma, ou um jogo de palavras, que em nada se parece com a alegria na esperança ensinada pelo Apóstolo. Todos os autores espirituais da grande tradição católica sempre ensinaram que à virtude teologal da esperança se prende o dom do temor, e o dom da ciência com que a alma vê o nada das criaturas diante do Ser pleno de Deus; e a bem-aventurança que na mesma linha se põe é a da das

lágrimas. “Bem-aventurados os que choram”. Este é o enunciado que Nosso Senhor nos deixou da alegria na esperança. Felizes os que choram, sim, mas felizes realmente são os que choram na esperança. Porque, como em todas as coisas deste mundo, há lágrimas que vêm da carne do espírito da esperança. Por onde se vê que o alegrar-se na esperança traduz-se por chorar na esperança, e por dizer com a coragem dos santos: “muero porque no muero”. *** Insistimos neste ponto: das três virtudes teologais, a mais contrastante com os anseios naturais da vida humana, a mais transformadora de critérios e valores, é, sem dúvida, a peregrina virtude da Esperança, que Péguy e Brasilliach, dois poetas, dois heróis, que os mandarins da gauche catholique rejeitaram, viram com os traços de uma menina pobre, espécie de gata borralheira das virtudes teologais. No mundo moderno, a feroz avidez de bens terrestres, a polifórmica gulodice dos olhos, dos ouvidos, da boca e do sexo ainda procura uma forma de fé adulterada, ainda nos engana com uma hedionda caricatura da caridade, mas a divina Esperança é frontalmente rejeitada. Toda a crise do mundo católico secularizado, temporalizado, agachado, ávido de terra, de pó, de palha e de carne, é principalmente uma febre de desesperança. Os chamados progressistas querem aqui e agora o pagamento das promessas, e ameaçam levar à falência a Igreja, má pagadora neste mundo. Querem o resgate dos títulos de felicidade terrestre, e não o das almas. (07-10-1972)

A Igreja do Céu “Em mim reside toda a graça do caminho e da verdade, em mim toda a esperança da vida e da virtude. Sou como a roseira plantada à beira das águas”. Ofertório — Nossa Senhora do Rosário Vale a pena, nestes meses de outubro e novembro, meditar muitas vêzes na Comunhão dos Santos, e especialmente na intercessão daqueles que povoam a Igreja do Céu; e vale a pena consagrar uma especial atenção ao culto de veneração que devemos à Virgem Santíssima, de cujas mãos recebemos as graças de seu Filho para nossa salvação. Bem sabemos que os tempos são ingratos para esta forma de piedade, tão católica e tão comprovadamente boa. Quase devemos ter força de mártir se quisermos dizer alguma coisa sobre o nono artigo do Símbolo: “creio na Comunhão dos Santos”, e sobretudo se quisermos meditar aos pés de Nossa Senhora. Ai de nós!, o tempo em que vivemos gaba-se de ser comunitário em todos os sentidos, exceto neste que se refere à Comunhão dos Santos; e gaba-se de ser pacífico e fraterno em todos os sentidos, exceto neste que se refere à nossa Mãe. (Continue a ler) Será possível a vida católica com tal esquecimento? Será louvável a prática dos que desnudam as Igrejas sob o pretexto de que as excessivas imagens obstruíam o caminho da cruz? A essas duas perguntas a Igreja de ontem e hoje, a Igreja una e santa responde com uma enérgica negativa. Bem sabemos que não há nenhum intermediário, nenhuma criatura, anjo ou santo, de permeio entre nós e Deus no intrínseco processo de um ato de Fé, de Esperança e de Caridade. Nihil aliud quam veritas prima. Mas também sabemos que o condicionamento, o encaminhamento, a preparação e a preservação desses atos supõem todo um sistema de agasalhos que Deus mesmo inventou. Sem nada contribuírem, a não ser com os reflexos e ressonância da graça divina, os santos formam em torno de nós uma atmosfera de cordialidade sobrenatural, que nos socorre e nos ampara. Para nossos “olhos de coruja” Deus é invisível por ser luminoso demais; por isso lançou em sua santa Encarnação, uma ponte sobre o abismo que nos separava, mas essa mesma ponte, esse mesmo divino instrumento que é a humanidade do Verbo Encarnado, para atingir-nos com a humildade de nossa pequenez, fêz-se

pequenino e “nasceu de Maria Virgem”. Mais tarde, na suprema despedida da cruz, ouviremos a recomendação de infinita doçura e de conseqüência infinita: “Mulher, eis o teu filho”; e em seguida disse ao discípulo: eis a tua Mãe”. E depois, na socialização de seu Corpo Místico, renasce Jesus em todos os que crêem e dão o seu testemunho. E há certa semelhança entre o nascimento em Maria Virgem e o nascimento em nós. Não temos, como pessoa, a pureza da Mãe de Deus, não tivemos a preservação do pecado original, mas todos temos em nós, na fina ponta de nossa alma, no recesso profundo de nosso espírito, um espelho imaculado, capaz de receber a virtude que nos capacita a depois receber o próprio Deus. O beato Grignon de Monfort, lembrando Santo Tomás, que diz ver a inteligência, em seu último e puro reduto, inacessível ao erro, lembra também que Maria, para nós, é pessoa e princípio. Poderíamos acrescentar também figura. O que dissemos acima vale para mostrar o estilo de Deus em nossa vocação sobrenatural: assim como preservou na humanidade uma pessoa intacta com que pudesse descer até nossa miséria, assim também se valerá da inocência marial do reduto profundo de nosso ser. Mas não é somente por essa analogia de princípios e figuras que Jesus nos vem por Maria. Por outra via se torna pessoalmente nossa Mãe, a partir da maternidade divina: Mater Dei, Mater Divinae Gratiae, Mater Misericordiae e, portanto, Mater Nostra. E por essa via chegamos a entrever as conexões do mistério de Maria que desabrocha na sua função de medianeira universal das graças do Cristo. “Tal é a vontade de Deus que tudo tenhamos por Maria”, dizia-nos S. Bernardo, e confirmava mais tarde Leão XIII. Tornamos a bem frisar que a união de cada alma com Deus não comporta nenhum intermediário criado; mas o processo de encaminhamento tem todo um jogo delicado de instrumentalidade imprescindível e por Deus mesmo organizado para nossa salvação. Assim como não há salvação fora da Igreja, no sentido que concerne à qualificação da alma pela graça santificante, também não há salvação que não tenha vindo por Maria, já históricamente, já no dinamismo da Comunhão dos Santos. Podemos dizer que Deus precisa dos santos, e especialmente de Maria, porque nessas criaturas temos uma espécie de misericórdia que não podemos ter no próprio Deus: uma misericórdia que, além de vir do amor, vem da própria miséria. Por puríssima que seja, Maria é criatura, e como tal é miserável. E é por isto – ouso dizer – que Deus precisa de Maria e dos santos para o exercício de sua misericórdia e para o contato salvador com nossa miséria. Todos nós sabemos que Deus e o pecado são incompatíveis; mas também sabemos que as mais belas tradições de nossa história revelam um como que privilégio dos pecadores, ou uma inconcebível espécie de atração de Deus por nossa miséria. Quase diríamos que a marca do cristianismo é a de uma atrevida predileção pelo pecador. Como pode ser isto? Os evangelhos contam o amor de Jesus por Madalena, e nos apresentam a parábola do publicano. Jesus veio salvar “o que estava perdido”. Sua Igreja é uma casa-de-saúde. Seus prediletos são os pecadores, ou ao menos os que se reconhecem como tais. Na cruz, o primeiro santo canonizado é o bom ladrão. E daí por diante abundam as histórias em que os grandes pecadores interessam instantaneamente às almas de eleição. Santa Catarina correu a visitar o jovem Tuldo em seu cárcere, e recebeu sua cabeça decepada e seu sangue, gritando: “Io voglio!” Santa Teresinha do Menino Jesus teve seu primeiro protegido num assassino que mereceu pena de morte: por intercessão de suas fervorosas orações o pobre monstro humano, a dois passos do cadafalso, voltou-se bruscamente e beijou com lágrimas a cruz que um padre lhe oferecia. Em todas essas histórias tem especial relevo a intercessão de Maria, refúgio dos pecadores. Henri Lasserre, miraculado de Lourdes, conta-nos uma história ocorrida com Bernadete. Estando já divulgada a notícia dos milagres da gruta, antes de Bernadete entrar no convento, era todos os dias visitado pelos

curiosos o cachot onde morava a pobre família Soubirous. Os visitantes pediam à menina que lhes contasse a história das aparições e ela repetia tudo, com voz monótona, como se contasse uma história alheia. Uma tarde apareceu à porta do cachot, junto a Bernadete que remendava meias, um senhor bem vestido que chegara de Paris. Era um intelectual que levava vida dissipada, mas sentira um interesse vivo pela história da menina que vira Nossa Senhora. Põe-se a interrogar a menina, que pela milésima vez reproduz sua narração, e diz-lhe que não acredita em sua história: – Diz então o senhor que sou mentirosa? – Não, isto não! Digo que te enganas... Olhe, eu gostaria que me mostrasses como é que a Dama te saudava. Bernadete prestou-se ao jogo e fez as saudações que a Dama Lhe fizera. – Eu queria agora que me fizesses um sorriso da Dama. – Ah!, isto eu não posso, porque é coisa do céu. O visitante ficou silencioso algum tempo, e afinal murmurou mais para si mesmo: – É pena, eu querería ver. Sabes? Eu sou um pecador... Bernadete então voltou-se vivamente e lhe disse: – Ah! Já que o senhor é um pecador, vou fazer-lhe um sorriso Dama. E o pobre pecador, vendo diante de si um clarão do céu, saiu procurar a Igreja e o confessor. Dir-se-ia que “pecador” era um título de recomendação para Aquela que tem a função maternal de abrigar os que, logo depois, apresenta ao seu Filho como filho também. Mater Dei, Mater Divinae Gratiae, Mater Misericordiae, Mater Nostra. (Publicado na Revista Permanência com o pseudônimo de Ir. Paulus)

A ordem natural e a ordem sobrenatural

Nossa vida transcorrendo nas duas ordens, natural e sobrenatural, interpenetradas em cada instante, e sendo elas como vimos no artigo anterior, tão contrastadamente constituídas, é de se esperar que freqüentemente surjam situações conflitantes em que a alma religiosa pode esquecer a fulgurante e maravilhosa descoberta da infinita prevalência da ordem da salvação e da graça sobre a ordem natural das atividades humanas. Meu Deus, como poderemos contestar a superioridade da vida eterna e da eterna felicidade na luz da glória e na terra dos ressuscitados, com os peregrinos e efêmeros sucessos deste sopro que ontem nos tirou do nada e amanhã nos deixará no mesmo pó de onde viemos? Posto o problema nesses termos — e as almas de eleição são marcadas pela heróica opção que assim coloca a problemática da vida — nada mais teríamos a acrescentar. O critério da alma religiosa deve ser o critério dos santos, o critério do Nosso Senhor Jesus Cristo. Além do natural anseio da alma humana que pede uma ascensão e uma superação que nenhuma fortuna do século pode satisfazer, a mente cristã encontra no lado divino da ordem sobrenatural e especialmente no mistério divino-humano da Encarnação e da Paixão razoes de sobra para afirmar a confiança, a prevalência infinita da ordem sobrenatural; e quanto mais trágico e contrastante é o abismo cavado entre as atividades naturais do homem e a adorável brutalidade da crucificação de um Deus, mais impetuoso será nosso gritos de fé: — Quanto a nós convém gloriarmo-nos na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. E se acaso, Deus não permita! num só momento duvidarmos da absoluta prevalência da ordem sobrenatural sobre todos os interesses e valores da vida na ordem das naturais atividades, nesse momento estaremos desprezando o Sangue de nosso Salvador, ou estaremos a desconfiar vagamente da autenticidade de todo o Cristianismo, ou até mesmo estaremos a imaginar que há na dramaturgia da Salvação uma mancada do bom Deus que seria, decididamente, “un Dieu maladroit” inclinado a certo maniqueísmo larvado... Deus meu!... Das profundezas do abismo clamamos. Retomando o sangue frio, e reatando o itinerário de nossas considerações, reafirmamos a absoluta e infinita prevalência da ordem da salvação e da graça, já sabendo que as conseqüências práticas deste fulgurante artigo de fé estão cheias de pedras de tropeço e de situações conflitantes em que o mundo nos aparece erigido em termos de inimizade. Para bem conduzir as considerações em torno do entrelaçamento das duas “criações” de Deus, lembremos que o homem é naturalmente sociável, naturalmente político: em razão de nossa natural indigência de um ser animado por um espírito mas condicionado em tudo por um corpo, o individuo humano, para realizar sua integridade de pessoa precisa dos outros. Precisa dos outros como mendigo que não sabe por si mesmo se bastar, mas também precisa dos outros em razão de sua riqueza espiritual e de seu tropismo de generosidade. Na ordem natural o homem vive em grupos de critério natural, família, nação, continente civilizacionais; na ordem sobrenatural o mesmo excessivo e exclusivo Jesus quis que seus seguidores vivessem em Igreja. E aqui se arma novamente o vivo contraste entre as duas ordens, agora posto em termos de Igreja e Cidade, onde as acidentais opiniões e acidentais conflitos serão mais do que nunca cortantes e pontiagudos. A organização da ordem da graça e da salvação em Igreja é uma característica essencial do plano de Deus para a nossa redenção e para a restauração da Ordem ferida pelo pecado original. Se é sempre

de Deus que nos vêm os dons que salvam, as virtudes que santificam e a doutrina de sabedoria revelada que nos orienta no caminho de volta à casa do Pai, quis Ele mesmo que sua Igreja sem se tornar uma “intermediária” que pretendesse usurpar as funções que não podem ser exercidas senão pela causa primeira — se tornasse conditio-sine-qua-non na obra da salvação. “Fora da Igreja não há salvação” diz-nos Deus pela voz da própria Igreja. E aqui — sem quebra da essencial unidade da ordem sobrenatural — desdobram-se os aspectos essenciais da Igreja (e de vários modos o desdobraremos): o primeiro é o que se observa entre as duas grandes funções da Igreja: a) antes de tudo ela tem a missão de guardar o depósito sagrado, e a de guardar sua ovelhas. Repitamos os verbos essenciais da missão eclesial: guardar, conservar; guardarse idêntica a si mesmo para manter idêntica e invariável a obra de Deus, a obra de Cristo, o sangue e o ensinamento de Jesus; b) a segunda função da Igreja é missionária: “Ide, portanto, e fazei discípulos todos os povos batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto eu vos mandei”. (Mt. 28, 19-20). E aqui, mais uma vez, devemos firmar uma hierarquia de valores, e uma forte prevalência: a da primeira sobre a segunda. No critério do mundo e das coisas temporais prevaleceria a função missionária, dinâmica, sobre a função guardadora estática; mas os critérios da ordem sobrenatural mais uma vez aqui se opõem aos critérios da ordem temporal: nas coisas da ordem da salvação e da graça, por sua divina elevação, o imóvel prevalece sobre o móvel, o estático sobre o dinâmico e assim, a guarda do depósito sagrado deve absolutamente prevalecer sobre a expansão da Boa Nova, mesmo porque, se o Depósito não fosse mantido em sua perpétua Virgindade, o que seria expandido no mundo em vez da Boa Nova seria a última invenção de algum iluminado. O Globo — 13/8/1977

A visibilidade da Igreja 1. Vamos hoje nos deter na palavra visível de nossa primeira e aproximada definição da Igreja, isto é, vamos explorar mais em profundidade o conteúdo daquele termo, como se nele aplicássemos uma lente que não só amplia como também revela a riqueza de detalhes, de conseqüências e de aplicações que nos havia escapado em nossa primeira aproximação. Antes de mais nada, convém notar que o termo visível é aqui usado com a significação mais ampla de sensível, isto é, daquilo que nos é acessível pelos sentidos. Como a visão é o mais nobre dos sentidos, nós usamos a palavra visível para indicar o que se vê, o que se ouve, e de um modo geral toda a ordem do sensível. Dizendo que a Igreja é visível nós queremos significar que ela tem para nós, desde a cruz que vemos no alto da torre até o "Eu te absolvo..." que ouvimos no confessionário, a nitidez corpórea da pedra ou do pão. Gravemos pois esse mais amplo sentido que damos do vocábulo, e empreendamos a sua progressiva sondagem. 2. Logo no primeiro exame do conceito nós encontramos a óbvia visibilidade que nós mesmos damos à Igreja pelo fato de sermos seus membros. A Igreja é visível em nós, de uma visibilidade humana. Em nós, e nas obras de nossas mãos; em nossos rostos, e nas torres das catedrais; em tudo isto, em suma, que se vê de longe, e que fere a atenção dos mais desatentos, a Igreja é visível de uma primeira e ainda superficial visibilidade. Parece pouca coisa esse primeiro e tão fácil exame de conceito, mas devemos notar que é já neste nível da significação que se inicia o ataque à Igreja de Deus. Os pseudo-super-espirituais começam por solapar esse primeiro contato da Igreja com a humanidade do homem. Quereriam uma Igreja mais despegada da terra, e menos carregada da miséria de seus filhos. Nós vimos, nas lições anteriores, que entre os membros atuais do Corpo Místico contam-se justos e pecadores. Pecadores de pecado mortal, desde que não cheguem à heresia, à excomunhão e à apostasia, são ainda membros atuais do Cristo, membros mortos mas ainda presos à videira. São inúmeras as passagens das Escrituras em que está assinalado este caráter misto, transitório, peregrino da Igreja. A parábola do joio e do trigo (Mt 3, 2); o banquete nupcial em que se sentam bons e maus antes da chegada do Senhor (Mt 32, 2); as dez virgens que esperam, cinco prudentes e cinco loucas (Mt 25, 1); e tantas outras passagens nos falam do Reino, da Igreja, como de um regime de espera em que, por assim dizer, a paciência do Cristo se estica por séculos e séculos, até o dia da grande e decisiva separação. Se a Igreja fosse constituída somente de membros perfeitos, santos, justos (em estado de graça) como pretendem os pseudo-super-espirituais, nós não saberíamos encontrá-la, pois só Deus sabe quem está em pecado. Ela seria invisível. Ou seria enganadora, a nos induzir perfidamente em erro, em vez de nos oferecer a garantia de uma realidade acessível aos nossos passos. Nós já dissemos que a Igreja é o Cristo continuado; já mostramos que sua função instrumental é um prolongamento da instrumentalidade salvadora da humanidade de Cristo; e nessa perspectiva nós diríamos agora que a Igreja invisível dos super-espirituais seria uma magnífica inutilidade. Antes da Reforma já os novacianos e donatistas queriam que os pecadores não pertencessem à Igreja, mas foram sempre refutados pelos detentores da tradição. Dizia assim Santo Agostinho: "Home sum in area Christi: palea, si malus; granum, si bonus"1. São Jerônimo também comparava a Igreja à Arca de Noé, onde se misturavam o lobo e o cordeiro2. Será preciso recordar que a Igreja tem partes invisíveis? Sua alma é invisível. A Igreja triunfante é também invisível. Mas tomada no seu todo, em sua realidade completa, basta que uma parte seja visível para que se possa dizer que é visível o todo, embora não totalmente visível. No homem também a alma, considerada em separado, é invisível; mas o homem todo é visível, visível pelo seu corpo, sem dúvida, mas visível no seu todo vivo e animado.

3. Mas não é somente dessa primeira visibilidade, encontrada nos seus membros, que nós dizemos ser visível a Igreja. É do Homem-Deus, do Verbo Encarnado, que a Igreja tira a sua feição, seus contornos, sua vida, e sua natureza divino-humana; e é dessa visibilidade enquanto divina que devemos nos ocupar agora. Essa é propriamente a visibilidade essencial da Igreja, e é dessa marca essencial, sinal de realidades divinas, que nos fala a encíclica de Pio XII, Mystici Corporis Christi3. E é também a esse caráter de sinal visível de coisas invisíveis que se refere o Concílio do Vaticano quando ensina que a Igreja é permanentemente um milagre. Ninguém pretende, evidentemente, que o sobrenatural, que especifica essa sociedade fundada por Cristo, seja em si mesmo visível. O que dizemos todos, em obediência ao magistério, é que a invisível realidade divina fere os nossos olhos e os nossos ouvidos através da Igreja. Dissemos que a Igreja segue o estilo da Encarnação. A rigor, pensando numa Igreja antes da Igreja, na expressão do Pe. Sertillange4, nós poderíamos dizer que Deus, antes da Encarnação, fiel ao seu plano polarizado na pessoa do Cristo Jesus, já se manifestara aos homens de um modo sensível. A voz dos profetas, por exemplo, já era um sinal sensível, já era um prenúncio da Igreja do Verbo Encarnado; já era, na obscuridade da expectativa, um rumor de preparativos e um albor de madrugada. Mas o característico desses tempos de advento, que a Igreja rememora hoje calando a música e paramentando-se com a cor das sombras, era sem dúvida uma certa obscuridade. A voz do profeta ecoava na noite dos caminhos — "Ouve! Ouve, Israel!" — buscando mais o ouvido do que a visão. Os sinais de Deus eram velados, abafados, escondidos. Vejam agora o que acontece no mundo quando nasce em Belém o filho de Maria; e observem bem o que dizem os pastores, quando ouviram dos anjos a boa nova: "Vamos até Belém, e vejamos o que sucedeu e que o Senhor nos mostrou. E foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o menino deitado numa manjedoura. E vendo isto compreenderam as palavras que lhes tinham dito sobre o menino. E todos os que ouviram se admiraram do que lhes diziam os pastores. Maria, entretanto, guardava essas palavras, meditando-as no seu coração. E os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus, por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme ao que lhes tinha sido anunciado." (Lc 2, 15, 20) Notem primeiro a desembaraçada decisão dos pastores: "Vamos até Belém". Eles têm um endereço, um lugar aonde ir, como nós hoje temos a direção, o itinerário de nossa paróquia. Eles já têm o caminho certo, o lugar preciso, a solução exata para os pés, antes de tê-la completa para o coração. Creio que foi um personagem de Dostoievski que dizia em certa altura de suas aflições: "Haverá para o homem coisa pior do que não ter aonde ir". E tinha razão. O drama do mundo é o da perda do antigo endereço: Mas os pastores o tinham. Vamos a Belém. E vejamos. E vendo, compreenderam. E compreendendo, voltaram glorificando e louvando. Na liturgia de Natal, especialmente na 2a. Missa que acompanha o amanhecer, a palavra luz e seus derivados todos tomam conta do texto. O Natal é uma iluminação do mundo. A Encarnação traz para o mundo um novo regime de mais luz, como queria Goethe no seu leito de morte. Ouçam por exemplo o velho Simeão, quando teve a ventura de segurar nos seus cansados braços o menino Jesus: "Agora, Senhor, despedi em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra; porque os meus olhos viram a salvação..." Pensemos agora na cruz espetada no alto do monte. A luz está no seu elevado candeeiro. A cidade santa se estabelece no alto do monte, porque os seus cidadãos são a luz do mundo. "Vós sois a luz do mundo... e assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está no céu". (Mt 5, 14)

Em Pentecostes a Igreja nascida da Cruz manifesta seu maior esplendor, e recebe do Espírito um decisivo impulso para sua missão. Sopra o vento, descem línguas de fogo, e as vozes dos apóstolos se multiplicam pelos diversos idiomas, tudo mostrando, com profusão, a força visível do invisível Consolador. A Igreja cresce, diferencia-se, hierarquiza-se, realizando nessa diversidade impetuosa o desdobramento das graças que estavam em plenitude na pessoa única do Cristo. Aplica-se aqui um grande princípio: a plenitude de perfeição, que em Deus se encontra na suma simplicidade, nas criaturas se manifesta na diversidade. A unidade pessoal do Cristo corresponde agora na Igreja uma diversidade de pessoas, de grupos, de ordens religiosas, paróquias, associações, tudo isso vinculado numa unidade assegurada pelo Espírito de Cristo. Ao contrário do que diziam os autores super-espirituais que chegaram a perturbar a grande Teresa d'Ávila, e que pretendiam ver na Ascensão de Cristo, e na descida do Espírito, uma manobra de Deus para nos livrar da visibilidade do seu Corpo, nós podemos dizer sem receio que Nosso Senhor se tornou ainda mais visível no seu Corpo Místico espalhado pelo mundo. A Igreja é de fato o alastramento universal do Salvador. O sangue derramado é agora estendido, e tinge o mundo inteiro numa prodigiosa iluminura. E a Igreja cresce, como cresce o dia, de "claridade em claridade". 4. Os protestantes, sob esse ponto de vista, cometeram o erro de quem se obstinasse a andar às apalpadelas numa sala sombria por não ter percebido que o sol já nasceu. Persistem na obscuridade adventista, num sinistro equívoco, e dizem de nós que somos idólatras, porque usamos estátuas, estampas, vitrais e iluminuras, como se o uso de imagens implicasse necessariamente a sua adoração. Eles não sabem, ao que parece, que o Salvador trouxe a luz do mundo, e a unção dos olhos e dos ouvidos. E chegam a esquecer apesar do seu propósito de remontar às fontes — que é sempre suspeito na vida do cristianismo — que os primeiros cristãos usaram símbolos, alegorias, pinturas, mosaicos, sem que passasse pelo espírito de ninguém que estivessem adorando objetos. Eles sabiam bem o que era e o que não era idolatria, porque faziam com o próprio sangue a teológica distinção. Mas essa idéia de super-espiritualizar (que vem sempre acompanhada, inevitavelmente, de uma atitude contrária de super-animalidade, quando se relaxa a artificial tensão) não foram só os protestantes que tiveram. Falei há pouco de Santa Teresa d'Ávila. No capítulo XXII de sua história está relatada a pista falsa a que foi levada por uns iluminados doutores. Diziam eles que num certo ponto do progresso espiritual é preciso deixar para trás tudo o que é visível e corpóreo. É preciso — diziam — deixar para trás, superada, a própria humanidade de Cristo, para considerar somente a sua divindade. Descobriu a Santa a perfídia de tal doutrina, e lá nos conta que sente um horror todas as vezes que se lembra de tão funesta experiência. E nós, que estamos por demais advertidos, saibamos que nunca, em grau nenhum da vida espiritual, por motivo algum, devemos acolher tal idéia. Se nós deixarmos para trás, como etapa vencida, a humanidade do Cristo, ou a visibilidade da Igreja, é a nossa própria salvação que estamos deixando para trás. 5. Será preciso, neste estudo de hoje, advertir do erro contrário? Correndo o risco de parecer que estamos fazendo uma antítese, diremos que o erro contrário consiste na supervalorização do visível, a qual é uma das características do mundo moderno. No caso que aqui nos interessa, e que se relaciona com o mistério da Igreja, essa supervalorização consistiria em esquecer que o visível é apenas um sinal do invisível; e conseqüentemente em depreciar a vida interior chamando-a de subjetivismo individualista. Tais extremidades nos levariam a sermos um povo de gesticulantes. É claro que nós não podemos, sem radical infidelidade ao magistério da Igreja, chegar a tais extremos, mas podemos perfeitamente, como no caso inverso aconteceu com uma grande santa, cair na

inclinação, na tendência, que sem chegar à heresia já seria um grande desperdício de valores espirituais. O equilíbrio que a Igreja nos propõe é uma exaltação dos dois elementos que não podem ser tomados isoladamente; mas aí mesmo, nessa mesma exaltação, convém firmar que o primado cabe sempre ao espiritual, significado pelo sensível. 6. Todos nós sabemos que infelizmente há muitas pessoas que só prezam as aparências. Vivem para a roupa, para o automóvel, para o trem de vida exterior, numa constante preocupação do juízo e da opinião dos outros. Vivem como se a alma estivesse na pele; ou como se dependesse do olhar dos outros a própria subsistência. Vivem em suma só para o mundo no sentido que tem essa palavra quando dizemos que o mundo é nosso inimigo. Falaremos mais tarde desse fenômeno, e da importância que tem ele para a nossa salvação. No momento queremos apenas assinalar a reação que essa repulsiva mentalidade produz em nós: o desprezo pelas aparências. Vítimas de tal impulso nós temos freqüentemente o desejo de menosprezar o juízo e a opinião alheia, reduzindo todos os critérios ao do foro íntimo e da perfeita sinceridade. Se por exemplo eu sou visto em companhia suspeita e em equívoca situação, que me importa o que dizem os outros, uma vez que tenho em paz a consciência? Estará certa essa atitude? Estará ela afinada com a feição de nossa Igreja? Em primeiro lugar, colocando o problema no plano da moral, nós podemos ver facilmente que essa maneira de pensar ofende a justiça, e destrói a sociabilidade. Não é possível viver em sociedade com esse critério exclusivo do foro íntimo. E o que ofende a sociabilidade ofende a própria natureza humana. Não é aos outros que nós molestamos com esse culto da orgulhosa sinceridade, é a nós mesmos. Seria fácil demonstrar que tal tipo de sinceridade, que não cresce no sentido da humildade e da justiça, transforma-se pouco a pouco na pior das hipocrisias: a hipocrisia do sujeito que é convictamente e sinceramente hipócrita por ter descoberto, no seu foro íntimo, esse direito à hipocrisia. Mas não é essa a posição do problema que hoje nos interessa, apesar de sua importância. O que nos interessa agora é saber se tal atitude afina com o sentimento da Igreja. Ora, pelo que já vimos até agora, e pelo que ainda vamos dizer, a nossa Igreja nos ensina a prezar as aparências. Para pertencer plenamente a essa divina sociedade não nos basta ter a fé no coração, precisamos tê-la também na boca, como nos ensina o apóstolo. Não é pois nesse sentido de deixar para trás as aparências que nós devemos progredir, e sim no sentido de manter sempre harmoniosa a hierarquia de nossos critérios. Não é preciso desprezar o corpo para servir a alma. Se a rigorosa ascese de muitos de nossos santos nos induz à falsa idéia de uma repugnância pelas coisas do corpo, é justamente — vejam o paradoxo! — porque estamos apreciando esse fenômeno de ascese mais pela aparência do que pela sua interioridade. O asceta às vezes maltrata a sua parte visível, mas só é verdadeiramente cristão esse ascetismo quando o rigor vem dum amor e d um amor que inclusive se interessa pelo sensível. A esse respeito lembro um exemplo que já lhes dei. Suponhamos que um habitante de Marte (ou então um distraído filósofo) caísse por acaso numa estância do Far-West em dias de pionagem e de alegres cavalhadas. Veria os corajosos moços com esporas e chicotes a maltratar os cavalos. E concluiria apressadamente o seguinte: essa gente não gosta de cavalo. Ora, ele tinha caído justamente no lugar em que mais se gosta de cavalo! O problema não cabe todo, evidentemente, nessa pequena digressão. Voltaremos a ele um dia, se Deus quiser. No momento basta-nos consolidar essa idéia de que a Igreja preza as aparências, e nos ensina insistentemente a respeitar, a estimar os sinais visíveis, porque é nessa linha, e com esse estilo, que ela nos traz a nossa invisível salvação.

7. E assim sendo, já não admira que o cristianismo tenha trazido, com a estima do visível, o esplendor do visível que é a beleza. A arte cristã, realmente, vitalmente cristã, é a conseqüência lógica da visibilidade da Igreja. Mas aqui devemos ponderar um pouco, e fazer uma distinção que me parece necessária. Na arte-arte, para não dizer arte pura, o objeto tem caráter de fim. A operação do artista termina no objeto, que é em si mesmo completo e autônomo. O fazer artístico é mesmo uma das operações em que o homem mais se sente satisfeito por causa da proximidade e da inteireza do fim atingido. Na arte cristã nós distinguiríamos entre arte cristã, enquanto culturalmente cristã; e arte cristã, enquanto religiosa. A primeira pertence mais à cristandade do que à Igreja. A segunda é a arte propriamente religiosa, e é essa que está diretamente ligada à visibilidade da Igreja. Ora, se ela é um esplendor da visibilidade da Igreja, então ela participa também do caráter de instrumentalidade. Já não termina no objeto. Já não é por si mesmo autônomo e completo o seu objeto. Tal arte, religiosa, eclesiástica, será necessariamente sub-alternada, ancilar, e portanto deverá ser usada de um modo mais diáfano, humilde, diria mesmo subalterno, sem que isso signifique uma redução do seu esplendor. Nesse sentido, uma vez que a visibilidade da Igreja tem o caráter de sinal, nós não podemos julgar com o mesmo critério cultural os objetos que se aproximam do culto, sobretudo quando se cava um abismo entre a civilização e a Igreja, como é infelizmente o nosso caso atual. Uma Igreja feita por um grande artista, se aos fiéis não parece Igreja não é uma boa obra de arte religiosa, não importando agora verificar de quem é a culpa de tal divórcio. Se ele existe, entre a cultura e a arte religiosa, é preciso corrigi-lo; mas antes disso não se pode impor aos fiéis desprevenidos uma conquista audaciosa da arte leiga. O erro oposto que se pode cometer nesse problema da arte religiosa é o de exaltar, no sentido de um simbolismo exagerado, o caráter instrumental do objeto. Pretenderão trazer para fora, para a superfície do objeto, as realidade escondidas e significadas, o que se consegue é apenas uma arte esquelética e miserável. A solução do problema da arte propriamente religiosa está presa à solução do conflito que infelizmente existe entre o cristianismo e a cristandade de nossos tempos. 8. Depois dessas digressões, que fizemos para ilustrar com aplicações a idéia da visibilidade da Igreja, voltemos ao centro da questão. Perguntamos agora: como poderia a Igreja de Cristo ensinar e governar para santificar, se fosse invisível? A resposta protestante é muito fácil: nós não precisamos de um magistério vivo; nem de um chefe visível. O resultado dessa tentativa, que consideraríamos cômico, se não tivesse sido trágico, foi o que facilmente se pode prever. A doutrina, a jóia que o Cristo confiou à sua Esposa, será entregue ao chamado livre exame; a fé é subordinada à opinião. Quanto ao governo, como sempre é preciso algum, incumbem-se dele os príncipes do mundo; e temos então um césar como papa. Analisemos aqui um pouco mais o problema da doutrina. Temos um depósito, um dado revelado, que para nós é constituído pela Tradição e pelas Escrituras. Agora consideremos a situação de cada um de nós em relação a esse depósito. Fomos nós que recebemos a revelação de modo imediato? Evidentemente não. Há então, de fato, um intervalo entre nós e o tesouro sobrenatural. Dizemos que a Revelação para nós é mediata, e como tal exige um condicionamento. Uma coisa é o objeto da fé considerado em si mesmo; e outro é a fé em nós. Em si mesmo, o objeto da fé é a revelação divina enquanto puramente divina; e nenhuma composição de criatura poderá entrar

no essencial da fé divina. Nós já abordamos esse problema quando analisamos o primeiro vocábulo do Símbolo dos Apóstolos: "Creio". Convém voltar ao problema. Nós vimos que o primeiro enunciado de nosso Credo seria assim: "Eu creio em ............ porque Deus revelou". Os diversos artigos são o corpo do Credo; mas a alma é a fé na revelação divina. Considerada assim a fé na sua essência, ela é puramente divina e sem nenhuma interposição. "Nihil aliud quam Veritas Prima" diz-nos Santo Tomás. "No objeto formal, no essencial da fé, não pode entrar nada de criado, nenhuma composição de criatura, nada por conseguinte que venha dos anjos, nem dos homens, nem dos patriarcas, dos profetas, dos apóstolos, nem mesmo da Igreja"5. Quando porém se encara o problema da fé em nós, uma vez que não existe revelação imediata para cada um, torna-se mister um intermediário que, sem entrar propriamente na constituição formal do objeto da fé, é para nós uma condição sine qua non. E esse é o papel do magistério vivo da Igreja. E é por isso que agora nós dizemos assim: "Creio em ........... porque Deus revelou e porque a Santa Madre Igreja ensina". Sendo que no primeiro porque está o formal (o essencial) da fé; e no segundo a condição sine qua non. Vamos mais tarde abordar com mais detalhes o problema do magistério vivo e infalível da Igreja. No momento basta-nos sentir vivamente a necessidade do organismo protetor e distribuidor da palavra de Deus; e basta-nos compreender quão absurda é a idéia de entregar o depósito à pura razão humana, ou pretende que cada um de nós tenha uma especial inspiração que seria equivalente a uma revelação imediata para cada um. Mas o que tem isso a ver com visibilidade? O bom senso logo responde: se existe um zeloso e assistido magistério vivo, incumbido da conservação e da distribuição da doutrina, é evidente que eu preciso conhecer o endereço desse magistério; porque se me enganar no endereço engano-me na doutrina. É preciso ter a nítida confiança dos pastores que disseram: "Vamos a Belém". O grande princípio de economia de causas é posto em cheque, desvairadamente, quando se pretende substituir uma organização, uma sociedade visível e hierárquica, por uma profusão anárquica de revelações individuais. E sobretudo — já que estamos agora falando em tom defensivo e polêmico — o que nos choca na atitude protestante é o seu esquisito modo de estimar a Bíblia. Nenhum de nós que escreve gostaria de sofrer o tratamento a que o protestante submete o Espírito Santo. Nenhum de nós se alegra de ser livremente interpretado; e podemos até dizer que o nosso mais acabrunhante sentimento vem do elogio equivocado. André Gide disse uma vez a um admirador apressado que, por favor, não o compreendesse tão facilmente. Pois bem, o Deus ciumento de sua identidade, que martela em nossos ouvidos a sua terrível definição, "Eu sou aquele que sou", e que nos recomenda insistentemente que guardemos a doutrina, é tratado como um acomodado personagem que nos dissesse com bonomia: Aqui está a minha revelação, estejam a gosto, e façam dela o que quiserem. 9. Os teólogos comparam o magistério da Igreja, como condição necessária da nossa fé, ao papel dos sentidos nas operações da inteligência. Não é com a vista e com o ouvido que o homem conhece e é capaz de apreender as realidades espirituais; mas é pela vista e pelos sentidos que o homem realiza o seu contato com o ser. Pois bem, esse condicionamento dos sentidos, necessário à inteligência humana por causa de nossa natureza dual, reaparece no plano elevado das coisas da fé. A visbilidade da Igreja, continuação da visibilidade do Verbo Encarnado, é a parte estendida entre a graça e a natureza; e quem a recusa, em termos de um irracionalismo selvagem como o de Lutero, que queria relegar a razão para as latrinas, é um inimigo do homem que pretende ser assim maior amigo de Deus. Vejam pois a importância desses problemas; e aprendamos a ver, ou a pressentir ao menos a riqueza de nexos, a amplitude de ressonâncias escondidas naquela pequenina palavra visível que se destaca de nossa pobre definição, e que agora se abre diante de nós com profundidades de abismos.

10. Mas agora perguntemos, e ainda com mais ênfase: como poderia a Igreja nos santificar, um por um, se nós não possuíssemos o seu endereço? Os pastores sabiam onde estava Belém. Nós outros sabemos onde está a nossa Igreja. Muito teremos a dizer dessa função última da Igreja, a nossa santificação, a nossa incorporação em Cristo; frisemos agora o papel da visibilidade da Igreja nesse último e decisivo encontro. Já dissemos diversas vezes que nós sabemos onde está a nossa Igreja. É bom que seja visível de longe o campanário, que o sino toque, que a porta seja bem indicada por aquelas mansas sentinelas que nos estendem a mão. É bom que as velas estejam acesas; que as imagens nos nichos nos digam que é ali mesmo a casa de nossa longa família, que o padre e o bispo se reconheçam por suas vestes e insígnias. Mas o melhor da visibilidade da Igreja está guardado para o último passo de nossa aproximação. Nos sacramentos nós temos a santa visibilidade do Cristo entre nós, continuado, disperso, esticado, distribuído. O nome técnico do sacramento é sinal sensível. Sensível porque mostra, deixando velada a realidade última, e realizando assim o duplo objetivo de nos ajudar e de nos dar uma oportunidade para o mérito da fé. Aqui, junto ao sacramento, o binômio visível-invisível, que encerra o grande mistério da Igreja, ganha um realce inaudito. A fé, que por sua própria natureza é obscura, ganha uma transluminosa obscuridade, a luz tenebrosa de que nos fala São João da Cruz. Permanece o mistério da luz escondida, mas ao menos já sabemos onde está o ponto de apoio da divina centelha. Vamos pois a Belém, e vejamos. Vamos e adoremos. Ali está, no santo sacramento do altar, o meu Deus, o meu Salvador! O olhar se demora na pequena luz distante e vazia. Ali está, oferecido, o meu Deus, o meu Salvador! Por que se esconde Ele, o bem amado, naquela pequena brancura? Eu me perco em vãs cogitações, a imaginação se cansa, o olhar se perde, a atenção se desvia; mas a Igreja visível me cerca: as velas, as imagens, os paramentos, os rostos dos outros, os perfis, os dorsos dos outros, tudo, como um rico sistema de espelhos convergentes, tudo me torna a dizer que não me enganei, que é esta a casa luminosa, e que está ali no foco visível, na imagem real, o meu Deus e o meu Salvador. Tudo me cerca, me ampara, me encoraja; e tudo me diz que siga, que prossiga, que persiga essa imensa e milagrosa procissão que marcha, pelos séculos e séculos, de claridade em claridade. 11. E agora vejamos. Terminou o nosso dia. Cessaram por hoje as nossas atividades. Mais um dia. Mais uma boa coleção de atos truncados, decepções inesperadas, aflições persistentes. Mais um dia. Vamos nos despedir desse dia dizendo adeus a uma multidão de pequeninas esperanças pisadas, e dizendo até amanhã, até logo, às velhas e familiares aflições. Pedimos perdão a Deus, reconhecendo as nossas faltas, as de hoje e as de sempre; e depois de bater no peito, e passando para os acusativos, como diz Jacques Rivière, nós tomamos uma nova atitude de coragem e de quem quase tem um direito à misericórdia de Deus e à intercessão dos Santos. "A oração é a força do homem e a fraqueza de Deus" disse Santo Agostinho. Usemos pois a arma de Jesus Cristo, e exploremos a fundo o desarmamento de Deus. Mas observem agora a oração, entre outras, que a Igreja recomenda para a despedida do dia. É feita com as mesmas palavras do velho Simeão: "... despedi em paz o vosso servo... porque os meus olhos viram a Salvação". Como se explica essa aproximação? O velho Simeão viu de fato o Salvador. Mas nós? O que foi que nós vimos? Ou estará colocada em nossa boca uma palavra inadequada ao nosso coração? Nós vimos, realmente vimos no Corpo Místico de Cristo o que viu Simeão no pequeno corpo físico do menino Jesus. Nós vimos. Na pedra da Igreja, na porta, nos irmãos, nas imagens, no sino, na vela, no altar, na hóstia. Nós vimos. E podemos dizer, com o mesmo direito, de todo o coração, que nós vimos, na Santa Visibilidade, a nossa Salvação.

(A Ordem, Maio de 1951) BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA: A encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo, Pio XII Le Corps Mystique du Christ, Emili Mersch, S. J. O Corpo Místico, Pe. Dr. M. T. L. Penido. L'Eglise du Verbe Incarné, Mons. Charles Journet. Le Miracle de L'Eglise, Pe. Sertillanges. L'Eglise Naissante, Chanoine A. Tricot. Catecismos: Pe. Negromonte, Boulanger, Concílio de Trento, ou J. P. Junglas (Luz e Vida). 1.Contra Petil. III, 12. 2.Dial. cont. Lucifer n. 22. 3.Ver O Corpo Místico de Cristo, Pe. Penido, pg. 170 e seg. 4.Le Miracle de l'Eglise, Pe. Sertillange (trad. Ed. Vozes). 5.Fr. F. Marin-Sola, O.P., "L'Evolution homogene du Dogme Catholique", I, 216.

As aflições dos homens e as consolações de Deus [TRANSCRIÇÃO DE AULA DE 06/10/1975] Hoje, vou falar a propósito de um tema sobre o qual escrevi ultimamente em um artigo1, o problema da Santa Missa e do Pontificado — dois problemas interligados. Em torno da codificação da Missa pelo grande Papa Pio V, especialmente da Bula chamada Quo Primum, fez-se um grande ruído em toda a Europa recentemente, quando as vozes católicas se levantaram em sinal de justa indignação contra a mutilação feita na liturgia pelos padres conciliares — padres convocados para fazer um concílio que não houve. Não houve concílio porque eles quiseram que fosse diferente de todos os demais — e quem quiser fazer uma coisa na Igreja diferente de todas as outras, o melhor a fazer é arranjar de ser excomungado, porque aí fica logo diferente de tudo que é católico. Os bispos declararam, primeiro, que esse concílio seria diferente de todos os outros — o que já o desqualifica como católico — e segundo, que seria essencialmente pastoral, o que, no tempo, nós todos engolimos, mas hoje, com reflexão, vemos que é uma afirmação estranha, pois todos os concílios são pastorais, no sentido de que uma reunião de pastores tem de ser pastoral. Senão, que há de ser? No entanto, para se dizer que esse concílio era essencialmente, unicamente, pastoral, deformaram o sentido da palavra "pastoral". A teologia pastoral está fundamentada em um dos evangelhos mais trágicos, marcado pela intolerância da Santa Igreja em face do mal, e pela disposição do pastor em dar a vida em defesa do bem e em oposição ao mal: “Eu sou o Bom Pastor”. Quem, dentro da Igreja, não ama apaixonadamente o bem e não odeia apaixonadamente o mal, não é digno do Reino de Deus. Fica bem marcado o sinal católico: amar o bem e odiar o mal. E o pastor que não amar o bem e não odiar o mal, não é bom pastor, e o pastor que não estiver disposto a dar a vida por suas ovelhas também não é. Ora, a antiga definição de pastoral é aquele zelo pelo qual o pastor se dispõe a lutar pela sã doutrina, a lutar pelos costumes, a lutar pela fé até o sangue, a estar pronto para dar a vida pelas almas indefesas. Pastoral, portanto, era termo alto que significava a santa intransigência da Igreja, a disposição de dar até o sangue para não transigir. No entanto, não apenas mudaram-lhe o sentido desta palavra, mas passaram até a pronunciá-la de modo diferente. Houve, nisto que hoje ocorre na Igreja, vários fenômenos paralelos ligados à questão de linguagem: primeiro, uma modificação do léxico católico. Os católicos, no concílio e fora dele, passaram a usar palavras que não eram do léxico católico; segundo, uma semântica feita sem o menor respeito pelo significado das palavras, uma mudança do sentido das palavras; terceiro, uma mudança também fonética: neste concílio, a palavra “pastoral” tinha de ser dita, não sei por quê, assim: “PASTORAAAL!” Eu vi isto em minha casa diversas vezes, e não sabia por que o padre, cuja situação emocional não saberia exprimir sem ser em termos um pouco impróprios, por que ele fazia aquelas caretas para dizer esta palavra austera: Pastoral. “Ah! Tão pastoraaal!” Assim também, por exemplo, a palavra moço. Todo mundo sabe o que é um moço: o moço é essencialmente um homem que ainda não sabe direito o que ele é. Se hoje me entrevistassem sobre o que é o moço — eu perdi esta oportunidade, mas aproveitarei logo que houver a ocasião — eu diria como Euclides da Cunha, “o moço é antes de tudo uma besta!” Alguns, com o tempo e o correr dos dias, escaparão desta condição e se tornarão homens razoáveis e até ilustres, e até, quem sabe, admiráveis, mas a maioria perseverará — esta é a condição humana. Agora deixou de se dizer do moço o que o moço é, e passou a chamar-lhe de jovem, termo que nem na linguagem portuguesa nem na brasileira era usual. Em meu tempo dizia-se moço. Posso ter corrido outros riscos em minha vida, mas este jamais corri: jovem jamais fui, sobretudo “Jooovem!” Eu não diria, entretanto, que foi propriamente o concílio, especificamente, marcadamente, a causa disto tudo. O concílio já foi, por sua vez, um efeito de uma causa anterior. Veio de mais longe — estamos cansados de falar aqui — de um desvio grave que ocorreu quando começou o Humanismo a disputar

lugar ao Cristianismo. Nesse tempo começou a crise a trabalhar dentro da Igreja. Eu diria até que o Humanismo Renascentista é, em si, um fenômeno histórico mais significativo, mais grave, mais profundo e mais perverso do que a Reforma de Lutero. Só hoje sabemos disto, a duras penas aprendemos, e por isto temos de estar sempre fazendo revisões. Mas devemos estar vigilantes porque o diabo está usando todos os recursos. Estes exemplos são ilustrativos: ele usa a fonética, a semântica... os desvios teológicos ele até está usando pouco, porque hoje em dia ninguém mais estuda teologia. * Ora, este artigo que escrevi ultimamente para a PERMANÊNCIA visa advertir para dois graves e importantíssimos problemas da nossa vida religiosa. Eu me lembro de ter começado o artigo com uma palavra de Santo Agostinho, lembrando que “A Igreja peregrina na terra entre as aflições dos homens e as consolações de Deus”. As aflições dos homens que atingem os membros da Igreja são de dois tipos: o primeiro, produzido pelos homens que estão fora da Igreja — pelo mundo. Como sabemos, a Igreja peregrina neste mundo entre três cruéis inimigos2, sendo um deles o “mundo inimigo” do capítulo XV de S. João. A palavra mundo é equívoca e tem três sentidos diferentes. Um deles é puramente ontológico: a entidade dos homens que cobrem o planeta, e que Cristo veio salvar. O mundo, neste sentido, é objeto de solicitudes de Nosso Senhor, e não tem conotação moral. Noutro sentido, tem a conotação moral de não fazer parte da Igreja, mas de ser algo neutro, superficial, e costuma-se dizer que é mundano o católico mais preocupado com as coisas deste mundo do que com as coisas da Igreja. Mas este ainda não é o sentido propriamente grave de inimigo da Igreja. Este é o terceiro sentido, usado para designar certos movimentos históricos que no mundo se armam especificamente contra a Igreja, pretendendo ser anti-Igreja, sendo dirigida por Satanás e/ou por homens a seu serviço para a perdição das almas. Porém, quando Santo Agostinho diz “...entre as aflições dos homens e as consolações de Deus”, refere-se também a aflições do mundo neutro, como, por exemplo, quando temos uma reunião social — há sempre alguma pessoa prezada e amada dizendo besteiras contra a Igreja, ou contra sua própria alma e a dos outros. Este é o mundo indiferente que não sabe o que faz, não sabe o que diz. Mas não é propriamente o "mundo inimigo", do qual, infelizmente hoje fazem parte a maioria dos Bispos e religiosos, e aqueles que efetivamente militam contra a Igreja Católica. Ainda há um segundo tipo de aflições dos homens, produzidos pelos próprios membros da Igreja; tratam-se daqueles atritos que produzimos entre nós, uns com os outros, quando deveríamos nos amar e trabalhar em suave e doce concordância a serviço de Deus, mas se interpõe o nosso amor-próprio, produzindo pequenas querelas que sangram o coração e que atrasam a boa causa e o bom serviço, e que, sobretudo, prejudicam o nosso vôo para o céu, que deve ser a nossa preocupação principal. As aflições dos homens, então, para nós, são múltiplas, variadíssimas e nos perseguem por toda parte, por mais que nós nos abriguemos aqui dentro e fujamos — é sempre recomendável fugir um pouco do mundo. É inteiramente contra-indicado para uma alma católica se abrir para o mundo, como foi dito a partir do século XX, como, por exemplo, pela espiritualidade, digamos, de Maritain e sua corrente, de todos os ativistas dos anos 30 e do Papa João XXIII, que se escancarou ao mundo um pouco excessivamente. Mostrar interesse pelo mundo, sim, mas interesse segundo aquilo que é essencial, que é a salvação das almas, e não segundo a sociologia e a economia. Destes problemas a Igreja pode se desinteressar totalmente que não estará fugindo de sua missão — foi isso que os papas do século XIX não perceberam. Maritain diz que se estava processando um perigoso fechamento ao mundo, que se agrava e se torna máximo em 1932. Mas ele aponta a data em que terminou esta confusão: a fundação da revista Esprit, revista característica do progressismo. Ora, nunca vi um pensador descrever um fenômeno tão rigorosamente ao contrário do que aconteceu. Como é que o mundo católico pôde engolir aquelas três páginas em que o filósofo nos diz que foi no século XX que se agravou o rigorismo católico? Onde foi que o pensador observou este fenômeno? No resto de sua

filosofia, Maritain era um mestre, mas nas suas filosofias política e cultural cometeu erros graves, e sua idéia mestra, a de que devemos ser abertos, o põe ao nível de nosso Tristão de Athayde. Ora, a partir do século XVII o que se observa na Igreja é o laxismo, o relaxamento cada vez maior, e a cada vez maior abertura ao mundo. Esse mal veio crescendo e nada o traduz melhor que as aflições dos homens. Pode ser que em outras épocas as aflições dos homens de que sofria a Igreja fossem mais internas do que externas. Essas aflições dentro da Igreja serviram para suscitar pelos seus próprios atritos, movimentos de santificação: a vida de todos os santos é exemplo disso. A pequenez e a mesquinharia de seus companheiros de vida religiosa foram os estimulantes, os instrumentos de paixão, que levaram, por exemplo, Santa Terezinha do Menino Jesus a se santificar. Aquela mesquinharia que a cercava foi a maneira humana de que Deus se serviu para acelerar a sua santificação. As almas verdadeiramente generosas postas em contato com os ressentimentos humanos se beneficiam. Ao contrário, as almas que não são verdadeiramente generosas, de amor-próprio inflamado, nesse contato com outro amorpróprio inflamado, entram no jogo dos ressentimentos. As almas libertadas postas no choque da mesquinharia encontram a ação do sofrimento mais purificador. Santa Terezinha foi mais suscitada a se tornar santa pela mesquinharia das suas irmãs do que pela morte de seu filho espiritual. Essas aflições para ela eram menores do que a mesquinharia e os atritos das casas internas, que é o que há de pior dentro da Igreja. A pessoa que fala em abertura da Igreja, decididamente, não sabe o que é Igreja. Este fenômeno vai desaparecendo e tomando um outro aspecto. A pequenez de uma alma que sai todo dia do mosteiro e vai fazer não-sei-quê programa na televisão, esta pequenez ninguém mais percebe, nem mais se percebe se há alma. O problema desaparece porque fica tudo superficial, tudo mundano, tudo meio imbecil. As pessoas que se contentam com os remédios, com as aspirinas baratas dos psicólogos modernos, dirão que essas pessoas estavam torturadas, que davam sinal de tortura psíquica, e que agora estão mais à vontade, mais oxigenadas. As atuais autoridades da Igreja chamam a isso de aberturas para o mundo, e é por estas mesmas aberturas que as almas se precipitam, e é por esses caminhos, com todas as características do mundo, que as almas se afastam da coisa que existe no centro da Igreja, e que está muito longe de ser amena: a cruz de Nosso Senhor, plantada num dia que escureceu, para que todos nós soubéssemos que a paixão de Nosso Senhor é uma dor, um espetáculo de opróbrio, um espetáculo horrível e sombrio, e aprendêssemos a não procurar aqui neste mundo todas as alegrias, roubadas à verdadeira Esperança teologal. É legítimo o homem ter certas alegrias terrestres, moderadas, de objetos da temperança e da vida espiritual, mas deve-se tomar cuidado com a noção de felicidade inerente à natureza humana. “Todos os homens querem ser felizes”, disse Aristóteles. Mas o católico, o homem salvo pelo Sangue de Cristo, que ouviu um dia, sentado no chão, o Sermão da Montanha — porque todos nós estávamos lá, e, se não estávamos, estivemos um dia ao pé de outra montanha quando um Cristo-sacerdote nos repetiu esse sermão — compreendeu que todas essas bem-aventuranças eram promessas para a Pátria verdadeira, e não promessas para este Vale de lágrimas, porque “o Meu Reino não é deste mundo”. E isto não é fuga, nem recusa ao mundo, e sim a colocação das coisas em seus verdadeiros lugares. O mundo tem uma importância capital para nós, porque é o lugar de nossa santificação, é o cadinho onde nós vamos ser provados, e, portanto, tem um valor infinito. Mas, imaginem se toda uma corrente religiosa se voltar para a procura da felicidade aqui neste mundo, imaginem se uma civilização se polarizar por um marcado hedonismo... Ora, a característica da civilização moderna, que escapou a Maritain, é a do hedonismo desenfreado. O hedonismo é a filosofia do prazer, o culto do prazer. Fazer disto a filosofia da vida é desprezar as bem-aventuranças e cada qual eleger-se as suas próprias. E nunca o mundo foi tão furiosamente hedonista e tão infeliz como o mundo moderno, e nunca os católicos tão abertos para o mundo.

* As consolações de Deus, oferecidas pela Santa Igreja, são principalmente, a Santa Missa, que é o contato com Jesus — “estarei convosco até o fim dos tempos”. É pensar que Ele continua falando ao nosso lado, como em Emaús — “lembra como nosso coração ardia enquanto Ele falava” — e dia-a-dia ouvi-lo, e reconhecê-lo na Sagrada Eucaristia. Essa é a principal consolação de Deus. A outra consolação de Deus, é a de termos dentro da Igreja uma hierarquia protetora: o pastor capaz de dar a vida por suas ovelhas, capaz de ensinar quando aquele quer se desgarrar e errar. Então, com essas duas consolações de Deus nós podemos fazer frente a todas as aflições dos homens. Estamos ameaçados de sermos privados desta principal consolação de Deus com os ataques feitos ao Sacrário e ao centro da vida religiosa, que é a celebração da Santa Missa. E justamente esses ataques estão sendo realizados pela hierarquia, ou seja, estamos também sendo privados de pastores. Não há mais pastores, não sei onde estão. Desde São Pedro até o século VI quantos papas terão sido reconhecidos e apresentados como santos? A resposta é: TODOS. Durante toda a Idade Média, onde houve pela primeira vez uma civilização cristã, o papa não estava ainda tão exposto. A época de ouro para Igreja foi a dos mártires; a melhor posição que a Igreja pode ter neste mundo é a da perseguição. O critério fica proposto em termos bem nítidos: se quiseres servir e ser seguidor de Cristo aí está: César ou o dente do leão. Hoje, para um progressista, é inteiramente impensável que um homem tenha dado a sua vida, e de uma maneira especialmente penosa: ser derrubado no chão, e um bicho enorme, uma boca enorme, um hálito horroroso, aqueles dentes cravando nas carnes e a pessoa morrendo, sendo comida por um bicho. Dificilmente podem imaginar a força de alma de um Santo Inácio de Antioquia que, condenado pelo juízo de Roma, veio de Antioquia, e nos portos em que parava, os cristãos o saudavam e ele fazia um pequeno sermão, onde começava dizendo que era um trigo de Cristo que iria ser moído nos dentes de um leão, e que já tinha impaciência de chegar lá. Esses cristãos que o tinham visto, iam para casa com uma idéia um pouco mais aproximada do que seja o Cristianismo. Esse era um bispo, meu Deus, esse era um bispo de Antioquia! Não admira que neste tempo, se os bispos eram assim, os papas eram santos. Na Idade Média, a civilização era cristã, os santos floresciam e abundavam em conseqüência do martírio, do sangue de mártires que semearam santos pela Europa toda. A Europa encheu-se de santos, as figuras mais belas e gloriosas, durante um milênio. Chegamos, assim, ao século XIII, e o último papa santo da Idade Média foi S. Celestino V. De lá até hoje quantos papas santos tivemos? Dois. Isto em si já significa em que situação está a Igreja em relação ao mundo, e em que situação está o mundo em relação à Igreja, isto deveria indicar algo a todos os papas que reinaram durante esse tempo e, principalmente, a esses mais modernos que tiveram idéias audaciosas. Para cada católico há hoje um critério elementar: se nós queremos saber qual o pensamento da Igreja, devemos procurar ouvir, consultar e ver as palavras e as obras dos dois últimos papas que a própria Igreja nos diz que devem servir de exemplo para nós. A própria Igreja quando canoniza é para isto, é para dizer: “estes devem ser mais especialmente ouvidos, mais especialmente seguidos como exemplo”. Para isto foram canonizados. Ora, justamente os últimos papas reinantes tiveram o cuidado de evitar, especificamente, o que disseram e o que fizeram os dois últimos papas santos: “consultem tudo, menos S. Pio V e S. Pio X”. Ora, o que está canonizado em Pio X é seu pontificado; o que está canonizado em Pio V é seu pontificado. Mais especialmente, o papa Pio X no combate ao Modernismo, aos alargamentos da Igreja, aos aggiornamentos etc. — com S. Pio X aprendemos quais são os erros do mundo; S. Pio V, na codificação da Santa Missa, na sua vida, na sua santidade e na sua obra é um modelo para quem quiser saber o que é Igreja Católica. Para quem

quiser saber as aflições do papado, deve-se ler a história de Alexandre VI e outras, abundantemente traçadas, como a dos papas modernos que perderam a cabeça. * Hoje, acabei de escrever um artigo que se chama “Viva o Chile”, onde começo dizendo, “Leiam: o General Pinochet fez uma declaração no jornal dizendo, “Viva a Espanha do General Franco, apoio integral ao governo da Espanha que está sendo cercado pelo mundo inteiro pelo fato de estar fazendo a repressão ao comunismo e punindo com a pena capital os perversos assassinos de inocentes policiais..., e acrescenta, os outros que se solidarizaram são cúmplices daqueles assassinos”. No dia seguinte houve mais três assassinatos cometidos por terroristas e hoje mais três. E acrescento em meu artigo que, um velho militante, que antes de 1964 sempre lutou contra a perversão e a subversão com risco de vida, e, em 1968, fora novamente ameaçado, diariamente, vê com infinita tristeza que o governo do Brasil, neste episódio, diz que sua política exterior é pragmática. Ora, este termo é rigorosamente sinônimo de amoral. O velho militante que teve sua vida exposta e trabalhou incessantemente antes e depois de 1964 até hoje, não pode acompanhar esta atitude do governo brasileiro que se gloria de ser amoral, ao dizer que o problema dos outros países não nos diz respeito. O combate ao comunismo, mal intrinsecamente perverso, transcende as fronteiras. E quando o Brasil, gloriosamente, foi o único país do mundo a resistir ao comunismo em nome da lei natural, nos deu um critério para desejar que esse mal não estivesse em país nenhum: estar solidário com os portugueses quando eles estivessem sofrendo, e com os espanhóis quando estivessem sofrendo por sua vez, e não para considerar esse um problema da área interna de cada país. Como velho católico, maior ainda é a tristeza quando vejo que o rádio do Vaticano — porque não é ninguém que está falando no Vaticano, mas o rádio, portanto, as ondas eletromagnéticas — faz um pronunciamento reprovando os terroristas, ao informar que eles mataram inocentes... trabalhadores. O rádio do Vaticano, através de seus dispositivos eletrônicos, suponho, filtrou cuidadosamente a palavra policial, porque, do Vaticano não podia sair nada, evidentemente, em defesa de policiais, pois parece que a policia é intrinsecamente má. Torno então a invocar a luta que venho tendo, em razão da qual me ofereço, coloco-me à disposição daqueles que me ameaçaram, porque nunca me escondi, para que façam comigo o que estão fazendo com os policiais da Espanha e que meu sangue caia na cabeça desses que hoje são neutros diante do que acontece na Espanha, ou daqueles do rádio do Vaticano visivelmente a favor dos terroristas. Chegamos a esse ponto. * Nós se quisermos saber onde se perdeu o caminho, onde está a verdadeira Igreja, temos as figuras exemplares a consultar, temos o catecismo a reler. Primeiro a figura do Crucificado que deve estar sempre diante de nós a repetir o Sermão da montanha, essa pregação maravilhosa em que, pela primeira vez, Nosso Senhor anunciou a um povo simples, ignorante, que a felicidade que ele trazia e que ele anunciava não era deste mundo, era o avesso deste mundo. As outras figuras exemplares que podemos consultar e olhar também são os santos, como São João da Cruz, exemplo de amor, que dizia que um só pensamento que não seja dirigido a Deus é um roubo a Sua Majestade. Não deve ser fácil chegar a essa perfeição e ele a chegou com a graça de Deus, mas também com um aproveitamento como muito poucos tiveram, e os santos são aqueles que sabem aproveitar bem a graça de Deus e os não-santos são aqueles que não aproveitam e até desprezam os dons de Deus. A História da Igreja está cheia de Papas medíocres, e o Papa que não é santo é um triste Papa, e o Papa que não põe o problema da santidade em primeiro lugar, é mais triste ainda. O interesse temporal do Papa Paulo VI é publicado todos os dias nas suas alocuções, é ele mesmo quem estridentemente

anuncia que se interessa muito pelos interesses do mundo, pela paz! pela paz! Mas não é pela paz que Cristo veio nos trazer, diferente da que o mundo nos traz, porque não é dessa que o Papa deve cuidar. Esta ele deve deixar com os homens e se voltar mais para os problemas da sua santificação e da santificação de seu rebanho. Em vez de pensar na paz do mundo, em vez de fazer discurso na ONU, em vez de se afligir com execuções de terroristas, em vez de receber terroristas portugueses, receber, sim, os sacerdotes que dão sinais de virtude e santidade. Mas basta dar sinais de virtude e santidade, o Vaticano se fecha, basta dar sinais de subversão e comunismo, o Vaticano se abre. Não estamos sendo atendidos por Deus no tipo de consolação de bons pastores, agora na atualidade do governo da Igreja. Mas temos presentes dentro da Igreja que não têm atualidade, porque ela não é só o dia que passa, abundantes consolações na sua história e, sobretudo, os recursos espirituais do próprio Cristo na cruz, no sacramento da Santa Missa. Estaremos sempre ao pé de Nosso Senhor, estaremos sempre com a cabeça no joelho de Nossa Senhora, basta uma Ave-Maria rezada com um pouco mais de amor filial. As chagas de Nosso Senhor estão oferecidas à nossa adoração e essas são as consolações que nos restam. E dizer isto como se fosse pouco seria a última das últimas palavras que o católico poderia dizer, porque estas consolações sempre serão as maiores. Quanto às outras, paciência. Peçamos, então, a Deus, coragem, porque ela nos vai ser pedida como testemunho.

Transcrição: PERMANÊNCIA 1. 1.[N. da P.]Corção refere-se ao artigo “A voz dos Papas canonizados” 2. 2.[N. da P.] É clássica a distinção entre Igreja Padecente, Triunfante e Militante, pertencendo à primeira as almas do purgatório, à segunda, as almas no céu, e à terceira, todos nós, homines viatores. Combatem esta Igreja Militante e Peregrina os três inimigos a que alude Gustavo Corção, a saber: a carne, o mundo e o demônio.

As duas vontades Esta semana, compelido à busca de alguns textos em vista de um estudo que ainda sonho escrever, passeia quase toda a ler os autores antigos: o Pe.Garrigou Lagrange, o Pe. Gardeil, e a incomparável Doutora Santa Teresa de Jesus em cujas páginas não encontrei o texto exato que procurava, mas encontrei o que não procurava, e que mais me valeu do que se tivesse alcançado aquilo que por deliberação própria procurava. Aproveito para recomendar, na leitura das coisas sábias e santas, este método da falta de método. Creio que o simples fato de nos dispormos a ouvir as palavras de sabedoria nos coloca em posição favorável dentro da comunhão dos santos. Parece que corre no céu um frêmito de alegria, não somente nos grandes momentos em que uma alma faz penitência como também nos pequenos instantes em que um ouvido se inclina para ouvir as palavras da Vida. No prolongamento desta idéia, leitor amigo e companheiro de aflições, pensemos no tesouro imenso que a Igreja há vinte séculos nos oferece. Nesta semana, o passado que não passa descansou-me do exíguo e aflitivo presente que logo passa sem que a maior parte de suas frivolidades ganhe nobreza e solidez de passado. A maior parte da atualidade não passa, perdese, evacua-se, niiliza-se. *** Lendo o Caminho da Perfeição de Santa Teresa d’Ávila, encontramos, desde os primeiros capítulos a lição mais insistente, mais monótona, mais aparentemente convencional dos autores espirituais: a do desprendimento ou espírito de pobreza, que foi também a primeira palavra de Jesus no sermão das Bem-Aventuranças. Ora, por acaso ou favor de Deus, encontrei no belo livro de Garrigou Lagrange, La vie eternelle et les profondeurs de l’âme, a mesma doutrina exposta, não na linguagem ardente, hiperbólica e poética dos místicos, mas na pausada entonação dos teólogos que passam a vida a arrumar as idéias e a logo depois desarrumá-las amorosamente na longa conversação com aqueles que nos trazem notícias das conversações que tiveram no céu da contemplação. *** No caso presente, a lição que complementou a de Santa Teresa foi aquela que nos veio lembrar o desdobramento da natureza humana em duas partes: a da natureza genérica que temos em comum com os animais, e da natureza racional que é específica do homem, e cuja espiritualidade o aproxima dos anjos, e o faz imagem e semelhança de Deus. A este desdobramento de nossa natureza corresponde um desdobramento das faculdades que relacionam o ser vivo com a realidade exterior: a faculdade do conhecimento, e a faculdade do querer. Não podendo, nos limites de um pequeno artigo, abordar metodicamente esses grandes problemas e desenvolvê-los, proponho algumas reflexões sobre as duas vontades do homem. A vontade inferior, ou apetite sensível, que ele tem em comum com os animais, é dirigida para os bens sensíveis de sua mantença e sua reprodução. Nos animais, essa vontade sensível é peculiar a cada espécie e muito simplificada, e principalmente é limitada pela sociedade.